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NOVO PLURAL 12 – LIVRO DO PROFESSOR

Português • 12.º Ano • Ensino Secundário


POETAS CONTEMPORÂNEOS

5. OUTROS POETAS
CONTEMPORÂNEOS
Segundo indicação do programa, deverão ser estudados 3 poetas
contemporâneos (4 poemas de cada) de uma lista de 12.
Para possibilitar escolhas diferentes das propostas no manual,
trabalhamos aqui os restantes 9 poetas, apresentando:
– 1 pequena biografia;
– 4 poemas de cada + questionários + respostas.

• Jorge de Sena
• Alexandre O’Neill
• António Ramos Rosa
• Herberto Helder
• Ruy Belo
• Luiza Neto Jorge
• Nuno Júdice
• Manuel Alegre
• Vasco Graça Moura

NOTA: os 36 poemas aqui


incluídos e trabalhados
também poderão ser usados
em fichas de trabalho ou em
testes sumativos.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

JORGE DE SENA
JORGE DE SENA (1919-1978) nasceu em Lisboa e morreu na Califórnia. Formado em Engenharia
Civil, trabalhou na Junta Autónoma das Estradas.
Em 1959, cansado de viver num país sem liberdade, «exilou-se» no Brasil, onde se doutorou em
Literatura Portuguesa, partindo depois para os Estados Unidos, primeiro para a Universidade de
Wisconsin e, depois como catedrático, para a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde
morreu, em 1978.
Deixou uma obra notável, quer no domínio do ensaio, quer da literatura. Publicou, entre outras
obras, Os Grão-Capitães (contos), O Físico Prodigioso (novela), Metamorfoses (poesia), Sinais de
Fogo (romance).

Sobre JORGE DE SENA


PROFESSOR Quem a tem...
RTP ENSINA
http://ensina.rtp.pt/artigo/nas-palavras- 1 Não hei de morrer sem saber
de-jorge-de-sena/ qual a cor da liberdade.
Leitura do texto Eu não posso senão ser
1. O sujeito poético exprime o desejo de não desta terra em que nasci.
morrer sem saber o que é ser livre na
terra em que nasceu. 5 Embora ao mundo pertença
2. O desejo de liberdade é justificado pelo e sempre a verdade vença,
contexto em que o sujeito poético vive. qual será ser livre aqui,
Desejando a liberdade, ele caracteriza o
seu país como um lugar privado dessa não hei de morrer sem saber.
liberdade, dominado pela maldade que
amordaça a vida, as pessoas, o direito à Trocaram tudo em maldade,
palavra. Considerando a data de escrita 10 é quase um crime viver.
do poema, facilmente percebemos que o Mas embora escondam tudo
contexto é o da ditadura salazarista.
3. O poema é constituído por três estrofes: e me queiram cego e mudo,
um dístico e duas sextilhas. Os versos não hei de morrer sem saber
são de redondilha maior, exceto o verso qual a cor da liberdade.
«Qual a cor da liberdade», que surge,
quase como um refrão, nas três estrofes, 9 de dezembro de 1956
e tem oito sílabas métricas. As duas
sextilhas apresentam rima, segundo o Jorge de Sena, Fidelidade, in Poesia II,
esquema rimático abccba, ou seja, têm Lisboa, Moraes Editores, 1978.
rima emparelhada e interpolada.
NOTA: o título do poema alude à canção
popular proibida no tempo da ditadura de
Salazar, com o título «As carbonárias », Leitura do texto
alusão a uma organização secreta ligada à
implantação da República. Era esta a 1 Explicita o desejo expresso pelo sujeito poético.
primeira estrofe:
Liberdade, Liberdade 2 Caracteriza o contexto que, implícita e explicitamente, está subjacente ao desejo referido em 1.
Quem a tem chama-lhe sua
Já não tenho liberdade
Nem de pôr o pé na rua. 3 Analisa a estrutura formal do poema.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR
Uma pequenina luz
1 Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
5 just a little light
una picolla… em todas as línguas do mundo Este poema está gravado nos arquivos
uma pequena luz bruxuleante RTP por diversos atores (na rubrica «Um
brilhando incerta mas brilhando Poema por Semana», da RTP 2).
E ainda:
aqui no meio de nós por CARMEN DOLORES
10 entre o bafo quente da multidão http://ensina.rtp.pt/artigo/jorge-sena-poesia/
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
15 que vacila exata
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exatidão como a firmeza
20 como a justiça.
Brilhando indefetível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
25
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefetível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
30
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
35
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exatidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
40
no meio de nós.
Brilha
1950
Jorge de Sena, Fidelidade, in Poesia II,
Lisboa, Moraes Editores, 1978.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

PROFESSOR Leitura do texto


Leitura do texto
1. É uma luz «pequenina», «bruxuleante», 1 Aponta as características aparentemente paradoxais da luz que constitui o tema do poema.
incerta, vacilante, silenciosa, que não
ilumina, não consome, não custa dinheiro. 2 Explicita a representação do contemporâneo presente no poema.
No entanto, paradoxalmente, ela é
também, exata, firme, indefetível,
dourada. Além disso, brilha no meio da 3 Relaciona o valor simbólico da luz com a representação do contemporâneo referido em 2.
multidão, «aqui no meio de nós», contra
todas as adversidades.
2. O presente do poema é um tempo
dominado pela incerteza, a falsidade, a
violência, o terror, a vaidade, o orgulho, a
teimosia, a escuridão ou a luta contra
essa escuridão.
3. A luz que «brilha» incessantemente, ao
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
fundo do caminho, no meio da multidão,
simboliza a esperança na mudança. Ela é
1 Podereis roubar-me tudo:
um estandarte de firmeza e de justiça, as ideias, as palavras, as imagens,
que desperta a consciência dos que a e também as metáforas, os temas, os motivos,
vêem e têm de encontrar o caminho para
lutar contra as trevas do presente. A luz os símbolos, e a primazia
por si só não pode fazer nada, ela está 5 nas dores sofridas de uma língua nova,
sempre lá, mas «não ilumina», as no entendimento de outros, na coragem
pessoas é que têm de se iluminar por
dentro, e lutar com firmeza, porque a de combater, julgar, de penetrar
mudança está ao seu alcance. em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
10 suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
15
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
20
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
25
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Assis, 11 de junho, 1961
Jorge de Sena, Metamorfoses, in Poesia II,
Lisboa, Moraes Editores, 1978.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

Leitura do texto PROFESSOR

O poema é uma pesada acusação de Camões aos seus contemporâneos.


1 «Podereis roubar-me tudo»
• Explicita o conteúdo geral dos oito primeiros versos, mostrando as três dimensões da
existência referidas pelo poeta.
2 Aponta a acusação, implicitamente feita, nos três versos seguintes. (vv.9-11) Sobre JORGE DE SENA
RTP ENSINA
3 «Não importa nada: que o castigo / será terrível.» (vv.12-13) LER CAMÕES COM J. DE SENA
http://ensina.rtp.pt/artigo/ler-camoes-
Explicita o sentido da vingança que o poeta reserva para os seus contemporâneos, -com-jorge-de-sena/
relacionando-a com as críticas feitas no final do canto VII de Os Lusíadas.
Leitura do texto
1. Dirigindo-se aos seus contemporâneos, o
poeta acusa-os de lhe roubarem a obra, a
Carta a meus filhos sobre vida de combate e o amor. Essa
acusação é carregada de ironia amarga
contida na expressão «Podereis roubar- -
os fuzilamentos de Goya me», que indicia o roubo de que, de facto,
é vítima, por parte dos seus
1 Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. contemporâneos.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 2. O poeta acusa os seus contemporâneos
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, de ignorarem a sua obra, enquanto
proclamam outros poetas sem valor, mas
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém igualmente ladrões como eles.
5
de nada haver que não seja simples e natural. 3. O castigo dos contemporâneos, será o
Um mundo em que tudo seja permitido, seu próprio esquecimento, enquanto a
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, memória do poeta perdurará para
sempre. Daquele tempo em que vivem (o
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. poeta e os seus vis contemporâneos)
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto apenas o nome de Camões perdurará,
num futuro que será caracterizado como
o que vos interessa para viver. Tudo é possível, a época de Camões. No final do poema,
10
ainda quando lutemos, como devemos lutar, mais uma vez com ironia, referirá o facto
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, de um qualquer esqueleto (de um dos
seus contemporâneos) ser usado como
ou mais que qualquer delas uma fiel se fosse o de Camões, resgatado da vala
dedicação à honra de estar vivo. comum para colocar no túmulo solene
Um dia sabereis que mais que a humanidade dos Jerónimos.
15 não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
20 para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue».
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
25 e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou as suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
30 de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,


aniquilando mansamente, delicadamente,
35 por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya
40 que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
45
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto
não é se não essa alegria que vem
50
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
55
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
60 não hão de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Será ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
65 quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
70 de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
75
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25 de junho, 1959
Jorge de Sena, Metamorfoses, in Poesia II, Lisboa, Moraes editores, 1978.

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PROFESSOR
«Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos
de Goya», no
Leitura do texto
1. a. versos 1 a 14
b. versos 15 a 35
c. versos 36 a 45
d. versos 46 a 61
| Os e. versos 61 (Confesso) a 71
Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, pintura de Francisco Goya, 1814 f. verso 72 até ao fim
2. Liberdade de religião (v. 22);
direito de opinião (v. 22);
direito à igualdade, sem discriminação
(v. 28)
Leitura do texto 3. Apesar do horror histórico retratado no
quadro de Goya – o fuzilamento de
Neste magnífico poema-carta, motivado pelo quadro de Goya, Jorge de Sena envia uma inocentes, que queriam defender a sua
profunda mensagem aos seus filhos. pátria – ele é apenas um dos inúmeros
episódios da imensa cadeia de crueldade
e injustiça humana, de que os
1 Divide o texto em partes, de acordo com as ideias abaixo veiculadas. destinatários da carta (os filhos do sujeito
poético) também fazem parte, porque são
a. Caracterização do mundo que o pai deseja para os seus filhos. humanos, e não se podem alhear da sua
condição.
b. Evocação daqueles que ao longo dos tempos se sacrificaram pela defesa dos Direitos
Humanos.
NOTA 1
c. Explicitação da ligação ao quadro de Goya. Um acontecimento histórico trágico serviu de
motivo a este quadro. Em 1808, o povo de
d. Apelo à crença no valor da vida. Madrid revoltou-se contra a ocupação do
exército napoleónico e, na sequência dessa
e. Interrogação sobre o valor do sacrifício e reafirmação do valor da vida. revolta, os franceses fuzilaram centenas de
patriotas espanhóis. Seis anos depois,
f. Afirmação do dever de preservar os valores daqueles que sacrificaram a vida por esses Francisco Goya pintou este quadro, para
valores. denunciar a arbitrariedade do poder e da
guerra que escolhe as suas vítimas entre os
menos poderosos – o povo inocente. É
2 Especifica três Direitos Humanos pelos quais deram a vida homens cujo número «não tem ainda um grito silencioso de revolta contra
conta» (v. 16). os opressores, pela defesa do patriotismo e
da liberdade.
3 Interpreta a expressividade da metáfora contida na expressão «um episódio breve, / nesta
cadeia de que sois um elo», relacionando-a com o episódio histórico representado no quadro NOTA 2
de Goya. Ver o poema de Ana Luísa Amaral, na pág.
259 deste LIVRO DO PROFESSOR.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

ALEXANDRE O’NEILL
ALEXANDRE O’NEILL (1924-1986) nasceu em Lisboa, frequentou a Escola Náutica, foi
jornalista e publicitário (é ele o criador do célebre slogan «Há mar e mar, há ir e voltar»).
Foi um dos criadores do Movimento Surrealista de Lisboa, em 1947.
A sua poesia, irónica, satírica, cheia de jogos de palavras e associações inesperadas é marcada
por um intenso lirismo. Entre os seus livros destacamos No Reino da Dinamarca, Abandono
Vigiado, De Ombro na Ombreira.

Canção
1 Que saia a última estrela
da avareza da noite
PROFESSOR
Sobre ALEXANDRE O’NEILL e a esperança venha arder
RTP ENSINA venha arder em nosso peito
http://ensina.rtp.pt/artigo/alexandre-
-oneill-o-poeta-que-jogava-com-as-palavras/ 5 E saiam também os rios
da paciência da terra
Leitura do texto
1. A «última estrela», «os rios», «os sóis» e os
É no mar que a aventura
«gestos de pura transformação» têm um tem as margens que merece
valor conotativo e metafórico positivo, na E saiam todos os sóis
medida em que remetem para a luz, a
limpidez, o poder criador. Nesse sentido, 10
que apodreceram no céu
estes elementos metafóricos correspondem dos que não quiseram ver
ao desejo de esperança, aventura, vida, – mas que saiam de joelhos
transformação.
2. A «avareza da noite» remete para uma E das mãos que saiam gestos
realidade fechada, sem abertura para a de pura transformação
liberdade; a «paciência da terra» remete
para o conformismo de quem já não espera 15
Entre o real e o sonho
nada; a expressão «que apodreceram no seremos nós a vertigem
céu / dos que não quiseram ver» enuncia,
muito claramente, um tempo de Alexandre O’Neill, Tempo de Fantasmas (1951),
estagnação e podridão para aqueles que in Poesias Completas, INCM, Lisboa, 1990
fecharam os olhos à verdade.
3. O sujeito poético, na sequência dos seus
desejos / sonhos de transformação do
mundo e da vida, metaforicamente Leitura do texto
expressos ao longo do poema, afirma
agora que o espaço que vai da realidade
ao sonho de transformação dessa O sujeito poético exprime, de forma metafórica, um desejo de mudança.
realidade é o lugar de vertigem, de
aceitação de todos os sonhos, todos os 1 Indica as quatro metáforas que, iniciando cada uma das estrofes, são utilizadas na expressão
desejos, mesmo os mais impossíveis. E é
em «nós» que reside a capacidade de os desse desejo, interpretando o seu valor semântico.
concretizar e viver.
2 Aponta os elementos que indiciam a existência de uma realidade negativa.

3 Interpreta os dois últimos versos do poema.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

O beijo
1 Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
5 Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
10 Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O’Neill,
No Reino da Dinamarca (1958),
in Poesias Completas, Lisboa, INCM, 1990.

Leitura do texto

1 No poema cruzam-se duas realidades completamente diferentes, mas não dissonantes.


• Identifica-as e mostra a razão da ausência de dissonância.
2 Caracteriza o beijo referido no poema, mostrando a natureza surrealista da sua descrição.
PROFESSOR
2.1 Seleciona outras expressões em que a ironia surrealista esteja presente. Leitura do texto
1. As duas realidades que se cruzam no
3 Analisa a estrutura formal do poema. poema são um bando de gaivotas e um
beijo. Sendo completamente diferentes –
as gaivotas são aves reais, concretas, o
beijo é um gesto / ato de amor, não tem
existência material – não são dissonantes
no texto, porque o beijo, poeticamente,
voa como as gaivotas, junta-se a elas.
2. O beijo chegou a voar, «ainda palpitante»,
de origem desconhecida. A sua imagem é
Alexandre O'Neill foi um dos maiores amigos da minha vida, um perfeitamente surrealista: «É uma ave
poeta que considero entre os mais originais e geniais do século XX. estranha: colorida», um coração vermelho
a pulsar no ar, com a força apaixonada de
Mas foi sobretudo um dos homens mais livres que conheci. Nisto duas bocas.
residiu a sua grandeza. 2.1 As expressões «Congresso de gaivotas»
e «De inveja as gaivotas a gritar» contêm
uma muito expressiva ironia surrealista.
Luciana Stegagno Piccio, in revista Relâmpago, n.º 13, 2003.
3. O poema é um soneto (constituído por
catorze versos, organizados em duas
quadras e dois tercetos); os versos são
decassilábicos e apresentam rima
cruzada nas quadras e emparelhada e
interpolada nos tercetos, segundo o
esquema rimático abab / abab / ccd / eed.

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PROFESSOR
Leitura do texto
O poema pouco original do medo
1. A afirmação «O medo vai ter tudo» inicia o
poema e repete-se, com variações, ao
1 O medo vai ter tudo 35 escriturários
longo de todo o texto: com o sujeito pernas (muitos)
subentendido e / ou o complemento direto ambulâncias intelectuais
alterado («vai ter olhos», «Vai ter
capitais», «O medo vai ter heróis»,), e
e o luxo blindado (o que se sabe)
também com gradação ascendente ou 5 de alguns automóveis a tua voz talvez
descendente, exprimindo o sentir do 40 talvez a minha
sujeito poético: «Ah o medo vai ter tudo / Vai ter olhos onde ninguém os veja
tudo»; «O medo vai ter tudo / quase com certeza a deles
mãozinhas cautelosas
tudo». Vai ter capitais
enredos quase inocentes
2. Além da já referida repetição, concorrem países
para transmitir uma ideia de medo ouvidos não só nas paredes
generalizado: a enumeração e a
suspeitas como toda a gente
10 mas também no chão
acumulação, por vezes caóticas e quase 45 muitíssimos amigos
aleatórias, de elementos, e a
no teto
beijos
personificação insinuada do medo (vai ter no murmúrio dos esgotos
pernas, olhos, mãozinhas, ouvidos…)
namorados esverdeados
e talvez até (cautela!)
3. Depois de enumerar tudo aquilo que o
amantes silenciosos
ouvidos nos teus ouvidos
medo vai ter, ou seja, tudo o que vai ser ardentes
usado para dominar pelo medo, o sujeito 5 O medo vai ter tudo e angustiados
40
poético toma consciência de que também
ele tem medo, acrescentando que é isso
fantasmas na ópera
Ah o medo vai ter tudo
«o que o medo quer». sessões contínuas de espiritismo
tudo
4. Quando o medo dominar tudo («quase milagres
tudo»), os homens já não serão homens, cortejos (Penso no que o medo vai ter
pois ficarão desprovidos da sua coragem
e da sua dignidade, serão ratos 20 frases corajosas e tenho medo
acossados, à procura de um buraco para meninas exemplares 55
que é justamente
escapar, com medo. seguras casas de penhor o que o medo quer)
O poema compreende-se, situando-o no
contexto em que foi escrito: 1960, período maliciosas casas de passe
da ditadura, que recorria, precisamente,
O medo vai ter tudo
conferências várias
ao medo para dominar, através, quase tudo
congressos muitos
sobretudo da PIDE e de uma rede 25 e cada um por seu caminho
extensíssima de informadores (os olhos e ótimos empregos
os ouvidos – reler a estrofe 2).
havemos todos de chegar
poemas originais 60
quase todos
e poemas como este
a ratos
projetos altamente porcos
heróis Sim
30
(o medo vai ter heróis!) a ratos
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado (1960), in Poesias Completas,
INCM, Lisboa, 1990.

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Leitura do texto

«O medo vai ter tudo»


1 Esclarece o modo de repetição e de evolução deste verso ao longo do poema.

2 Indica três dos processos mais expressivamente utilizados na transmissão da ideia de


generalização do medo.

3 Explica o sentido da última expressão entre parênteses, relacionando-a com o conteúdo


das estrofes anteriores.

4 «havemos todos de chegar / quase todos / a ratos / Sim / a ratos» (vv. 61-64)
• Interpreta este final do poema, enquanto representação de um tempo histórico.

Um adeus português
1 Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
5 Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
10
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
15
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
20 do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
25 até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
Alexandre O’Neill e Nora Mitrani,
mas da miséria de uma noite gerada fotografias do surrealista Fernando Lemos,
por um dia igual Lisboa, 1949

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

30 Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
35 Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
40 esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
PROFESSOR da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
Leitura do texto 45
1.
de puro acaso
2.ª estrofe: onde morres ou vives não de asfixia
«à roda em que apodreço / apodrecemos»; mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
3.ª estrofe: sem a moeda falsa do bem e do mal
«o dia a dia da miséria»; Nesta curva tão terna e lancinante
4.ª estrofe: 50
«miséria de uma noite gerada por um dia
que vai ser que já é o teu desaparecimento
igual»; digo-te adeus
5.ª estrofe: e como um adolescente
«esta pequena dor à portuguesa/ tão mansa tropeço de ternura
quase vegetal»;
6.ª estrofe:
por ti.
55
«esta pequena morte e o seu minucioso e Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca (1958),
porco ritual.» in Poesias Completas, Lisboa, INCM, 1990.
2. O sujeito poético afirma, ao longo das
estrofes 2 a 6, a impossibilidade de
permanência da pessoa amada (e,
consequentemente, da vivência do amor)
no contexto opressivo, sórdido e Leitura do texto
moribundo em que ele vive e que é o seu
país. Por outro lado, na estrofe 7, Propomos a leitura prévia do depoimento em caixa, no qual Alexandre O’Neill recorda as
caracteriza o contexto da pessoa amada
em total oposição ao seu: «cidade circunstâncias de escrita do poema «Um Adeus Português».
aventureira», «onde o amor encontra as
suas ruas», «onde morres ou vives não 1 Seleciona, em cada uma das estrofes 2 a 6, a passagem que, mais expressivamente,
de asfixia / mas às mãos de uma aventura represente a situação política que se vivia em Portugal.
de um comércio puro / sem a moeda falsa
do bem e do mal»).
3. A última estrofe evidencia que a 2 Mostra como o contraste entre o contexto do sujeito poético e o da pessoa amada, inviabiliza
separação dos amantes é, como vimos a vivência do amor.
anteriormente, imposta pelas circuns-
tâncias que se vivem em Portugal, não é
uma escolha. Por isso o adeus é «Um 3 Comenta a última estrofe, relacionando-a com o título do poema.
adeus português».

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QUANDO ESCREVI «UM ADEUS PORTUGUÊS»


Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a
sofrer pressões inacreditáveis, por parte de alguém da minha família, para não «ir
atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora Mitrani,
queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se
vê», era o que o seu otimismo me dizia por carta. Mas as coisas não se passaram
assim.
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma
cunha à polícia política para que o passaporte me fosse denegado, o que
aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede
dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma
linguagem descomedida. Perguntou-me que ia eu fazer a Paris. Respondi: –
Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas
retorquiu: – Se calhar V. quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na
cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava,
que N. M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido.
Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu
poderosamente, com outros fatores circunstanciais bem conhecidos, para que o
poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que
o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus
passos (errados ou certos, não interessa).
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984.

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ANTÓNIO RAMOS ROSA


ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013) nasceu em Faro, foi empregado de escritório, professor e
tradutor. Em 1951, fundou a revista «Árvore» e publicou o primeiro livro em 1958.
Da sua vastíssima obra poderemos destacar Viagem Através de uma Nebulosa, Ciclo do Cavalo,
Gravitações. Recebeu, entre muitos outros, os prémios de Poesia da Bienal de Liège, o Prémio Jean
Malrieu para o melhor livro de poesia traduzido em França em 1992, o Grande Prémio Sophia de Mello
Breyner Andresen, e o Prémio Pessoa – 1988.

PROFESSOR
Sobre ANTÓNIO RAMOS ROSA
RTP ENSINA
Não posso adiar o amor
http://ensina.rtp.pt/artigo/alexandre- 1 Não posso adiar o amor Não posso adiar
-oneill-o-poeta-que-jogava-com-as-palavras/ ainda que a noite pese
para outro século
não posso 15 séculos sobre as costas
ainda que o grito sufoque e a aurora indecisa demore,
5 na garganta não posso adiar para
ainda que o ódio estale outro século minha
e crepite e arda vida
sob montanhas cinzentas 20 nem o meu amor
e montanhas cinzentas nem o meu grito de
libertação
10 Não, não posso adiar este abraço Não posso adiar o coração
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958.

Leitura do texto
1. O sujeito poético arrisca-se a que «o grito
sufoque na garganta», «o ódio estale e
crepite e arda», «a noite pese / séculos Leitura do texto
sobre as costas / e a aurora indecisa
demore». Significa que está disposto a
exprimir-se perante todos e a sofrer as 1 «Não posso adiar o amor»
consequências do ódio dos demais. • Identifica os riscos que está o sujeito poético está disposto a enfrentar com esta sua
2. O amor, inicialmente referenciado em determinação, apoiando a resposta em elementos textuais.
termos genéricos, passa a ser
concretizado em «este abraço», à medida 2 «[...] este abraço/ […] é uma arma de dois gumes/amor e ódio.» (vv.10-12)
que o sujeito poético solta o seu grito
pessoal de libertação. Por outro lado, o • Justifica a utilização do deítico este e interpreta a contradição presente no v. 12.
paradoxo presente neste verso mostra o
amor na sua plenitude libertadora de
todos os impulsos – amor, quando é
3 Na 3.ª estrofe, surge finalmente a expressão «meu amor».
amor, ódio, quando é ódio. • Interpreta a equivalência entre «meu amor», «minha vida», «meu grito de libertação»,
3. De acordo com o poema, o amor é «coração».
entendido como um grito reprimido que é
urgente libertar, para viver. É, pois, vida,
expressão de liberdade («grito de
libertação ») sentimento, («coração»).

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PROFESSOR
O funcionário cansado
1 A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
5 as casas engolem-nos
Sobre ANTÓNIO RAMOS ROSA
sumimo-nos RTP ENSINA
estou num quarto só num quarto só http://ensina.rtp.pt/artigo/o-funcionario-
com os sonhos trocados cansado-de-antonio-ramos-rosa/
com toda a vida às avessas a arder num quarto só Leitura do texto
1. O sujeito poético autocaracteriza-se como
10
Sou um funcionário apagado um funcionário apagado, triste, solitário,
um funcionário triste confuso, com uma frustrada alma de
a minha alma não acompanha a minha mão poeta e os sonhos aprisionados numa
vida sem sabor. Ao traçar o seu retrato e
Débito e Crédito Débito e Crédito o da sua vida, ele utiliza, em algumas
a minha alma não dança com os números passagens, uma ironia triste, patente
tento escondê-la envergonhado sobretudo na 2.ª estrofe («A minha alma
15 não dança com os números», «o chefe
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente apanhou-me com o olho lírico», «debitou-
e debitou-me na minha conta de empregado -me na minha conta de empregado»).
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar 2. Há um claro desajuste entre a
sensibilidade de poeta e a condição de
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? funcionário. Ser funcionário obriga-o a
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? uma vida compassada pelo ritmo dos
20 números e dos documentos com que
Soletro velhas palavras generosas trabalha, o «Débito e Crédito»
Flor rapariga amigo menino referenciado no poema. No entanto, em
oposição a esta condição, a sua alma
irmão beijo namorada insatisfeita «não dança com os números»
mãe estrela música. e arrasta o seu «olho lírico» de poeta
São as palavras cruzadas do meu sonho para lá da realidade, para a beleza de um
25 pássaro, para as «velhas palavras
palavras soterradas na prisão da minha vida generosas» do seu sonho aprisionado.
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida Contribui para este desajuste o espaço
num quarto só físico e social asfixiante e devorador que
o sujeito habita, numa «rua estreita», de
António Ramos Rosa, casas que o engolem, num
Viagem Através de Uma Nebulosa, 1960 aprisionamento dos sonhos mais simples,
num universo de funcionários que só
podem ter olhos para os papéis. Por isso,
nesse aprisionamento, perde tudo o que
possa ter de mais íntimo, pessoal e
Leitura do texto criativo, e fica um «funcionário cansado»,
«irremediavelmente perdido no (seu)
1 Mostra a autocaracterizarão que o sujeito poético faz, referindo a auto-ironia que utiliza no cansaço».
retrato que traça de si mesmo. 3. Apesar da sua existência de funcionário
apagado, ele soletra «velhas palavras»,
que povoam o seu sonho abafado – flor,
2 Explicita o desajuste existente entre a sensibilidade de poeta e a condição de funcionário, rapariga, amigo, menino, irmão, beijo,
bem como o papel que o espaço físico e social asfixiante tem nesse desajuste. namorada, mãe, estrela, música. São
palavras de libertação, que podem encher
de calor a alma mais fria, de cor o lugar
3 Explica o papel libertador da palavra poética. mais cinzento, palavras carregadas da
poesia, que o funcionário não ousa,
apenas timidamente soletra e deixa
escapar do «olho lírico». São palavras
instauradoras de amor, afeto, beleza,
vida, inocência, alegria, luz, tudo o que a
vida tem de bom se soubermos vivê-la.

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Escrevo pela paixão de te


inventar de um nada
1 Escrevo pela paixão de te inventar de um nada,
um filamento apenas e logo outro sinal,
um tecido febril e temos um cavalo
inteiro com o som e a exatidão do nome.
5 Não sei a tua cor, mas tens em ti o campo,
a liberdade e a força que experimento em ti.
Para onde vais, cavalo, tão veloz, violento
ou na paz do teu trote, sem sela e livre, livre!
Percorro esta terra como um seio amoroso,
10
corres já no meu corpo com a vida do fogo,
tua paixão me cega e me ilumina a terra.
És tu que me crias com as palavras justas
que da tua elegância e ritmo se libertam
e me erguem a uma vida pura e vertical.
António Ramos Rosa, Ciclo do Cavalo,
in A Palavra e o Lugar, Lisboa Pub. Dom Quixote, 1975.
PROFESSOR
Leitura do texto
1. Toda a primeira estrofe é a declaração de
que a escrita corresponde a um ato de
criação. O sujeito poético afirma – Leitura do texto
«Escrevo pela paixão de te inventar de
um nada», apenas «um filamento», «outro
sinal», «um tecido», para concluir «e
1 Clarifica em que medida o sujeito poético vê a escrita como um ato de criação.
temos um cavalo / inteiro com o som e a
exatidão do nome». É, pois, a palavra 2 Mostra o elemento do real usado no poema para simbolizar essa criação.
escrita, a palavra poética que, pouco a
pouco, inventa a realidade, uma realidade
inteira e exata. 3 Explica de que forma a realidade, criada poeticamente, transforma o seu criador, oferecendo
2. O cavalo é o elemento do real que, no um mundo novo de autoconhecimento e de possibilidades.
poema, simboliza a criação.
3. O sujeito poético criou, no poema, uma
realidade – o cavalo – que lhe trouxe a
Natureza, a energia, a liberdade, e beleza
da imaginação («a liberdade e a força que
experimento em ti»). (v. 6). Desta forma,
Escrevo para não viver sem
projetado na sua própria criação, o sujeito
poético, o criador, experimenta um mundo espaço para que o corpo não
de possibilidades, sai dos limites da sua
realidade, conhece-se melhor, porque morra na sombra fria.
conhece lados de si que a criação lhe
revela, como se, agora, fosse ele o criado
pela criatura que criou. («És tu que me
António Ramos Rosa
crias com as palavras justas» v. 12).

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PROFESSOR
Em qualquer parte um homem Leitura do texto
1 Em qualquer parte um homem 1. Todo o poema é escrito no presente,
exceto a segunda estrofe, em que é
discretamente morre. usado o pretérito perfeito do indicativo.
Esta diferença gramatical corresponde a
Ergueu uma flor. um contraste de conteúdo, pois a
Levantou uma cidade. segunda estrofe relata ações ocorridas e
concluídas no passado, anteriores à
5 Enquanto o sol perdura situação dramática narrada no presente.
ou uma nuvem passa 2. Um homem morre «discretamente». No
surge uma nova imagem. passado, «Ergueu uma flor» e «Levantou
uma Cidade». É, pois, um homem que
Em qualquer parte um homem empreendeu uma luta, simbolicamente
representada na flor erguida e levou a
abre o seu punho e ri. cabo uma obra: o levantamento de uma
cidade (note-se que cidade pode
António Ramos Rosa,
significar comunidade de cidadãos, lugar
Viagem Através de Uma Nebulosa, 1960.
de cidadania). Agora, morre, mas
«Enquanto o sol perdura», «abre o seu
punho e ri», num gesto claro de afirmação
da luta, de coragem e resistência.
3. O título dá uma importante dimensão de
Leitura do texto exemplaridade ao poema. É um homem
anónimo, que morre «Em qualquer
1 Explica o contraste entre a segunda estrofe e as restantes. parte», não é aqui ou ali, é um exemplo
dos muitos que tombam na luta,
discretamente, anonimamente, mas
2 Mostra como a história e as ações ligadas ao homem são um grito e um símbolo de corajosamente, em qualquer parte.
resistência.

3 Justifica o título, na sua relação com o conteúdo do poema.

4 Pronuncia-te sobre a atualidade do tema abordado.

A poesia e a arte modernas nasceram de um movimento íntimo de reação


contra a hegemonia dos falsos valores que pretendem reger o mundo e que, de
facto, ainda o comprimem e sufocam. Foi, pois, um movimento de profunda
liberdade que lhe deu origem e, na sua essência, é ainda a um homem
profundamente livre que ela se destina. Concluímos, portanto, que a significação
de um poema especificamente moderno depende tanto dele como de nós e que é
precisamente desta colaboração profunda entre o criador e o leitor que uma
significação pode surgir e atualizar-se. Daí o fascínio particular que o poema
exerce.
António Ramos Rosa, Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro, 1986.

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HERBERTO HELDER
HERBERTO HELDER (1930-2015) nasceu no Funchal, estudou em Lisboa e Coimbra, e viveu
as últimas décadas em Lisboa. É por muitos considerado o maior poeta contemporâneo e um dos
maiores da literatura portuguesa. A Colher na Boca, Cobra, Photomaton & Vox, Última Ciência são
alguns dos seus livros, reunidos ciclicamente em Poesia Toda e, mais recentemente, em Poemas
Completos. Publicou também prosa, reunida em Passos em Volta. Avesso a qualquer exposição
pública, não dava entrevistas e rejeitou o Prémio Pessoa, que lhe foi atribuído em 1994. Nos
últimos anos publicou diversos títulos: Servidões (2013) A Morte Sem Mestre (2014) e Poemas
Canhotos (2015). Postumamente, foi publicado um volume de inéditos Letra Aberta (2016).

O poema
1 Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
PROFESSOR Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
Sobre HERBERTO HELDER talvez como sangue
«A ILHA DE HERBERTO HELDER»
RTP ENSINA 5 ou sombra de sangue pelos canais do ser.
http://ensina.rtp.pt/artigo/a-ilha-de- Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
-herberto-helder/ ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
10
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.

15
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
E as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
20 e a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
Herberto Helder A Colher na Boca,
in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, 2014.

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Leitura do texto PROFESSOR


Leitura do texto
1 Assinala as expressões que revelam a origem íntima do poema, que nasce do interior do 1. Os cinco primeiros versos revelam a
poeta. origem interior do poema. Como exemplo,
atentemos nas expressões que
2 Exterior ao poema existe a realidade. evidenciam a origem íntima, física e
humana do poema: «Um poema cresce
• Aponta a parte do poema que corresponde à enunciação dessa realidade. […] na confusão da carne. Sobe […] só
ferocidade e gosto, talvez como sangue
3 Indica o momento a partir do qual o poema alastra e integra a realidade. ou sombra de sangue pelos canais do
ser».
2. «Fora existe o mundo» (v. 6) é a
4 Procura explicar a arte poética exposta através deste poema. expressão que inicia a enunciação da
realidade exterior que se estende até ao
final do v.14 («a hora teatral da posse»).
O desejo 3. «E o poema cresce tomando tudo em seu
regaço.» (v. 15). É a partir deste verso
1 Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, que o poema se apropria da realidade,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. invadindo tudo com o seu poder.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra. 4. Este poema é uma verdadeira «Arte
poética», pois nele está exposto um
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas, conceito de criação poética. Assim, o
5 e à porta do meu amor o ouro se acumulasse. poema começa por gerar-se dentro do
poeta, confuso, sensual, íntimo, para
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, depois abarcar a realidade do mundo,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. sugá-la para o seu interior de palavras
que se erguem poderosas e acima da
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, realidade, acima do tempo – «E o poema
e a fímbria do mar, e o meio do mar, faz-se contra a carne e o tempo».

10 e vermelhas se volveram as asas da águia


que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
15
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
Herberto Helder (versão), in Rosa do Mundo,
poemas para o futuro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001.

Leitura do texto
Leitura do texto
Herberto Helder escreveu muitos poemas que são versões de poemas de culturas antigas, 1. Os degraus na terra e os anéis no céu a
muitas vezes ligados a rituais ou a livros sagrados. Este é uma versão de um poema da Grécia que o sujeito poético se prenderia
arcaica, originário de Epiro. simbolizam esse desejo de elevação.
2. O beijo é o início de uma «contaminação»
de vermelho (sangue, vida), que do amor
1 Mostra o desejo de elevação manifestado no poema. alastrou à terra e ao universo.
3. A última estrofe assemelha-se a uma
2 Explica de que forma, a segunda estrofe evidencia o poder gerador e transformador do amor. cantiga tradicional, que joga com
combinações quase aleatórias do número
três, com os jogos iniciáticos de crianças,
3 Mostra o tom de cantiga popular da última estrofe. rapazes e raparigas, e com elementos
simbólicos: ouro, prata, maçã.

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POEMAS DE
PROFESSOR
Tríptico – II
HERBERTO HELDER Não sei como dizer-te que minha voz te procura
1
FERNANDO ALVES e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
https://www.youtube.com/ esplêndida e vasta.
watch?v=JYR4li2_mtc
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
RODRIGO LEÃO se enchem de um brilho precioso
5
https://www.youtube.com/ e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
watch?v=Fr2xFBlQ6eg
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
10
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
15 em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
20
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e o abstrato
25
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
30 coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
35
que te procuram.
Herberto Helder, A Colher na Boca,
in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, 2014.

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Leitura do texto PROFESSOR


Leitura do texto
Perante a poesia de Herberto Helder devemos ter a atitude sensata de não procurar 1. O amor é o sentimento que domina o sujeito
entender todos os sentidos, todos os versos que nos abrem inúmeras possibilidades. poético.
Procuremos apenas entender a atmosfera que deles se desprende. 2. Palavras do campo lexical de Natureza: florir,
campo, centeio, terra, vindima, folhas, semente,
primavera, trevos, girassol, fruto, água, pedra,
1 Indica o sentimento que domina o sujeito poético. ave, leite. Palavras do campo lexical de
universo: astros, espaço, luas, sol. A utilização
2 Procura identificar e interpretar a utilização de palavras dos campos lexicais de Natureza destes campos lexicais no poema confere ao
amor uma dimensão natural, animal e
e Universo. simultaneamente cósmica, como se o amor
fosse o elo de ligação entre o homem e o
3 Analisa a construção do poema. Presta especial atenção ao primeiro verso e ao final de cosmos, aquilo que dá um sentido maior à
cada uma das estrofes. condição humana.
3. O poema está organizado em três estrofes de
11 e 12 versos e ainda uma última estrofe
monóstica (1 verso). A métrica é muito irregular,
************* contendo versos desde duas a quinze sílabas
métricas. A expressão que inicia o poema –
1 não quero mais mundo senão a memória trémula, «Não sei como dizer-te» – vai sendo retomada
ao longo de todo o texto: no 4.º verso da
quando me perdi, primeira estrofe e no final de todas as estrofes,
a cidade, o rio camoneano, o ar, com algumas variações, sendo a última a mais
era como se os apanhasse de uma só vez, significativa, pois é antecedida da conjunção
causal «Porque» que, desta forma, inicia uma
5 um dia inteiro para ver como acabava em noite, explicação conclusiva para a impossibilidade
não quero senão perder-me nesse enigma: que o sujeito poético tem de «dizer» os
um pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro, sentimentos ao destinatário.
e a minha vida como nota,
rápida, ríspida,
10
nas margens,
mas tamanhas eram elas que não acabavam nunca,
notas mais notas,
o caos,
e eu ali à espera da morte entre canções roucas,
eu que, trémulo, não quero, digo, mais mundo,
15
eu que me perdi,
não tinham ainda começado o rio, o poema, o ar, a morte
Herberto Helder, Servidões,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2013. Leitura do texto
1. O sujeito poético quer preservar a memória de
Leitura do texto um tempo poderoso, um tempo vivido, de
perdição, abandono, entrega («quando me
1 «não quero mais mundo senão a memória trémula,» (v. 1) perdi»), um tempo em que parecia que de uma
só vez absorvia a cidade, o rio e o ar, um tempo
• Procura encontrar os sentidos que o sujeito poético associa à memória que deseja em que o sentido do dia era a espera da noite.
preservar. (Poderemos associar este tempo ao amor? À
procura de si mesmo? São linhas de
2 «um pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro / e a minha vida como nota» interpretação possíveis).
(vv. 7-8). 2. Para o sujeito poético, um «pequeno poema
bastava» para conter a vida toda, que
• Estabelece a relação entre o poema e a vida. caracteriza como uma nota à margem do
poema, «rápida, ríspida», mas longa e caótica.
3 Caracteriza o sentimento que pressentimos dominar o sujeito poético nos últimos quatro 3. Um sentimento de desistência, cansaço,
versos do poema e mostra o recurso estilístico utilizado para o sublinhar. insegurança é sublinhado pela construção
anafórica dos versos, que colocam o «eu» no
foco da enunciação.

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RUY BELO
Ruy Belo (1933-1977) nasceu em Rio Maior e licenciou-se em Direito, Direito Canónico e
Filologia Românica. Foi professor de Literatura e Cultura Portuguesa em Madrid e, durante anos,
professor do Ensino Secundário.
A sua poesia é uma das mais ricas e profundamente inquietantes da literatura portuguesa do
século XX. Aquele Grande Rio Eufrates, Homem de Palavra(s), País Possível, Despeço-me da
Terra da Alegria são alguns dos seus títulos reunidos na coletânea Obra Poética.

E tudo era possível


1 Na minha juventude antes de ter saído
PROFESSOR Da casa de meus pais disposto a viajar
Sobre RUY BELO Eu conhecia já o rebentar do mar
RTP ENSINA
http://ensina.rtp.pt/artigo/no-rasto-da- Das páginas dos livros que já tinha lido
-poesia-de-ruy-belo/
5 Chegava o mês de maio era tudo florido
http://ensina.rtp.pt/artigo/ruy-
-belo-1933-1977/ o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
10
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Leitura do texto
Só sei que tinha o poder duma criança
1. O sujeito poético situa o tempo de
entre as coisas e mim havia vizinhança
juventude e de aprendizagem, usando e tudo era possível era só querer
como fronteira o momento da saída de
casa dos pais. Há, assim, um antes e um Ruy Belo, Homem de Palavra(s),
depois e aquele é o tempo «antes de ter Lisboa, Assírio & Alvim, 2016.
saído».
2. Nesse tempo de aprendizagem, a vida
aprendia-se nos livros e na Natureza
(«era só ouvir o sonhador falar / da vida Leitura do texto
como se ela houvesse acontecido»),
aprendia-se com o sonho.
Este é um poema de memória de juventude e de aprendizagem.
3. A expressão «o rebentar do mar» pode
ser interpretada como a força da vida, a
intensidade, a inquietação, a paixão. 1 Mostra a forma como o sujeito poético situa esse tempo para o qual remete o poema.
4. Que aquele era um tempo de sonho está
expresso em «era só ouvir o sonhador 2 Explica como se processava a aprendizagem nesse tempo.
falar da vida como se ela houvesse
acontecido»; que era um tempo de
esperança sente-se no verso «e havia 3 Nesse tempo, «Eu conhecia já o rebentar do mar» afirma o sujeito poético.
para as coisas sempre uma saída»; que
era um tempo de poder di-lo o final do
• Propõe uma interpretação para a expressão sublinhada.
poema «e tudo era possível era só
querer». 4 Aponta as expressões que melhor afirmam que aquele era um tempo de sonho, de esperança
e de poder.

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PROFESSOR
O portugal futuro Sobre RUY BELO
«O PORTUGAL FUTURO»,
1 O portugal futuro é um país dito por Lula Pena
https://www.youtube.com/
aonde o puro pássaro é possível watch?v=2W32ftLnH34
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz Leitura do texto
5 esse peixe da infância que vem na enxurrada 1. No «portugal futuro», é possível o voo do
e me parece que se chama sável pássaro, ou seja, a liberdade; é possível o
Mas desenhem elas o que desenharem desenho das crianças sobre o asfalto, ou
seja, a criatividade; é possível a dança
é essa a forma do meu país das crianças, ou seja, a alegria; é
e chamem elas o que lhe chamarem possível a felicidade.
portugal será e lá serei feliz 1.1 O desenho tem a forma de um peixe e
10 representa a infância. Ao desenharem
Poderá ser pequeno como este esse peixe sobre o asfalto negro, como
ter a oeste o mar e a espanha a leste quem desenha numa lousa, as crianças
tudo nele será novo desde os ramos à raiz estão a transformar a estrada em rio,
caminho vivo e natural.
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
2. O que mudará no «portugal futuro» não
e na avenida que houver à beira-mar serão as dimensões nem as fronteiras,
15
pode o tempo mudar será verão nem o nome, mas sim o seu interior, a
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz sua alma («tudo nele será novo desde os
ramos à raiz»), ou seja, o país é árvore
mas isso era o passado e podia ser duro que tem de renovar-se para dar frutos
edificar sobre ele o portugal futuro novos.
3. O sujeito poético identifica as badaladas
Ruy Belo, Homem de Palavra(s), do relógio da matriz com o passado, por
Lisboa, Assírio & Alvim, 2016.
isso receia que ouvi-las, no «portugal
futuro», seja ficar preso a esse passado e
que, assim, a renovação necessária não
aconteça.
Leitura do texto
4. Rima – a rima, muito livre, musical e
flexível, apresenta-se com o esquema:
1 Atendendo ao valor simbólico dos elementos «pássaro» e «criança», explicita o que, abcacbdada|eeafgfahh ou seja, há uma
segundo o sujeito poético, é possível no «portugal futuro». rima que predomina ao longo de todo o
poema – país, giz, país, feliz, raiz, matriz ;
1.1 Propõe uma interpretação para o desenho das crianças e para o asfalto negro que serve verifica-se a existência de conjuntos que
de suporte ao desenho. se apresentam de forma variada
(emparelhada: este / leste, duro / futuro;
cruzada: desenharem /país / chamarem /
2 O «portugal futuro» terá a mesma dimensão e as mesmas fronteiras que «este». Mostra o feliz; interpolada: feliz / este / leste /
que será diferente. raiz); o único verso solto, o 15.º, não o é
completamente, pois rima com o interior
do verso seguinte – beira-mar / mudar.
3 Nesse país futuro, o sujeito poético gostaria de ouvir as badaladas do relógio da igreja, mas Aliteração – «o puro pássaro é
um receio assalta-o. Explica esse receio. possível»; «desde os ramos à raiz»; «na
avenida que houver»; «o passado e
podia». Outras repetições – desenhem /
4 Esclarece como se constrói a musicalidade deste poema, tendo em conta a rima, a desenharem; chamem / chamarem; será /
aliteração e outras repetições. serei; este / oeste / este.

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Algumas proposições com crianças


1 A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
5 deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
10
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
15
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz
Ruy Belo, Homem de Palavra(s), 1969.

Ruy Belo, Homem de Palavra(s),


Lisboa, Assírio & Alvim, 2016.

Leitura do texto

Este poema constrói-se em torno das palavras-chave «criança» e «infância».

1 Delimita, no poema, as partes correspondentes a:

PROFESSOR
– reflexão sobre a infância;

Leitura do texto – memória da infância;


1. Reflexão sobre a infância: vv. 1 a 11; – desejo de infância.
memória da infância: vv. 12 a 16; desejo
de infância: vv. 17 e 18.
2. Reflexão – presente do indicativo Memória 2 Refere o tempo e modo verbal predominantemente utilizado em cada uma das partes,
– pretérito imperfeito do indicativo Desejo relacionando-o com o assunto de cada uma delas.
de infância – presente do conjuntivo.
3.1 A adolescência começa quando acaba a 3 «A criança morre na adolescência.» (v. 11)
infância, ou seja, a infância morre
quando a adolescência chega. 3.1 Explica o sentido da afirmação.
3.2 No final do poema, o sujeito poético
revela ainda sentir os cheiros da infância 3.2 Mostra que o sujeito poético, no final do poema, contraria, de certa forma, a afirmação
e exprime o desejo de guardar a infância transcrita.
dentro de si.

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Na morte de Marilyn
1 Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
5 o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
10
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
15
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher | Retrato de Marilyn de Andy Warhol, 1967
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
20
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
25
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
30 a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
35 que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjetivar
mesmo que seja bela o adjetivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
40 Toda a mulher que era se sentia toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.
45 Ruy Belo, Transporte no Tempo (1973),
Lisboa, Editorial Presença, 1998.

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PROFESSOR Leitura do texto


Leitura do texto Este é um poema triste, que parte de um facto triste.
1. Marilyn era «a mais bela mulher do
mundo», tão bela que, segundo o poeta,
poderia encarnar a mulher, ser a mulher, 1 Mostra como a beleza e a solidão se conjugam e se chocam no texto.
porque era única. No entanto, sentia-se
sozinha, sentia que ninguém a amava 2 «Nunca ninguém foi tão amado como ela / nunca ninguém se viu envolto em semelhante
verdadeiramente, mas apenas ao seu
corpo, à sua imagem, à sua beleza. escuridão.» (vv. 27-28)
Sentia, afinal, que apenas a utilizavam
pela sua beleza e, por isso, a solidão
• Explica de que forma esta dupla hipérbole tão contraditória se relaciona com a morte de
tomou conta dela. Um dia «a mão da Marilyn.
solidão» foi tão forte que superou a força
da beleza. 3 Apesar dos versos longos e da ausência de pontuação, o poema contém musicalidade
2. A dupla hipérbole é utilizada no sentido da reforçada por aliterações e rimas internas.
correlação entre beleza e solidão, fazendo
entender que a segunda é diretamente • Dá dois exemplos de ambos os casos.
proporcional à primeira, é por ela
determinada. Marilyn morreu,
precisamente, porque se sentiu só. Mas 4 Comenta a atualidade do tema tratado no poema.
sendo a beleza a causa dessa solidão,
poderemos dizer que Marilyn morreu por
causa da sua beleza. (Em termos mais
restritos e factuais, Marilyn morreu,
porque uma noite se sentiu só, sentiu que
a sua vida não tinha sentido e que era um
simples corpo utilizado como um objeto.
Então, resolveu suicidar-se, tomando os
barbitúricos que tinha perto de si).
3. Exemplos de aliteração: Morreu a mais
bela mulher do mundo o seco sóbrio
simples nome de mulher Exemplos de
rima interna: Não havia no fundo em
todo o mundo outra mulher / e toda a
confusão e convulsão que nele possa
caber
4. Num tempo como o nosso, em que a
imagem e a beleza são tão
profundamente valorizadas e se
sobrepõem, muitas vezes, aos valores
mais essenciais do ser humano, o caso
de Marilyn, e a forma como é tratado no
poema, ganha total atualidade. O suicídio
de Marilyn, vítima da sua própria beleza,
remete imediatamente para a forma como
hoje a beleza é utilizada e para as suas
vítimas.

NOTA: Marilyn Monroe morreu em agosto de


1962.
| Memorial a Ruy Belo em Rio Maior

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LUIZA NETO JORGE


Luiza Neto Jorge nasceu em Lisboa em 1939 e morreu em 1989. Frequentou a
Faculdade de Letras de Lisboa e viveu alguns anos em Paris, onde se dedicou à tradução. O
seu nome ficou ligado à chamada «Poesia 61», embora a sua obra, como a dos restantes
intervenientes, tenha ultrapassado largamente este episódio literário. Os seus vários livros de
poemas foram, em 1973, reunidos no volume Sítios Sitiados e mais tarde em Poesia. Em
1989 saiu, postumamente, o livro A Lume. Poesia 61 Nome pelo qual se designou a
publicação de cinco plaquetes da responsabilidade de cinco jovens poetas: Fiama Hasse
Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito.

As casas
1 As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir
5 Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios
As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

10
São altamente mais dóceis
que as crianças PROFESSOR
Dentro do estuque se fecham Leitura do texto
pensativas 1. São várias as ações executadas pelas casas.
Algumas têm a ver com o movimento: «vieram
Tentam falar bem claro de noite», «vão partir», «percorrem grandes
no silêncio distâncias», flutuam sobre os rios. Outras são
15 gestos corporais: «estendem os braços»,
com sua voz de telhas inclinadas «fecham os olhos», «tentam falar bem claro /
no silêncio / com a sua voz». Finalmente,
Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
ainda apresentam outros traços humanos,
como a docilidade e a introspeção (4.ª
estrofe).
Leitura do texto 2. É interessante verificar que, ao longo do
poema se sugere ser a noite o momento de
1 Neste poema de cariz claramente surrealista, a personificação das casas atribui-lhes a personificação das casas (1.ª, 3.ª estrofes). As
casas vieram de noite, foi de noite que
execução de ações e de traços humanos. assumiram a sua dimensão simbolicamente
• Explicita e caracteriza umas e outros. humana. De dia são apenas e, literalmente,
casas.
2 «As casas vieram de noite / De manhã são casas» 3. Estas casas são as pessoas que as habitam.
O facto de a dimensão humana ser ganha de
• Interpreta estes versos, considerando a antítese presente. noite vem confirmar esta ideia, pois é de noite
que as pessoas, os seus gestos e os seus
3 Propõe uma interpretação para o valor simbólico destas casas. sonhos habitam as casas.

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Acordar na rua do mundo


1 madrugada, passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
5 por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas, no meu quarto cai o pó.
um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
10
junto com as folhas dum jornal já lido.
PROFESSOR impera o declive
um carro foi-se abaixo
Leitura do texto
portas duplas fecham
1. São várias as expressões correspon-
dentes a sensações auditivas que no ovo do sono a nossa gema.
chegam ao quarto do sujeito poético:
– «passos soltos de gente»; sirenes e buzinas, ainda ninguém via satélite
15
– «cai o som»; sabe ao certo o que aconteceu, estragou-se o alarme
– «soa o sino sólido as horas»; da joalharia, os lençóis na corda
– «um cano rebentou»;
– «um carro foi-se abaixo»; abanam os prédios, pombos debicam
– «portas duplas fecham»;
– «sirenes e buzinas»; o azul dos azulejos, assoma à janela
– «estragou-se o alarme»; quem acordou. o alarme não pára o sangue
– «o alarme não para». 20
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
2. Ambas as transcrições são muito intensas
do ponto de vista poético. – «os lençóis
não gravou
na corda / abanam os prédios» – Para e duma varanda um pingo cai
além da forte impressão visual e cinética de um vaso salpicando o fato do bancário
dos lençóis, é muito interessante a
deslocação do movimento dos lençóis Luiza Neto Jorge, A Lume,
pendurados para o prédio. – «pombos Lisboa, Assírio & Alvim, 1989.
debicam / o azul dos azulejos» – Nesta
expressão, a sinestesia, provocada pela
sugestão do som do bico dos pombos e
pela indicação da cor azul é intensificada
pelas aliterações: «pombos debicam / o Leitura do texto
azul dos azulejos».
3. «sirenes e buzinas, ainda ninguém via Neste poema, o sujeito poético é observador do movimento do mundo que lhe chega através
satélite / sabe ao certo o que aconteceu»
– Esta passagem ironiza com o alarme de sons e imagens.
contemporâneo dos acontecimentos que
tenham algum sabor a tragédia e que são 1 Destaca as expressões que transmitem sensações auditivas, banda sonora do rumor matinal.
imediatamente amplificados, através dos
mais diversos meios de difusão. – «duma
varanda um pingo cai de um vaso 2 «os lençóis na corda / abanam os prédios», «pombos debicam / o azul dos azulejos».
salpicando o fato do bancário» – Nesta (vv.17-19)
passagem a ironia reside na própria Comenta as expressões transcritas, referindo a expressividade dos recursos nelas usados.
situação que encerra o texto, com um
acontecimento tão pequenino, tão banal e
que, no entanto, encerra um certo grau de 3 Indica e interpreta duas passagens de olhar irónico sobre a cidade.
desajuste cómico.

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PROFESSOR
1 Adormeci Leitura do texto
na verde margem 1. O poema é um relato breve de uma noite
à sombra da ponte de amor que mudou os protagonistas que
com o meu amigo a viveram. A experiência é, pois, a
vivência dessa noite de amor ao ar livre,
5 Ao despertar «na verde margem / à sombra da ponte».
Foi uma experiência transformadora, pois,
nem sombra nem rio eram ao despertar, ambos se sentiam outros,
os mesmos como sentiam ser outro o lugar que lhes
nem eu nem meu amigo serviu de cenário.
os mesmos 2. Verde é a cor simbólica da Natureza, da
primavera, da juventude. O
10
nem verde a inundada desaparecimento do verde simboliza a
margem passagem a um estádio de adulto
atingido pela experiência vivida.
Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993. 3. O poema convoca as cantigas de amigo
da lírica trovadoresca, mais precisa-
mente as albas, pela voz feminina que
relata, na madrugada, uma noite de amor
Leitura do texto com o seu «amigo».

1 No poema alude-se a uma experiência transformadora de toda a realidade.


• Identifica essa experiência e mostra como é referenciada no texto.
2 Interpreta o valor simbólico do verde que se perdeu.
3 Estabelece a relação deste poema com a tradição literária.

O poema ensina a cair


1
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa Leitura do texto
queda de amor, ao encontro Poema dito por
5
do cabo onde a terra abate e Catarina Furtado
a fecunda ausência excede http://ensina.rtp.pt/artigo/o-poema-ensina-a-
até à queda vinda cair-de-luiza-neto-jorge/
1. O poema ensina a cair, ou seja, pela sua
da lenta volúpia de cair, natureza de texto aberto a todas as
quando a face atinge o solo possibilidades, ensina a enfrentar a
10 queda. Seja ela qual for.
numa curva delgada e subtil
uma vénia a ninguém de especial 2. A ideia de que o poema ampara a queda
vai-se explicitando e amplificando no
ou especialmente a nós numa homenagem póstuma. poema. Assim, o poema ensina a cair:
Luiza Neto Jorge, O seu a seu Tempo, Lisboa, Editora Ulisseia, 1966. – em qualquer chão;
– quando o chão nos foge debaixo dos
pés;
Leitura do texto – quando é o amor que provoca a queda;
– quando a queda é um desejo de cair;
– quando a queda é fatal.
1 Interpreta a metáfora que dá o título ao poema. 3. Com alguma ironia, o sujeito poético
afirma que, se o poema ampara a queda,
2 Mostra de que forma a metáfora se amplifica ao longo do texto. também pode amparar a queda final,
3 Relaciona os dois últimos versos com o conteúdo dos versos anteriores. aquela em que fazemos uma vénia de
homenagem a nós mesmos.

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NUNO JÚDICE
NUNO JÚDICE nasceu em 1949, na Mexilhoeira Grande, Algarve. Licenciado em Filologia
Germânica, é Professor na Universidade Nova de Lisboa. Foi Conselheiro Cultural da Embaixada
de Portugal e diretor do Instituto Camões, em Paris. Ensaísta, poeta e ficcionista, autor e tradutor
de peças de teatro, publicou o primeiro livro em 1972 e, desde então, foi distinguido com os mais
importantes prémios de poesia portugueses e vários no estrangeiro, por exemplo, o Prémio da
APE, em 1994, o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, em 2013 e o Prémio de Poesia
António Gedeão em 2016.
Representado em inúmeras antologias e traduzido para diversas línguas, Nuno Júdice tem
participado em prestigiados festivais de poesia internacionais.

PROFESSOR
Sobre NUNO JÚDICE
RTP ENSINA
A fonte das imagens
http://ensina.rtp.pt/artigo/nuno-judice-1949/ 1 Quando o poeta fala na «água clara», quando
Leitura do texto se refere ao trinado dos pássaros que lembra
1. O sujeito poético alude a imagens que o(s) um murmúrio de amantes quando ouve o vento
poeta(s) utiliza(m) tradicionalmente: a e nele todas as memórias do mundo, do
«água clara» (referência às «claras e
frescas águas de cristal» do soneto de 5
que fala? As coisas mais pessoais não
Camões), o «trinado dos pássaros que podem dizer-se; nem esse corpo que ele guarda
lembra um murmúrio de amantes», «o num canto de si próprio, pertence ao
vento e nele todas as memórias do
mundo». Estas são imagens recorrentes poema que a ele vai buscar a sua beleza,
na poesia, em particular na poesia de e sem ele não teria existido. A mulher
amor, contendo, também por isso, grande amada, com o seu signo de luz e a sua
riqueza de alusões e de sugestões. 10
2. O sujeito poético conclui que «as coisas
chave de sonho, vestem-na todas as imagens
mais pessoais não / podem dizer-se», não que o verso envolve como um nó; mas
é possível ao poeta exprimir o que habita é a sua ausência que o poema preenche,
o seu universo mais íntimo e se encontra
guardado nos seus afetos e sentidos, nos dias em que nos separam, até
«num canto de si próprio». Por exemplo, a
15
esse encontro em que nos esvaziamos
poesia pode cantar a mulher amada de de saudade, nos desfazemos de palavras,
mil e uma formas, porém, é sempre a sua
ausência que o poeta procura superar.
e só a música do amor se ouve, no silêncio
«Esse corpo» não pertence ao poema, ao da casa, até ao mais fundo da noite.
contrário, é dele que o poema recebe toda
a sua beleza e razão de ser. Nuno Júdice, Geometria Variável,
in Poesia Reunida 1967-2000, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2000.
3. De acordo com a pergunta e a respetiva
resposta, a «fonte das imagens» é a
mulher amada que, nunca pertencendo ao
poema, nunca estando verdadeiramente
ou suficientemente presente no poema, o Leitura do texto
inspira e, inesgotável como uma fonte, lhe
dá a beber as imagens com que se
constrói. 1 O poema começa com uma interrogação envolvendo imagens comuns na poesia.
• Identifica as imagens aludidas justificando a sua escolha.
2 «Quando o poeta fala […] do que fala?» (vv. 1 e 5)
• Explicita a resposta que o sujeito poético dá à sua pergunta.
3 Explica o título «A fonte das imagens», relacionando-o com o conteúdo do poema.

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Contas
1 Uma noite, quando a noite não acabava,
contei cada estrela no céu dos teus olhos;
e nessa noite em que nenhum astro brilhava
deste-me sóis e planetas aos molhos.
5 Nessa noite, que nenhum cometa incendiou,
fizemos a mais longa viagem do amor;
no teu corpo, onde o meu encalhou,
fiz caminho de náufrago e navegador.
Tu és a ilha que todos desejaram,
10
a lagoa negra onde sonhei mergulhar,
e as lentas contas que os dedos contaram
por entre cabelos suspensos do ar –
nessa noite em que não houve madrugada,
desfiando um terço sem deus nem tabuada.
Nuno Júdice, Rimas e Contas, in Poesia Reunida 1967-2000,
Pub. Dom Quixote, 2000.

PROFESSOR
Leitura do texto
Leitura do texto
De uma maneira muito metafórica, o poema conta uma história de amor. 1. O sujeito poético vê nos olhos da amada
um céu, ideia que remete para
profundidade, beleza, mistério, infinito.
1 contei cada estrela no céu dos teus olhos Por isso, é neles que encontra a luz das
nessa noite em que nenhum astro brilhava estrelas, é neles que encontra a luz que
deste-me sóis e planetas aos molhos. lhe falta naquela noite «em que nenhum
astro brilhava» e ela lhe deu «sóis e
• Relaciona os versos transcritos, interpretando o valor metafórico das expressões planetas» em abundância. Naquela noite,
sublinhadas. o sujeito poético recebeu da amada, em
abundância, a luz mais intensa,
hiperbolicamente nomeada na expressão
2 Na segunda quadra, predomina um campo lexical também usado metaforicamente. «sóis e planetas aos molhos».
Identifica-o, registando as palavras que o integram e indicando o sentimento a que se refere. 2. Predomina, na segunda quadra, o campo
lexical de viagem marítima: encalhou,
caminho, náufrago, navegador. Este
3 Propõe uma interpretação para o título do poema. campo lexical é usado para referenciar o
amor.
3. «Contas» é um título polissémico com
várias possibilidades de interpretação, no
poema. Pode significar contas aritméticas
feitas pelo sujeito poético na contagem
dos fulgores dos olhos da amada (v. 2);
podem ainda ser as contas de «um terço»
(v. 14) desfiando o tempo «sem deus nem
tabuada», ou seja, um tempo suspenso,
sem regras. Pode também transportar a
ideia de pérolas, preciosidade que o
mergulhador (na «lagoa negra», no
corpo) conta quando vem à superfície.
Finalmente, pode ser a forma verbal do
verbo contar: a narrativa do que
aconteceu pela voz, não do sujeito, mas
do destinatário.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

Preparativos de viagem
1 Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
5 de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr do sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
10
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
15
indecisa a meio da noite, a constelação
PROFESSOR dos teus olhos quando os abres, e algumas
Leitura do texto folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
1. De «Vou ao dicionário e tiro palavras» (vv. me vem ditar. E se me disserem que tenho
2-3) até «passageiro insistente » (v. 6), o excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
sujeito poético detém-se nos aspetos da
geografia da viagem. De «mas continuo / e ficarei só com a tua imagem, a estrela
20
a encher a mala» (vv. 7-8), até «e canta de um sorriso triste, e o eco melancólico
sem saber porquê» (vv. 12-13), é o de um adeus.
universo íntimo do seu habitat e do seus
afetos que o sujeito quer levar consigo. Nuno Júdice, Navegação de Acaso,
De «E outras coisas» (v. 13) até «a tua Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2013.
ausência / me vem ditar» (vv. 17-18) é o
universo da escrita e tudo o que ele
comporta de ligação ao amor, que o poeta
quer transportar consigo.
2. O poeta foi elencando aquilo que
considerava imprescindível levar consigo
Leitura do texto
na viagem. Agora, colocado perante a
possibilidade de tudo ter de deixar, elege
o que lhe é vital, inseparável de si: a 1 O sujeito poético organiza, mentalmente, a lista do que tem de meter na sua mala de viagem
imagem da pessoa amada. e fá-lo em três etapas de possibilidades.
3. O poema corresponde a uma descrição,
aparentemente prosaica, de uma ação • Delimita cada uma das etapas, referindo, genericamente, o conteúdo pensado para a mala.
banal: fazer a mala para viajar,
selecionando aquilo que é necessário 2 «E se me disserem que tenho / excesso de peso» (vv. 18-19)
levar. Acontece que a lista que o sujeito
poético vai elaborando não é constituída • Interpreta a conclusão do poema iniciada com esta afirmação, relacionando-a com o
por objetos. Ironicamente, começa por conteúdo dos versos anteriores.
afirmar que tira as palavras do dicionário,
depois, liricamente, escolhe a
imaterialidade do pôr do sol, o canto do 3 Mostra como, no poema, de forma muito surpreendente e com alguma ironia, se cruzam o
pássaro, o toque dos cabelos e o olhar da lirismo e o prosaísmo do mundo contemporâneo.
amada. Finalmente, a ironia na afirmação
do excesso de peso conjugada com o
lirismo da escolha da imagem amada no
momento melancólico da despedida.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

Pedro, lembrando Inês


1 Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
5 não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
10 ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos, PROFESSOR
subindo a margem em que descobri o sentido Leitura do texto
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo 1. O poema apresenta um conjunto de
15
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor, metáforas caracterizadoras daquilo que o
de chegar antes de ti para te ver chegar: com sujeito poético sente como uma dádiva
transformadora do ser amado. Estas são
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água as primeiras.
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: a. Trouxeste a segurança, que anula a
a primavera luminosa da minha expectativa, incerteza; trouxeste a felicidade, que
afasta os medos.
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
20 b. Trouxeste a luz da felicidade a uma
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste. vida de tristeza e solidão.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês, 2. Segundo o sujeito poético, o amor é cada
Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2001. um encontrar a sua própria identidade,
construir-se por dentro, para poder entrar
na equação de ser dois, e sem deixar de
o ser, poder também fundir- se num só,
liberto da solidão. O amor é ainda não
precisar da presença física do ser amado
Leitura do texto para o ter junto de si, dentro de si.
Finalmente, o amor é a luta contra o
1 «Em que pensar, agora, senão em ti?» tempo.
Esta questão que inicia o poema serve de pretexto para o sujeito poético enunciar, 3. O tema do amor de Pedro e Inês está
presente na tradição literária portuguesa
metaforicamente, o muito que o destinatário lhe trouxe. desde o Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende, no início do século XVI,
Explica o sentido das duas metáforas iniciais: passando por Camões e inúmeros
a. «me esvaziaste de coisas incertas» (v. 2) autores ao longo dos séculos.
Neste poema de Nuno Júdice, o título
b. «trouxeste a manhã da minha noite.» (vv. 2-3) remete para esse tópico, mas ultrapassa-
-o. Na verdade, podemos entender o
poema como um discurso de Pedro
2 Explicita o conceito de amor que preside à relação eu-tu e que está expresso nos vv. 6-15. dirigindo-se à amada morta, mas o texto é
sobretudo um poema sobre o amor viv ido
plenamente, numa dimensão que lhe
3 Justifica o título do poema, referindo a tradição literária em que se inscreve. confere universalidade, não o restringindo
a uma história de amor concreta. «Pedro
e Inês» serão a metonímia dos amantes
mais felizes que infelizes.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

MANUEL ALEGRE
MANUEL ALEGRE nasceu em 1936, em Águeda, e estudou Direito em Coimbra, tendo
participado ativamente nas lutas académicas contra o regime de Salazar. Esteve na guerra colonial
em Angola, onde foi preso pela PIDE, por rebelião política. Regressado a Portugal, exilou-se em
França e em Argel, trabalhando na rádio «Portugal Livre». Regressou em 1974 e, a partir de então,
desempenhou diversos cargos políticos, sobretudo o de deputado. A par disso, foi sempre
publicando a sua obra em poesia e em prosa.

As mãos
1 Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
5 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpas
10
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
PROFESSOR
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Leitura do texto
1. De acordo com o poema, as mais diversas Manuel Alegre, O Canto e as Armas,
ações são realizadas pelas mãos: o Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2017.
entendimento e o desentendimento entre
os povos, os barcos com que se navegam
os mares, as alfaias com que se lavra a
terra, os frutos que ela dá, as casas, as Leitura do texto
cidades e os poemas, a palavra – «o canto
e as armas».
2.1 As «mãos» são a metonímia do ser 1 «Com mãos tudo se faz e se desfaz.» (v. 2)
humano, o obreiro de todas as ações Mostra como a afirmação é confirmada pela diversidade de exemplos enumerados no poema.
enumeradas.
2.2 As mãos transformam-se em coisas, isto
é, fazem coisas, que perduram, que deixam 2 Dos vários recursos expressivos utilizados, sobressaem a metonímia e a metáfora.
a marca humana, resistente ao tempo.
Fazem também coisas efémeras, como as
2.1 Indica, fundamentando, de que são metonímia «as mãos».
folhas que o vento leva, como a música. 2.2 Interpreta as metáforas empregues no primeiro terceto.
3. Após ter demonstrado o poder
inquestionável do ser humano, o sujeito
poético convoca o leitor, lembra-lhe a 3 A conclusão é um apelo.
responsabilidade que tem, na defesa da Esclarece o sentido deste apelo.
liberdade.

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Português • 12.º Ano • Ensino Secundário
POETAS CONTEMPORÂNEOS

Portugal em Paris
1 Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
5 e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitário
nas ruas de Paris.

10
Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos
e cestos pelo chão. Pedaços
do meu país. PROFESSOR
Restos.
Leitura do texto
Braços.
15 Na década de 60 do século XX, muitos
Minha pátria sem nada milhares de portugueses tiveram de emigrar
sem nada para a Europa, para fugir à miséria. Manuel
despejada nas ruas de Paris. Alegre, que era exilado político em Paris,
assistiu a esse fluxo migratório que
E o trigo? desembocava sobretudo na gare de
Austerlitz.
E o mar? 1. A realidade é a da emigração portuguesa
20
Foi a terra que não te quis em França, observada através da visão
ou alguém que roubou as flores de abril? dos emigrantes na gare parisiense de
Austerlitz.
Solitário por entre a gente caminhei contigo
2. O sujeito poético percepciona um país
os olhos longe como o trigo e o mar. marítimo, proletário e muito pobre. Duas
Éramos cem duzentos mil? metáforas muito expressivas o
25 caracterizam: «um perfil / de sal / e abril»
E caminhávamos. Braços e mãos para alugar
e «um puro país azul e proletário». A 1.ª
meu Portugal nas ruas de Paris. remete para a condição marítima de
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, Portugal; a 2.ª remete para o mar e para a
Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2017. condição simples e proletária dos
emigrantes. Já a enumeração de Cestos,
Pedaços, Restos, Braços remete para a
descrição da pátria exilada, transmitindo
uma ideia de pátria rural, partida em
pedaços, caída, perdida em terra alheia.
Leitura do texto 3. As interrogações, nos vv. 19 e 20,
referenciam a situação de abandono dos
1 Aponta a realidade observada pelo sujeito poético, que serve de motivo e tema para o campos e do mar, provocada pela saída
poema. dos homens que emigravam. A dos vv.
21-22 contém implícita a situação política
das perseguições do tempo do fascismo.
2 «eu vi o meu país» / «Vi minha pátria derramada» (vv. 2, 10) A do v. 25 sugere o número incontável de
emigrantes. Através destas interrogações,
Caracteriza a imagem que o sujeito poético percecionou do seu país, tendo em conta as o sujeito poético exprime perplexidade,
metáforas e a enumeração utilizadas na 1.ª e na 2.ª estrofe, respetivamente. revolta, solidão e saudade. Por outro
lado, ao utilizar a 1.ª pessoa do plural
3 Mostra os sentimentos que o sujeito poético exprime através do uso das interrogações da 3.ª («Éramos», «caminhávamos»), exprime a
solidariedade e a comunhão com a
estrofe. condição dos emigrantes que, alugam a
sua força de trabalho em França.

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Como se faz um poema


1 Com muita coisa eu fiz o meu poema.
Rasguei retratos abri um poço
na planície. Habitei muitos cadernos.
Fui à guerra e morri. Fui à guerra e voltei.
5 Com muita coisa fiz o meu poema.
[…]
Parti vestido de soldado. Eu vi Lisboa
cheia de lágrimas. E um avião ficou
por muito tempo voando entre lágrimas e nuvens
minha amada chorando no aeroporto triste.
10 Com muita coisa fiz o meu poema.
Meu amigo morreu. Já disse como foi.
A mina rebentou meu amigo ficou
com as tripas de fora em cima de uma árvore.
Aprendi na terceira pessoa o verbo morrer.
15 Com muita coisa fiz o meu poema.
Eu vi soldados com as mãos cheias de sangue.
Mas isso foi de mais. E tive de aprender
na primeira pessoa o verbo matar. Desde aí
há certos adjetivos que me doem muito.
20 Com muita coisa fiz o meu poema.
Não vou dizer o tempo que demora um verso.
Como dizer-vos por exemplo o tempo
com as chaves metálicas batendo
Na minha cela que depois rimei com estrela?
25 Com muita coisa fiz o meu poema.
Cidade já rimei com liberdade
(muita coisa aprendi desde esse tempo)
Liberdade rimei depois com estrela e cela
Tristeza fiz rimar com alegria
30
Meu poema rimou com minha vida.
[…]
Com muita coisa eu fiz o meu poema.
Aprendi-o no vento. Aprendi-o no barro.
Sobretudo na rua. E nalguns livros também.
Porém foi junto aos homens que aprendi
como as palavras são terríveis e sagradas.
35
Aqui vos deixo o meu poema. Aqui vos deixo
cidade a não rimar com liberdade
liberdade a rimar com estrela e cela
meu poema a rimar com minha vida. Aqui vos deixo
as coisas com que fiz o meu poema.
40
Manuel Alegre, Praça da Canção, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2015

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POETAS CONTEMPORÂNEOS
Leitura do texto PROFESSOR
Leitura do texto
1 Escrito na primeira pessoa, o texto inclui imagens que são memórias. 1. A guerra colonial é repetidamente evocada – o
Indica, exemplificando com citações textuais, os contextos que as memórias evocam. sofrimento, o contacto com a morte: «Fui à
guerra e morri. Fui à guerra e voltei.»; «minha
amada chorando no aeroporto tris te.»; «Aprendi
2 Na penúltima estrofe, as memórias dão lugar a aprendizagens. na terceira pessoa o verbo morrer.»; «E tive de
Comenta globalmente o sentido da estrofe. aprender / na primeira pessoa o verbo matar»
Depois, vem a prisão e o sonho da liberdade:
«as chaves metálicas batendo / Na minha cela
3 «Com muita coisa eu fiz o meu poema». (v. 10) que depois rimei com estrela». A Revolução e o
posterior desmoronar de muitas esperanças:
3.1 Identifica e interpreta o recurso expressivo usado na expressão sublinhada. «Cidade já rimei com liberdade»; «Liberdade
rimei depois com estrela e cela / Tristeza fiz
3.2 Relaciona a repetição do verso transcrito com o título do poema, que Manuel rimar com alegria.»
Alegre confessou tratar-se da sua Arte Poética. 2. O poeta refere os diversos componentes da sua
aprendizagem. O «vento» e o «barro», reunidos
no mesmo verso, poderão ser metáforas do
pensamento, dos ideais, complementando a
fragilidade e imperfeição humanas. A rua é o
lugar do encontro e da observação do outro,
«Corri riscos, estive com parte decisiva da aprendizagem, completada
ainda pelas leituras. Porém, a formação do
pessoas que pertencem poeta só se concretiza quando ele entende a
importância, o peso das palavras, o que apenas
se alcança na proximidade dos outros seres
à História. Tudo isso fez humanos.
de mim aquilo que sou.» 3.1 Na expressão sublinhada é usada a
metonímia, pois «o poema» é todos os poemas
que escreveu, nos «muitos cadernos»
habitados.
3.2 A repetição do verso, quer em início de
estrofe, quer em posição de refrão, sublinha a
multiplicidade de vivências que o poeta
exprime, ainda que insuficientemente, ainda
que nem tudo seja dizível («Não vou dizer o
Sobre MANUEL ALEGRE tempo que demora um verso. / Como dizer-
RTP ENSINA -vos…?»). Assim, o título sugere a reflexão que
o poeta leva a cabo, sobre a estreita ligação
SONS DE ABRIL: entre a sua vida e o seu canto – «Meu poema
A RÁDIO COMBATE O REGIME rimou com minha vida».

http://ensina.rtp.pt/artigo/sons-de-abril-a-radio-combate-o-regime/
De Argel, a voz de Manuel Alegre apela à revolta dos portugueses, no verão de 1968. Pede que
aproveitem a doença súbita que tirou o ditador Salazar do poder. Apesar da mensagem emitida
pela Rádio Voz
da Liberdade, Marcelo Caetano sucedeu a Salazar no Conselho.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

Salgueiro Maia
1 Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.
5 Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.
Por isso ficarás como quem vem
10 dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.
Manuel Alegre, País de abril,
Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2014.
Salgueiro Maia no 25 de Abril de 1974,
fotografia de Alfredo Cunha

Leitura do texto

1 «Ficaste na pureza inicial / do gesto que liberta e se desprende» (vv. 1-2)


PROFESSOR
Relaciona os versos com dados biográficos de Salgueiro Maia.
Leitura do texto
1. Falar da «pureza inicial / do gesto que 2 Um verso refere «outros».
liberta» é exaltar a coragem generosa,
altruísta, posta na intervenção Indica, fundamentando, expressões textuais das duas primeiras estrofes, que evidenciam
revolucionária. A expressão «pureza
inicial», com a alusão clara ao verso de a nítida diferença entre o «tu» e esses «outros».
Sophia – «O dia inicial inteiro e limpo» –
do famoso poema dedicado ao 25 de 3 «Ficaste…» (v. 1); «Por isso ficarás…» (v. 9).
Abril, evidencia a referência. O gesto, a
ação de que se fala, é libertador e «se Explicita a relação de sentido entre a última estrofe e a forma verbal que abre o poema.
desprende», isto é, não tira partido do
poder de vencedor.
2. Além da permanência na «pureza inicial»,
a afirmação «havia em ti o símbolo e o
sinal» sublinha a ligação profunda,
essencial, entre homem e data; «havia em
ti o herói que não se rende» salienta a
coragem, mas, igualmente, a Um dos principais protagonistas do 25 de Abril, quer na
incorruptibilidade; ele foi o «conquistador preparação, quer na condução de momentos decisivos no dia da
do sonho inconquistado» porque a
elevação do seu objetivo, ao contrário do Revolução, o capitão Salgueiro Maia recusou todos os cargos
de «outros», não foi almejada. para que foi posteriormente convidado.
3. A relação é de confirmação, intensificando
a certeza de uma memória futura sem
mancha, já anunciada pelo primeiro verso,
começado pelo verbo «ficar». Do passado
para o futuro, com a confirmação do
presente, em que o nome do herói
reaviva, presentifica o dia heroico.

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

VASCO GRAÇA MOURA


VASCO GRAÇA MOURA nasceu na Foz do Douro, em 1942, e morreu em 2014, em
Lisboa. Exerceu a advocacia, de 1966 a 1983, foi Secretário de Estado, diretor da RTP,
comissário geral das Comemorações dos Descobrimentos, diretor dos Serviços da Fundação
Calouste Gulbenkian, eurodeputado, presidente do Centro Cultural de Belém, mas sempre a
par da atividade literária. Poeta, ensaísta, romancista, dramaturgo, cronista e tradutor de
clássicos, foi distinguido com vários prémios, entre os quais o Prémio Pessoa, o Prémio
Vergílio Ferreira, o Prémio de Poesia do PEN Clube, o Grande Prémio de Poesia e o de
Novela e Romance da Associação Portuguesa de Escritores. Pelas suas traduções de
Dante, foram-lhe atribuídos o Prémio de Tradução do Ministério da Cultura de Itália e a
Medalha de Ouro de Florença.

as meninas
1 as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços boias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
5 entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova, PROFESSOR
salta a pés juntos, dedos nas narinas, Sobre VASCO GRAÇA MOURA
ARQUIVOS RTP
e emerge ao sol que o seu cabelo escova. https://arquivos.rtp.pt/conteudos/vasco-graca-
moura/
a água tem a pele azul-turquesa
Leitura do texto
e brilhos e salpicos, e mergulham
10 1. O sujeito poético observa as filhas que, felizes,
feitas pura alegria incandescente. mergulham e nadam numa piscina. A ternura
e o encantamento são emoções evidentes,
e ficam, de ternura e de surpresa, podendo destacar-se, para o confirmar, o uso
nas toalhas de cor em que se embrulham, dos diminutivos («pequeninas», «ninfinhas»),
ninfinhas sobre a relva, de repente. de alguns adjetivos («o corpo esguio, as
longas pernas esguias»), da metáfora («feitas
Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos, pura alegria incandescente»), da palavra
Alfragide, Ed. Asa, 2002. «ternura» (uma das causas apontadas pelo
sujeito poético para a fixação deste momento).
2. As palavras que apontam para as noções de
cor e de luz são as que mais aproximam este
Leitura do texto poema de um quadro: «emerge ao sol que o
seu cabelo escova», «a água tem a pele azul-
-turquesa / e brilhos e salpicos, e mergulham /
1 O poema descreve uma situação do quotidiano. Caracteriza-a e, apoiando-te em ele- feitas pura alegria incandescente.», «nas
mentos textuais, mostra as emoções que desperta no sujeito poético. toalhas de cor […] sobre a relva».
3. O poema, formado por duas quadras e dois
2 Aponta as palavras e/ou expressões do poema que mais o fazem assemelhar -se a um tercetos, é um soneto. Os versos são
quadro. decassílabos. No esquema rimático, apenas
se afasta do modelo clássico nas quadras,
abab-baba (cruzada), mas o dos tercetos
3 Faz a análise da estrutura formal do poema. corresponde ao habitual cde-cde.

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blues da morte de amor


1 já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
5 mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
10
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
15
PROFESSOR e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
Leitura do texto há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
1.1 Rima interna: «e não atina, há um aperto ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
/ no coração, uma tensão no clarinete e /
tão desgraçado»; repetição: «mas mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
realmente, / mas realmente», «saber sair no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
a tempo, saber sair, […}, mas saber,»: 20 o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
aliteração: «queda para kamikaze,», «no
lusco-fusco da canção parar à minha minha querida, toda a gente do bairro,
casa,» e então murmurarei, a ver fugir a escala
1.2 Palavras e expressões comummente do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
usadas em letras de blues (ou rock, ou
jazz) atestam a mesma ligação; os casos Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos,
mais evidentes são os dos empréstimos Alfragide, Ed. Asa, 2002.
– «oh yes», «swing», «darling» – e das
traduções – «pela noite dentro, minha Nota: com o significado de «melancolia», blues designa um género musical
querida», «ah, sim», «ah, não». herdeiro do canto dos escravos negros, na região do Mississipi, cujo tema
2. Além do uso das expressões atrás dominante é a dor de amar.
referidas, habituais em poesia cantada, o
recurso a: um registo prosaic o e informal
(«andei lá perto, estive mesmo quase»,
«emagreci bastante, mas safei-me à Leitura do texto
justa», «eu nunca tive queda para
kamikaze »); metáforas recorrendo a
léxico musical – «humores bem 1 O título aponta a identificação do poema com um estilo musical.
sacudidos, depressões sincopadas, bem
graves», «a gente sopra», «a ver fugir a 1.1 Exemplifica o uso de recursos expressivos que contribuem para a musicalidade do texto:
escala do clarinete», para exprimir a aliteração, repetição, rima interna.
infelicidade, o desespero, evidenciam o
modo como a ironia faz contraponto ao 1.2 Refere exemplos ilustrativos de que o vocabulário reflete a mesma ligação.
tema da «morte de amor».
3. «Um qualquer dia», no «lusco-fusco» da 2 O título define, igualmente, o tom irónico que irá continuar em cada estrofe.
canção (que é a vida), a morte chegará. Mostra como a ironia se combina com o dramatismo do tema.
Mesmo assim, o sujeito poético teimará
em agir como se dependesse de si,
vendo «fugir a escala do clarinete» (outra 3 Na última estrofe, o sujeito poético perspetiva o futuro.
metáfora da vida) e murmurando «morrer Explicita a persistência da ironia.
ou não morrer, darling, ah sim».

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POETAS CONTEMPORÂNEOS

soneto do amor e da morte


1 quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
5 a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

10
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos,
Alfragide, Edições Asa, 2002.

Leitura do texto

1 Uma sucessão de pedidos compõe o «soneto do amor e da morte». PROFESSOR


1.1 Enumera-os, explicitando o desejo comum que os origina. Leitura do texto
1.1 «murmura esta canção», «fica junto de
1.2 Assinala o recurso à antítese, enquanto meio de exprimir a união. mim», «não queiras ver», «segura a
minha mão» «põe os olhos nos meus
2 Confirma a classificação de «soneto», atribuída pelo sujeito poético. […] e diz do nosso amor», «fique por nós
o teu inda a bater». O desejo comum
que origina os pedidos é o de
3 Mostra que o poema é uma declaração de amor. proximidade, pela voz, pelas palavras,
pelas mãos, pelo olhar, pelo coração.
1.2 A antítese estabelece-se, ao longo do
poema, entre as ideias de «morrer»
(partir) e «ficar» (junto de mim); de
«morrer» e «segurar» (prender); de
«morrer», o (meu) coração «deixar de
bater» e o (teu) «fique por nós inda a
bater»; entre «escrever» e «murmurar»,
«dizer». Exprime, portanto, a
aproximação de contrários, a união.
2. Ainda que a estrutura estrófica não
corresponda à habitual – em duas
quadras e dois tercetos – o poema tem
catorze versos, rimados e decassílabos.
3. O poema, escrito para o ser amado,
exprime a certeza de que o seu amor,
que dói de tão perfeito, existirá enquanto
o seu coração bater, e pede-lhe que o
recorde, que o mantenha vivo no seu
coração.

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Elegia breve à poesia


1 fugitivo passar pela retina,
no virar de uma esquina ou de um silêncio,
a tua ausência é este ensombramento,
porém que a despedida seja breve
5 e que voltes com um relâmpago, um
desvendar-se do mundo entrecortando
dobras desamparadas do real.
e eu pergunto: que vozes do crepúsculo
se apagavam então? talvez o vento
10
agitasse tristezas na folhagem,
e esse fosse o frémito dos seus
melancólicos sinais rumorejando,
ou talvez fosse a cama de um hospital
e o branco desolado das paredes
e a mudez de estranhos aparelhos,
15
ou talvez fosse o próprio esquecimento
de que irias voltar, ou resvalar
numa lenta passagem de tercetos.
In Revista Relâmpago n.º 27, outubro de 2010

Nota: alusão ao poema de Camilo Pessanha começado pelos versos «Imagens que passais
pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais?»

Leitura do texto
PROFESSOR
Leitura do texto
1 «fugitivo passar pela retina»
1.1 Ao campo lexical de visão pertencem as 1.1 Dos primeiros sete versos, transcreve as palavras do campo lexical de visão.
palavras «retina», «ensombramento»,
«relâmpago», «desvendar-se». 1.2 Expõe o que distingue as situações marcadas pela ausência do destinatário daquelas
1.2 A ausência é a sombra, o silêncio, o em que este está presente.
desligar da realidade, enquanto a
presença traz a luz, o desvendamento
das imagens do mundo. 2 «e eu pergunto:…» (v. 8)
2.1 O sujeito poético interroga-se sobre os 2.1 Interpreta a pergunta colocada pelo sujeito poético.
motivos da ausência, o que afasta de si
a poesia. 2.2 Interpreta, também, as três hipóteses de resposta subsequentes.
2.2 A tristeza é uma das razões possíveis,
outra, mais concreta e com a qual as
duas outras se prendem, a doença e a 3 Explicita a conceção de poesia que o poema pressupõe.
«cama de um hospital», «o branco
desolado das paredes», a «mudez de
estranhos aparelhos», a última, a
desesperança.
3. A poesia surge no poema como a forma
privilegiada de ligação à vida. Sem ela, o
que fica é um «ensombramento», um
desamparo do real.

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