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Análise do poema "Gato que brincas na rua"

À semelhança do que faz em "Autopsicografia", Pessoa parte de uma imagem,


de uma cena do quotidiano, neste caso um gato a brincar na rua. Além disso, o poema
recorda-nos "Tabacaria", nomeadamente o momento em que a sua atenção se centra
na rapariga que come chocolates, absorta do resto do mundo. Ora, sucede que é esta
ausência de preocupação que o espanta, intriga e lhe desperta a «inveja» que espelha
no poema em análise.
O assunto da composição poética é o seguinte: o sujeito poético interpela um
gato e constata que este é feliz porque é inconsciente / irracional.
O tema do poema é, mais uma vez, a dor de pensar, motivada pela
intelectualização do sentir, do qual decorrem outras temáticas caras ao poeta: a
felicidade de não pensar; o isolamento do «eu» face às «pedras e gentes»; a inveja
sentida pelo sujeito poético relativamente à inconsciência do animal; o
desconhecimento, a sensação de estranheza do «eu» em relação a si.
O poema abre com a apresentação da referida situação de um gato que o
sujeito poético observa a brincar na rua como se fosse na cama (comparação que
enfatiza o à-vontade e o conforto que o gato sente na rua, a sua casa; salienta também
o caráter intuitivo do animal, que não lhe permite ter consciência das inconveniências
e dos perigos que corre). Esta circunstância coloca-nos desde logo na presença de um
animal feliz (porque está a brincar) e ao mesmo tempo tranquilo, despreocupado,
indiferente e inconsciente do perigo (novamente a comparação «como se brincasse na
cama») por ser irracional, não pensar. Por outro lado, sugere-se que o gato age no
exterior e no contacto com os outros («na rua» - v. 1) com a mesma naturalidade com
que brinca na cama, na sua «intimidade». Assim, o sujeito poético sugere que o gato
não age segundo quaisquer convenções, antes vive apenas de acordo com a sua
vontade e os seus instintos próprios de animal irracional. Além disso, tem «sorte», a
sorte de ser inconsciente dos perigos, de ser irracional e não pensar, por isso cumpre o
seu destino sem se lhe opor minimamente, não o questionando (v. 5), cumprindo
assim, no fundo, a ambição de Ricardo Reis, que é a de sentir o destino como algo
inevitável.
O verso 4 (“Porque nem sorte se chama”) sublinha a ausência de intelecto no
gato: só o facto de atribuirmos um nome ou fazermos um juízo acerca de uma
realidade pressupõe o uso do pensamento, capacidade que o gato não possui, logo
“nem sorte se chama”.
Como não pensa, é o «nada», mas é-o plenamente e é feliz, porque não se
conhece, regendo-se pelos seus «instintos gerais». «Todo o nada» que o gato é,
porque não pensa no que é, pertence-lhe, já que depende exclusivamente dos seus
sentidos. Ao contrário do que sucede com o sujeito poético, no gato predomina o
sentir sobre o pensar: o animal não tem consciência do que sente, limita-se a sentir (v.
8). Em suma, é feliz «porque [é] assim», isto é, irracional, inconsciente, porque age por
instintos. De facto, o gato rege-se por “leis fatais”, tem “instintos gerais” e apenas usa
os sentidos (“E sentes só o que sentes”). Assim, ao andar ao sabor do destino, orienta-
se pelos seus ins>tintos, sem intervenção da razão.
O gato aceita calmamente o destino (v. 5), age apenas por instintos gerais (v.
7), isto é, comandado apenas pelos sentidos (v. 8), assim conseguindo ser feliz (v. 9).
Por seu lado e perante este quadro, o sujeito poético não esconde a sua
admiração e inveja relativamente à sorte do gato, ou seja, da sua liberdade, da sua
felicidade, da sua irracionalidade, de ser inconsciente, de viver sem preocupações e
poder brincar sem pensar em (mais) nada, o que é equivalente a dizer que inveja o
gato pela felicidade simples resultante da vivência plena das coisas sem pensar, isto é,
por causa da sua irracionalidade. O sujeito poético inveja a sorte do gato que, na
realidade, nem «sorte se chama», isto é, não se trata de sorte, dado que são as leis da
natureza que permitem ao felino ser um ser inconsciente feliz. Pelo contrário, ele tem
a consciência plena de que é infeliz, ideia que é acentuada pela observação do gato e
do seu comportamento, pois pensa-se, ao contrário do animal, daí que revela também
angústia, tristeza e desolação por não conseguir abolir o pensamento (= porque se
rege pela consciência e pelo pensamento) e, dessa forma, ser igualmente feliz. De
facto, ele é um ser dominado pela racionalização, em busca constante de
autoconhecimento, tudo racionaliza, transforma as sensações em pensamentos, daí a
sensação de estranheza face a si mesmo.
Nos dois versos finais, o sujeito poético constata que se diferencia do gato por
não se dominar completamente, uma vez que transforma permanentemente as suas
emoções em pensamentos. Por isso, sente-se estranho face a si mesmo. O paradoxo
neles presente remete para a complexidade e confusão interiores e para a
despersonalização: ao ser muitos, o sujeito poético acaba por se desconhecer a si
próprio. A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no
à fragmentação e à despersonalização.
Podemos, em suma, afirmar que o sujeito poético inveja o gato por três
razões:
1.ª) Tem "instintos gerais" e sente só o que sente, ou seja, não pensa sobre o que está
a sentir, limita-se a sentir;
2.ª) É "um bom servo das leis fatais", isto é, não tenta contrariar as etapas inevitáveis
da existência: nascimento, crescimento e morte;
3.ª) "Todo o nada que és é teu", ou seja, ao contrário do sujeito poético, o gato não
pensa, não se questiona.
Assim, esta dor de pensar que o tortura leva-o a desejar ser inconsciente
como a ceifeira e como o gato, que não pensam.
Por outro lado, podemos sintetizar a caracterização do gato da seguinte
forma:
▪ Age por instinto / é instintivo.
▪ É livre e feliz, vivendo despreocupado, porque se rege pelo instinto e pela
inconsciência e irracionalidade.
▪ “Bom servo das leis fatais”, cumpre o seu destino sem se lhe opor minimamente, não
o questionando.
▪ Vive só por viver, sem saber por que vive, limitando-se apenas a sentir.
▪ Vive de acordo com as leis da natureza.
▪ Não se questiona.
Por sua vez, o sujeito poético:
▪ Admira e inveja a “sorte” do gato, isto é, a sua felicidade, a sua irracionalidade, a sua
inconsciência.
▪ É infeliz, porque pensa, racionaliza, é consciente.
▪ Reflete sobre si mesmo e é vítima da dor de pensar, o que gera nele angústia.
▪ É dominado pela racionalização, em busca permanente de autoconhecimento.
▪ Por isso, sente-se estranho relativamente a si mesmo, acabando por afirmar que se
desconhece.
▪ A permanente auto-observação e a necessidade de se conhecer conduzem-no à
fragmentação e à despersonalização.
O contraste entre o sujeito poético e o gato é claro: o animal é feliz porque é
inconsciente e irracional (“Todo o nada que és é teu”), enquanto o «eu», devido à sua
racionalidade e introspeção (“Eu vejo-me”; “Conheço-me”) mostra-se fragmentado,
despersonalizado, revelando angústia, infelicidade e sofrimento. O pensamento, a
racionalidade provoca dor e angústia, daí a inveja sentida pela vida do gato e o desejo
desse evadir de si próprio.
É possível relacionar (intertextualidade) este poema com “Ela canta, pobre
ceifeira”. De facto, ambos os poemas possuem o mesmo tema: a dor de pensar. Por
outro lado, tal como o sujeito poético gostaria de ser inconsciente como a ceifeira para
poder ser feliz, também desejaria ser feliz como o gato, que apenas sente (“sentes só o
que sentes”), ao contrário do que se passa consigo próprio, que racionaliza e, por isso,
sofre.
A nível formal, o poema é constituído por três quadras, num total de 12
versos de redondilha maior (versos de 7 sílabas métricas). A rima é cruzada, segundo o
esquema ABAB.
Morfologicamente, predominam o nome e o verbo no presente do indicativo
(traduzindo a factualidade da situação apresentada), escasseando os adjetivos
(«fatais», «gerais», «feliz»).
Estilisticamente, a apóstrofe e a comparação dos versos 1 e 2 («Gato que
brincas na rua / Como se fosse na cama») traduzem a despreocupação do gato por se
tratar de um animal irracional, que se comporta “na rua”, ou seja, no exterior e no
contacto com os outros, com a mesma naturalidade com que procederia “na cama”,
realçando-se assim a ausência de convenções na atuação do bicho, que vive apenas
segundo a sua vontade e os instintos próprios de animal irracional. A personificação do
gato acentua o contraste entre a inconsciência do animal e a consciência do sujeito
poético, que lhe provoca dor – a dor de pensar. A metáfora «Bom servo das leis fatais»
remete para a inconsciência do gato, o seu caráter instintivo e a aceitação calma do
destino. As antíteses são diversas e giram todas em torno da oposição gato (guiado
pelos instintos, livre e feliz) / sujeito poético (angustiado, infeliz e torturado pela dor
de pensar, porque guiado pelo pensamento): consciência / inconsciência, pensar /
sentir; prisão / liberdade, angústia / alegria, felicidade / infelicidade. Todas elas
apontam para as diferenças entre o sujeito poético e o gato. O paradoxo que finaliza o
poema («Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu.» - vv. 11-12 e vv.
9-12) sugere a procura do autoconhecimento, a racionalização e a estranheza face a si
mesmo, porque despersonalizado e fragmentado, e realça a oposição entre a
inconsciência do gato e a consciência do sujeito poético.

O vocabulário é simples e com valor denotativo. Por último, nota para as


orações subordinadas causais:
. «Porque nem sorte se chama» (v. 4): a justificação da inveja da sorte do gato, pelo
facto de este desconhecer o significado de sorte;
. «Que tens instintos gerais» (v. 7): apresenta a razão de o gato ser um cumpridor do
destino;
. «És feliz porque és assim» (v. 9): traduz a razão da felicidade do gato (sentir).

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