Você está na página 1de 20

A UM DEUS LISÉRGICO

Herberto Helder e a farmácia poética

PEDRO SERRA
GIR EP&B · CLP · HELICOM

Ao Germán Labrador Méndez

Fazendo do diapasão poético um martelo com que enfrentar o


mundo, suas fábulas ou gramáticas, o poeta é tanto um animal – «eu, o
bruto»1 – como um deus terráqueo que, por esta condição rasa, é sempre
«o Deus que há-de vir». 2 Na sua condição dicéfala e furibunda
imanência – muito embora extática, como veremos – reside o poder
destrutivo do seu artesanato enigmático, a poesia devastadora de todo o
objecto teológico e político que a pudesse transcender; e a replicação
deste desígnio temo-la logo na abertura do primeiro de um terno de
livros que integram o que vem sendo conhecido como o regresso de
Herberto Helder: A Faca não Corta o Fogo (2008), Servidões (2013) e,
naquele que é o seu último penúltimo livro, A Morte Sem Mestre (2014).
Refiro-me, concretamente, à linha «até que Deus é destruído pelo
extremo exercício da beleza» 3 , que abre o primeiro dos volumes

1
A Morte Sem Mestre, Porto, Porto Editora, 2014, p. 18. Utilizarei a sigla MSM para
abreviar a referência a este livro.
2
Recorto este sintagma de diferentes versos de A Faca Não Corta o Fogo. Editado nos
finais de 2008 (Lisboa, Assírio & Alvim, 20008), as citações, ao longo deste ensaio,
dizem respeito à nova simulação impressa que foi integrada no volume Ofício Cantante.
Poesia Completa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009, pp. 533-618. Os versos a que me
refiro são, concretamente: «o Deus que há-de vir não veio ainda» (p. 565); «e então o
Deus que há-de vir não há-de vir nunca» (ibidem); «quer dizer: vem o Deus que há-de
vir, sente-se» (p. 566) e «¿e o Deus que há-de vir há-de vir andando sobre as águas?»
(ibidem). As siglas FNCF e OC abreviam estes volumes nas menções feitas nas notas-de-
rodapé.
3
Um sumário cotejo evidencia a incorporação, em 2009, de textos não incluídos em
2008. A este respeito, foi já levada a cabo uma comparação sistemática por Manuel
Gusmão em «Herberto Helder: o poema contínuo na primeira década do 2º milenio»,
Diacrítica, n.º 23|3, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, 2009), pp. 129-144. No
mencionados, e onde temos, no fundo, a poesia a cumprir aquela teologia
primeira e antecessora que Boccaccio lia em Dante. 4 Linha, dir-se-ia,
máxima, completa, pelo programa que carrega no bojo; mas também
mínima, truncada, por não chegar a ser, talvez, um verso, devido
precisamente à sua condição de linha única, inversa de um verso, sempre
antecessor ou sucessor de outro verso. Quem sabe não se miniaturize,
neste quase verso, a condição do opus nigrum de Herberto Helder: um
paradoxal todo que conjunta todos. Como se tem insistido: todos os
livros, um só livro; todos os poemas, um só poema. Isto implica, por
outras palavras, a própria instabilidade ontológica do livro, dos livros
herbertianos, num sentido que foi descrito assim no texto que antecede
Servidões: «Todo o livro vai sendo o seu prefácio, e o posfácio, a
inacessível e prontamente acessível evidência». 5 Enfim, uma nova
formulação da enigmática que independe de aclarações, e mesmo lhes
resiste de forma contumaz. Que significa que um livro seja o seu
prefácio e o seu posfácio? Creio que alude à sua condição
dessincronizada e deslocada em relação ao acontecimento da poesia, a
sua condição de acção, e que neste mesmo texto se descreve também
como um «tema das visões e das vozes»6, isto é, um tema estésico.
Alterada e desregrada, é uma estesia que tem uma figuração
analógica possível na experiência lisérgica. Leia-se a oração diária do
deus animal que é o poeta: «dá-me o êxtase infernal de Santa Teresa de
Ávila | arrebatada ar acima num orgasmo anarquista». 7 Eis, pois, um
primeiro analogon, ou, talvez melhor, o demónio da analogia: o
arrebatamento, o êxtase místico – sublevação sensível e cognitiva que
traz a reversibilidade de tudo no seu contrário. Na imagística paradoxal

presente ensaio, suspendo totalmente as menções a anteriores simulações impressas de


livros e obra completa.
4
Cf. Giovani Boccaccio, Life of Dante, trad. G. R. Carpenter, New York, The Grolier
Club of The City of New York, 1900, p. 104.
5
Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, p. 15. A sigla que abrevia as menções que
faço a este livro é: S.
6
Op. cit., ed. cit., p. 9.
7
Op. cit., ed. cit., p. 98.
da poesia de Herberto Helder, assim, a «ideia de paraíso» é a ideia do
«inferno complexo onde passeia a Beatriz das drogas duras | um inferno
à medida de cada qual dificílimo».8 Perversão da axiologia do binómio
paraíso/inferno que, diga-se, extrai ostensivamente a sua carga poética,
neste Servidões, da negação do mundo, propondo-se, no fundo, essa
carga poética, como modelo possível do paradoxo aninhado no mundo.9
Ora, o meu breve ensaio visa ir ao encontro desta escrita lisérgica, deste
ente totémico que se manifesta e oculta numa «farmácia poética».10
Comecei por aquele «Dá-me um êxtase infernal de Santa Teresa
de Ávila», de Servidões, mas vou conjurar outros lugares. Por exemplo,
de A Colher na Boca, recorto versos que já aí instabilizavam o interior e
o exterior do livro, concretamente do poema «O Amor em Visita». A
oração poética, nesta composição, começando pelo pedido de «uma
jovem mulher com sua harpa de sombra | e seu arbusto de sangue» –
ostensiva referência à mitologia que não deixa de poder incluir a própria
Santa Teresa de Ávila: o deus lisérgico dispõe a endemoninhada

8
Idem, ibidem.
9
Refiro-me aos versos que acompanham o recorte que acabo de fazer: «a ideia de paraíso
é apenas um apoio | para o salto soberano, | não um inferninho brasileiro com menininhas
de programa, | púberes putinhas das favelas» (idem, ibidem).
10
Uma possível entrada na chamada «literatura drogada» é a que temos no livro de
Alberto Castoldi, El texto drogado. Dos siglos de droga y literatura, Madrid, Anaya,
1997. Edição original italiana: Alberto Castoldi, Il testo drogato. Letteratura e droga fra
Ottocento e Novecento, Torino, Einaudi, 1994. Opto pela designação «farmácia poética»
a partir de Enrique Ocaña, El Dioniso moderno y la farmacia utópica, Barcelona,
Anagrama, 1993. A «farmácia utópica» de Enrique Ocaña define-se por termos não
totalmente coincidentes com aqueles que articulo numa «farmácia poética». Seja como
for, um dos parâmetros de um mais amplo projecto de «meta-química» da consciência
ébria, é-me particularmente útil. Para esse projecto, segundo Ocaña, «A pergunta
fundamental versará sobre as condições de possibilidade de uma ‘Meta-química’, e
necessariamente pressuporá uma ‘Estética’, que exponha as modalidades da sensação
ébria, as alterações e inter-relações no complexo espácio-temporal» (op. cit., p. 162).
Levei a cabo uma primeira tentativa de estudo da presença da «farmácia poética» na
literatura portuguesa contemporânea em «Farmacopeia infatigável. Carlos de Oliveira e a
Escrita Lisérgica», in Osvaldo M. Silvestre, ed., Depois do Fim. Nos Trinta e Três Anos
de ‘Finisterra’, Coimbra, CLP · Universidade de Coimbra, 2011, pp. 45-73. Devo a
instigação inicial desta matéria ao excelente livro de Germán Labrador Méndez, Letras
arrebatadas: poesía y química en la transición española, Madrid, Devenir, 2009.
reversibilidade de «musas» e «putas» –, pede figuração lisérgica: «Dai-
me uma folha viva de erva, uma mulher. | Seus ombros beijarei, a pedra
pequena | do sorriso de um momento».11 Soberba súplica, enfim, pela
comparência da poesia, que pode ser «mulher», «pedra pequena» ou
«folha viva de erva». Substâncias lisérgicas que, como figuras plásticas –
ou «imagens orgânicas»,12 como se lhes pode chamar –, não deixam de
atrair quer o arquivo poético histórico, quer a própria materialidade da
superfície de inscrição, também condição de possibilidade da poesia
como acontecimento. Tudo isto é chamado a si pela imagem da «folha
viva de erva», mas também o seu contrário – esta mesma imagem não na
sua função, digamos, simbólica ou representativa, mas na sua dimensão
de presença. Uma presença, claro está – como no livro que é prefácio ou
posfácio de si próprio –, deslocada e dessincronizada. Uma presença
extática, em suma.
A poesia como «folha viva de erva», a poesia, no fundo, como
acontecimento lisérgico, activa amplamente, ainda, a tópica daquilo a
que podemos chamar a página como superfície iluminada.13 O livro A
Faca Não Corta o Fogo recorta uma sua tematização, mas é apenas um
de múltiplos exempla disseminados pela obra poética herbertiana.
Fiquem pois os seguintes versos – recorte provisório, e ressalvando que
esta figuração requer a análise de uma casuística mais ampla – por toda
essa disseminação: «quando alguém se senta nelas, as cadeiras
iluminam-se | pelo sangue posto nelas, e as mesas em que se escreve |

11
OC, p. 19.
12
Eis um exercício arqueológico da dimensão inebriante da «imagem orgânica», que
destaco do já aludido texto proemial de Servidões: «Havia qualquer coisa pérfida e
perversa neste mundo de frutas muito fortes, dos animais esquartejados, dos cheiros, esse
mundo espesso e quente, um mundo de imagens orgánicas» (S, p. 10).
13
Nesta breve nota não me é possível explicitar as implicações que, do meu ponto de
vista, se podem objectivar em torno desta figura da superficie iluminada. Tomo a
liberdade de remeter, neste sentido, para «Superficies iluminadas: imaginación
cartográfica de la poesía transicional española», in António Apolinário Lourenço E
Osvaldo M. Silvestre, eds., Literatura, Espaço, Cartografias, Coimbra, Centro de
Literatura Portuguesa, 2011, pp. 75-104.
talvez um dia se exaltem | do escrito ou do riscado».14 A prece por uma
«uma folha viva de erva, uma mulher» – como prece supondo
diferimento temporal e, também, sublevação espacial – é afinal figura de
uma potencialidade que pode ou não ser actualizada: «talvez um dia se
exaltem».
Não interpelo, nesta oportunidade, todos os lugares textuais da
obra herbertiana em que a «farmácia poética» elabora o seu trabalho de
demoníaca analogia. O amplexo figurativo abarcado é considerável,
embora seja redutível a um marco especulativo que tem no corpo em
transe, e na sublevação espácio-temporal, os seus objecto principais. A
«farmácia poética», neste sentido, mostraria a intensidade da hipóstase e
detonação de binómios como presença/ausência,
continuidade/interrupção, sujeito/objecto, dentro/fora,
ascenção/deposição, entre outros. Por outro lado, é possível perscrutar
uma substancial fenomenologia de estados alterados (ou desregrados),
quer de consciência, quer sensoriais e perceptivos, que os poemas
figuram e apontam como análogos do processo da escrita.15 Proponho,
seja como for, o poema «Um deus lisérgico» – de onde, obviamente,
recorto o título deste artigo –, que integra o conjunto Cinco Canções
Lacunares, como uma das possíveis composições em torno da qual
podemos pivotar a matéria:

Ele viu, a muitas noites de distância o Rosto


saturado de furos ígneos absorvido
em sua própria velocidade
ressaca silenciosa um rosto precipitado
para dentro
noutro lado do que é visto nas formas:
lacunas, parêntesis desapossados, duas tensões
de parte a parte da figura
– ferroadas brancas Ele viu

14
FNCF, p. 532.
15
Uma ulterior tarefa, claro está, seria a do contraste diferenciador da «farmácia poética»
de Herberto Helder com outras escritas lisérgicas, capitalizando valências de leitura de
noções como seja, entre outras, a noção de ‘iluminação profana’.
a fria floresta erguer-se sob o movimento nocturno
das massas e o volume cru do Rosto
com tudo ordenado em si a energia dos pontos
fixos
curva de aço a matéria geral húmida:
água leite desordenado
os meandros percurso feminino
Ele viu sobre o espaço maternal
uma coruscação
estampa presa dentro do fluido
desenvolvimento
a cabeça de um prego engolfada na madeira
e a ponta fulminante
um relâmpago noutra parte o Rosto
martelado nas suas vísceras um nó
veloz, parado como feito no tecido doloroso
da atenção Ele viu o Rosto
e toda a leveza ameaçadora era tragada
pelo núcleo essa primeira sutura
no remoinho da carne
sobre os níveis primários temperaturas vagarosas
o granito bombardeado por refluxos celestes
enxuto, raspado
enquanto a chuva iluminava toda a frente
das terras e o alto aberto e os corredores vaginais
da substância a força da lua no Capricórnio
e tenacidade
Acima das jubas molhadas pelo sangue
Ele viu o Rosto com os seus buracos vertiginosos
concentração
de um feixe de linhas brutais centripetamente
o Rosto a respirar dentro dele
como as malhas dos pulmões onde saltava
o oxigénio selvático16

«Linhas brutais», letras de um vidente – «Ele viu» –, linhas e


letras de um poema em que a plenitude da poesia – a «língua plena»17

16
OC, pp. 252-253.
que temos aludida em A Morte Sem Mestre – é também a sua condição
lacunar. Um visionarismo que activa a consabida aberração de escalas da
poesia herbertiana: o ‘pequeno’ é o ‘máximo’. Poderíamos, por exemplo,
alinhar esta figuração do rosto com aquela que temos no texto proemial
de Servidões. Aí, faz-se uma espécie de prospecção arqueológica que
chega à comparência da figura do killcrop. Provém do tempo das
«imagens orgânicas»: «A nossa própria imagem assustava-nos vinda
bruscamente não sabíamos de onde, de que fundo, de que mundo. Era
uma imagem que se agarrava à nossa, que se introduzia malignamente
em nós carregada de poderes inexplicáveis. Durante uma dessas
tempestades um raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho, que eu
mesmo cobria com o lençol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto:
quem era? um animal demoníaco, uma criança de cabeça zoológica, um
killcrop?»18. Figuração obsidiante que, entretanto, veio a ter uma terrível
replicação em A Morte Sem Mestre, uma espécie de estação terminal que
muda o conteúdo extático do sujeito vidente: «porque é que nunca olho
quando passo defronte de mim mesmo?».19 Olhar e não olhar sendo o
mesmo, como assevera o sujeito do poema, decorre do envelhecimento
do espelho, uma consciência amarga que o faz não querer «ver quão
pouca luz tenho dentro». 20 Perda de iluminação que contrasta com o
rosto do deus lisérgico, saturação ígnea, núcleo coruscante. Rosto que é
um furo, uma lacuna, um buraco da memória que funciona como
conduto por onde circula uma energia impetuosa – líquida e gasosa – que
permite a sua presença física.

17
Eis o dístico a que me refiro: «e encerrar-me todo num poema, | não em língua plana
mas em língua plena» (idem, ibidem, p. 53). Carlos de Oliveira, num conhecido poema
do último livro, Pastoral, conformou também a poderosa imagem do encoframento no
poema. Concretamente, na composição que tem por título «Chave», lemos: «Rodar a
chave do poema | e fecharmo-nos no seu fulgor | por sobre o vale glaciar. Reler | o frio
recordado» (Carlos de Oliveira, Obras de Carlos de Oliveira, Lisboa, Editorial Caminho,
1992, p. 392). Tonalidades decerto muito diversas a destas figurações do poema como
cofre de uma subjectidade alienada ao dictum poético.
18
S, p. 11.
19
MSM, p. 16.
20
Idem, ibidem.
A espacialização das lacunas nos brancos intersticiais do poema –
a lembrarem a violência sobre a superficie da tela dos buchi de um Lucio
Fontana –, faz da página o lugar desse rosto distante, emaranhando
temporalidades. A página, enfim, é superficie que estampa o que é fluído
e acontece como instante que põe entre parêntese o tempo. E porque
tudo isto, na minha leitura, tem uma dimensão auto-reflexiva, a imagem
das ‘massas soerguidas de florestas’ – a lembrar um conhecido lugar de
Carlos de Oliveira – será versão extática de um teatro performativo da
escrita que tem, também, outras versões gémeas. Eis uma delas, de A
Faca Não Corta o Fogo, na qual uma espécie botânica da «farmácia
poética» encontra acomodação, comutando o rosto por uma «mão» em
que muito se insiste na poesia de Herberto Helder: «aloés por onde o
chão respira, | e a mão que brilha quando os toca, | tão pouca mão em tão
nascida obra»21. E, já agora, uma outra modelização, em que o rosto se
metamorfoseia em sopro sónico, uma voz arcaica também muito
presente na obra herbertiana: «alguém algures sobre quente nos ouvidos,
| e te apressa, enquanto corres | algumas braças acima | do chão fluido,
leva-te a luz e subleva, | tão aturdidos dedos e sopros, | até ao
recôndito» 22 . Em quaisquer destes exempla, enfim, sublinho, temos o
trabalho farmacológico figurado como sublevação espácio-temporal.
Iluminação, arrebatamento, epifania, ebriedade ou êxtase
continuam a ser, efectivamente, motivemas com um especial débito em
A Faca Não Corta o Fogo. A saturação de furos ígneos comparece como
«ferida»: «álcool, tabaco, anfetaminas, que alumiação, mijo cor de ouro
e esperma grosso, || tudo quente, e eu risco || e desenvolvo, | mantenho
aberta a ferida, infundo | a miúda, aos poucos, minha, humílima, |
respiração»23. Mais ainda, aquelas «massas florestais» terão uma nova
forma, que em rigor as revela – são, no fundo, as «obras» (do próprio
autor?) num emaranhado em transe: «bêbado das massas em que
embaraço as obras ou | as desembaraço, as obras às dedadas, | e o espaço

21
FNCF, p. 554.
22
Idem, ibidem, p. 563.
23
Idem, ibidem, p. 570.
rodeia-me e depois já não rodeia»24. Enfim, isto significa «que eu habite
uma espécie de eternidade | o clarão–» 25 : o sujeito é corpo extático,
sublevado do tempo e do espaço. No segundo volume que sobrevém ao
famigerado regresso de Herberto Helder, Servidões, a «farmácia poética»
reincide: «oh maldita cocaína, musa minha, droga pura, | minha aranha
idiomática, | estrela de cinco pontas, o fundo do ar ardendo»26. O núcleo
ébrio em combustão tem, novamente, na superfície furada o conduto de
uma energia que arrebata: «substantivos ar e fogo, agarrei-os | num
arrebatamento, | unhas sangrando entre os buracos do papel salgado»27.
Estes lugares, enfim, agudizam a tonalidade dramática de A Morte Sem
Mestre, onde o transe do corpo contrasta com a sua figuração nos
seguintes termos: «(mas no seu corpo nada se levanta | quando estremece
o ar da revoada)» 28 . Continua, isso sim, a replicar a espácio-
temporalidade lacunar – verso entre parênteses – mas trata-se de lacuna
sem o fluxo daquele «oxigénio selvático» que líamos mais acima no
poema «Um deus lisérgico». Ao sujeito do poema de A Morte Sem
Mestre falta, enfim, tudo; isto é, falta a poesia ou «a rapariga esquiva que
ele pense que é um enigma»29.
O que é impressionante no contraste da poesia de Herberto Helder
anterior ou posterior ao regresso – a ser possível ou, se se quiser, a ser
interessante, fazer este corte – é o desgarramento agónico entre uma
potencialidade intacta e uma cada vez mais dubitativa actualização.
Respigo, sem ânimo para ser exaustivo: se em A Faca não Corta o Fogo
lemos já «tu que perdeste o fôlego, | e sim respiras agora do sôfrego que
foste nela» 30 ; ou, em Servidões, deparamos com versos que dizem
«releio e não reamo nada, | a minha vida abrupta é absurda, | a arte da

24
Idem, ibidem, p. 571.
25
Idem, ibidem, p. 593.
26
S, p. 100.
27
Idem, ibidem, p. 103.
28
MSM, p. 15.
29
Idem, ibidem, p. 36.
30
FNCF, p. 543.
iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora»31; no último penúltimo que
é A Morte Sem Mestre, o paroxismo atinge contornos como os que nos
devolvem os versos que nos falam do «curto fôlego» que os desliga, mas
também liga, ao «poema sumério» da origem: «o poema agora por
exemplo não tem simbolismo nenhum, | morro dentro dele sem força
para respirar».32 A escrita lisérgica, a poesia exaltada numa superfície
iluminada, foi tendo na obra de Herberto Helder uma metaforologia
maior no «sopro», na «respiração» – a «tocada coluna de ar | a sorvo e
sopro»33 –, numa espécie de energia pneumática que a habita e, por isso,
a desabita do que a rodeia, do mundo, embora sempre no mundo. Ora,
este «fôlego» é simultaneamente inesgotável e exaurível.34 O que se vai
impondo nestes três livros é o horizonte de paragem da reversibilidade
morte/ressurreição que define a ontologia negativa da poesia como
acontecimento. O pathos destes livros é, diria, de uma soberba
humanidade, de uma poesia soberba. Faz total, e muitíssimo justo,
descaso de toda a tralha academizante da desauratização da poesia, que
percorre quer a prática poética, quer a prática crítica: «eles dizem que a
beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio que é um tema geral da
crítica académica: dessacralização, etc., mas tenho tão pouco tempo».35
Uma coisa, então, será o «[ter] tão pouco tempo» – impaciência com este
academicismo acrítico tanto de poetas como de estudantes de poesia –,

31
S, p. 80.
32
MSM, p. 31.
33
FNCF, p. 538.
34
O que sobrevive, e como sobrevive, quando este poema de A Morte Sem Mestre diz
sobreviverem os poemas sumérios? A resposta, diria, não é tão fácil como se tem vindo a
formular. Pois nela palpita o seguinte. Como conciliar uma noção do poema como
objecto fulgurante que se aniquila na combustão do instante e a sua sobrevivência? A
repetição do diferente poderia proporcionar uma resposta. Mas ela passaria, neste
sentido, por uma noção, digamos, orgânica e formalista do objecto poético. O
metamorfismo teria, assim, na ‘sobrevivência’, uma sua figuração. Ora, talvez esta
resposta não seja totalmente satisfatória, ou, enfim, talvez seja possível um outro
paradigma interpretativo. Isto porque creio que a ‘sobrevivência’ não é tanto figura da
meta-forma, mas sim de uma potência que, actualizada, não se esgota porque se mantém
potência.
35
FNCF, p. 549.
outra coisa que a poesia aurática não aconteça. O Novo é possível, é uma
potência inalienável «entre o poema sumério e este poema de curto
fôlego», pois «tudo isso perdura entre nós dois pelos milénios fora, | e
delas eu estremeço ainda».36 Contudo, para esta poesia, que tem como
condição de possibilidade uma modalidade temporal crónica, o que
significa que agoniza a sua função de acção destrutiva no tempo – das
formas, da tradição, do mundo – o Novo como acontecimento rarefaz-se
na erosão da dimensão material que a determina. Isto é, do corpo que a
determina.
O corpo perde energia, por exemplo, o que recorta, digamos, as
possibilidades da escrita lisérgica, da epifania, o que significa também
que se ressemantiza este acontecimento. A impiedosa composição «A
Elegia de um Burro» que temos em A Morte Sem Mestre começa por
imaginar isso mesmo: «a burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha
velha | e uma pouca de água turva, | e como fica jovem de repente
durante cinco minutos!».37 A tonalidade deste poema, em rigor, não é
exactamente elegíaca. Diria antes que a move uma ironia acre, o
exercício do pensamento que, claro, é sempre um acto de memória. Do
mesmo modo que no poema «há não sei quantos mil anos um canavial
estremeceu na Assíria», a assimilação do poema vibrátil sumério à
vibração do «curto poema lírico» numa Cascais suburbana nos é dado
como um acto do pensamento, no poema seguinte, e penúltimo do livro,
o que temos é a retrospectiva do tempo da epifania. 38 A comoção
epifânica como reverso de plenitude – de unidade, digamos – da
actividade escrevente como disseminação caótica. E, contudo, há algo
que não deixa de sobrevir como súbita revelação contra a epifania
irremediavelmente preterida: «de repente as coisas colocadas
regressaram | e entre elas, dentro, sentado, eu apenas escrevia isto, |
caótico como antes era: | livros, folhas soltas, cadernos, etc., | este

36
MSM, p. 21.
37
Idem, ibidem, p. 43.
38
Cf. ídem, ibidem, p. 54.
pequeno poema que deixava tudo revôlto como dantes era».39 Revelação
negativa – contra a revelação epifânica, sendo que a preposição tanto
pode significar oposição e distância, como contiguidade e encosto – cujo
conteúdo positivo consiste em intelectualizar a vidência, subsumida
agora à enumeração de proposições com a repetição anafórica do
vocábulo «quase». Enfim, se a quase vidência é como «dantes era»
pensada a partir do mediação da escrita – do «isto» que «apenas» se
escreve –, então o que teremos é uma fria e inenfática coincidência entre
a «língua plena» e a «língua plana». E isto, suponho, pode ser um achado
deste último penúltimo A Morte Sem Mestre. O trabalho da morte, como
ostensivamente se consigna no título, mudou. Antes integrava o já
aludido binómio morte/ressurreição ou morte/nascimento que palpita no
âmago de uma poesia entendida como acontecimento – e, como tal,
ruptura, destruição, descontinuidade para que o Novo aconteça.
Por outras palavras, a mortalidade, reiteradamente sensibilizada e
intelectualizada, permitia dar um contorno imperfeito à perfeição do
sublime como negatividade – aquilo a que o poeta foi chamando, e
continuará a chamar, «respiração na escrita». Creio mesmo que o
sintagma «Herberto Helder» – entre outras ponderosas coisas que, como
assinatura, consabidamente é – foi sendo uma espécie de hiperónimo de
toda a objectualidade figural produzida pelo acto de denominação. Neste
sentido, se a denominação tem a sua condição de possibilidade na morte
– na finitude, digamos – «Herberto Helder» é também o seu nome, o
hiperónimo de todos os nomes. «Herberto Helder», enfim, como
killcrop, como criança voraz que fagocita o morto e o torna redivivo
num momento fulgurante. Neste sentido, alguma da diferença de A
Morte Sem Mestre passa por relativamente singulares turbulências nesta
hiperonímia. A par do já aludido «curto fôlego», que decerto podermos
fazer convergir com ‘a morte sem mestre’ do título, deparamos com um
poema como o que tem por incipit «se um dia destes parar não sei se não

39
Idem, ibidem, p. 56.
morro logo». 40 Ora, esta linha foi dita por Emília David, padeira de
Almeirim. Podemos, aliás, ouvi-la dizer a frase ipsis verbis numa peça
audiovisual. 41 Poema que é construído sobre a analogia entre o
artesanato do pão e esse outro artesanato que é a ‘última ciência’
herbertiana, o artesanato poético, trata-se de um texto que tem como
detonação não o dictum do arquivo poético ou de uma anonímia ignota –
como aquela conhecida frase «Meu Deus, faz com que eu seja sempre
um poeta obscuro» 42 , injunção do Outro a sustentar a assinatura do
Mesmo –, mas um enunciado propalado como voz registada em suporte
digital.43 Dir-se-ia que o poema de Herberto Helder faz a remediação, na
simulação impressa do livro, daquela voz sintetizada.
Seja como for, há alguns traços de união entre as duas frases – a
do anónimo que pertence a Os Passos em Volta e a que, agora, vem
assinada por Emília David – que gostaria de destacar: ambas tratam da
paragem e/ou da continuação do obrar, assimilando a padaria à poesia.
Depois, ambas modelizam a «obscuridade» intrínseca à actividade
criativa. Ainda, o penúltimo verso «a mão dentro do pão para comê-lo»
assimila pão e poema, pela figura da devoração – ecolália do
canibalismo baobab ou do killcrop – como do invólucro que encofra. Por
outro lado, sublinharia que o poema é político – veja-se o contraste entre
pães, distinguindo «França» dos «reinos salgados» – e supõe algo como
o readymade. Por último, é talvez bem o exemplo de uma poesia que é
«quotidiano que se torna extraordinário». 44 Concluirei, mais adiante,

40
Idem, ibidem, p. 29.
41
A peça intitula-se «De visita às Caralhotas da Caldeira – Almeirim», foi arquivada no
Youtube, depois de ter passado na RedWeb.tv. Tem a duração de 06:18m.
42
Sobre a importância desta frase, pertencente ao conto «Poeta Obscuro» de Os Passos
em Volta, para uma visão de conjunto da poesia de Herberto Helder, cf. Osvaldo M.
Silvestre, «Da Nova Música à Musica Perennis: Aporias Tardo-Modernistas em Adorno
e Herberto Helder», in ZentralPark. Revista de Teoria & Crítica, 1, Braga, Janeiro de
1999, pp. 109-116.
43
Um contraponto possível desta composição é o poema sobre o escultor Luis Jiménez,
que «morreu esmagado pela sua obra». Cf. FNCF, pp. 608-609.
44
Num poema de A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder faz um envio a Che
Guevara. A «língua máxima» herbertiana é, obviamente, política: «¡que língua, | que
húmida, muda, miúda, relativa, absoluta, | e que pouca, incrível, muita, | e la poésie, c’est
retomando esta questão: o problema do Novo neste A Morte Sem Mestre
passa, como argumentarei, por esta distinção/indistinção entre pães e
poemas, versão herbertiana, dir-se-ia, da possibilidade de diferenciar
entre Cristo e um homem qualquer, ou de distinguir o urinol de
Duchamp, como readymade, de um qualquer objecto banal, como propôs
Boris Groys. 45 Como veremos, o vivo, o morto e o Novo têm uma
refracção da analogia herbertiana entre pães e poemas.
Antes, porém, teço algumas observações sobre um livro de
poemas cujo título é da ordem daquela «pequenez» com valências
«máximas» que, in actu e de modo tematizado, insista-se, percorre a
poesia de Herberto Helder. Comecei por fazer uma alusão à poesia como
diapasão contra o mundo, entremeando alguma instigação nietzschiana –
o martelo, diapasão poético, suponho eu, é o que também estará presente
in absentia no título A Morte Sem Mestre. Refiro-me, claro está, a Le
marteau sans maître, poema de René Char e peça musical de Pierre
Boulez, que recortou do poeta francês, precisamente, versos que
inspiraram e dialogam com a pauta musical. No livro, entretanto,
encontraremos envios musicais, entre eles à dodecafonia. 46 Não
descartaria, tão-pouco, que o «mestre» que o título diz ausente pudesse
ser cotejado pelo «Maître» que, consabidamente, temos em Um Coup de
Dés. Em ambos os casos, a vacilação entre ‘mestre’ e ‘metro’ da língua
original francesa poderá refluir sobre o título do último penúltimo livro
de Herberto Helder. O título, assim, convidaria a uma combinatória
errante que, potencialmente, pode actualizar-se em acertos: uma morte

quand le quotidien devient extraordinaire, e que música», | que despropósito, que língua
língua» (OC, p. 573). Mediado pela língua francesa, de Aragons e Bretons, a tópica de
um quotidiano iluminado percute todo um programa revolucionário estético-político. O
pão do quotidiano dá-se ao poema, e o inverso também é verdade.
45
Cf. Boris Groys, «On the New», Artnodes. Intersection between arts, sciences and
technologies, Barcelona, Universitat Oberta de Catalunya, Dezembro 2002. Disponível
em: www.uoc.edu|artnodes|espai|eng|art|groys1002|groys1002.html.
46
Cf. MSM, o poema das pp. 34-38. Aí, as «fêmeas ininterruptas» que são trazidas às
«câmaras» do «rei» integram um musarum onde, para além das primitivas «teoria
dodecafónica» e «frauta cabreira», se juntam ao elenco as vozes de Marlene Dietrich,
Marilyn Monroe e Mahalia Jackson.
sem mestre, um martelo sem mestre, uma morte sem metro. Morte,
metro, mestre, martelo não perdem a intensidade que lhes empresta, no
fundo, o demónio da analogia. Assim, a ‘pequenez máxima’ do título –
cheia de «putas» que são «musas»,47 como acabo de sugerir brevemente
– devolve-nos ao ente totémico e à ferramenta musical – rítmica – e
imagística que é a sua: seja a poesia como um martelo que percuta nas
cordas de um piano ou que o afine, por exemplo; seja a poesia, também,
como ferramenta de demolição, outro nome da sua Beatriz, outro nome
da pulsão exterminadora que a/o anima. A força da batida terá, ainda, no
martelo aural uma sua figuração possível, osso que rebate no crânio
provocando que ressoe o som oco do mundo.48
O demónio da analogia – a «obscuridade» do texto submetido à
«farmácia poética», a escrita lisérgica –, em A Morte Sem Mestre,
decerto nos permite aventar a hipótese de que o vocábulo «intencional»
da epígrafe anterior à folha de rosto não tenha tanto o sentido de
‘propósito’ mas sim de ‘projecto’. Ou, melhor, talvez viva da
impossibilidade de decidir entre as duas acepções. Não seria sem
consequências este movimento pendular, este balanço entre um e outro
sentidos, em última instância carente de sentido. Determina-nos que,
entre outras coisas, voltemos atrás – ou, quem sabe, talvez esse
movimento nos empurre a um fantasmal ‘à frente’ prefigurado por um
sintagma ‘fora dos gonzos’ encravado entre uma condição antecessora e
sucessora – e nos enredemos no abismo do ‘parecer’. Pois, qual o
conteúdo referencial do sintagma «tudo o que possa parecer acidental»?

47
Chamo a atenção para o poema cujo primeiro verso diz: «mal com as – soberbas! –
pequenas putas que me ensinaram tudo» (MSM, p. 23). A «pequenez» destas «putas»
aponta-nos para poetas e poesias, a baudelairiana arte como prostituição. Diría que este
poema modulas diferentes modos de «acabar mal», o que poderia ser mesmo uma
descrição de A Morte Sem Mestre. Este «mal», claro, será a própria literatura como
«mal». Que as «putas», ou «musas», sejam «soberbas» requeriria algum comentário
mais. Desde logo, a partir do excelente ensaio de Marcos Siscar, Da Soberba da Poesia.
Distinção, Elitismo, Democracia, São Paulo, Lumme Ed., 2012.
48
Cf. Friedrich Nietzsche, O Crepúsculo dos Ídolos, in The Anti-Christ, Ecce Homo, The
Twilight of the Idols, ed. Aaron Ridley e Judith Norman, trad. Judith Norman,
Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 155.
Similar a algo ‘acidental’? Levar a crer que se trata de algo ‘acidental’?
O símil de um acidente é um acidente? O ludíbrio de um acidente é um
acidente? Já agora, o que deveremos entender por ‘acidental’, neste
contexto e cotexto? Algo imprevisto? Algo não essencial? Creio que não
foi ainda alvitrada a possibilidade de com este paratexto estarmos
perante – em rigor, e como de resto sugere a disposição na página – não
de um conteúdo proposicional aferível por um princípio de verdade, mas
sim diante de um dístico: versos. A ser assim, adensa-se a trama, pois a
dobragem autorreflexiva daquele «parecer» determinaria, por exemplo, o
refluxo da latência etimológica da forma – «tudo o que parecer
acidental» apontaria, pois, para o latim parere, isto é, ‘aparecer’. O que
concederia ao sintagma o aspecto de antecipação de uma peculiar
fenomenologia da leitura – a leitura como aparição do acidental, como
quem pudesse dizer que no meio do caminho haja uma pedra, um
acidente de percurso, um percurso do acidente. Ou talvez mesmo, e será
esta a opção mais estimulante, do meu ponto de vista, diria que
‘acidente’ ou ‘acidental’ podem atrair um outro sentido: o de ‘linha que
se junta ao pentagrama para as notas que o ultrapassam’. Isto é,
«acidental» teria uma acepção musical, estabelecendo, assim, uma
conexão com a alusão aninhada no título ao Marteau Sans Maître –
poema de René Char e peça de Pierre Boulez – e, depois, à primeira
‘linha’ do primeiro poema do conjunto: «nunca estive numa só linha a
tão vertiginosa altura».49
A aceitarmos que a epígrafe «Tudo quanto neste livro possa
parecer acidental | é de facto intencional» não é sem consequências para
a leitura de A Morte Sem Mestre, temos então que se trata de um
demoníaco paratexto, desde logo situado alhures – não propriamente no
frontispício, mas antes numa das folhas de guarda não paginadas,
concretamente no recto da folha de guarda de cor creme que separa a
folha de guarda negra e marsupial que contém o CD da folha de rosto
propriamente dita –, um paratexto em rigor amparado pela assinatura de

49
MSM, p. 7
Herberto Helder – duplicada na sobrecapa em versão manuscrita per
simulacrum caligráfico e na capa em forma tipográfica, a que
acrescentaria a tréplica da voz digitalizada do CD –, mas que pela sua
natureza é também texto. Neste sentido, não descarto uma homologia
entre a epígrafe e o primeiro verso, fazendo vibrar a razão topológica
que distinguisse ‘dentro’ e ‘fora’ do livro. O que aliás é apenas uma
réplica de uma outra vibração que igualmente provoca instabilidade na
continuidade/descontinuidade da superfície de inscrição: antes da
simulação tipográfica do livro temos a voz de Herberto Helder simulada
digitalmente a representar 5 poemas seleccionados do todo tipografado.
O CD, dir-se-ia, poderá ser mesmo aquela superfície para a qual o sujeito
negativamente aponta quando diz: «nunca estive numa só linha a tão
vertiginosa altura». Mas nada o garante, claro está, porque esta «altura»
pode igualmente ter, não um sentido espacial, mas sim um valor
temporal: a «vertiginosa altura» será, assim, o ‘momento’ in extremis da
vertigem que vai sendo amplamente tematizada no livro: o «alvoroço
mortal deste fim | de idade»50, a «bela morte num dia seguro em qualquer
parte» 51 , a «morte do corpo» 52 , o «trabalho artesanal da morte» 53 , a
«morte módica»54, ou a morte «tão cara»55. Morte, vida e sobrevivência
imiscuem-se numa paroxística e decerto impossível síntese de uma
problemática que poderíamos redescrever ou enunciar assim: o poema e
o corpo não são mortais da mesma forma.
Concluo, então, avançando por uma releitura que visa extrair
algumas consequências da «farmácia poética», no fundo uma das
complexas figurações que sustentam o também complexo binómio
vida/morte. Que o poeta diga «respiro enquanto escrevo»56, como lemos
em A Morte Sem Mestre, para além de atrair coisas como a confluência

50
Idem, ibidem, p. 8.
51
Idem, ibidem, p. 9.
52
Idem, ibidem, pp. 11 e 20.
53
Idem, ibidem, p. 13.
54
Idem, ibidem, p. 51.
55
Idem, ibidem, p. 57.
56
Idem, ibidem, p. 25.
de arte/vida, significa que é na poesia que encontra quer a vida, quer a
morte. Da tensão agónica que as entrelaça procede, enfim, a alta
intensidade da paixão que move esta poesia, este poeta. Isto foi sendo
dito de muitas maneiras, fazendo, da sua, uma poesia que é que,
consabidamente, meditatio mortis. Enfim, lembro uma dessas maneiras,
aquela que num lugar notável de A Faca Não Corta o Fogo, estação
fulcral da arquitectura poética deste conjunto de poemas, Herberto
Helder consigna versos de Camões, poeta que o acompanha desde
sempre. São versos cravados num dos poemas do livro: «e tu, Canção, se
alguém te perguntasse como não morro, | responde-lhe que porque
morro».57 Trata-se de um conhecido passo da Canção IX, cujo incipit é
«[Junto de um seco, fero e estéril monte]»58, objecto de um ensaio de
referência de Aguiar e Silva,59 que interpreta estes versos no contexto
dos séculos áureos da península ibérica, séculos em que se glosou em
regime quer profano quer sacro a tópica stilnuovista e petrarquista da
«morte de amor». Assim, há que distinguir a fórmula de Camões ‘não
morro porque morro’, da versão cunhada pela grande poesia mística
espanhola representada por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz:
«muero porque no muero».60 A apropriação que Herberto Helder faz da
fórmula camoniana naqueles «inéditos» de A Faca Não Corta o Fogo,
do meu ponto de vista, supôs uma intensificação física da consciência da

57
OC, p. 582.
58
Luís de Camões, «Canção IX», in Rimas, J. da Costa Pimpão (ed.), Coimbra,
Almedina, 2005, pp. 220.
59
Vítor M. Aguiar e Silva, «As Canções da Melancolia», in Camões: Labirintos e
Fascínios, 2ª ed., Lisboa, Cotovia, 1999, pp. 209-228.
60
Citado por Aguiar e Silva que, entretanto, esclarece: «A morte de amor, para além de
ser um tópico que exprime o sofrimento mortal do amante, pode representar, quer no
plano do amor humano, quer no plano do amor divino, a consumação do amor, o clímax
da união amorosa e por isso tanto o trovador-amante como o místico-amante anseiam por
esse momento supremo e morrem porque não morrem. Ora Camões diz literalmente o
contrário da letrilla do século XV e das glosas dos dois santos e místicos do século XVI:
não morre, porque morre e assim vive. Este paradoxo explica-se à luz da concepção
neoplatónica do amor. Como ensina Marsilio Ficino, “está morto em si aquele que ama”,
mas o amante vive no ser amado, transforma-se no ser amado e, portanto, porque morre
de amor em si mesmo, não morre, porque vive na mulher amada» (idem, ibidem, p. 220).
mortalidade – «morro» – o que simetricamente inflaciona o «não
morr[er]». A poesia, como a língua, são o corpo físico que entra na liça
da dialéctica do amado e da amada. Amante da amada língua, o poeta
morre e vive nela. A poesia é a sua continuação em modo deste «não
morr[er]»: a poesia será esta sobrevida.
Ora, talvez possamos deslocar ligeiramente o marco especulativo
que acomoda a problemática, e começar por dizer que o desiderato de
uma arte viva, como sabemos, provém do tempo das vanguardas. Neste
sentido, Boris Groys argumentou já, de forma convincente, que ao
contrário da ideologia do novum de muita da retórica e poética das
vanguardas, o Novo extrai a sua condição de possibilidade do arquivo,
do museu ou da biblioteca. 61 E não ao invés, como vanguardas e
neovanguardas foram asseverando. Isto significa, entre outras coisas, que
é no arquivo, museu ou biblioteca que o vivo se joga: «O museu dá-nos
uma definição muito clara do que para a arte significa parecer real, vivo,
presente: significa que não pode parecer-se à arte que já se encontra
museificada ou coleccionada. Aqui a presença não é definida unicamente
em oposição à ausência. Para ser presente, a arte tem também que
parecer presente, o que significa que não pode parecer-se à arte antiga e
morta do passado, tal como é apresentada nos museus».62 Por outro lado,
o Novo não é apenas uma figura de uma retórica da temporalidade como
processo, isto é, como destruição. O Novo supõe uma «diferença sem
diferença», que é o tipo de diferença que permite distinguir Cristo de um
qualquer homem ou, no âmbito da arte, um readymade de um objecto
quotidiano. Impõe-se, então, uma «diferença sem diferença», pois
qualquer diferença que se reconhecesse já não o seria. Assim: «De
acordo com isto, podemos dizer que o Urinário de Duchamp é um tipo
de Cristo entre as coisas, e a arte dos readymades um tipo de Cristandade

61
Op. cit., ed. cit.. Afirma Groys: «quanto mais queres livrar-te do museu, mais sujeito
estás, no modo mais radical, à lógica das colecções dos museus e vice-versa» (p. 3; eu
traduzo da língua inglesa).
62
Idem, ibidem, p. 4.
na arte».63 Para o problema suscitado pelo A Morte Sem Mestre, enfim,
concretamente a composição que assimila pães e poemas – movida pela
apropriação poética de um dictum de Emília David, padeira de Almeirim
–, este marco especulativo é importante. Pois, dir-se-ia que nos confronta
com a noção de que um poema só parece vivo, precisamente, por se
parecer com algo tão banal como um pão. Neste sentido, A Morte Sem
Mestre, um livro – talvez como qualquer códice –, é determinado pela
lógica do arquivo. O códice arquiva o dictum de Emília David,
vivificando o poema; no mesmo lance, mortifica o dictum, produzindo a
diferença que nos permite separar arte e vida. Com um suplemento
paradoxal acrescido: no códice, como arquivo, o dictum produz e
representa a ilusão de pães e poemas infinitos, e que o fossem também
fora do arquivo.64 Que esta ilusão aconteça significa que é no arquivo
que se produz o efeito de presença. E a ser assim, isto tem consequências
para o modo como ponderamos o binómio vida/morte na «farmácia
poética» de Herberto Helder. A condição de possibilidade de
iluminações, arrebatamentos ou epifanias, da ebriedade ou do êxtase, é a
superfície iluminada dos códices que simulam tipograficamente versos,
poemas e livros de poemas. Ou, enfim, o próprio CD-ROM apenso, na
folha-de-guarda marsupial, ao último penúltimo volume de Herberto
Helder, A Morte Sem Mestre. Não nos foi dizendo, aliás, o poeta, outra
coisa. À luz do marco especulativo esboçado, o trabalho editorial que foi
levando a cabo, ganha novos contornos. E adquirem novas ressonâncias,
enfim, versos como «– nome é baptismo | imo é o sítio».65

63
Idem, ibidem, p. 5.
64
Cf. idem, ibidem, p. 6.
65
MSM, p. 52.

Você também pode gostar