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Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,


Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,


Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!


Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco.
Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!


Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso (1) qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!


16-6-1934
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
  - 54.
1. Explicita, recorrendo a expressões textuais, as razões que justificam o desejo de o eu endoidecer deveras.

2. Demonstra a indefinição do estado de alma do sujeito poético.

3. Comenta a expressividade das interrogações da quarta estrofe.

4. Justifica a ânsia de o sujeito poético ter uma religião qualquer.

5. Interpreta a ordem expressa no último verso, tendo em conta o sentido geral do poema.
CORREÇÃO:

1. O desejo de o sujeito poético endoidecer deveras prende-se com o seu estado de alma:
uma angústia que, nas suas palavras, o domina há muito (“Esta velha angústia”, v. 1) e
que o atormenta, que o invade como se lhe “amachucasse” a alma (“a fazer-me pregas na
lama”, v. 9) e que quase o impede de viver (“mal sei como conduzir-me na vida”, v. 8).
Esta angústia enraíza-se, ainda, na consciência da loucura (“lúcido e louco”, v. 18).

2. A indefinição de sentimentos do eu lírico é visível na segunda estrofe e pode-se


comprovar através das hesitações expressas nas frases inacabadas (“é este estar entre,/
Este quase,/ Este poder ser que…”, vv. 12-14), nas repetições do anafórico “este e no
“isto”, revelando a dúvida, a impaciência, mas também a impossibilidade de nomear o
que sente ou lhe vai na alma. Esta indefinição pode, ainda, ser comprovada nos oximoros,
da terceira estrofe (“lúcido e louco”, v. 18; “alheio a tudo e igual a todos”, v. 19), ou no
conclusivo “estou assim…” (v. 22), revelador da dolência do sujeito poético.

3. As interrogações da quarta estrofe pretendem estabelecer uma oposição entre o passado


e o presente. O “eu”, dirigindo-se à “velha casa” (v. 23) da sua infância, opõe a alegria e a
felicidade do passado, ao desassossego e à loucura do adulto em que se tornou (vv.25, 27
e 28). Revelam ainda que, apesar de um certo desconhecimento de si próprio, tem
consciência das diferenças entre o ser que é e o ser que foi outrora.

4. Essa ânsia do sujeito poético é a única esperança para a dor e o desespero que o
angustiam e que inundam e destroem o seu fragilizado coração (“Estala, coração de vidro
pintado”, v. 38). A consciência que tem de si leva-o a desejar a crença numa força
qualquer que lhe pudesse atenuar o sofrimento, ainda que fosse um “manipanso” (v. 30)
qualquer.

5. Perante o estado de angústia sem solução em que se encontra (em que nem Deus o pode
socorrer), o sujeito poético invoca o seu coração, sugerindo-lhe que estale, o que revela a
consciência que tem da sua fragilidade interior e do seu equilíbrio enquanto pessoa.

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