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KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. Configuração na pintura e na literatura. São Paulo.

Perspectiva, 1986

3. O grotesco no Romantismo
1. A teoria
1.1. Friedrich Schlegel
● No Gespräch über die Poesie (“Conversação sobre a Poesia”, 1800), de Friedrich
Schlegel, que é a mais importante idéias estéticas do romantismo inicial, o conceito
de grotesco [...]. Não se pode determinar com certeza até que ponto há, na ideologia
e terminologia, colaboração de A. W. Schlegel na conversação. (KAYSER, 1986, p.
53)
● Em um dos Fragmentos do Athenäum*, de 1798, encontra-se o seguinte: “... e para
esta música de cores, encantadoramente grotesca, do mais elevado e terno capricho,
que costuma soar tão prazerosamente em torno da superfície da grandeza”². A
sugestão é audível: o autor pensa na ornamentação grotesca. (KAYSER, 1986, p.
54)
● Em Gespräch über die Poesie (“Conversação sobre a poesia”), o conceito do
arabesco aparece primeiramente na exposição de Ludovico sobre a mitologia.
Trata-se de uma das passagens centrais da Conversação, onde consoam numerosos
motivos de pensamento, os quais são pensamentos, os quais são objetos, antes ou
depois, de variações em separado. Ludovico chama a mitologia de “obra de arte da
natureza”. Ela lhe parece ter estrutura igual à da “grande chispa da poesia
romântica”, que determinou a construção das obras de um Cervantes e de um
Shakespeare, obras que, segundo o mundo de idéias da Conversação, seriam o
píncaro da poesia romântica. (KAYSER, 1986, p. 55)
● O arabesco é, pois, uma forma, uma estrutura; numa passagem ulterior revela-se até
que ponto há uma intuição na base desta abstração. [...] Mas a valorização e
classificação no sistema da Poética é no entanto outra. Do mesmo modo que Goethe
e Fiorillo consideravam o arabesco, ou seja, o grotesco como uma forma de arte, na
verdade, legítima, mas ainda assim subordinada, também aqui o arabesco é
relegado a um lugar inferior. (KAYSER, 1986, p. 55)
● Criação poética elevada: é Ariosto, Cervantes, Shakespeare, nos quais reina “a
chispa divina e a fantasia”. Em troca, a função do arabesco é a de preparar caminho
para a compreensão destes grandes momentos ou a de uma nova época, isto porque
o tempo presente só é capaz de produzir grandes obras de arte no campo da música,
enquanto que o da criação poética jaz no abandono. (KAYSER, 1986, p. 55)
● O arabesco é – e com isto muda o lugar que Goethe lhe consignara à margem da
arte – a “forma natural” da poesia, a base de toda arte mais sublime,. O tempo
presente não pode criar poesia elevada, mas “tais grotescos e confissões (como as
de Jean Paul e Sterne) são por ora os únicos produtos românticos de nossa época
não romântica”. (KAYSER, 1986, p. 55)
● Por vagas que sejam as definições do conceito do grotesco na Conversação sobre a
Poesia, elas contêm, por certo, muitos dos elementos que nos pareceram essenciais:
a mescla do heterogêneo, a confusão, o fantástico e é possível achar nelas até
mesmo algo como o estranhamento do mundo. Mas falta uma coisa: o caráter
insondável, abismal, o interveniente horror em face das ordens em fragmentação. A
“confusão da fantasia” no grotesco é, para o locutor, uma “bela” confusão. Pois
agora fantasia mergulha naquela torrente que a eleva e a conduz a seu domínio;
agora sente a sua participação naquele fluido, em que tudo – a efetividade da
realidade, bem como “as personagens, acontecimentos e situações” da obra de arte
– se torna “apenas alusões” ao “superior infinito…, hieróglifos do único amor
eterno e da sagrada plenitude vital da natureza plasmadora”. Na lugubridade do
grotesco revela-se, para F. Schlegel, o mistério mais profundo do ser e, destarte, o
conceito adquire outro conteúdo. O grotesco, ou seja, o arabesco, assim definido
por Schlegel, entrou na história. (KAYSER, 1986, p. 56)
● Até agora procuramos determinar o conceito schlegeliano do grotesco, tal como
aparece na Conversação sobre a Poesia ou, mais precisamente, na Carta sobre o
Romance. Aí a crença no poder redentor da fantasia iluminava a noturna escuridão
do grotesco, convertendo-a no albor de um dia ensolarado. Uma outra concepção
manifesta-se, todavia, nos Fragmentos de F. Schlegel, contidos no primeiro tomo
do Athenäum, de 1798. A palavra “grotesco” ocorre oito vezes⁶, sendo agora
nitidamente distinguida do arabesco. [...] Grotesco – assim rezam os Fragmentos
75, 305, 389 – é o contraste pronunciado entre forma e matéria (assunto), a mistura
centrífuga do heterogêneo, a força explosiva do paradoxal, que são ridículos e
horripilantes ao mesmo tempo. (KAYSER, 1986, p. 56)
● Como na estética do século XVIII, os conceitos de caricatura, mas também os dos
trágico e do cômico, penetram agora nos enunciados: “A caricatura é uma
vinculação passiva do ingênuo e do grotesco. O poeta pode empregá-la tanto trágica
como comicamente” (Nº. 396)⁷. Se déssemos outra forma à equação, resultaria que
o grotesco é a caricatura sem ingenuidade. (KAYSER, 1986, p. 56-7)

1.2. “A Idéia aniquiladora do humor”


● [...] Jean Paul em sua Vorschule der Ästhetik (“Introdução à Estética”) não tenha
mencionado esta interpretação e não haja empregado uma só vez sequer a palavra
“grotesco”. Mas a referência reside justamente na omissão. [...] Todavia, mesmo
sem utilizar a palavra, o fenômeno foi divisado e circunscrito através de
“programas” inteiros. Constituiu uma “componente” do “humor”, tal como Jean
Paul procurou defini-lo. Chamou-o de “ideia aniquiladora do humor”. A realidade,
ou seja, o mundo finito como totalidade, é aniquilado pelo humorismo. (KAYSER,
1986, p. 57-8)
● O riso do humor não se apresenta livre; nasce, ao contrário, “aquele sorriso em que
há ainda… uma dor”. Os “melhores” humoristas, devemo-lo a um “povo
melancólico” (os ingleses) O maior humorista, no entanto, seria… o diabo.
(KAYSER, 1986, p. 57)
● Não obstante, por mais aniquilador e satânico que pareça este humor, ele não é
realmente, para Jean Paul, nem abismal e nem apenas destruidor. [...] O
aniquilamento da realidade finita pode e deve realizar-se somente porque o humor,
ao mesmo tempo, conduz para cima, à “idéia do infinito”. As expressões
idiomáticas de Jean Paul, isto é, seu humor aniquilante, assemelha-se ao grotesco de
Schlegel, ou seja, a seu arabesco na Conversação sobre a Poesia. Um conteúdo
espiritual se afigura a Jean Paul tão necessário ao “risível” em geral, que ele não
quis sequer considerar cômicos dois exemplos qualificados como tais por Flöge.
[...] Mas o conteúdo próprio do humor não é de índole exclusivamente espiritual,
como no cômico, mas também religiosa: o céu, no qual voa o pássaro Mérope, não
é um sky (firmamento), mas o Heaven (reino dos céus). (KAYSER, 1986, p. 58)
● Em seus escritos teóricos [de Jean Paul] encontra-se material suficiente para
responder afirmativamente à questão [da definição do conceito de grotesco]. Mas a
passagem pela idéia aniquiladora do humor deixa transparecer, com suficiente
clareza, a familiaridade de Jean Paul com o humor satânico, o qual só destrói, só
aliena, sem nos dar as asas a fim de levantar vôo para o céu. Mas será a idéia do
infinito, do céu, do mundo divino, do corpo luzente – Jean Paul emprega, e como
um traço estilístico significativo, as figuras mais heterogêneas – será esta a idéia,
repetimos, uma certeza nos universos do poeta, tal como foi na cosmovisão do
pensador? [...] Ao ardor todo com que representa as exaltações anímicas de suas
personagens elevadas, mistura-se, não só a tristeza acerca da caducidade terrena dos
grandes momentos, não apenas uma dor pelo fato de tudo ficar nas sensações
subjetivas e as portas do céu jamais se abrirem efetivamente, mas, ao mesmo
tempo, uma dúvida sobre se realmente se trata de portais e muralhas de um céu. O
poeta do seráfico e do dionisíaco teve, afinal de contas, de escrever sempre de novo
as visões do abismal, as aparições noturnas da destruição e do horror de que Deus
não existe. São, provavelmente, as maiores plasmações do grotesco em língua
alemã. (KAYSER, 1986, p. 59)

1.3. La Belle et la Bête


● Após a Conversação sobre a Poesia, de Schlegel, e da Introdução à Estética de
Jean Paul, o grotesco foi objeto de consideração em uma terceira exposição dos
próprios românticos acerca do seu modo de pensar a arte: assim no chamado escrito
programático do romantismo francês, ou seja, no prefácio que Victor Hugo redigiu
para o Cromwell*, em 1827. O grotesco não mereceu apenas a consideração deste
autor, mas deslocou-se para o centro de todas as suas reflexões de amplo alcance.
Victor Hugo converteu o grotesco em característica essencial e diferenciadora de
toda arte pós-antiga (portanto, com inclusão da arte medieval) [...]. (KAYSER,
1986, p. 59)
● Ao grotesco, como “princípio” novo, corresponde uma nova forma: “Cette forme,
c’est la comédie” (“Esta forma é a comédia”). Nesta combinação de grotesco e
comédia parece reaparecer, à primeira vista, a velha equiparação do grotesco ao
comique, ridicule, bouffon. Hugo reconhece, mas apenas com um dos aspectos. O
outro aspecto do grotesco, porém, é constituído pelo disforme, pelo horroroso, com
o qual amplia a acepção do vocábulo francês, dando-lhe a dimensão estabelecida
por Möser, Wieland, Gerstenberg, Schlegel e outros [...]. O Prefácio ao Cromwell
não permite deduzir com segurança se Hugo entende sempre a palavra “grotesco” a
simultaneidade dos dois aspectos. Alguns exemplos que apresenta são apenas
cômicos ou burlescos. Mas, de outro lado, inconfundivelmente, para ele, o ponto
decisivo está no monstruoso e no horripilante. Neste sentido, acumula exemplos
sobre exemplos. (KAYSER, 1986, p. 59)
● Mas para Victor Hugo, os aspectos do grotesco não se esgotam com o
cômico-burlesco e monstruoso-horroroso. Ele o aproxima do feio que, frente à
unicidade do belo, teria mil variantes. É certo que com isto o conceito se dilui
perigosamente e, quando Hugo estuda na poesia, nas artes plásticas e nos
costumes¹¹ “o surgimento e a marcha do grotesco”, a partir da Antiguidade, parece,
às vezes, mal haver ainda uma delimitação. Mas, com os exemplos citados,
coloca-se outra pergunta fundamental: é possível rotular de grotesco uma figura
individual, vista isoladamente [...] e pode-se fazer o mesmo com um objeto
individual, visto também isoladamente [...]? Será suficiente a inequívoca forma
exterior do disforme, do feio? Se assim fosse, o grotesco achar-se-ia ao nível dos
conceitos de forma externa, quer dizer, no mesmo plano do verso branco,
alexandrino, o conto na primeira pessoa ou o drama em cinco atos. Às vezes Hugo
parece tomá-lo nesse sentido. Um nexo mais profundo é dado pelo leitor que,
muitas vezes, não quer decidir previamente, preferindo fazer sua resposta depender
da conexão em que a forma exterior individual tem seu lugar e função. Somente
nesta conexão, como parte de uma estrutura e portadora de um conteúdo, tal forma
adquire valor expressivo e se enquadra no “grotesco”. Já na ornamentação grotesca,
a figura individual e “absurda” era apenas um motivo dentro de um nexo concebido
pronunciadamente como nexo de movimento. (KAYSER, 1986, p. 59)
● Ele mesmo, imediatamente, além do grotesco como um todo e o concebe como
função em uma totalidade maior. Torna-o pólo de uma tensão, em que o sublime (le
sublime) é constituído em pólo oposto.

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