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Henrique IV

Parte 1
Relógio D' Água Editores
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Título: Henrique IV - Parte 1


Título original: Henry IV Part 1 (15 98)
-

Autor: William Shakespeare


Tradução, introdução e notas: Gualter Cunha
Revisão de texto: Anabela Prates Carvalho
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

© Relógio D' Água Editores, Julho de 2013

2 .3 edição revista

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ISBN 978-989-641-366-8

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Rainha & Neves, Lda./ Sta. Maria da Feira
Depósito Legal n.º 362619/13
William Shakespeare

Henrique IV
Parte 1

Tradução, introdução e notas de


Gualter Cunha

Projecto Shakespeare
Projecto Shakespeare

A colecção «Projecto Shakespeare» resulta de um protocolo esta­


belecido entre os membros do grupo de investigação Shakespeare e
o Cânone Inglês, do CETAPS - Centre for English, Translation and
Anglo-Portuguese Studies (pólo da Faculdade de Letras da Univer­
sidade do Porto), e a editora Relógio D'Água, e tem como objectivo
a publicação da tradução integral da obra dramática de William
Shakespeare . O projecto, coordenado por Manuel Gomes da Torre,
distingue-se pela vontade de dar resposta ao crescente interesse que
a dramaturgia shakespeariana tem suscitado no nosso país, materia­
lizado num conjunto de traduções desigualmente distribuídas pela
obra do dramaturgo . Pretende-se, com esta colecção, oferecer uma
imagem actual e coerente da obra dramática de Shakespeare, atra­
vés de um plano de tradução que obedece a critérios amplamente
discutidos e rigorosamente definidos, e que beneficia de um aturado
estudo sobre o autor, o seu tempo e a sua obra .
Trata-se, pois, de um projecto de tradução que inclui também uma
forte componente investigativa e que implica um cuidadoso trabalho
de crítica textual, já que a fixação do próprio texto em língua ingle­
sa nem sempre gera consenso . As traduções são sempre objecto de
discussão por parte dos membros do projecto, embora realizadas
individualmente, sendo portanto da exclusiva responsabilidade do
tradutor que as assina . As dúvidas de interpretação, a .fundamenta­
ção cultural e histórica e as opções de tradução encontram-se des­
critas nas notas ao texto; e o ensaio introdutório, além de dar conta
da recepção da obra ao longo dos tempos e de oferecer uma análise
dos temas mais relevantes da peça em foco, procura situar o texto
dramático em relação à cultura portuguesa, nomeadamente no que
respeita às traduções produzidas e às peças levadas a cena .
Em todos os casos, procurou-se trazer Shakespeare para o século
xx1, tornando-o inteligível para a nossa cultura e para o nosso idio­

ma, ao mesmo tempo que se procurou tornar evidente a dimensão


histórica e transcultural da sua obra .
Introdução

1 - Henrique IV: do histórico ao literário

Os organizadores da primeira colecção da obra dramática de


Shakespeare, publicada em 1623 (sete anos depois da morte do
autor), intitularam-na As Comédias , Histórias e Tragédias do Sr.
William Shakespeare, procedendo assim a uma divisão tripartida da
obra que, embora por vezes discutida, se tem mantido ao longo dos
tempos como forma de arrumação mais ou menos consensual dos
textos escritos para o teatro por este autor. 1 A designação de «peças
históricas», que a partir do século xvmfoi gradualmente substituin­
do a original designação de «histórias», aplica-se especificamente
às dez obras dramáticas de Shakespeare cuja acção se centra em
figuras e episódios da história de Inglaterra e entre as quais se inclui
o presente 1 Henrique IV.2

John Dryden, geralmente considerado como o mais importante


poeta e crítico literário inglês das últimas décadas do século xv11,
considerou estas obras como simples «crónicas de reis», dando as­
sim o mote para uma atitude crítica de relativa desvalorização das

1 Trata-se de Mr William Shakespeares Comedies, Histories, & Tragedies, mais co­


nhecido pela designação de First Folio (Primeiro ln-Fólio), por ser a primeira edição
in-fólio da obra de Shakespeare.
2 Adopto aqui a nomenclatura estabelecida no âmbito dos estudos de Shakespeare para
designar diferentes peças quando estas têm por título o nome do mesmo rei, o que acon­
tece com duas séries: Henrique IV (Partes 1 e II) e Henrique VI (Partes 1, II e III).
INTRODUÇÃ O

peças históricas de Shakespeare quando comparadas com as tra­


gédias e as comédias. À luz dos critérios de avaliação literária do­
minantes no século xvm e ainda influentes pelo menos em parte do
século seguinte, as peças históricas são produtos estéticos no míni­
mo incaracterísticos e no máximo híbridos, já que a sua construção
não aparece determinada por princípios de organização, ou regras,
identificadores de um género literário específico, como a tragédia ou
a comédia, sendo em vez disso dirigida por critérios de fidelidade
histórica por natureza alheios a qualquer plano de ordem técnico­
-formal. Embora este modelo de perspectivação crítica seja para nós
historicamente datado, sendo hoje o entendimento teórico das for­
mas e dos géneros literários bastante mais complexo (ou pelo menos
mais confuso), ele aponta contudo para diferenças que distinguem as
peças históricas das restantes, tanto no domínio das formas como no
domínio dos conteúdos. Estas diferenças são de resto evidenciáveis
desde logo pelos títulos das peças: enquanto os nomes próprios que
dão título às tragédias referem as personagens cujos destinos trági­
cos constituem os factores determinantes de toda a organização dra­
mática, pelo que se pode considerar a relação entre o título e a obra
como uma relação de ordem formal, no caso das peças históricas o
nome próprio do título designa apenas a figura hierárquica suprema
dentro da ordem política que serve de motivo e material fundamen­
tal da acção. Por sua vez, a necessidade de integração da acção
dentro de parâmetros de fidelidade histórica, ainda que estes sejam
de latitude muito variável, impõe limites à imaginação do autor na
elaboração dos conteúdos da intriga, ao mesmo tempo que por outro
lado o obriga a criar factores de expectativa que se sobreponham à
previsibilidade inerente à reconstituição histórica: o resultado dos
conflitos entre Henrique IV e os seus oponentes é do conhecimento
prévio (pelo menos virtual) dos leitores/espectadores, não podendo
as batalhas ser vencidas na peça por quem historicamente as perdeu,
o que impõe limites à construção da intriga que não existem, por
exemplo, em Otelo ou em Rei Lear.
Estas diferenças não têm um carácter teórico para efeitos de uma
definição de géneros, devendo antes ser consideradas como corres­
pondendo a gradações empíricas de traços característicos de um
grupo de peças: as chamadas «peças romanas», como Júlio César

10
HENRIQUE IV - PARTE l

ou António e Cleópatra, impõem limites até certo ponto análogos


aos das peças históricas, embora sejam consideradas tragédias, en­
quanto nada obsta a que uma peça histórica como Ricardo III seja
igualmente considerada uma tragédia . Mas no caso de 1 Henrique
IV a identificação destes traços característicos da peça histórica
permite enquadrar factos que de outro modo poderiam ser conside­
rados anómalos, seja a relativamente menor importância na acção
dramática da personagem do título , Henrique IV, quando compara­
da com o seu filho Hal, com Henry Percy ou com Falstaff, ou seja
a sobreposição de expectativas de ordem épica, trágica e cómica à
representação dos conflitos políticos que do ponto de vista da re­
constituição histórica motivam a peça .
Na medida em que reconstituem e perspectivam um determinado
período da história de Inglaterra, as duas peças que têm por título
Henrique IV (Partes I e II) costumam ser integradas numa sequência
abrangente de uma vasta época correspondente à fase final da Idade
Média, caracterizada pelas lutas pelo poder que envolvem facções
da nobreza e que no século xv culminam nas chamadas Guerras das
Rosas3• O fim destes conflitos verificou-se em 1485, com o início da
dinastia Tudor, à qual pertencia Isabel I, rainha ao tempo desta obra
(a vida e a obra de Shakespeare haveriam de continuar para além
do tempo de Isabel I, entrando no reinado de Jaime I, iniciador da
dinastia Stuart). Cerca de um século depois do fim das Guerras das
Rosas, a dinastia Tudor aparecia como uma salvação providencial,
traduzida no fim das lutas fratricidas do século xv e instauradora de
um tempo de unidade nacional, de prosperidade social e de afirma­
ção internacional da Inglaterra, enquanto por sua vez o reinado de
Isabel I era concebido como o ponto culminante deste movimento
ascensional da nação inglesa .
Tanto quanto se sabe, as primeiras obras dramáticas escritas por
Shakespeare são precisamente as peças históricas que têm por as­
sunto as Guerras das Rosas: Henrique VI, um título correspondendo
a três peças distintas (três partes) e Ricardo III, cuja acção se con-

3 Assim designadas por corresponderem ao confronto entre as casas de York e de Lan­


caster, que respectivamente tinham por emblemas uma rosa branca e uma rosa vermelha.
Estes elementos do imaginário nacional inglês são em grande parte criação da obra de
Shakespeare.

11
INTRODUÇÃ O

clui com a ascensão de Henrique VII, .fundador da dinastia Tudor,


sendo habitual designar este conjunto de quatro peças por primei­
ra tetralogia histórica. As duas partes de Henrique IV costumam
ser por sua vez integradas na chamada segunda tetralogia, iniciada
com Ricardo II e completada com Henrique V, a qual historicamen­
te corresponde ao período imediatamente anterior ao abordado na
primeira tetralogia. Esta ordenação de oito das dez peças históricas
(as duas restantes são Rei João e Henrique VIII) supõe um hipotético
plano de Shakespeare para uma vasta representação dramática do
que o historiador e crítico E. M. W. Tillyard considerou uma epopeia
da Inglaterra, que daria corpo ao chamado «mito Tudor» , segun­
do o qual a subida ao trono de Henrique VII corresponderia a um
plano providencial de redenção. Dentro deste esquema providencial
haveria uma primeira culpa consubstanciada no acto de usurpação
e assassínio de Ricardo II que leva Henrique IV ao trono, ao que se
teria seguido um longo período de expiação marcado pelas dissen­
sões internas e guerras fratricidas que caracterizam as dinastias de
Lancaster e de York (desde Henrique IV até Ricardo III), até que
finalmente a ordem civil e a unidade nacional são restauradas e a
legitimidade política é recuperada pela união das facções desavin­
das e pela supressão e superação dos seus conflitos iniciadas com
Henrique VII e a Casa Tudor.
Esta hipótese de adopção por Shakespeare de um grande plano
para as suas obras centradas na história de Inglaterra é certamente
discutível, não só no seu carácter meramente conjectural mas tam­
bém porque supõe o texto literário (e a arte em geral) como reflexo
de uma cultura, neste caso de uma dada ·configuração da cultura
isabelina, ignorando ou pelo menos menosprezando a dimensão da
literatura e da arte como factor .fundamental de criação da própria
cultura. Sabemos hoje que a literatura não é um espelho inerte onde
as ideias e consequentemente os mitos de uma época se reflectem em
forma de linguagem, mas é antes um lugar onde essas ideias e mitos
são debatidos, confrontados uns com outros e também criados . O
lugar da literatura é assim um entre muitos outros onde a cultura se
faz, distinguindo-se contudo pelo facto de nela as representações não
serem conceptualizadas num quadro mental onde, por via de proces­
sos de abstracção e generalização, a diversidade do mundo (ou a sua

12
HENRIQUE IV - PARTE 1

plurivocalidade) é reduzida a uma unidade ordenada e internamente


coerente (ou a um monólogo), como acontece na religião, na.filoso­
fia, no direito ou na política, que são igualmente lugares da cultura.
Na literatura, e nomeadamente na literatura dramática, não há em
rigor ideias como as que nesses outros lugares se afirmam enquanto
ordenações sistemáticas e impessoais do mundo, há sim situações
e há personagens cujas acções e cujas ideias estão limitadas pela
irredutível contingência da particularidade individual de cada uma,
a qual é necessariamente (isto é, na medida em que a construção da
personagem é fiel à vida e não uma simples idealização) lugar de
conflitos, de contradições e de incertezas.
Num estudo que além das incidências da sua análise da obra de
Shakespeare põe à disposição do leitor português um actualizado
quadro dos debates em torno dessa mesma obra, Maria Helena Serô­
dio nota, a propósito de Ricardo II, que o modo como na peça a rebe­
lião contra o Rei «parece justa, triunfa e é legitimada» (Serôdio 147)
contraria a argumentação de Tillyard segundo a qual essa rebelião
teria sido o acto de culpa primordial, assim se evidenciando o que a
mesma autora designa como a «virtualidade "subversiva"» da peça.
Esta constatação, independentemente das suas implicações no estu­
do da obra em apreço, pode ser instituída em exemplo desse modo
peculiar à obra literária de representar a vida numa multiplicidade
e riqueza de sentidos que, por ser irredutível a qualquer esquematis­
mo conceptual, necessariamente o «subverte». Tal não quer contudo
dizer que o enquadramento ideológico para as peças históricas de
Shakespeare estabelecido por Tillyard é irrelevante, mas apenas que
a dimensão artística dessas peças (ou seja, a arte de Shakespeare)
sempre rompe, e por necessidade teórica sempre romperá, com qual­
quer enquadramento que procure sistematizá-las ou unificar concep­
tualmente. Na nossa apreensão crítica da arte tais enquadramentos
ser-nos-ão contudo sempre necessários para sobre eles, ou contra
eles, avaliarmos a qualidade de uma obra .
No caso de peças que tomam por assunto uma dada situação his­
tórica e a pretendem de algum modo representar, o enquadramento
de referência tenderá a ser o da interpretação da história (embora
não tenha necessariamente de o ser). O procedimento de Tillyard,
ao tentar reconstituir uma perspectiva da história dos séculos x1v-xv

13
INTRODUÇÃ O

tal como o tempo de Shakespeare, em finais do século XVI, a poderia


ter elaborado, fornece-nos um enquadramento ideológico que, em­
bora possa à luz dos conhecimentos actuais ser considerado simpli­
ficado, possibilita um entendimento da obra cuja validade, nas suas
grandes linhas, não parece ainda satisfatoriamente suplantada, se
bem que muito discutida4• A configuração ideológica que Tillyard
designa como «mito Tudor» e a sua projecção sobre a história in­
glesa dos séculos xiv-xv constituem, com efeito , um pano de fundo
adequado a que contra ele (isto é, contra esse pano de fundo mas -

também em certa medida contra Tillyard) possamos avaliar o modo


e os processos pelos quais Shakespeare deu vida - artística - a
esses tempos históricos em geral e, no caso que aqui nos interessa,
em particular ao período do reinado de Henrique IV abrangido pela
peça presente . Esta é assim uma via possível para pela análise desta
obra verificarmos como nela Shakespeare nos (e )leva do histórico
ao literário .

a) Os factos históricos

Henrique IV foi de facto um usurpador. Como muito bem lhe re­


corda Worcester na primeira cena do quinto acto, Henry Bolingbroke
(ou Bullingbrook) regressara do exílio a pretexto de assumir a titu­
laridade do ducado de Lancaster a que tinha direito após a recente
morte do seu pai, John of Gaunt5, tio do Rei Ricardo II. Aproveitando
o clima de descontentamento então existente entre a nobreza em re­
lação ao Rei, o novo Duque de Lancaster obriga-o a abdicar a seu
favor, ordena a sua prisão e acaba por propiciar o seu assassínio. O
herdeiro de Ricardo II por primogenitura seria Edmund Mortimer,

4 «Validar é mostrar que uma conclusão é provavelmente verdadeira com base no que
se conhece» (Hirsch 171). Alguns estudos recentes, mesmo quando afirmam o «des­
crédito» de Tillyard, têm dificuldade em invalidar os suportes epistemológicos da sua
interpretação (Drakakis 15 e 206-7 ; Felperin 149-50) .
5 Ou João de Gande, que também era pai de Filipa de Lencastre. Dado que os nomes
se referem aqui a um contexto inglês, evitarei usar, nesta introdução como também na
tradução da peça, as respectivas versões portuguesas, com a única excepção dos nomes
dos reis, caso em que o uso dos nomes portugueses se encontra muito fortemente con­
signado pela tradição.

14
HENRIQUE IV - PARTE I

não o correspondente à personagem introduzida no início do ter­


ceiro acto , que aparece na peça como herdeiro designado, mas um
sobrinho seu com o mesmo nome6, o que reforça a ilegitimidade da
ocupação do trono pelo fundador da dinastia de Lancaster.
A oposição a Henrique IV fez-se sentir desde cedo por parte dos
grandes barões do Norte, entre os quais alguns que tinham sido seus
apoiantes contra Ricardo II, como fora o caso do poderoso Conde de
Northumberland e do seu filho Henry Percy, conhecido pelo cogno­
me de «Hotspur» , ou «0 Colérico». Henry Percy foi o principal or­
ganizador de uma revolta contra o Rei que foi esmagada na Batalha
de Shrewsbury, cuja representação ocupa na peça a generalidade do
quinto acto.
Percy foi morto em Shrewsbury, mas tanto quanto se sabe não às
mãos do filho de Henrique IV. Henry, Príncipe de Gales e futuro Rei
Henrique V, tinha então dezasseis anos e era vinte e três anos mais
novo do que Henry Percy, tendo sido provavelmente por razões rela­
cionadas com a construção dramática que Shakespeare na peça atri­
buiu idades aproximadas às personagens que a eles correspondem.
Algumas crónicas de que Shakespeare se terá servido referem com­
portamentos do Príncipe menos consentâneas com a suposta dig­
nidade do seu estatuto, mas era sobretudo em tradições veiculadas
pela poesia e pela dramaturgia populares que ao longo dos tempos
tinha sido construída a imagem do futuro Henrique V que servirá a
Shakespeare como material para a sua construção da.figura do Prín­
cipe de Gales em Henrique IV . Dentro desta tradição popular, Hen­
rique V, o herói que em 1415 batera os franceses em Agincourt, era
representado como um Rei que enquanto Príncipe vivera uma juven­
tude irreverente e mesmo um tanto leviana e que depois de ascender
ao trono banira todos os seus antigos companheiros e se tornara um
austero emblema de rectidão moral e política e uma figura militar
exemplar. Embora a fundamentação histórica para esta imagem do
jovem filho de Henrique IV seja duvidosa, é a ela que Shakespeare
fundamentalmente recorre na construção da personagem, designada
na peça por Henry, Príncipe de Gales, por Harry, por Monmouth (o
lugar onde nasceu), ou simplesmente por Hal.

6 Trata-se de uma confusão existente já nas crónicas de que Shakespeare se serviu.

15
INTR ODUÇÃ O

Entre os muitos fidalgos que apoiaram Henrique N e combateram


por ele contava-se Sir John Oldcastle, que poderá ter conhecido o
Príncipe de Gales, mas que por se ter tornado seguidor dos ensina­
mentos religiosos de John Wyclif7 foi no reinado de Henrique V con­
denado a ser enforcado e queimado (ao mesmo tempo). Para além de
ser naturalmente considerado herege, foi ainda acusado de ladrão,
de hipócrita e de corruptor da juventude, havendo mesmo quem dis­
sesse que tinha tentado converter o Príncipe de Gales à sua heresia
(Bevington 30). Sabe-se que numa primeira versão da peça Sir John
Oldcastle era o nome que figurava onde depois apareceu o de Sir
John Falstajf, uma figura que entre outras características parodia
uma certa mesquinhez catequista, de traços puritanos8• Não são co­
nhecidas em rigor as razões pelas quais se verificou a substituição
do nome da personagem, mas é plausível a hipótese da interferência
de Lord Cobham, uma figura com alguma influência na corte de Isa­
bel I e que era descendente de Sir John Oldcastle.

b) Os valores literários

Para uma apreciação global de 1 Henrique IV enquanto obra li­


terária específica, levanta-se antes de mais o problema da sua uni­
dade estrutural, independentemente de se considerar ou não a sua
integração em unidades mais vastas, como a proposta por Tillyard.
No caso de qualquer integração em que os elementos constitutivos
da unidade são identificados fundamentalmente em junção do estado
da vida política inglesa representado nas peças, a presença de um
mesmo monarca como elemento nuclear dessa vida política é por si
suficiente para assegurar algum nível de coesão, pelo menos temá­
tica - e a temática política é sempre, nestas peças, fundamenta?.

7 John Wyclif foi um crítico da Igreja Católica no século x1v, depois considerado um
precursor, ou uma espécie de «pai fundador», do protestantismo inglês.
8 As primeiras manifestações do puritanismo histórico, que viria a traduzir-se politica­
mente num desafio à unidade da Igreja e do Estado em que se alicerçava a ordem social
e política isabelina (e o mito Tudor), apareceram nos fi nais do reinado de Isabel 1.
9 Já alguém considerou que, pelo facto de «O interesse dramático prevalecente» nestas
obras ser «O destino de uma nação», elas deveriam ser designadas não como peças his­
tóricas mas como «peças políticas» (Charlton 85) .

16
HENRIQUE IV - PARTE I

No caso presente, encontramo-nos porém numa situação em que a


identidade do centro político representada no Rei (e no respectivo
reinado) não é suficiente para delimitar a acção e a obra, já que não
só a peça acaba com a antevisão de faturas acções do Rei como além
disso Shakespeare escreveu uma outra peça, apresentada como con­
tinuação (mais propriamente, como segunda parte) desta, na qual, aí
sim, o Rei Henrique IV e o seu reinado chegam ao seu termo .
As opiniões dos críticos dividem-se entre a defesa de uma auto­
nomia de 1 Henrique IV relativamente a 2 Henrique IV e a consi­
deração de uma unidade abrangente das duas partes . Samuel John­
son, o grande crítico literário inglês de meados do século xvm e um
dos primeiros a dedicar aprofandada atenção ao estudo da obra de
Shakespeare, foi radical ao considerar que a separação entre as
duas partes apenas se justifica em fanção da extensão do texto . Já no
século xx, outros críticos de renome, como J. Dover Wilson e o já re­
ferido E. M. W. Tillyard, continuam e desenvolvem a tese de Johnson,
defendendo um entendimento e uma análise das duas partes como
se de uma mesma obra se tratasse, seja por razões de dinâmica da
intensidade dramática (Dover Wilson), seja para salvaguardar a in­
tegridade do desenvolvimento da acção (Tillyard). Entre os estudos
em defesa da tese contrária merece destaque a pormenorizada aná­
lise estrutural de 1 Henrique IV realizada por Harold Jenkins, onde
o autor demonstra a existência de uma unidade autónoma da obra
que assenta numa multiplicidade de linhas de acção centradas no
Príncipe Henry, em Henry Percy e em Falstaff, e onde procura mes­
mo demonstrar que do plano inicial de Shakespeare não constava
sequer o projecto de uma segunda parte, a qual surge depois como
uma expansão da história de Fa/staff e uma reduplicação da história
do Príncipe Henry.
A integração da peça numa sequência múltipla ou num quadro
de referências mais amplo , seja na perspectiva de uma «epopeia in­
glesa» ou simplesmente na de uma dramatização de um período da
história política de Inglaterra, a qual nesta época tem o soberano
por centro, conduzirá naturalmente a considerar a existência de uma
unidade, formal ou pelo menos temática, abrangendo as duas par­
tes de Henrique IV . Se, por outro lado, a atenção crítica se voltar
para a variedade de elementos que nesta peça se confrontam com o

17
INTRODUÇÃ O

esquematismo da unidade mítica e política que lhe serve de pano de


fundo, se, a par da constatação de uma perspectiva ideológica uni­
ficadora da peça como um pedaço de história (e que levou Dryden
a classificar as peças históricas como «crónicas de reis»), a análise
considerar todos aqueles factores que dão vida às personagens e
por essa via rompem com a sua fixidez na perspectivação históri­
ca, então a peça surgirá, como qualquer obra de arte conseguida,
na sua especificidade única e irrepetível, independentemente mesmo
de supostas estruturas que lhe estejam subjacentes ou de planos ou
conceptualizações que lhe sejam prévios . Henrique IV, o Príncipe de
Gales ou Henry Percy, como outras personagens, são representações
históricas configuradas pelo modo como Shakespeare e certamente
muitos outros no seu tempo encaravam o passado de Inglaterra, mas
a poucos a peça hoje interessaria se ela fosse apenas uma crónica
isabelina do reinado de Henrique IV. O que nos interessa neste dra­
ma de Shakespeare é o modo como dentro dos limites, ou talvez antes
a partir dos limites da representação histórica, ele conseguiu expres­
sar realidades, problemas e conflitos que nos dizem respeito, que nos
tocam e tocando-nos nos emocionam, e que nos levam, duvido que
a um melhor conhecimento de nós ou dos outros, mas talvez a uma
mais gratificante e sagaz partilha da humanidade comum .

e) A história de Henrique IV

Há um entendimento tradicional do quadro ideológico isabelino


segundo o qual este se centrava num sentido mítico da ordem, abran­
gente dos planos religioso, político, social e individual. Qualquer
injracção à ordem, por aparentemente menor que fosse, teria assim
repercussões para além de qualquer escala, e só a sua reparação
restauraria a unidade cósmica . Este princípio era particularmente
importante no plano político, já que a ordem do Estado era aquela
que mais directamente espelhava na terra a ordem divina. A teoria
do direito divino, pela qual a legitimidade do Rei era conferida por
Deus, adequava-se assim a um entendimento do mundo que, embora
por via diferente da de Maquiavel, tendia a fazer subsumir a ética
na política ao identificar os princípios do dever com os princípios

18
HENRIQUE IV - PARTE I

do patriotismo, ao mesmo tempo que suprimia quaisquer valores e


interesses individuais em junção dos superiores interesses do Estado .
Sobre o pano de fundo deste quadro ideológico, a entrada em cena
de Henrique IV no início da peça apresenta um sentido duplamente
moral e político . Por um lado o Rei pretende superar as dissensões
internas, que no passado recente conduziram a guerras fratricidas,
através da consolidação da unidade nacional presumivelmente via­
bilizada pela sua acção; por outro lado propõe-se consagrar moral­
mente esse objectivo político através de uma cruzada inglesa à Terra
Santa . O propósito da cruzada será irrelevante para a continuidade
da acção da peça, pelo que a grande importância que lhe é dada na
abertura é relacionável com a necessidade de a nação inglesa redi­
mir as suas culpas políticas por um acto de penitência perante Deus .
Nas margens da acção política e da sua dimensão ético-religiosa
é ainda vagamente visível a redenção de uma outra culpa, desta vez
a culpa individual de Henrique IV pelo acto de usurpação e pelo
assassínio do seu antecessor Ricardo II. Sem ser de modo conspícuo,
porque a situação exigia que os valores em causa fossem da ordem
da nação e não do indivíduo, Shakespeare deixa na fala do Rei al­
guns sinais que indiciam o sentimento de culpa individual Jazendo-o
aludir por um lado ao ano em que a acção decorre, 1400 (quando
refere a morte de Cristo há «catorze centos de anos» 1 0 - 1.1.26), e
afirmar depois que a decisão da cruzada tinha sido tomada um ano
antes ( 1.1.28), ou seja, no ano da deposição e morte de Ricardo II.
Este sentido de culpa individual assumido por Henrique IV, na medi­
da em que só muito subterraneamente se manifesta em um ou outro
passo, deverá ser considerado menos como uma forma de problema­
tização do poder político e mais como uma insidiosa manifestação
do indivíduo, e neste caso das suas fraquezas por sob a capa régia
do poder de Estado .
Em qualquer caso é obviamente sempre o poder que está em cau­
sa . Na medida em que se centram na história política, as peças his­
tóricas de Shakespeare giram necessariamente em torno de questões
de poder. Num estudo de 1999 David Scott Kastan afirma que «se se

10 O que pressupõe uma confusão entre o nascimento e a morte de Cristo como início
da contagem.

19
INTRODUÇÃ O

pode dizer que 1 Henrique IV é "acerca de" alguma coisa, é acerca


da produção de poder» , considerando que na situação de falta de
legitimidade do Rei no momento do início da peça o seu projecto de
uma cruzada constitui simultaneamente «uma fantasia de unidade
nacional e uma estratégia para a sua produção» (Kastan 129). Pri­
meiro a conquista do poder, depois a sua continuidade e manutenção
(e necessariamente a sua «produção»), constituem com efeito os fac­
tores determinantes da acção no que concerne ao Rei Henrique IV.
No historial do seu passado, feito pelo Rei ao filho na segunda
cena do terceiro acto, revela-se uma estratégia com vista à obtenção
do poder apoiada numa cuidadosa encenação . Henrique recrimina
o filho por ser uma figura demasiadamente pública e por se deixar
ver na companhia de gente vulgar, confrontando-o com o seu próprio
exemplo em que um premeditado jogo de ocultação e revelação teve
por fim fazer-se desejado e reverenciado . No quadro da sua conquis­
ta do poder, tal como o Rei o apresenta, o confronto político não é
um confronto de ideias ou princípios morais mas é um confronto de
estratégias de manipulação da imagem pública: a excessiva presen­
ça de Ricardo II junto dos seus súbditos vulgarizou-o e fê-lo perder
os símbolos da majestade conferidos pela imagem de distância e de
inacessibilidade que em contrapartida Henrique soube criar para
si .1 1 Mais tarde, na Batalha de Shrewsbury, a sobrevivência do Rei só
será possível porque ele fará entrar em combate várias personagens
disfarçadas que se farão passar por ele próprio . Tanto a conquista
como a conservação do poder dependem assim, para Henrique IV
do calculismo, da encenação e do disfarce, que conjuntamente dão
forma à imagem que o Rei cria de si próprio .
Não nos éfácil saber se essa imagem é uma simples máscara polí­
tica, uma exterioridade assumida por Bolingbroke para poder jogar
e ganhar o jogo do poder, ou se ela é antes a pura manifestação da
interioridade do monarca. Na terceira cena do primeiro acto, quando
o Rei se decide pela ruptura e pelo confronto com Worcester e Henry
Percy, diz-lhes que deixará de os tratar com brandura e afirma: «De
ora em diante/ Serei mais eu próprio» ( 1.3.4-5). Ser ele próprio será

11 «Bolingbroke [i. e., Henry Bolingbroke, futuro Henrique IV ] manipula os símbolos


de majestade calculadamente com vista aos resultados ulteriores» (Barber 205).

20
HENRIQUE IV - PARTE 1

afirmar com toda a intransigência o seu poder político, será manifes­


tar plenamente a sua soberania, será portanto assumir sem modera­
ção a sua estratégia de calculismo, encenação e disfarce. Se assim é,
então a interioridade do Rei e a máscara da realeza coincidem. 1 2 Mas
que dizer de alguns, raros, momentos que parecem contradizer essa
máscara, como na segunda cena do terceiro acto quando Henrique
chora de ternura pela sua reconciliação com o filho ? Ver nesse acto
uma mostra de calculismo político em vez de uma manifestação au­
têntica da humanidade do Rei seria certamente violentar a sua figura
(e violentar a obra). Mas há então em Henrique IV valores humanos
autênticos, ocultos sob o jogo de aparências e falsidades que cons­
titui a sua existência política ? Haverá humanidade por sob a capa
da estratégia do poder? Parece que sim, mas não é fácil descortinar
o relacionamento entre estes dois lados da personagem, entre estas
dimensões do humano representadas na .figura do Rei. É assim com
Shakespeare: ele levanta-nos uma ponta do véu que recobre a natu­
reza humana, mas o que nos mostra não é simples. Pelo contrário,
dir-se-ia que, quanto mais de perto olhamos, maior é a complexidade
do que vemos.
As personagens de Shakespeare nunca são confináveis ao esque­
matismo de uma qualquer conceptualização, histórica ou outra, nem
se esgotam nos limites da ideologia, e é por isso que nos interessam
como construções artísticas . 1 3 Em 1 Henrique IV a personagem que
mais aparece delimitada como uma imagem histórica é precisamente

12 Ou então podemos considerar com Greenblatt que a interioridade é apenas uma «fic­
ção teatral»: «Alguém "ser ele próprio" significa aqui desempenhar o respectivo papel
no esquema do poder, mais do que manifestar uma disposição natural própria ou o que
normalmente designaríamos como a interioridade do sujeito. Na verdade não é de modo
nenhum claro que uma disposição natural, o que quer que isso seja, exista na peça a não
ser como uma fi cção teatral» (Greenblatt 46). Este não é o lugar para discutir a tese de
Greenblatt, mas creio que a continuação da presente exposição exemplifica as minhas
dúvidas relativamente a ela.
13 Não se pretende com isto subscrever elaborações teóricas, geralmente reveladoras
de paternalismo do crítico relativamente ao artista, sobre a manifestação dos limites
e das contradições da ideologia na sua «cristalização» na linguagem ou sobre o texto
literário como lugar de conflito de «estratégias» ideológicas e dos seus discursos, mas
tão-somente afirmar que a arte se manifesta como capacidade humana de superação dos
limites da ideologia. Nesta medida se pode afirmar que Shakespeare - como qualquer
grande artista - sabe, e provavelmente sempre saberá, mais do que nós.

21
INTRODUÇÃ O

o Rei, embora, como acabamos de ver, mesmo este revele traços de


complexidade individual que o tornam suficientemente problemático
e particularizado para suscitar o nosso interesse. Mas é nas restan­
tes personagens principais que Shakespeare mais completamente
opera a transmutação do material histórico em matéria artística: a
matéria da epopeia, da tragédia e da comédia.

d) A epopeia do Príncipe

Num dos mais influentes estudos de Henrique IV, tal como o de


Tillyard, também da década de quarenta do século passado, J. Do­
ver Wilson comparava esta peça (por ele tomada como o conjunto
das duas partes) à tradição dramática das moralidades medievais
e considerava que, de acordo com essa tradição, o tema principal
deste drama de Shakespeare era o daformação do Príncipe de Gales,
desde o jovem estouvado até ao Rei ideal que viria a ser Henrique V. 1 4
Por um lado o carácter alegre, bem-disposto e folgazão do Príncipe,
apreciador de uma boa cerveja, de uma boa conversa e de uma boa
partida, e por outro lado a sua revelação como uma figura austera,
responsável e sobretudo patriótica e heróica, constituíram factores
determinantes para tornar esta personagem um epítome de uma certa
imagem mítica do homem inglês. 1 5 Participante tanto da acção có­
mica como da acção trágica da peça, suficientemente popular para
frequentar a taberna de Eastwick e aí conviver e confraternizar com a
arraia-miúda e suficientemente nobre para enfrentar os mais podero­
sos barões em defesa do Rei seu pai e da pátria, o Príncipe expressa
um percurso de aprendizagem e de formação de carácter adequado a
um mito de príncipe perfeito, «grande, original e justo», como o qua­
lificou Samuel Johnson (embora não o tenha considerado perfeito).

14 A fi gura do Príncipe é associável à tradição da representação medieval da j uventude


dividida entre o pecado (Falstaff) e a salvação, como é também relacionável com a mais
antiga tradição do fi lho pródigo (Wilson 1 7-25).
1 5 A. C. Bradley, um autor dos inícios do século xx cuja apurada sensibilidade e finura
crítica é em geral ignorada pelos que hoj e o desvalorizam como exemplo de crítico idea­
lista e romântico, considerou o Príncipe Henry como «talvez o mais distintamente inglês
de todos os homens de Shakespeare» (Bradley 1 5 6).

22
HENRIQUE IV - PARTE I

Contrariamente à consideração tradicional do Príncipe Henry


como uma espécie de tipo ideal de monarca (ou, mais propriamen­
te, de futuro monarca), alguma crítica mais recente tem acentuado
as contradições da personagem, nomeadamente no seu pelo menos
aparentemente dúplice relacionamento com Falstaff, interpretando­
-as como elementos constitutivos de um percurso de acesso ao poder.
Um dos autores que mais se tem distinguido na reavaliação da obra
de Shakespeare é o já citado Stephen Greenblatt, para quem a pró­
pria teatralidade dentro da qual a peça (qualquer peça) se constrói
não é uma expressão de uma realidade social e das respectivas re­
lações de poder mas é antes «um dos modos essenciais do poder» ,
sendo esta natureza da teatralidade exemplarmente representada
pela figura do Príncipe, visto por Greenblatt como uma sequência
de máscaras dramáticas, ou de «improvisações teatrais» determi­
nadas pelos interesses do poder (Greenblatt 46). Ao pretender de­
monstrar que o Príncipe é afinal um grande actor cujos papéis são
por ele escolhidos e desempenhados em junção de uma estratégia
de poder, Greenblatt objectivamente inverte e ironiza a imagem que
Dover Wilson ou Tillyard tinham encontrado na peça: o Príncipe não
deixa de ser perfeito, só que a perfeição (política) se manifesta não
na autenticidade dos sentimentos e na revelação da interioridade
moral mas sim na dissimulação da estratégia e na assunção táctica
de meras exterioridades, de máscaras ou papéis . Ou seja, o Príncipe
Henry seria bem o filho de seu pai .16

O primeiro solilóquio do Príncipe, no fim da segunda cena do pri­


meiro acto, constitui um dos mais importantes momentos para o en­
tendimento da personagem e é ao mesmo tempo um dos trechos mais
complexos da peça . A fala do Príncipe ocorre na sequência da saída
de cena de Poins, por sua vez precedida da saída de Falstaff, ten­
do no intervalo sido combinada uma partida a pregar a este último
e aos seus companheiros que planeiam um assalto com a aparente
conivência do Príncipe . A partida será não só a forma de Hal se

16 Com pontos de partida teóricos e metodológicos muito distintos de Greenblatt, Ha­


rold Bloom é ainda mais radical na apreciação do Príncipe: «uma parte de Hal é a de um
hipócrita mais frio ainda do que o pai» (Bloom 291).

23
INTRODUÇÃ O

divertir mas também de se redimir do assentimento (ainda que vela­


do) dado à realização do assalto . Será portanto um meio de repor a
legalidade, mas todo o processo é moralmente duvidoso, comparável
ao comportamento do incendiário que se «redime» participando na
extinção do incêndio que ele próprio ajudou a atear. Talvez por isso
Shakespeare tenha sentido a necessidade de justificar a personagem
perante ela própria e perante nós; mas precisamente porque a fala
é pronunciada «perante nós», ou seja, perante os espectadores, a
sua complexidade é desde logo evidente na identificação dos desti­
natários da fala: «Sei bem quem sois» ( 1.2.203). A quem se dirige o
Príncipe ? Em princípio a Poins e a Falstaff, que acabam de sair, e
por extensão a todos os companheiros daquela sua vida desregrada .
Mas não o fará Shakespeare dirigir-se também aos espectadores e
por extensão a todos nós Jazendo-nos cúmplices daqueles que vêem
no Príncipe alguém degradado pelo comportamento passado e pelas
más companhias e incapaz de acções grandiosas, ou seja, fazendo­
-nos cúmplices de Hotspur e, naquele momento, do próprio pai do
Príncipe ?
Na verdade, parece ser mais aos valores destes últimos que a fala
se dirige e não tanto aos de Falstaff, para quem os projectos de re­
denção e emenda a que Hal dá voz seriam certamente motivo de
ridículo . Curiosamente, os projectos do Príncipe coincidem até com
a prática política seguida pelo pai e por ele defendida para o filho no
passo da segunda cena do terceiro acto atrás comentado:

Mas nos meus actos hei-de imitar o sol


Quando permite que as nuvens peçonhentas
Ao mundo ocultem toda a sua beleza,
Para que ele, sentida a sua falta,
Reapareça, e seja então maior o espanto (1.2.205-209)

Esta interpretação do solilóquio de Hal, se por um lado esclarece


a linguagem e o tom da fala, revela-nos por outro um Príncipe que
desde o primeiro momento tem em vista servir-se dos seus compa­
nheiros, e nomeadamente de Falstaff, como o sol se serve de «nuvens
peçonhentas» , para depois se poder revelar com maior esplendor e
ser consequentemente mais reverenciado . Um Príncipe que é bem o

24
HENRIQUE IV - PARTE I

filho do seu pai, mas que por essa mesma razão dificilmente se tor­
nará o príncipe perfeito capaz de redimir a falta por este cometida .
A frieza da fala final do Príncipe na representação jocosa em que
Falstaff ocupa o lugar do Príncipe e este ocupa o lugar de Rei pode
ser considerada como confirmando as piores expectativas quanto ao
tratamento final a dar por Hal ao seu gordo companheiro:

FALSTAFF . • . quanto ao doce Jack Falstaff, ao afável Jack Falstaff, ao


fiel Jack Falstaff, ao valente Jack Falstaff - e ainda mais
valente, sendo como é velho o velho Jack Falstaff - não
aparteis o vosso Harry da sua companhia, não aparteis o
vosso Harry da sua companhia. Apartai o gorducho Jack, e
apartareis o mundo inteiro.

PRÍ NCIPE Eu o faço, eu o farei. (2.4.502-508)

Dir-se-ia que nestas breves e duras palavras Hal antecipa a rejei­


ção definitiva de Falstaff, a ocorrer em 2 Henrique IV no momento
em que o Príncipe ascende ao trono como Henrique V.
Esta linha interpretativa parece ser exigida pela organização da
peça. E contudo, se com ela se pretender criar um esquema concep­
tual abrangente de todo o comportamento do Príncipe ao longo da
acção, facilmente concluiremos pela sua inviabilidade. Com efeito,
quer na sua relação com o pai, já atrás abordada, quer sobretudo no
seu confronto com Henry Percy, o Príncipe revela uma grandeza de
alma e uma heroicidade incompatíveis com o calculismo e, dir-se-ia,
mesmo a hipocrisia que os dois momentos citados parecem revelar
na sua relação com Falstaff.
A rivalidade entre o Príncipe e o filho de Northumberland, Henry
Percy, é um dos motivos da acção da peça, e a ela dá voz o Rei logo
no início quando compara a nobreza de carácter de Hotspur com
o descrédito que «mancha a fronte» de seu filho. No desespero da
comparação, Henrique IV chega a desejar que «alguma fada/ tivera
trocado de berço os nossos filhos» ( 1.1.86-87), como que renegan­
do Hal em favor daquele que em seguida se tornará o seu princi­
pal inimigo. Mais tarde, no já referido diálogo entre o Rei e o filho
(3.2), Henrique N insiste na comparação desfavorável ao Príncipe,

25
INTRODUÇÃ O

apresentando mesmo Hotspur como mais digno, pela sua honra, de


ascender ao trono de Inglaterra do que o Príncipe o era pela simples
hereditariedade.
O processo de enobrecimento da imagem pública do Príncipe co­
meça a desenhar-se no fim deste mesmo diálogo, quando ele pro­
mete ao pai redimir a imagem da sua vida passada através do seu
confronto com Henry Percy, depois de num curioso eco de palavras
pronunciadas anteriormente pelo pai lhe anunciar que «De ora em
diante, três vezes gentil senhor,/ Serei mais eu próprio» (3.2.92-93).
Ser mais ele próprio será, para o Príncipe , revelar o amor filial,
o patriotismo e a nobreza de carácter que a sua vida desregrada
haviam ocultado, embora seja também lançar mão da táctica da
mudança de máscara anunciada no solilóquio inicial: será revelar
a sua interioridade até então oculta, embora seja também encenar
uma nova exterioridade até então dissimulada.
O aparecimento do Príncipe como exterioridade de formas de po­
der será testemunhado a Percy por Sir Richard Vernon na primeira
cena do quarto acto:

Vi o jovem Harry de viseira baixa,


Coxotes afivelados, armado a primor,
Elevar-se do chão como Mercúrio alado,
E saltar com tal leveza para a sela
Como se tivesse caído um anjo das nuvens
Para voltar e voltear um fogoso Pégaso
E enfeitiçar o mundo com nobre equitação. (4 .1.104-110)

Estas são imagens de força, de destreza e de magnificência que


recordam as tácticas usadas pelo rei para se impor a Ricardo II, mas
no contexto elas podem igualmente ser entendidas como processo
simbólico de preparação do herói para o combate, trazendo por essa
via à mente o apetrechamento do herói épico, para o que contribuem
também as alusões mitológicas. Este parece ser um sentido adequa­
do a uma cada vez mais forte identificação da acção do Príncipe
com a acção épica, a qual é por excelência um lugar de revelação
de valores autênticos, como os que se evidenciarão em seguida no
desafio lançado pelo Príncipe a Henry Percy para dirimir o conflito

26
HENRIQUE IV - PARTE I

em combate singular, «para poupar o sangue de ambos os lados»


(5.1.99), um desafio contrastante com a ostentação de poder antes
evidenciada: «Nunca na vida ouvi I Lançar um desafio com maior
modéstia» (5.2.52-53).
A dimensão heróica do comportamento do Príncipe continuará a
revelar-se na sua recusa em deixar o campo de batalha quando se
encontra ferido e as sortes da refrega são incertas - «Deus me livre
de que um arranhão afaste I o Príncipe de Gales de um campo como
este I Onde a manchada nobreza jaz espezinhada I E as armas dos
rebeldes triunfam em massacres!» (5.4.9-12) -, depois na sua inter­
venção em defesa do Rei seu pai contra o afamado Douglas, para
culminar no seu duelo com Hotspur e na consequente vitória, cujos
louros condescende até em deixar para Falstaff. Sem jogar calcula­
damente na aquisição de poder, o Príncipe arrisca a vida para salvar
a nação , o pai e o Rei, numa prova de força e numa dádiva de si
que lhe conferem uma grandeza épica. Tal não significa certamente
que o Príncipe do primeiro solilóquio seja um equívoco, ou sequer
que tenha desaparecido para dar lugar ao mito do herói inglês que
alguma crítica quis ver neste futuro Rei - significa apenas que em
1 Henrique IV o mito não nos é dado na simplicidade do seu valor
facial mas na sua complexa constituição interna, ou, se preferirmos,
que Shakespeare está sempre um passo à frente dos seus críticos .

e) A tragédia de Hotspur

Terá sido na construção de Henry Percy, mais conhecido como


«Hotspur» («0 Colérico»)17, filho do Conde de Northumberland, o
mais poderoso barão do Norte, que Shakespeare mais livremente tra­
tou as informações históricas de que dispunha, de modo afazer dele
a grande personagem trágica de 1 Henrique IV .
No plano da acção que desencadeia a intriga, Henry Percy apa­
rece como primeira figura ao desafiar o poder do Rei, recusando-lhe

17 Em consequência da popularidade que lhe foi dada por Shakespeare, o cognome de


Henry Percy é hoje preservado na designação de um conhecido clube desportivo do
Norte de Londres, Tottenham Hotspur (aparentemente associado ao facto de a região de
Tottenham, ou parte dela, ter sido em tempos propriedade da família Percy).

27
INTRODUÇÃ O

a entrega dos prisioneiros por ele feitos na Batalha de Holmedon,


onde derrotara o Conde de Douglas. O próprio Rei não lhe regateia
os mais elevados elogios quando com o seu próprio filho compara
o filho de Northumberland, « Um filho afamado pela honra / Uma
planta que se eleva no arvoredo» ( 1.1.80-81), e quando considera
os prisioneiros que lhe são negados por Hotspur «um despojo bem
honroso» e «um nobre prémio» ( 1.1.74 e 75). Na terceira cena do
primeiro acto, momento a partir do qual todo o conflito se desenvol­
ve, Henry Percy revela-se obstinadamente decidido a manter a sua
exigência perante o Rei (de que este pague o resgate por Mortimer),
enquanto ao mesmo tempo se mostra inflexivelmente norteado por
princípios de fidelidade e de honra .
Estes princípios, aliados a uma valentia que não conhece o medo
e ignora o perigo Jazem de Hotspur uma personagem que granjeia o
respeito de todos e que conquista mesmo alguma da nossa simpatia,
apenas atenuada por vezes pela sua excessiva bravata . Não há pro­
vavelmente nesta peça nenhum espírito mais honesto nem mais leal
do que o seu: não conseguiremos imaginar nele nem o calculismo de
Henrique IV na sua conquista do poder nem a distanciação dúplice
de Hal no seu relacionamento com Falsta.ff ou no seu tratamento de
Francis (2.4). O seu ressentimento com o Rei é moralmente justificável
e confere ao desafio que dirige ao poder instituído um sentido mais
ético do que político, como se torna evidente nas recriminações que
apresenta a Sir Walter Blunt na terceira cena do quarto acto:

Desonrou-me nas minhas felizes vitórias,


Arranjou espiões para me armar ciladas,
Escorraçou o meu tio do Conselho,
Enfurecido expulsou o meu pai da corte,
Perjúrio sobre perjúrio, dano atrás de dano,
Levando-nos por fim a procurar
Esta força de protecção, e a inquirir
Acerca do seu título, o qual achamos
Enviesado de mais para ter continuidade. (4.3.97-105)

Como já alguém afirmou, «Hotspur possui a plenitude da vida


e a integridade descomprometida do grande aristocrata» (Barber

28
HENRIQUE IV - PARTE I

202). Shakespeare pôde aproveitar este.filho de um grande barão do


antiquado Norte para fazer dele a figura emblemática dos valores
de uma aristocracia de tradição feudal que na vida política se via
suplantada por uma nova nobreza de corte com as suas intrigas, os
seus calculismos e as suas duplicidades. Movido pelo sentido indi­
vidual e sobretudo familiar de honra, pelos princípios de fidelidade
e lealdade, e por um código de conduta moral que revela o seu ca­
rácter na transparência da sua linguagem e do seu estilo, Hotspur
torna-se vítima de si próprio quando se vê mergulhado num mundo
onde esses valores não dominam. Este desencontro entre os valores
e o mundo conferem a Hotspur uma dimensão quixotesca, por vezes
quase cómica como quando (em I .3) «a imaginação de algum gran­
de feito» (nas palavras do seu próprio pai) o faz perder o sentido das
conveniências, não ouvindo outras palavras senão as suas; por vezes
plenamente cómica, como quando (em 2 .3) os sonhos - em sentido
literal e figurado - de aventura e combate o fazem ignorar as aten­
ções e os pedidos de sua mulher; mas outras vezes potencialmente
trágica, como quando (também em 2 .3), por acreditar ingenuamente
na palavra dos outros, se vê à última hora desertado de aliados que
com ele se haviam comprometido.
Todos os exemplos acabados de citar documentam também, a di­
ferentes níveis, o fracasso de Hotspur no plano político. No mundo
político de 1 Henrique IV, como em geral no mundo político dos
dramas de Shakespeare, o idealismo ingénuo, ainda que autêntico,
não tem possibilidades de triunfar. O projecto de Hotspur encontra­
-se demasiadamente desfasado da realidade para nela poder vingar
e por isso assume mesmo, por vezes, dimensões cómicas. Mas a fa­
lha que sobretudo o condena, o seu grande erro trágico, consiste na
incapacidade de conceber politicamente a unidade nacional. Em­
bora a sua causa seja a do suposto legítimo pretendente ao trono,
Mortimer, Conde de March, Hotspur aceita, em caso de vitória, uma
divisão tripartida da Inglaterra entre ele próprio, Mortimer e Owen
Glendower ( 3 .I), como se o patriotismo não fizesse parte do seu có­
digo de valores.
O Rei Henrique IV, desde o início da peça, e o Príncipe de Gales,
mais tarde, concebem e representam uma identificação do sentimento
de patriotismo com a ideia de unidade nacional inexistente em Hots-

29
INTRODUÇÃ O

pur. Esta identificação, cimentada pelo sentido de unidade religiosa,


era o fundamento da noção de identidade nacional da monarquia
Tudor, pelo que para o sentido teleológico da história projectado no
passado pela Inglaterra isabelina o projecto derrotado em Shrews­
bury era à nascença um projecto condenado . A grandeza de Hotspur
é a grandeza dos valores da nobreza feudal e da tradição cavalhei­
resca, anterior ao sentido político de unidade nacional representado
por Henrique IV e por seu.filho . O confronto de Shrewsbury, tal como
Shakespeare o constrói, é assim muito mais do que a resolução pelas
armas de um simples conflito entre o Rei e um punhado de barões re­
voltosos: é o confronto entre a honra individual e familiar e o princí­
pio de unidade nacional, entre a independência da localidade ligada
à família e a supremacia da nacionalidade ligada ao Estado, entre a
desvalorização ética da política e a subordinação da ética à política .
Por isso há muito de Maquiavel em Henrique IV, como também
tem de haver no Príncipe de Gales, para que ele possa sobreviver
politicamente, e também por isso o erro político de Hotspur o conde­
na . Um erro político não é, enquanto tal, um erro trágico, a não ser
quando num destino ele é indissociável de valores inapelavelmente
arrastados na condenação que do erro resulta, como acontece com
o destino de Hotspur. A Batalha de Shrewsbury em 1 Henrique IV
assinala o fim de um código de conduta e de um sistema de valo­
res condenados pela emergência do Estado nacional moderno mas
ainda suficientemente próximos do mundo isabelino para serem ar­
tisticamente recriados na nobreza de sentimentos, na ingenuidade
irrefiectida, na valentia e na tragédia de Henry Percy.

f) A comédia de Fa/staff

A criação da figura de Falstaff no meio de uma peça histórica,


diz Frank Kermode, é um golpe de génio (Kermode 76). Sir John
Falstaff, criado em 1 Henrique IV, mantido em 2 Henrique IV efeito
personagem central, diz-se que a pedido da rainha Isabel I, em As
Alegres Comadres de Windsor, tornou-se de facto uma das mais cé­
lebres figuras da imensa galeria dramática de Shakespeare . A gran­
de popularidade das duas partes de Henrique IV deve-se principal-

30
HENRIQUE IV - PARTE 1

mente a esta personagem, tendo em inícios do século XVII o seu nome


chegado mesmo a substituir o nome do Rei no título das peças .1 8
Falstaff é uma daquelas raras personagens literárias que adquirem
vida própria, concentrando em si as atenções e subalternizando nes­
se processo os textos de onde provêm, sendo vários os testemunhos
de encenações, nos séculos xvm e x1x, que desvalorizam a acção e as
personagens históricas da peça em junção do relevo dado à princi­
pal personagem cómica . 1 9 Outro sinal desta projecção de Falstaff
para fora dos seus limites literários consiste na aglutinação de cenas
das peças onde ele intervém de molde a construir uma outra obra
onde ele é personagem principal, como acontece com a ópera Fals­
taff, de Verdi, ou com o filme Chimes at Midnight (intitulado Falstaff
em Inglaterra), de Orson Welles.
No contexto de 1 Henrique IV, Fa/staff é uma personagem deveras
problemática. Falstaff é cómico, por vezes ridículo, alvo da chacota
e das partidas do Príncipe, mas ao mesmo tempo não é um bobo;
Falstaff é mentiroso e cobarde, mas ao mesmo tempo não é má com­
panhia; Falstaff é devasso, bêbado, arruaceiro e ladrão, mas é ao
mesmo tempo uma .figura simpática . Com uma tão grande quantida­
de de defeitos e uma tão grande carência de virtudes reunidas nesta
personagem, justifica-se que nos interroguemos: o que nos faz afinal
gostar de Falstaff! Samuel Johnson, que casava uma .fina perc epção
crítica com um sólido sentido moral, apercebeu-se dos riscos im­
plicados nesta interrogação quando afirmou que «O indivíduo mais
perigoso é aquele que à vontade de corromper alia o poder de agra­
dar» (Johnson 24).
Samuel Johnson apercebeu-se de um papel desempenhado por
Fa/staff cujo sentido histórico só a crítica do século xx viria depois
a esclarecer, quando assinalou nesta personagem a presença das
tradições dramáticas medievais dos milagres e das moralidades em

18 Encontra-se documentada pelo menos uma representação, em 1 625, de 1 Henrique IV


com o título de Primeira Parte de Sir John Falstaff.
19 «A ilusão de ser uma pessoa real - se se quiser chamar a isso "ilusão" - acompanha
Falstaff como acompanha Hamlet . De algum modo Shakespeare nos comunica que estas
duas fi guras carismáticas estão nas peças em que aparecem mas não são das peças em
que aparecem; Hamlet é uma pessoa, e Cláudio e Ofélia são ficções - ou Falstaff é uma
pessoa, enquanto Hal e Hotspur são ficções» (Bloom 279). Hamlet e Falstaff são para
Bloom as duas criações supremas de Shakespeare.

31
INTRODUÇÃ O

que a figura do Demónio ou a alegoria do Vício aparecem dotadas


do poder de agradar de modo a que as suas tentações surtam efei­
to na alma humana que delas é objecto.20 A presença destes senti­
dos da tradição dramática em 1 Henrique IV articular-se-ia com a
também tradicional figuração do filho pródigo na personagem do
Príncipe, o qual teria finalmente de optar entre a via da corrupção
e do vício tentadoramente representada em Falstajf e o caminho da
virtude que lhe é mostrado pelo pai. O primeiro solilóquio do Prín­
cipe pode assim ser encarado como expressão de uma premeditada
decisão de não se deixar cair na tentação, enquanto a sua fria rejei­
ção de Fa/staff, anunciada na «peça improvisada» («Eu o faço, eu o
farei»), aparece neste enquadramento como plenamente justificada .
Tais enquadramentos e justificações das personagens e dos seus ac­
tos não podem contudo deixar de nos aparecer como reducionistas
e simplistas.
A personagem de Falstajf não pode ser limitada ao simplismo
destas presenças históricas da dramaturgia medieval, ainda que na
análise da sua construção tais presenças tenham algum grau de per­
tinência. De Falstajf se pode dizer - e em todos os sentidos - que é
uma figura demasiadamente vasta e redonda para caber nos exíguos
limites das potencialidades significativas de figuras planas como as
das personificações ou das alegorias dos milagres e das moralida­
des .21 A amizade de contornos quase paternais que sentimos existir
da parte de Falstajf para com Hal seria suficiente para negar essa
simplicidade à personagem, e ainda que pudéssemos concluir ser tal
amizade, da qual nunca há provas suficientemente claras, apenas
uma ilusão nossa, o simples facto de a personagem estar construída
de modo a criar essa ilusão advogaria a favor da sua complexidade
e não do contrário. O mesmo se poderia dizer de outros momentos,
como o célebre passo onde Falstajffaz a crítica do valor da honra,
no fim da primeira cena do quinto acto: pode-se demonstrar que

20 O principal estudo da presença destas tradições é o já citado The F ortunes of Fa/staff,


de J. Dover Wilson.
2 1 Transponho aqui para a análise do drama a vetusta distinção estabelecida na análise
do romance por E. M. Forster entre personagens «redondas» (round) e personagens
«planas» , ou «chatas» (jlat) : «[A personagem redonda] tem consigo a incalculabilidade
da vida - a vida dentro das páginas de um livro» (Forster 85).

32
HENRIQUE IV - PARTE I

a argumentação de Falstaff elimina do homem todo o sentido hu­


mano, transformando-o num ser cujos valores não vão além da sua
sobrevivênciafisica, o que institui o sentido de honra de Falstaff nos
antípodas desse sentido em Hotspur, mas nem por isso deixamos de
ser sensíveis a uma crítica dos valores que os revela como exterio­
ridades, como meras convenções, ou palavras. O mais paradoxal de
Falstaff está no facto de esta personagem estar sempre tão longe e
tão perto de nós.
A. C. Bradley, que tentou resgatar a figura de Falstaff até de acu­
sações dificilmente contestáveis, como a de medo e de cobardia,
expressou a seu modo esta ambivalência da nossa relação com a
personagem quando considerou que «além de rirmos de Falstaff nós
rimos com ele» (Bradley 261). O riso é sem dúvida a principal via
da nossa relação com Falstaff, mas esta ambivalência verifica-se em
outros âmbitos não menos importantes que fazem dele «um de nós».
Pela importância histórica, pela dimensão épica e pelo destino trá­
gico que consoante os casos identificam as restantes personagens
principais da peça, todas elas nos são de algum modo distantes, to­
das pertencem a um mundo ao qual não pertencemos. Também pelos
valores que as movem, pelo facto de as suas acções se inserirem em
estratégias de poder das quais o comum dos mortais não participa,
personagens como Henrique IV, o Príncipe de Gales ou Henry Percy
são diferentes de nós, por muito que os seus destinos nos afectem e
mesmo que nelas nos sintamos imaginadamente delegados . Como
já dizia Aristóteles, os heróis da tragédia como os da epopeia são
«melhores do que nós» e só as figuras da comédia são iguais a nós,
ou ainda piores.
Falstaff é em muitos aspectos pior do que nós, mas todos os seus
defeitos nãofazem com que ele deixe de ser um de nós, nomeadamen­
te quando esses defeitos (ou pelo menos alguns deles) são eles pró­
prios formas de contestação, pelo ridículo, dos valores que instituem
aquelas outras personagens num universo que se pretende distinguir
hierarquicamente pela sua busca da perfeição no domínio dos valo­
res supremos da história e da nação, do patriotismo, da honra, do
dever, da.fidelidade, do respeito pela ordem e pela propriedade . Em­
bora tenhamos consciência da importância que para nós têm tam­
bém estes valores e por essa consciência nos aproximemos de quem

33
INTRODUÇÃ O

os representa e os defende (e nos afastemos dos que os põem em cau­


sa), não deixamos de simpatizar com alguém que inofensivamente,
e sobretudo sem maldade, lança o ridículo sobre o universo que tais
valores sustentam. Nenhum de nós gostaria de ser governado por
Falsta.ff, mas não deixamos de sorrir em cumplicidade quando ele
ridiculariza quem nos governa.
Mikhail Bakhtine, que prestou especial atenção à relevância do riso
e do cómico na história dos estilos e das formas literárias, afirmou
que «é precisamente o riso que destrói o épico e que em geral destrói
qualquer distância hierárquica» (Bakhtine 458). O ridículo institui,
com efeito, uma plataforma encurtadora das distâncias e niveladora
das diferenças, sejam elas sociais, políticas ou míticas, criando o que
o mesmo Bakhtine designa como uma «zona de proximidade máxi­
ma» possibilitadora da criatividade cómica22 • Nós rimo-nos de Fals­
taff porque nos seus excessos, nos seus defeitos, nas suas manias, ele
traz para junto de nós os mecanismos da megalomania, da jactância,
da vanglória e da hipocrisia que nas distantes esferas dos grandes
poderes fazem mover os Henriques Quartos, os Príncipes e os Per­
cys deste mundo; e rimo-nos com Falstaff porque na sua iconoclasta
razia de valores ele despe de sentidos convencionais os fundamentos
da moralidade, da legalidade e da política para os revelar como me­
ros artifícios ditados pelas conveniências e pelos interesses do poder,
como quando considera a reputação um bem de consumo ( 1.2 .86-87),
quando compara a lei a um «velho charlatão» ( 1.2 .63) ou quando
comenta o entusiasmo patriótico e guerreiro do Príncipe com a ironia
e a displicência de: «Palavras raras! Admirável mundo! Hospedeira,
então, o meu pequeno-almoço ?» (3.3.24-25).
Numa peça onde, como atrás se procurou evidenciar, o assunto
central é o poder, Falstaff funciona como meio de desmitificação,
pelo ridículo, de todos os mecanismos do poder. Tal não significa de
modo algum ver em Falstaff uma crítica alternativa, o que implicaria
torná-lo uma espécie de contrapoder. Fa/staff não é uma alternativa
ao poder instituído, mas sim uma perspectivação que, não levando o
poder a sério, permite vê-lo pelo seu lado cómico. Fa/staff mostra-

22 «Tudo o que é cómico se encontra perto de nós, toda a obra cómica funciona numa
zona de proximidade máxima» (Bakhtine 458).

34
HENRIQUE IV - PARTE I

-nos que tudo na vida tem, ou pode ter, um lado cómico, mesmo o
que nela há de mais sério, ou seja, de mais heróico ou trágico. Os
mecanismos da sociedade e da política são ridicularizados por Fa/s­
taff mas não rejeitados, e ele próprio os aceita mesmo quando os
ridiculariza. Falstaff acaba por participar numa guerra na qual ele
não vê especiais méritos em nenhum dos lados em confronto, como
o demonstra quando presta o seu louvor e o seu elogio aos revolto­
sos, dando a entender que a única vantagem que vê na guerra é a
de com ela poder ele próprio ganhar (isto é, roubar) alguma coi­
sa: «Bom, pode-se dar graças a Deus por estes revoltosos, eles não
prejudicam ninguém, tirando os honestos» (3.3.208-210). E quando
no fim antecipa a recompensa por ter alegadamente sido ele quem
matou Henry Percy («E não conto com ser menos do que conde ou
duque» [5.4.46-47]), Falstaff aceita a sua integração no mundo do
poder embora com ironia a encare como uma perda daqueles traços
que mais obviamente lhe dão identidade: «Se eu me tornar grande,
torno-me mais pequeno, porque me hei-de purgar, e deixar o seco, e
viver asseadamente como convém a um nobre» (5.4.169-171).
«Se eu me tornar grande, torno-me mais pequeno»: este é o gran­
de paradoxo do lugar cómico de Falstafj, o lugar da inversão carna­
valesca. A grandiosidade da figura de Falstaff é-lhe conferida pelo
seu carácter cómico, é a grandiosidade de uma construção artística
que nele e por via dele inverte os valores do poder e da ordem, que
são os valores da moralidade, da legalidade e da política, numa fes­
ta do mundo-ao-contrário onde o grande é pequeno e o pequeno é
grande, onde o Rei é súbdito e o súbdito é Rei como na improvisação
na taberna na quarta cena do segundo acto. Por vezes até mesmo
os valores da razão parecem invertidos, como quando no relato do
assalto Falstaff vai aumentando de forma absurda o número de ata­
cantes dos quais teria sido vítima, numa aparente demonstração de
que o seu objectivo principal não é sequer mentir (uma vez que a
mentira para o ser tem de ter alguma consistência) mas simplesmen­
te divertir-se. Neste como noutros momentos é de resto à custa de si
próprio que Fa/staff se diverte e não à custa de outrem, como o faz o
Príncipe quando se diverte à custa de Francis.
Nesse mundo de inversão, de improvisação e de excesso, Falstaff
é grande, no corpo, na festa e na festa do corpo (e o carnaval tam-

35
INTRODUÇÃO

bém é festa do corpo), mas se o mundo-às-direitas o recompensasse


atribuindo-lhe um lugar na sua hierarquia, por elevado que fosse,
Falstaff teria de perder os sinais de excesso que são os sinais da sua
grandeza. Para se integrar na ordem do mundo teria de se tornar pe­
queno, «como convém a um nobre». Nós sabemos que Falstaff nunca
será conde nem duque, muito menos como recompensa por aquilo
que não fez. Falstaff não só não matou Percy como pelo contrário
se fez antes passar por morto no momento de perigo. Falstaff é uma
figura demasiadamente imaginária para interferir na vida real e é
demasiadamente um de nós para intervir no mundo dos outros, dos
que combatem em Shrewsbury. Mesmo na efectiva participação de
Falstaff na batalha, quando conduz para a morte o seu bando de
maltrapilhos, o anonimato e a distância criada relativamente a estes
torna-os uma espécie de soldados de brincar, tal como a pistola que
Falstaff diz ter no coldre e que é afinal uma garrafa de vinho. No
mundo real que é o mundo das coisas sérias, como o poder, o Estado,
a guerra e a hipocrisia dos valores que muitas vezes sustenta estas
coisas sérias, nesse mundo não há lugar para Falsta.ff, a não ser,
eventualmente, na prisão . Mas, por outro lado, Falstaff mostra-nos
que o mundo não é afinal assim tão sério, que há uma perspectiva
segundo a qual o heróico Percy não passa de «aquele tipo doido
do Norte», o afamado galês Glendower, conhecido também por se
dedicar às artes ocultas, é apenas «aquele de Gales que deu uma
cacetada em Amamon e encornou o Lucifer» e o temido e truculento
Conde de Douglas é «aquele escocês esperto» (2.4).
Reduzindo o poder e os poderosos à vulgaridade, Falstaff mostra­
-nos o lado cómico do mundo, mas tal não significa que as miti.fica­
ções épicas e trágicas da história se percam ou sejam anuladas pelo
riso zombeteiro da comédia . Há uma seriedade da vida que Falstaff
nunca abarcará e que provoca a reacção do Príncipe quando encon­
tra a garrafa de vinho em vez da pistola: «0 quê, achas tu que esta
é altura para brincar e gracejar?» (5.3.58) . Falstaff é na vida o in­
terlúdio, o feriado, a festa, mas como noutro momento diz também o
Príncipe, «Se todo o ano fosse feito de feriados/ Cansava o folguedo
o mesmo que a labuta» (1.2.212-213). O mundo de 1 Henrique IV é
o mundo da seriedade da vida, uma seriedade ambígua, contradi­
tória, imperfeita, que Shakespeare nos dá na dimensão histórica de

36
HENRIQUE IV - PARTE I

Henrique IV, na epopeia do Príncipe e na tragédia de Henry Percy.


Mas sem Falstaff todo esse mundo seria demasiadamente elevado,
distante e sobretudo sisudo, para além de falsamente perfeito: Fals­
taff é-nos necessário para nele e com ele participarmos na festa que
inverte, subverte e perverte a seriedade do mundo . Harold Bloom diz
que «nós precisamos de Falstaff porque temos tão poucas imagens
de autêntico vitalismo, e porque temos ainda menos imagens per­
suasivas da liberdade humana» (Bloom 314). Na festa, no vitalismo
e na liberdade que identificam Falstaff, e na sua subversiva irredu­
tibilidade a quaisquer sistematizações, sejam elas de valores ou de
ideias, Shakespeare deu-nos uma das mais conseguidas representa­
ções artísticas da realidade sensível da vida ou, para usar uma ex­
pressão hoje desacreditada mas sem a qual a arte não é entendível,
da natureza humana .

2 - Presenças de Henrique IV em Portugal

Dentro da parca atenção que tradicionalmente em Portugal se


presta à literatura e à cultura inglesas, e apesar da importância
reconhecida internacionalmente a Shakespeare pelo menos desde
fins do século xvm, a peça Henrique IV não mereceu até ao sécu­
lo xx qualquer atenção especial por parte dos nossos intelectuais .
A grande popularidade da figura de Falstaff parece mesmo assim
ter cá chegado, ainda que de forma muito atenuada, no século XIX,
conforme aparece documentado no minucioso estudo da recepção
de Shakespeare no oitocentismo português levado a cabo por Jorge
Bastos da Silva . Mesmo assim as referências são relativamente es­
cassas e geralmente breves . Jorge Bastos da Silva assinala ter sido
talvez por influência da ópera de Verdi, estreada no São Carlos na
temporada de 1893-94, que se verificou nos últimos anos do século
uma maior atenção a Falstaff, de que são curiosos exemplos dois
textos de ficção publicados por essa altura e que têm aquela figura
por personagem central.
O domínio da tradução reflecte este alheamento mais ou menos
generalizado, existindo da primeira parte de Henrique IV, como tam­
bém da segunda, apenas uma tradução portuguesa (em Portugal), em

37
INTRODUÇÃ O

prosa, da autoria de Henrique Braga, publicada pelos editores Lello


e Irmão em 1950 e intitulada El-Rei Henrique IV . Para além destas
traduções do texto integral, é digno de nota o caso de Falstaff (Lisboa,
1899), de Eduardo Braga, «{p]eça em seis actos e nove quadros» , que
consiste numa tradução dos episódios das Partes I e II de Henrique
IV em que Falstaff intervém, expurgados «da parte licenciosa - que
é abundante» (p . xxiv).

3 - O texto original e a presente tradução

A Parte I de Henrique IV costuma ser datada de 1597, a mesma


altura de O Mercador de Veneza (é possível que Shakespeare tenha
trabalhado nas duas peças simultaneamente). Nos dois anos anterio­
res, Shakespeare deverá ter composto Ricardo II , Romeu e Julieta e
Sonho de Uma Noite de Verão, e pensa-se que nos dois anos seguin­
tes escreveu As Alegres Comadres de Windsor, a segunda parte de
Henrique IV, Muito Barulho para Nada, Henrique V, Júlio César e
Como Vos Aprouver. Com a excepção de Henrique VIII, escrito mais
de dez anos depois, já no fim da carreira literária de Shakespeare e
em provável colaboração com outro autor (John Fletcher), esta é
a fase que completa o ciclo das peças históricas e que antecede o
período das grandes tragédias, iniciado em 1600-01 com Hamlet .
A primeira parte de Henrique IV parece ter gozado desde cedo de
grande popularidade , a que não foi certamente alheia a criação de
Falstaff. Em 1598 foram publicadas duas edições da peça, das quais
apenas a segunda chegou até nós completa, restando da primeira
um fragmento de oito páginas, descoberto no século XIX. Porque se
tratava de edições em formato in-quarto, e como é habitual para as
edições dos textos dramáticos de Shakespeare, estas publicações fi­
caram conhecidas como Quartos (ln-Quartos): o Primeiro ln- Quarto
( Q l ) designa a edição completa de 1598, sendo o fragmento da edi­
ção anterior conhecido como ln- Quarto Zero ( QO). A comparação
de Ql com QO permite determinar que a edição completa de que dis­
pomos copiou cuidadosamente, se bem que com algumas falhas me­
nores, a edição de que apenas se conhece o fragmento. Até à publi­
cação do Primeiro ln-Fólio, que em 1623 reúne pela primeira vez a

38
HENRIQUE IV - PARTE I

obra dramática de Shakespeare. foram ainda publicadas mais cinco


edições in-quarto de 1 Henrique IV, o que faz desta a obra do autor
com maior número de edições anteriores àquela colectânea de 1623.
Contrariamente ao que acontece com muitas das edições in-quarto
das peças de Shakespeare, o Primeiro ln- Quarto de 1 Henrique IV,
pelo cuidado da composição e pela qualidade gráfica, é geralmente
considerado como uma edição fidedigna : esta edição e a anterior,
avaliada pelo fragmento restante, constituem mesmo as mais cui­
dadosamente impressas de todas as edições in-quarto das peças de
Shakespeare . O Primeiro ln-Fólio, onde a peça aparece pela primei­
ra vez dividida em actos, viria, com algumas alterações, a seguir o
texto destas primeiras edições.
Este é, nestas condições, um dos textos de Shakespeare que ofe­
rece menos problemas e dúvidas de fixação textual. Para a presen­
te tradução tomou-se por referência o texto de Ql , pontualmente
corrigido por QO, que serve de base a todas as edições correntes
de 1 Henrique IV, sendo colocadas entre parênteses rectos todas as
alterações a essa base textual, excluindo a divisão em actos e cenas
estabelecida no Primeiro ln-Fólio23 , assim como algumas emendas
estabelecidas ao longo da história editorial da peça e hoje generali­
zadamente aceites . Nalguns domínios da .fixação do texto, apesar de
tudo ainda abertos a discussão, nomeadamente nos relativos às indi­
cações cénicas e à lineação,foram comparadas hipóteses apresenta­
das por diversos organizadores de edições críticas, tendo-se optado
pelas que pareceram mais completas e consistentes .
As peças de Shakespeare são em geral parcas no fornecimento
de indicações respeitantes à localização da acção, o que de resto se
coaduna com o sóbrio uso de adereços característico do palco isa­
belino . Em muitas situações o público apenas se podia inteirar da
localização da acção através do seu conteúdo ou, no encadeamen­
to dos diversos momentos dramáticos, através da respectiva dis­
tribuição por diferentes partes do palco . Os sucessivos editores da
obra de Shakespeare têm contudo tentado determinar localizações

23 O Primeiro ln-Fólio apenas não assinala a que hoje se considera como terceira cena
do quinto acto, que foi estabelecida na edição de Edward Capell (1767-8 ) . Para esta
cena, como para a consequente renumeração das duas cenas restantes do mesmo acto,
segue-se aqui a divisão de Capei!.

39
INTRODUÇÃ O

precisas, que, sendo em boa parte irrelevantes na leitura do texto ,


podem constituir um importante apoio para a sua representação
teatral. Na presente tradução optou-se por não incluir dados dessa
natureza no corpo do texto, mantendo-o como se encontra nos ln­
- Quartos e no ln-Fólio, fornecendo-se contudo nas notas finais as
localizações das cenas deduzidas ou presumidas a partir dos res­
pectivos conteúdos .
As referências históricas, assim como algumas remissões e alguns
implícitos culturais, exigem por vezes conhecimentos especializados
sem os quais se torna difícil um pleno entendimento de alguns mo­
mentos da peça . Nas notas finais incluíram-se igualmente algumas
informações que possam responder a dificuldades de leitura desta
natureza, assim como se procurou fornecer alguns esclarecimentos
eventualmente úteis para uma melhor apreensão e fruição de uma ou
outra elaboração conceptual mais inesperada e de alguns daqueles
volteios da linguagem tão característicos de Shakespeare e que tanto
quanto se pôde e se soube se procurou reproduzir nesta tradução.

40
Referências

Edições de Henrique IV (Parte /)

BEVINGTON, David (ed.). Henry IV, Part One . The Oxford Shakespeare.
Oxford World 's Classics. Oxford: Oxford University Press, 1 987 .
BRAGA, Henrique (trad .). El-Rei Henrique IV (Primeira Parte) . Porto:
Lello e Irmão, s. d. ( 1 950) .
DAVISON, P. H . (ed.) . Henry IV: Part One . The New Penguin Shakespeare.
Harmondsworth: Penguin Books, 1 996.
HUMPHREYS, A. R. (ed.). King Henry N, Part 1 ( 1 960) . The Arden Shakes­
peare. Walton-on-Thames, Surrey: Thomas Nelson and Sons, 1 997 .
WEIL, Herbert, & Judith Weil (ed.). The First Part of King Henry IV. The
New Cambridge Shakespeare. Cambridge: Cambridge University Press,
1 997 .

Outros títulos

BAKHTINE, Mikhai1 . Esthétique et Théorie du Roman . Traduit du russe


par Daria Olivier. Paris: Gallimard. 1 978 .
BARBER, C. L. Shakespeare 's Festive Comedy ( 1 959) . Princeton, N. J. :
Princeton University Press, 1 972.
BLOOM, Harold . Shakespeare : The Invention ofthe Human . Nova Iorque:
Riverhead Books, 1 998 .
BRADLEY, A. C . «The Rejection of Falstaff». ln Oxford Lectures on Poe­
try . Londres: Macmillan, 1 965 .
REFER ÊNCIAS

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King Henry IV - Parts 1 & 2 . G . K . Hunter (ed.) . Londres: Macmillan ,
1 970 . 8 1 -9 1 .
DRAKAKIS , John . Alternative Shakespeares . Londres: Routledge, 1 985 .
FELPERIN , Howard . The Uses of the Canon : Elizabethan Culture and
Contemporary Theory . Oxford: Clarendon Press, 1 990 .
FORSTER , E . M. Aspects of the Novel ( 1 927) . Harmondsworth: Penguin
Books, 1 962 .
GREENBLATT, Stephen. Shakespearean Negotiations . Oxford: Clarendon
Press , 1 98 8 .
HIRSH, Jr. , E . D . Validity i n lnterpretation . New Haven e Londres: Yale
University Press , 1 967 .
JENKINS , Harold . The Structural Problem in Shakespeare 's Henry IV. ln
Shakespeare: King Henry IV - Parts l & 2 . G . K. Hunter (org .) . Lon­
dres: Macrnillan , 1 970 . 1 55-73 .
JOHNSON , Samuel. «A Note on Henry IV» . ln Shakespeare: King Henry
IV - Parts 1 & 2 . G . K . Hunter (ed .) . Londres: Macmillan, 1 970 . 23-4.
KASTAN , David Scott . Shakespeare after Theory . Nova Iorque e Londres:
Routledge, 1 999 .
KERMODE , Frank . Shakespeare 's Language . Londres: Allen Lane - The
Penguin Press, 2000 .
SER Ô DIO , Maria Helena. William Shakespeare : A Sedução dos Sentidos .
Lisboa: Cosmos , 1 996 .
SILVA , Jorge Bastos da. Shakespeare no Romantismo Português : Factos,
Problemas, Interpretações . Porto: Campo das Letras , 2005 .
TILLYARD, E . M. W. Shakespeare 's History Plays . Londres: Chatto and
Windus , 1 944 .
WILSON , J . Dover. The Fortunes of Falstaff. Cambridge: Cambridge Uni­
versity Press , 1 970 .

42
Henrique IV

Parte 1
Personagens

Por ordem de entrada em cena

REI HENRIQUE (HENRIQUE IV)


LORDE JoHN DE LANCASTER
CONDE DE WESTMORELAND
SIR wALTER BLUNT
PRíNCIPE HENRY
SIR JOHN FALSTAFF
POINS
CONDE DE NoRTHUMBERLAND
CONDE DE WoRCESTER
HoTsruR , SIR HENRY PERCY
PRIMEIRO ALMOCREVE
Moço DE ESTREBARIA
SEGUNDO ALMOCREVE
GADSHILL
CAMAREIRO
PETO
BARDOLPH
PRIMEIRO VIAJANTE
SEGUNDO VIAJANTE
LADY PERCY
CRIADO DE HoTSPUR
FRANCIS
TABERNEIRO
HOSPEDEIRA
XERIFE
LORDE EDMUND MORTIMER
ÜWEN GLENDOWER

LADY MORTIMER

DOUGLAS

MENSAGEIRO

SIR RICHARD VERNON

ARCEBISPO DE YORK

SIR MICHAEL

SEGUNDO MENSAGEIRO

j
Soldados , outros via antes , e acompanhantes
ACTO 1

Cena 1

Entram o Rei, Lorde John de Lançaster, o Conde de Westmoreland,


[Sir Walter Blunt] e outros

REI Abalados e moídos de canseiras


Deixemos que a paz acossada tome alento
E preparemo-nos para novas refregas
A iniciar em paragens bem remotas .
Não mais o átrio sedento desta terra
Borrará a boca com o sangue dos seus filhos
Nem a guerra sulcará mais os seus campos ,
Ou as ftorinhas pisará com feros cascos
De cavalgada hostil . Os olhos desavindos
Que como meteoros num céu perturbado , 10

Tendo o mesmo princípio e a mesma criação ,


Há pouco se cruzavam em justa intestina
E no insano embate da chacina civil ,
Hão-de agora , em alas uma à outra afeiçoadas ,
Marchar todos como um só , sem mais confronto
Com os vizinhos , a família e os aliados.
O gume da guerra não mais ferirá seu dono
Qual gládio mal embainhado . Meus amigos ,
Ao lugar onde está o sepulcro de Cristo -
No seu exército somos um soldado 20
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .1

E por sua sagrada cruz combateremos -


Vamos levar uma força de ingleses ,
Suas armas forjadas no ventre da mãe ,
Para dar caça aos pagãos na terra santa
Sobre a qual caminharam pés sagrados
Cravados faz catorze centos de anos ,
Para nossa salvação , na amarga cruz.
Mas tal propósito foi já formado há um ano ,
E por tal razão é inútil repeti-lo .
Não estamos aqui para isso . Deixai-me ouvir 30

De vós , meu grato primo Westmoreland ,


O que ontem à noite o Conselho decidiu
Tendo em vista a expedição tão ansiada .

wEsTMORELAND Meu soberano , essa era a causa candente ,


Os afazeres distribuídos eram muitos ,
Quando de súbito chegou um mensageiro
Vindo de Gales , com notícias ponderosas ,
Sendo a pior a de que o nobre Mortimer -
Que comandava os homens de Herefordshire
Contra o selvático e infractor Glendower - 40

Caiu nas rudes mãos desse galês ,


E mais de mil dos seus homens chacinados
Foram maltratados até depois de mortos ,
Em bestial desvergonha mutilados
Por essas mulheres de Gales, de tal modo
Que a vergonha impede de contar.

REI Parece então que essas novas da contenda


Embargaram a missão à Terra Santa .

WESTMORELAND Essas e outras mais, meu bom senhor,


Pois notícias inda mais indesejáveis so

Vieram do Norte , e foram desta monta:


Na Exaltação da Cruz , o jovem Hotspur,
De seu nome Henry Percy, e o valente Archibald ,
Esse valoroso e celebrado escocês ,

48
HENRIQUE IV - PARTE 1 1.1

Defrontaram-se em Holmedon , e aí viveram


Uma triste e sanguinária hora -
A fazer fé nas descargas de artilharia
E no provável rumo do que as notícias contam;
Pois quem as trouxe teve de partir
N o calor e n a soberba da peleja, 60

Ainda incerto sobre quem ia vencer.

REI Eis um querido e esforçado amigo ,


Sir Walter Blunt, que acaba de chegar,
Nas vestes traz manchas dos solos pisados
Desde Holmedon até às nossas paragens ;
Traz notícias amenas , e bem-vindas :
O Conde de Douglas está derrotado .
Dez mil escoceses , vinte e dois cavaleiros
Amontoados sobre o seu próprio sangue
Nos plainos de Holmedon. Hotspur aprisionou 10

Mordake , Conde de Fife e primogénito


Do derrotado Douglas , e o Conde de Atholl ,
De Murray, de Angus e de Menteith:
E não é este um despojo bem honroso?
Não é, meu primo , um nobre prémio?

WESTMORELAND À minha fé ,
É uma conquista para ostentação de um príncipe .

REI Trazes-me ao espírito a pena, e o pecado


De inveja por ser Lorde Northumberland
O pai de um filho assim tão venturoso:
Um filho afamado pela honra , 80

Uma planta que se eleva do arvoredo ,


Dilecção e orgulho da amável Fortuna -
Enquanto eu assim contemplo o seu louvor
A arruaça e o descrédito mancham a fronte
Do meu jovem Henry. Pudesse ser provado
Que pela calada da noite alguma fada
Tivera trocado de berço os nossos filhos

49
WILLIAM SHAKESPEARE l .l

Dando o nome Percy ao meu , Plantageneta ao dele !


Assim eu teria o seu Henry, e ele o meu .
Melhor não pensar nele . Que ideia tens tu , primo , 90

Do brio do jovem Percy? Os prisioneiros


Que ele na sua façanha capturou
Conserva-os como seus , e manda que me digam
Que só Mordake , Conde de Fife , ele me entrega .

wEsTMORELANo São coisas de seu tio , é a mão de Worcester,


Em tudo malquerente para convosco ,
Que o faz empertigar-se e levantar a crista
Da juventude contra a vossa dignidade .

REI Já ordenei que me desse explicações ;


Temos assim de pôr de lado por algum tempo 1 00

A nossa santa missão a Jerusalém .


Meu primo , ide informar os lordes de que o Conselho
Se reunirá na quarta-feira em Windsor.
Mas regressai com a máxima urgência,
Pois há mais para dizer e para fazer
Do que pode ser exposto no calor da ira .

wEsTMORELAND Assim farei , senhor.

Saem

Cena 2

Entram o Príncipe de Gales e Sir John Falstaff

FALSTAFF Então , Hal , meu rapaz , que horas são?

PRÍNCIPE Ficas tão aparvalhado com esse seco que bebes, todo
desapertado depois de cear e para aí estendido à tar­
de a dormir nos bancos , que te esqueces de perguntar

50
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .2

o que na verdade precisas de saber. Que diabo tens


tu que ver com quantas horas são? Fossem as horas
copos de seco e os minutos capões , fossem os reló­
gios línguas de alcoviteiras e os mostradores tabule­
tas de bordéis , e fosse o sacrossanto sol uma galdéria
acalorada com atavios de tafetá flamejante , então 10

eu veria razões para que tivesses a extravagância de


querer saber as horas .

FALSTAFF Olha que agora chegaste para mim , Hal . Nós para
roubar bolsas temos de andar à luz da Lua e do setes­
trelo , e não de «Febo , esse belo cavaleiro andante» .
E peço-te , meu querido malandro , que quando fores
rei , e que Deus proteja a tua graça - ou antes , a tua
majestade , porque graça não hás-de ter nenhuma . . .

PRÍNCIPE Nenhuma , porquê?

FALSTAFF À minha fé que não - nem sequer há-de chegar para 20

dar graças antes de um ovo com manteiga .

PRINCIPE Bem, e depois? Vamos lá, arredonda , arredonda .

FALSTAFF Ó nossa Senhora ! Pois olha, meu querido malandro ,


espero que quando fores rei não permitas que nós , se­
nhores da noite , sejamos tratados como ladrões do dia.
Deixa que nos chamem antes couteiros de Diana, ca­
valheiros da sombra, servidores da Lua. E que se diga
de nós que somos gente de boa governança, tal como
o mar governados pela Lua, que é a nossa mui nobre e
casta amante sob cuja protecção nós andamos a furto . 30

PRÍNCIPE O que dizes está bem , e até condiz , porque a fortu­


na dos filhos da Lua que nós somos tem marés altas
e baixas como o mar, governados que somos , como
ele , pela Lua . Como por exemplo: uma bolsa de ouro
surripiada com muito despacho na segunda à noite , e

51
WILLIAM S HAKESPEARE 1 .2

dissolutamente esbanjada na terça de manhã, obtida


a vociferar «Larguem tudo ! » e gasta a berrar «Ve­
nha ! » , agora numa maré tão baixa como o primeiro
degrau e não tarda tão alta como a trave da forca.

FALSTAFF Valha-me Deus , rapaz , o que dizes é verdade - e 40

não é a minha estalajadeira uma doce cachopa?

PRÍNCIPE Como o mel de Hibla , meu velho castelão . E não é


um colete de meirinho uma doce e duradoura vesti­
menta?

FALSTAFF E então , e então , meu malandro maluco? De mofeiro


e de arteiro tens que baste - que queres tu? Por que
peste tenho eu que ver com um colete de meirinho?

PRÍNCIPE E por que moléstia tenho eu que ver com a estalaja­


deira?

FALSTAFF Bem , tu já por muitas vezes a chamaste a contas . so

PRÍNCIPE E alguma vez te fui chamar para entrares com a tua


parte?

FALSTAFF Não , lá isso é verdade , foste sempre tu a entrar com


tudo .

PRÍNCIPE Pois fui , e não só nesse como noutros casos , tanto


quanto consegui esticar as minhas posses . E quando
não consegui , usei dos meus créditos .

FALSTAFF Sim , sim , e de tal maneira que não fosse aqui presu­
mido que és o herdeiro presumível . . . Mas rogo-te
que me digas , meu querido malandro , haverá forcas 60

erguidas em Inglaterra quando fores rei? E será a au­


dácia burlada como é hoje em dia pelo freio ferru­
gento desse velho charlatão que é a lei? E vê lá, não
enforques um ladrão quando fores rei .

52
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .2

PRÍNCIPE Não , tu o farás .

FALSTAFF Eu? Oh , mas que extraordinário ! Deus meu , mas que


juiz brilhante eu vou sair !

PRÍNCIPE Já começas por julgar mal ! O que eu digo é que te ca-


lhará a forca dos ladrões , por isso serás um brilhante
carrasco . 70

FALSTAFF Muito bem , Hal , muito bem . De certo modo até diz
bem comigo - assim como frequentar o tribunal , to
assevero .

PRÍNCIPE Para indagar dos factos?

FALSTAFF Sim, para indagar dos fatos - é bem recheado o


guarda-roupa do carrasco . Safa, sinto-me melancóli-
co que nem um gato capado ou um urso agrilhoado .

PRÍNCIPE Ou um leão velho , ou o alaúde de um amante .

FALSTAFF Isso , isso , ou como o ronco de uma gaita-de-foles do


Lincolnshire . 80

PRfNCIPE E o que dizes de uma lebre , ou da melancolia de


Moorditch?

FALSTAFF Para comparações desenxabidas não há como tu - és


realmente muito comparativo, meu amável principezi-
nho maroto . Mas rogo-te , Hal, que não me apoquentes
mais com vaidoseiras . Prouvesse a Deus que tu e eu
soubéssemos onde nos aviarmos de boas reputações .
Um velho lorde do Conselho ralhou comigo um dia
destes no meio da rua por vossa causa, meu senhor,
mas eu não lhe dei atenção , e contudo ele falou com 90

muita sabedoria, mas eu não lhe liguei nenhuma, e


contudo ele falou com sabedoria - e no meio da rua.

53
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

PRÍNCIPE Fizeste bem , porque a sabedoria clama nas ruas e


ninguém lhe presta atenção .

FALSTAFF O teu diabólico jeito para as repetições faz-te capaz


de corromper um santo . Deus te perdoe , Hal , pelo
muito mal que me tens feito . Antes de te conhecer,
Hal , eu era um inocente , e agora, para o dizer com
todas as letras , em pouco me distingo de uma alma
danada . Tenho de deixar esta vida , e em verdade te 1 00

digo que a hei-de deixar, santo Deus , ou não passe eu


de um miserável . Nenhum filho de um rei da Cristan-
dade me há-de levar ao Inferno .

PRÍNCIPE Onde vamos palmar uma bolsa amanhã , Jack?

FALSTAFF Raios me partam , onde quisere s , rapaz , eu estou den-


tro . Se eu faltar podes chamar-me miserável e dizer
aos quatro ventos que sou um degenerado .

PRÍNCIPE Estou a ver-te no bom caminho para te emendares:


primeiro as orações , depois o surripianço .

FALSTAFF Que queres , Hal , é a minha vocação , Hal . Não é pe- 1 10

cado para ninguém seguir a sua vocação .


Entra Poins
Poins ! Agora é que vamos saber se o Gadshill tem
alguma filada . Oh , se o mérito ganhasse o céu , ne-
nhum buraco do inferno havia de ser quente que
chegasse para ele . É o mais omnipotente filho da
mãe que alguma vez gritou «Alto lá ! » a uma pessoa
de bem .

PRÍNCIPE Bom dia, Ned .

POINs Bom dia, querido Hal . O que é que diz Monsieur


Remorso? O que é que diz o senhor John Avinhado , 1 20

e Jack Açucarado? A que bom acordo chegaste com

54
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .2

o demónio acerca da tua alma, que lhe vendeste na


passada Sexta-feira Santa por um copo de vinho da
Madeira e uma coxa de capão fria?

PRÍNCIPE O senhor John mantém a sua palavra: o demónio te-


rá o que lhe cabe , pois ele nunca quebrou as regras
dos bons ensinamentos . O demónio terá o que lhe é
devido .

POINS Então estás perdido por respeitares a palavra dada ao


demónio . 1 30

PRÍNCIPE Ou então estaria perdido por enganar o demónio .

POINS Meus rapazes . Meus rapazes . Amanhã pela manhã-


zinha, às quatro da madrugada, há em Gad's Hill
peregrinos com ricas oferendas a caminho de Can-
tuária e comerciantes com gordas bolsas com destino
a Londres . Arranjei disfarces para todos; vós levais
os vossos cavalos . Gadshill fica esta noite em Ro-
chester. Encomendei a ceia para amanhã à noite em
Eastcheap . Vai ser tão fácil como tirar uma soneca.
Se quiserdes ir, encho-vos as bolsas de moedas . Se 1 40

não quiserdes, ficai na pachorra e ide-vos enforcar.

FALSTAFF Ouvi lá, Yedward, se eu ficar na pachorra e não for,


enforco-vos por irdes .

POINS Ah sim, bochechas?

FALSTAFF Hal , tu estás dentro?

PRÍNCIPE Quem , eu? Roubar? Eu , um ladrão? À minha fé que


não .

FALSTAFF Não és honesto , nem amigo , não és homem nem és


nada, e nem sequer te corre nas veias sangue de rei ,
s e não és capaz d e t e arriscar por u m real . 150

55
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

PRÍ NCIPE Pois bem , de louco um dia hei-de ter um pouco .

FALSTAFF Sim senhor, muito bem dito .

PR ÍNCIPE Seja como for, fico na pachorra .

FALSTAFF Ah sim? , pois quando tu fores rei eu hei-de ser traidor.

PR Í NCIPE Quero lá saber.

POINS Sir John , peço-vos que me deixeis a sós com o Prín-


cipe . Eu hei-de apresentar-lhe razões para este em-
preendimento que o convencerão a vir connosco .

FALSTAFF Pois bem , que Deus te dê o espírito da persuasão , e a


ele os ouvidos do proveito , de modo a que se como- 1 60

va com teus ditos e acredite no que ouvir, para que


o verdadeiro Príncipe possa, para seu divertimento ,
mostrar-se um falso ladrão , pois nos tempos que cor-
rem os pequenos abusos não têm quem dê a cara por
eles . Adeus , encontramo-nos em Eastcheap .

PR Í NCIPE Adeus , Primavera tardia ! Adeus , Verão de S ão Ma-


tinho !

[Sai Falstajf]

POINS Meu muito querido senhor, vinde connosco ama-


nhã . Tenho em vista uma partida que não posso
pregar sozinho . Nós vamos primeiro fazer uma em- 1 70

boscada às pessoas que depois Falstaff, Peto , Bar-


dolph e Gadshill vão assaltar - nós os dois não
estaremos lá. E quando eles estiverem de posse do
saque , vamos nós assaltá-los - ponho a minha ca-
beça no cepo por isso .

PR Í NCIPE E como nos vamos nós separar deles?

56
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .2

ro1Ns Partiremos antes ou depois deles e combinamos um


encontro - ao qual estaremos à vontade para faltar.
Eles então meter-se-ão sozinhos na aventura - e ,
mal esta esteja acabada, caímos-lhes nós e m cima . l so

PR I NCIPE Sim, mas é natural que eles nos reconheçam pelos


cavalos , ou pelas roupas , ou por qualquer outro dos
nossos apetrechos .

ro1Ns Qual quê ! Quanto aos nossos cavalos , eu me en­


carregarei de os esconder no bosque . Mudaremos
de máscaras logo que os deixarmos . E, meu caro ,
tenho capas de burel para na ocasião encobrir as
nossas vestes .

PR I NcIPE Também receio que eles sej am muito fortes para


nós dois . 1 90

ro1Ns Bom, sei que dois deles são do que mais cobarde há à
face da terra; quanto ao terceiro , juro que deponho as
armas se ele lutar mais do que lhe parecer razoável .
A graça desta partida há-de estar nas imensas men­
tiras que esse anafado patife nos vai contar quan­
do nos reunirmos para cear. Como teve de se bater
contra pelo menos trinta, quantas vezes se esquivou ,
quantos golpes desferiu , por que atribulações passou .
A graça vai estar toda em desdizer tudo isso .

PRINCIPE Pois bem , irei contigo . Trata de tudo . Encontramo- 200

-nos amanhã à ceia em Eastcheap . Adeus.

ro1Ns Adeus , senhor.

Sai Poins

PRI NCIPE Sei bem quem sois , e por enquanto amparo


Os humores sem freio da vossa ociosidade .

57
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .2

Mas nos meus actos hei-de imitar o Sol ,


Quando permite que as nuvens peçonhentas
Ao mundo ocultem toda a sua beleza,
Para que ele , sentida a sua falta,
Reapareça , e seja então maior o espanto
Por irromper das feias e nojentas brumas 210

De vapores que o pareciam sufocar.


Se todo o ano fosse feito de feriados ,
Cansava o folguedo o mesmo que a labuta;
Mas como são raros , então são desej ados ,
Já que nada agrada senão o que é fugaz .
Quando eu me despir desta imoral conduta
E pagar a dívida nunca prometida,
Por quanto melhor sou do que a minha palavra ,
Tanto mais valerei do que de mim esperam .
E como metal brilhante em fundo escuro , 220

A minha emenda , a luzir sobre o meu erro ,


Surgirá mais vistosa , mais atenção terá
Se comparada com a que não tem contraste .
Ao ofender, farei da ofensa engenho
E hei-de remir o tempo quando ninguém esperar.

Sai

Cena 3

Entram o Rei, Northumberland, Worcester, Hotspur, Sir Walter


Blunt, e outros

REI O meu sangue tem estado frio e brando ,


Incapaz de responder a estas afrontas ,
E assim vós me encontrastes - e pisastes
A ofertada brandura. De ora em diante
Serei mais eu próprio , poderoso e temível ,
E não me encontrareis naquela condição

58
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .3

Macia como azeite , mole como penugem


Que me fez perder todo o título de respeito
Pela alma orgulhosa só devido aos orgulhosos .

woRcESTER Meu soberano , a nossa casa não merece 10

Ser punida pelo flagelo da grandeza,


Essa grandeza que nossas mãos ajudaram
A tão imponente se tomar.

NORTHUMBERLAND Meu senhor. . .

REI Worcester, desaparece , pois eu vejo


Ameaça e desobediência nos teus olhos .
A vossa presença é impudente e arrogante
E a majestade nunca pôde suportar
O sobrolho franzido de um criado .
Tendes licença para sair. Se precisarmos
De vós ou de conselho vosso , sereis chamado . 20

Sai Worcester
[Para Northumberlandj
Vós íeis começar a falar.

NORTHUMBERLANo Sim, meu senhor.


Os prisioneiros que Vossa Alteza exige ,
Feitos por Henry Percy, aqui presente ,
Não foram, segundo ele diz , negados
Tão vigorosamente quanto vos foi dito .
São portanto a maldade , ou o engano ,
Os culpados por tal erro , não o meu filho .

ttoTsPuR Nenhum dos presos , meu senhor, eu vos neguei .


Mas mal a luta terminou , disso me lembro ,
Estava eu seco de raiva e de cansaço , 30

Sem fôlego e débil , encostado à espada,


Chegou-se a mim certo fidalgo , aperaltado ,
Viçoso como alface , de queixo rapado
Que mais parecia campo depois de boa ceifa.
Vinha perfumado que nem um costureiro ,

59
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

Entre o indicador e o polegar trazia


Uma caixinha, que de quando em vez
Ora chegava ao nariz , ora afastava -
Este , furioso , a seguir fungava,
Enquanto ele ia sorrindo e conversando . 40

Aos soldados que traziam os cadáveres


Chamava broncos e imbecis , por assim
Passarem corpos malcheirosos e imundos
Por entre o vento e a sua fidalguia.
Com palavras caras e modos delambidos
Interrogou-me e exigiu-me entre outras coisas
Os prisioneiros em nome de Vossa Alteza.
Com aquele tagarela a apoquentar-me ,
E atormentado pelas feridas que esfriavam ,
Aflito e impaciente , respondi-lhe so

Com negligência, já não sei o quê ,


Que ele os teria ou não , pois pôs-me louco
Vê-lo com tanto viço , e tão bom cheiro ,
Mais parecendo uma dama de companhia,
A falar de armas e ferimentos , Deus nos livre !
E a contar-me que a melhor coisa do mundo
É o espermacete para as contusões internas ,
E que faz muita pena, lá isso faz ,
Que o tão vil salitre seja retirado
Das entranhas da inofensiva terra, 60

A fim de destruir boa e forte gente


Tão cobardemente , e não fora por tais armas
Ele próprio teria sido soldado .
A esta oca e desconjunta palraria
Dei , como disse , resposta pouco atenta,
E rogo-vos , senhor, que o seu relato
Não venha a ser tomado como estorvo
Entre Vossa Alteza e o meu amor por vós .

BLUNT Olhando às circunstâncias , bom senhor,


Tudo o que Lorde Henry Percy afirmou 70

A essa pessoa, e em tal lugar,

60
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .3

Em tal momento , mais tudo o que foi dito ,


Poderá morrer aqui , sem ser usado
Contra ele , nem servir de acusação
Pelo que disse então , já que o desdiz agora .

REI Bom , mas ele ainda nega os prisioneiros


E estabelece como condição
Que de imediato paguemos o resgate
Pelo seu cunhado , esse louco Mortimer,
Que por teimosia própria atraiçoou so

Os homens que levou a combater


Esse maldito Glendower, o feiticeiro
Cuja filha , ao que se sabe , está casada
Com o Conde de March . Terão os nossos cofres
De ficar vazios em nome de um traidor?
Pagar a traição , contratar com medrosos
Quando eles se perderam a eles próprios?
Não , deixá-lo morrer de fome nas montanhas .
Ninguém será por mim tomado como amigo
Cuja voz me peça seja que preço for 90

Para resgatar o revoltoso Mortimer.

ttoTsPuR O revoltoso Mortimer !


Só pela sorte da guerra, meu senhor,
Ele vos deixou . Para afirmar esta verdade
Basta uma voz que diga todas as feridas ,
As escancaradas feridas com bravura
Por ele recebidas na luta corpo a corpo ,
Quando na verde margem do ameno Sevem
Passou boa parte de uma hora
Em acesa peleja com o grande Glendower. 1 00

Por três vezes respiraram e beberam ,


Por acordo , das lestas águas do Sevem ,
Que assustado com seus gestos sanguinários
Corria amedrontado entre juncos frementes
E a cabeça crespa escondia na margem
Manchada do sangue desses bravos guerreiros .

61
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

Nunca a artimanha vil e desonesta


Cobriu seus feitos com tais feridas cruéis
E nunca poderia o nobre Mortimer
Receber tantas , e de tão bom grado . 1 10

Não o acuseis portanto de revolta .

REI Tudo isso é falso , Percy, tudo isso é falso ,


Nunca ele se encontrou com Glendower.
Digo-te mais: teria ele antes o demónio
Do que Owen Glendower por inimigo .
Não tens vergonha? Meu homem , de ora em diante
Não te quero mais ouvir falar de Mortimer.
Manda-me rapidamente os prisioneiros -
Ou terás notícias minhas em espécie
Que não te agradará . Meu Lorde Northumberland: 1 20

Autorizamos que partais com vosso filho .


Enviai-me , para vosso bem , os prisioneiros .

Sai o Rei [com Blunt e séquito]

HoTsPuR Nem que o demónio venha a rugir por eles


Eu os enviarei . É o que lhe vou dizer.
Assim sossegarei o coração
Apesar de pôr a cabeça em risco .

NORTHUMBERLAND O quê? Ébrio de cólera? Descansa um pouco ,


Vem aí o teu tio .

Entra Worcester

HOTSPUR Falar de Mortimer?


Raios , hei-de falar dele , e que a minha alma
Implore piedade se eu não o ajudar. 1 30

Ah , sim , por ele eu hei-de exaurir estas veias


E gota a gota no pó verterei meu sangue ,
Mas erguerei o espezinhado Mortimer
Tão alto no ar quanto este ingrato Rei ,
Este ingrato e bichoso Bullingbrook .

62
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .3

NORTHUMBERLAND Meu irmão , o Rei pôs o teu sobrinho louco .

woRcEsTER Quem ateou este incêndio desde que eu saí?

HOTSPUR Ele quer ficar com os meus prisioneiros todos ,


E quando de novo lhe falei do resgate
Do meu cunhado , ficou com o rosto pálido , 1 40

Voltou-se para mim com um olhar de morte ,


A tremer só por ouvir falar de Mortimer.

woRcEsTER Não o censuro . Não foi ele proclamado


Por Ricardo , que morreu , seu directo herdeiro?

NORTHUMBERLAND Sim, foi , eu próprio ouvi a proclamação .


Foi na altura em que o infeliz Rei -
Deus perdoe o mal que lhe fizemos - partiu
Na sua expedição a terras da Irlanda;
Da qual , interrompida , ele regressou
Para ser deposto e em seguida assassinado . 1 so

woRcESTER E por essa morte somos nós motivo


De desprezo e vitupério nas bocas do mundo .

HOTSPUR Mas , calma , peço-vos , o Rei Ricardo então


Proclamou o meu cunhado Edmund Mortimer
Herdeiro do trono?

NORTHUMBERLAND Sim, eu próprio o ouvi .

HoTsPuR Não posso assim censurar o Rei seu primo


Que o quer ver morrer de fome nas montanhas .
Mas será então que em vós , que coroastes
A cabeça deste homem falho de memória
E por ele ostentais a detestada marca 1 60

D o conluio assassino - será então


Que em vós recai um mundo de maldições ,
Vós , os agentes , os míseros acólitos ,

63
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

As cordas , a escada, ou até o carrasco?


Oh , perdoai-me , por eu descer tão baixo
Para mostrar a linhagem e os apuros
Em que vos encontrais sob este subtil Rei !
Deverá ser hoje esta vergonha anunciada ,
Ou deverá constar de crónicas futuras ,
Que houve quem desse a sua nobreza e o seu poder 1 10

Como penhor em nome de causa injusta -


Como vós dois , Deus o perdoe , fizestes -
Para depor Ricardo , aquela amável rosa,
E plantar esta silva, este espinho Bullingbrook?
E se for, para mor vergonha , anunciado
Que sois enganados , enjeitados e banidos
Por aquele por quem passastes tais vergonhas?
Não , ainda resta tempo para redimir
A vossa honra perdida, e restaurar
A vossa imagem aos olhos do mundo : 1 so

Vingai o desprezo altivo e escaminho


Deste arrogante Rei , que dia e noite estuda
O modo de amortizar o que vos deve
Até pelo preço cruel das vossas mortes .
E assim vos digo -

woRCESTER Calma , primo , nada mais digas .


Agora vou abrir-te o livro dos segredos ,
E à tua sagaz insatisfação
Vou ler de assuntos profundos e perigosos ,
Cheios de espírito de risco e de aventura,
Como o de transpor uma torrente turbulenta 190

Sobre a sustentação instável de uma lança.

HOTsruR Se ele cair, boa noite , que se afunde ou nade !


Venha o perigo de nascente para poente ,
E a honra de norte para sul , quando se cruzem ,
Deixá-los que se entendam . O sangue ferve mais
A acordar o leão do que a levantar a lebre .

64
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .3

NORTHUMBERLAND A imaginação de algum grande feito


Leva-o além das raias da paciência.

[ ttoTsPuR ] Oh , céus , parece-me ser um fácil salto


O que à pálida Lua arranque a áurea honra, 200

Ou mergulhe ao mais fundo das funduras ,


Onde a sonda jamais tocou o solo ,
E pelos cabelos arranque a honra afundada,
Para que quem a redimir possa ostentar,
Sem rival , todas as suas distinções .
Mas arrenego tal proveito a repartir !

woRcEsTER Ele apreende aqui um mundo de figuras ,


Mas não a forma do que devia entender.
Meu bom primo , dai-me um pouco de atenção .

HOTSPUR Peço perdão .

woRCESTER Esses nobres escoceses 210

Que são teus prisioneiros -

HOTSPUR Fico com todos !


Não , deles nem uma migalha ele terá;
Se um escocês lhe salva a alma , ele vai perdê-la.
Hei-de segurá-los , juro por esta mão !

WORCESTER Vós levantais a lebre


E não prestais atenção aos meus intentos .
Esses cativos serão nossos -

HOTSPUR Ah , sim , sem dúvida !


Ele disse que não resgatava Mortimer,
Proibiu-me de usar o nome de Mortimer,
Mas eu hei-de apanhá-lo a dormir
E hei-de berrar-lhe ao ouvido «Mortimer ! » . 220

Hei-de até ensinar u m estorninho


A dizer «Mortimer» , e depois ofereço-lho
Para manter a sua fúria em movimento .

65
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

woRcESTER Ouvi , meu primo , só uma palavra .

ttoTsPuR Solenemente renuncio a toda a arte


Que não seja a de irritar este Bullingbrook .
E esse Príncipe de Gales de espada e rodela -
Mas acho que o pai não gosta muito dele
E pouco se importa se algo lhe acontecer -
Tomara vê-lo envenenado com cerveja. 230

woRcEsTER Adeu s , meu primo . Falar-vos-ei depois ,


Quando o vosso humor estiver mais sossegado .

NORTHUMBERLAND Mas que louco irritadiço e impaciente


Tu me saíste , com teus modos mulheris ,
Sem outras falas ouvires , senão as tuas !

HOTSPUR Qual quê , se me sinto açoitado com bastões ,


Espicaçado e mordido por formigas ,
Quando ouço este ignóbil Bullingbrook !
No tempo de Ricardo . . . como se chama o sítio?
Maldito seja, fica em Gloucestershire . 240

Onde o doido do Duque mantinha York . . .


O seu tio York . . . onde primeiro ajoelhei
Perante o rei dos sorrisos , esse Bullingbrook . . .
Raios , quando regressávamos de Ravenspurgh . . .

NORTHUMBERLAND No castelo de Berkeley.

HOTSPUR Aí, precisamente .


Oh , quantas açucaradas cortesias
Me dedicou este galgo bajulador !
«Logo que a sua jovem fortuna crescesse»
E «gentil Henry Percy» , e «amável primo» .
Diabos levem tais farsantes - Deus me perdoe ! 2so

Meu bom tio , a vossa história. Eu já acabei .

woRcESTER Não , s e não acabastes , continuai ,


Estamos ao vosso dispor.

66
HENRIQUE IV - PARTE I 1 .3

HOTSPUR A sério , acabei .

woRcEsTER Vamos então voltar aos presos escoceses .


Entregai-os de imediato sem resgate
E fazei do filho de Douglas vosso meio
Para o poder na Escócia, o que , por razões
Que sabereis por escrito , podeis estar certo ,
Será facilmente aceite .
[Para NorthumberlandJ
E vós , senhor,
Enquanto vosso filho está activo na Escócia, 260

Deveis conquistar em segredo a confiança


Desse nobre prelado bem-amado ,
O Arcebispo .

HOTSPUR Quereis dizer, o de York?

woRcESTER A esse me refiro , a quem custa a aceitar


A morte de Lorde Scroop , seu irmão , em Bristol .
Não digo isto só por suposição
Do que penso poder ser, mas pelo que sei
Que está a ser planeado e estabelecido
E apenas aguarda o momento certo
Para poder ser enfim realizado . 210

HOTSPUR Sinto-o no ar ! E sairá bem , disso estou certo !

NORTHUMBERLAND Não soltes tu os cães antes de haver caça.

HoTsPuR Porquê , se este é por certo um plano nobre?


E então as forças da Escócia e as de York
Juntam-se com Mortimer, bem?

woRCESTER Assim será.

HOTSPUR Na verdade é um muito bem urdido plano .

67
WILLIAM SHAKESPEARE 1 .3

woRcEsTER E não é pouca a razão para ter pressa


Em erguer uma cabeça, salvando as nossas .
Pois por muito cuidado que tenhamos ,
O Rei toda a vida se achará em dívida 280

E pensará que não estamos satisfeitos ,


Até chegar um momento em que salde as contas .
E já vemos como ele vai começando
A fazer-nos alheios aos seus olhares de amor.

HOTSPUR Vai , vai , é certo , mas nós nos vingaremos .

woRcEsTER Adeus, primo . Em nada te adiantes


Ao que eu em breve te indicarei por carta.
Estando maduro o tempo , e não demora muito ,
Verei em segredo Glendower e Lorde Mortimer,
Com quem tu , Douglas , e todas as nossas forças 290

Se encontrarão conforme eu determine ,


Para em nossas mãos tomarmos nossos destinos ,
Hoje inda seguros com pulso muito incerto .

NORTHUMBERLAND Adeus , bom irmão . Há-de correr bem , estou certo .

HOTSPUR Adeus, tio . Tarda a hora de sermos aplaudidos


Pelos campos , pelos golpes , e pelos gemidos .

Saem

68
ACT0 2

Cena 1

Entra um Almocreve com uma lanterna na mão

PRIMEIRO
ALMOCREVE Ei lá ! Veja-me eu na forca se não hão-de ser J ª
umas quatro da matina. Já a Ursa Maior vai por sobre
a chaminé nova e o nosso cavalo ainda por carregar.
Ei , moço !

MOÇO DE
ESTREBARIA [de dentro] Pronto , pronto !

PRIMEIRO
ALMOCREVE Anda daí, Tom, assenta bem a sela do Cortado ,
mete-lhe uns chumaços de lã por debaixo - o pobre
sendeiro está por de mais moído na cernelha .

Entra outro Almocreve

SEGUNDO
ALMOCREVE Tanta humidade têm aqui as ervilhas e os feijões que
é meio caminho andado para os pobres sendeiros 10

apanharem alguma doença. Esta casa ficou de pernas


para o ar desde que morreu o Robin da Estrebaria.
WILLIAM S HAKESPEARE 2.1

PRIMEIRO
ALMOCREVE Foi da subida do preço da aveia, aquele pobre homem
nunca mais foi o mesmo . Foi a morte dele .

SEGUNDO
ALMOCREVE Cá para mim , esta é a mais reles hospedaria em toda a
estrada para Londres , só há pulgas . Estou tão picado
que mais pareço uma tenca .

PRIMEIRO
ALMOCREVE Uma tenca! Nenhum rei cristão conseguiria ser mais
mordido do que eu fui só desde que cantou o primei-
ro g�o . w

SEGUNDO
ALMOCREVE E como nem sequer nos dão um penico , temos de
verter águas na lareira, e já se sabe que para dar pul­
gas o mijo é como as verdemãs .

PRIMEIRO
ALMOCREVE Então , moço ! Anda daí, diabos te levem , anda daí !

SEGUNDO
ALMOCREVE Tenho um presunto e duas raízes de gengibre para
levar para Charing Cross .

PRIMEIRO
ALMOCREVE Santo Deus ! Os perus que tenho no paneiro estão
esfomeados . Então , moço ! Maldito sejas , não tens
olhos na cara? Não ouves ? Eu seja um traste se abrir­
-te a cachola não há-de ser tão boa acção como beber 30

um copo . Anda daí, raios te partam ! Não se pode ter


fé em ti?

Entra Gadshill

GADSHILL Bom dia , almocreves . Que horas são?

PRIMEIRO
ALMOCREVE Hão-de ser duas .

70
HENRIQUE IV - PARTE I 2.1

GADSHILL Emprestas-me aí a tua lanterna, para ir ver o meu


capão ao estábulo?

PRIMEIRO
ALMOCREVE Devagar, por Deus , muito devagar ! Sei de um truque
que vale por dois desses , ai não que não sei !

GADSHILL Rogo-te que ma emprestes .

SEGUNDO
ALMOCREVE Pois , pois , sabes quando? No Dia de São Nunca ! 40

Empresta-me a tua lanterna , diz ele ! Antes disso


ainda te hei-de ver na forca.

GADSHILL Olha lá, meu homem , a que horas pensas tu chegar a


Londres?

SEGUNDO
ALMOCREVE A tempo de me deitar com um candeeiro , to garanto .
Anda daí, vizinho Canecas , vamos acordar aqueles
senhores que levam haveres com eles e querem via­
jar com companhia.

Saem os Almocreves

GADSHILL Ei lá ! Camareiro !

Entra o Camareiro

CAMAREIRO «Aqui mesmo à mão , diz o larápio .» 50

GADSHILL Isso é tão certo como «aqui mesmo à mão , diz o ca­
mareiro» , porque tu estás tão perto do larápio como
o capataz do jornaleiro . Tomas conta das coisas .

CAMAREIRO B om dia , patrão Gadshill . Confirma-se o que vos


disse ontem à noite . Há um senhorio das terras de
Kent que traz com ele trezentos marcos em ouro .

71
WILLIAM SHAKESPEARE 2.1

Ouvi-o dizer isso a alguém que estava ontem com


ele a cear, um revisor de contas do reino , ou coisa
parecida, que também leva com ele bastante valor,
sabe Deus quanto . Já estão ambos a pé e pediram- 60

-me qualquer coisa ligeira para comer. Estão aqui ,


estão a partir.

GADSHILL Ó homem , se eles não encontrarem no caminho o


pessoal de São Nicolau , este meu pescoço é teu .

CAMAREIRO A i isso não , não o quero para nada. Porque não o


guardas para o carrasco? Sei que veneras São Nico­
lau , como bom aldrabão que é s .

oAosmLL Porque m e falas d o carrasco? Se e u fo r para a for­


ca, haverá um gordo par de enforcados . Porque se eu
for para a forca, o velho Sir John irá comigo , e bem 10

sabes que ele não é nenhum magricelas . Tá, ele há


mais troianos do que tu sonhas , que dão a sua graça
à profissão só por desporto e que para salvar os seus
créditos haveriam de compor as coisas , acaso elas
fossem longe de mais . Este que aqui vês não está
metido com maltrapilhos , nem com ladrões de meia­
-tigela , nem com esses malucos vermes da cerveja,
vermelhuscos e bigodudos , mas sim com persona­
lidades de nobreza e gentileza , burgomestres e gen-
te fina , que se sabem aguentar, de antes malhar que so

falar, de antes falar que beber, e de antes beber que


rezar. E contudo , irra, estou a faltar à verdade , por­
que eles a todo o tempo se consomem a rezar à santa
coisa pública, ou antes , eles não se consomem com
ela, consomem-na a ela, montam-na e atropelam-na,
e usam-na para manter os pés quentes .

CAMAREIRO Mas então a coisa pública é um par de botas ? E não


deixa entrar água quando se anda na lama?

72
HENRIQUE IV - PARTE I 2.1

GADSHILL Não deixa , não , a justiça untou-a bem . Roubamos


como num castelo , pela certa. Nós temos a receita da 90

semente do feto para andar invisíveis .

CAMAREIRO C á para mim , se andais invisíveis é mais porque an­


dais de noite do que pela semente do feto .

aAosmLL Dá cá a tua mão , terás uma parte na nossa aquisição,


ou não seja eu um verdadeiro homem .

CAMAREIRO Antes quero que ma prometas na qualidade de ladrão


falsário .

GADSHILL Vai-te , homo é um nome comum a todos os homens .


Manda o moço trazer o meu capão do estábulo .
Adeus , meu lerdo tratante . 1 00

Saem

Cena 2

Entram o Príncipe, Poins, Peto [e Bardolph]

POINs Vamos , aos abrigos , aos abrigos ! Escondi o cavalo


de Falstaff e ele está fulo que nem um peru .

PR Í NCIPE Escondam-se !

[Retiram-se]

Entra Fa/staff

FALSTAFF Poins ! Ah , ver-te eu enforcado , Poins ! Poins !

PR Í NCIPE [avançando] Calma , meu patife gorducho , que baru­


lheira é essa?

73
WILLIAM SHAKESPEARE 2.2

FALSTAFF Onde está o Poins , Hal?

PRÍNCIPE Vi-o ir monte acima . Vou procurá-lo .

[Afasta-se]

FALSTAFF Maldito seja eu por roubar na companhia daquele la­


drão . O patife levou-me o cavalo e prendeu-o sei lá 10

onde . Se eu tenho de andar a pé , nem que sejam mais


quatro pés , soltam-se-me os ventos . Bom, com tudo
isto só espero uma santa morte , se escapar à forca
por ter matado aquele sacana. Reneguei a companhia
dele cada hora destes vinte e dois anos , e mesmo as­
sim estou enfeitiçado pela companhia do sacana. Eu
seja enforcado se o patife não me deu mezinhas para
eu gostar dele . Não pode ter sido outra coisa - deu­
-me a beber mezinhas . Poins ! Hal ! Diabos vos levem !
Bardolph ! Peto ! Vou morrer à fome por não poder 20

roubar nem a um pé de distância - seja eu o maior


lacaio que alguma vez mastigou com dentes de gente
se tomar-me um homem honesto , e deixar estes saca­
nas , não for tão boa acção como beber um copo . Oito
jardas de piso irregular são setenta milhas para mim
se for a pé , e esses malvados de coração empedernido
sabem-no bem . Diabos levem isto tudo quando os la­
drões não são honestos uns para os outros !
Os outros assobiam
Uiúú ! Diabos vos levem a todos ! Dai-me o meu ca­
valo , seus sacanas , dai-me o meu cavalo e ide-vos 30

enforcar !

PRÍNCIPE [aparecendo] Calma, pançudo , deita-te , encosta o


ouvido ao chão e vê se consegues ouvir o trote dos
viajantes .

FALSTAFF E se eu me deito , vós tendes alavancas para depois


me levantar? Raios me partam se mais alguma vez
esta minha carne volta a andar tanto a pé - nem

74
HENRIQUE IV - PARTE I 2.2

pelo dinheiro todo do tesouro do teu pai . Que diabo


quereis vós para me montar esta partida?

PRÍNCIPE Isso não é verdade , não estás montado , estás des- 40

montado .

FALSTAFF Rogo-te , meu bom Príncipe , bom filho do Rei , ajuda-


-me a chegar ao meu cavalo .

PRÍNCIPE Alto lá, sacana , hei-de ser o teu moço de estrebaria?

FALSTAFF Olha, vai-te enforcar nas tuas jarreteiras de herdeiro le-


gítimo . Se eu for apanhado , denuncio-te por isto . Que
eu seja envenenado com um copo de seco se não hei-
-de mandar fazer baladas sobre vós todos , e cantadas
com músicas bem porcas . Quando uma brincadeira vai
tão longe - e ainda por cima a pé - eu detesto-a ! 50

Entra Gadshill

GADSHILL Alerta !

FALSTAFF Alerta e a pé , bem contra a minha vontade .

POINS [avançando, assim como Bardolph e Peto] É o nos-


so perdigueiro , conheço-lhe a voz . Que há de novo ,
Bardolph?

BARDOLPH Disfarcem-se , disfarcem-se , ponham as máscaras ,


que vem por aí abaixo o dinheiro do Rei . Vai a cami-
nho do tesouro real .

[Põem as máscaras]

FALSTAFF É mentira, sacana, vai mas é a caminho da taberna real .

GADSHILL Há que chegue para nos pôr a todos . . . 60

75
WILLIAM SHAKESPEARE 2.2

FALSTAFF Na forca.

PRiNcIPE Meus senhores , vós os quatro ides ao encontro deles


na viela estreita . Ned Poins e eu iremos mais atrás -
se eles vos escaparem, esbarram connosco .

PETO Quantos são eles?

GADSHILL Uns oito ou dez .

FALSTAFF Oh , diabo , não vão ser eles a assaltar-nos?

PRÍNCIPE Saístes cobarde , Senhor João Grande?

FALSTAFF Na verdade , Hal , não saí magro como o vosso avô


João de Gande , mas também não sou cobarde . 10

PRiNCIPE Bom, vamos pôr isso à prova .

POINs Patrão João , o teu cavalo está por detrás da sebe .


Quando precisares dele , lá o encontrarás . Adeus, e
aguenta !

FALSTAFF Ah , se eu lhe pudesse agora dar um murro , ainda que


fosse enforcado .

PRiNCIPE [aparte para Poins] Ned , onde estão os nossos dis­


farces?

Po1Ns Aqui pertinho , escondei-vos .

[Saem o Príncipe e Poins]

FALSTAFF Agora, meus senhores, seja a boa sorte o quinhão de so

cada um , é o que vos digo . Vamos ao trabalho .

Entram os Viajantes

76
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .2

PRIMEIRO
VIAJANTE Venha daí, companheiro , o rapaz leva-nos os cavalos
na descida . Vamos um bocado a pé para esticar as
pernas .

LADRÕES Alto !

SEGUNDO
VIAJANTE Ai , benza-nos Jesus !

FALSTAFF Vamos , por terra com eles , cortai o pescoço a esses


safados . Ah , suas lagartas filhas da puta , tratantes
atoucinhados , que nos detestam por sermos jovens !
Dêem-lhes para baixo , tosquiem-nos todos ! 90

PRIMEIRO
VIAJANTE Oh , estamos para sempre perdidos , nós e os nossos !

FALSTAFF Enforcai-vos, reles corpanzudos , estais perdidos?


Qual perdidos qual quê , seus somíticos gordos , to­
mara que a vossa fazenda aqui estivesse ! Vamos ,
seus presuntos , vamos , seus tratantes , a juventude
tem de sobreviver ! Vós sois juízes , não? - deixem ,
que nós vos damos o juízo !

Roubam-nos e amarram-nos

Saem

[Entram o Príncipe e Poins, disfarçados]

PRÍNCIPE Os ladrões amarraram os homens honestos . Agora,


se tu e eu roubarmos os ladrões e folgarmos a cami­
nho de Londres, teremos assunto para uma semana, 100

risota para um mês e uma boa pândega para sempre .

POINs Escondei-vos , já os ouço .

77
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .2

[Retiram-se]

Entram de novo os ladrões

FALSTAFF Vamos , meus senhores , façamos as partilhas , e ala


daqui para fora antes que seja dia. Se o Príncipe e
Poins não são dois grandessíssimos cobardes , não
há equidade que se veja. Não há mais valor naquele
Poins do que num pato-bravo .

Enquanto fazem as partilhas, o Príncipe e Poins caem sobre eles

PRíNcIPE Venha daí o dinheiro !

POINs Seus miseráveis !

Fogem todos, e Falstajf, depois de uma ou duas estocadas,


foge também , deixando para trás o saque

PRÍNCIPE Tudo foi fácil . Montemos prazenteiros . 1 10

Os ladrões dispersaram , e com tanto medo


Que não ousam encontrar-se uns com os outros .
Cada um toma o outro por um polícia .
Vamos , bom Ned ! Falstaff vai suar até à morte
A untar a terra seca pelo caminho .
Não fosse isto para rir, eu condoía-me .

rrnNs O que ele rugia , aquele gordo safado !

Saem

78
HENRIQUE IV - PARTE 1 2 .3

Cena 3

Entra Hotspur, só, lendo uma carta

[HmsPuR] «Mas pela minha parte , meu senhor, eu teria muito


gosto em estar convosco, pelo respeito que devo à
vossa casa .»
Teria muito gosto ! Porque é que então não vem? Pelo
respeito que devo à vossa casa. Assim mostra mas
é que gosta mais do seu palheiro do que respeita a
nossa casa . Deixa-me ler mais .
« 0 feito que pretendeis levar a cabo é perigoso,»
Lá isso é . É perigoso apanhar uma constipação , dor­
mir, beber. Mas também vos digo , meu tolo senhor, 10

que é entre as urtigas do perigo que se colhe a flor da


segurança.
« 0 feito que pretendeis levar a cabo é perigoso, os
amigos que nomeais são incertos, o momento não é
apropriado e todo o vosso plano é muito ligeiro para
contrabalançar tão poderoso oponente .»
Achais que sim? Ah , achais que sim? Pois de novo
vos digo que tendes a cobardia rasteira de uma corça,
e que mentis . Que falta de miolo esta ! Santo Deus,
o nosso plano é um bom plano , melhor que qualquer 20

outro , e os nossos amigos são verdadeiros e constan­


tes . Um bom plano , bons amigos , tudo muito pro­
missor. Um excelente plano , e muito bons amigos .
Que espírito entorpecido , o deste sacana! Então , se
é o Lorde de York quem recomenda o plano , assim
como todas as medidas previstas . Diabos o levem , se
eu estivesse agora na presença deste estupor abria­
-lhe os miolos com o leque da esposa. Não estão
metidos nisto o meu pai , o meu tio , e não estou eu
próprio? E o Lorde Edmund Mortimer, o Lorde de 30

York , e Owen Glendower? E não está , além de todos ,


Douglas? Não tenho eu de todos eles o compromisso
escrito de se juntarem a mim em armas a nove do

79
WILLIAM SHAKESPEARE 2.3

mês que vem , e não estão já alguns deles a cami­


nho? Que estupor pagão é este , um infiel , é o que é !
Hah ! Agora vamos tê-lo , com a sinceridade que lhe
vem do medo e da frigidez do coração , a dirigir-se
ao Rei e a desvendar-lhe o processo todo ! Oh , que
malga de leite desnatado fui eu convidar para acção
tão honrosa - bem podia antes ter-me repartido em 40

dois e comigo mesmo ter andado à bofetada . Que se


enforque , deixá-lo contar tudo ao Rei , nós estamos
preparados . Partirei esta noite .
Entra a sua Senhora
Olá, Kate? Vou ter de te deixar dentro de duas horas .

LADY PERCY Ó meu bom senhor, porque estais tão só?


Em que ofendi eu , para nestes quinze dias
Ter sido banida do leito do meu esposo?
Doce senhor, o que te faz perder
A fome , o prazer e o precioso sono?
Porque voltas os olhos para o chão , 50

Sempre inquieto quando estás sozinho?


Porque perdeste a cor desse teu rosto
E trocaste os meus tesouros e direitos
Por cisma tacituma e melancólica?
Observei-te nos teus repousos breves
E ouvi murmúrios sobre férreas guerras ,
Ouvi-te adestrar o agitado corcel ,
Gritar «Coragem» , «Avante» , e também falaste
De surtidas , retiradas , trincheiras e tendas ,
De paliçadas , reparos , parapeitos , 60

De basiliscos , canhões e colubrinas ,


De presos resgatados , e de soldados mortos ,
E de todos os lances de luta violenta .
O teu espírito tem estado em guerra
E tem-te agitado tanto no teu sono ,
Que te aparecem gotas de suor na fronte
Como bolhas numa corrente agitada,
E há na tua face estranhas expressões

80
HENRIQUE IV - PARTE 1 2.3

Como quando um homem sustém o respirar


A uma súbita ordem. Que portentos são esses? 10

Algum assunto grave ocupa o meu senhor,


E, se ele me tem amor, eu devo conhecê-lo .

HOTSPUR Eh , lá !
[Entra um Criado]
O Gilliams já partiu com a encomenda?

CRIADO Sim , meu senhor, há uma hora .

HOTSPUR O Butler trouxe os cavalos do xerife?

CRIADO Acabou de trazer um cavalo , meu senhor.

HOTSPUR Que cavalo? Um ruão , de orelhas cortadas?

CRIADO Sim, meu senhor.

HOTSPUR Há-de ser meu trono , esse ruão . so

Vou montá-lo de imediato . Oh , Esperança !


Diz ao Butler que o leve para o parque .
[Sai o Criado]

LADY PERCY Mas ouvi , meu senhor.

HoTsPuR Que dizes , senhora?

LADY PERCY O que é que assim vos leva?

HOTSPUR É o meu cavalo, meu amor, é o meu cavalo .

LADY PERCY Acabai com isso , macaco tresloucado !


Nem uma doninha é sacudida assim ,
Por tanto mau humor. À minha fé que hei-de
Saber do que se trata , Harry, disso estai certos . 90

Temo que Mortimer, meu irmão , tenha agitado

81
WILLIAM SHAKESPEARE 2.3

A sua pretensão , e vos tenha pedido


Apoio em tal empresa. Mas se vós fordes . . .

ttoTsPuR Tão longe a pé vou-me cansar, amor.

LADY PERCY Vamos , vamos , periquito , respondei-me


Sem delongas à pergunta que vos faço .
À minha fé te quebro o dedo pequenino
Se não me contas já tudo o que se passa.

ttoTsPuR Basta ,
Basta de bagatelas . Amor ! Eu não te amo , 1 00

Tenho mais que fazer, Kate ; este mundo não é


De brincar às bonecas , nem de lidar com beijos .
É de esmurrar narizes , e de rachar coroas ,
E de as passar por boas . Deus meu ! O meu cavalo !
Que dizes, Kate? Mas que queres tu de mim?

LADY PERCY Não tendes amor por mim? De certeza que não?
Pois bem , se não tendes então amor por mim
Nem eu tão-pouco . Não tendes amor por mim?
É a brincar ou é a sério que o dizeis?

HOTSPUR Anda , vou sair a cavalo , queres vir ver-me? 1 10

Logo que esteja montado , jurarei


Que te amo sem limites . Mas ouve , Kate ,
Não quero mais ouvir-te a perguntar
Para onde vou , nem a indagar porquê .
Irei onde tiver de ir. E em conclusão ,
Vou deixar-te esta noite , gentil Kate .
Sei que és perspicaz , mas não o és mais
Que a esposa de Harry Percy. É s leal
Mas és também mulher. Quanto a segredos ,
Não há mulher mais fechada, já que acredito 1 20

Que não vais contar aquilo que não sabes .


Eis até onde , gentil Kate , em ti confio.

82
HENRIQUE IV - PARTE I 2.3

LADY PERCY Como? Até aí?

HoTsPuR Não mais além de aqui . Mas prestai atenção ,


Aonde quer que eu vá, também comigo ireis .
Hoje parto eu , amanhã ireis vós .
Isto chega, Kate?

LADY PERcv Tem de chegar, que remédio .

Saem

Cena 4

Entram o Príncipe e Poins

PRÍNCIPE Ó Ned , e se deixasses essa sala atabafada e me vies­


ses ajudar a uma boa risota?

POINs Onde estiveste , Hal?

PRÍNCIPE Com três ou quatro palermas no meio de três ou


quatro vintenas de pipas . Toquei a mais profun­
da corda da humildade . Meu rapaz , fiz juramento
de irmandade com um trio de taberneiros , e agora
posso tratá-los a todos pelos nomes próprios , como
Tom , Dick e Francis . Já afiançam pela sua salvação
que , embora eu seja apenas Príncipe de Gales , sou 10

contudo o rei da cortesia , e dizem-me francamente


que não sou um João orgulhoso como o Falstaff,
mas que sou um companheiro dos copos , um gajo
brioso , um bom rapaz - Santo Deus , até isto eles
me chamam - e que quando for Rei de Inglaterra
hei-de comandar todos os gajos porreiros de East­
cheap . Dizem que beber à farta é «tingir-se de ver­
melho» e , quando a gente pára de respirar enquanto

83
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

entorna , gritam «Alimpa ! » , e ordenam «Arrema­


ta ! » . Em conclusão , em apenas um quarto de hora 20

fiquei tão entendido no assunto que estou capaz de


beber com qualquer maltês na sua própria língua
para o resto da vida . Fica sabendo , Ned , que perdes-
te muita honraria por não teres participado comi­
go nesta actividade . Mas , meu doce Ned - para te
adoçar o nome dou-te este pedacinho de açúcar, que
me foi metido na mão agora mesmo por um ajudan-
te de taberneiro , um daqueles que em toda a vida
nunca disse outra coisa senão «Oito xelins e seis
dinheiros» e «Seja bem-vindo» , acrescentando com Jo

voz esganiçada qualquer coisa do género «Pronto ,


pronto , senhor ! Assenta aí meio litro de zurrapa na
Meia-Lua» . Mas olha aí, Ned , para passar o tem­
po enquanto o Falstaff não chega , fica por perto
enquanto eu interrogo este taberneirinho sobre as
razões por que me deu o açúcar. E vai chamando
por ele de vez em quando - o nome dele é Francis
- para que a história dele não passe do «Pronto ! » .
Afasta-te , que vais ter um bom aperitivo .

[Poins retira-se]

POINs [de dentro] Francis ! 40

PRÍNCIPE Perfeito .

POINS [de dentro] Francis !

Entra [Francis,] um moço de taberneiro

FRANCIS Pronto , pronto , senhor. Ralph , dá uma olhadela à


Romã .

PRÍNCIPE Vem cá, Francis .

84
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

FRANCIS Senhor?

PRÍNCIPE Por quanto tempo tens de ainda de servir, Francis?

FRANCIS Para ser franco , por cinco anos , tantos quantos . . .

POINS [de dentro] Francis !

FRANCIS Pronto , pronto , senhor. 50

PRÍNCIPE Cinco anos ! Ó Nossa Senhora ! Muito tempo para ou-


vir tilintar o estanho . Mas , Francis , serias tu capaz
de ter a valentia de fazer papel de cobarde com o teu
contrato e pores-te a mexer daqui?

FRANCIS Ó Senhor, posso jurar, meu senhor, por todas as bí-


blias em Inglaterra, do fundo do meu coração . . .

POINS [de dentro] Francis !

FRANCIS Pronto , senhor.

PRÍNCIPE Que idade tens , Francis?

FRANCIS Ora deixe-me ver, pelo São Miguel vou fazer . . . 60

POINS [de dentro] Francis !

FRANCIS Pronto , senhor - peço-lhe que aguarde um pouco ,


meu senhor.

PRÍNCIPE Mas ouve lá, Franci s , quanto ao açúcar que me deste ,


era um tostão dele , não era?

FRANCIS Ó Senhor, tomara que fossem dois !

PRÍNCIPE Dou-te mil libras por ele - diz-me quando as que­


res , e tê-las-ás .

85
WILLIAM SHAKESPEARE 2.4

POINs [de dentro] Francis !

FRANcrs Pronto , pronto . 70

PRÍNCIPE Pronto , Francis? De pronto não , Francis , mas ama­


nhã, Francis . Ou então , Francis , quinta-feira. Ou , na
verdade , Francis , quando quiseres . Mas Francis !

FRANCIS Senhor?

PRÍNCIPE Serás tu capaz de roubar este sujeito de algibeira es­


panhola , de gibão de couro e botões de cristal , de
cabelo curtinho e sinete de ágata, meia de lã escura e
jarreteira de lã fina , e de falinhas mansas?

FRANcrs Ó Senhor, de quem é que falais, meu senhor?

PRÍNCIPE Pois então a tua zurrapa castanha é a tua única bebi- so

da. Toma cuidado , Francis , que o teu colete de lona


branca não se suje. Na Berbéria, meu caro , ele não te
servirá de muito .

FRANcrs Como , senhor?

POINs [de dentro] Francis !

PRINCIPE Fora daqui , meu sacana, não ouves que te chamam?

Começam ambos a chamá-lo, o moço de taberneiro fica confuso,


sem saber a quem atender.
Entra o Taberneiro .

TABERNEIRO Então , ficas aí especado com tanta gente a chamar­


-te? Vai atender os clientes lá dentro .
[Sai Francis]
Meu senhor, o velho Sir John está à porta com mais
uma meia dúzia. Mando-os entrar? 90

86
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

PRÍNCIPE Deixa-os esperar um pouco , e depois abre a porta .


[Sai o Taberneiro]
Entra Poins
Poins !

ro1Ns Pronto , pronto , senhor.

PRfNCIPE Meu caro , o Falstaff e o resto dos ladrões estão aí.


Vamo-nos divertir?

POINs Vamo-nos divertir como grilos , meu rapaz . Mas dizei­


-me lá, que subtileza quisestes vós atingir com esta
troça do moço do taberneiro? Onde quereis chegar?

PRÍNCIPE Estou com todos os humores que sempre houve des-


de os velhos tempos do bom do Adão até esta noite 100

que ainda tão jovem vai .


[Entra Francis]
Que horas são , Francis?

FRANCIS Pronto , pronto , senhor.

[Sai Francis]

PRÍNCIPE Como pode alguém ter menos palavras que um pa­


pagaio e ser ao mesmo tempo filho de mulher ! Toda
a faina dele é escada acima, escada abaixo , e a elo­
quência cabe toda na parcela de uma conta. Ainda
não estou da catadura do Percy, o Hotspur do Norte ,
que me mata umas seis ou sete dúzias de escoceses ao
pequeno-almoço , lava as mãos e diz à mulher, «Estou 1 10

farto desta vida tão pacata, preciso de fazer alguma


coisa» . «Oh , meu doce Harry» , diz ela, «quantos ma­
taste hoje?» «Dá de beber ao meu ruão» , diz ele , e
responde-lhe , «Alguns catorze» , e uma hora depois ,
«Uma bagatela, uma bagatela.» Por favor, manda en­
trar o Falstaff. Vou fazer de Percy, e esse desalmado

87
WILLIAM SHAKESPEARE 2.4

pedaço de bife fará de Senhora de Mortimer, a senho­


ra sua esposa. «Rivo ! » , diz o bêbedo . Manda entrar o
Costeletas , manda, manda entrar o Pingue !

Entra[m] Falstaff [, Gadshill, Bardolph e Peto, seguidos por


Francis, com vinho]

POINs Bem-vindo , Jack , onde estiveste? 1 20

FALSTAFF Raios partam os cobardes , digo-vos eu , e diabos os


levem a seguir, assim seja e amém ! Serve-me aí um
copo de seco , moço . Não há-de faltar muito para eu
me ver a coser meias , a remendá-las , e até a fazer­
-lhes os pés . Raios partam os cobardes . Serve-me
um copo de seco , meu sacana . Já não há virtude
nesta terra?

Bebe

PRÍNCIPE Nunca viste Titã a beijar um prato de manteiga -


indulgente Titã ! - que se derrete com o doce conto
que o sol lhe conta? Se já viste , então olha-me para 1 30

este desconchavo .

FALSTAFF Meu sacana, este seco também tem cal misturada .


Num safado só se encontra sacanagem, mas um co­
barde é pior do que um copo de seco com cal mistu­
rada. Um cobarde safado ! Vai à tua vida, velho Jack,
morre quando quiseres . Se a coragem , a verdadeira
coragem, não está já esquecida à face da terra, então
fique eu como um arenque depois da desova. Não
restam em Inglaterra mais de três bons homens por
enforcar, e um deles é gordo e está a ficar velho . Deus 1 40

acuda a estes tempos , um mundo desgraçado , digo­


-vos eu . Antes eu fosse um tecelão : cantava salmos,
ou outra coisa qualquer. Raios partam os cobardes , é
o que vos digo .

88
HENRIQUE IV - PARTE I 2.4

PRÍNCIPE Então , saco de seco , que estás para aí a resmungar?

FALSTAFF E és tu filho de Rei ! Que nunca mais me cresça pê lo


na cara se não te corro do teu reino com um punhal
feito de um sarrafo e se não levo os teus súbditos to-
dos à tua frente como a um bando de gansos bravos .
Tu , Príncipe de Gales ! 1 50

PRÍNCIPE Mas então , meu fideputa redondo , o que é que há?

FALSTAFF Não sois vós um cobarde? Respondei-me lá ! E aí es-


se Poins?

POINS Oh , raios ! Se este pança gorda me toma a chamar


cobarde , por Deus que o trespasso .

FALSTAFF Eu , chamar-te cobarde? Hei-de ver-te danado antes


de te chamar cobarde , mas dava mil libras para con-
seguir correr tanto como tu . Tendes ombros muito
tesos , não ligais a quem fica atrás de vós . Chamas
a isso guardar as costas dos amigos? Com guarda- 1 60

-costas destes , antes quero haver-me com quem vem


pela frente ! Venha daí um copo de seco ! Eu seja um
sacana se hoje já bebi alguma coisa.

PRÍNCIPE Ah , seu tratante ! Ainda mal limpaste os lábios do teu


último copo .

FALSTAFF Para o efeito tanto faz . [Bebe .] Raios partam todos os


cobardes , isso é que vos digo .

PRÍNCIPE Mas o que é que há?

FALSTAFF O que é que há? Olha, há quatro de nós que apanha-


ram mil libras esta manhã. 1 70

PRÍNCIPE Onde está isso , Jack , onde está isso?

89
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

FALSTAFF Onde está? Foi-nos roubado . Eram cem contra os po-


bres de nós quatro .

PRÍNCIPE O quê , cem , dizes tu?

FALSTAFF Eu seja um sacana se não estive à espadeirada com


uma dúzia deles por duas horas seguidas . Só por mi-
lagre é que escapei . Oito vezes o gibão trespassado e
quatro o calção , o broquel rachado de alto a baixo , a
espada dentada que nem um serrote - ecce signum !
Nunca lutei melhor desde que me fiz homem . Mas 1 80

mesmo assim não chegou . Raios partam os cobardes


todos . Eles que digam . Se disserem um poucochinho
a mais ou a menos do que é verdade , são uns miserá-
veis e uns filhos das trevas .

[PRÍNCIPE) Dizei , senhores , como é que foi?

[BARDOLPH) Nós os quatro caímos sobre uma dúzia . . .

FALSTAFF Dezasseis , pelo menos, meu senhor.

[BARDOLPH) E amarrámo-los .

PETO Não , não , não foram amarrados .

FALSTAFF Foram amarrados , sim, meu sacana , um a um , ou se- 190

ja eu judeu , um judeu hebreu .

[BARDOLPH) Quando estávamos a repartir o bolo aparecerem ou-


tros seis ou sete . . .

FALSTAFF E desamarraram os que estavam , e então é que vie-


ram os outros .

PRÍNCIPE O quê , tiveram de lutar contra eles todos?

90
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

FALSTAFF Todos? Não sei a que chamais todos, mas seja eu um


molho de rabanetes se não tive de me haver com uns
cinquenta . Houve bem uns cinquenta e dois ou três
em cima do pobre e velho Jack , ai isso houve , ou não 200

me tenha eu em duas pernas .

PRÍNCIPE Rezo a Deus que não tenhas matado algum .

FALSTAFF Já não há rezas nem meias rezas que lhes valham , dois
deles fi-los eu em fanicos . Dois tenho a certeza de que
arrumei , dois sacanas de fatos engomados . É o que te
digo , Hal , e se for mentira podes cuspir-me na cara
e chamar-me cavalo . Conheces a minha defensiva do
costume , Hal - eu estou aqui , e empunho a espada
assim . Quatro sacanas engomados atiram-se a mim . . .

PRÍNCIPE Quatro? Mas ainda agora disseste que eram dois . 210

FALSTAFF Quatro , Hal , eu disse quatro .

POINS Sim, sim , ele disse quatro .

FALSTAFF Avançaram os quatro juntos e atiraram-se principal-


mente a mim . Não estive com mais nada, parei as
sete pontas das espadas no meu broquel , assim !

PRÍNCIPE Sete? Mas ainda agora eram só quatro .

FALSTAFF Engomados?

POINS Sim, quatro de fatos engomados .

FALSTAFF Sete , juro por este punho da espada, ou eu seja um


miserável . 220

PRÍNCIPE Deixá-lo , vão já ser mais .

91
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

FALSTAFF Estás-me a ouvir, Hal?

PRÍNCIPE Sim, sim , Jack , a ouvir e a tomar nota .

FALSTAFF Fazes bem , porque vale a pena . Dizia eu que esses


nove todos engomados . . .

PRÍNCIPE Portanto , já são mais dois .

FALSTAFF Quando se lhes quebraram as lâminas . . .

POINs Ficaram com os copos .

FALSTAFF Começaram a ceder terreno . Mas eu não os larguei ,


deitei-me a eles , e lesto como um pensamento , dos 230

onze logo ali aviei sete .

PRÍNCIPE Que monstruosidade ! De dois homens engomados


saíram onze !

FALSTAFF Mas havia de querer o demónio que três patifes mal­


-nascidos , vestidos de verde , me atacassem pelas
costas . E estava tão escuro , Hal , que nem as próprias
mãos se conseguia ver.

PRÍNCIPE Essas mentiras são como o pai que as engendra:


enormes como montanhas , descaradas , palpáveis .
Seu pançudo com cabeça-de-alho-chocho , seu tolo 240

de cachola empedernida, sua nojenta pingadeira filha


da puta e besuntada . . .

FALSTAFF Que é isso , estás louco? Estás louco? Então a verda­


de não é o que é?

PRÍNCIPE Pois então como podias saber que esses homens es­
tavam vestidos de verde , se estava tão escuro que
nem sequer vias as mãos? Anda lá, explica-te . Que
dizes a isto?

92
HENRIQUE IV � PARTE I 2 .4

POINS Vamos , explica-te , Jack , explica-te .

FALSTAFF O quê , sob pressão? C ' os diabos, nem que me pu- 250

sessem na polé , ou em todas as rodas do mundo ,


não vos diria nada sob pressão . Explicar-me sob
pressão? Mesmo que fossem as explicações como
as cerejas , nem assim eu me explicaria a ninguém
sob pressão . Olha eu !

PRÍNCIPE Recuso-me a jogar mais o jogo deste cobarde san-


guíneo - um derreia-camas , um quebra-cavalos , um
grande montão de carne , é o que ele é .

FALSTAFF Olha-me este magricelas , este trinca-espinhas , e tu


o que és? Uma língua de vaca seca, um vergalho de 260

boi , um bacalhau curado ! Falta-me fôlego que che-


gue para dizer tudo o que és ! Um metro de alfaiate ,
uma bainha vazia, uma caixa de arco , um reles esto-
que embotado !

PRÍNCIPE Bom, vê se tomas fôlego para começar de novo , e


quando te cansares dessas comparações mesquinhas ,
ouve o que tenho para te dizer.

POINS Toma nota, Jack !

PRÍNCIPE Nós dois vimos vós os quatro a deitar a mão a quatro ,


a amarrá-los e a tomar conta do dinheiro deles - 210

tomai agora nota de como uma história simples vos


deita por terra . Então nós os dois deitámos a mão a
vós os quatro e num abrir e fechar de olhos arreca­
dámos o vosso saque , que temos connosco aqui em
casa e vos podemos mostrar. E, meu caro Falstaff,
vós levastes embora a vossa pança com tanta leveza,
com tão lesta agilidade , e berrastes por piedade , e
continuastes a correr e a berrar como nunca a um vi­
telo eu ouvi . Que abjecto tu é s , para amolgares assim

93
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

a tua espada e depois vires dizer que foi em combate . 2so

Que artimanha , que disfarce , que toca vais tu arran­


jar agora para te esconderes desta vergonha clara e
descarada?

P01Ns Vamos lá, Jack , que artimanha tens tu agora?

FALSTAFF Valha-me Deus , eu reconheci-vos tão bem como quem


vos fez . Oiçam cá, meus senhores , então acham que
eu ia matar o herdeiro legítimo? Havia eu de me voltar
contra o verdadeiro Príncipe? Vós bem sabeis que eu
sou tão valente como Hércules . Mas respeito o instin-
to . O leão não toca no verdadeiro Príncipe . O instinto é 290

uma coisa muito séria. Neste caso fui cobarde por ins­
tinto . Terei assim melhor opinião de mim, e de vós , pa-
ra toda a vida - de mim como um valente leão , de vós
como verdadeiro Príncipe . Mas valha-me Deus , meus
rapazes , ainda bem que tendes o dinheiro . Hospedeira,
bate-me essas portas ! Vigília esta noite , oração ama­
nhã ! Galantes , bons rapazes , corações de ouro , todos
os títulos da boa amizade sejam vossos ! Então , vamo­
-nos divertir? Vamos a uma peça de improviso?

PRÍNCIPE De acordo , e o tema será a tua fuga . 300

FALSTAFF Ah , deixa lá isso , Hal , se é que gostas de mim .

Entra a Hospedeira

HOSPEDEIRA Ai , Jesus, senhor meu Príncipe !

PRÍNCIPE Que há , senhora hospedeira, que quereis de mim?

HOSPEDEIRA Ai , meu senhor, que está à porta um nobre da corte que


vos quer falar. Diz que vem da parte de vosso pai .

94
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

PRÍNCIPE Um nobre da corte? Dá-lhe o que for preciso para


fazer dele um real da corte e manda-o de volta para a
minha mãe .

FALSTAFF Que género de homem é ele?

HOSPEDEIRA É um homem de idade . 310

FALSTAFF Que faz a circunspecção fora da cama à meia-noite?


Posso ir eu falar-lhe?

PRÍNCIPE Certamente que sim , Jack .

FALSTAFF À minha fé que me vejo livre dele .

Sai

PRÍNCIPE Então , meus senhores , por Nossa Senhora, vós com­


batestes valentemente , vós , Peto , e também vós , Bar­
dolph . Também sois leões , fugistes por instinto , e não
tocais no verdadeiro Príncipe , não é? Que vergonha !

BARDOLPH À minha fé , eu só fugi quando vi fugir os outros .

PRÍNCIPE À fé , dizei-me agora a sério , como ficou a espada de 320

Falstaff assim cheia de golpes ?

PETO Foi ele com o punhal , e disse que havia de correr


com a verdade para fora da Inglaterra à custa de tanto
jurar falso , se tal fosse preciso para vos fazer acre­
ditar que tinha sido em combate , e convenceu-nos a
fazer o mesmo .

BARDOLPH Pois , e disse-nos para esfregarmos os narizes com ur­


tigas de maneira a fazê-los deitar sangue e para depois
emporcalharmos as roupas com ele e jurarmos que era
sangue de homens verdadeiros . Aconteceu-me uma 330

95
WILLIAM SHAKESPEARE 2.4

coisa que já para aí há uns sete anos não me acontecia:


corei quando ouvi esses estratagemas monstruosos .

PRÍNCIPE Meu miserável , tu roubaste um copo de seco há de­


zoito anos , foste apanhado com a boca na botija, e
desde então sempre coraste a destempo . Tu tinhas
contigo o fogo e a espada e mesmo assim deitaste a
fugir. Que instinto te levou a isso?

BARDOLPH Meu senhor, vedes estes meteoros , observais estas


exalações?

PRÍNCIPE Sim. 340

BARDOLPH Que pensais vós que pressagiam?

PRÍNCIPE Fígados aquecidos e bolsas frias .

BARDOLPH Cólera , meu senhor, se forem bem apreendidos .

PRÍNCIPE Não , se bem apreendidos , é um colar de corda .


Entra Fa/staff
Aqui vem o magricelas do Jack, aqui vem o pele-e­
-osso . Então , minha doce criatura de enchumaço , há
quanto tempo , Jack, já não vês o teu próprio joelho?

FALSTAFF O meu joelho? Quando eu tinha a tua idade , Hal ,


tinha uma cintura mais estreita que a unha de uma
águia - era capaz de passar pelo anel do polegar de 3so

um edil . Raios partam o sofrer e o suspirar, enfunam


um homem como a uma bexiga. Chegaram notícias
sinistras . Esteve cá Sir John Bracy, da parte de vos-
so pai . Deveis apresentar-vos na corte pela manhã.
Aquele tipo doido do Norte , o Percy, e aquele de Ga­
les que deu uma cacetada em Amamon , e encornou o
Lucifer, e ao demónio jurou vassalagem sobre a cruz
de uma cachaporra - como diabo se chama ele?

96
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

POINs Ah , Glendower.

FALSTAFF Owen , Owen , esse mesmo . E o genro dele , Mortimer, 360

e o velho Northumberland , e aquele escocês esperto ,


Douglas , que se some a cavalo a pique por uma en­
costa acima . . .

PRÍNCIPE Que cavalga a alta velocidade , e a tiro de pistola ma­


ta um pardal em voo .

FALSTAFF Acertastes .

PRÍNCIPE O que ele nunca fez com o pardal .

FALSTAFF Bom , esse estupor é feito de bom metal , do que não


se some .

PRfNCIPE Que estupor me saíste tu então , que acabas de o elo- 310

giar por se sumir !

FALSTAFF A cavalo , meu cuco , porque a pé ele não mexe um pé .

PRfNCIPE Pois , Jack , por instinto .

FALSTAFF Admito , é por instinto . Bom esse também lá está; as­


sim como um tal Mordake , e mais um milhar de bar­
retes azuis escoceses . Worcester já saiu esta noite em
segredo . A barba do teu pai ficou branca só de ouvir
as notícias . Pode-se agora comprar terra tão barata
como cavalas malcheirosas .

PRfNCIPE Bom , parece que se tivermos um Junho quente e se 3so

eles pegarem à chapada civil , vamos comprar vir­


gens como quem compra pregos , ao cento .

FALSTAFF Pela santa missa, meu rapaz , dizes bem; desconfio


que por esse lado vamos fazer bom negócio . Mas diz-

97
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

-me cá, Hal , não estás com um medo horrível? Sendo


tu o herdeiro legítimo , logo haviam de te aparecer de
novo três inimigos deste calibre , como esse malvado
Douglas , esse mafarrico Percy, e esse demónio Glen­
dower? Não estás com um medo horrível? Não se te
gela o sangue só de pensar? 390

PRÍNCIPE Nem um poucochinho , podes crer. Falta-me o teu


instinto .

FALSTAFF Bom , mas vais ser horrivelmente repreendido ama­


nhã quando fores ao teu pai . Se gostas de mim , vai
ensaiando uma resposta .

PRÍNCIPE Então tu vais fazer de meu pai e interrogas-me sobre


os pormenores da minha vida .

FALSTAFF Sim? De acordo ! Esta cadeira será o meu trono , este


punhal o meu ceptro e esta almofada a minha coroa .

PRÍNCIPE O teu trono vai parecer uma cadeira, o teu ceptro 400

dourado um punhal de chumbo e a tua preciosa e rica


coroa uma deplorável coroa careca .

FALSTAFF Bom, s e a chama d a graça não te deixou por inteiro ,


vais-te comover. Dai-me um copo de seco para me
fazer os olhos vermelhos , para parecer que chorei .
O meu discurso tem de ser arrebatado , e vou fazê-lo
com pompa e circunstância, à moda do Rei Cambises .

PRÍNCIPE Pois bem , aqui está a minha perna.

FALSTAFF E aqui está o meu discurso . Que os nobres se afastem .

HOSPEDEIRA Ai , Jesus , à minha fé que isto é uma grande pândega . 410

FALSTAFF Não choreis , doce Rainha , as lágrimas são vãs .

98
HENRIQUE IV - PARTE 1 2 .4

HOSPEDEIRA Ó Pai Nosso , como ele se põe tão sério !

FALSTAFF Por Deus, senhores , levai daqui a triste Rainha,


Que as lágrimas enchem os diques de seus olhos .

HOSPEDEIRA Ai , Jesus , que ele faz isto tão bem como os melhores
farsantes que por aí tenho visto .

FALSTAFF Calma , minha boa caneca, calma , minha boa baga­


ceira. Harry, não só me espanto com a tua vida , como
também com as companhias que arranjaste . Se é ver­
dade que a camomila tanto mais cresce quanto mais 420

é pisada , já a juventude tanto mais se gasta quanto


mais mal é levada . Sei que és meu filho , em parte
porque a tua mãe mo disse , em parte porque também
disso estou convencido , mas principalmente por esse
teu olhar travesso e por esse apatetado lábio descaí­
do . Mas se então és meu filho - e aqui é que bate o
ponto - se és então meu filho , por que te apontam o
dedo? Poderá o sol , abençoado filho do céu , tomar­
-se um cábula que deixa a escola para andar às amo­
ras ? Eis uma pergunta que não se faz . Poderá o filho 430

da Inglaterra tomar-se um ladrão e andar a roubar


bolsas? Eis uma pergunta que se faz . Há uma coisa,
Harry, de que já muitas vezes ouviste falar, e que é
conhecida na nossa terra pelo nome de pez . Esse pez
- como relatam os escritos antigos - mancha quem
nele toca, tal como as companhias que tu levas . Por­
que , Harry, não é agora com vinho que te falo , mas
com lágrimas ; não é com prazer, mas com paixão ;
não é com palavras só , mas com pesar também . E
contudo sei que há entre os teus companheiros um 440

homem virtuoso , mas não sei o seu nome .

PRÍNCIPE E podereis dizer-me , Majestade , que género de ho­


mem?

99
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

FALSTAFF Consideravelmente majestoso , vos asseguro , e en­


troncado; de aspecto bem-disposto , amável semblan­
te e de porte mui nobre ; e, segundo penso , aí pelos
seus cinquenta , ou , quando muito , a inclinar-se para
os sessenta . Ah , agora me lembro , o seu nome é Fals­
taff. Muito esse homem me engana, Harry, se calha
de ser dado à maganice , porque eu vejo-lhe virtude 4so

no olhar. Se a árvore se conhece pelo fruto , como


o fruto pela árvore , então peremptoriamente te digo
que há virtude nesse Falstaff. Fica com ele , e desfaz-
-te dos outros . E agora diz-me , meu rapazola safado ,
diz-me por onde tens andado este mês?

PRÍNCIPE Isso é falar como um Rei? Faz tu de mim , que eu


faço de meu pai .

FALSTAFF Estou deposto? Se nas palavras como nas causas o


fizeres com metade da minha compostura e majesta­
de , bem me podes pendurar pelos calcanhares como 460

a um laparinho , ou como a uma lebre no talho .

PRÍNCIPE Bom, aqui estou eu sentado .

FALSTAFF E aqui estou eu de pé . Julgai , meus senhores .

PRÍNCIPE Então , Harry, de onde vindes?

FALSTAFF Meu nobre senhor, venho de Eastcheap .

PRÍNCIPE As acusações que contra ti me chegam são graves .

FALSTAFF Pelas chagas de Cristo , meu senhor, é tudo falso ! À


minha fé que vos amimo como um jovem príncipe .

PRÍNCIPE Tu praguejas , meu desgraçado rapaz? Nem sequer


olhes para mim de ora em diante . Estás definitiva- 410

mente afastado da graça. Há um demónio que te

100
HENRIQUE IV - PARTE 1 2 .4

apoquenta na forma de um velho gordo , um tonel de


gente que é teu companheiro . Porque te dás com esse
baú de humores , esse crivo de bestialidade , esse in­
chado pacote de hidropisias , esse enorme caneco de
seco , essa mala de porão atafulhada de tripas , esse
boi assado com a pança recheada, esse reverendo Ví­
cio , essa Iniquidade encanecida, esse Avô Rufião , es-
sa Vaidade caquética. Em que é ele bom, a não ser a
provar seco e a bebê-lo? Em que é esmerado e limpo , 4so

a não ser a trinchar um capão e a comê-lo? Em que


é hábil , a não ser em manhas? Em que é manhoso , a
não ser em patifarias? Em que é patife , a não ser em
tudo? Em que é honrado , a não ser em nada?

FALSTAFF Pudera eu acompanhar a discorrência de Vossa Gra­


ça. A quem se refere Vossa Graça?

PRÍNCIPE A esse abominável patife desencaminhador da juven­


tude , Falstaff, esse velho Satanás de barba branca .

FALSTAFF Meu senhor, esse homem sei e u quem é .

PRÍNCIPE E u sei que sabes . 490

FALSTAFF Mas dizer que sei nele maior mal do que em mim seria
dizer mais do que eu próprio sei . Lá que ele é velho ,
tanto mais se lamenta, os seus cabelos brancos são
disso testemunho; mas agora que ele seja, com o de­
vido respeito a vossa reverência, um putanheiro , isso
eu inteiramente o nego . Se seco com açúcar for um
crime, que Deus valha aos malfeitores ! Se ser velho
e alegre for pecado , então muito velho estalajadeiro
que eu conheço há-de estar já condenado aos infer­
nos . Se por ser gordo se há-de ser odiado , as vacas soo

magras do Faraó serão então amadas . Não , meu bom


senhor! Apartai Peto , apartai Bardolph , apartai Poins;
mas quanto ao doce Jack Falstaff, ao afável Jack Fals-

1 01
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

taff, ao fiel Jack Falstaff, ao valente Jack Falstaff - e


ainda mais valente , sendo como é velho o velho Jack
Falstaff - não aparteis o vosso Harry da sua compa­
nhia, não aparteis o vosso Harry da sua companhia.
Apartai o gorducho Jack, e apartareis o mundo inteiro .

PRÍNCIPE Eu o faço , eu o farei .

[Ouve-se bater à porta]

[Saem a Hospedeira, Francis e Bardolph]

Entra Bardolph a correr

BARDOLPH Ó meu senhor, meu senhor, está aí o Xerife mais uma 510

monstruosa quantidade de vigilantes .

FALSTAFF Fora daqui , sacana ! Vamos representar até ao fim !


Ainda tenho muito para dizer em favor desse Falstaff.

Entra a Hospedeira

HOSPEDEIRA Ai , Jesus , meu senhor, meu senhor !

PRÍNCIPE Eia ! , eia ! , anda por aí o diabo a cavalo num arco de


rabeca, ou quê? Que é que se passa?

HOSPEDEIRA Está à porta o Xerife , mais os vigilantes todos . Vêm


para revistar a casa. Deixo-os entrar?

FALSTAFF Estás a ouvir, Hal? Nunca tomes ouro de lei por ar­
remedo . Tu no fundo és autêntico , se bem que não 520

pareças .

PRÍNCIPE E tu és um cobarde natural e sem instinto .

FALSTAFF Nego a tua maior. Se tu negares o Xerife , muito bem;


senão , ele que entre . Maldita seja a minha formação

1 02
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

se na carroça eu não me portar como um homem !


Espero que a corda me estrangule tão depressa como
a qualquer outro .

PRÍNCIPE Vai-te esconder por detrás do arrás , os outros vão lá


para cima. E agora , meus senhores , cara séria, e boa
consciência. 530

FALSTAFF Tive e tenho a ambas , mas estão fora de prazo . Por


isso me escondo .

[Saem todos menos o Príncipe e Peto]

PRÍNCIPE Mandem entrar o Xerife .

Entram o Xerife e o Almocreve

PRÍNCIPE Então , senhor Xerife , que pretendeis de mim?

XERIFE Perdoai-me , meu senhor, mas um alarido


Perseguiu até esta casa uns certos homens .

PRÍNCIPE Que homens?

XERIFE Meu gentil senhor, um deles é notório ,


Um homem muito gordo .

ALMOCREVE Gordo como manteiga.

PRÍNCIPE Asseguro-vos que esse homem não está aqui , 540

Pois eu mesmo lhe dei emprego nesta hora.


Mas tomai minha palavra, senhor Xerife ,
Que , até amanhã pela hora do jantar,
O enviarei a vós , ou a qualquer outro ,
A responder pelo que for que o incrimine .
E agora rogo-vos que deixeis esta casa.

103
WILLIAM SHAKESPEARE 2 .4

xERIFE Deixarei , meu senhor. Há duas pessoas


Que perderam trezentos marcos nesse assalto .

PRÍNCIPE Admito que sim . Se o ladrão foi ele ,


Responderá por isso . Adeus , e passai bem . 550

XERIFE Boa noite , meu nobre senhor.

PRÍNCIPE Penso que já é bom dia , ou não será?

XERIFE É certo , senhor, já devem ser duas horas .

Sai [, com o Almocreve]

PRÍNCIPE Este mariola ensebado é tão conhecido como São


Paulo . Ide chamá-lo .

PETO Falstaff! Está a dormir por detrás do arrás e resfolega


que nem um cavalo .

PRÍNCIPE Olha só como até lhe custa respirar. Revista-lhe os


bolsos .
[Peto] revista-lhe os bolsos e encontra alguns papéis
Que foi que encontraste? 560

PETO Apenas papéis , meu senhor.

PRÍNCIPE Vamos ver que papéis são . Lê-os .

[PETO] [lê] Um capão 2 xe lins e 2 dinheiros


Mo lho 4 dinheiros
Dois ga lões de seco 5 xe lins e 8 dinheiros
Anchovas e seco depois da ceia 2 xe lins e 6 dinheiros
Pão meio dinheiro

[PRÍNCIPE] Que monstruosidade ! Só meio dinheiro de pão para


esta intolerável quantidade de seco . Guarda o que de

1 04
HENRIQUE IV - PARTE I 2 .4

mais aí haja, para lermos noutra altura . E deixa-o dor- s10

mir até ser dia. Irei à corte pela manhã. Teremos todos
de ir para a guerra, e tu terás nela um lugar honroso.
Hei-de arranjar para este gordo safado uma compa­
nhia de infantaria, e já sei que a primeira marcha vai
ser a morte dele . O dinheiro será devolvido com juros .
Vai ter comigo pela manhã, bem cedo . Bom dia, Peto .

PETO Bom dia, meu bom senhor.

Saem

1 05
ACT0 3

Cena 1

Entram Hotspur, Worcester, Lorde Mortimer e Owen Glendower

MORTIMER As promessas são justas , os partidos certos ,


A nossa abertura dá esperanças de futuro .

HoTsPuR Lorde Mortimer, e primo Glendower, queiram sentar-se .


E meu tio Worcester. Diabos levem isto !
Esqueci-me do mapa.

GLENDOWER Não , tenho-o eu aqui .


Sentai-vos , primo Percy, meu bom primo Hotspur;
A esse nome , quando o Lancaster de vós fala ,
Fica-lhe a face lívida, e com um suspiro
Deseja-vos no céu .

HoTsPuR E a vós no inferno ,


Sempre que ouve o nome de Owen Glendower. 10

GLENOOWER Não o culpo por isso . À minha nascença


Encheu-se a fronte do céu de formas ígneas ,
De tochas flamejantes , e na hora em que nasci
O arcaboiço e as fundações da terra
Tremeram como um cobarde .
WILLIAM SHAKESPEARE 3.1

ttoTsPUR Bom, tê-lo-iam feito ,


Se a gata da vossa mãe tivesse gatinhos
Nessa mesma altura , mesmo sem vós nascerdes .

GLENoowER Digo-vos que a terra tremeu quando e u nasci .

ttoTsPuR E eu digo que a terra pensa diferente de mim ,


Se supondes que ela tremeu por vos temer. 20

GLENoowER Os céus estavam em fogo , a terra estremeceu . . .

ttoTsPuR Então a terra tremeu por ver os céus em fogo ,


E não por medo do vosso nascimento .
Quantas vezes , doente , desponta a natureza
Em estranhas erupções , a terra prenhe
Fica afrontada e irritada por uma cólica
Vinda do bravio vento que , aprisionado
No seu ventre , e para tentar soltar-se ,
Abala a velha senhora terra e derriba
Campanários e torres musgosas . Quando nascestes 30

A avozinha terra, com tal destemperança,


Tremeu de aflição .

GLENOOWER Primo , a poucos eu admito


Que assim me contradigam . Permiti-me
Dizer-vos mais uma vez que à minha nascença
A fronte do céu se encheu de formas ígneas ,
As cabras desceram da serra e os rebanhos
Berravam estranhamente aos campos assustados.
Estes sinais marcaram-me de extraordinário ,
E todos os cursos da minha vida mostram
Que não pertenço ao rol das pessoas vulgares . 40

Há ele alguém , no círculo deste mar


Em tomo da Inglaterra, de Gales e da Escócia ,
Que m e chame discípulo o u m e tenha instruído?
E mostrai-me quem , nascido de mulher,
Possa seguir-me nas vias áridas da arte
E acompanhar-me nas experiências profundas .

108
HENRIQUE IV - PARTE I 3.1

HOTsruR Penso que ninguém fala melhor galês .


Vou jantar.

MORTIMER Calma , primo Percy, estais a endoidecê-lo .

aLENoowER Posso chamar espíritos das profundezas . 50

HoTsruR Lá isso , também eu , e qualquer outro pode ,


Mas será que eles vêm quando os chamais?

GLENoowER Posso ensinar-vos , primo , a comandar o demo .

HOTsruR Ó primo , e eu te ensino a escorraçar o demo


Com a verdade . Com a verdade se escorraça o demo .
Se tens poderes para o chamar, trá-lo então cá,
E juro que com os meus poderes eu o escorraço .
Enquanto tendes vida , escorraçai-o com a verdade !

MORTIMER Vamos , acabai com esta conversa inútil .

GLENoowER Por três vezes Henry Bullingbrook se ergueu 60

Contra mim , por três vezes das margens do Wye


E do arenoso Sevem o enviei de volta
Descalço e açoitado pela intempérie .

HOTSPUR De volta e sem botas , e também com mau tempo !


Como diabo escapou ele às sezões?

aLENoowER Aqui está o mapa . Dividimos as terras


Segundo o acordo a três que nós fizemos?

MORTIMER O Arcediago , muito equitativo ,


Já as dividiu em três partes iguais .
Do Trent e do Sevem até aqui , a Inglaterra 70

A sul e a leste caber-me-á a mim;


Para oeste , o País de Gales além do Sevem
E todas as terras férteis que lhe pertencem ,

1 09
WILLIAM SHAKESPEARE 3.1

A Owen Glendower. E para vós , meu primo ,


Tudo o que fica para norte do Trent.
Os contratos tripartidos estão escritos ,
Só falta que os selemos mutuamente -
O que poderá ser feito já esta noite -
E amanhã , primo Percy, vós e eu
Com Lorde Worcester partiremos ao encontro so

De vosso pai e das forças escocesas ,


Em Shrewsbury, conforme combinado .
O meu pai Glendower não está ainda pronto ,
Nem precisamos dele nestas duas semanas .
[Para Glendower]
Tereis entretanto tempo para reunir
Os vassalos , os amigos e os vizinhos.

GLENDOWER Estarei convosco antes disso , meus senhores ,


E levarei à minha guarda vossas damas ,
De quem vos deveis separar sem despedida ,
Ou haverá um mundo de água derramada 90

Se vos encontrardes antes da partida .

HOTSPUR Acho que a minha parte , a norte aqui de Burton ,


Não iguala em quantidade as que vos cabem .
Vejam como o curso arrevesado deste rio
Me tira do melhor das minhas terras
Tão grande meia-lua, um pedaço enorme .
Vou mandar barrar a corrente neste sítio
De modo a que o manso e prateado Trent
Siga suavemente por um novo canal .
Assim já não se encurva num tão fundo entalhe 100

A roubar-me aqui de um tão rico leito .

GLENDOWER Ai não , que não se encurva. E sempre se há-de encurvar.

MORTIMER Pois ,
Mas reparai no seu curso , como ele corre
Com desvantagem igual para o meu lado ,

110
HENRIQUE IV - PARTE I 3.1

Castrando a margem oposta de tanto quanto


No outro lugar vos retira à vossa .

woRcEsTER Pois , mas pouco há-de custar desviá-lo aqui


E ganhar na margem norte este cabo de terra -
Depois já ele corre a direito e plano . 1 10

HoTsPuR É o que eu vou fazer, e pouco há-de custar.

GLENOOWER Não o quero mudado .

ttoTsPuR Ai não quereis?

GLENoowER Não , e não o mudareis .

HOTSPUR Quem me dirá que não?

GLENOOWER Quem? Di-lo-ei eu .

HOTSPUR Dizei-o então em galês , para que eu não entenda .

GLENoowER Eu falo inglês , senhor, tão bem quanto vós ;


Fui educado na corte em Inglaterra
E , quando era novo , soube com muita graça
Compor para a harpa várias canções inglesas
E assim dar à língua prestáveis ornamentos - 1 20

Uma virtude que em vós nunca foi vista .

HoTsPuR Oh , senhores ! , o que muito me compraz !


Antes eu fora um gatinho a fazer «miau»
Do que um desses enfadonhos baladeiros .
Antes o arranhar de um castiçal de bronze
Ou uma roda seca a ranger no eixo;
Nada disto me põe os nervos em franja
Mais do que essa poesia delambida .
É como forçar o trote a uma pileca coxa.

111
WILLIAM SHAKESPEARE 3.1

GLENDOWER Vamos lá, vós haveis de dar a volta ao Trent . 1 30

HOTSPUR Não me importo de dar três vezes essas terras


A algum amigo que seja merecedor.
Mas se vamos a contratos , aí cuidado ! ,
Eu marralho pela nona parte de um cabelo .
Os acordos estão prontos? Vamos embora?

GLENDOWER Está um óptimo luar, podeis partir de noite .


Vou apressar o escrivão e , ao mesmo tempo ,
Informar vossas esposas de que partis .
Receio bem que a minha filha enlouqueça,
Tão embeiçada que ela está por Mortimer. 1 40

Sai

MORTIMER Irra, primo Percy, sempre a desdizer meu pai !

HOTSPUR Que hei-de eu fazer? Eu fico furioso


Com as histórias da toupeira e da formiga,
Do sonhador Merlin mais as suas profecias ,
Do dragão e do peixe sem barbatanas ,
Do grifo desasado e do corvo sem penas ,
Do leão deitado e do gato rampante ,
E de outros tantos disparates do género
Que me põem fora de mim . Na noite passada
Tive de o ouvir por umas nove horas , pelo menos , 1 50

A dar conta dos nomes dos muitos demónios


Que são seus lacaios . E eu «Hum , hum» , «Pois , pois» ,
Mas sem lhe ligar nada . Oh , ele é tão chato
Como cavalo cansado ou esposa rabugenta ,
Pior que casa enfumarada . Antes viver
De queijo e alho num moinho de vento , longe ,
Do que comer iguarias e ter de o ouvir
Em qualquer casa de Verão na Cristandade .

MORTIMER Na verdade ele é um mui digno cavalheiro ,


Letrado como poucos , e versado 1 60

1 12
Em saberes estranhos ; como um leão , valente ,
Sobremaneira afável , e tão generoso
Como as minas da Índia. E digo-vos mais , primo:
O seu respeito pelo vosso temperamento
Leva-o a refrear os seus poderes naturais
Sempre que o contradizeis . Olhai que isto é verdade .
Garanto-vos que não está vivo nenhum
Que o tenha provocado como vós
Sem ter de tal sentido o perigo e a censura.
Mas não deveis abusar, isso eu vos peço . 1 10

woRcEsTER A vossa teimosia é de facto culposa,


E desde que aqui estais foi já suficiente
Para o levar a perder a paciência.
Deveis aprender, senhor, a emendar tal erro .
Por vezes sinal de valor, grandeza e ânimo -
Esta é a elevada graça que esse erro vos concede -
Já outras vezes indicia azeda ira ,
Falta de modos , ausência de governo ,
Orgulho , altivez , arrogância e desdém;
E se o menor destes defeitos toca um nobre , 1 so

Priva-o do coração dos homens , e enxovalha


O que de belo haja nas suas qualidades ,
Sonegando o que elas tenham de estimável .

HOTSPUR Bom , estou instruído - que os bons modos vos


valham !
Eis as nossas mulheres , vamos às despedidas .

Entra Glendower com as Senhoras

MORTIMER Este é o desgosto mortal que me apoquenta ,


Minha mulher não fala inglês , nem eu galês .

GLENDOWER A minha filha chora e diz que não vos deixa,


Quer ser também soldado e quer ir para as guerras .

113
J.l

MORTIMER Dizei-lhe , bom pai , que com a minha tia Percy 1 90

Ela em breve seguirá, sob vossa escolta .

Glendower fala com ela em galês, e ela reponde-lhe na mesma língua

GLENoowER A pobrezinha está rabugenta e teimosa nesta deter­


minação , não há maneira de a demover.

A senhora fala em galês

MORTIMER Entendo os teus olhares e o tão lindo galês


Que vertes desses céus intumescentes
Por mim bem conhecidos , e é só por vergonha
Que não te respondo na mesma linguagem .
A senhora fjala] outra vez em galês
Entendo os teus beijos , como entendes os meus,
Nesta que é uma controvérsia de emoções ,
Mas não hei-de , meu amor, ser calaceiro 200

Até aprender a tua fala , que a tua língua


Toma o galês doce como o esmerado canto
De uma bela rainha num retiro de Verão
Com variações de encantar ao som do alaúde .

GLENoowER Não vacileis, ou então ela enlouquece .

A senhora fala outra vez em galês

MORTIMER Oh , eu nisto sou a ignorância em pessoa !

GLENDOWER Ela quer que vos deiteis sobre os viçosos juncos


E poiseis a grácil cabeça no seu colo
Para ela cantar a canção do vosso agrado
E em vossos olhos coroar o deus do sono , 210

E enfeitiçar-vos o sangue com suave peso ,


Tomando a diferença entre acordado e a dormir
Igual à diferença entre o dia e a noite
Na hora que no Leste precede o início
Do curso dourado dos cavalos celestes .

1 14
MORTIMER Com todo o gosto me sentarei a ouvi-la,
Enquanto o nosso documento não está pronto .

GLENoowER Muito bem , e os músicos que ouvireis


Pairam no ar a mil léguas de distância.
E súbito estarão aqui . Sentai-vos e ouvi . 220

HoTsPuR Vem, Kate , tu sabes-te deitar como ninguém .


Vem, depressa, depressa para eu pôr a cabeça no teu
regaço .

LADY PERCY Ide-vos daqui , ganso tonto .

Toca a música

HOTSPUR Fico a saber que o diabo percebe galês ,


E não admira que seja tão caprichoso ,
Por Nossa Senhora , ele é mesmo bom músico .

LADY PERCY Então vós devíeis ser bem dado à música


Já que sois todo governado por caprichos .
Estai quedo , ladrão , e ouvi-a cantar em galês . 230

HOTSPUR Antes a minha cadela a uivar em irlandês .

LADY PERCY Não queres por acaso que te parta a cabeça?

HOTSPUR Não .

LADY PERCY Então está calado .

HOTSPUR Também não , é um defeito de mulher.

LADY PERCY Francamente , Deus te valha !

HOTSPUR E me leve à cama da galesa.

LADY PERCY Que linguagem é essa?

115
W lLLIAM :SHAK.to:Sl'loAKlo 5.1

HOTSPUR Calma , ela vai cantar.


A senhora canta uma canção galesa
Vamos , Kate , também quero que cantes . 240

LADY PERCY Eu , não ! Por amor de Deus !

HOTSPUR Vós não , por amor de Deus? Pelo sagrado coração ,


vós fazeis juras como a mulher de um pasteleiro -
«Vós não , por amor de Deus ! » , e «Caia eu já aqui
morta se não é verdade ! » , e «Que Deus me emende ! »
e «Tão certo como o dia ! » -
E dás tais certezas de gaze às tuas juras
Como se nunca tivesses ido além de Finsbury,
Pragueja, Kate , como senhora que és ,
Com boas pragas de encher a boca, e deixa essas 2so

E outras blasfémias de caracacá


À gentinha dos fatos domingueiros .
Vamos , canta .

LADY PERCY Não canto .

HOTSPUR É o que mais perto está da arte de alfaiate , ou de


treinador de piscos . Se os documentos estiverem
prontos vou-me daqui em menos de duas horas . Vós
podeis vir quando quiserdes .

Sai

GLENoowER Vamos , vamos , Lorde Mortimer, sois tão lento


Quanto o fogoso Lorde Percy é apressado . 260

A escritura está feita . Vamos selá-la


E montemos a cavalo de seguida.

MORTIMER Com todo o gosto .

Saem

116
HENRIQUE IV - PARTE I 3 .2

Cena 2

Entram o Rei, o Príncipe de Gales e outros

REI Senhores , com vossa licença. Eu e o Príncipe de Gales


Temos de falar em privado . Mas ficai por perto ,
Porque em breve vamos precisar de vós .
Saem os Lordes
Não sei se foi secreta vontade de Deus ,
Por algum mau serviço que eu tenha prestado ,
Por sua decisão fazer sair do meu sangue
A vingança e o flagelo de mim próprio .
Mas o curso da tua vida faz-me crer
Que não és senão um instrumento
Da ira flamante e da vingança dos céus 10

Para punir os meus descaminhos . Senão , diz-me ,


Podem desejos baixos e imoderados ,
Essas pobres , nuas e reles leviandades ,
Esses prazeres estéreis , e rudes companhias
Nas quais estás metido e enxertado ,
Condizer com a grandeza do teu sangue
E igualar-se ao teu coração de príncipe?

PRÍNCIPE Bem eu desejaria, Majestade ,


Escusar-me de todas as ofensas
Tão bem quanto me posso desculpar 20

De muitas daquelas de que me acusam .


Deixai-me porém rogar vossa indulgência,
E possa eu , desmentidas as histórias falsas
Que chegam certamente aos ouvidos dos grandes
Por via dos lambe-botas e mexeriqueiros ,
Para as verdadeiras , em que a minha juventude
Faltosa e irregular se transviou ,
Obter perdão com o meu franco arrependimento .

REI Deus te perdoe ! Mas são tão estranhas , Harry,


As tuas afeições , têm um bater de asa 30

1 17
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

Tão diferente do voo dos teus antepassados .


Por rudeza perdeste o lugar no Conselho
Agora ocupado pelo teu irmão mais novo ,
E és quase um estranho aos corações
De toda a corte e dos príncipes do meu sangue .
A esperança e expectativa da tua idade
Está destroçada , e a alma de cada um
Antevê profeticamente a tua ruína.
Fosse a minha presença assim tão pródiga,
Tão comezinha aos olhos das pessoas , 40

Tão insossa e pataqueira para o vulgo ,


A opinião que me elevou à coroa
Continuaria leal àquele que a detinha
E deixar-me-ia em inglório exílio ,
Um zé-ninguém sem reputação nem esperança .
Sendo pouco visto , bastava u m simples gesto
E todos me admiravam como a um cometa:
Uns diziam aos filhos , «Olha, é ele ! »
E outros , «Onde , qual é o Bullingbrook?» .
Então furtei do céu a cortesia 50

E apresentei-me com aquela humildade


Que arrebatou dos corações a lealdade
E das bocas clamores e saudações ,
Mesmo na presença do coroado Rei .
Assim mantive a minha pessoa fresca e nova,
A minha presença, como um manto pontifício ,
Sempre admirada quando vista , e a minha pompa,
Rara, mas sumptuosa, era como uma festa
Que ganhava solenidade pela rareza.
O buliçoso Rei trotava acima e abaixo , 60

Com bufões miúdos e sabichões efémeros ,


Ora a brilhar ora apagados , cardou o estado ,
Mesclou a realeza com bobos traquinas
Cujo desprezo profanou o seu grande nome ,
E à custa desse nome gastou a autoridade
Em gracejos com rapazolas e em disparates
Com qualquer imberbe e fútil comparativo,

118
HENRIQUE IV - PARTE I 3 .2

Tomou-se um companheiro das ruas vulgares,


E tanto se enfeudou à popularidade ,
Dia a dia engolido pelos olhares dos homens , 10

Que eles se fartaram de mel , e começaram


A detestar a doçura, da qual um pouco
Além de um pouco é por de mais de mais .
Por isso , quando havia ocasião de o ver,
Ele era como é um cuco em Junho ,
Ouvido sem atenção , visto , mas com olhos
Que enjoados e embotados pela banalidade
Não facultavam a excepcional visão
De uma majestade tal como a do Sol
Quando raro brilha a olhos deslumbrados , 80

Mas deixavam , sonolentos , cair as pálpebras ,


Dormiam diante dele , e tinham o aspecto
Que gente sombria tem para os inimigos ,
Cheios da sua presença e dela empanturrados .
E tu , Harry, estás a seguir a mesma linha ,
Pois que perdeste o privilégio principesco
Com reles companhia. Todos os olhos
Estão já cansados da tua visão vulgar,
Menos os meus , que desejariam ver-te mais
E agora fazem o que eu não queria que fizessem, CJO

Cegando-se a si mesmos com ternura tonta.

PR I NCIPE De ora em diante , três vezes gentil senhor,


Serei mais eu próprio .

REI Para todo o mundo ,


Como nesta hora estás , estava Ricardo então
Quando vindo de França aportei em Ravenspurgh ,
E como eu estava então , está agora Percy.
E pelo meu ceptro , como pela minha alma,
Mais reivindica ele o estado pelo seu mérito
Do que tu pela simples sucessão .
Pois sem direito, nem sombra de direito , 1 00

Enche no reino campos com armaduras ,

1 19
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

Ergue a cabeça contra as garras do leão ,


E , não devendo mais à idade do que tu ,
Conduz lordes antigos e bispos reverendos
A batalhas sangrentas e a armas brutais .
Que imorredoura honra ele conquistou
Contra o famoso Douglas ! Os seus grandes feitos ,
Ferozes incursões, e o seu renome em armas
Dão-lhe maioridade entre todos os soldados
E o mais elevado título militar 1 10

Através dos reinos que reconhecem Cristo .


Por três vezes Hotspur, este Marte de fraldas ,
Esta criança guerreira, em suas investidas
Bateu o grande Douglas , e tendo-o detido ,
Libertou-o e fez dele um amigo ,
Para encher a boca de profundo desafio
E abalar a paz e segurança do trono .
E que dizeis vós a isto? Percy, Northumberland ,
O Arcebispo de York, Douglas , Mortimer,
Combinam-se contra nós , e estão em armas . 1 20

Mas para que te dou eu estas notícias?


Porque te falo , Harry, dos meus adversários
Se és tu o mais chegado e mais dilecto inimigo?
Tu que és bem capaz , por medo submisso ,
Por vil inclinação e guinada de humores ,
De combater contra mim à paga de Percy,
De o seguir como um cão e de lhe aparar o jogo ,
Só para mostrar quanto és degenerado .

PRÍNCIPE Não penseis assim , vereis que assim não é;


E Deus perdoe a quem tanto arredou 1 30

As vossas ideias para tão longe de mim !


Na cabeça de Percy hei-de remir tudo isto ,
E ao findar de algum glorioso dia
Vos direi com audácia que sou vosso filho ,
Quando eu vier vestido com vestes de sangue ,
De feições tingidas por máscara sangrenta,
Que , lavada, me há-de limpar desta vergonha .

1 20
Será esse o dia , quando quer que ele amanheça ,
E m que esse filho d a honra e do renome ,
O galante Hotspur, esse afamado cavaleiro 1 40

E o vosso depreciado filho se encontrarem .


Fosse cada honra que o seu elmo ostenta
Uma chusma delas , e fossem em mim
As infâmias a redobrar ! Pois virá o dia
Em que farei trocar a este jovem do Norte
Os seus feitos gloriosos por minhas desonras .
Meu bom senhor, Percy é o meu agente ,
Que açambarca para mim feitos gloriosos ,
E eu hei-de chamá-lo a estritas contas
Para que me dê relação de cada glória, 1 so

Sim, sim , mesmo da mais pequena dignidade ,


Ou do coração eu lhe arrancarei a escrita.
Isto em nome de Deus aqui prometo ,
E cumprirei se tal for do Seu agrado ,
Só vos peço , Majestade , que sareis
As demoradas feridas da minha intemperança .
Senão , todos o s laços o fi m d a vida corta ,
E antes morra eu de cem mil mortes
Do que quebre qualquer parcela deste voto .

REI Antes cem mil revoltosos morram nisto . 1 60

Terás o comando e a confiança soberana.


Entra Blunt
Então , Blunt? Os teus ares são apressados .

BLUNT Também o são os assuntos que me trazem .


Lorde Mortimer da Escócia fez saber
Que Douglas se juntou a onze deste mês
Aos revoltosos ingleses em Shrewsbury.
Se todas as partes cumprirem as promessas ,
Terão um exército poderoso e terrível
Como nunca se viu atraiçoar um estado .

121
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .2

REI O Conde de Westmoreland já hoje partiu 1 10

E com ele o meu filho , Lorde John de Lancaster,


Pois essa informação já tem cinco dias .
Quarta-feira que vem, Harry, avanças tu ,
Na quinta pôr-nos-emos nós em marcha.
O nosso encontro será em Bridgnorth , e tu , Harry,
Seguirás por Gloucestershire , e feitas as contas
Ao que temos a fazer, dentro de doze dias
Reuniremos as nossas forças em Bridgnorth .
Temos muito que fazer, vamos embora,
O ensejo engorda se a gente se demora . l so

Saem

Cena 3

Entram Falstaff e Bardolph

FALSTAFF B ardolph , não achas que estou a encolher desde


aquela nossa última actividade? Não te pareço aba­
tido? Não estou a definhar? Vês , está-me a ficar a
pele pendente , mais parece um vestido largo em
corpo de velha . Estou mirrado como uma velha ma­
çã de São João . B om , vou tratar de me arrepender,
e vai ser para j á , enquanto estou para aí virado . Em
breve vou estar tão em baixo que nem força hei-de
ter para me arrepender. E sej a eu um grão de pimen­
ta , ou cavalo de cervejeiro , se já não me esqueci 10

de como é uma igreja por dentro . Uma igreja por


dentro ! É da companhia, a malvada companhia tem
sido a minha desgraça .

BARDOLPH Sir John , assim tão consumido não haveis de durar


muito .

1 22
HENRIQUE IV - PARTE I 3 .3

FALSTAFF Pois é isso mesmo ! Vamos lá, canta-me uma cantiga


das ordinárias , põe-me alegre . Eu fui dado à virtude
tanto quanto um cavalheiro podia ser. Virtuoso que
chegue . Sempre blasfemei pouco . Não joguei aos
dados mais do que sete vezes . . . por semana. Nun- 20

ca entrei num bordel mais do que uma vez em cada


quinze . . . minutos . Paguei o que devia . . . aí umas três
ou quatro vezes . Vivia bem , e dentro das medidas :
agora vivo sem regras , e sem medidas .

BARDOLPH Bom , Sir John , estais tão gordo que não deve haver
medidas que vos sirvam , pelo menos medidas razoá­
veis , Sir John .

FALSTAFF Emenda a tua cara, que eu emendo a minha vida. Tu


és o nosso navio-almirante , levas a lanterna à popa,
mas é no nariz que a tens . Tu és o Cavaleiro da Lan- 30

terna Acesa .

BARDOLPH Mas que mal é que a minha cara vos faz , Sir John?

FALSTAFF Nenhum , isso to juro , a tua cara tem para mim a


serventia que para muitos tem uma caveira , como
memento mori . Sempre que a vejo penso no fogo do
inferno , e em Dives vestido de púrpura: e lá está ele
com as suas roupagens , a arder, a arder. Se fosses
de alguma maneira dado à virtude , eu havia de jurar
pela tua cara. O meu juramento seria assim: «Juro
por este fogo , que é o anjo de Deus ! » Mas tu estás 40

de todo em todo entregue , e se não fosse pela luz da


tua cara serias o filho das trevas . Que o dinheiro não
me sirva para nada se quando naquela noite correste
encosta acima em Gad's Hill para apanhar o meu
cavalo eu não pensei que eras um ignis fatuus , ou
uma bola de fogo . Oh , tu és uma iluminação perpé­
tua , uma fogueira de São João eterna ! Já me pou­
paste uns mil marcos em tochas e archotes , quando

1 23
WILLIAM SHAKESPEARE 3 .3

de noite ando contigo de taberna em taberna . Mas o


seco que bebeste à minha custa dava-me para com- so

prar lumes a bom preço no mais caro dos cirieiros


da Europa . Eu sustentei essa tua salamandra com
fogo estes últimos trinta e dois anos de enfiada ,
Deus me recompense por isso !

BARDOLPH Pelas chagas de Cristo , era bem feito que a minha


cara vos fosse parar à barriga !

FALSTAFF Deus me livre ! Aí de certeza que ia ter azia.


Entra a Hospedeira
Então , galinha dona Rezingona, já está descoberto
quem me foi aos bolsos?

HOSPEDEIRA Francamente , Sir John , que ideias são essas , Sir John , ro

como vos pode passar pela cabeça que tenho ladrões


na minha casa? Já procurei tudo , já fiz perguntas , eu
e também o meu marido , a todos os homens , a todos
os moços, a todos os criados - nem o dízimo de um
cabelo alguma vez se perdeu nesta casa .

FALSTAFF Isso é mentira , hospedeira . O Bardolph foi rapado


e perdeu muitos cabelos , e eu vos garanto que me
foram aos bolsos . Ide , vós sois uma mulher, ide !

HOSPEDEIRA Quem , eu? Ai isso não sou , digo-vos eu ! Pela luz de


nosso Senhor, nunca na minha própria casa me cha- 10

maram isto .

FALSTAFF Ide , ide , eu conheço-vos muito bem .

HOSPEDEIRA Não , Sir John , vós não me conheceis , Sir John . Eu


sim , é que vos conheço , Sir John . Vós deveis-me di­
nheiro , Sir John , e agora arranjais uma disputa para
me desviar a atenção . Eu comprei-vos uma dúzia de
camisas para vos vestirdes .

1 24
HJ:.N K H,.I U J:. 1 V - l'AK l J:. 1

FALSTAFF De estopa, uma porcaria de uma estopa. Dei-as às


mulheres dos padeiros e elas aproveitaram-nas para
fazer peneiras . so

HOSPEDEIRA Não seja eu uma mulher séria se aquilo não era ho­
landa de oito xelins a vara ! E ainda me deveis dinhei­
ro , Sir John , pelas vossas refeições , e pelas bebidas
fora das refeições , a juntar ao dinheiro que vos em­
prestei , vinte e quatro libras .

FALSTAFF Ele teve uma parte disso , ele que pague .

HOSPEDEIRA Ele? Coitado , ele é pobre , não tem nada .

FALSTAFF Como? Pobre? Olhai para a cara dele . A que é que


chamais rico? Deixá-los cunhar-lhe o nariz , deixá­
-los cunhar-lhe a cara , eu é que não pago nem um 90

chavo . Mas será que quereis fazer de mim um estroi­


na? Não hei-de eu poder estar à vontade na minha
estalagem , que logo me hão-de ir aos bolsos? Fiquei
sem um anel de sinete que era do meu avô e valia
quarenta marcos .

HOSPEDEIRA Oh , meu Jesus, eu ouvi o Príncipe dizer-lhe não sei


quantas vezes que aquele anel era de cobre .

FALSTAFF Como? O Príncipe é um tratante , um louvaminheiro .


Estivesse ele aqui e raios me partam se eu não lhe
dava uma bordoada como a um cão se ele dissesse 1 00

uma coisa dessas .


Entra o Príncipe, em marcha [com Peto] , e Falstaff vai ao encontro
dele a tocar na sua moca como se fosse um pífaro
Olá , meu rapaz ! Afinal é desse lado que sopram os
ventos , todos temos de marchar?

BARDOLPH Pois , dois a dois , à moda de Newgate .

1 25
W JLLJAM �ttAt\.. t �t"tAK.t

HOSPEDEIRA Meu senhor, rogo-vos que me ouçais .

PRÍNCIPE Que dizes , Senhora Despachada? Como está o teu


marido? Gosto dele , é um homem honesto .

HOSPEDEIRA Meu bom senhor, ouvi-me .

FALSTAFF Deixa-a para aí, peço-te , e presta-me atenção .

PRÍNCIPE Que dizes tu , Jack? 1 10

FALSTAFF Na noite passada adormeci aqui , por detrás do arrás ,


e roubaram-me os bolsos . Esta casa passou a casa de
má fama , é-se roubado aqui .

PRÍNCIPE Que te roubaram , Jack?

FALSTAFF Nem vais acreditar, Hal : três ou quatro títulos de cré-


dito de quarenta libras cada um, e um anel de sinete
do meu avô .

PRÍNCIPE Uma bagatela, coisa para uns oito dinheiros.

HOSPEDEIRA Foi o que eu lhe disse , meu senhor, conforme ouvi


Vossa Graça dizer. E ele diz muito mal de vós , meu 1 20

senhor, desbocado como ele é , e disse que vos havia


de dar uma bordoada.

PRÍNCIPE O quê? Não acredito !

HOSPEDEIRA Não haja em mim fé , nem verdade , nem dignidade


de mulher.

FALSTAFF Não há em ti mais fé do que numa ameixa em calda,


nem mais verdade do que numa raposa perseguida
- e quanto a dignidade de mulher, qualquer maria-
-rapaz é esposa de magistrado comparada contigo .
Vai-te daqui , coisa, vai ! 1 30

1 26
OC1"1 1"1\,l U I:. 1 V - r/-\1\.1 e l -' ·-'

HOSPEDEIRA Que coisa , diz lá, que coisa?

FALSTAFF Que coisa? Olha, qualquer coisa por que dar graças a
Deus .

HOSPEDEIRA Eu não sou nada por que dar graças a Deus , é bom
que saibas ; eu sou a esposa de um homem honesto ,
e à parte a tua dignidade de cavaleiro , és um filho da
mãe por me tratares assim .

FALSTAFF E à parte a tua dignidade de mulher, és um animal


para dizer de outra maneira .

HOSPEDEIRA Que animal , meu filho da mãe , anda, diz lá ! 1 40

FALSTAFF Que animal? Sei lá . . . uma lontra .

PRÍNCIPE Uma lontra, Sir John? Porquê uma lontra?

FALSTAFF Porquê? Não é peixe nem carne , um homem não sa-


be onde a há-de ter.

HOSPEDEIRA Isso que dizes é muito injusto , tanto tu como qual-


quer outro homem sabe muito bem onde me há-de
ter, meu filho da mãe .

PRÍNCIPE Lá isso é verdade , hospedeira , ele está a difamar-te ,


e é muito grosseiro .

HOSPEDEIRA Também a vós ele difama , meu senhor, ainda um dia 1 50

destes disse que vós lhe deveis mil libras .

PRÍNCIPE Com que então , meu caro , eu devo-vos mil libras?

FALSTAFF Mil libras , Hal? Um milhão , o teu amor vale um mi-


lhão , e tu deves-me o teu amor.

1 27
W ILLIAM :>HAl\.l:O:lt'l:OAKJ:o

HOSPEDEIRA Qual quê , meu senhor, ele chamou-vos tratante e dis­


se que vos havia de dar uma bordoada .

FALSTAFF Eu disse isso , Bardolph?

BARDOLPH Na verdade , Sir John , vós dissestes isso .

FALSTAFF Pois, mas isso era se ele dissesse que o meu anel era
de cobre . 1 60

PRÍNCIPE E eu digo que é cobre , e tu , és capaz de manter a tua


palavra?

FALSTAFF Bom , Hal , bem sabes que seria capaz se tu fosses


apenas homem , mas como és príncipe eu tenho medo
de ti como do rugido do filhote do leão .

PRÍNCIPE E porque não do próprio leão?

FALSTAFF O Rei , esse sim , deve ser temido como o leão . Pensas
que tenho medo de ti como tenho do teu pai? Nem
pensar - Deus me rebente já o cinto se tenho .

PRÍNCIPE Oh , se tal acontecesse , a pança ia-te chegar aos joe- 1 70

lhos . Mas não há espaço para fé , verdade ou hones-


tidade nesse teu arcaboiço - está todo cheio de tri-
pas . Culpar uma mulher honesta de te ter roubado
os bolsos? Seu patife inchado , fideputa impudente ,
se havia no teu bolso mais do que contas de taber-
na, memorandos de bordéis , e um pobre bocadito de
caramelo para te dar fôlego - eu seja um miserável
se o teu bolso estava enriquecido com outros valores
que não este s . E contudo insistes , e não engoles a tua
aldrabice ! Não tens vergonha? 1 80

FALSTAFF Ouve-me cá, Hal . Se quando caiu no pecado Adão


vivia em estado de inocência, que poderia fazer o

1 28
HENRIQUE IV - PARTE I 3 .3

pobre Jack Falstaff em tempos de vilania? Bem vês


que tenho mais carne do que qualquer outro , por isso
sou mais fraco . Com que então confessai s , fostes vós
quem me roubou os bolsos?

PRÍNCIPE Pela história assim parece .

FALSTAFF Hospedeira, estás perdoada , vai tratar do pequeno­


-almoço , ama o teu marido , cuida dos teus criados ,
estima os teus hóspedes , eu por mim estou aberto a 1 90

qualquer argumento sério , estás a ver como estou


sempre disponível para resolver as coisas - pronto ,
agora peço-te que te vás embora .
Sai a Hospedeira
Agora, Hal , notícias da corte : quanto ao roubo , ra­
paz , como está isso tratado?

PRÍNCIPE Ó meu caro monte de carne fresca, tenho de continuar


a ser o teu anjo bom - o dinheiro foi devolvido .

FALSTAFF Oh , não gosto disso de devolver, é trabalho a dobrar.

PRÍNCIPE Estou de boas relações com o meu pai e posso fazer


o que me apeteça . 200

FALSTAFF Então antes de tudo vai roubar as Finanças , e nem te


incomodes a lavar as mãos .

BARDOLPH Isso , isso , meu senhor.

PRÍNCIPE Arranjei para ti , Jack , uma companhia de infantaria.

FALSTAFF Antes fora de cavalaria. Onde hei-de encontrar al­


guém que saiba roubar bem? Oh , quem me dera um
ladrão capaz , aí de uns vinte e dois anos , ou à volta
disso ! Estou horrivelmente mal apetrechado . Bom,
pode-se dar graças a Deus por esses revoltosos , eles

1 29
WILLIAM SHAKESPEARE 3.3

não prejudicam ninguém , tirando os honestos . Têm o 210

meu louvor e o meu elogio .

PRÍNCIPE Bardolph !

BARDOLPH Meu senhor?

PRINCIPE Leva esta carta a Lorde John de Lancaster,


O meu irmão John , e esta a Lorde Westmoreland .
[Sai Bardolph]
Vai , Peto , a cavalo , pois temos tu e eu
Ainda trinta milhas antes de jantar.
[Sai Peto]
Jack , procura-me amanhã no salão do Templo
Assim que forem duas horas da tarde .
Irás conhecer o teu grupo e receber 220

Dinheiro e mandato para o equipamento .


A terra arde , Percy ergue-se altaneiro ,
Ou nós ou eles , alguém cairá primeiro .

[Sai]

FALSTAFF Palavras raras ! Admirável mundo ! Hospedeira, en­


tão , o meu pequeno-almoço !
Oh , fosse esta taberna o meu tambor.

[Sai]

1 30
ACT0 4

Cena 1

[Entram Hotspur, Worcester e Douglas]

HoTsPuR Muito bem , nobre escocês ! Se nestes belos tempos


Falar verdade não fosse tido por lisonja,
Seria a Douglas dado tal valor
Que nenhum outro com o cunho de soldado
Teria tão grande circulação no mundo .
Por Deus, eu não sei bajular. Eu desconfio
Das línguas melíftuas , mas no meu coração
Não há lugar mais admirável do que o vosso .
Ponde agora , senhor, a minha palavra à prova .

oouGLAs Tu é s o rei d a honra . 10

Haja alguém mais poderoso sobre a terra


E eu o enfrentarei .

HOTSPUR Fazei-o , e o fareis bem .


Entra [um Mensageiro] com cartas
Que cartas aí tens?
[para Douglas]
- Só vos posso estar grato .

MENSAGEIRO São cartas de vosso pai .


WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

HOTSPUR De meu pai? Porque não vem ele próprio?

MENSAGEIRO Não pode vir, senhor, está muito doente .

HOTSPUR Raios , como pode ter vagar para adoecer


Em tempos de aperto? Quem dirige os seus homens?
A quem se encontra entregue o seu comando?

MENSAGEIRO As cartas o dirão , senhor, não serei eu . 20

WORCESTER Rogo-te que me digas , ele está de cama?

MENSAGEIRO Estava, senhor, quatro dias antes de eu sair,


E no momento em que de lá parti
Os médicos temiam pela sua vida.

WORCESTER Tivessem sido os tempos restaurados


Antes de ele ser visitado pela doença .
Agora que a sua saúde mais valia.

HOTSPUR Doente , abatido , agora? Esta doença infecta


O sangue que dá vida ao nosso empreendimento .
Chega até aqui , pega-se no nosso campo . 30

Escreve ele aqui que uma doença interior . . .


E que não tinha tempo para juntar amigos
Por via de terceiros, nem achava justo
Entregar um cargo tão perigoso e caro
A quem quer que fosse que não a ele próprio .
Contudo dá-nos franco incitamento
A que avancemos com as nossas parcas forças
Para vermos o que a fortuna nos reserva.
Pois , escreve ele , não há agora recuo ,
Já que o Rei conhece certamente 40

Os nosso propósitos . Que dizeis a isto?

WORCESTER Esta doença deixa-nos mutilados .

1 32
HENRIQUE IV - PARTE I 4.1

ttoTsPuR É uma cutilada, um membro decepado -


E , contudo , digo-vos que não ! A sua falta
Será menor do que parece . Seria bom
Arriscar todos os valores de que dispomos
Num único lance? Tanto poder que temos ,
Nas precárias sortes de uma hora incerta?
Não seria bom , antes devemos ver aí
O fundo último e a alma da esperança , 50

O último limite , o mais extremo círculo


De todas as nossas fortunas .

oouoLAs À minha fé que devemos. E assim nos fica


Um aprazível legado - gastemos com audácia
Na esperança do que estará para vir.
Vale bem o refrigério de uma retirada .

ttoTsPuR Um ponto de encontro , um lar que nos acolha,


Se o diabo e o azar se avantajarem
Sobre a virgindade das nossas intenções .

woRcESTER Mesmo assim , preferia o vosso pai aqui . 60

A qualidade e o cariz da nossa tentativa


Não aguentam divisões. Poderão pensar,
Alguns que não sabem das razões da ausência,
Que o Conde se afastou por siso , lealdade ,
E por mero desagrado pela nossa acção .
E pensai como uma apreensão dessas
Pode virar a maré da sedição
E lançar dúvidas sobre a nossa causa.
Pois bem sabeis que nós , quem lança o repto ,
Temos de estar acima de qualquer julgamento , 10

Tapar todas as vigias , todas as fendas


Por onde alguma dúvida nos possa espreitar.
A ausência de vosso pai levanta um véu
E revela aos ignorantes um temor
Com que não se sonhava.

1 33
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

HOTSPUR Ides longe de mais .


Prefiro fazer este uso da sua ausência:
Ela confere brilho e um maior prestígio ,
Maior ousadia ao nosso empreendimento ,
Do que a sua presença. Todos pensarão
Que se sem a sua ajuda conseguimos 80

Arremeter contra um reino , se a tivermos


Somos capazes de o pôr de pernas para o ar.
E afinal estamos bem , estamos todos inteiros .

DOUGLAS Quanto o coração pensa. Não há na Escócia


Nenhuma tradução para a palavra medo .

Entra Sir Richard Vernon

HOTSPUR Meu primo Vemon ! Oh , como sois bem-vindo !

VERNON Assim as minhas novas valham as boas-vindas .


O Conde de Westmoreland , com sete mil homens ,
E com o Príncipe John , vem a caminho .

HOTSPUR Muito bem , e que mais?

VERNON Também fui informado 90

De que o Rei em pessoa ou já se encontra em marcha


Ou se prepara com urgência para partir,
Com apercebimento forte e poderoso .

HOTSPUR Também será bem-vindo . E onde está o filho ,


O pé-ligeiro e louco Príncipe de Gales ,
Mais os seus camaradas que arredam o mundo
E o mandam passar?

VERNON Todos prontos , e em armas ,


Emplumados como avestruzes ao vento ,
A dar à asa , como águias a vir do banho ,
Reluzentes de dourados como efígies , 1 00

1 34
HENRIQUE IV - PARTE I 4.1

Cheios de alento como o mês de Maio


E deslumbrantes como o sol de Junho ,
Fogosos como cabritos , bravos como touros .
Vi o jovem Harry de viseira baixa ,
Coxotes afivelados, armado a primor,
Elevar-se do chão como Mercúrio alado ,
E saltar com tal leveza para a sela
Como se tivesse caído um anjo das nuvens
Para voltar e voltear um fogoso Pégaso
E enfeitiçar o mundo com nobre equitação . 1 10

HOTSPUR Chega, chega! Pior que o sol de Março


É esse elogio para as sezões . Eles que venham !
Vêm como sacrifícios nos seus atavios
E à virgem de ígneos olhos da fumegante guerra
Os ofertaremos quentes e a sangrar.
Em seu amês Marte sentar-se-á no altar
Com o sangue pelas orelhas . Todo eu ardo
Ao saber este rico espólio já tão perto
E ainda não nosso ! Tragam-me o meu cavalo ,
Que me há-de levar como um relâmpago 1 20

De encontro ao peito do Príncipe de Gales .


Harry contra Harry, cavalo contra cavalo ,
Só se hão-de apartar quando um cair cadáver.
Tomara que Glendower chegue .

vERNON Há mais notícias .


Soube em Worcester, quando vinha a caminho ,
Que em duas semanas ele não estará pronto .

oouGLAs Para já essa é a pior notícia que ouvi .

woRcEsTER À minha fé que sim , o som é glacial .

HoTsPuR Até quantos pode ir o exército do Rei?

vERNON Até trinta mil . 1 30

1 35
WILLIAM SHAKESPEARE 4.1

HoTsPuR Digamos quarenta .


Com o meu pai e com Glendower ausentes ,
As nossas forças hão-de ser suficientes .
Vamos fazer uma rápida revista.
Está aí o dia do juízo . Morra-se em festa .

oouoLAs Não faleis em morrer. Não arreceio dano


Da morte ou da sua mão por este meio ano .

Saem

Cena 2

Entram Falstaff [e] Bardolph

FALSTAFF Bardolph , vai tu à frente para Coventry. Enche-me


uma garrafa de seco . Os nossos soldados vão para lá.
Esta noite chegaremos a Sutton Coldfield .

BARDOLPH E dais-me dinheiro , capitão?

FALSTAFF Dispõe do teu , dispõe do teu .

BARDOLPH Mas esta garrafa cheia dá um anjo.

FALSTAFF Se der, fica com ele em paga do teu trabalho - e


se der vinte fica com eles todos , eu respondo pela
cunhagem . Diz ao tenente Peto para ir ao meu encon-
tro às portas da cidade . 10

BARDOLPH Sim, meu capitão . Adeus .

Sai

FALSTAFF Eu seja um peixe-ruivo de conserva se não me en­


vergonho dos soldados que tenho . Fiz um condená-

1 36
HENRIQUE IV - PARTE 1 4 .2

vel mau uso do recrutamento forçado ordenado pelo


Rei . Em troca de cento e cinquenta soldados conse­
gui trezentas e tal libras . Não recruto senão chefes
de família abastados , filhos de proprietários , soltei­
ros comprometidos já em segundos banhos , enfim ,
uma remessa de molengões afazendados , para quem
ouvir um tambor é ouvir o diabo e que com o disparo 20

de uma pistoleta se assustam mais do que uma gali­


nhola ferida ou um pato-bravo com um tiro na asa.
Só recrutei desses pãezinhos-de-leite , de corações na
barriga do tamanho de cabeças de alfinete , e que aca­
baram por comprar a recruta . E agora a minha com­
panhia consiste em alferes , cabos , tenentes , furriéis
- lacaios tão esfarrapados como o Lázaro pintado
no pano , com os cães do glutão a lamberem-lhe as
chagas . E tais que nunca foram soldados , e que eram
criados desonestos despedidos , filhos mais novos de 30

irmãos mais novo s , aprendizes de taberneiro foragi­


dos e moços de estrebaria falidos , os cancros de um
mundo sossegado e de uma paz duradoura, maltra­
pilhos dez vezes mais desprezíveis do que um velho
estandarte esfarrapado . E é isto que eu tenho para
ocupar os lugares dos que compraram a recruta, até
parece que tenho cento e cinquenta pródigos andra­
josos acabados de chegar de guardar porcos , a comer
lavagem e alfarroba. Houve um maluco com quem
me cruzei que me perguntou se eu tinha descarrega- 40

do as forcas todas e recrutado os mortos que lá es­


tavam pendurados . Nunca ninguém viu espantalhos
como estes . Não vou atravessar Coventry com eles ,
lá isso é que não . E os miseráveis marcham de pernas
abertas como se arrastassem grilhões , para ser fran­
co , na sua maior parte fui buscá-los à cadeia. Não
há na minha companhia mais do que camisa e meia,
e a meia são dois lenços alinhavados um ao outro e
enfiados nos ombros como a casaca sem mangas de
um arauto . E a camisa inteira, para dizer a verda- so

1 37
WILLIAM SHAKESPEARE 4.2

de , foi roubada ao meu hospedeiro em Saint Albans,


ou então àquele estalajadeiro de nariz rubicundo de
Daventry. Mas isso é o menos , eles vão encontrar
roupas que cheguem a secar nas sebes.

Entram o Príncipe [ e ] Lorde Westmoreland

PRÍNCIPE Então , Jack, enfunado como sempre? Como estás tu ,


meu edredão?

FALSTAFF O quê , Hal? Por aqui , meu gaiato louco? Que diabo
fazes tu em Warwickshire? Meu bom Lorde West­
moreland , haveis de me desculpar, mas pensei que
Vossa Senhoria estivesse já em Shrewsbury. 60

wESTMORELANo Na verdade , Sir John , é mais que tempo para eu lá es­


tar, e vós também, mas as minhas tropas já lá chega­
ram . Digo-vos que o Rei está à nossa espera, temos
de marchar a noite toda .

FALSTAFF Pela minha parte que ninguém se arreceie , estou des­


perto como um gato à espreita para roubar natas .

PRÍNCIPE Sim, sim , sem dúvida para roubar natas , tanto que já
estás feito um pote de manteiga . Mas diz-me , Jack ,
de quem é essa gente que vem aí contigo?

FALSTAFF Meus , Hal , todos meus. 70

PRÍNCIPE Nunca na minha vida vi uma cambada tão deplorável .

FALSTAFF Deixa, deixa, são bons para lançar aos piques , é car­
ne para canhão , é carne para canhão , hão-de encher
uma vala tão bem como os melhores . Ora , homem ,
isto é gente mortal , é gente mortal .

WESTMORELAND Mas , Sir John , acho-os excessivamente pobres e es­


canzelados, muito maltrapilho s .

138
HENRIQUE IV - PARTE I 4.2

FALSTAFF À minha fé que a pobreza não sei onde a arranjaram .


E quanto a estarem escanzelados , não foi comigo
que aprenderam . so

PRÍNCIPE Ai isso também o garanto , a não ser que se chame


escanzelado a três dedos de gordura por cima das
costelas . Mas , homem , apressa-te , Percy já está no
campo de batalha.

Sai

FALSTAFF O quê , o Rei já assentou arraial?

wEsTMORELAND Pois já, Sir John , receio que nos estejamos a demorar.

[Sai]

FALSTAFF Bom,
Combatente lerdo e conviva lesto
Chegam tarde à liça e cedo à festa .

[Sai]

Cena 3

Entram Hotspur, Worcester, Douglas [e] Vernon

HOTSPUR Atacamo-lo esta noite .

WORCESTER Não pode ser.

oouGLAS Mas assim dais-lhe vantagem .

VERNON Nem um pouco .

1 39
WILLIAM SHAKESPEARE 4.3

HOTSPUR Porque dizeis isso , não espera ele reforços?

vERNON Também nós .

HOTSPUR Os dele são certos, os nossos duvidosos .

woRCESTER Bom primo , é avisado não agir esta noite .

VERNON Também acho , senhor.

oouGLAs Não aconselhais bem .


Falais com medo e com o coração frio .

vERNON Não me calunieis , Douglas . Pela minha vida ,


E ouso assegurá-lo com a minha vida ,
Se a consideração da honra mo ordena 10

Eu sou tão pouco aconselhado pelo medo


Como vós , senhor, ou como qualquer escocês .
Que se veja amanhã no campo de batalha
Quem de nós tem medo .

DOUGLAS Ou esta noite .

VERNON De acordo .

HOTSPUR Esta noite , digo-o eu .

VERNON Vamos , vamos, não pode ser. Eu admiro-me


Que com a vossa experiência de comando
Não antecipeis todos os obstáculos
À nossa expedição . Alguns cavaleiros
Do meu primo Vemon ainda não chegaram , 20

A cavalaria de Worcester só chegou hoje,


O seu vigor e alento estão adormecidos ,
Com o esforço a sua coragem ficou frouxa,
Nenhum cavalo vale metade do que vale .

1 40
HENRIQUE IV � PARTE I 4 .3

HoTsPuR Também assim estão os cavalos do inimigo ,


Exaustos da jornada e abatidos .
E grande parte dos nossos estão folgados .

woRcEsTER As forças do Rei estão em excesso das nossas .


Por amor de Deus , aguardai até estarmos todos .

Soa a trombeta a chamar a parlamentação

Entra Sir Walter Blunt

BLUNT Trago generosas ofertas do Rei , 30

Se vos dignardes ouvir-me e respeitar-me .

HOTsPuR Bem-vindo , Sir Walter Blunt: prouvera a Deus


Que vós fôsseis da nossa persuasão !
Há entre nós quem vos ame , e esses mesmos
Se vos invejam o mérito e o bom nome
É porque não estais do nosso lado
E vos opondes a nós como inimigo .

BLUNT E Deus permita que eu sempre assim me oponha ,


Enquanto fora dos termos e da vera ordem
Vós vos ergueis contra o ungido Rei . 40

Mas à minha incumbência . O Rei quer conhecer


A origem das vossas queixas e as razões
Para do seio da paz civil vós conjurardes
Tão ousado motim , levando a crueza audaz
À sua obediente terra . Se o Rei
Esqueceu de algum modo os vossos méritos ,
Os quais ele confessa serem vários ,
Roga-vos que nomeeis as queixas , e de súbito
Tereis com juros os desejos satisfeitos
E total perdão para vós e para aqueles so

Desencaminhados por vossa instigação .

141
WILLIAM SHAKESPEARE 4.3

HOTSPUR O Rei é bondoso , e bem sabemos que o Rei


Sabe a hora de prometer, e de pagar.
O meu pai , e o meu tio , e eu próprio
Demos-lhe essa realeza que ele ostenta;
Não tinha ele sequer vinte e seis apoiantes ,
Enfermo aos olhos do mundo , desditoso e débil ,
Foragido e desprezado , a regressar furtivo ,
E o meu pai deu-lhe as boas-vindas à pátria .
E quando o ouviu jurar e prometer a Deus 60

Que apenas vinha para ser Duque de Lancaster,


Para reclamar o título , implorando a paz
Com lágrimas de inocência e profissões de zelo ,
O meu pai , por bondade e apiedado ,
Jurou que o ajudava, e cumpriu .
Depois , quando os lordes e os barões do reino
Viram que Northumberland o apoiava,
Vieram grandes e pequenos dobrar o joelho ,
Procurá-lo em burgos , cidades, aldeias ,
Esperá-lo em pontes, e formavam filas , 10

Prestavam juramento , traziam-lhe oferendas ,


Davam-lhe os herdeiros como pajens , e iam
Atrás dos calcanhares dele em multidões douradas .
E ele então , sabendo o poder que tinha ,
Deu um passo mais além do juramento
Feito a meu pai quando o seu sangue era humilde
Sobre aquela praia nua de Ravenspurgh ;
E então , sim , dá-lhe para reformar
Certos éditos e algumas leis severas ,
Duras de suportar pela comunidade , so

Barafusta contra abusos , parece chorar


Os males do seu país - e com esta cara ,
Este falso cenho de justiça, ganhou
Os corações de que tinha andado à pesca.
E foi mais longe - cortou-me as cabeças
Dos favoritos que o Rei ausente
Deixou aqui como delegados seus
Quando foi em pessoa para a guerra da Irlanda .

1 42
HENRIQUE IV - PARTE I 4.3

BLUNT Bom, eu não vim aqui para ouvir isto .

HOTSPUR Já lá vamos .
Logo a seguir a ter deposto o Rei , 90

Pouco tempo depois tirou-lhe a vida ,


E de enfiada tributou todo o estado .
E deixou , para cúmulo , que o seu parente March -
Que é , se o seu fosse dado a seu dono ,
Na verdade o seu Rei - fosse aprisionado em Gales
E sem resgate por lá ficasse cativo .
Desonrou-me nas minhas felizes vitórias ,
Arranjou espiões para me armar ciladas ,
Escorraçou o meu tio do Conselho ,
Enfurecido expulsou o meu pai da corte , 1 00

Perjúrio sobre perjúrio , dano atrás de dano ,


Levando-nos por fim a procurar
Esta força de protecção e a inquirir
Acerca do seu título , o qual achamos
Enviesado de mais para ter continuidade .

BLUNT Devo levar essa resposta ao Rei?

HoTsruR Nem tanto , Sir Walter. Cederemos um pouco .


Ide de volta ao Rei , e dêem-nos de penhor
Alguma garantia de um regresso a salvo ,
E cedo pela manhã irá meu tio 1 10

Levar-lhe as nossas propostas - com isto , adeus .

BLUNT Quem me dera que aceitásseis graça e amor.

HoTsruR E pode ser que sim .

BLUNT Quisera Deus .

[Saem]

1 43
WILLIAM SHAKESPEARE 4 .4

Cena 4

Entram [o] Arcebispo de York [e] Sir Michael

ARCEBISPO Depressa, bom Sir Michael , levai a toda a brida


Esta carta selada ao Lorde Marshal ,
Esta ao meu primo Scroop e as restantes
A quem são dirigidas . Se soubésseis
A importância delas , vós vos apressaríeis .

s1R MICHAEL Meu bom senhor,


Adivinho o assunto .

ARCEBISPO É provável que sim .


Amanhã , bom Sir Michael , é um dia
Em que a sorte de dez milhares de homens
Vai à pedra-de-toque . Isto porque , em Shrewsbury, 10

Tanto quanto é de meu conhecimento ,


O Rei , que lesto levantou um poderoso exército ,
Defronta Lorde Harry, e temo , Sir Michael ,
Que , com a doença de Northumberland ,
Cuja força era a de maior proporção ,
E com a ausência de Owen Glendower,
Que com eles era também uma trave-mestra
E que por influência de profecias não vem ,
Temo o poder de Percy por de mais fraco
Para desde já travar combate com o Rei . 20

SIR MICHAEL Mas , meu bom senhor, nada há a recear,


Há ainda Douglas e há Lorde Mortimer.

ARCEBISPO Não , Mortimer não está lá.

S I R MICHAEL Mas estão Mordake , Vemon , Lorde Henry Percy,


E está meu Lorde de Worcester, e uma flor
De distintos guerreiros , de fidalgos nobres .

1 44
HENRIQUE IV - PARTE 1 4.4

ARCEBISPO Tudo isso é verdade , mas o Rei juntou


A fina flor dos guerreiros desta terra.
O Príncipe de Gale s , Lorde John de Lancaster,
O nobre Westmoreland , o destemido Blunt , 30

E muitos outros que tais , homens de valor


Na honra e no comando militar.

s1R MICHAEL Terão quem lhes faça frente , senhor, não duvideis .

ARCEBISPO Assim o espero , mas devemos recear,


E prevenindo o pior, Sir Michael , apressai-vos .
Se Lorde Percy não vencer, o Rei virá
Visitar-nos antes de licenciar as tropas ,
Uma vez que sabe da nossa aliança,
E é avisado reunir forças contra ele .
Por isso apressai-vos - tenho de escrever 40

A outros amigos . Portanto , adeus , Sir Michael .

Saem

1 45
ACT0 5

Cena 1

Entram o Rei, o Príncipe de Gales, Lorde John de Lancaster, Sir


Walter Blunt [e] Falstaff

REI Como está sangrento o Sol que começa a espreitar


Sobre aquele vultoso monte . O dia fica pálido
Com tal destemperatura .

PRÍNCIPE O vento sul


Já soa trombetas às suas intenções
E o zunido abafado que se ouve nas folhas
Prediz tempestade e um dia turbulento .

REI Deixá-lo então simpatizar com quem perder,


Porque a quem ganha nada pode parecer mau .
Soa a trombeta
Entra[m] Worcester [e Vernon]
Então , meu Lorde Worcester ! Não está bem
Que nos tenhamos de encontrar nestas condições . 10

Haveis desiludido a nossa confiança,


Fizestes-nos despir o leve traje da paz
E aperrear em rude ferro os velhos membros .
Isto não está bem , meu lorde , isto não está bem .
E que dizeis vós? Desatareis de novo
WILLIAM SHAKESPEARE 5.1

O nó grosseiro de tão odienta guerra,


Voltando de novo à órbita obediente
Onde emitíeis uma luz boa e natural ,
Deixando de ser um exalado meteoro ,
Um prodígio de medo e um portento 20

De maldade a esguichar para os tempos por nascer?

woRcEsTER Ouvi-me , meu suserano .


No que me diz respeito dar-me-ia por contente
Em passar a parte sobrante dos meus dias
Em horas sossegadas . Pois vos assevero
Que não busquei o dia deste desagrado .

REI Não o buscastes vós? Donde vem ele então?

FALSTAFF Estava a revolta no chão , e ele achou-a.

PRINcIPE Caluda, gralha, caluda !

woRcEsTER Aprouve a Vossa Majestade desviar 30

O vosso favor de mim , como da nossa casa,


E contudo devo recordar-vo s , senhor,
Que tínheis em nós o maior e mais caro amigo .
Por vós eu quebrei o bastão do meu serviço
No tempo de Ricardo e jornadeei dia e noite
Para ir ao vosso encontro , e beijar-vos a mão ,
Estáveis vós ainda em posto e opinião
Bem longe da força e da fortuna que eu tinha .
Fomos eu próprio , o meu irmão e o filho dele
Quem vos trouxe para casa e afrontou com audácia 40

Os apertos do tempo . Perante nós jurastes ,


E fizestes essa jura em Doncaster,
Que nada vos movia contra o estado
Nem reclamáveis mais do que o direito recente
À s terras de Gaunt, o ducado de Lancaster.
A tal jurámos apoio . Mas em pouco tempo
A fortuna caiu em aguaceiros sobre vós

1 48
HENRIQUE IV - PARTE I 5.1

E ficásteis inundado de grandeza ,


Fosse a nossa ajuda, ou a ausência do Rei ,
Fossem os desmandos de tempos desregrados , so

Os aparentes penares que havíeis suportado


E os ventos contrários que mantinham o Rei
Tanto tempo na azarada guerra da Irlanda
Que todos em Inglaterra o deram por morto .
E deste enxame de boas oportunidades
Lograstes ser depressa seduzido
A agarrar em vossas mãos o domínio geral ,
Esquecestes o juramento feito em Doncaster,
E, alimentado por nós , tratastes-nos como
O filhote do cuco , essa cria descortês , 60

Trata o pardal: oprimistes-nos o ninho ,


Atingistes tal tamanho à nossa custa
Que nem o nosso amor ousa aproximar-se
Com medo de ser engolido . Mas de asa ligeira
Fomos por segurança obrigados a voar
Longe da vossa vista e a erguer esta força,
Pela qual nos opomos pelos mesmos meios
Forjados por vós próprio contra vós ,
Por trato incivil , disposição agressiva
E violação da fé e de todos os votos 10

Que nos jurastes em vossa empresa inicial .

REI Tudo isso na verdade heis enumerado ,


Proclamado nos mercados , lido nas igrejas ,
Para ornamentar as roupagens da revolta
Com alguma cor bonita que agrade aos olhos
De vira-casacas e pobres descontentes
Que se embasbacam e esfregam as mãos às novas
De qualquer mudança tumultuosa.
E nunca têm faltado à insurreição
Aguarelas dessas que lhe dão cor à causa, so

Nem pesarosos indigentes ansiosos


Por vandalismo , balbúrdia e confusão .

1 49
WILLIAM SHAKESPEARE 5.1

PRINCIPE Há muito boa gente em ambos os exércitos


Que pagará bem caro por este recontro ,
Se ele tiver lugar. Dizei a vosso sobrinho
Que o Príncipe de Gales faz sua a voz do mundo
No louvor de Harry Percy. À minha esperança
Que , se abatermos o presente empreendimento ,
Não penso que fidalgo mais distinto ,
Mais enérgico e mais jovem n a valentia, 90

Mais ousado e aguerrido , exista em nossos dias


Para agraciar com nobres feitos estes tempos .
Pela minha parte , para minha vergonha o digo ,
Tenho sido madraço no trato cortês ,
E é também esta, segundo sei , a opinião dele .
Mas perante a majestade de meu pai :
Agradar-me-á s e ele puser e m jogo
O seu grande nome e a sua reputação
E, para poupar o sangue de ambos os lados ,
Tentarei com ele a sorte em luta singular. 100

REI E nós te arriscaríamos , Príncipe de Gales ,


Não fossem infinitas considerações
Desaconselhá-lo . Não , bom Worcester, não .
Amamos muito o nosso povo , até os que foram
Desencaminhados pelo vosso primo ,
E se aceitarem a nossa oferta de perdão
Assim ele , e eles , e vós , e qualquer um,
Será de novo meu amigo , e eu o serei dele .
Dizei isto a vosso primo , e dai-me a saber
O que ele fará. Mas se não ceder, 1 10

A censura e a temível punição estão prontas


E farão o que lhes cabe . Agora, ide .
Não nos ocuparemos mais a dar respostas .
A oferta é indulgente , ponderai-a bem.

Sai [saem] Worcester [e Vernon]

1 50
HENRIQUE IV - PARTE 1 5.1

PRfNCIPE Ponho a vida em como não vai ser aceite .


O Douglas e o Hotspur, em estando juntos ,
Acham que podem enfrentar o mundo em armas .

REI Tome por isso o seu posto cada comandante ,


Pois assim a resposta venha, atacaremos ,
E Deus nos ajude tanto quanto a causa é justa . 1 20

Saem; ficam o Príncipe e Falstaff

FALSTAFF Se no combate me vires por terra, Hal , e passares a


tua perna assim por cima de mim , a dar-me cobertu­
ra , pois muito bem , será um sinal de amizade .

PRÍNCIPE Só um colosso poderá dar-te esse sinal de amizade .


Diz as tuas orações , e passa bem .

FALSTAFF Tomara que fossem horas de deitar, Hal , e tudo se


passasse bem .

PRÍNCIPE Como , se tu deves uma morte a Deus?

[Sai]

FALSTAFF Ainda não passou o prazo - muito me desagradaria


pagar-lhe antes do tempo . Porque hei-de ter pressa 1 30

com quem não chama por mim? Bem , não me inte­


ressa, é a honra que me atiça. Pois , e se a honra me
apagar quando eu estiver atiçado , como é? Pode a
honra endireitar uma perna? Não . Ou um braço? Não .
Ou tirar a dor de uma ferida? Não . A honra então não
tem jeito para a cirurgia? Não . O que é a honra? Uma
palavra. O que há nessa palavra honra? O que é essa
honra? Ar. Lindas contas ! Quem a tem? O que morreu
na quarta-feira. Ele sente-a? Não . Ouve-a? Não . Então
não é sensível? Para os mortos , não . Mas não vive com 1 40

151
WILLIAM SHAKESPEARE 5.1

o s vivos? Não . Porquê? A calúnia não deixa. Portanto ,


não quero nenhuma. A honra é apenas um pendão para
funerais . E assim termina o meu catecismo .

Sai

Cena 2

Entram Worcester [e] Sir Richard Vernon

woRcEsTER Não , o meu sobrinho não deve saber, Sir Richard ,


Da liberal e cortês oferta do Rei .

VERNON Era melhor que soubesse .

woRCESTER Então estamos perdidos .


Não é possível , nunca poderá ser,
Que o Rei respeite a promessa de amizade .
Sempre suspeitará de nós , e há-de vir o tempo
Em que por outras faltas punirá esta ofensa .
Para o resto das nossas vidas terá a suposição mil olhos ,
Pois na traição confia-se como na raposa, 10

Que , por muito mansa, tratada e cativa,


Não perde o jeito bravio dos antepassados .
Seja que nos mostremos tristes ou alegres ,
As interpretações desmentirão a aparência,
E alimentar-nos-emos como bois no estábulo ,
Quanto mais bem tratados mais perto da morte .
A transgressão de Harry pode bem ser esquecida,
Desculpam-no a juventude e o calor do sangue ,
E isenta-o o apelido de Harry, o Colérico:
Um miolos de lebre , dominado pela bílis . 20

As suas ofensas caem em cima de mim


E do seu pai . Fomos nós que o atraímos
E , sendo nossa a corrupção que ele apanhou ,

1 52
HENRIQUE IV - PARTE 1 5 .2

Como fonte de tudo pagaremos por tudo .


Por isso , meu primo , que Harry não saiba
Em caso nenhum da oferta do Rei .

Entram [Hotspur e Douglas]

VERNON Dizei o que quiserdes , e eu concordarei .


Aqui vem vosso primo .

HOTSPUR Meu tio está de volta;


Libertem o meu Lorde de Westmoreland .
Que novas há, meu tio? 30

WORCESTER O Rei quer o combate imediatamente .

DOUGLAS Desafiai-o por via de Westmoreland .

HOTSPUR Lorde Douglas , ide e encarregai-vos disso .

DOUGLAS Certamente , e fá-lo-ei de bom grado .

Sai

WORCESTER Não há, vindos do Rei , sinais de piedade .

HOTSPUR Vós a pedistes? Deus queira que não !

WORCESTER Falei-lhe , com brandura, das nossas queixas ,


Da sua promessa quebrada; e remendou ,
Perjurando agora o anterior perjúrio .
Chama-nos rebeldes , traidores , e arrogante 40

Flagela-nos com este odioso nome .

Entra Douglas

DOUGLAS Armem-se , senhores, às armas ! Venho de lançar,


Por meio de Westmoreland , que era nosso refém ,

153
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .2

Um duro desafio à cara do Rei


E que o vai fazer certamente avançar já.

woRcEsTER Diante do Rei , sobrinho , o Príncipe de Gales


Desafiou-vos para combate singular.

HoTsruR Oh , assim dependesse a disputa de nós dois ,


E mais ninguém hoje perdesse o fôlego ,
A não ser eu e Harry Monmouth ! Dizei , dizei , 50

Como foi o repto? Tinha ar de desprezo?

VERNON Pela minha alma que não ! Nunca na vida ouvi


Lançar um desafio com maior modéstia,
Excepto quando o irmão incita o irmão
A gentil exercício e a prova de armas .
Deu-vos todo o respeito devido a um homem,
Ornou-vos os louvores com idioma de príncipe ,
Fez como que uma crónica de vossos méritos ,
Elevando-vos acima dos seus louvores
Ao deslouvar o louvor comparado convosco , 60

E , o que realmente lhe assentou como a um príncipe ,


Fez uma embaçada citação de si próprio
E zurziu com tal graça a sua vã mocidade
Como se fosse senhor de um dom a dobrar
Para ensinar e aprender ao mesmo tempo .
Depois parou . Mas deixai que eu diga ao mundo:
Se ele sobreviver à maldade deste dia ,
Nunca a Inglaterra teve tão doce esperança
Tão mal entendida na sua exuberância.

HOTSPUR Parece , meu primo , que te enamoraste 10

Das suas maluqueiras ! Nunca ouvi falar


De um príncipe que fosse tão descomedido .
Mas , seja ele como for, antes desta noite
Eu o abraçarei com um braço de soldado
Que o fará retrair sob a minha cortesia.
À s armas ! Companheiros , soldados , amigos ,

1 54
HENRIQUE IV - PARTE 1 5 .2

Considerareis vós melhor o que há a fazer


Do que eu , falho como sou do dom da palavra ,
Vos arrebatarei o sangue pela persuasão .

Entra um Mensageiro

MENSAGEIRO Meu senhor, tenho aqui cartas para vós . 80

HOTsPuR Não as posso ler agora.


Meus senhores , o tempo da vida é breve !
Um uso soez faria a brevidade longa,
Cavalgasse a vida o ponteiro de um relógio
E logo acabasse à chegada de uma hora .
Se vivermos , será para espezinhar reis ,
Se morrermos , glória a quem morre ao lado de príncipes !
Para as nossas consciências as armas são justas
Quando há justiça na intenção de as usar.
Entra outro [Mensageiro]

[SEGUNDO]
MENSAGEIRO Meu senhor, preparai-vos , o Rei vem célere . 90

HOTSPUR Estou-lhe grato por me interromper a história,


Pois não me reclamo de orador. Apenas isto :
Faça cada um o seu melhor. E aqui ergo
Uma espada cuja têmpera intento manchar
Com o melhor sangue que me possa aparecer
Na ventura deste arriscado dia.
Vamos , Esperança ! Percy ! Avancemos !
Soem os eminentes instrumentos de guerra
E todos nos abracemos ao som dessa música:
Aposto o céu contra a terra, alguns não mais terão 1 00

Outra oportunidade para tal cortesia.

Abraçam-se, soam as trombetas

[Saem]

155
WILLIAM S HAKESPEARE 5 .3

Cena 3

O Rei entra com as suas forças . Toque a rebate para a batalha . En­
tram então Douglas e Sir Walter Blunt [disfarçado de Rei]

BLUNT Que nome tens , tu que assim na batalha


Sempre me vens ao caminho? Que honra buscas
Ao procurar-me assim?

DOUGLAS Fica a saber que meu nome é Douglas


E tenho andado na batalha atrás de ti
Porque alguns me dizem que tu és um rei .

BLUNT E dizem bem .

DOUGLAS O Lorde Stafford já pagou cara a parecença


Contigo , Rei Harry, pois em teu lugar
Esta espada acabou-o: fará contigo o mesmo lO

Se não te submeteres como meu prisioneiro .

BLUNT Não nasci submisso , orgulhoso escocês ,


E vais encontrar um rei que vingará
A morte de Lorde Stafford .

Lutam; Douglas mata Blunt


Entra então Hotspur

HOTSPUR Tivesses tu combatido assim em Holmedon


E nunca eu venceria um escocês .

DOUGLAS Tudo acabado e ganho . Aqui jaz morto o Rei .

HOTSPUR Onde?

DOUGLAS Aqui .

1 56
HENRIQUE IV - PARTE I 5 .3

HoTsPuR Este , Douglas? Esta cara conheço-a bem . 20

Um distinto cavaleiro , o seu nome era Blunt ,


Vinha vestido e armado em semelhança ao Rei .

DOUGLAS Vá um tolo co ' a tua alma , aonde quer que sej a !


Pagaste caro o título tomado de empréstimo .
Porque me disseste tu que eras um rei?

HOTSPUR Há muitos em campo com a roupagem do Rei .

DOUGLAS Pela minha espada, que mato as roupagens todas !


Assassino-lhe o guarda-roupa, peça a peça ,
Até encontrar o Rei .

HOTSPUR Arriba e avante !


Os nossos homens estão no rumo da vitória. 30

[Saem]

Toque a rebate . Entra Fa/staff só

FALSTAFF Em Londres dei um tiro na conta da tasca, mas com


os tiros daqui não quero nada , que estes acertam na
cachola. Vamos devagar ! Quem sois vós? Sir Walter
B lunt - aí está a vossa honra ! Aqui não há vaidades !
Estou tão quente como chumbo derretido , e tão pesa­
do . Deus me livre de chumbo , não preciso de maior
peso do que o das minhas entranhas . Levei os meus
maltrapilhos para onde eles pudessem ser massacra­
dos . Dos meus cento e cinquenta já não restam vivos
mais de três , que para o resto da vida hão-de ir pedir 40

para os arrabaldes . Mas quem vem lá?

Entra o Príncipe

PR Í NCIPE O quê , aqui sem fazer nada? Empresta-me a espada .


Jazem muitos nobres rígidos e frios
Sob os cascos de inimigos fanfarrões ,

1 57
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .3

E as suas mortes ainda por vingar. Rogo-te


Que me emprestes a espada .

FALSTAFF Oh , Hal , rogo-te que me deixes respirar um pouco .


Nunca o turco Gregório cometeu feitos de armas co­
mo os que eu pratiquei hoje. Saldei as contas com
Percy, mandei-o à vida. so

PRÍNCIPE Cheio de vida está ele para acabar contigo .


Rogo-te que me emprestes a tua espada.

FALSTAFF Ora, diante de Deus te digo , Hal , se Percy está vivo não
me levas a espada , mas leva-me a pistola se quiseres .

PRfNcIPE Dá-ma . O quê , está dentro do coldre?

FALSTAFF Poi s , Hal , está quente , está quente . Tem aí que chegue
para atordoar uma cidade .

O Príncipe saca da pistola e descobre que se trata de uma garrafa


de vinho

PRfNCIPE O quê , achas tu que esta é altura para brincar e gracejar?

Atira-lhe com a garrafa

Sai

FALSTAFF Bom , se o Percy estiver vivo , eu o trespasso . Se ele me


aparecer no caminho , muito bem. Se não aparecer, e se 60

eu aparecer no dele por vontade minha, que ele me faça


em tirinhas para grelhar. Não gosto nada daquela honra
arreganhada na cara de Sir Walter. Dai-me a vida, que
se eu puder salvá-la, muito bem . Se não , então a honra
chega sem ser esperada, e assim se chega ao fim.

[Sai]

158
HENRIQUE IV - PARTE I 5 .4

Cena 4

Rebate . Investidas . Entram o Rei, o Príncipe, Lorde John de Lan­


caster [e] o Conde de Westmoreland

REI Rogo-te que te retires , Harry, estás a sangrar muito .


Lorde John de Lancaster, ide vós com ele .

LANCASTER Só iria , senhor, se eu também sangrasse .

PR Í NCIPE Majestade , imploro-vos que avanceis


Antes que a vossa falta alarme os vossos amigos.

REI Assim farei . Meu Lorde Westmoreland ,


Levai-o à sua tenda .

WESTMORELAND Vinde , senhor, eu levo-vos à vossa tenda .

PR Í NCIPE Levar-me , senhor? Eu não preciso de ajuda


E Deus me livre de que um arranhão afaste 10

O Príncipe de Gales de um campo como este ,


Onde a manchada nobreza jaz espezinhada
E as armas dos rebeldes triunfam em massacres !

LANCASTER O descanso vai longo: vamos , primo Westmoreland ,


Este é o rumo do dever: por amor de Deus, vamos .

[Saem Lancaster e Westmoreland]

PR Í NCIPE Por Deus , que contigo me enganei , Lancaster,


Nunca te pensei senhor de um tal espírito:
Antes , eu amava-te , John , como a um irmão ,
Mas agora respeito-te como à minha alma .

REI Vi-o suster Lorde Percy à ponta da espada 20

Com porte mais vigoroso do que eu esperava


De um guerreiro tão jovem .

1 59
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .4

PRÍNCIPE Oh , este rapaz dá-nos têmpera a todos nós !

Sai

[Entra Douglas]

oouGLAs Outro rei ! Crescem como as cabeças da Hidra .


Eu sou Douglas , fatal para todos aqueles
Que usam as cores que ostentas . Quem és tu
Que finges assim ser a pessoa de um rei?

REI O próprio Rei , Douglas , que do coração lamenta


Que tantas das suas sombras tenhas encontrado
E não o vero Rei . Tenho dois rapazes 30

Em busca de ti e de Percy pelo campo ,


Mas visto que por sorte me apareceste ,
Vou pôr-te à prova , prepara a tua defesa.

oouGLAs Receio que sejas outro rei a fingir


E contudo , à minha fé , portas-te como um rei .
Mas meu estou certo de que és , quem quer que sejas ,
E assim te levo de vencida.

Lutam, o Rei fica em perigo


Entra o Príncipe de Gales

PRÍNCIPE Ergue a cabeça, vil escocês , se é que não queres


Ficar de vez sem ela ! Estão nas minhas armas
Os espíritos dos bravos Shirley, Stafford e Blunt . 40

Quem te ameaça é o Príncipe de Gales ,


Que nunca promete sem tenções de pagar.
Lutam, Douglas foge
Ânimo , senhor, como está Vossa Graça?
Sir Nicholas Gawsey mandou pedir socorro
E o mesmo fez Clifton - vou ter com ele agora .

1 60
HENRIQUE IV - PARTE 1 5 .4

REI Espera , e respira um pouco .


Redimiste a tua reputação perdida
E mostraste dar algum valor à minha vida
No generoso socorro que me trouxeste .

PR Í NCIPE Ó Deus , quanto mal me fizeram todos aqueles so

Para quem eu ansiava pela vossa morte .


Fora assim , e bem pudera eu ter deixado
Sobre vós a desprezível mão de Douglas ,
A qual apressaria tanto o vosso fim
Quanto todos os venenos deste mundo ,
Poupando a vosso filho esse traiçoeiro labor.

REI Vai juntar-te a Clifton que eu me junto a Sir Nicholas


Gawsey.

Sai

Entra Hotspur

HOTSPUR Se não me engano , tu és Harry Monmouth .

PR Í NCIPE Falas como se eu renegasse o meu nome .

HOTSPUR Meu nome é Harry Percy. 60

PR Í NCIPE Estou então perante


O valente revoltoso com tal nome .
Sou o Príncipe de Gales , e não penses , Percy,
Continuar a partilhar comigo a glória.
Não se movem na mesma esfera duas estrelas
Nem uma Inglaterra aguenta um duplo reino
De Harry Percy e do Príncipe de Gales .

HOTSPUR Nem poderá , Harry, porque chegou a hora


Do fim de um de nós ; e prouvera a Deus
Fosse nas armas o teu nome igual ao meu . 70

161
WILLIAM S HAKESPEARE 5 .4

PR Í NCIPE Fá-lo-ei maior antes de te deixar


E os florescentes penachos do teu elmo
Hão-de dar uma grinalda para a minha cabeça.

HoTsPuR Não aguento mais as tuas vaidades .

Lutam
Entra Falstaff

FALSTAFF Muito bem , Hal ! Isso , isso , Hal ! Olha que isto não
vai ser brincadeira de rapazes , digo-to eu .

Entra Douglas, luta com Falstaff, [que] cai por terra como morto

[Sai Douglas]

O Príncipe mata Percy

HOTSPUR Oh , Harry, que me roubaste a minha juventude !


Aguento melhor a perda da franzina vida
Do que dos briosos títulos que me ganhaste .
Isso fere-me as ideias mais do que a espada a carne . so

Mas as ideias , escravas da vida, e a vida,


Jogral do tempo , e o tempo , guardador do mundo ,
Têm de ter um fim . Oh , eu faria profecias ,
Não fosse a terrenta e fria mão da morte
Pesar-me na língua. Não , Percy, tu és pó
E alimento para . . .

[Morre]

PR Í NCIPE Para os vermes , bravo Percy. Adeus , grande homem !


Ambição mal tecida , o que encolheste .
Quando este corpo tinha dentro um espírito ,
Um reino para ele era limite escasso . 90

Mas agora dois passos da terra mais vil


São largueza que chegue . Na terra onde estás morto

1 62
HENRIQUE IV - PARTE 1 5 .4

Não está vivo nenhum outro mais valente .


Se pudesses sentir as minhas cortesias
Não mostraria uma tão cara admiração:
Com os meus favores cubro o teu rosto mutilado
E mesmo em teu nome agradeço a mim próprio
Por estes meus gentis rituais de ternura .
Adeus , e leva o teu louvor contigo para o céu !
Que a tua ignomínia durma contigo na cova 100

Mas não seja lembrada no teu epitáfio .


Descobre Fa/staff por terra
O quê , velho conhecido , não pôde tanta carne
Guardar uma exígua vida? Adeus , meu pobre Jack !
Perderia de mais bom grado alguém melhor.
Teria por ti mais pesada piedade
Se estivesse apaixonado pela vaidade .
A morte não abateu hoje um cervo mais gordo ,
Se bem que melhores servos neste feroz desacordo .
Mais tarde ou mais cedo vou ver-te estripado ,
Até lá jaz em sangue , e o nobre Percy a teu lado . 1 10

Sai

Falstaff levanta-se

FALSTAFF Estripado? Se me estripares hoje, autorizo-te a que me


temperes e ainda me comas amanhã. Raios me partam
se aquilo não era altura para fingir, ou aquele arrua­
ceiro escocês , furioso como estava, tinha saldado as
minhas contas até ao último centavo . Fingir? Minto ,
eu não sou fingidor nenhum . Morrer é que é ser fin­
gidor, porque quem não tem uma vida de homem é
um homem a fingir. Mas fingir a morte , quando por
via disso se vive , não é ser fingido , mas é ser antes a
verdadeira e perfeita imagem da vida. A melhor parte 1 20

da coragem é a discrição , e foi essa melhor parte que


me salvou a vida. C ' os diabos , estou com medo deste
Percy das pólvoras , mesmo com ele morto . E se ele

1 63
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .4

também estivesse a fingir e se levantasse? E o meu


medo - à minha fé ! - era que ele viesse a mostrar­
-se o melhor fingimento . Pois , o melhor é matá-lo pela
certa, e depois posso jurar que o matei . Porque é que
ele não há-de poder levantar-se como eu? Só olhos
me poderão desmentir, e não há aqui ninguém que me
veja. Por isso , meu caro [trespassa-o com a espada] , 1 30

com um novo ferimento na coxa, vem daí comigo .

Põe Hotspur às costas


Entram o Príncipe [e] John de Lancaster

PR Í NCIPE Vem , irmão John , com bravura deste carne a provar


À tua espada virgem.

LANCASTER Mas calma , quem está aqui?


Não me havíeis dito que este gordo estava morto?

PR Í NCIPE Disse , e vi-o morto ,


Sem respirar e a sangrar no chão . Estás tu vivo?
Ou é a fantasia que nos ilude os olhos?
Rogo-te que fales , não vamos crer no olhar
Sem os ouvidos . Tu não és o que pareces .

FALSTAFF Ah , isso é certo que não , não sou u m duplo . Mas seja 140

eu um Jack qualquer se não sou Jack Falstaff. Aqui


está Percy !
[Pousa o corpo no chão]
Se o vosso pai me quiser conferir alguma honraria,
muito bem . Se não , então que mate ele próprio o pró­
ximo Percy. E não conto com ser menos do que con­
de ou duque , isso vo-lo digo eu .

PR Í NCIPE Mas fui eu quem matou Percy, e a ti vi-te morto .

FALSTAFF Ah , sim? Ó Senhor, Senhor, como este mundo está


entregue à mentira ! Eu vos garanto que eu estava por

1 64
HENRIQUE IV � PARTE I 5 .4

terra , sem fôlego , e assim também estava ele , mas 1 so

ambos nos erguemos ao mesmo tempo e lutámos por


uma boa hora medida pelo relógio de Shrewsbury. Se
acreditam em mim , muito bem . Se não , então quem
deveria recompensar o valor que carregue o fardo
do pecado à cabeça . Pela hora da minha morte eu
afianço que lhe dei este golpe na coxa. Se o homem
estivesse vivo e o negasse , ai c ' um raio ! , havia de o
fazer engolir um pedaço da minha espada .

LANCASTER Esta é a história mais estranha que eu ouvi .

PR Í NCIPE Este é o sujeito mais estranho , irmão John . 1 60

Vem, carrega a bagagem com nobreza às costas .


Pela minha parte , se uma mentira te serve ,
Hei-de dourá-la com os melhores termos que tenho .
Toque a retirada
A trombeta toca a retirar, o dia é nosso .
Vem, irmão , vamos ao cimo do campo ,
A ver que amigos vivem , e quais morreram .

Saem [o Príncipe de Gales e wncaster]

FALSTAFF Cá vou atrás dele s , como se costuma dizer, no en­


calço da recompensa. Deus recompense a quem me
recompensar. Se eu me tomar grande , tomo-me mais
pequeno , porque me hei-de purgar, e deixar o seco , e 1 10

viver asseadamente como convém a um nobre .

Sai [carregando o corpo]

165
WILLIAM SHAKESPEARE 5 .5

Cena 5

Soam as trombetas . Entram o Rei, o Príncipe de Gales, Lorde John


de Lancaster, o Conde de Westmoreland, com Worcester e Vernon
prisioneiros

REI Sempre assim a revolta encontrou reprimenda .


Malquerente Worcester, não oferecemos nós graça,
Perdão e termos de amizade a todos vós?
Porque voltaste as nossas ofertas ao contrário?
Porque abusaste da fé do teu parente?
Três cavaleiros nossos mortos hoje,
Um nobre conde , e muitas mais criaturas
Estariam ainda vivas nesta hora
Se como um cristão tivesses fielmente levado
Informações fiéis de um exército ao outro . 10

WORCESTER Fiz o que a minha segurança me intimou


E aceito este destino com paciência ,
Já que nada posso fazer para o evitar.

REI Levem Worcester para a morte , e também Vernon .


Dos outros culpados trataremos depois .
[Saem Worcester e Vernon, sob custódia]
Como vai o campo?

PR Í NCIPE O nobre escocês , Lorde Douglas , quando viu


A sorte do dia toda contra ele ,
O nobre Percy morto , e todos os seus homens
Com o medo nos calcanhares , fugiu com o resto , 20

Caiu por uma ribanceira, ficou ferido


E foi depois apanhado . Na minha tenda
Está agora o Douglas ; e peço a Vossa Graça
Que eu possa dispor dele .

REI De todo o coração .

1 66
HENRIQUE IV - PARTE I 5 .5

PR Í NCIPE Então , irmão John de Lancaster, a vós


Pertencerá esta honrosa benevolência .
Ide ter com Douglas e libertai-o
A seu bel-prazer e livre sem resgate .
O valor com que ele hoje nos zurziu
Ensinou-nos a apreciar tão altos feitos , 30

Mesmo no seio dos nossos adversários .

LANCASTER Agradeço a Vossa Graça esta cortesia


Que vou conceder imediatamente .

REI Teremos agora de dividir as forças .


Tu , meu filho John , e o meu primo Westmoreland
Deveis dirigir-vos para York a toda a pressa
Ao encontro de Northumberland e do prelado Scroop
Que , tanto quanto sabemo s , estão em armas .
Eu e tu , filho Harry, vamos para Gales
A combater Glendower e o Conde de March . 40

Nesta terra a revolta há-de perder o arrojo


Perante o desaire de outro dia como o de hoje;
E uma vez que a causa ficou decidida,
Não paremos até tudo ir de vencida.

Saem

1 67
Notas
Advertência: Os números que precedem cada entrada correspondem aos
das linhas no Acto e Cena respectivos .

1 . 1 - Na corte de Henrique IV.


1 . 1 .5 - «O átrio sedento desta terra» : a metáfora apresenta a terra como uma
mãe desnaturada que devora os seus próprios fi lhos (Weil 67) .
1 . 1 .23 - «no ventre da mãe» : a Inglaterra (a mãe-pátria) .
1 . 1 .3 1 - «meu grato primo» : no inglês do tempo de Shakespeare , o termo
cousin ( «primo») podia designar qualquer relação de parentesco com excepção
de descendentes directos . O Conde de Westmoreland histórico era cunhado de
Henrique IV.

1 .2 - Não há elementos que permitam estabelecer com rigor uma localiza­


ção . Os editores mais recentes têm localizado a acção desta cena nos aposentos
do Príncipe em Londre s .
1 .2 .2 - O nome dado a o vinho q u e Falstaff bebia, sack, designava um tipo
de vinho branco que na época era importado de Espanha e das Canárias . Na
história da língua inglesa esta palavra acabou por ficar associada ao nome de
Falstaff. Optou-se por traduzir por seco , tendo em conta a etimologia do termo
inglês , que tem origem no termo francês sec .
1 .2 .2 1 - Um ovo com manteiga é aqui exemplo de uma refeição muito
frugal . Para Falstaff a importância das graças a Deus dadas antes da refeição é
proporcional ao conteúdo desta .
1 .2 .79 - No tempo de Shakespeare , a gaita-de-foles inglesa parece ter es­
tado associada aos condados de Lancashire e Lincolnshire (Humphreys 14).
1 .2 .8 1 - Dizia-se que comer carne d e lebre provocava melancolia (Weil 76) .
1 .2 .82 - Moorditch: vala de esgotos em Londres ao tempo de Shakespeare ,
que era associada à melancolia (Humphreys 14).
NOTAS

1 .2 .92 - Falstaff parodia aqui um estereótipo do discurso religioso puri­


tano: repetitivo , monocórdico e apelando constantemente ao arrependimento .
1 .2 .93 - Alusão a Provérbios 1 .20 e 1 .24: «A sabedoria clama nas ruas , / eleva
a sua voz nas praças» ; «Mas já que vos chamei e vós não respondeste s , / estendi
a mão e ninguém prestou atenção» . O Príncipe insinua que Falstaff nada tem que
ver com a sabedoria .
1 .2 . 1 43 - «enforco-vos p o r irdes» , isto é , «Se fordes , denuncio-vos e sereis
enforcado» . Trata-se aparentemente de uma brincadeira de Fal staff.

l .3 - Não há indicações sobre o local da acção . Alguns editores localizam­


-na em Windsor, relacionando-a assim com a reunião do Conselho anunciada
pelo Rei no fim da Cena 1.
1 .3 .79 - Edmund Mortimer, irmão da mulher de Hotspur, Kate (este nome
é invenção de Shakespeare , já que a personagem histórica correspondente se
chamava Elizabeth) .
1 .3 .84 - O Conde de March , ou sej a , o mesmo Edmund Mortimer atrás refe­
rido , mais adiante mencionado como o legítimo herdeiro do trono de Ricardo I I ,
usurpado por Henrique IV. Shakespeare confunde duas figuras históricas , ambas
de nome Edmund Mortimer (conforme se refere na Introdução): Sir Edmund
Mortimer, casado com a filha de Owen Glendower, era tio de Edmund Mortimer,
Conde de March , designado por Ricardo II como herdeiro do trono .
1 .3 . 1 35 - Bullingbrook (ou Bolingbroke) refere o lugar (no Lincolnshire)
de nascimento de Henrique IV.
1 .3 .206 - Hotspur responde a um argumento imaginário , já que ninguém
falou em repartir as honras .
1 .3 . 2 1 2-2 1 3 - Há aqui um jogo de palavras que se perde na tradução : entre
scot = migalha (pequeno pagamento) e scot = escocês .
1 .3 .227 - « De espada e rodela» : ao tempo de Shakespeare , os homens da
alta sociedade usavam o florete e o punhal . A espada e a rodela (pequeno escudo
redondo) eram associadas a criados ou a escudeiro s .

2.1 - A acção decorre numa estalagem, presumivelmente n a estrada de


Londres para Cantuária e possivelmente em Rochester, onde Poins anunciara
que Gadshill iria pernoitar.
2 . 1 .64 - S ão Nicolau , patrono dos viajante s , era já associado em fins da
Idade Média aos vagabundos e acabou transformado em patrono dos larápios .
2 . 1 .72 - Troiano s : termo de calão para «bons companheiros» .
2 . l .9 1 - Pensava-se que o feto se reproduzia por meio de sementes invi­
síveis , que por sua vez conferiam invisibilidade (as sementes tinham de ser
colhidas na noite de São João , o único momento em que se tomavam visíveis) .

1 72
HENRIQUE IV - PARTE I

2 .2 - Na estrada , em Gad 's Hill .

2 .3 - Os dados da cena apenas permitem concluir que esta se passa num


ambiente doméstico , presumivelmente em casa de Hotspur.
2 .3 .8 1 - A divisa da família Percy era Esperance ma conforte ( « o meu
conforto é a esperança» ) .
2.3 .97 - A frase «torcer o dedo pequenino» referia aparentemente uma ma­
nifestação de ternura . Lady Percy vai mais longe nessa manifestação ao substi­
tuir «torcer» por «quebrar» .

2 .4 - Na taberna em Eastcheap . Esta cena é geralmente designada como a


«primeira cena da taberna» .
2 .4 .3 3 - «Meia-Lua» : era costume a s salas das tabernas serem identificadas
por nomes como este , ou como «Romã» , algumas linhas mais adiante .
2 .4 .48 - O tempo usual de serviço como aprendiz era de sete anos .
2 .4 . 1 1 8 - «Rivo ! » : uma exclamação usada nas tabernas e associada ao vi­
nho , aparentemente pedindo ou anunciando «mais uma rodada» . A origem do
termo é incerta: o Oxford English Dictionary sugere uma pos sível origem no
espanhol «Arriba!» .
2 .4 . 1 28- 1 29 - O Sol (personificado em Titã) a beijar a manteiga que se derre­
te : aparentemente a imagem refere-se a Falstaff enquanto bebe o seu vinho . Este
passo tem sido objecto de sucessivas revisões pelos editores de Shakespeare , pelo
facto de tanto nos ln-Quartos como no ln-Fólio a redacção Titan that melted ( «Ti­
tã que se derretia») ser incongruente . A redacção aqui seguida é hoje adoptada
pela generalidade dos editores .
2 .4 . 1 42 - Os tecelões eram na época as sociados à influência de credos puri­
tanos . Tal poderá estar relacionado com a imigração de holandese s , de tradição
re ligiosa calvinista , que frequentemente se dedicavam à tecelagem .
2 .4 . 1 85 - Q l atribui esta fala a Gadshill e as três seguintes falas de B ardolph
a «Rossil» , um nome que nas primeiras representações da peça teria figurado no
lugar de «B ardolph» (como «Oldcastle» no lugar de «Falstaff» ) .
2 .4 .263 - Caixa de arco: caixa comprida e estreita onde s e guardava o arco
desaparelhado .
2 .4 .290 - «0 leão não toca . . . » : era lendário o respeito do leão (rei dos
animai s) pelos príncipes .
2 .4 .304 ; 306 - «um nobre da corte . . . um real da corte» : « nobre» e «real»
eram nomes de moedas .
2 .4 .3 3 6 - «O fogo e a espada» : um poder i nvencíve l . A referência ao
fogo é uma alusão cómica à face de B ardolph e às suas erupções cutâneas ,
que na fal a imedi atamente seguinte s ão comparadas a meteoros pelo próprio
B ardolph .

1 73
NOTAS

2 .4 .342 «Fígados aquecidos . . . » : o vinho aquece o fígado e esfria a bolsa .


-

2 .4 .356 - Amamon: nome de um demónio . Glendower era conhecido por


se dedicar às artes mágicas .
2 .4 .407 - «à moda do Rei Cambises» : alusão ao estilo , considerado empo­
lado e extravagante , de Thomas Preston numa peça de 1 569 sobre «A vida de
Cambises , Rei da Pérsia» .
2 .4 .408 - « aqui está a minha perna» : o Príncipe dobra o joelho em sinal de
respeito perante o Rei (a fala é também uma indicação cénica) .
2 .4 .434-436 - «Esse pez . . . mancha quem nele toca» : Ben Sira (Eclesiásti­
co) 1 3 . 1 ( «Ü que toca no pez ficará manchado» ) .
2 .4 .45 1 - « S e a árvore se conhece pelo fruto . . . » : Mateus 1 2 .3 3 («Ou admi­
tis que a árvore é boa e o seu fruto será bom , ou admitis que a árvore é má e o
seu fruto será mau . Porque pelo fruto se conhece a árvore » ) .
2 .4 .500-50 1 - «as vacas magras do Faraó . . . » : Génesis 4 1 (o faraó sonha
com sete vacas magras e José explica-lhe que o sonho significa sete anos de
fome) .
2 .4 .520 - «Tu no fundo és autêntico» : no original , Thou art essentially
made . O Terceiro ln-Fólio ( 1 664) substituiu made por mad, tendo essa versão
sido ao longo dos tempos adoptada por muitos editores (entre os quais o editor
seguido por Henrique B raga quando traduz o passo por: «tu és essencialmente
tolo» ) . A versão dos ln-Quartos aqui seguida é a adoptada hoje pela generali­
dade dos editore s .
2 .4 .523 - «Nego a tua maior» : premissa maior, o u fundamental .
2 .4 .525 - «na carroça» : carro ça onde os criminosos eram expostos enquan­
to eram conduzidos à forc a .
2 .4 .554-555 - S ão Paulo: antiga Catedral d e S ão Paulo , destruída no incên­
dio de Londres de 1 666 .

3 . 1 - Nas crónicas de Holinshed há referência a um encontro entre repre­


sentantes dos Lordes revoltosos em casa do Arcediago de B angor, o que tem
levado alguns editores a localizar aí a presente cen a . Pelo seu conteúdo , a cena
parece ter porém lugar em casa de Owen Glendower.
3 . 1 .70 - « até aqui » : até um lugar ou limite apontado no mapa por Mortimer,
não « até ao lugar onde nos encontramos» .
3 . 1 .207 - «viçosos juncos» : juncos frescos eram usados para cobrir o chão ,
tanto nas casas como nos palcos.
3 . 1 .220 - É di scutível se esta convocação dos músicos é uma prova das
artes mágicas de Glendower ou se ante s a parodi a . Embora o tom do comen­
tário de Hotspur (ver nota seguinte) pareça apontar para a segunda hipótese ,
esta poderá ser uma deci s ão que no teatro cabe em última in stânc ia ao ence­
nador.

1 74
HENRIQUE IV - PARTE I

3 . 1 .225 - «O diabo percebe galês» : terá sido em galês que Glendower, por
artes do diabo , convocou os músicos .
3 . 1 .248 - Finsbury Field s : um lugar a norte de Londres usado como área
de lazer.
3 . 1 .255 - Os alfaiate s , como os tecelõe s , eram conhecidos por cantarem
enquanto trabalhavam . Hotspur desvaloriza a arte do canto , como desvaloriza
os hábitos burgueses (da «gentinha dos fatos domingueiros» ) .

3.2 - A acção decorre n a corte .


3 .2 .32 - «perdeste o lugar no Conselho » : segundo a lenda da juventude trans­
viada do Príncipe, este perdera o seu lugar no Conselho Privado do Rei por ter
agredido o juiz presidente do Supremo Tribunal (Lord Chie! Justice) . Haverá ecos
desta história apócrifa em 2 Henrique N, mas no presente contexto da peça o Rei
pode estar a referir-se simplesmente à vida do Príncipe na companhia de Falstaff.
3 .2 .67 - «comparativo» : alguém que faz comparações espirituosas . Neste
caso pouco espirituosas , porque fútei s . Falstaff usou o mesmo termo para de­
signar a espirituosidade do Príncipe em 1 .2 .84 .
3 .2 . 1 1 2 - « Por três veze s » : Hotspur combateu em três batalhas contra a
farru1ia Douglas : Otterburn ( 1 3 85 ) , Nesbit ( 1 402) e Holmedon ( 1 404) . S ão as
notícias desta última que chegam ao Rei em 1 . 1 .
3 .2 . 1 80 - «0 ensejo engorda» : as oportunidades (para a revolta) aumentam .
Estas palavras do Rei contrastam com as palavras iniciais de Falstaff no início
da cena seguinte .

3 .3 - Na taberna de Eastcheap .
3 .3 .5-6 - Maçãs de São João: uma qualidade de maçãs apanhadas pelo São
João para consumir mais tarde , já murchas e encarquilhadas .
3 .3 .36- « Dives vestido de púrpura» : Lucas 1 6 . 1 9-3 1 , parábola do rico e de
Lázaro (dives é o termo latino para «rico» ) . Um homem rico , «que se vestia de
púrpura e linho fino e fazia todos os dias esplêndidos banquetes» , deixou que
à sua porta morresse de fome um homem pobre , Lázaro . O pobre morreu e foi
levado pelos anjos para o seio de Abraão ; o rico morreu e foi condenado aos
tormentos pelas chamas do Inferno .
3 .3 .55-56 - Resposta proverbial , comparável a «era bem feito que engolis­
ses o que dizes ! » .
3 .3 .66 - «B ardolph foi rapado » : h á aqui u m possível j ogo com segundos
sentidos : 1 ) perder o cabelo em consequência da sífilis (por transmissão vené­
rea) ; 2) rapar o cabelo por estar infestado de piolho s ; 3) ser-lhe rapado o cabelo
por ir para a prisão .
3 .3 . 1 04 - Newgate : prisão de Londre s . Os prisioneiros eram levados dois a
dois para o tribunal e de volta à pri são .

1 75
NOTAS

3 .3 . 1 26 - « ameixa em calda» (stewed prune) era uma designação de calão


para prostituta .
3 . 3 . 1 27 - « numa raposa perseguida» : uma raposa perseguida vive das suas
artimanhas e fingimento s .
3 .3 .2 1 8 - S alão d o Templo : salão d o Inner Temple , u m a das escolas de
Direito de Londres (o nome advém-lhe do facto de o lugar ter sido em tempos
ocupado pela Ordem dos Templários) .

4 . 1 - No acampamento dos revoltosos .


4 . 1 . 1 3 - «Que cartas aí tens ? - Só vos posso estar grato» : este hábito de
Hotspur, de se interromper a si próprio e depois retomar o raciocínio , foi antes
parodiado por Hal em 2 .4 .
4 . 1 .25 - « o s tempos» : a ordem d o mundo . O sentido simplificado d a frase
é: «Tivesse ficado tudo resolvido antes de ele ter adoecido» .
4 . 1 .3 1 - «Escreve ele aqui que uma doença interior. . . » : a frase não é com­
pletada. No original este verso é também em termos métricos incompleto (é um
tetrâmetro e não um pentâmetro) , tendo alguns editores tentado completá-lo ,
geralmente através de: «que uma doença interior o prende» . Mas o carácter
incompleto do verso (e da frase) pode também dar conta da impaciência de
Hotspur, que o faz saltar passos da carta no resumo que dela apresenta .
4 . 1 . 1 1 4 - «E à virgem de ígneos olhos . . . » : B ellona , deusa da guerra na
mitologia roman a .

4 . 2 - N o caminho de Londres para Shrewsbury.


4 .2 .6 - Anjo: moeda de ouro onde estava gravada a fi gura do Arcanjo
Miguel . Ao afirmar que a garrafa «dá um anjo» (makes an angel) , B ardolph
refere-se a quanto a garrafa (cheia de vinho) custa , mas Falstaff irá em seguida
interpretá-lo à letra , insinuando que B ardolph poderá assim «cunhar» , isto é ,
«fazer dinheiro» com a garrafa .

4.3 - No acampamento dos revoltosos .


4 .3 .2 - «Mas assim dais-lhe vantagem» : esta fala de Douglas , que concorda
com Hotspur, é dirigida a Worcester.
4 .3 .56 - «vinte e seis apoiantes» : ignora-se a razão deste número . Segundo
as crónicas de Holin shed , quando o futuro Henrique IV aportou a Inglaterra
«não tinha com ele mais de três vintenas de pessoas» .

4 .4 - Presumivelmente no paço do Arcebi spo de York . Esta cena , que esta­


belece a ligação com a acção de 2 Henrique IV, é frequentemente eliminada nas
representações da peça .

1 76
HENRIQUE IV - PARTE I

5 . 1 - Ao longo de todo o Acto 5 a acção decorre no campo de batalha de


Shrew sbury ou nas suas proximidades .
5 . 1 .34 - «quebrei o bastão . . . » : o Conde de Worcester histórico era Cama­
reiro-mor da corte de Ricardo II . De acordo com as crónicas de Holin shed ,
Worcester quebrou o bastão branco que era insígnia do seu cargo quando aban­
donou o Rei para apoiar Henry Bol ingbroke , o futuro Henrique IV.
5 . 1 . 1 05 - «vosso primo» : Hotspur, sobrinho de Worcester (cf. nota a 1 . 1 .3 1 ) .

5 .2 .9 - Alguns editores emendaram supposition ( « suposição») para suspi­


cion ( « suspeita» ) . Em qualquer caso o verso é hipermétrico .
5 .2 . 1 9 - «Harry, o Colérico» : na medida em que neste passo Worcester
chama a atenção para o significado do cognome Hotspur, este é aqui traduzido
por «Colérico» . Nas restantes ocorrências o termo é tomado como sobrenome ,
não sendo por conseguinte traduzido .
5 .2 .50 - Monmouth : a cidade do País de Gales onde Harry nascera .
5 .2 .97 - Esperança: cf. nota a 2 .3 .8 1 .

5 .3 .23 - «Vá um tolo co ' a tua alma» : «que o labéu "tolo" acompanhe a tua
alma» Uá que em vida provaste ser tolo ao disfarçares-te de rei) .
5 .3 .48 - «Nunca o turco Gregório» : os turcos eram em geral considerados
violentos e feroze s . Doi s papas de nome Gregório têm sido sugeridos como
possíveis referências : Gregório VII ( século x1) , cuja violência era denuncia­
da pelos autores protestante s , e Gregório XIII ( 1 572-85 ) , que teria instigado o
massacre de São B artolomeu (massacre dos Huguenotes em França em 1 572) e
prometido indulgência plena a quem assassinasse a Rainha Isabel I (Weil 1 87) .

5 .4 .65 - «Não se movem na mesma e sfera . . . » : no si stema ptolomaico cada


estrela ocupava uma esfera , ou órbita .
5 .4.83 - «eu fari a profecias » : acreditava-se que os moribundos tinham o
poder de adi vinhar o futuro .
5 .4 .96 - «Com os meus favores» . Favor: laço ou ornato que as damas ofere­
ciam aos cavaleiros que vinham aos torneios combater em honra delas , e que os
prendiam ao seu elmo ou à sua armadura (Dicionário de José Pedro Machado) .
No caso presente ter- se-á perdido o sentido de «oferta» para ficar apenas o de
«insígnias» (fitas ou plumas) , que Hal provavelmente retira do seu elmo .
5 .4 . 1 3 2- 1 33 - «deste carne a provar . . . »: para iniciar um falcão ou um cão
de caç a , era costume dar-lhe a provar carne dos animais que se pretendia que
eles caçassem (Bevington 283) .

1 77
Índice

Introdução 9

Henrique IV - Parte 1 43

Notas 1 69
NESTA COLECÇÃO

1 . Romeu e Julieta
2 . Henrique N Parte I
-

3 . Henrique IV - Parte II

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