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Henrique IV

Parte II
Relógio D' Água Editores
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Título: Henrique IV - Parte II


Título original: Henry IV - Part 2 (1600)
Autor: William Shakespeare
Tradução, introdução e notas: Gualter Cunha
Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

© Relógio D' Água Editores, Julho de 2013

Encomende os seus livros em:


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ISBN 978-989-641-367-5

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira
Depósito Legal n.º: 362619/13
William Shakespeare

Henrique IV
Parte II

Tradução, introdução e notas de


Gualter Cunha

Projecto Shakespeare
Projecto Shakespeare

A colecção «Projecto Shakespeare» resulta de um protocolo esta­


belecido entre os membros do grupo de investigação Shakespeare e
o Cânone Inglês, do CETAPS - Centre for English, Translation and
Anglo-Portuguese Studies (pólo da Faculdade de Letras da Univer­
sidade do Porto), e a editora Relógio D'Água, e tem como objectivo
a publicação da tradução integral da obra dramática de William
Shakespeare. O projecto , coordenado por Manuel Gomes da Torre,
distingue-se pela vontade de dar resposta ao crescente interesse que
a dramaturgia shakespeariana tem suscitado no nosso país, materia­
lizado num conjunto de traduções desigualmente distribuídas pela
obra do dramaturgo . Pretende-se, com esta colecção, oferecer uma
imagem actual e coerente da obra dramática de Shakespeare, atra­
vés de um plano de tradução que obedece a critérios amplamente
discutidos e rigorosamente definidos, e que beneficia de um aturado
estudo sobre o autor, o seu tempo e a sua obra .
Trata-se, pois, de um projecto de tradução que inclui também uma
forte componente investigativa e que implica um cuidadoso trabalho
de crítica textual, já que a fixação do próprio texto em língua ingle­
sa nem sempre gera consenso . As traduções são sempre objecto de
discussão por parte dos membros do projecto, embora realizadas
individualmente, sendo portanto da exclusiva responsabilidade do
tradutor que as assina . As dúvidas de interpretação, a fundamenta­
ção cultural e histórica e as opções de tradução encontram-se des­
critas nas notas ao texto; e o ensaio introdutório, além de dar conta
da recepção da obra ao longo dos tempos e de oferecer uma análise
dos temas mais relevantes da peça em foco, procura situar o texto
dramático em relação à cultura portuguesa, nomeadamente no que
respeita às traduções produzidas e às peças levadas a cena .
Em todos os casos, procurou-se trazer Shakespeare para o século
X.XI, tornando-o inteligível para a nossa cultura e para o nosso idio­

ma, ao mesmo tempo que se procurou tornar evidente a dimensão


histórica e transcultural da sua obra .
Introdução

1 - Henrique IV (Parte
II):
o tempo da comédia e o tempo da política

Em Mimesis, uma obra de 1946 que permanece um dos mais im­


portantes estudos dos modos de representação do real na história
da literatura ocidental, Erich Auerbach escolhe um passo de 2 Hen­
rique IV1 para documentar o modo como na viragem do século xv1
para o século xv11 a tradição popular e a influência cristã medieval se
contrapunham à tendência classicizante que algumas décadas mais
tarde haveria de impor a separação dos estilos como norma erudita .
Trata-se do diálogo entre o Príncipe herdeiro, que se tornará o Rei
Henrique V no final da peça, e o seu companheiro Poins, na segunda
cena do segundo acto:

PRÍNCIPE Por Deus, estou mesmo exausto.


POINS Já chegámos a isso? Pensei que a exaustão não se apoderas­
se de alguém de tão elevada estirpe.
PRÍNCIPE Pois de mim apodera-se, embora admiti-lo tire alguma cor
ao semblante da minha grandeza: não me dá mesmo um as­
pecto abominável ter desejos de cerveja aguada?
POINS Bom, um príncipe não deve ser tão mal formado que se vá
lembrar de tão fraca mistura.

1 Tal como na tradução da Parte 1 de Henrique N, adoptam-se aqui as designações 1


Henrique N e 2 Henrique N para referir respectivamente as Partes 1 e II.
INTRODUÇÃO

PRÍNCIPE Talvez o meu apetite não seja de cepa principesca, porque,


em verdade te digo, o que agora me vem à ideia é essa pobre
criatura , a cerveja aguada. Na verdade estas humildes con­
siderações põem-me às avessas com a minha grandeza. Que
desgraça a minha lembrar-me do teu nome - ou reconhecer­
-te amanhã - ou saber quantos pares de meias de seda tu
tens, contando com estas e aquelas que já foram cor de pês­
sego , ou ter de cabeça o inventário das tuas camisas , assim:
uma sobressalente e outra para uso.

A confissão de uma preferência vulgar por uma bebida de fraca


qualidade (a small beer era uma cerveja leve - hoje dir-se-ia li­
ght - usada para dar às crianças e por vezes recomendada para
curar a ressaca na manhã seguinte), assim como a susceptibilidade
ao cansaço ou o reconhecimento de alguém tão insignificante como
Poins levado até ao ponto de se recordar das suas roupas, tudo isto
constitui, segundo Auerbach, uma sátira à tendência, que ao tempo
de Shakespeare se começava a afirmar, «para uma separação estri­
ta entre o sublime e o reino das realidades quotidianas» (Auerbach
312, minha tradução) . Constituindo assim um documento da época,
este passo de 2 Henrique IV é ao mesmo tempo, no dizer de Auerba­
ch, um exemplo de como Shakespeare «mistura o sublime e o baixo,
o trágico e o cómico, numa inesgotável abundância de proporções»
(Auerbach 317, minha tradução) . Dois efeitos fandamentais para a
configuração final desta obra podem ser deduzidos deste modo de
construção literária adoptado por Shakespeare .
Um dos efeitos desta mistura de estilos neste passo da obra
traduz-se nos contornos cómicos assim conferidos à situação, o que
se torna especialmente relevante se tivermos em conta que esta é a
primeira entrada em cena do herdeiro do trono . Não que a situação
faça do Príncipe uma personagem cómica: na continuação do diá­
logo o objecto de ridículo será Poins, tornando-se as insinuações
do Príncipe relativas à promiscuidade sexual do seu companheiro
tão agressivas que viriam a ser expurgadas na edição do ln-Fólio
de 1623, conhecida pela imposição de critérios de circunspecção re­
ligiosa e de moralismo sexual que duas ou três décadas antes não
tinham ainda o poder censório que iriam adquirir com o correr do

10
HENRIQUE IV - PARTE II

século XVII. A agressividade da linguagem do Príncipe é uma forma


de dar à personagem, aqui como em contextos análogos, quer na
Parte II quer já antes na Parte /, um domínio da situação necessa­
riamente compatível com o elevado estatuto que lhe está destinado
e que impossibilita a atribuição ao faturo rei de fraquezas suscep­
tíveis de ridículo . No estrito plano da construção da personagem,
esta cena recapitula uma imagem do Príncipe Harry que havia sido
demoradamente elaborada em 1 Henrique IV e que em certa medida
tinha já sido pelo menos parcialmente superada pelas promessas de
Harry ao pai e pelo seu comportamento na Batalha de Shrewsbury
na parte final daquela peça . Quem agora reaparece é o príncipe do
convívio noctívago e desregrado com Poins e sobretudo com Falstajf,
frequentador de tabernas e senhor de uma linguagem desbragada
como esta que lhe valerá a censura dos editores da obra de Shakes­
peare em 1623.
Este aparente retrocesso na evolução moral e política do Príncipe,
que culminará na sua fria e implacável condenação de Falstaff no
fim da peça, constitui um argumento a favor daqueles que rejeitam
a existência de um plano prévio para a organização da história em
duas partes, argumentando em contrapartida que a segunda par­
te teria sido motivada pelo sucesso comercial da primeira, devido
principalmente à criação da figura de Fa/staff. Shakespeare ter-se­
-ia visto assim na necessidade de retomar a figura do Príncipe numa
fase da sua formação que lhe permitisse dar densidade dramática a
um percurso iniciado com a ligação do Príncipe ao povo e à ralé e
que culmina com a sua transformação no poderoso Henrique V, o rei
que no século xv levou os ingleses à conquista da França . Seja em
resultado desta eventual falta de planificação ou seja por outro mo­
tivo qualquer (para a apreciação da obra esta é uma questão pouco
relevante), o facto é que a participação do príncipe na acção desta
peça é muito escassa, sendo igualmente diminuta a intervenção do
pai, o Rei Henrique IV, que é afinal quem dá o título à obra . Como
de resto tem sido assinalado pela crítica (é, aliás, muito difícil dizer
sobre uma obra de Shakespeare alguma coisa que nunca tenha sido
assinalada pela crítica), a narrativa régia é neste texto relegada pa­
ra as margens da acção, sendo em contrapartida o primeiro plano
ocupado por uma recriação do quotidiano em Inglaterra ao tempo

11
INTRODUÇÃO

de Shakespeare, nomeadamente no período de Isabel I ( Bulman 166-


-74). E isto leva-nos ao segundo dos efeitos que nesta peça resultam
da mistura de estilos notada por Auerbach .
Vimos como a necessidade formal da mistura de estilos pode apa­
recer justificada por critérios de caracterização da personagem,
podendo-se complementarmente argumentar que esta criação ar­
tística da figura do Príncipe Harry só foi possível porque Shakes­
peare dispunha da mistura de estilos como forma de representação
literária . Mas, concomitantemente com o efeito da construção da
personagem, esta forma de representação traz consigo um espaço
muito particular, que é o espaço da existência daquelas personagens
do povo a quem se adequa a apresentação num estilo «baixo» (por
contraposição ao «sublime» adequado a personagens de estatuto
elevado) e a quem se adequa a atribuição de acções cómicas (no
dizer de Aristóteles, personagens «iguais ou piores do que nós» , por
contraposição àquelas «melhores do que nós» , a quem se adequa o
registo trágico - ou, na narrativa, épico) . Este espaço da existência
popular é, nesta peça, objectivado precisamente no quotidiano da
Inglaterra isabelina, e dentro deste em especial no quotidiano rural.
A atenção prestada em 2 Henrique IV ao quotidiano popular
articula-se com a maior importância adquirida pela .figura de Falsta.ff,
quando comparada com a sua presença em cena na Parte I . Como é
afirmado num texto crítico recente, nas cenas de Falsta.ff, Shakespeare
«dramatiza uma história social da outra Inglaterra - com as suas
tabernas, os seus bordéis e as suas quintas» (Bulman 169) . No que
respeita a tabernas e bordéis, a primeira parte já nos tinha dado a
imagem de uma vida social, centrada na figura de Falsta.ff, caracte­
rizada pela venalidade e pela libertinagem, mas que ao mesmo tem­
po era equilibrada pela representação de um mundo despreocupado
e folgazão, por vezes carnavalesco, numa espécie de projecção ima­
ginária de uma velha e alegre Inglaterra, uma «merry England» que
épocas mais recentes tendem a vislumbrar no período isabelino mas
que, enquanto imaginário de um tempo sempre-já-passado, Shakes­
peare localiza aqui no período de Henrique IV, cerca de dois séculos
antes do seu próprio tempo . Nesta segunda parte, contudo, deixa de
se notar aquele equilíbrio, com os pratos da balança a penderem
agora para a apresentação de um mundo que mais aparece como um

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HENRIQUE IV - PARTE II

submundo . A corrupção está presente a cada momento, seja na acei­


tação do suborno por Falstaff aquando da recruta de soldados para
a guerra, seja na esperançada compra dos futuros favores de Falstaff
pelo Juiz Baixio (concedendo-lhe um avultado empréstimo), seja na
naturalidade com que o criado do mesmo Baixio intercede junto do
patrão a favor de um amigo. A libertinagem parece por sua vez dar
lugar dar à prostituição, com a criação da .figura de Dora, e a conti­
nuadas insinuações de promiscuidade sexual expressas nos constan­
tes segundos sentidos das palavras da Hospedeira (que dificilmente
passam por inteiro para a tradução), uma personagem bastante mais
desenvolvida nesta Parte II do que na Parte l (Bulman 170-3) .
Nova, sem dúvida, quando comparada com a primeira parte, é a
atenção prestada à Inglaterra rural, sobretudo através da importân­
cia conferida às cenas que têm lugar na quinta de Baixio, presumivel­
mente em Gloucestershire . P. H. Davison, na sua introdução à edição
da Penguin de Henry IV (Part II) , a.firma que o centro da peça não
é nenhuma personagem mas antes o próprio país, o qual seria re­
presentado directamente «através do retrato de Gloucestershire e da
constante referência a lugares e gentes da Inglaterra» (Davison 38) .
Estas imagens da Inglaterra rural são construídas na segunda cena
do terceiro acto, com as preocupações do Juiz Baixio acerca dos pre­
ços dos bois e das ovelhas na feira de Stanjord, e no quinto acto, so­
bretudo por meio do diálogo, na cena 1, entre o mesmo Baixio e o seu
criado Davy, com a atenção prestada aos afazeres de um proprietário
rural (com alguma importância no meio, dado que também é juiz) e
pela alegre merenda campestre da cena 3, que tem lugar na quinta
de Baixio e onde se comem umas maçãs e uns bolinhos de cominhos
abundantemente regados a vinho . Contrariamente à apresentação
idealizada do mundo rústico comum na literatura do Renascimento,
e que também ocorre em Shakespeare, a vida do campo em 2 Henri­
que IV possui uma coloração realista, conferida pela naturalidade
da linguagem e das situações que descrevem os interesses, as tarefas
e as actividades do dia-a-dia rural. No entender de alguns críticos,
poder-se-ia assinalar aqui a emergência de um novo género, a co­
média rural, que em boa medida substitui a centralidade urbana que
caracteriza a primeira parte, onde a taberna domina como lugar da
comédia (Melchiori 21) .

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INTRODUÇÃO

A apresentação realista do quotidiano rural pode assim ser vista co­


mo uma consequência daquela mesma mistura de estilos, referida por
Auerbach, por via da qual Shakespeare constrói um príncipe herdeiro
imerso no quotidiano vulgar, inerentemente cómico, e para quem essa
imersão conta como um factor de desalento (como quando afirma, no
passo citado acima, que «na verdade estas humildes considerações
põem-me às avessas com a minha grandeza»). Em certa medida o de­
salento do Príncipe é, sem que ele o saiba, o resultado da mistura de
estilos - em contrapartida, só a separação dos estilos possibilitará a
representação da «grandeza» a que o Príncipe aspira e que vai atingir
no fim da peça, quando após a morte do pai ele ascender ao poder
soberano e ao estilo elevado que se lhe adequa, enquanto ao mesmo
tempo deixa o mundo da comédia, rejeitando todos aqueles que nela
participam . O mundo da comédia é um mundo de fragilidades e fra­
quezas, como a de gostar de cerveja aguada na comédia urbana da ta­
berna de Eastcheap (onde presumivelmente decorre a conversa entre
o Príncipe e Poins). No caso da comédia rural representada na quinta
do Juiz Baixio o realismo (que decorre da mistura de estilos) revela,
a par da jovialidade e de uma certa simplicidade de vida, também as
fraquezas - de intelecto, de moral, de carácter - daquele mundo,
objectivadas nos principais intervenientes, seja em Baixio, em Silêncio
ou em Davy, para além, naturalmente, de Falstaff.
Mas a idealização da «alegre Inglaterra» rural não é aqui apenas
contrariada pelo realismo da situação . O primeiro momento do en­
contro rural, na primeira cena do quinto acto (5 .1), é abruptamente
confrontado, logo no início do acto seguinte, com a notícia da morte
do Rei, enquanto o segundo momento, que é propriamente o da con­
fraternização campestre (5 .3) , é quase imediatamente seguido pela
cena em que o Príncipe, agora já coroado Rei, rejeita Falstaff e o
condena ao exílio (entre as duas cenas há o breve interlúdio da pri­
são de Dora, de uma comicidade já um tanto sombria). Mais ainda, o
momento de júbilo que encerra a confraternização, quando Falstaff
recebe a notícia da morte do Rei e se entusiasma com a perspectiva
de vir a ser o amigo do peito do novo monarca, comporta um cruza­
mento complexo de sentidos e de sentimentos: por um lado a alegria
assenta numa perspectiva de instauração do reino da corrupção e do
suborno, coroado pelo supremo triunfo da ilegalidade veiculado pe-

14
HENRIQUE IV - PARTE II

las palavras finais de Falstajf («Vamos pegar em cavalos sem olhar


aos donos, as leis de Inglaterra estão às minhas ordens . Ditosos os
que foram meus amigos, e coitado do Juiz-Mor do Reino!»); por ou­
tro lado, nós já sabemos, desde a cena anterior, que o novo rei se
reconciliou com o Juiz-Mor e fez mesmo dele o seu braço direito, o
que nos dá um distanciamento irónico e mesmo um sentimento de co­
miseração premonitório da exoneração de Fa/staff e do fim da festa .
A própria estrutura da acção dramática faz deste modo pairar por
sobre o folguedo de uma aparente ingenuidade rústica os pressenti­
mentos de uma imposição da lei e da ordem associada à afirmação
da grandeza do novo soberano e do seu estilo elevado, e também ao
triunfo do bisonho Juiz-Mor do Reino .
Ao contrário do que acontecia na Parte /, nesta peça nunca a
alegria é ingénua, nunca a festa é genuinamente jovial, nunca o
carnaval é puramente lúdico . Também a recorrência dos temas do
envelhecimento, da doença e da morte mina constantemente qual­
quer hipótese de uma narrativa que de outro modo poderia ser a de
uma festiva e esplendorosa ascensão ao trono do Rei que se viria a
tornar um herói da história de Inglaterra . Há um sentido mítico em
que estas duas narrativas podem contudo ser compatibilizadas, cor­
respondendo a um modelo narrativo em que uma maldição lançada
sobre um rei leva à esterilidade das suas terras até que um herói em­
preenda uma busca redentora . A lenda do Graal, peça importante da
matéria arturiana, que para a identidade inglesa tem umafanção de
mitofandador, pode ser integrada dentro daquele modelo narrativo,
correspondente afinal ao esquema moral culpa-expiação-redenção
que parece enquadrar a chamada segunda tetralogia dos dramas
históricos de Shakespeare, iniciada com o drama da usurpação, Ri­
cardo II, continuada com as provações de Henrique IV e culminando
na saga heróica de Henrique V, que, ao assumir a coroa por direito
de sucessão, repõe a ordem abalada pelo acto de seu pai, como este
próprio afirma no momento da morte, no final do quarto acto:

. . . Deus sabe , meu filho ,


Por que atalhos e caminhos enviesados
Encontrei esta coroa, e muito bem sei eu
Com que desconforto ela me assentava.

15
INTRODUÇÃO

Em ti há-de poisar com mais sossego,


Melhor opinião, melhor confirmação,
Pois todo o esterco da façanha vai
Comigo para a terra.

A narrativa régia, que embora não ocupe uma grande parte da


peça a atravessa por inteiro, pairando ominosamente por sobre as
cenas da vida «baixa» , popular e rural (como vimos acontecer no
quinto acto), centra-se na doença e na morte do Rei. A doença está
na verdade mais presente do que apenas através do Rei: logo no In­
tróito, o Boato (uma das raras alegorias que encontramos nas peças
de Shakespeare) anuncia que «O velho Northumberland /Se finge do­
ente» , e a peça abre precisamente com Northumberland a saber da
morte do seu filho (às mãos do Príncipe Harry, conforme acontece
no fim da primeira parte) e a vociferar tonitruante contra a muleta e
a touca, apanágios de uma doença que, verdadeira ou falsa, é tema
central das suas invectivas. Mas é na figura de Henrique IV que a
doença objectiva a fragilidade, não só do Rei mas do reino. Na pri­
meira cena do terceiro acto, onde o Rei aparece pela primeira vez,
em roupa de noite (e não num traje que realce o seu poder), e que
alguém já considerou como exprimindo «O significado essencial» da
peça (Melchiori 30), a identificação da doença do Rei com a doença
do reino decorre das palavras do próprio Henrique IV:

REI Sendo assim, meus senhores, bom dia a todos.


Lestes as cartas que vos enviei?
WARWICK Lemos, meu soberano.
REI Então tendes noção de quão enxovalhado
Está o corpo do reino, que vis doenças grassam,
E com que perigo, junto ao seu coração.

Se na primeira parte o tempo de Henrique IV era o tempo da con­


solidação do poder, através da sua participação activa na Batalha de
Shrewsbury que culmina a acção da peça, nesta segunda parte o tem­
po do Rei é o da doença e da morte, sendo a única acção militar que
nela tem lugar conduzida pelo seu .filho, John de Lancaster, que vence
a contenda não pela força das armas mas através de um lance táctico

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HENRIQUE IV - PARTE II

maquiaveliano avant la lettre, desse modo anunciando o fim do tempo


dos heróis e o princípio do tempo dos políticos . Não há com efeito
nesta peça qualquer acção heróica, com o Rei - e o país - doente,
com a acção do Príncipe a limitar-se ao acto de expulsão de Fa/staff,
com a derrota dos revoltosos a ser conseguida através de uma ma­
nobra política de moral duvidosa, e até com Falstaff a ufanar-se da
captura de um Sir John Colevile que se rendeu sem resistência («Pen­
so que sois Sir John Falstajf, e com esse pensamento me entrego»).
A arte de Shakespeare nesta obra não se encontrará portanto na
apresentação de grandes feitos de guerra, desses que param o tempo
ou estão acima dele, como a vitória do Príncipe Harry sobre Hots­
pur na Parte I ou as conquistas em terras de França levadas a cabo
pelo mesmo Príncipe, então já Rei, em Henrique V . Pelo contrário,
a arte dramática encontra-se aqui na por vezes inédita - em termos
shakespearianos - representação das pequenas coisas da vida, co­
mo no já referido realismo do quotidiano rural inglês, ou como nesta
atenção a acções prosaicas, sem grandeza (e portanto não adequa­
das ao estilo elevado), sejam elas o manobrismo político do Príncipe
John, que é a forma como nesta peça se resolve o conflito, ou sejam
referentes ao ciclo do envelhecimento, da degradação e da morte,
que é a forma como nesta peça as personagens evoluem, tendo já 2
Henrique IV sido mesmo considerado como uma tragicomédia sobre
«O envelhecimento, o desapontamento e o declínio» (Knights 174) .
Embora a morte, dentro da peça, apenas chegue para uma perso­
nagem, o Rei, a sua proximidade é contudofacilmente antecipável pa­
ra o significativo conjunto de velhos que povoam esta história, como
é o caso do já referido Northumberland e ainda o do Juiz Baixio, o do
Juiz Silêncio e, sobretudo, o caso de Falstaff. Harold Bloom, um estu­
dioso e um entusiasta da obra de Shakespeare e da .figura de Falstajf,
considera que um dos aspectos negligenciados da Parte II de Henri­
que IV reside no modo subtil como o autor abarca os anos de juven­
tude daquela personagem . É verdade que, como continua Bloom, este
é um modo de Shakespeare nos fornecer elementos para podermos
«apreciar a enorme personalidade de Falstajf» (Bloom 290), mas
também é verdade que, das memórias evocadas pelo seu companheiro
de juventude, o Juiz Baixio, transparece sobretudo o envelhecimento
de ambos e de todos aqueles que com eles conviveram, a par de um

17
INTRODUÇÃO

sempre presente sentido da inexorabilidade da morte, como decorre


da conversa entre os dois juízes da província quando esperam a che­
gada de Falstaff no início da cena dois do terceiro acto:

BAIXIO . . . Havia também o Jack Falstaff, agora Sir John, era um rapaz
e pajem de Thomas Mowbray, Duque de Norfolk.
SIL ÊNCIO Este Sir John, primo , que daqui a pouco vem aí por causa dos
soldados?
BAIXIO Esse Sir John, sim, esse mesmo. Estou a vê-lo a rachar a cabeça
do Scoggin à entrada do tribunal quando era um rapazola que
nem esta altura tinha; e nesse mesmo dia andei eu à pancada
com um tal Sansão Bacalhau, um fruteiro , por trás de Gray 's
Inn. Jesus, Jesus , que tempos malucos eu passei! E ver quantos
companheiros de então estão hoje mortos.
SIL ÊNCIO Todos para lá vamos , primo.
BAIXIO Certo, isso é certo , não falha, não falha. A morte , como diz o
salmista , é certa para todos, todos hão-de morrer. A quanto es­
tará uma boa junta de bois na feira de Stanford?
SIL ÊNCIO À minha fé que não estive lá.
BAIXIO A morte é certa. O velho Vergas lá da vila, ainda é vivo?
SIL ÊNCIO Morreu, senhor.
BAIXIO Jesus , Jesus, morreu! Aquilo é que era esticar o arco , e morreu!
Tinha cá uma pontaria! O João de Gande gostava muito dele e
apostou bom dinheiro nele . E morreu!

Mais tarde, ainda na mesma cena mas já depois dos procedimen­


tos da recruta de soldados para a guerra, Falstaff há-de também
participar na recuperação dessas memórias, embora talvez a con­
tragosto, como parece depreender-se das respostas um tanto evasi­
vas aos esforços de recordação de Baixio (neste passo encontra-se a
frase de Falstaff que haveria de ser usada por Orson Welles no título
do seu filme de 1965 centrado nesta personagem, As Badaladas da
Meia-Noite [Chimes at Midnight]):

BAIXIO Ó Sir John, lembrais-vos de quando passámos toda a noite no


Moinho de Vento nos Campos de São Jorge?
FALSTAFF É melhor nem falar disso , Mestre Baixio.

18
HENRIQUE IV - PARTE II

BAIXIO Ah, aquilo é que foi uma noite! E a Joana Noitadas, ainda é
viva?
FALSTAFF Ainda, Mestre Baixio .
BAIXIO Nunca pôde comigo.
FALSTAFF Nunca, nunca, estava sempre a dizer que não suportava Mestre
Baixio.
BAIXIO Pela santa missa, eu punha-a furiosa até mais não . Nesse tempo
ela era bom material; vai-se aguentando bem?
FALSTAFF Velha, velha, Mestre Baixio.
BAIXIO Pois, há-de estar velha, não tem outro remédio; com certeza que
está velha, se teve o Berto Noitadas do velho Noitadas ainda
antes de eu ir para o Colégio de São Clemente .
SIL ÊNCIO Isso foi há cinquenta e cinco anos .
BAIXIO Ai, primo Silêncio, tivesses tu visto o que eu e aqui este cava­
leiro vimos! Eh, Sir John, disse bem?
FALSTAFF Nós ouvimos as badaladas da meia-noite, Mestre Baixio .

Ouvir as badaladas da meia-noite é aqui um modo de aludir às


aventuras noctívagas vividas por Fa/staff e seus companheiros nos
tempos de juventude, mas não deixa de haver também algum sen­
tido lúgubre nesta imagem, que num contexto com tão frequentes
referências à inevitabilidade da morte faz lembrar o toque das doze
badaladas que anunciam a perdição eterna de Fausto, na peça de
Christopher Marlowe, onde se conta a história de como aquele mago
alemão vendeu a alma ao demónio (o primeiro registo da represen­
tação de Doctor Faustus é de 1594, no ano seguinte ao da morte de
Marlowe e quatro anos antes de 2 Henrique IV ser levado à cena
pela primeira vez). O desregramento, a festa, o carnaval, que carac­
terizavam as cenas com intervenção de Fa/staff na primeira parte,
fazem agora sobretudo parte da memória, de memórias a cada mo­
mento confrontadas com o sentido do envelhecimento e da morte ou
então com as figuras contrapontísticas da regra, da ordem, e da insí­
pida sisudez que as acompanham e que se encontram modelarmente
representadas na personagem do Juiz-Mor do Reino.
O Juiz-Mor aparece desde o primeiro momento como uma espécie
de «sombra negra» de Falstaff. Depois de na primeira cena do pri­
meiro acto termos encontrado Northumberland a queixar-se da do-

19
INTRODUÇÃO

ença, é logo na cena seguinte que nos aparece o Juiz-Mor, primeiro


a acusar Falstaff de ter desencaminhado o Príncipe (Harold Bloom
associa Fa/staff à figura de Sócrates, ambos acusados pelos poderes
públicos de corromper a juventude), e depois a lembrar-lhe as mar­
cas do seu envelhecimento com uma pormenorização pérfida, é certo
que ressentido por Falstaff lhe ter chamado velho:

FALSTAFF . . . Vós que sois velhos não tomais em consideração as ca­


pacidades nossas, dos novos; vós medis o calor dos nossos
fígados pelo amargo das vossas bílis; e nós que estamos na
vanguarda da nossa juventude, devo confessar, também so­
mos brincalhões.
JUIZ Assentais o vosso nome no rol da juventude, vós que estais
escriturados como velho com todas as letras da idade? Não
tendes vós o olhar húmido, a mão seca, a cara amarelada,
a barba branca, a perna a mirrar e a barriga a crescer? Não
tendes a voz quebrada, o fôlego curto, o queixo duplo, o es­
pírito singelo e todas as partes que vos compõem rebentadas
pela antiguidade? E ainda assim vos dizeis jovem? Ora, ora,
Sir John .

Quando chegarmos ao fim da peça, o Juiz-Mor ter-se-á tornado o


tutor do jovem Rei, assim tomando o lugar que Falstaff em tempos
tinha ocupado (e que na sua ingenuidade ainda pensa ocupar), con­
forme o próprio Harry o declara nas palavras que dirige ao Juiz no
fim da segunda cena do quinto acto:

PRÍNCIPE Sereis como um pai para a minha juventude,


A minha voz dirá o que me segredardes,
Os meus intentos curvar-se-ão humildes
Às vossas sábias e experientes instruções.

A lei e a ordem encontram-se então restabelecidas, quer no plano


da narrativa régia, em que a usurpação do poder por Henrique IV
é finalmente redimida na legitimidade de seu filho (na benevolente
narrativa régia shakespeariana, as maldições não passam de gera­
ção em geração), quer no plano da narrativa popular, de onde é

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HENRIQUE IV - PARTE II

erradicado o grande factor de perturbação, com a condenação de


Falstaff ao exílio e à prisão, quer no plano do estilo, com o triunfo do
estilo elevado da fala final do Príncipe tornado Rei, ostensivamen­
te exonerando aquela .figura do Príncipe identificada por Auerbach
com a mistura de estilos . Senão oiçamos o que o recém-coroado Rei
diz a Falstaffnessafala final: «Não me presumas a mesma coisa que
eu era, / Pois Deus bem sabe - e o mundo há-de perceber - / Que
eu mandei embora a minha antiga pessoa» (5 .5 .57-59) .

Todo este sentido de mutabilidade, objectivado na recorrente te­


mática da doença, do envelhecimento e da morte, mas também no
mito da regeneração política operada pela ascensão ao poder de
Henrique V, parece constituir nas suas variadas faces uma vasta re­
presentação dramática do tempo, assumido assim sob diferentes for­
mas como o grande centro da vida e do mundo . Se nos lembrarmos de
um soneto que Camões escrevera poucas décadas antes, poderemos
considerar que Shakespeare se integra aqui dentro do mesmo quadro
renascentista expressado pelo poeta português quando escreve que
«Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas
qualidades» , talvez com a diferença de a identificação camoniana
do tempo humano com o tempo da natureza ( «0 tempo cobre o chão
de verde manto, / Que já coberto foi de neve fria, / E em mim con­
verte em choro o doce canto .» ) ser agora elevada a uma dimensão
cósmica, onde se esbate mesmo o carácter cíclico tradicionalmente
associado ao tratamento deste tema . Em 2 Henrique IV o tempo é a
entidade abrangente de todo o drama, tutelando os comportamentos
e os destinos por via das múltiplas manifestações existenciais da mu­
tabilidade e enquadrando mesmo a própria acção dramática, como
se pode verificar na abertura e no fecho do primeiro acto, através
das palavras iniciais de Northumberland, «Cada minuto que passa
I Há-de ser pai de alguma violência; / Os tempos vão bravos» , e da
fala de encerramento pronunciada por Hastings, «Somos súbditos
do Tempo, e o Tempo manda avançar» .
Esta apresentação do tempo como uma espécie de divindade grega
com roupagens feudais, um suserano cósmico do qual todos somos
súbditos, aparece curiosamente também como uma forma de exonerar
o soberano terreno das suas responsabilidades políticas, pelo menos

21
INTRODUÇÃO

na retórica dos seus defensores no confronto verbal (que nunca outro


há) com os revoltosos, na primeira cena do quarto acto. Trata-se do
momento em que Mowbray, um dos nobres que se opõem a Henrique
IV, aponta as culpas do Rei pelas condições de injustiça «dos tempos
de hoje» , tendo por resposta as palavras de Westmoreland que atri­
buem ao tempo a autoria das injúrias de que o opositor se queixa:

WESTMORELAND ... Ó bom Lorde Mowbray,


Casai o tempo com as necessidades,
E concluireis que na verdade é o tempo
E não o Rei o autor dessas injúrias.

Como bom político, Westmoreland pretende neste momento des­


culpabilizar o Rei pelos males sociais, sem frontalmente os negar,
atribuindo-os às «necessidades» políticas, ou seja, a razões de esta­
do e a realidades concretas independentes da vontade do soberano
(e, também como bom político, num segundo momento procurará
demonstrar que no caso pessoal de Mowbray nem sequer há razões
de queixa).
Não há nada de estranho nesta retórica do poder, que é de então
como de hoje e cujos contornos haviam começado a ser descritos
pela incipiente ciência política moderna inaugurada por Maquiavel
nos inícios do século que então findava. Não há nada de estranho, a
não ser a capacidade de Shakespeare para deste modo representar
essa retórica como processo de naturalização da acção política, ou
seja, como instituidora do mito. Os interesses que movem a acção de
Henrique IV no sentido de enfraquecer os seus adversários políticos
e de criar defesas contra as suas eventuais rebeliões são aqui re­
configurados por Westmoreland como condições «naturais» da vida
social e política, resultantes da implacável acção do tempo tanto
quanto o são a doença, o envelhecimento e a morte no curso natu­
ral das vidas humanas. Nesta transformação de motivações e acções
políticas em encadeamentos causais naturais reside, no dizer de Ro­
land Barthes, o «cerne do princípio mesmo do mito: ele transforma
a história em natureza» (Barthes 198). Não é por isso sem razão que
esta representação do tempo nos faz lembrar as figuras míticas da
Antiguidade.

22
HENRIQUE IV - PARTE II

A ascensão ao poder de Henrique IV exemplifica o percurso político


de um príncipe renascentista, e o caminho seguido pelo seu filho, no
que diz respeito ao domínio da retórica e da estratégia política, não
lhe ficará atrás. Como já foi referido a propósito da Parte/, «tanto a
conquista como a consavação do poder dependem para Henrique IV
do calculismo, da encenação e do disfarce» (Cunha 20). Esta subor­
dinação dos mais diversos actos a uma definida e reflectida estratégia
tendo em vista o poder é não só continuada na Parte II mas mesmo re­
forçada, nomeadamente com respeito ao projecto de uma expedição
ao Santo Sepulcro, anunciada pelo Rei na fala de abertura da Parte I
com o objectivo de «dar caça aos pagãos na terra santa» (Cunha 48)
e por ele finalmente apresentada no leito de morte (no fim do quarto
acto da Parte II) como tendo apenas em vista desviar ímpetos belicis­
tas que de outro modo se poderiam voltar contra o poder instituído .
O conjunto das recomendações políticas onde esta confissão se inte­
gra, dirigidas por Henrique IV ao filho que se encontra prestes a as­
sumir o poder régio, constitui uma poderosa representação da inteira
subordinação dos valores, sejam eles, neste caso, éticos ou religiosos,
aos estritos critérios da estratégia política:

REI Não estás muito firme enquanto as queixas estão verdes,


E os amigos meus, que tu deves fazer teus,
Estão só desde há pouco sem os ferrões e os dentes
Que por acção cruel primeiro me promoveram,
E por cujo poder eu receava
Ser de novo deposto: foi para o evitar
Que eu lhos arranquei, e tinha agora em mente
Levar muitos comigo à Terra Santa,
Antes que a inércia e o ócio os fizessem olhar
De mais para o meu Estado.

Afinal toda a acção dos revoltosos, quer a derrotada em Shrews­


bury na Parte/, quer a frustrada em Gaultree pelo ludíbrio do Prín­
cipe John na Parte II, e que a retórica pública do Estado sempre
apresentara como motivada por inconfessados interesses egoístas e
mesquinhos conducentes à <ifeia imagem / Da vulgar e sanguinária
insurreição» (no dizer de Westmoreland no início do quarto acto),

23
INTRODUÇÃO

ou seja, todos os comportamentos condenáveis e condenados à luz


de uma presumida ética política como meras tentativas de conquista
do poder, aparecem nestas palavras do Rei retrospectivamente jus­
ti.ficados nos mesmos termos em que os revoltosos os apresentavam,
isto é, como reclamações pela injustiça de que os antigos apoiantes
do Rei se sentiam agora alvos . Os <<ferrões e os dentes» dos amigos
de Henrique que promoveram a sua conquista do poder numa usur­
pação da legitimidade do anterior monarca, Ricardo II, são os mes­
mos que tiveram de ser depois extirpados porque podiam tornar-se
uma ameaça para o poder que haviam ajudado a erigir. São assim
apenas critérios de utilidade política e não quaisquer razões morais
que norteiam o comportamento do Rei, e são esses mesmos crité­
rios, e não razões de piedade religiosa, que o levam a promover o
projecto (embora sem lhe dar continuidade) de uma expedição mi­
litar à Terra Santa . Henrique já em tempos tinha dado ao Príncipe
alguns conselhos onde acentuava a importância da manipulação da
imagem pública do poder como estratégia para a sua conservação
(cf. 1 Henrique IV, 3 .2) , mas é só neste último momento de intimida­
de , perante a proximidade da morte e portanto da sucessão de seu
filho, quando o discurso do Rei se assume como transmissão de um
segredo, o segredo da governação e da política, é só neste espaço de
privacidade que a retórica pública das razões de estado se desvenda
para mostrar a sua subordinação à mais fria e calculista estratégia
de aquisição e manutenção do poder.
Esta confissão do Rei ilumina dois outros momentos da peça em que
diferentes discursos, um do próprio Henrique IV e o outro do futuro
Henrique V, revelam análogas dimensões míticas do poder político e
das estratégias que o suportam. Um desses momentos é o solilóquio de
abertura do terceiro acto, quando o Rei se dirige a uma personificação
do sono para se lamentar por as inquietações resultantes das suas
responsabilidades políticas o impedirem de dormir quando ao mes­
mo tempo os seus «mais pobres súbditos» descansam regaladamente:
«Dorme a plebe descansada / E deita-se inquieta a cabeça coroada.»
A relação de causalidade não é explicitada, mas é óbvia: para que os
súbditos possam dormir descansados, os responsáveis pela governa­
ção têm de estar de vigília . O outro momento é também um solilóquio,
o do Príncipe quando se dirige à coroa real que repousajunto à cabeça

24
HENRIQUE IV - PARTE II

de seu pai, na segunda cena do quarto acto. Este solilóquio articula-se


tematicamente com o anterior: ao Rei é.finalmente concedido o sono
por que ansiava, enquanto o filho toma esse sono pela morte e julga
portanto que a coroa é já sua . O tema da vigília como resultado da
inquietação do poder é retomado, sendo agora mais visível a relação
de causalidade entre a vida de descanso de quem ressona toda a noite
e as canseiras de quem tem o peso da responsabilidade, aqui o de uma
coroa que pesa como uma armadura em hora de calor:

PRÍNCIPE Por que estará a coroa ali na almofada,


Uma tão incómoda companhia de cama?
Ó inquietação polida! Ó freima dourada!
Que manténs escancaradas as portas do sono
Tantas noites de vigília - dormi com ela agora!
Mas não tão profundo, e só em metade suave,
Comparando com quem, em barrete de dormir,
Ressona todos os quartos da noite . Ó Majestade!
Quando cinges quem te ostenta, tu assentas
Como rica armadura no pico do calor,
Que de segurança escalda ( . . . ) .

A autovitimização constitui u m lugar clássico da estratégia de


afirmação do poder assumida em ambos os solilóquios que compro­
va a partilha, por pai e filho, de um entendimento do exercício do
poder político como sacrifício, talvez não muito distante do sentido
ascético do trabalho que na opinião de Max Weber viria a constituir
traço marcante da consciência puritana e capitalista triunfante em
Inglaterra menos de meio século depois do tempo da escrita destas
obras . Na consciência de Henrique IV, como também, no final da
peça, na do jovem Henrique V, a afirmação e a contínua produção do
poder são vivências austeras, inquietações e freimas às quais ambos
se sentem chamados como a uma vocação, inescapável encargo ao
qual o destino os condena a dar continuidade, como se depreende
das palavras finais deste mesmo solilóquio do Príncipe, referindo-se
à coroa e dirigindo-se ao pai adormecido e que ele julga já morto:
«aos meus será legado / Isto que vem de ti, como a mim é deixa­
do» . Esta mitificação que institui o exercício do poder como destino

25
INTRODUÇÃO

e como responsabilidade moral haveria de se tornar um elemento


central da constituição da identidade imperial europeia e sobretudo
britânica a partir do século XIX, com a sua mais conhecida fórmula
verbal realizada nas palavras com que Rudyard Kipling caracteriza
o domínio colonial instituído em missão, obrigação, ou destino: «O
fardo do homem branco» (the white man's burden) .
A assunção do poder como austera vocação por parte do Prín­
cipe é incompatível com a continuidade da sua camaradagem com
Falstaff. Quando chegamos a 2 Henrique IV longe vão já os tempos
dos alegres convívios da taberna de Eastcheap na Parte/. Como que
preparando o encontro e separação final, Shakespeare cria apenas
uma cena anterior a esse desfecho em que os dois se encontram (2 .4),
com o Príncipe de início disfarçado a observar as trocas amorosas
entre Falstaff e Dora . O sentido de estado assumido pelo novo Rei,
com a aura de austeridade e de responsabilidade moral que com­
porta, teria por força de acabar com a festa . Como escreve Frank
Kermode, com as palavras dirigidas a Falstaff pelo novo Rei após
a sua coroação «O carnaval acaba e a disciplina social é reatada»
(Kermode 49). Esta fala do novo Rei é talvez a mais conhecida de
todo o texto da Parte II, sobretudo os seus primeiros versos, onde é
interessante notar uma nova modulação do tema do sono e da vigília
na sua associação às responsabilidades do poder, remetendo Fa/staff
para uma espécie de reverso da vigília, o sonho:

REI Não sei quem és, ó velho. Vai às tuas rezas.


Que mal ficam as brancas a um tolo e um bufão!
Sonhei por muito tempo com um homem assim,
Inchado à sobreposse, assim velho e profano,
Mas agora acordado desprezo esse sonho.

A rejeição de Fa/staff é provavelmente o episódio de 2 Henrique IV


sobre o qual mais tem sido escrito, seja para justificar a supremacia
final da lei e da moral sobre as supostas representações da Tentação
e do Vício figuradas em Falstaff, seja para condenar um moralismo
hipócrita que, expulsando Falstaff, expulsa a festa e a alegria de vi­
ver. Limitar-me-ei a referir aqui aquela que é a mais conhecida lei­
tura deste passo, consistente se bem que engenhosa, já com mais de

26
HENRIQUE IV - PARTE II

um século e da autoria de um eminente crítico literário inglês, A . C.


Bradley. No entendimento deste autor, considerando que a chegada
do Príncipe Harry ao trono era incompatível com a continuidade da
sua convivência com Falstaff, Shakespeare teve o cuidado de afastar
as duas personagens na Parte II (com apenas um relativamente breve
encontro, como já acima foi assinalado) e de construir uma imagem
de Falstaff menos favorável, quer no modo como desa.fia o Juiz-Mor,
quer na exposição pública de uma personalidade devassa por via do
seu relacionamento com Dora, quer ainda na perigosidade manifes­
tada quando, julgando estar nas boas graças do novo Rei, a.firma ter
então as leis de Inglaterra às suas ordens . Ainda de acordo com Brad­
ley, Shakespeare esperaria que a nossa simpatia por Falstaff estivesse
já tão enfraquecida no final que aceitaríamos a cena da rejeição sem
a surpresa e o desconforto que esta produz. Teria sido nesta sua ex­
pectativa que Shakespeare falhou, porque «criou um ser tão extraor­
dinário, e fixou-o tão .firmemente no seu trono intelectual, que quando
quis destroná-lo não o conseguiu» (Bradley 259).
Este crítico representa uma perspectiva de interpretação literária
naturalmente datada, onde se revela uma tendência, oriunda da tra­
dição romântica, para integrar as personagens em narrativas ante­
riores e interiores ao texto, criando para elas existências e histórias
que não existem na obra interpretada . E é claro que o estudo das
relações entre a retórica e o poder, ou entre a ética e a política,
que hoje ajuda à interpretação dos percursos de Henrique IV e de
seu filho, não faz ainda parte do arsenal hermenêutico ao tempo de
Bradley. Mas se descontarmos tudo isto, esta é talvez ainda a inter­
pretação do episódio da rejeição de Falstaff que melhor faz justiça à
coerência estética da obra .
A cena da rejeição culmina com efeito o percurso de Falstaff, cuja
morte vai ser anunciada em Henrique V sem que ele chegue a en­
trar em cena na peça . Os motivos da doença e do envelhecimento,
integrados no vasto enquadramento temático do tempo que domina
2 Henrique IV,fazem-se também sentir em Falstaff, que quando pela
primeira vez entra em cena é para saber se a sua urina tem sinais de
algum mal de saúde ( 1.2), e que confessa sentir-se velho no meio dos
seus enleios amorosos com Dora Rompelençóis (2.4):

27
INTRODUÇÃO

DORA Pela minha fé que é com um coração leal que te beijo.


FALSTAFF Estou velho, estou velho.
DORA Tenho-te mais amor a ti do que a qualquer um desses rapazes
escrofulosos que por aí andam.

As palavras de Dora não disfarçam o envelhecimento de Falstaff,


a quem ela própria, na mesma cena, tinha pouco .antes aconselhado
a preparar-se para a morte:

DORA Meu fideputa, meu rico javardinho de São Bartolomeu,


quando deixas tu de combater de dia e espadeirar à noite e
começas a consertar esse velho corpo com vistas ao céu?
FALSTAFF Deixa, boa Dora, não fales como uma caveira, não me faças
pensar no meu fim.

Em ambas as falas de Falstaff nesta conversa com Dora transpa­


rece aquele sentido da inelutabilidade da passagem do tempo que
paira por sobre toda a peça, e que neste caso comporta a iminên­
cia da chegada do fim para a personagem . Se as situações destas
falas são cómicas, o mesmo não se pode dizer delas mesmas, que
denotam um certo acabrunhamento incompatível com a jovialidade,
a despreocupação e a folia do Falstaff a que nos habituáramos na
primeira parte. Bradley poderá estar certo em especial neste ponto:
a surpresa e sobretudo o desconforto que sentimos pela forma e pelo
conteúdo da admoestação e da rejeição de Falstaffpor parte do novo
Rei, reforçado ainda pela ordem de prisão que pouco depois o Juiz­
-Mor lhe dá, resultam sobretudo da imagem que da personagem foi
criada na primeira parte de Henrique IV .
A criação da figura de Pistola em 2 Henrique IV poderá estar re­
lacionada com este esbatimento do poder cómico de Falstaff. Pistola
desempenha o papel cómico de fanfarrão, por sua vez desempenhado
pelo próprio Falstaff na Parte/, mas é um fanfarrão muito diferente
daquele que, por exemplo, se ufanava do sempre crescente número
de «sacanas engomados» com que tivera de se bater em Gad's Hill.
Os efeitos cómicos da figura de Pistola vêm sobretudo do seu domí­
nio (ou da suafalta de domínio) da retórica, do seu empolamento de
uma linguagem belicosa que muitas vezes parodia o tom eloquente e

28
HENRIQUE IV - PARTE II

pomposo, recheado de alusões mitológicas, das personagens de al­


gumas obras dramáticas de contemporâneos de Shakespeare, como
o já referido Christopher Marlowe . Trata-se de uma figura pode­
rosa enquanto personagem cómica, formalmente herdeira do miles
gloriosus, ou soldado fanfarrão, da comédia grega e latina, mas o
prazer que o leitor (ou o espectador) retira dos seus efeitos, ou de
parte deles pelo menos, exige um conhecimento de códigos (de escri­
ta ou de referências clássicas) que não só restringe o público como
mediatiza o cómico, o que nunca acontece quando nos rimos das
bazófias de Falstajf . No final da última cena cómica da peça (5 .3),
quando chega a notícia da morte do Rei e da consequente subida ao
trono do Príncipe Harry, é Pistola quem significativamente traz a
notícia e é ele quem toma conta da eficácia cómica da situação, as­
sim substituindo Falstaff, de tal modo que são mesmo dele as últimas
palavras da cena, o que no conjunto das duas partes nunca até então
tinha acontecido estando Fa/staff presente e acordado . Independen­
temente da formulação de juízos sobre as intenções de Shakespeare,
parece haver aqui um render da guarda no respeitante ao centro có­
mico dentro da estrutura dramática, com Pistola a ocupar de facto o
lugar de Falstaff. Em Henrique V esta substituição terá a sua grande
continuidade, com o anúncio da morte de Falstaff e com Pistola a
tornar-se a principal figura cómica nas guerras de França, apesar
de o epílogo de 2 Henrique IV prometer aos espectadores «continuar
a história com Sir John dentro dela e pôr-vos bem-dispostos com
a bela Catarina de França» . Dir-se-ia que, embora a substituição
por Pistola já estivesse preparada, e pudesse mesmo ser lida na or­
ganização formal da peça, nem Shakespeare teve coragem para se
despedir de Falstaff.

2 - Presenças de Henrique IV (Parte II) em Portugal

Conforme já foi assinalado na introdução à tradução de 1 Hen­


rique IV publicada na presente colecção das obras dramáticas de
Shakespeare, nenhuma das duas peças que tomam por título o no­
me deste rei inglês, irmão de Filipa de Lencastre e provavelmente
razão do nome dado ao sobrinho, o Infante D . Henrique, mereceu

29
INTRODUÇÃO

ao longo dos tempos especial atenção de críticos ou de tradutores


em Portugal. No seu estudo da recepção de Shakespeare no século
XIX em Portugal, Jorge Bastos da Silva localiza algumas alusões à

figura de Falstaff, nomeadamente em Almeida Garrett e em Júlio Di­


nis, e assinala «uma certa voga falstaffiana» no final do século, que
associa às várias récitas da ópera de Verdi centrada naquela figura
shakespeariana que tiveram lugar no Teatro Nacional de São Carlos
na temporada de 1893-94 (Silva 114-15) , tendo-se mesmo verificado
o aparecimento , em 1897, de uma publicação intitulada Falstaff.
A única tradução da segunda parte de Henrique IV publicada até
à data, intitulada El-Rei Henrique IV (II Parte), é da autoria de Hen­
rique Braga, responsável também por uma tradução da Parte 1. Tal
como para a primeira parte, trata-se de uma tradução em prosa . Am­
bas foram publicadas em 1950 e fazem parte da colecção das obras
de Shakespeare da responsabilidade da casa editora Lello e Irmão.
Não encontrei qualquer indicação de que alguma vez esta peça tenha
sido levada à cena em Portugal.

3 - O texto original e a presente tradução

Embora não existam registos inequívocos, algumas provas indi­


rectas parecem apontar para que a segunda parte de Henrique IV
tenha sido levada pela primeira vez à cena em 1598, devendo a sua
composição datar de fins de 1597 ou inícios de 1598 . Cerca de um
ano mais tarde, Shakespeare viria a compor Henrique V, encerran­
do assim o ciclo das peças de matéria histórica inglesa, iniciado
cerca de 1595 e composto por nove obras2 (uma décima peça histó­
rica, Henrique VIII, viria a ser escrita cerca de dez anos mais tarde,
pensa-se que em colaboração com John Fletcher) . A esta fase seguir­
-se-ia o período das grandes tragédias, iniciado com Hamlet, talvez
ainda no ano de 1599 .
A crítica tem aventado a hipótese de que o desdobramento da his­
tória de Henrique IV não tivesse obedecido a uma planificação pré-

2 Por ordem cronológica do assunto, que não da composição: Rei João, Ricardo II,
Henrique IV (Partes 1 e II), Henrique V, Henrique VI (Partes 1, II e III) e Ricardo III.

30
HENRIQUE IV - PARTE II

via, tendo a composição da segunda parte resultado da percepção


por Shakespeare do êxito comercial da primeira parte, sobretudo
devida à popularidade da figura de Falstaff (cj. Melchiori 1 e 13-
-14). Como quase tudo o que respeita à génese e à composição das
obras de Shakespeare, esta hipótese deve ser tratada com o devido
cuidado . A sua principal razão de ordem intrínseca prende-se com o
grande desequilfbrio entre as duas partes no que respeita à inclusão
de matéria histórica . Quase tudo o que é importante no reinado de
Henrique IV acontece na primeira parte, ficando para a segunda
apenas a morte do Rei e antes dela o episódio militar de Gaultree, na
opinião de alguns apenas repescado por Shakespeare da sua prin­
cipal fonte, as crónicas de Holinshed, a fim de dar algum corpo à
matéria histórica da peça . Contudo, o facto de nem a morte do Rei
nem a rejeição de Falstaff (a condenação dos antigos companheiros
ao exílio por parte de Henrique V após a sua coroação é relatada em
Holinshed) constarem da primeira parte deverá implicar que esta
decisão de Shakespeare foi tomada antes da respectiva conclusão,
devendo portanto a hipotética percepção do êxito comercial ter sido
uma antevisão e não uma constatação - uma circunstância que,
sem invalidar a hipótese, a torna problemática . Uma hipótese de re­
solver o problema consiste em argumentar, como faz Melchiori, que
Shakespeare deixara alguma matéria histórica «de reserva» para o
caso de se justificar comercialmente uma continuação, como veio a
verificar-se .

O texto de 2 Henrique IV chegou até nós em duas versões . A primei­


ra data de 1600 e é designada por edição Qu arto (ln-Quarto), como
geralmente acontece com as peças de Shakespeare publicadas indivi­
dualmente antes da sua inclusão na colectânea de 1623, referindo-se
esta designação ao facto de se tratar de livros de formato in-quarto,
nos quais cada folha é dobrada duas vezes (em quatro), resultando em
oito páginas . A outra versão é a dessa primeira colectânea da obra
dramática de Shakespeare, publicada em 1623, sete anos após a mor­
te do autor, e conhecida como First Folio, neste caso porque se trata
de um in-fólio, designação dada ao livro quando a folha é dobrada
uma só vez . Uma grande parte dos inumeráveis problemas de.fixação
do texto das peças de Shakespeare tem que ver com as discrepâncias

31
INTRODUÇÃO

entre o texto dos ln- Quartos e o do Primeiro ln-Fólio, havendo para


várias das peças duas ou mais edições in-quarto, com divergências
entre elas, sendo conhecidas edições in-quarto de dezoito das trinta e
seis peças incluídas no Primeiro ln-Fólio .
Embora no caso de 2 Henrique IV haja apenas uma edição in­
-quarto, a fixação do seu texto não é inteiramente isenta de proble­
mas, já que dela são conhecidas duas versões distintas, com diferen­
ças no número de folhas de um dos cadernos e algumas pequenas
diferenças textuais (as duas versões podem ser consultadas em ht­
tp ://www.bl .ukltreasures/shakespearelhomepage .html J . Mas, apesar
destas dificuldades, os especialistas têm considerado que o texto do
ln-Quarto foi provavelmente composto a partir dos manuscritos de
Shakespeare (os chamados foul papers, os manuscritos entregues
pelo dramaturgo à companhia para a partir deles ser preparada a
representação), sendo portanto mais fidedigno do que grande par­
te das edições in-quarto das peças de Shakespeare, que se presume
serem transcrições dos textos feitas pelos actores (são os chamados
«Maus ln-Quartos» , ou Bad Quartos) . Tem havido alguma dificulda­
de em integrar esta confiança no ln-Quarto de 1600 com o facto de
o texto do Primeiro ln-Fólio apresentar em relação àquele alguns
acrescentos significativos, nomeadamente oito passos relativamente
extensos (para além de em contrapartida apresentar algumas omis­
sões, mais facilmente explicáveis) . Na generalidade dos casos, os
críticos especializados nestas matérias têm sido da opinião de que
esses acrescentos devem ser considerados da autoria de Shakespea­
re, hipoteticamente incluídos na «versão limpa» , ou passada a limpo
(chamada fair copy), embora por outro lado não seja conhecida ne­
nhuma «versão limpa» de qualquer obra de Shakespeare .
Na presente tradução foi tomado em consideração o texto do
ln-Quarto, com os acrescentos incluídos no Primeiro ln-Fólio, de
acordo com a prática comummente adaptada pelos modernos orga­
nizadores das edições desta obra . Todas as alterações a esta base
textual, geralmente relativas a indicações de saída ou entrada de
personagens em cena, são apresentadas entre parênteses rectos . Em
alguns domínios da fixação do texto mais discutíveis, como por vezes
no caso da lineação, foram comparadas opções assumidas por di­
versas edições críticas antes de ser adaptada uma solução .

32
HEN Kl(,!UE IV - l'AK I J:. 11

O texto do ln- Quarto não se encontra dividido em actos e cenas, de


resto como frequentemente acontece com as peças de Shakespeare,
sendo muitas vezes esta divisão acrescentada tardiamente . No caso
de 2 Henrique IV é contudo efectuada uma divisão em cinco actos,
e destes em cenas, no texto do Primeiro ln-Fólio, que foi adoptada
nesta tradução (com uma única diferença de numeração resultante
de no ln-Fólio o lntróito ser considerado como primeira cena do
primeiro acto, enquanto nesta tradução, seguindo a prática comum,
o lntróito é considerado como prévio ao início do primeiro acto) .
Dentro deste critério de fidelidade, o quarto acto aparece dividido
em apenas duas cenas, tal como se encontra no ln-Fólio, e não em
cinco, como se encontra em algumas edições . Também a lista de per­
sonagens foi adoptada do Primeiro ln-Fólio, no qual esta é uma das
sete peças (num total de trinta e seis) que inclui uma lista de «nomes
dos actores» (The Actors Names), tendo os nomes das personagens
que não constam do ln-Fólio sido inseridos entre parênteses rectos .
A localização da acção não é por regra fornecida nas aberturas
das cenas nas peças de Shakespeare, o que serve para nos recordar
que os moldes realistas de representação dramática a que nos ha­
bituámos não vigoravam em fins do século xv1 . Quando a indicação
do lugar é relevante para o curso da acção dramática, Shakespeare
encarrega-se de a fornecer dentro do próprio texto, como aqui acon­
tece no início do diálogo de abertura da primeira cena do quarto
acto, com a referência feita por uma das personagens ao lugar onde
se encontram, a floresta de Gaultree . Mas para satisfazer costumes
de representação mais modernos, nomeadamente no capítulo da con­
cepção de cenários, os editores de Shakespeare foram estabelecendo
localizações para as diversas cenas . Na presente tradução optou-se
por não integrar essas indicações no corpo do texto, fornecendo-as
contudo nas notas .finais . lgualmenteforam incluídos nas notas .finais
alguns esclarecimentos que, a diferentes títulos, podem ser relevan­
tes para a leitura do texto da peça . As notas remetem para o acto,
cena e linha a que dizem respeito; no corpo do texto, por sua vez, não
há nunca qualquer remissão para as notas, a fim de proporcionar à
leitura uma página «limpa», sem intromissão de algarismos ou ou­
tros sinais que pudessem perturbar a fluência e a imagem do texto
na página .

33
Obras Citadas

AUERBACH , Erich . Mimesis : The Representation o/ Reality in Western


Literature . Trad. Willard R . Trask . Princeton , New Jersey : Princeton
University Press, 1 968 .
BARTHES, Roland. Mitologias . Trad. José Augusto Seabra. Lisboa: Edi­
ções 70 , 1 978 .
BLOOM , Harold. Shakespeare : The Invention o/ the Human . Nova Iorque:
Riverhead Books, 1 998 .
BRADLEY, A. C. «The Rejection of Falstaff» . ln Oxford Lectures on Poe­
try . Londres: Macmillan, 1 955 . 247-75 .
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36
Henrique IV

Parte II
Personagens

Por ordem de entrada em cena

BOATO
LORDE B ARDOLPH
PORTEIRO
CONDE DE NoRTHUMBERLAND
TRAVERS
MoRTON
FALSTAFF
PAJEM
Ju1z-MoR DO REINO
CRIADO
ARCEBISPO DE YoRK
THOMAS MoWBRAY
LoRDE HASTINGS
HOSPEDEIRA
ÜATÁZIO
NEGAÇA
B ARDOLPH
GowER
PRíNCIPE HENRY
POINS
LADY NoRTHUMBERLAND
LADY PERCY
FRANCIS
Moço
WILL
DORA ROMPELENÇÓIS
ALFERES PISTOLA
PETO
REI
WARWICK
S URREY
Juiz BA1x10
JUIZ SILÊNCIO
BOLORENTO
SOMBRA
VERRUGA
FRANZINO
B EZERRO
MENSAGEIRO
LORDE WESTMORELAND
PRiNCIPE JoHN
DUQUE DE CLARENCE
DUQUE DE GLOUCESTER
HARCOURT
JoHN DE LANCASTER
DAVY
BEDEL
PRIMEIRO SERVIÇAL
S EGUNDO SERVIÇAL
TERCEIRO SERVIÇAL
INTRÓITO

Entra Boato, todo pintado com línguas

BOATO Abri os ouvidos , pois quem há-de tapar


A entrada à audição se o sonoro Boato fala?
Do Oriente ao declinante Oeste ,
Fazendo do vento montada , eu desenrolo
Os actos começados nesta bola de terra .
Constantes calúnias cavalgam minhas línguas
E em diversas linguagens eu as digo
E atulho com falsas novas os ouvidos das gentes .
Falo de paz enquanto a oculta inimizade ,
Disfarçada de segurança , agride o mundo; 10

E quem senão o Boato , quem senão eu ,


Reúne tropas temíveis e prontas defesas ,
Fazendo a cheia época, inchada doutros males ,
Parecer engravidada pelo tirano Marte?
E não é nada disso . O Boato é uma flauta
Soprada por suspeitas , cismas , conjecturas ,
E de tão fácil e tão simples manejo
Que esse embotado monstro de incontadas cabeças ,
A sempre discorde e oscilante multidão ,
A sabe tocar. Mas para que faço eu 20

A anatomia do meu conhecido corpo


Diante dos meus? Porque está o Boato aqui?
Corro à frente da vitória do Rei Henrique ,
WILLIAM SHAKESPEARE

Que num sangrento campo perto de Shrewsbury


Bateu o jovem Hotspur e as suas tropas ,
Extinguindo a chama da atrevida revolta
Com o sangue dos revoltosos . Mas porque digo
Já eu tanta verdade? A minha tarefa é
Apregoar que Harry Monmouth caiu
Sob a raiva da espada do nobre Hotspur 30

E que o Rei diante da fúria de Douglas


Curvou a ungida cabeça até rente à morte .
Fiz correr este Boato pelas vilas da província,
Lá desde o campo real de Shrewsbury
Até este bichento forte de pedras ratadas
Onde o pai de Hotspur, o velho Northumberland ,
Se finge doente . Chegam correios derreados
E cada um deles traz apenas notícias
Que soube por mim . Trazem das minhas línguas
Brandos alentos falsos , piores que veros males . 40

Sai

42
ACTO 1

Cena 1

Entra Lorde Bardolph por uma porta [e o Porteiro por outra]

LORDE BARDOLPH Eh ! quem guarda este portão? Onde está o conde?

PORTEIRO Quem devo dizer que sois?

LORDE BARDOLPH Diz ao conde


Que Lorde B ardolph o aguarda aqui .

PORTEIRO Sua Senhoria encaminhou-se para o jardim .


Queira Vossa Excelência bater ao portão
E ele próprio responde .

Entra o Conde [de] Northumberland

LORDE BARDOLPH Eis que chega o conde .


[Sai o Porteiro]

NORTHUMBERLAND Que novas , Lorde Bardolph? Cada minuto que passa


Há-de ser pai de alguma violência;
Os tempos vão bravos : o despique , qual cavalo
Cheio de boa comida, soltou-se louco 10

E leva tudo à frente dele .


WILLIAM SHAKESPEARE 1 .1

LORDE BARDOLPH Nobre conde ,


Trago-vos notícias certas de Shrewsbury.

NORTHUMBERLAND Queira Deus que boas .

LORDE BARDOLPH Quanto o coração deseja:


O rei está ferido e não está longe da morte
E foi fortuna do meu senhor vosso filho
Matar o Príncipe Harry, e ambos os Blunts
Morreram à mão de Douglas . O Príncipe John
E Westmoreland e Strafford já fugiram ,
E o galeão Sir John , reco de estima de Harry,
Vosso filho o prendeu . Oh , um dia assim, 20

Com tal contenda, tal constância e tal conquista


Já não ocorria a dignificar os tempos
Desde as sortes de César.

NORTHUMBERLAND De onde vos vem isso?


Vistes o campo? Estais a chegar de Shrewsbury?

LORDE BARDOLPH Falei com alguém , meu senhor, que de lá vinha,


Entra Travers
Um fidalgo bem-nascido e de bom nome ,
Que como verdadeiras me deu estas notícias .

NORTHUMBERLAND Aqui chega o meu criado Travers , que enviei


Na terça-feira para saber notícias .

LORDE BARDOLPH Meu senhor, passei por ele no caminho 30

E não é possuidor de mais certezas


Além das que pode repetir de mim .

NORTHUMBERLAND Então , Travers , que boas notícias vêm contigo?

TRAVERs Meu senhor, Sir John Unfreville mandou-me de volta


Com boas notícias , e tendo melhor montada
Passou-me à frente . A picar a espora veio então
Um fidalgo , extenuado com a pressa,

44
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .1

Que parou a dar alento ao cavalo em sangue .


Queria saber o caminho de Chester, e eu
Perguntei-lhe se tinha novas de Shrewsbury: 40

Disse-me que a revolta tivera pouca sorte


E que a espora do jovem Percy estava fria .
Dito isto , deu rédea a o seu capaz cavalo
E curvando-se espetou os calcanhares armados
Nos ofegantes flancos do pobre bicho
Até à roseta , e parecia, assim partindo ,
Devorar o caminho na corrida ,
Sem esperar mais perguntas .

NORTH U M B ERLAND Hã? Outra vez:


Disse que a espora do jovem Percy estava fria?
Que o Espora Quente era Espora Fria? Que a revolta so

Tivera má sorte?

LORDE B A R DOLPH Olhai , senhor, o que vos digo :


Se o meu jovem senhor, vosso filho , não ganhar,
À minha honra que por um cordão de seda
Dou o meu baronato e não se fala mais nisso .

NORTHU M BERLAND Porque havia esse fidalgo que passou por Travers
Dar tais exemplos de perdas ?

LORDE BARDOLPH Quem , esse?


Era decerto algum coitado que roubou
O cavalo que montava , e punha a minha vida
Em como falou à sorte . Vede , aí vêm mais novas .

Entra Morton

NORTHU M B ERLAND E o sobrolho deste homem , qual página de rosto , 60

Prediz a natureza de um volume trágico:


Lembra uma praia onde a imperiosa enchente
Deixou o testemunho da usurpação .
Diz , Morton , estás a chegar de Shrewsbury?

45
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .1

MORTON Vim a correr de Shrewsbury, meu nobre senhor,


Onde a odienta morte pôs a mais feia máscara
Para nos combater.

NORTHU M B ERLAND Que é de meu filho e irmão?


Vejo que tremes , e a tua palidez
Dá o recado melhor que a tua língua .
Foi u m homem assim, débil e abatido , 70

Assim sombrio , de ar mortiço , e desolado ,


Que na calada da noite apareceu a Príamo
Para lhe dizer que meia Tróia tinha ardido:
Mas antes de ele achar a língua viu Príamo o fogo ,
E de meu Percy eu vejo a morte antes que a relates .
Devias dizer: «Assim fez vosso filho;
E assim vosso irmão; e assim lutou o nobre Douglas . . . » ,
Tapando-me o s ávidos ouvidos com seus bravos feitos .
Mas ao fim e ao cabo , para mos tapar de vez ,
Tens um suspiro para assoprar este elogio , so

A acabar com «irmão , filho e os outros todos mortos» .

MORTON Douglas está vivo , e vivo ainda vosso irmão ;


Mas quanto a meu senhor, vosso filho . . .

NORTHUMBERLAND Pois , está morto .


Vê como a suspeita tem a língua pronta:
Quem se arreceia do que antes não soubesse
Por instinto apreende nos olhos dos outros
Que calhou como temia. Mas fala , Morton ,
Diz a um conde que o seu presságio mente ,
E eu tomarei isso por confortante insulto
E te farei rico por mor dessa afronta . 90

MORTON Sois muito grande para que eu vos contradiga,


Mui vero é vosso senso , mui certos vossos medos .

NORTHUM BERLAND Mas mesmo assim , não me dês Percy por morto .
Vejo uma arredia confissão em teu olhar:

46
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .1

Abanas a cabeça e achas medo ou pecado


Dizer a verdade . Se ele está morto
A língua que o diz morto não ofende ,
E peca aquele que desmente os mortos ,
Não o que diz que o morto não está vivo .
Mas quem primeiro traz notícias mal-vindas 1 00

Tem tarefa perdedora , e a sua língua


Soa sempre depois como um sino fúnebre
Lembrado a dobrar pela partida de um amigo .

LORDE BARDOLPH Não posso pensar, senhor, o vosso filho morto .

MORTON Lamento ter de vos forçar a acreditar


No que quisera Deus eu não tivesse visto ,
Mas estes olhos viram-no ensanguentado ,
A dar fraca resposta, cansado e sem fôlego ,
Diante de Harry Monmouth , cuja ira lançou
O indómito Percy de rojo por terra, 1 10

De onde com vida nunca mais se ergueu .


Em suma: a morte do espírito que dava chama
Até ao mais rude camponês nas suas hostes ,
Logo que propalada tirou fogo e calor
À mais bem caldeada coragem das tropas ,
Pois era a sua têmpera que forjava o exército ,
E , uma vez embotada , todos os outros
Vergaram como frouxo e pesado chumbo .
E como uma coisa que em si mesma é pesada ,
Quando empurrada corre mais depressa , 1 20

Assim os soldados deram , com seus medos ,


Tal ligeireza à perda de Hotspur,
Que as flechas não voavam mais depressa
Do que os nossos homens , com a segurança em mira,
Fugiram do campo . Por isso o nobre Worcester
Foi logo aprisionado , e o furioso escocês ,
O feroz Douglas , cuja laboriosa espada
Por três vezes matara a aparição do Rei ,
Adoçou os fígados e deu graça à vergonha

47
WILLIAM S HAKESPEARE 1 .1

Dos que voltavam as costas , e quando fugia 1 30

Tropeçou de medo e foi caçado . Em fim de contas


Certo é que o Rei venceu , e fez avançar
Ao vosso encontro , senhor, uma força rápida
Sob o comando do jovem Lancaster
E de Westmoreland . Eis todas as notícias .

NoRTHUMBERLAND Terei tempo de sobra para carpir tudo isto .


Dentro do veneno há bálsamo , e estas notícias
Que , estivesse eu bem , me fariam doente ,
Estando eu doente , trouxeram-me algum bem .
E como o desgraçado de joelhos febris 1 40

Como dobradiças lassas , a fraquejar sob a vida ,


Com uma convulsão se solta como um tiro
Dos braços da enfermeira, assim estes meus membros ,
Frouxos de mágoa e agora irados pela mágoa,
Valem por três . Vai-te daqui , branda muleta !
Uma escamosa manopla com juntas de aço
Há-de enluvar esta mão . Touca doentia, vai-te ,
És guarda muito tola para uma cabeça
Alvo de príncipes inflamados pela conquista .
Rodeai-me a fronte com ferro , e deixai vir l so

O que de mais agreste o Tempo e o Ódio ousem


Mostrar de catadura ao furioso Northumberland !
Que o céu beije a terra ! Que a mão da Natureza
Deixe à solta a brava enchente, que a Ordem morra ,
E que este mundo não seja mais um palco
Para nutrir a contenda num arrastado acto;
Mas que o espírito do primogénito Caim
Reine em todos os peitos , com cada coração
Atinado pelo sangue , e que a rude cena acabe
E as trevas façam o enterro dos mortos . 1 60

MORTON Essa paixão excessiva far-vos-á mal , senhor.

LORDE BARDOLPH Não vos divorcieis , bom conde , da sabedoria,


As vidas dos vossos queridos camaradas

48
HENRIQUE IV - PARTE II 1.1

Pendem da vossa saúde , e se a abandonais


À paixão tormentosa, por certo a arruinareis .

MORTON Vós deitastes contas à guerra , nobre senhor,


E calculastes as sortes antes de dizer
«Vamos avançar» . Foi vosso pressuposto
O risco de vosso filho na troca de golpes .
Sabíeis que ele i a sobre perigos , sobre um gume , 1 10

Mais perto de cair que de passar;


Estáveis cientes de que a sua carne era sujeita
A feridas e golpes e que o seu afoito espírito
O levaria ao maior comércio do perigo ,
Mas dissestes «Avança» ; e nada disto ,
Ainda que bem apreendido , pôde impedir
A pertinaz acção . Que aconteceu depois ,
Ou que resultou deste ousado empreendimento ,
Mais do que ter sido o que já era esperado?

LORDE BARDOLPH Todos nós , comprometidos nestas perdas , 1 so

Sabíamos qual o risco em tão perigosos mares


E que era dez para um, sair de lá com vida;
Mesmo assim arriscámos , porque o ganho proposto
Abafou o respeito pelo perigo receado ,
E agora na mó de baixo , arriscamos de novo .
Vamos , temos de pôr tudo em jogo , corpo e bens .

MORTON É mais que tempo; e , meu mui nobre senhor,


Ouvi-o como certo e ouso revelá-lo:
O digno Arcebispo de York está em armas
Com forças bem equipadas ; e é um homem 1 90

Que dá aos seguidores uma dupla garantia .


O meu senhor vosso filho apenas tinha corpos ,
Sombras e aparências de homens , para combater.
Pois a palavra Revolta separava
As acções de seus corpos das suas almas ,
E eles lutavam enjoados , relutantes
Como quem toma veneno , só as suas armas

49
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .1

Pareciam combater; espíritos e almas


Tinha-os congelado a palavra «revolta»
Como a peixes num lago . Mas agora o bispo 200

Transforma em religião a insurreição ,


Em seus pensamentos tida por sincera e santa;
É seguido tanto em corpo como em espírito
E reforça a sua conjura com o sangue
Do bom Ricardo raspado das pedras de Pomfret:
Faz derivar do Céu a causa e a disputa ,
Diz que protege uma terra a esvair-se ,
A arfar pela vida sob o poder de Bullingbrook ,
E grandes e pequenos apinham-se a segui-lo .

NORTHUMBERLANo Eu já sabia disto , mas , para falar verdade , 210

A presente mágoa apagara-mo do espírito .


Entrai comigo , e cada um aconselhe
Sobre a melhor via para a defesa e a vingança:
Mandai correios e cartas , fazei depressa aliados;
Nunca foram tão poucos , e nunca tão desejados .

Saem

Cena 2

Entra Sir John [FalstaffJ com o seu Pajem transportando-lhe


a espada e o broquei

FALSTAFF Rapaz , meu gigante , que diz o médico das minhas


águas?

PAJEM Disse , senhor, que a água em si é uma boa água, sau­


dável , mas quanto ao sujeito de onde ela veio , se ca­
lhar tem mais doenças do que pensa.

FALSTAFF Toda a espécie de gente faz questão de pegar comigo:


a cabeça deste pedaço de barro feito homem e com-

50
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .2

posto de loucura não é capaz de inventar nada que le­


ve ao riso para além do que sobre mim eu invento ou
é inventado; não sou apenas eu próprio espirituoso 10

mas sou também a causa do espírito dos outros . Sigo


aqui diante de ti como uma porca que esborrachou
toda a ninhada menos um; se o Príncipe te pôs ao
meu serviço por outra razão que não seja fazer-me
ainda maior, então estou falho de entendimento . Meu
mandrágora fideputa , és mais apropriado para te usar
no gorro do que para me andares a servir, aqui agar­
rado às canelas . Nunca até agora tinha sido assistido
por uma ágata, mas não há-de ser em ouro ou prata
que te hei-de meter, mas em roupagens reles , e de- 20

pois envio-te de volta ao teu patrão em vez de uma


jóia - ao juvenil Príncipe teu patrão , que ainda não
tem penugem no queixo; mais depressa me há-de
crescer barba na palma da mão do que ele há-de ter
alguma na cara , e contudo não vai hesitar em dizer
que a sua face é uma face real . Deus pode acabá-la
quando achar por bem , para já nem um pêlo lhe falta:
e pode bem manter a face real pelo valor facial , pois
nenhum barbeiro vai ganhar seis dinheiros com ela
e mesmo assim ele há-de cantar de galo como se se 3o

tivesse declarado homem crescido já desde que o pai


era solteiro . Pode bem guardar a sua graça, mas está
quase a perder a minha, disso pode estar certo . Que
disse o mestre Pasmado do cetim para a minha capa
curta e para o meu calção?

PAJEM Disse , senhor, que devíeis arranjar melhor fiador do


que Bardolph : diz que não aceita a fiança dele nem a
vossa, não gostou das garantias .

FALSTAFF Que ele se dane como o glutão , queira Deus que com
a língua ainda mais quente , esse fideputa desse Aito- 40

fel , um filho da mãe é o que ele é , um patife , no prin­


cípio são tudo facilidades e depois vem exigir garan-

51
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

tias ! Estes fideputas de cacholas polidas , só querem


agora é andar de sapatos altos e molhos de chaves à
cintura e se alguém é recto com eles num trato ho­
nesto logo eles vêm exigir garantias . Tão depressa
preferia que me enchessem a boca com veneno dos
ratos como me disporia a enchê-la com garantias .
Não sej a eu um autêntico cavaleiro se não estava à
espera de que ele me enviasse vinte e duas jardas de so

cetim , e ele a enviar-me «garantias» . Bem pode ele


dormir com garantia, já que tem o corno da abun­
dância e o afogueamento da mulher para o iluminar
- onde está o B ardolph? - e contudo não vê , mesmo
não lhe faltando onde pendurar o lampião .

PAJEM Foi a Smithfield comprar um cavalo para Vossa Se­


nhoria.

FALSTAFF Comprei-o eu a ele em São Paulo e vai-me ele com­


prar um cavalo em Smithfield; se eu agora arranjasse
uma esposa na casa de tias ficava servido de criado , 60

de cavalo e de mulher.

Entra o Juiz-Mor do Reino e um Criado

PAJEM Senhor, está aqui aquele nobre que mandou prender o


Príncipe por ele lhe ter batido por causa do Bardolph .

FALSTAFF Não te mostres , não o quero ver.

JUIZ Quem é que vai ali?

CRIADO Com licença de Vossa Senhoria, aquele é Falstaff.

JUIZ Aquele que foi procurado por causa do roubo?

CRIADO Esse mesmo , meu senhor. Mas depois disso já ele


prestou um bom serviço em Shrewsbury, e pelo que

52
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .2

ouço vai agora em alguma missão junto de Lorde 10

John de Lancaster.

JUIZ Ah sim , a York? Chama-o de volta.

CRIADO Sir John Falstaff.

FALSTAFF Ó rapaz , diz-lhe lá que sou surdo .

PAJEM Tereis de falar mais alto , o meu patrão é surdo .

JUIZ Lá isso é , para ouvir o bem é surdo . Agarra-o pelo


braço , preciso de lhe falar.

CRIADO Sir John !

FALSTAFF O quê? Um rapazola tão novo e já a pedir? Então


não há guerras? Não há empregos? Não fazem falta so

súbditos ao Rei? Não precisam os revoltosos de sol­


dados? Embora seja uma vergonha estar em qualquer
dos lados menos num , é maior vergonha pedir do que
estar do lado pior, fosse ele ainda pior do que o pode
fazer o nome da Revolta .

CRIADO Tomais-me por outro , senhor.

FALSTAFF Porquê , senhor, acaso eu vos tomei por um homem


honesto? Mesmo pondo de parte a minha qualidade
de cavaleiro e soldado , seria uma mentira descarada
se o tivesse feito . 90

CRIADO Rogo-vos então , senhor, que ponhais de parte a vossa


qualidade de cavaleiro e de soldado e me deis licença
para vos dizer que é uma mentira descarada afirmar
ser eu outra coisa que não um homem honesto .

53
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

FALSTAFF Eu dar-te licença para me dizeres? Pôr eu de parte o que


nasceu comigo? Enforca-me se eu te der licença para
alguma coisa; e se te arrogas com licença, era melhor
que te enforcasses , meu galfarro ! Vai-te daqui , fora!

CRIADO Senhor, o meu patrão deseja falar convosco .

JUIZ Sir John Falstaff, quero dar-vos uma palavra. 1 00

FALSTAFF Meu bom senhor, Deus dê a Vossa Senhoria um mui-


to bom dia . Fico contente por ver Vossa Senhoria na
rua , tinha ouvido dizer que Vossa Senhoria estava
doente . Espero bem que Vossa Senhoria ande na rua
por conselho médico . Embora Vossa Senhoria não
tenha ainda deixado a juventude lá muito para trás ,
há contudo em vós uns ressaibas das sezões , um cer-
to paladar ao sal do tempo , e eu muito humildemente
imploro a Vossa Senhoria que tenha um reverendo
cuidado com a Vossa Saúde . 1 10

JUIZ Sir John , eu mandei-vos chamar antes da vossa expe-


<lição a Shrewsbury.

FALSTAFF E se me permite Vossa Senhoria, ouvi dizer que Sua


Majestade regressou de Gales com algum desânimo .

JUIZ Não falo de Sua Majestade: vós não viestes quando


vos mandei chamar.

FALSTAFF E também ouvi dizer que Sua Alteza teve outra vez
aquela apoplexia filha da puta.

JUIZ Bem , que Deus o cure . Rogo-vos que me deixeis


falar-vos . 1 20

FALSTAFF Esta apoplexia, segundo entendo , é uma espécie de


letargia e , com licença de Vossa Senhoria, uma espé-

54
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .2

cie de adormecimento no sangue , um fideputa dum


formigueiro .

JU1z Porque me vindes falar disso? Seja lá como for.

FALSTAFF Aquilo tem origem em muita mágoa, na inquie­


tação e na perturbação do cérebro . Li acerca da
causa desses efeitos em Galeno , é uma espécie de
surdez .

JUIZ Quer-me parecer que vós apanhastes a doença, já que 1 30

não ouvis nada do que vos digo .

FALSTAFF Muito bem , meu senhor, muito bem . Com vossa li-
cença, é antes a doença de não ouvir, o padecimento
de não prestar atenção , que me apoquenta.

JUIZ Talvez prender-vos pelos calcanhares vos fizesse


bem à atenção dos ouvidos , e eu não me importo de
ser o vosso médico .

FALSTAFF Sou pobre como Job , meu senhor, mas não sou
tão paciente: pela pobreza pode Vossa Senhoria
ministrar-me o remédio da prisão; mas quanto a ser 1 40

paciente para seguir as vossas prescrições, quem for


sensato poderá pôr aí uma gota de escrúpulo , ou até
um escrúpulo inteiro .

J U IZ Mandei-vos chamar, para falar comigo , quando con-


tra vós havia matéria que envolvia a vossa vida.

FALSTAFF Seguindo a sugestão do meu douto conselho no res-


peitante às leis deste serviço territorial , eu não vim .

JUIZ A verdade , Sir John , é que viveis com grande infâ-


mia.

55
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

FALSTAFF Quem se afivela dentro do meu cinto não pode viver 1 50

com menos .

JUIZ Os vossos meios são magros e sinto que gastais muito .

FALSTAFF Antes fosse ao contrário: fossem meus meios gordos


e de cinto gastasse eu pouco .

JUIZ Vós desencaminhastes o jovem Príncipe .

FALSTAFF O jovem Príncipe é que me desencaminhou . Eu sou


o sujeito da barriga grande e ele é o meu cão .

JUIZ Bem , eu detesto escarafunchar uma ferida acabada


de sarar: o serviço por vós prestado naquele dia em
Shrewsbury serviu para dourar um pouco as vossas 160

proezas na noite de Gad's Hill . Podeis agradecer ao


desassossego dos tempos a sossegada tolerância da
vossa acção .

FALSTAFF Meu senhor ! . . .

JUIZ Mas já que tudo está bem , deixá-lo estar como está:
não acordeis um lobo adormecido .

FALSTAFF Acordar um lobo é tão mau como cheirar uma raposa.

JUIZ Essa agora ! Vós sois como a vela em que a melhor


parte já ardeu .

FALSTAFF Uma vela de festa, meu senhor, toda de sebo - dis- 1 70

sesse eu de cera, que o meu bom aspecto me confir-


maria.

JUIZ Cada pêlo branco da vossa face deveria apresentar


compostura.

56
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .2

FALSTAFF Apresentar-se com gordura , com gordura, com gor­


dura .

JUIZ Andais atrás do jovem Príncipe de um lado para ou­


tro , como o seu anjo mau .

FALSTAFF Isso não , meu senhor, o vosso anjo mau é leve , e es­
pero que quem olhe para mim me leve sem precisar 1 so

de me tomar o peso; e contudo sob alguns aspectos


confesso que não passo . Já nem sei: a virtude é tão
pouco respeitada nestes tempos de vendilhões que o
verdadeiro valor se tomou guardador de ursos e o
engenho se tomou moço de taberna que gasta a agili­
dade mental a fazer contas ; todos os outros dons que
são atributos do homem , da maneira como a maldade
desta época lhes dá forma , não valem um chavo . Vós
que sois velhos não tomais em consideração as ca­
pacidades nossas , dos novos; vós medis o calor dos 190

nossos fígados pelo amargo das vossas bílis ; e nós


que estamos na vanguarda da nossa juventude , devo
confessar, também somos brincalhões .

JUIZ Assentais o vosso nome n o rol da juventude , vós


que estais escriturados como velho com todas as
letras da idade? Não tendes vós o olhar húmido , a
mão seca, a cara amarelada , a barba branca , a perna
a mirrar e a barriga a crescer? Não tendes a voz que­
brada , o fôlego curto , o queixo duplo , o espírito sin­
gelo e todas as partes que vos compõem rebentadas 200

pela antiguidade? E ainda assim vos dizeis jovem?


Ora , ora , Sir John .

FALSTAFF Meu senhor, eu nasci por volta das três da tarde , já


de cabeça branca e barriga um tanto arredondada.
Quanto à voz , perdi-a a acirrar os cães e a cantar hi­
nos . Mas não darei mais provas da minha juventu­
de: a verdade é que apenas sou velho em siso e em

57
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

entendimento; e quem quiser competir comigo em


cabriolas por mil marcos , que me passe o dinheiro
e vamos a isso . Quanto ao murro que o Príncipe vos 210

deu nos queixos , deu-o como um príncipe rude e vós


recebeste-lo como um lorde sensível . Já o repreendi
por isso , e o jovem leão está arrependido - valha-me
Nossa Senhora , não está vestido de saco e com cinza ,
mas com seda nova e seco velho .

miz Bom, envie Deus ao Príncipe um melhor compa­


nheiro .

FALSTAFF Deus envie ao companheiro um melhor príncipe . Eu


é que não me consigo ver livre dele .

JUIZ Bom, o Rei já vos separou: segundo oiço , vós ides 220

com o Lorde John de Lancaster combater o Arcebis-


po e o Conde de Northumberland .

FALSTAFF Pois , agradeço por isso ao vosso amável engenhozi­


nho . Mas espero de todos vós , que em casa beijais a
minha Senhora Paz , que rezeis para os nossos exér­
citos não se encontrarem num dia de calor; porque ,
valha-me o Senhor, só levo comigo duas camisas e
não faço contas de suar em excesso; que eu não volte
a cuspir branco se for um dia de calor e eu empu­
nhar outra coisa que não seja uma garrafa: não há à 230

espreita acção perigosa a que eu não me atire . Bom,


eu não posso durar sempre , mas sempre foi manha
desta nossa nação inglesa quando têm uma coisa boa
usar e abusar dela. Se precisais mesmo de dizer que
sou um velho , então deixai-me descansar; prouvera a
Deus que o meu nome não fosse tão terrível como é
para o inimigo: antes queria ser carcomido até à mor-
te pela ferrugem do que ser desgastado e reduzido a
nada por um movimento perpétuo .

58
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .2

JUIZ Bom, portai-vos bem , portai-vos bem , e Deus aben- 240

çoe a vossa expedição .

FALSTAFF Poderá Vossa Senhoria emprestar-me mil libras para


eu me equipar?

1u1z Nem um cruzado , nem um cruzado: estais muito


impaciente para carregar as cruzes . Boa viagem .
Recomendai-me a meu primo Westmoreland .

[Saem o Juiz e o Criado]

FALSTAFF Caia-me em cima um malho de três homens se reco­


mendo alguma coisa. Um homem não pode separar a
idade da cobiça mais do que da lascívia pode apartar
braços e pernas jovens; mas num caso a gota agasta, 2so

no outro açoita a sífilis , e assim ambos os estados


antecipam as minhas imprecações . Rapaz !

PAJEM Senhor.

FALSTAFF Quanto dinheiro há na minha bolsa?

PAJEM Sete moedas de quatro e mais dois dinheiros .

FALSTAFF Não arranjo remédio para este definhamento da bol­


sa: pedir emprestado só serve para entreter, mas a
doença é incurável . Leva esta carta ao Lorde de
Lancaster, esta ao Príncipe , esta ao Conde de West­
moreland e esta à velha Senhora Ú rsula , a quem to- 260

das as semanas tenho prometido casamento desde


que me apercebi do primeiro pêlo branco no quei­
xo . Trata disso , sabes onde depois me encontrar.
Raio de gota sifilítica , ou de sífilis gotosa, ou uma
ou outra anda-me a apoquentar o dedo grande do
pé . Não há-de haver problema se eu mancar: tenho
as guerras por desculpa e a pensão há-de parecer
mais justificada . Um espírito perspicaz sabe fazer

59
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

uso de qualquer coisa: eu hei-de transformar doen­


ças em proveitos . 270

Saem

Cena 3

Entram o Arcebispo [de York] , Thomas Mowbray [Conde Marsha[J ,


Lorde Hastings e Lorde Bardolph

ARCEBISPO Conheceis agora a nossa causa e os nossos meios


E, meus nobres amigos , peço-vos a todos
Que faleis com franqueza sobre estas esperanças ,
A começar pelo Lorde Marshal : Que dizeis a isto?

MOWBRAY Reconheço a razão de estarmos em armas ,


Mas gostaria de ficar mais esclarecido
Sobre os meios com que podemos avançar
De cabeça erguida e com hostes bastantes
Contra as forças e todo o poder do Rei .

HASTINGs Segundo a lista, as nossas tropas ascendem 10

A vinte e cinco mil homens escolhidos


E os nossos reforços vivem muito da esperança
No grande Northumberland , cujo peito arde
Com um inflamado fogo de vexames.

LORDE BARDOLPH O problema então , Lorde Hastings , põe-se assim:


Se os nossos actuais vinte e cinco mil
Se podem aguentar sem Lorde Northumberland .

HASTINGs Com ele , podemos .

LORDE BARDOLPH Virgem Santa, pois é isso;


Mas se sem ele nos acharmos muito fracos ,
Sou da opinião de não avançarmos muito 20

60
HENRIQUE IV - PARTE II 1 .3

Até termos o seu apoio à mão;


Pois num assunto de feições assim sangrentas ,
Conjectura, expectativa e suspeita
De ajudas incertas não devem ser aceites .

ARCEBISPO Isso é certo , Lorde B ardolph , na verdade


Foi esse o caso do jovem Hotspur em Shrewsbury.

LORDE BARDOLPH Pois foi , meu senhor, aprontou-se de esperança ,


A viver d e a r e vento e promessas de reforços ,
De antemão a gabar-se de uma força
Bem mais pequena que o menor dos seus projectos , 30

E desse modo , com grande imaginação


Própria de loucos , levou seus homens à morte ,
E saltou para a destruição de olhos fechados .

HAsnNos Mas , com vossa licença, nunca houve mal


Em gizar hipóteses e formas de esperança .

LORDE BARDOLPH S i m , s e a qualidade d a guerra que nós temos -


A acção do momento , a causa em curso -
Viver na esperança como na Primavera
Os botões que despontam , com menos garantias
Da esperança do fruto do que do desespero 40

De a geada os queimar. Quando vamos construir,


Vemos o lugar, desenhamos o projecto ,
E quando já temos uma imagem da casa
Temos de calcular o custo de a erguer,
E se vemos que excede os nossos meios ,
Que fazemos senão desenhá-la de novo
Com menos quartos , ou no pior desistir
Da construção? Muito mais nesta grande obra
(Que é quase deitar abaixo um reino
E erguer outro) , devemos inspeccionar so

O plano da situação e o projecto ,


Assentar numa fundação segura,
Questionar inspectores , saber das nossas posses ,

61
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

Se são capazes de suportar tal obra,


De ter peso contra quem se lhe opõe ; ou então
Pomo-nos fortes no papel , também nos números ,
Usando nomes de homens em lugar dos homens ,
Como quem desenha o projecto de uma casa
Sem a poder erguer, e a meio caminho
Desiste e deixa a obra só em parte feita , 60

Uma vítima exposta às lacrimosas nuvens ,


Pasto para a rude tirania do Inverno .

HASTJNos Ainda que a nossa esperança , por certo bem-nascida ,


Fosse um nado-morto , e o que temos agora
Fossem já os últimos dos homens esperados ,
Formamos , penso , um corpo forte bastante ,
Mesmo como estamos , para igualar o rei .

LORDE BAROOLPH Como? O rei só dispõe de vinte e cinco mil?

H ASTJNos Para nós não tem mais, nem tantos tem, Lorde
Bardolph,
Já que as suas divisões , com o turvar dos tempos , 10

São em três partes: um grupo contra os Franceses ,


Um contra Glendower e por certo um terceiro
Para lidar connosco . Assim o inseguro Rei
Está dividido em três , e os seus cofres soam
Ao oco da pobreza e do vazio .

ARCEBISPO Reúna ele as suas forças todas


E venha contra nós com todo o seu poder,
Não há que temer.

HASTJNos Se ele o fizesse


Tinha na retaguarda os Franceses e os Galeses
A ladrar-lhe aos calcanhares . Não receemos isso . 80

LORDE B AROOLPH Quem conduzirá as tropas que vêm para cá?

62
HENRIQUE IV � PARTE II 1 .3

HASTINGS O Duque de Lancaster e Westmoreland;


Contra os Galeses , ele próprio e Harry Monmouth ,
Quanto a quem o substitui contra os Franceses ,
Não tenho notícia certa.

ARCEBISPO Avancemos ,
E faça-se saber porque pegamos em armas .
A comunidade enjoou-se do que escolheu ,
O seu amor ganancioso enfartou :
Tem habitação inconstante e incerta
Quem edifica sobre o coração da plebe . 90

Ó tolo vulgo , com que sonoro aplauso


Bradaste aos céus no teu louvor a Bullingbrook
Antes de ele ser o que querias que ele fosse !
E ataviado agora com teus próprios desejos ,
Alarve comilão ! - estás tão farto dele
Que te provocas a deitá-lo cá para fora .
Assim tu , reles cão , assim regurgitaste
O régio Ricardo do teu sôfrego peito ,
E agora queres comer o teu vómito morto
E uivas por ele . Que confiança há nos dias de hoje? 1 00

Os que com Ricardo vivo o queriam morto


Andam agora a namorar-lhe a sepultura;
Tu que lançaste pó à sua bondosa fronte ,
Quando em suspiros passou pela altiva Londres
Atrás dos prezados calcanhares de Bullingbrook ,
Gritas agora: «Ó terra , dá-nos de novo esse Rei
E fica com este ! » Ó ideias de homens malditos !
Passado e porvir parecem bem; pior é o que está .

MOWBRAY Vamos juntar os nossos , e atacar?

HASTINGS Somos súbditos do Tempo , e o Tempo manda avançar. 1 10

Saem

63
ACT0 2

Cena 1

Entram a Hospedeira da taberna e um oficial [, Gatázio,


seguido pelo ajudante Negaça]

HOSPEDEIRA Patrão Gatázio , metestes a acção?

GATÃZio Está metida.

HOSPEDEIRA Onde está o vosso ajudante? É um ajudante firme?


Será que se aguenta?

GATÁZIO Rapaz ! - Onde está o Negaça?

HOSPEDEIRA Ó Senhor ! Ó bom patrão Negaça !

NEGAÇA Estou aqui .

GATÃZio Negaça, temos de prender Sir John Falstaff.

HOSPEDEIRA Pois , bom patrão Negaça, eu meti-o a ele e tudo .

NEGAÇA Isto pode custar a vida a qualquer um de nós , ele à 10

certa que desembainha e espeta qualquer um .


WILLIAM SHAKESPEARE 2.1

HOSPEDEIRA A i de mim ! , tende cuidado com ele : ele espetou-me


na minha própria casa, e foi bem bruto , à minha fé
que foi . Ele não olha aos estragos que faz: com a
arma à solta espicaça que parece um diabo , não lhe
escapa homem nem mulher nem criança .

oATÁZio Chegue eu ao corpo-a-corpo , que não me importo


com a investida dele .

HOSPEDEIRA Ai , eu também não , vou estar ao vosso lado .

GATÁz10 Se lhe deito a mão e o agarro bem . . . 20

HOSPEDEIRA Se ele se vai eu fico desgraçada. Afianço-vos que nas


minhas contas ele é uma coisa infinitiva. Bom patrão
Gatázio , agarrai-o bem; bom patrão Negaça, não o dei­
xeis escapar. Ele está aí a aparecer continuadamente
em Pie Comer - com licença de vossas virilidades -
para comprar uma sela, e está intimado para jantar na
taberna da Cabeça de Labrego na Rua Lumbert com
o patrão Macieza, o que vende sedas . Uma vez que
está metida a acção , e com o meu assunto tão aberto
ao conhecimento de toda a gente , rogo-vos que ele se- Jo

ja chamado a responder. Um cento de marcos é coisa


comprida de mais para uma pobre mulher aguentar
sozinha, e eu aguentei e aguentei e aguentei , e a ser
empatada e empatada e empatada, hoje e amanhã, que
é uma vergonha só de pensar. Isto não é trato honesto ,
só se uma mulher fosse uma burra, e um animal , para
aguentar os maus-tratos de qualquer filho da mãe . -
Lá vem ele mais aquele rematado filho da mãe com
nariz de carrascão , o Bardolph . Façam o vosso serviço ,
façam o vosso serviço, patrão Gatázio e patrão Nega- 40

ça, façam-me , façam-me , façam-me o vosso serviço .

Entra Sir John [FalstaffJ , Bardolph e o Pajem

66
HENRIQUE IV - PARTE II 2.1

FALSTAFF Então , que reboliço é esse? Que é que se passa?

GATÁZio Estais preso por acção movida pela Senhora Despa­


chada .

FALSTAFF Fora daqui , sua canalha ! Puxa da espada , Bardolph ,


corta-me a cabeça desse miserável , amanda-me essa
galdéria para a valeta .

HOSPEDEIRA Mandar-me para a valeta? Eu é que te amando para


a valeta . Queres tu ver, queres tu ver, degenerado
dum sacana? Ó da guarda, ó da guarda ! Miserável so

homiciclo , vais matar os oficiais de Deus e do Rei?


Ah , meu sacana homobicida , és um homobicida , um
exterminador de homens e um exterminador de mu­
lheres .

FALSTAFF Arreda-os , Bardolph .

OFICIAIS Um resgate , um resgate !

HOSPEDEIRA Minha boa gente , venham um resgate ou dois . Que é


que queres , eh , que é que queres? Vá, vá, anda, meu
sacana ! Anda , meu humedecida !

PAJEM Fora daqui , sua sopeira, sua rameira , sua rançoseira ! 60

Vais ver se não te coço o quiosque !

Entram o Juiz-Mor do Reino e os seus homens

JUIZ Que se passa aqui? Quero tudo sossegado , eh !

HOSPEDEIRA Meu bom senhor, sede bom para mim . Rogo-vos que
fiqueis firme do meu lado .

JUIZ Então , Sir John? Que fazeis vós nesta algazarra?


Fica-vos bem ao lugar, ao tempo e à função?

67
WILLIAM SHAKESPEARE 2.1

Devíeis estar já a caminho de York .


Deixa-o , homem , para que te penduras nele?

HOSPEDEIRA Ó meu mais adorável senhor, prouvera a Vossa Gra­


ça, eu sou uma pobre viúva de Eastcheap e ele está 10

preso por uma acção que lhe foi movida .

JUIZ Por parte de vós?

HOSPEDEIRA É mais do que por parte de mim , meu senhor, é por


mim toda - por tudo o que tenho; ele comeu-me
casa e lar, toda a minha substância foi parar àquela
barriga gorda; mas hei-de ter de volta alguma coisa ,
ou hei-de ser como um pesadelo encavalitado nele
todas as noites .

FALSTAFF Desconfio que quem vai encavalitar sou eu , assim


arranje apoio para montar. so

JUIZ Que vem a ser isto , Sir John? Que homem de boa têm­
pera pode aguentar este ciclone de vociferações? Não
tendes vergonha de forçar uma pobre viúva a suportar
sozinha tão rude carreira para chegar ao que é dela?

FALSTAFF Quanto te devo eu em bruto?

HOSPEDEIRA Ai , minha Santa Maria, que se fosses honesto devias­


-te a ti próprio mailo dinheiro : juraste-me por aquela
taça dourada por dentro , sentado na minha sala do
Golfinho , na mesa redonda ao pé do fogo de carvão
de pedra, naquela quarta-feira de Pentecostes em que 90

o Príncipe te rachou a cabeça por comparares o pai


dele a um cantor de Windsor - dessa vez , quando eu
te estava a lavar a ferida, juraste-me casar comigo e
fazer de mim a minha senhora tua esposa. És capaz
de o negar? Foi ou não foi quando nessa altura entrou
a patroa Enxúndia, a mulher do magarefe , e chamou

68
HENRIQUE IV - PARTE II 2.1

por mim , vizinha Despachada, vinha pedir-me um


golinho de vinagre , e disse , tenho lá um bom prato
de camarões , e vai daí tu disseste que gostavas de
comer alguns , e vai daí eu disse que isso não ia fazer l oo

bem a quem tinha uma ferida de fresco? E não me


deste então tu de conselho , ia ela a descer as escadas ,
que deixasse de dar assim confiança a gente tão po­
bre , e não disseste que não havia de faltar muito para
que ela me chamasse madame? E não me beijaste a
seguir e me pediste para te ir buscar trinta xelins? Aí
tens agora a tua jura - nega-a se fores capaz .

FALSTAFF Meu senhor, esta é uma pobre alma que ensandeceu e


anda aí a dizer pela cidade que o filho mais velho de-
la se parece convosco . Ela já teve uma boa situação , 1 10

mas a verdade é que a pobreza a perturbou . Quanto


aos tolos destes oficiais , rogo-vos que me seja conce­
dida reparação .

JUIZ Sir John , sir John , eu bem conheço a vossa manei-


ra de torcer as causas verdadeiras na direcção falsa.
Não são os ares de confiança nem o tropel de pa­
lavras que vêm com essa descarada insolência que
me hão-de arredar de uma consideração equilibrada:
tanto quanto me parece , vós aproveitastes-vos do es­
pírito maleável desta mulher para satisfazer as vos- 1 20

sas necessidades , tanto de dinheiro como de solteiro .

HOSPEDEIRA Pois , meu senhor, essa é que é a verdade .

JUIZ Fica calada, peço-te . Fazei as contas com ela e des­


fazei a vilania que fizestes com ela: uma coisa pode
ser feita com dinheiro corrente , a outra com arrepen­
dimento constante .

FALSTAFF Meu senhor, não vou deixar esse remoque sem res­
posta. A uma honrada ousadia vós chamais descarada

69
WILLIAM SHAKESPEARE 2.1

insolência: se o homem faz a vénia e não diz nada, é


virtuoso . Não , meu senhor, sem esquecer os meus hu- 1 30

rnildes respeitas , não vos peço valimento . Declaro-vos


que desejo ser libertado destes oficiais , uma vez que
me encontro em ocupação urgente ao serviço do Rei .

JUIZ Falais como se tivésseis poderes para fazer mal ; mas


dai resposta à altura da reputação que reclamais e
prestai satisfação à pobre mulher.

FALSTAFF Vem cá, hospedeira.

[Leva-a para o lado]

Entra [ Gower,] um mensageiro

JUIZ Então , mestre Gower, que novas há?

GOWER O Rei , meu senhor, e Harry Príncipe de Gales


Encontram-se perto; o resto está na carta. 1 40

[Entrega uma carta]

FALSTAFF Não seja eu um fidalgo !

HOSPEDEIRA À minha fé que já o mesmo dissestes antes .

FALSTAFF Não seja eu um fidalgo . Vamos , não falemos mais


disso .

HOSPEDEIRA Pelo celeste chão que piso , tenho de me contentar


com empenhar a baixela e as tapeçarias das salas de
jantar.

FALSTAFF Vidro , vidro , é por onde agora se bebe , e para as tuas


paredes , uma pintura cómica bonitinha , ou a história
do filho pródigo ou a caçada alemã pintadas a têm- 1 50

70
HENRIQUE IV - PARTE II 2.1

pera valem mil dessas cortinas de cama e dessas ta­


peçarias comidas pelas moscas . Fiquemos pelas dez
libras , se puderes . Anda lá, não fora pelos teus hu­
mores e não haveria melhor moça em Inglaterra. Vai
lavar essa cara, e retira a acção . Vamos lá, não podes
estar com esses modos comigo , então não me conhe­
ces? Vamos , vamos , eu sei que foste atiçada para isto .

HOSPEDEIRA Rogo-te , Sir John , deixa que sejam só vinte nobres , à


minha fé que me custa tanto empenhar a baixela, ai ,
que Deus me salve . 1 60

FALSTAFF Deixa lá, eu hei-de me arranjar por outro lado . Hás­


-de sempre ser uma tonta.

HOSPEDEIRA Pronto , tereis o que quereis nem que eu empenhe


o vestido . Espero que venhais para a ceia. Depois
pagais-me tudo junto?

FALSTAFF Assim esteja eu vivo . [Para Bardolph] Vai com ela ,


vai com ela , aferra-te a ela , aferra-te a ela .

HOSPEDEIRA Quereis que a Dora Rompelençóis venha cear con­


vosco?

FALSTAFF Chega de palavreado , ela que venha. 1 70

[Saem a Hospedeira, os oficiais, Bardolph e o Pajem]

rn1z Tenho melhores notícias .

FALSTAFF Que notícias , meu senhor?

JUIZ Onde ficou o Rei esta noite?

aowER Em Basingstoke , meu senhor.

71
WILLIAM SHAKESPEARE 2.1

FALSTAFF Espero , meu senhor, que tudo esteja bem . Que notí­
cias há, meu senhor?

JUIZ Todas as suas forças estão de volta?

GOWER Não , quinze mil a pé , cinco mil a cavalo ,


Seguiram para o meu senhor de Lancaster
Contra Northumberland e o Arcebispo . 1 80

FALSTAFF O Rei está de regresso do País de Gale s , meu nobre


senhor?

JUIZ Recebereis em breve cartas minhas .


Vamos , vinde comigo , bom patrão Gower.

FALSTAFF Meu senhor.

JUIZ Que se passa?

FALSTAFF Patrão Gower, posso convidar-vos a jantar comigo?

GOWER Tenho de acompanhar este meu bom senhor, mas


agradeço-vos , bom Sir John .

JUIZ Sir John , estais a mandriar muito por aqui , para quem 1 90

tem de arregimentar soldados no caminho . . .

FALSTAFF Ceais comigo , patrão Gower?

JUIZ Quem foi o tolo do mestre que vos ensinou esses mo­
dos , Sir John?

FALSTAFF Patrão Gower, se eles não me ficam bem , então foi


um tolo que mos ensinou . Esta é a verdadeira arte
da esgrima, meu senhor, taco a taco e amigos como
dantes .

72
HENRIQUE IV - PARTE II 2.1

JUIZ O Senhor te ilumine , que és um tolo acabado .

Saem

Cena 2

Entram o Príncipe Henry e Poins

PR fNcIPE Por Deus , estou mesmo exausto .

Po1Ns Já chegámos a isso? Pensei que a exaustão não se


apoderasse de alguém de tão elevada estirpe .

PR f NCIPE Pois de mim apodera-se , embora admiti-lo tire algu­


ma cor ao semblante da minha grandeza: não me dá
mesmo um aspecto abominável ter desejos de cerve­
ja aguada?

POINs Bom, um príncipe não deve ser tão mal formado que
se vá lembrar de tão fraca mistura .

PRiNCIPE Talvez o meu apetite não seja de cepa principesca, 10

porque , em verdade te digo , o que agora me vem


à ideia é essa pobre criatura, a cerveja aguada . Na
verdade estas humildes considerações põem-me às
avessas com a minha grandeza. Que desgraça a mi­
nha lembrar-me do teu nome - ou reconhecer-te
amanhã - ou saber quantos pares de meias de seda
tu tens , contando com estas e aquelas que já foram
cor de pêssego , ou ter de cabeça o inventário das tuas
camisas , assim: uma sobressalente e outra para uso .
Mas isso sabe o guarda do campo de ténis melhor do 20

que eu , porque é maré baixa de camisas quando não


pegas na raquete , como tem acontecido ultimamente ,
já que o que te resta das terras baixas arranjou ma­
neira de te comer a holanda; e Deus sabe se aqueles

73
WILLIAM SHAKESPEARE 2.2

que berram de dentro dos farrapos das tuas camisas


herdarão o Seu reino: mas as parteiras dizem que as
crianças não têm culpa; e assim o mundo aumenta e
os laços familiares se reforçam .

ro1Ns Que resultado tão fraco , que depois de tanto trabalho


acabeis a falar tão sem jeito . Quantos bons jovens 30

príncipes fariam o mesmo , sabeis-me dizer, estando


os seus pais tão doentes como o vosso está neste mo­
mento?

PR ÍNCIPE Posso dizer-te uma coisa , Poins?

POINs À minha fé que sim , e que seja uma excelente boa


coisa .

PR ÍNCIPE Há-de satisfazer a espíritos com capacidades não su­


periores às tuas .

POINs Força, eu cá estou para aguentar essa vossa coisa que


me ides contar. 40

PR Í NCIPE Virgem S anta , digo-te que não é apropriado estar eu


triste agora que o meu pai está doente , embora te pu­
desse dizer, como a alguém a quem à falta de melhor
me agrada chamar amigo , que podia estar triste , mes­
mo verdadeiramente triste .

ro1Ns O que não é fácil , dadas as circunstâncias .

PRf NCIPE Ponho esta mão em como tu pensas ter eu ido tão
longe no livro do demónio quanto tu e Falstaff, tanto
em obstinação como em pertinácia. No fim é que se
julga o homem , mas digo-te que o meu coração san- so

gra cá dentro por o meu pai estar tão doente , e foi por
ter tão vil companhia como a tua que me convenci a
abster-me de toda a demonstração de pesar.

74
HENRIQUE IV - PARTE II 2.2

POINs A razão?

PRÍ NCIPE Que pensarias de mim se eu chorasse?

rorNs Tomar-te-ia por um refinadamente principesco hipó­


crita.

PR ÍNCIPE Isso é o que pensaria qualquer um, e tu tens a bênção


de pensar como qualquer um pensa; não há no mundo
ninguém com as ideias mais bem encarreiradas : com 60

efeito toda a gente me julgaria hipócrita; e o que ins­


tiga o vosso venerável pensamento a pensar assim?

rorNs Ora, porque tendes sido tão ordinário e tão agarrado


a Falstaff.

PR ÍNCIPE E a ti .

POINs Por esta luz que nos alumia, as pessoas dizem bem
de mim , ouço-o com estes ouvidos que a terra há-de
comer: o pior que podem dizer de mim é que sou
um segundo irmão e que sou um fulano que sabe dar
trato às mãos , e estas duas coisas confesso que não as 10

posso evitar. Pela santa missa, aí vem o B ardolph .

Entra Bardolph e o Pajem

PR Í NCIPE Mais o rapaz que dei a Falstaff: recebeu-o de mim


cristão e vejam se esse gordo safado não fez já dele
um macaco .

BARDOLPH Deus salve a Vossa Graça.

PR ÍNCIPE E a vossa, mui nobre B ardolph .

rorNs Vamos , meu virtuoso burro , meu tolo envergonhado ,


tens de estar a corar? Para que estás tu corado agora?

75
WILLIAM SHAKESPEARE 2.2

Que fraldiqueiro homem de armas me saíste? É as-


sim tão difícil desflorar uma caneca de cerveja? 80

PAJEM Então ele chama-me , foi agora mesmo , meu senhor,


por um postigo vermelho , e eu não fui capaz de dis-
tinguir a cara dele do janelo ; lá acabei por lhe des-
cortinar os olhos e parecia era que ele tinha feito dois
buracos no corpete da mulher do cervejeiro para es-
preitar por eles .

PRÍNCIPE Será que o rapaz aproveitou alguma coisa?

BARDOLPH Fora daqui , meu fideputa de coelho empertigado , fora !

PAJEM Fora daqui , meu estuporado sonho de Alteia , fora !

PRÍNCIPE Ora elucida-nos , rapaz , que sonho é esse , rapaz? 90

PAJEM Santa Maria, meus senhores , Alteia sonhou que dava


à luz um tição , por isso eu digo que ele é filho dela .

PRÍNCIPE Essa boa interpretação vale bem uma coroa: aqui a


tens , rapaz .

POINS Pudesse esta flor salvar-se das lagartas ! Bom , aqui


estão seis dinheiros para te proteger.

BARDOLPH Se entre vós não arranjais maneira de o levar à forca,


vai ser uma injustiça para o cadafalso .

PRÍNCIPE E como vai o teu patrão , B ardolph?

BARDOLPH Bem, meu senhor; ele soube da vinda de Vossa Graça 1 00

à cidade: está aqui uma carta para vós .

POINS Entregue com muita cerimónia. E como está o São


Martinho , vosso patrão?

76
HENRIQUE IV - PARTE II 2.2

BARDOLPH Saudável de corpo , senhor.

POINS Santa Maria, a parte imortal precisa de um médico,


mas isso não o comove: por muito doente que esteja,
não morre .

PRÍNCIPE Admito que esse quisto sebáceo tem tanta familiari-


dade comigo como o meu cão e está bem à altura do
lugar: ora vejam como escreve . 1 10

[Dá a carta a Poins]

POINS [Lê] «John Falstaff, cavaleiro» - Toda a gente tem


de saber isto tantas vezes quantas ele tem ocasião de
se proclamar: é mesmo como aqueles que são fami-
liares do Rei e que nunca se picam num dedo sem
dizer logo : «Assim se derrama algum sangue real .»
«Como assim?» , dirá quem se finge de lucas . A res-
posta é tão pronta como o chapéu do crava: «É que
somos o primo pobre do Rei , senhor.»

PRÍNCIPE Pois , e se não forem da nossa família vão buscar o


parentesco a Jafet . Mas vamos à carta [pegando nela 1 20

de novo] : «Sir John Falstaff, cavaleiro , para o filho


do Rei mais próximo do pai , Harry Príncipe de Ga-
les , saudações .»

POINS Bom , isto é uma certidão .

PRÍNCIPE Calma . «Imitarei os honoráveis romanos em brevi-


dade .»

POINS Deve querer dizer brevidade na respiração , falta de


fôlego .

[PRÍNCIPE] «Recomendo-me a ti , recomendo-te a ti , e assim te


deixo . Não dês muita confiança a Poins , pois ele abu- 1 30

77
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .2

sa tanto dos teus favores que já anda a dizer e a jurar


que vais casar com Nell , a irmã dele . Arrepende-te
nas horas vagas conforme possas , e adeus .
Teu pelo sim e pelo não , que o mesmo é dizer,
conforme o teu uso: Jack Falstaff para gente da
minha confiança, John para irmãos e irmãs , e
Sir John para toda a Europa .»

POINs Meu senhor, vou ensopar esta carta em vinho e faço­


-o comê-la.

PRÍNCIPE Isso é fazê-lo comer um bom número das suas pala- 1 40

vras . Mas então tu tratas-me assim , Ned? Vou ter de


casar com a tua irmã?

POINs Não dê Deus à moça pior fortuna , mas eu nunca dis­


se isso .

PRÍNCIPE Bem , assim fazemos o papel de palermas da ocasião


enquanto os espíritos dos espertos se sentam nas nu­
vens e se riem de nós . O teu patrão está aqui em Lon­
dres?

BARDOLPH Sim , meu senhor.

PRÍNCIPE Onde é que ele ceia? Continua o velho javardo a co- 1 so

mer na velha pocilga?

BARDOLPH No lugar do costume , meu senhor, em Eastcheap .

PRÍNCIPE E em que companhia?

PAJEM Efésios , senhor, dos da velha igreja.

PRÍNCIPE Jantam algumas mulheres com ele?

PAJEM Nenhuma, meu senhor, a não ser a velha Senhora


Despachada e a Senhora Dora Rompelençóis .

78
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .2

PRÍNCIPE Que pagã vem a ser essa?

PAJEM Uma fidalga distinta, e parenta do meu patrão .

PRÍNCIPE Há-de ser tanto como as bezerras da aldeia são pa- 1 60

rentes do touro da vila . Vamos fazer-lhe uma surpre-


sa à ceia, Ned?

POINS Sou a vossa sombra , meu senhor, sigo-vos sempre .

PRÍNCIPE Rapaz , tu aí e o Bardolph , nem uma palavra ao vosso


patrão sobre a minha chegada à cidade; isto é para o
vosso silêncio .

BARDOLPH Não tenho língua , senhor.

PAJEM E à minha, senhor, eu a governo .

PRÍNCIPE Passai bem: ide .


[Saem o Pajem e Bardolph]
Esta Dora Rompelençóis há-de ser estrada bem batida. 1 70

POINS Vos garanto , tão conhecida como o caminho de St.


Albans para Londres.

PRÍNCIPE Como havemos de fazer para vermos esta noite Fals-


taff a aplicar-se nas suas cores autênticas , e sem ser-
mos vistos?

POINS Pomos duas jaquetas e dois aventais de couro e


servimo-lo à mesa como criados da taberna .

PRÍNCIPE De deus a touro: um pesado abaixamento ! Foi o caso


de Júpiter. De príncipe a aprendiz: ligeira transfor-
mação será a minha, pois em tudo há-de o propósito 1 80

dizer com a maluqueira . Segue-me , Ned .

Saem

79
WILLIAM SHAKESPEARE 2.3

Cena 3

Entram Northumberland, úidy Northumberland e úidy Percy,


mulher de Henry Percy

NORTHUMBERLAND Peço-vos , querida esposa e amável filha,


Dai suave saída aos meus ásperos afazeres:
Não afiveleis a máscara dos tempos ,
Importunos como já o foram para Percy.

LADY
NORTHUMBERLAND Eu desisti , não me voltareis a ouvir,
Fazei o que quiserdes , segui o vosso tino .

NORTHUMBERLAND Ai de mim , terna esposa, tenho a honra empenhada


E só a minha ida a poderá redimir.

LADY PERCY Mas , por amor de Deus , não entreis nessas guerras;
Tempo houve , pai , em que faltastes à palavra 10

Quando mais do que agora ela vos obrigava,


Quando o vosso Percy, o meu amado Harry,
Vezes sem conta olhou a norte a ver se o pai
Trazia as suas forças , mas sempre olhou em vão .
Quem então vos convenceu a ficar em casa?
Perdeu-se a vossa honra e a do vosso filho .
Quanto à vossa, que Deus lhe dê novo brilho;
Quanto à dele , sobressaiu como o Sol
No pardo firmamento , e à sua luz
Toda a fidalguia de Inglaterra se elevou 20

A actos de bravura. Ele foi o espelho


Onde a nobre juventude se vestiu .
Não houve perna que não o imitasse a andar;
E o seu defeito natural , falar depressa,
Passou a ser sotaque dos valentes ,
Pois mesmo quem tinha fala lenta e pausada
Dava por errada a sua perfeição
Para se parecer com ele . Na fala, no andar,

80
HENRIQUE IV - PARTE II 2.3

Na dieta, nas afeições do gosto ,


Nas regras militares , nos humores do sangue , 30

Ele era o sinal e o espelho , exemplar e livro


Que a todos moldava. E a ele - oh , prodígio ! - a ele
Oh , milagre entre os homens ! a ele vós deixastes;
Atrás de ninguém ficava e para trás ficou ,
Diante do horrendo deus da guerra,
Em desvantagem , a confrontar um campo
Onde apenas o som do nome de Hotspur
Parecia dar defesa. Assim vós o deixastes .
Nunca, oh ! , nunca à sua alma façais a injustiça
De afirmar vossa honra mais séria e severa 40

Com outros do que com ele . Deixai-os sós :


O Marechal e o Arcebispo têm muitas forças .
Tivesse o meu temo Harry delas só metade
E hoje eu poderia, abraçada a Hotspur,
Falar da campa de Monmouth .

NORTHUMBERLAND Raio de coração esse ,


Querida filha , deixais-me sem alento
Com novas lamentações de velhos descuidos .
Mas eu tenho de ir e enfrentar o perigo
Ou ele me procurará noutro lugar
Onde me possa encontrar menos provido .

LADY
NORTHUMBERLANo Oh , fugi para a Escócia , so

Até que os nobres e os comuns em armas


Tenham dado algo a provar do seu poder.

LADY PERCY Se eles ganham terreno e vantagem ao Rei ,


Então podeis juntar-vos como aduela de aço
Fazendo a força mais forte; mas , pelo amor de nós ,
Deixai-os tentar primeiro ; assim fez vosso filho ,
Assim lhe foi permitido e assim fiquei viúva,
E nunca a vida me será longa que chegue
Para regar com os olhos a árvore da lembrança ,

81
WILLIAM SHAKESPEARE 2.3

Fazendo-a crescer até ao céu e dar rebentos 60

Em recordação do meu tão nobre esposo .

NORTHUMBERLAND Vem, vem , volta comigo: tenho o espírito


Como a vaga inchada até à altura máxima
Num ponto imóvel em que não rola para nenhum lado .
Tenho vontade de ir ter com o arcebispo ,
Mas mil razões me impedem de o fazer.
Decido-me pela Escócia: por lá hei-de ficar
Até que tempo e ensejo me façam voltar.

Saem

Cena 4

Entram Francis e outro Moço de Taberneiro

FRANCIS Que diabo de coisa trazes tu aí: maçãs de São João?


Sabes que Sir John não pode ver maçãs de São João .

Moço À fé da santa missa que estás certo: uma vez o Prín­


cipe pôs diante dele um prato de maçãs de S . João e
disse-lhe que ali estavam mais cinco Sir Johns , depois
tirou o chapéu e disse: «Agora despeço-me destes
seis secos , redondos , velhos e mirrados cavaleiros .»
Ele ficou mesmo sentido , mas já lhe passou tudo .

FRANCIS Então põe a toalha e as maçãs na mesa e vê se con­


segues descobrir a charanga do Rapinas : a Senhora 10

Rompelençóis há-de gostar de ter alguma música .


Despacha-te: a sala onde cearam está muito quente ,
e eles vêm já para aqui .

Entra Will

82
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

w1LL Rapaz , vêm aí o Príncipe e o Senhor Poins que que­


rem pôr jaquetas e aventais dos nossos e sem que Sir
John saiba de nada: foi Bardolph que disse .

FRANCIS Pela santa missa, isto é que vai ser uma pândega à
moda antiga: mas que excelente estratagema .

Moço Vou ver se descubro o Rapinas .

Sai [com Francis]

Entram a Hospedeira e Dora Rompelençóis

HOSPEDEIRA À minha fé , minha querida , parece-me que agora 20

estais numa excelentemente boa tempera/idade . A


vossa pulsagem bate tão extraordinariamente quanto
o coração desejaria e a vossa cor, vos garanto , é tão
encarnada como a de qualquer rosa, verdade verda­
dinha; mas , à minha fé , vós bebestes bastante vinho
fino das Canárias , que é um vinho que se entranha
muito e que perfuma o sangue antes que uma pessoa
possa dizer «Que é isto?» . Como estais agora?

DORA Melhor do que antes , hic !

HOSPEDEIRA Pois muito bem dito: um bom coração vale ouro . Ve- 30

de , aí vem Sir John .

Entra Fa/staff [a cantar]

FALSTAFF «Quando Artur chegou à corte»


Despeja o penico
[Sai Will]
«E foi um mui digno rei .» Então , Senhora Dora?

HOSPEDEIRA Está adoentada de um chelique , mas à minha fé que


está sossegada.

83
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

FALSTAFF É sempre assim com as da laia dela: quando estão


sossegadas estão doentes .

DORA Veja-vos eu sifilítico , seu cabrito sem tempo , é esse o


conforto que me trazeis? 40

FALSTAFF Vós fazeis os cabritos gordos , Senhora Dora.

DORA Ai eu é que faço? São a gula e as doenças , não sou eu .

FALSTAFF Se o cozinheiro ajuda à gula, vós ajudais às doenças ,


Dora . Apanhámo-las de vós , Dora, apanhámo-las de
vós . Tendes de o admitir, minha pobre virtude , ten­
des de o admitir.

DORA Pois apanhais, minha prenda, mas é as nossas corren­


tes e as nossas jóias .

FALSTAFF Os vossos broches , pérolas e camafeus - pois bem


sabeis que servir com bravura é atacar aos poucos , so

retirar da brecha com a lança inclinada com bravu­


ra e entregar-se aos cuidados médicos com bravura;
avançar com bravura sobre os canhões carregados . . .

DORA Ide-vos enforcar, congro enlodado , ide-vos enforcar.

HOSPEDEIRA À minha fé que isto é mesmo como dantes: quando


estes dois se encontram é para entrar em desacordo;
em boa verdade que sois ambos tão reumáticos como
duas tostas secas - nenhum de vós aguenta as confer­
midades do outro. Que raios ! Alguém tem de aguentar,
e tereis de ser vós , já que sois o vaso mais fraco , ou, 60

como é costume dizer-se , o vaso mais vazio .

DORA E pode um vaso fraco e vazio aguentar um barril


grande e atestado como este? Há dentro dele um car-

84
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

regamento inteiro de vinho de Bordéus : nunca se viu


um galeão mais bem fornecido no porão . Vamos , vou
ser tua amiga, Jack: tu vais para as guerras e, quanto
a eu voltar a ver-te ou não , é coisa que a ninguém
importa.

Entra o Moço de Taberneiro

Moço Senhor, o Alferes Pistola está lá em baixo e deseja


falar-vos . 70

DORA Raios partam esse patife rufião , ele que não venha
aqui . É o sacana mais desbocado de Inglaterra .

HOSPEDEIRA Se ele é rufião , que não venha aqui . Não , à minha fé ,


eu tenho de me dar com os meus vizinhos , não que­
ro cá rufiõe s , tenho bom nome e reputação entre os
melhores . Fecha essa porta, não quero rufiões aqui .
Não vivi este tempo todo para agora ter rufianices
em casa. Fecha a porta, se fazes favor.

FALSTAFF Estás a ouvir, hospedeira?

HOSPEDEIRA Rogo-vos que vos pacifiqueis , Sir John , aqui dentro so

não entram rufiões.

FALSTAFF Estás a ouvir? É o meu alferes .

HOSPEDEIRA Que tolice , Sir John , deixai-vos disso . Se é o vosso


alferes rufião , digo-vos que não passa a minha porta.
Estive diante do Senhor Tísico , o vereador debuta­
do, no outro dia, e como ele me dizia - foi para cá
de quarta-feira, estou certa de que foi - «Vizinha
Despachada» , diz ele - O Senhor Mudo , o nosso
prior, também lá estava - , «Vizinha Despachada» ,
diz ele , «deixai entrar quem for civilizado , pois» , diz 90

ele , «estais com mau nome» . Agora porque é que ele

85
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

falou assim também vos sei dizer. «Porque» , diz ele ,


«vós sois uma mulher honesta, e bem reputada, por
isso tomai cuidado com os hóspedes que deixais en­
trar, nada de deixar entrar» , diz ele , «gente rufia.»
Aqui nenhum entra . Não , aqui não há rufiões .

FALSTAFF Ele não é nenhum rufião , hospedeira, é um escroque


inofensivo , à minha fé vos digo que podeis fazer-lhe
festas como a um cachorro de galgo; não se vai pegar
com nenhuma galinha-da-índia que lhe mostre algu- ioo

ma resistência e se encrespe para ele . Manda-o subir,


moço .

HOSPEDEIRA Vós chamastes-lhe escroque? Não vou impedir a


entrada em minha casa a nenhum homem honesto ,
muito menos a um escroque , mas de rufiões é que
não gosto ; vos garanto que me sinto mal só de ouvir
alguém dizer «rufiar» . Vejam , senhores , como eu tre­
mo , vejam bem se não é verdade .

DORA É mesmo verdade , hospedeira .

HOSPEDEIRA Não é? Em boa verdade , tremo como uma folha de 1 10

choupo . Eu não aguento rufiões .

Entram o Alferes Pistola, Bardolph e o Pajem

PISTOLA Deus vos salve , Sir John .

FALSTAFF Bem-vindo , Alferes Pistola . Olhai aqui , Pistola , vou


carregar-vos com um copo de seco; e vós descarre­
gais aqui na minha hospedeira .

PISTOLA Descarrego nela, S ir John , e com duas balas .

FALSTAFF Ela é à prova de pistola, senhor: não será por aí que a


afrontais .
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

HOSPEDEIRA Vamos , eu não bebo provas , e balas também não; não


é para satisfazer nenhum homem que hei-de beber 1 20

mais do que me agrada.

PISTOLA Então aí vai à vossa, Senhora Doroteia: carrego-vos


a vós .

DORA Carregais-me? Olha o escrofuloso ! - até me meteis


nojo. Um pobretanas , um estupor, um vigarista des-
tes , que nem camisa tem ! Longe ! - sacana boloren-
to , longe ! - eu sou manjar para o vosso dono .

PISTOLA Eu bem vos conheço , senhora Doroteia .

DORA Longe , seu larápio mariola , seu pilha-galinhas no-


jento , longe ! Espeto-vos esta faca nessas ventas 1 30

bolorentas se tendes o descaro de me tentar pregar


alguma. Longe , seu estupor acervejado , um chocho
espadachim de porrete , é o que vós sois . Já agora,
e desde quando , não me dizeis? Santa luz de Deus ,
com dois cordões nos ombros? É de mais !

PISTOLA Deus me não deixe viver mais se não vos dou cabo
do rufo .

FALSTAFF Chega , Pistola, não queria que te disparasses aqui :


descarrega-te da nossa companhia, Pistola .

HOSPEDEIRA Não , bom capitão Pistola, aqui não , meu rico capi- 1 40

tão .

DORA Capitão? Meu abominável e danado vigarista, não


tens vergonha que te chamem capitão? Se os capi­
tães pensassem como eu , haviam de vos correr à bor­
doada por usardes os seus títulos antes de os terdes
ganhado . Vós um capitão? Para quê , seu escravo?
Para rasgar o rufo de uma pobre puta num bordel?

87
WILLIAM SHAKESPEARE 2.4

Um capitão , ele? Mandai-o enforcar, a este sacana,


que vive de ameixas em calda bolorentas e de bolos
secos . Isto , um capitão? Louvada seja a luz de Deus , lso

patifes como este hão-de tomar a palavra tão odiosa


como a palavra «ocupar» , que era uma excelente pa­
lavra antes das más companhias , por isso é bom que
os capitães se cuidem .

BARDOLPH Rogo-te que desças , bom alferes.

FALSTAFF Ouve aqui , Senhora Dora .

PISTOLA Nem pensar. E digo-te mais , cabo B ardolph: estou


capaz de a rasgar toda, vou-me vingar dela.

PAJEM Rogo-te que desças .

PISTOLA Antes disso hei-de vê-la condenada. Ao maldito lago 1 60

de Plutão , por esta mão !


Às profundezas infernais
Com Erebus e também com vis torturas .
Segurai anzol e linha, digo eu , abaixo , abaixo , cães ,
abaixo impostores:
Não temos nós a Irene aqui?

HOSPEDEIRA Bom capitão Pissola, acalmai , à minha fé que já é


muito tarde . Eu vos suplicito agora, agravai a vossa
cólera.

PISTOLA Isto é que são bons humores ! Hão-de bestas de carga 1 10

E ocos sendeiros mimados da Á sia


Que não andam por dia mais de trinta milhas
Comparar com Césares , e com Canibai s ,
E com Gregos de Tróia?
Não , antes condená-los com o Rei Cerbero
E deixar os céus rugirem . - Vamo-nos pegar por
nicas?

88
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

HOSPEDEIRA Em boa verdade , capitão , muito amargas são essas


palavras .

BARDOLPH Vai-te , bom alferes; isto , está aqui , está a dar porrada. 1 80

PISTOLA Morrem homens como cãe s , dão coroas como alfi-


netes !
Não temos nós a Irene aqui?

HOSPEDEIRA Palavra, capitão , não há aqui ninguém com esse no-


me . Que raios , pensais que eu a ia esconder? Por
amor de Deus , acalmai .

PISTOLA Come então e engorda, minha bela Calipolis -


Vamos , dai-nos um copo de seco .
Si fortune me tormente sperato me contento -
Arreceamos bordadas? Não , o diabo que dispare - 1 90

Dai-me um copo de seco ! [Para a espada] Deixa-te


estar, querida.
Chegamos aos pontos finais? E os etceteras não são
coisas?

FALSTAFF Pistola , eu se fosse a ti acalmava-me .

PISTOLA Gracioso cavaleiro , beijo-te o punho . Pois então , nós


vimos o setestrelo .

DORA Por amor de Deus , mandai-o escada abaixo , eu não


posso aguentar este estupor espalhafatoso .

PISTOLA Mandá-lo escada abaixo? Não conhecemos nós os 200

rocins de Galloway?

FALSTAFF Atira-o escada abaixo , B ardolph , como vintém aos


pobres . Não , se ele nada faz senão nada dizer, não
serve aqui para nada.

89
WILLIAM SHAKESPEARE 2.4

BAROOLPH Anda, vai lá para baixo .

PISTOLA Como , vamos ter incisão? Vamos ficar tingidos?


Que a Morte então me embale , me alivie os tristes
dias !
Pois que escancaradas feridas , atrozes e horríveis
As três irmãs desenredem; vem , Atropos , to ordeno ! 210

HOSPEDEIRA Vem aí linda coisa.

FALSTAFF Passa-me aí a rapieira, rapaz .

DORA Peço-te , Jack , peço-te , não puxes da arma.

FALSTAFF Vai lá para baixo .

HOSPEDEIRA Aí está uma linda zaragata: mais depressa fecho a


porta do que aguento estas aflições e estes medos . Is­
so: garanto que há assassínio , agora . Vamos , vamos ,
baixai essas armas nuas , baixai essas armas nuas .

[Saem Pistola e Bardolph]

DORA Peço-te , Jack , acalma-te , aquele estupor já se foi . Ah ,


meu rico fideputa , que me saíste cá um valente pati- 220

fório !

HOSPEDEIRA Não estais magoado aí na virilha? Quis-me parecer


que ele vos amandou uma estocada maldosa à bar­
riga.

[Entra Bardolph]

FALSTAFF Puseste-lo na rua?

BARDOLPH Sim, senhor; aquele estupor está bêbado , e vós ha­


veis-lhe acertado , senhor, no ombro .

90
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

FALSTAFF Um estupor daqueles a provocar-me !

DORA Ai , que rico sacaninha me saístes ! Ai , meu macaqui­


nho , o que tu suaste ! Vamos , deixa-me limpar-te a 230

cara: vamos lá, meu bochechinhas fideputa. Ah, meu


sacana, que eu gosto mesmo de ti . É s tão valoroso
como o Heitor de Tróia, vales cinco Agamémnons e
és dez vezes melhor do que os nove heróis . Ah , meu
malvado !

FALSTAFF Ah , estuporado dum escravo ! Eu faço este sacana


saltar dentro de um cobertor.

DORA Isso, isso , arrisca a vida nisso; e , se conseguires , eu


faço-te saltar entre dois lençóis .

PAJEM Chegou a música, senhor. 240

Entra a música

FALSTAFF Eles que toquem . - Toquem , senhores. Senta aqui


no meu joelho , Dora. Um estupor dum escravo fan­
farrão . O sacana fugiu de mim como azougue .

DORA À minha fé que sim, e tu foste atrás dele como uma


igreja. Meu fideputa, meu rico javardinho de São
B artolomeu , quando deixas tu de combater de dia e
espadeirar à noite e começas a consertar esse velho
corpo com vistas ao céu?

Entram o Príncipe e Poins disfarçados

FALSTAFF Deixa, boa Dora, não fales como uma caveira, não
me faças pensar no meu fim. 2so

DORA Olha lá, como são os humores do Príncipe?

91
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

FALSTAFF Um bom rapaz , limitado , havia de ter dado um bom


despenseiro , com jeito para aparar o pão .

DORA Dizem que o Poins é esperto .

FALSTAFF Esse , esperto? Esse babuíno , que se enforque: a


esperteza dele é tão espessa como a mostarda de
Tewkesbury, não há nele mais espírito do que num
cacete .

DORA Porque gosta então o Príncipe tanto dele?

FALSTAFF Porque ambos têm pernas do mesmo tamanho , e ele 2ro

joga bem a malha , e come congro com funcho , e em­


borca cotos de velas por asas de dragão , e joga ao
eixo com a rapaziada, e salta por cima das cadeiras , e
pragueja com graça, e usa as botas muito justas como
as da tabuleta do sapateiro , e não se ensaia nada para
contar o que não deve , e por outras que tais faculda­
des galhofeiras que mostram um espírito fraco e um
corpo capaz , e é por isso que o Príncipe o aceita; isto
porque o Príncipe é outro que tal: posto cada um no
seu prato da balança, um cabelo chega para os dese- 210

quilibrar.

PRfNCIPE Não se devia cortar as orelhas a este filho de uma roda?

ro1Ns Vamos dar-lhe uma carga de porrada à frente da pega.

PRfNcIPE Olha-me aquele sabugueiro murcho de toutiço arre­


pelado como um papagaio .

POINs É uma coisa estranha como por tantos anos o desejo


sobrevive ao desempenho .

FALSTAFF Beija-me , Dora .

92
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

PRfNCIPE Saturno e Vénus em conjunção este ano? Que dirá


sobre isto o almanaque? 2so

roJNs E olhai aquele trígono ígneo a cochichar com o livro


de apontamentos e cofre de segredos do patrão .

FALSTAFF Mas que beijocas tão lisonjeiras .

DORA Pela minha fé que é com um coração leal que te beijo.

FALSTAFF Estou velho , estou velho .

DORA Tenho-te mais amor a ti do que a qualquer um desses


rapazes escrofulosos que por aí andam .

FALSTAFF Que tecido queres tu para um vestido? Tenho dinhei-


ro a receber na quinta-feira - amanhã tens uma tou­
ca. Vamos , uma cantiga alegre ; faz-se tarde , temos 290

de ir para a cama . Tu vais-te esquecer de mim logo


que eu me vá.

DORA À minha fé , tu pões-me a chorar se me dizes isso;


hás-de ver se alguma vez eu me vou arranjar bem até
tu regressares ! Pois bem , espera e verás .

FALSTAFF Venha daí algum seco , Francis !

PRfNCIPE e PrnNs Pronto , pronto , senhor.

FALSTAFF Hã? Um filho bastardo do Rei? E não és tu o irmão


de Poins?

PRÍNCIPE Ó globo de pecaminosos continente s , que vida le- 300

vas tu?

FALSTAFF Melhor do que a tua: eu sou um fidalgo e tu andas aí


a tirar cerveja.

93
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

PRÍNCIPE Muito verdade , senhor; e vim para vos tirar daqui


pelas orelhas .

HOSPEDEIRA Oh , Deus te conserve a graça ! À minha fé que és


bem-vindo a Londres . Que o Senhor abençoe essa
tua linda cara. Oh , Jesu , estais a chegar de Gales?

FALSTAFF Minha louca e fideputa amálgama de majestade , juro


por esta luz . . . por esta lustrosa carne e por este san- 310

gue corrupto [enquanto põe a mão em Dora] que és


bem-vindo .

DORA Como? Seu tolo gordo , o que eu vos desprezo !

POINs Meu senhor, ele ainda vos desvia da vingança e


transforma tudo numa brincadeira se não lhe malhais
enquanto está quente .

PRÍNCIPE Sua fideputa mina de sebo , com que baixeza faláveis


ainda agora de mim , diante desta honesta , virtuosa e
cortês fidalga?

HOSPEDEIRA Deus abençoe o vosso bom coração , assim ela o é, à 320

minha fé que sim .

FALSTAFF Tu ouviste-me?

PRÍNCIPE Pois ouvi , e vós reconhecestes-me tal como quando


fugistes em Gad's Hill - soubestes que eu estava por
trás de vós e falastes com o fim de testar a minha
paciência .

FALSTAFF Oh , não , não , não , de maneira nenhuma: não pensei


que me pudésseis ouvir.

PRÍNCIPE Vou levar-vos a confessar que me difamastes de mo-


to próprio , e assim saberei como tratar de vós . 330

94
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

FALSTAFF Difamação não , Hal , por minha honra que não houve
difamação .

PRÍNCIPE Não? Rebaixar-me assim , dizer que eu dava para


despenseiro e para aparar o pão e sei lá que mais?

FALSTAFF Difamação não , Hal .

POINs Não é difamação?

FALSTAFF Em lado algum do mundo isto é difamação , meu ho­


nesto Ned , não é difamação nenhuma . Eu rebaixei-o
diante dos ruins , para que os ruins não se possam
apaixonar por ti ; e ao fazê-lo fiz a parte do amigo 340

atento e do súbdito fiel , e o teu pai há-de agradecer­


-me por isso . Não foi difamação , Hal , nenhuma , Ned ,
nenhuma; à minha fé , rapazes , não senhor, nenhuma .

PRÍNCIPE Vê agora se o puro medo e a mais acabada cobardia


não te fazem ofender esta virtuosa fidalga, só para fi­
car de bem connosco ! Então ela pertence aos ruins , e
aqui a tua hospedeira pertence aos ruins , ou pertence
o teu criado aos ruins , ou é o honesto B ardolph , cujo
fervor lhe arde no nariz , um dos ruins?

POINs Responde , ó ulmeiro morto , responde . 350

FALSTAFF O demónio alistou B ardolph como irrecuperável e a


sua cara é a cozinha privada de Lucifer, onde ele não
faz mais nada senão assar vermes da cerveja. Quanto
ao rapaz , há um anjo bom perto dele , mas o diabo
também o cega .

PRÍNCIPE Quanto às mulheres?

FALSTAFF Uma delas já está no inferno , a esquentar pobres al­


mas ; quanto à outra , devo-lhe dinheiro , mas não sei
se ela será condenada por isso .

95
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

HOSPEDEIRA Não , não , isso vos garanto eu . 360

FALSTAFF Não , também penso que não , penso que quanto a is-
so estás quite . Mas há, Maria santíssima, outra acu-
sação a recair sobre ti , por permitires que se coma
carne na tua casa, o que vai contra a lei , e penso que
vais gemer por isso .

HOSPEDEIRA Quem fornece vitualhas sempre o permite; e que mal


há numa Quaresma inteira uma boa fêvera de vez em
quando?

PR Í NCIPE Vós , fidalga . . .

DORA Que me diz vossa graça? 370

FALSTAFF A sua graça diz o que a sua carne enjeita.

Peto bate à porta

HOSPEDEIRA Quem bate com tanta força? Vai ver à porta, Francis .

Entra Peto

PR fNCIPE Peto , então , que notícias há?

PETO O Rei vosso pai está em Westminster


E há vinte mensageiros fracos e cansados
Vindos do Norte , e quando eu para cá vinha
Passei por uma dúzia de capitães
Descobertos , suados e a correr as tabernas
Perguntando a todos por Sir John Falstaff.

PR f NCIPE Pelos céus , Poins , sinto-me muito culpado 380

Por neste ócio profanar o precioso tempo


Quando a procela da revolta , como o vento sul ,
Cheia de vapor negro , começa a desabar

96
HENRIQUE IV - PARTE II 2 .4

E a cair sobre as nossas cabeças desarmadas .


Dai-me a capa e a espada . Falstaff, boa noite .

Saem o Príncipe, Poins [, Bardolph e Peto]

FALSTAFF Agora que da noite chega o melhor naco , temos de


nos ir e de o deixar por apanhar.
[Batem à porta]
B atem outra vez à porta? Que há então agora, que se
passa?

[Entra Bardolph]

BARDOLPH Deveis partir para a corte , senhor, de imediato: 390

Há doze capitães que estão por vós à porta .

FALSTAFF [para o Pajem] Paga aos músicos , rapaz . Adeus,


hospedeira, adeus , Dora . Estais a ver, minhas boas
cachopas , como os homens de mérito são procura­
dos: o que não merece pode ficar a dormir enquanto
o homem de acção não tem parança . Adeus, boas ca­
chopas , se eu não for enviado a toda a pressa , ainda
vos volto a ver antes de partir.

DORA Fico sem fala . Se o meu coração não está pronto a


rebentar . . . Bom, querido Jack , tem cuidado contigo . 400

FALSTAFF Adeus, adeus .

Sai [com Bardolph, Pajem e músicos]

HOSPEDEIRA Bem, faz boa viagem . Já te conheço faz vinte e nove


anos pelo tempo das ervilhas , mas homem mais ho­
nesto e mais leal . . . Bem, faz boa viagem .

BARDOLPH [à porta] Senhora Rompelençóis !

97
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

HOSPEDEIRA Que se passa?

BARDOLPH Diz à Senhora Rompelençóis que venha ao meu pa­


trão .

HOSPEDEIRA Oh , corre , Dora , corre , corre , boa Dora ! Vem . -


Ela vem debulhada em lágrimas . -:- Então , vens daí, 410

Dora?

Saem

98
ACT0 3

Cena 1

Entra o Rei, em trajes de noite, só com um Pajem

REI Vai , acorda os Condes de Surrey e Warwick;


Mas antes de virem que leiam estas cartas
E nelas pensem bem . E agora apressa-te .
Sai [o Pajem]
Quantos milhares dos meus mais pobres súbditos
Estão agora a dormir? Ó Sono ! Ó gentil Sono !
B álsamo da natureza , assustei-te assim tanto ,
Que não mais me fazes pesar as pálpebras
E mergulhar os sentidos no esquecimento?
Porque te deitas antes em choças fumacentas ,
Estendido sobre incómodas enxergas , 10

Adormecido pelo zumbido dos mosquitos ,


E não nos perfumados aposentos dos grandes
Sob o dossel do sumptuoso Estado
E embalado ao som da mais doce melodia?
Ó estúpido deus , porque te deitas com os mais reles ,
E m camas abjectas , e do leito real
Fazes atalaia ou sino de rebate?
Tu que lá no alto do vertiginoso mastro
Cerras os olhos do grumete e o embalas
No berço da imperiosa e rude vaga 20
WILLIAM SHAKESPEARE 3.1

E sob o aberto flagelo dos ventos


Que pegam nas rufias ondas pelos seus cumes ,
Lhes enrolam e penduram as monstras cabeças
Nas lábeis nuvens com tonitruante clamor
Que com o alvoroço acorda a própria morte !
Podes tu , faccioso Sono , dar repouso
Ao rapaz do mar em tão severa hora
E, na mais calma e mais quieta noite ,
Com todos os meios e petrechos de feição ,
Negá-lo a um rei? Dorme a plebe descansada Jo

E deita-se inquieta a cabeça coroada .

Entram Warwick e Surrey

wARw1cK Muitos bons dias para Vossa Majestade .

REI É bom dia , senhores?

WARWICK É uma hora, a passar.

REI Sendo assim , meus senhores , bom dia a todos .


Lestes as cartas que vos enviei?

wARWICK Lemos , meu soberano .

REI Então tendes noção de quão enxovalhado


Está o corpo do reino , que vis doenças grassam ,
E com que perigo , junto ao seu coração .

wARWICK É apenas um corpo ainda destemperado 40

Que pode recuperar a força antiga


Com bons conselhos e poucos remédios .
Lorde Northumberland em breve acalmará.

REI Ó Deus, pudesse alguém ler o livro do destino


E nele ver a revolução dos tempos
Tomar rasas as montanhas , e o continente ,

1 00
HEN RIQUE IV - PARTE II 3.1

Exaurido de firmeza sólida, dissolver-se


Mar adentro; e ver, por outras vezes,
O cinturão de praias do oceano
Ficar largo a Neptuno; como as mofas so

E as voltas da sorte enchem a taça da mudança


Com diversas bebidas ! Oh , fosse tal visto
E o mais feliz dos jovens , ao ver no seu caminho
Os perigos e as cruzes que o esperam ,
Fechava o livro , sentava-se e morria .
Não h á ainda dez anos
Que Ricardo e Northumberland , grandes amigos ,
Faziam festa juntos; e dois anos volvidos
Já estavam em guerra. Ainda há oito anos
Tinha eu este Percy bem junto ao coração: 60

Como um irmão labutava em meus cuidados


E punha a meus pés o seu amor e a sua vida .
Sim, por mor de mim , mesmo na cara de Ricardo ,
Desafiou-o . Qual de vós estava presente -
Vós , primo Nevil , se bem tenho lembrança -
Quando Ricardo , de olhos marejados de água,
Acusado e censurado por Northumberland ,
Disse estas palavras , ora feitas profecia:
«Northumberland , tu és a escada pela qual
Meu primo Bullingbrook ascende ao meu trono» ? - w

Esse não era, Deus o sabe , o meu intento:


Não fora tanta a necessidade do Estado
Que eu e a grandeza nos tivemos de beijar. -
«Há-de vir o tempo» , assim ele continuou ,
«Ü tempo em que , entumescido , o vil pecado
Rebenta em podridão .» E assim falou ,
Predizendo as condições que hoje se vivem
E a divisão dentro da nossa amizade .

WARWICK Há nas vidas de todos uma história,


A dar forma aos eventos de tempos defuntos , so

Que , se observada, consente profecias ,


Com curta margem de erro , sobre o fio das coisas

101
WILLIAM SHAKESPEARE 3.1

Ainda por nascer, que nas suas sementes


E frágil origem estão arrecadadas .
Dos ovos que o tempo choca nascem tais coisas ,
E pela necessária forma de tudo isto
O Rei Ricardo podia em rigor prever
No grande Northumberland , que então lhe era falso ,
A crescente falsidade da semente
Que em nenhum terreno ganhava raízes 90

Senão em vós .

REI São estas coisas necessidades?


Tratemos então delas como necessidades ,
Esta palavra grita-nos agora mesmo .
Dizem que as forças do Bispo e de Northumberland
Vão a cinquenta mil .

wARwicK Não pode ser, senhor:


O boato dobra, como a voz e o eco ,
Os números receados . Queira Vossa Graça
Ir para a cama. Meu senhor, pela minha alma ,
As forças que por vós já foram enviadas
Com facilidade hão-de trazer este prémio . 1 00

Para maior conforto vosso , recebi


Prova certa de que Glendower está morto .
Vossa Majestade está doente há quinze dias
E estas desoras têm por força de agravar
O vosso mal-estar.

REI Seguirei o conselho .


Tivesse já esta guerra interna sido extinta
E partiríamos , senhores , para a Terra Santa .

Saem

1 02
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

Cena 2

Entram o Juiz Baixio e o Juiz Silêncio

BAIXIO Vamos , vamos , vamos , senhor, estendei-me a vossa


mão , senhor, estendei-me a vossa mão , senhor. A bu­
lir tão cedo , valha-nos Deus ! E como vai o meu bom
primo Silêncio?

sILÊNc10 Bom dia , bom primo Baixio .

BAIXIO E como vai a minha prima , vossa parceira de cama?


E a lindíssima filha vossa e minha , a minha afilhada
Ellen?

SILÊ NCIO Ora , um melro negro , primo Baixio .

BAIXIO Pelo sim e pelo não , senhor. Hei-de dizer que o pri- 10

mo William se fez um bom escolar - ainda está em


Oxford , não está?

SIL ÊNCIO É verdade , senhor, à minha custa.

BAIXIO Deve estar então quase a entrar na Escola de Leis .


Eu estive em tempos no Colégio de São Clemente e
acho que ainda hoje lá se fala do louco B aixio .

SIL ÊNCIO Nesse tempo , primo , era «magano B aixio» que vos
chamavam .

BAIXIO Deus meu , chamavam-me tudo , e eu era de facto ca­


paz de tudo , e por inteiro . Era eu , era o pequeno João 20

Nicas de Straffordshire , era o negro do Jorge B ames ,


e o Francisco Forreta, o Guilha Malsim , um rapaz
dos Cotswolds - nunca na Escola de Leis voltou a
haver quatro façanheiros como estes . E posso dizer-

103
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

-vos que nós sabíamos onde estava o bom material , e


tínhamos o que havia de melhor à nossa disposição .
Havia também o Jack Falstaff, agora Sir John , era
um rapaz e pajem de Thomas Mowbray, Duque de
Norfolk .

s1LÊNc10 Este Sir John , primo , que daqui a pouco vem aí por 30

causa dos soldados?

BAIXIO Esse Sir John , sim , esse mesmo . Estou a vê-lo a ra­
char a cabeça do Scoggin à entrada do tribunal quan­
do era um rapazola que nem esta altura tinha; e nesse
mesmo dia andei eu à pancada com um tal Sansão
B acalhau , um fruteiro , por trás de Gray 's Inn . Jesus ,
Jesus , que tempos malucos eu passei ! E ver quantos
companheiros de então estão hoje mortos .

SIL ÊNCIO Todos para lá vamos , primo .

BAIXIO Certo , isso é certo , não falha, não falha. A morte , co- 40

mo diz o salmista, é certa para todos , todos hão-de


morrer. A quanto estará uma boa junta de bois na fei­
ra de Stanford?

sIL ÊNcio À minha fé que não estive lá.

BAIXIO A morte é certa . O velho Vergas lá da vila , ainda é


vivo?

SILÊNc10 Morreu , senhor.

BAix10 Jesus , Jesu s , morreu ! Aquilo é que era esticar o arco ,


e morreu ! Tinha cá uma pontaria ! O João de Gande
gostava muito dele e apostou bom dinheiro nele . E so

morreu ! Era capaz de acertar na mosca a umas doze


vintenas de jardas e dava um tiro em linha recta a
umas catorze vintenas ou catorze e meia: só de o ver

1 04
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

ficava um homem de coração mais leve . A como es­


tará agora uma vintena de ovelhas?

sILÊ Ncio É consoante elas forem: uma vintena de boas ovelhas


pode valer dez libras .

BAIXIO E o velho Vergas morreu?

sILÊNCio Aí vêm dois dos homens de Sir John Falstaff, penso


eu . 60

Entra Bardolph e um outro com ele


Bons dias , meus honestos senhores .

BARDOLPH Peço-vos que me digais , qual de vós é o Juiz B aixio?

BAIXIO Eu sou Roberto B aixio , senhor, um pobre fidalgo


deste condado e um dos juízes de paz do Rei . Fazei o
obséquio de dizer o que desejais de mim .

BARDOLPH O meu capitão , senhor, envia-vos as suas recomen­


dações , o meu capitão Sir John Falstaff, um valente
cavalheiro , praza aos céus , e um comandante muito
galhardo .

BAIXIO Cumprimenta-me muito acertadamente , sim senhor; 10

conheci-o era ele exímio com o porrete . Como passa


o bom cavaleiro? Posso perguntar como está a minha
senhora sua esposa?

BARDOLPH Peço perdão , senhor, mas um soldado antes se quer


provido do que com esposa .

BAIXIO Muito bem dito , senhor, à minha fé que também está


muito bem dito: «antes provido» . É bom , à certa que
é . Sem dúvida que boas frases são , e sempre foram,
muito recomendáveis . «Provido» vem de provisus .
Boa, muito boa frase . so

1 05
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

BARDOLPH Peço perdão , senhor, eu ouvi a palavra - frase , vós


lhe chamastes frase? Ainda hoje não sei a frase , mas
até à força da espada defenderei esta palavra como
uma palavra marcial e uma palavra , o céu nos valha,
muito prestimosa. Provido é quando se é , como diz
o outro , provido , ou quando se está em termos de
alguém pensar que se é provido , o que é uma coisa
excelente .

Entra Sir John Falstaff

BA1x10 Muito a propósito . - Olhem, aqui vem o bom Sir


John . Estendei-me a vossa boa mão , estendei-me a 90

boa mão de Vossa Senhoria. À minha fé que estais


bem-parecido e que estais a levar os vossos anos
muito bem. Bem-vindo , bom Sir John .

FALSTAFF Fico satisfeito por vos encontrar bem , meu bom fi­
dalgo Roberto Baixio . Senhor Esquifoso , presumo?

BA1x10 Não , Sir John , este é o meu primo Silêncio , que está
comigo em comissão .

FALSTAFF Bom fidalgo Silêncio , condiz bem convosco serdes


de paz .

sILÊNc10 Vossa Senhoria é bem-vinda . 1 00

FALSTAFF Que raios , está mesmo calor, meus senhores . Sempre


me arranjastes meia dúzia de homens capazes?

BA1x10 Pela Santa Virgem que sim, senhor. Quereis sentar­


-vos?

FALSTAFF Deixai-me vê-los , por favor.

1 06
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

BAIXIOOnde está a lista , onde está a lista, onde está a lista?


Deixa cá ver, deixa cá ver, deixa cá ver. Este , este ,
este , este , este . Este , este , sim senhor, pela Santa Vir­
gem , sim senhor. Raul Bolorento ! Eles que venham
à medida que são chamados , que venham assim , que 1 10

venham assim .
[Entram Bolorento, Sombra, Verruga, Franzino e Bezerro]
Deixa cá ver, onde está o Bolorento?

BOLORENTO Estou aqui , com vossa licença.

BAIXIO Que vos parece , Sir John? Tem boa compleição , é


jovem , forte e bem relacionado .

FALSTAFF Chamas-te Bolorento?

BOLORENTO Sim, com vossa licença .

FALSTAFF Mais razão há para teres uso .

BAIXIO Ha, ha, ha, à minha fé que essa é excelente . As coisas


bolorentas têm falta de uso , mas que bem apanhada , 1 20

à minha fé . Bem dito , Sir John , muito bem dito .

FALSTAFF Picai-o .

BOLORENTO Já fui picado bem que chegue e vós bem me podíeis


deixar em paz . Agora a minha velha senhora vai ficar
desgraçada por não ter quem lhe amanhe o terreno e
lhe faça a lida. Vós não precisáveis de me ter picado:
há outros mais capazes para ir do que eu .

FALSTAFF Vamos lá; paciência, Bolorento , tendes de ir, B olo-


rento , já é tempo de serdes gasto .

BOLORENTO Gasto? 1 30

1 07
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

BAIXIO Calma, homem , calma, afastai-vos: não sabeis onde


estais? - Vamos aos outros , Sir John . Deixa-me cá
ver - Simão Sombra !

FALSTAFF Santa Maria, deixa-me sentar por baixo desse: deve


ser um soldado bem fresco .

BAIXIO Onde está o Sombra?

soMBRA Aqui , senhor.

FALSTAFF Sombra, de quem és filho?

soMBRA Filho da minha mãe , senhor.

FALSTAFF Filho da tua mãe ! Lá isso és , e sombra do teu pai: 140

assim o filho da fêmea é a sombra do macho . Na ver­


dade assim é muitas vezes - mas com muita subs­
tância do pai !

BAIXIO Gostais dele , Sir John?

FALSTAFF As sombras hão-de servir para o Verão: picai-o , já


que temos uma série de sombras a encher o rol .

BAIXIO Tomás Verruga !

FALSTAFF Onde está ele?

VERRUGA Aqui , senhor.

FALSTAFF Chamas-te Verruga? 1 50

VERRUGA Sim, senhor.

FALSTAFF És uma verruga muito espatifada.

BAIXIO Pico-o , Sir John?

1 08
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

FALSTAFF Seria supérfluo , os trajos estão-lhe pendurados no


corpo e tudo está seguro por alfinetes . Não o piqueis
mais .

BA1x10 Ha, ha, ha , vós sabei-la toda, recomendo-vos bem .


- Francisco Franzino !

FRANZINO Aqui , senhor.

BAIXIO Qual é a tua arte , Franzino? 1 60

FRANZINO Alfaiate de senhora .

BAIXIO Pico-o , senhor?

FALSTAFF Podeis picá-lo , mas se fosse um alfaiate de homem


era ele que vos picava. Serás capaz de fazer tantos
furos no exército inimigo como já fizeste numa saia
de senhora?

FRANZINO Farei o meu melhor, senhor, não vos posso dar mais .

FALSTAFF Bem dito , bom alfaiate de senhora , bem dito , corajo-


so Franzino . Serás tão valente como o pombo furioso
ou o mais magnânimo ratinho . Picai bem o alfaiate de 1 70

senhoras , Mestre B aixio , bem fundo , Mestre Baixio .

FRANZINO Gostava que o Verruga tivesse ido , senhor.

FALSTAFF Eu gostava que tu fosses um alfaiate de homens , para


que o pudesses remendar e pôr em condições de ir.
Não posso fazer um soldado raso de alguém que coo-
duz tantos milhares . Que isto te chegue , meu enérgi-
co Franzino .

FRANZINO Há-de chegar, senhor.

109
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

FALSTAFF Estou-te reconhecido , reverendo Franzino . - Quem


está a seguir? 1 80

BAIXIO Pedro Bezerro do Rossio .

FALSTAFF Virgem Santa, vamos lá ver o Bezerro .

BEZERRO Aqui , senhor.

FALSTAFF Deus seja louvado , eis um moço capaz . Vamos ,


picai-me l á o Bezerro até que ele berre outra vez .

BEZERRO Ó senhor, meu bom senhor capitão .

FALSTAFF Como é , tu berras antes de ser picado?

BEZERRO Ó meu senhor, sou um homem doente .

FALSTAFF E que doença tens?

BEZERRO Uma fideputa duma constipação , senhor, uma tosse , 1 90

senhor, que apanhei a tocar o sino por causa do Rei


no dia da coroação , senhor.

FALSTAFF Pronto , vais para a guerra em roupão; vamos tirar-te


a tosse e eu vou dar tais ordens que os teus amigos
hão-de tocar o sino por ti . - Estão aqui todos?

BAIXIO Estão chamados mais dois do que o vosso número:


daqui só tereis de levar quatro , senhor, por isso vos
rogo que venhais almoçar comigo .

FALSTAFF Vamos lá, posso ir beber qualquer coisa, mas não


posso ficar para almoçar. À minha fé que estou con- 200

tente por vos ver, Mestre Baixio .

1 10
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

BAIXIO Ó Sir John , lembrais-vos de quando passámos toda a


noite no Moinho de Vento nos Campos de São Jorge?

FALSTAFF É melhor nem falar disso , Mestre Baixio .

BAIXIO Ah , aquilo é que foi uma noite ! E a Joana Noitadas ,


ainda é viva?

FALSTAFF Ainda, Mestre Baixio .

BAIXIO Nunca pôde comigo .

FALSTAFF Nunca, nunca, estava sempre a dizer que não supor-


tava Mestre B aixio . 210

BAIXIO Pela santa missa, eu punha-a furiosa até mais não .


Nesse tempo ela era bom material ; vai-se aguentan-
do bem?

FALSTAFF Velha , velha, Mestre B aixio .

BAIXIO Pois , há-de estar velha, não tem outro remédio ; com
certeza que está velha , se teve o Berto Noitadas do
velho Noitadas ainda antes de eu ir para o Colégio de
São Clemente .

SILÊ NCIO Isso foi há cinquenta e cinco anos .

BAIXIO Ai , primo Silêncio , tivesses tu visto o que eu e aqui 220

este cavaleiro vimos ! Eh , Sir John , disse bem?

FALSTAFF Nós ouvimos as badaladas da meia-noite , Mestre


B aixio .

BAIXIO Lá isso ouvimos , isso ouvimos , à minha fé que ou­


vimos , Sir John , isso sim . A nossa palavra de ordem
era «Bota abaixo , rapaziada ! » . Vamos lá almoçar,

111
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

vamos lá almoçar. Jesus , que dias aqueles que nós


vimos ! Vamos , vamos .

Saem [Falstaff, Baixio e Silêncio]

BEZERRO Bom Mestre Cabo B ardolph , sede meu amigo e aqui


estão para vós quatro henriques de dez xelins em co- 230

roas francesas . A dizer a verdade , senhor, tanto se me


dá ser enforcado como ir; e contudo por minha parte ,
senhor, não me importo , mas é mais porque não te­
nho vontade nenhuma e por minha parte prefiro ficar
com os meus amigos; de resto , senhor, eu por minha
parte não me importava muito .

BARDOLPH Pois sim , afasta-te .

BOLORENTO E bom Mestre Cabo Capitão , por mor da minha ve­


lha senhora, sede meu amigo: ela não tem ninguém
para lhe fazer nada quando eu partir e está velha e 240

não pode cuidar de si . Dou-vos quarenta, senhor.

BARDOLPH Pois sim , afasta-te .

FRANZINO Em verdade , em verdade , não me importo , só se


morre uma vez: todos devemos uma morte a Deus .
Nunca terei um espírito mesquinho; se tiver de ser
o meu destino , assim seja, se não tiver, assim seja.
Ninguém é bom de mais para servir o seu Príncipe ,
e seja como for que as coisas aconteçam , aquele que
morre este ano está isento no próximo .

BARDOLPH Bem dito , és um bom moço . 250

FRANZINO À minha fé que espírito mesquinho não hei-de eu ter.

Entram Falstaff e os Juízes

112
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

FALSTAFF Estão , senhor, com que homens devo ficar?

BA1x10 Os quatro que quiserdes .

BARDOLPH Senhor, só uma palavrinha: tenho três libras para li­


vrar o Bolorento e o Bezerro .

FALSTAFF Pois sim , boa.

BA1x10 Então , Sir John , com que quatro ficais?

FALSTAFF Escolhei vós por mim .

BA1x10 Pois bem , sendo assim: Bolorento , Bezerro , Franzi-


no e Sombra . 260

FALSTAFF Bolorento e Bezerro: vós , Bolorento , ficai em casa


até não terdes serventia; quanto a vós , Bezerro , cres­
cei até a terdes . Não quero nenhum de vós .

BA1x10 Sir John , Sir John , não vos prejudiqueis : estes são
os mais capazes e eu gostaria de vos servir com os
melhores .

FALSTAFF Vindes vós ensinar-me , Mestre Baixio , a escolher um


homem? Julgais que ligo aos membros , aos múscu­
los , à estatura, à corpulência e à grande compleição de
um homem? Dai-me o espírito , Mestre Baixio . Aqui 210

o Verruga: veja-se o aspecto andrajoso dele . Mas ele


carrega-vos e dispara-vos ao ritmo do martelo do cal­
deireiro , vai e vem mais depressa do que quem põe ao
ombro o balde do cervejeiro . E aqui este camarada de
meia cara, o Sombra: dai-me este homem . Não ofere-
ce nenhum alvo ao inimigo , bem este pode apontar­
-lhe que é como acertar numa navalha posta de gume .
E numa retirada, que depressa há-de este Franzino , o
alfaiate de senhoras , fugir ! Oh , fique eu com as sobras

113
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

e sobrem-me os importantes . - Bardolph , põe-me aí 2so

o arcabuz nas mãos do Verruga.

BARDOLPH Segura , Verruga ! Frente , marcha ! Hop , óis , s ' quer,


d ' rei !

FALSTAFF Vamos lá , maneja-me esse arcabuz ; assim , mui­


to bem , pois sim , pois sim , muito bom , excelente .
Oh , dai-me sempre um atirador baixo , magro , velho ,
chupado e careca . Muito bem , Verruga, à minha fé !
Tens uma boa ronha . Toma esta moeda , é para ti .

BA1x10 Não é mestre nesta arte , não faz as coisas direito .


Lembro-me de que no Largo de Mile End , quando eu 290

estava em São Clemente - era eu então Sir Dagonet


no espectáculo do Rei Artur - havia um rapaz todo
mexido que manejava a arma assim , e depois ia de
volta e vinha outra vez , e vinha outra vez . «Rá-tá-tá» ,
fazia ele; «Buum» , fazia ele , e outra vez ia, e outra
vez vinha . Nunca mais volto a ver um rapaz assim .

FALSTAFF Estes rapazes hão-de servir muito bem , Mestre Bai­


xio . Deus vos guarde , Mestre Silêncio , não vou usar
muitas palavras convosco . Fiquem os dois bem , e
obrigado , meus senhores . Esta noite ainda tenho de 300

fazer uma dúzia de milhas . B ardolph , dá capotes aos


soldados .

BA1xm Sir John , o Senhor vos abençoe , Deus faça prosperar


os vossos negócios , Deus nos dê paz . No regresso
vinde a nossa casa para renovar esta velha convivên­
cia. Pode ser até que eu vá convosco à corte .

FALSTAFF À fé de Deus , tomara que viésseis .

BA1x10 Pois sim , eu disse o que disse . Deus vos guarde .

1 14
HENRIQUE IV - PARTE II 3 .2

FALSTAFF Passai bem , senhores .


Saem [Baixio e Silêncio]
Vamos , Bardolph , leva os homens contigo . 310

[Saem Bardolph e os outros]


Quando voltar vou depenar estes juízes . Vejo bem
o fundo do Juiz B aixio . Oh , Senhor, Senhor, como
nós , os velhos , estamos sujeitos a este vício da men­
tira ! Este juiz esfomeado não fez outra coisa senão
tagarelar sobre o desvario da sua juventude e sobre
os seus feitos lá para os lados da Rua de Turnbull ,
e em cada três palavras uma é mentira , pregada ao
ouvinte com maior precisão do que a alcavala do
turco . Lembro-me bem dele em São Clemente , pa­
recia feito de uma apara de queijo depois do j antar. 320

Quando estava nu , era à vista de todos como um ra­


banete em forma de forquilha , com uma cabeça em
cima fantasticamente entalhada a canivete . Era tão
escanzelado que uma vista mais pitosga nem sequer
lhe apanhava as feições . Era o verdadeiro génio da
fome , mas devasso que nem um macaco , e o pu­
tedo chamava-lhe mandrágora . Vinha sempre à ré
da moda e cantava às marafonas mais espadeladas
aquelas cantigas que ouvia os carroceiros a assobiar
e jurava que eram fantasias ou sonatas da cabeça 330

dele . E agora este punhal do Vício faz-se fidalgo e


fala de João de Gande com tal familiaridade como
se fosse dele irmão de armas , e eu faço jura de que
só uma vez o vi numa arena de torneio e de cabeça
rachada por se ter metido no meio dos oficiais da
organização . Eu vi-o e disse a João de Gande que
ele era tão escanifrado que podia ser metido numa
pele de enguia com equipamento e tudo : a caixa de
um oboé soprano era uma mansão para ele , uma
corte ; e agora , oh ! , tem terras e bifes . Bom , se eu 340

voltar, vou dar-me com ele e por difícil que seja


hei-de fazer dele um par de pedras filosofais . Se o

1 15
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

escalinho é um petisco para o velho lúcio , não vejo


na lei da natureza razão para eu não o abocanhar.
É deixar correr o tempo .

Sai

1 16
ACT0 4

Cena 1

Entram o Arcebispo [de York] , Mowbray e Hastings ,


na floresta de Gaultree

ARCEBISPO Como chamam a esta floresta?

HAsnNas Floresta de Gaultree , com licença de Vossa Graça.

ARCEBISPO Paremos aqui , e enviemos batedores


A saber quantos são os nossos inimigos .

HASTINGs Já foram enviados .

ARCEBISPO Muito bem .


Amigos e irmãos nestas altas empresas ,
Devo dizer-vos que recebi entretanto
Cartas mais recentes de Northumberland;
Eis o seu frio intento , teor e conteúdo:
Desejava ele estar aqui , com tais exércitos 10

Que condissessem com a sua qualidade ,


Mas como não pôde reuni-los , resolveu
Madurar suas venturas em retiro
Na Escócia; e termina com cordiais votos
WILLIAM SHAKESPEARE 4.l

De que os vossos esforços superem os riscos


E o temível encontro com os seus oponentes .

MOWBRAY B atem assim no fundo as nossas esperanças nele ,


E fazem-se em mil pedaços .

Entra um Mensageiro

HASTINGS Então , que há?

MENSAGEIRO A oeste da floresta, a menos de uma milha,


Chega o inimigo em formação ordenada 20

E, pelo chão que cobrem , hei-de dizer que são


À volta ou até mais de trinta mil .

MOWBRAY Mesmo na proporção que adiantámos .


Vamos avançar e encontrá-l9s no campo .

Entra Westmoreland

ARCEBISPO Que chefe bem equipado é este que aqui temos?

MowBRAY Penso que se trata de Lorde Westmoreland .

wESTMORELAND Saudações e respeitos do nosso general ,


O Príncipe Lorde John e Duque de Lancaster.

ARCEBISPO Dizei , Lorde Westmoreland , e em paz ,


Qual a razão da vossa vinda .

wEsTMORELAND Então , meu senhor, 30

A Vossa Graça sobretudo dirijo


O teor da minha fala . Se essa revolta
Viesse como ela própria, em turbas abjectas ,
Feroz mocidade à frente , raiva nas alas ,
Apoiada por moços e pedintes -
Se aparecesse , vos digo , a maldita arruaça

118
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

Em sua vera, original e própria forma,


Vós , reverendo pai , e estes nobres lordes ,
Não estaríeis aqui a ornar a feia imagem
Da vulgar e sanguinária insurreição 40

Com vossas honestas honras . Vós , Lorde Arcebispo ,


Com a vossa sé mantida pela paz civil ,
Com a barba cofiada pela argêntea mão da paz ,
Com saber e boas-letras que a paz ensinou ,
Com vestes brancas a figurar a inocência ,
A pomba e o mui sagrado espírito da paz ,
Por que razão vos traduzis tão mal
Da linguagem da paz , com toda a sua graça,
Para a língua da guerra, rude e turbulenta -
Tomando os livros em campas , a tinta em sangue , so

As penas em lanças e a divina língua


Em sonora trompa e em toque de guerra?

ARCEBISPO Por que razão o faço? É essa a questão .


Em suma, quanto a isto: estamos todos doentes
E, de tão empanturrados e devassos ,
Fomos acometidos de uma febre ardente
E temos de ser sangrados; desta doença
Foi infectado o Rei Ricardo e assim morreu .
Mas , mui nobre Lorde Westmoreland ,
Não estou aqui a fazer-me de físico , 60

Nem também , qual inimigo da paz ,


Avanço em tropel com hostes de militares;
Antes me mostro um pouco como temível guerra,
Para dieta de mentes a abarrotar de felicidade
E para purgar obstruções que vão entupindo
As nossas veias da vida . Para ser mais claro:
Sopesei com rigor em justa balança
Que males podemos causar e que males sofremos ,
E achei as mágoas mais pesadas que as ofensas .
Vemos para onde segue a corrente do tempo 10

E somos aí forçados a deixar a calma


Pela encrespada torrente das circunstâncias ,

1 19
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

E temos o rol de todas as nossas queixas


Que , quando chegar o tempo , mostraremos
Em parcelas há muito apresentadas ao Rei ,
Porém por nenhuma petição nunca atendidas .
Quando queremos desfiar as nossas queixas
É -nos negado acesso à sua pessoa
Por aqueles mesmos que nos fizeram mal .
Os perigos de dias ainda recentes so

Cuja memória está escrita sobre a terra


Com sangue ainda à vista, e os exemplos
Que cada minuto traz , ora presentes ,
Puseram-nos em armas que tão mal nos ficam,
Não para quebrar a paz , ou ramo seu ,
Mas para aqui fundar uma paz verdadeira,
Em que o nome concorde com a qualidade .

wEsTMORELAND Quando vos foi negada alguma apelação?


Em que fostes vós molestado pelo Rei?
Que par foi subornado para vos agastar 90

Até vós selardes este iníquo e cruel livro


Da urdida revolta com um selo divino ,
Consagrando o gume azedo do tumulto?

ARCEBISPO Meu irmão general: a coisa pública.


A minha questão privada é com a crueldade
Com o irmão de sangue morto sem sacramento .

WESTMORELAND Não é precisa qualquer reparação ,


Ou , se o fosse , não vos cabia a vós .

MOWBRAY Porque não a ele em parte , e a todos nós ,


Que sentimos as injúrias dos dias passados 1 00

E sofremos a condição dos tempos de hoje


Com mão pesada e desigual imposta
Sobre as nossas honras?

WESTMORELAND Ó bom Lorde Mowbray,


Casai o tempo com as necessidades ,

1 20
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

E concluireis que na verdade é o tempo


E não o Rei o autor dessas injúrias .
Mas no que vos respeita, nem sequer me parece
Que , seja pelo Rei , seja pelos tempos de hoje,
Haja de fundamento para qualquer mágoa
Uma só polegada . Não vos foi restaurado 1 10

Todo o senhorio do Duque de Norfolk,


Vosso nobre e justamente recordado pai?

MOWBRAY O que perdeu meu pai , no campo da honra ,


Que em mim precise de ser reavivado?
O Rei que o amava, tal rumo era o do Estado ,
Foi por força compelido a exilá-lo ,
Quando esse Henry Bullingbrook mais ele ,
Em suas selas montados e altivos ,
Os seus corcéis rinchantes a tentar a espora ,
Varas armadas prontas , viseiras caídas , 1 20

Olhos de fogo a faiscar em olhares de aço


E a sonora trompa a estrondeá-los à liça,
Então , então , quando nada ia embargar
Meu pai do peito de Henry Bullingbrook ,
Oh , quando o Rei lançou por terra o seu bastão ,
Com o bastão lançou a própria vida dele .
Assim se lançou por terra a ele próprio
E às vidas que por juízo ou pela espada
Se malograram desde então sob Bullingbrook .

wEsTMORELAND Falais , Lorde Mowbray, sem saber de quê . 1 30

O Conde de Hereford era então estimado


O mais valente fidalgo da Inglaterra .
Quem sabe a qual deles sorriria a fortuna?
Mas se o vosso pai tivesse aí vencido ,
Nunca teria ido além de Coventry,
Pois todo o país , numa voz geral ,
Lhe tinha ódio , com as preces e o amor
A irem para Hereford , adorado por todos ,
Mais louvado e agraciado do que o Rei .

121
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

Mas isto é mera digressão do meu propósito . 1 40

Venho da parte do Príncipe general


Saber das vossas queixas , dizer-vos de sua parte
Que vos dará audiência; e se então
Os vossos pedidos aparecerem como justos
Serão satisfeitos , posto de lado tudo
Que possa levar a ter-vos por inimigos .

MowsRAY Mas ele forçou-nos a compelir esta oferta,


E não é por amor que vem , mas por política.

wEsTMORELAND Mowbray, é vaidade vossa pensar assim:


É por piedade , não por medo , esta oferta , 1 so

Porque , olhai ! , está à vista o nosso exército ,


E , à minha honra , confiante de mais
Para admitir qualquer noção de medo .
A nossa força tem mais nomes do que a vossa,
No uso das armas são os nossos mais perfeitos ,
Mais fortes as couraças , melhor a nossa causa;
À luz da razão tão bons estão os corações .
Por isso não digais que a oferta é compelida .

MOWBRAY Bom , por vontade minha não parlamentamos .

WESTMORELAND Isso só mostra a vergonha da vossa ofensa: 1 60

Para um caso podre não há tratamento .

HAsnNos Tem o Príncipe John total mandato ,


Por inteira incumbência de seu pai ,
Para ouvir e decidir em absoluto
Das condições que vamos sustentar?

WESTMORELAND Tal está contido no título de general .


Estranho essa vossa pergunta tão sem jeito .

ARCEBISPO Tomai então , Lorde Westmoreland, esta lista,


A qual contém as nossas queixas conjuntas .

1 22
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

Uma vez satisfeitas estas condições , 1 10

Os membros da nossa causa, presentes ou não ,


Que se encontram cingidos a esta acção ,
Sendo inocentados de forma substancial
E por pronta execução das nossas vontades ,
Confinados a nós e aos nossos fins ,
Regressamos às nossas respeitadas margens ,
Enlaçando as nossas forças no braço da paz .

wEsTMORELAND Levo isto ao general . Apraza-vos , lordes ,


Que nos encontremos à vista dos dois exércitos ,
Ambos os lados em paz - Deus o disponha ! - l so

Ou que à discórdia se convoquem as espadas


Que a hão-de decidir.

ARCEB ISPO Meu senhor, assim faremos .

Sai Westmoreland

MOWBRAY Algo me diz no fundo do meu peito


Que nem uma das nossas condições fica em pé .

HASTINas Nada receeis , que se fizermos a paz


Sobre tão amplos termos , e tão absolutos
Como as nossas condições hão-de ateimar,
A paz aguenta firme como montes rochosos .

MOWBRAY Sim, mas há-de ser tal o nosso crédito ,


Que qualquer causa comezinha e aleivosa, 1 90

Sim, qualquer razão fútil , vã e ociosa ,


Terá para o Rei o paladar desta acção
E , mesmo que mártires por nossa fé no Rei ,
Seremos joeirados com vento tão rude
Que o trigo parecerá tão leve como a moinha,
Sem haver partição do bem e do mal .

ARCEBISPO Não , não , meu senhor, o Rei está cansado


De queixas fastiosas e miudinhas ,

1 23
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

Pois viu que eliminar uma suspeita com a morte


Renova duas maiores nos herdeiros vivos , 200

E por isso ele vai querer a folha limpa,


Sem ficar bisbilhotice da memória
Que possa repetir e historiar a sua perda
Para nova lembrança; pois ele sabe bem
Que não pode tanto mondar esta terra
Quanto as suas suspeitas lhe sugerem:
Amigos e inimigos têm raízes tão juntas ,
Que ao puxar para arrancar o inimigo
Assim desprende um amigo e o abala.
Esta terra parece uma esposa infractora 210

Que o fez em fúria ameaçar bater-lhe


E lhe mostra o filho quando ele levanta a mão ,
Suspendendo o correctivo no braço
Já erguido para o executar.

HASTINos Além disso , o Rei gastou todas as varas


Nos infractores passados , faltando-lhe agora
Os próprios instrumentos de castigo;
Por isso o seu poder, como um leão sem presas ,
Pode ameaçar, mas não agarra .

ARCEBISPO É bem verdade ,


E podeis estar certo , meu bom Lorde Marshal , 220

Se fizermos bem a reconciliação ,


Como um osso partido e depois religado ,
Com a fractura a paz fica mais forte .

MOWBRAY Assim seja.


Aqui está de regresso o Lorde Westmoreland .

Entra Westmoreland

wEsTMORELAND O Príncipe está aqui . Queira Vossa Senhoria


Encontrá-lo a meio caminho entre os exércitos .

1 24
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

MOWBRAY Vossa Graça de York , ide em nome de Deus .

ARCEBISPO [para Mowbray]


Ide e saudai Sua Graça. - Senhor, aqui vamos .

Entram o Príncipe John e o seu exército

JOHN Com agrado vos encontro , primo Mowbray ;


Bom dia para vós , ilustre Lorde Arcebispo , 230

E para vós , Lorde Hastings , e para todos .


Meu Senhor de York , ficava-vos melhor
Quando o vosso rebanho , reunido pelo sino ,
Vos rodeava a ouvir com reverência
A vossa exposição acerca da Escritura ,
Do que ver-vos agora feito um homem de ferro ,
Com o tambor a animar uma turba de rebeldes ,
A fazer da palavra espada, da vida morte .
Quem se senta dentro do coração de um rei
A amadurecer ao sol do seu favor, 240

Deverá abusar do apoio do monarca?


Deus meu , que estragos pode ele derramar
À sombra de tal grandeza ! Senhor Bispo , convosco
É exactamente assim . Quem não ouviu falar
De quão imerso estáveis nos livros de Deus?
Éreis o porta-voz no Seu parlamento ,
A voz imaginada , para nós , do próprio Deus ,
O descobridor e o informador
Entre a graça, as santidades do céu
E a nossa lerda faina. Oh , quem vai acreditar 2so

Que não abusais da reverência do lugar,


Que do céu não empenhais a égide e a graça
Como o falso favorito o nome do seu príncipe
Em actos desonrosos? Vós sublevastes,
Sob o falsificado zelo de Deus ,
Os súbditos do Seu delegado , que é meu pai ,
E contra a paz do céu e contra ele
Aqui os enxameastes .

1 25
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

ARCEBISPO Meu bom Lorde Lancaster,


Eu não estou aqui contra a paz de vosso pai ,
Mas , como disse a meu Lorde Westmoreland , 260

É senso comum que os tempos transtornados


Nos impelem e empurram para esta horrenda forma
De aguentar a nossa segurança . A Vossa Graça
Enviei partes e pormenores da nossa queixa ,
A qual foi com desprezo enxotada da corte ,
Onde , filha da guerra, nasceu esta Hidra ,
Cujos perigosos olhos serão adormecidos
Pelo contento destes rectos e justos desejos ,
E a vera obediência, curada esta loucura,
Há-de inclinar-se mansa aos pés da majestade . 210

MOWBRAY Senão , estamos prontos a tentar nossas fortunas


Até ao último homem.

HASTINos E se cairmos ,
Temos reforços para render o nosso intento;
E se falharem, terão também seus reforços ,
E assim terão os danos sucessão
E herdeiro atrás de herdeiro erguerá a disputa
Enquanto houver geração em Inglaterra .

JOHN Sois muito curto , Hastings , mesmo muito curto ,


Para sondar o fundo dos tempos vindouros .

WESTMORELAND Queira Vossa Graça dizer-lhes desde logo 280

O quanto gosta das suas condições .

JOHN Gosto delas todas e aceito-as de bom grado ,


E aqui juro pela honra do meu sangue
Que as tenções de meu pai foram mal entendidas
E alguns cerca dele com muita ligeireza
Torceram-lhe o sentido e a autoridade .
Estas queixas , senhor, serão já reparadas ,
Por minha alma o serão . Se isto vos agrada ,

1 26
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

Licenciai as tropas de volta às suas terras


E faremos o mesmo; e aqui , entre os exércitos , 290

Vamos beber juntos , como amigos , e abraçar-nos ,


Para que os olhos deles possam levar para casa
Sinais do amor e da amizade restaurados .

ARCEBISPO É a palavra do Príncipe por tal reparação .

JOHN Palavra que vos dou e manterei ,


E em consequência bebo à Vossa Graça.

HASTINos Vai , capitão , leva às tropas as novas da paz .


Trata de lhes pagar e de os mandar embora,
Sei que vão ficar contentes . Vamos , capitão .

Sai [o capitão]

ARCEBISPO A vós , meu nobre Lorde Westmoreland . 300

wESTMORELAND Bebo à vossa saúde . Se soubésseis as dores


A que me entreguei para gerar esta paz ,
Beberíeis sem pejo. Mas meu amor por vós
Vai mostrar-se de seguida mais abertamente .

ARCEB ISPO Não tenho dúvidas .

wEsTMORELAND Ainda bem .


À saúde do meu senhor e primo Mowbray.

MOWBRAY Em boa hora me desejais saúde ,


Porque me senti de repente um pouco mal .

ARCEB ISPO Antes de o azar bater, estamos sempre contentes,


Mas a gravidade precede o bom ensejo . 310

wEsTMORELANo Por isso alegrai-vos , primo , pois brusco pesar


Serve para dizer que algo bom está para chegar.

1 27
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

ARCEBISPO Acreditai-me , está mais que leve o meu espírito .

MOWBRAY Tanto pior, se a vossa regra for verdade .

Gritos [dentro]

JOHN Foi passada a palavra da paz . Ouvi os gritos !

MOWBRAY Isto seria animador depois da vitória.

ARCEBISPO A paz é da natureza da conquista ,


Ambos os lados submetidos com nobreza
E nenhum deles perde .

JOHN Meu senhor, ide ,


E mandai licenciar o nosso exército . 320

Sai [ Westmoreland]
E, meu bom senhor, que os nossos séquitos
Marchem perante nós , para assim inspeccionarmos
Quem íamos defrontar.

ARCEBISPO Ide , bom Lorde Hastings ,


E , antes de os dispensar, mandai-os desfilar.

Sai [Hastings]

JOHN Vamos poder, senhores , passar esta noite juntos .


Entra Westmoreland
Então , primo , porque está quieto o nosso exército?

WESTMORELAND Como receberam de vós as suas ordens


Os comandantes não vão sem vos ouvir falar.

JOHN Conhecem os seus deveres .

Entra Hastings

HASTINGS O nosso exército , senhor, já dispersou . 330

1 28
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

Como bezerros sem canga tomam seus caminhos


Para este , oeste , norte e sul , ou como ao fim da escola
Cada um corre para casa e para a brincadeira.

wESTMORELAND Boas notícias , Lorde Hastings , sendo assim ,


Estás preso , traidor, por alta traição;
E vós , Lorde Arcebispo , e vós , Lorde Mowbray,
Estais detidos por traição capital .

MOWBRAY Achais esta conduta justa e honrosa?

wEsTMoRELAND Achais que a vossa associação o é?

ARCEBISPO A vossa fé quebrais?

JOHN Não penhorei nenhuma. 340

Prometi-vos reparo daqueles agravos


De que vos queixastes , o que pela minha honra
Cumprirei com mui cristã solicitude .
Mas quanto a vós , rebeldes , esperai pela paga
Devida à rebelião .
Com ligeireza este exército nasceu ,
Com inépcia chegou , com tolice partiu .
Toquem tambores , cacem os que andam perdidos !
Por Deus , não por nós , foram hoje eles vencidos .
Alguém guarde estes traidores para o cepo da morte , 3so

Que é a cama da traição , do fôlego a má sorte .

Saem

Toques de clarim e correrias . Entra[m] Falstaff [e Sir John Colevile]

FALSTAFF Qual é o vosso nome , condição e origem?

coLEVILE Sou um cavaleiro , senhor, o meu nome é Colevile e


sou do lugar do Poço .

1 29
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

FALSTAFF Muito bem , Colevile é o vosso nome , cavaleiro o


vosso grau e vosso lugar o Poço . Continuareis a ser
Colevile , será traidor o vosso grau e vosso lugar o
calabouço , que é um lugar bem fundo ; por isso con­
tinuareis a ser o Colevile do lugar do Poço .

coLEYILE Não sois vós Sir John Falstaff? 360

FALSTAFF Tão bom como ele , senhor, quem quer que eu seja.
Entregais-vos , senhor, ou tenho de suar por vossa
causa? Se eu suar, as gotas vão ser dos que gostam de
ti , a chorar pela tua morte ; por isso trata de convocar
o medo e o tremor e presta os teus respeitos à minha
misericórdia.

coLEVILE Penso que sois Sir John Falstaff, e com esse pensa­
mento me entrego .

FALSTAFF Tenho um cardume de línguas nesta minha barriga e


nem uma língua entre todas diz outra palavra senão o 310

meu nome . Tivesse eu uma barriga de tamanho indi­


ferente e seria apenas o rapaz mais activo da Europa.
O meu ventre , o meu ventre , o meu ventre desgraça­
-me . - Aí está o nosso general .

Toque de retirada . Entram o Príncipe John, Westmoreland e outros

JOHN O calor passou , não continueis mais ,


Chamai as tropas , bom primo Westmoreland .
[Sai Westmoreland]
Então , Falstaff, onde estivestes todo o tempo?
Quando tudo se acabou , lá chegais vós :
Pela minha vida , que estes vossos atrasos
Ainda hão-de um dia quebrar as costas à forca. 3so

FALSTAFF Eu havia de lamentar, meu senhor, era se fosse ao


contrário. Até hoje não vi senão reprovação e cen-

1 30
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

sura como paga do valor. Achais-me uma andorinha,


ou uma seta , ou uma bala? Posso eu ter, no meu po­
bre e velho movimento , o despacho do pensamento?
Apressei-me a chegar aqui até ao extremo de um ni­
co do possível , derreei para cima de cento e oiten­
ta cavalos de posta; e, mal cheguei , alquebrado da
jornada como estou , capturei , com o meu mais puro
e imaculado valor, S ir John Colevile do Poço , cava- 390

leiro de fúria denodada e inimigo valoroso . Mas de


que é que isso vale? Ele viu-me e entregou-se , pelo
que posso com justeza dizer, como aquele romano do
nariz cambudo : «Olha, primo , cheguei , vi e venci .»

JOHN Isso foi mais cortesia dele do que mérito vosso .

FALSTAFF Não sei : ele aqui está , e aqui o entrego , e rogo a Vos-
sa Graça que isto fique exarado juntamente com as
outras acções do dia, ou então juro pelo Senhor que
mando pôr tudo numa balada própria, com o meu re­
trato no cimo e com Colevile a beijar-me os pés . E 400

se eu for forçado a esta decisão , não tomeis por séria


a palavra de um nobre se eu não vos faço aparecer a
todos como pechisbeque em comparação comigo , eu
a brilhar sobre vós no claro céu da Fama como a lua
cheia faz às brasas do firmamento , que em compa­
ração com ela parecem cabeças de alfinete . Por isso
dai-me o que é justo e deixai que o mérito ascenda .

JOHN O vosso é pesado de mais para ascender.

FALSTAFF Então que brilhe .

JOHN O vosso é denso de mais para brilhar. 410

FALSTAFF Então , meu bom senhor, que faça alguma coisa que
me dê jeito , e chamai-lhe o que quiserdes .

131
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

JOHN O teu nome é Colevile?

coLEVILE Sim , meu senhor.

JOHN És um rebelde afamado , Colevile .

FALSTAFF E um afamadamente leal súbdito apanhou-o .

coLEVJLE Sou , meu senhor, tal como os meus superiores


Que me trouxeram aqui . Fosse eu a mandar,
E a vossa vitória tinha saído mais cara .

FALSTAFF Não sei quanto foi que eles cobraram , mas tu como 420

um bom rapaz entregaste-te de graça, e eu agradeço-


-te por ti .

Entra Westmoreland

JOHN Então não há mais perseguição?

wESTMORELAND Está feita a retirada e a execução suspensa.

JOHN Enviai Colevile mais os seus confederados


Para York, para execução imediata .
Blunt , levai-o daqui e guardai-o seguro .
Saem [Blunt e] Colevile
E agora despachemo-nos para a corte ,
Dizem que o Rei meu pai está muito doente .
Antes de nós hão-de chegar-lhe as notícias , 430

As quais , primo , lhe levais para seu conforto


E nós vos seguiremos a ritmo mais sóbrio .

FALSTAFF Meu senhor, rogo-vos permissão para seguir por


Gloucestershire , e quando chegardes à corte , sede o
meu bom senhor no vosso bom relato .

1 32
HENRIQUE IV - PARTE II 4.1

JOHN B oa viagem, Falstaff. Na minha condição


Falarei de vós melhor do que o mereceis .

Saem [todos menos FalstaffJ

FALSTAFF Assim tivésseis vós o engenho: era melhor do que o


ducado . Bofé , este jovem sóbrio e contido não gosta
de mim, nem ninguém é capaz de o fazer rir. Também 440

não é de admirar, não bebe vinho . Nunca nenhum


destes rapazes ciscunspectos fez nada de jeito , com
as bebidas leves que só lhes esfriam o sangue e o co­
mer tanto peixe acabam por apanhar alguma anemia
dos machos que depois quando casam só dão rapari­
gas . Em geral são tolos e cobardes - o que também
tocaria a alguns de nós , não fora a inflamação . Um
bom seco de xerez tem um duplo efeito: sobe-me à
cabeça, seca-me todos os vapores tolos e frouxos e
grosseiros que por lá circulam , toma-ma perspicaz , 4so

espevitada, engenhosa, cheia de formas ágeis , fogo­


sas e agradáveis , que , uma vez transmitidas à voz ,
tomam a língua, que é onde a voz nasce , em exce­
lente sabedoria. A segunda propriedade de um ex­
celente xerez é o aquecimento do sangue , que antes ,
frio e assentado , deixava o fígado branco e pálido ,
o que é distintivo da pusilanimidade e da cobardia;
mas o xerez aquece-o e fá-lo passar de dentro para
os extremos das partes : ilumina a cara que , como um
farol , dá sinal a todo o resto deste pequeno reino - 460

o homem - para que se arme; e então os cidadãos


vitais e os pequenos espíritos do interior, todos se
me apresentam ao seu capitão , o coração , o qual , en­
grandecido e enfunado com este séquito , pratica um
acto de coragem qualquer: e esse valor vem do xerez .
Por isso destreza com a arma não é nada sem o seco ,
que é o que a põe a andar; e a sabedoria é um mero
pote de ouro à guarda de um demónio até que o seco
a licencia e lhe dá faculdade e uso . Daqui vem que

1 33
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

o Príncipe Harry é valente , porque o sangue-frio que 410

naturalmente herdou do pai ele adubou , amanhou e


cultivou , como a terra pobre , estéril e escalvada, com
o excelente esforço de beber bem e do bom e fértil
xerez, e assim ficou cheio de ardor e valentia . Se eu
tivesse mil filhos , o primeiro princípio humano que
lhes ensinava havia de ser renegar bebidas leves e
que se devotassem ao vinho .
Entra Bardolph
Então , Bardolph?

BARDOLPH As tropas estão desmobilizadas e já todos se foram .

FALSTAFF Deixá-los ir. Eu vou por Gloucestershire e vou lá 480

visitar Mestre Roberto Baixio , fidalgo . Já o estou a


amaciar entre o indicador e o polegar, em breve hei­
-de lacrar com ele . Vem daí.

Saem

Cena 2

Entram o Rei [transportado numa cadeira] , Wanvick, Thomas


Duque de Clarence, Humphrey Duque de Gloucester [e outros]

REI Agora, senhores , se Deus der fim favorável


A este litígio que faz sangue à nossa porta,
Levaremos os jovens a campos mais altos ,
Onde só usaremos armas santificadas :
Está pronta a armada, reunido o exército ,
Investido quem nos substitui na ausência,
Tudo está ao nível dos nossos desejos;
Só precisamos de alguma força física
E de uma pausa até que estes rebeldes
Sejam submetidos ao jugo do governo . IO

1 34
HENRIQUE IV - PARTE II 4 .2

WARWICK Não duvidamos de que Vossa Majestade em breve


Gozará de ambas .

REI Meu filho Humphrey de Gloucester,


Onde está o Príncipe vosso irmão?

awucEsTER Penso que foi caçar, meu senhor, para Windsor.

REI E em que companhia?

GLOUCESTER Não sei , meu senhor.

REI Não está com ele o irmão , Thomas de Clarence?

aLoucESTER Não , meu bom senhor, esse está aqui presente .

CLARENCE Que deseja de mim meu senhor e meu pai?

REI Nada , senão teu bem , Thomas de Clarence .


Porque não estás com o Príncipe teu irmão? 20

Ele gosta de ti e tu não o aprecias .


Tu tens melhor lugar nos seus afectos
Do que os teus irmãos; estima-o , meu rapaz ,
E podes desempenhar nobre ofícios
De mediação , depois de eu ter morrido ,
Entre a sua alteza e os teus outros irmãos .
Não o enjeites então , não turves seu amor,
Nem da sua graça percas o benefício ,
Parecendo frio ou descurando a sua vontade ,
Pois ele é bondoso se for respeitado , 30

Tem lágrimas para a piedade , e tem a mão


Aberta como o dia para atender à caridade;
Mas se todavia for inflamado , chispa ,
Caprichoso como o Inverno , e tão brusco
Como borrasca de gelo ao nascer do dia .
Por isso deve ser respeitada a sua têmpera;
Lembrai-lhe as faltas , e com reverência,

1 35
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

Quando nele parecer festiva a inclinação do sangue;


Mas , estando taciturno , dai-lhe tempo e escopo ,
Até que as paixões , como baleia em terra, 40

Acabem , no afã, por se esgotar. Apreende isto ,


E ver-te-ás um resguardo dos teus amigos ,
Um aro de oiro a cingir os teus irmãos ,
Para que o aglutinado vaso do seu sangue ,
Misturado ao veneno da suspeita
Que os tempos por força nele hão-de vazar,
Nunca venha a verter, mesmo que ele tenha a força
Do acónito , ou da violenta pólvora.

CLARENCE Respeitá-lo-ei com todo o amor e cuidado .

REI Porque não estais com ele em Windsor, Thomas? 50

cLARENCE Ele hoje não está lá, foi jantar a Londres .

REI E em que companhia?

cLARENCE De Poins e outros dos seus usuais seguidores .

REI O mais gordo solo é o mais sujeito às ervas ,


E ele , a nobre imagem da minha juventude ,
Está recoberto delas , por isso o meu pesar
Alastra para além da hora da morte .
Chora-me sangue o coração quando antecipo
Em formas imaginadas os dias sem rumo
E os apodrecidos tempos que haveis de enfrentar 60

Quando eu estiver a dormir com os meus


antepassados .
Quando o teimoso desmando não tem freio ,
Quando são conselheiros o furor e o sangue quente ,
Quando hábitos pródigos e meios se encontram ,
Oh , com que asas voarão os seus afectos
Para o perigo <levante e o adverso declínio !

1 36
HENRIQUE IV - PARTE II 4.2

wARw1cK Meu amável senhor, estais a olhar além dele:


O Príncipe só estuda os seus companheiros
Como uma língua estranha, havendo , para a ganhar,
A necessidade de ser visto e aprendido 10

O maior dos palavrões , o que , já atingido ,


Sabe Vossa Alteza depois apenas serve
Para conhecer e odiar. Como de palavras feias ,
Assim há-de o Príncipe no curso do tempo
Livrar-se dos seguidores, e a sua memória
Ficará como padrão ou como medida
Pela qual Sua Graça julgará as vidas dos outros ,
Tomando males passados em vantagens .

REI É raro a abelha abandonar o favo


Na pútrida carcaça.
Entra Westmoreland
Quem está aqui? Westmoreland? so

WESTMORELAND Saúde a meu soberano , e mais felicidade


Acrescentada à que vos vou trazer.
O Príncipe John , vosso filho , beija-vos a mão:
Mowbray, o Bispo Scroop , Hastings e os outros ,
Foram trazidos à correcção da vossa lei .
Não há nem uma espada de rebelde erguida ,
Em todo o lado a paz estende o ramo de oliveira.
O modo como esta acção foi conduzida
Pode Vossa Alteza aqui ler com mais vagar,
Cada acontecimento em seu pormenor. 90

REI Oh , Westmoreland , és um pássaro de Verão ,


Que sempre nas ilhargas do Inverno canta
A ascensão do dia.
Entra Harcourt
Olhai , há mais notícias .

HARCOURT Que os céus protejam Vossa Alteza de inimigos ,


E se eles se erguerem contra vós , possam cair

1 37
WILLIAM SHAKESPEARE 4 .2

Como aqueles de quem vos venho falar.


O Conde de Northumberland e Lorde B ardolph ,
Com grande força de ingleses e escoceses,
Foram derrotados pelo xerife de Yorkshire .
O modo e encadeamento do combate 100

Está em pormenor, se vos apraz , neste embrulho .

REI E porque me hão-de as boas-novas pôr doente?


Nunca virá a Fortuna com ambas as mãos cheias
Sem dar lindas palavras em feias condições?
Ou dá um estômago sem dar a comida -
Como aos pobres com saúde - ou então um festim ,
Mas então tira o estômago - como aos ricos
Que têm abundância mas não gozam dela.
Eu devia alegrar-me com estas boas-novas ,
E falha-me a vista , anda-me a cabeça à roda. 1 10

Oh , acudam-me , sinto-me muito mal .

owucEsTER Sossegai , Majestade .

CLARENCE ó meu real pai !

wEsTMORELAND Ânimo , meu soberano , erguei os olhos .

WARw1cK Paciência, Príncipes , sabeis que estes achaques


São em Sua Alteza muito frequentes .
Afastai-vos , dai-lhe ar: já fica bem .

cLARENCE Não , não pode aguentar por muito estes ataques ;


O constante cuidado e labor d a sua mente
Moeu o muro que a devia confinar
Tão delgado que a vida olha através dele . 1 20

oLoucEsTER O povo assusta-me , porque observa


Filhos sem pai e aberrações da natureza .
As estações mudam de hábitos , como se o ano
Saltasse por cima de alguns meses que dormiam .

1 38
HENRIQUE IV - PARTE I I 4 .2

CLARENCE O rio subiu três veze s , sem vazante ,


E os antigos - crónicas servis do Tempo -
Dizem que o mesmo aconteceu um pouco antes
Da doença e morte do nosso bisavô Eduardo .

WARWICK Falai mais baixo , Príncipes , o Rei está melhor.

GLOUCESTER Esta apoplexia vai ser o fim dele . 1 30

REI Peço-vos que me levanteis e leveis daqui


Para outro quarto qualquer.
[O Rei é deitado numa cama]
Que não haja barulho , meus gentis amigos ,
A não ser que mão entorpecente e benigna
Murmure alguma música ao meu cansado espírito .

WARWICK Chamai a música que está na outra sala .

REI Deixai-me a coroa aqui na almofada.

CLARENCE O olhar está vazio , e está ele a mudar muito .

WARWICK Menos barulho .

Entra o Príncipe Henry

PR Í NCIPE Quem viu o Duque de Clarence?

CLARENCE Estou aqui , irmão , de espírito pesado . 1 40

PR Í NCIPE Então , chuva cá dentro e nenhuma lá fora?


Como está o Rei?

GLOUCESTER Muitíssimo mal .

PR Í NCIPE Já sabe das boas notícias? Contai-lhas .

1 39
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

GLoucEsTER Foi depois de as ouvir que ele piorou muito .

PR ÍNCIPE Se a doença é de alegria, vai ficar bom sem remédios .

wARWICK Menos barulho , senhores; mais baixo , doce Príncipe ,


O Rei vosso pai tem vontade de dormir.

cLARENCE Vamos retirar-nos para a outra sala.

wARw1cK Apraz a Vossa Graça vir connosco?

PR ÍNCIPE Não, sento-me aqui e fico a olhar pelo Rei . l so

[Saem todos menos o Príncipe]


Porque estará a coroa ali na almofada,
Uma tão incómoda companhia de cama?
Ó inquietação polida ! Ó freima dourada !
Que manténs escancaradas as portas do sono
Tantas noites de vigília - dormi com ela agora !
Mas não tão profundo , e só em metade suave ,
Comparando com quem, em barrete de dormir,
Ressona todos os quartos da noite . Ó Majestade !
Quando cinges quem te ostenta, tu assentas
Como rica armadura no pico do calor, 1 60

Que de segurança escalda; há uma penugenta pluma,


Junto às portas do seu bafo , que não mexe:
Se ele suspirasse , aquela pena tão leve
Por força se movia. Meu bom senhor, meu pai !
É mesmo um sono profundo , é um sono
Que desta argola dourada divorciou já
Tantos reis ingleses . O que te devo
São lágrimas e duras mágoas do sangue ,
Que a natureza, o amor e a afeição filial
Hão-de , querido pai , pagar-te em abundância. 1 10

O que me deves é esta coroa imperial


Que , sendo eu teu imediato de sangue ,
Deriva para mim . Olha onde ela assenta,
[Põe a coroa na cabeça]

1 40
HENRIQUE IV - PARTE II 4 .2

Que Deus há-de guardar; e , posta a força do mundo


Num braço gigante , nem isso há-de tirar
De mim esta herdada honra: aos meus será legado
Isto que vem de ti , como a mim é deixado .

Sai

REI Warwick , Gloucester, Clarence !

Entram Warwick, Gloucester e Clarence

cLARENcE O Rei está a chamar?

WARWICK Que desejais , Majestade?

REI Porque me deixastes aqui só , senhores? 1 80

CLARENCE Ficou aqui o Príncipe meu irmão , senhor,


Que disse se ia sentar e olhar por vós .

REI O Príncipe de Gales? Onde está? Deixai-me vê-lo .


Ele não está aqui .

WARWICK Esta porta está aberta . Foi por aqui .

GLOUCESTER Não passou pela sala onde nós estávamos .

REI Onde está a coroa? Quem ma tirou da almofada?

WARWICK Quando saímos , senhor, ela ficou aqui .

REI O Príncipe levou-a . Ide procurá-lo .


Está ele tão apressado que supõe 1 90

Que o meu sono é a minha morte?


Encontrai-o , Lorde Warwick , mandai-o já aqui .
[Sai Warwick]
Esta cena dele conjuga-se com o meu mal ,

141
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

E ajuda a acabar comigo . Vede , filhos , o que sois ,


Quão depressa cai a natureza na revolta
Quando o seu objecto passa a ser o ouro .
Para isto os tolos pais, sobrecuidadosos ,
Com cogitações romperam o sono ,
Com desvelos os miolos , com esforços os ossos ;
Para isto amontoaram e pilharam 200

O abjecto ouro de estranhos alcançado ;


Para isto foram previdentes ao dotar
Os filhos com artes e exercícios marciais ,
Quando , como a abelha, cobrando d e cada flor,
Coxas cheias de cera, bocas cheias de mel ,
O trazemos à colmeia; e como as abelhas ,
Por nosso empenho nos matam . Este gosto amargo
É dado por tais dotes ao pai moribundo .
Entra Warwick
Onde está agora aquele que não quer esperar
Que a sua amiga Doença acabe comigo? 210

wARw1cK Senhor, encontrei o Príncipe na sala ao lado ,


A delicada face lavada em temas lágrimas ,
Em grande pesar com tão grave postura ,
Que a tirania, sempre sedenta de sangue ,
Haveria, se o visse , de lavar a faca
Com temas gotas de choro . Ele vem aí.

REI Mas para que fim levou ele a coroa?


Entra o Príncipe de Gales
Olhem , aí vem ele . Vem junto a mim , Harry.
Saí do quarto , deixai-nos aqui sós .

Saem [Gloucester, Clarence e Warwick]

rR f NcirE Nunca pensei ouvir-vos falar outra vez . 220

REI O teu desejo, Harry, foi pai desse pensamento .


Já vou ficando cá há muito , j á te canso .

1 42
HENRIQUE IV - PARTE II 4.2

Estás tão sôfrego da minha cadeira vazia


Que precisas de te investir com as minhas honras
Antes que a hora amadureça? Ó tola juventude ,
Buscas a grandeza que te há-de subjugar.
Espera um pouco , esta nuvem de dignidade
Depende , para não cair, de tão fraco vento
Que , não tarda, desaba. O meu dia está escuro .
Roubaste aquilo que poucas horas mais tarde 230

Era teu sem ofensa , e na minha morte


Puseste o lacre sobre a minha expectativa .
A tua vida mostrou que não me amavas
E à hora da morte disso me asseguras .
Escondeste mil punhais nos pensamentos
E no teu coração empedernido os afiaste
Para me trespassares a meia hora da vida .
Não me podes tolerar por meia hora?
Então vai-te daqui , cava-me a sepultura ,
E manda que ao teu ouvido repiquem sinos 240

A dar-te por coroado , não a mim por morto .


Sejam gotas de bálsamo a abençoar-te a cabeça
As lágrimas que iam orvalhar-me o ataúde :
A mim junta-me apenas com o esquecido pó .
Aquilo que te deu vida dá-o aos vermes ,
Derruba-me os oficiais , rasga-me os decretos ,
Já que é chegado um tempo de escarnecer da Regra .
Henrique , o Quinto , coroado ! Eia, vaidade !
Abaixo o Estado ! Sábios conselheiros , rua !
E juntem-se agora na corte de Inglaterra , 2so

Vindos de todo o lado , os monos da preguiça !


Purgai-vos , estados vizinhos , da vossa escumalha.
Tendes um rufião que pragueja, bebe e dança,
Anda em noitadas , rouba , mata e pratica
Os pecados mais velhos pelas modas mais novas?
Alegrai-vos que ele não mais vos incomoda:
A Inglaterra dá-lhe cargo , honra e poder,
E em dobro lhe compensa a sua tripla ofensa;
Porque ao refreado abuso o quinto Henrique

1 43
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

Arranca o açaime da regra , e o cão selvagem 260

Vai meter o dente na carne dos inocentes .


Oh , meu pobre reino ! Ferido por golpes civis ,
Se o meu empenho não conteve os teus excessos ,
Que farás tu sendo o excesso o teu empenho?
Oh , vais tornar-te de novo uma selva,
Povoada por lobos , como antigamente .

PR I NCIPE Oh , perdão , meu senhor. Não fossem as lágrimas ,


Húmido tolhimento do meu falar,
E eu evitaria essa censura terna e dura
Antes de vós com amargura a concluirdes 210

E de eu tanto a ouvir. Eis a vossa coroa;


Aquele que ostenta a coroa eternamente
Por muito a faça vossa . Se eu a anseio mais
Do que à vossa honra e ao vosso renome ,
Que eu não mais me erga deste acto de respeito ,
E Deus é testemunha de que o meu espírito
De lisura e dever me ensina a curvar-me
E a prostrar-me assim . Quando aqui cheguei
E não vi sinais de sopro em Vossa Majestade
Gelou-se-me o coração . Se estou a fingir, 2so

Oh , morra já eu neste meu estado bravio ,


E não viva para mostrar ao mundo incrédulo
A nobre mudança a que me propus .
Vindo saber de vós , e julgando-vos morto ,
E quase morrendo , meu senhor, por o julgar,
Falei a esta coroa como se ela entendesse ,
E assim a censurei : «Ü cuidado em ti posto
Alimentou-se do corpo do meu pai ;
Por isso , melhor do ouro , és o pior do ouro:
Outro , menos puro , tem mais valor em quilate , 290

Preservando a vida em remédio potável ;


Mas tu , mais pura , mais honrada e afamada ,
Comeste quem te usava.» Meu real suserano ,
Assim a acusando , pu-la na cabeça
Para com ela ajustar, como com um inimigo

1 44
HENRIQUE IV - PARTE li 4 .2

Que ante meus olhos matara meu pai ,


A hostilidade de um vero herdeiro .
Mas se ela infectou meu sangue com alegria,
Me fez inchar as ideias a um excesso de orgulho ,
Se algum espírito meu , rebelde ou frívolo , 300

Com o mais pequeno afecto de boas-vindas ,


Se mostrou receptivo ao seu poder,
Que Deus para sempre a afaste de mim
E me faça igual ao mais pobre vassalo
Perante ela ajoelhado com respeito e terror.

REI Deus pôs-te na cabeça levá-la daqui ,


Para que melhor ganhasses o amor de teu pai
Ao apelar tão sabiamente em teu favor.
Vem cá, Harry, senta-te à minha beira
E ouve , creio , o último conselho 310

Para que terei alento . Deus sabe , meu filho ,


Por que atalhos e caminhos enviesados
Encontrei esta coroa, e muito bem sei eu
Com que desconforto ela me assentava.
Em ti há-de poisar com mais sossego ,
Melhor opinião, melhor confirmação ,
Pois todo o esterco da façanha vai
Comigo para a terra . Em mim não parecia
Senão honra agarrada com mão temerária,
E sempre em vida tinha muitos a lembrar-me 320

Tê-la eu ganho com a ajuda deles ,


Dia a dia levando à briga e à chacina ,
Ferindo a suposta paz . A tais afoitos perigos ,
Sabes como com risco eu lhes respondi ,
Já que o meu reinado tem sido uma só cena
Com o mesmo argumento . A tudo a minha morte
Dá agora outro aspecto: em mim foi aquisição
O que a ti cabe mais favoravelmente .
O teu uso da grinalda é por sucessão ,
Mas se ficas mais seguro do que eu estava, 330

Não estás muito firme enquanto as queixas estão verdes ,

1 45
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

E os amigos meus, que tu deves fazer teus ,


Estão só desde há pouco sem os ferrões e os dentes
Que por acção cruel primeiro me promoveram ,
E por cujo poder eu receava
Ser de novo deposto: foi para o evitar
Que eu lhos arranquei , e tinha agora em mente
Levar muitos comigo à Terra Santa,
Antes que a inércia e o ócio os fizessem olhar
De mais para o meu Estado . Por isso , meu Harry, 340

Cuida de dar canseira a mentes levianas


Com querelas exóticas , para a acção longínqua
Desgastar a memória dos dias passados .
Mais te diria, mas tenho os pulmões tão gastos
Que a força da fala de todo me é negada .
Como eu cheguei à coroa, oh , Deus me perdoe ,
E garanta que em paz ela a ti se afeiçoe .

PR I NcIPE Por vós ela foi ganha , usada , e a mim dada ,


Por isso a minha posse há-de ser justa e fundada ,
Mesmo com mais do que um comum padecer, 3so

Contra todo o mundo com justiça a hei-de manter.

Entra Lorde John de wncaster

REI Vejam, vejam, aí vem o meu John de Lancaster.

JOHN Saúde , paz e alegria para o meu real pai .

REI Trazes-me alegria e paz , meu filho John ,


Mas a saúde , essa voou com jovens asas
Deste tronco gasto e seco . Diante de ti
Chega a um ponto final a minha lida no mundo .
Onde está o meu Lorde Warwick?

PR ÍNCIPE Meu Lorde Warwick !

[Entra Warwick]

1 46
HENRIQUE IV - PARTE II 4.2

REI Algum nome em especial pertence


Ao aposento onde primeiro desmaiei? 3 60

WARw1cK Chama-se Jerusalém , nobre senhor.

REI Louvado seja Deus, aí devo eu acabar.


Há muitos anos me foi profetizado
Que em Jerusalém havia de morrer,
E eu , vaidoso , supus ser a Terra Santa.
Mas levai-me a esse quarto , lá quero jazer:
Nessa Jerusalém é que Henrique há-de morrer.

Saem

1 47
ACT0 5

Cena 1

Entram Baixio, Falstaff, Bardolph e o Pajem

BA1x10 Pode vir o cura mailo breviário , senhor, mas não vos
ides embora esta noite . - Então , Davy, estou a cha­
mar !

FALSTAFF Tereis de me desculpar, Mestre Roberto Baixio .

BAIXIO Não vos desculpo , não sereis desculpado , não são


aceites desculpas , não há desculpa que valha, não se­
reis desculpado . - Então , Davy?

[Entra Davy]

oAvY Estou aqui , senhor.

BAIXIO Davy, Davy, Davy, Davy, deixa cá ver, Davy, deixa


cá ver, Davy, deixa cá ver - minha Nossa Senhora, w

o Guilherme cozinheiro , manda-o vir cá. Sir John ,


não sereis desculpado .

oAvY Valha-me Nossa Senhora, é assim, meu senhor: esses


mandados não podem ser cumpridos ; e depois , se­
nhor: vamos semear os cabeceiros com trigo?
WILLIAM SHAKESPEARE 5.1

BA1x10 Com trigo vermelho , Davy. Mas para o Guilherme


cozinheiro não temos borrachos?

oAvY Sim, senhor. Tenho aqui agora a conta das ferraduras


e dos ferros para a charrua, que mandou o ferreiro .

BA1x10 Funde-a com as outras e paga. Sir John , não sereis 20

desculpado .

oAvY Agora, senhor, é preciso arranjar uma corrente nova


para o balde . E, senhor, fazeis tenção de descontar
no ordenado ao Guilherme por causa do saco que ele
perdeu na feira de Hinckley?

BAIXIO Ele há-de responder por isso . Alguns pombos , Davy,


um par de galinhas de pata curta, uma pá de carneiro ,
e assim umas coisinhas para petiscar, vá, diz ao Gui­
lherme cozinheiro .

oAvY Esse vaso de guerra passa cá a noite , senhor? 30

BAIXIO Sim, Davy. Vou tratar bem dele , antes um amigo no


paço do que um vintém na algibeira. Trata bem dos
homens dele , Davy, que eles são notórios bandalhos
e roem-te na pele .

DAVY Roída que chegue está já a pele deles , com as roupas


maravilhosamente imundas que têm .

BAIXIO Bem engendrada, Davy. Vai ao trabalho , Davy.

oAvY Quero rogar-vos , senhor, que deis favor ao William


Visor de Woncot contra o Clement Perkes do Morro .

BA1x10 Há muitas queixas , Davy, contra esse Visor - tanto 40

quanto sei , esse Visor é um notório bandalho .

1 50
HENRIQUE IV - PARTE I I 5.1

DAVY Concedo a Vossa Senhoria que ele é u m bandalho ,


senhor; mas Deus nos livre , senhor, de um bandalho
não ter favorecimento por empenho de um amigo .
Um homem honesto , senhor, é capaz de se defender,
mas um bandalho não . Servi fielmente Vossa Senho­
ria estes oito anos , senhor, e se não posso por uma
vez ou duas em cada sessão do tribunal apoiar um
bandalho contra um homem honesto , então tenho
pouco crédito junto de Vossa Senhoria. O bandalho so

é meu honesto amigo , senhor, por isso vos rogo que


seja favorecido .

BA1xro Pois sim , descansa que ele não há-de ser prejudica­
do . Põe-te a mexer, Davy.
[Sai Davy]
Onde estais , Sir John? Vamos , vamos , vamos , fora com
essas botas . Dai-me a vossa mão, Mestre Bardolph .

BARDOLPH Fico contente por ver Vossa Senhoria.

BAIXIO Agradeço-te do coração , caro Mestre B ardolph , [pa­


ra o Pajem] e bem-vindo sejas , meu grandalhão . -
Vinde , Sir John . 60

FALSTAFF Às vossas ordens , bom Mestre Baixio .


[Sai Baixio]
B ardolph , olha pelos cavalos .
[Saem Bardolph e o Pajem]
Se me serrassem às tiras , havia de dar umas qua­
tro dúzias destes eremitas barbudos em forma de
caj ado como este Mestre B aixio . É fantástico ver
as parecenças entre os espíritos dos criados deste
Mestre B aixio e o dele: de tanto o observarem , eles
portam-se como juízes tolos ; por tanto se misturar
com eles , transformou-se ele num criado com ares
de juiz . Estão os seus espíritos tão bem casados 10

uns com os outros nesta comunhão social que as

151
WILLIAM SHAKESPEARE 5.1

suas opiniões formam um bando como se fosse de


gansos-bravos . Se eu tivesse uma causa a apresentar
a Mestre B aixio , havia de amimar os seus servido­
res com o argumento de estar muito próximo do pa­
trão ; se tivesse de a apresentar a ele s , havia de pas­
sar a mão pelo pêlo de Mestre B aixio dizendo-lhe
que ninguém melhor sabe dirigir o pessoal . É certo
que conduta sensata ou porte ignorante se passam ,
como as doenças , de uma pessoa à outra . Que cada so

um por isso cuide das suas companhias . Este Bai­


xio há-de dar-me material que chegue para manter
o Príncipe Harry em riso constante pelo tempo de
seis modas - o que dá quatro períodos - ou duas
acções , e há-de rir sem intervalos para férias . Ora ,
uma mentira com um palavrão levezinho e uma gra­
ça com sobrolho franzido fazem grande efeito com
um rapaz que nunca teve dores nos ombros ! Haveis
de o ver a rir até ter a cara como um capote molhado
que seca todo amarfanhado . 90

BAIXIO [Dentro] Sir John !

FALSTAFF Já vou , Mestre Baixio , já vou , Mestre B aixio .

Sai

Cena 2

Entram o Conde de Warwick e o Juiz-Mor do Reino

WARWICK Estais de saída, Senhor Juiz-Mor?

miz Como está o Rei?

WARWICK Muitíssimo bem: acabaram-se-lhe os cuidados .

152
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .2

JUIZ Não morreu , espero !

wARWICK Seguiu o curso natural ,


E para os nossos fins já não é vivo .

JUIZ Antes me tivesse o Rei levado com ele:


Os serviços que , fiel , lhe prestei em vida,
Deixaram-me aberto a todas as agressões .

wARw1cK Não vos creio de facto nas graças do jovem Rei .

JUIZ Sei que não estou , e por isso me preparo 10

Para aceitar as condições dos tempos :


Não podem eles ser ainda mais terríveis
Do que em minha fantasia os desenhei .

Entram John de Lancaster, Gloucester e Clarence

WARWICK Eis a pesarosa prole do morto Henrique .


Oh , tivesse o vivo Henrique a mesma têmpera
Que tem o pior de entre estes três fidalgos !
Quantos nobres manteriam os seus postos
Sem ter de amainar perante espíritos vis !

JUIZ Meu Deus , temo que tudo vá ficar do avesso .

JOHN Bom dia, primo Warwick , bom dia . 20

GLOUCESTER
e CLARENCE Bom dia, primo .

JOHN Estamos como quem já esqueceu o falar.

WARWICK Não esquecemos , mas o nosso assunto


É pesado de mais para grande conversa .

JOHN Bom, a paz esteja com quem causou tal pesar.

1 53
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .2

JUIZ Connosco também , para nos aliviar o peso .

GLOUCESTER Ó bom senhor, vós perdestes um amigo ,


E ouso jurar que não é emprestada essa cara
De aparente tristeza: ela é por certo vossa.

JOHN Não estando ninguém certo da graça que o espera, 30

A vossa é porém a mais fria expectativa.


Eu sou quem mais lamenta , antes não fosse assim .

CLARENCE Tendes agora de falar bem a Sir John Falstaff,


Que nada contra a corrente do vosso valor.

JUIZ Queridos Príncipes , o que eu fiz, fi-lo com honra,


Guiado pela imparcialidade da minha alma .
E nunca havereis de me ver a pedir
Uma remissão esfarrapada e antevista.
Se verdade e recta inocência me falharem,
Vou ter com o Rei meu amo que morreu 40

E digo-lhe quem foi que me enviou atrás dele .

Entram o Príncipe Henry e Blunt

WARWICK Aí vem o Príncipe .

JUIZ Bom dia, e Deus salve Vossa Majestade .

PRÍ NCIPE Esta veste nova e opulenta , a majestade ,


Não me assenta tão bem como pensais .
Misturais a tristeza com algum medo , irmãos .
Esta é a corte inglesa, não é a turca:
Não é um Murad a quem sucede outro Murad ,
Mas um Henrique a outro Henrique . Mas estar tristes,
À minha fé , irmãos , fica-vos muito bem . 50

O pesar tem em vós um tal ar de realeza


Que , muito seriamente , vou adoptar a moda
E usá-lo no coração . Pois bem , bons irmãos ,

1 54
HENRIQUE IV - PARTE II s .;

Ficai tristes , mas não além da medida


De um fardo comum que pesa a todos nós .
Por mim , podeis em nome dos céus estar certos
De que serei vosso pai e também vosso irmão .
Dai-me o vosso amor, e eu vos livro de cuidados .
Mas chorai a morte de Henrique , como eu faço ;
Porém é vivo o Henrique que essas lágrimas
Uma a uma há-de tomar em horas de alegria.

IRM Ã OS Não esperamos outra coisa de Vossa Majestade .

PR ÍNCIPE Todos me olhais com estranheza. - Vós , sobretudo:


Estais certo , creio , de que não gosto de vós .

JUIZ Estou certo de que , se for bem avaliado ,


Não há razão para o ódio de Vossa Majestade .

PR ÍNCIPE Não? Como esqueceria um confiante príncipe


As grandes infâmias de que me culpastes?
Como? Ralhar, repreender e pôr na prisão
O herdeiro de Inglaterra? Achais isso fácil?
Pode isto ser mergulhado no Letes e esquecido?

JUIZ Era a pessoa de vosso pai que eu ostentava:


A imagem do seu poder assentava em mim;
E na administração da sua lei ,
Enquanto eu cuidava da comunidade ,
Vossa Alteza com mofa esquecia o meu lugar,
A majestade e a força da lei e da justiça,
A imagem do Rei por mim representada,
E agredia-me na sede mesma do juízo;
Por isso , como agressor do vosso pai ,
Mandei prender-vos , dando pleno uso
À minha autoridade . Se o acto foi errado ,
Ficaríeis contente , agora usando a grinalda,
Se um filho a nada vos reduzisse os decretos?
Se apeasse a justiça do vosso augusto trono?

1 55
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .2

Se rasteirasse a lei e embotasse a espada


Que guarda a vossa paz e segurança?
E mais , se espezinhasse a vossa real imagem
E vos aviltasse em quem vos representa?
Sondai vosso real saber, fazei o caso vosso , 90

Sede agora o pai e presumi um filho ,


Ouvi vossa dignidade a ser tão profanada,
Vede as vossas temíveis leis tão apoucadas ,
Vede-vos assim desdenhado por um filho;
Imaginai-me então a tomar vosso lugar
E em vosso nome a calar, brando , vosso filho .
Depois de fria reflexão sentenciai-me ,
E, enquanto rei , dizei nessa condição
O que fiz eu de impróprio do meu lugar,
Da minha pessoa, ou do meu suserano? 1 00

PRÍNCIPE Vós sois a Justiça, e avaliais bem .


Continuai a ostentar a balança e a espada ,
E só desejo que as vossas honras aumentem
Até viverdes para ver um filho meu
Ofender-vos e obedecer-vos como eu fiz.
Viva eu para dizer as palavras de meu pai:
«Estou feliz por ter um homem tão audaz
Que ousa justiçar meu próprio filho;
E não menos feliz por ter tal filho ,
Capaz de assim ceder a sua grandeza.» 1 10

Vós entregastes-me às mãos da justiça -


Por isso entrego eu às vossas mãos
A imaculada espada que por vós era usada,
Com este memorando: que vós a useis
Com o mesmo espírito audaz , justo e imparcial
Que tivestes para comigo . Eis a minha mão:
Sereis como um pai para a minha juventude ,
A minha voz dirá o que me segredardes ,
O s meus intentos curvar-se-ão humildes
Às vossas sábias e experientes instruções . 1 20

E acreditai-me , Príncipes , vos rogo ,

1 56
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .2

Meu pai foi inquieto para o túmulo


Porque com ele se enterraram meus afectos .
E seriamente sobrevivo com seu espírito
Para defraudar as expectativas do mundo ,
Para frustrar profecias , e para arrasar
A infecta opinião , que me depreciou
Pelas minhas aparências . A maré do sangue
Subiu em mim altiva em vaidade até agora;
Agora retoma, e baixa de volta ao mar, 1 30

Onde se há-de juntar ao esplendor das águas


Passando a fluir em formal majestade .
Vamos convocar do parlamento a alta corte ,
E escolher membros de nobre conselho
Tais que o grande corpo do nosso Estado avance
Ao lado da nação mais bem governada;
Que possam ser a guerra, a paz , ou ambas juntas ,
Coisas conhecidas e para nós familiares ;
N o que vós , pai , tereis mão principal .
Após a coroação mandaremos chamar, 140

Como antes lembrei , todo o nosso Estado ,


E, assim Deus confirme os meus bons propósito s ,
Nem par nem príncipe dirão que mais valia
Que , à vida feliz de Henrique , Deus tirasse um dia.

Saem

Cena 3

Entram Falstaff, Baixio, Silêncio, Davy, Bardolph e o Pajem

BAIXIO Não , tendes de vir ver o meu pomar, e vamos lá ar­


ranjar uma sombra onde comer uma maçã da minha
enxertia, com uns bolinhos de cominhos , e por aí
adiante - vamos , primo Silêncio - e depois , cama .

1 57
WILLIAM SHAKESPEARE 5.3

FALSTAFF À fé de Deus que tendes aqui uma boa casa, e rica.

BA1x10 Tudo maninho , maninho , maninho; todos uns mi­


seráveis , todos uns miseráveis , Sir John . Nossa Se­
nhora, que bom ar. - Estende Davy, estende , Davy,
muito bem , Davy.

FALSTAFF Este Davy presta-vos bons serviços : é criado e trata- 10

-vos das terras .

BAIXIO Um bom serviçal , um bom serviçal , um bom servi­


çal , Sir John . Pela santa missa, bebi de mais à ceia .
Um bom serviçal . Agora sentai-vos , agora sentai­
-vos . - Vamos , primo .

SILÊNCIO [canta] Ah , diz ele , vamos lá gentes ,


Comer e beber contentes ,
Louvemos o Senhor
Pelos tempos alegres,
A carne é barata 20

E caras as mulheres;
Rapazes viçosos
Andam cá e lá
Tão alegremente ,
Sempre alegremente .

FALSTAFF Isso é que é um coração alegre , bom Mestre Silên­


cio ! Vou já beber à vossa saúde .

BAix10 Deita vinho a Mestre Bardolph , Davy.

DAVY Bom senhor, sentai-vos - eu já vou ter convosco .


Meu muito bom senhor, sentai-vos . Mestre pajem, 30

bom mestre pajem , sentai-vos . Bom proveito ! Pre­


cisais de comida , vem aí a bebida, mas tendes de
aguentar. O coração é tudo !

[Sai]

158
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .3

BAIXIO Alegrai-vos , Mestre B ardolph , e tu aí, soldadinho ,


alegra-te .

SILE NCIO [canta] Venha alegria, alegria,


A minha mulher tem tudo;
As mulheres são feras ,
Pequenas e grandes .
É festa n a sala, 40

Co' as barbas a dar,


Venha alegre o Carnaval ,
Venha alegria, alegria.

FALSTAFF Nunca pensei que Mestre Silêncio fosse deste calibre .

SILE NCIO Quem , eu? Eu já por uma vez ou outra estive alegre .

Entra Davy

DAVY Aqui tendes um prato de rainetas .

BAIXIO Davy !

DAVY Vossa Senhoria, já vou ter convosco . - Senhor, um


copo de vinho .

SIL E NCIO [canta] Um copo de vinho , 50

Que é bom e arisco ,


À tua saúde ,
Que saíste fresco .
Alegre , o coração vive mais tempo .

FALSTAFF Bem dito , Mestre Silêncio .

SILE NCIO E vamos ficar alegre s , vem aí o melhor da noite .

FALSTAFF Saúde e longa vida é o que vos desej o , Mestre Si-


lêncio .

1 59
WILLIAM SH AKESPEARE 5 .3

s1LêNc10 [canta] Enche lá o copo e passa-o ,


Uma milha dele eu bebo . 60

BA1x10 Bem-vindo , honesto B ardolph . Se precisares de al­


guma coisa e não a pedires , diabos te levem . [Pa­
-

ra o Pajem] Bem-vindo , meu ladrãozinho , e muito

bem-vindo . Vou beber a Mestre B ardolph e a todos


os cabilleros de Londres .

DAVY Só queria ver Londres uma vez antes de morrer !

BARDOLPH Eu podia levar-vos lá, Davy !

BAIXIO Pela santa missa, vós à vossa conta entornais dois


quartilhos de uma assentada, não , Mestre B ardolph?

BARDOLPH Sim, senhor, uma vasilha de canada. 70

BAIXIO Pelas coisinhas de Deus vos agradeço: o sacana não


vos vai largar, disso podeis estar certo . Não vos vai
deixar, não , que ele é bem formado .

BARDOLPH E eu também não o largo .

BAIXIO E assim falou um rei : nada vos falte , haja alegria.


Batem à porta
Ei lá, vejam quem está a bater à porta; quem é?

FALSTAFF Ah , agora sim , estou bem acompanhado .

SILÊNCIO [canta] Agora, bem acompanhado ,


Armai-me cavaleiro ,
Samingo . 80

Não é assim?

FALSTAFF É assim .

1 60
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .3

SILÊNCIO É assim? Bom , então digamos que um velho ainda é


capaz de fazer qualquer coisa.

DAVY Se Vossa Senhoria dá licença , está aí um tal Pistola


vindo da corte com notícias .

FALSTAFF Da corte? Manda-o entrar.


Entra Pistola
Então , Pistola?

PISTOLA Sir John , Deus vos salve .

FALSTAFF Que ventos vos trazem cá, Pistola? 90

PISTOLA Não é o mau vento que não sopra a favor de nin-


guém; bom cavaleiro , tu és agora um dos maiores
homens deste reino .

SILÊ NCIO Por Nossa Senhora , também acho que é, se não se


contar o bom do Bojudo de Barson .

PISTOLA Bojudo? Na tua fuça, meu traidor cobardolas !


Sir John , teu Pistola eu sou , e teu amigo ,
A trouxe-mouxe corri eu para aqui ,
E notícias trago , e júbilos felizes ,
E tempos dourados , boas-novas chorudas . 1 00

FALSTAFF Agora só te peço , dá-as a conhecer como pessoa


deste mundo .

PISTOLA Que se lixe o mundo mailos abjectos mundanos !


Eu falo de África e de júbilos dourados .

FALSTAFF Ó pífio cavaleiro assírio , que novas trazes?


Que o rei Cofétua saiba delas a verdade .

SILÊNCIO [canta] E o Robin dos Bosques e o Scarlet e o João .

161
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .3

PISTOLA Rafeiros malcheirosos a defrontar as Musas?


As boas-novas a serem aldrabadas?
Poisa a cabeça, Pistola, no colo das Fúrias ! 110

BAIXIO Digno fidalgo , não sei da vossa condição .

PISTOLA Pois é quanto perdeis .

BAIXIO Peço perdão , senhor. Se vós vindes, senhor, com no-


tícias da corte , tenho para mim que só há dois ca-
minhos , ou dar-lhes voz ou ocultá-las . Eu tenho , se-
nhor, alguma autoridade conferida pelo Rei .

PISTOLA E por qual Rei , bisonho? Ou falas ou morres .

BAIXIO Pelo rei Henrique .

PISTOLA Henrique Quarto ou Quinto?

BAIXIO Henrique Quarto .

PISTOLA Um chavo pelo teu posto !


Sir John , o teu temo cordeiro é agora Rei : 1 20

É Henrique Quinto , e o que eu digo é verdade .


Quando Pistola mentir, façam-me figas , como
O fanfarrão espanhol .

FALSTAFF Como? O Rei velho morreu?

PISTOLA Como prego a ir ao fundo . O que eu digo é certo .

FALSTAFF Vamos , B ardolph , sela-me o cavalo ! - Mestre Ro­


berto B aixio , escolhe o posto que nesta terra quise­
res : é teu . - Pistola, hei-de carregar-te a dobrar com
honrarias .

BARDOLPH Oh , dia de júbilo . Não trocava a minha sorte por um


título de cavaleiro ! 1 30

1 62
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .3

PISTOLA Então , trago ou não boas notícias?

FALSTAFF Levem o Mestre Silêncio para a cama . Mestre Bai­


xio , meu Lorde B aixio , sê o que quiseres: eu sou o
despenseiro da fortuna. Enfia as botas , vamos caval­
gar toda a noite . Ó meu doce Pistola ! Despacha-te ,
B ardolph .
[Sai Bardolph]
Vem, Pistola, diz-me mais coisas e no meio delas en­
gendra alguma que te dê proveito . - As botas , as
botas , Mestre Baixio ! Sei que o jovem rei está doido
por me ver. Vamos pegar em cavalos sem olhar aos 1 40

donos , as leis de Inglaterra estão às minhas ordens .


Ditosos os que foram meus amigos , e coitado do
Juiz-Mor do Reino !

PISTOLA Que os brutos abutres também lhe roam os bofes !


Onde está a vida que eu levava, dizem;
Pois aqui está: bem-vindos estes ricos dias !

Saem

Cena 4

Entram a Hospedeira Dona Despachada, Dora Rompelençóis


e Bedel

HOSPEDEIRA Não , meu notório bandalho , quisera Deus que eu


pudesse morrer, para te poder ver enforcado . Deslo­
caste-me um ombro .

BEDEL Os guardas entregaram-ma e vai levar um festival


de chicotadas , isso lho garanto . Houve um ou dois
homens mortos por causa dela.

1 63
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .4

DORA Meu pau de virar tripas , é mentira, meu pau de virar


tripas . Anda daí que eu digo-te como é , meu estupor
cara de bandulho: se a criança que trago abortar, era
melhor para ti se tivesses batido na tua mãe , miserá- 10

vel cara-de-papelão .

HOSPEDEIRA Ó meu Deus, ai se Sir John aparecesse ! Havia de


fazer deste dia um dia sangrento para alguém . Mas
queira Deus que o fruto do seu ventre aborte .

BEDEL Se abortar voltareis a ter uma dúzia de almofadas :


agora só tendes onze . Vamos , ordeno-vos a ambas
que me acompanheis , pois morreu o homem em
quem vós e o Pistola batestes.

DORA Eu digo-vos como é , meu magricelas de incensório:


hei-de mandar dar-vos uma boa carga de porrada por 20

isto , sacana de vareja-azul , meu imundo corrector fa­


minto: se não apanhardes uma carga de porrada , eu
deixo de usar saias .

BEDEL Vamos , vamos , cavaleira andante , vamos .

HOSPEDEIRA Ó meu Deus , ver assim a força da lei a impor-se à lei


da força ! Bem , o sofrimento alivia.

DORA Vamos , meu sacana, vamos , levai-me a um juiz .

HOSPEDEIRA Pois , vamos , meu sabujo famélico .

DORA Senhor morte , senhor ossos .

HOSPEDEIRA É s um anátomo , é o que és . 30

DORA Vamos , coisa fininha, vamos , meu patife .

BEDEL Muito bem .


Saem

1 64
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .5

Cena 5
Entram três Serviçais a espalhar juncos

PRIMEIRO
S ERVIÇAL Mais juncos , mais juncos !

SEGUNDO
SERVIÇAL As trombetas já soaram duas vezes .

TERCEIRO
SERVIÇAL Às duas da tarde estão de volta da coroação . Despa-
chem-se , despachem-se !

Saem

Soam trombetas e o Rei e o seu séquito atravessam o palco .


Depois deles entram Falstaff, Baixio, Pistola, Bardolph e o Pajem .

FALSTAFF Ficai ao p é de mim , Mestre Baixio; farei com que o


Rei vos dê a sua graça. Eu dou-lhe só uma olhadela
quando ele passar, e haveis de ver a boa cara que ele
me faz .

r1sTOLA Deus te abençoe os pulmões , bom cavaleiro .

FALSTAFF Chegai aqui , Pistola, ficai atrás de mim . - Oh , ti- 10

vesse eu tido tempo para mandar fazer novas librés e


teria aplicado as mil libras que me emprestastes; mas
não faz mal : é melhor este aspecto pobre , dá para
inferir o entusiasmo que tive em vê-lo .

BAix10 Pois é .

FALSTAFF Mostra a probidade d a afeição . . .

PISTOLA Pois é .

1 65
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .5

FALSTAFF A minha devoção . . .

PISTOLA Pois , pois , pois .

FALSTAFF Como se tivesse cavalgado dia e noite sem parar para 20

pensar, ou para recordar, sem ter paciência para me


mudar . . .

BAIXIO De certeza que assim é melhor.

FALSTAFF E aparecer enlameado da viagem , a suar de desejo


de o ver, sem pensar noutra coisa, a remeter para o
esquecimento tudo o resto , como se nada mais hou-
vesse a fazer senão vê-lo .

PISTOLA É semper idem , porque obsque hoc nihil est; é assim


em toda a parte .

BAIXIO Assim é , com efeito . 30

PISTOLA Cavaleiro meu , inflamarei teu nobre fígado ,


E em fúria te porei .
A tua Dora , Helena em teu nobre cogitar,
Está em vil cativeiro e infecta prisão ,
Para lá arrastada
Por mãos muito ordinárias e imundas .
Desperta a Vingança do ebâneo covil com a feroz
cobra de Alecto ,
Que a Dora foi dentro . Quem o diz é Pistola.

FALSTAFF Hei-de libertá-la .

Soam trombetas

PISTOLA O mar rugiu , soa o clangor da trombeta . 40

Entram o Rei e o seu séquito

1 66
HENRIQUE IV - PARTE II 5 .5

FALSTAFF Deus salve a tua graça, meu Hal , meu real Hal .

PISTOLA Os céus te guardem e protejam,


Mui real filhote da fama .

FALSTAFF Deus te salve , meu querido rapaz .

REI Juiz-Mor, falai a esse presunçoso .

JUIZ Estais bom da cabeça? Sabeis a quem falais?

FALSTAFF Meu Rei , meu Júpiter, meu coração , falo contigo .

REI Não sei quem és , ó velho . Vai às tuas rezas .


Que mal ficam as brancas a um tolo e um bufão !
Sonhei por muito tempo com um homem assim , so

Inchado à sobreposse, assim velho e profano ,


Mas agora acordado desprezo esse sonho .
Olha menos ao corpo e mais à graça,
Deixa a gulodice , que se arreganha o túmulo
Três vezes mais para ti do que para os outros .
Não me respondas com gracejo de tolo ,
Não me presumas a mesma coisa que eu era ,
Pois Deus bem sabe - e o mundo há-de perceber -
Que eu mandei embora a minha antiga pessoa;
E o mesmo farei com quem me acompanhava . 60

Quando ouvires dizer que sou como antes fui ,


Chega-te a mim , e serás como antes foste ,
O tutor e provedor dos meus desmandos;
Exilo-te até então , sob pena de morte ,
Como fiz aos outros desencaminhadores ,
Para além de dez milhas da minha pessoa .
Será garantida a vossa subsistência ,
Para que a falta de meios não vos force ao mal ;
E quando houver notícias da vossa reforma,
Consoante os vossos créditos e qualidades , 10

Tereis melhores condições . - Tratai , senhor,

1 67
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .5

De fazer cumprir o teor da minha fala .


Vamos .

Sai o Rei [e o séquito]

FALSTAFF Mestre B aixio , estou a dever-vos mil libras .

BAIXIO Ó minha Nossa Senhora, só vos peço , Sir John , que


mas deixeis levar para casa.

FALSTAFF Não vai ser fácil , Mestre B aixio . Mas não vos afli­
jais . Ele vai mandar chamar-me em privado . Estais a
ver, ele perante o mundo tem de aparentar isto . Mas
não receeis pelos vossos adiantamentos: eu ainda so

hei-de ser o homem que vos fará grande .

BAIXIO Não estou a ver como , a não ser que me deis o vos­
so gibão e o atafulheis de palha . Rogo-vos , bom Sir
John , deixai-me levar quinhentas das minhas mil li­
bras .

FALSTAFF Senhor, estarei à altura da minha palavra . Tudo o que


ouvistes soa a recado falso .

BAIXIO No cadafalso receio eu que acabeis , Sir John .

FALSTAFF Não receeis o falso , vinde jantar comigo . Vamos , Te­


nente Pistola, vamos , Bardolph . Hei-de ser chamado 90

logo que seja noite .

Entram o Juiz-Mor do Reino e o Príncipe John [, com oficiais]

JUIZ Vamos , levem Sir John Falstaff para a prisão ,


Levem com ele todos os seus companheiros .

FALSTAFF Meu senhor, meu senhor. . .

1 68
HbN Kll,,/ U b ! Y - t'AK ! b ll ) .)

JUIZ Não posso falar agora, em breve vos oiço .


Levem-nos daqui .

PISTOLA Si fortuna me tormenta, spero me contenta .

Saem [todos menos o Príncipe John e o Juiz-Mor do Reino]

JOHN Gosto deste justo procedimento do Rei:


Ele quer que os seus useiros seguidores
Sejam devidamente aprovisionados , 1 00

Mas a todos exila até que os seus tratos


Se mostrem ao mundo mais graves e assisados .

JUIZ E assim se faz .

JOHN O Rei convocou o parlamento , senhor.

JUIZ Assim é .

JOHN Aposto que este ano não chega ao final


Sem as armas civis e a chama nacional
Levarmos a França . A um pássaro o escutei ,
Cuja música, a meu ver, agradou ao Rei .
Vamo-nos então daqui? 1 10

Saem

1 69
EPÍLOGO

Primeiro foi o medo , depois a vénia, por fim o discurso .


Medo do vosso desagrado , vénia por dever, e o discurso é para
vos pedir perdão . Se estais agora à espera de um bom discurso ,
desgraçais-me , porque o que tenho a dizer é de minha própria gra­
ça; e o que tiver a dizer receio que seja a minha ruína. Mas vamos
ao assunto , e assim à aventura . Há-de ser do vosso conhecimento ,
e muito bem o é , que ainda há pouco tempo aqui estive , no fim
de uma desagradável peça, a rogar para ela a vossa paciência e a
prometer-vos uma melhor. Foi minha intenção retribuir-vos com
esta , e se por má ventura ela resultar mal , é a minha falência e, 10

meus caros credores, o vosso prejuízo . Prometi estar aqui , e aqui


ponho a minha pessoa à vossa mercê: dai-me um abatimento e eu
pago alguma coisa e , como fazem muitos devedores , faço promes­
sas sem fim. E assim ajoelho diante de vós , se bem que em verdade
o faça para rezar pela rainha .
Se pela língua não vos ganho a indulgência, será que me dais or­
dens para usar as pernas? E essa haveria de ser leve retribuição , pagar
a dívida a dançar. Mas uma boa consciência será a maior retribuição ,
e assim há-de ser a minha. Todas as damas aqui presentes me perdo­
aram já; não o façam os cavalheiros e estarão em desacordo com as 20

damas , coisa que nunca se viu em assembleias destas .


Só mais uma palavra, vos rogo: se não vos achais já muito em­
panturrados de carne gorda, o vosso modesto autor vai continuar a
história com Sir John dentro dela e pôr-vos bem-dispostos com a bela
Catarina de França, e tanto quanto sei Falstaff há-de então morrer de
WILLIAM SHAKESPEARE

um suadouro , a menos que entretanto as vossas duras críticas acabem


com ele; é verdade que Oldcastle morreu mártir, mas este não é o
mesmo homem . Já tenho a língua exausta; quando também tiver as
pernas , há-de ser altura de vos dar as boas-noites .

1 72
Notas
Advertência: Os números que precedem cada entrada correspondem aos
das linhas no Acto e Cena respectivos .

lntróito .32 - «até rente à morte» : o B oato inverte a realidade , já que na


B atalha de Shrewsbury foi o contrário que aconteceu , isto é , Hotspur foi
morto por Harry Monmouth , o Príncipe Hal (nascido na localidade de Mon­
mouth ) , fi lho mais velho do Rei Henrique IV, que saiu vitorioso enquanto
Douglas se pôs em fuga.

1 . 1 .42 - «a espora do jovem Percy estava fria» : Harry Percy, filho de Nor­
thumberland , era conhecido pelo cognome de Hotspur, que literalmente signifi­
ca «espora quente» . O cognome de Percy serve aqui , e na fala seguinte , para o
jogo de palavras com o seu nome .
1 . 1 . 1 28 - «Por três vezes matara a aparição do Rei » : em 1 Henrique IV
Douglas por mais de uma vez enfrenta e mata combatentes que se fazem passar
por Henrique IV, usando as mesmas roupagens do Rei .
1 . 1 . 1 34 - «do jovem Lancaster» : John de Lancaster, filho mais novo de
Henrique IV.
1 . 1 . 1 6 1 - No ln-Quarto esta fala de um verso aparece atribuída a «Vmfr.» ,
possivelmente referindo Sir John Unfreville , mencionado em 1 . 1 .34 , e que
alguns editores consideram que poderá ter sido o nome da personagem que
acabou designada como «Sir B ardolph» . No ln-Fólio o verso é simplesmente
eliminado . O verso seguinte é atribuído em ambos os textos a Lorde B ardolph ,
começando a fala de Morton no verso 1 63 . Têm sido propostos diferentes arran­
jos dos versos de modo a resolver o problema . Na presente tradução segue-se a
proposta de Melchiori para os versos 1 6 1 -5 .
1 . 1 . 1 9 1 - «uma dupla garantia» : o Arcebispo de York é , pelo seu cargo , um
lorde temporal e um lorde espiritual .
NOTAS

1 . 1 .205 - «raspado das pedras de Pomfret» : o sangue de Ricardo II , assas­


sinado no castelo de Pontefract (ou Pomfret) , é aqui tratado como uma relíquia
(Mel chiori 69) .
1 . 1 .208 - Henrique IV era Conde de B ullingbrook , ou B olingbroke .

1 .2 . 1 8- 1 9 - «assistido por uma ágata» : com pequenas figuras gravadas , a


ágata era usada para selo s , ou como jóia engastada em broches ou outros ade­
reços .
1 .2 .28 - «manter a face real pelo valor facial » : Falstaff joga com o segundo
sentido de «real» como moeda, que valia dez xelins , vinte vezes seis dinheiro s .
1 .2.37 - B ardolph , companheiro d e Falstaff que j á vem d e 1 Henrique IV,
nada tem que ver com o lorde do mesmo nome que apareceu na cena anterior.
1 .2 .39-40 - «com a língua ainda mais quente» : alusão à parábola do ho­
mem rico (o glutão) que deixa Lázaro morrer à fome à porta de sua casa e é
depois condenado ao inferno onde implora por uma gota de água que lhe refres­
que a língua (Lucas 1 6) .
1 .2 .40-4 1 - Aitofel era um conselheiro do Rei David que depois o traiu
(2 Samuel 1 5 - 1 7) .
1 .2 .43 - «cacholas polidas » : smoothy-pates , designação aplicada n a época
a comerciantes urbanos identificados com os puritanos , aos quais era associado
o hábito , ou a moda , de cortar o cabelo curto ; alguns anos mais tarde viriam
pela mesma razão a ser designados como «cabeças redondas» (round-heads) .
1 .2 .56 - Smithfield: lugar de Londres onde se realizava um mercado de
cavalos e de gado . Os cavalos comprados em Smithfield eram geralmente con­
siderados de má qualidade (Weis 1 34) .
1 .2 .5 8 - «em S ão Paulo» : a nave da primitiva Catedral de São Paulo (que
ardeu em 1 666) era usada como lugar onde se contratavam criados .
1 .2 .62-63 - «aquele nobre que mandou prender o Príncipe » : Shakespeare
alude à tradição , sem fundamento histórico , segundo a qual o Juiz-Mor (Lord
Chie/ Justice) teria mandado prender o Príncipe , por este o ter agredido .
1 .2 .67 - «por causa do roubo»: alusão ao assalto ocorrido em 1 Henrique IV.
1 .2 . 1 3 5 - «prender-vos pelos calcanhares» : prender no tronco . O tronco
era um bloco de madeira onde os condenados eram exposto s , presos pelos pés .
1 .2 . 1 42- 1 43 - O «escrúpulo» era uma medida farmacêutica de peso .
1 .2 . 1 46- 1 47 - Falstaff refere-se ao serviço militar, que o isenta das leis
civis . Alguns críticos sugerem que Falstaff aponta para a espada quando refere
o «douto conselho» (Melchiori 75) .
1 .2 . 1 5 7 - Samuel Johnson , o autor d o século xvm que fo i um dos maio­
res críticos literários ingleses e foi também editor de Shakespeare , disse fran­
camente a propósito deste passo: «Não entendo a piada .» Segundo um editor
contemporâneo , até hoje ninguém conseguiu ir mais longe do que Johnson na
interpretação desta frase de Falstaff (Davison 1 83 ) .

1 76
HENRIQUE IV - PARTE II

1 .2 . 1 6 1 - «na noite de Gad ' s Hill» : Gad 's Hill fora o lugar do assalto em
que Falstaff participara em 1 Henrique IV.
1 .2 . 1 67 - «cheirar uma raposa» : tinha o sentido de «ser desconfiado» .
1 .2 . 1 68- 1 69 - «como a vela» : há aqui um jogo de palavras intraduzível
- a fox, «uma raposa» , soa quase como of wax, «de cera» , de onde decorre a
associação com uma vela.
1 .2 . 1 7 1 - «O meu bom aspecto » : a esta relação entre o bom aspecto da vela
de cera em contraste com a de sebo junta-se no original o duplo sentido de wax,
«cera» e «crescer» , contrastando este último com a ideia de que «a melhor parte
está gasta» , avançada pelo Juiz.
1 .2 . 1 79 - «O vosso anjo» : o «anjo» era uma moeda de ouro , que quando
falsa era mais leve .
1 .2 . 1 9 1 - «pelo amargo das vossas bílis» : o fígado era considerado a sede
da paixão (amor e coragem) e a bílis a sede da ira (Melchiori 76) .
1 .2 .203 - «por volta das três da tarde» : um editor de Shakespeare , R. G.
White , sugeriu que Falstaff s e apresenta aqui como uma mera criação dramáti­
ca, aludindo ao facto de as representações teatrais começarem ao princípio da
tarde (Davison 1 85 ) .
1 .2 .2 1 4 - «de saco e com cinza» : Jesus censura a s cidades onde s e realiza­
ram milagres , por não se terem convertido - «Porque , se os milagres realiza­
dos entre vós tivessem sido feitos em Tiro e em Sídon , de há muito se teriam
convertido , vestindo-se de saco e com cinza» (Mateus 1 1 .2 1 ) .
1 .2 .2 1 5 - «seco velho» : « seco» ( sack) , o vinho preferido de Falstaff, um
vinho branco espanhol .
1 .2 .223-224 - «vosso amável engenhozinho» : Falstaff refere-se à separa­
ção entre ele e o Príncipe , insinuando que foi promovida pelo Jui z .
1 .2 .229 - «cuspir branco» : não é claro o significado d a expressão . O mais
provável é que a frase signifique «cuspir limpo» , ou seja, «saudavelmente»
(Davison 1 86) .
1 .2 .239 - «por um movimento perpétuo» : Falstaff compara um envelheci­
mento lento como o provocado pela ferrugem com o rápido desgaste do «movi­
mento perpétuo» da guerra exigido pela pátria. Uma grande parte desta fala de
Falstaff, que se encontra no ln-Quarto , foi eliminada no ln-Fólio , provavelmen­
te por ter sido considerada antipatriótica .
1 .2 .245 - «carregar a s cruzes» : 1 ) passar tribulações; 2) carregar dinheiro
(com referência às moedas de prata que tinham um cruz gravada numa das
faces) (Melchiori 78) .
1 .2 .247 - «Um malho de três homen s » : malho (para assentar pedras no pa­
vimento) que necessitava de três homens para o levantar.

1 .3 .4 - Lorde Marshal: Mestre-de-cerimónias , um título de cortesia.


1 .3 .89-90 - «Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as pratica é
semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra, sem alicerces .

1 77
NOTAS

A torrente arremessou-se contra ela e a casa imediatamente se desmoronou»


(Lucas 6, 49) .

2 . 1 .25 - Pie Comer era lugar de abate de porcos , cuja carne era aí também
cozinhada e vendida durante a feira de São B artolomeu . Esta poderia ser a razão
para o pedido de desculpas pela menção do lugar, mas há indícios de que Pie
Comer era também conhecido como lugar de prostituição (Davison 1 82 ) .
2 . 1 .50-5 1 - «Miserável homiciclo» : a o longo d e toda a cena é acentuada na
personagem da hospedeira a paródia do preciosismo linguístico - neste caso
a Senhora Despachada nunca conseguirá encontrar a palavra «homicida» que
afanosamente procura .
2 . 1 .56 - «um resgate ! » : os oficiais temem a possibilidade de alguém vir
resgatar o prisioneiro .
2 . 1 .88-89 - « sala do Golfinho»: as salas das estalagens e tabernas eram
conhecidas por nomes próprios .
2 . 1 .92 - «um cantor de Windsor>> : ignora-se o sentido desta referência . Po­
derá haver alusão a um cantor da capela real que se fez passar por Ricardo II
numa conspiração com vista à deposição de Henrique IV, como poderá tratar-se
de uma simples referência a um cantor da época conhecido pela sua gula (Weis
1 54) .
2 . 1 . 1 48 - «por onde agora se bebe» : o vidro começou a substituir o metal
na confecção de copos em finais do século xv1 .
2 . 1 . 1 5 8 - «Vinte nobres» : o nobre era uma moeda de ouro que valia cerca
de um terço da libra .

2 .2 . 1 5 - 1 6 - «OU reconhecer-te amanhã» : considerava-se degradante para


um nobre prestar atenção ao nome ou às feições dos comuns com quem contac­
tava (Melchiori 90) .
2 .2 .24 - «arranjou maneira d e te comer a holanda» : a s «terras baixas» , além
de referirem os Países Baixo s , significam , aqui e noutros passos de Shakes­
peare , os órgãos sexuais e, por extensão , o bordel ; holanda refere o país e um
fino tecido de linho usado para fazer camisas . A frequência do bordel por Poins
obrigou-o a empenhar ou vender as cami sas , ou a usá-las para vestir as crian­
ças resultantes da sua devassidão , como parece ser implicado pelas palavras
seguintes do Príncipe (Davison 200 ; Melchiori 9 1 ) .
2 .2 .46 - «dadas as circunstâncias» : considerando que a morte do pai traz
para o Príncipe a herança da coroa .
2 .2 .68-69 - «sou um segundo irmão» : só o primogénito era herdeiro , pelo
que um « segundo irmão» tinha de se fazer à vida .
2 .2 .69-70 - «sabe dar trato às mãos» : que é bom a combater com os punhos.
2 .2 .73-74 - «fez já dele um macaco» : na falta de indicações cénicas , têm
sido aventadas duas hipóteses para as palavras do Príncipe : 1 ) o Pajem maca-

1 78
HENRIQUE IV - PARTE II

queia as atitudes ou os gestos de B ardolph ; 2) o Pajem vem com roupas ridí­


culas , como as que era costume vestir aos macacos amestrados (Davison 20 1 ) .
2 .2 .84-85 - «dois buracos no corpete» : o corpete vermelho era uma insíg­
nia das prostitutas (Melchiori 92) . O tom vermelhusco da face de B ardolph ,
associado ao álcool , é objecto de motejo desde 1 Henrique N.
2 . 2 .92 - «ele é filho del a>> : o Pajem confunde Alteia com Hécuba, que antes
do nascimento de Páris sonhou que dava à luz um tição que consumiria Tróia.
Alteia foi avisada pelas Parcas de que o filho que trazia no ventre morreria
quando se consumi sse um certo tição que se encontrava no fogo . Alteia retirou
o tição e conservou-o numa arca até ao dia em que esse filho , Meleagro , matou
dois irmãos dela. Nesse momento Alteia lançou de o novo o tição no fogo .
2 .2 .96 - «seis dinheiros para te proteger» : alusão à cruz gravada nas moe­
das de seis dinheiros da época .
2 .2 . 1 20 - Jafet: o filho de Noé de quem descendem os gentios , entre os
quais se contam os europeus (Génesis 1 0 , 2-5 ) .
2 .2 . 1 24 - «isto é uma certidão» : numa carta a ordem deveria ser inversa,
primeiro o destinatário e depois o remetente; a certidão , em contrapartida , co­
meça com o nome de quem a passa.
2 .2 . 1 54 - «dos da velha igreja» : dissolutos como eram os efésios antes da
conversão (Efésios 5 .3- 1 8) .
2 . 2 . 1 6 1 - Touro da vila: touro de cobrição pertencente à comunidade (touro
do povo) .
2 .2 . 1 78- 1 79 - «O caso de Júpiter>> : Júpiter transformou-se num bonito touro
branco para seduzir Europa .

2 .3 .56 - «assim fez vosso filho» : também a vosso filho vós deixastes tentar
primeiro .

2 .4 . l - Maçãs de São João : qualidade de maçãs apanhadas pelo S ão João


para consumir mais tarde, já murchas e encarquilhadas .
2 .4 .2 1 - «boa temperalidade»: a hospedeira mistura têmpera (temperamen­
to) e qualidade .
2 .4 .22 - «vossa pulsagem» : pulsidge - não é só o pulso que bate , mas
todos os pulsos do corpo (Davison 207 ) .
2 .4 .34 - « u m mui digno rei» : Falstaff deturpa a balada popular «Sir Lance­
lote do Lago» , a qual diz: «Quando Artur chegou à corte / E foi aclamado rei .»
2 .4 .49 - «broches , pérolas e camafeus» : os nomes dos adereços femininos
referiam também na época carbúnculos e outras marcas deixadas por doenças
venéreas .
2 .4 .57-58 - «tão reumáticos como duas tostas secas » : a hospedeira parece
confundir os humores: o humor reumático é frio e húmido , o colérico é quente
e seco (Humphreys 67) .

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NOTAS

2 .4 .60 - «O vaso mais fraco» : uma imagem proverbial da mulher oriunda


da Versão Autorizada da B íblia em inglês ( 1 Pedro 3 .7 ) . Na versão portuguesa
da B íblia esta imagem perde-se , encontrando-se em seu lugar «de natureza mais
delicada» (Nova B íblia dos Capuchinhos) .
2 .4 .73 - «Se ele é rufião » : a hospedeira parece não conhecer bem o signifi­
cado do termo . Swagger («rufião») era um termo muito recente ao tempo desta
peça .
2 .4 . 1 35 - «dois cordões nos ombros» : os cordões que seguravam a armadu­
ra , mas também os nós que nos soldados maltrapilhos de Falstaff em 1 Henri­
que IV amarravam dois lenços em lugar da camisa (Melchiori 1 04) .
2 .4 . 1 36- 1 37 - «dou cabo do rufo » : Era costume as prostitutas usarem rufos
em volta do pescoço , e «rasgar o rufo» era calão para agressão sexual (Melchio­
ri 1 04) .
2 .4 . 1 49- 1 50 - « . . . e de bolos secos» : Dora insinua que ele vive de sobras ,
seja de bordéis ou de lojas de bolos (Weis 1 77 ) .
2 .4 . 1 5 1 - 1 52 - «tão odiosa como a palavra "ocupar" » : a palavra «ocupar>>
(occupy) tinha adquirido no século xv1 um sentido obsceno , o qual levou a que
caísse em desuso durante os dois séculos seguintes .
2 .4 . 1 60- 1 6 1 - «Ao maldito lago de Plutão» : nesta e nas falas de Pistola
que se seguem , Shakespeare parodia diversas peças do teatro do seu tempo . Na
repetida referência a «Irene» , algumas linhas abaixo , além da possível alusão
a um peça de teatro da época, Pistola refere ao mesmo tempo o nome que ele
próprio dá à sua espada . Embora tanto no ln-Quarto como no ln-Fólio estas
falas se encontrem em prosa, os editores modernos tendem a apresentá-las em
verso irregular. Segue-se aqui a apresentação de Melchiori .
2 .4 . 1 73 - «com Canibais» : Pistola confunde Aníbal , o herói cartaginê s ,
c o m «canibal» .
2 .4 . 1 89 - «Si fortune me tormente sperato me contento»: «Se a fortuna me
atormenta, a esperança me contenta.» Trata-se aparentemente uma mistura de
francês e italiano (ou espanhol) , que será repetida, com variações , no fim da
peça (última fala de Pistola) .
2 .4 . 1 93- 1 94 - «E os etceteras não são coisas ? » : tanto «etcetera» como
«coisa» (thing) referiam o órgão sexual feminino .
2 .4 .20 1 - «rocins de Galloway» : os rocins de Galloway (na Escócia) , cavalos
pequenos que eram facilmente montados, são aqui associados a Dora por Pistola.
2 .4 .234 - «OS nove heróis» : também conhecidos por «Nove da Fama» , são
nove figuras que correspondiam ao ideal de cavalaria da Idade Média: três pa­
gãos (Heitor, Alexandre e Júlio César) , três j udeus (Josué , David e Judas Maca­
beu) e três cristãos (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão) .
2 .4 .237 - «saltar dentro de um cobertor» : um castigo infligido aos cobardes .
2 .4 .244-245 - «como uma igrej a» : a imagem aparentemente implica que
Falstaff não saiu do sítio , deixando a B ardolph a tarefa de perseguir Pistola.

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HENRIQUE IV - PARTE II

2 .4 .245-246 - <<javardinho de S ão B artolomeu» : o porco assado era um


prato típico da feira de São B artolomeu .
2 .4 .260 - «ambos têm pernas do mesmo tamanho» : isto é , preocupam-se
com a aparência física.
2 .4 .26 1 - «congro com funcho» : o congro era considerado de difícil diges­
tão , enquanto ao funcho , para compensar, eram atribuídas propriedades diges­
tivas .
2 .4 .262 - «cotos de velas por asas de dragão » : trata-se de um jogo de
taberna em que objectos (podiam ser passas ou , neste caso , cotos de velas)
em chama flutuavam numa bebida alcoólica, que também podia estar em
chama. O jogo consistia em comer esses objectos ou em beber o líquido
(Davison 2 1 7) .
2 .4 .279 - « S aturno e Vénus em conjunção» : Saturno representa a velhice e

Vénus o amor. Os astrólogos acreditavam que estes planetas nunca estavam em


conjunção (Davison 2 1 8) .
2 .4 .28 1 - «trígono ígnea » : o trígono é u m grupo de três signos d o Zodíaco .
Carneiro , Leão e Sagitário constituem o trígono ígnea . A alusão aqui é mais
uma vez ao rosto vermelhusco de B ardolph .
2 .4 .28 1 -282 - «O livro de apontamentos e cofre . . . »: atributos que identifi­
cam a hospedeira .
2 .4 .324 - «em Gad 's Hill » : alusão a 1 Henrique IV, 2 .4 , quando a cobardia
de Falstaff no assalto em Gad's Hill é desmascarada e este afirma que não se
tinha defendido porque tinha reconhecido «por instinto» que o seu atacante era
o Príncipe disfarçado .
2 .4 .340 - «apaixonar por ti» : aparentemente Falstaff começa a frase a diri­
gir-se a Poins e acaba-a dirigindo-se ao Príncipe .
2 .4 .350 - «ulmeiro morto» : o ulmeiro era tradicionalmente associado ao
suporte das vinhas .
2 .4 .3 5 3 - «vermes da cerveja» : a designação «vermes da cerveja» (malt­
worms) refere «grandes bebedores» .
2 .4 . 3 5 8 -359 - «não sei se ela será condenada» : Falstaff refere-se à conde­
nação religiosa da prática da usura.
2 .4 . 3 8 2 - «como o vento sul» : pensava-se que o vento sul , associado ao
mau tempo , trazia nevoeiros nefastos .

3 .2 . 1 5 - «Colégio de São C lemente » : um colégio frequentado por estudan­


tes que não conseguiam acesso directo à Escola de Direito .
3 .2 . 1 22 - «Picai-o» : isto é , marcai o nome dele na lista .
3 .2. 1 76 - «tantos milhares» : aparentemente Falstaff refere-se aos piolhos
nas roupas de Verruga.
3 .2 .230 - «quatro henriques» : os henriques eram moedas cunhadas no rei­
nado de Henrique VII .

181
NOTAS

3 .2 .274 - «O balde do cervejeiro»: a frase original é considerada por todos


os editores como de significado obscuro - poderá ter tido um sentido idiomá­
tico que se perdeu .
3 .2 .275 - «este camarada de meia cara» : tão magro , ou tão «fino» , como os
perfi s , ou meia caras , cunhados nas moedas .
3 .2 .292 - «no espectáculo do Rei Artur>> : Dagonet era o bobo do Rei Artur
no espectáculo que era representado todos os anos em Mile End Green .
3 .2 .296 - «e outra vez vinha» : a recarga das armas era muito demorada
naquela época, por isso os atiradore s , dispostos em linha, depois de dispararem
corriam para a última linha para recarregarem as armas de modo a estarem
prontos a disparar quando a sua linha voltasse a ser a primeira .
3 .2 .3 1 6 - «Rua de Turnbuli» : um lugar frequentado por ladrões e prostitutas .
3 .2 .3 1 8 -3 1 9 - «a alcavala do turco» : dizia-se que quem se atrasasse no
pagamento das contribuições ao sultão era punido com a morte .

4 . 1 .90 - «Que par» : par do reino.


4 . 1 .96 - «morto sem sacramento » : este é um passo de interpretação pro­
blemática, sendo todo o verso omitido no ln-Fólio . Segue-se aqui a leitura de
Melchiori , baseada na emenda de J. B ulloch ( 1 87 8 ) : o irmão do Arcebispo ,
William Scroop , fora executado sumariamente a mando de Henrique IV (Mel­
chiori 1 3 5 ) .
4 . 1 . 1 25 - «quando o Rei lançou por terra o seu bastão» : o episódio e m que
Ricardo II impede o combate entre Norfolk e Bullingbrook é dramatizado por
Shakespeare em Ricardo // ( 1 .3 ) .
4 . 1 . 1 3 1 - Conde d e Hereford é o título dado a B ullingbrook e m Ricardo //.
4 . 1 . 1 9 8 - «De queixas fastiosas e miudinhas» : o verso é de difícil in­
terpretação e muitos editores suspeitam que tenha havido uma adulteração
irremediável do texto . Toma-se aqui por referência a leitura de A. R. Hum­
phreys ( 1 24) .
4 . 1 .405 - «brasas do firmamento » : na comparação de Falstaff, as «brasas
do firmamento» referem as estrelas .
4 . 1 .48 2-48 3 - «hei-de lacrar com ele» : hei-de moldá-lo aos meus interes­
ses , como se fosse cera.

4 .2 . 1 22 - «Filhos sem pai . . . » : crianças que não foram geradas por um pai
e que eram por vezes atribuídas às bruxas . Fenómenos anormais eram tomados
como prenúncio da morte de chefes políticos , como acontece em Júlio César.
4 .2 .228 - «de tão fraco vento» : pensava-se que as nuvens eram suportadas
no ar pelo vento .
4 .2 .29 1 - «em remédio potável»: referência a um líquido miraculoso , au­
rum potabile, um «licor de ouro» que teria propriedades de elixir da longa vida.

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HENRIQUE IV - PARTE II

5 . 1 .35 - «Roída que chegue está já a pele deles»: Davy refere-se à pele
mordida pelos piolho s .
5 . 1 .48 - « e m cada sessão d o tribunal» : a s sessões eram trimestrais .
5 . 1 .85 - « . . . sem intervalos para férias» : o ano judicial era dividido em
quatro período s . Falstaff sugere que as modas passam mais depressa do que
demoram as acções judiciais .

5 . 2 .48 - Murad III , imperador turco , mandou matar todos os irmãos quando
subiu ao trono em 1 574 , e o mesmo fez mais tarde o seu sucessor.
5 .2 .68 - «infâmias de que me culpastes» : as crónicas do reinado de Hen­
rique IV referem um episódio em que o Juiz-Mor do Reino manda prender o
Príncipe de Gales , futuro Henrique V.

5 .3 .80 - «Samingo»: citação de uma canção de taberna de origem francesa,


«Monsieur Mingo» = «Sir Mingo» .
5 .3 . 1 06 - «rei Cofétua» : a lenda de Cofétua, o Rei africano que se apaixo­
nou por uma pedinte , era assunto de baladas ao tempo de Shakespeare .
5 .3 . 1 0 8 - «a defrontar as Musas » : Pistola vê-se como uma musa desafiada
pela balada de Robin dos Bosques que Silêncio evoca.
5 .3 . 1 23 - «Ü fanfarrão espanhol» : fazer figas , ou «figas espanholas» , era
um gesto considerado indecoroso e insultuoso .

5 .4 .4-5 - «um festival de chicotadas» : as chicotadas eram o castigo infligi­


do às prostitutas .
5 .4 . 1 6 - «SÓ tendes onze » : o Bedel insinua que Dora finge a gravidez com
uma almofada.
5 .4 . 1 9 - «magricelas de incensório» : alusão às figuras gravadas em relevo
nos incensórios .
5 .4 . 2 1 - «vareja-azul» : os bedéis usavam uma casaca azul .

5 .5 .28-29 - «é assim em toda a parte » : Pistola apresenta uma tradução livre


de duas frases latinas , que significam «sempre igual» e «fora disto nada há» .

Epílogo . 1 7 - «usar as pernas » : era costume as representações teatrais en­


cerrarem com uma dança.

1 83
Índice

Introdução 9

Henrique N - Parte II 37

Notas 173
NESTA COLECÇÃO

1 . Romeu e Julieta
2 . Henrique IV - Parte I
3 . Henrique IV - Parte II

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