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Todo o poema se desenvolve em torno da expressão da 

angústia do sujeito
poético.

          Logo a abrir, o deíctico demonstrativo «esta» (repetido em anáfora nos


versos 1 e 2 com a finalidade de expressar o estado de alma do sujeito) e o
adjectivo qualificativo «velha» remetem para a temática da angústia, para a sua
presentificação.
          O sujeito poético pretende comunicar que a angústia o consome (o
complemento preposicional «em mim» relaciona-o precisamente com esse
sentimento) e é real ("Esta (...) angústia, / Esta angústia» - vv. 1-2; «este mal-
estar» - v. 9) e se vem a desenvolver na sua alma («em mim» - v. 2), desde a
idade da razão, desde que começou a tomar consciência de si («velha» - v. 1;
«que trago há séculos em mim» - v. 2 - notar a hipérbole, para mostrar o
enraizamento, a duratividade da angústia, já sugerida pela expressão «trago (...)
em mim»).
          Por outro lado, a angústia do sujeito poético é «tanta» e dura há tanto tempo
que «transbordou da vasilha» (metáfora - v. 3), isto é, ele (o seu coração, a sua
alma) já não comporta mais, por isso não a pode esconder e tem de a exteriorizar
através das lágrimas, de grandes imaginações, de sonhos e de grandes emoções 
(vv. 4 a 6) - notar a anáfora, a estrutura paralelística e os nomes abstractos que
designam os sentimentos e as emoções. Além disso, a adjectivação («grandes»)
sugere que as «imaginações» e as «emoções» são muito numerosas, muito
intensas ou muito elevadas e distanciadas da realidade. Por outro lado, os nomes
abstractos «pesadelo» e «terror» traduzem o carácter opressivo dos sonhos, o que
os torna semelhantes a pesadelos, embora sem o medo que eles instilam («sem
terror»). Por último, convém atentar no valor expressivo do modificador
preposicional «sem sentido nenhum», que destaca a desproporção entre a
intensidade das sensações experimentadas e a falta de lógica da sua existência.

          Na segunda estrofe, despojado de qualquer argumento, em anáfora com o


verso 3,
repete-se a ideia de que a angústia transbordou, com a forma verbal isolada, a
sugerir que se trata de uma situação inexorável. Além de angustiado, o sujeito
poético sente-se perturbado, com mal-estar, sentimentos que deixam marcas na
sua alma: «pregas» (metáfora que traduz o incómodo) e um sentimento de
indefinição («Mal sei como conduzir-me na vida» - v. 8).
          Este estado de espírito leva-o a expressar um desejo: «endoidecer
deveras». O advérbio de afirmação «deveras» permite inferir que o sujeito poético
caminha para a loucura, mas conserva a lucidez suficiente para o reconhecer,
embora preferisse perdê-la em definitivo («Se ao menos endoidecesse deveras» -
v. 10). Esse estado de loucura seria uma solução para um estado de espírito de
pré-demência, de indefinição, um «estar entre» (v. 11), «ser quase» (v. 12), «poder
ser que» (v. 13). Repare-se no tom gradativo, na disposição anafórica, na
insistência nos demonstrativos «este (...) / Este (...) / Este (...) / Isto» (vv. 11 a 14).
Os últimos versos desta estrofe vão-se tornando mais suscintos, sugerindo que o
sujeito poético mergulhou de tal forma na sua introspecção que se alheou de tudo
o resto, culminando no pronome demonstrativo «isto», que exprime a sua dor e a
dificuldade em traduzir e exteriorizar o seu estado de alma, além da
contemporaneidade da situação. Por outro lado, as frases incompletas e as
reticências exprimem hesitação, incerteza e ansiedade.

          Na terceira estrofe, o sujeito poético começa por afirmar que «Um internado
no manicómio é alguém», uma generalização traduzida pelo artigo indefinido
«um». No verso seguinte, declara que é um internado num manicómio sem
manicómio, paradoxo que significa que o sujeito não é «ao menos alguém». O seu
estado é de ambivalência, dividido entre a loucura («Estou doido», «louco») e a
lucidez, a consciência do que se passa consigo («Estou doido a frio», «Estou
lúcido», «e igual a todos»). A metáfora paradoxal «Estou doido a frio» traduz,
precisamente, a sensatez e a lucidez do sujeito poético. Ele está doido mas tem a
consciência dessa loucura. De notar a estrutura anafórica dos versos 17 a 20.
          O recurso aos quantificadores «tudo» e «todos» é particularmente
significativo neste contexto. Assim, em «Estou alheio a tudo», o quantificador
reflecte o estado de indiferenciação e de alienação do sujeito a todas as pessoas,
coisas e situações. Já em «igual a todos», o «eu» apresenta-se num plano de
equidade relativamente a toda agente. A explicação para esta dicotomia surge nos
três versos seguinte e é anunciada pelos dois pontos. Embora esteja atento ao que
se passa consigo («desperto»), ele não consegue, por falta de estímulo, superar o
estado de passividade («Estou dormindo com sonhos»). Este nome («sonhos»),
associado ao acto de «dormir», aponta para a manifestação do inconsciente,
enquanto ligado a «desperto» implica a co-existência da imaginação e da
consciência, o que, mais uma vez, remete para um estado intermédio - o tal «estar
entre» a que se referia no verso 11. Por isso, a ideia transmitida pela oração
subordinada adjectiva relativa restritiva que caracteriza o nome «sonhos» - «que
são loucura» - prefigura um estado de alienação; porém, a oração «porque não
são sonhos» remete para a indefinição permanente que o último verso desta
estrofe associa ao presente através do recurso ao presente do indicativo e ao
advérbio de modo «assim». As reticências acentuam a ideia de indefinição e
denunciam o desânimo e o desalento que envolvem o sujeito poético.
          Este estado de indefinição e de alienação levam-no, de seguida, a invocar
(apóstrofe) a sua «Pobre velha casa» (note-se que também a angústia foi
adjectivada como «velha»), o símbolo da sua «infância perdida». A adjectivação
com que a casa é qualificada revela os sentimentos e as emoções que assaltam o
sujeito poético neste momento em que a invoca: o afecto, a protecção, o refúgio, a
paz e a tranquilidade, o viver campestre. No entanto, note-se como ele, de certa
forma, projecta na casa a piedade e a comiseração que sente por si próprio. É que,
além de tudo, a casa, a prova palpável de que existiu um outro tempo, está
modificada e esse tempo e essa situação são irrecuperáveis (ideia traduzida pelo
particípio passado com valor de adjectivo «perdida»). Repare-se como há aqui,
pelo menos, dois tempos em confronto: o passado da infância e um tempo
posterior, equivalente à situação que o sujeito poético vive presentemente.
Assinale-se, por outro lado, a utilização da expressão «me desacolhesse» (o verbo
encontra-se na forma reflexa) e do intensificador «tanto», que explicitam o grau de
responsabilidade do «eu» na origem / criação da situação em que se encontra. De
facto, ao socorrer-se do pronome pessoal reflexo «me», parece indiciar que não é
a casa que não lhe dá mais abrigo, mas que ele é que o recusa. O ponto de
exclamação revela que o pronome interrogativo é, neste caso, empregado para
reforçar o tom de admiração, o sentimento de espanto perante o carácter
inesperado e excepcional da situação que vive.

          Nos quatro versos seguintes (25 a 28), o sujeito torna clara a contraposição
entre o passado e o presente. De facto, as interrogações apontam para um tempo
passado - o da infância, personificada ao longo da estrofe, pois é apresentada
como sendo capaz de ouvir, de compreender e de ser cúmplice do «eu» - símbolo
casa -, durante o qual ele viveu protegido («teu menino» - repare-se na metonímia:
o nome «casa» está a representar outra realidade, nela centrada - a família),
tranquilo («dormia sossegado» - note-se que o pretérito imperfeito do indicativo
denuncia o carácter iterativo da situação «dormir»), abrigado / protegido («sob o
teu tecto provinciano»). Já as respostas a cada uma das respostas remetem para
o presente, caracterizado por um estado de locura («Está maluco»). Além disso,
no último verso a reiteração do pronome «quem», sendo o primeiro interrogativo e
o segundo relativo («Quem de quem fui?»), explicita a ânsia que o sujeito poético
tem de reencontrar o «quem» do passado, da infância. No entanto, a presença da
forma verbal «fui» (pretérito perfeito do indicativo) encerra em definitivo esse ciclo
e torna coerente o presente enquanto tempo de alienação.

          A consciência que o domina e faz sofrer leva-o a desejar, na estrofe


seguinte, uma solução para o seu drama: uma religião qualquer (repare-se como o
quantificador universal «qualquer» traduz o desespero e a ansiedade com que o
sujeito poético busca algo em que acreditar). A título exemplificativo, relembra
«aquele manipanso / que havia lá em casa», o objecto representativo de algo que
deve ser venerado, trazido de África. O «eu» projecta, assim, a sua procura
naquele de que se lembra. Por outro lado, os dois adjectivos que qualificam o
manipanso («feiíssimo», «grotesco») traduzem o seu aspecto repulsivo,
hiperbolizado pelo grau superlativo absoluto sintético do primeiro adjectivo. Em
contraponto, o verso 33, constituído por uma oração coordenada adversativa,
atribui ao ídolo um carácter divino, o que o torna digno de ser reverenciado
(quando os adjectivos mencionados o apresentavam como algo grotesco, feio e
perverso). Além disso, a característica da divindade acaba por ser alargada a
todas as coisas no verso 33, através do quantificador«tudo».
          No verso seguinte, refirma o seu desejo de «crer num manipanso qualquer»,
evidenciando deste modo que procura por todos os meios ultrapassar a angústia
que o domina. Porquê? Porque a fé, a crença são do domínio do não racional -
representa por isso
a subordinação da razão à sensibilidade - e a razão, o pensamento, a lucidez são
a causa do seu sofrimento. Logo, a crença constituiria a forma de se libertar desse
sofrimento, daí que afirme que qualquer representação do manipanso (Júpiter,
Jeová ou a Humanidade) «serviria». No entanto, o sujeito poético demonstra
claramente que está consciente de que tal desejo não é possível de alcançar ao
fazer uso do presente do modo condicional («Qualquer serviria» - v. 36). E a
justificação prossegue no derradeiro verso desta estrofe: a omnipotência do pensar
- o significado das coisas depende daquilo que pensamos delas («Pois o que é
tudo senão o que pensamos de tudo?». Por conseguinte, basta pensarmos
nalguma coisa para que o objecto de pensamento se converta naquilo que se
pensa dele.

          No último verso do poema, o sujeito poético exorta o coração, «sede»


tradicional do sentir, a «estalar», pois tal constitui a derradeira e única solução
para a angústia / o sofrimento em que vive, dado que as demais não resultaram (a
infância porque irrecuperável; a crença porque toldada pela presença constante da
lucidez). O coração é de «vidro pintado», metáfora que significa a sua fragilidade e
uma atitude de fingimento, presente na ocultação da transparência inerente ao
vidro, o que permite concluir que a sensibilidade ainda reside nele, que o faz
sofrer, nem que seja pela simples consciência da sua presença.

          Repare-se, pór último, que a confusão psicológica do «eu» e a sua


incapacidade para ultrapassar a angústia se espelham na forma do poema,
nomeadamente na irregularidade estrófica e métrica, bem como na pontuação, que
reflecte a emotividade do discurso (por exemplo, o uso das reticências e do ponto
de exclamação).

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