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ASIN:
“Vocêaprende a amar não achando a pessoa perfeita, mas
aprendendo a ver a perfeição numa pessoa imperfeita”

- Sam Keen
PRÓLOGO

Londres,
28 de Maio, 1831

Julia Annelisse Wilson estava cansada. Não, ela estava


exausta.
Estava consumida.
Não aguentaria mais uma temporada. Tinha de tomar medidas
drásticas. Um ataque catatônico permanente não daria certo, ela
não conseguiria manter a farsa de imobilidade por muito tempo.
Poderia virar freira, mas ela tinha muita curiosidade sobre os
prazeres da carne e não duraria muito tempo no convento. Talvez...
Viver com a Tia Gladys.
Sim, era a melhor opção. Um pouco extremo, talvez, mas
necessário. Só ela, um novelo de lã, duas agulhas de tricô e a tia
viúva. Ah, e seu gato, é claro.
Sem mais temporadas.
Em sua primeira temporada, quase quatro anos atrás, fora
boicotada pela própria timidez. Na segunda, Petúnia aparecera e a
ofuscara com aqueles cabelos que pareciam de ouro e os artifícios
que só uma coquete como ela teria. Na terceira, ela perdera todas
as esperanças em si mesma depois da arrasadora humilhação
causada por sua priminha Tamsin – outra que se mostrou uma jóia
da temporada.
Além do mais, todo mundo estava se casando e ela não.
Tamsin, Petúnia e, finalizando a onda de humilhações, Jane. Jane!
Julia passou a vida inteira conspirando consigo mesma que Jane
gostava de moças, mas pareceu estar enganada quando a jovem
anunciou que se casaria com Lucas.
Quem diria? Lucas e Jane, casando por amor. Era o fim dos
tempos.
Julia tinha perdido as esperanças na humanidade e no próprio
futuro. Não aguentava mais ficar em Londres, principalmente com
todas as matriarcas relembrando a cada cinco minutos que ela
deveria começar a usar aquelas touquinhas de renda destinadas às
solteironas.
Não precisava mais daquela bufonaria na própria vida. Deixaria
seus cabelos à mostra.
Gostava de pensar que aquela era sua única razão para querer
deixar a cidade, mas não era. Seu coração não aguentava mais
andar pelos salões de Londres e vê-lo não notá-la. Nem mesmo
cumprimentá-la ou lembrar-se quem ela era.
Lorde Winsford era uma causa perdida, Julia tinha de aceitar
que aquela paixão platônica já não tinha mais fundamento. Pouco
mais de dois anos antes ela o conheceu no fatídico dia do velório de
seu pai, o último Lorde Winsford. Como o marquês e David eram
bons amigos desde os tempos de escola, Júlia foi prestar
condolências ao amigo do irmão.
Não era certo, mas se apaixonou pelo homem no meio de um
velório cheio de lágrimas e melancolia.
Winsford era tão adorável, gentil, bonito e educado. Ele sempre
sorria com gentileza para todos, tinha olhos escuros e cabelos
dourados como trigo. Ela queria poder tocar aqueles cabelos e fazê-
lo dormir em um mundo utópico de felicidade.
Julia apenas o cumprimentou uma vez, durante o velório, mas
aquele breve cumprimento e os pêsames compartilhados foram o
suficiente para que o platônico desejo de ficar com ele se
apoderasse dela.
Ele não tinha ninguém no mundo além de si mesmo e ela era
chegada a hábitos solitários – apesar de ter uma família grande,
Julia gostava de ficar sozinha a maior parte do tempo. Poderiam ser
o tudo um do outro, felizes em uma casa de campo, com criancinhas
loiras e pálidas.
O sentimento puro durou pelo tempo que pôde, até que, na
última temporada, Winsford calhou de se apaixonar por Tamsin. A
cidade inteira acreditou que ambos se casariam, mas logo Tamsin o
dispensou e o homem sumiu da face da Terra.
Tamsin havia o magoado, Julia não conseguia perdoar a prima
por aquilo. Agora Winsford estava sumido e Julia, sem esperança de
se casar com ele um dia. Sabe-se lá para onde fugira, talvez muito
abalado com a rejeição e as fofocas nos tablóides. Parecia que o
plano de Júlia para descontar seu ciúmes em Tamsin havia dado
errado para o marquês.
Sim, fora ela quem escrevera de forma anônima para o jornal,
contando sobre as mentirosas aventuras apaixonadas de Tamsin e
Winsford. Ela sabia – era muito observadora – que Tamsin e
Dominick haviam se tornado namorados. Enciumada por causa de
Winsford, Julia decidiu abalá-los com as fofocas e dar uma lição em
Tamsin por ter roubado sua paixão e não ter dado a devida atenção
a ele.
Foi um ato egoísta e imaturo de raiva e inveja, pensava que
daquela forma Tamsin terminaria qualquer ligação com Winsford e o
homem a esqueceria, deixando-o livre para que Julia se
confessasse. Ela tentou tomar coragem por quase um ano para se
confessar ao marquês, mas a prima apareceu e acabou com suas
chances.
Estava arrependida, é claro. Morria de vergonha ao pensar em
como fora infantil ao agir daquela forma. Pelo amor de Deus, tinha
quase vinte e três anos. Não deveria agir como se Lorde Winsford
fosse uma boneca bonita que lhe foi tomada.
Provavelmente causara alguns conflitos entre a prima e o então
namorado, além de ter feito Winsford sumir do mapa.
Por essas e outras, decidiu que deixaria Londres por tempo
indeterminado de modo a esquecer aquela tola paixão e se afastar
da tóxica atmosfera da sociedade local. Sua mãe não gostou muito
da ideia, o pai também não. Ela tinha de continuar tentando casar,
ora bolas. Afinal, ela mesma queria um dia ter muitos filhos e uma
família grande, não tinha nada contra um bom casamento caso
encontrasse um cavalheiro que ela amasse. O problema é que o
cavalheiro que ela escolheu nem se lembrava do rosto dela. Então,
quando a tia Gladys chegou para sua anual visita a Londres, Julia
viu uma boa desculpa para se afastar da capital. A mulher sempre
comentava como a sobrinha era enfadonha, pálida e outros
adjetivos não solicitados, dizendo que ela precisava de um
treinamento mais forte para encontrar o amor.
Julia estava pronta para um retiro educativo em Chester, no
campo, perto de Gales. Bem longe de Londres. Tinha certeza que a
Tia Gladys tinha uma porção de gatinhos que substituiam seus filhos
casados.
Julia amava gatinhos. Ela preferia mais ficar com animais do
que com pessoas.
Agarrou-se ao conselho da tia como disfarce, dizendo à mãe
que passaria alguns meses com a mulher para ser mais lapidada –
apesar da avançada idade de vinte e dois anos, voltaria como nova,
melhor que Petúnia, com cor nas bochechas e nos cílios.
Riu-se, diabólica, enquanto subia no coche que a levaria para o
outro lado do país, com seu amado gato Sir Jonas dormindo em
uma luxuosa cesta e um punhado de livros debaixo do braço.
Nunca havia ido para Chester, não devia ter nada de bom lá.
Não era à toa que Gladys e o falecido marido sempre levaram os
filhos para visitá-los em Londres. Tudo o que Julia vira nas
aquarelas das primas eram casinhas em estilo tudor. Era apenas
uma pequena capital, longe de tudo e todos.
Sabe-se lá quando ela voltaria. Talvez viveria eternamente longe
de Londres.
Talvez se casasse com um simples baronete e viveria em uma
enorme casa de campo.
Sim, aquilo seria ótimo. Ela, Sir Fulano e seus vinte e sete
gatos.
CAPÍTULO 1

Residência Rosestone, Chester

Dias depois, Julia estava em frente a casa de sua tia Gladys.


Uma mansão em estilo georgiano, de pedras brancas e telhado
negro, com arbustos verdes em formatos circulares nos arredores
que formavam um impecável jardim inglês. O verão em Chester
estava delicioso, o céu estava limpo e nada nublado, o clima era
agradável e a gramam resplandecia em verde. Sem falar nos
bosques ao redor, dariam um bom local para passeios solitários.
Julia amava cavalgar por Greenhill quando ia visitar a tia Lucille,
mas depois de um tempo já não tinha mais nada para conhecer no
palácio e todos os caminhos que fizera à cavalo já haviam sido
descobertos. E todas as vacas, cabras e gatos das fazendas já
eram seus conhecidos.
Dando a volta por um relógio solar, a carruagem parou em
frente a grande porta negra no topo de uma escada de quatro
degraus de pedra. Primeiro Natalie, a camareira, saiu da carruagem,
arrumou as saias do vestido amarelo-mostarda e a touca em seu
cabelo loiro escuro. Depois Júlia desceu com a ajuda do cocheiro
robusto que foi contratado para levá-la e protegê-la durante a
viagem. Na carruagem de trás desceu um dos lacaios de confiança
de seu pai, junto das bagagens. O homem voltaria para Londres no
dia seguinte, sua única serventia foi a de tomar conta de Julia.
Ela respirou o limpo ar do campo com toda a sua força,
colocando a cesta de Jonas no chão e deixando que o gato
explorasse livremente os arredores. Era um animal esperto, depois
a encontraria em seu novo quarto.
— Srta. Wilson.
Julia abriu um enorme sorriso, deparando-se com um senhor de
mais ou menos sessenta anos, cabelos grisalhos nas têmporas e
rosto muito bem barbeado. Era o mordomo, pelo visto. E,
enfileirados em frente à porta estavam dois lacaios, a chefe das
empregadas, a governanta e a tia Gladys.
Ela nunca ficara tão feliz por ver a tia.
Era uma mulher madura, Julia estipulava que sua idade era
próxima dos sessenta anos, mas os cabelos continuavam loiros em
grande quantidade. Sempre compenetrada em suas tarefas sociais,
tia Gladys era um bom exemplo de como uma mulher deveria se
comportar em público, principalmente sendo uma condessa.
Que o tio Howel - conhecido pelo restante como Lorde Hanes -
descansasse em paz. O homem havia falecido havia dois anos e
Gladys mal havia saído do luto. Julia respeitava a forma como a
mulher aparentava muita serenidade para quem havia perdido o
querido marido.
— Bem-vinda — o mordomo a cumprimentou com uma gentil
simpatia — Referem-se a mim como Sr. Purcell, sou o mordomo de
Lady Hanes e ficarei feliz em assisti-la.
— É um prazer, Sr. Purcell — Julia sorriu de orelha a orelha,
indo até a tia e lhe dando um abraço apertado — Tia Gladys!
A mulher congelou nos braços da sobrinha, demorando alguns
segundos antes de relaxar e corresponder ao abraço um tanto
desajeitada.
Tia Gladys seguia à risca as normas, grandes demonstrações
de afeto deveriam ser mantidas na intimidade do lar, não na frente
dos criados. Julia também não era muito chegada a contatos físicos
tão intensos com quem não fosse seus pais, primas ou irmãos. Mas
estava muito feliz de estar do outro lado do país.
— Minha filha — a mulher pigarreou baixinho, tocando o rosto
pálido da sobrinha e arrumando o penteado sem graça de Julia —
Como foi a viagem? Venha, vamos entrar, aposto que precisa de um
bom banho.
Julia assentiu, deixando os criados da tia e a camareira para
trás. Estava tão feliz de estar ali que qualquer um de Londres
pensaria ser outra pessoa. Julia raramente sorria por aí e era
famosa entre os mais íntimos por ter sempre uma resposta
sarcástica na ponta da língua ou por nem se pronunciar. A
sociedade a conhecia por ser a flor mais murcha do jardim, sempre
tomando um chá de cadeira ou murmurando uma grosseria
disfarçada de piada.
A verdade era que ela estava tão cansada de todos que não
encontrava um jeito menos ofensivo de expressar sua chateação
senão com um humor levemente ácido. Mas estar em Chester, no
campo e sozinha era revigorante. Poderia repensar no que queria
fazer de sua vida. Bem, primeiro era esquecer Winsford, depois
engajar em seu esporte favorito: a equitação. Não teria de se
importar com nada durante um ano inteiro.
Estando no interior, ela teria espaço de sobra para cavalgar e
ter a própria égua. Tinha até mesmo um novo traje de cavalaria
planejado. E como sobrinha da condessa, poderia tricotar para
criancinhas pobres, fazer alguma caridade de coração e viver como
solteirona por algum tempo.
O Paraíso.
Mais simpática e otimista do que nunca, Julia seguiu sua tia
para dentro da mansão campestre. O vestíbulo era grande, mas
nada muito absurdo. Uma escada em curva estava logo à sua
frente, seguindo reta em direção ao segundo andar. Um lindo pé
direito duplo que fez Julia olhar para cima como uma caipira,
admirando o lustre dourado exatamente no centro do teto. À sua
esquerda e sua direita, portas duplas brancas e um belo tapete
chinês em tons rosados e verdes abaixo de seus pés.
Estava acostumada ao luxo, mas ficou encantada com o clima
bucólico da casa. Seu pai era um militar de renome, tinha uma bela
fortuna, mesmo sem título. O marido de sua tia Amélia era um
duque com um castelo e mais uma porção de propriedades pelo
país e o marido de sua tia Lucille era um dos homens mais ricos das
ilhas britânicas.
Portanto, luxo era algo que ela conhecia bem, mas estar numa
casa nova a deixava extasiada como nunca. Não se precisava de
muito para ser feliz, Julia nunca precisou de muito.
— Minha cara, você precisa descansar um pouco — tia Gladys
a tocou nos ombros, guiando-a até a escada — Depois eu lhe
mostro a casa, o que acha? Uma moça do seu tipo precisa de
descanso, ganhar um pouco de cor.
A sobrinha estava animada demais para se ofender.
— Claro — Julia olhou ao redor uma última vez, o mordomo a
esperava ao pé da escada — Imagino que o senhor vá me
acompanhar.
O Sr. Purcell assentiu com um maneio educado de cabeça e
esperou que Julia passasse na sua frente.
O corredor no segundo andar seguia o mesmo estilo que o
vestíbulo. Paredes brancas, com quadros de flores e uma tapeçaria
comprida ao longo do caminho com seis portas.
— Esse quarto era de Lady Keswick, Srta. Wilson — Sr. Purcell
indicou a porta ao final do corredor, em frente a uma outra também
fechada — Tem um banheiro e vista para os fundos. Os criados já
encheram uma banheira para a senhorita.
Lady Keswick era uma das primas de Julia, Rosalie. Que já
somava trinta e seis anos e pouca convivência com Julia por conta
da diferença de idade.
Julia entrou primeiro, um tanto sem jeito de ficar no quarto da
prima. É claro que Rosalie havia se casado havia dezessete anos e
o quarto não pertencia a ninguém.
Estava limpo e sem cheiro de coisa velha. As paredes eram de
painéis verdes, cortinas brancas e rosas e uma cama de dossel,
escondidas por detrás de uma cortina de musselina quase
transparente. A quantidade de travesseiros verde e rosa na cama
era visualmente confortável.
O ambiente era tão aconchegante quanto o seu quarto em
Londres, embora não remetesse ao gosto de Julia. Os baús com
seus pertences já haviam sido colocados ali. Só faltava seus cestos
de costura e...
— Aqui está ele — Julia pegou Sir Jonas nos braços assim que
o gato preto apareceu por entre as pernas do mordomo — Esse é o
Sir Jonas, Sr. Purcell. Ele gosta de comer pão de leite, bananas e
frango cozido sem molho. Também gosta de pequenas porções de
carne crua. Mas não o deixe comer muito pão, nem carne de porco,
não quer que a casa fique suja de... Vômito. Pedirei para minha
criada passar uma lista do que ele pode comer.
Sr. Purcell ergueu as sobrancelhas levemente, mas assentiu
com educação e fez uma mesura sutil para o bichano no colo de
Júlia.
— Lady Hanes mencionou o estimado gato da senhorita. É a
primeira vez que temos um desde que a pequena Srta. Lauren
deixou a casa.
Há quatorze anos atrás, quando se casou e foi morar na
Escócia. A prima Lauren já não era tão pequena com seus trinta e
três anos. Mas sabe como são os mordomos, as crianças sempre
serão crianças.
— Jonas é um tanto misantropo, Sr. Purcell, não se intimide
caso ele fique sozinho por muito tempo — ela o colocou em cima da
cama — Assim como eu.
O homem assentiu com lentidão, duvidando que aquela mulher
tão educada fosse, de fato, misantropa.
— Srta. Wilson — Natalie apareceu apressada, esbarrando nas
costas de Purcell — Desculpe-me, Sr. Purcell.
Purcell abriu um sorrisinho risonho, mas reservado, deixando as
duas mulheres a sós.
— Srta. Wilson, ainda preciso arrumar tudo — a camareira
explicou, levando Julia até o quarto de vestir acoplado ao cômodo,
onde uma banheira de cobre cheia de água quente a esperava —
Seu vestido está cheio de pelos! Esse gato... Veja só, senhorita, há
pelos pelo pescoço todo!
Julia sorriu feliz, algo raro de se ver.
— Eu gostaria de arrumar meu quarto sozinha, Natalie. Pode se
retirar. E irei tirar os pelos.
Natalie arregalou os olhos, horrorizada.
— A senhorita nunca foi dessas coisas — ela cruzou os braços
— Deixe-me arrumar seus pertences, há muitos vestidos nos baús.
E os sapatos, senhorita! Sem falar de quem irá arrumá-la depois do
banho?
— Natalie, eu tenho duas mãos perfeitamente funcionais —
Julia segurou a camareira pelos ombros e a empurrou para fora do
quarto — Vá conhecer a criadagem, aposto que deve haver um
lacaio bonito para beijar.
Natalie resfolegou, ofendidíssima.
— Srta. Wilson, eu não vou beijar ninguém! — ela saiu na
própria defesa — E eu de-
A porta se fechou, separando-a de Julia.
Julia respirou fundo e olhou ao redor, começando a tirar os
grampos do cabelo e a soltar as madeixas lisas e claras como trigo.
Entrou no quarto de vestir e parou em frente ao espelho de
parede, alisando os cabelos lentamente.
Eram tão claros e finos demais. A sua pele também era muito
clara e sem nenhum tom rosado para lhe dar aquela aparência
angelical tão desejado pelas moçoilas virgens. Os olhos também
eram demasiadamente claros, cílios e sobrancelhas igualmente.
Todos as crianças Wilson nasceram muito loiras.
O rosto em si não era feio, ela achava que seu pai e sua mãe
haviam produzido belas crianças. Achava-se bonita de sua maneira
delicada. Mas lhe faltava cor. Apagada demais. Não era à toa que
Winsford havia caído de amores por Tamsin, ruiva como fogo e de
bochechas rosadas. Além de ter uma desenvoltura para o trato
social invejável.
Julia não resistia, ela sentia uma necessidade de fazer algum
comentário ácido. Jane parecia ser a única que entendia dela,
haviam até se tornado primas com a benção de Deus depois que
Jane casara com Lucas. A amiga era chegada a comentários
inapropriados, geralmente envolvendo a política nacional e a
situação das mulheres.
Mas Jane havia se casado e estava muito feliz e grávida. Sem
contar que era muito bem amada pelo seu marido vampiresco. Os
dois viviam em um grude interminável.
Julia queria um marido para ficar de grude, também.
Resmungou, tirou seu vestido creme, desamarrando o
espartilho com certa dificuldade e se desfazendo de sua roupa
íntima.
Se havia algo que Julia adorava em sua aparência era seu
corpo. Esguio, embora fosse baixa, mas elegante. A cintura era fina,
os seios eram cheios e seu quadril fazia uma curva agradável.
Tudo era em equilíbrio, mas por que dos ombros para cima ela
ficava tão sem graça?
Ela suspirou com tristeza, colocando os cabelos para trás e
entrando na banheira, envolta na água morna como um cobertor
confortável.
Afundou até o nariz enquanto os olhos se enchiam de lágrimas
pesadas.
Sentia-se tão deprimida com tudo o que vivera desde o debute.
Obrigar uma senhorita muito tímida a encarar multidões de pessoas
maldosas apenas para enlaçar um bom marido era cruel. Havia
passado por muitos estresses. Pensava que, com o tempo,
acostumaria-se com as obrigações sociais, mas nada mudou. Seu
tio Aiden era o único que a compreendia, guardando segredo
quando ela fugia para se esconder durante algum baile e a fazendo
companhia para que nenhum rumor maldoso caísse sobre ela.
Jane era outra que a compreendia. Ah, como sentia saudades
de Jane. Ela também costumava detestar os arranjos sociais, mas
nunca demonstrou incômodo com uma simples saudação. O
problema de Jane era outro, embora ela não soubesse o que era. A
moça não era tímida, falava feito uma matraca e só se aquietava
quando precisava de um copo d’água.
Bem, ninguém a entenderia. Julia aceitara que sua timidez era
diferente da ansiedades de Jane.
Julia odiara todas as temporadas desde o começo, mesmo com
sua mãe lhe dizendo que logo ela arrumaria um marido e poderia
deixar de ir a todo santo evento.
Esse logo nunca chegou. Nem quando viu Winsford e planejou
minuciosamente como iria se declarar para um homem que, muito
provavelmente, não se lembrava dela.
Os quase quatro anos em que viveu em meio a sociedade foram
esmagando sua vontade de conviver fora de seu círculo familiar. Só
queria ficar com suas primas, que já haviam aceitado sua natureza
tímida. Talvez a reeducação de sua tia Gladys a ajudasse a superar
certas barreiras, enquanto usava aquele ano para fugir de Londres e
melhorar de seu humor deprimido.
Afundou por completo na banheira, levantando-se e soltando
um longo suspiro.

***

Horas depois, Julia havia descido até a sala de visitas da tia


para ser recebida na casa, oficialmente. Depois de uma boa soneca,
sentia-se renovada.
— Minha querida! Que bom que está de pé, parece-me tão
rosadinha hoje. O campo vai lhe fazer bem, minha cara, sairá daqui
tão linda quanto uma debutante. Seus pais nem a reconhecerão.
Tia Gladys sorriu de orelha a orelha, deixando seu chá de lado e
dando duas batidinhas no espaço vago ao lado de seu sofá
amarelo.
Julia averiguou a sala de visitas, que também seguia o mesmo
estilo que o restante da casa, mas os detalhes eram em amarelo e
azul-marinho. Um belo cômodo em rococó.
Sentou-se ao lado da tia, descansada e limpa da longa viagem.
— Como foi a viagem, querida? — Gladys perguntou,
balançando um sininho — Sr. Purcell, traga uma xícara e mais
alguns desses sanduíches. E se tiver bolo de chocolate, traga
também. Julia adora chocolates.
Ela adorava mesmo e gostava quando se lembravam daquilo.
O mordomo saiu na mesma velocidade em que chegou, sem
que Julia tivesse tempo para perceber.
— Natalie vomitou uma porção exagerada de vezes — Julia
explicou, pegando um biscoito para si — Jonas e eu dormimos
bastante, quando acordei, estava aqui.
Gladys deu um muxoxo de reprovação.
— Meu bem, precisa melhorar seu vocabulário urgentemente.
Damas não falam sobre... Regurgitar. Esse ano será de muito
aprendizado, querida, vamos trabalhar todos os seus bons atributos
e quando retornar a Londres, todos chorarão de choque e os
homens implorarão pelo seu lencinho.
Julia assentiu, já ficando deslocada com todo aquele assunto.
Quando Pursell retornou com a xícara, ela rapidamente tomou um
gole do chá e prolongou o silêncio. Gostaria que fosse algo mais
potente como conhaque, mas a tia era do tipo que só permitia às
mulheres um golinho da bebida depois do jantar. E um golinho era
um golinho mesmo. Literalmente.
— Você é linda como a sua mãe, não é à toa que ela conquistou
meu irmãozinho — Gladys comentou exalando sabedoria, mas
carinho ao tocar o rosto pálido da sobrinha — Mas sua mãe
conhece os próprios atributos. Você tem potencial, querida. Fique de
pé, quero ver sua postura.
Ela o fez, desconfortável.
É claro que a tia a examinaria, foi o combinado. Sua mãe, pai e
tia pensavam que ela estava lá para melhorar sua imagem. Estava
torcendo para que ninguém pensasse que ela foi ter um bebê
ilegítimo no interior. Algo que seria impossível, Julia nem ao menos
havia beijado alguém e era ignorante como uma freira.
— Querida, fique mais ereta — Gladys balançou a mão para
cima, vendo a sobrinha obedecer — Empine o nariz, homens não
gostam de mulheres murchas e medrosas. Vai atrair o tipo errado de
homens, aqueles que só se aproveitarão de sua pouca
desenvoltura. Seu futuro marido deve admirá-la, não menosprezá-la.
Julia mal teve tempo de falar, a mulher havia se levantado e
estava apalpando seu busto.
— T-Tia! — ela gritou, horrorizada e cobrindo os seios com os
braços.
— Ótimo tamanho. Não são pequenos, mas também não são
enormes. É um sinal de fertilidade — a matriarca concluiu,
orgulhosa — E vou chamar a modista, seus vestidos são todos
assim? Precisa de cores escuras para ressaltar a pureza de sua
palidez, não fazê-la parece adoecida. Vinhos, verdes fortes, amarelo
mostarda. Você tem quase a minha idade, não precisa ficar como as
debutantes também. Sim, sim. Trouxe suas joias? Um bom colar de
quartzo azul combinará lindamente com seus olhos. Oh, um lindo
par de brincos de lápis lazuli irá realçar o tom de sua pele.
Julia não sabia diferenciar um cristal de um diamante, não fazia
a mínima ideia do que a tia falava.
— Trouxe as menos extravagantes-
Gladys resfolegou, pedindo que a sobrinha se sentasse
novamente.
— Meu bem, desculpe-me se fui rude. Faz tantos anos que não
tenho uma moça para guiar, todas as minhas filhas se casaram –
graças a Deus, mas fiquei sozinha.
Julia se compadeceu da situação e tocou as mãos da tia.
— Mas algo me incomoda, querida — Gladys ergueu o
indicador, passando a falar baixo — Você está aqui para ser guiada?
Ou conheceu um belo homem e está esperando uma criança dele?
Essas coisas acontecem, infelizmente.
—Tia Gladys! — Julia ficou horrorizada, mas acabou rindo
consigo mesmo diante de tamanha impossibilidade — Asseguro a
senhora que nunca nem mesmo dancei com um homem.
A mulher ficou em silêncio, chocada. Mas então o rosto se
contorceu em piedade.
— Querida, você gosta de mulheres? É um assunto sério esse,
mas encontraremos uma forma de você viver com isso.
Julia ergueu as sobrancelhas, corando até a ponta dos dedos
do pé.
— N-Não, tia Gladys. E não fale como se fosse uma doença, é
maldoso.
A mulher assentiu, pigarreando baixinho.
— Uma criança me dando ordens. Mas, enfim, nunca dançou?
E o que faz nas festas, meu bem?
Julia deu de ombros com tristeza, pegando um sanduíche e
mordiscando o cantinho do pão.
— Sentada... É c-claro, eu danço com meu irmão e com Lucas.
Com o papai e tio James também. Tio Aiden dançou comigo certa
vez, mas os solteiros... É que eu fico muito escondida. Mas eu não
ligo, tia. Eu não gosto de dançar.
Gladys deu um muxoxo de desaprovação.
— Sua mãe não tomou conta de sua educação? Não teve uma
preceptora? Uma governanta?
— Sei dançar muito bem, quando quero, e falo alguns idiomas
fluente e tenho conhecimento substancial sobre grego, embora não
tão fluente — Julia saiu na própria defesa, mas logo encarou os
fatos. Por mais que estivesse ali para fugir de Londres, precisava de
uma ajudinha para quando retornasse restaurada — A senhora tem
razão, tia, preciso conhecer meu potencial. Quero me casar um
dia...
— Antes dos noventa anos, por favor — para surpresa de Julia,
a tia riu — Não quer dar um passeio pela cidade? Podemos ir ao
ateliê de Madame Rutherford e ver lindas cores para seu tom de
pele.
Um passeio pela roça não seria de todo mal.
Julia estava dormindo quando passaram pela cidade. Ao abrir
os olhos, já estavam nos arredores mais campestres de Chester,
onde a casa da tia ficava. Não vira nada cidade.
— Eu adoraria, tia. Vou me arrumar.
— Coloque um vestido colorido, pelo amor de Deus.

***

O caminho até a cidade não demorava mais de trinta minutos


com bons cavalos e logo Julia se deparou com Chester do lado de
fora da janela da carruagem.
Não era nada como ela imaginou. E havia imaginado algo como
aquele lugarejo modesto e aconchegante que seu tio Aiden
administrava em Derbyshire.
Chester tinha seu charme. Era relativamente grande, afinal, era
a capital do condado. Construções em estilo tudor ofereciam as
mais variadas opções de estabelecimentos com um ar um tanto
medieval. Tabernas, padarias, alguns armarinhos, lojas de tecido,
etc. Era uma cidade adorável e movimentada, ela viu uma porção de
transeuntes pelo caminho. Algumas moças bem vestidas no meio da
população mais modesta, cavalheiros elegantes, alguns militares de
casaca vermelha fazendo uma parada local.
— Uma graça, não? — Gladys perguntou ao perceber que a
sobrinha não parava de olhar pela janela — Quando me casei com
meu querido Lorde Hanes – que Deus o tenha – pensei que sentiria
saudades de Londres, mas não sinto nem um pouco. Aquele lugar
sujo...
— É maior do que eu pensei...
Gladys abriu seu leque se abanou com certa energia, orgulhosa
de sua cidade.
— É o que todos dizem, meu bem. Mas para onde você pensa
que vão as pessoas depois que a temporada acaba? Para o interior,
onde moram, de fato.
Julia virou o rosto, olhando aterrorizada para a tia.
— Há membros da sociedade aqui?
Claro que ela sabia que os aristocratas passavam o verão em
suas casas de campo, mas... É que nunca conhecera alguém que
enchia a boca para falar de Cheshire. Era sempre algum local
próximo a Londres, como Surrey ou Kent. Ah, como ela se sentiu
tola e ingênua de pensar que sua tia seria a única de sangue azul
em todo o condado de Cheshire.
A mulher arrumou as luvas cor creme e depois o laço de seu
chapéu roxo.
— Alguns e algumas famílias ricas de burgueses. Não é como
Liverpool ou Manchester, é claro. Mas tenho meu pequeno círculo
para eventos durante o verão. Será um bom meio de lapidá-la sem
expô-la aos olhos malignos de Londres.
Julia congelou.
O que?
Era para ela relaxar no campo e, talvez, aprender uma ou duas
dicas de beleza com a tia. Não era para ficar em uma versão
minúscula e campestre da sociedade londrina.
— Oh, é claro! — Gladys exclamou, enquanto a carruagem
desacelerava — Meu bem, há um partido e tanto para você. Posso
apresentá-los, afinal, você já tem quase a minha idade. Seus pais
ficariam imensamente felizes se eu a levasse de volta com um noivo
e uma nova postura.
Deus, ela mal havia chegado e tudo estava dando errado.
— T-Tia, eu ainda preciso ser lapida-
Gladys balançou o leque fechado como quem balança o
indicador.
— Lorde Winsford é um homem de ótima reputação, você-
— O que?!
A tia ficou ultrajada com o corte e olhou feio para a sobrinha.
— Não grite comigo, menina.
Julia engoliu em seco, sentindo a garganta fechar.
— Lorde Winsford?
— Você o conhece? É o pai do seu bebê, meu bem? Nunca
imaginei tal coisa, ele parece ser sempre tão quieto e respeitoso.
Mas homens são homens, afinal.
Agora ela ficou roxa de constrangimento. Gladys estava
caducando muito cedo.
— Tia, não tem nenhum bebê.
— Bom, muito bom.
— E-Estamos falando do mesmo Lorde Winsford? Um homem
loiro, alto... Olhos castanhos.
Gladys franziu o cenho e se abanou.
— Eu não olho nos olhos de homens que não são meu marido
ou meus filhos mal-criados. Mas, sim, esse mesmo. Agora me diga
de onde o conhece, Julia.
Ela abaixou o rosto e respirou fundo.
— Ele e David são muito amigos, conheci Lorde Winsford no
velório do pai. Mas só... Não somos nada próximos. E-Ele nem se
lembra de mim... Provavelmente.
Gladys assentiu com sabedoria.
— Bem, vou apresentá-la a ele da forma correta. Nada de
velórios, por Deus. Darei um jantar, que tal?
Julia gaguejou algumas sílabas sem sentido, mas a carruagem
parou e a porta foi aberta. Antes de poder falar qualquer coisa, o
cocheiro ajudou Gladys a sair e a forçou indiretamente a fazê-lo
também.
Aquilo era horrível.
Estava presa em uma cidade pequena com o homem por quem
estava apaixonada, infelizmente. E ficaria por ali durante quase um
ano inteiro, tentando esquecê-lo enquanto poderia esbarrar com ele
na esquina.
Julia começou a tremer e a sentir uma vontade de chorar
tremenda. Onde estavam suas amigas quando mais precisava
delas?
Petunia, Jane e Tamsin lhe dariam os melhores conselhos. Mas
Julia não se atreveria a falar com Tamsin depois do que fizera...
Tudo por culpa daquele lindo homem loiro.
Não, a culpa era apenas dela. Winsford nunca soube de sua
existência. Julia decidiu por si mesma escrever para o jornal.
— T-Tia Gladys?
A mulher a esperava próxima a carruagem, no que parecia ser a
rua principal de Chester. Mais e mais construções com suas
madeiras escuras e pinturas brancas, uma porção de pessoas
atarefadas ou olhando as vitrines. O fluxo na rua era corrido, sempre
algum cavalheiro a cavalo ou um transporte. Não era como uma
cidade imensa como Londres, mas também não estava morta.
— Lorde Winsford vive exatamente aqui em Chester?
— Oh, não. Vive a uma hora daqui, próximo de onde fica a
tecelagem dos Ballard.
Julia sabia que Winsford era dono de uma fábrica de tecidos,
mas não que ficava em Chester. E olha que ela sabia que ele era o
marquês de Chester. Mas os lordes quase sempre não viviam nos
lugares de origem de seus títulos muito antigos.
Como nunca soube daquilo?
Parando para pensar, ela não sabia nada sobre ele. Só que não
tinha familiares próximos, era dono de uma fábrica e estava em
Londres em todas as temporadas com os amigos.
Tinha amigos, era um homem normal. Percebia que ele era
mais quieto que os outros cavalheiros. E só... Como pudera se
apaixonar por um homem sem nem conhecê-lo direito?
Oh, o maldito platonismo, Julia resmungou para si mesma
mentalmente.
— Há um povoado próximo a fábrica, onde moram os operários
— Gladys a trouxe de volta para a realidade — A residência dele
fica nos arredores, meu bem. Tudo faz parte da herdade. O
povoado, fazendas e uma tecelagem.
Julia respirou aliviada. Pelo menos ele vivia um tanto longe.
— Pobre homem — Gladys lamentou, começando a caminhar e
obrigando Julia a segui-la — Vive sozinho, cuidando daquela
fábrica... Ano passado alguns operários se revoltaram, uma moça
perdeu dois dedos para uma dessas máquinas que usam agora,
ouvi dizer.
— Que terrí-
— Ah, sim! Darei um jantar, chamarei alguns bons convidados e
Lorde Winsford. Essa semana. Amanhã!
— Amanhã?! — Julia tropeçou no próprio pé, quase trombando
na tia — T-Tia, mas meus vestidos são demasiadamente apagados
e sem graça, lembra? Não pode tentar me noivar com Lorde
Winsford estando eu tão enfadonha e... Insossa. V-Vamos esperar
um pouco antes de todos aqui me conhecerem, hm?
Gladys parou, colocou o indicador no queixo e assentiu. Depois
cumprimentou algum conhecido do outro lado da rua e voltou a
caminhar, sendo seguida por Julia.
Aquela senhora tinha uma energia equivalente a de Jane.
Desconcertante.
— Bem, semana que vem é um bom dia. Agora devemos ir até
a modista da cidade, Madame Rutherford é habilidosa com moças
como você, criança. E... Um tanto moderna. Como ficará aqui por
um bom tempo, creio que dez vestidos de noite sejam o suficiente,
dez para passeio também e cinco para visitas.
Julia bufou baixinho. Seus vestidos eram lindos e de tecidos de
extrema qualidade. Qual o problema se fossem menos
extravagantes nas cores e estampas?
— Por que não queima meus baús e começamos um novo
guarda roupa?
Glady a olhou com reprovação, voltando o rosto para frente.
— Bem que sua mãe me disse que você é dada a ironia, algo
muito feio para uma dama, sim.
Julia se calou, ainda que houvesse um estoque farto de
respostas afiadas em sua mente.
Tia Gladys parou em frente uma loja de vitrines limpas, onde
modelos de vestidos bem elaborados e coloridos as observava.
Assim que sino da loja as anunciou, Julia sabia que não tinha
mais volta. Seu ano de sossego acabou sem nem ter começado,
seria lapidada pela tia e seus vestidos brancos dado para as
criadas.
CAPÍTULO 2

Winsford se recostou em sua cadeira de couro, descansando as


costas no macio espaldar para finalmente tirar um cochilo. Quando
pensou que teria um minuto de silêncio, a porta de seu escritório se
abriu, revelando o secretário Price acompanhado de duas crianças
esfarrapadas e com não mais de nove anos. Um menino e uma
menina de cabelos negros, rostinhos sujos e olhos tristonhos.
— Price, diga-me, um dia eu terei filhos com cabelos tão
escuros? — Winsford disse, impaciente — Diga para essas moças
irem embora, não vou dar dinheiro algum. Estão apenas arruinando
minha reputação.
Price, um homem esbelto, de cabelos escuros e um par de
óculos finos ficou um tanto constrangido pelas crianças. Era verdade
que, eventualmente, algumas moças de Chester diziam que tinham
algum filho com Winsford.
— Milorde! — uma moça de cabelos escuros, bastante magra e
com um xale de tricô puído se atrapalhou ao empurrar Price para
entrar no escritório — Por favor, eles pode-
— Minha senhora, eu não vou empregar suas crianças —
Winsford se arrumou na cadeira, esfregando as mãos no rosto —
Mande-as para uma escola.
A moça, que não devia ter mais de vinte e cinco anos, olhou
suplicante para o secretário. Price apenas deu de ombros, um tanto
hesitante de tocar a operária e tirá-la da sala.
— Escolas, milorde? Eles são pequenos, veja, podem limpar as
máquinas! Eles precisam ajudar em casa, m-milorde.
— Como é seu nome?
— Bethany, milorde...
— A senhora tem marido, Bethany?
Ela fez que sim, passando os braços ao redor de seus filhos
magrelos e os mantendo bem perto de seu corpo.
— S-Sim. Mas-
— Viu? Não precisa empregar toda a sua família — Winsford se
levantou, indo até a miúda família e os expulsando da sala com a
devida delicadeza que mereciam.
Ainda podia ouvir as súplicas da mulher do lado de fora, até que
ela desistiu e desceu as escadas de metal que davam para o pátio
principal do pequeno complexo.
Voltou para sua cadeira, fechando os olhos e soltando o ar dos
pulmões demoradamente.
— Tem sido um ano difícil, meu lorde — Price tirou um lencinho
do bolso e secou a testa — Mas as vendas continuam altas e a
fazenda, cheia de ovelhas. As plantações de algodão estão como
devem estar.
Winsford abriu os olhos, olhando para seu secretário de pé em
frente a sua mesa de mogno.
— Mal cheguei aos trinta e um e já estou cansado de trabalhar.
Mas não consigo parar. Eu preciso de um filho, Price.
— Um que seja seu, de preferência — o homem disse com um
bom humor que sumiu rapidamente, fazendo-o pigarrear baixo e
arrumar o lenço em seu pescoço — E uma esposa, é claro, meu
senhor.
— Não sei quando teremos uma marquesa por aqui.
Price coçou o rosto, pigarreando baixinho outra vez.
— Diga, Price...
O secretário se empertigou.
— Bom, meu senhor, talvez se aceitasse mais os convites que
lhe fazem em Chester. Há moças de famílias boas por lá e o senhor
já... Enfim, logo mais as solteiras de boa idade não vão querer um
marido muito mais velho.
Winsford bufou baixo, recostando-se no encosto da cadeira.
— Estou em uma idade perfeitamente adequada para agradar
uma debutante. Mas...
Não seria de todo mal ir mais até a cidade, gostava de eventos
sociais, mas estava sempre ocupado demais. Não estava muito
inclinado ao casamento com as moças disponíveis, as vira crescer.
Gostava delas como quem gosta de uma irmãzinha. E ele não se
casaria com uma irmãzinha.
— Certo. Eu preciso me distrair também. Mas deixe-me só. Há
muito o que resolver ainda antes de pensar em saraus e festas.
Price se retirou em silêncio e Winsford deu um longo suspiro.
Nunca desejou tanto ser um segundo filho. Ou terceiro. Ou
quarto.
Mas não, seus pais só tiveram um filho. Quem tem só um filho?
Todo mundo que ele conhecia, tinha, no mínimo cinco. Ele mesmo
queria ter uma penca, pois sabia que era muito chato não ter
ninguém para brincar. Mas era só ele mesmo, o pequeno Isaac, e
agora aquilo tudo era dele. Uma fábrica de tecidos que produzia a
própria lã e plantava o próprio algodão. Se não bastasse a fábrica,
os operários e a vila, ainda havia a fazenda. Seus deveres políticos
como marquês no parlamento, que ele ignorava. A administração de
suas terras. A sua casa enorme que ele sabia estar afundando em
poeira porque ele simplesmente não vivia lá.
Desde que o pai morrera há quase três anos, Winsford havia
tido sucesso ao administrar tudo aquilo com a ajuda de seus
empregados. Price, no entanto, estava mais focados nos assuntos
pessoais do patrão e passava bastante tempo em sua companhia.
Contudo, no final do ano anterior, dois meses antes do Natal, alguns
operários se revoltaram com o uso das máquinas, alegando que o
corte na mão de obra havia afetado muitas famílias.
Tudo piorou quando uma das operárias havia perdido dois
dedos nas máquinas. Foi o estopim para a maioria dos empregados
colocarem a maquinação como algo abominável.
Winsford não soube o que fazer. Não iria se desfazer das
máquinas ou sua produção mensal cairia absurdamente em
comparação com as outras indústrias nas ilhas britânicas, fazendo-o
perder clientes por todo o país. Os operários que se revoltaram
foram convencidos a trabalhar nas fazendas, mas reclamaram do
distanciamento da vila e do fato de que os moradores locais não
tinham espaço para abrigar novas famílias.
Por sorte não reclamaram dos salários e tudo ficou sob controle
em semanas, embora tenha perdido alguns operários para o breve
motim. A moça ficou sem os dedos, mas estava bem. Como ouviu
alguém dizer na fábrica, ela não precisava de dedos para ter filhos.
Winsford decidiu fingir que não ouviu aquilo.
Para sua infelicidade, no último mês, algumas mulheres vinham
tentando convencê-lo a contratar crianças desde que seus maridos
desistiram de trabalhar para ele. Mas aquilo não fazia nenhum
sentido. Como os maridos não queriam trabalhar, mas permitiam
que os filhos pequenos os fizessem? Se estivessem fazendo aquilo
às escondidas quem pagaria o preço seria ele próprio.
Winsford queria férias e uma linda esposa.
Podia voltar para Londres e se unir aos seus amigos, mas não
estava no humor de ir para a capital e pensar em sua derrota como
homem. E era tudo culpa daqueles malditos operários revoltados.
Se não fosse a carta desesperada de Price, Winsford não teria de
ter partido de Londres e interrompido a corte de Tamsin.
Ela o teria escolhido se não tivesse passado tantas semanas
longe. Ele a teria cortejado com tanta estima que ela o escolheria,
não a Dominick.
Winsford se obrigou a parar de remoer aquilo, havia milhares de
mulheres por toda a Grã-Bretanha e ele logo encontraria uma
adequada para se casar e lhe dar um herdeiro. Deus o livrasse de
tocar aquela fábrica a vida inteira.
Passou tempo demais tentando parar de pensar em Tamsin. A
coisinha mais adorável que já conhecera e beijara na vida...
Winsford se levantou de sua cadeira, novamente interrompendo
seus pensamentos deprimentes.
Caminhou até as janelas que davam vista para o pátio e viu
alguns operários descarregando sacos grandes de algodão que
haviam chegado recentemente. Passou os braços para trás e os
analisou em silêncio, do alto, onde eles não conseguiam enxergá-lo.
Devia conversar mais com seus empregados, era como seu pai
fazia. Carismático, Lucio caminhava por entre os operários,
conversava com eles, tomava certeza de que estava tudo certo.
Winsford não tinha tanto talento para encantar os empregados, nem
mesmo as moças. Era focado demais no trabalho que tinha de fazer.
Odiava ser um herdeiro, mas não conseguia deixar tudo nas mãos
dos administradores como alguns amigos faziam.
Se afastou da janela quando viu Price no pátio, indo na direção
da escada que dava para a porta do escritório. Winsford foi até a
mesa e se sentou novamente, tentando não parecer tão desolado
quando o secretário retornou.
— Meu lorde — Price entrou falando, trazendo uma porção de
papéis nas mãos — Mais trabalho para o senhor.
— É claro... Enquanto isso, vá ver se os operários estão calmos.

***

Madame Henrieta Rutherford era uma inglesa de cabelos


castanhos e uma beleza comum, mas que se tornava maior com
toda a confiança dela. Já passava dos trinta, mas era
orgulhosamente solteira, Julia não lhe deu mais de trinta e cinco
anos. Tocava o ateliê sozinha, uma das muitas lojas em estilo tudor
que formavam o centro de Chester. Paredes de painéis de madeira
pequenos e entalhados, teto baixo e chão escuro. Havia tecidos
expostos, vestidos na vitrine e todo tipo de pluma, chapéu, luvas e
meias em mostruários nas paredes.
O lugar parecia muito intimista e Julia gostou daquilo, diferente
das modistas abarrotadas de damas tagarelas em Londres. Dava a
sensação de ali ninguém ouviria seus segredos.
Madame Rutherford costumava atender em Londres, até decidir
que uma fiel clientela no interior era um bom negócio. Era uma
mulher de boa conversa, bastante independente e moderna. Pelos
vestidos expostos na vitrine, ela gostava de inovar em suas criações
de estampas e cores.
Ah, Jane adoraria conhecê-la. E sua tia Joanna também, uma
exímia costureira que era apaixonada por vestidos.
Julia e Gladys foram pessoalmente atendidas pela modista, que
estava mais que familiarizada com o gosto de Lady Hanes. Quando
viu a sobrinha da condessa, fez dezenas de comentários técnicos
sobre cores e tons de pele, fundos azulados e sabe-se lá mais o
que. Quando deu por si, Julia estava cercada de tecidos escuros e
fortes dentro de uma sala de provas. Provou vestidos comuns e
feitos aos montes para as clientes menos afortunadas, mas apenas
para ver o efeito das cores em sua pele. Veludo azul marinho, cetim
vinho, seda verde escuro. Além de um caderno aberto sobre o
criado mudo ao lado do sofá, com centenas de pequenas amostras
de estampas que ela adorou escolher. Flores, padrões em costura
dourada, até mesmo uma divertida estampa de bordado de gatinhos
se embolando em novelos de lã.
A modista prometeu lhe fazer um novo armário único, com
vestidos não tão extravagantes, mas em tons que lhe dariam um
toque de beleza à pele pálida. Um acordo que agradou tanto Gladys
quanto Julia. Não seria de todo mal ter vestidos novos, desde que
não a transformasse em outra pessoa.
Depois de muito conversar sobre os melhores modelos de
corpetes para o busto humilde de Julia, Gladys saiu da sala de
provas para resolver as próprias encomendas pendentes. Antes que
Madame Rutherford pudesse deixá-las, Julia a chamou baixinho.
— Madame, preciso de mais itens na lista.
— Roupas de baixo? — a modista tocou o queixo com o
indicador, provavelmente pensando no que cairia bem na cliente —
É comum se envergonhar com essas coisas, mas eu guardo
segredos como ninguém, queridinha.
Julia sorriu de orelha a orelha, descendo do pequeno palanque
de provas assim que a assistente terminou de abotoar seu vestido
creme com listras amarelas.
— Que ótimo, madame — ela voltou a cochichar, o rosto um
tanto corado — Preciso que... Hm, guarde um segredo.
Henrieta ergueu as sobrancelhas escuras com delicadeza, em
seguida, lançou um olhar firme e breve para a assistente, que saiu
fechando a porta. A modista indicou o pequeno sofá vermelho na
saleta e se sentou junto de Julia.
— A senhorita precisa de vestidos que escondam a barriga?
Julia teve a audácia de revirar os olhos.
— Por Deus, todos pensam que estou grávida? Eu nem sei
como fazer um bebê direito, madame.
A madame riu baixinho, pegando o leque preso na cintura de
seu vestido e o agitando no ritmo de sua risada.
— Um exemplo de donzela, Srta. Wilson. Continue assim, mas
não deixe que homens se aproveitem de sua ignorância. Um bom
cavalheiro respeita a inocência da esposa.
Era uma mulher bastante sábia, Julia percebeu com admiração.
Se tivesse aquela confiança toda, seria mais famosa que Petúnia
em seus dias de solteira.
— Diga-me o que deseja, Srta. Wilson. Logo sua tia suspeitará
de nossa conversa prolongada.
— Quero calças para cavalgar. Duas está de bom tamanho.
Com uma casaca que cubra a parte de trás, entende? Como um
fraque, mas com o corte de uma casaca masculina. Se é que isso
existe.
A mulher não demonstrou nenhuma surpresa. Muito pelo
contrário, sorriu risonha e fechou seu leque com um movimento
lento.
— Seu pedido é mais comum do que imagina. Já fiz muitas
calças para moças, elas costumam usar por debaixo do vestido e,
quando ninguém está olhando, passam a cavalgar de frente. Mas
casacas... Eu adoraria desenhar tais trajes para a senhorita. Dos
pedidos que recebi, esse é o mais interessante.
Julia uniu as mãos na frente do peito, aliviada com a aceitação
de Madame Rutherford. Parecia que teria boa companhia enquanto
em Chester, alguém que a faria pensar em sua amiga Jane.
— Fico contente de conhecer jovens tão modernas — a mulher
se levantou, terminando os negócios — É disso que o mundo
precisa, Srta. Wilson.
— Só não conte para minha tia sobre os trajes para cavalgar.
Ela quer me lapidar, aposto que não acha certo que damas fiquem
cavalgando por aí.
A modista resmungou baixinho, um sonzinho de surpresa e
ultraje.
— Mas cavalgar é uma atividade extremamente agradável —
ela riu consigo mesma, indicando a porta de madeira escura —
Venha, uma de minhas assistente anotará tudo que encomendou.
Em duas semanas seus vestidos e suas calças estarão prontas.

***

Passaram três dias desde que Julia chegara a Chester. A


saudade de casa era pouca, apesar dos pesares. Havia escrito para
sua família dizendo que estava absurdamente satisfeita com o
treinamento da tia.
O que era uma mentira.
Nos três dias Gladys havia examinado seu jeito de andar, falar,
modos à mesa, como dançava, sentava, piscava, tossia, ria e ficava
parada.
Sua nota fora mediana. Segundo os sermões de Gladys, Julia
andava curvada, tinha um humor absurdamente sombrio e afiado,
passava tempo demais no estábulo conversando com os cavalos ou
os gatos que vinham do mato e nunca cobria a boca quando ria.
Gargalhando feito uma hiena, dizia a condessa.
Tirando a breve lista de defeitos, Gladys apontou os atributos da
sobrinha também. Julia costurava, bordava e tricotava muito bem;
tinha bons modos à mesa; não tinha cicatrizes de doenças e era
atraente. Ah, sim, ficava parada como ninguém. Não havia uma
poltrona sequer onde a moça não sentara para olhar pela janela por
longos minutos. Aquilo seria de bom uso quando tivesse de suportar
fazer sala por horas para os convidados de sua casa - assim que se
casasse com um homem de ótimo título.
Mas era apagada, a pobre. Os vestidos de Madame Rutherford
ainda não haviam chegado e ela continuava com seu armário claro.
Era como um luto invertido. Quase trinta vestidos em tons de branco
e creme.
Durante uma das tardes de treinamento, o gato Sir Jonas virou
a barriga para cima, expondo-se ao sol de domingo enquanto sua
dona tocava o piano-forte precariamente na pequena sala de música
da condessa. O som que saía do instrumento fazia sua tia
estremecer a cada nota.
— Minha querida... Julia, está bom — Gladys ergueu o
indicador, remexendo-se na chaise branca — Julia!
Julia afastou as mãos das teclas, soltando um suspiro
aborrecido e se curvando no banco.
A tia a olhou de cara feia e ela imediatamente deixou as costas
eretas.
— Filhinha, você toca... De forma mediana. Vamos arrumar
umas músicas fáceis o suficiente para encantar uma plateia, nada
muito... Beethoveniano. Mas o problema, no momento, é seu
estimado felino.
Julia colocou as mãos no colo e olhou para Sir Jonas. O gato
rolou para o lado, bocejando e esticando as patas o máximo que
podia para voltar a dormir por mais umas dez horas.
— Sir Jonas não faz nada de errado, tia. Na verdade, esse
pequeno nobre não faz nada. Literalmente.
— Ora, ele faz muita coisa ficando deitado em cima dos móveis,
dormindo pelos sofás. Meu bem, ele não pode dormir no meio da
sala durante uma reunião. Imagine, um gato esparramado no meio
do meu soirée!
— Não se preocupe, tia, Sir Jonas prefere a companhia dele
mesmo durante festividades. Ele ficará em alguma toca.
Gladys apontou o queixo para cima, resiliente. Mas depois olhou
para o gato e abriu um sorrisinho encantando para o bichano.
— Com licença, senhoras — o mordomo entrou na sala,
trazendo consigo uma bandeja de prata — Correspondência para a
Srta. Wilson.
Gladys deu um estalo de língua e se pôs de pé.
— Bem, essa é minha deixa. Tire o resto do dia para você,
minha filha. Amanhã vamos trabalhar seu caminhar.
Julia olhou para o Sr. Purcell, que nada mais fez além de se
reclinar sutilmente para lhe entregar a carta. No entanto, ela viu o
homem lhe dar um sorriso caridoso assim que a tia deixou a sala de
músicas.
— Sr. Purcell... — ela pegou a carta sem olhar, dando toda a
atenção para o mordomo — Minha tia sempre gostou de... lapidar
moças?
O criado ficou ereto outra vez, bastante calmo e profissional.
— Lady Hanes educou todas as três filhas para serem damas
bem sucedidas. E os cinco filhos para serem cavalheiros educados.
Julia não pôde controlar um suspirinho cabisbaixo. Mesmo que
seu foco não fosse, de fato, ser lapidada, as críticas de sua tia só a
deixavam mais amuada com a própria situação. Se não fosse tão
sem jeito, talvez teria chamado a atenção dos solteiros. Teria
conhecido outros homens e parado de pensar em Winsford. Seus
talentos não eram típicos de uma dama prendada, o tipo que servia
como chamariz. Pintar, desenhar ou tocar algum instrumento.
Ter fugido para Chester não estava sendo um bom remédio para
esquecer a sociedade e melhorar seu humor tristonho. Parecia que
a fazia lembrar daquele bando de aristocratas de nariz em pé.
— O senhor acha que eu tenho jeito?
— A senhorita é uma moça encantadora, Srta. Wilson — Sr.
Purcell disse com a estima de um pai — Acredite em si mesma e
todos acreditarão também.
Ela sorriu com sutileza, mas agradecida. Com um gesto breve,
ela indicou a carta e o mordomo a deixou a sós.
A carta viera de Londres, com o brasão dos Bowley em cera
amarela e a assinatura de Lady Rosenburg.
Em segundos Julia rompeu o selo amarelo e desdobrou o papel.

Cara Julia
Como ousa ir para o outro lado do país sem me avisar? Fui
visitá-la em sua casa e todos disseram que havia viajado. Sua irmã
me disse que foi para a casa de sua tia ser treinada para arrumar
um marido e que ficará por aí até a próxima temporada. Quanto
baboseira. Espero que não esteja magoada com isso, você não
precisa de treinamento nenhum para arrumar um marido. Olha para
mim, arrumei um marido tão esquisito quanto eu. Se é que você
quer um marido. Não perguntam nem sua opnião.
Minha querida amiga, se isso for um plano seu de fugir da
sociedade, venha até minha casa. Estou grávida, mas não mais
chata que o normal. Minha barriga ainda não cresceu tanto a ponto
de me impedir de andar por aí, poderíamos passear. Lucas me deu
um esqueleto de presente uns tempos atrás, acredita? Ele é
maravilhoso! Lucas, não o esqueleto (que também é maravilhoso).
Acho que você iria adorar vê-lo de perto (o esqueleto, não Lucas).
Por favor, escreva-me logo. Exijo explicações.
Com muito amor,
Jane

Julia sorriu com nostalgia, dobrando a carta e a colocando


contra o peito. Adorava tanto Jane, a única que nunca a
menosprezou mesmo que sem querer. Petúnia era muito vaidosa,
desmerecendo as outras amigas sem perceber. Tamsin, apesar de
gentil, tentava tanto transformar as falhas de Julia em algo bom que
só acabava a fazendo lembrar delas. Vendo como as coisas haviam
começado em Chester, voltar para Londres não lhe parecia má
ideia. Precisava de um tempo com Jane para rir e conversar sobre
as temidas modernidades.
No entanto, ser testemunha do amor entre Jane e Lucas só a
deixaria mais só.
Apesar dos pesares, levantou e retornou para seus aposentos,
onde escreveu uma missiva para Jane sobre sua ida a Chester e
sobre Madame Rutherford. Além de parabenizá-la pela gravidez.
CAPÍTULO 3

Natalie estava vermelha feito um tomate maduro, só não mais


feliz que Gladys e sua camareira, Helen. A maioria dos vestidos
chegou nos dois dias seguintes. Três para noite, quatro para
passeio. Seus trajes de cavalaria ainda não haviam ficado prontos e
Julia mal aguentava esperar.
Chocaria a pobre tia. Jane ficaria orgulhosa do feito.
— Oh, esse é lindo, senhorita! — Natalie pegou um vestido de
veludo cinza, o que não parecia muita novidade para o armário
apático de Julia — Um belo cinto da mesma cor-
— Um cinto dourado — disse Helen, a criatura mais séria e
compenetrada que Julia já vira na vida.
Natalie assentiu, engolindo em seco para a mulher de cabelos
negros presos em uma trança que dava a volta em sua cabeça.
— Com joias douradas — a camareira completou, as mãos
atrás do corpo — Um broche dourado no centro do decote, com
uma gema de lápis lazuli. Sem chemisette, deve mostrar o colo.
Gladys bateu palmas com alegria. Julia olhou para Natalie,
mentalmente perguntando para a criada se a camareira da tia havia
saído de algum batalhão.
— Eu disse que lapis lazuli ficariam lindas com ela, não disse,
Helen?
— Deveras, madame — ela assentiu com um gesto duro,
caminhando até a cama onde várias caixas estavam abertas —
Venha, Srta. Chapman.
Natalie acompanhou Helen no trabalho de separar os vestidos
para os eventos adequados. Quando Julia ouviu a camareira da tia
falar sobre ida ao teatro, quase puxou os vestidos de volta. Desde
quando tinha um teatro em Chester? Devia ser minúsculo! Não era
necessário tanta pompa, tudo o que menos queria era parecer uma
fútil e abitolada.
— Por que não veste um, minha filha? — Gladys perguntou,
ansiosa — Para o jantar desse fim de semana. Vamos testar alguns
visuais.
E tentaram uma porção de combinações. Até que o domingo
chegou.
Quando a noite caiu, Julia se encontrou com o próprio reflexo no
espelho do quarto. Atrás dela, Natalie sorria de orelha a orelha.
— Obviamente vejo que sempre quis me arrumar como uma
boneca de porcelana — Julia resmungou, rodando um pouco para
melhor ver o visual.
O vestido era em seda verde escuro, com o decote drapeado
em formato coração que ousava mostrar um pouco da curvatura de
seus seios redondos. A cintura alta do vestido estava demarcada
com um cinto no mesmo tecido e uma fivela de ouro repleta de
relevos barrocos. Um colar dourado pendia até a cintura, uma
corrente delicada de centenas de esferas de ouro, combinando com
uma gargantilha de gemas quadradas de citrino. Os brincos
estavam a combinar.
Seu cabelo fora preso para cima, em três tranças elaboradas no
topo da cabeça que formavam arcos e curvas nada naturais. O
restante do cabelo dividido no meio e cobrindo suas orelhas, bem
presos em tranças enroladas em coques. O rosto recebera certa cor
com um creme de rosas que Helen trouxe para Natalie e um tipo de
pasta escura foi aplicada nos cílios claros da patroa.
Em suma, Julia estava ridícula.
Petúnia ficaria estonteante naquela roupa, mas Julia não era
assim. Ela não se vestia com tantos detalhes, nem pintava o rosto.
Era simples, não usava muitas jóias nem vestidos elaborados.
Pelos dias que se seguiram até domingo, ela nada pôde fazer
para tentar preservar seus vestidos claros. Salvou os seus favoritos,
mas o resto foi doado para um local que Gladys não quis mencionar.
Julia não sabia se ria ou chorava ao saber que as prostitutas da
cidade estariam andando por aí com vestidos que modistas
caríssimas de Londres haviam feito especialmente para ela.
Apesar de desaprovar o visual, Julia estava mais preocupada
com o fato de que Lorde Winsford estaria naquela casa em breve.
Passara os dias tentando conter o nó no estômago que sentiu pela
ansiedade. Terrível ansiedade. Ela não queria que ele a visse
vestida como uma cópia ridícula de Petúnia. Na verdade, ela não
queria ser vista por ele em momento algum.
Certo, havia a possibilidade dele não se lembrar dela e ela
poder começar de novo. Mas ele poderia não se interessar por ela e
mais uma vez teria o coração partido por aquele lindo marquês.
— Por quê, Deus? — Julia olhou para o teto — Eu nunca fiz mal
a ninguém. Não fisicamente...
Natalie piscou, confusa, mas permaneceu parada com as mãos
na frente do corpo.
— Srta. Wilson, a senhorita deseja mais alguma coisa?
Julia se lembrou da presença da criada, envergonhando-se
subitamente.
— N-Não... Vou descer. Alguém já chegou?
— Acredito que alguns convidados. Sr. Purcell nos disse que
serão apenas vinte.
Julia respirou fundo, colocando as mãos unidas no peito e
encarando o próprio reflexo. Nos pouquíssimos dias que estava lá,
Gladys havia colocado muita ênfase em sua postura e suas piadas
de mau-gosto. Bastava ela ficar quieta, manter as costas tão eretas
que acabaria ficando com lordose e evitar qualquer socialização
com Winsford.
Desde que sua tia esquecesse a ideia de apresentá-los como
uma velha casamenteira.

***

A sala de visitas de sua tia estava relativamente cheia de gente


quando Julia espiou pelo batente da porta. Ela não deu muita bola
para os convidados mais velhos, que provavelmente eram amigos e
amigas de Gladys. Sua atenção foi para as moças.
Haviam três moças e três homens em idade de casar. Os
homens eram bonitos, ela não negava. Um moreno era forte
demais, não fazia o tipo de Julia. O outro, de cabelos também
castanhos, até que ficaria bonito ao lado dela. O último, um rapaz
jovem e com cabelos claros, parecia querer estar em qualquer lugar,
menos ali.
Julia passou para as moças. Uma delas seria a perfeita
seguidora de Petunia, linda, loira e cheia de joias e pureza. A outra
era ruiva, com um vestido laranja que a fazia parecer uma cenoura.
Apesar da péssima harmonia de cores, exalava simpatia e bom
humor e era bonita de sua maneira. A última solteira tinha cabelos
castanhos e uma baita cara de raiva contida. Julia não era de julgar
pelas aparências, mas algo nela dizia que aquela moça não era
umas das flores mais agradáveis do jardim.
Julia riu consigo mesma, pedindo perdão a Deus. Deveria
mesmo maneiras nos seus pensamentos.
— Srta. Wilson.
Julia se empertigou, o rosto queimando de vergonha.
Sr. Purcell estava ao seu lado, a um metro de distância,
aguardando para apresentá-la.
— Oh, Sr. Purcell, não o vi aí — ela riu, sem jeito, enrolando o
indicador na corrente de ouro em seu colo — O s-senhor está
magnífico hoje.
O homem agradeceu com uma reverência simples.
— Devo anunciá-la?
— Claro. Somente meu nome, certo? Não precisa falar de meus
parentescos extravagantes... Não quero chamar atenção.
Ela respirou fundo, sentindo-se como uma debutante
inexperiente.
Passou pelo arco da porta, chamando a atenção de todos os
convidados presentes. Tentou agir diferente do normal, com mais
confiança.
Fez como Petúnia fazia. Uniu as mãos na frente do corpo
elegantemente, ergueu o queixo, fez uma linda mesura e olhou para
todos ao redor sem pestanejar. Ela se apresentou diante do Rei
anos atrás e em nada se comparava com aquilo.
— A Srta. Julia Wilson — Sr. Purcell anunciou, alto e solene.
Todos as cumprimentaram com educação, observando-a
atentamente. Afinal, era uma nova pessoa em Chester. Uma nova
moça londrina, rica e com boas conexões.
— Minha sobrinha — Gladys sorriu de orelha a orelha — Filha
de meu irmão. Passará um tempo aqui em Chester. É sobrinha do
Duque de Devonshire, do Duque de Manchester e neta do Visconde
de Kent.
Pronto, a tia havia anunciado tudo que ela não queria.
Todos a olharam com curiosidade. A solteira morena ergueu
umas das sobrancelhas, controlando um sorrisinho desagradável.
Obviamente todos pensaram que ela estava lá para esconder
uma gravidez. Afinal, com tantos parentescos de renome, uma
vergonha daquelas deveria ficar escondida nos confins ingleses.
Ela direcionou o olhar para a tia, que abriu um lindo sorriso,
como se fosse uma mocinha de dezoito anos. Um charme que
conquistou o falecido conde e que a fizera ser uma dama conhecida
em Chester.
— Quem sabe ela encontrará um bom cavalheiro — Gladys
sorriu ainda mais, fazendo um gesto educado com a mão para que
todos voltassem para suas atividades até o jantar ser servido.
Julia tentou pensar positivo, fazendo uma mesura perfeita diante
dos convidados.
Aquilo era loucura. Mal havia chegado em Chester e já estava
no meio de aristocratas e burgueses que, muito provavelmente,
pensavam que ela estava grávida e precisava urgentemente de um
marido.
Como se Julia soubesse muita coisa sobre os prazeres carnais.
A moça morena com certeza sabia, pela olhada que deu na
direção da barriga de Julia assim que ela se sentou no mesmo sofá
que as moças.
— Srta. Wilson — ela sorriu afetadamente — Muito prazer, sou
Marian Stewart. Tenho certeza que já a vi em Londres... A senhorita
já debutou?
Julia ergueu as sobrancelhas com falso interesse, aceitando um
copo de cidra que um lacaio lhe serviu.
Marian devia estar zombando dela. Julia era uma jovem mulher,
não parecia mais com uma adolescente enrubescida. Nunca nem
teve paciência para ser uma adolescente enrubescida.
— Debutei quando a Terra ainda era era plana, Srta. Stewart.
As três moças se entreolharam. A ruiva dando um riso
espontâneo e encantador, rapidamente cobrindo os lábios com a
mão. Julia gostou da reação verdadeira em meio a tanta encenação,
não contendo um sorriso diante da mocinha ruiva.
— Estamos em Londres sempre durante a temporada — a Srta.
Cenoura disse, alegre, mudando o assunto — Oh, perdão. Heloise
Smith. E essa é Lilian Tucker, minha prima.
Julia as cumprimentou com um aceno de cabeça. Todas eram
jovens, não passavam dos vinte. Exceto por Marian, que parecia ter
a idade de Julia.
— Ah, sim, lembrei-me da senhorita — Marian disse
subitamente, tomando um golinho de sua taça de cidra — É a
sobrinha do Duque Louco, não?
— Prefiro que não fale assim do meu tio — Julia saiu em defesa
de Aiden, que muito fazia pela família.
Marian abaixou o rosto levemente, demonstrando certo
embaraço.
— É que falam tanto esse nome... Acaba ficando em nossas
cabeças, não quis ofender — ela voltou a falar — Eu estive no baile
de Lady Thomasina quando ocorreu aquele incidente com uma
moça estrangeira. Soube que ela se casou no começo do ano.
— Ela e o Sr. Chatham estão bem — Julia bebericou a cidra,
querendo cortar o assunto Tamsin. Aquilo lhe causava uma culpa
imensa.
As moças mais novas assentiram.
— Que bom que encontraram o amor — Marian anuiu,
pensativa — Talvez eu encontre também.
— Marian debutou com quinze anos — Heloise disse, risonha —
Já faz tempo demais que está no mercado. Logo mais ela se tornará
nossa acompanhante.
— Heloise! — sibilou a mais velha, mas se virou para Julia e
abriu um sorriso — Parece que eu também caminhei sobre a Terra
plana, Srta. Wilson.
Os cantinhos dos lábios de Julia se levantaram levemente na
menção do leve humor de Marian.
— Parece que mais alguém chegou — Lilian esticou o pescoço
na direção da entrada da sala.
O mordomo pigarreou alto.
— O mais honrado, Marquês Ballard — Sr. Purcell anunciou
com o peito estufado — Lorde Winsford.
Julia engoliu em seco, as mãos começaram a suar por debaixo
das luvas e seu coração disparou em ansiedade.
Winsford estava a metros dela e nem pareceu reconhecê-la. O
homem continuava lindo como ela se lembrava. Olhos escuros
como duas amêndoas, mas os cabelos eram dourados como se os
deixasse serem banhados pelo sol. Alto, forte o bastante para poder
segurá-la nos braços, mas não grande demais. Era um homem
elegante, charmoso e muito bonito. Seu rosto era formado por
ângulos masculinos em seu maxilar e em seu nariz alto, mas havia
algo nele que o deixava encantador. Tinha um dos sorrisos mais
adoráveis e aconchegantes que Julia já vira na vida.
Ele cumprimentou todos com um aceno de cabeça, parecendo
familiarizado com os convidados de Gladys. Por falar na tia, a
mulher estava sorrindo como nunca quando Winsford lhe beijou a
mão educadamente ao se aproximar. Com um olhar urgente, ela
chamou a sobrinha para ser cumprimentada.
Julia engoliu em seco, olhando para as moças ao seu lado até
se lembrar de que não eram suas primas e que não encontraria
ajuda nenhuma nelas.
— A senhorita não o conhece, eu imagino — Marian presumiu,
as mãos tranquilas sob o colo — Lorde Winsford é bem quisto na
cidade, mas não parece interessado em nenhuma das moças locais.
Está sempre ocupado demais, é o que minha mãe diz.
— Sim — Lilian comentou, observando-o com atenção — Seria
um marido e tanto, se estivesse procurando por uma marquesa...
Ele é tão gentil conosco, mas é a gentileza de um irmão mais velho.
Nada galante, uma pena... Pois eu o acho muito bonito.
Julia prendeu a respiração, enfezada e um tanto enciumada.
— Ele é muito velho para você — Marian resmungou,
arrancando um risinho maroto de Lilian, que estava corada — O
homem não tem tempo para uma esposa jovenzinha e animada.
— Eu volto já — Julia decidiu ir até a tia, antes que a mulher
soltasse chamas pela boca.
Nervosa, Julia manteve as mãos unidas na frente do corpo
assim que chegou perto de Gladys e Winsford. Os dois trocavam
amabilidades próximos a uma das longas janelas da sala, cuja vista
dava para os jardins da frente repleto de lanternas pelos caminhos
de pedras.
— Lorde Winsford — Gladys sorriu, puxando a sobrinha pela
mão da forma mais sutil que conseguia — Permita-me apresentá-lo
à minha sobrinha, a Srta. Wilson.
Sentindo as pernas tremerem por debaixo da saia, Julia fez uma
mesura respeitosa, mantendo a cabeça baixa enquanto saudava o
homem que atormentara seu sossego por anos.
— É u-um prazer, m-meu lorde.
Gladys deu um risinho nervoso, mas controlado diante da
repentina gagueira da sobrinha.
— Encantado — Winsford sorriu como fazia com todos,
inclinando a cabeça para Julia e tomando sua mão para si.
Julia deixou o calor da mão dele aquecer a sua pelos segundos
que o contato durou ao tê-lo beijando sua mão.
— Ela veio passar um tempo no campo — Gladys explicou,
dando batidinhas afetuosas na mão de Julia — Mora em Londres.
Winsford ergueu as sobrancelhas quase castanhas.
— E o que a traz aqui tão longe da capital, Srta. Wilson?
— C-Cavalos!
Gladys apertou a mão dela violentamente, sorrindo nervosa
para Winsford.
Ele riu baixo, olhando-a como se ela fosse uma criatura
esquisita e inédita. Julia quis se enfiar na terra como um avestruz.
Nunca havia conversado com Winsford e sua capacidade de
comunicação civilizada havia sumido por completo ao se deparar
com ele.
— Q-Quero dizer — ela pigarreou baixinho, contendo o tremor
em sua voz — O c-campo sempre me atraiu e a cidade é tão
turbulenta. F-Faz mal para os nervos, meu lorde.
Ele sorriu outra vez e ela sentiu o coração se desmanchar todo.
Céus, como ele era adorável sem perceber. Era tão simpático e
gentil com todos, como Tamsin não se deixou cair pelos encantos
dele?
— Eu também gosto do campo, Srta. Wilson. Sou mais feliz
aqui.
— Oh, veja só — Gladys exclamou, rosada de animação — Eu
lembrei de que preciso contar algo importantíssimo para a Sra.
Hughes.
Julia tentou prender a mão da tia na sua, olhando com urgência
para a mulher. Mas Gladys tinha o poder de uma matriarca e bastou
uma olhada séria para a sobrinha entender que era bom soltar a
mão.
E a tia a deixou com Winsford sem nem pestanejar, mal
sabendo que Julia estava prestes a ter um ataque dos nervos ali
mesmo.
Engoliu em seco, olhando para o lado de fora. Mas estava
escuro e tudo o que vira foi seu reflexo no vidro da janela.
Lembrou-se de que estava parecendo uma palhaça da corte de
Maria Antonieta.
Estava tão absurda. Aquela não era ela e Winsford finalmente a
conhecera logo naquela fantasia de Petúnia.
— Perdão, mas sinto que já a vi em algum lugar... — Winsford
franziu o cenho — E a senhorita não é como as outras moças.
Um tom rosado apareceu no rosto dela, que o olhou com certo
temor.
— Não foi uma ofensa, Srta. Wilson — ele riu consigo mesmo
— Seu cabelo é muito bonito, se me permite dizer. A cor é
esplendidamente clara.
O rubor dela aumentou.
— O-Obrigada, meu lorde — ela fez uma mesura um tanto
trêmula — O senhor e meu irmão são bons amigos, na verdade.
Winsford ergueu uma das sobrancelhas, intrigado. Tinha poucos
amigos que considerava como bons.
Havia o salafrário do Steven, que estava lhe devendo vinte
libras, inclusive. Também havia Peter, viajando em algum lugar do
continente com a esposa. E David...
É claro! Aqueles cabelos claros e olhos cristalinos eram
idênticos aos do irmão.
— A senhorita é uma das irmãzinhas de David, não? Perdão por
ter me esquecido. Lady Hanes já havia me dito que era parente
dele, mas não liguei os sobrenomes. Sou bastante distraído, para
ser sincero...
Ela ficou menos corada e as sobrancelhas claras se uniram em
um leve sinal de desaforo.
— Farei vinte e três anos em alguns meses, Lorde Winsford.
Sou a filha mais velha da família, não sou irmãzinha de ninguém.
O marquês ergueu as sobrancelhas e assentiu, nervoso.
— É claro, não quis ofendê-la. C-Como anda David?
— Com as pernas — ela respondeu com certo mal-humor, mas
logo corou e melhorou o tom de voz — Desculpe-me, meu lorde.
David está apaixonado.
Winsford acabou rindo surpreso, rapidamente mantendo uma
postura séria quando Julia o olhou de modo indagativo.
Julia abaixou o rosto, estava tão nervosa que acabara sendo
grosseira com o marquês.
— Faz tempo que não escrevo para ele — comentou ele.
— Sim, e-ele é um tanto reservado sobre seus encontros
masculinos. M-Mas conheceu uma moça comum, pelo o que soube.
Uma criada...
— Desejo que os dois sejam felizes — Winsford concluiu —
Criados também são seres humanos, casam-se e se apaixonam.
A Srta. Wilson assentiu, ainda encarando os pés.
Winsford ficou calado como ela, mas não demonstrou nenhum
incômodo com o silêncio.
Sorrateiramente ela o olhou no rosto, enquanto o marquês
estava distraído olhando para os outros convidados. Admirou em
segredo o contorno de seus lábios, os olhos escuros, a ponte do
nariz que não era totalmente reta. Até mesmo sua orelha, onde
adoraria dar um beijo.
Então, sem aviso, ele a olhou e Julia quase teve um pequeno
ataque cardíaco. O homem abriu um sorriso risonho, mas o
disfarçou com uma tosse baixa.
— A senhorita-
— Srta. Wilson!
Winsford olhou para a direção da voz feminina que a chamara.
Uma das moças solteiras, Heloise, vinha de encontro aos dois.
— Lorde Winsford — ela o cumprimentou e ele meneou a
cabeça educadamente — Vamos? O jantar foi anunciado, soube
que ficarei do seu lado.
Julia sorriu sem jeito para a mocinha, ficando vermelha feito um
tomate. Winsford não iria ser testemunha do constrangimento
daquela tímida senhorita.
— Parece que não ouvimos o sino. Eu as acompanho,
senhoritas.
***

Merda.
Ele estava sentado ao seu lado.
Se Gladys não fosse uma senhora de tão bom coração, Julia
arrumaria confusão com a tia.
É óbvio que a mulher havia arrumado os lugares de modo que
Julia e Winsford ficassem lado a lado. Não havia escapatória
daquele plano da tia. Contudo, Julia tinha certeza de que Winsford
não se interessaria e Gladys deveria aceitar que não havia futuro
naquela coisa de casamento arranjado.
Agora que sabia que ela era irmã do melhor amigo, nada faria.
Julia conhecia as regras, sabia que homens não deviam cobiçar as
irmãs dos amigos.
— Então a senhorita gosta de cavalos?
Deus, por que as pessoas tinham de conversar umas com as
outras? Não podiam ficar todos calados até tudo acabar?
Julia olhava para ele ou não?
Era educado olhar? Ele estava bem ao lado, olhá-lo enquanto
conversavam tão perto não parecia decente.
Jesus Cristo, sua falta de experiência social era enervante.
Olhou para Winsford, mas se arrependeu assim que o viu tão
belo ao seu lado.
Decidiu olhar para o alfinete no lenço de seu pescoço. Dourado
e com uma gema de âmbar na ponta, combinando com o tom de
seus cabelos.
— G-Gosto, meu lorde — Julia respirou fundo e decidiu olhar
para ele novamente, como uma pessoa normal — São animais
encantadores e gentis.
Ele sorriu e assentiu, deixando que um dos lacaios da casa lhe
servisse um pouco de vinho.
— São animais magníficos, de fato. E extremamente
inteligentes, não? Lamento não ter tempo para cavalgar por
diversão.
— Oh, pelo menos o senhor tem cavalos — Julia se amuou —
Papai nunca comprou nenhum para nós, apenas para puxar nossos
veículos. Eu tinha de ir ao haras para cavalgar, mas queria um
cavalo só meu.
Winsford riu enquanto tomava um gole da taça, repousando-a
na mesa.
— Um infortúnio, é verdade.
— Estou soando como uma jovem mimada... Desculpe-me —
Julia murmurou consigo mesma, pegando a própria taça de vinho e
bebendo tudo de uma vez.
O marquês a olhou com certa surpresa, depois bisbilhotou a
taça de vidro para ver mesmo se tinha acabado tudo.
Julia era solteira, mas não era uma debutante adolescente e,
portanto, adorava beber quando podia. Um hábito não muito
saudável, mas conseguiu convencer a tia a deixar que os lacaios lhe
servissem vinho não diluído para conseguir aturar um jantar junto de
Winsford.
— Pode ficar com o meu, se quiser — ele indicou a taça, bem
humorado.
Julia sentiu o rosto esquentar tanto quanto o interior de seu
corpo após uma golada grande de vinho.
— Srta. Wilson? Está tudo bem?
Ela o olhou rapidamente, abrindo um sorriso trêmulo.
— Perdão, pensei que fosse suco.
Winsford riu um pouco mais alto que o normal, acabando por
chamar a atenção de alguns convidados. Gladys, inclusa.
A tia olhou para Julia com alegria, incentivando-a a conversar
com o marquês apenas com um olhar firme.
— Lorde Winsford, está tudo bem na fábrica? — Heloise
perguntou, ao lado de Julia, inclinando-se levemente para poder ver
o marquês.
Julia nunca agradeceu tanto por alguém falar por cima dela.
— Está tudo bem, Srta. Smith — mais um sorriso adorável dele,
que não surtiu nenhum efeito em Heloise — Soube que a senhorita
debutou ano passado.
— Ah, sim! — a mocinha sorriu de orelha a orelha — Foi muito
divertido, meu lorde. O Almack’s é tão grande, nunca havia dançado
tanto em uma única noite.
— Tenho certeza que a próxima será ainda mais divertida.
— Na próxima ela estará casada — anunciou o homem moreno
e grande que estava de frente para Heloise. Aquele que Julia não
achou de seu agrado.
A garota riu envergonhada e assentiu. Que tipo de
assanhamento era aquele?, pensou Julia. No meio da mesa de
jantar!
— Lorde Houghton e eu estamos noivos — explicou Heloise
com um enorme sorriso.
Julia assentiu. Bom para ela, Heloise parecia ser uma moça
muito simpática e gentil. E, apesar de não ser o tipo de Julia, o tal
lorde era um homem bonito. E ela não desejava que ninguém
tivesse um marido feio.
— Mas eu devia ter acreditado no senhor — a mocinha voltou a
conversar com Winsford — Não imaginei que os bailes fossem tão
cheios! E as regras são infinitas. Lady Houghton me ajudou
bastante.
— O mínimo que uma futura sogra deve fazer pela futura nora
— Winsford lançou um olhar bem humorado para Houghton — Não
concorda, meu caro?
O homem assentiu.
— Perfeitamente, Winsford.
Disfarçadamente, Julia se inclinou para trás, encostando todas
as costas na cadeira de modo que Heloise, Houghton e Winsford
pudessem conversar eternamente um com o outro.
Quando deu por si, estava afundando na cadeira e sumindo da
cena como gostava de fazer.
Seria uma longa noite.

***

Julia queria urgentemente ir para seu quarto e dormir. Ela não


era o tipo que suportava horas de provação social, em uma ou duras
horas ela logo ficava com sono. A noite estava na metade ainda;
depois do jantar todos foram para a sala de estar novamente, onde
Marian se apresentou com uma harpa.
A moça era habilidosa, bonita e com boas origens. O porquê de
estar solteira era um mistério para Julia, afinal, debutara com seus
precoces quinze anos. Eram anos o suficiente para conhecer
alguém.
Só não era mais misterioso que o fato de Lorde Winsford não ter
ignorado sua companhia forçada pela noite toda. É claro que, depois
do jantar, Gladys arrumara um modo de que a sobrinha e o marquês
ficassem lado a lado durante a apresentação de Marian.
O lado bom era que seria de enorme mau gosto conversar
durante a música, então Julia ficou ereta feito um tronco de árvore,
olhando fixamente para os dedos de Marian e sem nem interagir
com Winsford. No entanto, durante o jantar, o homem fez questão
de incluí-la em todas as conversas que tivera com Heloise e o
cavalheiro de cabelos escuros, Lorde Houghton. Um barão que
parecia desejar toda a atenção de Heloise como se pudesse morrer
sem a mocinha.
Então, quando Julia pensou que ficaria calada pelo resto da
noite, Sir Jonas saiu de debaixo de um dos sofás da sala como se
nenhum soireé estivesse acontecendo. O bichano estava sem uma
de suas roupinhas e tudo o que Julia viu fora um vulto negro
andando lentamente na direção de Marian, cujo os olhos estavam
fechados ao tocar o instrumento.
— Ora, ora... — Winsford murmurou, risonho.
Julia olhou para a tia, do outro lado do círculo que envolvia
Marian. A mulher estava pálida, horrorizada. Os outros convidados
englobavam um misto de riso contido, surpresa e horror.
O gato estava em seu quarto, com a porta fechada e um prato
cheio de fígado de galinha como ele adorava. Não era para ele estar
ali, no meio da festa de sua tia.
Sir Jonas continuou andando lentamente, cauteloso. Quando
estava perto de Marian, ele ficou em pé, apoiado nas patas traseiras
feito um suricate.
Julia prendeu a respiração. Gladys deu um soluço baixinho.
Winsford riu novamente e Heloise se juntou a ele, cochichando algo
sobre animais. Ninguém ousava se intrometer na apresentação de
Marian.
O gato esticou uma das patas dianteiras o mais devagar
possível, como se a arpa fosse um terrível mistério. Então, quando
encostou nos dedos de Marian, a jovem gritou de susto, caindo para
trás do banco e expondo metade das pernas para todos os
convidados. No mesmo instante, todos se levantaram para ajudá-la,
enquanto o gato corria para fora da sala como uma ratazana
assustada, passando por debaixo das pernas de um dos lacaios de
prontidão na porta.
— O que era aquilo?! — Marian olhou para o pai, um banqueiro
gordo, que a ajudava a se levantar dignamente.
Julia olhou para a tia, que estava furiosa e envergonhada. Pobre
Marian, todos haviam visto suas meias com bordados de rosas. E os
joelhos!
Heloise parecia controlar uma gargalhada, o rosto escondido no
braço grosso do noivo. Lilian ajudava a desamarrotar as saias do
vestido junto da Sra. Stewart. Nervosa, Julia se apressou a explicar,
falando baixo com a moças:
— D-Desculpe-me, Srta. Stewart, meu gato é demasiadamente
curioso.
Marian arregalou os olhos.
— Um gato preto?!
Julia bufou baixinho.
— Gatos pretos são gatos como outro qualquer, Srta. Stewart —
Winsford se pronunciou, junto de todos que rodeavam a moça.
Julia o olhou apressadamente, recebendo um sorriso amigável
do homem.
— Meu caros! — Gladys ergueu a voz entre todos, o sorriso
mais calmo em seu rosto — Vamos todos relembrar desse momento
com grande humor, certo?
A Sra. Stewart inflou o peito, o rosto corado em ofensa.
— Minha filha se expôs de tal maneira e quer que riamos do
embaraço dela?
Gladys rapidamente fez que não, abrindo seu leque e o
agitando rapidamente. Os outros convidados não pareciam tão
ultrajados com o fato de Marian ter caído no chão de modo tão
incomum. Nem mesmo a própria jovem.
— Nós vamos embora — a mulher anunciou, puxando o marido
e a filha pelos pulsos.
— Ora, mãe, foram só minhas pernas! — Marian tentou
amenizar a situação e lançou um olhar pesaroso para Julia —
Perdoe-me, Srta. Wilson.
Julia ergueu as duas mãos na frente do peito e as sacudiu em
negação, completamente envergonhada.
— A culpa foi minha, não tranquei a porta do quarto e o gato
deve ter fugido.
— Tenho certeza que foi apenas o acaso, Srta. Wilson — o Sr.
Stewart abriu a boca pela primeira vez, a bigodeira grisalha se
movendo agitadamente — Lady Hanes é uma ótima anfitriã.
A condessa não pareceu menos nervosa diante de tal elogio e
continuava a se abanar urgentemente, pronta para desmaiar nos
braços de Winsford, preocupado com o estado da mulher.
Julia engoliu em seco, aquilo tudo era culpa dela. Sua tia ficaria
furiosa assim que todos se retirassem e ela seria mandada de volta
para Londres.
— Acho que todos nós já estamos cansados, não? — Winsford
tentou soar o mais positivo possível, mas era difícil com Heloise e
Lilian cochichando uma com a outra — Não é todo dia que um gato
resolve tocar harpa.
A tal Sra. Hughes assentiu risonha, olhando para o marido que
sorriu com divertimento.
— Foi uma noite agradável, sim — a mulher olhou para a
condessa — Tenho certeza que nosso próximo encontro será
divertidíssimo.
— É claro que não às custas da Srta. Stewart — o marquês quis
adicionar, bastante diplomático.
Marian agradeceu com um aceno de cabeça, totalmente
recuperada do momento que parecia ter causado mais embaraço na
mãe. Cada passo em falso era uma chance a menos de casar a
filha, céus.
— O Sr. Purcell os acompanhará — Lady Hanes chamou o
mordomo com um olhar firme.
O homem guiou todos os convidados para fora, esperando que
cada um se despedisse das anfitriãs. Marian sorriu com gentileza
para Julia, acompanhada de Lilian e Heloíse, juntamente de seus
familiares.
Restou apenas Winsford, que ajudou Gladys a se sentar no sofá
outra vez. No mesmo que Sir Jonas dormira enquanto todos
jantavam.
— Presumo que a senhora esteja bem, Lady Hanes.
— Ah, sim. Minhas filhas também tinham um gato atrevido.
Como era mesmo o nome...? Alphonse! — a mulher suspirou,
abanando-se com lentidão — Há coisas piores que podem
acontecer em um soirée. As coisas que presenciei em meus dias de
debutante...
Winsford riu com bom humor e deu batidinhas amistosas nas
mãos de Gladys.
— Vide o baile de Tamsin — Júlia comentou consigo mesma,
sentando-se ao lado da tia.
Gladys pigarreou baixinho, olhando séria para a sobrinha.
— O marquês estava lá, tia. Londres inteira viu a ruína de
Anthony. Aquele rançoso.
— Não deveria falar desse rapaz pelo nome na frente das
pessoas, Julia — Gladys sussurrou, como se Winsford não pudesse
ouvir.
— Eu brinquei com ele a vida inteira, tia Gladys. Infelizmente.
Winsford riu disfarçadamente, levantando-se do sofá e sendo
acompanhado por Julia quase que instantaneamente.
— Agora devo ir, senhoras. O jantar estava delicioso e foi um
prazer conhecê-la, Srta. Wilson.
Julia abaixou a cabeça sutilmente, tocando as saias.
— Tenham uma boa noite — Winsford acenou para as duas e
seguiu na companhia do Sr. Purcell.
Pouco tempo depois, sua tia se levantou.
— Tia...
Gladys espanou as palavras de Julia com um aceno educado.
— Não estou chateada. Você está linda e se comportou muito
bem, foi um bom jantar.
Julia sorriu aliviada, abraçando a tia que, como de praxe,
demorou para reagir ao contato. Duas batidinhas desajeitadas foram
dadas em suas costas, seguidas por um aperto em sua bochecha.
— Ele é um bom menino, viu como trata as damas? — Gladys
apontou para a porta por onde Winsford fora embora — Se eu fosse
mais nova, casaria-me com ele.
— Creio que ele não seja mais um menino, minha tia. E, não
fale isso,... É perturbador imaginá-la com Lorde Winsford.
A mulher acabou por gargalhar do comentário.
— Pois saiba que todos os homens de Londres me amavam
quando eu era solteira, meu querido Lorde Hanes era um deles —
Gladys sacudiu o leque com animação — Helen, querida! Preciso de
um banho morno...
CAPÍTULO 4

Jonas estava ronronando mais alto que o normal, afofando a


barriga de Julia antes de decidir deitar ali em cima. Encarou a dona
e piscou lentamente, aproximando-se mais até ficar com o focinho
perto do queixo dela.
— Você é o único que me ama, Sir Jonas — ela murmurou,
risonha, enquanto afagava a testa do gato preto — Mas não faça
mais aquilo, ouviu?
Ele miou baixinho, misturando com o ronronar e o sono.
Julia deveria ir dormir também, estava cansada do jantar de
Winsford. Não conversara muito com o homem depois que o jantar
começou, ele parecia ter muito o que falar com os outros
convidados, mas a presença dele ao seu lado a cansou
mentalmente. Nunca havia passado tempo algum na companhia
dele e, depois de vê-lo tratar todos com tamanha gentileza, Julia
percebeu que seria um pouco difícil não pensar nele. E ele era um
exímio cavalheiro com Gladys, parecendo conhecê-la bastante. Julia
não conseguiria resistir a se apaixonar por ele novamente.
Duas batidas firmes foram dadas em sua porta, assustando
Jonas, que abriu os olhos amarelos e inclinou as orelhas para trás.
— Entre.
Tia Gladys surgiu junto da luz das velas do corredor, fechando a
porta e deixando o quarto escuro novamente. Tudo o que Julia
conseguia ver da tia era o rosto e as mãos, o resto estava coberto
por uma camisola cheia de babados e uma touca enorme.
— A senhora terá de me perdoar, mas não posso me levantar —
ela indicou o gato dormindo em seu peito — É contra as leis.
Gladys riu consigo mesma, dispensando as desculpas de Julia
com um aceno de mão. Sentou-se então no colchão da cama,
deixando as mãos sobre o colo enquanto olhava para o bichano.
— Então, o que achou do jantar? — ela perguntou, orgulhosa —
Bem, tirando o pequeno espetáculo de Sir Jonas. Lorde Winsford é
bonito, não é?
— Sim, ele é — Julia respondeu, a contra gosto — Mas, tia, a
senhora não pode me empurrar para o homem assim que ele me
conhece.
Gladys se empertigou.
— Claro que posso, é isso que as mulheres mais velhas fazem
com suas protegidas. Arrumam-lhe bons maridos. E acho que ele
gostou de você.
Julia negou veemente, fazendo Jonas balançar de um lado para
o outro, mas sem acordar.
— É claro que sim, criança — a mulher deu um muxoxo
impaciente — Ele riu quando você falou de cavalos. Oh, eu disse
que esse seu amor por cavalos não a levará a lugar nenhum, mas
ele não se incomodou.
— Muitas mulheres cavalgam — Julia se defendeu.
— Sim, mas nenhuma dama passa o dia em celeiros
conversando com animais — Gladys apontou para o narizinho da
sobrinha — Bom, parece que o marquês não se incomoda com isso.
Não deixou de conversar com você, mas você não falou muito com
o pobre.
Julia piscou demoradamente, mantendo-se paciente.
— Tia do céu... Pare de falar como se eu e o marquês já
estivéssemos com as núpcias marcadas.
Gladys deu um muxoxo impaciente.
— Se eu não gostar do marquês, a senhora não poderá
continuar com essa bobeira.
A mulher ficou emburrada.
— Não é bobeira, é o seu futuro. Precisa de um marido decente!
Se não por você, pelas suas irmãs. Você é a irmã mais velha, seu
casamento ditará o sucesso de Emanuelle e Laura.
Julia sabia de tudo aquilo, mas não duvidava que Emanuelle
fosse capaz de conseguir um bom cavalheiro pelos próprios méritos.
Era uma jovem muito agradável e refinada, deixaria muitos homens
encantados naquele ano. Poderia escolher a dedo um que ela
soubesse que a respeitaria e amaria.
— Mas... — Gladys suspirou com pesar, acariciando o espaço
entre os olhos de Jonas — Não posso forçá-la a gostar de alguém,
pois eu sei o que é amar.
Julia sorriu de orelha a orelha.
— Então se eu não me interessar, a senhora desistirá disso?
Gladys anuiu, acariciando toda a extensão da coluna de Jonas.
— Mas sei que gostará dele, é um bom homem. Lady Winsford
era uma mulher encantadora, criou o filho com muito amor. Sei que
está ao lado de Deus agora.
Julia assentiu com pesar. A mãe de Winsford morrera havia
muitos anos quando o marquês ainda era um jovenzinho de quinze
anos. David a conhecera. Julia só pôde conhecer o pai de Winsford
no velório do homem e nem viu como o falecido era.
— A senhora conhece Lorde Winsford desde pequeno?
— Ah, sim. Ele brincava com minhas filhas mais novas, tão
educado. Lady Winsford e eu jurávamos que ele se casaria com
uma delas. Os quatro gostavam de ir pescar com seu tio. Mas
depois foi para Eton e só fui vê-lo mais quando virou um homem.
Bem, e quando Lady Winsford se foi... Oh, pobre menino, tinha uma
família tão pequenina.
Julia sentiu o coração apertar. Tinha tantos irmãos e primos que
não conseguia imaginar uma família onde havia apenas uma
criança.
— A senhora sabe que ele é o melhor amigo de David, não?
Gladys ergueu as sobrancelhas loiras.
— Ora, mas que agradável coincidência.
— Tia, David ficará muito enciumado caso eu e Lorde Winsford
fiquemos juntos.
A tia deu outro muxoxo sem paciência.
— Fala como se casar com um homem bonito e rico fosse um
sofrimento.
— Esse tipo de coisa não é o que torna um homem bom, tia.
— Mas é o que é preciso para que os filhos vivam com conforto
— retrucou — Eu jamais lhe apresentaria a um homem que poderia
maltratá-la. Já lhe disse, minha filha, se gostar de moças fale para
mim que eu guardarei seu segredo. Uma mulher da minha idade já
viu tudo o que você pode imaginar. Mas temos que casá-la, não
pode viver entre amores... Proibidos. Arrumamos um marido
invertido para você, assim os dois se auxiliam.
Julia ficou um tanto boquiaberta diante de tantas informações
que nunca ouvia da boca de ninguém. Ficou imaginando quantas
damas da sociedade amavam outras mulheres enquanto eram
casadas com homens que preferiam a companhia de cavalheiros.
Nunca havia parado para pensar naquilo... Deviam existir tantos! Ela
provavelmente conhecia alguns e nem sabia.
— A senhora conhece algum cavalhe-
— Julia! — Gladys exclamou, constrangida — Não deveria ter
comentado isso com você. Apenas me responda. Diga-me logo e
nunca mais falaremos disso, pelo amor de Deus.
Ela corou com a pergunta.
— Eu gosto de homens, tia. Pode dormir tranquila. E não fale
assim das mulheres e homens invertidos.
A mulher riu, puxando a bochecha da sobrinha.
— Durma e pare de falar bobeira, menina. Boa noite.
— É a senhora quem está falando bobeira, tia.
— Vá dormir! — disse ela, severa, mas acabou rindo — Você é
terrível, criança... Boa noite.

***

Winsford sacudiu a taça de vinho em sua mão lentamente,


colocando o vidro contra a luz da única arandela acesa na sala de
estar azul - a única sala de estar habitável.
Riu consigo mesmo, vendo o líquido balançar devagar.
— Suco.
De onde conhecia a Srta. Julia Wilson? Já a vira antes, mas não
lembrava quando. Nem mesmo que era irmã de David e prima de
Tamsin. Não se lembrava nem de tê-la visto durante as últimas
temporadas em Londres. A jovem tinha vinte e dois anos, devia ter
debutado havia certo tempo.
Mas o fato dela ser irmã de seu melhor amigo era um enorme
infortúnio, porque Julia era linda. Parecia ser bastante tímida e,
infelizmente, não pudera conversar com ela tanto quanto quis.
Parecia que estar na companhia dele a incomodava até mesmo
quando a olhava.
— Meu lorde.
Winsford quase derrubou o vinho na poltrona, assustando-se
quando viu a silhueta esbelta de Price no batente da porta.
— Meu Deus, Price!
O homem riu baixinho, disfarçando tudo com uma tosse leve.
— Não deveria estar na sua casa? — Winsford perguntou,
repousando a taça na mesa de centro onde descansava os pés.
Price vivia em Chester, mas eventualmente dormia na edícula
da propriedade.
— Desejo saber como foi sua noite, senhor — o secretário
tomou a liberdade de se sentar num dos sofás de seda azulada —
Afinal, urgências familiares estão envolvidas.
O marquês tirou os pés da mesa de centro e cruzou as pernas.
— Encontrou uma esposa, Lorde Winsford? — Price perguntou.
— Não. Embora houvesse uma moça nova hoje; Srta. Wilson.
Irmã de David.
— Irmã do Capitão Wilson? — o secretário pareceu um tanto
surpreso — E a Srta. Wilson não seria uma boa companheira?
Winsford gargalhou, para confusão do colega e empregado.
— Ora, vamos lá, Price, não conhece as regras dos amigos?
— Não tenho conhecimento sobre tais regras — o homem
respondeu, ofendido.
O marquês deu um muxoxo baixinho e retornou ao vinho,
tomando um gole breve.
— Não se deve cortejar a irmã de algum amigo, é contra as leis.
Price resmungou algo.
— E quando os parlamentares decidiram tais leis? Imagino que
um crime desse leve um homem apaixonado à forca.
— Simbolicamente falando — Winsford deu de ombros — É
claro, outra cabeça pode ser enforcada também.
Price resmungou novamente diante de tanto mau gosto.
— Piadas à parte, Price, a Srta. Wilson não parece inclinada ao
matrimônio.
Um hm baixinho foi ouvido por Winsford.
Price era determinado como uma mãe desesperada em ver o
patrão casado, pelo bem do legado. Afinal, Winsford estava com
absurdos trinta e um anos e deveria se envolver mais em assuntos
para além da fábrica e as plantações. Debutantes não se
interessavam muito por homens mais de dez anos mais velhos. E
ele não deveria morrer antes do filho ter idade o suficiente para
tomar conta do marquesado.
— Lady Hanes estava claramente com intenções ao nos
apresentar hoje, mas a pobre moça não parecia confortável ao meu
lado — Winsford explicou — Deve estar apaixonada por outro
homem.
O secretário não acreditou em nada.
— A senhorita em questão é feia, meu lorde?
— Não — ele terminou a taça, mas ficou olhando para o fundo
vazio — É pequena, bonita, parece uma... Sabe quando uma dama
tem aura de realeza? É isso que a Srta. Wilson tem, o refinamento.
Mas eu acho que você deveria se preocupar com o próprio legado,
não? Eu vou me casar, Prince. Quero ter filhos.
Price não respondeu de primeira, calando-se por alguns
segundos enquanto um gato tigrado dormia debaixo da mesa de
centro. Conseguia ver apenas os olhos refletindo em verde quando
a luz do luar batia contra as retinas do animal.
Era Andrew? O patrão tinha gatos demais pela casa para
conseguir se lembrar dos nomes. Oito no total, espalhados por cada
canto da mansão.
— Sua senhora não deseja se casar, eu sei — Winsford
comentou, risonho — Vou dormir, Price. Até amanhã.
O secretário se pôs de pé e fez uma breve reverência ao patrão.
— Boa noite, meu lorde.
O gato se levantou imediatamente em meio a escuridão,
seguindo Winsford, correndo. O marquês o pegou no colo,
pendurando o bichano em seu ombro para assim levá-lo consigo.

***

Poucos dias depois, Julia e Natalie foram até o centro de


Chester em uma tentativa de fugir de Gladys. A tia estava muito
compenetrada em lapidar Julia, criticando sua postura e prometendo
encomendar espartilhos mais firmes que os da moda vigente. Julia
tinha uma postura normal, mas Gladys a queria andando dura como
uma tábua. Apelando até mesmo para o velho truque do livro na
cabeça.
As duas mulheres foram até o ateliê de Madame Rutherford,
chamando a atenção das vendedoras quando o sino da porta
balançou. As clientes presentes estavam ocupadas demais
analisando chapéus e estampas.
— Srta. Wilson — uma delas, com um sotaque francês muito do
falso e uma voz animada, disse solene — Posso ajudá-la?
— A madame se encontra?
As duas assistentes se entreolharam, depois olharam para a
porta que dava para os outros aposentos mais reservados do ateliê.
— Você se preocupa demais com isso, querido — a voz de
Madame Rutherford se aproximou da porta — Diga que mandei
lembranças.
As duas assistentes sorriram para as clientes que atendiam e a
porta se abriu. A modista estava acompanhada de um homem alto e
de óculos, como se fosse algo natural e aceitável para uma mulher
solteira. As clientes estavam ocupadas com as próprias compras
para pensar no homem presente no local, talvez até acostumadas
com aquela visita.
— Oh, Srta. Wilson! — a mulher passou direto pelo homem, a
saia do vestido violeta balançando em seda e musselina — Que
bom que está aqui, seus trajes de montaria estão prontos. Venha.
Yvete, traga-nos chá.
Uma das duas assistentes assentiu de prontidão.
Julia se enxeu de ansiedade, seguindo Madame Rutherford pelo
ateliê até chegarem numa das três salas de provas. Pediu
rapidamente para que esperassem enquanto ela ia buscar os trajes.
No meio tempo, Yvete apareceu com um jogo de chá e biscoitos
amanteigados. Assim que o pequeno lanche estava instalado no
quarto de provas, Julia não demorou para experimentar o traje.
A casaca era idêntica a de um cavalheiro. Botões dourados
fechavam a roupa até o pescoço, no centro de cada um havia um
cristal branco. O tecido era de veludo vermelho. Como havia pedido,
a parte de traz era como a de um fraque, mas fluida para que ela
pudesse se sentar confortavelmente ao cavalo. Além de ter tecido o
suficiente para cobrir a derriere, mas não cair sobre as ancas do
cavalo.
As calças eram em bege claro. Não eram largas e cheias como
as calças que ficavam escondidas debaixo dos trajes esportivos que
as mulheres costumavam vestir. Era justa como as do homem,
dando-lhe mobilidade para se erguer em um cavalo.
Ao lado havia outro traje, mas era cinza e com botões dourados.
— Eu adorei — Julia suspirou, contente — E é extremamente
confortável usar calças. Vamos deixar que Natalie veja.
No momento que a camareira entrou, ela deu um grito de horror:
— Srta. Wilson!
Julia sorriu de orelha a orelha, erguendo uma das pernas e
depois a outra, rodando e pulando.Vestir-se como um homem era a
melhor coisa do mundo.
Natalie estava horrorizada, tentando controlar os movimentos de
sua patroa.
— Veja, Natalie! — Julia exclamou, animada — E é tão bonito.
Poderei cavalgar mais confortavelmente, correr pelos campos. Pular
obstáculos! Poderei me tornar uma exímia amazona.
Madame Rutherford tocou o peito em orgulho, admirando sua
obra prima e sua cliente feliz.
— M-Mas, senhorita, não pode... — Natalie engoliu em seco só
de pensar — Não pode cavalgar pela cidade em tais trajes! O que
dirão, minha senhorita? N-Não mesmo!
Julia a ignorou com um aceno de mão, olhando-se no espelho e
alisando o veludo rubro.
— Eu não quero cavalgar pela cidade. Quero correr pelo campo,
cavalgar de verdade.
Natalie resfolegou, pronta para ter um ataque do coração.
Rapidamente, Yvete ajudou a camareira a se sentar, correndo para
pegar um frasquinho dourado de rapé que a criada recusou ainda
mais escandalizada.
— Não gostou, Natalie? — perguntou Julia, segurando o riso.
A criada assentiu, mas o rosto era de puro descontentamento.
— Quando eu disse que a senhorita deveria se vestir com mais
pompa não era para ser como um dândi! — ela se recostou no
sofazinho outra vez — A senhorita é uma patroa horrível...
Julia deixou sua risada escapar, voltando a se olhar no longo
espelho em frente ao tablado. Natalia falava aquilo da boca para
fora, as duas se adoravam.
— Infelizmente faltam as botas... — lamentou, virando-se para
falar com Madame Rutherford — A senhora pode providenciá-las
para mim? É claro que pagarei o restante.
— É claro, Srta. Wilson. Yvete cuidará das suas medidas e
levará para um sapateiro .
Julia anuiu com alegria, depois daquilo ela só precisava de um
cavalo. Simples!
CAPÍTULO 5

Conforme os dias se passaram, Winsford retornou para seus


afazeres na fábrica, o que o impossibilitava de sair muito para
Chester. Eventualmente tinha de ler e responder correspondências
de compradores nacionais e internacionais, algo que mais
detestava. Se pudesse, mandaria Price escrever todas para ele,
mas o homem já fazia muito pelo patrão.
Apesar da turbulenta vida de negócios e os afazeres como
marquês, Winsford teve tempo para encarar o vazio e pensar em
como a Srta. Wilson daria uma boa marquesa. Claro, não a
conhecia o suficiente para julgar seu caráter nem suas habilidades
carismáticas, mas a moça era linda.
E ninguém quer um cônjuge feio, convenhamos.
Mas, como gostava de lembrar a si mesmo, ela tinha muitos
parentescos nada favoráveis e aquilo parecia incomodá-la, também.
Pelo menos de acordo com sua teoria.
Enquanto derramava uma gota enorme de cera de vela para
lacrar mais uma carta, Price entrou no escritório em seu modo
apressado e sério.
— Meu lorde.
— Diga, meu amigo — Winsford colocou a carta selada na pilha
para entrega.
Price deixou um pequeno envelope na frente do patrão,
voltando suas mãos para trás das costas. Em um movimento
preguiçoso, o marquês desdobrou o papel e leu o que viu ser um
convite.
— Hm... Uma festa no jardim na casa dos Smith. No próximo
sábado.
— Perfeitamente, senhor.
— Há algum compromisso além desse?
Price empurrou os óculos para cima.
— Nada além da vossa imensa vontade de se trancafiar nesse
escritório e não procurar uma esposa, meu senhor.
Winsford empurrou o convite para o lado, junto de mais alguns
papéis de importância.
— Acha que a Srta. Wilson foi convidada?
Price deu de ombros com leveza.
— Eu não sou o anfitrião, meu lorde, portanto, não faço a
mínima ideia de quem são os convidados.
O marquês deu um muxoxo impaciente, o que levou a um riso
reservado de Price.
— Eu deveria demiti-lo, sabia? — Winsford se recostou na
cadeira — Você é o pior subordinado que eu já vi.
O homem sorriu de canto, fazendo uma reverência sutil.
— Eu me esforço para ser, senhor. Mas... Se me permite dizer
— ele deu uma tossidela, empurrando os óculos para cima — O
senhor se esqueceu das leis dos amigos?
Winsford resmungou em aborrecimento, puxando o convite e o
analisando mais uma vez.
Price permaneceu parado e com as mãos nas costas.
— David ficaria irado, é verdade. Ele sempre fala com muito
carinho das irmãs. Não seria diferente com a Srta. Wilson. Além do
mais, ela é prima de Lady Thomasina. Não desejo estar na
companhia dela, não ainda. Seria desconcertante.
Price anuiu brevemente.
— Eu a vi no ateliê de Madame Rutherford. A Srta. Wilson. A
jovem encomendou conjuntos de montaria.
Winsford o olhou e deu de ombros, prendendo o convite entre
os dedos.
— Nada mais natural, eu suponho. Ela me disse que gosta de
cavalgar.
Price negou, arrumando o lenço ao redor do pescoço.
— A Srta. Wilson encomendou calças, meu lorde. Madame
Rutherford me mostrou sua... Obra prima, como ela mesma disse.
Uma casaca e calça, com um corte um pouco mais afeminado.
Algo... Andrógeno, ela mesma disse. Uma palavra bastante
estranha para uma roupa de homem.
Winsford ergueu uma das sobrancelhas. Aquela mulher baixinha
e tímida era uma criatura moderna?
— Certo, ela usa calças para cavalgar... Apesar de inusitado,
não vejo motivo para ter feito uma fofoca para mim.
Price ficou corado, empertigando-se.
— Não é uma fofoca, meu senhor.
— Homens fofocam também, Price. Tenho certeza que ainda é
capaz de dar filhos para Madame Rutherford mesmo depois desse
breve mexerico.
O secretário ficou ainda mais corado, ofendido com a
insinuação.
— Como eu ia dizendo, Lorde Winsford... Temo que a moça
fique mal falada antes mesmo de falarem dela na cidade. Caso o
senhor decida cortejá-la. Mas, com todo respeito, é uma senhorita
muito refinada e bonita.
— Sim, ela é — Winsford devolveu o convite à mesa — Tudo
nela pareceu-me tão delicado. A pele, a cor dos olhos, os cabelos
claros. Uma pena que tudo estava perdido no meio de tantas joias e
maquiagem.
— Muitas moças modernas usam maquiagem. Principalmente
as que usam calças, meu lorde.
— Acho que a Srta. Wilson não gostou da pintura em seu rosto
— ele pensou, tocando o queixo — A vi esfregando as bochechas
com um guardanapo assim que todos saíram da sala de jantar. Uma
cena muito engraçada, inclusive.
Prince moveu a cabeça em um gesto sem muita consistência,
como quem fica sem argumentos.
— Madame Rutherford usa maquiagem, pelo o que sei —
Winsford zombou.
— Ela é uma mulher com mais anos de vida que a Srta. Wilson,
meu lorde.
— Não acredito que está insinuando que a madame é velha...
Price ficou púrpura.
— De maneira alguma!
Winsford deu um riso baixo e breve.
— Acalme-se, Price. E pare de fazer fofocas sobre a Srta.
Wilson. Como disse, ela deve gostar de outro homem.
O homem mais velho não pareceu convencido, mas se retirou
do escritório com uma reverência educada.
Winsford se levantou, caminhando pelo escritório até a janela
atrás de uma chaise onde ele dormira várias vezes, cuja vista dava
para os vastos campos de suas propriedades. Tanta terra, mas
somente ele. Havia os funcionários no povoado com suas famílias e
os arrendatários das fazendas. Sem contar com os criados em sua
casa. E os dez criados no prédio administrativo da tecelagem.
Mas ainda era só ele, sem nenhum filho ou esposa. Pensar que
passara dois meses achando que voltaria para Tamsin e a
desposaria. Ainda se envergonhava do beijo que dera nela,
invadindo a privacidade da pobre moça.
— Que vergonha... — ele resmungou, deu um muxoxo e voltou
para sua mesa, pronto para responder ao convite da Sra. Smith.
Não se passaram dez minutos e Price retornou com mais
correspondências.

***

Helen puxou mais uma vez, quase quebrando as costelas de


Julia ao apertar o espartilho. A camareira do exército afastou as
mãos, as colocando para trás e dando um passo para o lado,
ignorando o fato de que a jovem patroa estava a olhando em
completo horror.
— Você quer me matar?! — Julia perguntou, ofegante —
Afrouxe isso.
— É pelo bem da postura, Srta. Wilson — Helen explicou, as
sobrancelhas negras se abaixando com firmeza — E para um bom
contorno do corpo.
— Estou satisfeita com os meus contornos — ela resmungou,
respirando fundo e sentindo suas costelas presas dentro da lingerie
— Afrouxe um pouco, não consigo respirar muito bem, Helen.
— A senhorita logo se acostuma, Srta. Wilson.
Julia resfolegou, mas aquilo lhe tirou o fôlego rapidamente. Mal
conseguia mover o tronco, o espartilho estava tão justo que sua
coluna parecia ter sido forjada a ferro de tão ereta.
— Onde está Natalie? Quero a minha camareira. Delicada como
uma pluma.
— Cuidando da toalete de Lady Hanes, senhorita.
— Merda...
Helen permaneceu impenetrável mesmo diante do palavreado
de Julia.
— Seu pai é militar também? — Julia perguntou.
— Não, senhorita. Meu pai era carpinteiro.
Ela analisou a criada com atenção.
— Bem, você daria um ótimo militar. Certo, pegue o vestido —
Julia resmungou, chateada — M-Mas sem maquiagem, por favor.
A camareira assentiu com firmeza, pegando o vestido esticado
sobre a cama.
Como a festa era ao ar livre e estavam no verão, o tecido era de
um leve algodão verde claro, com estampa de flores brancas e de
miolos coloridos. Uma pequena renda enfeitava o corpete e a barra
das mangas bufantes. O chapéu era grande, com flores de tecido
rosa debaixo da aba e uma grande pluma branca por cima. Para
completar, uma echarpe amarela combinava com as delicadas joias
de ouro.
Ao vestir-se por completo, Julia continuou se sentindo
chamativa demais, mas o tom claro de todo o traje lhe era mais
agradável que o restante de seus novos vestidos escuros. Seu
maior problema, no entanto, era o espartilho demasiadamente
apertado. Mover-se não era o problema, mas falar parecia consumir
todo o ar dos pulmões e o diafragma mal tinha espaço para
expandir, fazendo com que cada palavra fosse um grande esforço.
Permaneceu quieta durante todo o trajeto até a residência dos
Smith, o olhar feliz de Gladys caído sobre a sobrinha tão bem
vestida.
A tia ainda estava tramando um casamento, mas Julia não
arriscaria um segundo coração partido. Diria para a tia que não
estava interessada, seria lapidada e conheceria um novo homem
assim que voltasse para Londres. Um homem que se apaixonaria
por ela e por quem ela se apaixonaria por.
Simples.
— Os Smith são ótima gente, minha filha. O Sr. Smith é um
homem comum, advogado. Coisas do tipo.
— Então não são nobres? — Julia bisbilhotou a paisagem do
lado de fora da carruagem.
Gladys assentiu, abanando-se vagarosamente.
— O Sr. Smith fez muito pela economia de Chester, assim como
Lorde Winsford, mas é um homem sem título tal como seu pai. Mas,
é claro, não é para ficar discutindo economia com ninguém! Sua
mãe comentou que tem mania de se meter nas economias da casa
para além das responsabilidades de uma mulher.
Julia anuiu, sutilmente revirando os olhos. Sabia que mãe não
usara palavras como aquela.
Um pequeno chute de Gladys lhe foi dado contra a canela e ela
rapidamente manteve uma postura séria, mas acabou dando um
risinho baixo.
— Eles tem um filho mais velho que você, — a mulher
continuou, soando muito desgostosa — mas é um tolo de péssimo
comportamento, então não fale com ele. Daria um péssimo marido...
Se chegar perto demais dele, arruinará sua reputação e só Deus
sabe o que acontecerá.
— Tendo a evitar a companhia de homens tolos, tia, não se
preocupe.
— Bom, muito bom — Gladys sacudiu o leque com rapidez
como um cão que balança o rabo — Uma festa ao ar livre fará jus
ao brilho de seus olhos. Tente não ser tão pessimista, Julia. Estou
apenas pensando em seu futuro.
A mais nova suspirou com pesar, tocando a mão da tia a sua
frente em um sinal de agradecimento.
— Agradeço muito, tia. Minha mãe sempre me deixou ser quem
eu sou, mas é verdade que acabei não seguindo muito os hábitos
das outras moças. Preciso aprender certas coisas, eu... E-Eu
realmente não consigo ter a graça necessária.
Gladys concordou com sabedoria.
— Mary é uma boa mulher, mas devia ter pensando um pouco
mais em seus vestidos, pelo menos. Ou ter focado mais em
promover suas habilidades, você é uma poliglota, Julia. Isso
impressiona qualquer um, mas você fica no canto. Não há nada de
errado em você, minha filha, apenas precisa de cor!
Julia concordou com um suspiro amuado, recostando-se no
assento da carruagem e passando o resto do trajeto olhando para
os campos de Chester. Diversos tons de verde enfeitavam a
paisagem, alguns bosques pelo caminho ali e aqui. O dia estava
lindo, o sol brilhava e havia poucas nuvens no céu.
Era o pico do verão, em breve uma chuva amaldiçoaria todo
aquele lindo verde.
Assim que chegaram no grande solar jacobiano dos Smith, não
demorou para que Heloise a visse e acenasse com alegria. Ela
andou o mais rápido que uma dama podia, os cabelos cor de cobre
balançando no penteado no alto da cabeça conforme a velocidade
aumentava sutilmente.
— Que bom que está aqui, Srta. Wilson — ela sorriu de orelha a
orelha — Estou cheia de perguntas sobre Londres!
— Asseguro-lhe que Londres é completamente enfadonha fora
da temporada — Julia abriu um sorriso nervoso, deixando que
Heloise a puxasse pelo jardim — Não há nada além de sujeira e
pessoas mal-educadas. Aqui é muito mais bonito.
— Ora, a senhorita tem pouco amor pela capital, não? Pois eu
estou farta de viver aqui, assim que eu me casar com o meu Lorde
Houghton, falarei para vivermos em Londres. Estou ansiosa para ir
embora daqui.
Houghton acenou para Heloise, que acenou de volta. Nunca vira
um homem tão forte e grande parecer se derreter por uma mocinha.
— Agora falta Lilian e Marian.
E eu, pensou Julia, mas sem muita esperança de se enamorar
por alguém daquele círculo social tão pequeno. Lorde Houghton era
o único homem elegível, mas ele já pertencia a Srta. Heloise Smith.
Realmente, Londres tinha suas vantagens quando o assunto era
conhecer pessoas novas.
Já que o espartilho lhe tirava o fôlego, Julia manteve um ritmo
mais lento ao seguir Heloise para a tenda onde Lilian e Marian
estavam. Um criado lhes servia o que parecia ser sorvete em taças
e limonada gelada. Ela só queria se sentar e ficar parada até ir
embora, qualquer esforço acabava com seu fôlego.
Quando chegou debaixo da tenda, rapidamente se sentou
próxima às moças e se recostou na poltrona macia. Tentou soltar o
fôlego, mas a maldita lingerie não dava espaço para que seus
pulmões expandissem o bastante e ela mal respirou. Aceitou uma
taça de sorvete de morango e o comeu lentamente, só para depois
perceber que as três moças a olhavam curiosa.
— A-Ah — ela riu nervosa e deixou o sorvete de lado — É um
prazer revê-las.
Marian e Lilian se entrolharam, Heloise pigarreou para as duas
e sorriu para Julia com toda a simpatia do mundo.
— Então, Srta. Wilson — ela uniu as mãos no colo — por
quanto tempo pretende ficar em nossa pequena cidade? Há de se
acostumar que aqui as únicas coisas para se fazer são os saraus,
de resto... Ah, um aborrecimento. A não ser que seja o tipo
naturalista, temos uma feira de jardinagem toda primavera.
— Em breve terão a temporada para ir — Julia as acalmou —
Mas ficarei aqui por um ano, não voltarei até o próximo verão.
Pretendo ficar no campo.
As três arregalaram os olhos.
— Mas um ano inteiro? — Marian perguntou, o olhar abaixando
para o abdômen de Julia sutilmente antes de voltar a atenção para
seu rosto.
Julia controlou a vontade de bufar em chateação. Aquelas três
só pareciam falar de Londres e olhá-la como se estivesse com o
bastardo do príncipe na barriga.
— Eu posso caminhar pelo seu gramado, Srta. Smith? — Julia
perguntou, levantando-se mais dura que uma árvore — Tem um
lindo jardim.
— Claro! — Heloise corou de animação — Fique a vontade,
Srta. Wilson. Os nossos jardins são os mais belos de Chester. De
todo o condado!
Com um sorriso bastante falso, Julia deixou a tenda,
lamentando por se afastar do delicioso sorvete. O gramado da casa
dos Smith era vasto e os convidados estavam espalhados,
conversando em duplas ou trios. Heloise tinha razão quanto a
beleza de sua casa era realmente um belo recanto florido e
arborizado. Era como se estivessem em uma clareira, embora Julia
pudesse ver que atrás das árvores havia mais campo.
Sua tia Gladys havia se instalado com algumas das matronas
locais, sorrindo e se abanando com a animação. Em meio a
animada conversa, ela olhou para a sobrinha e acenou com carinho.
Julia pode apenas sorrir e balançar a cabeça.
Estava começando a se acostumar com o ritmo de sua
respiração precária quando viu Lorde Winsford chegar ao gramado
junto do mordomo, sorrindo para o criado e agradecendo com um
aceno firme.
Ela voltou a respirar com dificuldades assim que Winsford a viu
e acenou para ela como quem acena para um amigo do outro lado
da rua.
O homem estava dando abertura para ela se aproximar e os
dois se conhecerem, finalmente. As coisas poderiam fluir com
naturalidade.
Mas aquele não era um bom dia. Ela mal respirava e ficar
nervosa ao lado dele só pioraria seu estado.
Definitivamente, aquele não era um bom dia.

***

Lá estava ela, mais adorável que da última vez. As cores claras


de seu vestido ficavam bem com seus cabelos, embora mal
pudesse ver os fios por debaixo do chapéu que a protegia do sol.
Julia era uma jovem mulher muito atraente, havia uma delicadeza
em sua aparência que a deixava elegante. Alguns poderiam chamá-
la de frágil, mas, aos olhos de Winsford, ela parecia uma criatura
angelical. Um tipo de beleza aristocrática de quem fora feita para ser
uma dama. E ela seria a sua dama aristocrática, sua marquesa.
Já faziam longos meses desde que ficara admirando uma
mulher.
Encarar as mesmas pessoas era desgastante para Winsford,
por isso adorava ir até Londres durante a temporada cujo os rostos
sempre eram novos. Apesar de seu pouco sucesso com o sexo
oposto, ele gostava de admirar as belas debutantes anualmente,
esperando se encantar por alguma e ter algum sucesso. Os flertes
não duravam muito, parecia que algo nele não as atraía tanto. Ou
ele não se empenhava tanto como deveria.
Era melhor não entrar em assuntos complicados.
No entanto, estava em Chester e admirava apenas uma única
mulher. Price tinha razão, quem se importa com as leis? Julia Wilson
era uma linda solteira e ele queria conquistá-la.
Ela o cumprimentou com uma mesura muito firme, voltando
para uma posição muito ereta. Estava um pouco corada, mas não
da forma que ele estava acostumado a ver em senhoritas tímidas.
— É um prazer revê-la, Srta. Wilson.
— O prazer é meu, L-Lorde Winsford.
— A senhorita está linda hoje. Posso ser repetitivo, mas não
consigo mentir sobre o que vejo.
Ela corou um pouco mais e abaixou o rosto. Winsford ficou
satisfeito, não havia nada como fazer uma mulher corar.
— O senhor t-também, meu lorde.
Assim que terminou de falar, Julia inspirou e começou a se
abanar. O rosto ficou um pouco mais vermelho e ela mantinha os
lábios entreabertos, respirando lentamente.
— A senhorita está bem? — Winsford começou a se preocupar
— A senhorita quer um pouco de água fresca...?
Julia fez que não e abriu um sorriso nervoso.
— Importa-se de caminhar comigo? — ele perguntou — O dia
está bonito para uma caminhada, não?
Julia arregalou os olhos, olhando ao redor com certa urgência.
— É claro, não parece apropriado, eu sei — Winsford
rapidamente se explicou — Mas os Smith tem um belo jardim, a
senhorita gosta de jardins?
Ela fez que sim, abanando-se mais.
Algo não estava muito bem, Winsford percebeu. Julia parecia
perturbada com algo.
É claro, ele estava a incomodando tal como incomodara Tamsin.
— Se a senhorita não quiser me acompanhar, não há problema
— ele continuou a se explicar — Podemos chamar uma das moças.
— A Srta. Smith.
— É claro, ela pode nos guiar pelo jardim. Quer que eu vá
chamá-la?
Julia assentiu rapidamente, respirando com agilidade e se
abanando devagar.
Winsford nem precisou dar um passo, Heloise estava os
observando de longe, junto de seu irmão e Lilian. A jovem
reconheceu o olhar do marquês e caminhou até os dois
animadamente.
Julia abriu um sorriso simpático para Heloise, inspirando
profundamente.
— Chamou, Lorde Winsford? Bem vindo ao nosso adorável
convescote!
Ele agradeceu com um aceno de cabeça.
— Gostaria que guiasse a mim e a Srta. Wilson pelos jardins de
sua casa, se não se incomodar.
Heloise ficou ainda mais alegre.
— É claro, mamãe plantou novas mudas e não há nada que ela
queira mais do que os convidados vendo seu trabalho.
Julia sorriu outra vez, indicando o caminho com o braço.
Ela estava estranhamente muda, andando lentamente e
absurdamente ereta. Enquanto que Heloise movia-se com
graciosidade e leveza, deslizando pelo gramado enquanto falava
sem parar sobre cada detalhe dos grandes jardins da mansão.
Ao redor da casa haviam canteiros com muretas que formavam
belas curvas, desenhando o jardim em voltas coloridas de arbustos
verdes e flores. Ao chegarem na lateral esquerda, um caminho de
pedras rubras os levou até um portão de metal branco e um muro
baixo, coberto por trepadeiras e flores.
— Eu adoro vir aqui — Heloise explicou, indicando um banco de
madeira recostado no muro, assim que entraram no espaço murado
— Agora a senhorita pode vir também, Srta. Wilson. Podemos vir
juntas, eu estava pensando em cultivar orquídeas. Adoraria se a
senhorita me ajudasse.
Julia agradeceu com um sorriso, meneando a cabeça
graciosamente.
— A senhorita está tão calada — a anfitriã riu baixinho — Não é,
Lorde Winsford?
— Tenho certeza de que a Srta. Wilson tem seus motivos para
tanto silêncio. Está sempre tão quieta.
— É verdade, meu lorde. Oh, querem ir até a estufa? Papai
comprou mudas do oriente e da África que crescem em climas
abafados.
— Não! — Julia gritou, alarmada, ficando da cor de um tomate
assim que os dois a encararam em surpresa — E-Eu gostaria de ver
o restante do lado de fora, por favor.
Heloise anuiu lentamente, dando um riso nervoso para o
marquês. Winsford continuou curioso diante do estranho
comportamento de Julia.
— Mamãe planta diversos tipos de suculentas — Heloise voltou
a falar, apontando para um canteiro, muito bem escondido depois de
um arco de pedra ao lado da estufa — Sabe o que são?
Julia assentiu, abanando-se e inspirando profundamente mais
uma vez. Seu rosto começou a ficar pálido.
— Esse aqui... Eu acho — Heloise tocou o queixo, falando
sobre uma suculenta elaborada e repleta de folhas em forma de
rosetas em um tom escuro de rosa — que veio da América.
— América? — Winsford se inclinou para olhar — Ela veio de
muito longe, não?
— Quando chegou estava terrivelmente negligenciada. Mas ela
cresceu e se recuperou, vê? Chama-se Rosa de Pedra, agora
temos dezenas. Algumas suculentas são facílimas de se multiplicar!
— O museu de Londres tem uma área apenas sobre botânica, a
senhorita tem de ir na próxima vez — o marquês arrumou a postura
e voltou a atenção para Julia — Srta. Wilson...?
Agora Julia estava ficando ainda mais pálida, a mão no peito e o
leque no chão. Ela olhou alarmada para Heloise, balançando a mão
energicamente.
— M-Minha tia...
— Sua tia? — Heloise balançou a cabeça, nervosa — Srta.
Wilson, está tudo bem?
— C-Chame minha tia...
— C-Claro! Esperem aqui!
A mocinha correu para fora do jardim, prometendo voltar o mais
rápido possível. Enquanto isso, Julia se apoiou na vidraça do lado
de fora da estufa, tentando inspirar profundamente.
— Srta. Wilson, o que houve? — Winsford perguntou,
preocupado — Venha, vamos sentar ali.
Ela fez que não, tentando respirar pela boca e cambaleando
contra a parede de vidro novamente. Winsford rapidamente a
segurou pela cintura, ignorando todas as boas maneiras que tinha
diante das mulheres.
— D-Desamarre meu vestido, por favor... — ela tentou alcançar
as costas com a mão — E o e-espartilho.
— Eu não poderia — Winsford começou a ficar mais nervoso
que ela, tentando segurar uma lânguida Julia em seus braços sem
que a tocasse muito, mas ela havia caído mole contra seu peito —
N-Não é apropriado. Eu posso levá-la até sua tia. Ou chamar uma
criada.
Uma mãozinha delicada o segurou pela lapela da casaca negra,
violentamente apertando o tecido.
— E-Eu não consigo respirar...
Winsford assentiu rapidamente, ajudando Julia a se sentar no
banquinho de madeira e a deixando de costas para ele.
O vestido, certo. Seria fácil. Um vestido feminino. De mulher.
Ele tocou a parte de cima, os dedos raspando na pele nua das
costas dela que estava à mostra. O vestido se fechava em dezenas
de ganchos miúdos e ele os abriu o mais concentrado que
conseguia, revelando um espartilho vermelho escarlate, com laços
dourados.
Winsford se concentrou em sua tarefa de salvar Julia antes que
ela desmaiasse ali mesmo. Mas a visão de sua lingerie o deixou
ainda mais nervoso, a delicadeza de sua pele clara em contraste
com o tecido chamativo era uma combinação perigosamente
sedutora. Havia ali alguns sinais claros, frutos do toque do sol na
pele. Clara, tão clara.
Qualquer toque a marcaria de tão delicada. Winsford queria
beijar sua coluna inteira.
A chemise branca escapava no topo do espartilho, rendas
pequenas e complexas por toda a costura, entrelaçada por fios de
cetim vermelho. Era uma visão linda, a das roupas de baixo de uma
mulher e sua pele intocada.
Julia inspirou, de repente, mal conseguindo ar o suficiente.
Ele voltou à emergência, tentando analisar a situação. Não era
hora de desejar uma mulher, faria aquilo depois.
— Temo que eu não saiba desamarrar isso, Srta. Wilson.
— No meio... — ela tentou olhar para trás, mas o chapéu bateu
contra o rosto de Winsford — P-Perdão...!
Ele puxou o chapéu, nervoso, e o tacou no chão. Mechas loiras
caíram na nuca de Julia, perdendo-se do penteado, tocando a pele
pálida até onde o vermelho vivo de sua roupa íntima brilhava.
Winsford engoliu em seco, acabando por abrir mais o vestido
até revelar o laço no centro do espartilho. Desamarrou rapidamente,
puxando o cordão de qualquer jeito até sentir os pulmões de Julia se
expandirem em um longo e aliviado suspiro.
Ela respirou fundo uma sequência de vezes, segurando seu
vestido. Repentinamente, ela congelou, arrastando-se para a ponta
mais distante do banco.
— Obrigada... E-Eu não conseguia respirar.
Winsford, constrangido, abaixando-se para devolver o chapéu
para sua dona.
— Fico feliz que esteja be-
— Cristo! — uma voz feminina exclamou.
Winsford imediatamente se pôs de pé, não sabendo se ajudava
Julia a levantar ou se encarava as senhoras e o senhor na sua
frente.
Gladys, Heloise e o Sr. e a Sra. Smith. A última estava vermelha
e horrorizada, Heloise mantinha a mão no peito, o Sr. Smith parecia
irritadíssimo enquanto que Gladys se abanava violentamente rápido.
— Não é o que parece, foi uma emergência — Winsford se
aproximou de Gladys — Lady Hanes-
— Mas o que sua sobrinha veio fazer aqui em Chester, Lady
Hanes? — Sr. Smith perguntou, nervoso — Primeiro faz a Srta.
Stewart passar um vexame na frente de todos e agora está...
Seminua com um homem!
— N-Não é isso! — Julia se levantou rapidamente, o vestido só
não caindo até os cotovelos por conta dos enchimentos nas
mangas.
Winsford, instintivamente, tentou cobri-la levantando o vestido,
mas aquilo só piorou quando Julia o empurrou para longe quase que
de imediato. Seus olhos estavam molhados e o rosto vermelho de
pura vergonha.
— Minha sobrinha é uma moça decente — Gladys envolveu a
sobrinha com os braços, escondendo a moça em um abraço —
Tenho certeza de que há uma explicação!
— Sim, sim — Heloise engoliu em seco, tentando acalmar o pai
— A Srta. Wilson parecia indisposta e pediu que eu chamasse Lady
Hanes, foi isso, papai. Ela estava até roxa!
A Sra. Smith resfolegou baixinho, balançando a cabeça em
desacordo.
— E você não pensou que poderia ser uma desculpa para
ficarem a sós, Heloise? — a mulher estava mais desapontada do
que horrorizada — No meu jardim... Nem mesmo Hector faz essas
coisas!
A mocinha ergueu as sobrancelhas, como se a hipótese
lentamente começasse a fazer sentido em sua cabeça. Então olhou
para o marquês e Julia, as sobrancelhas unidas em um sinal de
lamento e depois franzidas em raiva.
— Deve estar mesmo grávida e fugiu de Londres, vindo para
nossa tão pacata Chester. A senhorita veio para nossa cidade
enchê-la de pecados, Marian tem razão.
Winsford deu um passo à frente, começando a se irritar com
aquela confusão toda.
— Não vou permitir que falem assim como uma mulher tão
inocente — ele se pôs a frente de Julia, tirando sua quase falta de
roupa dos olhos dos Smith — E não quero ter de baixar meu nível e
pontuar as vivências passadas nada inocentes presentes na sua
família.
Os três Smiths ficaram tão ultrajados que quase estavam roxos.
Não demorou um segundo para os olhos de Heloise ficarem
encharcados. Mas ela conteve as lágrimas, fungando baixo e
tremendo de raiva.
— Eu pensei que o senhor fosse um homem bondoso, Lorde
Winsford!
Pronto, agora ele ofendera uma jovem adorável como Heloise.
Não tinha como ficar pior.
— Tenho certeza que nada aconteceu! — Gladys se pronunciou
outra vez, mais nervosa que todos juntos — Minha sobrinha é
ignorante como uma freira, não é, querida? Diga para eles. Nunca
nem mesmo dançou com um homem!
Julia soltou um sozinho de reprovação, ficando ainda mais
constrangida ao que uma lágrima escorreu de seus olhos. Winsford
começou a se sentir impotente diante daquilo tudo. A forma como
estavam expondo Julia ao ridículo era absurda, aquilo tudo podia
ser resolvido numa sala de estar após deixarem ela se recompor em
particular.
— Lady Hanes, não vamos constrangê-la ainda mais, por favor
— o marquês tentou soar o mais calmo que pôde — Ninguém
duvida da inocência da Srta. Wilson.
Sr. Smith cruzou os braços. A Sra. Smith manteve a filha
chorona debaixo dos seus braços, escondendo seu rosto molhado
dos demais.
— Pelo tempo que os dois estão aqui, longe dos convidados, e
o comovente estado da Srta. Wilson, não há nenhuma outra
explicação que fará com que os convidados acreditem na inocência
dela.
Julia exclamou em sua própria defesa, segurando firme o
vestido.
— E-Eu est-tava sufocando! L-Lorde Winsford foi um c-
cavalheiro e me ajudou!
Gladys deu batidinhas nervosas no ombro da sobrinha,
cochichando algo que Winsford foi incapaz de compreender. A
jovem fungou, duas lágrimas grossas escorrendo de seus olhos.
— Não, tia — ela sussurrou, chorosa — Eu não quero. Não
assim.
Que maldição. Se ele não a ajudasse a mulher teria desmaiado
ou coisa pior, mas vê-la em uma situação tão constrangedora era
tão ruim quanto. E suas lágrimas de vergonha estavam lhe partindo
o coração. Como podiam tratá-la daquela forma por razão nenhuma
senão o imenso controle que tinham sobre o conceito de pureza
feminina?
Heloise não era mais pura já havia tempo demais e era bom que
casasse logo com o noivo. Tendo Price como secretário, não havia
nenhum mexerico que não passasse pelos ouvidos de Madame
Rutherford e fosse parar na mesa do marquês. É claro que a cidade
inteira sabia, ele não precisou do secretário para ouvir aquela
história.
Winsford tirou sua casaca e, um tanto acanhado, deu para que
Julia se cobrisse. Gladys a ajudou a colocá-la sobre os ombros.
— Parece que sabemos o mais sensato a se fazer, Lady Hanes
— a Sra. Smith disse, diplomática, parecendo bastante acostumado
com aquele tipo de situação — Casamento é o mais adequado,
mesmo se essa história de... Sufocamento for verdade, Lorde
Winsford viu porções de sua sobrinha que ninguém deveria ver.
Winsford ergueu as duas mãos na altura do peito saindo em
defesa.
— Asseguro-lhe que não vi nada além de tecidos e babados,
Sra. Smith. A Srta. Wilson nunca esteve tão preservada e eu não
poderia forçá-la ao matrimônio por motivos como esses.
Julia assentiu veemente, fungando e secando o rosto. Heloise
havia caído em silêncio, um tanto tensa e quase roendo as unhas
enluvadas.
— Então o senhor vai faltar com a própria honra? — o Sr. Smith
perguntou com desdém — Um homem não deixa uma mulher à
mercê da sociedade, marquês. Ela nunca arrumará um marido se
isso sair daqui.
Winsford franziu o cenho em um gesto agressivo.
— Eu espero que isso não saia daqui, Sr. Smith.
— Podemos chegar a uma boa resolução! — Lady Hanes
ergueu o indicador, ansiosa — Um acidente, não passou de um
acidente!
— C-Com certeza isso é um acidente, tia — Julia murmurou,
desgostosa — E eu não quero me casar com o marquês. S-Sem
ofensas.
Winsford maneou com a cabeça em um sinal de simpatia,
embora tenha ficado um tanto desapontado com a clara rejeição da
adorável Júlia.
— Heloise, onde você- Oh! — Lilian parou assim que
atravessou o portão de ferro, os olhos arregalados — L-Lorde
Winsford?
— Não... — Julia suspirou baixinho.
O Sr. Smith inspirou com calma assim que Lilian virou nos
próprios calcanhares e saiu correndo.
— Aquela menina é filha da maior fofoqueira da cidade — o
homem bufou e voltou a olhar para Winsford — É melhor o senhor
lidar com a situação, Lorde Winsford. E que os três se retirem de
minha casa, pois não quero minha filha afetada por tal escândalo.
— A Srta. Smith já tem o próprio escândalo, meu senhor —
Winsford disse, começando a se irritar com a petulância alheia —
Não permito que fale mal da Srta. Wilson sem ela ter feito nada.
O homem ficou injuriado.
— E quem o senhor pensa que é para falar da minha filha?!
— O marquês e dono de muitas das terras por aqui, inclusive
dessa onde eu estou pisando. Esqueceu-se que seu secretário paga
aluguel para mim?
— Coloque-me na rua, então, se for essa a consequência de
defender a minha filha!
— Senhores! — Lady Hanes balançou o leque em desespero —
O Sr. Smith sabe que sou uma mulher de respeito e que isso tudo
jamais deverá afetar a mim nem a minha sobrinha. Não passou de
um mal entendido.
O homem bufou, ofendido.
— A sua sobrinha arruinou a tarde da minha esposa e Lorde
Winsford ofendeu minha filha para além do aceitável. É melhor que
ela não arruine a si mesma.
Winsford discordou junto de um pesado suspiro, voltando sua
atenção para Gladys e Julia. A mais nova estava em um misto de
tristeza e fúria, riscos de lágrimas secas em seu rosto.
— Vamos conversar a sós, Lady Hanes — o marquês disse com
paciência — Não queremos mais constrangimento para a Srta.
Wilson.
CAPÍTULO 6

Julia tirou os chinelos de algodão e os tacou longe, chutando na


direção da janela. Furiosa, ela se deitou na cama e se cobriu até o
nariz, virando-se de costas para Gladys que assistia tudo de pé ao
lado da cama. Com tantos filhos, a mulher já estava acostumada a
birras, embora não esperasse que elas ainda acontecessem em
alguém de vinte e dois anos.
O dia mal estava na metade, o sol ainda brilhava no céu, mas
tudo fora arruinado por causa de um espartilho apertado. Sua tia
nunca entenderia o que ela sentia, ninguém entenderia.
— Eu não posso me casar com ele, tia. Não assim, sem ele me
conhecer.
— Eu sei que nada disso foi o planejado, mas, minha querida...
Julia se enrolou na cama, não queria chorar, mas estava tudo a
ponto de escapulir. O constrangimento que passou na casa dos
Smith ainda a deixava com vontade de sumir, mas o choro era por
outro motivo.
A mão trêmula de Gladys a tocou nos cabelos soltos assim que
ela se sentou na cama.
— A culpa toda é de Helen! — Julia exclamou, tomada por
lágrimas — Se ela tivesse apertado menos, eu não teria passado a
festa inteira sem ar... Eu quase desmaiei, pedi que Lorde Winsford
me ajudasse. Ele recusou pelo bem da decência, mas eu estava
quase morrendo.
Gladys assentiu com enorme pesar.
— Eu acredito em você. Não deveria ter ordenado que ela
apertasse o espartilho, eu só não queria que andasse curvada,
minha filha. Você foi criada para ser uma dama, tem de andar com a
confiança de uma.
Julia riu em um misto de tristeza, rolando na cama e encarando
o forro da cobertura da cama.
— Eu não acredito que eu vou ter que me casar com um
homem talvez nunca nunca vai me amar só porque a senhora acha
que eu ando curvada... Eu devo rir ou chorar?
— Não fale assim, Julia — a mulher lhe afagou os cabelos
novamente — Como pode ter tanta certeza de que ele nunca irá
gostar de você?
Julia bufou baixinho, virando-se de lado e olhando na direção
das janelas altas. Só aquela pergunta a fez querer chorar outra vez,
comparando-se com todas as moças em que já viu o marquês
flertando.
— Eu não faço o tipo dele, tia... Eu sei que não. Não sei se me
conhecendo ele mudaria de ideia.
— Bobagem, está deixando sua ingenuidade cegá-la — Gladys
deu um muxoxo — Lorde Winsford é um dos homens mais gentis
que conheço, vai gostar de viver com você. Vai respeitá-la e honrá-
la.
E amá-la?
— Eu quero ficar sozinha — Julia murmurou — Pensar no que
eu vou fazer. Posso voltar para Londres e fingir que isso nunca
aconteceu.
— Aquelas pessoas todas frequentam Londres, Julia.
— Posso ir viver em Manchester com minha tia Amélia, o
castelo é enorme, ninguém nunca se lembrará de mim.
— Não diga bobagens, Julia.
Julia virou-se para a tia, enfezada e vermelha.
— A senhora está feliz! É claro que está... Queria me casar com
ele em nome do meu futuro, todo o meu constrangimento de hoje
não conta! Heloise é uma... Falsa! Se fez minha amiga, mas teve a
ousadia de dizer que eu fugi grávida.
— Eu não estou nem um pouco feliz com essa confusão —
Gladys saiu em sua própria defesa, bastante séria — É claro que eu
acho que ele seria um bom marido, mas eu não fico feliz que os dois
tenham de se casar forçosamente. Ainda mais as custas do seu
constrangimento na frente dele e do Sr. Smith.
— Sr. Smith... — Julia grunhiu com rancor — Foi ele que insistiu
nessa bufonaria toda. Eu vim aqui parar fugir de todas essas coisas
da alta-sociedade e boas maneiras, mas tudo foi por água abaixo
em semanas.
A condessa lamentou com um muxoxo, tocando o ombro da
sobrinha outra vez e lhe dando um aperto desajeitado.
— Julia...
— Eu quero ir para casa — Julia murmurou, tristonha — Posso
soar como uma criança, mas quero meus pais. Sinto falta deles...
Não me colocaram em um espartilho apertado. E-Eles gostam de
mim do jeito que eu sou, gostam dos meus vestidos claros, das
minhas joias pequenas, da minha solteirice.
— Eu também gosto de você, minha querida — Gladys
lamentou, impotente — Estava apenas pensando em seu futuro.
Não fique chateada com a sua tia querida.
Ao ver que Julia escolhera o silêncio, a tia se retirou do quarto
um tanto relutante de deixá-la sozinha.
Julia esperou ouvir a porta fechar para levantar e fechar as
cortinas, bloqueando o sol. Terminou de soltar os grampos de seus
cabelos, deixando que as madeixas claras caíssem pelas costas.
Era certo que se casaria com Winsford, mesmo que ela fizesse
birra. Julia sabia que aquela era a opção mais sensata antes que
Lilian e Heloise saíssem por aí falando que ela carregava um
bastardo. Um noivado com Winsford deveria fazê-la dançar de
alegria pela casa, afinal, ao casar com ele teria permissão para
beijá-lo, tocá-lo e conversar com ele quando quisesse. Seria sua
esposa.
O problema era que não havia nada de romântico em ter de
casar com homem por causa de boas maneiras, sem nenhum
pedido, sem nenhuma paixão os envolvendo. Foi assim que sua tia
Lucy se sentiu ao se casar com Aiden? Mas os dois se apaixonaram
um pelo outro, Julia pensou, caminhando pelo quarto.
Ela já estava apaixonada por Winsford, um sentimento que
manteve dormente por alguns meses até reencontrá-lo ali em
Chester. Mas ele mal a conhecia. Ora essa, Julia também mal o
conhecia! Tudo o que via nele era o homem gentil e simpático de
sempre, nas vezes em que o observou de longe nos salões
londrinos.
E se ele não fosse aquilo que mostrava ao público? Se fosse
pior.
Julia enrolou uma das mechas do cabelo no dedo, questionando
sua paixão por Winsford. Sem sentido e tola, por mais que tenha
parado de pensar naquilo desde a última temporada. Ficara tão
magoada por vê-lo tão atraído por Tamsin, cujo interesse nunca
esteve voltado para ele, que não quis mais saber de amor,
casamentos e Londres.
Foi parar ali, em Chester, e agora estava em uma saia justa com
Winsford.
Ela deu um longo suspiro, sentando-se de frente para a
penteadeira e se esticando para abrir uma brecha da cortina. Olhou-
se no espelho, metade do rosto iluminado pelo sol, fazendo seu olho
direito parecer um cristal azul e os cabelos, quase como o luar.
Ainda tinha o que pensar, havia a chance de se casar com
Winsford e ele nunca se apaixonar por ela, acabando por gostar de
outra mulher. Um casamento infeliz onde ela teria de suportar o fato
do marido ter uma amante e ela não ser nada além de uma
produtora de herdeiros. Aquilo seria insuportável, Julia gostava de
pensar que era mais do que uma moça pacata. Ela tinha desejos,
talentos e ambições.
Sem contar que aquele hipotético futuro de receptáculo de
bebês a fazia pensar em um de seus maiores medos: a gravidez.
Um assunto que ela teria o trabalho de pensar sobre se casasse
com o marquês, por enquanto ela não estava noiva de ninguém.
Não ficaria grávida num futuro próximo, não ainda.
Era muita coisa, tinha certeza que tudo era mais simples na
cabeça de um homem. Winsford não tinha nada a perder. Não
mudaria de casa, nome, nem mudaria seu corpo para habitar uma
criança.
Desanimada, ela olhou para a cama, onde a casaca do marquês
repousava ao pé. Julia pegou a peça de roupa para si, vestindo-a e
voltando para a cama, onde conseguiu tirar um cochilo após tanto
constrangimento em um dia só.

***

Winsford deveria estar satisfeito, afinal, muito provavelmente se


casaria com a Srta. Wilson. Uma mulher linda e que parecia ser
inteligente. Mas daquela forma tudo parecia muito errado, era claro
que a jovem não estava nem um pouco desejosa de casar com ele.
Ele realmente nunca teria sorte no amor. Primeiro aquela
mocinha dos estábulos quando ele tinha dezesseis anos, que não
aceitou seus sentimentos. Depois a filha do advogado de seu pai,
aos vinte anos, que guardava consigo o segredo da
homossexualidade e lhe pediu encarecidamente que não contasse
para ninguém. Ele guardou o segredo, não arruinaria a vida da
jovem. Sem falar em Tamsin, que lhe deu falsas esperanças por três
meses para ele descobrir depois que ela ficara com outro homem
durante todo o tempo. Não pensava que a culpa fosse das moças,
ninguém era obrigado a gostar de outro alguém, mas ele se sentia
magoado pela própria falta de sucesso.
Com um suspiro cansado, Winsford coçou a cabeça e bagunçou
os cabelos loiros até perceber Gladys entrar na sala de visitas.
Levantou-se de imediato, mas a mulher lhe fez um gesto breve para
que se sentasse novamente.
— Ela não está muito abalada, está? — ele perguntou — Eu
sinto muito.
A condessa o tranquilizou com um aceno.
— Irritada, sim. Não vou mentir, o senhor para mim seria um
marido perfeito para Julia. Ela é uma moça de hábitos solitários,
precisa de um marido gentil.
Winsford se remexeu no sofá e perguntou com muita
delicadeza:
— Ela sofre de algum mal da alma...? Melancolia, essas coisas.
Glady fez que não, um tanto surpresa com a pergunta.
— Julia apenas é muito quieta. Creio que ficar sozinha não a
incomoda, por isso um homem ocupado, mas bondoso, como o
senhor seria boa companhia. Mas a questão, meu lorde, é que ela
sabe que eu jamais continuaria tentando unir os dois se ela não
gostasse do senhor. Não a quero infeliz.
— Naturalmente — Winsford pigarreou baixo, movendo-se para
arrumar a casaca e parando para perceber que ainda estava sem
ela — Bem... O que faremos se ela não deseja a união? Ela pode
retornar para Londres, tenho certeza que esse pequeno escândalo
não sairia daqui.
Gladys balançou a cabeça, olhando para a lareira apagada na
outra extremidade da sala. Pensativa.
— O senhor acha mesmo que assim que todos retornarem à
capital para a temporada as histórias não começarão a circular?
Winsford assentiu. A vida das mulheres era difícil das maneiras
mais estúpidas. Ser pego com um homem a arruinava, mas ele
sendo pego com uma mulher nada mais era que uma conquista.
— Creio que ela não queira me ver — ele deduziu — Posso
retornar ao longo da semana para falar com ela.
A condessa fez que sim, pesarosa.
— Ela vai aceitar, não se preocupe. É adulta, sabe o que é certo
e errado. Sabe que o senhor é um ótimo partido.
Ele se levantou, despedindo-se de Gladys com uma reverência
breve.
— Eu me casaria com ela mesmo sem o escândalo, Lady
Hanes. A Srta. Wilson é uma mulher encantadora, apesar de não
conhecê-la muito.
Gladys sorriu, mas não parecia muito feliz. Deixou que o
marquês se retirasse em silêncio.

***

A primeira coisa que Winsford viu quando entrou em casa foi


seu secretário mais ansioso que debutante na fila da corte real.
Queria dormir, mesmo que ainda fosse dia. Já que havia tirado o dia
de folga para ir até a casa dos Smith, mas tudo havia dado
terrivelmente errado.
— Meu lorde, já retornou? Como foi a festa?
— Péssima — Winsford passou direto por Price e subiu as
escadas.
O homem esbelto o seguiu apressado, arrumando os óculos e o
lenço branco no pescoço.
— Aconteceu alguma tragédia com sua roupa? Seu valete ficará
horrorizado ao ver que está sem sua casaca.
O marquês resmungou e subiu direto para o quarto, onde não
esperou que Price ficasse de fora. O homem o seguiu da mesma
forma, cruzou os braços como uma matrona e o olhou com
insolência.
— Desse modo nunca teremos um herdeiro, meu lorde. O
senhor precisa ter um herdeiro, a promessa de que terá alguém
para ficar em seu lugar antes que seus nervos virem pó!
Os nervos dele foram pulverizados pelo Sr. Smith naquela
manhã.
— Acontece, meu caro secretário, — Winsford desabotoou o
colete — que talvez tenhamos um casamento.
— O senhor conquistou a jovem Srta. Wilson? — ele perguntou,
desviando do colete do patrão.
— Não, fomos pegos em um momento que parecia bastante
inadequado e agora tenho de desposá-la, mas parece que a moça
não está interessada nesse casório e se trancou no quarto.
Price deu um muxoxo desanimado e cruzou os braços,
pensativo.
Winsford aproveitou do raro silêncio do secretário e foi para
atrás do biombo, onde vestiu-se com um roupão.
— Mas foi inadequado o bastante para que ela não pudesse sair
livre da situação?
— Acho que a situação poderia ter sido contornada sem que
tivéssemos de nos casar — o marquês se deitou em sua cama e
puxou um livro que estava no criado mudo, debaixo de diversas
bolas de papéis — Mas, o Sr. Smith parece que quer que a filha
deixe de ser o assunto da cidade e passe a ser o meu casório sob
circunstâncias duvidosas.
Price lamentou com um aceno de cabeça.
— A pobre Srta. Smith não mereceu o que lhe aconteceu, meu
senhor. Uma moça tão delicada e bondosa...
— Tenho certeza de que ela e Lorde Houghton estavam cientes
da situação em que se envolveram — ele abriu o livro na página
marcada.
Price pigarreou.
— Meu senhor, acredito que o senhor pense como o resto da
cidade.
Winsford abaixou o livro apenas o suficiente para que seus
olhos aparecessem.
— Presumo que saiba da verdade então, por causa de Madame
Rutherford.
O secretário assentiu em um lamento.
— Infelizmente a Srta. Smith foi atacada por um dos criados da
família, mas decidiram que seu até então inocente amor por Lorde
Houghton havia sido devassado pela paixão de dois. Eu também
acredito que assim seja melhor, se me permite dizer, para que ela
não seja obrigada a reviver a história sempre que mencionarem.
Winsford abaixou o livro por completo. Heloise era muito jovem,
delicada como uma flor. Só de imaginar o inferno que ela pode ter
vivido o fez querer vingá-la de alguma forma.
— E onde está esse criado?
— Morto.
— Morto?
Price assentiu, indiferente.
— Ouvi do vigário que o encontraram morto, resultado de uma
surra bem dada.
— Justo.
Price maneou com a cabeça.
— Houghton é um bom homem, sei que gosta da Srta. Smith
desde que ela virou uma moça — o marquês disse, pensativo —
Alguns homens são desprezíveis. Ela logo terá a proteção de
Houghton.
Winsford estremeceu só de pensar em Julia sofrendo de
qualquer mal.
Ele logo tratou de parar de pensar naquilo e em Julia. A mulher
não o queria, infelizmente. Uma parte dele estava magoada com a
reação violenta dela frente a possibilidade de casório. Embora não
estivesse apaixonado por ela, sentia-se ansioso por saber que a
veria nos eventos sociais e saber que ela não o queria era tal como
uma pequena rejeição. E pensar que estava decidido a cortejá-la.
Aquela situação só lhe mostrava que, no final do cortejo, ela não o
aceitaria.
Bem, talvez aquilo fosse estar apaixonado. Sempre era daquele
jeito. Encantava-se, tentava flertar com a moça e era rejeitado.
Talvez a culpa não fosse dele, embora Winsford nunca tenha sido
dado à autodepreciação. Provavelmente dera a má sorte de se
apaixonar por mulheres que não gostaram dele, o que acontece
com pessoas no mundo inteiro. Ou ele simplesmente não dava
atenção a elas o bastante, sempre tinha algo a fazer que o tirava de
Londres. Estava sempre ocupado e sabia que deveria dedicar cada
segundo seu a quem estivesse fazendo a corte.
— Um homem sem coração, meu lorde — o secretário lamentou
— Mas... Devo preparar algo para seu futuro casório? Providenciar
a limpeza dos cômodos fechados?
Winsford mal havia levantado o livro novamente e logo teve de
abaixá-lo.
— Não. Deixe-me pensar... Não forçaria o casamento, se ela
não quiser, deixarei que fique livre.
Price assentiu, mas pigarreou baixinho.
— O senhor parece irritado, Lorde Winsford.
O homem mais jovem bufou baixinho e se sentou na lateral do
colchão, tocando o chão com os pés nus.
— Gostaria que a Srta. Wilson se interessasse por mim.
— Talvez se o senhor pudesse passar mais tempo com a
senhorita, meu lorde — Price sugeriu, tomando a liberdade de dar
um passo para perto da cama — Talvez esquecer um pouco a
fábrica e cortejar a moça.
— Eu tentei cortejá-la hoje, mas o maldito espartilho- Não, não
era culpa dela. Mas... Bem, não deu muito certo. Vou esperá-la se
acalmar e decidir o que quer.
O secretário fez um gesto com a mão bastante vago e depois a
colocou para trás das costas em uma pose digna de um mordomo.
— Apenas um terrível acidente do destino, meu senhor. Na
próxima vez que for visitá-la para tratar do escândalo, deveria deixar
claro que está interessado nela. Exaltar as qualidades da moça que,
tenho certeza, são muitas.
Winsford deu um muxoxo impaciente. Price continuou:
— Espero que a Srta. Wilson escolha o casamento, Lorde
Winsford. Precisamos de um herdeiro e o senhor, de uma mulher
para fazê-lo ver o que realmente importa.
— Eu sei. Agora, se não se importar, vá-se embora daqui, Price.
O homem riu consigo mesmo e deixou o quarto, mas não sem
antes permitir que dois gatos entrassem nos aposentos do marquês.
Um gato ruivo, Luke, pulou na cama de Winsford e se deitou
bem nos pés. A outra, tricolor, foi até a poltrona perto da lareira e se
enrolou para dormir ali.

***
Dois dias depois, após recusar falar sobre qualquer assunto
relacionado a matrimônio, Julia aceitou receber uma visita de
Winsford e por um ponto final naquilo. Gladys já estava nervosa
demais para que seus chás fizessem efeito, a ponto de roer as
unhas na frente dos criados.
Mais dias sem respostas e a cidade inteira falaria de Julia como
se ela fosse uma rameira! Lilian já havia dado com a língua entre os
dentes, falando para suas amigas que Julia estava despida junto de
Winsford e parecia que até a reputação do marquês estava
começando a ser revisada também. E se a reputação de um homem
estava em jogo, bom, a coisa era séria!
Pensar que Marian havia feito fofocas sobre ela sem ao menos
conhecê-la... Julia não queria mais nenhum contato com aquelas
moças, nenhuma delas. Achava incrível como a opinião mudava tão
drasticamente diante do que era inapropriado.
Era melhor resolver aquilo e tornar tudo apropriado.
Winsford a esperava na sala de visitas, no mesmo lugar onde
Sir Jonas dera a Marian uma noite de surpresas.
De pé em frente a uma das janelas que dava para os jardins da
frente, ele não a ouviu entrar. Ela ficou quieta no batente da porta,
admirando. O marquês havia trazido um buquê de lírios brancos.
Ela gostava de lírios brancos. Será que Gladys havia lhe
contado aquilo?
Apenas quando Julia pigarreou baixinho que ele se virou,
fazendo uma mesura.
— Srta. Wilson.
Julia o cumprimentou com um sorriso encabulado e nervoso,
estendendo as mãos onde segurava a casaca dobrada do marquês.
— Acredito que isso pertença ao senhor.
Ele olhou para o pano negro.
— Parece que a senhorita cuidou bem dela — Winsford colocou
o pano dobrado debaixo do braço e, um tanto sem jeito, lhe
entregou o buquê — Para a senhoria. Gosta?
Julia pegou o buquê como se fosse a coisa mais preciosa do
mundo.
— Gosto sim, obrigada. São lindas flores.
Ele sorriu daquele jeito lindo de sempre, fazendo-a sentir
milhares de borboletas no estômago.
— Sente-se, por favor, Srta. Wilson.
Julia o fez, olhando para a porta entreaberta da sala de visitas.
Gladys estava nos jardins dos fundos, lendo um bom livro - segundo
ela.
— Desculpe-me pelos dias de silêncio — começou ela — Fiquei
um tanto abalada por tudo acontecer tão de repente.
O marquês aceitou as palavras delas com um aceno educado e
paciente.
— Eu sei que a senhorita deseja um casamento por amor —
Winsford iniciou o tão temível assunto — Lady Hanes comentou
comigo.
— É v-verdade — Julia anuiu, enrolando o indicador na fita ao
redor do papel que segurava o buquê — Por isso, não acho que
deveríamos nos casar. Não quero impedi-lo de conhecer uma
mulher com quem o senhor crie uma história de amor. Talvez o
senhor jamais venha se afeiçoar por mim... E nós dois seríamos
infelizes.
Winsford a olhou com curiosidade.
— O que nos impede de termos uma história de amor?
Ela engoliu em seco. Não havia aquela pergunta no enredo que
fizera em sua mente.
— A Srta. Tucker parece interessada no senhor...
— A Srta. Tucker não passa de uma menina para mim —
respondeu ele, sério.
Julia assentiu delicadamente, sentindo uma comichão em seu
corpo. Então ele não estava interessado em nenhuma das moças
locais, no entanto, ainda queria ter certeza de que não estava
arrastando o marquês para um casamento desagradavel.
— M-Mas a questão, meu lorde... — ela enrolou mais o dedo,
olhando para baixo — A questão é que David ficaria muito bravo.
Sabe, por serem amigos. Se ele ouvir que o senhor me arruinou-
— Eu não a arruinei — Winsford respondeu, sisudo — E David
sabe que eu jamais faria algo com a senhorita.
Julia resfolegou baixinho, voltando a encarar as mãos. É claro
que ela não o agradava nem para interlúdios luxuriantes. Por isso
não deveria fantasiar sobre casar com ele, uma vez que toda aquela
situação não envolvia um pingo de sentimentalismo. Nem luxúria.
Ela não poderia demonstrar carinho nem desejo por ele. Não
haveria nada para aproveitar naquela união.
— Não, não foi isso que eu quis dizer! — o marquês apressou-
se em explicar — A senhorita é muito bonita e não seria ruim... Não,
agora estou soando demasiadamente inapropriado. Eu quis dizer
que a senhorita é uma mulher e eu- Não, não. Eu... A senhorita, hm,
é digna de ser desejada... N-Não, não. Desculpe-me pela falta de
pudor.
Ela riu, não conseguindo segurar o riso mesmo estando muito
constrangida. Ele parecia ser tão sem jeito quanto ela. Quando ela
ergueu o rosto para secar as lágrimas de riso, deparou-se com um
homem adulto corado e envergonhado como um jovenzinho.
Ele era lindo, ela não conseguia suportar. Aquela era sua única
chance de tê-lo com ela, de tentar conquistá-lo. Não deveria deixar
suas inseguranças e medos tirar aquela oportunidade de conquistá-
lo.
Winsford pigarreou, arrumando-se no sofá.
— Srta. Wilson, eu não posso deixá-la ser difamada. Apesar de
toda a inocência da situação, eu vi suas roupas íntimas e... Porções
de sua pele que apenas seu marido deveria ver.
Julia sentiu os dedos dos pés se curvarem dentro de suas
sapatilhas, tamanho o constrangimento que aquelas memórias lhe
causavam. Não só Winsford tivera um vislumbre de sua lingerie,
como o pai de Heloise.
— Acho que nunca mais quero ver o Sr. Smith... — ela
murmurou, mas Winsford a ouviu e deu um risinho abafado — D-
Desculpe-me pela confusão, Lorde Winsford. Por isso não desejo
que o senhor se case comigo porque um... Um homem grosseiro
mandou.
O marquês balançou a cabeça de modo despreocupado.
— Srta. Wilson, eu não poderia deixá-la com um escândalo
assim. Mas se deseja pensar mais sobre o casamento, eu espero.
— N-Não. Eu já me decidi e já o fiz esperar demais.
Ele assentiu, educado.
— O senhor não se importaria de se casar comigo? Quero que
o senhor também possa escolher o que deseja.
Ele riu baixo, o que a deixou ainda mais nervosa. O que havia
de tão engraçado? Winsford estava sempre rindo.
— De maneira nenhuma, Srta. Wilson. Apesar das péssimas
circunstâncias em que o casamento foi arranjado e o pouco que a
conheço, eu a acho encantadora. Aceitei todos esses convites
apenas com o intuito de vê-la outra vez.
Julia sentiu o rosto corar e o abaixou. Winsford a achava
encantadora? Havia planejado cortejá-la?
Não, não podia ser.
— O senhor iria me cortejar...?
— Sim.
Ela piscou de novo.
— P-Para casamento?
— Sim, Srta. Wilson. Acredito que daria uma linda marquesa e
gostaria muito de conhecê-la mais. Não seria difícil me apaixonar
pela senhorita.
Julia ficou ainda mais perplexa. Era assim mesmo, então? Um
homem a achava bonita e decidia que iniciaria os cortejos? E dizia
na sua cara que a achava uma linda marquesa? E que se
apaixonaria por ela?
Meu Deus, ela precisava sentar.
Ah, não, já estava sentada. Era melhor não se fundir ao
estofado quando começasse a derreter de amores pelo marquês.
Estava sendo difícil pensar com clareza sobre como seria
aquele casamento com ele sendo tão galante.
— Mas... E David? Eu sei que amigos costumam respeitar as
irmãs uns dos outros. Tenho muitos primos.
Winsford anuiu com um movimento incerto de cabeça, como
quem questiona.
— Há um consenso universal sobre isso, mas não se preocupe.
A não ser que a senhorita não queira se casar comigo... — ele
diminuiu o volume da voz — Há algum outro homem por quem a
senhorita esteja apaixonada? Creio que algo possa ser arranjado
para que fique com ele e não tenha de casar comigo. O importante é
que se case com alguém e não fique difamada.
Ela fez que não rapidamente, as faces corando de vergonha.
Estava diante do homem por quem estava apaixonada, que ironia. E
o mesmo homem não ficaria nem um pouco chateado caso ela não
o quisesse.
— Certo... — Winsford assentiu devagar, tocando o lenço em
seu pescoço de modo ansioso — Srta. Wilson, perdoe-me por
perguntar, mas... A senhorita veio para Chester para esconder
algum segredo? Um segredo... De mulher.
As sobrancelhas de Julia se uniram em irritação. Até ele?
— Não estou grávida, Lorde Winsford. Sei que a vinda repentina
da sobrinha londrina da condessa causa um pouco de curiosidade,
afinal, por que eu deixaria a cidade tão de repente?
— Tenho de concordar com seu pensamento — ele riu consigo
mesmo — Bem, então não está grávida, certo.
— Seria um problema?
Winsford ergueu as sobrancelhas, pego desprevenido. Julia não
tardou a se arrepender da pergunta tão impulsiva.
— É uma questão complicada — o marquês riu, nervoso — É
claro que eu não a mandaria se livrar de um bebê-
— Não precisa responder — ela o acalmou com um aceno
breve — Fui impertinente. Só fiquei curiosa... Mas não estou
grávida. Minha tia tem razão, eu nunca nem dancei com um homem
que não fosse da família... Não há mulher mais inocente que eu.
O marquês uniu as sobrancelhas levemente.
— Não entendo como alguém tão agradável e bonita como a
senhorita nunca tenha dançado. Imagino que seja sua timidez, não?
Julia assentiu, desviando o olhar do dele. Não gostava de
dançar, então não se importava.
— E-Eu aceito me casar com o senhor — ela mudou o assunto,
ansiosa para finalizar aquele enervante encontro — Com uma
condição.
Winsford a respondeu com um movimento positivo de cabeça.
— Não vamos viver em Londres — ela disse — Apenas quando
formos visitar meus pais. E-Eu não gosto da cidade... Prefiro ficar
aqui no campo. É claro quando nossas... Nossas f-filhas forem
moças, teremos de viver em Londres por alguns meses, mas agora,
não. Não quero.
— Sem problemas — o marquês sorriu simpaticamente — Eu
também prefiro o campo. Minha última ida a Londres foi estressante,
quando retornei de Chester a cidade inteira falava comigo como se
Lady Thomasina fosse minha noiva, citando eventos que nunca
aconteceram. Estavam todos cochicando, até eu saber que ela
estava com outro homem e pensavam que eu estava sendo
enganado. Fofocas de jornal... Imagino que isso tenha atrapalhado a
situação dela com o Sr. Chatham mais do que a minha “honra
masculina”. Uma enorme besteira, se me permite dizer, o que
chamam de alta-sociedade.
O coração de Julia perdeu o ritmo, quase fazendo seu
estômago embrulhar junto.
A mera menção das manchetes mentirosas dela a fez pensar
em toda a ideia tola e infantil que tivera.
— A notícias falsas o incomodaram...? A-Afetaram a vida do
senhor?
— Não, Srta. Wilson. Foi apenas um mal entendido — Winsford
voltou ao costumeiro humor simpático — Tenho certeza que vai
gostar de sua nova casa, a senhorita gosta de gatos, não?
Julia tombou a cabeça para o lado levemente.
— Gosto... O senhor conheceu Sir Jonas naquele terrível soirée.
Winsford riu ao lembrar de Marian caindo de costas no chão.
— Espero que ele faça amizade com meus gatos.
— Oh — o rosto de Julia ganhou um tom vivo — o senhor tem
gatinhos?
— Oito — ele sorriu ao vê-la se animar — Há uns gatos que
vivem nos estábulos de tempos em tempos, creio que apenas para
dormir durante o frio.
— Ah, mas eles merecem casinhas também... Eu posso fazer
casacos para eles, como faço para o Sir Jonas — Julia juntou as
mãos no colo em um contido gesto de animação, mas logo foi
tomada por embaraço — D-Desculpe-me pela animação... Eu devo
escrever para meus pais, falar sobre o casamento e... P-Podemos
terminar de falar sobre isso depois?
O homem riu consigo mesmo novamente, anuindo e se pondo
de pé. Julia o acompanhou, alisando a saia de seu vestido vinho e
fazendo uma mesura educada para... Seu noivo?
Winsford lhe tomou a mão sem luva, beijando-a sobre o nó dos
dedos. Ao fim do ato, continuou a segurando entre suas mãos.
— Serei um bom marido, Srta. Wilson. Cuidarei de você e, o
quiser, eu lhe darei. Basta pedir, farei o possível para que seja feliz
nesse casamento.
Ela abaixou o rosto, envergonhada com aquilo tudo. Olhava
para suas mãos juntas as de Winsford, sentindo o toque da pele
dele na sua.
Ela só queria amor, mas aquilo não era algo fácil de se pedir.
— Voltarei amanhã para terminar os arranjos e para falar com
Lady Hanes.
Julia assentiu rapidamente, nervosa e com a mão formigando.
— Até mais ver, Srta. Wilson.
— Até... L-Lorde Winsford.
Após minutos sozinha na sala, Julia continuou em pé, olhando
para o vão da porta. Pôde ouvir a carruagem levar Winsford para
longe da mansão e foi aí que Julia se permitiu encarar os fatos.
Teria de mandar uma carta para seus pais explicando toda a
natureza escandalosa daquele casamento. Até lá, uma semana.
Então mais uma semana até a resposta retornar, com seu pai
permitindo ou não o casamento.
No meio tempo, Julia poderia pensar melhor em seu futuro
como marquesa.
Lady Winsford.
Sentiu um frio na barriga, mas não conseguiu distinguir se era
do tipo bom ou ruim.
CAPÍTULO 7

Sir Jonas rolou com a barriga para cima, esticando-se todo


até não poder mais. O sol batia onde ele estava, iluminando o
pelo negro e a ponta das sapatilhas verde-claro de Julia. Abriu
a boca, bocejando e mostrando as presas, depois voltou a se
enrolar feito uma bola escura.
Já havia se passado uma semana e Julia não se encontrara
com Winsford vez nenhuma. O homem lhe enviava flores todo
santo dia. Flores brancas, sempre brancas. Ela gostava,
sempre havia um bilhete dele dizendo algo gentil, mas muito
genérico e pouco sentimental. Também incluía algum presente
como luvas, leques e fitas. Todos sempre embalados em caixas
delicadas, forradas com papel de arroz e dedicatórias afáveis.
Todas as miudezas eram em tons claríssimos e ela suspeitava
que fora a tia que havia lhe dito sobre seu gosto. Não era
possível que o marquês notasse a sutileza do estilo de uma
mulher, os homens nunca o faziam.
No entanto, era o mais próximo de uma corte que ela podia
receber com um possível noivo tão ocupado. Gladys sempre
comentava que Winsford era um homem com muitas
obrigações e Julia se lamentava em silêncio. Queria a atenção
dele, só isso. Uma visita, pelo menos. Ele mesmo havia dito
que queria conhecê-la melhor e antes do incidente parecia
inclinado a conversar com ela.
Sempre que chegava um novo buquê, ela o colocava em
um vaso ao lado de sua cama. Os presentinhos haviam se
tornado sem graça.
Um tanto cabisbaixa, Julia olhou para seu tricô e se
perguntou se o casamento seria assim; Lorde Winsford a
trocando por uma fábrica.
Bem, antes uma fábrica do que uma mulher que fizesse seu
tipo. Uma mulher cheia de cores e curvas.
Julia ficou ainda mais cabisbaixa, parando de tricotar e
largando a manta que fazia sobre o colo.
Estava verão, por que diabos tricotava mantas?
— Julia — Gladys entrou no quarto sem cerimônia — Por
que não vamos dar um passeio pela cidade? Você precisa de
cor nesse rostinho. Vamos até uma confeitaria comer alguns
bolinhos de chocolate como você gosta. O que acha?
— Da última vez que aceitei seus conselhos, tia, acabei
ficando semi-nua na frente de dois homens. Não sei se uma ida
à confeitaria seria tão pacata.
— Quanto exagero — a mulher se sentou ao lado da
sobrinha, no sofá que Julia pedira para ser levado até seu
quarto, bem em frente a janela — Você está amuada demais,
Julia. Quero vê-la sorrindo. Lorde Winsford lhe manda flores
todo dia e tenho certeza que logo mais a resposta de seu pai
chegará. O que a entristece? Pensei que estava decidida
quanto ao casamento.
Julia suspirou baixinho e retomou ao tricô.
— E se ele nunca gostar de mim, tia? Sinto-me insegura.
— Julia, é claro que ele vai gostar de você — Gladys logo
retomou ao ar positivo de sempre — O marquês me disse que
se casaria com você mesmo se a situação toda não tivesse
existido.
As sobrancelhas claras de Julia se ergueram e as agulhas
de tricô pararam. Então ele não estava mentindo.
— Ele disse isso para a senhora?
Gladys assentiu, sorridente.
— Disse. Ele deve gostar de você.
Julia deu um muxoxo, balançando a cabeça negativamente.
— Ele mal me conhece, não há como sentir nada por mim.
A ironia de suas palavras a fez querer rir. Julia também o
conhecia pouco, no entanto, era perdidamente apaixonada por
aquele homem.
— É difícil compreender o interesse dos homens, minha
filha. Nunca se sabe. Talvez ele a ache bonita e goste de ficar
perto de você. Os homens são assim, atraem-se pela aparência
primeiro.
— Mas... Por que ele não vem me visitar? — Julia franziu o
cenho — Queria passar um tempo com ele, conversando...
Todos os homens visitam as moças durante a corte.
Deveríamos nos conhecer mais antes de casar. Desejo ter
certeza sobre algumas coisas...
— Ah, bem... Ele é um homem ocupado. Desde que era um
rapaz — Gladys assentiu com sabedoria — E, talvez, o
marquês pense que você não está feliz e não quer incomodá-la.
Você reagiu de forma muito negativa a princípio.
— É só que... N-Nada. Está tudo bem, tia. Estou tentando
não deixar minha insegurança me dominar.
Glady sorriu orgulhosa, beliscando a bochecha de Julia
levemente.
— Eu sei que ele gosta de você, minha querida.
Repentinamente, barulhos de passos apressados e leves
começaram a se aproximar da porta do quarto e Julia ouviu
risinhos femininos.
Ela reconheceria aqueles risinhos em qualquer lugar da
Inglaterra.
Engoliu em seco, levantando-se no exato momento em que
a porta do quarto se abriu, revelando Emanuelle e Laura em
seus vestidos coloridos e penteados cheios de flores. Sir Jonas
acordou de súbito, escondendo-se debaixo do sofá tão rápido
que mal pôde ser visto.
— Julia! — as duas exclamaram em uníssono, correndo
para abraçar a irmã mais velha.
Julia quase tropeçou no próprio vestido, segurando as duas
num abraço desajeitado.
Laura suspirou de alegria, sorrindo de orelha a orelha e
mudando o abraço para sua tia Gladys. A mulher ficou mais
surpresa que Julia com o contato, mas aceitou as sobrinhas
mais jovens com seu embaraçoso jeito.
— Viemos correndo — Emanuelle tocou o peito, o rosto
estava vermelho e as sobrancelhas claras ficaram em
evidência.
— Percebe-se — Julia arrumou as saias, olhando confusa
para as duas — O que estão fazendo aqui...?
— Viemos para o casamento, ora essa — Laura explicou,
corada e cheia de vida — Chester deve ser a cidade dos
milagres! Não é, tia Gladys?
Gladys ergueu as sobrancelhas e assentiu veemente,
controlando o riso.
— Oh, é claro, filhinha.
— Quando eu debutar falarei para o papai que eu quero
debutar aqui — a menina explicou decidida — Assim eu irei me
apaixonar muito rápido. Foi só Julia chegar que ela noivou!
Emanuelle aquiesceu, os brincos de coral balançando
rapidamente.
— Em um mês — ela ergueu o indicador — Mas, diferente
de Laura, pretendo debutar em Londres mesmo.
Julia tocou a testa, tentando manter a calma. Olhou para a
tia em busca de ajuda, mas a mulher já havia saído de fininho.
— Ah, aí está o senhor! — Laura exclamou assim que viu o
rabo de Sir Jonas escapar de debaixo da cama — Milorde!
O gato correu para mais fundo, deixando Laura abaixada no
chão enquanto tentava alcançar o bichano.
— Primitivo — Emanuelle olhou para a irmã mais velha em
busca de compreensão — Laura. Não Sir Jonas.
Julia conseguiu sorrir e Emanuelle a acompanhou com um
riso cúmplice.
— Apesar dos pesares, senti saudades de todos. Onde
estão o resto?
Laura se pôs de pé novamente, Sir Jonas preso em seus
braços, a mercê da adolescente.
— Papai e mamãe estão lá embaixo, mas nós viemos
correndo. Thomas e Marcus estão na escola, não poderiam vir.
David e Alice vieram também.
Julia franziu o cenho, enquanto libertava o gato das garras
da irmã.
— Alice?
— David se casou com a criada do Almack’s que
estávamos especulando ser amiga dele — Emanuelle explicou,
um tom notavelmente contente — Fugiram para a Escócia uns
dias depois que você viajou e... Bem, o resto é história. As
fofocas só falam sobre isso, mas não nos importamos nem um
pouquinho.
— Tão româââântico —Laura alongou a vogal enquanto a
mão acariciava todo o comprimento da coluna de Sir Jonas —
Alice é encantadora, você vai gostar dela, Julia. Está grávida.
Seremos titias, não é encantador?
Ela apenas anuiu, novamente tirando o gato de perto da
irmã.
— Digam, queridas... — Julia pigarreou, cruzando os braços
como se pudesse abraçar a si mesma — Papai e mamãe estão
bravos com o que aconteceu? David?
Laura e Emanuelle se entreolharam.
— Por quê? — Laura perguntou — Papai não ficou irritado,
disse apenas que deveríamos todos vir aqui lhe dar apoio. E
mamãe também disse isso. E... Estávamos com saudades de
você!
A mais velha riu baixinho, beliscando a bochecha de Laura.
Também sentia falta das irmãs, apesar de gostar de certa
calmaria.
— E você e Lorde Winsford estão apaixonados —
Emanuelle continuou, sorridente — Não há porque separar um
casal assim.
— Estou aqui há um mês, Emanuelle, não tem como Lorde
Wins- — Julia cobriu o rosto com uma das mãos, mas aceitou a
desculpa esfarrapada dos pais — M-Mas é... Eu... E-Eu estou
apaixonada.
As duas irmãs sorriram e bateram palmas alegremente,
logo segurando as mãos de Julia e a arrastando para fora do
quarto.
— Vamos, mamãe quer vê-la! — Laura bateu a porta do
quarto, empurrando a irmã pelos ombros — E Petúnia está
vindo com Lorde Vallance, devem chegar logo. Pena que o
restante da família não virá, tudo tão apressado.
Julia fechou os olhos e rezou pedindo por paciência
enquanto as irmãs a levavam para o primeiro andar.

***
Mamãe, papai, David, uma mulher esbelta de cabelos
escuros que devia ter a sua idade.
Estavam todos lá. Exceto Marcus e Thomas.
Julia deveria escrever para seus irmãozinhos, os dois se
sentiriam demasiadamente tristes ao saberem que perderam o
casamento da irmã.
Enquanto que Mary e Charles pareciam tranquilos com tudo
aquilo, David estava com os braços cruzados e emburrado
como um garotinho. A esposa, muito deslocada, permanecia
sentada no sofá, bebericando um chá que Gladys praticamente
enfiava goela a baixo na mulher. Faz bem para o bebê, ela
repetia para Alice.
— Família — ela pigarreou baixinho — Que surpresa.
— Julia! — Mary exclamou, abraçando a filha e enchendo
seu rosto de beijos — Julia, que saudades! Os dias têm sido tão
aborrecedores sem você por perto para me fazer rir. Não
deveria tê-la deixado vir para cá, tão longe de nós... Eu sei que
Gladys tem lhe tratado muito bem, mas ficar um ano aqui?
Julia abriu um sorriso pequeno e tristonho. Também sentia
falta da mãe, principalmente quando a tia tentava lhe moldar de
todas as maneiras.
— Mary — Charles a chamou com uma firmeza sutil —
Temos outros assuntos para tratar antes de matarmos as
saudades de nossa filha.
— Sim — David se pronunciou, sisudo — Eu não estou
entendendo nada, como Isaac e você foram ficar juntos? E ele
não mencionou nada para mim. Vocês se conheceram em
Londres? Como ele foi ficar com você?
Julia decidiu não se ofender com a pergunta, sentando-se
de forma majestosa na outra extremidade onde sua nova
cunhada estava.
Alice a olhou, um tanto sem jeito, e a cumprimentou com
um aceno de cabeça e um sorriso nervoso. Julia retribuiu o
gesto.
— É um prazer conhecê-la, Alice. Prometo que iremos
conversar quando isso tudo acabar — ela disse para a
cunhada, depois voltou para os pais — Parece que o nome dele
é Isaac, pelo visto.
— Ela nem ao menos sabia o nome dele! — David olhou
para os pais em busca de apoio.
É claro que ela sabia, passou dois anos e meio suspirando
por aquele homem. Qualquer coisinha que ouvia sobre ele era
como uma prenda. Só queria irritar o irmão, que não estava
sendo nem um pouco sensível.
Mary tentou acalmar o filho com um olhar firme, mas o
primogênito não se abalou.
— Talvez, minhas queridas, — Gladys riu nervosa, olhando
sorrateiramente para Emanuelle e Laura — devêssemos
conversar na biblioteca.
— Sim — Charles maneou a cabeça, chamando os dois
filhos mais velhos com um aceno firme — Tenho certeza que
Alice consegue entretê-las.
Os quatro foram até a pequena biblioteca do falecido conde
no segundo andar, cujas janelas davam para os jardins do
fundo. Fecharam bem a porta para que nenhuma das duas
ouvisse do que falariam. Julia achava melhor que Emanuelle e
Laura ficassem com a ideia de que ela havia se apaixonado por
Winsford.
O que não deixava de ser mentira, embora alguns detalhes
da história fossem um tanto diferentes.
Nervosa, mas contida, Julia se sentou numa das duas
poltronas de couro escuro perto da lareira apagada. Sua mãe
se sentou na outra e os dois homens ficaram de pé. Com as
cortinas bem abertas, a luz do sol iluminava todo o ambiente
aconchegante e masculino onde seu falecido tio passara várias
horas do dia lendo com as filhas mais novas.
— Segundo sua carta, você e Winsford foram pegos em um
momento inapropriado — Charles descansou as mãos sob a
barriga, relaxado e nada preocupado.
— A camareira de tia Gladys apertou meu espartilho,
aquela... Enfim — Julia explicou, apesar de ter escrito tudo
aquilo na carta — Tia Gladys acha que eu ando curvada então
mandou apertar para que eu mal me movesse. Se não fosse
por Lorde Winsford eu teria desmaiado e só Deus sabe o que
mais aconteceria.
Mary deu um muxoxo sem paciência, batendo a mão na
perna em um sinal de desgosto.
— Ela que anda ereta feito uma tábua.
Charles não defendeu a irmã e concordou com a esposa,
fazendo um movimento leve com a cabeça.
— Nós acreditamos em você, Julia — o pai se recostou na
escrivaninha pequena próxima às duas poltronas — Você não é
o tipo que se colocaria em uma situação inapropriada com um
homem que mal conhece. Com homem nenhum, na verdade.
— Ainda mais sendo ele meu amigo — David finalmente se
pronunciou — Creio que Isaac jamais se envolveria com minha
irmã para... Encontros sexuais.
Mary resfolegou, horrorizada, e arremessou a almofada que
estava em suas costas direto no filho. David desviou com a
precisão de um soldado bem treinado.
— David, por favor — a mulher o fuzilou com um olhar, mas
logo voltou a feição serena de sempre e se apoiou num dos
braços da poltrona para falar com Julia — Julia, eu sei que nós
sempre conversamos sobre amores e paixões, mas... Temo que
você tenha de se casar com ele, gostando ou não do marquês.
Charles anuiu, lamentando junto da esposa.
— Toda a situação, por mais acidental que tenha sido, foi
bastante comprometedora. Pelo o que você nos escreveu, filha,
você se expôs demais na frente de muitas pessoas. Se tivesse
sido em Londres... Seria ainda pior, mesmo se casando,
continuariam a difamá-la até outro mexerico maior aparecer.
David balançou a cabeça em negação, tocando os cabelos
loiros.
— Mas ela... Julia — ele se abaixou na frente da irmã —
Estou muito incomodado com isso tudo.
Julia revirou os olhos e cruzou os braços.
— Por que ele é seu amigo? Petunia se casou com o
melhor amigo de Lucas e os dois são amigos ainda.
— Não é por isso — ele bufou irritado, mas logo segurou as
mãos de Julia com delicadeza — É só que eu não quero que
você se case com alguém que não conhece e fique sozinha...
Nós três sempre falamos sobre como você precisa de um
marido bom e que a ame, não um casamento arranjado. Talvez
Winsford e você não se deem bem. Ele está sempre focado nos
negócios, desde que éramos pequenos ele só falava em ficar
no lugar do pai.
Julia abaixou o rosto, os olhos começaram a pesar em
lágrimas que ela tentou conter. Secou a bochecha rapidamente
assim que Mary lhe tocou o ombro com carinho, era
embaraçoso demais chorar na frente de alguém.
— E-Eu gosto dele, vamos nos dar bem. Ele vai gostar de
mim — ela murmurou, quase inaudível — Disse que estava
planejando me cortejar antes do incidente. Espero que goste de
mim com o tempo.
Mary deu um sorriso um tanto triste, tocando a maçã do
rosto de Julia com as costas da mão.
— Ele vai adorá-la, filha.
Charles pigarreou baixo, um tanto acanhado diante de tanto
sentimentalismo, mas também contente por Julia ao menos
gostar de Winsford.
Ela fungou, recompondo-se.
Seus pais eram os melhores. Não se importavam quando
ela deixava de ir para algum evento por qualquer motivo que
fosse, incentivavam-na em seus passatempos, levando-a para
assistir corridas de cavalos ou visitar o haras para cavalgar.
Charles era um homem pacato para quem havia estado em
guerra e quase beijado a morte uma porção considerável de
vezes. Era agradecido por ter filhos saudáveis e vê-los crescer,
coisas que realmente importavam. A vida era preciosa, disso
ele sabia, poderia acabar a qualquer momento. Se sua filha
gostava de cavalos, ajudá-lo com as funções de um filho mais
velho e ficar em casa com seu gato, ele não a impediria de
fazê-lo por que alguém decidiu que ela tinha de se casar ou
ficaria obsoleta.
Mary não era muito diferente, embora fosse mais atenta aos
deveres sociais de Julia depois de seu debute e a importância
de se encontrar um marido. Mas ainda era uma mulher tão
pacífica quanto o marido e que não se importava com os gostos
reclusos ou masculinos da filha.
— Seu irmão conhece Winsford desde garoto — Charles
voltou a se recostar na escrivaninha — e eu já tive a
oportunidade de conversar com ele diversas vezes. É um bom
sujeito, mas casamento envolve negociações e eu preciso vê-lo
para tratarmos de certos assuntos.
— Eu digo o mesmo — David se pôs de pé — Podemos ir
até a casa dele.
— Vamos convidá-lo para cá — Mary sugeriu, levantando-
se junto de Julia — É melhor, já que todos estamos aqui.
Enquanto isso, eu vou dar uma olhada nos vestidos novos que
sua tia lhe deu, Julia.
A mais nova suspirou, derrotada.
— São tão bonitos, mas não me sinto confortável com
tantos enfeites.
A mãe riu em divertimento, a sonoridade adorável de sua
voz ecoando pela biblioteca.
— Eu trouxe alguns vestidos que você não colocou nos
baús.

***

A lar ancestral dos Ballard nunca acomodou muitos


membros, embora o falecido Lorde Winsford tenha tido três
irmãos. Cada um seguiu para os quatro cantos das ilhas
britânicas e a enorme mansão em Cheshire permaneceu sendo
a casa dos marqueses.
Todos os quartos estavam vazios e fechados, exceto pelo
dele. Não queria saber o estado do mobiliário daqueles
cômodos, mas precisava. Logo ele dividiria aquela casa com
outra pessoa.
Possivelmente dividiria sua cama com outra pessoa. Uma
mulher. Que tipo de companhia era Julia? Winsford não queria
se sentir como um adolescente tolo, mas gostaria de poder
abraçar Julia durante o sono. O calor de uma mulher em seus
braços era algo do qual precisava fazia tempo.
Ela parecia ser o tipo que dormia bem quietinha, que
adoraria ser embalada nos braços de um homem. O que seria
ótimo, porque ele adoraria tê-la tão delicada junto dele.
— Eu posso mandar que limpem todos, meu lorde — a
governanta, Sra. Taylor, disse tranquilamente.
— Não há porque limpar todos... — Winsford coçou o
queixo, caminhando pelo gramado que fazia toda a paisagem
insossa ao redor da mansão — A Srta. Wilson precisará apenas
dos aposentos da marquesa. Caso ela deseje mais um cômodo,
a senhora mande que limpem. Ela terá liberdade de administrar
a casa como ela quiser.
— É claro, meu lorde. Se me permite dizer, as criadas estão
felizes com a notícia de uma nova marquesa. Uma mulher na
casa traz alegria a todos. Logo virão as crianças e todos
ficaremos mais felizes ainda.
Winsford sorriu agradecido com tamanha gentileza das
criadas, mas não se deixou conquistar por toda aquela
aceitação. Julia precisava gostar dele, também. Não adiantaria
de nada ter uma casa toda para si se fosse infeliz.
— Preciso ainda da permissão do Sr. Wilson, Sra. Taylor.
Mas limpe o quarto da marquesa e coloquem novas cortinas e
roupa de cama. Em cores claras, azul ou amarelo, acho que
combinam com a Srta. Wilson.
A governanta assentiu junto de uma mesura, deixando o
patrão que continuou sua caminhada vespertina sozinho.
Winsford parou e olhou para sua casa. Dois andares, uma
linda construção palladiana tomada por trepadeiras cheias e
verdes, deixando apenas as janelas à mostra e um pouco da
pedra bege que formava as grossas paredes do lugar. Ao redor
dos vastos campos, bosques cheios que foram explorados por
ele durante sua infância.
Deveria colocar mais flores perto da entrada da casa?, ele
pensou. Julia devia gostar de flores. Os jardins na porção
esquerda da propriedade também estavam simples demais.
Havia uma estufa em desuso que, com uma bela reforma,
funcionaria muito bem. Arbustos altos e cônicos ao longo de um
espaço murado sem nada além de um campo, árvores bem
podadas, distribuídas em um padrão simétrico até desembocar
em um chafariz seco, no centro de um círculo, adornados por
arbustos de variadas alturas.
Era um belo jardim inglês, mas faltava cor. Faltava cuidado.
Azul, ele pensou. Da cor dos olhos dela. Flores em azul
claro e branco.
Winsford riu de toda aquela dedicação em agradar Julia.
Pouco conhecia a irmã de David, mas se sentia tão
encantado pela aparência dela. Poderia ficar olhando para Julia
pelo o tempo que fosse e mal podia esperar para conhecê-la
melhor e poder se apaixonar por ela inteira. Ou beijá-la. Não
seria de todo mal fazê-la ruborizar em seu rosto tão pálido.
Ele ficou um tanto incrédulo, não se lembrava da última vez
em que desejou tanto beijar uma mulher por todo o corpo.
Lamentava não ter tanto tempo para ir até a casa de Lady
Hanes, acabou se atarefando com a documentação do
casamento e os afazeres na tecelagem. Talvez Julia preferisse
assim, ele pensava. Talvez ela ainda estivesse aborrecida e se
acostumando com as coisas.
Distraído, Winsford quase não ouviu um cavaleiro se
aproximar da mansão, atravessando os portões da residência,
ao longe, e seguindo a reta estrada de cascalho claro que dava
na escada de pedra.
Era um jovem rapaz moreno, um mensageiro.
— Milorde — ele o cumprimentou, tocando a aba do chapéu
tricorne marrom e tirando uma carta pequena de sua bolsa de
couro — Mensagem para o senhor.
Winsford puxou o papel para si, rompendo o selo e lendo a
breve mensagem: seu futuro sogro e os Wilson haviam
chegado a Chester e exigiam sua presença na casa de Lady
Hanes.

***

Winsford desceu do seu cavalo quase tropeçando em cima


do cavalariço que apareceu para ajudá-lo. Agora que teria de
olhar para a família de Julia, tudo parecia um tanto assustador.
Estava nervoso. Nunca chegara tão longe com uma dama.
Mal estava sabendo fazer a corte de Julia. Mandara flores para
ela todos os dias, mas não sabia se ela queria ser visitada ou
não. Quando aceitou o compromisso, ela não pareceu muito
feliz com a ideia da união e ele decidiu manter uma distância.
O que David falaria? Afinal, ele estava quebrando uma das
leis. Além do mais, não se lembrava muito do Sr. Wilson.
Esperava que ele não reagisse como um militar rabugento tal
como o filho.
Sua dúvida foi respondida antes mesmo de chegar na porta
da mansão. A mesma se abriu e David saiu de lá marchando e
balançando a cabeça em desacordo.
— David! — Winsford riu nervoso, abrindo os braços para o
amigo — Quanto tempo, como andam as coisas em Londres?
David cruzou os braços e parou bem em frente ao marquês.
— Hm... Olá — Winsford respondeu e colocou as mãos
atrás das costas — Creio que sua irmã tenha lhe contado a
história toda sobre a casa dos Smith.
— Sim. E eu acredito nela, afinal você... Bem, você é você.
O marquês anuiu com sutileza, indicando a porta da casa,
por onde um dos lacaios de Gladys tentava bisbilhotar sem ser
visto.
— Antes de entrarmos, — David o puxou pelo braço, indo
em direção ao portão da propriedade a quase cem metros de
distância — vamos conversar um pouco.
Winsford se deixou ser praticamente arrastado, parando do
lado de fora da propriedade da condessa, onde a única
paisagem era uma longa estrada e campos verdes. Ao longe,
Chester e seus muros medievais formavam apenas uma
mancha no horizonte.
— Você estava planejando cortejar a minha irmã?
Se dissesse que sim, morreria porque quebrara as leis. Se
dissesse que não, morreria também porque pareceria que Julia
não era digna de sua atenção. Qualquer uma das respostas
irritaria David, que era cheio de irmãs para proteger e sentir
ciúmes.
— Estava, sim.
David cruzou os braços. Winsford nunca foi muito de brigar,
mas achava que sobreviveria caso acontecesse de levar uns
sopapos. Era forte, aguentava um soco, pelo menos.
— Desde quando?
— Desde que Lady Hanes nos apresentou no mês passado.
A princípio decidi que era melhor não cortejá-la, por sua causa,
mas depois eu mudei de ideia.
O amigo bufou.
— Por quê?
Winsford pigarreou, que situação enervante.
— Porque sua irmã é encantadora, bonita e interessante.
Há outro motivo para eu querer me casar com uma mulher?
— Há inúmeros motivos sórdidos para que um homem
deseje desposar uma mulher que considera bonita.
— Sabe que eu não ajo como a maioria dos homens.
Incluindo como você.
O amigo se calou. Ficou mais aborrecido, mas assentiu.
— Eu acho que minha irmã gosta de você — David disse,
um tanto na dúvida.
— É uma boa moça — ele respondeu com naturalidade.
— Não, Isaac... Falo sobre estar apaixonada, homem.
— Você acha mesmo? — ele perguntou com entusiasmo,
logo erguendo as mãos na frente do peito assim que viu David
ficar enfezado — Com todo respeito, é claro.
— Eu acho, não sei — David suspirou, pensativo — Vocês
se encontraram muitas vezes desde que ela veio pra cá?
O marquês fez que não, se recostando no muro.
— Hm, Julia não é o tipo que se apaixonaria em um único
encontro — David coçou o queixo — De qualquer forma, Isaac,
antes de se casar com ela precisa saber sobre algumas coisas.
Julia parece ser uma mulher muito quieta por ser muito tímida,
mas ela é diferente quando está ao redor de pessoas que ela
tem intimidade.
Ele aquiesceu.
— Não gostaria de me casar com alguém sem muito a
oferecer.
David concordou e passou a caminhar em direção à
estrada, afastando-se do portão junto de Winsford.
— Julia é muito amiga de Jane. Lady Rosenburg agora.
— Soube que ela se casou com seu primo — Winsford
observou.
— Jane é praticamente uma prima para todos nós. E é uma
dama moderna, que não esconde os próprios pensamentos.
Gosta de falar sobre política, roupas, direitos iguais, até mesmo
divórcio e universidades. Acredito até que escreve... Manifestos
sobre seus pensamentos.
O marquês balançou a cabeça, ainda sem saber o que Lady
Rosenburg tinha a tratar com Julia. Havia uma porção de
moças como Jane por aí, só fingiam não vê-las.
— Julia e ela concordam em muitas coisas — David
continuou — Por eu passar muitos anos sem serviço, ela
ajudou meu pai a administrar tudo. Se ela se meter nos seus
assuntos, não brigue com ela. Quando Julia expressar seus
pensamentos modernos, eu espero que você não a maltrate por
isso. Mesmo se ela falar alguma besteira ou se intrometer onde
não deveria. Ou veremos até quando nossa amizade irá durar.
Winsford ergueu as sobrancelhas surpreso, um tanto
intimidado com a mudança de espírito de David, sempre um
homem calmo.
Se aquilo tinha a ver com o traje de montaria de Julia, não
havia nada a ser dito. Até porque Winsford não havia visto a
famigerada peça, apesar dos esforços de Price em descrevê-la
em cada detalhe.
Calças, uma casaca, com um lenço de babados e um
chapéu um tanto masculino. E botas para homens.
Era apenas uma roupa, não? É claro que algo em Winsford
não a queria cavalgando pelo centro de Chester em tais
vestimentas. Alguém poderia difamá-la, deixá-la triste ou até
agredi-la. Estavam no interior, não na ousada Londres. As
pessoas conseguiam tratar as mulheres das formas mais
deploráveis quando queriam, Winsford não sabia se se sentia
satisfeito por perceber tal injustiça ou triste por não poder fazer
nada para mudar.
— Eu não a maltrataria por dizer coisas... Revolucionárias
para mim — ele se explicou — Não se preocupe, David. Eu não
tenho planos de maltratar sua irmã, nem ninguém.
O capitão assentiu com dureza, mas depois relaxou,
passando a coçar os cabelos loiros de modo pensativo.
— Espero que ela não se sinta só aqui, com todas as
amigas morando em cantos diferentes do país — ele suspirou
— Ah, bem, Tamsin mora perto, creio que fará uma visi- Oh,
talvez não.
Winsford deu um muxoxo baixo, balançando a cabeça e
olhando as botas escuras enquanto andavam mais e mais pela
estrada. Já estavam quase de volta a construção.
— Lady Thomasina foi um breve encantamento. Não sinto
mais nada, não se preocupe.
David concordou com um gesto rápido e deu um amigável
tapinha nas costas de Winsford
— Esqueci de dizer, mas eu me casei com Alice.
— A moça do Almack’s? — Winsford não pode conter sua
surpresa e acabou ficando contente pelo amigo — Aposto que
ela está feliz, quase uma lady se não fosse pela sua falta de
título. Mas você está na linha de sucessão do seu avô materno,
não está?
David riu junto, concordando com um sorriso apaixonado no
rosto.
— Meu tio e primos estão na frente. Nunca serei um
visconde, graças a Deus. A propósito, logo teremos um bebê.
Prepare-se para receber visitas minhas, Julia não me perdoará
se eu não vir umas mil por ano para que ela fique com a
criança.
Winsford assentiu, agora devolvendo o tapinha ao amigo.
Era como se Julia realmente fosse se casar com ele. Ainda
precisava da aprovação do pai, é claro.
Seguiu David enquanto retornavam para a mansão, o
homem lhe contando sobre suas aventuras com Alice na
Escócia, onde ela revelou estar grávida havia dois meses.
Ficava feliz pelo amigo, mas, parte sua, invejava aquela alegria
toda.
Estava indo se comprometer com uma moça que não
conhecia muito bem e que não seria capaz de forçar a
consumação do casamento.
E se Julia nunca quisesse se tornar sua mulher?
Deixou-se esquecer assim que entrou na casa de Gladys e
foi recebido por duas moças loiras e sorridentes. Uma
notavelmente mais jovem e corada que a outra, que era alta e
muito séria. Quieta e atenta, mas um pouco mais interativa que
a tímida Julia. Ao lado, uma mulher da idade de Julia e de
cabelos castanhos o cumprimentou com uma mesura perigosa
por conta da pequena barriga que começava a crescer.
— Lorde Winsford — as duas loiras disseram em uníssono.
— Senhoritas — ele sorriu com simpatia, abaixando a
cabeça levemente — Suponho que sejam irmãs da Srta.
Wilson.
— Essas são Laura e Emanuelle — David indicou a mais
nova antes da mais velha, depois foi até a mulher morena e a
tomou pela mão — E essa é Alice, minha esposa. Lorde
Winsford é um grande amigo meu, talvez o melhor.
Winsford sorriu e agradeceu com um aceno de cabeça.
— Encantado, ouvi falar muito da senhora, Sra. Wilson — o
marquês a reverenciou respeitosamente, fazendo-a sorrir para
o marido.
David devolveu o carinho para a esposa e, um tanto
relutante, teve de se afastar de Alice. A mulher voltou sua
atenção para as cunhadas, por quem parecia nutrir bastante
carinho.
— Estamos todas contentes que o senhor e Julia irão se
casar — Emanuelle se pronunciou, ereta e muito refinada. Era
bem mais alta que Julia, parecendo ser mais velha — Meu
irmão falou muito bem do senhor, disse que é extremamente
respeitoso. Julia merece muito respeito.
— E o receberá, Srta. Emanuelle — Winsford arrancou um
sorriso gentil da futura cunhada — Estão todas bem-vindas a
Mansão Ballard sempre que quiserem, esteve vazia por muito
tempo e acredito que merece algumas festas.
Laura sorriu de orelha a orelha.
— Ah, sim, deve ser tão divertido quanto Greenhill.
Agradecemos pelo convite, Lorde Winsford.
David deu um toque leve nas costas da irmã mais nova.
— Temo que Winsford não possa ficar de prosa com vocês.
— É claro — Emanuelle puxou a irmã animada demais —
Vamos, tia Gladys está nos esperando na sala de música.
As duas loiras seguiram escadaria acima na companhia de
Alice, os risos animados de Laura se sobressaindo na conversa
baixas entre as três.
O nervosismo de Winsford voltou, reduzindo-o a um
estudante inexperiente. David o guiou pelo primeiro andar da
residência, atravessando a sala de estar até estarem num
vestíbulo pequeno onde uma porta estava aberta.
Lá, Winsford viu o pai de Julia sentado numa das duas
poltronas e batendo o pé no chão em um ritmo calmo.
O homem parecia muito pensativo, mal percebeu quando o
filho e o marquês entraram na biblioteca. Fora de Charles que
Julia herdara os cabelos claros e finos. O antigo oficial da
Coroa com certeza tinha muitos cabelos grisalhos, mas que
estavam camuflados no loiro claro de seus cabelos. Era um
homem forte, alto, mas que já havia se aposentado. A idade
estava chegando devagar, mas Isaac ainda via a força de um
militar nele.
A última vez que vira o Sr. Wilson tão calado foi no velório
de seu pai, pouco mais de dois anos atrás. Pensando naquele
momento, Winsford lembrou que Julia também estava lá. Era a
única irmã de Lucas crescida o bastante para prestar as
condolências. Mas no dia ela usava um véu negro cobrindo seu
lindo rosto, não era à toa que não reconheceu Julia quando a
viu.
Estava tão abalado que não saberia se ver o rosto dela
surtiria o mesmo efeito que vivenciava ao vê-la em Chester.
Delicada e adorável, como aquelas pinturas em que a mulher
está relaxada em um sofá, olhando para o expectador com um
pacato silêncio. Como quem compartilha uma intensa relação,
tão íntima que apenas um olhar era o suficiente para conectá-
los.
Talvez teria se apaixonado por ela, a conhecido melhor e
jamais teria sentido qualquer atração por Tamsin. Ou ela
poderia nem ao menos lhe dar atenção. Ou ele cometeria o erro
de não se empenhar tanto como deveria.
Bem, pelo menos agora tinha um casamento e a chance de
conquistar Julia.
— Winsford — Charles o saudou com simpatia, indicando a
poltrona vaga ao lado — Sente-se. Faz bastante tempo que não
nos vemos, não? Quase não o vi na temporada passada.
Winsford o fez, David se posicionou contra a escrivaninha e
cruzou os braços. Aguardando.
— Eu não farei rodeios — Charles descruzou as pernas e
relaxou na poltrona, como quem se prepara para tirar um bom
cochilo — Julia quer se casar com você e eu permito, ela sabe
que na idade em que está e com o escândalo dos dois essa
seria a escolha certa. Algo mais?
O marquês piscou, aturdido. Era aquilo apenas?
Seus amigos tiveram experiências um tanto traumáticas
com os sogros.
— Bem, eu imaginei que o senhor teria mais a falar sobre a
Srta. Wilson. Ou dizer sua opinião sobre a situação. Além de
fazermos os arranjos nupciais sobre o dote e a mudança da
Srta. Wilson para minha residência.
Charles maneou, tocando a cicatriz fina que lhe corria pela
maçã do rosto esquerda de uma forma calma e ritmada.
— Eu nunca casei uma filha e havia perdido as esperanças
em Julia, é verdade — o antigo coronel riu consigo mesmo,
David balançou a cabeça em desacordo e permaneceu em
silêncio — Mas ela é uma boa garota. Ama animais, os de
fazenda principalmente. Tem uma enorme paixão por cavalos,
gosta de ir a corridas e apostar. Gosta de bordar, costurar, tocar
piano...
— Muito mal, mas toca — o irmão mais velho riu.
— Ela fala muitos idiomas — Charles adicionou e continuou
pensando — Leu muitos livros e conversa como ninguém
quando se tem boa companhia. É boa com números, acaba se
metendo nas finanças dos homens da família, mas não faz por
mal. Ela gosta de ver tudo organizado.
Winsford pigarreou baixo, sentindo-se em um leilão de
cavalos.
— Sr. Wilson, eu reconheço as qualidades de sua filha, não
há necessidade de... Propaganda.
Charles assentiu e apontou para o filho.
— Pois aquele rapaz parece um tanto enfezado. Deve estar
com ciúmes.
David bufou e cruzou os braços ainda mais.
— Ele é seu amigo, David, vai cuidar bem de Julia — o
homem gargalhou e tocou o antebraço de Winsford — A
primeira irmã que ele teve, entende? Não a quer longe. Eu
confesso que também me sinto um pouco triste por saber que
minha menina não vai mais viver conosco em Londres... Mas
ela deve trilhar a própria vida, não a queremos sozinha.
O marquês não entendia a dinâmica entre um irmão e sua
irmãzinha, mas assentiu mesmo assim.
— Logo passa — Charles resmungou, mas permaneceu em
um tristonho silêncio por alguns segundos. Por um momento,
ficou muito mais velhos, com seus olhos cansados e as marcas
de guerra em seu rosto — Certo, certo, vamos logo com isso
que minha esposa e as meninas estão ansiosas para o primeiro
casamento da família. Julia tem um bom dote, aumentei ano
passado pensando que... Bem, a menina não parecia chamar
atenção dos cavalheiros e eu não a queria sozinha por mais um
ano. Estava tão triste que já não saía mais de casa...
Winsford assentiu em silêncio. Com um dote possivelmente
alto poderia fazer algo para agradar Julia de modo que ela não
ficasse tão amuada com um casamento forçado.
Um cavalo seria interessante, já que ela nunca teve um
próprio. Uma bela égua de estimação. Ela disse que não queria
presentes, mas eles seriam casados, nada o impediria de
presenteá-la com extravagâncias.
— Eu sei que você será um marido digno — Charles deu
um toque firme no ombro de Winsford — Afinal, as vezes em
que David ficou com sua família foram cheias de boas notícias.
— Eu agradeço a consideração, Sr. Wilson. Que data acha
mais adequada para o casamento? Levando em conta a
urgência.
O homem pensou, soltando um longo suspiro como se
estivesse passando por um longo processo mental para calcular
aquilo.
Charles simplesmente não se importava com as etiquetas.
— Três semanas me parece adequado. É apressado
demais, mas é o que se espera de uma união escandalosa
como essa. Se o noivado durar meses, Julia pode sofrer
difamações.
— Três semanas, não! — uma voz feminina ecoou alto pela
biblioteca — Um mês, no mínimo!
Winsford ficou de pé quase que imediatamente, recebendo
uma mulher loira e de aparência bastante jovial para a idade
que provavelmente tinha. Um rosto pálido, cabelos dourados e
olhos azuis. Isaac viu as semelhanças com Julia, na altura e na
delicadeza das feições. Mary Wilson era uma mulher bonita que
o tempo parecia melhorar. Com um lindo vestido amarelo e um
penteado repleto de flores, ela aparentava muito gosto pela
vida. Se aquela era sua futura sogra, Winsford ficou feliz por
saber que Julia tinha um futuro muito belo à sua frente e que
jamais deixaria de ser atraente.
A família Wilson aparentava grande animação, um casal
satisfeito com o matrimônio que criou filhos com amor.
Ao lado da mãe, Julia parecia uma florzinha pequena. Mas,
ainda assim, Winsford continuou a achando demasiadamente
encantadora.
A noiva – por mais curioso que fosse vê-la assim – o
cumprimentou em silêncio com um simples toque nas saias.
— O pequeno Isaac vai se casar com minha filha, como
esse mundo é pequeno — Mary tocou o peito subitamente em
um gesto simples de surpresa — Sua mãe me escrevia cartas
sempre, o senhor se lembra?
Winsford assentiu com um sorriso pequeno, mas
verdadeiro.
David havia passado longos verões em Chester quando
eram pequenos e sua mãe e a Sra. Wilson sempre mantinham
um contato epistolar para trocar informações sobre os filhos.
Os pais de David estavam lá quando sua mãe foi enterrada
e, anos depois, quando seu pai também se fora. Mas ele mal se
lembrava desses dias com clareza, a tristeza o tomara de tal
forma que decidiu apagar algumas lembranças de sua
memória.
— Rezo por ela todas as noites — Mary assegurou com
sinceridade.
O marquês agradeceu com uma reverência educada,
ignorando o nó em sua garganta com todo aquele assunto
sobre sua falecida mãe.
Manteve a compostura e permaneceu de pé, indicando a
poltrona para a mãe de Julia. Charles pareceu se surpreender e
se levantou de supetão, segurando a mão da esposa.
— Sente-se, meu bem.
Mary olhou para Winsford como quem lhe diz perceba o que
eu aturo, arrancando um riso reservado do futuro genro.
Julia acompanhou a mãe e se sentou no outro assento, as
mãos bem unidas sobre o colo e o olhar sobre o pai.
— Eu prefiro me casar em uma semana — ela anunciou.
— Uma semana?! — Mary ficou chocada e negou com a
cabeça, aborrecida — Em uma semana não se pode fazer um
vestido de casamento como você quer. Você quer uma festa,
não? Precisamos planejar a festa, falar com o vigário e
escolhermos o melhor sábado para a cerimônia. Uma semana é
ridículo! Um mês é o que se pode fazer por um casamento
dessa natureza.
Julia se calou e olhou para Winsford.
— Uma semana parece ótimo— ele concordou — Uma
festa deve ser feita, creio que um casamento tenha certa
importância para uma moça. Mas não precisamos estender
mais do que a Srta. Wilson deseja, se ela quer se preservar do
escândalo.
— Uma pena que os garotos não poderão vir — David
lamentou, descruzando os braços — Você escreveu para eles?
Julia assentiu com um suspiro triste. Sentia falta dos
caçulas, que estavam longe no internato. Marcus e Thomas
mandava cartas regularmente e Julia fazia questão de
respondê-las com muito amor.
— Eles podem vir nos visitar depois — Winsford respondeu,
olhando para Julia — Seremos os únicos na Mansão Ballard,
haverá muito espaço.
Ela agradeceu com um aceno simples, ainda evitando de
olhá-lo no rosto.
Julia gostava mesmo dele? David devia estar confundo a
timidez dela com o comportamento retraído de uma moça
envergonhada na frente de sua paixão.
— Uma pena que Jane esteja em Londres, a viagem não
faria bem para o bebê. Não quer chamar sua prima Tamsin?
Chegaria aqui em dois dias, não lhe faria mal — Mary
perguntou — Lucy ficaria muito chateada também, moram tão
perto. Vamos chamar, querida. Não tem graça apenas com
Petúnia
— Não quero chamá-la — Julia respondeu de imediato,
notavelmente séria — Q-Quero dizer... Podemos fazer uma
reunião d-depois. Eu preciso me casar logo para que não falem
de mim. E Tamsin está grávida, Petúnia já se arriscará o
suficiente...
Winsford passou o peso de um pé para o outro. Invocar
Tamsin estava se tornando um incômodo, não queria que o que
havia sentido por ela atrapalhasse qualquer avanço que poderia
ter com Julia. Ela parecia incomodada com aquilo também, de
certa forma, tão séria ao terem falado da prima.
— A Srta. Wilson pode escolher o que desejar para o
casamento — ele se pronunciou — Não tenho familiares que eu
queira chamar e também não desejo prolongar o noivado com
toda a cidade presumindo que a Srta. Wilson foi arruinada.
Assim que ela se casar comigo, terá a liberdade de uma
marquesa para fazer o que quiser.
— Por que não deixamos que conversem sobre isso? —
David sugeriu, pela primeira vez soando menos enciumado.
Charles anuiu.
— Um passeio no jardim deve ser o suficiente para se
conhecerem melhor — o homem disse, mas olhou com
bastante seriedade para Winsford — Nada além de um passeio,
Winsford.
O marquês pigarreou baixo, começando a se sentir na saia
justa de um encontro com o sogro.
Julia se pôs de pé, com a cabeça baixa, e indicou a porta
da biblioteca com um movimento rápido do braço tal como um
mordomo atrapalhado.
CAPÍTULO 8

Isaac nunca ficou tanto tempo em silêncio como naquela tarde.


Seguiu Julia até o jardim e pelos arredores calado, a noiva mal
sentindo a necessidade de falar.
Noiva.
Era sua noiva bem ali. Aquela jovem mulher tímida e belíssima,
que usava lingeries coloridas e gostava de cavalos.
Isaac riu, não conseguiu conter sua risada. Era um riso contente
por saber que se casaria com uma mulher adorável e por quem não
seria difícil se apaixonar. Logo ele que já tinha certeza que se um
dia se casasse, seria por obrigação com alguma jovem de boas
conexões.
Bem... Fora obrigado a se casar com Julia – uma jovem de boas
conexões. No entanto, já queria começar sua corte antes do
incidente, então aquilo não contava.
— Todos podem nos ver das janelas — Julia finalmente disse
algo, parando de caminhar assim que chegaram na entrada de um
espaço cercado por um muro repleto de flores, o que providenciava
alguma privacidade — Estão nos vigiando.
Isaac olhou por sobre o ombro, mas as cortinas estavam
fechadas. Contudo, ele não tinha uma das melhores visões à
distância e poderia ter deixado de ver um rostinho ou outro por entre
as brechas das cortinas.
— Estamos apenas conversando, não se preocupe.
Ela anuiu, mas os dedos estavam entrelaçados um no outro em
um sinal de nervosismo.
— A senhorita tem alguma sugestão para a cerimônia?
Julia anuiu rapidamente, soltando as mãos, mas voltando a uní-
las logo em seguida.
Isaac quis lhe tomar a mão na sua, acalmá-la de qualquer
nervosismo que sentia. Era a consumação que a aterrorizava? Ele
poderia acalmá-la quanto aquilo, mas não era hora e nem lugar para
falar sobre intimidades.
— Eu... Eu não gostaria de me casar na igreja da cidade, se o
senhor não se importar — ela confessou, abatida — Com todas
aquelas pessoas passando do lado de fora e olhando, é intimidador.
E... Casamentos são pessoais.
— Depois de tudo, o que eu menos quero é ver a cara do Sr.
Smith na igreja — o marquês resmungou para si mesmo.
Quando Julia deu um risinho acanhado, ele também sorriu. O
bom humor dela parecia existir, apesar de seu rosto tristonho.
— Podemos casar aqui, então? — ela perguntou — E depois
vamos para sua casa... D-Depois da festa.
— Claro, vou conseguir uma licença. Sabe... Pensei que nunca
fosse me casar, não nos termos que eu queria — Isaac confessou
certa melancolia e voltou sua atenção para Julia — Estou feliz que
vou me casar com alguém como a senhorita, espero que possamos
nos conhecer mais. Sei que será uma esposa encantadora, entre
outras qualidades. Podemos nos tornar grandes amigos e
companheiros.
Ela piscou, olhando para ele em choque. Seus olhos se
encheram de água e Julia rapidamente virou o rosto, olhando para
um conjunto de arbustos rente ao muro da mansão.
— Eu disse algo de errado...? — Isaac rapidamente procurou
por um lenço, tirando um de seu bolso e o estendendo para Julia —
Aqui, não chore, Srta. Wilson.
Ela se virou, ainda com o rosto abaixado, mas pegou o lenço e
tocou o cantinho dos olhos.
— Também fico feliz com o casamento, Lorde Winsford. Espero
que possamos ser... A-Amigos também.
Isaac suspirou, aliviado.
Julia parecia ser bastante sensível, não se comparava com o
que David já lhe falara sobre ela, na época em que Isaac mal sabia
seu nome. Uma moça sombria e com um humor terrivelmente
sarcástico, aquela era a irmã mais nova que ele ouviu falar por
vários anos sem saber quem era.
— Não chore... — ele disse, começando a ficar sem jeito diante
de tanta sensibilidade — Nós podemos sair para cavalgar durante a
semana, o que acha? Até o dia do casamento, a não ser que prefira
se ocupar com os preparativos.
Julia ergueu o rosto, um rubor animado se instalou em seu rosto
e um sorriso nasceu debaixo dos riscos das lágrimas.
O coração de Isaac quase parou frente a tanta doçura.
Mas ela murchou de novo e fez que não.
— Depois do casamento — Julia fungou, recuperada — P-Pode
ser? Minha tia não tem cavalos para isso... Só para puxar a
carruagem. E podemos usar seus cavalos quando... Q-Quando eu
viver com o senhor.
Isaac assentiu com um aceno de cabeça gentil.
— Como preferir, Srta. Wilson. Mas acho que a senhorita
deveria ter um cavalo só seu, o que acha? Há um aras nos
arredores de Chester com boas éguas. O dono é de minha
confiança.
Ela sorriu de novo, um gesto natural de contentamento que ela
não pode conter.
Aquela moça gostava mesmo de cavalos, mais do que qualquer
dândi em Londres que ele já havia conhecido.
— Q-Quando nos casarmos — ela voltou ao normal — Mas eu
adoraria um cavalo só meu...
— Gostaria que me contasse mais sobre seu interesse em
cavalos — Isaac lhe estendeu o braço — As moças que conheci em
minha vida nunca expressaram interesse em corridas, por exemplo.
Julia o olhou com cautela, afastando o lencinho da ponta do
nariz. Segurou no braço dele, apenas a ponta dos dedos, mas não
demorou muito para se segurar de um jeito muito próximo, usando
os dois braços para envolvê-lo.
Isaac adorou, não negou para si mesmo. Gostou muito de sentir
o corpo feminino dela junto de seu braço.
Os dois caminharam mais para dentro do jardim de Gladys, com
seus arbustos altos em formato de animais e canteiros de flores
coloridas ao longo do caminho de pedras. Parecia o jardim dos
Smith, mas muito maior.
— Conte-me sobre seus gostos, Srta. Wilson — ele decidiu
engatar em um assunto amena, além de desejar conhecer a noiva
um pouco mais — Quero saber como agradá-la. Agora a senhorita
não poderá fugir dos meus presentes.
Julia riu para ele e desconversou com um dar de ombros junto
de um sorriso envergonhado.
— Além dos cavalos, não tenho muito o que gosto de fazer com
tanto afinco. Costuro um pouco, não muito bem. Tricotar, talvez?
Acho divertido.
— Divertido? — Isaac ficou intrigado. Tricô parecia uma das
coisas mais monótonas que ele já vira.
— Calcular os pontos, imaginar como uma peça vai ficar e todo
o planejamento que tem de se fazer. Às vezes eu me sentia muito
entediada em Londres... Tricotar ocupava muito os pensamentos.
Ele ficou ainda mais intrigado.
— Não sabia que tinha de calcular alguma coisa para tricotar.
Para mim apenas... Ora, eu nem sei como se tricota.
— Muitos homens não sabem que as atividades femininas
envolvem bastante talento — respondeu ela — Uma de minhas tias
borda muito mal, no entanto, esperam que todas nós de sangue azul
tenhamos algum talento para mostrar a algum cavalheiro.
— Pelo modo com a senhorita fala, não me parece o tipo que
gosta de tricotar apenas para se exibir — observou ele, vendo-a
falar tão aberta e confortavelmente com ele depois de não
demonstrar nada além de embaraço nos dias anteriores — Digo isso
com um elogio, é claro.
Julia agradeceu com um aceno de cabeça elegante e simples.
— A senhorita sempre gostou de cavalos?
Ela assentiu, olhando para as flores nos canteiros de pedra
clara.
— São animais tão inteligentes e sensíveis, podemos criar uma
amizade muito forte com eles. A primeira vez que eu vi um cavalo
correndo livre foi quando fui pela primeira vez na casa de meu tio
Aiden. Quando minha tia Lucy se casou com ele. Eu os vi correndo
junto do cavalariço, tão bonitos e sem sela. Ah, era tão... Eu queria
correr como eles.
Isaac assentiu, deixando-a falar.
— Meu pai me levou para conhecer os cavalos, me colocou em
cima de um e eu fiquei tão feliz quando ele me deixou cavalgar com
ele — Julia riu de sua própria criança do passado, acabando por
arrancar um riso do noivo — Depois que cresci passei a gostar de
corridas de cavalo. As competições de obstáculos são minhas
favoritas. O senhor gosta? Eu sempre vou assistí-las com meus
pais.
— Bem... Eu não fui a muitas corridas.
— Ah...
— Mas, com a senhorita, eu iria sempre.
Ele sentiu os dedos dela se moverem em seu braço, um sinal de
sua timidez e pouca desenvoltura diante de elogios. Julia se
aconchegou mais e Isaac sentiu os contornos dos seios dela contra
seu braço.
A maciez de um corpo feminino era algo divino.
— Infelizmente — Isaac voltou a falar antes que se perdesse em
pensamentos que envolviam a maciez feminina da noiva — não há
corridas por aqui. Teríamos de ir até Liverpool, talvez. Tenho certeza
de que há corridas por lá.
Julia ponderou consigo mesma e anuiu sozinha.
— O que há de interessante em Liverpool?
— Hm... O mar. A senhorita já viu o mar?
— Só em pinturas... Nunca fui a Brighton como todo mundo —
Julia lamentou, tocando uma das flores que nasciam por entre as
pedras do muro — Deve ser bonito, não? Como cabe tanta água
assim no mundo e de onde ela vem? Eu sempre me pergunto...
Será que um dia choveu tanto que encheu os oceanos?
— É uma boa pergunta — ele riu, pensativo — Deve ter chovido
por anos.
— Milhares, talvez — Julia adicionou, animada — Sem parar.
Isaac tocou uma das muitas flores e a pegou para si, parando
de frente para Julia e colocando a miúda flor em um dos cachos do
penteado.
Ela ficou quieta durante o processo, o marquês mal sentindo a
respiração dela próxima a sua mão.
— Um lado bom do casamento é que poderemos viajar
sozinhos sem ninguém chamá-la por nomes. Conhecerá o mar um
dia. Verá até onde ele pode ir.
As sobrancelhas dela se uniram e um ar curioso tomou conta
dela.
— E há um lado ruim no casamento?
Isaac riu diante da súbita mudança de atitude.
— Não casando com uma mulher tão encantadora como a
senhorita.
Julia abaixou o rosto e retornou a olhar as flores no muro.
Isaac ficou calado, ainda tentando decifrar a noiva.
— O senhor é muito galanteador... — ela disse, o indicador
tocando a pétala da flor rosa — É assim com todas as mulheres?
Ele se constrangeu, pigarreando nervoso.
— Eu não tenho tanta sorte com as mulheres, Srta. Wilson.
Julia continuou de costas para ele, falando em um tom repleto
de lamento:
— Pois ela foi uma tola de não ter quisto o senhor como
marido...
Isaac ergueu as sobrancelhas. Estava ela falando de Tamsin?
Eram primas, deviam ter compartilhado confidências. Tamsin devia
ter reclamado dele para ela, falado sobre seu amor por Dominick.
— Srta. Wilson-
Julia se virou, o rosto erguido em um sinal de coragem, mas as
faces ruborizadas
— Lorde Winsford.
— Sim?
Ela deu um passo a frente, ergueu-se na ponta dos pés e o
beijou no rosto. Um beijo simples, mas que o fez corar como um
garoto.
Quando se afastou, ela se virou de costas novamente e voltou a
tocar nas flores.
— Teremos um bom casamento — ela disse mais para si
mesma do que para ele, que mal ouviu.
Ele não soube o que responder, estava confuso com as falas de
Julia. Será que ela se sentia ressentida por ele ter cortejada sua
prima antes daquilo? Era algo a levar em conta, ele achava. Talvez
ela não quisesse mais conversar com ele, pelo menos, por ora.
— Quer voltar para casa...?
Julia fez que não e voltou a segurar no braço do marquês.
— V-Vamos passear mais.
Isaac não se moveu e Julia bateu contra seu peito. Ela abaixou
o rosto em constrangimento, começando a dobrar o lencinho ainda
em sua mão. Ele se permitiu tocar o rosto dela, levantando-o e
procurando algum sinal de desagrado no toque, mas Julia só estava
corada.
A última moça que beijara na verdade não havia gostado de seu
beijo e Isaac não queria ser o desastroso primeiro beijo de alguém
novamente. Mas, bom Deus, queria beijá-la já fazia um tempo.
Durante todos os dias em que não foi visitá-la, temendo que ela não
estivesse feliz com a união, Isaac lamentava chateado o fato de não
se sentir livre para cortejá-la. Queria beijá-la, vê-la corar, levá-la
para algum passeio e lhe fazer visitas.
Mas não teve que fazer nada, Julia se esticou e o beijou nos
lábios sem pensar duas vezes.

***

O que ela deveria fazer agora?


Julia havia tomado coragem para beijar o bendito homem, mas
não sabia o que fazer. Ele a segurava pelo braço, mas ela não
ousava tocá-lo em lugar algum.
Exceto nos lábios, com os dela.
Ela se afastou, ainda que a sensação de ter tido os lábios de
outro alguém tocando os seus não tivesse se afastado dela. Mas
não demorou para que ela fosse tocada outra vez, Isaac a envolveu
com um dos braços pela cintura, beijando-a novamente com a
delicadeza que ela queria merecer.
— Relaxe, minha querida — a voz dele vibrou contra seus
lábios deliciosamente — Faça como eu.
Ele moveu os lábios sobre os dela e Julia o imitou, deliciando-se
com aquele toque tão secreto entre duas pessoas. O que mais
poderia haver de secreto entre um casal? Ela queria saber.
Julia deixou que seu corpo junto ao dele, o coração batendo tão
rápido que ela não sabia se sobreviveria aquilo. Estava beijando o
homem que ela já havia desistido de sentir alguma coisa. E estava
tomada com a esperança de que ele se apaixonaria por ela também
e viveriam um confortável casamento.
Então, quando pensou que o beijo se resumiria aquele contato
simples, Julia sentiu a língua de Isaac tocar a sua. Um toque bem-
vindo, que ela imitou também, fazendo-a sentir uma corrente elétrica
da cabeça aos pés. Suas mãos subindo pelo braço dele, apertando
o tecido leve da casaca de verão, passando pelo ombro e chegando
na nuca, onde seus dedos se perderam nos cabelos loiros dele.
Em meio ao crescente calor do beijo, Isaac a colocou contra a
parede de pedra, parando para admirá-la em silêncio. Os lábios
avermelhados, as flores ao redor de sua figura pálida a fizeram
reluzir em meio ao jardim.
Adorável, ele não resistiria a tanta beleza em uma pessoa tão
simples. Se já estava atraído por sua aparência, mal esperava para
poder conhecê-la ainda mais. Desvendar o que havia por trás de
tanta timidez e silêncio. Uma jovem inteligente, ele imaginava. Doce
e gentil. Aventureira, embora não explorasse aquilo.
Beijou-a novamente, uma carícia suave sobre o lábio inferior
dela, apenas para beijá-lo calorosamente logo depois. As mãos dela
logo foram subindo por seu peito, envolvendo-o pelo pescoço em
uma ousadia que ele julgou difícil de existir nela.
Com ela tão próxima de seu corpo, com os braços o
envolvendo, Isaac sentiu o desejo lhe tomar da cabeça aos pés e
não resistiu a puxar Julia para ainda mais perto com mais firmeza.
Todo aquele calor entre os dois o estavam deixando louco e ele
lutava fortemente contra o próprio corpo para que não deixasse seu
desejo transparecer. Sua noiva era inocente, aquele era seu
primeiro beijo, e ele não queria afugentá-la com aspectos do mundo
masculino que, talvez, ela não conhecesse.
Ela suspirou contra seus lábios, um tanto surpresa, mas
satisfeita com a firmeza dele, o bastante para voltar a beijá-lo e se
recostar em seu corpo. Seu vestido de verão deixava seu colo à
mostra e Julia quase se derreteu quando o beijo do marquês desceu
pelo seu pescoço.
Teve de se segurar nele, temendo cair com tanto deleite. Os
lábios quentes de Isaac foram de sua clavícula para seu pescoço,
chegando ao ouvido e mordiscando o lóbulo macio. De lá deslizou
pelo queixo e voltou aos lábios, sua língua sendo recebida pela dela
com saudades.
Julia aprendia rápido. Já beijava como uma mulher apaixonada
e experiente, saboreando de sua língua e provando de seus lábios.
Colava seu corpo no dele, ansiosa, as mãos percorriam suas costas
como se ele pudesse se dissipar a qualquer momento. Mas ele não
iria a lugar nenhum, ficaria ali, beijando-a por horas a fio se ela
permitisse.
— Julia? — a voz de Emanuelle se aproximou dos dois — Julia,
mamãe quer ir até uma Madame... Rutheralgumacoisa.
Isaac se afastou rapidamente, permitindo que Julia se
desgrudasse da parede. O estado dos dois não era um dos
melhores, ambos corados pelo beijo e Julia com raminhos presos na
parte de trás de seu penteado que estava frouxo.
Emanuelle apareceu por entre os arbustos altos de Gladys,
desavisada até que encontrou os dois. Era jovem, mas não era tão
ignorante como a irmã mais velha.
— Eu os atrapalhei? — ela perguntou, cautelosa — Posso voltar
depois.
— N-Não — Julia segurou o braço da irmã — Vamos, vamos.
Emanuelle olhou por sobre o ombro enquanto era arrastada
pela irmã, deixando o marquês que parecia disfarçar um riso.
Quando estavam na parte aberta do jardim e longe do noivo,
onde as janelas da mansão miravam as duas, Emanuelle cochichou:
— Ele lhe fez algo ruim? Você está toda bagunçada.
— N-Não — Julia pigarreou, terrivelmente encabulada, tocando
o penteado que fora amassado.
— Ah... — a irmã mais nova deu um risinho maroto e a cutucou
com o cotovelo — Estavam se beijando. Como é? Petúnia me disse
que beijos podem fazer coisas com uma mulher.
Julia a empurrou para longe, fazendo com que Emanuelle quase
caísse no chão.
— Ele não fez coisa nenhuma comigo! F-Foi só um beijo.
O primeiro e mais delicioso, mas ainda só um beijo.
A irmã estava rindo demais para se importar e empurrou a irmã
de volta, derrubando-a no gramado macio, correndo para dentro da
casa e batendo a porta antes de Julia poder entrar.
Julia bufou, limpando a saia do vestido e dando de cara com um
risonho Lorde Winsford caminhando na sua direção.
Céus, quando pararia de se constranger na frente dele? E que
ele não tenha ouvido toda a conversa tola sobre beijos.
— P-Parece que o senhor só me encontra em situações d-
desconcertantes — ela resmungou, aborrecida.
— É divertido ver a interação de irmãs, mesmo que de longe —
o homem a ajudou a se levantar, oferecendo-se para tirar os
raminhos que ainda estavam presos nos cabelos de Julia — E a
senhorita cai com bastante graça. Não se machucou, não é?
Ela fez que não, mas o traseiro estava dolorido. É claro, o
marquês não precisava saber daquilo. Gentil do jeito que era,
ofereceria-se para massageá-lo.
Não, aquilo não seria nada gentil. Seriam as coisas que Petúnia
mencionou e ela adoraria que ele massageasse aquele lugar.
O rosto de Julia ficou quente como brasa e ela terminou de se
arrumar sozinha. Da janela do segundo andar, David bisbilhotava os
dois.
— Ora, aquele... — Julia se abaixou e pegou uma pedrinha no
chão, arremessando com força na janela.
Isaac se assustou com a súbita mudança de espírito, mas, por
sorte, a pedra era miúda demais para causar algum dano na
vidraça.
— Lorde Winsford, espero que goste de ter irmãos — ela
suspirou, tristonha — Espere para conhecer os pequenos. Lamento,
mas seu sossego vai acabar assim que se casar comigo...
O marquês abriu um sorriso risonho.
— Estou cansado de ficar sossegado. E, por favor, pode me
chamar de Isaac.
Com um sorriso lisonjeado, mas um tanto acanhado de Julia,
Isaac tirou o último raminho do cabelo dela. No entanto, deixou a flor
que havia colocado lá.
Ela olhou para a janela, onde a cortina estava fechada e, pelo
menos pela última vez, esticou-se e beijou o marquês contra os
lábios delicadamente.
— E eu, de Julia.

***

Ser uma noiva era extremamente cansativo, Julia não demorou


para perceber aquilo. Sua mãe, sua tia e suas irmãs passavam todo
momento falando sobre enxoval, festas e outros detalhes que Julia
já não aguentava mais ouvir. Graças aos novos vestidos que
encomendara assim que chegara em Chester, grande parte do
enxoval havia sido retirada da lista. Só lhe sobrou roupas para
dormir, que sua mãe lhe assegurou que deveriam ser renovadas
para momentos mais íntimos.
Julia teve arrepios só de imaginar. O homem já estava fazendo
coisas com ela à distância.
Estava confortável demais em apenas se lembrar do beijo de
Isaac e de ter sentido todo seu corpo contra o dela naquele caloroso
momento.
Ah, se ele ao menos viesse visitá-la... Talvez tomasse coragem
para beijá-lo mais uma vez. Dessa vez ela deixaria ele fazer o que
quisesse com ela, estava muito curiosa.
Julia não continha a própria alegria por tê-lo beijado, algo que
não passara nem por seus sonhos já que nunca tivera esperanças
em ficar com Isaac. Mas a vida lhe pregara uma peça e ele estava a
tratando com tanta delicadeza - e beijava com tanto ardor. O
casamento não seria ruim, ela não teria de se preocupar em nunca
conquistá-lo porque, talvez, ele pudesse gostar dela também.
— Você está tão feliz — Mary comentou com as mãos contra o
peito — Oh, minha filha, ele é bonito, não é?
Julia riu como uma garotinha, enfiando seus trajes de montaria
no fundo do baú antes que a mãe visse e, silenciosamente,
ordenando a Natalie que cobrisse tudo com seus vestidos.
— É claro que ele é — Mary respondeu a si mesma, sentando-
se na cama enquanto observava a camareira da filha fechar mais
um baú — Em três dias você se tornará uma mulher casada. Depois
de tantos anos...
A mãe falava como se Julia estivesse beirando os noventa
anos. Quatro temporadas não era tanto tempo assim.
— Parece que não viverei para sempre com a senhora e o papai
— ela abriu um sorriso tristonho e se sentou ao lado da mãe — Mas
duvido que a tia Gladys me perdoará se eu não vier até aqui sete
vezes por semana.
Tia Gladys estava se esforçando para não se intrometer no que
Julia queria do próprio casamento, por isso passava parte do dia
visitando alguma amiga ou indo fazer suas caridades por Chester,
como uma boa condessa deve fazer. Assim que retornava, as
sobrinhas e a cunhada lhe faziam um apanhado do que já haviam
decidido.
A tia, eventualmente, falava sobre a escolha das flores e dava
alguns conselhos sobre o matrimônio que sempre eram bem-vindos.
No entanto, Julia mal dava ouvidos porque estava ocupada demais,
nervosa com o que aconteceria depois que passasse a viver com
Isaac.
Era tudo rápido demais, eles mal se conheciam. Era um misto
de ansiedade para logo ficar com ele e apreensão por não conseguir
predizer nada.
Não sabia o que esperar da convivência eterna com ele. E as
núpcias... Julia não fazia a mínima ideia do que acontecia, sua mãe
estava lhe enrolando dizendo que só poderia lhe contar na véspera
do casamento.
Que maldita curiosidade! Quando Petúnia chegaria? A prima,
com toda certeza, lhe daria informações detalhadas e
desavergonhadas das intimidades de um casal. Todas aquelas
vezes que a prima viera com o tal livro de Vênus ou coisa do tipo
escondido para lerem juntas e Julia simplesmente ignorou com um
“tenho mais o que fazer”... Como estava arrependida.
— Quando Petúnia chega? — Julia perguntou, impaciente.
— Amanhã pela manhã — Mary explicou, pondo-se de pé e
caminhando até o espelho do quarto para se admirar — Tem certeza
de que não quer mais ninguém? Nem Jane? Ela ainda está com a
barriga pequena, ela foi nos fazer uma visita e mal dava para ver.
— Jane está muito longe... — Julia lamentou — Mas escrevi
para ela dizendo que eu a visitaria quando desse.
Isso se ela mesma não estivesse com uma barriga imensa
esperando um futuro marquesinho.
— Que bom que falou com ela. E Tamsin? Ela está perto. A
barriga também não deve estar grande.
Julia ficou emburrada quase que de imediato. Olhou para
Natalie e não precisou dizer uma palavra para que a camareira se
retirasse rapidamente.
— Mãe... A senhora não lê os jornais?
Mary arrumou os cachos do penteado e alisou o vestido.
Comparada a irmã Amélia, Mary era cheia de vontade de viver.
Lucille era bastante parecida com a irmã mais velha. Joanna, a
caçula, não parecia com ninguém. Era única em várias maneiras,
incluindo sua forma de amar.
— Não, tantas fofocas maldosas, eu deixei de ler faz anos —
como uma epifania, Mary ficou estupefata — Oh, céus, era Lorde
Winsford que estava cortejando Tamsin, não?
— Tenho certeza de que foi apaixonado por ela... — Julia sentiu
um nó na garganta só por dizer aquelas palavras — E-Eu... Eu não
a quero no meu casamento, eu sei que é infantilidade, mas... Eu não
quero que ele a veja e talvez g-goste dela de novo.
Mary a olhou com piedade, rapidamente voltando a se sentar ao
lado da filha e lhe tomando as mãos.
— Ah, Julia, não precisa se sentir assim. Você gosta dele, não
é? Nesse tempo que ficou aqui em Chester com ele.
A mãe parecia crer no que as irmãs também acreditavam e Julia
não viu a necessidade de contar sua constrangedora história de
amor não correspondido.
— Gosto...
Mary deu um muxoxo tristonho e beijou as mãos da filha.
— Minha querida, seria de extremo mau tom não convidar toda
a família, mas como esse é um casamento de emergência... Vão
entender que não tivera tempo de chamar a todos — a mulher lhe
deu uma piscadela brincalhona — O que acha?
Julia riu e concordou, abraçando a mãe o mais apertado que
pôde.
— Senti saudades da senhora... Tia Gladys é sempre tão focada
nas etiquetas.
Mary caiu na risada, tocando o rosto um tanto tristonho da filha.
— Sua tia sempre foi assim, Julia. Quando eu conheci toda a
família de seu pai, ela era a mais empoada de todas. A filha mais
velha, era como se fosse o próprio herdeiro.
— Eu gosto muito dela — Julia sentiu a necessidade de explicar
— De verdade.
— Eu sei, filha.
Ainda naquela tarde, Madame Rutherford fez uma visita
especial para a noiva. Além de parabenizar Julia pela ótima união, a
mulher ficou mais que entusiasmada por costurar um vestido para
Julia. Daquela vez a futura marquesa teve total controle de seu
vestuário, acompanhada apenas da mãe, as duas bolaram um
vestido de noiva que combinasse perfeitamente com ela.
Aquilo a revigorou e, no final da tarde, convidou a modista para
o casamento como se fosse uma grande amiga. Surpresa com o
convite, Henrieta aceitou com a certeza de que seria um casamento
muito interessante.
CAPÍTULO 9

— Meu caro Lorde Winsford, o senhor não sabe o quão feliz eu


fico por saber que ganhou a aprovação de seu futuro sogro. Não
canso de dizer.
Winsford riu um tanto alegre e chamou Vivi para subir no sofá. A
gata pulou num piscar de olhos, indo direto para o colo do marquês
e se enrolando feito uma bolinha de pelos brancos.
— Tecnicamente a Srta. Wilson já tem idade para permitir o
próprio casório, mas... Sim, está tudo certo.
Price inspirou profundamente, tocando a lapela do paletó preto.
— O senhor precisa mandar que limpem a ala infantil, em breve
terá um herdeiro — o secretário estava energizado, esfregando as
mãos animadamente — Uma pena que a adorável noiva do senhor
não possa vir nos visitar, gostaria de conhecê-la logo. Já disse a ela
que o senhor tem gatos de sobra? Mulheres não gostam de pelos
em seus vestidos.
— Não se preocupe, Price. A Srta. Wilson gosta de gatos e ficou
mais que contente quando soube que há muitos por aqui.
Price assentiu com animação, tomando a liberdade para se
sentar no outro sofá e suspirar demoradamente.
— E quando será a cerimônia? Eu mesmo tomo conta de toda a
documentação referente ao dote da moça, seus advogados são
terríveis.
— Passe para as posses dela, acho que ela pode deter de
algum dinheiro perante a lei — Winsford acariciou a base da coluna
de Vivi, que levantou o traseiro e se jogou de barriga para cima —
Depois você resolve isso com meus advogados.
Price se calou em surpresa, arrumando os óculos. Parecia que
Winsford havia falado em outro idioma.
— O senhor não quer o dote? Com o valor poderá trazer um
novo maquinário para a fábrica ou melhorar as residências nas
fazendas. Os funcionários reclamariam menos, meu senhor, o que
evitaria mais revoltas.
Winsford tinha planos para o futuro da tecelagem, como a
introdução de outras fibras em seu repertório. Mas não precisava do
dote de Julia, tinha um plano em mente que o faria subir
rapidamente e o lucro, aumentar. Tecnicamente o dinheiro ainda
seria dele, mas com uma permissão assinada ele poderia ser usado
por Julia a bel prazer.
— Eu tenho dinheiro de sobra, quantas mulheres você conhece
que tem o próprio dinheiro sem precisar da aprovação do marido? A
Srta. Wilson me parece o tipo que gostaria de ter o próprio dinheiro
e não quero nenhum conflito entre nós.
— Madame Rutherford adoraria conversar com o senhor, meu
lorde — o secretário murmurou um tanto frustrado — Como quiser,
Lorde Winsford. Mais alguma ordem?
Winsford pegou a gata branca nos braços e lhe deu um beijo no
focinho rosado dela.
— Diga ao meu valete para ir ao alfaiate encomendar uma
roupa para o casamento. Algodão cinza com botões dourados. O
resto ele sabe como eu prefiro.
Price se levantou e assentiu, mais que acostumado a não ver o
patrão ir às lojas da cidade, mas apenas informar o que queria.
— E comunique ao Sr. Moseby e a Sra. Taylor que avisem toda
a criadagem que em quatro dias a Srta. Wilson chegará e que ela
deve ser muito bem recebida. É uma mulher tímida, então espero
não ouvir mexericos sobre sua falta de desenvoltura.
O secretário assentiu mais uma vez e, quando virou em seus
calcanhares, Winsford o chamou.
— Sim, meu senhor?
O marquês deixou que Vivi pulasse de seu colo e corresse para
fora da sala.
— Mandem limpar a ala infantil.
Price sorriu de orelha a orelha e reverenciou ao patrão com
imenso gosto.

***

No dia seguinte, pouco depois do desjejum em família, mais


duas visitas chegaram com as malas feitas. Petúnia e seu marido,
Lorde Vallance.
E Julia não estava preparada quando viu a prima descer da
carruagem com uma barriga enorme. Fazia tanto tempo assim que
ela havia se mudado para sua nova residência após o casamento?
Ela logo havia engravidado! Era tão rápido assim? A barriga parecia
tão pesada. Será que doía quando o bebê ainda estava na barriga?
Julia tentou não ser tomada por temores e focar no fato de que
Petúnia estava ali por ela.
Sabia que o único motivo de Lorde Vallance ter concordado com
aquela viagem era o fato de estarem em Manchester com os Bowley
e a baronesa viúva para Petúnia passar a gravidez com os pais. Por
outro lado, Jane - que estava grávida e de quatro meses - não iria
visitá-la tão cedo. A viagem de Londres até Chester era um inferno.
Apesar da barriga, Petúnia continuava a mesma coquete
serelepe, quase puxando o marido pelo braço para andarem mais
rápido. Todos saíram para recebê-los, embora os homens e Tia
Gladys houvessem parado ao pé da escadinha de pedra -
aguardando educadamente.
— Julia! — Petúnia acenou avidamente — Está todo mundo
aqui!
Emanuelle, Laura, Mary e Julia foram todas de encontro com
Petúnia. Cada uma abraçou cuidadosamente, tocando sua barriga
com curiosidade e deleite. E, na vez de Julia, ela ficou com um
pouco de medo de encostar na barriga da prima. Só de pensar que
havia uma pessoinha ali dentro a deixava nervosa de fazer algo de
errado.
Recuou as mãos, ansiosa, mas beijou o rosto da prima e sorriu
para ela.
— Senti sua falta.
— Eu também! — respondeu a baronesa, para depois cochichar
para Julia — Conte-me tudo depois.
— Você está tão bonita! Sua mãe deve estar tão feliz, que
alegria! — Mary exclamou, tocando o rosto corado da sobrinha —
Lorde Vallance tem cuidado muito bem de você, pelo visto.
— O prazer é todo meu, Sra. Wilson — o homem alto e de
cabelos escuros cumprimentou a mulher com um elegante aceno de
cabeça, fazendo o mesmo com as outras solteiras — Parabéns pelo
noivado, Srta. Wilson. Winsford é um homem de ótima índole, deve
ter a ficha mais limpa desse país.
— E é bonitão! — adicionou Laura com o indicador erguido.
— Laura! — Mary a repreendeu com um riso embaraçado — O
que Lorde Vallance irá pensar de você?
— Que é uma louca como eu! — disse Petúnia, rindo com a
prima mais nova — Vamos entrar, não vejo a hora de me sentar
novamente... Meus pés estão me matando.
Sem pestanejar, Vallance a segurou pela mão gentilmente e a
guiou para dentro do casarão de Gladys. Assim que entraram o
restante dos comprimentos foram dados e as boas vindas, dadas.
Julia queria mesmo era ficar a sós com a prima, afinal, ela era a
única com quem poderia sair perguntando tudo sobre a vida
matrimonial sem vergonha alguma.
Havia Jane também, mas ela estava muito longe. Tinha certeza
que a amiga lhe contaria nos mínimos e mais científicos detalhes.
Infelizmente mal conseguiu dar um oi para a prima, logo ela se
recolheu para dormir já que mal dormira durante a viagem. Segundo
ela, os enjoos pareciam voltar durante longas viagens.
Julia passou as horas seguintes roendo as unhas para lá e para
cá, não estava nem ouvindo o que a tia e a mãe falavam sobre o
casamento e o cardápio. Desde que tivesse bolo de chocolate para
ela estava tudo bem. A única coisa que a tirou de sua ânsia por
respostas foi quando um buquê de Winsford chegou junto de uma
caixa cor creme grande e um bilhete repleto de palavras carinhosas.
Dessa vez o bilhete não parecia genérico.

Minha querida Julia,


Sua beleza me encantou desde o momento em que finalmente
pude notá-la. Agora que sei que está satisfeita com nosso noivado,
saiba que irei cobri-la de elogios e beijos para que jamais se
arrependa dessa união. Assim que eu puder, lhe farei uma visita e
transformarei minhas palavras em ações.
Espero que goste do presente, são as cores da estação.
Carinhosamente,
Isaac

Ela se derreteu todinha, guardando o bilhete junto de todos os


outros que vieram com os outros buquês. Voltou sua atenção para a
caixa, cuja tampa exibia um logo muito bonito escrito Ballard Textile
Co. Tudo fechado com um laço de fita de cetim azul claro.
Com todo o cuidado do mundo, Julia abriu a caixa e sorriu de
orelha a orelha quando tirou o papel de arroz que cobria o conteúdo.
Eram dez novelos de lã grossa, nos mais variados tons claros e
femininos. Azuis, amarelos e verdes. Ela poderia tricotar o que
quisesse, pensou, ao se lembrar que seu futuro marido era dono de
uma tecelagem. Ela sempre teria material para costurar e tricotar,
como gostava de fazer.
Seria ainda melhor se o marquês fosse dono de um haras.
Iria arrumar uma maneira de encontrar com Isaac assim que
sanasse suas dúvidas com Petúnia. Após o beijo do dia anterior, seu
primeiro beijo, que fora tão ardente, ela estava muito curiosa para
saber o que acontecia depois. Ah, ela queria saber. Sem contar que
em breve ela compartilharia a cama com Isaac no sentido mais
carnal possível.
Deus, estava ciente daquilo tudo mesmo? Iria se casar com ele
em menos de uma semana! Ele, por quem ela ficou sonhando
acordada por anos e depois teve um coração partido sem Isaac nem
saber. No final das contas tudo deu certo, mesmo que de maneira
um tanto errada.
Ela contaria para ele que estava apaixonada bem antes daquilo
tudo, queria que ele soubesse de seus sentimentos da forma certa.
Não sabia ao certo como contar, embora tenha planejado flertar com
ele no baile de Tamsin no ano anterior. Não fizera a mínima ideia de
como iria fazê-lo, mas pelo menos estava decidida de que iria flertar
com ele no restinho de seu noivado.
Queria que ele soubesse que alguém sempre gostou dele. Que
ele não precisava se sentir chateado por Tamsin ou qualquer outra
moça não tê-lo quisto. Ela o queria antes e o queria naquele
momento.
Julia se balançava toda feito uma criança quando pensava
naquilo. Podia abraçá-lo, beijá-lo quando quisesse Céus, era
maravilhoso, estava tão feliz que já nem mais pensava na vergonha
que passou na casa dos Smith e nem em nenhuma preocupação
com o casamento.
Após sorrir sozinha em seu quarto e beijar todos os bilhetes que
o noivo lhe mandara, Julia desceu para a biblioteca do falecido tio
onde iria ler um pouco. Os homens haviam ido cavalgar nos
bosques que rodeavam Chester com cavalos alugados e ela estaria
livre para usar a biblioteca - que havia virado o único local para eles
conversarem em paz.
Quando quase chegou ao cômodo escuro e aconchegante, foi
surpreendida pela agradável presença da prima no pequeno
corredor do primeiro andar.
— Estava indo lhe procurar. A casa de sua tia é tão bonita —
Petúnia sorriu de orelha a orelha, dando a mão para Julia assim que
se encontraram — Deus, vai se casar! Está animada? Eu estou tão
feliz que vai se casar, prima. Elliot estudou com Lorde Winsford
quando eram garotos, não eram muito próximos, mas me disse que
é um homem honrado e que jamais irá maltratá-la.
Ela sorriu, encabulada, e acabou rindo toda feliz.
— Ele é tão gentil — finalmente podia dizer para a prima o que
achava de Winsford — Tão doce.
Petúnia sorriu e entrou na biblioteca para logo se sentar numa
das poltronas vazias. Julia olhou para a barriga dela, depois voltou
sua atenção para o rosto.
— Mas ainda bem que está aqui — Julia fechou bem a porta e
foi rapidamente se sentar ao lado da prima, abaixando a voz — Nos
beijamos... De um jeito tão... Tão...
Uma das sobrancelhas loiras dela se ergueu de forma atrevida.
— Tão caloroso?
Julia fez que sim, corando e cobrindo o rosto com as mãos.
— Estou tão feliz que veio, certamente precisava de você ou de
Jane — ela suspirou — Não sabe da confusão que aconteceu para
termos de nos casar... Queria que estivessem aqui, senti-me tão
sozinha com as moças daqui.
— Já não gosto de nenhuma delas — a prima franziu o nariz,
mas logo voltou a sorrir — Mas está feliz com o casamento, não
está? Parece que está, pelo menos!
— Estou, muito... — a mais velha sorriu, encabulada — É uma
longa história, prima, mas estou contente com o casamento. E...
Falando nisso, quero que me diga o que acontece depois.
— Depois do que?
— Depois que casa — ela a olhou sugestivamente, muito
envergonhada para citar qualquer coisa — A primeira noite.
A prima caiu na gargalhada, para terror de Julia que tinha
certeza que o rosto ficou uns cinco tons mais rosado.
— Aposto que está arrependida de não ter lido aqueles livros
comigo!
Julia deu de ombros, fingindo não dar a mínima.
— Trouxe algum com você? — ela logo perguntou, fazendo a
prima cair na gargalhada de novo.
— Não, nem ao menos pensei nisso... — Petúnia tocou a
gargantilha de brilhantes — Mas estou aqui para sanar suas
dúvidas, prima.
A prima mais velha assentiu e colocou uma almofada no colo.
— Como é o corpo dos homens?
Petunia riu em grande divertimento.
— Muito curioso... Deixe-me pensar.
— Não se esforce, sei que seus nervos não aguentam.
Ela se irritou e arremessou uma almofada contra Julia, que
desviou com uma precisão surpreendente.
— Certo, certo. Você quer que eu desenhe?
— Uma aquarela de um homem nu? — Julia corou só de pensar
— Não desenhe seu marido!
Petunia gargalhou outra vez e deixou a ideia de lado com um
aceno brincalhão.
— Já que não consegue descrever — Julia revirou os olhos com
impaciência — Diga-me o que acontece, pelo menos.
— Certo. Lorde Winsford já a beijou, sim?
Julia ficou emburrada de constrangimento, mas assentiu.
— Os homens... Bem, Elliot diz que nem todos fazem isso, mas
ele podem nos beijar em outros lugares. E eu acho maravilhoso, se
o marquês não o fizer, diga para fazê-lo.
— Outros lugares? — a mais velha perguntou, demonstrando
nada além de ignorância — No rosto, é claro. Eu já o beijei no rosto.
Petúnia riu e fez que não.
— Ah, Julia... — ela fungou, secando uma lágrima risonha —
Nos seios e em regiões ainda mais privadas. Beijos muito íntimos.
Um tom rosado apareceu no rosto da prima e foi aumentando
conforme ela pensava como deveria ser ter os lábios de Isaac em
partes tão delicadas de seu corpo.
Sentiu algo acontecer debaixo de sua combinação, em um local
que ela julgava mais dormente que sua esperança em conquistar
alguém. Rapidamente se empertigou, olhando bastante séria para a
prima.
— E se pode b-beijar os homens também?
Daquela vez, foi Petúnia quem corou e disse bastante
escandalizada:
— A-Apenas o seu marido!
— Asseguro-lhe que não há mais nenhum outro homem no meu
caminho. E o que mais?
— A parte do homem é diferente da nossa, como você deve
saber por ter visto seus irmãos mais novos nus por aí. Óbvio que
não se parece com a de um menino.
Julia estava franzindo o nariz com asco ao imaginar os
irmãozinhos nus, nunca vira algo tão curioso, pequenino e...
Esquisito.
— É bonito! — Petúnia assegurou, logo rindo de forma marota
— Pelo menos o de meu marido... Eu lamento, prima amada, mas
minha única referência é Elliot. Ele é um amante maravilhoso, mas
nem todos devem ser.
— Céus, você não me explica nada! E eu não quero saber como
é que Lorde Vallance fica quando está nu.
— Ah, espere, estou pensando — a moça cruzou os braços,
chateada — Os homens nos beijam, nos acariciam também, por
todo o corpo. Então, nós ficamos... Prontas para que sejamos...
Hm... Não encontro uma palavra bonita. Então... Eles colocam
dentro de nós, pelo... Não sei explicar sem parecer horrível. Lá...
Naquele lugarzinho.
Julia bufou e se levantou. Não queria perguntar para a mãe,
mesmo sabendo que era dever de Mary explicar as núpcias para a
filha na véspera do casamento.
— Deixa para lá. Vou perguntar ao marquês antes da
consumação... T-Tenho certeza que ele saberá me explicar com
muita gentileza.
— Sendo seu marido, não vejo porque não perguntar.
— Se eu ao menos pudesse ver o corpo de um homem antes
poderia imaginar. Aquelas estátuas gregas... Eu nunca parei para
olhar.
A prima resfolegou, aborrecida.
— Aquelas estátuas são minúsculas, eu só vi um homem nu em
minha vida, mas Elliot me garantiu que poucos homens se
assemelham a estátuas. Mesmo os cavalheiros não tão robustos.
— Se você diz...
Petúnia deu um estalo de língua e se levantou bem
devagarinho, para depois sentar em frente à escrivaninha e puxar
um dos lápis à disposição.
Julia tentou bisbilhotar ao parar de pé ao lado da prima, mas
Petúnia se curvou na frente da folha, desenhando rapidamente.
Depois de quase cinco minutos de pé ao lado da escrivaninha, Julia
puxou o papel das mãos da prima e correu até o outro lado da
biblioteca.
O que diabos era aquilo no papel? Não compartilhava nenhuma
semelhança com o que vira de seus irmãozinhos.
— Não consigo compreender o que é o que.
— Está fora de contexto — Petúnia se levantou e puxou a papel
de volta e apontou para o que Julia identificou como a ponta da
coisa — Essa parte aqui merece muitos beijos. E também é a que
nos toca pela primeira vez antes de... Ir.
Julia tombou a cabeça de lado, curiosa.
— Compreendo.
Repentinamente a porta da biblioteca se abriu num estrondo,
fazendo as duas gritarem de susto antes de perceberem que era
Laura e David.
— David...! — Julia riu nervosa, amassando a folha por trás das
costas — Não deveria estar cavalgando?
Os olhos de David ficaram pequeninos em desconfiança e as
duas primas se entreolharam.
— Me dê isso aqui, menina — ele puxou a folha das mãos de
Julia antes mesmo dela conseguir se defender — Mas o que
diabos...?
Laura se esticou na ponta dos pés, olhando pelo ombro do
irmão.
— O que é isso? Parece uma daquelas abóboras compridinhas
e meio tortas.
David amassou o papel em uma velocidade astronômica,
assustando a caçula.
— Laura!
Ela piscou.
— O que foi? É só um desenho, David. Não precisa se exaltar.
O homem suspirou, impotente.
— Isso é obra sua, não é, Petúnia?
Petúnia deu de ombros bastante charmosa, alisando sua barriga
avantajada.
— Tenho me aventurado em desenhos anatômicos.
O homem devolveu o papel para a prima.
— Tome aqui a sua abóbora.
A jovenzinha abriu um sorriso amarelo e dobrou o papel,
guardando-o dentro do corpete do vestido.
— Alguém tem de elucidar a vida matrimonial para ela, primo.
Ele olhou para Julia, tão resoluta quanto Petúnia.
— Um dos dois precisa saber, pelo menos — o homem
resmungou, cruzando os braços — Mamãe irá lhe explicar o
processo.
— De que estão falando? — Laura perguntou, passando para
dentro do círculo familiar.
— Da vida matrimonial de Julia — Petúnia explicou, cheia de
charme — Dela e Lorde Winsford, que parece resumido a beijos no
rosto.
Julia cruzou os braços, corada de irritação pelo deboche da
prima.
— Eu não tenho interesse em saber sobre os beijos de minha
irmã — David resmungou — E pare de falar sobre essas coisas na
frente da Laura.
A caçula estava muito entretida com as miudezas espalhadas
pela biblioteca para ouvir sobre o que falavam.
— Ora, David — Petúnia revirou os olhos — Tem de aceitar que
Julia e o marquês serão marido e mulher. Não pode ficar irritado
porque nós fazemos com nossos maridos o que vocês homens
fazem com qualquer uma. Os prazeres a dois são maravilhosos.
David ficou irritado com toda aquela conversa.
— Vocês passam tempo demais com Jane e olha que eu nunca
me importei com essas coisas — ele virou em seus calcanhares e
marchou para fora da biblioteca.
Laura, confusa, olhou para a porta fechada e depois olhou para
as duas a sua frente.
— Ele está com ciúmes, não é? Pobrezinho... Vou falar com ele!
E Laura saiu tão serelepe quanto quando entrou.
Julia deu um longo e cansado suspiro, sentando-se na poltrona
novamente.
— Lorde Winsford terá de se acostumar com meus muitos
irmãos...
— Aposto que ele vai adorar — Petúnia gesticulou e se sentou
outra vez, lentamente e com a mão na barriga — Por que não vai
vê-lo? Ainda está cedo, pegue um cavalo e vá.
— Agora? — ela ergueu as sobrancelhas, nunca havia feito
nada tão desinibido como sair escondida.
— É, agora. Vão se casar daqui a quantos dias? Três? Se
fizerem algo agora ou daqui a três dias, o bebê ainda virá no tempo
certo. Juro que não conto a ninguém!
Julia ficou terrivelmente corada e boquiaberta.
— E-Eu não vou fazer nada disso agora! Nem mesmo se eu for
vê-lo! E-Eu só estou com saudades do marquês.
Petúnia gargalhou e assentiu.
— Eu sei, estava brincando!
Julia bufou e cruzou os braços. O noivo devia estar na fábrica,
local que ela estava até um tanto curiosa para conhecer. Nunca
havia nem visto uma fábrica de perto na vida, uma dama como ela
não tinha o que fazer nos distritos mais industriais de Londres. Mas
o marquês estaria lá, em sua fábrica.
Era só isso que queria, vê-lo uma última vez antes do
casamento. Antes de serem marido e mulher.
CAPÍTULO 10

Faltavam três dias para o casamento e Isaac não fazia a mínima


ideia de como andava o planejamento da cerimônia. Havia feito sua
parte em pedir uma licença para o vigário local casá-los fora de uma
igreja e as criadas de sua casa haviam limpado cada cômodo com
tamanha animação que parecia que a comitiva real iria viver na
Mansão Ballard.
Uma marquesa!, elas repetiam enquanto limpavam os cômodos.
Aquilo enchia Isaac de um calor reconfortante, mas, infelizmente,
não conseguia ir visitar Julia e deixar a fábrica nas mãos de seus
empregados. Era verão, a temporada começaria na próxima estação
e a encomenda de tecidos para todas as capitais estava a todo
vapor. Ninguém queria tecidos repetidos em suas lojas, modistas
não queriam modelos iguais aos da temporada passada e cada
debutante tinha a esperança de achar sua cor perfeita.
Fez o possível para que ela soubesse que ele se importava.
Mandou flores brancas, ela havia dito que gostou dos lírios, certo? E
mandava acessórios que pareciam fazer o gosto dela. Nas vezes
em que a viu percebeu que Julia tinha um estilo simples e modesto.
Após fazer sua ronda pelos operários e tentar manter uma
conversa simpática com todos sem que pensassem que estava
planejando demiti-los, Isaac atravessou o pátio cheio de veículos de
transporte, tirando sua casaca verde escuro enquanto subia as
escadas de metal em direção a sua sala. Quando chegou na porta,
ouviu passos vindo de dentro do escritório.
Havia mais alguém na sua sala, ele podia ouvir o som de algo
se movendo. Papéis sendo manuseados lentamente. Alguém estava
lá, um funcionário intrometido fuxicando suas correspondências e
contratos. Ou um espião. Ele sabia muito bem que a indústria têxtil
de Cheshire não gostava da grandeza dos Ballard e o monopólio
que ele tinha sobre o algodão e a lã.
Abriu a porta de supetão, pronto para pegar o intruso, quando
viu que era ninguém mais ninguém menos que Julia Wilson.
Ela parou, petrificada, de pé em frente à estante do escritório,
folheando um dos livros-caixa como quem entende muito bem sobre
o que estava escrito ali.
Seus dedos enluvados em renda branca pararam enquanto
folheava uma das páginas. Era um dos pares que ele havia dado,
gostou do detalhe do cadarço fino que firmava a luva no pulso. Uma
fita de cetim fina com um pingente dourado.
Julia trajava um vestido azul claro e com babados brancos ao
redor do corpete, uma echarpe creme caída sobre os ombros e um
chapéu com flores amarelas que fora deixado em cima de sua mesa
de chefe, ao lado da sombrinha branca.
Ela parecia muito bem instalada ali, como quem já reconhece
que será casada com o proprietário. A cadeira do marquês estava
torta, indicando que ela havia se sentado exatamente em seu posto
de proprietário.
— Julia — Isaac pigarreou baixinho, fechando a porta nas suas
costas com bastante cuidado e colocando a casaca no cabideiro
com a cautela de quem se aproxima de um animalzinho assustado
— Não quero soar rude, mas... O que faz por aqui?
Ela fechou o livro grosso e o devolveu para a estante,
arrumando as saias de modo ansioso e unindo as mãos na frente do
colo.
— Vim vê-lo.... Senti falta de você.
Ele sorriu, sem jeito, mas verdadeiramente contente com a
atenção dela.
— Desculpe-me se não pude visitá-la, mas... Você veio
sozinha? Onde está sua criada?
Ela fez que sim, tomando a liberdade de se sentar numa das
duas cadeiras acolchoadas em frente a mesa de Isaac.
— Digamos que eu... Fugi.
— Fugiu... É claro — o marquês riu consigo mesmo, coçando os
cabelos e se sentando na cadeira ao lado, para ficar mais próximo
dela — Está muito bem vestida para quem veio cavalgando. Nem
andando, seus sapatos estão bem preservados.
Julia olhou para os próprios pés, calçando sapatilhas de couro
branco e fivelas douradas, encolhendo os pés e tentando escondê-
los. A moda vigente mostrava mais dos pés do que ela gostava.
— E-Eu peguei um cabriolé que minha tia não usa e vim. Minha
prima sabe que vim e contará a todos caso pensem que eu sumi da
face da Terra. E já estamos noivos, qualquer escândalo que pense
que aconteceu em minha saída será resolvido com um casamento
instantâneo.
Ele riu outra vez, entretido. Julia era uma graça de tão inusitada.
Talvez David tenha razão, havia mais por trás da timidez que ele
não conseguia ver.
— Presumo que estava interessada nas finanças da fábrica —
ele decidiu mudar o assunto, logo tomando ciência de que Julia não
era um de seus funcionários ou clientes — Desculpe-me pela falta
de consideração, você quer beber alguma coisa? Posso pedir algo
para comer também.
— Conhaque — Julia disse logo de primeira.
— Eu pensei em chá, mas sem problemas — Isaac riu mais
uma vez e se dirigiu para o pequeno decantador no canto do
escritório — Conhaque.
Julia se remexeu na cadeira.
— E-Eu não bebo muito, só quando fico... Nervosa.
O marquês serviu uma dose pequena e a diluiu em água,
servindo outra para si mesmo.
— Acho que todos nós fazemos o mesmo — ele lhe entregou o
copo e voltou a se sentar — Seu irmão me disse que você tem
interesses modernos por ter crescido com Lady Rosenburg.
Julia bebeu a dose toda de uma vez e colocou o copo em cima
da mesma com um baque forte devido aos dedos trêmulos do que
parecia ser embaraçado.
Isaac olhou para seu copo ainda intocado e deu um gole.
— Não é nada de mais, eu não farei nenhuma revolução como
Jane deseja. Pelo menos não no nível em que ela planeja.
O marquês negou com um aceno sutil.
— Acredito que as mulheres têm o direito de pensar o que
quiserem sobre qualquer coisa.
Ela agradeceu com um meneio tímido.
— Desde que não se metam em problemas, é claro — ele
adicionou.
Dessa vez Julia pareceu discordar sutilmente, um tanto
pensativa.
— Eu só... — ela voltou a se explicar — Eu só fiquei curiosa,
mesmo. Para saber como são as transações de uma fábrica. Gosto
de ver os números fluindo para um bom resultado. Às vezes eu
ajudava meu pai com a administração porque meu irmão ficava
sempre ao mar.
— Então tem interesse nisso?
Ela riu de si mesma. Seus interesses eram bem domésticos
quando o assunto não era hipismo. Bordar, costurar, sonhar
acordada com uma vida feliz. Os números eram só um passatempo,
assim como seu interesse em aprender outros idiomas.
Era uma mulher curiosa, apenas.
— É claro que suas transações internacionais parecem
promissoras e que o lucro está maior que os gastos. M-Mas não
desejo ser sua contadora, Lorde Wins... Isaac.
Ele sorriu ao ouvir seu nome e colocou o copo sobre a mesa.
Sentindo-se envolvido na presença dela, Isaac tomou a liberdade de
lhe segurar uma das mãos dela que estavam sobre o colo.
Julia olhou para aquilo com surpresa, mas não se afastou.
Esticou-se um pouquinho, pedindo um beijo como uma gatinha
pedindo carinho. Isaac se encheu de calor por dentro.
Ela queria seu beijo. Aquilo não era maravilhoso? Ela queria.
Ele não tinha de se sentir renegado por Julia ou mal por beijá-la.
Muito menos envergonhado.
Sem pestanejar, Isaac a tocou em seu rosto corado e a beijou
delicadamente. Nada mais que uma carícia íntima em seu lábio
inferior, antes de Julia devolver seu beijo com mais intensidade e
envolvimento. A mão delicada dela subiu pelo seu braço, apertando-
o levemente, como se o explorasse. Os dedos tocaram a porção
exposta do pescoço até chegar ao rosto de Isaac, saboreando sua
língua mais profundamente.
Quando se afastaram, ela olhou para o lado, rindo sozinha de
algo que Isaac não sabia. Tocou os lábios com as pontas dos dedos
e depois voltou a olhá-lo, bastante marota.
Ela estava tramando algo ou pensando em algo que ele jamais
saberia o que era. E aquilo só a deixava mais interessante.
Desvendar os espacinhos de sua mente escondidos pela timidez.
Os dois se dariam bem, sim. Beijavam-se bem. Logo mais
seriam amigos e... Bem, que fossem mais que amigos também.
Porque ele gostava de Julia, sua afeição crescia a cada hora e ele a
desejava como uma mulher.
— Você é encantadora, Julia. Não me canso de dizer.
Ela abaixou o rosto, escondendo um sorriso de lisonja. Julia
então inspirou e apontou para alguns papéis soltos sobre a mesa
larga, perguntando com certo entusiamo:
— O que são essas coisas?
Isaac viu sobre o que ela se referia. Diagramas de máquinas,
engrenagens e sistemas a vapor e a água.
— Diagramas das máquinas que usamos aqui — respondeu ele,
torcendo para que Julia se interessasse — Eu as analiso antes de
comprá-las, para ter certeza de sua eficiência. Algumas máquinas
recém patenteadas podem causar mais prejuízo do que lucro.
Isaac amava engenharia mecânica, foi o responsável por
convencer o pai a começar a modernizar a fábrica. Lamentava muito
que as escolas técnicas de engenharia mecânica ficassem todas no
continente, principalmente na França e eram poucas, algumas muito
pequenas. Quando foi para Manchester estudou Direito, como todo
herdeiro costuma fazer. No entanto, se fosse sincero, não gostou de
nenhum ano seu na universidade. Se pudesse, teria feito uma
Grand Tour pelo continente, mas, infelizmente, não queria deixar o
pai sozinho. Uma viagem acadêmica, não uma voltada para
atividades mais sórdidas.
— O que achou? — perguntou, olhando-a com uma expectativa
controlada.
Julia pegou um dos diagramas para si, observando com
curiosidade e atenção.
— Não compreendo bem, mas parece fascinante como alguém
consegue pensar em detalhes pequenos para algo grande funcionar.
— De fato, é fascinante — ele sorriu, abriu a gaveta central da
escrivaninha e tirou de lá um rolo — Estou tentando idealizar uma
máquina de bordar que seja rápida e eficiente. Que seja capaz de
bordar uma estampa em grandes quantidades.
Julia averiguou os desenhos dele, leu as anotações miúdas nas
laterais. Não passava de ideias avulsas que ele tinha de vez em
quando. Quando tivesse tempo, ele começaria a pensar no
funcionamento geral da máquina. Então, virou-se para ele,
fascinada:
— Você quem fez isso, meu lorde?
— Sim, mas são só rabiscos e ideais de setores que comporiam
a máquina. Infelizmente, não tenho muito tempo para trabalhar em
meus projetos. Quando eu era criança, tinha tempo de sobra para
inventar brinquedos tolos.
Ela deu um muxoxo triste e devolveu o papel enrolado para ele.
— Mas... Corrija-me se eu estiver errada, mas uma máquina
assim não seria capaz de tirar o emprego de mulheres que bordam
estampas à mão? As costureiras de uma modista trabalham muito.
Isaac assentiu, não havia pensado que Julia teria um
pensamento tão crítico sobre o assunto. Era um argumento comum
contra a modernização das fábricas, de que isso tiraria o emprego
das pessoas.
— Tem razão — e, de fato, tinha — Mas pense comigo, minha
querida. Um vestido com um bom bordado exclusivo e feito a mão é
muito caro, mas um feito em massa, com um bordado padronizado e
feito aos montes é muito mais barato. Moças de famílias mais
humildes teriam acesso a roupas de melhor qualidade. Estando
vestidas melhor, elas teriam mais chances de serem empregadas
como professoras ou preceptoras, por exemplo. Os homens também
estariam mais bem vestidos, poderiam trabalhar em outros lugares.
Julia pareceu pensar, então moveu a cabeça em concordância.
— Nem tudo é preto no branco, é claro.
— Fico feliz que compreenda. Mas artesãos nunca perderão
seu valor e respeito, asseguro-lhe que alguém sempre irá buscar
pelo trabalho detalhado de mãos talentosas.
A noiva assentiu outra vez, mas ainda parecia muito pensativa.
Estava séria, as sobrancelhas franzidas formavam uma ruguinha em
sua testa.
— Quer dar uma volta pela fábrica? — ele perguntou, tocando a
ruga com seu polegar e emendando em uma carícia pela têmpora
dela — As fazendas ficam a vinte minutos daqui com bons cavalos,
podemos ir se quiser.
— C-Claro! — o rosto dela corou de animação — Sr. Price disse
que me daria uma tour, mas fiquei esperando ele voltar e até agora
nada. E eu adoro fazendas.
— Suponho que tenha sido ele quem a colocou aqui dentro sem
que eu visse.
Julia se levantou, arrumou as saias e recolocou seu chapéu.
— Ele é bastante eficiente. É o marido de Madame Rutherford,
não? Eu o vi em seu ateliê.
Instantaneamente Isaac caiu na risada, demorando alguns
segundos para se recuperar daquilo. De onde ela tirou aquela
informação absurda? Isaac não conseguia ver situação mais
impossível que a escandalosa modista da cidade se casando.
— De quê ri, meu lorde? — Julia estava notavelmente irritada,
dando um laço forte no chapéu.
Ainda risonho, Isaac a puxou pela cintura gentilmente a
cochichou em seu ouvido:
— Eles são amantes.
Ela o olhou surpresa, as sobrancelhas erguidas. Os dois
estavam ali, para qualquer um vê no ateliê da modista.
O marquês riu da expressão escandalizada da noiva e a deixou
que segurasse seu braço com a mão livre.
— Acho melhor avisar que estou com você. Melhor pensarem
em coisas inapropriadas do que pensarem que você fugiu.
Julia anuiu, dando um muxoxo baixo. Queria fazer coisas
inapropriadas.
Isaac abriu a porta do escritório, levando Julia ao longo do
corredor de paredes de madeira escura, onde uma escada em
espiral os levou até o vestíbulo principal da fábrica. Um grande
tapete vermelho adornava o centro do vestíbulo retangular, enormes
bobinas de tecidos coloridos pareciam formar um tipo de jardim
inglês feito de algodão e lã. Havia duas portas no vasto cômodo,
além da enorme porta principal que estava aberta, revelando os
campos verdejantes que rodeavam a fábrica e os jardins floridos ao
redor da estrada que recebia os compradores.
É claro que Isaac não mostraria as partes menos elegantes da
fábrica, onde os operários estavam.
— Eu não passei por aqui — Julia comentou, tocando uma das
bobinas com lã grená, falando consigo mesma — Que lindo tom,
acho que gostaria de ter um vestido nessa cor...
— Ficaria bonito em seu tom de pele — o marquês comentou,
fazendo com que Julia afastasse as mãos da lã imediatamente —
Fique a vontade, Julia.
Ela voltou a tocar, colocando parte do tecido sobre o antebraço
nu.
— Eu posso levar?
— Acredito que logo você terá tanto poder quanto eu por aqui —
Isaac riu do decoro dela — Escolha quantos tecidos quiser, há mais
exemplares nos estoques. Podemos ir até lá depois do casamento e
você escolhe os que mais gostar.
— Eu posso levar um pouco desse agora? — ela perguntou —
Eu gosto de costurar roupinhas para o Sir Jonas e para qualquer
bebê da família. Minhas três primas estão grávidas e minha tia deu
à luz a uma linda menininha recentemente.
Lorde e Lady Bowley, após quase vinte anos de muitas
tentativas, tiveram a pequena Hope. Esperança em inglês, tudo o
que eles sempre tiveram. Era uma bebezinha saudável e muito
loirinha, a família inteira estava a ponto de canonizá-la como um
milagre.
— Ela é muito bonitinha... — Julia disse mais para si mesma.
O marquês assentiu com um sorriso contente. Ela gostava de
bebês, o que era ótimo, porque logo fariam alguns.
Isaac respirou fundo, olhando para o belo perfil de Julia
examinando o tecido escuro. Seus dedos deslizando pela maciez do
tecido o fez pensar nos dedos dela deslizando em seu corpo. E os
dele, no dela.
Fazia tempo que não desejava uma mulher, era revigorante. Ela
era bonita, o tipo de beleza elegante e simples. Havia um ar de
realeza saindo de Julia que a deixava muito refinada. Ela era tão
feminina, aquilo ligava seus desejos mais intensos. Queria saciar
sua fome em toda aquela feminilidade, ser envolto por uma mulher
em seus braços, sentir o corpo pequeno dela sobre o seu.
— Você gosta?
Ele piscou, aturdido. Estava começando a ficar com calor.
— De quê, minha querida?
Julia corou com o trato carinhoso e voltou a examinar o tecido.
— De bebês... Gostaria de ser pai? Digo, no sentido afetivo.
Claro que um herdeiro quer ter filhos.
— Gostaria, sim. Mas lamento não ter muita experiência nem
mesmo segurando um.
Uma das duas portas se abriu e um homem de cabelos brancos,
baixinho e gorducho saiu apressado de lá, carregando consigo duas
pastas de couro debaixo do braço.
— Lorde Winsford! — o homem exclamou, logo percebendo a
delicada e inusitada presença de uma dama por ali — O-Oh... Uma
senhorita, meu lorde?
Julia se afastou da bobina, unindo as mãos na frente do corpo e
fazendo uma mesura simples para um dos funcionários de Isaac.
— Sr. Hillintong — Isaac cumprimentou o contador — Essa é
minha noiva, Srta. Wilson. Em breve nos casaremos.
Hillintong ficou absurdamente surpreso, a ponto de constranger
o marquês. O que havia de tão absurdo em ter uma noiva?
Hillintong não sabia de suas falhas tentativas de conquistar
mulheres. Mas Isaac não duvidava muito que seus funcionários
comentavam sua falta de aventuras masculinas por Chester,
Londres ou qualquer lugar do planeta.
— O senhor noivou? — ele pegou a mãozinha de Julia com
muito cuidado — Mas que bela dama! Seja bem vinda, minha jovem
futura marquesa. Não consigo crer que o senhor irá se casar, meu
lorde!
Julia agradeceu com um sorriso nervoso, mas o rubor em suas
faces revelou que ficara lisonjeada.
— Ora, mas eu já sinto a necessidade de chamá-la de Lady
Winsford! — o contador riu e tocou a barriga protuberante — Se
precisar de algo, senhorita, diga-me. A senhorita quer chá?
Bolinhos? Aqui nós só bebemos, mas eu tenho certeza de que a
cozinheira pode arrumar bolinhos para a senhorita. Biscoitos,
também. E frutinhas.
Isaac se intrometeu:
— Na verdade, Hillintong, preciso que me faça um favor além de
suas obrigações. E que não envolve... Frutinhas.
O homem já mais idoso do que o necessário, se empertigou e
assentiu seriamente.
— Escreva uma mensagem para a residência de Lady Hanes,
avisando que a Srta. Wilson está comigo e que iremos visitar as
fazendas durante a tarde.
— Por essa jovem senhorita, qualquer coisa — Hillintong deu
duas batidinhas amistosas na barriga.
Isaac ouviu um risinho abafado de Julia.
— E peça que cortem um metro dessa lã, entregue junto da
mensagem. Um metro está bom, Srta. Wilson?
— Sim, meu lorde.
O contador anuiu cordialmente, despedindo-se de Julia com
uma reverência bastante respeitosa e acabando por retornar para
sua sala.
— O tamanho da simpatia só não se iguala à barriga — Julia
comentou, muito monocórdia.
Isaac gargalhou diante de tão afiado senso de humor. A
expressão blasé no rosto de Julia deixava tudo ainda mais
engraçado, como se falar qualquer comentário fosse cansativo.
— Ele é um bom homem, tem muitas netas da sua idade, deve
ter gostado de você.
— O que ele faz aqui?
— É o contador. É um pouco velho, mas ainda funciona.
Trabalhou para o meu pai.
Julia riu baixinho e seguiu na direção da saída, parando a
alguns passos além da porta e se virando para olhar para trás. Os
olhos ficaram enormes quando ela viu o restante do complexo por
detrás do prédio de pedras rubras que fazia a área administrativa da
fábrica.
— Grande, não? — Isaac perguntou, parando para olhar junto
dela.
— É bastante fumaça... — Julia afastou mais para trás,
conseguindo ver apenas duas chaminés altas — Em um céu tão
bonito e azul.
O marquês colocou as mãos para trás, desconcertado.
— É o único jeito. Algumas máquinas que precisam de carvão
só funcionam assim. Mas parte do maquinário funciona
manualmente, sem necessidade de combustível além de um pouco
de água.
Ela anuiu, voltando a olhar para os arredores.
— Você contrata crianças?
— Não. Ninguém com menos de quinze.
Julia começou a andar pela longa lateral do prédio, já no
gramado. Para onde ela estava indo, Isaac não sabia, mas
continuou ao lado dela.
— Eles comem aqui? — ela perguntou, curiosa.
— Uma refeição ao dia.
— Uma só? — Julia o olhou horrorizada — M-Mas isso é muito
pouco. Eles precisam comer mais para trabalhar melhor.
Isaac pigarreou baixinho, sem saber exatamente o que dizer. Os
operários comiam uma vez por dia e não reclamavam, então devia
estar tudo bem. A última revolta foi por conta das inúmeras
máquinas, suas complicadas engenharias que eventualmente
causavam algum acidente.
— Eles tem o que comer em casa, eu imagino — ele saiu em
sua própria defesa — Creio que tenha visto o povoado onde moram,
há uma padaria e uma pequena taberna.
Julia suspirou em um sinal de desistência.
— Você cuida de tudo sozinho? — ela mudou o assunto.
— Infelizmente... — ele ficou exausto só de lembrar — Da
fábrica, das fazendas, dos arrendatários e da vila operária. Dos
assuntos parlamentares eu não me atenho muito, meu assento na
Câmara dos Lordes deve estar frio. Mas meus secretários me
ajudam.
— Deve ser demasiadamente estressante — ela o olhou com
lamento, dando um passo para mais perto dele e lhe tocando o rosto
com seus dedos trêmulos de vergonha — Q-Quando nos casarmos
eu... Eu posso ajudá-lo. Sempre que se sentir cansado.
Isaac nunca ouviu palavras tão doces de uma mulher e se
sentiu um tanto abatido ao perceber aquilo, enquanto a mão quente
de Julia lhe tocava o rosto. Não entendia porque alguns de seus
amigos detestavam a atenção das damas da sociedade, elas eram
sempre tão doces e simpáticas. Algumas podiam ser um tanto
grudentas, ansiosas pelo casamento com alguém de bom título, mas
ainda as achava agradáveis. Isaac se sentia confortável com
mulheres com quem deveria ser respeitoso e que não esperavam
dele o comportamento de um homem faminto. As matronas
casamenteiras eram incômodas, mas as filhas, em sua maioria,
eram todas adoráveis.
Olhou para sua noiva, uma dama doce e adorável. Com quem
ele deveria ser respeitoso, mas por quem ele sentia o desejo
crescer a cada segundo que passava com ela ao redor dele. O
cheiro feminino e floral de Julia o invadia, sua voz era como uma
música suave e o seu toque era mais quente que qualquer outra
coisa.
— Desse modo, não será difícil me apaixonar mais por você.
Ela sorriu com sinceridade, não se acanhando nem um pouco
quando Isaac a puxou pela cintura para beijá-la. No entanto, quando
estava a ponto de tocá-la nos lábios, Julia se inclinou para o lado e
cutucou o braço do marquês.
Um jardineiro que podava um dos arbustos altos os olhava com
curiosidade, os olhos espremidos pela péssima visão a distância até
perceber que era o marquês e uma senhorita.
O homem rapidamente reverenciou o patrão e voltou ao
trabalho.
— D-Deveríamos ir até as fazendas — Julia sugeriu, arrumando
seu chapéu em um gesto ansioso.
— É claro — Isaac pigarreou, afastando-se de Julia — Eu irei
buscar seu cabriolé, espere aqui. Volto já!

***

Julia estava se balançando feito uma garotinha prestes a ganhar


todas as bonecas de uma loja. As saias do vestido indo de um lado
para o outro em um ritmo controlado, mas animado. E ela não fazia
aquele tipo de coisa. Já havia aceitado sua derrota social e não
gastava energia criando expectativas, mas aquele noivado forçado
estava melhor do que ela imaginou.
Ouviu sons de cascos de cavalos e logo Isaac apareceu com o
cabriolé de Gladys na estrada, parando próximo a porta e chamando
Julia com um aceno.
Ela andou o mais apressada que os modos permitiam, deixando
para lá aqueles pensamentos sobre o que deveria contar ou não.
— Eu a ajudo — Isaac a segurou pela mão, ajudando-a a subir
no veículo antes de se sentar ao lado dela.
Julia se remexeu acanhada, deixando sua sombrinha de lado e
unindo as mãos em cima do colo.
Quantas vezes viras as debutantes de seus anos passeando
com pretendentes pelo Hyde Park enquanto ela estava
arremessando migalhas para os peixes no Serpentine?
Quando o cabriolé se movimentou com o puxão inicial dos
cavalos, Julia aproveitou do movimento para se aproximar mais de
Isaac, que estava concentrado em guiar os animais. Se ele se
incomodou, não demonstrou. Então ela tomou a deixa para ficar
ainda mais próxima dele, que abaixou um pouco o cotovelo até que
Julia se enlaçou em seu braço.
Ah, aquilo era maravilhoso. E ele cheirava tão bem que poderia
ficar abraçada nele por horas.
— Confesso que não sou o tipo que guia muitos veículos —
Isaac riu um tanto desajeitado — Eu costumo cavalgar quando
preciso me locomover.
— Quer que eu guie?
O marquês fez que não.
— Esses meninos são bonzinhos — Julia falou para os dois
cavalos, repleta de ternura — Bob e Ben.
— Parecem simpáticos olhando aqui de trás — Isaac cochichou
para ela, como se os cavalos pudessem ouvir — Você não acha?
Julia riu e concordou, olhando a paisagem campestre ao redor.
A fábrica estava começando a ficar pequena ao fundo e ela podia
ver melhor todo o complexo, com suas quatro chaminés longas
soltando fumaça no céu azul de Chester. Ao fundo, após uma
estrada de terra batida clara, havia uma pequena vila operária. Era
um espaço enorme de terras para apenas um homem, no meio de
uma paisagem verdejante de campos e bosques espalhados pelo
horizonte.
Os Ballard deviam ter muito dinheiro... Mais do que seu tio
Aiden, talvez? O duque era tão rico que se tornava constrangedor
quando parava para contar a quantidades de propriedades que
tinha.
Não era o tipo de coisa que a atraia, alguém rico demais e com
promessas de luxo já que ela não necessitava de muito. Não
gostava de extravagâncias. Isaac parecia um homem de gostos
simples, nunca o vira vestido como um dândi ou agindo como um,
mas ter um marido muito rico significava poder na cidade e
liberdade para fazer o que quiser.
Aquilo incluía andar em seus trajes de montaria - que ainda não
tivera a oportunidade de usar - e comprar cavalos como um bon
vivant. Finalmente seria livre para ser uma amazona. Quem a
impediria? Seria a marquesa, a esposa de um dos homens que
movimentava a economia de Chester.
— Meu lorde... Posso lhe perguntar uma coisa?
O homem tirou a atenção da estrada por alguns segundos,
apenas para olhá-la rapidamente.
— Sim, o que é?
— Você... Desculpe-me, mas é que... A fábrica deve dar bons
frutos, não?
Para surpresa dela, ele não se ofendeu. Apenas caiu na
gargalhada e concordou com um aceno de cabeça.
— Sim, Julia — Isaac arrumou as rédeas em suas mãos — Mas
não faço tanto uso dos frutos para nada além das responsabilidades
do marquesado, na verdade. Não tenho filhos para vestir e educar,
nem uma esposa para mimar. Bom, por enquanto, não é? Estou
ansioso para mimá-la com o que quiser.
Julia sorriu consigo mesma, enrolando os dedos no tecido da
saia do vestido. Seu coração estava batendo rápido demais.
Nervosismo de estar perto dele, mas, também, alegria por estar
perto dele.
— O que quero dizer, meu lorde, é que... Eu gostaria de poder
investir em meu passatempo de equitação.
— Mas é claro, o que você quer? Além de cavalos, é claro. Ben
e Bob estão fora de cogitação?
— Não são treinados para montaria. Eu gostaria de alguns
obstáculos para saltar, também. Um circuito.
Isaac ficou quieto por algum tempo e Julia logo se arrependeu.
Nem eram casados e ela já estava jogando com seu passatempo
inapropriado e masculino em cima dele.
— Algum problema...?
— Ah, não, não — Isaac riu, bem humorado — Estava
pensando onde poderíamos mandar instalar os seus obstáculos.
Não queremos que fique muito distante dos estábulos. Gosta de
saltar, então?
— Muito! — ela sorriu em animação, mas logo abaixou o tom de
voz — Eu gosto de saltar, mas também gosto de correr. Embora os
saltos sejam mais interessantes, é preciso bastante concentração e
foco no seu corpo e no corpo do cavalo. M-Mas me fale mais de
você... Falei muito sobre mim.
O marquês assentiu e pensou por longos segundos, o único
som sendo as rodas e os cascos dos cavalos na estrada.
— Lamento não ser tão interessante quanto você — ele riu de si
mesmo, um tom de desanimo disfarçado no riso — Passo tempo
demais trabalhando. Não posso me dedicar a engenharia ou a
confeccionar aparatos esquisitos como eu fazia quando garoto. Mas
gosto de ir a Londres durante a temporada, ir ao teatro, festas. Esse
tipo de coisa.
Julia se remexeu no banco.
— Você gosta de toda aquela bagunça?
O homem riu e assentiu.
— Eu adoro festas, não vou mentir. Gostaria de ter mais tempo
para ir a temporada. Eu logo tenho de retornar para cá, infelizmente.
Ela deu um muxoxo.
— É o oposto de mim. Eu não gosto de festas, todas aquelas
pessoas me olhando. E ter de interagir com elas... Oh, não. Fico
com muita vergonha, mesmo que eu queria conhecer novas amigas.
Fico com tanta vergonha.
— Nāo se preocupe, pode segurar em minha mão caso fique
tímida demais diante de alguém — o marquês disse bastante
galanteador — Eu não vou me incomodar nem um pouco.
Julia deu um riso baixo e encabulado, aconchegando-se no
braço do noivo. Não sabia que Isaac era tão bom no flerte.
Como pode não ter se casado? A não ser que tenha uma vida
imprópria como muitos homens...
Ela afastou aqueles pensamentos incômodos.
— Você não gosta de Londres, não é? — Isaac perguntou,
amuado — O que há de tão ruim para você por lá?
Ela abaixou o rosto e remexeu na saia do vestido.
— Eu não me sentia feliz durante as temporadas.
— As pessoas eram más com você?
— Na verdade, não — Julia soltou um longo suspiro,
encolhendo a postura em desânimo — Eu sou muito tímida e ficar
naquelas festas era demasiadamente estressante. Q-Quando me
chamavam para dançar eu ficava tão nervosa que acabava dando
desculpas para não ter de dançar com aqueles homens e... Com o
tempo pararam de me chamar e eu fui virando uma estátua no canto
dos bailes. Eventualmente eu não ia às festas, preferia ficar em
casa. Eu realmente não me incomodava com isso.
Isaac deu um muxoxo abatido.
— Como eu nunca a vi nos bailes? Você estava no baile de
Lady Thomasina, não? Eu não me lembro de tê-la visto.
Julia acabou por rir consigo mesma, um risinho tristonho e fraco.
É claro que ele não a perceberia lá, tão encantando pela doce
Tamsin. Tão colorida, ruiva e alegre. Foi a joia da temporada, por
mais que aquilo tenha passado batido para Tamsin, cujo desejo era
apenas ficar com Dominick.
Todos falavam dela, elogiando sua boa postura, seus cabelos
cor de fogo, até mesmo sua silhueta mais cheia fez sucesso em um
lugar onde as mocinhas franzinas eram as mais queridas. E Tamsin
era uma bastarda. A bastarda mais adorada.
Deveria parar de sentir ciúmes de sua prima que nada lhe fez.
Tamsin estava feliz com o marido, pronta para ter um filho e Julia
podia encaminhar a si mesma para o mesmo futuro. Com o homem
que ela sempre desejou. Era o momento de esquecer aquele
sentimento tolo.
— E-Eu estava no canto — ela respondeu — Ninguém me viu.
— Talvez as coisas tivessem sido diferentes, minha querida — o
marquês disse mais para si mesmo e, numa mudança de espírito,
fez com que os cavalos fossem mais rápido — Estamos quase lá,
Julia.
Ela ficou quieta pelo resto do trajeto, olhando para a paisagem
correndo ao lado e não dando atenção para o silêncio mortal de
Isaac.
Quinze minutos depois, um grupo de casas e plantações
muradas apareceram no horizonte. Julia viu uma grande horda de
bodes em um dos cercados, com um homem lhes dando comida e
um menino correndo de três cabritinhos endiabrados.
Julia caiu na risada, o menininho corria como louco, até que um
cabrito miúdo saltou e se impulsionou nas costas da criança,
fazendo-a cair num monte de feno. O homem correu para ajudar,
mas o menininho estava gargalhando.
— Esses cabritos ainda vão matar os fazendeiros — Isaac
reclamou aos risos, parando o cabriolé fora da estrada e descendo
do veículo — Venha, Julia.
Ela se virou para descer, dando de cara com o marquês e seus
braços estendidos. Um tanto acanhada, ela segurou em seus
ombros. Quando Isaac a segurou pela cintura, Julia caiu na
gargalhada e balançou as pernas no ar, chutando a coxa do homem.
— Ai! — ele resmungou, tentando fazer com quem Julia
descesse do cabriolé — Não me chute, espera, estou tentando te
segurar.
— N-Não! — ela gargalhou aborrecida, quase caindo no chão
se não fosse pelo reflexo rápido do marquês ao segurá-la mais firme
— Eu sinto cócegas aí!
Isaac a pousou no chão, as sobrancelhas erguidas em
divertimento.
— Desculpe-me, não sabia — ele sorriu, risonho.
Julia se recuperou com um suspiro e pigarreou, desconcertada.
— Eu... Sinto cócegas com facilidade — ela explicou,
arrumando o chapéu e abrindo a sombrinha — Não quis chutá-lo.
O marquês aceitou as desculpas com um riso baixo e um beijo
no rosto de Julia, que ficou tensa por alguns segundos. As mãos de
Isaac em sua cintura foram afastadas ao que ele deu um passo para
trás.
— Perdoe-me — ele colocou as mãos para trás — Você é
adorável, não resisto a tanta doçura. Se soubesse que era tão
encantadora, teria me aproximado de você no baile de Lady
Thomasina.
Ela riu de nervoso, cobrindo os lábios com uma das mãos, mas
tentando manter a compostura. Os dois pareciam jovenzinhos tolos,
mas tudo aquilo era tão caloroso para Julia. Ninguém nunca a
chamara de adorável e doçura era algo que ninguém de sua família
usaria para ela.
Língua afiada, sombria, irônica eram palavras que mais usavam
para defini-la. Mas, ao lado de Isaac, por quem Julia havia guardado
tanta ternura por quase três anos, seu lado mais tolo e apaixonado
estava tendo liberdade para florescer junto do que ela esperar virar
um relacionamento a dois.
— F-Fico contente que tenha apreço por mim. Eu... E-Eu
gostaria de ver as ovelhas de perto, por favor. Vamos?
— Claro- Ah, Sr. Baxton — Isaac acenou para um homem jovem
que vinha correndo na direção dos dois.
O homem chegou aos dois, ofegante, e se apoiou nos joelhos
para tomar fôlego.
— Milorde! Não sabíamos que o senhor viria hoje, é para cobrar
o aluguel?
Julia olhou do noivo para um dos arrendatários.
— Vim apenas para mostrar a região para a Srta. Wilson.
Sr. Braxton tirou seu chapéu e o colocou contra o peito,
cumprimentando Julia com uma mesura que quase fez ele beijar o
chão.
— N-Não precisa de tanto — ela tocou o ombro do rapaz com a
ponta de sua sombrinha em um gesto desajeitado — Por favor, meu
senhor.
O fazendeiro ficou ereto rapidamente, colocando o chapéu de
volta e engolindo em seco.
— Acalme-se, rapaz — Isaac riu e deu um aperto firme no
ombro de Braxton — Essa é minha noiva. Creio que ela virá comigo
para as visitas, não?
Julia assentiu quase que de imediato. Não seria nada ruim ir à
fazenda com Isaac e ver todos os animais campestres. Afinal,
adorava aquele tipo de ambiente e era onde mais se sentia
confortável. Cuidando de animais.
— Casamento, milorde?! — Braxton ficou estupefato.
Isaac abriu um sorriso nervoso e assentiu.
Era a segunda vez que alguém parecia incrédulo com o noivado
do marquês. Um homem influente como ele provavelmente seria do
interesse de todas as moças da cidade.
Julia olhou bem para o noivo, semicerrando os olhos.
Ele havia dito que não tinha muito sucesso com as mulheres,
mas era tão galante quanto qualquer homem.
Julia engoliu em seco. Será que Isaac não era tão simpático
quanto aparentava? Porque devia haver um motivo para que Tamsin
não tivesse se apaixonado por alguém como ele.
Ele podia ser um libertino cuja fama era preservada e as
amantes, desconhecidas do público. Um namorador, um homem
que não seria fiel a um casamento. O marquês iniciava os beijos
com experiência, havia de ter beijado muitas mulheres antes...
— Julia? Julia?
Ela piscou, aturdida, e sorriu para o marquês.
— A-As ovelhas, meu lorde.
— É claro — ele a olhou com estranhamento e lhe deu o braço
— Podemos visitar os estábulos também.
— Eu adoraria... Isaac.
CAPÍTULO 11

Não demorou para os arrendatários irem vê-lo nas fazendas,


principalmente com a notícia de que uma moça mais delicada que
uma pluma estava na companhia do marquês. Logo os dois
estavam cercados pelas crianças, enquanto que os adultos
mantinham uma devida distância.
Julia parecia aterrorizada com tantas pessoas ao redor dela,
mas as crianças tagarelas e curiosas que sempre gostavam da
visita de Isaac não pareciam incomodá-la.
— Milorde! — uma menininha magra e de cabelos castanhos
correu até os dois, indo para o marquês e lhe segurando o braço —
É verdade que vai se casar?
— Sim, com a Srta. Wilson — ele sorriu orgulhoso, deixando
que Julia segurasse em seu outro braço.
A menina fez uma mesura muito educada, segurando em seu
vestido marrom e sem graça.
Mais duas menininhas chegaram correndo, pareciam
encantadas com toda a pompa de Julia. Os meninos, apesar de
curiosos, ficaram olhando pelas janelas distantes.
Era normal que as crianças se aproximassem de Isaac sempre
que ele aparecia, dada a natureza amigável do marquês diante
delas. Os pais, apesar de se irritarem com o atrevimento de
algumas delas em abraçar as pernas do dono das terras, já haviam
aceitado que Isaac mal se importava com tais liberdades. Ele
gostava de crianças, gostaria de ter muitos filhos um dia.
— Eu não poderei casar com o senhor, então? — perguntou a
menininha.
— Ann! — exclamou a mãe, horrorizada, pegando a filha pelos
ombros — Perdão, milorde.
Isaac estava gargalhando com tudo aquilo. O homem se
abaixou, apoiando-se em um joelho para ficar no nível da menina
que não devia ter mais de oito anos.
— Temo que a Srta. Wilson tenha roubado meu coração todo
para ela — ele disse com uma teatral tristeza, tocando o peito
pesarosamente.
Ann assentiu, cabisbaixa, mas logo sorriu para Julia. Olhando
tudo com atenção e certo divertimento, Julia estava bem parada ao
lado do noivo, o rosto muito corado diante da declaração poética de
Issac.
Sem saber muito o que fazer, ela abriu sua retícula e tirou de lá
um lenço com bordas de crochê azul claro.
— Aqui, para dar ao menino que mais gostar — desajeitada, ela
se inclinou para estender o lenço a Ann.
— Milady, por favor — a mãe a impediu, nervosa — Um lenço
tão bonito e caro-
— Não custou nada, eu mesma o fiz, minha senhora — explicou
Julia, dobrando em um quadradinho e colocando na mãozinha de
Ann — Ela pode guardar até ser uma mocinha.
Isaac observou a gentileza da esposa e a forma como ela falava
com as pessoas com bastante respeito e igualdade. Era uma
característica admirável aquela, não se achar maior e melhor que
ninguém. Ver que Julia os tratava bem era importante porque
aquelas pessoas eram importantes para ele.
Isaac gostava deles, gostava bastante das crianças. Um dia
queria se tornar pai e, com Julia ao seu lado finalmente casado, ele
via aquilo em seu horizonte.
Certo que alguns estavam começando a não gostar muito dele
desde a introdução de máquinas na fábrica e o corte na mão de
obra. Mas a maioria das pessoas nas fazendas trabalhavam apenas
ali e a industrialização não as atingia tanto. Os homens que se
encontravam no tal sindicato em Chester, na maioria das vezes, não
eram os fazendeiros. Eram os operários que viviam na cidade.
Em menos de dez minutos Ann havia se oferecido para levar
Julia por um passeio até onde as ovelhas ficavam, animadamente
adicionando que as cabras eram mantidas com elas. E, por sua vez,
havia cabritos que com certeza a Srta. Wilson iria adorar. A mãe
olhou horrorizada para Isaac que apenas assentiu com um sorriso
risonho, prometendo que cuidaria da filha dela. Um tanto a contra
gosto, a mulher permitiu que a filha pudesse ser a honrosa guia da
futura marquesa.
E assim os dois a seguiram, enquanto ela falava para Julia onde
ficava cada lugar e os outros moradores voltavam para suas tarefas.
As outras crianças, contudo, foram atrás. Pelo menos as que os pais
deixaram.
Isaac estava contente em apenas observar Julia envolta por
crianças pequenas e curiosas, muitas animadas e competindo com
Ann para ver quem era o melhor guia. Um menininho de cabelos
loiros e bochechas coradas de sol fez questão de dizer que sabia o
nome de todas as vacas.
Não tardou e logo chegaram ao campo aberto, já um tanto
distante das casas e construções onde um pastor observava um
rebanho de, pelo menos, umas duzentas ovelhas misturadas com
cabras, cabritos e carneirinhos. Alguns pastavam e dormiam longe,
outros se amontoavam para relaxar juntas. O jovem pastor, não
mais que um rapaz, ergueu as sobrancelhas quando viu Isaac
carregado de crianças se aproximando. E uma dama desconhecida.
Os animais, no entanto, não deram a mínima. Continuaram
espalhados, comendo da grama ou dormindo sobre ela.
— Essa é a Srta. Wilson! — Ann anúncio com animação,
puxando Julia pela mão assim que atravessaram a cerca que
delimitava o pasto — Noiva de Lorde Winsford. Não é, milorde?
O pastor tirou seu chapéu com uma rapidez cômica e
reverenciou Julia com bastante esmero. Isaac veio logo atrás, as
crianças o ultrapassando e indo fazer carinho nas ovelhas e cabritos
bastante mansos.
— Milorde — o rapaz o cumprimentou respeitosamente — É um
prazer conhecer a noiva do senhor.
— A Srta. Wilson queria ver as ovelhas, Freddie — respondeu
ele, dando um aperto amigável no ombro do pastor — E as crianças
vieram junto. Você que conhece bem as ovelhas, tome conta para
que nenhum macho agressivo venha para cima de ninguém.
— Sim, milorde — Freddie quase bateu uma continência — Há
uma-
Antes que o jovem pudesse terminar de falar, ele e Isaac
emudeceram com a cena que se seguia. Julia erguia Ann pelos
bracinhos magros e a colocava sentada em cima de uma ovelha
grande e peluda.
— Srta. Wilson! — o pastor correu até as duas, fazendo com
que Ann parasse no meio do caminho, ainda pendurada nas mãos
de Julia — T-Tenha cuidado, por favor! Essas ovelhas adoram sair
correndo! Nem se fala das cabras, correm feito loucas. Insisto que
tome cuidado.
— Não se preocupe, meu senhor — respondeu ela, um sorriso
radiante assim que colocou a menininha montada na ovelha — Só
um pouquinho, Ann.
Isaac segurou o riso diante daquela cena. O sorriso de sua
noiva estava lindo como ele ainda não havia visto. Ela ria com as
crianças, acaricia as ovelhas, gargalhava quando os carneiros
pulavam sem parar.
Para alguém que ele pensou ser tão quieta e envergonhada,
Julia parecia mudar quando estava com animais e crianças. Ela era
adorável, encantadora, tão doce e gentil. Quão diferente teria sido
seu último ano se tivesse visto Julia na última temporada? Não teria
mendigado o afeto de Tamsin, nem ao menos se sentido humilhado
quando chegou de volta a Londres e viu que ela estivera com outro
homem o tempo todo.
Julia havia debutado fazia alguns anos, talvez tivesse a
conhecido antes. No dia do enterro de seu pai, se tivesse a notado
ali ao lado de David. Mas estava triste demais para até mesmo se
lembrar de quem havia ido ao velório.
Mas e se tivesse a visto antes? Teria ele percebido suas
qualidades estando ela em um canto, acuada e ofuscada por tantas
jovens coloridas e animadas? Teria ele se interessado por ela
mesmo assim? Decidido que uma jovenzinha murcha era o que ele
queria?
Ele temia que a resposta fosse não, não em um baile repleto de
outras moças chamando sua atenção. Mas em uma situação menos
caótica como a de baile, talvez sim. Talvez teria a achado tão linda
quanto a estava achando naquele momento, cercada de crianças,
ovelhas e com um enorme sorriso no rosto.
Tudo poderia ser diferente, mas Isaac tentava não lamentar o
que havia feito ou deixado de fazer no passado. Já havia
acontecido, o que mais ele poderia fazer? Chorar pelo leite
derramado? Tentava procurar o lado bom das coisas mesmo
quando as coisas parecessem círculos. Encontrar algum
ensinamento aqui ou ali.
Se aprendeu alguma coisa com seu fracasso com Tamsin?
Aprendeu que, quando seu secretário lhe ordenava que deveria ficar
em Londres, ele deveria ouvir. Price praticamente tocava a fábrica
com ele, o secretário era capaz de lidar com os problemas que
surgissem caso o patrão não estivesse por perto.
Mas Isaac era teimoso, queria fazer tão bem quanto seu pai e
foi correndo de volta para Chester. Price ficou furioso, afinal, ele
havia deixado uma dama de lado quando mal começara a corte. E o
futuro da herdade? Da fábrica? De sua família?
Price parecia uma mãe desesperada. No entanto, de que
adiantava para Isaac remoer aquelas coisas todas? Iria se casar em
breve com uma moça encantadora, já estava tudo encaminhado
para o sucesso.
Foi pego desprevenido quando percebeu que Julia o viu
olhando para ela como um adolescente babão e apaixonado. Ele
corou, pigarreou e abriu um sorriso gentil para ela. Distraída com a
troca de olhares, ela não percebeu quando um cabritinho pulou e
tomou impulso bem no traseiro dela, que quase caiu no chão se não
fosse pela rapidez do marquês em correr para segurá-la.
— Cabrito maldito! — Freddie espantou o filhote sacudindo seu
cajado curvo na direção do animal, as crianças se escangalhando
de rir — Saia daqui!
— Você está bem? — Isaac perguntou preocupado —
Machucou?
A gargalhada dela o pegou de surpresa. Ela fez que não, os
olhos fechados enquanto ela ria e esfregava a mão no traseiro e se
apoiava no braço do noivo.
— Estou bem, estou bem — ela retomou o fôlego, um enorme
sorriso em seu rosto — Cabritos fazem isso toda hora, eu adoro!
Ele não passava muito tempo com animais para saber, só os via
de longe quando perguntava aos pastores como os rebanhos
estavam. Mas se Julia dizia, ele acreditava, porque ela estava
claramente muito feliz e aquilo era o suficiente para ele.
— Srta. Wilson! — Freddie voltou com o chapéu amassado nas
mãos e o cajado em outra — Peço mil perdões... E-Esses cabritos
pulam em todo mundo, outro dia o filho do Sr. Cage foi arremessado
por um desses diabinhos!
— Não fui, não! — o tal filho do Sr. Cage falou por si só,
metendo-se na conversa — Ele só me empurrou e foi divertido a
beça! Eu fiquei com a marca do casco dele no meu traseiro por uma
semana inteirinha, milorde!
Isaac ergueu as sobrancelhas, acabando por rir da sinceridade
da criança e do rubor que tomou conta de Freddie. O jovem pastor,
um tanto sem jeito e irritado, empurrou o moleque com o quadril e o
fez correr as gargalhadas.
— Não dê ouvido a essas crianças, milorde — pigarreou o rapaz
e, em seguida, voltou sua atenção para Julia — A senhorita está
bem, Srta. Wilson? Posso trazer um banquinho para a senhorita.
— Estou sim — ela sorriu para ele com bastante gentileza,
segurando no braço de Isaac — Estou acostumada a cuidar de
animais assim, não se preocupe.
O pastor pareceu surpreso com aquela confissão. Uma dama
como a Srta. Wilson não tinha cara de quem cuidava de animais de
fazenda. No máximo, um gatinho ou um cachorrinho daqueles
pequenos que dormem em almofadinhas.
— Ainda assim, senhorita, vou manter os cabritos longe. Os
carneirinhos são bem mais calmos.
— Agradeço a preocupação — Julia maneou com a cabeça
elegantemente.
— Freddie, por que não vai ver se as crianças não estão sendo
atacadas por cabritos? — perguntou Isaac.
O jovem demorou alguns segundos para entender, mas quando
o fez, assentiu com veemência e foi se juntar às crianças metros
dali. Os pequeninos estavam sentados no chão, pegando
cabritinhos no colo ou acariciando o farto pelo das ovelhas.
Agora que estavam a sós, Isaac podia ter certeza de que sua
noiva não havia se machucado.
— Está bem mesmo?
Ela o olhou, ainda segurando seu braço na frente de todo
mundo. Quando os olhares se encontraram ele viu um rubor nascer
no rosto dela. Queria beijá-la ali mesmo.
— Daria todo o dinheiro do mundo para poder beijar você agora.
As palavras a fizeram enrubescer da forma mais intensa e
adorável possível. Um orgulho masculinho nasceu no peito de Isaac.
— N-Não diga essas coisas assim na frente de todo mundo... —
ela respondeu, baixinho — Quer b-brincar conosco?
Brincar não era algo que um homem da idade dele fazia, mas
quando havia crianças no meio ou uma jovem tão bonita pedindo,
ele não poderia se desfazer assim. E os carneirinhos eram uma
graça, ele não negaria.
Aceitou o convite, tirando sua casaca e a pendurando na cerca.
Contudo, antes que pudessem voltar para os animais e as crianças,
ele tocou a fita que segurava o chapéu de Julia.
Ela abaixou o olhar encabulado enquanto ele desfazia o laço em
um ato que parecia muito mais inapropriado do que era. Seus dedos
roçavam no queixo dela, queria muito beijá-la de novo, mas não ali.
Queria que fosse onde tivessem privacidade para que o beijo
durasse bastante tempo.
— Pronto — ele sorriu assim que lhe tirou o chapéu e o colocou
cuidadosamente por cima de sua casaca — Vamos?
Não demorou muito e ele já estava segurando um cabritinho nos
braços, enquanto que Julia ajudava as crianças a fazerem carinho
nas ovelhas e nos cabritos.
Era uma visão adorável. Sem contar que o filhote em seu colo
era bastante encantador.
Isaac nunca tinha tempo para fazer nada que não fosse
relacionado ao trabalho. Ou melhor, nunca fazia a si mesmo ter
tempo. Estava sempre arrumando uma desculpa para trabalhar
mais, para melhorar a fábrica, para agradar todos os funcionários e
ser tão bom quanto o pai. Assim não se sentia tão sozinho, sentia-
se necessário para alguém.
Talvez ele pudesse ter tempo livre, talvez não. Já estava tão
acostumado que não parava para pensar que poderia relaxar um
pouco. Brincar com animais em uma fazenda. Cortejar sua noiva de
forma adequada.
Olhou outra vez para Julia, que ria contente correndo atrás de
duas das crianças com dois cabritos em seu encalço. Um lorde
desmiolado em Londres provavelmente acharia aquela cena
absurda, mas para Isaac foi uma das coisas mais encantadoras que
ele já viu. Julia tinha um frescor campestre e jovial que estava lhe
dando vida nova e ele daria tudo para voltar no tempo e tê-la
conhecido antes.

***

Julia tinha de se lembrar de agradecer a prima pela ideia de ir


visitar Isaac. Fora uma das melhores tardes de sua vida, brincando
com as crianças e os animais enquanto o homem por quem estava
apaixonada lhe fazia companhia.
E quando ele tirou a casaca e ergueu as mangas para se juntar
a ela, Julia teve certeza de que jamais vira um homem tão
charmoso. Ela queria tocá-lo no antebraço a cada oportunidade que
tinha de se segurar nele
O marquês deve ter percebido seu assanhamento, porque ele a
olhava como se ela estivesse muito mais despida que ele. E, céus,
era maravilhoso o quão corada aquele olhar a deixara ao longo da
tarde. Sua imaginação ia para além de beijos. Ia para ela tocando o
corpo masculino dele, sentindo seu calor e seu beijo.
Tensões à parte, o resto foi extremamente agradável. Depois de
brincarem com os filhotes, Isaac a levou para conhecer os campos
de algodão que se extendiam por oito hectares Julia ficou surpresa
ao ver que havia variações da planta em diferentes tons de marrom
e verde-musgo. Para ela era sempre branco. De acordo com o
marquês, as tonalidades mais naturais eram raramente usadas para
comércio.
No final da tarde ela estava com a barra do vestido suja e ele
com as botas enlameadas. Sem contar no novo doutorado em
plantio de algodão que ela adquirira. Gostou muito do quão feliz ele
ficava ao falar sobre seu trabalho, o entusiamo dele era lindo.
No caminho de volta a casa de tia Gladys, Julia ficou em
silêncio, pensando em seu futuro casamento. Quando percebeu que
já estavam dando a volta no relógio de sol do casarão, a voz
esganiçada de Gladys praticamente atravessa a porta principal.
— Essa menina! Mary, você deve tomar conta da sua filha.
— Ora, deixe que eu tomo conta das minhas crianças em paz —
Mary resmungou — Julia só foi passear com o marquês.
— Não seja inocente, Mary! São nos passeios em que as moças
são arruinadas! — o grito de Gladys pode ser ouvido do lado de fora
e, quando a porta se abriu, a mulher ficou estupefata ao ver que a
Inglaterra toda podia ouvi-la — Lorde Winsford?
Isaac tentou manter uma boa postura ao ajudar Julia a descer
do cabriolé. Mas com parte da roupa faltando e as botas sujas de
lama, não havia muito o que se fazer para ficar impecável.
Gladys ficou vermelha de vergonha ao perceber que os dois
noivos haviam ouvido todos os seus gritos. Ao fundo, Laura,
Emanuelle e Petúnia vinham apressadas. A última um pouco mais
cautelosa.
— Como foi o passeio na fazenda? — Mary perguntou cheia de
alegria, descendo a escadinha de pedra e indo até o novo casal —
Oh, parece que você fez todo o trabalho, Lorde Winsford. Do jeito
que Julia adora animais, deve tê-lo arrastado para algum chiqueiro,
não?
— Perdão pelas roupas... — ele disse, desconcertado —Vim
apenas trazer Julia para casa. Digo, a Srta. Wilson.
As três atrás de Gladys deram risinhos românticos que
deixaram Isaac corado feito um rapaz tolo. Quando olhou para Julia
em busca de ajuda, ela estava revirando os olhos para as irmãs e a
prima.
O marquês segurou o riso, mantendo-se bastante firme e com
os braços para trás.
— Já que está aqui, meu lorde — Gladys atropelou Mary, que
exclamou ultrajada, mas completamente ignorada — Por que não
fica para o jantar?
— Sim, o jantar! — Petúnia exclamou, descendo as escadas e
andando apressada até o quarteto, segurando sua barriga enorme
— Um jantar em família!
Laura e Emanuella vieram atrás, um mar de flores e cores vivas
envolvendo Petúnia que era só tons fechados e rubros.
— M-Mas o marquês precisa de um banho — Julia disse
rapidamente, logo olhando para o noivo e balançando as mãos com
urgência — Sem ofensas!
Ele riu com toda aquela barulheira de mulheres. Como era
divertido!
— Lorde Winsford pode tomar banho aqui — Petúnia espanou
as palavras de Julia com um aceno.
— Que coisa mais inapropriada de se dizer, Petúnia — Gladys
resmungou.
— A senhora não é minha tia, não tem de me dizer essas coisas
— a jovem Lady Vallance empinou o nariz e voltou a atenção para
sua tia Mary — O que acha, titia?
Mary sorriu com as mãos juntas na frente do peito.
— Seria encantador se todos nós jantássemos juntos. Mas pelo
comentário grosseiro de Julia e essa língua afiada...
A noiva resfolegou baixinho.
— E-Eu não quis dizer que não o quero aqui — ela passou a
atenção para o marquês, tocando-o no braço com toda cautela do
mundo enquanto na frente de suas parentes — David ou Lorde
Vallance devem ter roupas que lhe servirão.
— Deve caber, meu lorde — Petúnia fungou pretensiosa e tocou
seus cachos loiros com vaidade.
Isaac riu, a única coisa que conseguia fazer no meio daquele
grupo feminino. Já conhecia Petúnia desde seu debute e ela
continuava a mesma, exceto pela barriga.
— Eu adoraria jantar aqui... Em família — ele sorriu ao dizer a
última palavra, sentindo um calor no peito que não sentia havia
tempo demais — Conhecer melhor todas vocês seria encantador.
— Lorde Winsford, Lorde Winsford! — Laura passou por entre
Petúnia e Emanuelle — Eu adoraria que o senhor me falasse sobre
tecidos. Como que aquela flor de algodão vira um vestido!? Eu
adoraria saber mais.
Isaac não soube o que responder diante de tanta agitação, a
jovem Laura estava quase caindo em cima dele tamanha era sua
animação.
— É um processo longo, Srta. Laura — ele respondeu o mais
paciente que pode — E há diferentes espessuras de algodão, mas
eu adoraria lhe falar sobre.
— Conte-me durante o jantar — ela se sacudiu com a animação
— Eu também quero conhecer a fábrica, posso ir?
O marquês assentiu sorridente. Aquela seria sua irmã, pelo
visto. E Emanuelle, também. Sem contar nos caçulas. Petúnia seria
sua prima e teria sogros.
Seria uma família grande aquela.
— Laura — Mary disse em um tom severo — Você não está
querendo roubar o marquês de sua irmã, não é?
A menina abriu a boca em um grande O.
— Eu? Ele é velho para mim, mamãe — ela cochichou alto
demais — E eu nem debutei.
— Laura! — Julia exclamou, abrindo um sorriso nervoso para o
noivo — N-Não ligue para ela, meu lorde, puxou minha tia Joanna
com toda certeza.
— Aquela criança era terrível! — Mary exclamou com a mão no
peito — Graças ao céus ela cresceu e tomou jeito, agora é um
exemplo de finura e elegância. Uma verdadeira dama.
Isaac só fez gargalhar, já estava adorando Laura. Não permitiria
que ninguém fizesse mal aquela mocinha tão simpática.
— Vamos entrando, — Mary indicou o caminho com um aceno
— o mordomo vai acomodá-lo bem por hoje e pode pedir que
tragam o que precisar de sua residência.
— Eu agradeço, Sra. Wilson.
— Agora, com a sua licença, eu devo brigar com minha filha por
ter roubado um veículo e saído sem uma dama de companhia — ela
puxou Julia pelo braço gentilmente, voltando para dentro da
mansão.
Isaac ficou sozinho com Laura, Petúnia e Emanuelle no meio da
estrada de pedrinhas.
— Ah, não vejo a hora do casório — Petúnia suspirou com
alegria, alisando a própria barriga com muito orgulho — E o senhor?
— Aguardo ansioso, Lady Vallance.
Muito ansioso.
CAPÍTULO 12

Duas horas depois Isaac estava com as próprias roupas que


seu eficiente camareiro Miles havia enviado para a Residência
Rosestone. Unira-se aos homens presentes para tomar um pouco
de vinho do porto e discutir o que ele presumia ser assuntos
masculinos antes de irem jantar.
Lorde Vallance parecia o mais deslocado, próximo a janela da
sala de jogos. David e Isaac estavam sentados em um dos sofás de
couro. O futuro sogro estava imponente numa poltrona.
Uma cacofonia de risadas femininas rompeu dentro da sala e
Winsford ficou ansioso para ver Julia outra vez. Mas quando todas
as mulheres, incluindo a jovem Laura e a quase debutante
Emanuelle, entraram na sala de jogos, a noiva não estava lá.
Pela primeira vez Lorde Vallance pareceu interessado no
momento, foi logo de encontro com sua esposa que ficou agarrada
ao braço dele com um imenso sorriso. Ele sabia muito bem que
alguns homens se tornavam extremamente protetores quando as
esposas estavam grávidas. Não era de se suspeitar, afinal, Petúnia
estava com uma barriga bem grande. Vallance por vezes
cochichava algo para a esposa, que deixava que ele tocasse em
sua barriga sorrateiramente.
Se fosse sua esposa assim, Isaac provavelmente temeria que
um suspiro muito forte a fizesse mal. Ou ficaria o dia inteiro com o
ouvido colado na barriga da mulher para ter certeza de que estava
tudo bem. Ele havia nascido de um parto muito perigoso e não
queria aquilo para Julia.
— Julia logo, logo descerá — cochichou Lady Vallance para o
marquês.
Winsford riu desconcertado. Deveria estar espantado em seu
rosto seu descontamento.
— É fácil sentir saudades de uma moça adorável como a Srta.
Wilson.
Mary suspirou encantada com o futuro genro. Gladys assentiu
muito satisfeita. Laura e Emanuelle se derreteram todinhas. Alice, a
quieta esposa de David, olhou para o marido um tanto enfezada,
provavelmente querendo que ele fosse tão poético quanto o
marquês.
Ah, mas ele tinha muitos outros flertes guardados. O que Isaac
mais fizera em sua vida fora flertar com debutantes, mas agora ele
sentia que os flertes eram muito bem vindos.

***

Julia estava tão nervosa que suas entranhas se contorciam


toda. Jantaria em família com Isaac e ele dormiria debaixo do
mesmo teto que ela. Exceto que não era o teto do mesmo quarto,
infelizmente. Depois de passar a tarde ao seu lado, Julia não
conseguia parar de pensar nos beijos dele.
Era tudo tão real. A cada dia ela se lembrava de que, em breve,
seriam marido e mulher. Em breve ela o teria para si, diria a ele a
verdade sobre seus sentimentos. Estava mais que feliz por saber
que ele era, de fato, o homem gentil que ela imaginou que fosse por
anos.
Bem, algo nela ainda a fazia pensar sobre a índole do noivo em
relação aos prazeres masculinos. Ela sabia que, no fundo, era sua
imaginação desastrosa, influenciada por uma dose de insegurança.
Duvidava tanto que poderia atrair um pretendente com seus tímidos
atributos que passou quase três anos sem nunca imaginar nem em
seus mais secretos sonhos que ela e Isaac ficariam juntos. Não era
de suspeitar que ficava tão nervosa com a breve ideia de que ele
pudesse ser um namorador.
Deveria focar em como ele a tratava com imensa gentileza e
como parecia gostar de beijá-la. Fatos, Julia tinha de olhar os fatos.
Por isso respirou fundo quando desceu as escadas da casa de
sua tia Gladys, sozinha e em um lindo vestido creme que sua mãe
trouxera de Londres. Arrumou as saias, a gargantilha de pérolas e a
luva de seda. O penteado estava tão simples quanto ela gostava,
apenas uma longa trança enrolada em um caracol de cabelos na
altura de sua nuca, com um pente de prata e pérola dando um toque
sofisticado ao seu penteado de camponesa - nas sinceras e
pesarosas palavras de Natalie.
Gladys havia se animado com o jantar e tudo fora preparado de
forma bastante formal. Sr. Purcell estava de pé ao lado da entrada
da sala de estar, onde todos já haviam se reunido à espera do
jantar. Quando Julia entrou, não havia um par de olhos longe dela.
Ótimo, até porque ela adorava ser o foco de toda uma sala. No
entanto, o sorriso alegre de Isaac ao vê-la a acalmou e a fez
ruborizar não de constrangimento, mas em lisonja por ter sido
apreciada estando ela em seus trajes mais brancos e simples.
Estava como ela gostava de ser. Sem cores fortes, chapéus
enormes ou maquiagens nada naturais.
— Desculpem a demora — ela riu, nervosa, posicionando-se ao
lado do noivo de pé perto do sofá de três lugares ocupado pelas
irmãs e a prima — É difícil fazer Natalie aceitar minhas escolhas de
roupas.
Gladys deu um muxoxo de desaprovação de sua cadeira
acolchoada, bebericando um pouco do vinho diluído. Mary, por outro
lado, sorriu contente para a filha da cadeira ao lado.
— Uma beleza tão pura como a sua não precisa de
extravagâncias.
Julia riu outra vez, cada vez mais desejando poder se esconder
debaixo das almofadas do sofá.
— Parem de constranger a pobre criança — Charles resmungou
— Vamos todos ignorar Julia como ela gosta, não é, minha querida?
Eu nem a percebi sentada aí.
Agora ela riu com sinceridade, sendo acompanhada por todos.
Exceto por Lorde Vallance, ainda um tanto deslocado na família e
Gladys, que queria mais que Julia fosse um cartão postal do ateliê
de Madame Rutherford.
— Você está encantadora — Winsford lhe disse baixo e
secretamente — Por sorte não vesti roupas curtas demais.
Julia o olhou de forma discreta.
— Desculpe-me por fazê-lo se sujar, meu lorde.
Winsford desfez da desculpa com bom humor e um sorriso
gentil.
— Foi uma tarde divertida com você, minha querida.
Julia olhou para os próprios pés, somente para depois reparar a
atenção de David sobre os dois.
O restante dos convidados estavam a ignorando como
prometido. Petúnia conversava alegremente com o marido, que
finalmente estava sorrindo radiante. As meninas ouviam Alice lhes
contar sobre dicas de beleza. George, Mary e Gladys estavam
engajados na própria conversa.
Exceto por David e aquele tolo ciúme.
Julia não via a hora de ser esposa de Winsford, poder conversar
com ele sem atrair olhares incômodos. David, no entanto, lhe
aparentava certa hipocrisia, uma vez que ele e a esposa se
engajaram em um amor proibido por meses até o casamento. E
fugiram para Gretna Green! O ápice da loucura!
Julia só queria conversar com o noivo em paz. Não planejava
fugir para a Escócia nem nada memorável.
Ela olhou para o marquês e abriu um sorriso para ele, sentindo
o coração bater mais forte diante de tanta ousadia em flertar com
ele. Quando Winsford retribuiu o olhar, Julia sentiu um calor subir
por seu corpo inteiro.
Por alguns segundos, só ele importou. E a enorme vontade de
tocá-lo e envolvê-lo.
Assustando-a, o gongo soou para o jantar e a fez sair de seu
transe apaixonado.

***

O jantar transcorreu como Julia gostava; com todos falando e


ela quieta, mas incluída na conversa. Winsford, como ela já sabia,
era extremamente simpático. David e o marquês compartilharam de
lembranças divertidas de quando eram garotos, fazendo todos
caírem na risada. Winsford tirou um tempo para explicar a Laura
como o algodão virava tecido, linha e qualquer coisa que a menina
quisesse saber. Quando ele lhe falou sobre o maquinário na
tecelagem, os olhos dela brilharam de curiosidade e animação.
Julia tentava não olhar muito apaixonada por ele enquanto o
homem falava. Ele era tão gentil, encantador e atencioso. Não era
possível que uma pessoa fosse tão decente com outros. Ele havia
de ter um defeito... E Julia tinha de parar de olhá-lo platonicamente,
assim, talvez, ela se permitiria conhecer Winsford para além do
homem por quem ela esteve tão apaixonada todo esse tempo.
Não que ela quisesse que ele tivesse defeitos, mas Julia
sempre fora um tanto pessimista. Tinha a sensação de que
acordaria e tudo não passaria de um sonho.
Após o longo jantar, ela já estava menos animada do que
quando voltaram das fazendas. Tinha muitas dúvidas sobre o
marquês, mas pouco tempo para conhecê-lo mais até o casório.
Estava feliz com o noivado, feliz demais. Mas ainda sentia que o
conhecia pouco e não queria se desapontar com o tipo de homem
que ele poderia ser depois do casamento. Tinha medo de ter a
ilusão de seu amor platônico destruída por um homem muito
diferente.
Deus, estava muito mais fatalista que o normal. Tivera uma
tarde agradável com o marquês. E um jantar também. E, ainda
depois do jantar, mais momentos agradáveis se sucederam quando
todos retornaram à sala de jogos para beber um pouquinho.
Emanuelle e Laura anunciaram que iriam se recolher. Petúnia
tirou a deixa para lançar um olhar urgente para Julia, que também
anunciou que iria para o quarto. A prima se levantou junto dela,
chamando o marido para acompanhá-las.
— Bem, acho que vou também — anunciou Mary, levantando-se
e abrindo um sorriso encantador para o marido — Vamos, querido?
Charles se viu obrigado a ir , porque se não fosse, ficaria de
castigo. E, com isso, todo mundo se levantou para os seus
aposentos. Já passava da meia-noite e, para um jantar informal, era
um tanto tarde. Principalmente para Laura e Emanuelle.
Julia seguiu com a prima e as irmãs. Os pais, irmão e cunhada
já haviam subido as escadas. Após uma conversa amena e muito
inocente sobre o quão agradável fora o jantar, a animada prima
anunciou:
— Vamos deixar que os noivos se deem boa noite — Petúnia
sutilmente empurrou Emanuelle e Laura consigo. Lorde Vallance
bem atrás dela com as mãos em sua cintura, como se a esposa
pudesse se despedaçar só por subir as escadas — Boa noite,
Lorde Winsford.
Ele se despediu com um inclinar de cabeça simples e educado.
Quando os quatro sumiram do corredor e os dois ficaram a sós,
Winsford sentiu a acanhada mão de Julia tocar a sua. A trouxe para
perto de seus lábios, dando um beijo sobre a palma enluvada e
deixando que Julia acariciasse seu rosto até se encontrarem em um
beijo demorado e apaixonado.
Ele a sentia relaxar em seus braços, sua delicada mão tocando
seu rosto e deslizando até os dedos estarem perdidos em seus
cabelos dourados. O toque dela era tão sincero e envolvente,
Winsford estava achando difícil resistir tamanha doçura.
Embora estivessem no vestíbulo, atrás da curva da escada e
arranjos de flores de Gladys, alguém ainda poderia vê-los
acidentalmente. Mas ele não se importava, havia passado muitas
horas com Julia ao seu lado sem poder flertar com ela ou olhá-la por
muito tempo. Precisava tê-la por perto, poder admirar sua beleza
angelical e sentir seu abraço delicado.
Trouxe o corpo de Julia para mais perto do seu e passeou com
seu beijo pela pele nívea de seu pescoço. Ela suspirou, trêmula,
agarrando-se em seu abraço quando os beijos ficaram mais
escondidos. Atrás de sua orelha, indo para o ombro nu,
mordiscando a pele clara, lambendo-a em meio a um beijo que a fez
se desmanchar em seus braços. Quando finalmente voltou aos
lábios doces dela e ela o recebeu com sua língua, Isaac soube que
jamais poderia ficar sem Julia.
A sua doçura era para além do sabor de seu beijo. Era toda a
sua pessoa. Sua beleza, a forma como ela o tocava com tanta
candura e o jeito que ela disse que cuidaria dele. Isaac não queria
que Julia cuidasse dele, queria que ele cuidasse dela.
Havia ganhado muito com aquele noivado por acidente e estava
muito feliz.
Seus devaneios apaixonados devem tê-lo distraído do
momento, porque Julia o puxou pelo pescoço e o trouxe de volta
para a realidade que os dois viviam. Sentiu a respiração dela contra
sua boca, um suspiro que foi como uma súplica para que ele
voltasse.
Ela não parou ali, com a mão livre, Julia o segurou pelo pulso e
o fez descer a mão que repousava em suas costas para a maciez
de suas nádegas. A duas camadas de saias não o impediram de
envolvê-la com a mão e pressioná-lo até sentir outro suspiro em sua
boca. Foi o suficiente para ele devorá-la, sua língua indo fundo no
beijo que a deixava cada vez mais lânguida em seus braços, mas
não menos calorosa.
Julia era faminta, o tipo de entusiasmo de uma jovem inocente
que queria experimentar tudo antes que acabasse. Isaac estava se
enchendo de desejo e aquilo era claro em seu corpo, mas fazia o
possível para não deixar que ela sentisse sua ereção. Deixaria que
Julia guiasse aquele beijo, que fosse tudo como ela queria.
Mas, para o próprio lamento, Julia o afastou devagar, mesmo
que tentando ser gentil. Ela o olhou com um toque de pesar e
Winsford sentiu um nó se formar em seu estômago.
— Desculpe-me, eu deveria ser mais respeitoso — ele
respondeu imediatamente.
— Não se desculpe, por favor — Julia se explicou, um suspiro
lamentoso tocando os lábios dele antes dela o beijar em apenas um
toque suave — Não sei se consigo resistir a você e não quero que
nos vejam assim.
Ele também não sabia se resistira a ela, queria explorar seu
corpo e ouví-la suplicando por mais.
Mas ela estava certa. Não queria que seus familiares os vissem
assim, o faria perder o respeito de todos e ela ficaria ainda mais
constrangida.
— É melhor se recolher. Durma bem, Julia. Eu...
Ela o olhou com uma leve expectativa e o esperou falar, as
mãos juntas na frente do corpo em uma postura bastante refinada.
— Serei um bom marido. Eu prometo.
— Eu sei que sim, Isaac — Julia se despediu com um simples e
inocente toque em seus lábios, deixando o sozinho atrás do arranjo
de flores.
Praticamente suplicou para que a mulher gostasse do
casamento. Que constrangedor.
Ele bufou baixinho, bagunçando os cabelos e rumando para
onde o mordomo da casa disse que seriam seus aposentos para a
noite. Um quarto de paredes azul marinho e móveis de mogno
escuro.
Winsford tirou a casaca e a blusa antes de se livrar de toda a
roupa para se deitar na cama. Será que incomodava Julia com toda
sua paixão? Talvez se ele fosse mais devagar em seus flertes, se a
deixasse confortável.
Esperava que não fosse algo de errado com ele, dada tantas
rejeições. Apesar de suas rejeições passadas, algumas moças com
quem flertou durante as temporadas dos últimos cinco anos
aceitaram seus beijos e os retribuíram. Mas nada mais. É claro que,
a maioria delas não apanhou sua atenção de modo a deixá-lo
apaixonado. E nem ele as deixou apaixonadas.
Então ele não devia ser tão ruim assim.

***

Julia não conseguia dormir. Ficava pensando sem parar no


noivo que estava no outro lado da casa. Pensava em como seria
dormir ao lado dele, confortável no calor do corpo de um homem.
Porque eles iriam dormir na mesma cama, sim. Era um direito dela
como esposa e Julia tiraria muito bom proveito da liberdade que
teria com ele.
Mesmo se, talvez, a atração do marquês fosse puramente física.
Aquela atração por ela existia, ela sabia. Ficara claro como água no
momento que compartilharam após o jantar e em todas as vezes
que eles se beijaram. Se fosse puramente física, ela não deveria se
entregar tão rapidamente assim. Não queria que ele perdesse o
interesse nela antes que la pudesse fazê-lo se apaixonar por ela.
Com muito custo, ela conseguira se afastar dele.
Diabo, por que estava pensando naquilo sem parar? Tinha de
focar nos fatos. Iria se casar com Winsford e teria todo o direito de
beijá-lo. Era o suficiente, por enquanto. Ela também gostava da
forma calorosa que ele a beijava, deveria aproveitar mais aquilo.
Mas ainda não conseguia dormir e decidi ir até a cozinha ver se
tinha sobrado um pouco da sobremesa. A cozinheira sempre
deixava as vistas porque, naquela altura, já aprendera que Julia
gostava de lanchinhos noturnos.
Julia não precisava de luz para se guiar, de modo que, quando
chegou na cozinha, serviu-se de uma fatia fina da torta de amoras e
alguns biscoitos amanteigados que achou num pote. Comeu tudo
junto de um copo de leite e, quando terminou o banquete, ela
começou a voltar para seu quarto.
No corredor do andar de cima, ela viu um vulto próximo a sua
porta, que sumiu para trás de um dos arranjos de Gladys. Julia
agarrou a camisola na altura do coração e se inclinou um pouquinho
para frente.
Era um fantasma. Ah, sim, ela acreditava em fantasmas. Iria
levá-la antes mesmo dela descobrir os prazeres da carne com o
futuro marido. No entanto, conforme chegava mais perto, viu que
não passava de um marinheiro que ela conhecia bem.
— David! Que susto... Céus, pensei que fosse uma
assombração.
O homem saiu de trás dos arranjos e cruzou os braços.
— Onde ele está?
— Quem? — Julia olhou para os lados — Ah... Seguiu-me até
aqui achando que estava com Lorde Winsford? Não acredito que
sua esposa o deixou sair da cama no meio da noite.
David resmungou sozinho, passando a mão pelo rosto
sonolento.
— Ela está dormindo. O que faz aqui sozinha?
Julia deu de ombros.
— Fui fazer um lanche.
David não respondeu. Apenas a olhou de cima a baixo.
— Não vejo sentido nesse ciúme todo — ela resmungou,
convidando-o para entrar em seu quarto e saírem do corredor —
Posso lhe perguntar algo sobre Lorde Winsford?
Ele assentiu, bocejando e relaxando no sofá do quarto. Sir
Jonas, que dormia do lado oposto, apenas abriu os olhos amarelos
antes de voltar ao sono.
— Ele... Ele já teve alguma... Uma mulher que ele mantinha?
David voltou a se sentar corretamente.
— Por que a pergunta?
A irmã deu de ombros mais uma vez e se sentou ao lado dele.
— Hoje duas pessoas ficaram chocadas quando o marquês
falou sobre nosso noivado... Como se fosse impossível. E ele é rico
e bonito, d-deve ter muitas namoradas.
— Julia, isso-
— E se ele me trair? — a voz de Julia ficou embargada e seus
olhos turvos por lágrimas — S-Se ele se cansar dos meus beijos e
for beijar outra mulher? E-Ele não me pediu em casamento, isso t-
tudo não passa de consequência de uma confusão. Talvez e-ele
nunca tenha quisto se casar, m-mas continuar como suas
namoradas. Talvez ele só gosta tanto de me beijar porque eu sou
uma nova mulher.
— Julia — David a segurou pelo rosto, obrigando-o a olhar para
ele — Calma.
Ela respirou fundo, soluçando no final. O irmão varreu suas
lágrimas com os polegares e depois lhe tomou as mãos nas suas.
— Isaac não faria nada disso. E, se isso a preocupa, fale com
ele.
— Falar? — ela fungou, horrorizada — E-Eu não posso
perguntá-lo sobre as namoradas... É constrangedor e... Apenas me
diga. Ele é tão galante quando flerta e seus beijos são... Bom, e-ele
deve ter tido muitas mulheres. Eu não faço o tipo dele... Sou
apagada demais, magra demais.
Nem um pouco ruiva.
— Não sou como as outras...
David deu um muxoxo triste e tomou as mãos de Julia,
afagando suas mãos.
— Acalme seu coração, Julia. Não há nenhum outro homem
nessa bendita Inglaterra que seria mais respeitoso que Isaac. Confie
no seu valor, minha pequenina.
Ela abaixou o rosto em um gesto de vergonha.
— Você é uma mulher cheia de qualidades, Julia. Todos nós
temos muito orgulho de você.
— Obrigada... Eu devo falar com ele mesmo...?
— É o mais sensato — David voltou para a outra poltrona —
Você gosta dele, não é? De verdade.
Julia assentiu, os olhos voltando a se encher de lágrimas que
molharam sua camisola assim que ela abaixou o rosto.
— Q-Quando nós tivemos de prestar condolências ao marquês,
eu... E-Eu me apaixonei por ele, platonicamente, é claro. Até agora,
agora eu... Eu acho que me apaixonei pelo que estou começando a
conhecer de verdade.
As sobrancelhas loiras de David se uniram, intrigado.
— Esse tempo todo tem nutrido sentimentos por ele? Eu
poderia tê-los apresentado adequadamente. Eu sei que fiquei com
ciúmes, mas se tem um homem que eu sei que respeitaria minha
irmã, esse homem é Isaac.
Ela fez que não ao que secava o rosto.
— Nunca mantive esperanças de ficar com ele, nem passava os
dias pensando nele. Apenas... Apenas quando eu o via na multidão
e meu coração disparava, eu tentava me aproximar para
cumprimentá-lo, mas não conseguia.
David deu um muxoxo de tristeza e tocou o antebraço de Julia
em um gesto de carinho.
— E ele foi logo cortejar a nossa prima...
Com isso, os olhos dela se inundaram de lágrimas. Por tudo.
Por ciúmes, por remorso ao ter agido de forma tão imatura, por
inveja e por medo.
— Eu não suportaria vê-lo com ela, tendo filhos com ela — Julia
chorou, secando os olhos com as costas das mãos — Vê-la feliz
com o homem por quem eu me apaixonei.
O irmão a consolou com um abraço demorado para, então,
secar-lhe o rosto.
— Foi para isso que veio morar aqui? Para ficar perto dele?
— Eu nem ao menos sabia que ele morava aqui, quis voltar
imediatamente assim que descobri! — Julia reclamou, voltando a
derramar lágrimas — E-Eu vim para fugir da sociedade, estou
cansada deles. E... Para parar de pensar em Lorde Winsford,
também.
— Se quiser... Eu posso conversar com ele.
— Não, por favor. É um problema meu, o casamento me dará
respostas.
— Vai ficar tudo bem, Julia — David se pôs de pé e a guiou até
a cama — Deite para dormir, fique calma.
Ela fungou outra vez e se enfiou debaixo das cobertas. O irmão
arrumou os lençóis e os travesseiros e deixou um cuidadoso beijo
sobre sua testa.
— Poucas mulheres teriam um marido como Isaac — ele disse,
sentando-se na beira do colchão — E você só compreenderá
quando se casar com ele.
Os olhos de Julia se encheram de preocupação, mas o irmão
riu.
— Digo como algo bom — assegurou o homem — Você se
sentirá muito especial. Agora vou voltar para minha esposa, se você
me permitir.
Julia o empurrou para fora da cama com os pés e o irmão
deixou o quarto aos risos.
Ela rolou para o lado e ficou pensando. Por que ela se sentirá
especial após o casamento? Agora ela queria que o casamento
chegasse mais rápido ainda.
CAPÍTULO 13

Isaac se sentia um novo homem. Revigorado e feliz.


Em dois dias ele seria um marquês casado com uma linda
moça, cuja família era uma das mais agradáveis que ele já
conhecera. Ele teria uma família gigantesca, tão grande que ele
nem se importava de Tamsin ser uma das várias primas. Naquela
altura do campeonato ele nem se lembrava mais que a havia
beijado, tudo o que pensava era em como Julia era a coisinha mais
linda e elegante das ilhas britânicas. Ela seria a marquesa perfeita.
Ah, estava apaixonado por ela. De fato, estava. E esperava que
ela estivesse também, que a chateação pelo casamento forçado já
tivesse passado. Os dois se dariam bem, seriam felizes, ela logo
perceberia isso.
Por isso, ele estava decidido a ir visitá-la à tarde, mesmo que
houvesse tomado o café da manhã na residência de Gladys. Os
dois não tinham privacidade para conversar e tudo o que pudera
fazer foi lhe dar bom dia, depois um adeus e um beijo em sua mão.
Um beijo muito demorado que a fez corar e o fez lembrar de todos
os lugares que ele adoraria beijá-la.
Se ela corava, ele ficava satisfeito. Significava que ela estava
gostando. Certo?
De qualquer modo, ele iria até Rosestone outra vez para vê-la
com a privacidade de um chá. Tinha de compensar pela primeira
semana em que mal vira a noiva. Aqueles dois últimos dias de
noivado seriam ótimos.
Quando Isaac voltou para a Mansão Ballard, foi direto para seu
escritório ver se havia alguma coisa da fábrica que Price pudesse
ter deixado por lá. Não que algo pudesse ter acontecido entre a
tarde anterior e aquela manhã. Mas o marquês gostava de estar a
par de tudo e, também, não queria outro motim.
Mas não havia nada em sua mesa além dos modelos de
engrenagem que ele criava quando estava em casa. O cômodo
continuava imaculado. Sempre levava trabalho para o quarto e,
quando não estava lá, estava na fábrica.
— Lorde Winsford! — Price entrou com toda a pompa que ele
merecia — Que bom que chegou. Acabei de voltar de Chester.
O marquês olhou por sobre o ombro enquanto se servia de uma
pequena porção de uísque em seu aparador.
— Pensei que havia passado a noite aqui.
— Com a futura marquesa prestes a se mudar? De maneira
nenhuma. Passarei menos e menos tempo aqui, meu lorde. Não
quero atrapalhar na produção do futuro herdeiro.
Isaac virou o corpo e se serviu de só mais um pouquinho.
— Fala como se eu fosse fabricar um boneco. E se for uma
menina?
Price arrumou os óculos.
— Há sempre mais filhos no horizonte de um casal apaixonado,
Lorde Winsford. Eu tenho uma irmã mais velha, como o senhor
sabe. A primogênita.
— Sei, sei. E se a Srta. Wilson não conseguir ter filhos?
Algumas mulheres têm o ventre delicado. Sou filho único.
— Mas — o homem ergueu o indicador — nasceu um menino
forte. Tenho certeza que, mesmo se a futura marquesa for uma
mulher de pouca fertilidade, virá um menino. Só unzinho já basta,
meu lorde. Apenas um.
Aquilo não era garantia nenhuma visto o alto índice de
falecimentos de bebês. Mas um assunto mórbido como aquele não
era o tipo de coisa que Isaac gostava de falar.
Qualquer herdeiro quer ter um herdeiro, mas não havia como
controlar o ventre de uma mulher. Não dependia de nenhum dos
dois para que viesse menino ou menino. E nem sempre era a
mulher cujo ventre era fraco. Por vezes as sementes de um homem
não eram suficientes.
Que assunto enervante. Uma hora ou outra eles teriam um filho
e Isaac só queria um bebê para amar.
— Vamos mudar de assunto — anunciou o marquês, sentando-
se em sua cadeira de chefe do outro lado da mesa — Vou visitar a
Srta. Wilson mais tarde. Faça o favor de enviar a mensagem que eu
vou escrever, ao invés de ficar tomando conta da minha vida.
Em menos de dois minutos ele redigiu um breve bilhete sobre a
visita. Sempre muito gentil, é claro.
Quando Price pegou a mensagem dobrada e devidamente
selada, anunciou:
— Estou ansioso para conhecer a futura marquesa, meu lorde.
Não sabe o quanto.
Isaac riu alegre, estava ansioso para que Julia se tornasse a
nova marquesa.
— Mas eu estive pensando, meu digníssimo patrão — continuou
Price — Acredito que o senhor deva presentear a Srta. Wilson com
uma joia. É o que se costuma fazer, um anel, quase sempre.
Isaac parou de beber e tomou sentido si. Price estava certo, por
mais que o compromisso tivesse sido firmado por um arranjo, ele
tinha de dar algo para Julia. Havia o anel de noivado de sua mãe,
mas aquilo deveria ser entregue durante a cerimônia, disso ele já
sabia.
— Não consigo pensar em nada além do anel de noivado de
minha mãe.
O secretário riu, o que fez com que o marquês o olhasse com
confusão.
— Pois eu sempre penso antes do senhor, meu lorde — com
um exagerado aceno, Price levou a mão até o bolso e tirou de lá
uma pequenina caixa de veludo preto — Por favor.
Isaac pegou a caixa para si, mas antes de abrir, perguntou:
— De onde tirou isso?
Price pigarreou baixinho.
— Assim que mencionou o matrimônio, fui até o ourives e pedi
que fizesse um pequeno broche. Com o dinheiro do senhor, é claro.
— De quem mais seria... — ele resmungou, abrindo a caixinha.
Era um pequenino broche dourado em formato de ferradura,
cravejado com diamantes e água-marinhas. Nada muito trabalhoso,
nem extravagante
Mas era exatamente algo que Julia gostaria, Isaac pensou.
Pequeno, elegante e... Equestre.
— É perfeito, Price — ele sorriu, segurando a joia na palma de
sua mão — A Srta. Wilson irá adorar.
— Comentou que a dama gosta de cavalos e, dado os trajes de
montaria que ouvi falar, deve gostar bastante de equitação.
— Você conhece minha noiva melhor do que eu! — Isaac riu
muito satisfeito e guardou o broche de volta no estojo — Ela irá
adorar.
E, com isso, ficaria corada. E corar era sinônimo de deleite.
Certo?
Ele esperava que sim.

***

Julia sorriu quando o viu de pé na sala de visitas menos de


quatro horas depois dele ter partido. Ela foi de encontro com Isaac,
mas parando com um leve toque de surpresa. Ela olhou para o
buquê de rosas brancas e a caixa nas mãos do marquês, que não
escondeu um sorriso galante.
Era para se sentir especial. Seu irmão conhecia Isaac desde
garoto. Ela acreditaria nele e focaria na alegria de tê-lo para ela.
— Para você, Julia — primeiro ele ofereceu o buquê — E
chocolate. Seu irmão disse que você ama chocolate.
Ela fez que sim, sorridente, e pegou o buquê nos braços para
sentir o cheiro das flores.
— Vou pô-las aqui por enquanto, está bem? — Julia
cuidadosamente colocou o buquê sobre a mesa de centro e pegou a
caixa de chocolate — Obrigada. Sente-se, por favor!
Isaac assentiu, ficando um tanto nervoso quando se sentou no
sofá. Julia, para seu agrado, sentou-se ao seu lado e abriu a caixa
de chocolates sem fazer cerimônia.
Como uma criança em dia de Natal, ela admirou os bombons à
disposição até escolher um. Ela o pegou e, para surpresa de Isaac,
ofereceu para ele bem próximo de seus lábios.
O marquês ergueu as sobrancelhas, mas abriu a boca e aceitou
que Júlia lhe desse o bombom. Ela aproveitou do contato para tocar
os lábios dele com a ponta dos dedos antes de beijá-los
rapidamente. Depois, fechou a caixa e murmurou que a colocaria
junto das rosas.
— Vejo que está alegre hoje — comentou ele assim que
terminou de comer o bombom, tomando a liberdade de tocá-la em
seu rosto com uma carícia leve — Está encantadora assim.
Julia se constrangeu com a própria alegria e abaixou o rosto,
embora um sorriso teimoso tivesse escapado.
— Estou apenas pensando no casamento, meu lorde... Quero
que chegue logo.
Isaac anuiu. Não diria que não estava feliz com aquilo, porque
estava muito. Mas quando firmaram o compromisso Julia parecia
tão certa de que não queria se casar.
Talvez ela tenha mudado de ideia por algum motivo. Talvez
estivesse gostando dele tanto quanto ele estava gostando dela.
De todo modo, não tinha mais volta, o casamento era no dia
seguinte. Era hora de entregar o broche e selar aquele compromisso
como um cavalheiro deveria fazer.
Ele ficou nervoso, era como se estivesse a pedindo em
casamento por vontade própria e não por causa de uma confusão.
Julia o olhou com seus enormes olhos azuis, bastante
expressivos naquele momento.
Isaac levou a mão ao bolso da casaca onde havia guardado a
pequena caixa de veludo. Quando a tirou de lá, os olhos de Julia
ficaram ainda maiores e seu rosto, uns dois tons a mais de rosa.
— Quero lhe dar um presente para selarmos nosso
compromisso — ele abriu a caixinha para revelar a joia — Algo que
seja especial para você e, talvez um dia, passe para nossa filha
mais velha. Tenho certeza que ela herdará os seus gostos.
— Eu... — a voz dela saiu baixa e seus dedos, com todo
cuidado do mundo, pegaram a caixinha — É tão bonito! É uma
ferradura, tão bonitinha... Você não precisava, meu lorde.
— E perder a chance de ouvi-la dizer que algo é bonitinho? —
Isaac riu em deleite e pegou o broche — Posso?
Ela assentiu vividamente, ruborizando.
Isaac pensou onde poderia prender o broche. Decidiu que o
colocaria onde as duas pontas do pelerine de renda de Julia se
encontravam na frente de seu peito.
— Enquanto vesti-lo, estarei sempre com você.
— Obrigada — ela sorriu de orelha a orelha, abraçando-o tão
repentinamente que Isaac demorou alguns segundos para
corresponder.
Abraços não eram comuns por aí, para ele chegava a ser mais
íntimo que um beijo. Em um abraço dois corpos se encontram e
compartilham calor. Não era lascivo, também. Havia algo de
inocente e gentil em um abraço que o deixava contente. Um
momento de paixão podia ser compartilhado por duas pessoas sem
nenhuma afeição, mas o abraço era a busca por acolhimento e
carinho.
Eles se afastaram apenas o suficiente para que pudessem se
olhar. E ela sorriu. Graças a Deus, ela sorriu.
Isaac se inclinou para beijá-la, tomando os lábios de Julia no
mais doce beijo que podia dar antes dela puxá-lo para mais perto.
Ele já estava se acostumando com o agradável toque dela em seus
cabelos sempre que se beijavam, de sua mão deslizando pelo seu
braço, sentindo o corpo. Ele gostava daquilo, de tê-la o explorando.
E gostava muito de beijá-la.
Ávida, a noiva o puxou para mais perto até que ela estava
deitada contra um montinho de almofadas. O marquês a olhou de
cima e logo estavam unidos em mais um beijo caloroso. O sabor
dos lábios e das línguas os deixando inebriados naquele contato
íntimo.
Ele queria tocá-la por debaixo dos tecidos de seu vestido, sentir
a maciez de seu corpo feminino contra o dele. Ouvir os sons que
uma mulher fazia quando estava com um homem apaixonado.
Isaac deixou que sua mão lhe tocasse a panturrilha por debaixo
das saias e ela suspirou baixinho contra seus lábios. Sentia a pele
quente por debaixo do tecido fino, apertando-a levemente e se
imaginando repetindo o gesto em outros locais do corpo delicado
dela. Se subisse mais um pouquinho, só mais um pouquinho. Ele só
conseguia imaginar a delicadeza de sua feminilidade, a maciez de
seu sexo. Como ela deveria ser. Que sabor ela deveria ter.
Nunca esteve tão curioso e sedento em toda sua vida.
Isaac precisava de Julia. Não podia fazer muito naquele sofá, o
que ele queria levaria horas de atenção e carinho até vê-la se
desmanchar por ele. Queria que Julia sentisse a mesma paixão que
ele vinha sentindo nos últimos dias, hipnotizado pela beleza dela,
pela delicadeza de suas pele contra suas mãos ásperas.
Esperou por algum protesto, mas Julia apenas suspirou contra
seus lábios quando uma de suas mãos subiu pela combinação de
algodão dela, acariciando toda a coxa macia. Derramado-se sobre o
beijo dela, Isaac passou sua mão para a parte interna da coxa, onde
ela conseguia ser ainda mais macia e quente.
Julia se afastou do beijo apenas por milímetros, seu hálito ainda
misturado ao dele quando ela deixou um sonzinho feminino escapar
de seus lábios. Isaac a tocou mais para cima, encontrando a fenda
de sua combinação e sentindo os pelos macios dela.
Ela não protestou, pelo contrário, sua mão apertou em seu
braço e desceu até seu pulso. Para grande deleite dele, Julia o fez
pressionar sua mão contra a feminilidade dela, pedindo que
continuasse. Não esperava tamanha ousadia dela, mas não
desaprovou aquilo nem um pouco. Queria Julia, queria senti-la e o
fato dela querer que ele o fizesse era ainda mais energizante.
Deixou que seus dedos a abrissem, sentindo-a úmida e quente
antes de massageá-la lentamente sobre seu ponto mais sensível.
Ela tremeu abaixo de seu corpo, seus lábios entreabertos próximos
aos dele que a tomou em um beijo tão lento e tortuoso quanto o
toque de seus dedos.
Quando um dedo deslizou para dentro, ela conteve um gemido
de surpresa e deleite. Isaac só pôde imaginar como seria se fosse
ele ali dentro.
— Não podemos... — ela sussurrou, lamentando.
Ele parou de tocá-la, deixando que sua mão repousasse sobre a
coxa dela. Afastou-se do beijo apenas o suficiente para poder olhá-
la em seu rosto corado.
— Quer que eu pare?
— Não — Julia disse em outro tom de lamento — M-Mas podem
ouvir o nosso silêncio e... Eu morreria de vergonha se nos
encontrassem assim.
Ele compreendeu. Havia muitas pessoas naquela casa, como
na noite anterior. E três deles poderiam muito bem matá-lo mesmo
com o casamento logo na esquina.
Infelizmente, Julia parou de beijá-lo e tentou se sentar ereta
outra vez. Ele a ajudou, aproveitando de um último momento para
segurar suas mãos.
Julia pigarreou baixinho e arrumou o penteado, afastando-se
apenas o suficiente para não ficar com o vestido em cima dele.
— Meu cabelo ficou muito bagunçado?
Isaac não entendia muito do universo feminino, mas o jeito que
a trança enrolada no topo da cabeça dela havia quase se
desmanchando e os cachos na frente começavam a perder a forma
não parecia certo.
— Não... — disse, incerto.
— Mentiroso — Julia retrucou, sorrindo risonha quando o
marquês riu — Aposto que parece que sofri um acidente de
carruagem.
Ela conseguiu colocar a trança no lugar, sem o auxílio de um
espelho, e arrumou os grampos de modo que parecesse quase
como antes.
— Desculpe-me por bagunçá-la — ele tratou logo de dizer —
Você é tão linda que eu... Gosto muito do seu cabelo. Nunca vi um
tom tão claro em pessoas adultas. Geralmente o cabelo escurece
quando as crianças crescem.
Julia riu bastante corada.
— Meu pai me disse, certa vez, que as pessoas do norte
europeu têm os cabelos assim. Talvez nossos antepassados tenham
vindo de lá, durante a invasão nórdica.
— Bom, teremos de viajar até lá para procurar alguns primos
seus — brincou ele, sorridente. — Que tal uma lua de mel na
Dinamarca?
Ela respondeu com um riso contente e um leve empurrão em
seu ombro, terminado por beijá-lo demoradamente contra os lábios.
— Sorte a nossa que nos casaremos em dois dias, não? —
perguntou Isaac.
Ela fez que sim e corou.
Corou!
Ótimo, ele estava indo bem.
— Usarei sempre — disse ela ao tocar o broche com cuidado.
Ele aceitou a mudança de assunto.
— O que acha de usar no dia do casamento?
Julia ergueu as sobrancelhas e assentiu, alegre.
— É uma ótima ideia. Vou usar para você.
E ele ficaria muito feliz de vê-la usando. Só tinha de esperar
mais dois dias.

***

O dia chegou.
O dia em que ela viraria Lady Winsford.
Casada com Lorde Winsford.
Morando e dormindo na mesma cama que Lorde Winsford
Tendo filhos- Bem, você já entendeu.
Julia não sabia se ficava feliz ou tinha um ataque de nervos.
Tudo estava agradável, até então. O jardim de Gladys estava
repleto de tendas, enormes arranjos de flores azuis e um pequeno
bufê com tudo o que Julia gostava. Bolinhos franceses e chocolates.
Além de um bolo alto cheio de flores de açúcar. No centro havia um
corredor de cadeiras brancas viradas para o arco onde o vigário
faria a união do casal.
O noivo estava parado junto dos outros homens, tentando pegar
um bolinho na mesa sem que Charles ou Lorde Vallance vissem. O
restante da família estava espalhado pelo gramado, bebericando
algo ou comendo um dos refinados canapés preparados pela
cozinheira de Gladys.
Por um momento Julia sentiu saudades da família inteira. Era
um momento especial e queria todos ali, apesar de detestar a
maldita barulheira que faziam. O sentimento de saudades se
misturava com certa tristeza ao ver que Isaac era o único Ballard
presente. Mas parecia que o noivo estava adorando tudo e Laura
não o deixava em paz, vez ou outra fazendo o homem rir e
Emanuelle revirar os olhos.
Julia bisbilhotava tudo da janela de seu quarto enquanto
Madame Rutherford abotoava as costas de seu lindo vestido
esvoaçante. A obra da modista ficou do jeito que Julia pedira. A saia
era cheia, com musselina fina e repleta de flores douradas pelo
tecido transparente. Por debaixo, a saia de seda era grande
também, maior que o exigido pela moda vigente. Sua clavícula
estava despida, o decote do vestido revelando seus ombros e
caindo em mangas bufantes de musselina, deixando a mostra seus
braços e suas mãos sem luvas. Havia até feito as unhas, o que
alegrou Natalie, que não parou de elogiar Julia enquanto cortava as
unhas da patroa e as envernizava discretamente.
Seu cabelo fora devidamente arrumado pela criada, que o partiu
no meio, com duas tranças nas laterais do penteado, caindo em um
arco até ficarem presas no coque baixo e cheio de esferas de ouro
cuidadosamente posicionadas pelos fios claros.
Seria um problema para se desfazer daquele penteado na hora
das...
— Deus do céu... — Julia murmurou, lembrando-se de sua
ignorância.
— Algum problema, Srta. Wilson? — Madame Rutherford
perguntou, afastando-se de Julia.
Ela suspirou lentamente, virando para olhar no espelho e
evitando olhar para a modista.
— Estou um pouco nervosa, apenas.
A mulher deu um muxoxo cheio de compaixão e, quando abriu a
boca para consolar Julia, a mais nova disparou:
— As relações são agradáveis, madame?
A modista ergueu as sobrancelhas e, pela primeira vez, corou
em suas faces. Mas não demorou para retornar a postura de
sempre.
Julia havia tido a tal conversa com a mãe na noite anterior, no
entanto, Mary estava tão envergonhada que não conseguia explicar
as coisas. Tia Gladys, nem se fala. Disse apenas para ela ficar
parada que o marido faria tudo. Mary discordou e disse que a
mulher deve participar, mas quando foi explicar mais além, não
conseguiu. Julia decidiu que não forçaria a mãe a tamanho
constrangimento, afinal, Petúnia estava lá para sanar suas dúvidas.
No entanto, tudo o que conseguiu com a prima fora seu
desenho de abóbora.
Ainda pensava no momento que compartilhou com o marquês
no sofá de Gladys. No toque quente de suas mãos em seu sexo,
senti-lo dentro dela a fez pensar no qur mais ele poderia colocar em
seu corpo. Ela o queria tanto naquele momento que ficou surpresa
por ter conseguido parar. Não queria um momento ainda mais
constrangedor do que o que os levou ao casamento.
Pelo resto do dia ela sentiu aquela deliciosa e proibida
inquietação em seu íntimo, ansiosa pelas mãos dele outra vez.
— Quando feitas com um homem gentil, são sim, Srta. Wilson.
Principalmente quando o amamos.
Ela estava apaixonada pelo marquês, mas amor era um
sentimento muito forte. Era muito cedo para dar nomes aos
sentimentos. Mesmo quando ela vivia o procurando na multidão,
ansiosa para vê-lo mesmo que de longe, Julia tentou ao máximo
não dizer para si mesma que o amava. Ela sabia que o amor era
fruto da amizade e companheirismo. Quando era uma observadora
distante, Isaac não a conhecia. E ela não o conhecia.
Mas agora as coisas caminhavam para algo muito melhor e ela
queria que um dia fosse o mais belo amor.
— Gosto muito de Lorde Winsford...
— Então o marquês será um querido amante — ela sorriu com
confiança e colocou o véu sobre o penteado de Julia — Está pronta.
Acho que todos estão ansiosos para vê-la, Srta. Wilson.
Ela se olhou no espelho uma última vez, com o vestido de
casamento e tudo.
Inacreditável.
— Posso lhe pedir um último favor, madame?
— O que quiser, Srta. Wilson.
Julia agradeceu com um sorriso.
— Poderia chamar meu irmão, por favor? Se minhas irmãs
insistirem em vir com ele, diga que chamei apenas David.
A modista maneou a cabeça como um mordomo bem treinado e
deixou Julia a sós.
Ela voltou a se olhar no espelho, um tanto incrédula de que
estava mesmo prestes a se casar com Lorde Winsford.
Viu David entrar no quarto pelo reflexo do espelho, virando-se
imediatamente para o irmão que abriu um sorriso genuíno.
— Você está uma graça, Julia.
Ela corou em lisonja, as mãos alisando as saias de musselina.
— Ainda está chateado com Lorde Winsford?
— Estou feliz que vai se casar com Isaac, juro. Fiquei
enciumado, mas passou — assegurou o irmão, gentilmente
arrumando o véu da noiva — Ele é meu melhor amigo, será o
marido mais digno do mundo.
— Mais que você? — Julia ergueu uma das sobrancelhas de
modo jocoso e arrancou uma risada do irmão — Vou contar tudo
para Alice.
— Eu tenho alguns defeitos — ele brincou, mas então, ficou
sério — Mas se ele a magoar, avise-me que eu mesmo vou dar uns
socos naquela cara bonita dele.
Ela fez que não imediatamente, arrancando outra risada do
irmão.
Com um suspiro pesaroso, Julia bisbilhotou pela janela mais
uma vez.
— Isaac tem família, não é? Sinto um aperto no peito ao vê-lo
sem ninguém...
Ela não via a hora de terem muitos filhos.
— Ele tem tios e primos, mas não convive muito com eles. Não
se preocupe, isso não é algo que o deixa triste. Isaac não se
importa, acredito que seja algo que filhos únicos costumam sentir.
O noivo não parecia triste. Estava rindo e conversando com
Gladys e Charles. Até mesmo Alice estava na roda de conversa, um
tanto risonha, mas ainda muito tímida ao lado de Gladys. Ele
sempre estava sorrindo para as pessoas. Era a hora de alguém
sorrir para ele e esse alguém seria Julia.
— Acho que é minha hora de ir casar, então... Pode avisar o
papai para vir me buscar.

***

Assim que Gladys e Charles o deixaram a sós, Isaac começou a


se sentir nervoso. Até então estava ocupado demais conversando
com todos ou cumprimentando os familiares de Julia presentes. E
olha que só estavam os futuros sogros, três dos cinco cunhados, a
esposa de David, a tia, a prima e o marido da prima - que ele já era
conhecido e podia-se dizer até que eram amigos de clube.
Ainda tinha mais gente, afirmou Charles. Havia as duas irmãs
da esposa, cada qual com os respectivos maridos e filhos. E a outra
irmã solteira, os pais. Sem contar com os irmãos do Duque de
Devonshire, mais uma penca de filhos e cônjuges que, para Julia,
formavam todos uma imensa família.
Era muita gente que, um dia, Isaac teria de conhecer.
Ele tinha sua família, mas com o tempo, foram se afastando. Ele
não sentia saudades, nem entristecido por não ver muito os primos
e tios. Não se importava muito com aquilo, mas sua falta de convívio
familiar o fez se sentir um tanto perdido com tantas pessoas que um
dia teria de decorar os nomes.
Certo que já conhecia alguns. Lorde Chatham e ele já haviam
conversado, sem falar em Tamsin. Também havia Lorde Bowley, pai
de Lorde Rosenburg - o primo de David, filho da irmã de sua futura
sogra... Deus, que confusão. Ah, e o visconde havia casado. Ou
seja, tinha a esposa dele, Lady Rosenburg. Que era prima de
Tamsin que, mais uma vez, era prima de Julia por casamento.
O cérebro dele já estava ressecado depois de tentar montar
aquele genograma gigantesco.
Isaac estava muito nervoso, ansioso e outras coisas horríveis
que o faziam querer sair marchando para espairecer. Ele buscou
pelo secretário, que no momento era um convidado de prestígio
junto da Madame Rutherford.
Encontrou o homem do outro lado do gramado, conversando
com a modista a uma distância tão respeitosa que pareciam meros
conhecidos. Sem demoras, Price atravessou o gramado,
educadamente cumprimentando os poucos convidados, até que
estava com Isaac debaixo da tenda de docinhos e flores de açúcar.
— O senhor está com a cara péssima, meu lorde.
— Está tão visível assim? — perguntou, rapidamente pegando
um copo de limonada fresca quando um dos criados passou com a
bandeja na direção dos Wilson — Estou nervoso.
— Não há como fugir agora, meu senhor.
Ultrajado, Isaac nem terminou de beber a limonada.
— Não vou fugir — respondeu, um tanto irritado — Deus sabe
que eu já não consigo mais parar de pensar na Srta. Wilson.
— Então se acalme, Lorde Winsford. Tenho certeza que será
um marido prestimoso.
Isaac esperava que Julia gostasse dele o tanto quanto ele
estava gostando dela.
— Madame Rutherford disse que a Srta. Wilson está lindíssima
— disse o secretário com um sorriso amigável que confortou o
marquês — E que está tão nervosa quanto o senhor.
Ele deu um gole na limonada, demorando-se com ela.
— Se beber muito vai precisar se ausentar no meio da
cerimônia — Price tirou o copo das mãos do patrão e o colocou
sobre a mesa — Tenha confiança, meu lorde. Uma esposa não deve
ver no marido alguém que não lhe passa segurança.
— Lorde Winsford! — Laura exclamou com enorme animação
— O senhor está tão bonito, Julia vai se derreter todinha!
Isaac sorriu agradecido e Price deixou o patrão com as
cunhadas.
— É mais fácil ela me fazer derreter, Srta. Laura. Na verdade,
ela já o faz.
A menina riu feliz e cutucou Emanuelle com o cotovelo. A irmã
do meio pediu desculpas para Isaac com um olhar impaciente.
— Estamos tão contentes, sabe? — Laura continuou — Julia
pode ser um tanto distante e calada às vezes, mas ela tem um bom
coração, tem sim. Ela costura roupinhas para o Sir Jonas tão bem,
imagino que será uma mãe maravilhosa!
— Confesso que Julia tem sido bastante calorosa, com todo
respeito.
Emanuelle escondeu um sorriso maroto e assentiu.
— Ela gosta do senhor, sim — a moça disse com um leve rubor
no rosto pálido — Eu sei que não devemos falar de assuntos tão
íntimos, mas ela assegurou que está apaixonada pelo senhor então,
por favor, trate-a bem, Lorde Winsford.
O marquês sentiu um agradável calor em seu peito e tolas
borboletas em seu estômago. Homens sentiam borboletas no
estômago? Bem, agora ele sentia.
— Julia será a esposa mais mimada da ilhas britânicas
Então, o vigário, que até então estava dentro da mansão,
chamou a atenção de todos ao voltar para os jardins.
Aquilo só significava uma coisa.
Julia estava por vir e todos deveriam se organizar.
Isaac engoliu em seco, ansiosamente arrumando o lenço no
pescoço enquanto se dirigia para o arco de flores onde o vigário
estava esperando.
Todos estavam de pé, olhando na direção da porta da mansão,
um caminho livre para que Julia caminhasse até ele.
O marquês trocou um olhar ansioso com o secretário, que, com
um olhar irritadiço, indicou o próprio dedo anelar. Isaac rapidamente
apalpou o bolso interno de sua casaca cinza, sentindo o anel que
daria para Julia.
Respirou fundo, mas prendeu a respiração assim que a grande
porta dupla se abriu e a visão da noiva tomou conta de tudo que
existia ali.
Ela estava adorável, como uma nuvem esvoaçante. O véu não
cobria seu rosto, estava para trás e caindo pelas costas,
misturando-se com as saias cheias. Era como se ela voasse, linda e
leve.
Mas o que o deixou mais satisfeito fora ver o broche de
ferradura cuidadosamente preso em seu vestido.
O coração de Isaac batia mais rápido conforme ela se
aproximava, um buquê simples em suas mãos juntas na frente do
corpo. Ele não conseguia ler a expressão dela. Parecia resoluta,
mas seus olhos marejados lhe davam a resposta de que Julia
estava contendo suas lágrimas.
Esperava que fossem lágrimas de alegria.
O tempo em que ela percorreu caminho até ele pareceu eterno,
ao mesmo tempo que aconteceu num piscar de olhos. Quando deu
por si, Julia fora entregue a ele, que segurou ambas suas mãos.
Mãos com luvas cujos dedos ficavam descobertos.
Ela trocou um olhar acanhado com Isaac e a expressão tensa
deu lugar a suavidade do sorriso dela.
— Está tão linda — ele sussurrou, feliz por ver o sorriso dela
aumentar.
— Você também, meu lorde.
— Estou o mesmo de sempre.
Julia sorriu outra vez, seu olhar recaindo docemente sobre o
dele.
— Está sempre bonito para mim.
Aquele elogio fora suficiente para deixá-lo menos ansioso, além
de fazê-lo corar feito um garoto. Olhar para sua noiva também
ajudava e, embora estivesse chorosa, Julia não deixou de olhar para
ele em nenhum momento sequer. Nem quando o vigário falava, mas
principalmente quando repetiam os votos de casamento.
Somente quando Isaac teve de soltar suas mãos e pegar o anel,
eles deixaram de se olhar.
A mão dela estava trêmula quando lhe ofereceu para vestir a
joia. Que coube perfeitamente, um lindo anel dourado com uma
pequena esmeralda lapidada em formato de gota, envolta por
diamantes ainda menores.
A joia não extravagante demais para o que ele pensava de
Julia, mas não era para ser usada diariamente. Servia como um
simbolismo. Um dia, eles passariam o anel para o filho mais velho
passar para a esposa. E assim por diante, até que cada Lady
Winsford, um dia, tivera a chance de vesti-lo.
— O noivo pode beijar a noiva.
Isaac estava distraído demais em Julia que nem percebeu que
já havia feito todos os votos.
Ela o olhou com aqueles lindos olhos azuis, um sorriso
encabulado que estava pronto para receber o beijo que selaria
aquele compromisso eterno. Sentiu-se um tanto acanhado de beijá-
la na frente de todos, principalmente de David. Mas ela o olhava
daquele jeito que ele já sabia que significava eu quero um beijo, e
ele o fez. O mais gentil e inocente que deram, apenas o toque dos
lábios. Não muito breve, nem muito demorado. Mas ainda assim,
perfeito.
Era o beijo que selava o casamento. Ele e Julia como Lorde e
Lady Winsford, Marquês e Marquesa de Chester.
CAPÍTULO 14

O casamento se estendeu até o final da tarde.


Julia não se lembrava muito da cerimônia, nem da despedida e
nem de quando entrou na carruagem do marquês. Mas já estava de
pé em frente da enorme Mansão Ballard, com os criados mais
importantes enfileirados do lado de fora.
A casa era muito maior que a Residência Rosestone. E um
tanto sem graça, apesar da magnitude em termos arquitetônicos.
Faltavam flores nos jardins ingleses. As sebes e arbustos compridos
precisavam de um toque colorido. Parecia até que o céu era mais
nublado por ali.
Era surpreendente imaginar que alguém vivia sozinho em um
lugar tão grande. Ainda assim, era uma bela casa onde ela viveria
daquele momento em diante. Onde seus filhos cresceriam e onde
ela viveria até a morte.
Julia engoliu em seco, suas mãos tremiam e ela conseguiu abrir
um sorriso para Isaac quando ele a ajudou a descer da carruagem.
Era seu marido, aquele homem, aos olhos da lei e de Deus.
Ela nem sabia o que sentir. Podia estar apaixonada por Isaac,
mas aquilo não a fazia esquecer de que sua vida havia virado de
cabeça para baixo. Um noivado normal dura, pelo menos, seis
meses. É tempo o bastante para a noiva se acostumar com a ideia
de uma vida nova, em uma casa nova, longe da família. Julia tivera
duas semanas e meia e, embora tenha quisto se casar rápido para
abafar os mexericos, ela não era conhecida por ser impetuosa. Julia
era acostumada a sua rotina pacata em Londres, agora teria de se
acostumar a viver longe dos pais, irmãos, primos e primas em uma
casa grande e vazia.
O marquês a apresentou para a criadagem à disposição. O
mordomo, Sr. Moseby, Sra. Talor, a governanta. O primeiro lacaio
Stanley e a primeira empregada, a Srta. Ann Smith. E o valete do
marquês, um homem elegante de cabelos castanhos chamado
Walter Miles, um pouco mais velho que o patrão.
O restante não era necessário que fossem apresentados à nova
marquesa.
Não que Julia tenha guardado os nomes, estava nervosa
demais enquanto processava os últimos dias em Chester. Sorriu
para todos e seguiu o marido casa a dentro, agarrada ao braço do
homem.
— Gostaria de se acomodar? — perguntou Isaac enquanto
subiam uma escada curva de mármore e corrimão em ferro negro —
Está quase na hora do jantar, pode descansar um pouco.
Julia fez que sim, desatenta. Olhou pelo mezanino, o vestíbulo
também precisava de flores e um tapete novo. O chão era de
mármore era em preto e branco, com o teto alto. Mas não havia
nada além de algumas pinturas sem graça cujas tintas haviam
escurecido e precisavam de renovação.
Ela também não vira nenhum gato. Deviam estar com medo da
agitação.
Parecia que ninguém habitava aquele lugar, apesar de limpo e
arejado. Faltava algo que o deixasse como um lar.
— Vou pedir que preparem a sala verde — continuou o marido
— É uma sala de refeições menor que a principal e tem vista pros
fundos.
Ela assentiu outra vez, quando deu por si, estava diante de uma
porta branca.
— Sua camareira já deve ter organizado seus pertences.
De fato. Natalie havia deixado Rosestone no início do casório
para que, quando a nova marquesa chegasse, tudo estivesse no
lugar.
— Obrigada — ela disse, finalmente — Esse vestido é muito
espalhafatoso para um jantar simples.
— Está linda — Isaac sorriu e a presenteou com um beijo sobre
o nó de seus dedos — Descanse bastante, minha querida.
Ele entrou na porta ao lado. Provavelmente precisava de um
momento para si. Uns minutos para cair a ficha.
Porque era disso que ela precisava.
Ela entrou no quarto. Devia ser o antigo cômodo da falecida
marquesa, mas estava como novo. Era lindo, decorado em tons de
creme e azul-claro. Cortinas de musselina branca e seda azul
estavam abertas, deixando que os tons alaranjados do pôr do sol
pudessem ser vistos. As paredes eram em painéis creme com
detalhes em brocados dourados, que combinavam com o dossel da
cama e o restante dos móveis. Uma penteadeira pequena, um sofá
e uma poltrona com almofadinhas azuis e um descanso para pés
estavam no quarto de vestir, separado por uma parede com um arco
alto. Haviam flores em um arranjo ao lado da cama, que estava
sendo arrumada por Natalie.
Era tudo novo, as cortinas, o sofá, as almofadas, a cortina do
dossel e a colcha da cama. Em cores que lhe eram muito
agradáveis, de certo modo a lembrou seu quarto em Londres - cujos
pertences que ela não trouxe consigo na viagem estavam a
caminho. Ficou contente e emocionada por Isaac ter mandado
decorar seu quarto de modo que lhe agradasse, mesmo o restante
da casa estando sem graça.
— Srta. Wilson! — a camareira sorriu de orelha a orelha — Oh,
errei. Lady Winsford! A senhora estava linda hoje! Radiante! Estou
tão feliz!
Julia riu e desconversou com um aceno. Também estava feliz.
— Vai ser difícil me acostumar com um novo nome — ela
passou os olhos pelo cômodo. Reconheceu os pertences que
trouxera consigo aqui e ali.
Sua caixa de costura fora colocada ao lado do sofá, que, por
sua vez, fora empurrado até ficar de frente para a janela. Natalie
deve ter dito que a patroa gostava de olhar pela janela.
— Lorde Winsford perguntou a você sobre meu gosto por
cores? — perguntou, curiosa.
— Não, senhora. Por quê?
Julia olhou ao redor outra vez. Seria seu marido sensível o
bastante para observar seu gosto com detalhes? Ela não conhecia
muitos homens tão atentos aos detalhes de uma dama.
— Por nada... Onde está Sir Jonas?
— Estava dormindo aqui, mas deve ter ido passear, minha lady.
Tem tantos gatos nessa casa, espero que não o machuquem —
Natalie foi até o quarto de vestir do outro lado do cômodo — A
senhora quer que eu a ajude?
— Por favor. Estou bonita, mas como um bolo.
Meia hora e um banho depois, Julia estava vestindo uma
camisola fresca e com os cabelos trançados, pronta para um
cochilo. Era tudo o que ela precisava, pelo menos enquanto queria
se esconder um pouco do novo marido.
Ela se deitou na cama e, para seu deleite, Sir Jonas saiu de
debaixo do sofá e pulou em cima dela.
— Está gostando de sua casa nova?
O bichano ronronou, esfregou o focinho no rosto de Julia e se
aconchegou sobre o peito dela sem a menor preocupação de que,
provavelmente, estava esmagando as costelas de Julia.
— Também vou ter que me acostumar...

***

Ele já tinha trinta e um anos, não deveria ficar nervoso por


causa de uma mulher. Uma mulher oito anos mais jovem, ainda por
cima.
Mas ele estava e muito. Julia passou o restante da tarde com o
olhar perdido e lacônica. Ela parecia tão feliz nos últimos três dias.
Isaac tamborilava os dedos na mesa de jantar pequena. Julia
ainda não descera e ele tentava pensar positivo. Uma noiva estaria
nervosa, era natural. Havia muito em jogo. A mudança para uma
casa nova, deixar sua família nuclear para trás e se tornar uma
mulher.
Ele pigarreou. Estava pensando demais nas núpcias e estava
fazendo um esforço muito grande para manter o sangue longe das
porções inferiores de seu corpo. Pensar em núpcias o fazia pensar
em Julia nua, em toda aquela elegância sutil e pálida dela em sua
cama. Ela com certeza ganharia um rubor maravilhoso, que deixaria
sua pele rosada e doce. E ela seria rosada e doce em lugares que
ele teria o prazer de venerar. E, por Deus, não parava de se
perguntar se ela era tão loira em outras porções também.
Enterraria seu rosto naquela nuvem platinada antes de enterrar
outra coisa por ali e-
— Acabei cochilando, desculpe-me.
Isaac se levantou tão rapidamente que a cadeira tombou para
trás e fez com que dois lacaios se materializassem para pegá-la.
— Desculpe! — ele riu nervoso e expulsou os criados com um
aceno leve — Estava distraído.
Julia olhou ao redor. Com isso, o marquês a viu se aproximar da
cabeceira contrária a dele.
Com muita calma, a esposa colocou os vários talheres em cima
do prato, o guardanapo e a taça vazia e a levou até a cadeira ao
lado da cabeceira dele.
— Deixe-me ajudá-la — ele se apressou a colocar tudo onde ela
queria — Assim está bom?
Ela assentiu e agradeceu com um beijo em seu rosto. O carinho
o acalmou um pouco, cada pequeno afeto de Julia o fazia ter mais
certeza de que ela não estava incomodada. Isaac sabia que não
deveria ser tão inseguro assim, principalmente tendo a idade que
tinha. Mas não tinha controle de seus sentimentos. Estava
constrangido tamanho o desejo que sentia.
— Vou avisar ao mordomo que prefere comer ao meu lado —
disse ele, ajudando-a a se sentar — Como está se sentindo? O
quarto é de seu agrado?
Julia fez que sim e agradeceu com um sorriso.
— Gosta de azul? — perguntou Isaac, um misto de curiosidade
e preocupação — Acho que combina com você, por conta de seus
olhos. São lindos.
Ela escondeu o rubor ao abaixar o rosto. O marquês não
precisava ser tão lisonjeiro, mas parecia ser algo natural para ele.
Um homem tão doce.
— Está satisfeita com a casa? — de novo, ele parecia
preocupado — Pode decorá-la como quiser, é a senhora da casa
agora.
Julia agradeceu com um meneio simples.
— É linda. Mas é muito grande... Vai demorar muito para eu ver
como está tudo.
Ele riu, era verdade.
Sentou-se novamente e tocou a mão de Julia que repousava
sobre a mesa.
— Quando quiser, podemos enchê-la de crianças.
Dessa vez Julia ganhou um rubor quando sorriu e Isaac nunca
se sentiu tão aliviado por ver aquele sorriso de novo.
— Quantos filhos você quer ter? — ela perguntou, calando-se
envergonhada quando um dos lacaios retornou com a entrada.
— Desde que não seja um, para mim está bom. Não gostava
muito de ser filho único...
Julia o olhou com certa caridade.
— Por que seus pais só o tiveram de filho? S-Se não se
importar em responder.
Ele desconversou com um aceno de cabeça, olhando para a
sopa em seu prato. Muitos casais tinham apenas um filho quando
esse nascia homem porque simplesmente se detestavam e a
obrigação havia sido comprida. Mas não era essa a razão por ele
ser o único filho do falecido casal Ballard. Seus pais foram um casal
feliz e apaixonado.
— Minha mãe teve uma fissura uterina quando eu nasci, foi isso
que o médico disse, pelo menos. Perdeu muito sangue e ficou
inconsciente por um dia inteiro. Como tiveram logo um menino,
meus pais decidiram não arriscar outra gravidez, mas sei que
lamentavam por não terem tido mais filhos depois.
Julia assentiu, abaixando o rosto para a comida.
— Confesso que tenho um pouco de medo do parto... Os da
minha mãe sempre me assustavam. Os gritos eram horríveis. Tenho
medo do que pode acontecer.
Ele tocou sua mão em cima da mesa.
— Essas coisas não acontecem com frequência, fique tranquila
— Isaac não sabia exatamente se aquilo era verdade, mas não
queria preocupá-la ainda mais — Minha mãe também era muito
mais jovem que você quando eu nasci, talvez o corpo dela ainda
não fosse forte o bastante.
Mary tinha dezenove quando deu à luz a David. A mais velha
das filhas Mildenhall casara com sucesso em sua primeira
temporada. Dois anos depois, Amélia se casou aos dezoito com um
marido da mesma idade e só conseguiu engravidar aos vinte. Um
milênio depois, Lucille contraiu núpcias com o Duque Louco. Joanna
nunca se casaria, disso todos sabiam. Não enquanto mulheres só
pudessem se casar com homens.
— Quantos anos ela tinha quando você nasceu? — perguntou,
curiosa, já que achava sua mãe um exemplo de noiva jovem e
perfeitamente fértil - como mandava o protocolo.
— Estava a ponto de fazer dezoito anos. Nós quase fizemos
aniversário juntos — ele riu e ficou contente por ver a esposa sorrir
— Tenho quase certeza que ela e meu pai foram um tanto
apressados antes do casamento, eu não acredito nem um pouco na
história de que sou prematuro. A babá dizia que eu nasci grande
demais para um bebê de sete meses.
O rubor surpreso no rosto dela o fez rir outra vez.
— Acha mesmo que isso aconteceu?
— Eu acho — ele tomou um gole de vinho assim que soltou a
mão da esposa — Eram um casal bonito, meu pai costumava dizer
que se apaixonou pela minha mãe assim que a viu se apresentar na
corte. E os dois se casaram dois meses depois. Sabe o que dizem
de casamentos apressados.
— Sei muito bem — ela murmurou, por trás de seu copo — Nos
casamos em uma semana. Seu pai estaria orgulhoso, você quebrou
o recorde dele e tudo o que precisou fazer foi ver meu espartilho.
Isaac gargalhou. Tinha certeza de que seu pai adoraria Julia. E
sua mãe também, embora a mulher tivesse certeza de que o filho se
casaria com uma das filhas de Gladys. Uma pena que a mãe não o
tenha visto crescer e virar um homem.
Ele sentia saudades da mãe, assim como sentia do pai. Mas
não era o tipo que ficava triste ao falar dos dois. Para Isaac,
conversar sobre os pais os mantinha vivos em seu coração e estava
grato pela conversa que tivera com Julia.
— Como ela se foi...? — perguntou Julia, com grande cautela
na voz.
Isaac demorou no vinho, devolvendo a taça à mesa.
— Tuberculose.
A esposa fez um sonzinho de lamento, voltando a segurar em
sua mão por cima da mesa. Ele apreciou aquele contato, seu olhar
pairando sobre aquela mão feminina junto a sua. Uma visão que ele
nunca tinha experimentando.
— Você conseguiu se despedir dela? O marido da minha tia-avó
materna também teve e ninguém podia chegar perto dele.
— Consegui, sim — ele abriu um sorriso triste diante da
lembrança do último beijo que recebeu da mãe — Não sem meu pai
quase me esfolar depois, com medo que eu pegasse a doença. Mas
eu consegui, ainda dei um beijo nela que, provavelmente, faria o
médico me esfolar também.
Julia riu da travessura em sua voz e, para deleite de Isaac, ela o
tocou em seu rosto com grande ternura. Aqueles carinhos intimistas
que apenas uma esposa lhe daria era como um balsamo para
qualquer coisa sentimento negativo que ele tivesse. Naquele
momento, Isaac não experimentava nada de ruim, mas o toque dela
o aliviou da mesma forma.
— Sei que ela está muito feliz ao lado de Deus, vendo como se
tornou um homem tão honrado.
Ele assentiu, pensativo. E se surpreendeu quando Julia tocou o
cantinho de seu olho com o polegar, secando uma lágrima que ele
nem sentiu que estava ali.
Isaac se remexeu, um tanto envergonhado de chorar na frente
de uma mulher. Agradecido pelo gesto, ele segurou a mão da
esposa e a beijou sobre os dedos.
— Acho que devo lhe contar algo... — ela se lembrou, de
repente — Sobre as mulheres de minha família.
Ele a olhou, atento, mas se manteve ocupado em beijar a palma
da mão de Julia e seus dedos. Gostava muito das mãos dela, tão
delicadas e finas.
— Diga, minha querida.
— Bom... As mulheres Mildenhall parecem ter dificuldade para
conceber, eu acho — ela confessou, um tanto dúbia — Não sei se é
algo que passa de mãe para filha.
Isaac assentiu, incerto sobre o que aquilo poderia significar.
— Minha tia Amélia, a mãe de Lucas, tem muitas dificuldades.
Minha avó também. Minha mãe e minha tia Amélia tem pouca
diferença de idade, mas minha tia Lucy veio dez anos depois. E
minha tia Joanna, onze anos depois que minha tia Lucy nasceu.
Ele anuiu outra vez. Realmente, eram diferenças consideráveis
de idade.
— E sua mãe? Você tem muitos irmãos.
— Sim... Mas David é oito anos mais velho. Não sei se é uma
dificuldade constante, como a de minha tia, ou simplesmente
acontece por alguns anos.
Ele também não sabia, não entendia muito sobre o universo
feminino. Mas sabia que um casal podia prevenir gravidezes de
várias formas e muitos faziam isso.
— Eu quero ter filhos com você — Julia disse, voltando a olhar
para ele com um rubor adorável em suas faces — Só lembre disso,
caso você fique chateado se eu demorar a engravidar.
— Jamais ficaria chateado, Julia — garantiu ele, tocando sua
mão sobre a mesa antes de tomá-la para um beijo — Está aqui para
ser adorada por mim todos os dias. Qual o propósito do casamento
se não ter uma mulher a quem cuidar e venerar? Era isso que meu
pai dizia. Os filhos vem durante a veneração.
Ela riu, encabulada, e agradeceu com um sorriso singelo. Isaac
podia ter um conhecimento precário do mundo das mulheres, mas
sabia que gravidez era algo muito delicado e, independente de
quando acontecesse, iria cuidar muito de sua esposa.
— No entanto — ela voltou a falar — Eu sei que demorei muito
a vir porque meu pai estava sempre servindo no continente e, de
acordo com minha mãe, ele não queria que ela cuidasse dos filhos
sozinha, mesmo com a babá. Depois que eu nasci, as crianças
vieram como água!
Julia riu do próprio comentário e Isaac acabou sorrindo com
aquilo.
Com um gesto sutil, o marquês ordenou que os lacaios
deixassem a sala. Quando estavam a sós, ele comentou certo de
que aquela era uma informação que ela deveria saber:
— Às vezes um casal simplesmente decide ficar um tempo sem
ter filhos, principalmente quando já tiveram meninos. Pelo menos
alguns amigos meus comentam que as esposas não gostam de
emendar uma gravidez na outra. Que ficam muito debilitadas.
Ela o olhou confusa. Parecia que ela não sabia muito dos
assuntos matrimoniais, como ele suspeitava que uma donzela não
saberia.
— O que quer dizer? Quero dizer, meu pai estava sempre tendo
que ir para outro país, claro que ele e minha mãe... Você sabe,
tinham poucas oportunidades. Um casal pode escolher não ter filhos
e continuar tendo relações?
Isaac assentiu.
— Há sempre o risco, suponho. No calor do momento, acredito
eu, deve ser difícil querer se separar da pessoa com quem mais
quer ficar junto.
— Ainda não estou entendendo, Isaac.
Seria melhor deixar aquela conversa para mais tarde?
— Quando eu fui visitá-la pela última vez na casa de Lady
Hanes e eu a toquei — começou ele, vendo a assentir
fervorosamente — Já havia feito aquilo antes? Em si mesma.
Julia assentiu com uma sutileza quase imperceptível.
— Suponho que tenha gostado no final — sugeriu Isaac,
cauteloso para não constrangê-la muito.
— Sim... O q-que isso tem a ver com bebês?
— Um homem também sente essa sensação agradável no final
e.... Sabe de onde os bebês vêm?
A esposa aquiesceu outra vez. Mesmo com a luz das velas
dando um tom alaranjado a tudo, ele notou o rubor intenso.
— Das sementes do homem... Que... Acredito eu... P-Pela
lógica, venham do...
Ele deu um riso baixo e assentiu.
— Não precisa responder. É do alívio do homem que vêm as
sementes. Se as sementes nunca entrarem na mulher, não haverá
bebês. Se o homem sair da esposa no momento certo, pode evitar a
gravidez.
A esposa pareceu intrigada.
— Funciona sempre?
— Não sei ao certo, minha querida. Mas acredito que seja
eficiente o bastante para que continue sendo praticado desde o
início dos tempos.
— Ah... — Julia assentiu lentamente, mas Isaac não teve
certeza de que ela entendera.
Mas entenderia, mais tarde.
Ele sorriu ao pensar no momento que, em breve,
compartilhariam.
— Que mais se pode fazer para evitar uma gravidez? —
perguntou ela, mais curiosa ainda — Nunca ouvi falar de nada
disso! Não sabia que era possível, quando vejo irmãos com anos de
diferença eu imagino que as mães tenham tido problemas ou
simplesmente não haja encontros entre marido e mulher.
Isaac tentou se lembrar do que lhe contaram e do que ele vira.
A inocência e ignorância de algumas mulheres o chocava, seria bom
elucidar algumas coisas logo de início.
— Há alguns tônicos que uma mulher pode injetar dentro de si
depois do ato, dizem que matam as sementes. Tenho certeza que a
criada de uma mulher casada consegue comprar esses produtos de
higiene feminina em algum lugar que eu não sei.
Os olhos de Julia aumentaram e ela assentiu.
— Deve ser bem desagradável... Injetar coisas.
Ele riu, mas concordou. Devia mesmo.
— Não mais do que um tipo de esponja que pode ser colocada
também. Algumas mulheres molham a esponja no tônico ou as
usam sem nada.
— Esponja? — Julia parecia horrorizada, ultrajada e ainda mais
curiosa — Céus!
— Já ouvi dizer de meretrizes que elas colocam bolas de
algodão com suco de limão logo após o ato.
O rosto da esposa ficou mais branco que o normal.
— Que coisa horrível! Isso não deve fazer bem para o corpo
delas...
Isaac gargalhou. O ser humano conseguia ser muito engenhoso
quando queria algo. Ou quando não queria algo.
— Acredito que sirva para absorver as sementes e bloquear o
caminho. As esponjas, no caso.
Julia ficou pensativa. Depois ela arrumou seus talheres e
confessou, bastante encabulada:
— Interessante. Perturbador, mas interessante. Não sei se faria
qualquer uma dessas maluquices.
Isaac anuiu solenemente, conseguindo não rir outra vez.
Julia suspirou e tomou um gole muito generoso do vinho que lhe
fora servido.
Ele olhou para a taça quase vazia em cima da mesa.
— Está tudo bem, minha querida?
Ela o olhou, as sobrancelhas erguidas e os lábios avermelhados
pelo vinho.
De repente, ela havia ficado tão linda. Os lábios avermelhados e
molhados era o convite para um beijo. Em breve eles teriam a
primeira noite juntos, ele não queria protelar aquilo. Nem fazer Julia
pensar que ele não a queria, caso empurrasse a noite de núpcias
para o outro dia.
— Estou bem — ela desconversou com um sorriso simples —
Estou só com sede.
E ele estava faminto já fazia alguns dias. Mas sua fome não era
de comida e aquilo o envergonhava.
Isaac se recostou contra a cadeira e tomou de seu vinho em
goles pequenos. Sentia uma comichão no estômago diante da
promessa de se unir a Julia mais tarde.
Se ela quisesse, é claro. Ele acreditava que queria, ela sempre
era receptiva aos beijos e carícias. Tinha de ser perfeito. Mais para
ela do que para ele, porque ele sabia que iria gostar. O prazer do
homem, ao seu ver, era mais simples. O da mulher era mais
complexo e ele faria o possível para que ela gostasse de tudo.
E com isso ele se perdeu nos pensamentos mais inapropriados
para um jantar. Pensou naqueles lábios avermelhados nos seus, em
suas mãos firmes apertando as partes macias dela, de poder ouvir
os gemidos de uma mulher apaixonada.
Em breve. Só teria de esperar o jantar acabar e poderiam se
recolher para caírem nas graças da vida matrimonial. A noite inteira,
sim. Porque ele iria venerar cada pedacinho virginal de Julia. Como
ela seria em seus locais mais íntimos e femininos? Imaginava que
de uma delicadeza deliciosa. Ele queria sentir o sabor.
— Isaac? Isaac.
Eles piscou, ainda desacostumado a ser chamado pelo nome.
Meu Deus, estava imaginando coisas terríveis na frente da esposa.
E estava tão rijo que era melhor não se mover até o jantar acabar.
— Você ficou tão vermelho — Julia comentou, tocando-lhe a
testa — Fiquei preocupada.
Ah, como ela era doce. Agora ele queria ficar doente só para tê-
la cuidando dele. Quantos cenários ele podia imaginar em que era
agraciado pela atenção de Julia.
— Estava pensando... — ele pigarreou e pensou numa desculpa
plausível — No nome dos nossos filhos.
Ela tombou a cabeça para o lado e riu. O rosto se iluminou todo.
— E qual nome escolheu? Estava pensando com tanto gosto.
— Hm... — ele esquecera todos os nomes que conhecia —
Caroline?
— É bonito — Julia comentou, pensativa, enquanto deixava que
o lacaio começasse a servir o prato principal — Marceline, gosto
muito desse.
— Então será esse o nome.
— Mas e se for menino?
— Marcelino...?
Ela riu outra vez, alegre. Parecia que a esposa havia voltado ao
humor que ele presenciara nos últimos dias de noivado.
Estavam até falando sobre os futuros filhos. Agora só faltava
concebê-los.

***

Julia estava de volta ao quarto da marquesa, com os cabelos


em uma longa trança e vestindo uma camisola muito sem graça.
Não tivera tempo de montar um enxoval e tudo o que tinha eram
suas roupas de dormir muito pudicas que só mostravam as mãos e
a cabeça.
Estava enfiada debaixo dos lençóis, sentindo-se esquecida. Sir
Jonas dormindo ao lado dela em uma bolinha de pelos negros. A luz
do quarto do marido escapava pela fresta debaixo da porta e ela
ouvia Isaac do outro lado, zanzando de um lado para o outro.
Sabia que o homem estava sendo educado e lhe dando
privacidade, mas estava faltando coragem em Julia para
simplesmente exigir seus direitos matrimoniais.
Repentinamente a porta que unia os quartos se abriu, revelando
a silhueta do marido contra a luz dos candelabros.
Ela rapidamente se cobriu até o nariz e tentou não olhar para
Isaac apenas com seus trajes de dormir. Uma calça de algodão e
um robe pesado, seu peito nu estava à vista.
Julia soluçou. Queria enfiar as mãos ali onde a pele estava
exposta.
— Está chorando...? O que é? — ele deu um passo para perto
da cama, ansioso.
Julia fungou, nem percebeu que havia chorado.
Deveria falar com ele.
Era seu marido.
— E-Eu... — ela fechou os olhos com força e falou tudo em um
só fôlego — Eu não quero dormir em quartos separados, quero
dormir com você.
O rosto de Isaac ganhou um tom enrubescido, mas Julia podia
ter se confundido por conta do tom alaranjado das velas.
— Vim mesmo lhe chamar para ficar comigo, não a quero
dormindo sozinha.
Em um momento de coragem, Julia arrancou o lençol e revelou
sua camisola quando deixou a cama. O marquês ficou mais corado,
desviando o olhar da figura dela ao abrir a porta para seu quarto e
permitir que a esposa passasse.
O quarto dele era uma bagunça aconchegante. Havia diversos
travesseiros na cama um tanto maior que a dela. Uma poltrona perto
da lareira apagada, onde uma gata tricolor dormia enrolada. Havia
também uma escrivaninha com vários papéis e livros espalhados,
cartas abertas e bolas de papel pelo chão.
Isaac foi na direção das janelas e abriu as cortinas e o vidro um
tanto nervoso.
— Está com frio agora? — ele perguntou — Preciso arejar esse
quarto, desculpe-me.
— E-Estou bem — ela respondeu baixinho, sentando-se na
cama e se arrastando até estar com todo o corpo sobre o colchão.
Dormiria ali e nada a faria deixar aquela cama, nenhuma
amante, nem outra mulher.
Isaac olhou para seus pés e ela rapidamente cobriu com um
lençol que cheirava maravilhosamente como o marido.
— Julia, há algo que preciso lhe contar — ele pigarreou e se
sentou na cama, pegando uma das mãos de Julia e a colocando
entre as suas — Não chore, minha querida. Venha aqui.
Ela fungou, deixando que o marido secasse seu rosto com um
toque gentil e um beijo em sua testa.
— O que quer me falar? — ela perguntou.
— Sobre a consumação. Presumo que alguém tenha lhe
explicado o que acontece. O resto que eu não expliquei no jantar.
— Eu sei que... Você... Sei o básico — ela sussurrou, como se a
gata na poltrona pudesse ouvir tudo — Eu pensei que você me
explicaria o resto. Minha mãe ficou com vergonha e Petúnia só
falava do marido... E como teremos de fazer um com o outro, não
acho que perguntar a você possa ser mais constrangedor ainda.
— Eu posso explicar o que acontece, é claro.
Ela se empertigou, atenta. Embora não quisesse explicação,
mas prática. Queria beijá-lo naquela cama com a paixão que
Petúnia disse existir.
— Mas antes, minha querida — Isaac disse com mais firmeza,
mas logo voltou a doçura de sempre — Há algo que precisa saber.
Julia parou de respirar. Seu coração perdeu as batidas e ela
puxou a mão para longe do marido em um gesto sutil.
Era verdade. Ele era um namorador e iria lhe contar a verdade
sobre aquele casamento.
— E-Eu não vou permitir que tenha uma amante — ela disse
firme, mas com a voz começando a embargar — Nenhuma mulher
além de mim dormirá aqui. E nem o beijará. Se tiver alguma mulher
que mantêm, diga-me logo.
As sobrancelhas de Isaac se ergueram e, para terror de Julia,
ele riu.
— Julia, não é nada disso.
Ela fungou, mas ainda sem molhar os olhos. Seus olhos
pesaram e as lágrimas escapuliram, agora que desistira de mantê-
las presas.
— O que é...?
— A verdade é que você será a minha única mulher porque eu
nunca tive nenhuma antes.
Julia piscou, aturdida. Num movimento rápido, ela secou as
faces.
— O que quis dizer?
— Que sou virgem.
Ela emudeceu.
Isaac Ballard, seu marido, um marquês bonito e galante, era
virgem.
Não. Aquilo não era normal. Como um homem era virgem? Os
homens sempre fazem aquilo! Principalmente um homem de trinta e
um anos.
— Mas...
O marquês abaixou o rosto, constrangido, e se levantou.
— Eu sei que... Um homem na minha idade já deveria ter
experimentado todos os prazeres, mas... Eu não sinto vontades com
mulheres por quem eu não estou apaixonado. E eu jamais poderia
me deitar com uma mulher sem desposá-la, isso arruinaria toda a
vida dela. Então sempre foi um fato que me deitaria apenas com a
minha esposa. O problema é que demorei um pouco para me casar.
Julia piscou novamente. Ainda estava parada na parte em que
ele disse que era virgem.
— Mas... M-Mas... — ela enrubesceu e falou muito baixinho —
Nem as damas da noite?
Isaac conteve o riso e ela corou ainda mais. Por que ele estava
rindo tanto? Aquilo era sério, afinal, dois virgens juntos teria de dar
em muita confusão.
— Tentei, mas não consegui. Eu realmente necessito de estar
apaixonado.
— Então... V-Você... Está apaixonado por mim?
— Você ainda tem dúvidas disso, Julia? — o tom de voz dele
era sério quando ele parou ao lado dela e tocou seu rosto — E eu a
desejo muito. Eu poderia passar horas olhando para você, sentindo-
me um tolo sortudo por tê-la como minha esposa. Perdidamente
apaixonado por cada detalhe seu.
Julia ficou paralisada. Aquilo era um sonho, só podia ser.
Ele estava apaixonado por ela - perdidamente, a propósito. E
ele a desejava. Por isso que David disse que ela se sentiria
especial? Ele devia saber sobre o melhor amigo. O que significava
que ela seria a única mulher dele. Era, realmente, algo especial.
Mas Julia continuava com uma dúvida.
— Se você nunca fez e eu também não... Como vamos saber o
que fazer na hora?
Isaac riu novamente, parecendo mais relaxado e voltando a
olhar para a esposa.
— Já tive certos interlúdios com uma mulher, mas nada que
tenha levado ao ato em si. Apenas o suficiente para saber tocá-la.
Saberei lhe dar todo o prazer que precisar.
Julia se sentiu mais aliviada que enciumada. E bastante corada
com a promessa de receber prazer do marquês.
Pensou na última visita de Isaac antes do casamento, dos dois
no sofá e de como ele a tocara habilmente.
Ele sabia o que fazer e ela sabia pedir o que queria.
— Eu a tratarei bem, prometo que você irá gostar, Julia. Farei
tudo o que quiser para que você goste.
Ela assentiu, levantando-se e indo até o marido. Sentindo-se a
vontade ao saber de sua pureza - talvez não tão pura quanto a dela
- Julia o abraçou e adorou o contato de seu corpo ao dele enquanto
vestia apenas uma camada de tecido.
— Eu o quero, Isaac. De verdade. Desde a primeira vez em que
eu o beijei.
Não era a declaração que ela queria, mas ainda não sabia como
contar ao marquês sobre a real história de seus sentimentos.
Isaac pareceu um tanto cuidadoso demais ao envolvê-la pela
cintura, mas Julia não estava nem um pouco necessitada de
cuidados intensos. Se todo o resto era tão maravilhoso quanto os
beijos e os toques que compartilhavam, ela estava ansiosa para
descobrir tudo com o marido.
Sem delongas, ela o beijou primeiro, do modo que ele sempre a
beijava. Com ardor, mas também a gentileza típica dele. Cada parte
de seu corpo refletia o beijo, em um calor ansioso que se
concentrava onde ela jamais diria em voz alta. Dos pés a cabeça,
um arrepio a cada vez que as línguas se tocavam secretamente.
Apressada, ela tirou o robe que ele vestia e o abraçou outra vez
quando ele ficara com o peito nu.
Ele era um homem esbelto, forte e quente. E ela queria senti-lo,
tocando suas costas com as mãos nuas, percorrendo a pele com as
unhas curtas e adorando quando o sentiu arrepiar com o toque.
Isaac se afastou de seus lábios por um momento, apenas para
devolvê-la à cama e retornar a beijá-la. Julia, se pudesse, teria
afundado nos travesseiros assim que o marido começou a beijá-la
pelo pescoço e foi até um de seus ombros parcialmente nus,
puxando a camisola para baixo.
— Venho querendo beijar seu corpo há dias — sussurrou ele, as
mãos subindo firme pela cintura dela, que corou com a declaração
— Fico imaginando como você é nua, em cada lugar inteiramente
feminino. Nunca estive tão curioso em toda a minha vida.
Julia mordeu o lábio, contendo seu sorriso de vaidade por ser o
objeto de desejo dele. Ela também o queria assim fazia dias, a cada
beijo que davam, ela queria mais. E Deus era testemunha que não
conseguia parar de desejar que ele a tocasse.
— Fiquei imaginando como era aqui... — a mão dele tocou o
seio dela, apertando-o com leveza o suficiente para fazê-la se
contorcer em deleite — Beijá-la aqui.
Passou a beijá-la por cima da camisola, tocando seu seio
esquerdo mesmo que ainda coberto pelo pano, mas não tardou em
puxar o tecido para baixo até revelar aquela porção tão macia dela.
Com uma de suas mãos, ele admirou o seio macio dela em uma
massagem que a fez sentir coisas em porções muito mais íntimas e
secretas.
Então Julia sentiu outro beijo de seu marido em seu mamilo, ela
riu, sentindo cócegas, e o marquês a olhou com atenção, como
quem pergunta se fez algo de errado. Julia o relaxou tocando seu
rosto preocupado e o convidado para um novo contato. Queria os
beijos dele por toda parte, derretendo-se enquanto ele a beijava
pelos seios e era acariciada pelas mãos de Isaac. Mãos quentes e
firmes, subindo por suas pernas por debaixo da camisola,
acariciando seu quadril. O tecido estava embolado em sua cintura,
mas seu sexo ainda estava coberto.
Julia o empurrou gentilmente, ficando por cima dele e com cada
uma das pernas nas laterais de sua cintura. Não havia nada por
debaixo de sua camisola e ela podia sentir o que Petúnia havia lhe
desenhado. Um volume firme que a pressionava em suas porções
mais delicadas, como se tivesse feito sob medida para se encaixar
ali.
Se ele não estivesse com o próprio pijama, Julia sentiria a pele
contra a pele. Estava tão curiosa, sentia a si mesma pulsar
dolorosamente. O algodão que os separava era fino o bastante para
sentir todo o calor e firmeza dele acomodados em sua intimidade.
As mãos do marquês lhe acariciaram as coxas até onde a
camisola havia sido levantada e passou para debaixo do fino pano,
tocando sua cintura nua enquanto a despia lentamente.
Compartilharam um olhar sutil, um pedido de permissão que ela
garantiu.
Julia nunca se sentiu tão energizada na vida. A promessa de se
unir a Isaac era quase que utópica, nunca em sua mente havia se
passado a ideia de que um dia poderia tê-lo assim. E se ele queria
despi-la tão logo, ela não se importava. Seu corpo era belo e disso
ela se orgulhava no meio de tantas coisas que Julia desmerecia em
si mesma.
Ergueu os braços, permitindo que ele a livrasse de sua roupa.
Isaac a admirou de baixo e Julia, um tanto trêmula, segurou as
mãos do marido e as colocou em sua cintura. Estar por cima lhe
dava a sensação de comando e toda a atenção dele estava nela,
que não se sentia nem um pouco invisível.
Estava nua na frente de um homem. Alguém que não era
Natalie ou suas irmãs. Havia coisa mais eletrizante e deliciosa? E
quando ela levou as mãos dele de sua cintura até seus seios, ela se
sentiu ainda mais importante. Fechou os olhos em deleite ao que ele
os apertou delicadamente e voltou a deslizar as mãos por seus
contornos, acariciando seu traseiro em um leve aperto.
— Você é linda — ele sussurrou, puxando Julia para baixo e a
beijando intensamente.
Ela sorriu em meio ao beijo, mas logo se afastou e voltou a
olhá-lo de cima. Soltou a trança de seu cabelo, deixando que o liso
claro se espalhasse por suas costas e ombros. Se ele os achava tão
belos, ela o deixaria admirá-los soltos em uma cascata platinada.
O olhar ávido de Isaac em seus cabelos soltos a encheu de
vaidade, fazendo com que ela os jogasse para frente e deixasse que
ele passasse os fios por entre os dedos.
— T-Tire suas roupas também — ela tentou ordenar, mas soou
acanhada demais.
O marido se pôs contra a cabeceira, mas Julia não se afastou
dele nem assim, continuando sentada sobre suas pernas quando
ele se desfez da calça de algodão.
Julia se afastou apenas para ver o que ela estava sentindo já
fazia um tempo. Aquela porção dele era deliciosamente atraente,
com a cabeça rosada e os pelos loiros que subiam até seu umbigo,
onde ela o tocou com a ponta dos dedos demonstrando timidez pela
primeira vez. Acariciou seu abdômen, mas nada além de leves
carícias com a ponta dos dedos. Não sabia como tocar o que havia
mais embaixo, mesmo reconhecendo onde Petunia lhe dissera para
beijar. E, bem, não o faria. Imaginar tal situação a constrangia
imensamente, quem dirá fazê-lo.
— É sempre assim...? — Julia perguntou, sussurrando, a māo
curiosa acabando por envolvê-lo com bastante cuidado — Você é
tão lindo.
Isaac suspirou pesadamente. O som masculino deixou Julia
ainda mais quente.
— Apenas em momentos de desejo.
Ela umedeceu os lábios involuntariamente, encabulando-se
quando Isaac sorriu em deleite ao que a mão dela deslizou pela
extensão firme. Antes dela conseguir repetir a carícia, ele a deitou
contra o colchão, ficando por entre as pernas dela.
— Há algo que preciso fazer antes.
Ela respirou fundo, ansiosa. Quando sentiu a cabeça lisa de
Isaac tocar seu sexo, Julia se contraiu em uma deliciosa sensação
de expectativa.
— O que? — ela decidiu perguntar, mas as indizíveis carícias
que o marido lhe proporcionava com o próprio membro a estava
deixando ofegante de prazer.
Ele a abria lentamente, deslizava por suas partes mais
delicadas e encontrava o cerne de seu desejo, mas ainda não
parecia que iria possuí-la em meio aqueles movimentos tão
avassaladores. Seu corpo pesava sobre o dela enquanto movia seu
quadril lentamente, deixando-a mais ofegante com o próprio prazer.
Não precisava de nenhuma explicação, quando sentia a ponta
quente passar por entre os delicados lábios, ela sabia o que
aconteceria depois. E estava mais que ansiosa para sentí-lo dentro
dela.
— F-Faça mais disso, Isaac... — Julia fechou os olhos e colocou
suas pernas ao redor da cintura do marido, puxando-o para perto de
modo que o sentisse deslizar ainda mais — Coloque em mim.
— Eu devo beijar a minha mulher em cada parte de seu corpo
antes, por mais que seu ousado pedido seja bem vindo — o
marquês a beijou no queixo, para apenas depois tomar seus lábios
profundamente — Você é delicada com as pétalas de uma flor, eu
preciso beijá-la. Eu não quero machucá-la.
Sim. Os beijos. Oh, sim.
Julia estava se sentindo uma depravada enquanto adorava toda
aquela nudez e abraços íntimos. Queria ter seu corpo junto ao dele
toda as noites e mal havia começado. No entanto, aqueles outros
beijos haviam atormentado seu sono desde que Petúnia lhe
informara sobre a existência de tal carinho. A curiosidade era
grande, a ousadia de apenas imaginar os lábios do marquês em sua
intimidade já a fazia arder por dentro.
— B-Beije-me onde quer.
Isaac sorriu em deleite, dando um último beijo nos lábios de
Julia antes de descer por seu pescoço pálido, saboreando sua pele
virginal e lhe deixando marcas de amor até chegar em seus seios.
Redondos e cheios o bastante para caberem em suas mãos. Beijou-
lhe um dos mamilos rosados, sentindo os tremores do corpo dela
abaixo do seu e sua mão delicada deslizando em suas costas até se
perder em seus cabelos.
Ela gemia tão baixo que era como um segredo dos dois, cada
suspiro baixinho enquanto ele a beijava por um caminho secreto até
seu sexo. Isaac passou direto, para sua tristeza, beijando a carne
macia das coxas dela enquanto afastava suas pernas.
Ele era bom, bom demais para um homem que dizia não ter
tanta experiência. A forma como ele a tocava era como se
conhecesse os caminhos do corpo feminino. A pressão que fazia ao
mordiscar sua coxa era perfeita, para depois amenizar com beijo
carinhoso, seguindo até a virilha dela onde também demarcou o
lugar com um beijo suave. Partiu depois para a outra perna, beijos
delicados e chupões apaixonados, deixando marcas pela pele
branca como neve. Mostrando um caminho lascivo até seus pelos
claros. Tão claros que mal escondiam sua parte mais delicada dos
olhos dele.
Julia suspirou trêmula, ele estava tão perto e ela tão incendiada
de expectativa.
O marido a abriu com os dedos e, quando a tocou com os lábios
exatamente onde ela concentrava seu desejo, Julia resfolegou
surpresa, batendo o joelho na lateral da cabeça de Isaac, acabou se
afastando para cair na risada.
— D-Desculpe-me! — ela ficou horrorizada e cobriu os rosto
com um lençol quando percebeu que ria também.
Isaac puxou o lençol para baixo e deu um beijo abaixo do
umbigo de Julia, voltando para onde estava. Daquela vez ela não
ficou surpresa e deixou que o marido a tocasse com os dedos e a
beijasse onde ela parecia se concentrar por inteira.
Um suspiro baixo e relaxado escapou de seu corpo assim que
ela sentiu a língua dele a tocar, repetições deliciosas, mas um tanto
demoradas, como quem entende a mecânica da coisa tanto quanto
ela. Mas, por mais inexperiente que ele fosse, assim como ela,
Isaac não carecia de paixão e desejo de satisfazê-la.
Era quase como uma habilidade ináta, beijá-la em seu sexo era
tão natural quanto beijá-la em sua boca. Pelo menos era isso que
Julia pensava enquanto a língua do marido a tocava em um ponto
onde todas aquelas sensações deliciosas se concentravam. Seu
corpo se movia com o prazer, suas pernas se fechavam, se abriam.
Suas mãos tocavam os lençóis, sumia pelos cabelos do marido ou
tocavam o rosto dele com a ponta dos dedos. Ela ainda queria lhe
dar carinho enquanto ele estava lhe dando prazer.
Talvez fossem os lábios e a língua dele, mas Julia podia sentir
que estava mais e mais molhada, tão ardente por ele que o queria
naquele momento. Dentro dela, ao mesmo tempo que fora,
beijando-a daquela forma tão secreta e íntima.
Ela já havia se tocado ali, era curiosa, embora jamais tenha tido
a ousadia de olhar. Sabia como gostava. Mas a vergonha de pedir
era maior que o desejo, sua voz saiu tão baixa que talvez o marido
não tenha a ouvido:
— Isaac... — ela suplicou, tocando o rosto dele e o fazendo
olhar para ela — U-Use seus dedos, por favor?
Julia sentiu um sorriso assanhado nascer nos lábios do marido,
o que a fez corar com o pedido quase que imediatamente. Sentiu
vontade de esconder o rosto com as mãos, mas Isaac a distraiu
quando se ajeitou ao lado dela, puxando-a para perto de seu corpo
pela cintura. Sua mão a acariciou na barriga, seus olhos castanhos
estavam fixos nos dela, cálidos e intenso. Ele a beijou em seus
lábios, Julia o envolveu com um de seus braços e deixando um
gemido tímido escapar por entre o beijo assim que a mão dele
deslizou por entre o sexo dela. Delicadamente ele a massageou
onde ela sentia mais prazer, fazendo-a suspirar contra os lábios
dele, deitando-se contra os travesseiros mais uma vez. Julia sentiu
um dos dedos do marido deslizar para dentro com facilidade,
tomando-a com uma sensação deliciosa por dentro.
Isaac pressionou a palma de sua mão contra o sexo dela, seu
dedo movendo-se por dentro enquanto a pressão que ele fazia por
fora a deixava ofegante. Ele já a havia deixado sensível demais para
que ela suportasse muito tempo ali, em seus braços. Seus suspiros
e arfadas se tornaram gemidos urgentes, a mão dele se moveu com
mais rapidez e pressão enquanto observava Julia se desfazer em
seu alívio feminino. Trêmula, corada, os cabelos bagunçados a
deixando ainda mais bela.
Ele a presenteou com um suave beijo em sua testa, que passou
para a maçã de seu rosto e foi até seus lábios. Enquanto perdiam-
se um no outro em meio a um beijo ardente, Isaac se encaixou por
entre as pernas dela mais uma vez. Estava rijo o suficiente para que
Julia o sentisse a tocar de novo, daquela vez ela não aguentaria
esperar mais. Sabia como funciona o prazer feminino, sabia que,
embora tenha se aliviado naquele momento, ela poderia sentir
aquilo tudo novamente em uma sequência de meses. E queria sentir
várias vezes com o marido dentro dela.
Julia sentiu o membro dele deslizar por sua carne delicada e
molhada, fazendo uma leve pressão contra sua entrada. O calor
entre suas pernas era maior, a leve pressão que ele fazia quando os
corpos ficavam mais e mais próximos até que ela sentiu uma
pontada forte e...

***
Ela exclamou surpresa, apertando os braços de Isaac a ponto
de marcá-lo com as unhas curtas.
— Tudo bem? — ele perguntou imediatamente.
Julia fez que não, e para seu terror, seus olhos ficaram
levemente marejados até ela piscar e duas lágrimas escorrerem
pelas têmporas.
Céus, ela estava chorando. Devia ser horrível para ela. O que
ele tinha de fazer para amenizar aquilo?
Ele se abaixou para beijá-la no rosto, mas aquilo o fez se mover
dentro dela um pouco mais fundo e ela gemeu em desconforto,
contorcendo-se.
Decidiu ficar parado.
Julia se contorceu mais um pouco, agora movendo o quadril de
forma circular e mantendo os olhos fechados. Um suspiro baixo e
trêmulo saiu de seus lábios e ela colocou as pernas ao redor da
cintura dele.
— Eu a machuquei? — ele perguntou, as mãos de Julia
deslizando por seus braços e indo até suas mãos.
— Já passou... — ela moveu o quadril novamente, procurando
uma posição agradável. Somente aquilo já o deixava louco, senti-la
por dentro, movendo-se contra ele — Agora... É tão bom.
Sim, era maravilhoso senti-la quente ao redor dele. E vê-lo
afundando dentro dela era ainda melhor. O encaixe perfeito.
— Vai ficar melhor, eu prometo.
— Acredito em você, meu bem.
Julia era maravilhosa. Não havia nada em seu corpo que não o
deixasse fervendo de desejo. Suas curvas femininas, a cintura fina e
os seios macios. Isaac tocou em cada parte dela, deslizando as
mãos por seus quadris e subindo até os seios, os massageando
lentamente, observando com imenso deleite as expressões de
satisfação que a esposa fazia. Quando retornou as mãos para a
cintura dela, tomou a iniciativa e quase se retirou por completo dela,
apenas para estocá-la uma vez e ouvi-la gemer em um tímido
prazer.
Sua esposa demonstrou uma ousadia que ele jamais esperou.
Julia parecia tão tímida, mas era a própria paixão. Despindo-se para
ele, pedindo para ser possuída, puxando-o para perto dela. Aquilo o
incendiava de desejo, refletindo em seus movimentos que ficaram
mais firmes e em um ritmo não muito lento. A cada investida, ela
suspirava trêmula, abrindo-se para ele.
Ele se mantinha lento, mas com certa firmeza. Queria apreciar a
esposa de cima, ver as expressões de prazer que ela fazia. Não
queria que aquilo acabasse tão logo começaram.
A relação que Isaac tinha com a intimidade era diferente, ele
não sentia vontades com mulheres por quem não estava
apaixonado. Não se sentia comfortável com a ideia de fazer sexo
com alguém que não conhecia, como uma meretriz. Tentou quando
era mais novo, mas no fim, nem seu corpo queria. Embora não
tenha consumado nada, pediu que a mulher lhe ensinasse como dar
prazer a uma dama.
Compartilhar de um contato tão íntimo com Júlia era, para ele,
algo profundo, pessoal e secreto. Uma expressão de afeto tão
íntima que nada se igualava. O contato dos corpos nus, as carícias
que ela fazia em seus ombros e o cheiro dela o envolvia, deixando-o
perdido de amores pela esposa. Era um momento de extrema
vulnerabilidade física e emocional.
Julia o puxou pelos ombros até poder beijá-lo e envolvê-lo com
os braços, suspiros de paixão por entre os lábios, fugindo em meio
ao beijo. Quando ele ia fundo, ela o presenteava com um gemido
ardente, mas baixo o bastante para apenas os dois ouvirem.
Surpreendia-o ter passado trinta e um anos sem provar dos
prazeres mais intensos, embora duvidasse que fosse se sentir tão
eufórico com qualquer mulher. Julia e ele compartilhavam da
primeira vez e da curiosidade, tornando o momento mais caloroso
do que ele imaginou. Os beijos apaixonados dela, as mãos
deslizando por suas costas em carícias ansiosas, o rubor lascivo em
seu rosto.
Aquilo tudo era especial demais e vinha dela.
Isaac não aguentaria por mais tempo, já estava segurando a si
mesmo havia minutos demais, desde que Julia se despiu na sua
frente e se sentou em seu colo, tão junta de seu sexo que ele pode
sentir o calor molhado dela.
E agora estava mais forte, ao redor dele, apertando-o a cada
espasmo de desejo que ela dava. Se fosse proposital ou não, ele
não sabia, mas Julia o estava levando a loucura da paixão com seus
gemidos acalorados.
Ele retornou as mãos para a cintura dela, afastando-se do beijo
e a estocando com mais rapidez. Ela gemeu surpresa, mas se
deleitou tão logo ele a viu aproveitar aquilo, respirando rapidamente,
as unhas ansiosas arranhando seus antebraços antes dela segurá-
lo nos pulsos.
Ela suplicou para que ele continuasse, tão envolta em seu
próprio prazer que parecia mal se importar com o marido ali. Aquele
pedido o inflamou diante do intenso prazer que uma mulher era
capaz de sentir diversas vezes em uma noite. Ele tentou manter o
ritmo rápido que ela estava gostando, mas aquilo só o levava para
mais perto do próprio ápice. Quando as unhas dela marcaram seus
pulsos com força, Julia suavizou as mãos e o puxou para abraçá-lo
mais uma vez. Apenas para que ele pudesse tomá-la o suficiente
antes de se derramar dentro dela.
Toda a tensão havia se esvaziado de seu corpo, mas ele ainda
a olhava de cima, seu corpo sobre o dela e os olhos juntos aos
cristais claros de Julia. Ela piscou lentamente, como uma gatinha
preguiçosa, mas os fechou junto de um suspiro satisfeito.
Poderia dormir ali mesmo, tão mais intenso fora com ela do que
sozinho, o havia deixado cansado. Mas não podia deitar por cima
dela e a puxou para ficar por cima dele, acabando por sair de dentro
dela. Julia estava tão amortecida quanto ele, sonolenta, se
esticando em cima dele até ficar apenas com o rosto sobre seu
peito.
Um silêncio confortável os cercou, ambos preguiçosos demais
para falar. Apenas um carinho demorado nos cabelos de Julia, que,
um tanto acanhada, deslizava a ponta dos dedos pelo ombro nu do
marquês.
— Céus... — ela sussurrou, horrorizada.
— O que foi? — Isaac perguntou, alarmado — Eu fiz algo de
errado?
— A gata viu tudo — Julia cochichou, apontando para a gata
sentada na poltrona feito uma estátua, os olhos vidrados nos dois.
Isaac gargalhou, o animal desceu da poltrona e correu até o
quarto de Julia ao lado, deitando-se na cama dela e retornando para
mais uma prolongada soneca.
— Não é como se ela fosse uma gatinha inocente — o marquês
disse, bem humorado, enquanto seus dedos deslizavam pelos
longos cabelos platinados da esposa e terminavam por descer até o
traseiro macio dela — Já teve sua cota de filhotes.
Os olhos de Julia se animaram.
— Há filhotinhos por aqui? Por que não me disse antes?
Ele riu outra vez, encantado demais por ela.
— Eu dei para as crianças das fazendas. Tenho certeza que são
exímios caçadores de ratos e protetores de galinhas.
Julia riu igualmente, o som feminino de seu riso o conquistando
mais um pouco. Ele não resistiu e a beijou.
— Eu gostaria de me banhar — ela sussurrou, cobrindo-se com
o lençol.
— A banheira ainda está quente, presumo — Isaac afastou
alguns fios que havia ficado contra um pouco de suor na testa dela
— Fique a vontade.
Julia se apoiou em um de seus cotovelos, usando a mão livre
para tocar o marido em seu peito.
— V-Venha comigo.
Ele deu um sorriso surpreso, mas assentiu e se levantou da
cama. Julia tentou não olhar para o corpo nu dele, mantendo os
olhos nos próprios pés e as mãos segurando o lençol ao redor do
corpo. Apesar de ter estado em um momento tão íntimo com ele
minutos atrás, desprovida de nenhuma roupa ou vergonha, no
momento ela estava extremamente encabulada.
Pensar que o havia sujado com seu sangue era constrangedor e
agradeceu a qualquer força maior por acontecer apenas durante o
primeiro encontro do casal.
Jogou o lençol em cima dele, apressadamente entrando na
água morna enquanto o marido tentava se desfazer da armadilha.
Quando ela se arrependeu e pensou que o havia chateado, o
marquês estava sorrindo risonho.
Apesar de constrangida, parte de Julia ainda estava louca por
Isaac. Quando ele entrou na banheira, ela foi logo para o colo dele,
que a beijou em seu queixo delicadamente. Descobriu que gostava
muito de ficar por cima, de tê-lo olhando para ela com tanta
admiração e desejo. Era como cavalgar, ela tinha todo o domínio.
E Julia era uma exímia amazona.
CAPÍTULO 15

Na manhã seguinte, Julia acordou como se alguém tivesse


passado com uma carroça por cima dela. Ida e volta. As intimidades
deveriam ser diminuídas uma vez por noite, não duas. Mas a
sensação de ser possuída era deliciosa, a escandalosa completude
que sentiu quando ele esteve dentro dela era viciante. Queria ter
tido uma terceira vez, se não estivesse dolorida.
Um banho quente a ajudaria.
No entanto, sorria feito tola ao se espreguiçar e sentir o corpo
adormecido de Isaac ao lado dela. E ele dormia feito uma pedra,
com a barriga para cima e um dos braços para fora da cama, um
tanto torto como se quisesse deixar bastante espaço para Julia.
Ela deu um muxoxo baixinho, a cama era grande, mas ele
poderia ter ficado bem perto dela. Aproveitando que ele estava em
sono profundo, Julia o beijou no rosto e afagou seus cabelos,
ouvindo um suspiro tranquilo do marquês. No meio dos lençóis e ao
pé da cama, Sir Jonas dormia profundamente, ronronando alto e
enrolado entre as pernas do marquês.
Sem fazer barulho, Julia retornou para o quarto ao lado, fechou
a porta e puxou a campainha. Quinze minutos depois, a banheira no
quarto de vestir estava cheia de espumas e com uma Julia corada e
escondida até a altura do queixo.
— Madame — Natalie disse com extremo gosto, trazendo
consigo um vestido azul claro e outro amarelo com flores vermelhas
— Agora que é uma marquesa, deve se vestir com mais pompa.
Escolha um, eu suplico. Não me faça vesti-la de branco mais uma
vez...
Julia brincou com as espumas por um tempo, pensando.
Colocou um pouco em suas bochechas e sorriu contente.
— Quero o azul, Natalie.
— Oh, sim, madame. Combina com seus olhos. Deveria usar
mais tons azuis — ela foi para o outro lado do biombo, mexendo nos
cabides — Agora que a senhora é uma marquesa eu a vestirei com
tanta pompa, ficará como uma rainha. A senhora verá. Será a
referência da moda londrina aqui nessa cidadezinha. Com todo
respeito, é claro.
Julia estava feliz demais para se importar em ser a boneca de
Natalie. Tudo o que conseguia pensar era em...
— Lorde Winsford! — a camareira exclamou, horrorizada.
Julia se agitou na banheira, tentando se cobrir com a espuma,
embora estivesse bastante protegida pelo biombo. Não conseguia
ver nada além dos painéis de madeira escura onde seu robe de
seda creme estava pendurado.
— Suspeito que Lady Winsford esteja se banhando — o
marquês pigarreou baixo.
— E-Estou aqui — ela respondeu — Eu gosto de tomar banho
diariamente.
Isaac falou um pouco mais alto:
— Estarei a esperando no jardim, minha querida. Tome quantos
banhos quiser — ele assegurou com gentileza e depois pareceu
falar com a camareira — Com licença, senhorita.
Quando a porta que unia os dois quartos se fechou, Julia soltou
a respiração.
Natalie apareceu na frente da banheira, o rosto corado e uma
toalha em mãos.
— Perdoe-me por ter visto o marido da senhora em trajes de
dormir, madame.
Julia deu um riso baixo e descontraído.
— Creio que uma camareira acaba vendo o cônjuge de sua
dama quando acorda também.
A criada deu um muxoxo acanhado e envolveu a patroa com a
toalha macia assim que ela se levantou da banheira.
Trinta minutos depois, ela estava descendo as escadas da
Mansão Ballard. Havia um silêncio abençoado naquela propriedade.
Não ouvia nada além dos passarinhos e os próprios passos, o som
dos tecidos de seu vestido contra o mármore do piso. Para quem
havia passado a vida inteira entre os Mildenhall e Chatham, Julia
gostava de um pouco de paz.
Andou devagar pela casa, mesmo sabendo onde ficava a porta
que dava para os fundos. Queria observar sua nova morada, o lugar
onde ela era a senhora que mandava em todos. A decoração sem
muitas cores parecia combinar com seu típico humor apático. As
paredes brancas, alguns painéis escuros, poucos arranjos de flores
nos aparadores nos corredor. Bem, ela não se importaria de colocar
mais algumas flores pela casa. Talvez alguns quadros de paisagens
coloridas. Cortinas em tons claros. Tinha de ficar claro que uma
mulher morava ali e comandava tudo.
Mas o que ela mais gostou foi encontrar um gato dormindo aqui
ou ali. Viu dois, um todo branco e um tigrado, lambendo um ao outro
atrás de um vaso de exóticas samambaias. A gata da noite anterior
andava devagar, atravessando o grande vestíbulo da mansão.
Ela notou a presença de Julia e, bastante charmosa, se jogou
no chão e expôs sua barriga. Claro que Julia não cairia em um golpe
tão óbvio e apenas acariciou a cabeça do animalzinho, feliz por vê-
la ronronar.
Distraída com a casa, ela esbarrou com uma criada pelo
caminho, uma mocinha morena e com as bochechas salpicadas de
sardas.
— M-Milady! — ela exclamou, segurando um balde e uma
vassourinha contra o peito — Eu não deveria estar aqui, perdoe-me.
Julia a acalmou com um aceno desajeitado.
— Tudo bem, menina. Mas, realmente, creio que seja tarde para
limpar lareiras.
A criada assentiu e a reverenciou em um nervoso pedido de
desculpas.
— A casa costuma ficar vazia o dia inteiro, milady, e-eu apenas
me esqueci de sua aclamada presença.
— Não seja tão formal — Julia riu nervosa, acostumada a não
ser uma marquesa.
Ela não sabia se aquilo era confortável ou não. Não queria ser
idolatrada, gostava muito de ser invisível.
— Só me diga onde fica uma saída para os jardins — Julia
pediu — Acho que me perdi um pouco.
— Eu a levo, milady! — a mocinha se animou inteira — Por
aqui, por aqui.
Julia anuiu com um aceno e seguiu a criada pela casa. A
empregada andava rápido, mas tentava não ficar a frente da nova
marquesa.
— Como é o seu nome?
Ela quicou de susto ao ser chamada.
— Mary, milady!
— Oh, é o nome de minha mãe.
— É uma honra, milady — a menina parou de caminhar e fez
uma mesura rápida, logo voltando a andar.
Julia deu um riso discreto. Mary não parecia ser muito mais
velha que sua irmã Emanuelle.
— Por favor, não fique tão nervosa, Mary. Eu nunca fui uma
marquesa antes.
A criada assentiu de novo.
— Desculpe-me, milady. Prometo me portar com mais calma.
Julia sorriu e aquiesceu, agradecendo com um aceno assim que
Mary lhe mostrou a porta dos fundos.
A mocinha sumiu correndo pela passagem dos criados mais
próxima e deixou a marquesa a sós. Julia olhou pela porta aberta, a
brisa do jardim corria pelo espaço quase vazio.
As portas francesas davam para um pátio de cascalho claro, a
esqueda havia um arco alto conectado à construção por onde ela
pôde ver os estábulos. A frente do pátio era um campo vasto, exceto
por uma estrada de terra clara que se partia em duas, onde alguns
arbustos enfeitavam o cenário de modo simples e elegante. Havia
espaço para ela cavalgar, perfeito.
Isaac estava sozinho em uma mesa de ferro branca que fora
colocada no meio gramado, abaixo de uma tenda e lendo jornal.
Julia só via as mãos do homem segurando o papel e ele também
não a via.
Um lacaio estava de pé próximo a mesma e fez uma reverência
educada quando ela se aproximou, acabando por chamar atenção
de Isaac, que abaixou o jornal.
— Lady Winsford — ele sorriu, pondo-se de pé e ajudando a
esposa a se sentar.
Ela sorriu lisonjeada, mal havia acordado e ele já a estava
tratando com extrema cordialidade. Além de que ser chamada de
Lady Winsford era maravilhoso, mesmo que outros julgassem como
uma deferencia desnecessária em frente aos criados.
Para ela era um lembrete de que estava casada com Isaac.
— Dormiu bem? — ele perguntou, dobrando o jornal e o
entregando para o lacaio.
Ela assentiu e esperou que o criado lhe servisse o que ela viu
ser chá de pêssego e um sanduíche de bolo com geleia de
morango.
— Adoro geleia — comentou, sorridente — Adoro doces.
— Mandarei passar o recado à cozinheira, vai mimá-la com
quitutes até não suportar mais comê-los — Isaac respondeu
contente, voltando sua atenção para o lacaio — Deixe-nos.
Quando estavam a sós, o marquês segurou uma de suas mãos
e lhe deu um beijo.
— O jardim lhe agrada, minha querida?
— Há bastante espaço — ela olhou ao redor, satisfeita por
segurar a mão de Isaac — Poderei cavalgar sem ter de ir para muito
longe. E há espaço para os obstáculos.
— Você gostaria de sair para cavalgar? Podemos ir juntos. Faz
tempo que eu não passeio a cavalo.
Ela pigarreou e murmurou, desconcertada:
— Não me sinto muito disposta para cavalgar.
O marido demorou para compreender, mas quando o fez,
assentiu um tanto corado com sua falta de delicadeza.
— É claro. Podemos ficar por aqui mesmo.
Ela sorriu, bastante contente com tudo aquilo. O casamento mal
havia começado e parecia que seria extremamente agradável.
— Só eu e você, meu lorde.
O marquês riu e assentiu, beijando sua mão outra vez e depois
roubando um beijo de seus lábios. Julia não o deixou escapar,
devolvendo o beijo entre risos de recém-casados.
Estava tão feliz por ter Isaac só para si que não conseguia
esconder. Quando se afastaram, ele percebeu o sorriso que brilhava
até nos olhos cristalinos dela.
— Você é tão linda, Julia — ele a observou, fascinado — Mas
tenho a impressão de que não me dá ouvidos.
Ela assentiu com um dar de ombros amuado.
— Agora você tem me feito me sentir bela, meu lorde.
— O importante é que sinta sem precisar de ninguém além de si
mesma.
Julia aquiesceu, por que haviam entrado em um assunto como
aquele?
Ela sentiu que iria derramar lágrimas, mas não o faria na frente
do marido. Contudo, Isaac pareceu perceber sua mudança de
espírito.
— Não, não chore, Julia — ele se alarmou, tocando-a em seu
rosto abatido — Desculpe-me. É uma marquesa agora. Como se
sente tendo um título e uma mansão só seus? E um marido,
modéstia à parte.
Julia fungou e sorriu, animando-se com aquilo.
— O que uma marquesa faz? O que sua mãe fazia? S-Se não
se importar em falar sobre ela mais uma vez.
Isaac sorriu consigo mesmo e balançou a cabeça de modo a
sanar as preocupações de Julia.
Tomou um gole do próprio chá antes de falar:
— Minha mãe gostava bastante de festas, então sempre dava
bons soirées aqui. Lady Hanes era uma de suas convidadas. Havia
um grande baile a cada estação do ano, minha mãe tinha muitas
amigas em Londres que vinham anualmente.
— Tia Gladys adora um sarau, eu sei muito bem.
O marquês riu ao que a esposa de uma mordida bastante
aborrecida em seu sanduíche.
— Além das festas, que confesso terem influenciado meu gosto
por ir a temporada, ela também fazia algumas caridades. O que se
espera, não?
Julia assentiu.
— Há algo de escandaloso que devo fazer? Minha tia Lucy
fundou um abrigo para antigas meretrizes ou moças arruinadas.
Isaac franziu o cenho, pensativo.
— Creio que minha mãe era tímida demais para ousar assim.
Suas caridades eram mais para os moradores da vila, nossos
operários. Uma pequena escola, mas que, infelizmente, acabou.
Julia deixou o sanduíche de lado, terrivelmente chateada.
— Mas acabou?
— Depois que ela faleceu, a preceptora foi embora. A mulher
nunca gostou de ensinar crianças pobres, mas minha mãe a pagava
muito bem para convencê-la.
— Que mulher ruim — ela resmungou e o marido riu — E-Eu
não sou boa em me expor ao público a ponto de me oferecer para
ensinar, mas poderíamos encontrar outra professora, não?
Isaac pensou, tomando mais um pouco do chá e movendo a
cabeça em meio ao raciocínio.
— Não seria de todo mal. É melhor que as crianças fiquem
nessa escola do que em minha fábrica, onde podem me arrumar
problema com o sindicato.
— Sindicato?
— Ano passado, durante a revolta, alguns operários se uniram
em um sindicato. Eu não sei o que fazem por lá quando se juntam,
mas não os quero com raiva de mim. Atearam fogo em um dos
galpões abarrotados de tecidos para exportação.
Julia resfolegou aborrecida.
— Isso é um absurdo! Deve ter desandado com toda a
contabilidade...
— Não há lado certo ou errado nesses casos, minha lady — ele
disse, triste, mas certo.
— Uma pena o mundo ser tão cinza, não preto e branco — ela
deu um muxoxo, terminando o sanduíche e o chá — Podemos ir até
os estábulos? Gostaria de conhecer os cavalos.
— Vamos — Isaac ficou animado, levantou-se e estendeu a
mão para a esposa — Vou lhe mostrar o lado de fora da Mansão
Ballard. Se quiser criar animais, provideciarei uma construção
apropriada.
Infelizmente, antes mesmo de Julia poder segurar na mão do
marquês, o mordomo da casa havia aparecido com certa pressa e
ansiedade.
Ele parou próximo ao casal, reverenciando-os sutilmente.
— Há três moças que desejam ver a senhora, Lady Winsford.
Insistiram em ficar, minha lady, então as deixei esperando na sala
de visitas azul.
Julia franziu o cenho quase que de imediato, bastante
aborrecida. Aquelas três nem ao menos esperavam, já queriam se
intrometer em seu casamento que mal começara.
— Devem ser minhas irmãs e Petúnia, você viu como são...
Afobadas — ela explicou para Isaac, que estava confuso — Eu vou
falar com elas e o encontro nos estábulos, está bem?
O marquês assentiu de acordo e se despediu de Julia com um
beijo em sua mão.

***

Maldição.
Antes fossem suas irmãs e prima, mas eram Marian, Heloise e
Lilian. Todas amassadas num único sofá, desconfortavelmente
segurando sombrinhas e chapéus.
— Lady Winsford! — Heloise levantou de supetão, fazendo as
outras duas tombarem para os lados — Que imenso prazer em
revê-la.
Julia não demonstrou nenhuma expressão. Continuou de pé, as
mãos frente ao corpo e a cabeça firme.
— O que desejam? Infelizmente tive de interromper meu
desjejum.
As três se entreolharam, mas Heloise parecia a mais simpática.
Lilian estava colada em Marian, como se a mais velha das três
pudesse protegê-la de algo.
— Viemos apenas desejar felicidades ao novo casamento —
Heloise riu um tanto nervosa, segurou a saia e fez uma mesura — E
parabenizá-la por ser a nova marquesa.
As outras duas fizeram o mesmo, Marian um tanto desanimada.
— Mas quanta simpatia — Julia observou com sua natural
ironia, ainda parada feito uma estátua — Pensei que não queriam
mais falar comigo. A rameira, pelo o que ouvi, que tira as roupas
para o marquês da cidade.
Marian ficou púrpura de vergonha e Julia sentiu um pouco de
orgulho de si mesma.
Antes seu atrativo era Londres, agora era o fato de ser a esposa
do homem mais influente das redondezas. É claro que, moças
burguesas como elas eram incentivadas a manter laços sociais com
quem tivesse uma boa posição na sociedade.
Julia compreendia, mas não aceitava o fato delas terem
explicitado suas opiniões negativas sobre ela embasadas em nada
mais nada menos do que na ignorância. Os mexericos logo
chegaram aos ouvidos de Madame Rutherford, que havia lhe dito
tudo.
— Mas quem diria tal coisa, m-minha lady? — Lilian perguntou,
engolindo em seco.
— A senhora há de entender que, dada as circunstâncias, não
podíamos ser vista em sua augusta companhia — Heloise se
explicou — Mas é óbvio que a senhora e o marquês compartilham
de grande sentimento.
Julia inspirou e expirou, calada. Ela estava sufocando e ainda
pensavam que os dois haviam tido relações no meio de um jardim.
— Peço que se retirem de minha casa — ela se virou de lado,
como quem permite a passagem — Agora.
Heloise balbuciou alguma coisa. Lilian resfolegou, tristonha.
Marian deu um muxoxo impaciente.
— Certo, nós vamos nos retirar, Lady Winsford — Heloise
pigarreou baixinho e vestiu seu chapéu — Só queríamos manter a
amizade.
Julia ergueu uma das sobrancelhas e estendeu a mão na
direção da porta. Quando as três passaram de costas, Lilian olhou
por sobre o ombro e pediu desculpas com um triste olhar sincero.
A nova marquesa suspirou cansada e se sentou no sofá outrora
ocupado pelo trio ternura. Não tardou para que Sr. Price entrasse na
sala, pigarreasse baixinho e chamasse a atenção dela.
— Minha excelentíssima Lady Winsford, com a vossa licença —
o criado a reverenciou com um enorme floreio de mão.
Julia se sentou corretamente, alisando as saias. O secretário
era um homem bastante esbelto e elegante, o par de óculos
pequeno lhe dava um ar acadêmico. A modista e ele deviam formar
um curioso casal.
— S-Sim, Sr. Price?
— Não pude deixar de notar que a senhora teve um impasse
com as três moças.
Julia uniu as sobrancelhas.
— O senhor é um belo de um fofoqueiro. Suspeito que meu
marido faça bom uso de suas habilidades.
O secretário do marido deu um riso reservado e concordou com
um breve aceno de cabeça.
— O senhor tem alguma informação sobre elas? Dada a sua
natureza... Curiosa.
Ele riu outra vez. Julia acabou por convidar o homem a se
sentar, o que ele fez sem cerimônias. Devia ser um abusado, mas
Julia estava começando a gostar do homem.
— São informações não muito agradáveis.
— Fale-me sobre Marian. Essa parece desgostar de mim e eu
não sei porquê.
Price pigarreou baixo e assentiu.
— Bem, A Srta. Stewart debutou faz muito anos, como deve
saber.
— Bastante jovem, inclusive.
— Foi um mero ato de desespero de seus pais, visto que a
jovem estava envolvida com alguém inapropriado.
Julia ergueu as sobrancelhas.
— Por isso ela parece achar que eu estou grávida!
Price negou tudo com um sutil gesto.
— A Srta. Stewart, minha lady, estava envolvida com outra
moça.
Julia ficou boquiaberta.
— Não!
— Uma escandalosa verdade. A moça estava apaixonada pela
própria camareira, cujo sentimento era recíproco.
— Mas...! — ela abaixou o tom de voz — E o que aconteceu?
— A criada voltou para a Irlanda, de onde veio, e a Srta. Stewart
debutou de modo a encontrar um marido.
— Mas ela não quer um marido...
— Suspeito que não.
Julia coçou o queixo com a ponta do indicador.
— Como o senhor sabe disso tudo?
Price sorriu um tanto orgulhoso.
— As modistas ouvem de tudo, Lady Winsford.
A marquesa acabou por rir.
— É claro, Sr. Price. Bem... Pobre Marian. Eu conheço alguém
que vive tal dilema, mas, pelo o que me parece, ela e sua... Amada
não foram separadas.
Sua tia Joanna e Olivia Wentworth eram inseparáveis, mas
ninguém fora da família sabia que as duas não eram apenas
amigas. Se alguém sabia, as vozes não escapavam dos leques.
— Uma vida repleta de provações, Lady Winsford. Outrora tão
comum nas antigas civilizações.
Ela não pode deixar de concordar. Aquele era um assunto que
Jane adoraria discutir por horas a fio.
— E Heloise?
O secretário demonstrou certo desconforto em seu rosto, como
quem pensa em algo triste.
— Sr. Price? O senhor já fez fofoca demais, conte o resto. Eu
guardo segredos.
— Eu acredito que não deva falar, visto que já falei para Lorde
Winsford... Digamos que... A pobre moça foi atacada. Por Deus,
minha lady, não conte para ninguém. Eu não deveria ter contado
para Lorde Winsford.
Julia franziu o cenho e, quando entendeu, levou a mão ao peito.
Heloise que era tão animada e simpática, apesar de sua faceta
interesseira, não merecia passar por aquilo. Um ato tão intenso
como aquele, forçosamente deveria ser um pesadelo que ninguém
deveria vivenciar.
— Mas... E ela está bem?
— Parece que sim. Não engravidou, graças a Deus. Nem ficou
doente.
— Por isso Isaac insinuou certas coisas... — ela pensou alto e
logo ficou irritada — Não creio que ele tenha falado assim dela
enquanto foi uma violência. Ele não é como os outros homens, não
pode ser.
— Ele não sabia, madame. Apenas a família sabe, e nós. Todos
pensam que ela e Lorde Houghton tiveram um momento de luxúria
antes da hora, porque alguém espalhou por aí que a Srta. Smith não
era mais virtuosa.
— Ainda assim, não gosto que ele tenha tentado ofender a
honra dela.
Price concordou com um meneio.
— Infelizmente as mulheres carregam fardos que para os
homens se tornam prêmios. É difícil para muitos pensar de modo
diferente, mesmo que sejam boas pessoas. Faz parte de nossa
sociedade.
Julia o olhou com certa surpresa.
— O senhor é muito politizado. A esposa do meu primo iria
adorar conversar com o senhor.
O secretário agradeceu com um leve inclinar de cabeça.
— Madame Rutherford é a quem a estimada prima da senhora
deve dirigir as palavras. Sou um mero servo.
A marquesa o olhou com os olhos semicerrados.
— Da madame ou de meu marido?
Price caiu na risada.
— Lorde Winsford que me perdoe, mas meu amor é maior que a
necessidade de pagar as contas.
Ah, ela estava gostando daquele secretário. Um homem devoto
a sua amada era de confiança.
— Gostei muito do senhor — anunciou em voz alta — Continue
amando, Sr. Price. Homens de boa índole são sempre capazes de
amar.
O homem se levantou e a reverenciou até quase beijar o chão.
Parecia que estava na corte francesa.
— Ao seu dispor, digníssima Lady Winsford. Considere-me um
servo da senhora, também.

***

Isaac tinha muitas perguntas em sua cabeça, apesar de estar


bastante satisfeito com o casamento logo de início. Julia era
adorável, sem falar no momento que compartilharam na noite
anterior. Ainda pensava em cada segundo que passou com ela em
seus braços.
Mas para quem parecia não querer casar com ele, Julia estava
contente demais. Claro que ele estava gostando muito daquilo,
desde o início quisera que Julia gostasse dele.
Ele suspirou, atravessando o arco que separava a construção
principal dos estábulos e logo vendo um novo gato por ali. Era Sir
Jonas circulando pelo perímetro, farejando uma planta aqui e ali.
Encontrando algo curioso nos cascalhos do chão e o comendo
depois de uma cheiradinha breve. Até que correu assim que ouviu
os passos de Isaac contra a terra, sumindo na direção da cozinha
nos fundos da casa.
— Isaac.
Isaac se virou imediatamente ao som da voz de Julia, que
parecia enfezada com uma grande ruga entre suas sobrancelhas
claras.
— A visita de suas irmãs foi desagradável? — perguntou assim
que ela se aproximou.
Ela fez que não, esticando o pescoço para olhar para dentro dos
estábulos. Sua expressão suavizou.
— Não era nada de importante — assegurou, voltando sua
atenção para ele e abrindo um sorriso — Onde estão os cavalos?
Não vejo nenhum...
Ele olhou ao redor, não estavam por lá. O cavalariço também
não. Estavam os dois no pátio que conectava a cozinha com a
edícula e os estábulos.
— O cavalariço deve tê-los levado para um exercício. Logo ele
volta.
Julia respondeu com um sorriso pacato, tomando iniciativa de
segurar no braço do marido e se manter bem junta a ele. Isaac
estava aprendendo a ler a linguagem corporal de Julia, aquilo
significava que ela queria um beijo.
Era adorável como ela parecia tímida para carinhos mais
simples, diferentemente da noite anterior.
Ele não demorou para realizar os desejos da esposa, tocando-
lhe o queixo gentilmente para beijá-la contra os lábios e sentir o
sorriso dela contra o seu. Foi um beijo simples, breve, mas doce.
— Gostaria de lhe perguntar algo, Julia — comentou assim que
se afastaram.
Ela franziu o cenho, preocupação estampando seus olhos
claros. Julia assentiu, unindo as mãos na frente do corpo.
— Diga.
Isaac pigarreou, levando Julia para um pouco mais distante dos
estábulos onde o cheiro era agradável. Dando-lhe um de seus
braços para que ela segurasse, pôs-se a caminhar em direção aos
jardins do fundo onde fizeram o desjejum.
— Notei que está contente com nosso casamento, não está?
— S-Sim, estou... — a voz dela ficou baixa e envergonhada —
Bastante.
Ele meneou com a cabeça, permanecendo calado e pensativo.
— Há algo o incomodando...? — Julia perguntou, apreensiva —
Fiz algo de errado?
— Não, está tudo bem — Lorde Winsford assegurou de
imediato, tomando para si ambas as mãos de Julia — Eu só estava
pensando como achei que não queria se casar comigo quando...
Bem, quando ocorreu o incidente com seu espartilho. Confesso que
eu também duvido das minhas qualidades, vez ou outra.
O rosto de Julia ganhou um tom rosado e ela o escondeu,
abaixando-o.
— Você é o homem mais digno que já conheci. E-Eu queria
casar com você, só... Só estava surpresa com tudo, entende? Com
toda a situação.
Ele fez que sim. Um sentimento natural.
— É que... — ela continuou, soltando as mãos dele e
caminhando sozinha — É que eu... Eu...
Isaac logo foi atrás dela e tentou se manter ao seu lado
enquanto ela caminhava, mas suas passadas eram rápidas e ela
respirava de forma ansiosa.
— O que foi? — ele conseguiu tocá-la em seu ombro, fazendo-a
parar — Julia. Quer me dizer algo?
Ela o olhou com os olhos arregalados e fez que não, abaixando
o rosto logo em seguida. Para surpresa e deleite de Lorde Winsford,
ela o abraçou junto de um longo suspiro.
Vê-la tão apreensiva lhe partiu o peito, mas tudo o que podia lhe
fazer era corresponder ao abraço e afagar suas costas
carinhosamente.
— Conte-me o que quiser, quando quiser, Julia — afirmou,
dando um demorado beijo no topo da cabeça loira dela.
Ela se afastou do abraço e tocou o cantinho dos olhos, mas não
teve de fazê-lo por muito tempo, logo Isaac tirou um lenço do bolso
de sua casaca escura e entregou para a esposa.
— Antes que pergunte, não estou grávida de outro homem e lhe
escondi isso... — ela respondeu, usando o lencinho para nada mais
além de levá-lo ao seu nariz — Deve ser o rumor mais famoso
dessa cidade.
Isaac riu, secando a maçã do rosto dela com seu polegar.
Ambos tiveram certeza da inocência de cada um na noite passada.
— Eu sei que não, minha querida. Suponho que sejam coisas
de mulher que eu jamais entenderia, não?
Julia deu um riso fraco, mas verdadeiro, e assentiu. Não
demorou para ela voltar a abraçá-lo, gesto esse que foi bem vindo
por Isaac. Se a esposa fosse o tipo que gostava de abraços, ele não
teria do que reclamar.
Aquele casamento acontecera muito rápido. Julia havia chegado
em Chester e havia se metido em um escândalo que, na verdade,
era tão inocente quanto ela. Nem mesmo Isaac estava digerindo
tudo aquilo muito bem.
Certo, estava contente com aquele casamento por acidente,
mas não lhe parecia real. Céus, estava lamentando sua solidão para
o secretário menos de duas semanas atrás e agora tinha uma
esposa o abraçando e ouvindo seu coração bater.
Era difícil de acreditar que era verdade.
Deveriam passar alguns dias sozinhos para se conhecerem
ainda mais. Sem nada que pudesse puxar Isaac para longe da
companhia de Julia. Se ficasse geograficamente longe de Chester,
ele não pensaria tanto em trabalho.
— Estava pensando em termos uma lua de mel, o que acha?
Está na moda.
O rostinho dela levantou para olhá-lo, mas ela ainda estava
abraçada nele.
— O que acha de irmos para o litoral no próximo fim de
semana? Posso alugar uma propriedade que fique na praia, tem aos
montes. De quebra, passaremos bem perto de Liverpool.
Os olhos dela ficaram enormes e ela assentiu, afastando-se do
abraço.
— Mesmo? E poderíamos ir até a praia? E molhar os pés?
— Se não se importar em mostrar os pés por aí, claro.
Providenciarei uma casa à beira mar, sem visitantes.
Ela uniu as mãos no peito e sorriu de orelha a orelha.
Quando Julia exibia uma genuína alegria ela mudava por
completo. Era como se seus olhos e sua pele ganhassem vida.
Ficava linda, Isaac não parava de admirá-la.
— Nem acredito que verei o mar! — ela se esticou um pouco e
lhe deu um beijo contra seus lábios — Obrigada!
Isaac sentiu deliciosas borboletas em seu estômago,
apaixonado feito um tolo. A companhia de Julia era especial,
diferente de quando se encantou por outras moças no passado.
Até mesmo por Tamsin. Havia até se esquecido da prima da
esposa... Esposa. Como era estranho e, ao mesmo tempo, bom
estar casado.
Julia estava nas nuvens consigo mesma, comentando com
Isaac sobre o que esperava do mar e se haveria tubarões e outros
tipos de animais perigosíssimos por lá.
O marquês prestava atenção com grande fascínio. Qualquer
coisa que Julia falava era interessantíssimo, e ela havia engajado no
assunto marítimo com afinco enquanto caminhavam pela
propriedade.
Não demorou para ela perceber o olhar do marido sobre ela,
corando e rindo um tanto sem jeito.
— Estou falando demais...
— Poderia passar horas a ouvindo, Lady Winsford — ele disse
bastante galante, sorrindo quando a fez ruborizar ainda mais — Sua
voz é linda.
Acanhada, ela o beijou outra vez contra os lábios. Simples e
doce, afastando-se quando percebeu que o cavalariço retornava aos
estábulos já um tanto distantes.
Com a ajuda de um rapaz, o homem levava três cavalos
consigo. Dois negros e um marrom cuja crina era de um lindo
branco.
— Que lindos! — Julia exclamou como uma criança — Vamos
até lá, vamos!
Isaac riu da adorável reação da esposa, que o puxou pela mão
rapidamente como se os cavalos pudessem sumir outra vez.
Quando já estavam bem próximos dos estábulos, o cavalariço
expulsou o ajudante com uma espanada de mão e cumprimentou o
marquês e a marquesa com uma reverência.
— Milorde, quer que eu prepare a carruagem? — perguntou
assim que o cavalo marrom estava dentro de sua baia — Fui levar
os cavalos para um passeio, comer um pouco de pasto.
— Lady Winsford gosta muito de cavalos, apenas a trouxe para
conhecê-los — explicou, olhando para a esposa que
cuidadosamente aproximava sua mão para o cavalo marrom —
Esse é o Mallow, meu cavalo pessoal. Ele é manso, gosta de
atenção.
A esposa sorriu de orelha a orelha quando o animal permitiu
que ela fizesse carinho em seu focinho.
— Os outros dois são ranzinzas, milady, demoram para se
acostumar com pessoas novas — o cavalariço disse,
respeitosamente entregando para Julia uma cesta com uma porção
de legumes — Gostaria de alimentá-lo?
— Oh, sim, sim!
Isaac riu, apaixonado. Aproximou-se da esposa e, com um olhar
certeiro pediu que o cavalariço os deixassem a sós. E assim o
homem fez. Quando o marquês se viu sozinho com a esposa, pegou
uma cenoura e deu para ela.
— Ele é tão bonito e gentil — ela expressou alegremente, dando
risinhos quando o cavalo comeu a cenoura de sua mão de uma vez
só — Há quanto tempo o tem? Parece-me jovem, não parece ter
mais de cinco anos.
— O comprei faz três anos, creio que tenha essa idade mesmo.
Julia afagou o longo pescoço do animal, tomando a liberdade de
pegar uma escova pendurada na portinhola da baia.
— Posso entrar e escová-lo? — ela perguntou para o animal
enquanto entrava no espaço coberto de feno — Você é tão
bonzinho, merece mais cenouras e um bom carinho.
Isaac apoiou os braços na portinhola e observou a esposa
escovar o cavalo enquanto conversava com ele. Ela tinha um sorriso
sereno no rosto, sua voz assumia um tom muito gentil, quase como
quando se fala com crianças, ao conversar com o animal.
— Em breve eu terei de competir com o cavalo para ganhar
tanto afeto — comentou ele em tom brincalhão.
Julia o olhou imediatamente, as sobrancelhas franzidas e certo
lamento até que riu ao perceber que era tudo brincadeira. Seu
sorriso risonho fez o coração de Isaac palpitar mais forte.
— Jamais o trocaria, meu lorde — assegurou ela, escovando o
pescoço de Mallow um tanto acanhada — Jamais...
O marquês olhou para a cesta de legumes em sua mão,
distraído com seus próprios pensamentos.
— Sei que já lhe disse isso antes — ele falou, ganhando a
atenção da esposa que ainda escovava o cavalo — Pensei que
nunca me casaria e aqui está você. Uma esposa tão adorável. É
tolice minha pensar isso, eu sei. Mas parece que-
— Estou sonhando — completou Julia, deixando a escova de
lado e indo até a portinhola onde o marido se apoiava — Isaac, eu
quero lhe contar algo... Algo que eu queria ter contato há muito
tempo. M-Mas não aqui... P-Podemos dar uma volta?

***

Ela ia contar, que mal teria? Não era como se fosse contar algo
terrível, só iria dizer que estava apaixonada por ele já fazia um bom
tempo.
Tecnicamente não havia problema nenhum, mas aquilo era algo
que Julia guardou para si por anos e era difícil dizê-lo mesmo que
Isaac tivesse se tornado seu marido. Era algo pessoal, secreto,
embaraçoso. Sentia-se como quando pensou em como diria para
ele no baile de Tamsin.
Certo, ela não tinha planejado dizer, só tinha planejado flertar
com ele - caso as coisas caminhassem para um rumo romântico -
ela contaria. E olha só, tem rumo mais romântico que o próprio
matrimônio? O casamento fora um acordo, mas ambos estavam
apaixonados, graças a Deus.
Julia estava pensando em contar quando tivesse pensando em
belas metáforas, mas quando Isaac lhe confessou, mais uma vez,
que pensou que jamais iria se casar... Ela decidiu que era hora de
fazê-lo se sentir muito querido. Ele tinha aqueles enormes olhos de
cachorrinho!
Iria contar a história do início, mas não falaria sobre seu surto
de inveja e raiva que a fez inventar rumores sobre Tamsin e Isaac
no ano anterior. Do início até o quase fim estava bom.
O marido havia a levado para a mata ao redor da Mansão
Ballard. Era um bosque bonito, com uma estrada de terra batida
cuja sombra da copa das árvores fazia um belo túnel natural. Era
silencioso e pitoresco, o único som sendo os de seus passos, dos
pássaros e outros animais correndo pelas plantas.
Deveria contar enquanto andavam ou parados em algum lugar?
Melhor parados, queria olhar para ele. Mas não havia onde se
sentar.
— Devo confessar que estou um pouco nervoso — Isaac riu um
tanto sem jeito, sua mão tocando a de Julia que descansava na
dobra de seu cotovelo — É algo sério...?
— Não é nada de ruim, prometo — ela tentou assegurar,
parando de caminhar e olhando ao redor — Gostaria de me sentar,
importa-se de se sentar na grama?
Ele olhou ao redor, por entre as árvores era possível ver os
campos abertos e foi para lá que Isaac guiou Julia. Até que estavam
fora do bosque, a visão dos campos de Chester inundando a
paisagem.
O marquês a ajudou a se sentar contra uma das árvores,
fazendo o mesmo logo em seguida.
Julia olhou para o campo outra vez, apenas, para então pôr as
próprias mãos em seu colo antes de tocar as do marido. Os dois
trocaram um olhar doce, o que fez com que ela sentisse vontade de
chorar por se sentir tão sortuda por tê-lo com ela. Talvez devesse
agradecer a camareira de sua tia por tê-la sufocado com o
espartilho.
— Eu sei que é uma memória dolorosa, mas a primeira vez que
nos vimos foi no velório do falecido Lorde Winsford. E sei que não
se lembra de ter me visto lá.
Ele assentiu, abatido.
— Não me lembro de muita coisa desse dia para ser sincero...
— Desculpe-me por tocar nesse assunto — ela disse, pesarosa
— É que esse foi o primeiro dia em que eu o vi e... N-Nesse dia eu...
Eu me apaixonei por você.
Julia viu as sobrancelhas dele se erguerem sutilmente, e seu
olhar parecia confuso, perdido. Surpreso? Eram várias emoções
naqueles olhos escuros.
— N-Não exatamente naquele momento — continuou, nervosa
com o silêncio dele — Mas eu logo o achei encantador... Queria
poder lhe consolar, dizer algo. E então e-eu passei a observá-lo
durante a temporada, eu o via e queria me aproximar, mas não
sabia como. Não seria apropriado... Q-Que eu tentasse flertar com
você como uma atirada.
Agora as sobrancelhas dele estavam franzidas, o que fez com
que Julia abaixasse o rosto em vergonha. Havia algo de errado
naquilo? Ela não deveria ter dito, pareceria uma louca apaixonada...
— Mas... — ele pigarreou, sem jeito — Mas já fazem quase três
anos que meu pai se foi. Por todo esse tempo eu nunca a vi por aí,
ou-
— Eu disse que sempre fiquei no canto... — Julia fungou, seus
olhos começaram a arder diante daquela confissão — Eu nem sei
bem o que sentia. Era só... Q-Que você é tão gentil com as
pessoas, eu o observava e queria poder ser o foco de tanta
gentileza. Um sentimento platônico sempre que o via, sua beleza
me deixava corada, fazia-me pensar em você me dando atenção. E
eu lhe dando atenção de volta... E esse pensamentos então iam
para eu o beijando... E...
Ele ficou calado de novo, mas dessa vez riu. Uma risada
surpresa, suas face estavam coradas e Isaac tentou falar alguma
palavra, mas apenas balbuciou sílabas.
— Deus, se eu soubesse antes — o marquês riu de novo,
olhando para Julia e abrindo um enorme sorriso — Acho que já
estaríamos casados há um bom tempo.
Julia corou com aquela hipótese, pensar que ele teria se
apaixonado por ela assim como ela se apaixonou por ele era
maravilhoso. Será mesmo que teria acontecido daquela forma?
Teria ele gostado dela?
— Seria esplêndido... — ela respondeu, brincando com a renda
da pelerine — Simplesmente esplêndido.
Os dois caíram em silêncio. Ela imaginou que ele estivesse
processando a notícia, enquanto que ela sentia a vergonha tomar
conta de si. Seu rosto estava quente e o coração batia rápido. Havia
contado.
Não foi tão ruim. Fora até rápido.
Bem, estavam casados e apaixonados, de fato. Seria diferente
confessar aquilo enquanto ele ainda era apenas um homem com
quem ela trocou duas palavras.
— Nunca contou para suas irmãs? — perguntou Isaac, de
repente — Lady Vallance? Vocês parecem tão próximas.
Julia fez que não, ainda olhando para os dedos embolados na
renda.
— Tinha vergonha... E se Petúnia soubesse ela faria algo
absurdo para nos unir. E-Eu estava pensando em contar para você
ano passado — ela o olhou, mas assim que se lembrou do motivo
por ter permanecido calada, voltou a olhar para os dedos — Mas
então você começou a cortejar minha prima.
— Julia... — ele disse imediatamente — Se eu soubesse, minha
querida, eu tenho certeza de que estaria perdidamente apaixonado
por você desde aquele dia.
Ela riu um tanto amuada, dando de ombros levemente.
— Não teria como saber se eu nunca disse nada — então ela o
olhou, suas mãos trêmulas buscando as de Isaac — Quando vi que
estava interessado em Tamsin eu decidi que não iria contar nada.
E...
Mandei mentiras para os periódicos sobre o relacionamento dos
dois para arruinar o romance de Tamsin com Dominick.
— Quis vir para cá quando a temporada acabasse e esquecê-lo.
E ficar um pouco longe da cidade. Não sabia que vivia aqui... V-Vê?
Era tão platônico, eu mal o conhecia, não sabia que vivia aqui. E vim
logo para onde morava. Céus, eu pensei que fosse morrer no soireé
de Tia Gladys! Eu estava ridícula com aquela roupa e... Meu rosto.
Eu não queria que fosse assim que me visse de novo.
Isaac riu do final tragicômico da história dela. Mas, então, suas
sobrancelhas se uniram em confusão.
— Então, por que ficou tão chateada quando o Sr. Smith falou
sobre nos casarmos?
— Eu não sei... Eu fiquei nervosa, com medo de você não
gostar de mim porque nos casamos por obrigação — a voz dela
abaixou, triste — E que, por isso, teria amantes e... Eu não
suportaria. Queria me casar com você, mas queria que fosse
natural. Porque me queria, não porque fora obrigado.
Ele negou com a cabeça um tanto lamentoso. Afagou o rosto
tristonho de Julia, tocando seu queixo até poder beijá-la
demoradamente.
Quando se afastaram, Isaac continuou a lhe afagar o rosto.
— Na noite do jantar de Lady Hanes eu fiquei encantado. Price
me convenceu a cortejá-la no dia da festa dos Smith, porque eu
estava decidido a não cortejá-la por causa de David. Mas, depois,
pouco me importava o seu irmão.
Julia riu, um pouco mais feliz, cor voltando ao seu rosto.
— Acho que ele não ficará contente por um bom tempo.
— Eu não me importo, estou apaixonado demais para deixar de
flertar com você — e, com um sorriso risonho, ele a beijou
novamente.
Julia se derreteu no beijo, envolvendo o pescoço de Isaac com
seus braços até estarem abraçados.
Ela estava tão feliz. Era como se grande parte de suas
preocupações estivessem ido embora. Havia contado a verdade
sobre seus sentimentos, que não eram novos como os deles, mas
antigos e secretos. Sem contar que ouvir de Isaac que ele estava
apaixonado por ela era maravilhoso.
Tudo estava tão bem em tão pouco tempo. Estava em Chester
havia apenas um mês e sua vida havia dado a melhor reviravolta
possível num piscar de olhos.
— Acho que não tem muita importância eu ter contado isso
agora que estamos casados, — ela disse — mas eu queria contar
porque... M-Mesmo que pense que nenhuma moça o quis de
verdade, eu o queria. E o quero agora.
O homem riu para si mesmo, algo que também soou um tanto
tristonho.
Isaac levou as mãos de Julia até seus lábios e as beijou
lentamente, deixando uma das palmas dela contra seu rosto. Os
dedos dela gentilmente o acariciaram na maçã do rosto.
— Não sei se é muito masculino de minha parte, mas eu
sempre quis os carinhos de uma dama.
— Sentir isso é humano, não feminino ou masculino. Acho que
todos nós queremos ser amados um dia..
— São sábias palavras, minha querida — ele sorriu ternamente,
olhando-a daquela forma que a fazia sentir o coração disparar
desde anos antes.
Ele tinha olhos lindos, escuros e cheios de sentimento. Ela
conseguia ver cada emoção de Isaac através daqueles olhos
castanhos. Desde o dia em que o vira desolado no velório do pai e
em todas as vezes em que o via olhar gentilmente para alguma
moça. Aquele olhar que ela queria que fosse só para ela, sempre só
para ela.
E agora era. Diante daquela realização, de que estava casada
com Lorde Winsford, seus olhos foram os delatores de seus
sentimentos. Molhados, ela não conteve as lágrimas que nasceram
tímidas e escorreram pela maçã de seu rosto.
— Estou tão feliz — confessou, envergonhada assim que Isaac
secou seu rosto com o polegar.
Ele respondeu com mais um sorriso, que ela pode ver era tão
feliz quanto as lágrimas dela. E, depois, um beijo lento e repleto de
doçura. Em meio ao carinho íntimo, Isaac a puxou para se sentar
sobre suas pernas e Julia o fez, as saias do vestido se amontoando
ao redor dela.
Ela riu da situação, feliz. Estava apenas feliz, um peso enorme
fora tirado de seus ombros.
Novamente ele a acariciou em seu rosto, olhando-a, admirando-
a, ela ousava pensar.
— Também estou feliz, Júlia — finalmente ele respondeu —
Talvez eu devesse agradecer a camareira que apertou o seu
espartilho?
Julia gargalhou, arrancando um riso do marido.
— Acho que sim.
— Contudo — Isaac adicionou enquanto acariciava o queixo
dela — Eu iria cortejá-la, sem incidente algum, e eu teria a pedido
em casamento.
Ela correspondeu a carícia, tocando a lapela da casaca do
marido, perdida em pensamentos.
— Mas e se, enquanto me cortejasse, visse que não gostava de
mim o suficiente para pedir minha mão?
— Julia, olhe pra mim.
Ela o fez, um tanto tristonha.
— Estamos casados, não estamos?
Julia assentiu, os olhos lacrimejando não mais de alegria, mas
por sua insegurança e auto-estima abaladas. Aquele era um lado
dela que ela não queria que o marido visse. Sentia-se como uma
mocinha que ainda se comparava com Petúnia e as outras garotas.
— Eu estou apaixonado por você, perdidamente — ele disse,
segurando-a pelo queixo de modo que compartilhassem o olhar — E
você é a moça mais bela para mim agora. Creio que eu jamais
deixarei de admirá-la. Vou lhe dizer todos os dias o quanto é linda e
como eu sou um tolo por você.
CAPÍTULO 16

Julia estava certa de que uma hora seu rosto atravessaria a


janela da carruagem. O mar estava logo ali, do outro lado! O
porto de Liverpool era um lugar movimentado e muito cheio, ela
mal conseguia ver o outro lado da fileira de caravelas, galeões,
filibotes e mais uma quantidade enorme de embarcações. Os
galeões eram enormes, os mastros eram tão altos que Julia via
todos para além dos galpões e toldos por todo o porto. Imaginar
que aquelas coisas imensas atravessavam oceanos era
fascinante.
O marido insistiu que não precisavam dar a volta até
Liverpool, poderiam continuar em Cheshire, no litoral do
condado. O Rio Mersey se afunilava o suficiente para que ela
pudesse ver o porto do outro lado.
Julia estava como criança. Ela nunca vira um porto que não
fosse na beira do Tâmisa. Era diferente, a magnitude das
embarcações eram muito maiores e ela supreendeu o marido
quando tirou um binóculo de ópera da bolsa. Isaac caiu na
gargalhada quando ela passou a observar a cidade com mais
precisão. Havia gente de todo tipo, e com isso Julia queria dizer
pessoas que não eram como ela. Inglesas e brancas.
Ela estava encantada enquanto a carruagem fazia o trajeto
em direção ao litoral marítimo.
— Não dá para ver a Ilha de Man — comentou ela, o rosto
ainda grudado no vidro — Realmente, é muito longe.
— Quer ir até lá também? — perguntou Isaac, risonho
diante de Julia tão curiosa — Não recomendaria tal viagem.
Ela se virou para olhá-lo, os olhos brilhando.
— Já foi até lá?
— Não, mas fui até a Irlanda — respondeu, dando-se a
liberdade de espiar pela janela, de um lado o Rio Mersey
entrava na Inglaterra, do outro, desembocava no Mar da Irlanda
— O navio passou perto o bastante para ver ao longe.
Ela voltou a olhar pela janela.
— Ouvi dizer que mandam as meninas mal-criadas para os
conventos de lá.
— Tenho certeza de que não mandaremos Marceline ou
Caroline para lá.
Ela riu diante da menção das hipotéticas filhas que teriam.
Olhou para o marido por sobre o ombro e lhe segurou a mão,
puxando-o para perto.
O marquês se aconchegou atrás dela, observando a
paisagem marítima que corria do lado de fora.
Julia continuou olhando o porto ficar cada vez menor. Ali a
paisagem foi substituída por campos intermináveis, vez ou outra
passando por algum povoado ou vilarejo. Em algumas horas o
cocheiro os levou pelo litoral outra vez, dessa vez Julia quase
abriu a janela.
O mar estava na frente dela. De um lado da estrada eram
campos e mais campos, do outro, uma faixa de gramado que
gradativamente dava lugar a areia.
— Vamos parar, por favor! — ela sacudiu Isaac pelo braço,
fazendo o homem rir e dar uma batida firme no topo da
carruagem com sua bengala.
O veículo parou e Julia mal esperou o cocheiro para descer,
quase caindo na estrada batida se não fosse a rapidez de Isaac
ao descer atrás dela. O cheiro que vinha do mar era
maravilhoso, salgado e... Ela não tinha adjetivos. Nunca havia
sentido a brisa da maresia, a forma como o vento fresco fazia
seu vestido balançar e um sorriso brotar em seu rosto quase
que imediatamente.
Quando se virou para Isaac, fora pega desprevenida pelo
olhar dele. Castanho e tão gentil, ele a olhava com um sorriso
sutil no rosto. Uma expressão de puro carinho.
— Vamos pisar na areia, você vai gostar — disse ele, como
se aquele olhar maravilhoso não o afetasse como a afetava.
Ela assentiu, um tanto corada, e segurou na mão do
marido. A brisa parecia mais forte conforme deixavam o verde
pelo branco da areia. O som das ondas se chocando na orla e
puxando a areia, cada vez mais alto em um ritmo relaxante.
Cada vez que o mar batia na areia, o vestido levava gotículas
pelo ar que respingavam em seu rosto como cócegas.
— É lindo... — disse ela, fascinada — Parece infinito. É
impossível crer que a Irlanda esteja realmente do outro lado,
para mim só há a infinitude do mar!
Outra vez, ele a olhava daquela forma de novo, seus olhos
transbordando de algum sentimento que Julia queria saber o
nome.
— Você combina com o mar. Os seus olhos são como a
água e seu cabelo me lembra a areia branca ao luar — disse
Isaac, tocando-lhe o rosto — É linda, Julia.
Ela abaixou o olhar, encabulando-se com tantos elogios.
Ainda estava se acostumando a ter alguém apontando todas as
suas qualidades de modo tão afável. Características que ela
sempre achou enfadonhas em si. Seus cabelos e olhos muito
claros agora eram como o mar e a areia. Ela se apaixonou por
Isaac um pouco mais depois daquelas palavras.
— Vou lhe ajudar com os sapatos — Isaac se abaixou ao
lado dela.
Julia olhou na direção da carruagem, o cocheiro estava
olhando para alguma coisa mais interessante que os dois. Os
outros criados foram mandados duas horas antes e, levando
em conta o desvio que fizeram para ver Liverpool, já deviam ter
passado por ali.
Um tanto acanhada, ela pisou na coxa do marido que
envolveu seu pé com a mão e tirou a sapatilha de couro
amarelo. Ele a olhava conforme subia sua mão por debaixo da
saia dela, encontrando a liga da meia e a puxando para baixo.
Julia sentiu o rubor subir pelo seu pescoço, desviando o
olhar para que não corasse tanto enquanto os dedos dele lhe
acariciavam a panturrilha nua.
Isaac era ótimo em seduzi-la, ela já havia aprendido aquilo
durante aquela primeira semana de casamento. Ele a olhava
como se fosse feita de ouro e a tocava como se fosse pluma.
Ao menos que ela pedisse que ele fosse mais firme, ele
obedecia e dominava seu corpo com todo o vigor que ela
gostava. Era um amante dedicado, todas as noites os dois
passavam horas nos braços um do outro e Julia sempre
descobria um prazer novo. Pela manhã, dormiam até tarde, ela
nos braços quentes de um marido tão amável.
Infelizmente aquela eram as únicas horas em que parecia
ter toda atenção de Isaac. Durante o dia, mesmo que não
estivesse indo até a fábrica, ele ficava no escritório. Dizia que
tinha que revisar as plantas de um novo maquinário, administrar
o marquesado ou qualquer outra coisa que o ocupava demais.
Julia não queria incomodá-lo, ela podia entender de números e
gostar um pouco de economia, mas não entendia como uma
fábrica funcionava. Talvez demandasse muito da atenção do
marido.
Tentava se distrair ao longo do dia com seus novos
afazeres de marquesa, como redecorar a casa enorme e sem
graça. Passava horas nos estábulos, alimentando os dois
cavalos negros, que estavam se acostumando com a sua
presença ali. Um deles já a deixava escová-lo, inclusive.
Não queria ir visitar a tia para se lamuriar, a mulher poderia
pensar que ela estava insatisfeita com o matrimônio. Então
passava o tempo a brincar com os gatos ou cuidar de Mallow
nos estábulos – isso quando o marido não ia cavalgando para o
trabalho e a deixava sem o alazão. Ainda esperava que Isaac a
levasse ao haras para comprar uma égua para si, mas ele não
tocava no assunto. Ela também não.
E assim a primeira semana de casamento se passou, até
que ela o tinha todo para si ao ir para o litoral. Não havia
escritório nem correspondências por lá. Só os dois e o mar.
O mar lindo, que fazia os cabelos de seu marido
balançarem belissimamente.
Ele terminou de tirar as sapatilhas dela, que, ao colocar os
pés no chão, riu-se com a sensação. Não era como pisar em
terra. Era diferente, parecia cru.
Julia andou pela areia, puxando o marido com ela enquanto
ele arrancava as botas. Não demorou muito e ela corria em
direção ao mar, divertindo-se com a dificuldade em fazê-lo
sobre a areia solta antes de pisar na areia firme e molhada.
Parou quando a água gelada lhe tocou os pés, fazendo-a
estremecer com a temperatura em seus calcanhares.
— É tão fria! — exclamou para Isaac, que vinha atrás.
O marquês parou ao lado dela, enrolando a bainha da calça
bege. Segurou-a em sua mão, deixando-se ser levado
enquanto ela caminhava pela costa. Olhando sempre para os
pés, pressionando os dedos na água quando a areia recuava,
para depois ver tudo sumir com uma nova onda.
— Como se diz oceano em grego? — perguntou ele,
lembrando que o sogro comentara dos talentos linguísticos da
filha.
Julia voltou sua atenção para ele enquanto exibia um lindo
sorriso de pura alegria.
— Okeanós — ela pressionou o pé na areia outra vez,
divertindo-se com a sensação da areia molhada — Thálassa,
quer dizer mar. Ámmos, areia. Ouranós, é o céu.
Julia o segurou pelas duas mãos, virando-se de frente para
ele ainda com um sorriso alegre em seu rosto. Ela se esticou na
ponta dos pés, plantou um beijo contra os seus lábios e disse
algo em grego que ele foi incapaz de compreender. Sua voz foi
tão baixa, intimista e secreta contra seu beijo que ele foi tomado
pela curiosidade de saber o que ela quis dizer.
— O que disse? — perguntou, Julia havia soltado suas
mãos e se inclinando para pegar um punhado de areia
molhada.
Ela deu de ombros, compactou a areia em uma bola e jogou
para o mar.
— Nada de importante — limpou as mãos na água e voltou
a segurar as mãos do marido — Sono così felice...
O italiano soou mais familiar aos seus ouvidos, um idioma
que ele teve contato durante seus anos na faculdade. No
entanto, não entendeu nada.
— Quantas línguas você fala? — perguntou, curioso,
porque em toda aquela primeira semana de casamento ele
nunca vira Julia exibir seu conhecimento linguístico — É
fascinante.
O sogro havia mencionado que ela falava outras línguas,
mas quantas? Julia não exibia de seus talentos, Isaac se viu
tendo de descobrir ao longo daquela primeira semana de
casamento. Quando ele a via tricotando habilmente, movendo
as agulhas em uma rapidez quase que instintiva, ela nunca
aceitava seus elogios. Toda mulher faz isso, desconversava.
— Italiano, grego, francês e espanhol — respondeu, certo
rubor aparecendo em suas faces — N-Não é nada de mais, eu
tinha muito tempo livre.
— Julia, poucas pessoas falam vários idiomas.
Principalmente quando eles são tão diferentes do inglês.
Ela desconversou com um dar de ombros tímido, virando-se
de costas para o marido e voltando a andar pela marola que
cobria seus pés. Isaac foi atrás dela, tomando sua mão para
retomarem a caminhada juntos.
Isaac mal falava francês, o bastante para sobreviver nas
vezes em que foi à França com o pai para tratar de negócios.
Sua esposa era uma jóia rara, extremamente refinada e
cosmopolita, gostaria de estimular aquele refinamento com
alguma viagem ao continente. Quando retornassem a Chester,
ele faria algum planejamento para que pudessem viajar um dia.
— Gostaria de entrar no mar — disse Julia, de repente —
Ao menos até os joelhos. Podemos?
— Podemos entrar quando chegarmos ao solar — ele a
puxou pela cintura até estarem perto o bastante para que
trocassem um beijo — Não gostaria que molhasse um vestido
tão bonito, a água do mar é ótima para destruir seda.
Julia corou com a aproximação, ainda tomando certeza de
que o cocheiro não os via.
O homem estava fora de vista e ela se esticou para beijar o
marido. Um ato simples, demorado e com gosto de mar.
— Não preciso de vestido para entrar — sussurrou ela
contra os lábios dele, sorrindo diante da própria ousadia.
O marido riu satisfeito com aquilo, beijando-a em seu
pescoço até chegar ao ouvido.
— Mas aqui, na frente do cocheiro?
Julia se contorceu deliciosamente com a voz quente dele
em seu ouvido.
— Depois — prometeu — Quando chegarmos.
— Ah, então é melhor nos apressarmos — Isaac a pegou
pelos braços, arrancando um gritinho risonho de Julia que
balançou os pés descalços no ar.

***

O solar que Price alugou para eles era muito aconchegante


e a oitocentos metros de uma praia deserta. Atrás da
construção estava o mar, e ao redor, o campo. Era perfeito, não
muito grande, mas grande o suficiente para que os criados não
se intrometessem na vida deles.
Principalmente no que acabavam de fazer na cama grande
do maior quarto do solar. Com Julia em cima dele e com os
cabelos caindo sobre seus ombros.
Ela sorriu para ele, obscenamente ofegante, e o envolveu
pelo pescoço para beijá-lo.
Isaac mal concebia a ideia de que aquela mulher linda era
sua esposa. Ela que era tão tímida na frente dos outros, mas
sempre lhe pedindo coisas quando estavam a sós. Sempre
curiosa, ávida em explorá-lo. Claro que ele faria tudo o que ela
quisesse, principalmente quando ela ficava por cima dele e o
dominava como uma amazona.
Realmente, ela tinha gosto para cavalgadas e o fazia muito
bem.
Ele riu consigo mesmo, deitando Julia nos travesseiros e a
beijando uma última vez. Ela era linda, adorável e encantadora.
Por vezes se pegava olhando distraído para os detalhes mais
simples dela. A forma como ela afagava os gatos, o jeito que
gostava de beber chá ou como ela escovava os cabelos sempre
do mesmo modo.
Primeiro os dividia no meio, escovava um lado e depois o
outro. No final, fazia uma trança que vinha do topo de sua
cabeça até o final do comprimento do longo cabelo. Certa noite
se ofereceu para trança-los, apenas para ter uma desculpa de
lhe fazer carinho. Quando a olhava, se recordava do fato de
que ela estivera apaixonada por ele muito antes de Isaac saber
de sua existência. Seu peito se aquecia com um sentimento
genuíno de felicidade, sentia-se quisto pela mulher que estava
dominando seus pensamentos. Queria ser bom o bastante para
que ela nunca se arrependesse do casamento ou de ter
passado tanto tempo sonhando com ele. Tinha de fazê-la feliz.
— Quer voltar para o mar? — perguntou, olhando para a
janela aberta do quarto que dava visão para o horizonte
cinzento do Atlântico — Parece que vai chover...
O rostinho dela foi tomado por lamento e ela se sentou
ereta para ver a janela. Os cabelos estavam emaranhados
numa trança e o lençol, preso debaixo dos braços.
Ele não resistiu a vontade de tocá-la e afastou um pouco
dos fios claros que cobriam seu rosto.
— Mas estava tão ensolarado pela manhã! — Julia se
cobriu com o robe pesado dele e foi até a janela — É muito
perigoso irmos na chuva? As ondas, no caso.
Ele a apreciou pequena dentro de seu robe grande demais.
— Ficaríamos doentes, não arriscaria sua saúde assim. O
vento frio do mar não faz bem para um corpo molhado.
Ainda mais porque ela poderia já estar grávida. Deveria
perguntar a ela? Não, ainda era muito cedo para saber. Era
melhor esperar uns dois meses. Era melhor esperar ela contar.
Julia suspirou triste e puxou uma das cadeiras acolchoadas
para perto da janela.
— Ainda continua lindo de se olhar... Como é possível haver
um mundo além do mar? Parece que é infinito. Não me
conformo que o mundo seja tão grande.
Isaac vestiu suas calças de algodão e se uniu a esposa em
outra cadeira.
— O mais longe que fui foi a França — comentou, pensativo
— Exporto tecidos para as Américas e a Europa, mas nem sei
como é viver lá. Seu irmão já foi até mesmo para a África.
— Ele não gosta muito de pensar na guerra... — lamentou
Julia — Ele tem medo de alguns barulhos altos até hoje, foi por
isso que ele foi afastado. M-Mas não diga a ele que lhe contei
isso. Ele tem vergonha.
Isaac a tranquilizou com um aceno de cabeça. Não sabia
que David havia sido afastado da marinha por questões de
saúde, pensava apenas que havia ganhado o direito por conta
de seu mérito. Mas, pensando bem, David ainda era jovem para
ser afastado de repente.
— Seu irmão guardou o meu segredo, eu guardarei o dele.
Uma ruguinha apareceu na testa dela.
— Que segredo, Isaac?
Ele riu do tom irritadiço dela.
— Que eu nunca tinha tido uma mulher comigo.
A ruga sumiu tão logo havia chegado.
— Ah, bom...
Isaac gargalhou e puxou Julia para ficar em seu colo, onde
ela se acomodou tentando esconder um sorriso por trás de uma
cara emburrada.
— Pensou que fosse o que? — ele a beijou em seu
pescoço e ela se contorceu sentindo cócegas.
Ela deu de ombros, mas riu quando ele a beijou outra vez.
— Que havia tirado a vida de um homem, não sei.
— Só se ele tivesse tocado em você. Aí sim, eu teria partido
para a violência.
Julia o repreendeu com um empurrãozinho e o beijou em
seus lábios com ardor. Ele rapidamente a ergueu em seus
braços e a colocou na cama, desfazendo o laço do robe pesado
e tendo a privilegiada visão de seu corpo nu outra vez. A
facilidade com a qual Julia o incendiava era incrível, só lhe
servia como prova de que não poderia mais viver com ela.
Nunca havia sentido tanto desejo por uma mulher, uma
vontade constante de fazer amor com ela pelo simples prazer
da intimidade por si só. De tê-la perto, da vulnerabilidade que o
sentimento entre os dois trazia. A mais pura expressão de afeto
que um abraço nú e natural lhe significava.
— Só você pode me tocar, Isaac — as mãos delicadas dela
o puxaram pela calça de algodão — Tire.
Um sorriso brotou em seus lábios ao lembrar que Julia era
dele. Aquela criatura angelical e perfeita era dele. Com sua pele
leitosa, cabelos platinados e porções deliciosamente macias e
rosadas.
Ele a obedeceu, despindo-se outra vez e voltando para os
braços de Julia.
Diante de sua posição privilegiada, Isaac a puxou pela
cintura, sentindo o sangue pulsar quando ela gemeu ao ter a
pele apertada por ele. Julia gostava quando ele era mais firme e
ele gostava de fazer suas vontades, sem contar que ver seu
corpo pintado com as marcas de seus beijos o excitava.
A visão dela nua, corada e com as pernas ao redor de sua
cintura era o suficiente para que ele ficasse rijo outra vez. Com
uma das mãos ele continuou a segurando em sua cintura,
enquanto usava a outra para se posicionar por entre os lábios
rosados dela. Penetrou-a lentamente, deliciando-se ao senti-la
se expandir para ele antes de apertá-lo.
Se ela fazia aquilo conscientemente ou não, ele não sabia.
Mas quando ela o apertava, ele quase sedia ao prazer primitivo
de possuí-la vigorosamente. Tinha de ir com calma, por mais
que sua esposa adorasse ser possuída daquela forma, ele
gostava de torturá-la com lentidão até vê-la desmanchada em
necessidade.
Julia fechou os olhos, extasiada, as costas arqueando
levemente a cada estocada que ia até o fundo. Devagar,
tomando-a até estarem completamente unidos.
— Olhe para mim — disse ele, apertando a mão que a
segurava pela cintura como um aviso.
A esposa abriu seus olhos preguiçosamente, mas os fechou
outra vez quando ele se retirou quase que por completo e voltou
com mais firmeza. Ela abriu um sorriso consigo mesma, estava o
provocando em não obedecê-lo porque queria que ele fosse mais
firme que aquilo.
Isaac gostava daquele lado dela, tão desavergonhado e
caloroso. Uma de suas mãos subiu pelo colo dela, envolvendo seu
pescoço em um aperto leve que a fez gemer baixinho e sorridente.
Seus dedos deslizaram mais para cima, envolvendo o rosto dela em
uma carícia que culminou em um beijo profundo e demorado.
Ele a possuiu outra vez, um gemido suplicante escapando
dos lábios entreabertos de Julia quando o sentiu ir fundo como ela
gostava.
Quando seus olhos azuis miraram nos seus, ele a segurou
com as duas mãos, deslizando-as pelas nádegas macias dela,
apertando a pele clara e erguendo o corpo dela do colchão. Julia
manteve o olhar fixo no dele, um rubor lascivo em seu rosto e em
sua pele iluminada pela luz que vinha das janelas grandes.
Suas investidas se tornaram mais rápidas e firmes, a
urgência do próprio clímax se apossando de Isaac, que queria
prolongar ao máximo para que Julia sentisse o próprio alívio outra
vez. Ela estava perto também, seu interior se contraíra ao redor dele
com mais força, seus gemidos se tornavam urgentes e
necessitados. As mãos dela envolveram seus pulsos ainda firmes
na cintura da esposa, o toque firme dela era uma ordem de que ele
não deveria parar.
Ela chamou pelo seu nome em uma última súplica antes de
se desmanchar no próprio prazer, lânguida debaixo do corpo de
Isaac que tomou seus lábios em um beijo sedento. Julia ainda
tremia abaixo dele, a sensibilidade de seu sexo reagindo as
investidas dele até Isaac se derramar quente dentro dela outra vez.
Os dois continuaram em uma dança lenta, o quadril dela se movia
contra o seu corpo preguiçosamente, enquanto ele a penetrava
apenas com uma pressão leve. Aproveitando dos últimos momentos
em que estavam fisicamente conectados.
Para então parar, seus lábios traçando um caminho
preguiçoso pelo rosto dela e chegando até o pescoço. Tentou tirar
seu peso de cima dela, mas Julia carinhosamente o prendeu em um
abraço. Ela deslizou as mãos por suas costas, pedindo que ele
ficasse ali com ela em um aperto. Ele ficou, tomando cuidado para
não esmagá-la, enquanto os lábios de Julia o beijavam em seu rosto
e orelha e suas mãos sentiam a pele de suas costas.
A esposa parecia querer marcar seu território nele e Isaac
gostou daquilo, acabando por mover seu quadril outra vez contra ela
apenas para ouvir um suspiro feminino em seu ouvido.
Mas ele realmente não queria esmagá-la, conseguindo se
deitar ao lado de Julia antes de puxá-la para perto e tê-la enroscada
em seu corpo como uma gatinha.
Assim ela ficou até ele perceber que sua esposa havia caído
no sono. Isaac aproveitou do sol nublado que entrava pelas janelas
e admirou o rosto sereno de Julia, dormindo com um sorriso sutil e
um rubor adorável nas faces.
Ela era perfeita.

***

Choveu o dia inteiro e a visão do mar sumiu da janela


diante de tanta chuva. Na manhã seguinte o céu resplandecia
alegre. Infelizmente, o marido estava dormindo feito uma pedra.
Naquela altura de seu longo casamento de uma semana ela
já havia percebido que Isaac dormia muito. Dormia até a hora
do almoço se ela não o acordasse, e era bem difícil de acordá-
lo. Ela preferia usar palavras doces e carícias para fazê-lo, mas
era tudo em vão. O marquês só abria os olhos quando ela o
sacudia com certa violência. Certo dia perguntara ao valete do
marido se era assim mesmo e o homem respondera que Lorde
Winsford sempre tinha de acordar cedo para trabalhar. Ela não
queria incomodá-lo quando ele tinha a opção de não acordar
com as galinhas, então convocou Natalie e a empregada Mary
para irem até a praia com ela. Não se deu ao trabalho de por
roupas de banho, já que não planejava fazer nada mais além do
que molhar os pés. Jamais se aventuraria no mar sem o marido
para segurá-la.
Mary faltou chorar de tanta alegria quando foi convocada
para o passeio. Assim como a patroa, nunca vira o mar. E ir
acompanhada da marquesa era uma honra.
— Milady, eu poderia molhar os pés? — perguntou a
empregada, ansiosa.
— Claro, Mary, só fique perto — Julia disse com gentileza
— Eu irei com vocês. Mas não vamos mais do que a altura dos
pés.
— Ah, seria uma benção ser salva pelo Sr. Miles... —
suspirou Natalie, logo tomando ciência de que a patroa estava
ali com elas — Q-Quero dizer... Hm...
Julia caiu na risada. Sua camareira estava apaixonada pelo
valete do marido?
— Feio ele não é — disse Mary, tirando suas botinhas com
muito cuidado — Se me permite dizer, milady!
— Ele é lindo! — Natalie resfolegou, exausta — Mas mal
me dá bom dia... Sempre sai correndo. Será que tem
vergonha?
Julia gargalhou outra vez. Ela não se importava que criados
de uma mesma casa se apaixonassem, desde que não
fizessem besteiras. Era melhor do que criados de casas
diferentes, onde segredos de família poderiam ser
compartilhados.
— Presumo que o Sr. Miles seja solteiro — ela disse,
colocando suas sapatilhas e meias junto das outras.
— Nunca vi o Sr. Miles apaixonado — disse Mary, pensativa
— Ele é tão sério! Mas a senhorita é tão bonita, Srta. Chapman.
Aposto que amoleceria o coração dele.
Se sua tia Lucy havia amolecido o misantropo Duque
Louco, o que impediria Natalie de conquistar o comum Sr.
Miles?
— Conte com o meu apoio — anunciou Julia e ambas
criadas comemoraram com palminhas.
As três foram juntas molhar os pés. Mary se divertindo
como nunca, sempre segurando nas mãos de Natalie. Não
ousaria tocar Julia e a marquesa detestava aquela divisão de
classes tão tola. Ela não era melhor do que ninguém.
Ela decidiu que seguraria em uma das mãos de Mary e a
empregada a olhou muito corada quando a marquesa pegou
em sua mão.
— Oh, lá vem milorde! — Mary disse, soltando a mão de
Julia e a escondendo por detrás das costas.
Julia avistou o marido vindo em direção a elas munido de
uma cesta grande. Estava sem casaca e lenço, apenas com um
colete verde e dourado aberto e uma camisa branca por baixo.
Seus cabelos loiros ficavam revoltados com o vento e aquilo o
deixou ainda mais bonito.
— Com sua licença, Lady Winsford — Natalie disse com
muito gosto, levando Mary consigo — Voltaremos para o solar.
Julia não queria que as duas tivessem de terminar sua
diversão, mas também não queria companhia enquanto estava
com o marido.
— Senhoritas — Isaac cumprimentou as duas, que
passaram por ele ao irem embora — Minha querida. Aceita um
piquenique na praia?
Julia sorriu contente.
— Dormi demais, desculpe-me — lamentou ele ao lhe dar
um carinhoso beijo.
— Tudo bem, pode descansar. Eu.. E-Exigi muito de você
ontem.
O marido riu em deleite, beijando-a outra vez antes de
passar os lábios sobre a orelha dela. Ela adorava quando ele a
beijava ali, era uma cosquinha deliciosa.
Olhou na direção do solar, Mary e Natalie já estavam fora
de vista.
Julia o envolveu com seus braços e se derramou em um
beijo caloroso e demorado. As mãos do marquês em sua
cintura pequena, descendo até envolverem seu traseiro macio
por cima das camadas de tecido.
— Podemos entrar no mar? — ela perguntou — Se eu tirar
o vestido... E se só você ver.
Isaac assentiu, pegando os sapatos e as meias dela com
uma mão e lhe dando a outra.
— Olhei o mapa da região, há uma parte com pedras o
suficiente para diminuir as ondas. O proprietário me disse que é
um bom lugar para nadar.
Ela deixou que ele a levasse pela praia, seguindo em
direção sul. O marido lhe falou sobre o que sabia de Liverpool
quando ela perguntou mais sobre o porto que avistaram.
Contou das caravelas portuguesas que paravam por ali de vez
em quando, de como havia estrangeiros de todos os tipos no
porto. Julia nunca havia visto um estrangeiro que não fosse
como ela, um europeu ou americano branco. Não de perto.
Londres era uma cidade cosmopolita, mas a alta-sociedade
não. Para ela, alguns galeses já pareciam muito diferentes.
Depois de dez minutos caminhando na marola do mar, os
dois estavam longe das vistas do solar. O mar ali era mais
calmo, as pedras impediam que as ondas mais violentas
chegassem na orla e tudo o que passava abaixo de seus pés
era uma marola preguiçosa.
A cesta foi posta no chão junto de uma toalha grande onde
os dois se sentaram confortavelmente. Julia buscou pelo o que
tinha na cesta e logo serviu a si mesma e o marido com uma
tacinha de vinho.
— Estou aqui em frente ao mar com uma esposa — disse
ele, de repente, com um ar pensativo — Semanas atrás
acreditaria nisso? Eu não acreditaria.
Julia riu descrente e bebeu do vinho.
— Semanas atrás eu estava fugindo de Londres para
esquecê-lo...
— Você acredita em Deus, Julia?
Ela fez que sim, olhando-o indagativa. Acreditava na
medida que qualquer cidadão inglês cristão acreditava. Não era
uma beata, nem uma indiferente.
— E se Deus a fez fugir exatamente para a casa de Lady
Hanes para que me encontrasse? Ou que eu a encontrasse.
Julia balançou a cabeça em um riso descrente. Acreditava
em Deus, mas não colocava Nele a responsabilidade das
escolhas que fazia.
Mas era um pensamento bonito o dele, ela gostou que seu
marido fosse tão sensível.
— Acho que é a camareira de minha tia a quem devemos
reverenciar — anunciou ela ao erguer sua tacinha — Um brinde
a Sargentona Helen.
— Sargentona? — ele gargalhou.
As taças se tocaram e os dois deram um gole risonho de
vinho.
— Ela quase me quebrou no meio enquanto me vestia!
— Ela não faria isso... Faria?
— Tia Gladys diz que ando curvada — resmungou ela,
enfiando um pedacinho de queijo na boca — E que um bom
espartilho levanta os seios... Bobagem, mal dá para vê-los na
maioria dos vestidos que eu uso.
— Do meu ponto de vista, dá para vê-los muito bem
dependendo do modelo da roupa. As vantagens de ser mais
alto que a esposa.
A esposa olhou para o próprio decote. O corpete do vestido
cobria um pouco abaixo de suas clavículas, mas, pensando
bem, um vestido de baile sempre deixava os seios mais
evidentes aos olhos dos cavalheiros mais altos. E qualquer um
era mais alto que ela.
— Acho seus seios maravilhosos como são.
Julia sentiu o rosto queimar e empurrou Isaac com o ombro,
deleitando-se com a risada dele. Ao mesmo tempo que era
muito ativa em momentos mais íntimos, ela se envergonhava
fácil quando esses eram expressados verbalmente. Quando
queria alguma coisa, pedia com algum gesto ou ela mesma
fazia, esperando que Isaac entendesse seus desejos.
— Também acho que tem uma ótima postura — continuou
ele — Você é elegante, Julia. Como uma marquesa deve ser,
você nasceu para ser a dona de um título.
— Não fique me elogiando tanto assim — ela murmurou por
trás da taça.
— E o que mais eu poderia fazer? — Isaac riu, descrente —
Quer entrar na água?
Julia assentiu vividamente, já se levantando e fazendo o
marido rir outra vez.
— Não solte de mim — avisou Isaac enquanto desabotoava
o colete.
Como se ela quisesse soltar dele em qualquer oportunidade
que tinha de segurar o marido.
Julia o ajudou com o colete e aceitou ajuda quando o
marido desabotoou seu vestido amarelo e a livrou da prisão do
espartilho. Viera preparada, o vestido era simples e não tinha
enchimento nas mangas. Ficara apenas com a chemise de
algodão.
Parte sua estava morrendo de vergonha de vestir apenas
aquilo fora de seu quarto. A outra parte estava eletrizada diante
da quebra de qualquer norma social.
E quando o marido estava apenas com as calças bege, sem
camisa e sem as botas, ela se sentiu uma selvagem. Deus, não
deveria desejar tanto o homem, deveria? Porque ela adorava o
corpo dele e adorava como ele adorava o dela.
Tomou as mãos dele nas suas, conforme entravam no mar.
A água congelante lhe dava choques pelo corpo e ela logo se
agarrou ao tronco quente do marido em busca de calor e
segurança. Foi pior quando a água atingiu a altura dos ombros,
o corpo inteiro congelado.
Para Isaac, o mar ainda estava batendo um pouco abaixo
de seu peito, mas ele não iria para mais fundo que aquilo.
— É tão frio — ela disse, uma ondinha atingiu em seu rosto
e ela cuspiu a água salgada — Nossa, como é salgado!
Isaac gargalhou e puxou a esposa para bem perto,
pegando-a e seus braços. Julia se segurou nele ao envolvê-lo
pela cintura com suas pernas.
— Tem de pular quando a onda vir — ele explicou,
mostrando assim que uma onda veio — Ou vai beber muita
água salgada.
Ela se segurou mais firme nele, olhando para a linha reta
que formava o horizonte.
— Ainda está com frio? — perguntou ele, indo um pouco
mais para o fundo agora que a tinha nos braços.
Julia fez que não. O marido era sempre quente, ela estava
muito aconchegada nele, agarrada feito um animalzinho.
Gostava da pele molhada dele junto a dela, tal como quando se
banhavam juntos. Havia uma sensualidade extremamente
íntima em sentir a pele nua e molhada de alguém.
Se não fosse a temperatura da água e as condições
naturais, ela adoraria fazer amor com ele ali mesmo.
Talvez pudessem. Ela o beijou em um ato delicado,
mordiscando o lábio inferior dele antes de tomar os lábios do
marido em um beijo ardente.
— Lorde Winsford!
Julia se agarrou ainda mais a ele quando ouviu a voz do Sr.
Miles, bem longe do mar.
Meu Deus, o que o homem pensaria deles dois?!
O valete sacudiu o braço, parecia em grande estresse.
— O que você quer, Miles?! — perguntou, irritado — Feche
os malditos olhos!
O homem se virou de costas imediatamente.
— Deve ser urgente, ele não viria aqui nos incomodar por
nada — disse Isaac para a esposa, depois gritou para o valete
— Só vire quando eu mandar!
Julia continuou agarrada nele quando saíram da água. O
vento do mar irlandês a atingiu cortante e ela encolheu de frio,
enfiando-se no vestido com a ajuda de Isaac.
O valete permanecia de costas, mas se movia sem parar,
ansioso.
— Pode se virar — anunciou Isaac ao que arrumava a
camisa por dentro da calça.
Ele o fez e, mesmo vestida, Julia ficou atrás de Isaac bem
escondidinha de vergonha.
— Meu lorde, a Srta. Chapman se machucou — explicou
Miles, preocupado.
— O que?! — Julia perguntou imediatamente.
— Ofereci-me para levar ela e Mary até o outro lado da
praia, Lady Winsford. A Srta. Chapman estava descalça e pisou
em um pedaço de mexilhão. Entrou no pé dela. Há s-s-sangue
por toda parte.
— Meu Deus! — Julia saiu disparada na direção de onde
vieram — Vamos, Isaac! Sr. Miles, onde ela está?
O valete e o marquês a seguiram rapidamente. Alguém
poderia buscar os pertences na praia depois.
— Eu a deixei no solar, não achamos certo tirar o pedaço
sem um médico.
Os três já estavam de volta ao gramado, o solar ficando
cada vez maior ao longe. Ela também estava descalça, mas
não corria risco ali no campo.
— Vá chamar o bendito médico, Miles! — resmungou Isaac,
pegando a esposa nos braços — Não quero que pise no que
não deve também.
O valete correu na direção dos estábulos e o marquês, na
direção de Natalie e seu pé perfurado.

***

— Desculpe-me! — Natalie chorou quando Julia a


encontrou com o pé sangrento no andar da criadagem,
convalescente em um quartinho com duas camas de solteiro e
uma cômoda — Madame, eu não tive a intenção!
Julia puxou uma cadeira e olhou bem para o ferimento.
Metade de uma das conchas de um mexilhão estava enfiada no
arco da sola, uma boa parte dela.
A preocupação de Julia era que pedacinhos ficassem
dentro do ferimento, dada a delicadeza de uma concha afiada.
E que aqueles pedacinhos inflamassem e... Não queria perder
Natalie, além de camareira, ela era sua amiga.
Isaac se aproximou das duas, olhando para o pézinho de
Natalie com muito respeito. Mary havia sido tirada do quartinho
e Sr. Miles ainda estava em busca de um médico.
— Melhor mesmo não tirar — observou o marquês — Acha
que foi muito fundo, Srta. Chapman?
— A-Acho que sim, meu lorde— ela chorou outra vez —
Está doendo tanto... E-E se tiver de cortar fora?
Julia secou as lágrimas da camareira com seus dedos.
— Vai ficar tudo bem, minha querida.
— Tenho certeza que a senhorita manterá os dois pés —
assegurou Isaac.
— Pronto! — Miles entrou no quarto em um rompante — O
médico, Lorde Winsford!
Isaac apertou a mão do médico, que se titulou Dr. Bentley.
Era jovem, uns anos mais velho que o marquês, talvez trinta e
cinco. Tinha um rosto muito comum, o típico médico de uma
cidadezinha das extremidades de um condado.
Julia se pôs ao lado da criada e lhe segurou a mão quando
o médico foi examinar o pé.
— C-Com licença, preciso sair — Miles anunciou,
desconfortável.
O valete saiu na mesma velocidade em que chegou,
batendo a porta vigorosamente.
— Miles desmaia ao ver sangue — explicou Isaac —
Gostaria que eu segurasse sua outra mão, Srta. Chapman? Já
me machuquei assim quando garoto e dói bastante para retirar.
A criada arregalou os olhos em horror e olhou para a patroa
em busca de permissão.
— Vai doer para tirar, o marquês tem razão — disse o
médico, pegando uma pinça e uma garrafa de conhaque de sua
valise — Foi bem fundo, Srta. Chapman. É melhor ficar bem
quieta para que a concha não se quebre dentro de seu pé.
Natalie assentiu para o marquês, que se pôs ao seu lado e
segurou sua mão. O médico olhou para Natalie em um último
aviso antes de começar a retirar a lasca de concha do pé dela.
Ela gritou, um grito horrível que Julia só ouvia quando a
mãe paria mais um irmãozinho para ela. Aquilo lhe causou um
frio na espinha e ela imediatamente procurou uma forma de
apaziguar os gritos da criada. Julia enfiou um lencinho na boca
de Natalie, que o mordeu. Quando o médico limpou o corte
fundo com uma solução incolor, ela gritou de novo e gargalhou.
A dor devia ser tanta que ela teve um ataque de risos e não
parava de rir, embora os olhos estivessem chorando.
Um minuto depois o médico estava colocando um
cataplasma no pé de Natalie e o enfaixando, dizendo que não
havia necessidade de sutura. Uma agulha seria o fim da pobre
criada, não sem um pouco de clorofórmio.
— Suponho que não sejam daqui — disse o Dr. Bentley ao
terminar — Espero que não tenham vindo de muito longe.
— Viemos de Chester — respondeu Isaac, olhando
preocupado para Natalie — Ela está bem?
— Se não cuidar vai infeccionar. Se infeccionar... Bem, o
senhor já sabe. É bom que retornem para a residência do
senhor para que a moça sare bem, com um médico a
disposição. Ela não pode pisar até sarar.
Julia ouvia a conversa, depois olhou para a criada que
estava muito triste e com os olhos ainda vermelhos. Não
colocaria Natalie em risco, se aquilo significava terminar sua
visita ao litoral, tudo bem.
Haveria novas chances dela ir ao mar no futuro.
— Madame, perdoe-me por estragar sua viagem — ela
choramingou — Não fique brava.
— Nunca fiquei brava com você e não ficarei agora.
Natalie continuou chorando em silêncio e aceitou uma
colherada do laudano que o médico deixou ao lado da mesa.
Julia limpou o cantinho dos lábios da criada e lhe deu um
caridoso beijo em sua mão.
Isaac e Dr. Bentley haviam se retirado do quarto,
provavelmente para tratar dos honorários do médico.
— Sr. Miles me pegou nos braços, ele é tão forte —
suspirou a criada, dando uma fungada horrorosa — Pelo menos
isso posso tirar de bom, madame.
Julia riu com gosto.
— Ele mal suportou o sangue de seu pé. Será que
suportaria um parto?
— Eu não suportaria um parto, madame.
A marquesa gargalhou e afagou os cabelos da criada.
Natalie acabou rindo também. Depois fechou os olhos muito
cansada e dormiu.
Julia deixou a criada sozinha apenas para encontrar Isaac
terminando de conversar com o Dr. Bentley no vestíbulo.
— Parece que voltaremos para o interior — o marido a
abraçou com um longo suspiro, repousando seu queixo nos
cabelos úmidos de Julia — Estava gostando de dormir até
tarde.
E ela de tê-lo todinho para si.
CAPÍTULO 17

Isaac estava de volta à fábrica, às oito em ponto da manhã.


Julia ainda dormia quando ele saiu, mas deixara um bilhete para a
esposa.
Fazia mais de uma semana que ele não ia até a fábrica, que
tipo de coisa poderia ter acontecido em sua ausência? Isaac
estivera muito contente em sua primeira semana de casamento,
dormindo muito e fazendo amor com uma mulher por quem estava
perdidamente apaixonado. Mas quando ficava sozinho sua mente
logo ia para a fábrica, sobre as melhorias que podia fazer, o novo
maquinário que tinha de encomendar, o que os operários estavam
pensando dele tão ausente.
Finalmente estava de volta, embora chateado com a sua viagem
interrompida. A culpa não era da criada, tinha de se lembrar. Natalie
estava com o pé inchado, mas não infeccionado, não podia nem
trabalhar. Mary fora colocada no lugar da camareira, a empregada
mais destrambelhada da casa, a pedido de Julia que parecia nutrir
certo carinho maternal pela coisinha atrapalhada.
Torcia para que a esposa fosse uma mulher capaz de se manter
sozinha, ou terminaria careca.
Ele deu um longo suspiro, relaxando na cadeira até que a porta
se abriu de supetão.
— Meu caro marquês!
Isaac se arrumou na cadeira, o secretário vinha com um bolinho
de cartas.
— Chegaram as felicitações pelo matrimônio — Price colocou
as cartas lacradas na mesa.
Price só tinha permissão para abrir correspondências referentes
à fábrica.
— Lamento muito que sua viagem tenha sido interrompida... —
Price pigarreou — Por um mexilhão.
— Também lamento muito — ele passava as cartas, todos
conhecidos da aristocracia. Depois ele leria aquilo. Agora que era
casado era ainda mais obrigado a participar da temporada por todos
os três meses, querendo ele ou não ficar trabalhando.
O secretário foi até o decantador e serviu uma dose de uísque
para o patrão.
— Vejo que ainda não tomou sua dose matinal. Vou mandar
trazer o desjejum.
Isaac agradeceu com um aceno.
Price continuou parado onde estava.
— Diga, Price.
— Como anda a marquesa?
— Bem. Feliz, eu suponho. Gostou bastante de ver o mar.
O secretário apontou para a própria barriga. Isaac balançou a
cabeça.
— Ainda é muito cedo para saber.
O homem murchou.
— Mas já deve estar grávida — continuou Isaac.
Price ficou ereto outra vez, satisfeito.
— Então basta aguardar a confirmação da encantadora Lady
Winsford.
Isaac bebeu todo o uísque.
— Exatamente. O Sr. Yuan respondeu?
— Ainda não, meu lorde.
— Mas ele está em Londres, não deveria demorar tanto... —
resmungou — Algo aconteceu em minha ausência?
— Duas máquinas de aviamento quebraram, mas já foram
encomendadas as partes novas de Londres. Ninguém se machucou
dessa vez.
— Bom. Vamos até o galpão, deve estar pronto para quando ele
e o secretário chegarem.
Price abriu caminho para a porta dos fundos e seguiu o patrão
até o pátio de carregamento.
— O senhor não precisava chegar tão cedo — comentou o
secretário — Seria agradável para a marquesa que passasse as
manhãs com ela. O início do casamento é crucial.
Isaac o olhou por sobre o ombro, entrando na fábrica e
seguindo um longo corredor, as paredes eram de tijolo rubro, altas e
em frente a porta que dava para o prédio administrativo havia o logo
da empresa pintado contra a parede. Nessa mesma parede, haviam
janelões de vidro, dando a visão para os galpões com fileiras de
máquinas e mulheres a fazendo funcionar.
Algumas máquinas não funcionavam sozinhas. As mulheres
faziam o trabalho repetido e tedioso de manusear as manivelas,
colocar água nas engrenagens ou arrumar fios delicados demais
para qualquer coisa que não fossem mãos humanas e femininas. Os
fios do algodão viravam linhas, as linhas se enrolavam em bobinas e
as bobinas eram postas em caixotes. Isso porque estavam apenas
na área de aviamento. Havia outro maquinário responsável por tecer
os tecidos e os tonéis de tingimento fétidos. Do outro lado da fábrica
ficavam os galpões responsáveis pela lã.
— O que sabe sobre o matrimônio? — perguntou o marquês —
Até onde eu sei, é muito bem solteiro.
— Sei que uma mulher gosta de atenção. De acordar ao lado do
marido, se estiver apaixonada, é claro.
Isaac sabia daquilo. Também gostava de acordar ao lado de
Julia e de passar umas boas minutos com ela em seus braços. Mas
passara dias sem ver o que acontecia em sua fábrica. Não queria
outro motim, nem alguém infiltrado ali para descobrir seus planos de
expansão.
Queria ter certeza que estavam todos satisfeitos. Havia perdido
muitos operários, a maioria restante eram mulheres solteiras ou
viúvas. Estava prestes a iniciar um novo negócio, queria a confiança
dos funcionários.
Chegaram ao galpão vazio. O mesmo que pegara fogo no
outono passado. O maquinário de madeira fora perdido, sobrando
apenas as peças de ferro que tiveram de ser descartadas. As
paredes altas de alvenaria ficaram negras, mas foram esfregadas e
limpas. As vidraças que explodiram, foram trocadas e novas.
Ninguém se feriu, por sorte.
— Precisaremos de mais um — disse Isaac, pensativo — Um
para a tecelagem e outro para armazenar. O tingimento pode
ocorrer no mesmo setor que as demais fibras. Temos de conversar
com os fazendeiros, também.
Price pensou por uns segundos.
— Ainda acho que não será um negócio fácil, meu lorde.
— Não custa nada tentar. Eles fazem isso na França e na Itália.
— Custa milhares de libras, precisamente. E não estamos na
França, nem na Itália.
Isaac bufou.
— Tenho dinheiro de sobra, Price. E terei muito mais após essa
expansão.

***

Mary era uma péssima camareira. Seu cabelo estava um


desastre e quase fora queimado quando a garota tentou fazer os
cachos na frente após esquentar demais o modelador de cabelo.
Tinha dificuldade em comprar apliques de cachos e tranças por
conta da cor de seu cabelo e era preciso usar seu próprio cabelo
quando queria penteados de baile elaborados, por isso os mantinha
tão longos. Mas não ia para baile algum, ficaria em casa fora das
vistas de qualquer membro da alta sociedade. Antes que perdesse
os fios da frente, Julia terminou de pentear o próprio cabelo,
optando por não usar cachos nas laterais e prender tudo em uma
trança que formava uma coroa
Simples, funcional e independente. Não faria uma moldura
bonita quando ela colocasse um chapéu, mas pelo menos ainda lhe
restaria cabelo.
Dispensara Mary que estava a ponto de chorar, a pobrezinha
pediu desculpas mil vezes antes de quase desfalecer quando Julia
lhe deu um abraço de consolo.
— Você é uma ótima camareira, Mary — mentiu ela com doçura
— Só não toque em meu cabelo, está bem?
— S-Sim, milady!
Estava outra vez sozinha em seu quarto. Que também era o
quarto de Isaac. Que havia ido trabalhar enquanto ela ainda dormia.
Ele poderia tê-la acordado quando saíra, mas apenas deixara
um bilhete dizendo que estaria de volta para o jantar.
O homem precisava mesmo ficar o dia inteiro fora?
Julia estava acostumada com homens ausentes em sua vida.
Até os seis anos seu pai passava a maior parte do tempo na
Espanha ou em Portugal. E, quando ela tinha dez anos, o irmão se
alistou na marinha e o mesmo se repetiu. Exceto que era muito mais
difícil enviar cartas para um homem em alto mar.
Era diferente, é claro. Isaac estava logo ali, mas ela não gostava
da ideia de ter um marido ausente. Não poderia mudá-lo, mas nada
a impedia de ficar se lamentando com saudades dele.
Ela suspirou pesadamente, olhando para o pátio vasto de sua
janela, dando visão para os campos. Os dois cavalos da carruagem
caminhavam com o cavalariço. Julia se oferecera para cuidar deles,
mas o homem não permitiu nem com as tentativas mais rígidas de
que ela era a marquesa. Os dois animais eram muito ranzinzas e
poderiam machucá-la. O cavalo manso, Mallow, estava com Isaac.
Julia não tinha nenhum cavalo para cuidar e caçar os oito gatos
naquela casa imensa não estava na sua lista de afazeres. Sir Jonas,
por sorte, estava sempre a seguindo para lá e para cá.
Ela suspirou de novo. Alguém devia saber onde era o haras da
cidade. Ela poderia muito bem ir até lá e voltar com a própria égua.
Mas Natalie estava indisposta, a única que a seguiria em um
plano ousado de sair para comprar o próprio cavalo. Mary era puro
nervo, provavelmente teria uma síncope e atrapalharia tudo.
Julia desceu para a sala azul, a maior da casa e sua favorita.
Pelo caminho ela arrumou os arranjos de flores que mandara
colocar pela casa ao longo da semana. Novos tapetes enfeitavam o
chão e as cortinas e janelas de todos os cômodos deveriam ser
abertas todos os dias de modo a iluminar e arejar a casa. Um
artesão em Chester havia pego quase todos os quadros da casa
para trocar o verniz velho e escurecido por um novo. As paredes
estavam vazias, exceto por alguns quadros menos esquecidos que
ela encontrou nos cômodos trancados.
Ela trabalharia naqueles cômodos depois. A sala de música, a
sala de jogos, a ala infantil e todos os quartos que não eram dos
dois estavam cobertos por lençóis. Os que seriam acessados por
visitas, como a sala de chá, a sala de jantar vermelha e a pequena
sala de jantar verde estavam impecáveis.
Era divertido redecorar uma casa, catalogar o que estava bom e
o que deveria ser jogado fora e deixar tudo ao seu gosto. Ocupava
bem a mente, mas não o suficiente para fazê-la se sentir mais útil
que um bibelô de mesa.
Quando chegou à sala azul, encontrou Sir Jonas lambendo a
cabeça de uma gata branca, Vivi. Os dois passavam muito tempo
juntos.
Julia puxou a campainha ao lado da lareira e esperou o
mordomo. Em questão de segundos, o Sr. Moseby apareceu todo
empoado.
— Pois não, Lady Winsford?
— Poderia chamar o Sr. Miles para mim?
Dois minutos depois que o mordomo saiu, o valete apareceu.
Muito sério, bem diferente de quando estava diante do sangue da
pobre Natalie.
— O senhor sabe onde fica o haras da cidade?
Miles esboçou uma sutil confusão.
— Há três, minha lady. O melhor fica próximo a cidade, onde o
marquês compra seus cavalos. Os cavalos que puxam os veículos
da fábrica, também.
— Então é nesse que o senhor irá me levar. No melhor.
— C-Como, madame? — gaguejou Miles, tocando o lenço
impecável em seu pescoço.
Julia já caminhava para a janela, arrumando as cortinas. Alguns
jardineiros plantavam mudas por todo o jardim frontal, como ela
pedira antes de irem para o litoral.
— O senhor me levará ao haras para que eu compre uma égua.
— M-Mas... Mas Lorde Winsford está de acordo?
Ela bufou baixinho. Era uma mulher pacata, mas não submissa.
Não via sentido em ser proibida de ir e vir para locais inofensivos
por ser uma mulher. Não estava fazendo nada de hediondo.
Mas o marido não ficaria chateado. Isaac era tão bonzinho,
deixava ela fazer tudo, até redecorar a casa inteira. E ele mesmo lhe
prometera uma égua.
— Eu não preciso que Lorde Winsford esteja de acordo com os
passos que eu darei com as minhas pernas, Sr. Miles — ela se virou
para o valete com o sorriso mais doce que tinha — Vamos? Vou
pegar minhas coisas, vá mandar preparar a carruagem.
Miles assentiu, nervoso. O que ele poderia fazer? Todos
naquela casa adoravam a nova marquesa.
***

Mary acabou indo com eles, Natalie insistira que seria menos
pior caso o dono do haras a visse com uma criada além do valete.
Então Julia foi com sua pequena dupla de empregados. Mary e
Miles. Que bonitinho, os nomes até combinavam!
— Não digam a Lorde Winsford que vou comprar um cavalo.
Miles a olhou de rabo de olho, ajudando-a a subir na carruagem.
— A senhora disse que Lorde Winsford estava ciente de sua ida
ao haras, madame.
Julia lhe lançou um olhar feio. O valete engoliu em seco.
— Estou cometendo algum crime, Sr. Miles?
— C-Claro que não, madame.
— Eu adoro cavalos! — Mary disse, segurando firme em sua
bolsinha simples enquanto a seguia para dentro — Meu pai sempre
gostou de cavalos, milady.
Julia abriu um lindo sorriso para a empregada.
— Eu também os adoro, Mary — depois, olhou para o camareiro
— E Lorde Winsford me prometeu uma égua como presente de
casamento.
— Que romântico! — a empregada levou a mão ao peito.
A marquesa assentiu sorridente e continuou assim até
atravessarem Chester e retornarem aos arredores da cidade. Ela
avistou o haras se aproximando, podia ver cavalos soltos em um
grande cercado, além de quatro longos estábulos e a construção
principal. Uma casa georgiana. Era uma linda fazenda que fora
convertida em um estabelecimento feito para a reprodução dos
melhores cavalos possíveis.
Miles parou em frente ao casarão de alvenaria, onde alguns
cavalariços esperavam para ver quem eram. Ele ajudou Julia a
descer e depois, Mary - completamente imune aos encantos do
valete. Antes de saírem, Natalie havia praguejado a tudo e a todos
por não poder sentar bem do ladinho de Miles ao irem ao haras. O
que, em prática, não acontecia nem com ela ali. Miles fora do lado
de fora junto do cocheiro.
— Gostaria que entrassem comigo, Sr. Miles. E Mary — a
garota estava olhando para um enorme cavalo negro ao longe —
Mary.
Ela tremeu de susto e voltou correndo para o lado da marquesa.
A porta do casarão se abriu e um homem baixo, rotundo e
bigodudo os cumprimentou. Estava vestido de forma espalhafatosa,
o tipo de gente que havia enriquecido e queria se misturar com a
alta sociedade, mas não sabia como.
— Bom dia, minha senhora — ele olhou para Julia e depois para
Miles com muita curiosidade — Pois não? Em que posso ajudá-los?
Julia se empertigou, tentando ficar mais imponente do que sua
costumeira postura pacata e apagada.
— Sou Lady Winsford.
As sobrancelhas grossas do homem se ergueram.
— Lorde Winsford se casou? Que ótima notícia — ele fez uma
mesura para ela — Sou Lyndon. Entre, por favor.
Julia o seguiu em direção a um pequeno vestíbulo antes de ser
levada até um escritório grande cujas janelas davam para onde os
cavalos estavam livres.
Ela se sentou em frente a mesa grande do homem, Miles e
Mary vieram junto e ficaram parados perto da porta. Decoro ou
sobrevivência, Julia não gostava de ficar sozinha com homens
desconhecidos em cômodos pequenos.
— O marquês está a caminho? — perguntou o homem,
puxando uma campainha escondida entre duas estantes
abarrotadas de livros caixa — Lorde Winsford é um cliente fiel,
temos muito apreço por ele. Mas não costumamos receber mulheres
por aqui, lamento não ter acomodações adequadas enquanto o
espera chegar.
Julia se remexeu na cadeira.
— Vim por mim mesma, Sr. Lyndon.
Uma criada entrou com uma bandeja de chá, tão quieta que
Julia mal a viu sair.
— Chá? — perguntou o proprietário.
Ela fez que não. Sua barriga estava doendo por estar ali,
sozinha.
— Gostaria de ver suas éguas, Sr. Lyndon. Gostaria de comprar
uma para mim, o senhor deve saber que meu marido tem poucos
cavalos pessoais, já que é com o senhor que ele os compra.
O homem pareceu um misto de surpresa e confusão. Olhou
para Miles parada próximo a porta, como se o criado fosse de
alguma ajuda.
— Gostaria de aguardar Lorde Winsford aqui ou prefere olhar os
animais, por enquanto? Posso levá-los até onde eles caminham.
Julia piscou lentamente. Já esperava por aquilo
— Eu mesma vim comprar, Sr. Lyndon. Agora, se me permite,
eu adoraria ver as éguas.
Julia se levantou de imediato. O dono do haras também o fez.
Vendo que Julia sairia sozinha, ele teve a decência de acompanhá-
la.
— Lady Winsford, creio que os estábulos não sejam apropriados
para uma dama como a senhora.
Ela não respondeu, continuou andando.
O Sr. Lyndon a levou para fora outra vez, Mary e Miles a
seguiram imediatamente a uma distância respeitosa.
O valete parecia querer arremessar Mary longe, ela não parava
de tagarelar para ele algo que Julia não conseguia ouvir.
— Não me ofendo com estábulos, Sr. Lyndon. Agradeceria se
me mostrasse suas éguas. Eu insisto, por favor.
Sr. Lyndon aquiesceu, olhando alarmado para os cavalariços de
bobeira na soleira do casarão. Os funcionários se apressaram na
direção dos estábulos.
— Temos éguas muito mansas, a senhora irá gostar —
assegurou o Sr. Lyndon — Nossos cavalos são das melhores raças.
Puros, eu posso garantir.
Ela apenas meneou com a cabeça. Logo estavam nos
estábulos, onde o homem se desculpou pelo cheiro, dizendo que
damas não costumavam ir até lá e que era comum os maridos
escolherem as éguas.
Julia apenas lhe deu um sorrisinho educado. Não se importava
com cheiro de animais e não tinha paciência para homens falando
baboseiras.
Então Julia viu a égua mais bela de todas. Uma puro-sangue
inglês, ela reconheceu. Era elegante e esguia, perfeita para
corridas. Seu pelo era tão negro que reluzia, a crina escura caia por
cima do chanfro branco e suas patas dianteiras tinham manchas
brancas que a faziam parecer usar meias. Era linda, a égua mais
refinada que Julia já vira.
— Essa é perfeita, Sr. Lyndon — disse Julia, observando-a
dentro de uma das baias — O que me diz dela?
— Ah! — o homem ficou todo animado, esquecendo-se que
Julia era uma presença incômoda em seu estabelecimento — Uma
puro-sangue inglês, nasceu aqui mesmo. Nós cruzamos nossos
próprios cavalos, não vai achar melhor pedigree. É uma égua
obediente, lhe servirá muito bem para um passeio.
Julia queria correr e saltar, mas o Sr. Lyndon não precisava
saber daquilo. O sujeito tinha cara de quem falava por aí que
mulheres cavalgando com as pernas abertas se tornavam inférteis.
— Pode se aproximar, Lady Winsford. Ela é mansa.
Ela o fez, estendeu a mão em um punho levemente fechado
para que o animal farejasse. Quando percebeu que estava à
vontade com Julia, se permitiu afagar o longo chanfro branco dela. A
égua a empurrou levemente com o nariz, o que Julia reconheceu
com uma saudação.
— Creio que ela tenha gostado da senhora — observou Lyndon.
Julia sorriu de orelha a orelha e chamou Mary com um aceno.
— Venha, Mary, pode tocá-la.
Os olhos de Lyndon ficaram enormes quando ele viu a criada
encostar em seu cavalo de pedigree. Mas Julia pouco se importava,
gostava muito de Mary e, pelo sorriso da empregada, ela estava
radiante.
— Lady Winsford — ele deu uma tosse leve — Vejo que gostou
da égua. Com a devida permissão do marquês, pode ser sua.
Julia e Mary pararam de afagar a puro-sangue.
— Permissão? — perguntou ela.
— Permita-me explicar, Lady Winsford, caso não compreenda.
Ele usava o mesmo tom que muitos homens usavam com
outras mulheres. O tom de quem fala com uma criança
desentendida sobre todos os aspectos da vida.
— Uma dama precisa da permissão do marido ou outro homem
da família para comprar um cavalo. E de sua companhia na hora da
compra, caso a dama se dê ao trabalho de ir ao haras como a
senhora.
— Mas não para comprar vestidos e chapéus, suponho.
O vendedor pigarreou, moveu sua cabeça e respondeu, um
tanto sério:
— Cavalos são diferentes de artigos de moda, Lady Winsford.
Principalmente cavalos de raça pura, feitos para servir a um
cavalheiro ou uma dama de respeito. São propriedades, tal como
uma residência. Essas estão sempre no nome dos maridos, a não
ser que estes tenham falecido.
Julia sobreviveu à vontade de revirar os olhos e bufar. Sabia
muito bem daquilo, sabia que nada pertencia a ela naquela vida.
Nem mesmo os filhos que concebesse e alimentasse com o próprio
leite. Odiava tudo aquilo, a ser reduzida a esposa ou filha de
alguém. Mas não imaginou que se aplicava a animais.
— Bem, lamento não ter a tal permissão. Mas tenho certeza que
não será preciso, o dinheiro não é do meu marido. É meu.
O Sr. Lyndon balançou a cabeça.
— Ainda sim, a senhora é casada. Essas modernidades ainda
não chegaram a nossa boa e velha Chester.
E nunca chegariam, ela presumiu.
— Eu quero essa égua, vou lhe pagar e fazer uma compra
como qualquer um — Julia disse, tentando soar firme — E eu lhe
pagarei um bom dinheiro por ela. Como qualquer cavalheiro que
vem aqui. Quanto ela custa?
O homem balbuciou alguma coisa, notavelmente constrangido
por discutir valores com uma mulher.
— Cem libras, Lady Winsford.
— Eu pago duzentas.
Miles se engasgou atrás dela, Mary rapidamente encheu as
costas do homem de batidas.
— O senhor está bem, Sr. Miles? — Julia perguntou com os
olhos firmes no homem.
O valete assentiu rapidamente, empurrando Mary para o lado
com uma cotovelada digna de um irmão mais velho.
Os cavalariços começaram a prestar atenção na negociação
que acontecia ali.
Duzentas libras era uma fortuna. Nunca vira um cavalo naquele
valor. Mas Julia pagaria o que fosse por conta de seu orgulho.
Queria que o Sr. Lyndon lhe vendesse a égua, para uma mulher que
não precisava de um marido.
Parte sua se envergonhava de pagar tamanha fortuna em um
cavalo, principalmente na frente dos criados que deveriam ganhar
uma migalha daquele valor. Bem, Miles devia ganhar bem, mas
Mary era uma simples empregada.
— Lady Winsford — o vendedor sorriu, pigarreou e sorriu de
novo — Ficarei feliz de deixar a égua esperando para que alguém
retorne com a permissão de seu marido. Não posso fazer negócio
sem os documentos necessários, somos um negócio de respeito.
Meu Deus, era só um cavalo! E ela estava oferecendo uma
quantidade generosa de dinheiro.
Ela respirou fundo, deu uma última olhada para a égua e se
virou para seus criados. Ela era linda, gentil e gostara de Julia.
Mas não iria ceder aquele bigodudo. Ele cederia a ela. E ela
usaria dos artifícios que menos gostava na aristocracia: sua
posição.
— Tenho certeza de que outro haras ficará feliz em fornecer a
marquesa com uma égua de muito mais pedigree. Vamos.
Miles e Mary assentiram de prontidão e os três começaram a se
distanciar dos estábulos.
— U-Um momento, Lady Winsford! — Sr. Lyndon exclamou
agudo demais, tossiu e deu cinco passinhos apressados na direção
dela — Podemos chegar a um acordo. Só precisa entregar a
permissão, a égua ficará à sua espera.
Julia continuou andando, braço dado a Mary.
— Tenho pressa, Sr. Lyndon. Gostaria de levá-la hoje mesmo.
Meu marido é muito ocupado, não posso incomodá-lo com minhas
modernidades.
— O haras próximo a fronteira de Manchester tem éguas árabes
muito elegantes, madame — disse Miles, ajudando as duas moças a
subirem no coche — O falecido Lorde Winsford já comprou cavalos
por lá. Lorde Houghton acabou de comprar um cavalo com ótimo
pedigree, ouvi dizer. Corre como nenhum outro.
Julia teria sorrido para o homem se aquilo não fosse estragar
sua postura de marquesa soberba.
— Mas Manchester fica muito longe — o vendedor balançou a
cabeça, olhando suplicante para Julia sentada no alto.
— Não tem problema. Devo lembrar as minhas amigas aqui em
Chester de que seus maridos devem comprar seus cavalos em
outro lugar. Afinal, quem não acreditaria na marquesa? Meu marido
tem uma ótima reputação e não quero que ele a manche voltando a
comprar por aqui.
Miles puxou as rédeas e a carruagem começou a andar. O
homem bigodudo veio atrás.
— L-Lady Winsford!
Ela olhou pela janela aberta, fungou e desviou o olhar fazendo a
melhor voz de choro que conseguiu:
— Vou dizer a Lorde Winsford como fui destratada por alguém
que ele confiava tanto.
Os cavalariços estavam rindo do patrão desesperado.
— Espere, minha lady!
Miles fez os cavalos pararem. Sr. Lyndon levou a mão ao peito,
a ponto de pôr os bofes para fora.
Julia se recuperou do choro seco em um segundo.
— Diga, meu senhor.
— Fechamos negócio, meus rapazes levam sua égua até a
residência do marquês-
— E da marquesa.
O homem assentiu veemente. Julia viu uma veia pulsar na testa
dele, por dentro ele devia estar uivando de ódio. Já ela estava doida
para rir.
— E o secretário nos entrega a permissão até amanhã.
— Muito bem, então.
Ela teria que ter a tal permissão, pelo visto. Mas havia
conseguido comprar a bendita égua com o próprio dinheiro. Tinha
certeza de que Isaac não ficaria chateado e daria a tal permissão,
seja lá como fosse isso. Um papel escrito "deixo que minha esposa
em seus completos vinte e dois anos e alguns meses compre a
porcaria de um cavalo com o próprio dinheiro"?.
Julia bufou sozinha e pediu para descer, seguindo o Sr. Lyndon
para fecharem negócio corretamente. A conta iria para o Sr. Price,
que havia se oferecido para administrar as finanças de Julia quando
Isaac lhe devolvera o dote. Ela aceitou, gostou do secretário logo de
início.
Ela sorriu para o vendedor, um sorriso muito doce, mas muito
falso.
— Lorde Winsford ouvirá apenas coisas boas do senhor.
O homem não parecia nada agradecido.

***

Isaac subiu os degraus da escada da entrada de dois em dois,


olhando para o relógio de bolso em sua mão. Esperava que Julia
não estivesse chateada por ele ter se atrasado para o jantar, o dia
fora longo e ele mal tivera tempo para se organizar depois de uma
semana longe.
Um homem decente teria trocado de roupa para o jantar, mas
ele era um homem atrasado que temia magoar a esposa no início
do casamento. Price tinha razão, os primeiros dias eram cruciais.
Mas o que encontrou na sala de jantar foi uma Julia abaixada no
chão e fazendo carinho em Vivi, cuja barriga branca estava à
mostra. Os dois lacaios encostados ao lado do aparador olharam
horrorizados para Isaac assim que ele entrou na sala, depois
olharam para a marquesa sentada no chão.
— Você já deve estar prenha — ela comentou para Vivi, dando
batidinhas na barriga dela — Sei bem que gostou do Sir Jonas.
— Julia, querida.
Ela olhou por sobre o ombro imediatamente e se levantou tão
rápido que a gata correu assustada para debaixo da mesa.
— Isaac!
Julia estava radiante, graças a Deus.
Ela foi de encontro com ele, esticando-se na ponta dos pés para
lhe dar um beijo no rosto. Quando foi na direção da mesa, um dos
lacaios de prontidão fez menção de ajudá-la. Isaac o impediu com
um aceno e ele mesmo puxou a cadeira para ela ao lado da
cabeceira.
— Podem se retirar — disse ele ao se sentar — Chamarei
quando formos comer. A não ser que tenha esperado por muito
tempo, querida.
— Desci agora pouco — ela sorria de orelha a orelha.
Alguma coisa havia acontecido para ela estar tão feliz. Será que
estava grávida? Sua mente não conseguia pensar em muitos outros
motivos para ela ficar feliz. Talvez tenha visto filhotinhos de gato por
aí.
Nossa, deveria aprender mais sobre o que fazia as mulheres
felizes.
— Preciso lhe contar uma coisa, Isaac.
Sim, ela estava grávida.
Ele se remexeu, ansioso, sentindo uma comichão na barriga.
Nunca foi desesperado por um herdeiro como Price, mas a visão de
filhos com Julia o vinha enfeitiçando há dias. Marceline e Caroline.
Um dia ele iria resolver o nome dos meninos, é claro, mas no
momento estava focado nas duas menininhas.
— Diga — Isaac lhe tocou a mão por cima da mesa.
— Promete não ficar chateado?
Bem, não era um bebê.
— Não posso responder sem saber o que é.
— Tem razão... Quer beber um pouco? — ela se esticou e
pegou o sino em cima da mesa, sacudindo-o.
O mordomo foi quem serviu a entrada. E o vinho de Julia, que
pediu que colocasse mais até encher metade da taça.
— Julia — Isaac pigarreou assim que o mordomo saiu — Sabe
que pode fazer o que quiser, mas talvez... Talvez esteja grávida e
não deveria beber nada alcoólico. Não tanto assim e não sem um
pouco de água.
Os dedos dela estavam prestes a segurar a taça, mas pararam.
Ela corou e assentiu, devolvendo a taça para a mesa
— T-Tem razão. Mas ainda não sei dizer se estou grávida. Em
duas semanas saberemos.
— Não estou com pressa — ele a beijou em sua mão outra vez.
Queria beijá-la nos lábios. Passara o dia inteiro longe dela,
dividido entre a vontade de ir para casar, fazer amor e passear no
bosque com a esposa e checar cada canto da fábrica.
— Conte-me a novidade, Julia. Agora fiquei curioso.
— Ah... Bem... Hoje eu comprei uma coisa.
Isaac comeu uma colherada da entrada, sopa de tomate.
— E que coisa foi essa?
Julia deu de ombros timidamente, remexendo no creme
vermelho com a colher.
— Uma égua. E... Eu tive de pagar duzentas libras.
Isaac se engasgou com a comida, tossindo energicamente.
— Oh, meu Deus! — Julia se levantou para acudir o marido,
dando batidinhas nas costas dele — Não fique bravo!
Isaac respirou fundo, a esposa retornando a seu assento com ar
de preocupação.
— Duzentas libras? Julia... — ele fechou os olhos, pensando em
todas as cédulas voando para longe. Era rico, mas não estúpido —
Julia.
— Eu sei, eu sei! — ela se apressou a explicar — Mas ele não
queria me vender e eu joguei um valor alto apostando que a
ganância seria maior que aquele bigode imenso dele.
Bigode?
Céus, ela fora no homem que fornecia cavalos para a fábrica.
Isaac gostava dele, era um sujeito engraçado e muito pomposo.
— Ele insistiu que não me venderia sem sua permissão. Mesmo
eu pagando com meu dinheiro e já tendo vinte e dois anos. Está na
lei, você sabe. Eu logo farei vinte e três, não sou uma criança tola.
A lei só funcionava com mulheres solteiras acima de vinte e um
sem nenhum parente próximo do sexo masculino vivo - como um pai
ou irmão. Quando casadas, tudo era do marido. Mas falar aquilo
para a esposa não parecia pertinente, já havia percebido que Julia
não gostava daquele tipo de discurso.
Isaac ainda estava processando o fato dela ter dado aquilo tudo
em um cavalo. Um bom cavalo para passeio era oitenta libras, um
pouco mais se fosse uma raça extraordinária. E éguas eram mais
baratas que garanhões ou capões.
— Então eu disse que falaria para você que ele me destratou e
que você nunca mais compraria cavalo algum com ele.
— Ele a destratou? — perguntou imediatamente, sério. Não
gostava mais do Sr. Lyndon, sujeito ridículo.
— Não, eu só estava pondo medo. Também disse que contaria
para todas minhas amigas, cujos maridos não comprariam mais com
ele. E olha que eu nem tenho amigas por aqui. No fim, ele me
vendeu a égua. Mas ainda preciso da sua permissão em papel até
amanhã. Um disparate, se me permite dizer. Eu só queria um
cavalo!
Isaac soltou uma risada baixa e incrédula. Gostaria de ter visto
sua esposa quietinha e miúda esbravejando ameaças por aí como
se fosse a rainha
— Está chateado comigo...?
Ele afagou a mãozinha dela outra vez. Não estava chateado
com ela, mas deveria ensiná-la a negociar melhor.
— Nunca, Julia. Mas não deveria ter oferecido tanto. Tenho
certeza que ele cobraria o preço normal se tivesse usado apenas as
ameaças à índole do estabelecimento.
— Um homenzinho bem medroso ele. E bem barrigudo.
Isaac riu de novo.
— Fui muito imatura ao ameaçá-lo — ela suspirou, abatida — O
que sei de cavalos não engloba seus valores. Nunca havia
comprado um, creio que poucas damas façam isso. Não sabia,
também, que era preciso da permissão de um homem... Uma
grande tolice, devo acrescentar.
— Poderia ter me esperado para ir com você. Acredito até que
conseguiria um desconto.
— Eu sei, mas... Você passou esses dias ocupado em seu
escritório e hoje ficou o dia todo fora.
Isaac se calou. Não queria ser o tipo de marido que esqueça a
esposa em casa, mas parecia que fizera aquilo sem perceber.
— Ah, não quis acusá-lo! — Julia se explicou imediatamente —
Já sabia que era um homem ocupado. Meu irmão disse que... D-
Deixa para lá.
Ele a olhou, indagativo.
— O que David disse?
— Nada.
— Julia.
Ela suspirou derrotada.
— Meu irmão disse que você se preocupa muito com o trabalho
e que eu talvez ficasse triste por isso. Mas não estou, juro!
Meu Deus, David ficara o maldizendo assim? Isaac sabia que
era muito focado em seu trabalho e que era um grande defeito, mas
não abandonaria a esposa. Não uma esposa por quem ele estava
muito apaixonado.
Ele a beijou sobre a palma de sua mão e a colocou em seu
rosto, tentando remediar qualquer chateação que ela sentisse.
— Amanhã passarei a manhã com você. Vamos cavalgar juntos.
Ela abriu um sorriso pequeno e Isaac continuou a beijar e
mordiscar seus dedos até ela rir.
— Já deu um nome para sua égua de ouro?
— Ainda não, pensarei em um quando passar mais tempo com
ela.
— Que tal Marceline?
— Não seja bobo — ela riu e ele gargalhou — Como foi o seu
dia hoje?
— Vou começar uma nova linha de produção. Acho que você irá
gostar.
— É mesmo?
— Sim — ele se animou diante de um assunto tão familiar —
Contarei tudo quando estivermos na cama, porque agora estou
morrendo de fome.

***

Ele não contou nadinha. Estava muito ocupado por cima dela e
ela não queria nada além do marido, estava muito contente em
deixar as novidades para outro dia. Era sempre um lamento quando
ele saía de dentro dela, quase como uma sensação de vazio pela
falta que ele fazia. O calor dos corpos unidos, os sons masculinos e
maravilhosos que Isaac deixava escapar, a força de suas mãos no
corpo dela marcando sua pele. Era tudo tão forte e delicioso, mas,
ao mesmo tempo, muito intimista e sentimental. Ele a admirava e
tocava como se fosse seu bem mais precioso. Fazia juras de paixão
enquanto a beijava da cabeça aos pés. Olhava em seus olhos
enquanto a possuía, declarando as mais belas palavras para ela
que se derretia toda. Ele a fazia se sentir linda, desejada e uma
infinidade de qualidades que ela nunca permitiu dar a si mesma.
Julia amava estar com ele. Mas será que o amava? Estava
muito mais apaixonada do que quando o via de longe anos atrás,
certamente. Agora ela conhecia Isaac como não conhecia quando o
observava em um cantinho de algum salão. Mas chamaria de amor?
Era muito cedo para dizer? Ela achava que era amor, sabia que ele
já estava a fazendo mais feliz. Mas seria amor ou apenas a alegria
de tê-lo só para ela?
Talvez os dois significassem a mesma coisa. Ela não fazia ideia,
precisava perguntar a alguém que já amara na vida.
— Sentiu minha falta hoje?
As palavras saíram antes que ela pudesse se envergonhar de
perguntar. Era tarde demais quando se arrependeu e escondeu o
rosto no peito dele. Não queria incomodá-lo, David havia lhe avisado
que ele se importava muito com a fábrica, todos na cidade haviam
comentado que Lorde Winsford era muito ocupado.
— Terrivelmente — ele a deitou contra os travesseiros de modo
que pudesse acariciar seu rosto e admirá-la de cima — Passei o dia
inteiro querendo beijá-la.
Julia sorriu, mas por dentro se perguntou se era só aquilo que
ele queria. Se não queria, também, conversar com ela, rir, ou
simplesmente passear pela herdade. Não apenas beijos e sexo. Ela
gostava muito dos prazeres a dois, não era uma hipócrita, mas
adorava conversar com o marido. Isaac sempre a escutava com
afinco quando ela lhe falava sobre qualquer coisa e costumavam
conversar bastante depois que os momentos mais íntimos
terminavam.
Ela tocou o rosto cansado dele, parecia muito sonolento. Seu
polegar deslizou pela maçã do rosto antes de tocar os lábios.
— Vamos dormir, meu bem.
Queria chamá-lo de meu amor, mas ainda era muito cedo para
expor seus sentimentos mais profundos. Queria ter certeza de que
ele iria gostar de ser chamado assim.
Dessa vez foi Isaac a deitar sobre seu peito, ela que sempre se
sentiu pequena demais se viu embalando um homem alto como ele.
Tão perfeitamente aconchegado nela. Ao tocar seus cabelos
dourados, Julia sentiu seu peito se aquecer um pouco mais. Devia
ser amor mesmo o que ela sentia.
CAPÍTULO 18

Logo cedo pela manhã a esposa pediu que ele a esperasse nos
estábulos enquanto ela fazia a toalete. Isaac não questionou,
percebeu que ela estava tramando algo e participaria da empreitada
de Julia.
Agora lá estava ele de pé em frente a baia da égua nova. Era
muito bonita, um pouco alta para Julia, ousava pensar. Parado em
cima da porteira, Sir Jonas o observava em silêncio.
— Você está sempre por aqui, não?
Isaac estendeu a mão para o bichano cheirar, mas ele o ignorou
com uma fungadinha.
O gato preto bocejou, pulou para fora da baia e correu para
longe dos estábulos. Sir Jonas sempre o ignorava, exceto quando
era hora de dormir e o gato invadia o quarto para se aconchegar
perto de Julia.
— Pois não venha dormir comigo depois — resmungou ele,
aborrecido por ter sido ignorado por um gatinho.
Então ele a viu chegar.
E não acreditou no que viu.
Aquelas roupas não eram capazes de camuflar seu corpo
feminino. Conforme ela caminhava para mais perto ele podia ver
todas as curvas dela acentuadas pela roupa justa.
Ela estava vestida feito um dândi de melhor qualidade. As
calças bege com uma casaca vermelha que era um tanto mais longa
atrás de modo a cobrir bem sua derrière. As botas eram de ouro,
perfeitamente iguais às de um cavalheiro. Ela até mesmo usava
uma cartola masculina preta perfeitamente repousada nos cachos
de seu penteado e um chicote pendurado em seu pulso.
Isaac engoliu em seco, ela estava linda. A calça era justa o
bastante para ele ver todo o contorno de suas pernas e quadril, a
casaca evidenciava a cintura e o busto. E a forma como ela
caminhava mais expansivamente ao vestir calças a deixou muito
confiante. Extremamente sensual e elegante. A liberdade de não ter
um espartilho a comprimindo fazia sua cintura balançar no ritmo de
sua caminhada.
Quando enfim ela o encontrou, estava um tanto corada,
alisando o tecido vermelho vivo de suas roupas e sem saber o que
fazer com o chicote.
— E-Espero que não se incomode com minhas roupas...
Ele não estava nem um pouco incomodado. Price havia lhe
descrito a indumentária, mas ele não imaginava que o deixaria tão
hipnotizado pelas pernas dela. Havia visto aquelas pernas todos os
dias, despidas ao redor do corpo dele. Mas era uma situação nova,
era muito mais escandaloso uma mulher com calças justas do que
uma mulher com pouca roupa. Isaac conhecia o corpo da esposa e
conseguia visualizar tudo que estava sendo contornado pelo tecido,
sua imaginação ficava aflorada.
— Está... Um escândalo lindo.
Ela riu envergonhada e cochichou:
— Os lacaios me olharam como se eu fosse uma louca.
Agora ele queria cobrir os olhos dos malditos lacaios por terem
olhado os contornos de sua esposa.
— Espero que eles não tenham ficado olhando muito.
Julia riu acanhada, envolvendo-o com seus braços de modo a
beijá-lo.
— Lorde Winsford, está com ciúmes?
Claro que estava! E nunca havia sentido aquilo em sua vida. A
ideia de outros homens olhando para o corpo de Julia o enervava,
pensar que poderiam desejá-la apertava seu coração e o deixava
irado. Ao mesmo tempo que ela estava tão magnífica naquelas
roupas que queria que todos vissem como sua esposa era a mulher
mais bela das ilhas britânicas e foram todos uns idiotas por nunca
terem a notado.
Ele estava incluído naquele grupo por nunca ter visto a
delicadeza de Julia em meio ao mar de cores e plumas.
— Não consigo lidar com o fato de olharem para o seu lindo
traseiro nessas calças.
O rubor no rosto dela foi tanto que ele se orgulhou do feito. Mas
então ela riu e olhou por sobre o ombro, tentando ver o próprio
traseiro.
— Não dá nem para ver! A casaca cobre tudo, seu bobo.
Ele se inclinou para perto dela, sorrateiramente apertando-a
onde ela esperava estar coberta pela casaca.
— Mas eu já o vi várias vezes. E ele deve estar muito bonito
agora.
Julia o empurrou pelo ombro, bastante risonha e corada.
— Pare com isso ou vou jogá-lo nesse feno — sibilou ela,
apontando para a baia bastante enfezada.
O marido não se abalou nem um pouco com sua tentativa de
ser autoritária. E envolveu pela cintura com os dois braços,
puxando-a para perto de seu corpo antes de perguntar contra seu
ouvido:
— Para fazermos coisas indizíveis?
O rosto dela ganhou um tom novo de rosa. Mais um ponto para
ele, que anotou em seu caderninho mental. Havia algo de muito
satisfatório em fazer a esposa enrubescer.
— Não sou obrigada a responder a essa acusação.
Ele gargalhou, apoiando-se na porteira da baia da égua. O
animal olhou para ele, piscou e olhou para Julia. Se os cavalos
pudessem sorrir, a égua estaria sorrindo para a dona.
— Gostou dela? — perguntou Julia, aproximando-se da égua
para afagar seu longo pescoço — Pensei em chamá-la de Dianna.
Você gosta, garota?
A égua inclinou a cabeça contra Julia, que riu e deu um beijo no
pelo escuro dela.
— Parece que ela gostou — indicou Isaac, encantado com a
doçura da esposa.
— Ela é tão linda — Julia abriu a baia e deixou que Dianna
saísse. A égua não foi para longe dela, muito obediente — Espero
que ela se dê bem com Mallow. Mas que não tenham bebês.
— Ah, fique tranquila quanto a isso — Winsford seguiu até onde
Mallow estava ouvindo toda a conversa — Ele foi castrado.
As sobrancelhas claras dela se ergueram e Julia ficou na ponta
dos pés, tentando observar as partes menos dignas do animal do
outro lado da porteira. Quando viu que faltava uma dupla
importante, ela recuou surpresa e constrangida.
Winsford ficou um tanto chocado com aquela atitude, se Julia
ainda fosse uma mocinha inocente ele a teria impedido
imediatamente de olhar. E mesmo Julia já sendo versada em certos
aspectos da vida, não deveria olhar aquele tipo de coisa. A razão
principal pela qual as mulheres tinham apenas éguas era para que
não fossem expostas aos detalhes mais selvagens de um cavalo
macho, quase sempre chocantes para olhos inocentes. Mas Julia já
dissera que estava familiarizada com animais de fazenda e que
gostava de cavalos, deve ter visto todo tipo de comportamento
selvagem entre eles. E lá estava ela, de calças e olhando para a
falta de testículos do pobre Mallow.
Isaac quis rir. Nunca esperaria aquilo de Julia, o casamento só
lhe revelava os aspectos mais surpreendentes da esposa.
— Eu deveria fazer isso com Sir Jonas — comentou ela,
pensativa, enquanto voltava para Dianna e começava a celá-la —
Ele já deve ter engravidado Vivi, sabia? E vai engravidar as outras
gatas. Deus sabe bem que metade dos gatinhos em Mayfair são
filhos de Sir Jonas.
Isaac deu uma risada bem humorada. Seus gatos machos,
também, costumavam sair por aí e ter filhotes por todo canto. Mas
ele havia castrado todos, que era um feito muito simples para um
médico. Quanto às gatas, o doutor preferia não arriscar a vida delas.
— Não fala comigo, mas engravida as minhas gatas. Um
verdadeiro libertino.
— Ora, você não gosta do meu gato?
Ela estava com as mãos no quadril a meio caminho de terminar
de pôr as rédeas em Dianna.
Isaac prendeu o riso, certo que levaria uma bronca. Sir Jonas
não dava a mínima para ele.
— De maneira nenhuma, querida. Eu o adoro.
— Ele é um amorzinho. Dorme com você todos os dias.
Ele tinha quase certeza que na cabeça do gato ele estava
dormindo com Julia.
— Vamos castrá-lo — anunciou ela, terminando de preparar
Dianna — Mallow continua esperando por você.
O cavalo o olhava bem triste dentro de sua baia, o pobre estava
esperando que alguém o levasse para um passeio também.
Isaac preparou o cavalo em menos de cinco minutos e, quando
o levou para onde Julia e Dianna estavam, o animal recuou.
— O que foi, garoto?
Mallow balançou a cabeça e relinchou, encolhendo-se.
— Está com medo dela? — Isaac estava incrédulo. Mallow não
tinha medo dos cavalos escoceses e enormes que puxavam os
veículos dele, mas tinha da nova Srta. Dianna.
Julia gargalhou e deu batidinhas orgulhosas no pescoço de
Dianna. A égua era pura elegância, altiva e bonita. Não estava
dando a mínima para Mallow.
— Vai ter de me alcançar quando convencê-lo a andar.
E com isso, a esposa colocou um pé sobre o estribo e se
impulsionou para cima de Dianna com a graça de uma amazona
bem treinada, a altura da égua não foi de longe um empecilho. O
movimento das pernas ao se sentar se frente o deixou quente, as
coxas apertadas dentro da calça e repousadas no corpo do cavalo o
instigavam.
Meu Deus, como uma roupa havia mudado toda aura de sua
esposa. Ela parecia até mais alta e mais ereta. Ele não sabia se
queria arrancar a roupa dela e possuí-la ou se queria ficar olhando
para aquela escandalosa Julia.
E, enquanto ele mal respirava, Julia bateu com os calcanhares e
galopou rápido para os campos atrás da Mansão Ballard.

***

Julia agradeceu por Dianna tê-la obedecido e galopado a todo


vapor. Estava eletrizada desde o momento que vestiu aquele traje
masculino, atravessou a casa sob os olhares horrorizados dos
lacaios e encontrou o marido boquiaberto. Sentia-se poderosa em
poder se mover sem todas as amarras de um vestido. E sentiu-se
muito envergonhada quando o marido a olhou com tanto ardor, de
cima a baixo. Envergonhada porque ela ficara tão quente por ele
que desejava mesmo jogá-lo no feno e cavalga-lo ali mesmo.
Era uma depravada e estava gostando daquilo. De todas as
vezes que Isaac a olhava com fogo nos olhos e lhe sussurrava
galanteios indecentes, ela amava. E então ele ria daquela forma que
o deixava lindo e jovem, seu coração se derretia todo. Isaac Ballard
tinha a habilidade de ir de um sem-vergonha ao homem mais
adorável que ela já vira.
Nunca se sentiu tão linda em sua vida e nunca imaginou que
precisaria vestir calças para tal.
Ela parou assim que atravessou os jardins dos fundos. Onde os
arbustos podados davam lugar ao gramado vasto, apenas os
pequenos bosques apareciam aqui e ali ao redor da propriedade.
Julia estabilizou sua respiração. Estava orgulhosa de si mesma,
sempre tão quieta, tão calma, agora tão ousada. Sentia-se livre para
cavalgar como queria, correndo como os homens corriam no
hipódromo. Afagou o pescoço de Dianna e esperou até ver o marido
vir galopando com Mallow. Um ritmo rápido, mas não selvagem
como Julia gostava.
— Acho que perdi a corrida — disse ele assim que parou
próximo a ela — O coitado do Mallow não costuma correr tanto.
O cavalo relinchou irritado e bateu a pata dianteira na grama.
— Assim você o ofende na frente da dama — ela indicou
Dianna com um olhar.
— Ah, desculpe-me — Isaac levou a mão ao peito em
solidariedade — Quis dizer que Mallow tem o costume de correr
com muito vigor. Mesmo com sua falta de virilidade.
Julia gargalhou do tom cordial dele.
— Ontem você não me disse sobre o novo negócio — ela
começou a cavalgar devagar na direção do bosque em que
confessara seus sentimentos — O que é?
Isaac vinha logo ao lado, Mallow muito contente por apenas
trotar como cavalo civilizado que era. O marido ficava muito
elegante em cima de um cavalo e Julia percebeu que nunca o vira
cavalgando no Hyde Park como os outros cavalheiros. A verdade
era que ela nunca o vira fora dos salões de baile e, agora que eram
casados, começava a entender o porquê. Seu marido trabalhava
demais, mesmo em casa. Mesmo em Londres, talvez.
— Estou planejando expandir para a produção de seda. Que é
muito mais complicada e demorada, mas não duvido que funcione.
— Seda? — ela ficou curiosa, voltando a prestar atenção nele.
— Sim. Quando meu pai faleceu, eu expandi o negócio para o
plantio de algodão, era um desejo dele. Mas ele nunca quis que
trabalhássemos com seda, dizia que eu irritaria os produtores locais.
Não sei se sabe, mas Cheshire tem uma forte produção de seda
bastante antiga.
Ela não sabia. Simplesmente nunca parara para pensar na
indústria têxtil britânica.
— Eu não me importo com competição — disse Isaac — Eu
sempre quis trabalhar com a seda, é um dos tecidos mais
interessantes de se produzir.
Julia ouvira dizer que era, de fato, um processo demorado. Da
boca de Jane, que sempre tinha uma curiosidade na ponta da
língua. Mas não sabia como era, muito menos a prima. Jane não era
uma naturalista, seu entusiasmo estava voltado para o ser humano
e seu funcionamento.
— Eu adoraria ver como se produz a seda. É de um animal,
não?
O marido assentiu com entusiasmo. Ele gostava daquilo, para
além de ser o negócio da família. Tal como quando ele lhe explicou
sobre suas máquinas, ele estava sorrindo ao lhe falar sobre a seda.
— Do casulo de uma mariposa, mais precisamente. É
fascinante como algo tão frágil pode se tornar uma trama firme. E há
diferentes mariposas, é claro, a seda que todos estamos
acostumados vem do famigerado bicho-da-seda. Mas você sabia
que no Japão eles tecem com diferentes fibras de diferentes casulos
de outros insetos? Os resultados são incríveis, não tão refinados, é
claro, mas ainda incríveis. Um tanto rústicos.
Julia apenas sorriu, encantada com a beleza de um homem
entusiasmado. Nunca nem havia parado para pensar no Japão em
toda a sua vida.
— Vou levá-la para ver o procedimento quando tudo estiver em
ordem, minha querida. Vai demorar um pouco, tenho que ver se as
larvas irão sobreviver. E se as amoreiras irão vingar.
Por trás do ombro do marido ela viu o mordomo andar
apressado ao longe.
— O Sr. Moseby está vindo — avisou ela, esperando que não
fosse mais uma criada com os pés mutilados por algum marisco.
Isaac olhou por sobre o ombro, o mordomo estava quase
chegando.
Moseby trazia um envelope pequeno em suas mãos, um tanto
ofegante pela caminhada incomum.
— Meu lorde, uma mensagem do Sr. Price.
Ela viu o marido puxar o envelope com extrema rapidez e
passar os olhos na mensagem com urgência.
— Aconteceu algo grave? — perguntou, preocupada.
— Não — ele enfiou o papel no bolso do paletó e praguejou
baixinho — Os novos sócios chegaram, preciso ir até a fábrica para
fechar o novo negócio.
Ela assentiu, de repente seu dia havia se tornado o mais
enfadonho de todos.
— Eu os mandaria voltar outro dia — explicou o marquês —
Mas eles vieram de Londres. E antes disso, de outro país.
— Tudo bem, pode ir — ela tentou abrir o seu típico sorriso doce
— Conte-me como foi depois, quero saber.
Ele a olhou com lamento, desceu de seu cavalo e segurou nas
mãos dela.
— Voltarei antes para o jantar e lhe contarei todos os mexericos
que quiser — e encheu seus dedos enluvados de beijos —
Desculpe-me.
Julia lhe afagou o rosto. Queria muito chorar de frustração, por
mais imaturo que aquilo lhe parecesse.
— Está tudo bem, meu amor. Pode ir. Vou lhe esperar.
Winsford sorriu e ela então percebeu que o havia chamado de
seu amor. Não teve tempo para ruborizar diante dos próprios
sentimentos, logo o marido havia subido em seu cavalo e galopado
para longe.
E dissera ele que Mallow não corria.

***

Julia não ia ficar em casa chorando feito uma adolescente


porque seu marido fora trabalhar. Estava chateada, frustrada e
queria Isaac com ela por mais horas, mas não era tonta de pensar
que podia obrigar um homem a deixar de trabalhar para ficar com
ela. Julia tinha discernimento e sabia que a vida das pessoas tinha
seu curso.
Por isso, para não ficar se lamuriando em casa, ela pegou
Dianna e cavalgou até a Rosestone para visitar a tia. De calça e
tudo.
O grito de Gladys ao ver a indumentária foi de puro horror,
olhando-a de cima a baixo quando a viu na sala de estar.
— Santo Deus, de quem são essas roupas?! — ela tocou na
cauda da casaca com imenso terror — Lorde Winsford não pode ter
permitido que saísse assim feito um rapazola. E veio sozinha?!
Julia revirou os olhos. Da Mansão Ballard até Rosestone ela só
vira campo. Ninguém fora testemunha de suas roupas.
— Pois fique sabendo que Lorde Winsford adorou meus trajes
de montaria.
Gladys negou com a cabeça, pedindo que a sobrinha desse
uma volta para analisar melhor.
— Claro que seu marido iria gostar dessa pouca vergonha —
disse, a contragosto — Sente-se, minha filha. Logo chega o chá,
pelo menos sente como uma dama.
Julia se sentou com as pernas abertas, descansando um dos
calcanhares no joelho e abrindo os braços no encosto do sofá.
Quando abriu um sorriso adorável para a tia, a mulher arremessou
uma almofada direto em seu rosto.
A sobrinha caiu na gargalhada, já se sentindo menos amuada
apenas por estar na companhia de sua tia amada.
Minutos depois, o mordomo retornou com uma bandeja com
tudo que Julia adorava. Bolinhos confeitados, chocolates e
sanduíches.
— Como foi a primeira semana de casamento? — perguntou
Gladys ao servir o chá — Seus pais retornaram para Londres no dia
seguinte, Emanuelle não podia ficar sem suas aulas de dança e
etiqueta para o debute.
A irmã estava fazendo o possível para ser a dama mais refinada
e Julia não tinha dúvidas de que os cavalheiros cairiam aos seus
pés. Principalmente agora que ela tinha uma marquesa como irmã
mais velha.
— Essa semana foi ótima, tia.
Realmente fora, não era uma mal agradecida. O marido a
mimava bastante, fora os empecilhos da vida que a chatearam.
— Lorde Winsford tem lhe tratado bem?
— Ele é muito atencioso — respondeu, enfiando um bolinho na
boca quase pela metade — Ah, senti saudades dos doces daqui.
Gladys riu enquanto desaprovava os modos da sobrinha.
— Está feliz, minha filha?
Julia parou antes de terminar o bolinho. Estava feliz, é claro.
Naquele dia em específico ela estava chateada, mas de resto... Não
tinha do que reclamar. Isaac era um homem cuidadoso e amoroso.
Tinha certeza de que seria um bom pai.
E, por Deus, ela estava casada com ele. Nunca imaginou aquilo
para si. Era um dos motivos para ela acordar sorridente sempre que
sentia o cheiro do marido no travesseiro.
— Estou sim, tia. Ele me trata muito bem.
A tia sorriu de orelha a orelha, enchendo um pratinho de
sanduíches e dando para Julia.
— Eu disse que ele seria perfeito para você! Agora coma, filha,
já deve estar grávida e não pode ficar sem comer direito.
Julia comeu. Mas estava ali com a tia por outro motivo que não
eram bebês.
— Tia, posso lhe perguntar algo sobre meu tio?
Gladys se arrumou na cadeira, um tanto intrigada, mas fez que
sim.
— É claro. O que quer saber?
— A senhora o amou, não é?
A tia sorriu nostálgica, um tanto emocionada.
— Desculpe-me — Julia se apressou em dizer, mas a tia
desconversou com um aceno.
— Estou bem. Gosto quando perguntam sobre meu marido. Eu
o amava muito, sim. Não no começo, não nos casamos por tais
razões. Mas nos demos bem e, com o tempo, o sentimento cresceu
a esse ponto.
Julia sentiu falta dos babados de um vestido para distrair os
dedos.
— Como a senhora soube que o amava? Como percebeu que
era amor?
Gladys a olhou com um sorriso simples e genuíno.
— Acha que já ama Lorde Winsford?
Ela ia contar para a tia. O pior, que era contar para o marido, já
passara.
— Vou lhe contar uma história, tia.
— Pois conte.
Julia contou do começo ao fim. Do enterro ao dia em que
chegara a Chester. De como o observava de longe, a cada baile
tentando ter a coragem de pedir que alguém os apresentasse
corretamente. Claro que, também, não falou sobre as mentiras que
escreveu ao Pérolas da Corte. Queria deixar aquilo para trás,
Tamsin estava feliz com o marido e Julia queria esquecer o quão
imatura foi.
No final da história, ela estava cansada de revirar seus
sentimentos e Gladys, muito pensativa.
— Seria ótimo que tivessem sido apresentados propriamente
depois do velório — disse Gladys, desapontada — Alguém devia tê-
los re-apresentado. Tenho certeza que estariam casados desde
então. E sei que estariam muito felizes juntos.
Julia não sabia bem se Winsford se interessaria por ela
enquanto centenas de moças como Petúnia estavam ao seu redor.
Por Deus, ele nunca percebeu ela ao lado de Tamsin, toda ruiva e
colorida. Havia tirado a prima para dançar duas vezes com Julia ao
lado, nunca olhando para ninguém além da alegre filha do Duque
Louco.
Mas não pensava muito no passado, estava casada com o
homem por quem se imaginou junto por tanto tempo. Os olhos de
Isaac eram todos para ela agora e aquilo a deixava feliz, realizada.
Só, por vezes, que pensava nos anos anteriores.
— Acho que posso amá-lo muito em breve... — confessou, sem
jeito — Ele é tão doce, divertido e caloroso. Sinto-me tão à vontade
com ele agora, tão contente.
Gladys se sentou ao lado da sobrinha e tomou as mãos dela
carinhosamente.
— Se acha que o ama, diga. Acha que deixaria de amá-lo um
dia?
Julia negou. Desejava que o sentimento só crescesse cada vez
mais.
— Devo dizer?
— Quando você quiser dizer. E quando achar que ele ficará feliz
em ouvir.
Julia suspirou, pensativa. A tia havia complicado ainda mais,
quando ela saberia que Isaac ficaria feliz ao ouvir que ela o amava?
Algumas pessoas reagem muito mal a declarações de amor.
Ela também não queria dizer que o amava sem ouvir de volta.
Aquilo partiria seu coração. Não queria que ele apenas a adorasse,
queria amor.
— Ele trabalha muito, sinto-me tão sozinha às vezes, tão
invisível — disse, porque aquilo estava em seu peito desde que
percebeu como ele se ausentava até mesmo mentalmente — Mas
ele tem tanto o que fazer... Não quero incomodá-lo. Sei que ele tem
que trabalhar.
Gladys deu um longo suspiro, afagando as mãos da sobrinha
ternamente.
— Lorde Winsford é assim mesmo, ele é filho único e tudo
sempre foi para ele. Como esposa dele você tem direito a pedir a
ele que lhe faça companhia mais vezes. Talvez tente convencê-lo a
tirar um dia de folga no meio da semana.
A sobrinha pensou. Poderia tentar, usaria dos artifícios da
sedução para convencê-lo a ficar com ela por mais tempo.
Não seria tão difícil, ela sabia que ele gostava de quando
compartilhavam a cama.

***

Isaac já conhecia o Sr. Yuan e seu secretário e tradutor, o Sr.


Liang. No início do ano havia fechado negócio com o Sr. Yuan,
quem lhe venderia o necessário para iniciar sua própria sericultura.
Os métodos francês e italiano eram bons, mas Winsford gostou do
magnata chinês quando o conheceu em um jantar de Lorde e Lady
Seaton. O homem foi o evento da noite, todos os ingleses brancos e
isolados em seu arquipélago britânico estavam muito curiosos para
conhecer um homem do oriente. O estrangeiro, no entanto, preferiu
a companhia de Isaac quando descobriu que o marquês era um
nome grande na indústria têxtil.
Os franceses e italianos que o perdoassem, mas não havia
nada como a seda chinesa e Isaac queria que aquele homem fosse
seu sócio.
Em outro dia ele estaria absurdamente feliz de ver dez lagartas
branquinhas devorando folhas de amoreira bem na sua frente. Em
Cheshire não era difícil de se conseguir amoreiras, a região tinha
um histórico de produção de seda muito antiga e Winsford tinha
certeza de que deveria produzi-la em sua fábrica. O histórico do
condado, acrescentado a reputação de sua companhia, lhe daria
bons resultados. Seu pai nunca concordou com as ideias dele,
dizendo que os fazendeiros e operários estavam acostumados com
uma produção que diferia muito do processo lento e delicado. E que
as famílias produtoras de seda de Cheshire ficariam irritadas com
aquilo.
Ele não se importava. Quando as amoreiras fossem replantadas
em suas terras, as máquinas chegassem e as lagartas
sobrevivessem a viagem, tudo ficaria bem.
— Muitas chegarão mortas, Lorde Winsford — disse o Sr. Liang,
cujo inglês era impecável até em seu sotaque muito refinado — Mas
tem que permitir que alguns casulos virem mariposas para manter a
fonte.
A viagem de Londres não era tão dificultosa para que um
grande carregamento de lagartas sucumbisse à morte. Claro que
Isaac não era tão tolo de querer que as mariposas viessem de outro
continente, estava satisfeito em comprar a mesma espécie usada
em seu país em uma fazenda nos arredores da capital cosmopolita.
— Perfeitamente — disse Isaac, observando as lagartas
devorando as folhas — Bonitinhas, não acha, Price?
O secretário fez que não com a expressão de quem estava
vendo alguém com o peito aberto. Sr. Yuan gargalhou.
— Espere até ver as mariposas — o homem disse com seu forte
sotaque, bastante risonho.
Price teve calafrios, os ombros tremendo.
— Minha esposa iria adorá-las — comentou o marquês, do jeito
que Julia gostava de animais, tinha certeza de que acharia aquilo
tudo muito curioso.
E o pensamento foi até Julia, na Mansão Ballard, sozinha.
Aquilo tudo era muito excitante, mas não ficou nem um pouco
contente em ter de deixar a esposa tão rapidamente. Ela havia
ficado tão desolada que ele foi da residência até a fábrica
fervilhando de raiva do inocente Sr. Yuan.
— As inglesas parecem ser menos enjoadas que as chinesas —
traduziu o Sr. Liang enquanto o Sr. Yuan falava para ele.
— É porque o senhor nunca foi ao Almack 's — assegurou
Isaac.
Fechou o terrário de vidro que abrigava as lagartas e retornou a
sua cadeira de chefe. O futuro sócio dele se deleitava com um copo
de uísque escocês, elogiando a destilaria do norte.
Isaac abriu uma das gavetas em sua escrivaninha e tirou a
charuteira quase intocada de lá. Ofereceu aos convidados, que não
aceitaram. Price o olhou estranho, de pé próximo ao patrão.
O marquês não fumava, praticamente nunca. Apenas quando
estava estressado, mas muito mais que o normal. Isaac estava
sempre estressado, mas naquele dia era pior. Queria ter ficado em
casa com a esposa e deixá-la triste o deixou muito irritado.
Yuan e seu secretário-tradutor ficaram por lá por quase três
horas, finalizando os acertos de sua associação temporária de
fornecimento de maquinário. Winsford não queria que ninguém em
Cheshire soubesse de sua nova empreitada com a seda, não queria
irritar a sericultura local muito forte no condado antes da hora.
Finalmente, quando pensou que o Sr. Yuan iria beber tudo o que
tinha em seu decantador, estava sozinho em seu escritório.
Aproveitou do silêncio para pensar no próximo passo que envolvia
um plano arriscado. Plano que não havia comunicado a Price ainda.
Por falar no secretário, o homem havia retornado assim que
despachou o Sr. Yuan e o Sr. Liang para Londres outra vez. O
estrangeiro era muito ocupado e tinha de retornar a capital tão logo
chegou, onde sua esposa e duas de suas filhas estavam. As moças
estavam aprendendo a etiqueta inglesa e o idioma.
Price tirou os óculos e os limpou, antes de falar:
— O senhor irá precisar de um novo pessoal para cuidar da
sericultura. Outro que saiba trabalhar a seda. Sem contar nas
amoreiras que deverão ser replantadas nas suas terras.
Isaac guardou sua charuteira.
— Sei disso muito bem.
— Presumo umas cem pessoas para começar, Lorde Winsford.
E elas precisam de ter onde morar, caso não sejam daqui No
povoado não há mais lugar e nas fazendas, nem se fala. Não acho
sensato construir novas casas.
Isaac apagou seu charuto.
— O falecido Lorde Winsford concordaria comigo — continuou
Price.
— Bem, o atual Lorde Winsford não lhe dá ouvidos — ele abriu
um sorriso amarelo — Price, para todo novo negócio temos de nos
arriscar.
O secretário assentiu.
— Só não diga que não avisei caso haja outra revolta, meu
lorde.
— Dê o fora daqui antes que eu me irrite com você, Price. E
passe as novidades para os outros, há muito o que fazer.
O homem se retirou da sala, deixando-o sozinho com seus
botões.
Isaac foi até o decantador e se serviu de um pouco de uísque
diluído em água. Olhou para as lagartas no terrário.
As lagartas eram só o começo. Havia o maquinário, não só as
máquinas para tear, as de calandragem que daria o brilho a seda.
Os empregados, as malditas amoreiras que eram o único alimento
dos insetos. Um lugar adequado para o bicho-da-seda prosperar.
Sabia que tudo seria difícil, mas era seu desejo desde garoto
quando acompanhava o pai e começou a se interessar pela
indústria têxtil para além do seu legado. Ele gostava de todo o
processo da tecelagem e aviamento, provavelmente era tão sábio
quanto Madame Rutherford e seus anos de modista. Agora era tudo
dele, podia fazer o quisesse e aquilo significava produzir a própria
seda.
Se desse errado, bem, pelo menos ele tentou. E preferia que
desse errado por conta de sua incompetência do que por alguns
sindicalistas revoltados.
Isaac resmungou alguma coisa, já estava de noite. Era melhor
voltar para o jantar.
CAPÍTULO 19

Quando chegou, Julia já estava jantando a entrada. Sem seu


traje de montaria, ela trajava um vestido de seda azul claro, sem
nenhum enfeite. No entanto, o modelo deixava seus ombros e colo
à mostra. Um colar fino de pérolas repousava em seu pescoço e
Isaac só pode imaginar como seria ser uma pérola.
Ela estava linda e tentadora, mas aquele era um vestido de
baile e ambos estavam apenas jantando em casa.
— Isaac — ela sorriu com sutileza quando o viu parado na porta
dupla — Estava com fome, se não se importa.
Ele rapidamente foi até ela, ignorando quaisquer bons costumes
na frente dos lacaios, para beijá-la em seu rosto. Julia estava uma
tentação vestida daquele jeito.
— Acabei me atrasando.
— Tudo bem — ela o afagou em seu rosto quando ele se
sentou, arrumando os cabelos dele que se bagunçaram ao cavalgar
para casa — Não vestiu sua cartola? Está todo bagunçado.
Ele fechou os olhos para aproveitar dos segundos em que o
toque cuidadoso da esposa o relaxou. Poderia viver eternamente
dos cuidados e da afeição de Julia.
— Está com cara de quem não comeu nada o dia inteiro —
repreendeu ela, chamando um dos dois lacaios com um aceno —
Sirva o prato principal a Lorde Winsford, por favor.
Tão logo saiu, o criado voltou com o prato principal da noite.
Peixe com batatas e um molho de creme branco que Isaac julgou
como delicioso.
— Fechou o negócio que queria? — perguntou Julia.
— Fechei, mas não sem Price me perturbando — reclamou o
marquês, que aceitou um pouco de vinho — O homem decidiu agir
como se eu fosse o subordinado.
Julia esperou que o lacaio os deixasse, não sem antes pedir
que lhe servisse vinho também. E ela sempre pedia mais que o
necessário, indo um pouco mais além da metade da taça.
— Ju-
— O que ele fez? — perguntou ela, tomando um gole ínfimo de
seu vinho.
Decidiu que era melhor não se estressar com os vícios da
esposa naquela noite.
— Decidiu que deveria me dar um sermão sobre os riscos de
um novo negócio. Falando-me como se fosse um risco imenso eu
ter uma nova sessão. Que não há espaço para novos moradores se
eu contratar pessoas de outras cidades. Eu sei de tudo isso, mas
não posso simplesmente não tentar.
A esposa cortou uma das batatas e respondeu sem olhar para
ele:
— Talvez o Sr. Price tenha razão. Se não contratar operários
qualificados por falta de espaço, teria de treinar os existentes e isso
seria perda de tempo e dinheiro. Os que já estão trabalhando têm a
rotina de serviço de acordo com a demanda, se mudar a
programação irá afetar o lucro no final do mês. E você não pagaria
um salário duplo para que um operário trabalhasse vinte e quatro
horas por dia, pagaria? Eu não pagaria. É dinheiro que pode ser
investido em outros lugares da herdade. Nas moradias, no gado e
no plantio. Na nossa casa, a estufa não deveria ficar em desuso.
Isaac não terminou de levar o garfo a boca. Julia não sabia o
que era preciso para gerenciar uma fábrica, por mais que as
palavras dela estivessem certas. Não precisava do secretário lhe
dando lições, muito menos da esposa.
— Não funciona assim, Julia — mentiu ele.
Julia o olhou sério e depois enfiou o garfo num pedaço de peixe
antes de comê-lo.
— Então aqueles livros em seu escritório estão todos errados e
meu pai me ensinou muito mal como se gerencia gastos — retrucou
ela, levando a mão até o cabo da taça.
— Pare de beber assim — ele a segurou pelo pulso com força o
bastante para que um pouco do vinho se derramasse na toalha.
Os olhos dela ficaram enormes e um segundo, encharcados.
Meu Deus, ele se sentiu um monstro. Nunca em sua vida havia
feito uma mulher chorar e jamais pensou que a primeira vez seria
com a própria esposa.
Ele olhou para sua mão ao redor do pulso dela e a soltou,
horrorizado. Mas o pior estava por vir, Julia pegou a taça de vinho e
jogou a bebida em cima dele.
— Não me toque assim — a voz dela era firme, embora os
olhos tivessem acabado por transbordar — Nunca mais.
Ele ainda estava digerindo o vinho que escorria em seu rosto e
manchava sua blusa e a toalha. Só se deu conta de que não
respondera quando ouviu a cadeira dela ser arrastada no chão ao
que ela deixou a sala apressada.
Isaac continuou sentado, com os braços repousados em cima
da mesa como quem espera o jantar, que estava comido pela
metade. Os lacaios faziam o possível para não olhar para o patrão
lambuzado de vinho e ele fazia o possível para não gritar com os
pobres coitados também.
Fora injusto com Julia e muito grosseiro. Descontara toda a
frustração que sentiu ao longo do dia nela, que provavelmente
estava tão aborrecida quanto ele. Ela tinha o direito a sujá-lo e ficar
irritada, se nunca mais quisesse olhar para ele, Isaac entenderia.
Um homem digno não descontaria tudo nela.
Ele pigarreou, tirou o guardanapo de seu colo e se levantou. Os
lacaios continuaram imóveis quando o patrão passou por eles e
deixou a sala.
Não poderia subir até o quarto de vestir e encontrar Julia, ela
merecia ficar sozinha por um tempo. Ele também não queria nem
ver se havia marcado o pulso tão delicado dela.
Foi direto para o escritório e de lá convocou Miles para ajudá-lo.
— Por Deus! — o homem quase infartou quando viu a blusa
manchada — O que aconteceu com o senhor?
Isaac o olhou de cara feira.
— Uma esposa irritada.
Miles balançou a cabeça, segurando o colete e a blusa que
foram arremessados contra ele.
— O cabelo do senhor ficará manchado se não lavar direito.
— Eu sei! — gritou ele, logo respirando fundo e fechando os
olhos — Eu sei... Desculpe-me, não quis gritar com você, Miles.
O valete assentiu rapidamente. Ninguém nunca via o marquês
perder a cabeça.
Merda, o cabelo ficaria manchado. Como diabos ia dar as caras
na fábrica com a parte de cima da cabeça manchada de vinho?
Para alegria de Julia, ele ficaria em casa por uns dois dias.
— Vou me limpar aqui — anunciou — Vá pegar minhas roupas
de dormir.
Miles assentiu e deixou o escritório em passos largos e
apressados. Minutos depois, ele voltou com a cara mais triste que
Isaac já vira. O valete estava sempre sério e elegante.
— O que foi, Miles?
— A marquesa não me parece bem, se me permite dizer, meu
lorde.
O peito dele se estilhaçou mais um pouquinho. Era um homem
horrível, pagaria por tudo aquilo no dia do juízo final.
— Você a viu...?
Miles colocou o roupão e a calça em cima da mesa de mogno
sem chegar muito perto do patrão temendo outra gritaria.
— Apenas a ouvi — Miles jogou água em uma bacia que
trouxera debaixo do braço.
— Ela... Estava chorando?
O criado fez que sim, muito pesaroso. Naquela altura do
casamento, a criadagem já gostava muito da marquesa pequena e
gentil que vivia ali. A última vez que uma mulher vivera ali fora há
quinze anos atrás. Os criados mais antigos como o mordomo, a
governanta e a cozinheira adoravam a presença de Julia e a
promessa de que crianças logo correriam pela propriedade.
Isaac começou a se lavar com um pano.
— Há um lugar no inferno para homens que fazem a esposa
chorar — disse ele, sombrio — Lembre-se disso quando se casar,
Miles.
O valete murmurou um sim, senhor muito baixo enquanto
preparava as roupas de dormir de Isaac. Em vinte minutos ele se
julgou limpo, sem poeira da rua, não tinha mais cheiro de vinho e
cabelo estava menos manchado do que ele pensou. Talvez fosse a
fraca luz das velas, quando amanhecesse ele veria a extensão da
coloração nova.
Entrou no quarto como se não fosse bem-vindo, Julia estava
deitada debaixo dos lençóis e de costas para ele, já vestida em uma
de suas camisolas puritanas. Havia apenas uma das arandelas
acesas e a vela no criado mudo que a esposa encarava.
Ele fechou a porta e o som foi o suficiente para fazer com que
Julia o olhasse por sobre o ombro. Os cabelos soltos estavam
espalhados nas suas costas e ela franziu as sobrancelhas irritada
quando o viu parado de pé feito um paspalho.
— Imaginei que fosse dormir no outro quarto — Isaac pigarreou.
Julia voltou a ficar de costas e puxou o lençol até cobrir metade
de seu rosto.
— Essa cama é minha também.
Ele sorriu com aquilo, apesar dos pesares. É claro que era. A
casa inteira poderia ser dela se ela quisesse, ele inclusive.
— Bem, eu posso me deitar aqui, pelo menos? Suspeito que a
cama venha com o marido.
— Pode...
— Tem certeza?
Ele a viu assentir. Isaac se deitou ao lado dela e tocou o rosto
tristonho da esposa, afastando o lençol que o cobria.
— Você me desculpa, Julia?
Ela fez que sim outra vez, ainda de costas.
— Posso lhe dar um beijo?
— Pode...
Ele acabou sorrindo outra vez e plantou um demorado beijo na
têmpora dela.
— Eu não deveria ter sujado você... Desculpe-me. Fiquei
irritada... Não gostei de como me segurou nem do jeito que falou
comigo.
— Também não gostei de ter agido daquele jeito. Nunca mais
farei aquilo.
— Obrigada...
— Quer conversar?
Ela fez que não. Sentia-se tão tola e imatura, tinha vergonha de
expor aqueles sentimentos ao marido. E estava muito arrependida
de tê-lo dado um banho de vinho, fora direto para o quarto temendo
as consequências.
Não via o marido como um homem violento, mas ninguém
gostava de levar uma chuvarada grudenta e doce. Ele poderia ficar
ainda mais irritado e falar coisas que jamais falaria.
Isaac se aconchegou atrás dela, puxando-a para ficar bem junto
ao seu corpo. Ela fungou, seus olhos ficando mais pesados de
lágrimas. Escondendo seu rosto, Julia se virou para ficar com o
rosto contra o peito dele, aconchegando-se ali.
— Desculpe-me por ter brigado com você — ele disse, baixo e
pesaroso — Não foi culpa sua. Eu estava irritado desde que tive de
deixá-la pela manhã. E quanto ao vinho... Fico preocupado, apenas,
que lhe faça mal caso já esteja grávida.
Julia sabia que gostava muito do estupor que álcool lhe dava
quando estava nervosa. Não deveria beber até saber se estava
grávida ou não.
— Machuquei você? — ele perguntou, deslizando a mão até o
pulso dela.
— Não, está tudo bem. Apenas fiquei chateada, senti sua falta.
Ainda estou me acostumando a viver aqui.
— Imagino que se sinta aborrecida sozinha aqui — comentou
Isaac ao tocar o cantinho do olho dela — Tenho de me lembrar que
tenho uma esposa em casa todos os dias.
Julia ficou de barriga para cima, olhando para o dossel. O
marido continuou ao seu lado, um dos braços por cima de sua
cintura.
— Pode ir me visitar na fábrica quando quiser.
Ela o olhou, ficando contente com aquilo.
— Posso?
Ele sorriu.
— Pode sim, pode até ler todos os livros caixa que quiser, todos
os registros E vou ouvir sua opinião dessa vez.
Julia voltou a abraçá-lo.
— Só... Não vá de calça, por favor — continuou ele — Não
gostaria que todos aqueles empregados ficassem vendo suas
pernas por aí. E que insinuassem coisas sobre você.
Ela sentiu uma comichão com o ciúmes do marido. Feliz da
vida, Julia o presenteou com um beijo.
— Prometo que não — assegurou, sorridente — Obrigada.
— Pelo o que? Eu só a magoei hoje, fui um marido horrível.
Ela desconversou ao tocar os lábios dele com o indicador.
— Por gostar de mim.
— O que eu sinto vai além de um simples gostar, minha querida.
Julia o olhou, mortificada. O que aquilo significava? Como não
conseguiu desenvolver uma resposta, o marido a beijou e, quando
Julia sentiu a mão de Isaac subir por dentro de sua camisola, ela
decidiu que era melhor pensar em coisas complicadas depois.
Queria terminar a noite bem junto dele como em todas as
outras.
Derreteu-se com as carícias em seu corpo, a camisola se
enrolava em sua cintura e a mão hábil dele apertava seu seio
deliciosamente. Julia o beijou imediatamente, pelas saudades que
sentiu de apenas um dia sem ele e por querer que ele ficasse bem
perto. Não desejava que ficassem brigados, nunca.
— Você é tão linda, Julia — Isaac disse contra seus lábios,
beijando-a apaixonadamente até lhes faltar ar — Tão perfeita. E eu
sou tão estúpido.
Ela sorriu em meio ao beijo, seu corpo clamando pelo marido a
cada vez que ele a beijava em seu pescoço e colo. Isaac desceu por
cima da camisola, dando atenção ao seio descoberto e sorrindo
para ela quando a ouviu gemer em deleite. Continuou descendo, as
mãos apertando suas cintura com uma firmeza deliciosa. Julia
amava quando ele lhe dava prazer oral, mas precisava dele de outra
forma muito mais urgente.
— Não, não... — ela pediu, apertando-o pelo ombro.
— Não? — perguntou, preocupado.
— Volte — Julia deixou sua mão tocá-lo no membro rijo por
cima da calça de algodão — Quero você agora.
Não queria esperar nem mais um segundo. Queria sentí-lo
dentro dela, quente e firme, possuindo-a.
Ele a obedeceu, voltando para beijá-la enquanto ela puxava a
calça para baixo, o suficiente para que ele pudesse se encaixar
nela. Perfeitamente. Era sempre perfeito. Como se ambos tivessem
sido feitos aos moldes um do outro.
Ela gemeu quando ele a penetrou finalmente, um sussurro
apaixonado. E suspirou seu nome a cada vez que ia fundo nela.
Quando os olhos se encontravam, ela o sentia mais. E o queria
mais.
Ele era lindo. Tão lindo. E ela o amava e o queria com ela por
mais tempo.
Enquanto ele a olhava em seus olhos e a tomava como sua,
Julia pensou naquelas três palavras. Eu te amo.

***

Ele lavou o cabelo com tudo o que tinha direito e os fios


manchados agora estavam como novos. Por um momento pensou
que teria de sair por aí com a cabeça rosada. Apesar de
apresentável, ainda continuaria em casa com Julia.
Yuan voltara para Londres, estava tudo acertado e ele só tinha
de esperar o material chegar. Pelo menos dois dias com a esposa
ele tiraria, Julia merecia. E ele também.
Havia acordado próximo a hora do almoço e pela janela do
quarto ele conseguia ver os fundos da Mansão Ballard. Julia estava
com Dianna, ensinando-a a saltar um obstáculo - que era um tronco
de árvore. Ele não sabia como fora parar ali, mas estava servindo
bem ao seu propósito.
Dessa vez o traje de montaria era cinza. Isaac chegou a
conclusão de que gostava mais do vermelho, ressaltava a palidez
da esposa de modo que a fazia reluzir.
Decidiu que ficaria ali na segurança da janela para admirá-la.
Sua esposa era linda, inteligente e, na noite anterior, havia lhe
mostrado que não levava desaforo e nem abaixava a cabeça. Julia
não era uma donzela frágil, era uma mulher adulta. Poderia ser
pequenina e toda delicada, mas por dentro ela era mais que isso e
ele estava orgulhoso. Que Julia derramasse mais vinho e falasse
com firmeza quando ele merecia ouvir. A maioria dos homens
odiaria aquilo tudo, mas sua esposa mandando nele o deixava a
ponto de enrijesser.
Do lado de fora, Dianna saltou e Julia comemorou afagando o
pescoço da égua energicamente. Julia era boa, muito boa.
Cavalgava com maestria, levantava o corpo enquanto estava
montada, guiando o animal para outro salto. Ela ficava linda daquele
jeito, confiante e habilidosa.
A esposa desceu do animal e sumiu de vista quando foi para a
lateral direita da propriedade, provavelmente para devolver Dianna
para os estábulos.
Ele permaneceu olhando suas terras por algum tempo,
pensando em como sua vida mudara tão rapidamente. Então, Isaac
decidiu que era hora de sair do quarto e tomar ar fresco,
principalmente ao lado da esposa.
Quando abriu a porta, deu de cara com Julia, que caiu na
risada.
— Vim acordá-lo! — explicou ela, passando por debaixo do
braço dele e entrando no cômodo.
A esposa estava radiante de tão alegre. Será que estava
grávida?
Céus, tinha que parar de pensar que aquele era o único motivo
de felicidade na vida de uma mulher.
Enquanto ela ia para o quarto da marquesa, ele foi atrás dela,
sendo o rápido o bastante para pegá-la pela cintura e erguê-la do
chão. Julia riu surpresa.
— Madame!
Isaac parou com Julia ainda em seus braços. Natalie estava
dentro do quarto da marquesa, segurando um vestido verde-claro e
sem saber para onde olhar depois da expressão de afeto animada
dos dois.
A criada já estava melhor do pé. Ainda mancava e não podia
ficar andando para lá e para cá, mas conseguia trabalhar. Voltara a
cuidar de sua madame com o mesmo afinco de sempre, só
precisava se sentar com mais frequência. Mary voltara a sua função
de arrumadeira, onde não corria o risco de queimar o cabelo de
ninguém.
— Como está o pé, Srta. Chapman? — perguntou assim que
devolveu a esposa ao chão.
— Oh, bem melhor, Lorde Winsford! O médico disse que logo
volto a andar normalmente.
Infelizmente Miles não teria mais de carregá-la para cima e para
baixo. O valete fingia que não gostava, mas quando Natalie olhava
para frente, ele cheirava os cabelos dela sorrateiramente e sorria
sozinho.
— Muito bom — ele arrumou seu roupão fechado — Aposto que
quer vestir minha esposa. Vou deixá-las.
Mais tarde naquele dia os dois foram visitar Lady Hanes. Gladys
ficou extremamente feliz, enchendo os dois de biscoitos e chá. E
fazendo perguntas sobre gravidez que quase fizeram Julia entrar em
chamas tamanho constrangimento. Mas ela disse que ainda não
sabia e Isaac continuou ansioso para que ela logo tivesse um filho.
Ou uma filha. Ele não se importava se fosse uma menina ou um
menino, embora estivesse um tanto animado com a ideia de ter uma
Marceline loirinha como a mãe vindo abraçá-lo todos os dias. Seria
perfeito, o fruto de todo o carinho que ele nutria pela esposa.
No dia seguinte, foram cavalgar. Dessa vez ninguém os
interrompeu e ele teve horas para admirar a esposa em seu traje de
montaria. No terceiro dia, ele voltou para a fábrica. Apesar de ter
quisto muito ficar com a esposa, continuou pensando nos
preparativos para a sericultura e a primeira coisa que fez ao chegar
à tecelagem foi conversar com seus administradores, o contador e o
secretário
Naquele mesmo dia, alguém o visitou. Ao chegar na porta do
escritório que dava para o pátio, viu um vulto branco pelo vidro
embaçado. Sua esposa estava lá, visitando-o como ele permitiu e a
visão de Julia em seu vestido branco e vermelho foi muito bem-
vinda. Passara o dia inteiro averiguando documentos referentes às
máquinas novas que chegariam no final da semana, preparando o
galpão para armazenar o bicho-da-seda e vendo com seus
administradores de onde arrumaria o pessoal especializado. Ver a
esposa ali era um lembrete de que tinha coisas mais importantes
que a fábrica em sua vida e o fez tomar ciência de que já era hora
de ir para casa. Pelos ponteiros de seu relógio faltavam três horas
para o jantar e o céu já estava ficando sépia.
Entrou com muito cuidado, queria observar a esposa em
silêncio. Ela estava do outro lado do escritório, seus pertences
foram postos em cima da chaise que ficava estrategicamente ao
lado do decantador. Julia investigava o terrário em cima do aparador
próximo a janela, onde as lagartas tomavam um pouco do que
restava da luz do sol.
— Julia.
Ela se virou de imediato, pega desprevenida, mas acabou rindo
ao ver o marido.
— Isaac! — ela sorriu sem jeito, deixando os insetos de lado e o
cumprimentando com um beijinho carinhoso — Sr. Price disse que
estava ocupado, então fiquei esperando aqui.
Price deveria tê-lo avisado que a esposa estava ali.
— Não esperou por muito tempo, esperou? — perguntou.
— Meia hora, eu acho — Julia examinou o relógio muito
pequenino pendurado em sua cintura — Mas fiquei aqui observando
essas lagartas. Posso segurar? Parecem tão gorduchinhas.
— Quer mesmo segurar uma dessas?
As moças que conheceu estariam aos berros.
— Quando eu era criança eu adorava caçar minhocas em
Greenhill para assustar Petúnia — disse, sorridente — Eu,
Emanuelle, Jane e... T-Tamsin.
Ele percebeu a mudança ao mencionar o nome da prima. Julia
ficou sombria, virando-se de costas para ele de modo a se
concentrar no terrário.
— Vou pegar uma para você — Isaac mudou o assunto,
pegando uma de suas luvas na gaveta da mesa e entregando para
a esposa — Vista. Podem irritar sua pele.
Julia o fez, parecia ter esquecido a prima, pois estava muito
ansiosa o vendo pegar uma lagarta como se fosse dia de Natal.
Era um tanto estranho pegar um animal daqueles, por mais
interessante que os achasse. Se apertasse demais, só Deus sabe o
que aconteceria. Poderiam estourar na mão dele, não sabia. Então
ele a segurou com toda a delicadeza do mundo e a colocou sobre a
palma enluvada de Julia. A lagarta se contorceu, procurando algo
para comer, mas só tinha o algodão branco do tecido grosso.
— É um tanto feia olhando de perto — comentou Julia, olhando
muito atenta para o animal em seus dedos — Ao menos as
mariposas são bonitas?
Isaac foi até sua mesa, revirando os livros até encontrar o
manual de sericultura que o Sr. Liang havia lhe presenteado.
— Eu as acho adoráveis, mas Price as acha assustadoras —
ele abriu em uma gravura da mariposa. Branca, de olhos negros e
asas e corpo felpudo. Era um animal encantador aos olhos de Isaac.
Rechonchudo, incapaz de voar após séculos de domesticação.
Julia riu fascinada, colocando a lagarta dentro do terrário e
tirando a luva.
— Parece uma criatura de contos de fadas. Por que não
levamos esse terrário para casa e esperamos até uma delas virar
uma mariposa?
Ele adoraria, seria a coisa mais interessante que já fizera na
vida.
— Deixo a seu cargo escolher o nome delas — disse Isaac,
colocando o livro sobre a mesa outra vez.
— E depois? A liberamos na natureza?
— O bicho-da-seda não sobrevive na natureza, as mariposas
não voam mais. Deixaremos a desafortunada morrer naturalmente.
Julia levou a mão ao peito e olhou para o aquário com grande
pesar.
— Pobrezinhas.
— Elas já estão bem gordas, em três semanas, talvez, teremos
mariposas. Então elas morrerão.
— Bom, então é melhor darmos um nome às coitadas antes do
funeral — decidiu ela, puxando uma das poltronas em frente a mesa
do marido e pegando o livro para si — Que tal Gertrudes? Todas
elas podem ter o mesmo nome.
Ele riu, de acordo.
— Um bom nome — Isaac tirou o relógio do bolso do colete,
tinham tempo até o jantar — Quer que eu peça chá? É inadmissível
que Price tenha a enfurnado aqui sem um lanche.
Julia folheava o livro, risonha.
— O Sr. Price me ofereceu uma infinidade de quitutes, mas até
então eu não estava com fome. Mas agora eu aceito.
Sem pestanejar ele puxou a campainha atrás de sua mesa.
Uma criada da tecelagem apareceu e ele pediu chá com o que
tivesse de mais comestível na cozinha. Em um quarto de hora ela
havia retornado com chá quente e um prato cheio de biscoitos
amanteigados.
— Estive pensando no que falou sobre os operários —
comentou Isaac, servindo a esposa uma xícara de chá com leite e
sem açúcar, como ela gostava — Talvez tenhamos de treinar
alguns.
Julia pareceu pensar enquanto tomava seu chá e o marquês
aproveitou para admirá-la em silêncio, confortavelmente sentado
contra o espaldar macio de sua cadeira. Ela acabou olhando para
ele que, em troca, lhe lançou uma piscadela que a fez corar. Isaac
sorriu satisfeito e se ocupou com um biscoitinho.
Havia momentos em que pensava como era sortudo. Tinha uma
esposa linda que estava apaixonada por ele e por quem ele estava
apaixonado. A maioria de seus amigos se casaram com uma moça
apropriada e que, nas palavras deles, eram suportáveis na cama.
Com exceção de David e Lorde Vallance, seus outros camaradas
tiveram casamentos por conveniência.
E o dele, que tinha tudo para ser o mais desagradável e forçoso,
era ótimo.
Ele olhou para a esposa outra vez, pensando em como aqueles
dois meses desde que conhecera Julia haviam sido os mais
agradáveis de sua vida adulta. Sentia-se feliz e satisfeito porque,
mesmo que vivesse em um constante estresse por conta de seu
trabalho e legado, quando voltava para casa Julia estava lá. Ela
sempre sorria quando ele chegava, abraçava-o e o fazia crer que
qualquer coisa valeria a pena desde que no final do dia ela sorrisse
para ele. Qualquer coisa valeria a pena desde que ele a tivesse em
seus braços todas as noites. Deveria expressar aquilo para ela,
tinha certeza de que ela ficaria muito feliz por saber da importância
que tinha para o marido.
— Também estive pensando — ela repousou a xícara na mesa,
fazendo-o sair de seus devaneios amorosos — Sei que gosta muito
disso, mas deve ter paciência. Acredito que seja um processo longo
até que possa produzir a seda. Talvez, nesse tempo, possa
realmente treinar alguns operários novos. Ou alguns que queiram
ser re-contratados...
Ele duvidava que os homens que deixaram a tecelagem
gostariam de voltar ao trabalho ali. No entanto, aquilo era o de
menos, porque Isaac preferia empregar mulheres. Elas tinham as
mãos menores e mais delicadas e faziam o trabalho muito melhor
que os homens. Dada a delicadeza dos fios da seda, não gostaria
de ninguém que não fosse uma mulher. E havia uma porção delas
por toda Cheshire que precisavam de emprego.
— Tem razão, como sempre — ele sorriu para a esposa e
terminou o chá — Se você quiser, podemos ir para casa.
Ele levantou o olhar do livro, as faces coradas.
— Podemos mesmo? Não tem nada para fazer aqui?
— Nada que eu não possa fazer em casa e não queremos
perder o jantar. Quer levar o livro com você?
— Quero sim! — ela se levantou muito sorridente — E não se
esqueça das Gertrudes.
Como ele iria se esquecer de seu novo animal de estimação e
suas várias irmãs gêmeas?
CAPÍTULO 20

Os dias passaram em seu pacato casamento. Não discutiram


mais desde a vez em que dera vinho para o marido se banhar.
Gertrudes falecera como uma linda e obesa mariposa branca e
felpuda, assim como suas irmãs. Mas haviam deixado uma porção
de ovinhos. Foi divertido no começo, mas Julia preferia outros
animais.
Dianna havia aprendido a saltar e um jogo de obstáculos fora
posto no vasto campo atrás dos estábulos. Julia quase chorou de
animação, sacudindo Isaac quando foi agradecer. Segundo ele,
tivera de pedir a um conhecido chegado a corridas que convencesse
a um outro conhecido que lhe dissesse onde eram fabricados os
obstáculos. Depois de pôr as mãos nos diagramas bastava apenas
um bom marceneiro para construir.
Ela estava adorando saltar com a égua, mas poucos dias depois
o movimento intenso e o cheiro dos estábulos estava a matando.
Assim como o cheiro do desjejum, do almoço e da janta. E o cheiro
do marido, outrora a melhor coisa do mundo.
Suas regras não vieram e, semanas mais tarde, ela estava
muito nauseada enquanto trotava com Dianna após Gladys retornar
para sua casa depois de uma visita. O cheiro da tia fora insuportável
durante as duas longas horas que passaram juntas, o perfume
estava invadindo a alma de Julia. Precisou do ar puro do campo
para se recuperar e foi buscar a companhia de sua égua. Com
pressa de cavalgar, Julia não pôs seus trajes de cavalaria e decidiu
continuar com seu vestido vespertino.
Mas assim que estava longe da mansão, ela passou uma perna
para o lado e ficou de frente, as saias amontoadas em suas coxas e
as pernas expostas. Com um movimento certeiro dos estribos no
corpo de Dianna, ela fez a égua galopar em alta velocidade até que
sentiu as tranças ao redor de sua cabeça se soltando e
ricocheteando em suas costas.
Julia correu para longe da Mansão Ballard, cortando os bosques
com suas estradas de terra batida até não ver nada além das
árvores e os campos verdejantes de Cheshire. Ela respirou o ar
puro até inundar seus pulmões. Sentiria-se mais livre se estivesse
com suas calças de cavalgar, mas naquele momento, estava
perfeito. Precisava pensar e encarar seus temores.
Deveria estar saltando de alegria por saber que estava grávida,
mas algo dentro de si a deixou assustada. O parto a deixava
aterrorizada. Apesar de todos os esforços das avós para impedi-la,
ela bisbilhotou os partos de seus dois irmãos mais novos. Fora
horrível, pensou que a mãe fosse morrer de tanto gritar. E estava
tudo sujo de todas as coisas possíveis e impossíveis. Não parecia
em nada com a experiência divina que todas descreviam ser. Ao
final, Mary parecia uma boneca de cera na cama e foi uma das
visões mais perturbadoras que a pequena Julia já vira.
Se ao menos tivesse sido elucidada sobre o parto, mas não,
moças devem permanecer inocentes. Na hora ela aprenderia e era
bom que lidasse com tudo muito bem e não tivesse uma síncope. E
a mãe vivia dizendo que amava ter filhos.
Saber que a sogra tivera uma fissura uterina não ajudou muito.
O nome soou muito devastador quando Isaac lhe contara, Julia não
precisava pensar muito para saber que era algo que envolvia muito
sangue e muita dor.
A égua estava cansada e Julia desceu de Dianna, tomando
cuidado para suas saias não se embolarem no estribo. Conseguiu
arrumar as tranças como uma coroa outra vez, tendo que usar da
criatividade para utilizar os poucos grampos que sobraram.
Natalie ficaria horrorizada por Julia ter acabado com seu
penteado de camponesa, mas ela precisava cavalgar um pouco. Era
o que a acalmava, principalmente ali em Cheshire longe de toda a
sua família.
— Suponho que você nunca tenha tido filhotes, não é? Ainda é
muito jovem — perguntou ela a Dianna, afagando o longo pescoço
do animal — Mas eu invejo vocês, animais. O bebê de vocês parece
sair com tanta facilidade e vocês não dão um pio de dor.
Dianna resfolegou e Julia assentiu, dando batidinhas carinhosas
no costado da égua e usando suas mãos para escovar o pelo
grosso.
— Acha que eu consigo, Dianna? — a voz dela saiu em um
sussurro trêmulo, seus olhos ficaram turvos pelo medo — A-Acha
que eu consigo sem me machucar? Como a antiga marquesa.
A égua soltou ar pelas narinas tão baixo que quase pareceu um
sopro aconchegante. Julia afagou o chanfro branco de Dianna,
abraçando o pescoço dela e se confortando no calor do pelo do
animal.
— Por que Deus nos deu uma dádiva tão linda às custas de
tanta dor?
Dianna não respondeu nada além de outro sopro, movendo seu
pescoço de modo que ficasse quase enrolada ao redor de Julia.
— Eu sei, eu sei... — Julia falou mais para si mesma do que
para o animal — Acha que eu sou pequena demais para carregar
um bebê? Talvez eu devesse engordar mais, não acha?
Ela ergueu as saias, analisando suas pernas por um momento.
Não era uma moça magricela, apesar de pequena e delgada, tinha
as pernas fortes por tanto cavalgar com uma cela normal. Mas ainda
assim, não se encaixava no perfil mais fertil de mulheres.
Era melhor contar logo a notícia ao marido, era hora de contar
para Isaac. Ele com certeza ficaria muito feliz e aquilo a acalmaria, o
marquês tinha uma habilidade especial de deixá-la muito tranquila -
na maior parte do tempo.
Julia se içou para cima de Dianna outra vez, dessa vez ficando
sentada de lado. Galopar a todo vapor, com o corpo sofrendo o
impacto da velocidade não parecia a melhor coisa que uma grávida
deveria fazer. Quando chegou aos estábulos já estava mais calma,
seu rosto menos ruborizado não entregava que havia voado aos
quatro ventos em cima de Dianna.
Deixou a égua em sua baia, presenteou-a com uma cenoura
que pegou com o cavalariço e voltou para casa. Isaac estava em
seu escritório, como sempre fazia durante o fim de semana. Muito
focado nos primeiros momentos da sericultura que estava sendo
arrumada na fábrica. O pessoal qualificado havia se instalado em
Chester, cinco moças que estavam ensinando outras mulheres a
trabalhar com os casulos do bicho-da-seda. Mas ainda havia muito o
que fazer. Era o que ele sempre falava, sempre havia muito o que
fazer.
E ela sentia que não tinha nada para fazer além de ficar em
casa, vendo o dia passar. Nem em Londres, quando era invisível
nos bailes, se sentiu tão inútil. Ela tinha seus irmãos, suas primas a
quem visitar, sorveterias e livrarias para ir. Estudava grego, latim e
francês, depois os ensinava para suas irmãs. Ia ao Hyde Park
cavalgar ou ao hipódromo assistir corridas. Ajudava a mãe na
administração da casa, auxiliava o pai quando David estava em alto-
mar.
Ali, em Chester, Julia se sentia resumida a uma esposa bonita.
Mesmo casada com o homem que tanto amava. Os afazeres
domésticos de uma marquesa eram o que a entretinha. Administrar
uma casa, a criadagem, o jardim e os cavalos. Era um trabalho e
tanto, ela não negava, mas sentia falta de outras coisas que não
envolviam sua posição como marquesa e esposa.
— Isaac — ela bateu na porta que estava aberta, ganhando um
sorriso cansado do marido sentado à mesa — Por que não
descansa um pouco? Vou pedir que lhe tragam um lanche.
— Há muito o que fazer ainda. Price disse que os fazendeiros
estão com uma infestação de verão. Todo ano isso acontece com os
legumes — ele suspirou, fechou uma pasta cheia de fichas e a
empurrou para o lado — Vem aqui, você é o único lanche que eu
gosto.
Ela riu bem humorada, sentando-se sobre as pernas dele e
ganhando um beijo em seus lábios.
— Está toda descabelada, o que aconteceu?
Julia tocou as tranças ao redor de sua cabeça, os fios lisos
ameaçavam se soltar.
— Fui cavalgar um pouquinho. Acabei correndo um pouco.
Ela o notou averiguando sua roupa. Um vestido de visita rosa
claro, com rendas nas mangas bufantes e no corpete. Não era um
vestido feito para cavalgar, que deveria ser feito de um tecido mais
grosso e mais escuro para suportar as atividades ao ar livre.
— Dá próxima vez me chame para ir com você. Aceito um
pouco de ar fresco.
— É claro, meu bem.
Isaac sorriu satisfeito e arrumou os cabelos da esposa com
bastante concentração para não fazer tudo se soltar.
— Você me parece indisposta — observou o marquês — Quer
que eu chame o médico?
Julia estava nauseada desde que acordara, mas sua condição
estava clara e não precisava de um médico lhe dizendo o que era.
Galopar com Dianna havia lhe deixado um pouco melhor.
— Não precisa... — desconversou, afagando os cabelos do
marido enquanto pensava.
Era só chegar e falar? Simplesmente dizer e pronto?
— Estou grávida.
Os olhos escuros dele ficaram maiores e foram de seu rosto
para sua barriga. Então sua mão a tocou ali, mas o espartilho não
permitia sentir muita coisa.
— Está?
Ela assentiu e com isso, sorriu. Foi como se a animação do
marido a tivesse feito perceber o que estava acontecendo. E então
uma enxurrada de alegria a envolveu, ela teria de pensar em um
nome apropriado para um futuro marquês - não queria seu filho
virando chacota em Eton. Claro que iria para Eton, seus irmãos não
tiveram a oportunidade de ir para o melhor internato de garotos, mas
o seu filho iria. E ele seria lindo como o pai.
E se fosse menina? Bem, Marceline seria uma graça e muito
refinada. Todos os rapazes iriam adorá-la logo em sua primeira
temporada. Seria perfeito se ela tivesse seus olhos azuis - que ela
estava aprendendo a gostar - e os cabelos dourados do pai. Ainda
achava os seus muito finos e claros.
Claro que o nome seria Marceline, já estava decidido.
— Temos que pensar no nome do herdeiro — disse ela,
afagando o rosto do marido com ternura — Pois já sabemos que, se
for menina, será Marceline.
— Eu não ousaria contradizê-la — o homem estava todo feliz e
Julia teve certeza que se apaixonou um pouco mais por ele —
Tenho certeza que Price tem uma lista de nomes masculinos que
vem cultivando desde que eu o contratei há quatro anos. O homem
parece uma mãe desesperada... Tinha de ver a alegria dele quando
soube de nosso noivado.
Julia riu alegremente, continuando os afagos no cabelo do
marido.
— Então ele ficará muito triste caso Marceline venha primeiro.
Isaac desconversou com um muxoxo bem humorado.
— Tenho certeza que Price será devoto a qualquer criança
Ballard. Se for uma menina, vai protegê-la como se fosse a própria
filha — ele voltou a tocar a barriga dela — Já dá para ver? Eu não
reparei nada.
Ela fez que não. Continuava a mesma de sempre, mas, em
alguns meses, ficaria enorme. Apesar do medo, mal via a hora de
sentir aquela criança crescendo dentro dela.
Olhou para o marido outra vez, imaginando se seu filho se
pareceria com ele. Um pequeno marquês feito com muito carinho.

***

Price tinha uma lista, literalmente. Era enorme, duas folhas mais
precisamente, que ele sacudiu com entusiasmo ao voltar para o
galpão destinado às lagartas. Quatro fileiras longas de cestos em
cima de cestos repletos de folhas de amoreiras e muitas Gertrudes
se deliciando delas.
Logo no dia seguinte em que retornou a tecelagem, Isaac
contou as novidades para Price enquanto faziam sua caminhada
pela fábrica. O homem agradeceu a Deus e ao mundo pela vinda do
novo herdeiro, que ele alegava com unhas e dentes que seria um
menino muito saudável. O marquês continuava pensando na
hipotética Marceline de cabelos platinados, mas não estragaria a
felicidade do secretário que se ofereceu para lhe mostrar os nomes.
E lá estava Price, arrumando seus óculos e começando a
averiguar a lista.
— Samuel?
Isaac fez que não. Comum demais.
— Augustus?
estrangeiro demais.
— Christian?
Religioso demais.
— Elliot?
Com Lorde Vallance andando por aí no mesmo círculo social
que eles? Com certeza pensariam que o filho era dele. A alta-
sociedade adorava um escândalo envolvendo crianças ilegítimas.
— É o nome do marido da prima dela.
— Definitivamente, não — Price vasculhou a lista com mais
afinco — Que tal... Oliver?
Oliver soava jovial, alegre. O nome de um menino que teria
muitos amigos.
— Perguntarei a Julia o que ela acha desse nome. Se ela
permitir, Oliver será o próximo marquês.
O secretário guardou sua lista no bolso da casaca negra, dando
batidinhas amistosas no local.
— Será um menino lindo, o senhor verá. Logo de primeira.
— Eu gostaria muito que fosse uma menina.
Price levou a mão ao peito, ultrajado.
— Mas, Lorde Winsford, o herdeiro tem de ser o primogênito. É
muito mais respeitoso assim. Falarão muito bem da marquesa como
mãe.
Ele desconversou com um aceno, olhando curioso para uma
das cestas abarrotadas de folhas e pontinhos brancos. Às vezes as
pessoas falavam cada sandice e o pior é que, às vezes, ele
concordava.
Mas não daquela vez.
— Há muitos bebês para vir ainda — Isaac disse com um
sorriso, imaginando todos os filhos que teriam.
Ele estava muito feliz com a notícia da gravidez, mais do que
imaginou que ficaria. E olha que havia imaginado que ficaria bem
feliz. Pensar em uma casa cheia de crianças, todas feitas com amor.
Achava incrível a dádiva que um casal tinha de conceber bebês.
— Não posso ficar tanto tempo aqui — disse, voltando a
atenção para o secretário — Sabe como o trabalho é importante
para mim, era a única coisa a qual eu dedicava minha vida. Mas
agora há Julia e um bebê... Price, você tem que me mandar para
casa quando eu estiver muito focado no trabalho.
— O senhor nunca me obedece, mas eu farei o possível —
assegurou o secretário — Está tudo bem até agora, Lorde Winsford.
Ainda não ouvi reclamação sobre a nova linha de produção, embora
as moças novas tenham reclamado sobre a troca de função.
— Suponho que ainda estejam se acostumando com as
técnicas novas. Vou dar uma olhada nelas.
O galpão outrora recuperado das chamas agora dava lugar a
um extenso maquinário de tear nos mais variados estágios. Todos
ocupados por mulheres, cujas mãos pequenas agradavam não só a
Isaac como qualquer outro dono de uma fábrica qualquer. Dirigiu-se
ao grupo que trabalhava nas máquinas de tear, unindo os filamentos
finos do casulo para formar um fio de linha.
Observou uma moça morena não muito mais velha que Julia se
atrapalhar com o fio delicado que segurava. A fibra arrebentou e
Isaac sentiu uma pontada no próprio peito. Aquilo era dinheiro
arrebentando.
A operária parecia nervosa, tentando unir a ponta arrebentada à
outra extremidade da máquina de aviamento.
— Com licença.
Ela pulou de susto, mas permaneceu sentada. Sabia que não
deveria interromper o trabalho mesmo se o marquês em pessoa
estivesse ali.
— Milorde! Foi um acidente, eu juro.
— Como é seu nome?
Ela engoliu em seco, seus olhos começaram a marejar. Isaac se
remexeu incomodado com as lágrimas dela.
— O-Ophelia Smith, milorde.
Ele abriu um sorriso gentil. Pelo menos pensou que fosse,
porque Ophelia fungou baixinho. Seus dedos ainda tentavam
prender o fio na máquina e ele percebeu que a moça tinha curativos
no indicador e dedo médio das duas mãos. Devia tê-los furado
enquanto aprendia a usar a nova máquina.
— A senhorita machucou os dedos aqui?
— Isso não é importante, milorde — assegurou ela, esfregando
as mãos nas saias de tartan antes de voltar a tentar prender o fio.
— Não precisa chorar, Srta. Smith. Está tudo bem, tente outra
vez.
Ophelia anuiu, engolindo o choro de nervoso.
— A senhorita tem de ter mais cuidado com as mãos, Srta.
Smith — apontou ele — É um fio muito mais delicado que a lã, seus
curativos podem se prender a ele e fazê-lo arrebentar. A senhorita
estava no lanifício, não estava?
Ela assentiu, finalmente colocando o fio de volta na máquina e a
fazendo voltar a girar.
— Pronto — ele ficou ereto outra vez, olhando para a operária
sentada ao lado de Ophelia — Ajude-a da próxima vez, mesmo se
diminuir o seu ritmo. Uma hora ela aprenderá.
— Sim, milorde — assentiu a mulher, claramente mais velha
que a mirrada Ophelia.
Ele voltou sua atenção para a visão geral do galpão. As
mulheres eram lentas, ainda não estavam acostumadas às novas
funções e com a fragilidade do fio de seda. Ele também não estava
familiarizado com a maioria dos rostos. Podia não saber o nome de
suas operárias, mas conhecia os rostos de praticamente todas elas.
Voltou-se para Price.
— Lorde Winsford — o secretário começou — Será difícil
competir com as outras sericulturas em Cheshire. O condado tem
um histórico. Mesmo que o senhor tenha o domínio local do algodão
e da lã, há outras famílias que trabalham com a seda há trezentos
anos.
Ele estava ouvindo aquela ladainha já fazia quase um mês. Mas
havia traçado um plano perfeito naquele tempo. Logo as vantagens
penderiam para o lado Ballard da indústria têxtil local.
Puxou Price para longe das operárias.
— Sabe o que você pode fazer com isso, Price?
— Por favor, não me mande enfiar em locais inapropriados outra
vez.
— Não farei isso, mas deveria — resmungou Isaac — Contrate
algum rapazola para entrar numa dessas tecelagens, ver as quantas
andam. Pode se fingir de marido de alguém, filho de outro. Não sei.
As sobrancelhas negras de Price se ergueram.
— Um espião?
— Chame do que quiser, meu caro. Dependendo do caso,
podemos contratar os operários deles por um salário maior. Vemos
como são as condições de trabalho e dizemos que aqui é melhor, é
fácil convencer alguém com dinheiro e comida boa.
O secretário pareceu ponderar.
— Pode funcionar. Mas e se o rapaz der com a língua entre os
dentes?
— Ele não vai, vamos pagá-lo bem, pode oferecer dez libras —
ele deu batidinhas amistosas no ombro do homem — Fale para um
dos administradores anotar o nível de produção dessa semana.
Quero ver se elas melhoram. E faça o que eu disse, encontre um
rapaz confiável. Alguém das fazendas.
O secretário assentiu. Dez libras era um dinheiro muito bom,
qualquer um aceitaria. Aquilo era o valor anual que um fazendeiro
doméstico juntava.
— E se as moças não melhorarem?
— Terão de melhorar ou perderão os empregos — anunciou
para todas ouvirem, deixando o galpão um tanto aborrecido.
Quantos fios a Srta. Smith já havia arrebentado? Ou as outras
mulheres ali. Elas tinham de entender que a fibra vinha de um
casulo pequeno e, apesar de ter milhares de lagartas no galpão ao
lado, a quantidade era muito menor que o bando de ovelhas e as
plantações de algodão produziam. Nada poderia ser desperdiçado,
cada fio era importante para que um novelo ou uma bobina fossem
feitos. E aquilo gerava dinheiro, que não tornaria aquela empreitada
toda uma falha.
Ele não queria falhar. Não queria admitir que estava errado para
Price e a esposa. E espionagem entre indústrias era uma das coisas
mais comuns no ramo, só seria a primeira vez que tentaria algo do
tipo.

***

Julia sentia que estava em um outro momento de sua vida. Era


uma esposa, a mulher de um marquês e se tornaria mãe no próximo
inverno. Queria um guarda-roupa novo, mais maduro. O que
significava, tons de cinza. Gostava de ser monocromática, mas não
apelava para tons muito escuros ou muito espalhafatosos. Um cinza
estava de bom tamanho.
Também queria uma desculpa para ir ver Madame Rutherford, o
que fazia semanalmente para um chá. A modista era uma mulher
cheia de vida e opinião, Julia gostava daquilo. A fazia lembrar de
suas primas, para quem ela tinha de enviar cartas anunciando a
gravidez.
E, por Deus, anunciando o matrimônio para uma prima em
específico. Não mandou nada para Tamsin, temendo alguma
situação estranha entre as duas - já bastava seus sentimentos.
Pensava que além dela se sentir desconfortável com a ideia do
marido tê-la cortejado, Tamsin poderia se sentir igualmente estranha
ao pensar que fora cortejada pelo marido da prima. Claro que o
casamento havia sido anunciado nos jornais diante do título e da
importância de Isaac. Toda Londres pode ler que Lorde Winsford,
havia se casado com a Srta. Julia Annelise Wilson, neta do
Visconde de Kent, em uma cerimônia pequena em Cheshire. Se
Tamsin leu, ainda não havia respondido.
De qualquer forma, ela escreveria para a prima... Um dia. Tinha
de se livrar daquele sentimento de vergonha e remorso para,
depois, conseguir encarar a prima. Nem que seja de forma epistolar.
Mas ela estava de muito bom humor para pensar em qualquer
coisa que não fosse em sua gravidez. Estava fazendo tudo com
muito cuidado e Natalie a vestia como se ela fosse de porcelana -
mesmo que o corpo de Julia continuasse o de sempre. Julia não
cavalgava há uma semana, mas todos os dias ia cuidar de Dianna.
Deixava a égua correr sozinha dentro dos obstáculos, treinando-a
sem precisar montar nela.
Era uma pecado o marido ter lhe dado um presente tão
maravilhoso que ela não podia usar. Só podia ver Dianna passando
pelo circuito e se imaginando em cima dela.
Julia também não bebia nem mais uma gotinha de vinho no
jantar, para sua infelicidade. Estava muito ansiosa e seu remédio
favorito estava fora de cogitação.
A carruagem parou em frente ao ateliê da madame e ela desceu
com a ajuda do cocheiro. Era cedo pela manhã, não havia quase
ninguém na modista além de duas mulheres sendo atendidas pela
assistente Yvette e a Srta. Smith.
Fazia tempo que não via Heloise. Ela estava diferente, talvez
fosse o vestido em um tom escuro de verde que caía muito bem
com o cabelo ruivo dela. Parecia que ela finalmente aprendera a se
vestir com cores mais adequadas.
Julia queria se desculpar com ela, de certa forma sentia a
necessidade de fazer aquilo. Isaac fora grosseiro ao insinuar coisas
sobre Heloise e Julia não queria que aquilo se repetisse. Além do
mais, gostaria que ambas fossem amigas.
— Lady Winsford! — Madame Rutherford sorriu de orelha a
orelha, chamando a assistente livre com um aceno breve — Que
prazer em revê-la.
Julia cumprimentou a modista com um sorriso e uma mesura,
voltando sua atenção para Heloise. A mais nova olhava para as
próprias mãos, que agarravam firmemente a xícara de chá que
tomava. Ao seu lado, uma infinidade de caixas, amostras de tecidos,
plumas e flores.
— Posso me sentar aqui? — perguntou Júlia.
— Pedi que Coline fosse buscar uma xícara extra para a
senhora, Lady Winsford — explicou a madame — Preciso terminar
um vestido com urgência, fiquem a vontade. Coline continuará a
atendê-la, Lady Houghton
Julia ergueu as sobrancelhas em surpresa e deleite. Heloise
havia se casado? Ela finalmente estava segura com um marido e
longe de qualquer escândalo cuja culpa jamais fora dela.
— Casou-se com Lorde Houghton? Que ótimo!
Ela fez que sim, não conseguindo conter um sorriso encabulado
e feliz.
— Foi muito simples e rápido, não convidamos ninguém —
Heloise explicou e logo adicionou, nervosa — Se fosse uma grande
festa eu a teria convidado imediatamente, Lady Winsford.
— Pode me chamar de Julia, por favor — a marquesa teve a
coragem de tocá-la em sua mão — Quero me desculpar por ter sido
tão mal educada com você e as outras. E peço desculpas por Lorde
Winsford ter insinuado indelicadezas sobre você.
Os olhos de Heloise ficaram enormes e cheios de lágrimas.
— Eu também, por favor! Eu a julguei mal, mas foi sem querer...
E-Eu nunca a chamei de nomes ruins. Foi tudo Marian, ela é a
pessoa mais amarga que já conheci. E eu, tola, deixei-me consumir
pelo ânimo dela. Nem falo mais com ela, tão amargurada, acaba
sendo maldosa conosco a todo tempo.
Julia tinha certeza de que Marian tinha seus motivos para ser
tão aborrecida, mas é claro que isso não era justificativa para
maldizer alguém ou tratar mal as suas amigas.
— Está desculpada. Amigas?
Ela assentiu com tanta animação que os cachos ruivos em seu
penteado sacudiram fervorosamente.
— Como se sente como uma baronesa? — perguntou Julia,
optando por um assunto ameno.
— Estou tão feliz! — Heloise riu que era pura alegria — Sinto
que posso tudo tendo ele comigo.
Julia sorriu contente ao vê-la feliz com um homem que a amava
e honrava.
— Já está de mudança para Londres?
— Ficaremos por aqui. Desde que eu esteja com Lorde
Houghton, eu estarei bem. Estamos vivendo bem longe de Chester.
Tenho meu próprio jardim e duas estufas! Mas pretendo ir a capital
durante a temporada.
— Da próxima vez que for a Londres eu lhe direi com quem
deve fazer amizades. Minhas primas vão amá-la e são todas bem
conectadas.
Ela sorriu contente e agradeceu com um aceno de cabeça.
— A senhora também estará presente durante a temporada?
Ela não queria ir. Mas mesmo se quisesse, não poderia.
— Creio que estarei muito grávida durante a temporada esse
ano.
Os olhos de Heloise ficaram enormes e ela sorriu com grande
alegria.
— Ah, que divino, Lady Winsford!
Julia sorriu encabulada. Era divino mesmo, só era assustador.
— Pensando assim — disse a baronesa — Acho que eu
também estarei indisposta. Menos que a senhora, talvez. Ainda não
engravidei, mas sei que é rápido. Talvez eu esteja e nem saiba
ainda...
— Tenho certeza de que Lorde Houghton ficará muito contente
quando acontecer.
Heloise assentiu sorridente, tomando um golinho de seu chá. O
lorde de Julia, pelo menos, estava muito feliz.
CAPÍTULO 21

Dias depois, logo pela manhã, após fazer o desjejum na


cama, uma carta chegou. Uma carta de Thomasina Chatham,
diretamente de Londres.
Parecia que a prima não estivera em Derbyshire, no Solar
das Calêndulas, onde vivia com Dominick como Julia pensou.
Julia ficou olhando para a carta assim que Natalie deixou o
cômodo e o marido estava em seu quarto de vestir. Ela virou o
envelope em sua mão, pensativa, deslizando o dedo pelo lacre
de cera verde.
Era melhor ler antes que Isaac retornasse de sua toalete.

Querida prima,
Lamento ter demorado para dar minhas felicitações, estou
em Londres com Nick visitando a família dele. Soube que se
casou com Lorde Winsford, fico imensamente feliz com isso. O
marquês é um dos homens mais doces que já conheci e desejo
que vocês dois sejam muito felizes juntos. Na última vez que
nos vimos eu desejei que ele encontrasse alguém que o
amasse muito e espero que você seja essa pessoa.
Espero, também, que todos nós nos vejamos no Natal e
finalmente todos os novos bebês irão se conhecer. Escreva-me
mais, sinto saudades de você, Petúnia e Jane.
Com amor,
Tamsin

Julia encarou a carta, respirando profundamente enquanto


o ciúmes corria por seu corpo. O que havia acontecido entre ela
e Winsford, afinal? Será que eles haviam se beijado? Eles
dançaram juntos muitas vezes, ele fora até a casa do duque
algumas vezes. Os Wilson moravam na Grosvenor Square,
onde ficava a casa do Duque Louco. Ela vira o marquês visitar
Tamsin nas vezes em que estava na janela tricotando feito a
solteirona que pensava que seria para sempre.
Era uma simples carta da sempre gentil Tamsin, mas a
forma como ela apontara a doçura de Winsford fez parecer que
ela o conhecia tão bem.
Julia não gostava de sentir ciúmes pela prima nem do fato
de ter tentado atrapalhar seu relacionamento com Dominick.
Mas seu coração doera tanto de tristeza ao vê-lo com ela.
Ela engoliu seu choro. Estava casada com Winsford,
grávida, pelo amor de Deus. Era hora de deixar aquilo para trás.
— Julia, querida.
Em um susto ela amassou a carta e secou o rosto. O
marquês estava parado um tanto confuso na porta, amarrando
seu roupão.
— Algum problema? — ele perguntou com cuidado — Quer
conversar?
Julia fez que não. Ele era, realmente, muito doce, sempre
perguntando o que ela sentia. Apostava que a maioria das
mulheres tinham maridos que mal se importavam com elas. E
elas eram esposas que mal se importavam com eles. Era
assim, na aristocracia os casamentos eram instituições cujo
objetivo era preservar uma linhagem e um sobrenome,
fortalecer uma família ou unir poder.
Foi então que viu o envelope em sua cama, com o bendito
nome de Tamsin escrito para que qualquer um visse. Antes que
pudesse pegá-lo, Isaac o fez.
— Julia.
Ela ergueu uma das sobrancelhas apenas para sinalizar
que estava dando atenção e tentou se distrair encarando um
ponto específico do chão.
— Sinto que arruinei o que sente por sua prima.
Julia abaixou o rosto. Amava Tamsin, amava muito. Mas, ao
mesmo tempo, detestava o que havia acontecido. E aquele era
um sentimento horrível que ela não gostava de sentir.
— Eu só... Se fosse qualquer outra, eu sentiria o mesmo.
Ela sabia que não. Qualquer outra moça e ela seguiria em
frente. Vira o marido dançar e flertar com várias solteiras antes,
mas quando foi a prima... Para ela foi a gota d'água. Porque
sabia que Tamsin não dava a mínima para ele, sabia que ela
amava outro homem e jamais o amaria. E se fosse para ele se
casar com outra mulher, que fosse por uma que lhe desse amor
como ele merecia.
Queria pedir desculpas a Tamsin por tudo que fez e sentiu,
mesmo que a prima não soubesse de nada.
Sentiu o peso do marido ao se sentar ao seu lado, ele abriu
seu punho gentilmente e tirou a carta de lá. Não leu, apenas
deixou o papel em cima do colchão.
— Eu senti tanta raiva dela por não querê-lo... Não faz
sentido, eu sei. Mas eu pensava que, se não fosse eu a lhe dar
carinho, que outra o fizesse. Mas ela não o queria.
O marido nada disse, apenas a tomou em sua mão.
— E você estava sempre a olhando tão... A-Apaixonado —
a voz dela vacilou e uma lágrima pingou em sua camisola —
Era tão injusto com você. E comigo. Porque eu o queria tanto,
eu faria de tudo para que me olhasse assim. E ela não lhe dava
atenção.
— Ela nunca gostou de mim, Julia — ele a segurou pelo
queixo, mantendo seu olhar sobre os olhos molhados dela — E
eu sinto que fui demasiadamente inapropriado ao cortejá-la.
Os olhos claros ficaram mais molhados.
— Você a beijou...?
Ele suspirou pesaroso e Julia soube que sim. Ela se afastou
do marido, aborrecida por algo que acontecera há quase um
ano.
— Julia, foi um beijo muito inocente.
Ela anuiu, sem se importar muito com o que ele dizia. Só de
pensar que Tamsin havia beijado Isaac a fazia se sentir tão
incomodada, para além dos ciúmes. Ela nunca havia beijado
outro homem que não fosse o marido e levava aquele ato como
íntimo demais. Pensar que ele e a prima havia trocado um beijo
a incomodava um pouco.
— Não há nenhuma mulher no mundo que eu já beijei como
a beijo, Julia — Isaac se posicionou de frente para ela, tomando
suas mãos para si e as beijando demoradamente — E eu
jamais amarei outra como eu a amo.
Julia mal respirou. Mal piscou.
— Você me ama...? — a pergunta saiu em um sussurro
incrédiculo.
Isaac deu um de seus sorrisos risonhos que a faziam
relaxar.
— Amo, Julia. Eu amo você.
Céus, ele a amava! Como se ela já não estivesse feliz o
bastante com a sua vida como Lady Winsford - na maior parte
do tempo, ele havia tornado tudo melhor com aquelas três
palavrinhas.
— Você é a minha esposa — e ele continuou — Teremos
um filho juntos. Eu a amo imensamente, Julia. A cada dia mais
e, quando a olho assim, penso como fizemos esse bebê que
está carregando com amor. É um sentimento de plenitude.
Ela riu, chorou e riu de novo. Cobriu o rosto com as mãos e
abraçou o marido.
— Eu também amo você — Julia chorou e riu outra vez ao
olhá-lo em seu rosto sorridente — Venho querendo te dizer
isso... Eu o amo tanto, Isaac.
Isaac secou o rostinho dela com seu polegar, deixando um
beijo demorado contra a testa dela antes de aninhá-la em seus
braços debaixo dos lençóis. Julia permaneceu ali muito
confortável e feliz, ninguém tiraria o marido dela.
— Tamsin comentou sobre nos vermos no Natal — disse,
repentinamente — Nós passamos o Inverno em Greenhill, na
residência de meu tio Aiden. Eu amo ir para lá, mas fiquei
pensando... Como seria estarmos juntos lá na presença dela.
Você não se sente estranho?
O marido assentiu, um tanto dúbio.
— No começo de nosso noivado eu pensei que sim, mas
agora não me importo com sua prima. Com todo o respeito, é
claro.
— Eu me sinto estranha... P-Porque você a beijou —
confessou, muito baixo — E acho que eu olharia para ela e
imaginaria os dois juntos. Você já beijou muitas mulheres
antes? Não acha estranho olhá-las agora e pensar que as
beijou? Eu ficaria com vergonha de reencontrar um outro
homem que beijei... E pensar no sabor dos lábios dele.
As sobrancelhas do marido se ergueram com a pergunta.
Julia sempre soava pouco confiante em relação a aquilo, ouvi-la
perguntar genuinamente sobre seus amores antigos lhe foi uma
surpresa.
— Eu nunca beijei outro homem antes — ela explicou —
Mas imagino que você tenha... Outras mulheres, no caso.
— Não precisamos conversar sobre isso se a fizer triste —
disse ele — Relembrar flertes do passado.
Julia negou com a cabeça. Preferia ouvir sobre todas as
aventuras amorosas do marido do que vive de sua imaginação
muito fértil. Claro que ela não imaginava muitas coisas, afinal, o
marido casara virgem. Mas beijos, talvez.
— Acho que isso me ajudará a não ficar triste, na verdade.
Eu quero ter mais confiança em mim mesma.
— Bem... Eu não acho estranho olhá-las agora, mas talvez
porque nós homens podemos beijar várias mulheres, enquanto
uma dama deva se manter inocente apenas para um. Creio que
haja um olhar diferente. Um beijo pode se tornar algo banal
para alguns homens.
A esposa pareceu pensar antes de responder:
— Faz sentido. Agora me diga sobre as mulheres que
beijou. Espero não conhecer nenhuma.
Isaac riu com muito gosto.
— Duvido que conheça. Deixe-me ver... — o marido contou
nos dedos — Cinco moças.
Julia ficou surpresa, porque sabia muito bem que seu irmão
e seu primo Lucas deviam ter rodado por todos os bordéis do
continente no que os homens chamavam de Grand Tour. Era
possível que, nas festas mais sórdidas dos universitários, cinco
fosse a contagem numa noite.
— Moças de família ou outro tipo de mulher? Outro tipo não
conta porque os homens sempre fazem essas coisas. Você
conhece meu primo Lucas, ele não valia nada até se casar.
Isaac riu outra vez.
— Sabe que eu não era de fazer essas coisas. Nem quando
estive na universidade. Estudei em Manchester, para ficar mais
perto de casa. Não me diverti muito por aí com os outros
rapazes, tinha de ajudar meu pai.
Sobre aquilo que ele lhe falou sobre estar apaixonado para
se sentir atraído por uma dama, Julia pensou que englobasse
apenas as intimidades.
— Nem beijos?
— Somente quando me apaixonava, o que não foi muito
frequente em minha vida adulta. Eu nunca tive muito tempo
para me divertir em Londres. Sempre vivi aqui com meu pai,
para não deixá-lo sozinho.
Julia assentiu, pensativa.
— Então suponho que eram todas moças de família.
— Sim, algumas já estão casadas há muitos anos, por isso
não as conhece — ele respondeu, finalmente — Talvez você
saiba disso, mas muitas mulheres se casam já não tão
inocentes. Conheço herdeiros por aí que não tem uma gota do
sangue do pai.
Ela se remexeu curiosa, olhando-o muito atenta.
— É mesmo? Quem?
— São só especulações — ele tratou logo de dizer —
Conhece Lorde Lyon? É um amigo de Vallance.
Lorde Lyon não era o tolo que ofendera Jane no ano
anterior? Pelo menos foi essa a história que Petúnia lhe contou
depois. De que o homem havia perguntado se ela tinha alguma
deformidade por debaixo da máscara e Jane saíra correndo
após atacar o lorde..
Seria muito bem feito se ele não fosse o herdeiro que
pensava ser.
— Ele é filho de outro homem?
— Ah, não — riu o marquês — Ele é pai do filho da filha de
uma baronetesa, Lady Marianne. Creio que ela tenha se casado
com um conde e o homem pensa que é dele, mas não é.
Julia ficou boquiaberta. Conhecia aquelas pessoas todas
apenas de vista, já que sempre ficava com suas primas,
apenas. Mas pensar que todos aqueles escândalos aconteciam
debaixo de seu nariz era muito divertido. Da próxima vez que
voltasse aos salões londrinos, olharia para todos de um jeito
diferente.
— Como você sabe de tudo isso? — perguntou, curiosa —
Parece que homens são tão fofoqueiros quanto as mulheres.
Isaac gargalhou, o som de sua risada reverberando no
corpo de Julia recostado no dele.
— Não sabe das histórias que são contadas nos clubes.
Mas, não se engane, a fonte são sempre as irmãs ou esposas.
Nós apenas repetimos o que ouvimos.
— Isso se chama fofoca, meu amor — compadecida, ela
deu uma batidinha no ombro dele — Você é um fofoqueiro de
primeira. Terá de lidar com isso de um jeito ou de outro.
Ele deu um longo e teatral suspiro.
— Por favor, não conte a ninguém... Minha virilidade
depende disso. Agora que sabe que sou um grande fofoqueiro
vai ter de checar se ainda continuo o homem de sempre.
Julia riu e o empurrou contra o colchão, sentando-se por
cima do quadril do marido e deslizando as mãos pelo macio
tecido do roupão que ele vestia. Abaixou-se até estar com os
lábios a um sopro de distância e, antes que ela mesma pudesse
dizer, Isaac sussurrou:
— Eu amo você, Julia Ballard.
Ela se derreteu por cima dele, sendo colocada contra o
colchão ao que o jogo virou e fora ela a ser beijada pelo marido.
Sentiu o amor dele tomar seu corpo pelo resto da manhã. Feliz
como nunca estivera antes, até ter de deixar o marido ir para
mais um dia de trabalho.

***

O rapaz devia ter vinte anos, no máximo. Era filho de um


dos fazendeiros. Seu nome era Gilbert.
E estava morrendo de medo.
— Você não vai morrer, garoto — assegurou Isaac,
recostado em sua cadeira — Basta chegar e dizer que está
procurando sua irmã, que sua mãe está doente e que enviou
uma mensagem urgente.
Gilbert assentiu, olhando nervoso para Price.
— M-Mas e se me pegarem, milorde...?
— Como poderiam? Você entra na tecelagem, olha, depois
diz que não encontrou a irmã. Simples.
O rapazola alisou o colete marrom simples de modo
ansioso.
— Em cada uma delas? São... — ele contou nos dedos —
Quatro em Cheshire, milorde. Que eu sei que trabalham com
seda como o senhor quer.
Isaac não era tolo de mandar Gilbert invadir as quatro
tecelagens num só dia. Até porque elas ficavam longe umas
das outras, percursos que tomariam uma ou duas horas do dia
do rapaz. Também mentira para o rapaz, tinha certeza que, se o
descobrissem, ele levaria uma surra danada.
Uma vez ao mês ele mandaria alguém diferente até ter sua
sericultura estabilizada e encaminhada.
— Vá primeiro na Winchester, o Sr. Winchester quase
nunca está na tecelagem e deixa tudo na mão dos
administradores. Vai ser muito fácil entrar e sair como um irmão
preocupado.
Gilbert concordou, pensativo.
— Quer que eu vá agora, milorde?
— Sim! — Isaac imediatamente abriu uma das gavetas da
escrivaninha e tirou de lá um papel pequeno — Aqui. Todas as
coisas que tem de observar lá dentro.
O rapaz olhou para o papel por um tempo muito longo.
O marquês olhou para Price, que perguntou:
— Sabe ler, não sabe?
— Sei sim, senhor — ele enfiou o papel amassado no bolso
da calça — Estava tentando memorizar.
— Quando voltar, fale com Price apenas — ordenou Isaac
— E ele lhe fará o pagamento.
— Sim, milorde. Obrigado.
Ele se despediu com um aceno, ficando a sós assim que
Price e Gilbert saíram pela porta do pátio.
Isaac se levantou e caminhou até a janela, vendo as
carroças serem carregadas por bobinas de algodão nos mais
variados tons. Em breve teria tudo em bobinas de seda.
E a primeira leva seria usada para vestir sua linda esposa e
marquesa.

***

Heloise era uma companhia muito agradável, Julia estava


aprendendo apenas agora. A nova baronesa de Houghton a
lembrava muito de Petúnia. Tinha certeza de que as duas se
dariam muito bem e já havia prometido avisar a prima que, na
próxima temporada londrina, ela teria de ser a melhor
acompanhante para Heloise e apresentá-la as melhores damas.
Lady Houghton ainda era muito ingênua em todo aquele jogo
estúpido que Julia tinha de chamar de alta-sociedade. Ela era
uma nouveau riche, as pessoas iriam duvidar de suas origens
mesmo com Lorde Houghton de sentinela ao lado dela.
No entanto, de sentinela ele não tinha, porque estava muito
sorridente conversando com Julia e Heloise na sala de estar
vermelha - a que Julia havia decorado para visitas noturnas.
Convidara os Houghton para um jantar como forma de
estabelecer oficialmente sua amizade com Heloise. Glady
também fora convidada, é claro. Julia gostava do apoio moral
da tia, que sabia conduzir uma conversa muito mais que a
sobrinha.
Sua mãe ficaria orgulhosa dela, sendo a senhora de sua
casa, dando jantares e fazendo amizade com pessoas
importantes. Julia, também, estaria orgulhosa, se não estivesse
chateada com o marido.
Isaac não estava lá. Ela o havia lembrado do jantar todo dia
nos três últimos dias e o marquês prometera que chegaria duas
horas mais cedo para estar lá quando o casal chegasse. Mas
ele estava aqueles trinta minutos atrasados de sempre, só que
a diferença era que havia visitas e ela teria de lidar com isso
sozinha.
Ver o barão e a baronesa juntos e sorridentes só a fazia se
sentir mais sozinha. O modo como Lorde Houghton olhava para
Heloise como se ela fosse a joia mais preciosa e frágil do
mundo estava a deixando muito solitária.
Sentia falta daquele olhar vindo de Isaac, que só pensava
em seda.
— Algo deve ter acontecido — Julia abriu um sorriso
nervoso para os dois — Lorde Winsford nunca se atrasa.
Ela serviria mais conhaque para os dois se aquela não
fosse a terceira tacinha. E ela também não estava mais
suportando não poder tomar um gole para relaxar. E não
suportava o perfume de Heloise, por mais que a adorasse. O
cheiro a estava deixando nauseada.
Tinha de pensar no bebê, no seu lindo e perfeito bebezinho
que ainda era um grãozinho em sua barriga. Gostava de
imaginar como seria seu filho quando estava entediada em
casa, passava horas imaginando o rostinho dele. Quando ficava
pensando em como ele ou ela seria, seus medos pareciam se
dissipar um pouco.
Com isso, decidiu imaginar como seriam os pézinhos do
bebê Ballard enquanto esperava o marido chegar.
— Essas coisas acontecem, minha querida — Gladys disse,
muito solicita, segurando uma pequenina taça de conhaque que
mal bebera.
Houghton concordou com um aceno.
— Hoje mesmo nossa carruagem deu problema, não foi,
Izzy?
Heloise assentiu veemente.
— A roda ficou presa na estrada! — relatou ela com os
olhos arregalados — Eu pensei que fossemos tombar! Foi um
tanto excitante!
Julia conseguiu rir da animação da amiga.
— Choveu bastante na noite passada — ela continuou —
Alguns trechos ainda devem estar com lama. Por pouco não
nos atrasamos também.
Talvez fosse aquilo mesmo. Julia não deveria sempre
esperar o pior de Isaac. Naquela manhã Isaac havia dito que a
amava e Julia ainda sentia o coração feliz com aquela
declaração. Ele era um bom marido, só era um tanto ausente...
Mas ele a amava, cuidava dela e era muito doce. Certo?
Julia assentiu para si mesma. Mulheres por aí tinham
maridos horríveis, que as agrediam a ponto de matá-las. Ela
não deveria reclamar.
Antes que pudesse responder a Heloise, os passos
apressados de Isaac ecoaram pelo chão de mármore do
vestíbulo e entraram na sala. Ela já conhecia o som dos passos
dele, sempre apressado por perder o jantar.
O homem apareceu um tanto ofegante, arrumando o lenço
no pescoço antes de sorrir para as visitas e para a esposa. Ele
estava todo desalinhado, com os cabelos bagunçados pelo
vento em um indicativo de que viera cavalgando outra vez sem
contar nas botas sujas de lama. Não estava vestido para um
jantar formal, mesmo que suas roupas sempre fossem muito
bonitas.
— Perdoem-me pelo atraso — ele pegou a mão da esposa
e a beijou, depois fez o mesmo com Heloise e Gladys — As
estradas estão terríveis.
— Era exatamente o que eu estava dizendo, Lorde
Winsford — Gladys disse com um sorriso ameno.
Isaac anuiu com um aceno muito educado, depois olhou
para a esposa. Julia inspirou e olhou para o copo de limonada
quente em sua mão. Ela podia sentir o olhar de Gladys sobre
ela, mas não correspondeu. Não queria saber o que a tia estava
achando daquela cena.
— Bem, presumo que já possamos servir o jantar —
anunciou ela, se levantando e tocando o sino mesinha ao lado
de sua poltrona.
Heloise e o marido se levantaram juntos, acompanhados de
Gladys. Julia indicou o caminho até a sala de jantar e, antes
que ela e Isaac entrassem, ela o parou na porta. Longe das
vistas do casal, mas sem escapar de uma última olhada de
Gladys.
— Desculpe-me pelo atraso — ele disse baixo, segurando a
mão enluvada de Julia perto de seus lábios — Passei o dia
inteiro esperando o- Um sócio.
As sobrancelhas dela abaixaram indagativas enquanto ela
arrumava os cabelos desgrenhados dele com mais força que o
necessário.
— Que sócio? Não comentou sobre um novo negócio.
O marido riu e ela notou o nervosismo em sua voz. Isaac
sempre lhe contava sobre seu dia com entusiasmo, não era o
tipo que esconderia coisas.
— Não é bem um negócio. Não precisa se preocupar.
Vamos?
Não era uma boa hora para interrogá-lo, então foram para
seus postos na longa mesa de jantar.
Não demorou menos de um minuto em que a entrada fora
servida para que Isaac começasse uma conversa muito
agradável com Heloise e Lorde Houghton.
— Como andam os negócios, Winsford? — Houghton logo
perguntou.
Julia comeu uma colherada de sua sopa de ervilha, não
desejando falar sobre a fábrica. Olhou para o marido e o viu se
ocupar com a própria bebida para não ter que responder.
— Heloise comentou que vão para Londres — Julia disse,
um pouco mais alto, bastante sorridente para o barão —
Durante a temporada.
— É verdade — concordou a amiga, olhando para a
marquesa com um ar de cumplicidade — É uma pena que não
poderá nos acompanhar, Lady Winsford. Mas sua condição é a
mais feliz de todas!
Julia acabou sorrindo encabulada. Pensar em sua gravidez
a deixava muito feliz, mesmo que qualquer outro aspecto de
sua vida matrimonial estivesse a frustrando.
— Minhas felicitações, Lady Winsford — Houghton ergueu
sua taça de vinho e olhou para Isaac — E para você também,
Winsford.
Ela olhou para o marido, que retribuiu ao olhar com muito
carinho. Julia abaixou seus olhos para a taça de limonada que
lhe fora servida e a ergueu para o brinde.
Não queria que o marido se safasse com sorrisos bonitos,
porque apesar de muito irritada, Julia ainda o amava. Mas
daquela vez ela estava envergonhada, não só chateada. Ele a
havia feito esperar na frente das visitas e Julia não queria que
ele saísse dali pensando que estava tudo bem.
— Esse é um motivo para comemoração eternas — Gladys
ergueu sua taça — Um brinde.
— Em breve Lady Houghton se unirá a mim — anunciou
Julia, esforçando-se para por um sorriso no rosto — Um brinde
à maternidade.
Todos ergueram suas taças de vinho e Julia, muito
deprimida, bebeu sua limonada.

***

Não era possível que Julia estivesse mais irritada com


aquilo do que quando ele a assustou ao segurá-la pelo pulso.
Mas estava, pelo visto. Porque ela estava sem falar com ele
desde que Heloise, o marido e Lady Hanes foram embora
depois do mais longo jantar de sua vida. Toda vez que
Houghton tentava falar sobre a tecelagem, ela interrompia o
assunto ou olhava muito irritada para Isaac não continuar o
assunto. Os dois eram colegas, o barão investia dinheiro onde o
interessava e se estava interessado na tecelagem de Isaac,
bem, o marquês adoraria ouvir. Mas a esposa o mataria se ele
falasse sobre trabalho.
Ela não falou com ele quando foi se trocar para dormir e
não falou com ele quando Isaac a seguiu até o quarto da
marquesa.
Julia estava muito ocupada escovando os cabelos com
mais afinco que o normal. Se fizesse mais força arrancaria os
fios platinados fora da cabeça.
— Deixe-me ajudá-la — ofereceu-se Isaac, temendo que a
mulher ficasse careca.
Ela puxou a escova para si e continuou a escovar os
cabelos por si mesma.
— Não precisa, obrigada.
Isaac ficou sem saber o que fazer com as mãos e as enfiou
para trás das costas. Pigarreou baixo, sentando-se numa das
poltronas macias do quarto de vestir dela.
Julia continuou escovando seus cabelos. Já havia passado
das escovadas costumeiras e focava nas pontas. Jogava uma
mecha para trás violentamente e passava para outra.
— Não é melhor escovar o outro lado? Ouvir dizer que
escovar demais faz mal.
O olhar que ela lançou por cima do ombro foi mortífero.
Decidiu que ficar calado era o mais sensato.
Ela passou a escovar o outro lado, encarando o próprio
reflexo.
Isaac teve de perguntar:
— Poderia me dizer o que a incomoda tanto?
Julia repousou a escova na penteadeira e se virou na
cadeira.
— Eu não me importo que se atrase para jantar comigo,
mas você deveria ser o anfitrião da noite ao meu lado. Não
sabe o quão envergonhada eu fiquei por ter de explicar a todo
momento que você logo chegaria. Imagine se tivéssemos mais
convidados e fosse um evento formal.
Isaac nunca se atrasaria para um evento formal, ele tinha
boas maneiras. Mas mal abriu a boca para responder e Julia
continuou, interrompendo-o:
— Para ser sincera, eu me importo sim que eu sempre
comece a jantar sozinha. Mas, pelo menos, ninguém além dos
criados fica com pena enquanto eu estou olhando para a porta
esperando meu marido aparecer depois de passar o dia inteiro
desejando vê-lo.
— Eu apenas me atrasei-
— Para um compromisso importante como marquês. Eu o
lembrei disso a semana inteira, mas você está sempre ocupado
demais.
— Julia, está sendo imatura.
— Imatura?
— Eu não posso ficar em casa o dia inteiro sem fazer nada
feito você.
Ele se arrependeu do que dissera imediatamente assim que
viu o rosto da esposa se contorcer em ira.
— Julia, não quis dizer is-
— Porque eu não passo de bibelô. No final das contas, foi
para isso que eu cresci mesmo. Como a irmã mais velha, eu
tenho o dever de me casar com um lorde e ter alguns filhos com
ele de modo a jamais manchar o nome de minha família. Ser
bonita e sempre solicita.
— Não foi isso que eu quis dizer...
— Mas é assim que eu me sinto!
Ele se calou. O volume da voz dela o pegou de surpresa,
Julia que sempre falava baixo demais. Sempre tão quieta,
mesmo quando lhe dera um banho de vinho.
E os olhos molhados dela, tristes e raivosos, fizeram seu
coração encolher em seu peito.
— É assim que eu me sinto... Estou sempre aqui para você.
Sempre tão solícita, tão disponível. É como se... Nós só ficamos
juntos quando fazemos amor. Eu fico o dia inteiro aqui,
esperando você, porque você é a única pessoa além de minha
tia que eu tenho aqui. E agora estou grávida e não posso
cavalgar, não posso beber, não posso maltratar meus nervos. E
estou triste demais para voltar a estudar qualquer idioma como
eu fazia. Não preciso ajudá-lo com as finanças da casa porque
você tem tantos empregados para isso.
Ele não tentou falar dessa vez. Ouvi-la dizer que estava
triste foi o suficiente para fazê-lo se sentir pior ainda.
— E quando finalmente você chega, atrasado, quando
finalmente tenho alguém... Nós jantamos e depois...
— Se pensa que essa é sua única serventia, está muito
enganada — ele saiu em sua própria defesa — É muito mais do
que uma companhia para aquecer minha cama.
Ela se virou diante do próprio reflexo, furiosamente voltando
a escovar os cabelos.
— Seria hipócrita ao dizer que eu não o desejo. Mas eu não
gosto quando esse é o único momento em que eu sei que sou
tudo o que se passa em seus pensamentos.
Ele se aproximou da penteadeira, cauteloso para ficar a
uma devida distância de Julia.
— Eu penso em você o dia inteiro, Julia.
Os olhos dela se abaixaram para as próprias mãos. Isaac
conhecia a linguagem corporal da esposa, apesar dela o acusar
de nunca olhá-la. Sabia que ela estava cansada e triste e,
naquele instante, não queria mais argumentar.
— Se pensa tanto assim, por que nunca está aqui para
jantar comigo? É só isso que eu peço, Isaac... Eu sei que
precisa trabalhar, mas eu não quero ser deixada de lado desde
o momento que o sol raiou até a hora de dormir.
— Eu estou sempre aqui para jantar com você, não estou?
— Sempre atrasado.
— Julia, eu tenho de trabalhar — ele respirou fundo para
que não a fizesse se sentir como um bibelô ou qualquer outra
coisa inútil — E, eu sei, eu penso demais no trabalho e esqueço
que o tempo passa. Esse é um grande defeito meu e tenho
certeza é a razão de eu ter falhado tanto em noivar. E eu peço
desculpas por ter me atrasado hoje quando era, de fato,
importante.
— Todos os dias são importantes... — ela murmurou,
deslizando os dedos pelas cerdas da escova — Todos os dias
eu o quero ao meu lado quando promete que vem. Quero lhe
contar como foi meu dia e ouvir como foi o seu. Ir cavalgar com
você. Você precisa ficar da manhã até a noite fora? Você
trabalha demais, vejo que está sempre cansado e com sono.
Ele já não sabia mais o que dizer para apaziguar. Sabia que
trabalhava demais e sabia que sempre estava atrasado para o
jantar, quando estava a caminho de casa estava sempre
torcendo para que não chegasse com Julia comendo
entristecida. E ela sempre estava comendo com uma expressão
desolada até que ela o percebia na sala e se iluminava toda.
E aquela transição de soturna para feliz o consumia, porque
não queria pensar na esposa o dia inteiro em casa com aquela
mesma expressão. E não queria ser a única fonte de alegria
dela, queria que Julia fosse feliz ali com as coisas que podia
fazer em Chester.
Mas Julia tinha de entender que ele tinha coisas a fazer que
o impediam de viver do ócio como vários outros homens que
ele conhecia em Londres. Herdeiros e filhos únicos não tinham
ninguém além de si mesmos para manter o legado de um título
com honra. Quando os pais faleciam, de repente, tudo era deles
e, por vezes, era demais.
— Eu lamento que isso ocupe muito de meu tempo e da
minha mente, tentarei voltar mais cedo daqui em diante.
Ela o olhou por sobre o ombro e assentiu.
— Gostaria que compreendesse que não posso
simplesmente não fazer nada, também — continuou,
aproximando-se o suficiente para pegar a escova das mãos
dela.
— Eu sei que tem suas responsabilidades. Quero só que se
lembre que nossas vidas mudaram quando nos casamos.
Agora é um homem casado e será pai, há alguém o esperando
todos os dias. Ainda estou me acostumando a viver aqui,
depois de passar anos cercada de primos e primas. Não estou
acostumada a ficar longe da minha família.
Isaac anuiu, porque sabia que tinha de se lembrar daquilo.
Antes não tinha ninguém, os criados não se importavam se ele
dormia na fábrica e não dava as caras direito. E antes sua
esposa vivia rodeada de irmãos, primos, tios e tias. Sua vida
agora era mais do que olhar diagramas de maquinários que ele
poderia modificar, algodoeiros dando pragas ou ovelhas
fugindo.
— Desculpe-me, Julia... — pediu, outra vez. Isaac
caminhou pelo quarto de vestir, passando a mão pelos cabelos
— Depois que minha mãe faleceu eu e meu pai passamos a
maior parte do tempo na fábrica, ficar aqui nos fazia pensar
sobre ela e era muito doloroso.
Ele ouviu o som da cadeira se movendo, mas não olhou
para a esposa.
— Depois meu pai se foi e eu passei a trabalhar mais de
modo a não sentir sua ausência. Nem perceber essa casa
vazia. Fui muito negligente com minha vida pessoal, eu
entendo. Eu estava sempre pensando em outra coisa e tenho
certeza que é por isso que as mulheres não se interessavam
tanto por mim — ele deu um longo suspiro, virando-se para
olhar a esposa — Não quero sua piedade, só gostaria que
entendesse que eu dei a mim mesmo essa rotina e é difícil
perceber que eu não preciso mais dela. Essa casa agora é
cheia de vida, é colorida e tem uma esposa me esperando
todos os dias.
Julia assentiu, ainda o olhando com certa piedade. Isaac
não gostava daquele sentimento, como quando tivera de
receber infinitos pêsames duas vezes ao longo de sua vida.
— Demorei para perceber que eu funcionava assim —
continuou ele, voltando a se aproximar da esposa — É o tipo de
coisa que fazemos sem perceber, mas... E me perdoe por trazer
esse assunto à tona, meu amor, mas quando eu voltei para cá e
deixei Lady Thomasina esperando por mim, Price jogou tudo
isso na minha cara. Disse-me que eu passaria a vida toda
sozinho se pensasse que uma fábrica é mais importante que ter
uma família.
Ele ouviu um risinho baixo da esposa.
— É para isso que os criados pessoais servem — comentou
Julia — Eventualmente eles terão algum surto de impertinência
e nos dirão verdades terríveis.
— Eu precisava ouvir aquilo — depois de um silêncio
pensativo, ele disse: — Não estou lhe dando desculpas por
magoá-la, só gostaria de me explicar. Eu sei o que faço e me
sinto mal quando percebo como as horas se passaram e eu não
percebi.
Julia compreendeu com um aceno de cabeça.
— Posso fazer um pedido? — perguntou ela — Não vou
pedir que mude, acho que mudar é uma escolha que deve partir
de nós mesmos e não ser forçada por outros.
Ele assentiu, segurando uma mecha dos cabelos da esposa
e a escovando.
— Quando eu estiver no final da gravidez, não fique fora por
muito tempo. Eu não quero passar por um momento assustador
sem tê-lo comigo, eu tenho muito medo de... Acontecer alguma
coisa.
Ele tinha certeza de que, no momento que Julia estivesse
com a barriga maior, ele não conseguiria ficar longe dela por
muito tempo.
— Não precisa pedir por isso — assegurou, abaixando-se
ao lado dela e tomando uma de suas mãos para beijá-la sobre
o nó dos dedos — Eu te amo.
Ela sorriu, um tanto abatida, mas ainda assim era um
sorriso.
— Ainda estou chateada com você, mas ainda te amo. E...
Obrigada por me amar.
— Não agradeça, é o mínimo que um homem deve sentir
por você.
Uma das sobrancelhas muito claras dela se ergueu.
— Posso então permitir que outros homens clamem seu
amor por mim por aí?
— Não! — disse de imediato, feliz por ouvir uma risada da
esposa — Acho que não pensei bem no meu flerte dessa vez...
Dessa vez foi ela ao escovar os cabelos do marido.
— Não precisa vir cavalgando, prefiro que venha na
segurança da carruagem. Você sempre chega todo bagunçado
e sujo.
Porque ele vinha galopando aos ventos para não se atrasar.
A esposa podia achar que ele não se importava, mas ele
pensava em Julia a cada momento. Em uma eterna guerra
entre voltar para ela e não deixar suas responsabilidades de
lado.
Ele a tomou pelas mãos, beijando-as antes de perguntar
preocupado:
— Está infeliz aqui, Julia? Eu a faço infeliz?
Ela fez que não, mas ainda um tanto cabisbaixa.
— Você me faz muito feliz, Isaac. Só estou frustrada com
algumas coisas — Julia deu um suspiro pesado seguido de um
muxoxo — Acho que todas as esposas passam por isso,
acostumar-se a viver longe da família antiga e criar uma nova.
Mas eu tenho minha tia aqui comigo.
— E tem a mim — afirmou Isaac — Você me tem por
inteiro, Julia. Teremos uma vida inteira juntos, estamos apenas
no começo. Aprendendo a viver com outro alguém depois de
toda uma vida sozinhos.
Ela abriu um sorriso genuíno e simples, mas Isaac sabia
que era feliz. A forma como ela o olhou transbordou afeição e
ele decidiu que era hora de mudar seus hábitos no trabalho.
— Eu preciso de um banho. Sinto que o dia de hoje durou
uma semana.
Em um dia ele havia declarado seu amor para a esposa,
mandando um espião para uma das tecelagens locais, jantado
com Lorde e Lady Houghton e irritado a esposa - mais uma vez.
Precisava dormir para ter certeza de que estava tudo
terminado.
CAPÍTULO 22

Devia haver uma razão para que Isaac fosse tão focado em
trabalhar, além dos motivos que ele hipotetizara. Uma razão que
Julia não compreendia. O homem frequentara uma universidade
diferente das dos demais aristocratas, não fora um rapaz lascivo,
nem tinha uma contagem grande de mulheres em seu histórico.
Julia tinha referências masculinas que não se encaixavam muito
naquilo e, por mais tola que sentisse ao pensar aquilo, tinha a ideia
de que todos os homens experimentavam a mesma juventude
libertina.
Alguém deveria ensinar as moças solteiras mais sobre os
homens. Ela lembraria de dizer às filhas que os cavalheiros devem
ser doces e respeitosos como o pai delas. Não que Julia quisesse
que seu marido tivesse sido um patife, mas ela queria compreender
porque ele não se permitia se divertir de uma forma saudável. Ele
mesmo dissera que gostava de festas e de conhecer novas
pessoas. Quando ela ainda o observava no canto dos salões de
baile, Julia o via ir embora antes de todos e deixar Londres antes da
temporada acabar. Era jovem, bonito, ele não precisava ganhar
cabelos grisalhos antes da hora.
Talvez fosse uma promessa ao pai, algo que os herdeiros
precisam fazer. Assim como ela tinha o dever de se casar com um
homem de ótimas referências de modo a garantir o sucesso das
irmãs mais novas, um herdeiro tinha seus deveres a cumprir.
Ela amanheceu curiosa, desde a noite passada, quando o
marido desconversou sobre um tal sócio. Julia não desconfiava que
Isaac estivesse a traindo, mas algo estranho estava acontecendo.
Ele podia se meter em algum problema com os operários e os
sindicalistas como quando a introdução das máquinas levou ao
incêndio criminoso.
Só não sabia o que esse problema poderia ser.
E ela também queria uma desculpa para ir à fábrica ver o
marido e conhecer mais as partes menos nobres que ele não
mostrava. E queria uma desculpa para cavalgar. Perguntara a
Gladys se ela podia cavalgar e a tia disse que, se cavalgasse como
uma mulher decente, nada de ruim aconteceria enquanto ela não
tivesse uma barriga muito grande. E por mulher decente Julia
entendeu uma que usava um lindo vestido e uma cela lateral.
Não gostou da resposta da tia então perguntou para a
cozinheira, que tinha dois filhos e uma filha, que tipo de atividades
ela podia manter no início da gravidez. A mulher respondeu a
mesma coisa, já que sabia que a marquesa cavalgava feito um
homem de modo bastante perigoso.
Derrotada, Julia pediu que o cavalariço preparasse a carruagem
para levá-la até a tecelagem. Estava se sentindo bem naquele dia,
tinha certeza que seu bebê estava germinando a todo vapor dentro
dela sem lhe causar nenhum enjoo.
Quando chegou à fábrica, foi recebida por Price assim que o
cocheiro abriu a porta da carruagem para ela descer. O secretário
se ofereceu para ajudá-la, bastante surpreso por vê-la ali.
— Minha digníssima Lady Winsford, que surpresa agradável —
o homem disse com um sorriso educado, soltando sua mão assim
que ela estava na segurança do chão — A senhora está uma graça
como sempre!
Julia agradeceu com um aceno de cabeça muito elegante.
— Faz décadas que eu não o vejo, Sr. Price. Como vão as
coisas?
— Muito bem, obrigado. Devo parabenizá-la pela gravidez,
madame, é um momento de muita alegria.
— Obrigada — ela resistiu ao impulso de tocar sua barriga
inexistente e segurou no braço de Price — Meu marido comentou
que o senhor tem uma lista de nomes.
O secretário riu enquanto passavam pelo arco alto da enorme
porta do prédio administrativo, sempre aberta para receber os
compradores.
— Sugeri alguns, sim. Lorde Winsford gostou do nome Oliver,
mas precisa de sua permissão primeiro.
— Oliver é um nome lindo — respondeu ela — Imagino um
menino muito bonito tendo um nome desse.
Os dois pararam no vasto vestíbulo do prédio de tijolos. As
bobinas ainda formavam um corredor, lindos mostruários para os
grandes compradores verem.
— Com todo o respeito, Lady Winsford, duvido que a senhora
seja capaz de produzir filhos feios.
Julia corou e abaixou o rosto um tanto risonha. Quando
percebeu que Price a levava na direção de onde ficava o escritório
de Isaac, ela o puxou levemente pelo braço.
— Gostaria de dar uma volta — ela abriu um sorriso muito doce
e inocente para o secretário — Até agora não conheci o restante da
fábrica, apenas o prédio administrativo. E o senhor me prometeu
uma tour.
Price assentiu, um tanto surpreso e relutante.
— Não posso conhecer o restante? — perguntou Julia — Não
creio que ver galpões com operários possa ferir minha honra. E,
como marquesa, tenho interesse em tudo que faz parte do
patrimônio da minha família. Posso ou não posso?
— Claro que pode, Lady Winsford — o homem riu e lhe
estendeu o braço outra vez — Onde quer ir primeiro?
— Aonde o senhor quiser me levar primeiro.
Price meneou a cabeça e indicou o caminho. Ambos
atravessaram o vestíbulo com seu corredor de bobinas, onde uma
porta dupla de madeira dava lugar a um corredor horizontal. De
onde ela estava, podia ir tanto para a esquerda quanto para a
direita. Na parede em frente a porta a primeira coisa que viam era o
brasão dos Ballard acima do nome da tecelagem e seu ano de
fundação. Pouco menos de cem anos, o que era pouco, da
perspectiva de Julia, para uma companhia bem estabelecida.
— A esquerda temos o lanifício — Price indicou um dos lados
do longo corredor — Todos os galpões ficam lado a lado, com a
linha de produção específica para cada estágio. A fiação e a
tecelagem. O mesmo acontece com o algodão, do outro lado, mas é
um processo diferente.
— Quero ver — ela sorriu, curiosa de ver a fibra de uma flor se
tornar linha e tecido — Podemos?
— Claro, madame — ele indicou o caminho para o lado direito.
As paredes de alvenaria logo deram espaço para janelas de
vidro altas que deixavam os galpões expostos.
— A fiação da fibra do algodão.
Ela olhou através do vidro três fileiras de máquinas de tear que
iam até o final do galpão e encostavam no teto. Todas conectadas
por algum tipo de fio que ela não identificou o material. Todas
giravam juntas, movidas a água e com o auxílio de alguma operária.
— Como funcionam essas máquinas? — perguntou, curiosa.
— Não faço a mínima ideia, Lady Winsford. Mas Lorde Winsford
adoraria explicar cada detalhe dessas geringonças, o marquês é
apaixonado por isso.
Julia assentiu. Sabia bem como ele gostava daquilo, o homem
deveria ter se tornado engenheiro e inventando as próprias
máquinas.
— É uma boa desculpa para ganhar a atenção do marquês —
disse Price, lançando uma piscadela a ela.
Julia riu sem muito humor. Até o secretário sabia que Isaac
podia ser um tanto ausente.
— Vamos entrar, quero ver de perto — disse, por fim —
Podemos entrar? Não vou atrapalhar?
— Nada desconcentra essas mulheres — assegurou o
secretário, abrindo a porta de madeira com um painel de vidro —
Por favor.
Ela entrou primeiro, o som do funcionamento das máquinas de
tear não era alto, mas a quantidade delas no ambiente transformava
tudo em uma cacofonia ritmada. Julia percebeu uma camada branca
cobrindo algumas partes do chão. Abaixo dos seus pés, fino e
felpudo. Eram pequeninas fibras de algodão, acumuladas no chão e
nas superfícies de um jeito que parecia uma poeira macia. Julia
esfregou o pé contra o piso e as viu voarem com facilidade.
Com certeza aquele tipo de coisa devia entrar pelo nariz e boca
e sabe-se lá o que faria com os operários.
Que na verdade eram operárias. Todas ocupadas pegando rolos
grandes de linha das máquinas e os colocando sobre carrinhos de
madeira. Enquanto que outras trabalhavam para manter as
máquinas funcionando, tendo de girar algo aqui ou ali. Encaixar um
cilindro para uma nova bobina. Empurrar um carrinho carregado até
o outro lado do galpão.
— Que curioso... Só há mulheres?
— Aqui dentro, sim — explicou Price — As mãos são pequenas
e delicadas. As mãos de um homem podem facilmente arrebentar
um fio, por isso eles ficam em outros departamentos.
Julia assentiu, olhando pensativa. Eram muitas mulheres, de
todas as idades. Exceto crianças, o que ela aprovou.
— São muitas pessoas — comentou — Onde moram? Não
podem morar muito longe, compromete a qualidade do trabalho.
Price riu, mas logo disfarçou tudo com uma tosse. Julia o olhou,
indagativa.
— A senhora tem uma mente muito empreendedora, Lady
Winsford.
— Bem... Eu sempre gostei de contabilidade. Li sobre todo o
funcionamento da fábrica em números, nos livros caixa. Agora estou
vendo pessoalmente.
— Um interesse incomum, minha lady — comentou Price —
Mas muito bem vindo, talvez Lorde Winsford ouça a senhora quando
der algum conselho. Porque a mim ele não escuta. Uma esposa tem
mais estima que um secretário.
Julia soltou um risinho baixo, negando com a cabeça.
— Darei o meu melhor, Sr. Price.
O homem agradeceu com um meneio muito elegante.
— Mas respondendo a sua primeira pergunta: Algumas famílias
moram na vila operária. Mas a maioria vive nos arredores de
Chester. Alguns têm família nas fazendas, gerações que vivem nas
terras dos Ballard.
A fábrica da família do marido devia fazer muito bem pela
economia de Cheshire.
— Suponho que pessoas de todo o condado sejam
contratadas?
Price assentiu um tanto dúbio.
— Não temos muitos funcionários como fábricas maiores,
apesar de Lorde Winsford ser referência na produção de algodão e
lã. Por vezes, a qualidade de um negócio de família enraizado é o
suficiente para a reputação. Não é preciso um complexo gigantesco
de galpões.
Julia aquiesceu. Já vira fábricas muito maiores em Londres.
Mas ela sabia que o marido tinha renome na indústria têxtil. Ela lera
todos os livros contábeis e registros do escritório de Isaac, que não
se importava que ela o fizesse.
— Quantas pessoas trabalham aqui?
O homem pareceu pensar.
— Umas quinhentas pessoas.
Ela ergueu as sobrancelhas. Era muita gente, ao seu ver.
— Uma noite no Almack's, suponho — Price observou.
Julia riu. Alguns salões londrinos ficavam abarrotados. Curiosa,
ela olhou para o empregado do marido.
— O senhor já foi ao Almack's?
Um homem comum como Price não deveria frequentar lugares
exclusivos em Londres.
— Ainda não tive o desprazer, Lady Winsford.
A marquesa gargalhou e rapidamente cobriu os lábios quando
viu algumas operárias olharem para ela por cima do ombro.
— Sou apenas um secretário, no final das contas — finalizou
Price, tocando o peito bastante pomposo — Em lugares como
Liverpool e Manchester há fábricas ainda maiores. E, se me permite
dizer, são repugnantes.
Ela o seguiu para o largo corredor outra vez.
— Por que acha isso?
— Estamos no meio do campo, longe dos centros mais
conurbados. Tenho a teoria de que o vento leva as impurezas das
chaminés, mantendo o ar campestre. Mas em Liverpool? Fica pela
cidade, pairando no ar. Com a evolução das máquinas as coisas
não param de crescer.
Julia conhecia aquele tipo de ar pesado, crescera em Londres.
Algumas partes da cidade eram até mais escuras e nubladas, ela
percebia mesmo dentro da segurança de uma carruagem bem
fechada. O porto na beira do Tâmisa, de acordo com David, era um
mundo à parte. Como uma dama de ótima estirpe, Julia nunca havia
frequentado aqueles lugares.
Não que a curiosidade aceitasse um não como resposta.
— Há outras tecelagens no condado? Isaac comentou que
Cheshire tem um histórico têxtil.
— De certo modo, sim — respondeu, pensativo — Mas são
pequenas, negócios de família e antigos. Focam geralmente na
produção de seda, alguns trabalham com linho. Então não são
concorrência diretamente. É como uma selva onde todos coexistem
em paz.
— Mas meu marido começou uma sericultura... — observou
Julia — Acha que ele pode competir com uma marca tradicional e
que existe há muito mais tempo?
Price deu um muxoxo e exalou, incerto.
— Lorde Winsford é muito teimoso, minha lady. Desde que me
contratou, quando o pai ainda era vivo, o marquês sempre tentava
convencer o falecido Lorde Winsford a ramificar a tecelagem para a
produção de seda. Diz que o futuro das indústrias é produzir muito e
em variedade.
Julia meneou com a cabeça.
— Ele gosta muito disso — respondeu ela — Nada tirará de sua
cabeça o desejo dele.
O secretário concordou com um aceno.
— Temos certeza de que o nome da família e a reputação da
tecelagem irão alavancar as vendas e Lorde Winsford voltará a
pensar em outros assuntos.
— Isso não irritaria os pequenos produtores outrora salvos por
serem os únicos sericultores?
Price exalou outra vez. Julia começou a se preocupar, juntando
todos os fatos.
O marido monopolizava o algodão e a lã, mas a seda ainda era
domínio das familiares que não se comparavam com o tamanho de
uma fábrica. Então ele havia decidido produzir seda, em seu modo
de produção em massa.
— Vamos torcer para que isso não cause nenhuma briga entre
magnatas — disse ela, com um sorriso gentil — Porque eu também
gostaria de ver o sucesso do negócio da minha família.
O marido apoiava seus desejos de cavalgar, correr e saltar. Não
reclamava de seus trajes masculinos. Havia mandado instalar um
circuito para ela treinar. O mínimo que ela queria fazer como
agradecimento era apoiar o marido no que ele queria. E, pensando
bem, Julia gostava de ter um marido bem sucedido. Se ele queria
ser um grande produtor de seda inglês, bem, ela não via a hora de
vestir-se com a seda de Isaac.
***

Price foi muito atencioso e divertido como sempre, mostrando a


ela cada galpão, embora não fosse tão bom em explicar o processo
das coisas. De fato, Isaac era melhor naquilo. O marido gostava do
que fazia, sabia sobre cada aspecto de uma tecelagem e conhecia
as máquinas como se ele mesmo as tivesse projetado.
Ela não achou nada deselegante e inadequado para os olhos de
uma dama. Mais uma das baboseiras que os homens falam sobre
as mulheres. Achara todo o maquinário muito curioso e perguntaria
ao marido como aquilo funcionava, tinha certeza que ele adoraria
falar por horas a fio sobre o assunto.
Julia olhou para seu relógio pequenino pendurado em uma
correntinha na sua cintura, já eram quatro horas. Ao retornar para o
vestíbulo ela não precisou mais de Price, que tinha muito o que
fazer. De lá ela sabia ir até o escritório do marido no segundo andar.
Encontrou com um dos contadores, o idoso Sr. Hillington. O homem
era a própria felicidade sempre que Julia ia até a tecelagem e ela
sempre se lembrava de perguntar sobre as netas do contador - que
ficava ainda mais feliz de falar sobre elas.
Depois da longa conversa sobre netas vivendo em todos os
cantos da Inglaterra, Julia continuou seu caminho até a sala do
marido, que ficava no final de um corredor de paredes de painéis
escuros.
Quando chegou ao corredor, viu uma criada recostada na porta,
o ouvido colado na madeira grossa.
— O que está ouvindo na porta do escritório de meu marido? —
Julia perguntou imediatamente.
A criada ficou roxa, alisando o avental branco enérgicamente.
Julia nunca havia visto aquela empregada ali e, pela cara de horror
da moça, era a primeira vez que via a marquesa. Tinha os cabelos
loiros escuros, talvez uns três anos mais velha.
— L-Lady Winsford — ela fez uma mesura — Estava apenas...
Lorde Winsford pediu chá e eu vim entregar.
O marido não gostava de chá e só o tomava quando
acompanhava Julia. E tomava com muito leite para mascarar o
gosto.
Isaac nunca pediria chá para si.
— Volte ao trabalho — ela ordenou em um tom ríspido que lhe
soou muito estranho — Se eu souber que bisbilhotou meu marido
outra vez eu mesma tomarei as providências para que isso não se
repita.
A criada assentiu e saiu o mais apressada que pode.
No entanto, assim que estava sozinha, Julia encostou o ouvido
na porta e ouviu o marido conversando com alguém. Não entendeu
muito bem as palavras, mas ouviu outra vez, bastante jovial. Um
rapaz, talvez.
Ela se empertigou, envergonhada diante do próprio
comportamento. Bateu na porta e esperou ouvir a voz de Isaac.
— Deve ser Price — ela ouviu do outro lado da porta. O marido
abriu e ficou muito surpreso ao vê-la — Julia?
— Vim visitá-lo — ela entrou sem cerimônia, dando de cara com
um rapaz um pouco mais novo que ela vestido de modo muito
simples — Boa tarde...
O jovem levou a mão ao peito e a reverenciou.
— Lady Winsford.
— Terminamos por aqui — Isaac anunciou e indicou a porta do
pátio para o rapaz — Vá falar com Price.
Ele saiu e o silêncio caiu no escritório. Julia olhou para a mesa
do marido, não havia chá. E duvidava que ele fosse oferecer para
um rapaz simples como aquele.
— Quem era? — perguntou ela, colocando seus pertences em
cima da chaise próxima ao decantador.
— Estava dando uma bronca em um funcionário, não se
preocupe — Isaac lhe lançou um sorriso afável e se dirigiu até a
campainha — Quer que eu mande trazer chá?
— Já não pediu chá antes?
O marido pareceu confuso, negando.
— Depois, então — respondeu ela, enfim, sentando-se na
cadeira do marido.
Isaac riu da atitude dela, já acostumado em deixar a esposa se
sentar ali. Isso quando ela não pedia para ver as transações e os
gastos. Julia sorriu para o marido e apontou para que ele se
sentasse na frente, na poltrona das visitas.
— Quantas empregadas trabalham nesse prédio? — ela
perguntou, pegando uma pena sobre a mesa e alisando as barbas
macias.
O marido pareceu pensar e deu de ombros.
— Três, suponho.
— Sabe o nome delas?
— Apenas da que me serve pessoalmente. As outras não me
lembro nem do rosto. Os administradores devem saber os nomes.
Por que esse interrogatório sobre criadas?
Julia foi a que deu de ombros dessa vez.
— Estava só curiosa mesmo... Estou com fome — disse, por
fim, abrindo um sorriso para o marido.
Isaac fez as honras e puxou a campainha. A criada que
apareceu não foi a que Julia viu na porta, mas a que sempre vinha
servi-los. Uma jovem de cabelos castanhos chamada Rosalind
Baker.
— Hoje o Sr. Price me levou para ver os galpões — anunciou
ela assim que Rosalind os deixou — As máquinas são muito
curiosas. Gostaria que me explicasse como elas funcionam.
— Seria um prazer — ele indicou a mesa na qual ela apoiava os
cotovelos — Na segunda gaveta à esquerda há uma pasta com os
diagramas de algumas máquinas.
Julia se animou instantaneamente, abrindo a gaveta e tirando
de lá o que ela sentiu como se fosse um tesouro. O marido se
levantou e ficou ao lado dela, repousando a mão em seu ombro
quando parou ao lado da cadeira. Folheou os vários diagramas,
entendo como alguns mecanismos funcionavam. Mal percebeu
quando ele se abaixou enquanto ela tentava entender o
funcionamento das coisas. Isaac repousava seu queixo no ombro
dela, indicando alguns aspectos das plantas com os dedos, apenas
para poder dar um beijo contra o rosto de Julia que se virou para
beijá-lo nos lábios.
Antes de poderem se demorar no beijo, a criada bateu na porta
e entrou, fazendo os dois se afastarem. Isaac retornou para seu
posto na cadeira em frente a mesa e deixou que Julia desfrutasse
de seu banquete. Três tipos de biscoitos diferentes e sanduíches
pequeninos recheados de geleia que Julia devorou, terminando tudo
com um bom chá que apenas ela tomou. Seu apreço por doces
parecia só aumentar conforme os dias passavam, devia ser algo da
gravidez.
Isaac decidiu que era bom comer pelo menos um biscoito antes
que todos se resumissem a farelos.
— Ah, você queria também? — ela perguntou cheia de culpa.
Ele riu do tom piedoso dela.
— Agora não há mais uma poeira restante para mim — em um
tom brincalhão, Isaac virou o pratinho de cabeça para baixo.
Julia desconversou com um aceno, afastando os diagramas do
marido dos farelos de sua comilança. Respondeu no mesmo tom
jocoso:
— Estou comendo por dois, o senhor sabe muito bem, meu
lorde.
A geleia estava uma delícia e ela não resistiu em pegar a menor
molheira que já vira na vida com uma quantidade extra de geleia.
Tocou com a pontinha do dedo e o levou até os lábios.
Isaac estava a olhando intensamente, Julia percebia o olhar
sobre seus lábios. Ela, feito uma tola, tirou o indicador dos lábios.
— Não fique me olhando enquanto eu como feito uma louca —
disse ela, constrangida.
O marido sorriu risonho, arrumando-se na poltrona ao colocar
um calcanhar por cima do joelho.
— Estou a admirando... Gosto de suas mãos.
Ela olhou para as mãos. Uma parte tão corriqueira de seu
corpo. Não havia nada ali além do anel de esmeralda que ela usava
sempre, seu anel de casamento.
— São elegantes — terminou ele, colocando os dois pés no
chão e tocando sua coxa — Sente aqui, minha querida.
Julia deixou o guardanapo em cima da bandeja e se levantou,
sentando-se de lado sobre as pernas do marido e o envolvendo pelo
pescoço. O pedido soara muito carinhoso, mas ela conhecia o olhar
do marido sobre ela. Quando ele ia de adorável para o homem que
a possuía com tanto vigor que a fazia se desmanchar todinha. E
tudo que ela precisou fazer foi sugar o próprio dedo.
Isaac segurou uma de suas mãos, admirando os dedos esguios
e pálidos dela antes de beijá-los sem tirar os olhos de Julia. Ela
corou, mas não desviou o olhar até perder os olhos nos lábios do
marido. Tocou ali, com o indicador, antes de segurá-lo pelo maxilar e
beijá-lo com um ardor repentino. Então os dois foram tomados pelo
calor, a paixão e o desejo.
Uma das mãos de Isaac subiu por suas costas, encontrando os
cabelos dela e soltando os grampos que prendiam a coroa de trança
em sua nuca. Natalie ficaria muito triste com aquilo, mas Julia
adorava sentir a mão dele segurando seu cabelo, fazendo-a mover
a cabeça para lhe dar espaço para mais beijos.
Julia já conhecia o desejo que sentia por ele. Aquelas
sensações deliciosas que se apossavam dos dois quase que
instantaneamente. Bastava um olhar, quando acordavam pela
manhã, e um abraço longo demais para que ele estivesse dentro
dela. O fato dele pertencer a ela era o que a incendiava. Dele amá-
la e dizer aquilo sem vergonha alguma. Poder fazer o que quiser
com o marido, porque ele gostava de tudo o que ela fazia e pedia
que ele fizesse.
Amaldiçoou o vestido de passeio que usava, a chemisette de
renda ia até seu pescoço e impedia que Isaac a beijasse em sua
pele nua. Mas aquilo não o parou, ele a adorou pelo seu maxilar,
beijando-a por ali enquanto suas mãos abriam os ganchinhos do
vestido.
Se um dia tivera dificuldades em despí-la nos jardins dos Smith,
ele já não era mais assim. Ela logo estava com o vestido frouxo e
sentiu ele puxar o laço do espartilho com rapidez. A chemisette
abominável que ela vestia foi arrancada pelo Isaac vigoroso, mas
quando ele a tocou em seu colo e puxou o vestido para baixo, foi o
toque do Isaac doce que ela sentiu.
Julia se derreteu contra o toque quente das mãos dele sobre o
volume de seu seio esquerdo, sentindo o ar contra sua pele quando
ele o libertou das roupas o suficiente para que seus lábios o
tocassem. Enquanto sugava o mamilo rosado, uma de suas mãos
se embrenhou por debaixo das saias, encontrando a liga da meia e
desfazendo o laço da fita.
Ele estava a torturando com carícias, puxando a meia para
baixo para que tocasse a pele nua de sua perna. Lambendo e
sugando seu seio até fazê-la soltar um sonzinho de prazer que a
deixou vermelha. Estavam na fábrica, meu Deus, alguém poderia
ouvir.
Dois dedos deslizaram pela delicadeza de sua feminilidade,
penetrando-a facilmente e a fazendo sentir seu prazer pulsar no
fundo dela. Ela imediatamente esqueceu onde estavam e tudo que
ela conseguia pensar era em como precisava do marido.
Isaac a olhou intensamente, admirando as expressões de
prazer que Julia fazia, trêmula toda vez que ele deslizava o polegar
em círculos por cima de seu ponto mais sensível.
Ele os moveu com mais pressão e rapidez, dessa vez
admirando o rosto da esposa que mantinha os lábios entreabertos e
os olhos fechados. O rubor em seu rosto era fruto do puro prazer
que ela sentia e ele não desejou nada além de fazê-la se
desmanchar em sua mão. Os dedos delicados dela o apertaram no
ombro, um sinal de que ele deveria continuar.
— Isaac — suplicou ela, um gemido alto demais se emendando
ao som de seu nome.
Isaac sorriu vitorioso, calando-a quando colou seus lábios no
dela e sugou sua lingua. Tocando-a com mais rapidez, ele passou
toda a atenção para o ponto mais sensível de Julia. Capturou seus
lábios em outro beijo profundo antes que ela fizesse algum som alto
demais, saboreando o gemido necessitado e urgente dela quando
atingiu seu clímax.
Julia finalmente correspondeu ao beijo, lânguida e debruçada
sobre o colo de Isaac. Sua esposa era perfeita, ele não cansava de
se orgulhar daquilo. A simples expressão de prazer dela ao
saborear a geleia foi o suficiente para ele decidir que a queria
naquele momento. E as mãos, tão elegantes e pálidas, o fez pensar
em todos os locais do corpo dele que ela poderia tocar. Mas quando
Julia se sentou em seu colo, tudo o que ele decidiu foi que seria ele
quem iria tocá-la.
Julia abriu os olhos levemente, pairando o olhar sobre a chaise
ao lado do decantador, onde jogara seus pertences.
— Vamos para lá — sussurrou ela, necessitada de sentir mais
que os dedos dele — S-Sente ali.
Ele olhou por sobre o ombro para o móvel confortável e macio.
Ergueu Julia em seus braços, fazendo-a rir com o entusiasmo dele
em continuar o que faziam. Mas antes que ele pudesse colocá-la ali,
Julia saiu de seus braços e o empurrou contra o estofado. O vestido
estava frouxo o bastante para que ela se livrasse dele, ficando em
suas roupas de baixo que se resumiam a uma chemise, suas meias
e o espartilho aberto que ela logo tirou.
— Você está tão vestido — resmungou ela, abrindo os botões
do colete do marido assim que se sentou sobre o quadril dele.
Isaac sempre a obedecia e Julia adorava aquilo. Adorava
quando ficava por cima e o despia, ansiosa. Ajudou o marquês a se
desfazer de sua blusa enquanto ele abria os botões da calça em
uma dança embolada que os dois dançavam muito bem. Logo ela
estava sentindo a pele dele contra a sua, o calor de seu peito nu
debaixo de suas mãos, a firmeza de seu membro duro contra a
delicadeza de sua feminilidade macia. No chão, uma bagunça de
roupa e ambos perfeitamente confortáveis na chaise.
Ela se encaixou por cima dele, sentindo-o por entre seus lábios
delicados e molhados, enquanto se movia o fazendo deslizar. Ouviu
um som masculino e baixo escapar dos lábios do marido, que
mantinha suas mãos firmes na cintura dela por debaixo da chemise.
Não sabia o que dera nela para querê-lo tanto naquele
momento, tão de repente. Mas, conforme controlava os próprios
suspiros, via-se deliciada com a aura de proibição que estar no
escritório dele tinha. A adrenalina de não poder ser ouvida ou vista.
Julia se abaixou para beijá-lo, gemendo contra os lábios dele
quando as mãos de Isaac apertaram suas nádegas e o quadril dele
pressionou contra o dela. Ela estava tão quente e tão molhada que
já podia senti-lo quase entrando nela.
— Coloque-o em mim — ela pediu em meio ao beijo, arfando
quando o sentiu possuí-la lentamente.
Os dois mantinham um ritmo lento, os olhos presos um no outro,
transbordando desejo e carinho em uma mistura íntima de
sentimentos. Queria beijá-lo, mas também queria ter os olhos
castanhos dele nela daquele jeito que a fazia se sentir a mulher
mais maravilhosa do mundo. Quando ficava por cima, ela podia
admirar toda a beleza de Isaac, toda a luxúria de seu corpo nu.
E ela se sentia tão amada. Abriu um sorriso sensual para ele,
derramando seu amor e sua paixão em Isaac ao sussurrar que o
amava. Beijou-o ardentemente, as mãos dele a segurando com
mais firmeza em sua cintura quando ela passou a se mover com
mais pressão e ele, erguê-la sutilmente pelo quadril. Queria-o mais
forte, qualquer coisa que fosse mais. Quando eles trocaram um
olhar novamente, o marido soube o que ela queria. Ele já a
conhecia, sabia do que ela gostava.
— Mais — ela ordenou, um sussurro quente contra o lábios dele
— Mais forte, por favor.
Julia sentiu o sorriso lascivo do marido em meio ao beijo que a
dominou calorosamente. No momento ela não queria seu adorável
marquês. Ela queria seu marido que a possuía por completo, que a
preenchia por dentro e que marcava sua pele.
Isaac a deitou contra a chaise em outra dança que apenas os
dois sabiam dançar. Julia recostada contra o estofado macio, seus
cabelos quase soltos do penteado e a chemise embolada acima de
sua barriga. Por um momento sentiu falta de tê-lo nela, mas logo ele
investiu mais rápido, forte e firme e ela sentiu uma corrente elétrica
passar pelo seu corpo. Queria gritar, chamar seu nome, mas não
podia. E o fato de não poder a fez querer ainda mais.
Estava se dirigindo à beira daquele precipício que era o prazer
feminino outra vez. Intenso como uma onda forte que se choca
contra a praia e deixa um rastro por onde passa. Um gemido
necessitado e urgente escapou de seus lábios e ela os cobriu com a
mão, um tanto risonha por não se controlar. O marido riu também,
mas não estava menos afoito que ela. Ela via em seu rosto que ele
estava a beira de cair como ela e, se não a beijasse agora, a fábrica
inteira a ouviria despencar.
Julia o puxou pelo pescoço, colando seus lábios no dele e
dando a Isaac todos as suas súplicas de prazer. Quase que juntos,
os dois caíram pelo precipício e ela adorou a sensação escandalosa
que era sentir o prazer quente dele tomá-la por dentro.
Ofegantes, os dois compartilharam de um olhar intenso e longo.
Ela sorriu, sentindo uma imensa vontade de rir após fazer a coisa
mais ousada de sua vida pacata.
— Não sei o que deu em mim... — confessou ela assim que ele
ficou deitado ao lado dela, abraçados na chaise pequena para dois
— Estava tomando chá. Foi tudo culpa sua!
Isaac gargalhou, deslizando a mão pelo ventre dela.
— Às vezes a olho e tudo o que quero é fazer amor com você
— disse, puxando-a para mais perto até ela por sua perna por cima
dele se aninhar confortável — Uma vontade repentina. É sempre
quando vem me visitar.
Ela ergueu uma das sobrancelhas. Ela o visitava, pelo menos,
umas três vezes na semana. Conversavam, tomavam chá e
trocavam dos beijos mais carinhosos. Nada ardente. Ela logo
voltava para casa, não queria tomar todo o tempo do marido para
que ele levasse trabalho para casa.
— Quando eu estou aqui, penso em você o tempo inteiro — ele
continuou, seus olhos escuros sobre os olhos azuis dela, a voz
baixa apenas para que Julia ouvisse — E, então, você aparece,
como se um desejo tivesse sido realizado. E eu me lembro do quão
linda você é. E tudo em você se torna um pecado.
Julia sorriu sutilmente, deslizando a ponta dos dedos pelo rosto
cansado de Isaac.
— Incluindo minhas mãos.
Ele riu outra vez e ela se derreteu com o som. A alegria dele a
deixava feliz e ela tinha certeza de que aquilo era o resultado do
amor. A mais pura empatia.
— Suas mãos ficam muito bonitas tocando algumas partes de
mim — brincou ele em um tom muito sensual, arrancando um
sorriso deleitoso da esposa quando a beijou em seu pescoço —
Você é linda.
Quando a olhou, ela sorriu de novo. Um sorriso que tomou todo
seu rosto e a deixou ainda mais bonita.
— Percebi que seu ventre está diferente — disse ele, deitando-a
de costas e a tocando no espaço entre seu umbigo e onde seus
pelos loiros escondiam sua feminilidade — Um pouquinho. É como
um monte muito pequenino.
Ela havia notado, e Natalie também. Parecia que estava em um
constante estado de quem acabou de comer um banquete. Mas
sabia que o que havia ali era seu bebê e nada a fazia mais feliz.
Quando ela e a criada perceberam que ela estava começando a
mudar, as duas se abraçaram felizes.
— Sr. Price disse que você gostou do nome Oliver. Mas disse
que você ia pedir minha permissão primeiro.
O marido deu uma risada baixa e assentiu.
— Quem está carregando a criança é você, a última palavra é
sua.
— Bem — ela disse com bastante pompa, o tom de voz muito
adequado para alguém que está prestes a declarar alguém um
cavalheiro — Está aprovado, meu lorde. O próximo marquês se
chamará Oliver.
— Agradeço a permissão, Lady Winsford — ele sussurrou
próximo ao ouvido dela, beijando-a em seu pescoço até fazê-la se
contorcer deliciosamente.
Perderam-se em um beijo lento e lânguido, os corpos se unindo
em um abraço sensual que envolvia pernas e braços nus. O desejo
voltou a tomar conta dela, a proibição do momento e o segredo de
estarem ali a fez querer mais.
Com um empurrão leve, ela o deitou contra a chaise. Desceu
seus beijos pelo pescoço do marido, beijando seu pomo de adão
antes de seguir pelo peito. Ela continuou cada vez mais para baixo,
para um local que ela gostava de beijar desde a primeira vez que
tivera a coragem de aquilo. Agora era natural, tal como quando ele a
presenteava com seus lábios, ela fazia o mesmo para ele.
E o gemido masculino e profundo que o marido deu assim que
ela tomou o membro dele em sua boca foi suficiente para ela querer
que Isaac chegasse ao ápice do prazer outra vez.
Assim como ele fazia com ela, ela fazia com ele. Em uma
deliciosa dança à dois.

***

Isaac tivera um dia muito produtivo. Mesmo que tenha ficado


grande parte de sua tarde com a esposa em seu escritório, fora
muito produtivo. Afinal, passaram algumas horas na chaise
alternando entre fazer amor e conversar.
Depois que, infelizmente, sua linda marquesa foi para casa, ele
voltou ao trabalho. Gilbert havia coletado informações pertinentes
sobre a sericultura de Winchester, as operárias e o ritmo de
produção. Era uma empresa pequena ainda muito atrelada à
produção artesanal. Isaac e Price fizeram um dossiê e começaram a
pensar em que outro rapaz enviariam para a próxima tecelagem.
Tinha de ser de confiança, de preferência um que Gilbert
conhecesse.
O garoto ficou de encontrar um de seus primos e levá-lo até a
fábrica para conversar com o marquês. Logo ele teria o método
perfeito de produção que faria sua sericultura ser um sucesso.
Ainda estava longe daquele objetivo. As operárias estavam
pegando o ritmo ainda e não havia produzido uma bobina de malha
se quer, ainda estavam produzindo linha para transformar em tecido.
As mulheres tinham de aprender a serem mais rápidas. Era assim
que as coisas funcionavam, quando um fazia mais sucesso, você
busca entender como. Ele mesmo já havia chutado para fora dois
espiões em sua fábrica, o mais surpreendente é que um deles fora
enviado de Liverpool. Longe demais do polo regional monopolizado
pelo marquês.
Isaac levou aquilo como um elogio a grandeza de seu negócio.
Agora faria o mesmo que fizeram com ele.
Era uma questão de birra. Não queria falhar pelo simples fato de
seu pai ter dito que não daria certo. Isaac era um homem de
negócios e homens de negócios só pensam em sucesso, simples.
Mas ele pensaria naquilo no dia seguinte. Estava em casa,
pronto para se deitar e dormir. Era estritamente proibido pensar na
fábrica enquanto estivesse em casa. Não queria ver sua pequenina
esposa triste e raivosa outra vez.
Por falar nela, quando deixou o quarto de vestir, Julia estava
sentada contra a cabeceira da cama. Um livro em mãos, um lápis e
um caderno encapado em couro muito pequeno. Ao seu lado estava
Sir Jonas com as patas dianteiras e a cabeça debruçadas sobre a
coxa da dona. Aos pés dela, Vivi, o gato tigrado Andrew e o ruivo,
Luke.
Antes do casamento, Isaac adorava quando sua cama ficava
infestada de gatos, mas agora eles o impediam de se aninhar com a
esposa. Principalmente quando Sir Jonas se deitava entre os dois.
— O que está lendo aí? — perguntou assim que tirou o robe
grosso e se posicionou contra a cabeceira.
Os quatro gatos permaneceram imóveis em seu profundo sono
felino.
— Estava começando a esquecer um pouco de grego —
respondeu ela, mostrando o caderno cheio de anotações em grego.
Ele reconheceria as letras, mas a caligrafia de Julia tinha a fluência
de um nativo e não o padrão de uma letra impressa que Isaac e
outros homens aprendiam na escola — Achei esse livro na
biblioteca, entre outros que pareciam ser muito chatos. Há tantos
livros velhos demais, temos que atualizar o catálogo.
Que a esposa ficasse à vontade para fazer aquilo, assim como
ela havia redecorado a casa.
Ele olhou para a capa, mas não entendeu nada. Verdade seja
dita, a maioria dos garotos não se davam ao trabalho de aprender
grego ou latim na escola. Não a ponto de chegar a fluência. Quando
chegavam a idade adulta já não se lembravam de quase nada,
exceto pelos que realmente se interessavam por aquele tipo de
coisa.
— Sobre o que é?
— Arquitetura, não me interessa muito — Julia deu um muxoxo
— Mas tem muitos termos que desconheço e gosto de expandir o
vocabulário.
Da próxima vez que tivesse de ir ao continente, muito
provavelmente a França, levaria sua marquesa consigo. Julia era
uma mulher muito culta, com toda certeza deveria conhecer lugares
para além do Reino Unido.
— Quando formos a Londres, vamos comprar alguns livros de
seu interesse. Bem, eu compro para você, acho que não vendem
essas coisas em livrarias para mulheres. Não nos idiomas que você
fala. Apenas francês, tenho certeza.
Havia sempre um livro em francês em sua cabeceira,
encontrado nos cantinhos menos acessados da biblioteca dos
Ballard.
— Meu pai disse que eu deveria aprender portugês também. Diz
que é semelhante ao espanhol e ao italiano. Eu tentei aprender, ele
tinha muitas correspondências com portugueses, eu o ajudava às
vezes.
— Tenho muito orgulho dos seus talentos, Julia — disse,
satisfeito ao vê-la corar — Ter aprendido tudo isso por si mesma é
um feito e tanto. Já lhe disse isso, não disse?
Ela assentiu, abaixando o rosto sutilmente como forma de
escapar dos elogios.
— Sabe que posso ficar a noite inteira elogiando você. E eu já
fiz isso.
Julia se rendeu às graças do marido e riu.
— Não há muito o que se fazer além de se encher de cultura
quando tudo o que lhe é esperado é bordar e enlaçar um lorde —
disse, deixando os estudos de lado — Jane sempre lamenta o fato
de não termos a mesma educação que os homens. Ainda assim, ela
é mais inteligente que todas nós juntas.
— Mas quantos idiomas ela fala?
Julia riu e corou. A agora prima só falava o bom e velho inglês.
Julia era a única que, vivendo no ócio que era a vida de uma dama,
desafiou a si mesma a aprender outros idiomas. De um modo geral,
cada uma de suas amigas gastara as energias enriquecendo a
mente com algum talento especial. Petúnia pintava, Tamsin tocava
piano, Jane era uma erudita de marca maior e Julia... Bem, ser
poliglota deveria servir de alguma coisa.
— Você é uma mulher cheia de qualidades, Julia — afirmou
Isaac, prendendo o olhar dela no seu — É linda, inteligente, muito
doce com as pessoas comuns. Há muito o que se amar em você.
Ela abaixou o rosto vermelho outra vez e desconversou com
algumas palavras que ele não entendeu. Sua esposa ainda se
desconcertava com elogios, sempre ficando sem reação e era um
de seus charmes. Mas ele sabia que aquilo a fazia feliz e jamais
pararia de relembrá-la de suas inúmeras qualidades só porque ela
não saltitava. Ela ouvia, sorria, mas era tímida por natureza. Eram
coisas que não deveriam tentar ser mudadas, apenas
compreendidas e respeitadas.
— Ah, eu queria lhe dizer algo... — ela pigarreou, colocando Sir
Jonas ao pé da cama como todos os outros gatos.
Isaac aproveitou para puxar a esposa para seus braços antes
que o gato retornasse. Julia assoprou a vela em sua cabeceira e se
aconchegou com o marido.
— Hoje, quando fui ao seu escritório, havia uma criada ouvindo
atrás da porta.
Ele enrijeceu.
— Mas ela devia estar ouvindo você dar uma bronca no rapaz?
— Julia soou incerta — Tenho certeza que ela não repetirá isso, eu
disse que eu mesma a demitiria.
Isaac não teve tempo de rir do tom irritado da esposa. Estava
ocupado demais pensando no que a criada deveria ter ouvido. Fazia
pouco mais de um ano que tivera um espião na tecelagem, aquele
que viera de Liverpool.
— Como ela era?
A esposa pareceu pensar.
— Cabelo loiro escuro, um pouco mais alta que eu. Minha
idade, provavelmente. Ou um pouco mais velha.
Iria interrogá-la até saber o motivo por ela ter bisbilhotado pela
porta e saber se era pertinente tirar o emprego da moça.
Provavelmente uma inocente como Gilbert que só precisava de um
bom dinheiro. Mas Gilbert era um de seus arrendatários, sua família
vivia nas terras dos Ballard desde antes de Isaac nascer. Era fiel ao
marquês, gostava dele.
A criada, ele já não sabia. Podia ser uma moça de Chester, sem
nenhuma ligação com tudo que o marquesado protegia e
gerenciava.
— O que você vai fazer? — Julia perguntou, apoiando-se no
peito do marido para olhá-lo melhor.
— Nada, meu amor — não queria que a esposa soubesse que
ele andava espionando a concorrência — Ela não ouviu nada de
importante, eu só dei uma bronca no garoto.
— Se descobrir algo de interessante, me conte.
— Como quiser, capitã.
Julia se deu por satisfeita e, com isso, ela o beijou suavemente
contra os lábios e se aconchegou para dormir. Em menos de dez
minutos ela já havia adormecido e respirava calma e tranquilamente.
Ele, por sua vez, continuou pensando na criada.
CAPÍTULO 23

Price fechou a porta com todo o cuidado do mundo quando viu o


quão irritado Isaac parecia estar.
O homem estava fumando de novo. E, vale lembrar, o marquês
fumava, no máximo, um charuto por ano. Aquele era o segundo.
— Lorde Winsford — o secretário tocou o lenço no pescoço de
modo ansioso — Fumando logo pela manhã?
— Existe hora marcada para um homem fumar um charuto de
qualidade? — retrucou.
Price fez que não. O patrão estava de mau humor, não iria
zombar dele naquele dia.
— Para que me chamou, meu lorde?
Isaac colocou o charuto sobre o cinzeiro, sentou-se em sua
cadeira de espaldar alto e tamborilou os dedos da mão esquerda no
tampo da mesa.
— Julia disse que uma criada estava ouvindo por detrás da
porta enquanto Gilbert me fazia o relatório.
Uma das sobrancelhas escuras de Price se ergueu.
— Acha que ela pode ter ouvido algo?
— Não sei — resmungou ele — Julia disse que a criada era
loira. Sei que a empregada que costuma me servir aqui tem cabelos
castanhos, a Sra. Baker Mas, as outras, não me lembro nem o
nome, nem o rosto.
— Bem... A Srta. Walker e a Srta. Woods são ambas loiras.
Maldição.
— Faça o seguinte — ele se ajeitou na cadeira — Tente
descobrir algo sobre as moças loiras, se achar algo como... Não sei,
uma grande necessidade de dinheiro, diga-me. Ou o que você achar
que seja suspeito e a leve a espionar.
Price assentiu.
— Criadas são invisíveis, não há espiã melhor — lamentou o
marquês — A Sra. Baker entra aqui a todo momento para me servir
ou para servir algum visitante. Ela poderia muito bem ouvir alguma
coisa.
— Mas Lady Winsford disse que era uma das moças loiras. E a
Sra. Baker é uma moça muito íntegra, tem um marido, vive em suas
terras. Pelo que sei, não carecem de dinheiro com urgência.
Isaac sabia daquilo. Sendo a Sra. Baker a criada mais presente
no seu dia a dia, ele já puxara conversa com a moça várias vezes.
Tinha vinte e quatro anos, casada havia sete e, certa vez,
confessara ao marquês que não podia ter filhos quando ele
perguntou se ela tinha crianças. Os dois pareciam viver uma vida
pacata e agradável, mesmo sem a promessa de rebentos.
— Sim, estou apenas comentando... — Isaac pegou o charuto,
analisou e o apagou contra o cinzeiro — A Sra. Baker trabalha aqui
já faz quase quatro anos, ela jamais faria algo contra mim. Como
não vejo muito as outras duas, veja qual foi contratada mais
recentemente.
— O senhor quer isso ainda hoje?
— É claro. Só não as assuste.
Price soltou um sozinho anasalado.
— O senhor acha mesmo que eu consigo assustar alguém? —
e riu, antes de deixar a sala em seu passo elegante e esbelto.
Isaac teve humor para rir, mas logo voltou a se recostar na
cadeira e contemplar seu plano. Se aquela criada estivesse
trocando informações com outra tecelagem ele poderia muito bem
oferecer mais a ela.
Às vezes as pessoas tinham de gastar muito dinheiro para
alcançar um objetivo.

***

A Sra. Baker estava acabando de servir seu almoço quando


Isaac pediu que ela ficasse no escritório. A mulher parou em frente a
mesa, a bandeja contra sua barriga.
— Pois não, milorde?
Isaac não tocou no almoço. Recostou-se no espaldar alto da
cadeira.
— Posso confiar na senhora?
As sobrancelhas castanhas dela se ergueram em uma leve
surpresa, mas ela assentiu imediatamente.
— É claro, milorde. Sempre.
Ele deu um sorriso breve.
— Tem notado algo de diferente com suas colegas de trabalho?
A Srta. Walker e a Srta. Woods.
Rosalind olhou para a bandeja, movendo os dedos de modo
ansioso antes de se inclinar um pouquinho na direção da mesa e
sussurrar:
— Acho que a Srta. Walker está grávida. Mas o senhor não
ouviu isso de mim, milorde.
Foi a vez de Isaac ficar surpreso.
— Suponho que ela seja solteira.
A criada assentiu com veemência, um tantinho escandalizada.
— A Srta. Walker parece infeliz com isso? — perguntou ele.
— Não sei dizer, milorde. Não a conheço muito bem, ela
trabalha aqui faz um mês.
— E a Srta. Woods?
Rosalind pensou por alguns segundos, depois balançou a
cabeça um tanto frustrada.
— A mesma de sempre, milorde. Nunca fez nada de errado,
garanto. Trabalha aqui faz quase um ano e somos boas amigas.
Está noiva do primo do Sr. Baker, em breve seremos da mesma
família.
Isaac anuiu, pensativo. Rosalind não parecia incomodada com o
fato dele não conhecer a criadagem do prédio administrativo que
não tinha permissão de circular pelos corredores tão livremente. Era
esperado que um lorde não soubesse o nome de ninguém.
— Obrigado, Sra. Baker. Pode se retirar.
A criada se despediu com uma mesura rápida e deixou o
escritório. O marquês voltou a atenção para seu almoço. Antes de
conseguir cortar um pedaço do cordeiro com batatas que lhe foi
servido, as batidas enérgicas de Price foram dadas contra a porta.
O homem entrou sem cerimônia, olhando para o patrão com
uma expressão urgente.
— Lorde Winsford.
Isaac gesticulou para que ele falasse.
— Estava na copa almoçando com o resto dos criados hoje
mais cedo... — Price balançou a cabeça — A Sra. Finn, a
cozinheira, estava cozinhando geleia para Lady Winsford. Depois
que ouviu os elogios da marquesa, disse que vai fazer potes e mais
potes para ela.
— E então? — Price enrolava tanto nas histórias que muitos dos
detalhes eram irrelevantes — Conte logo, estou ficando curioso.
— Uma das criadas, a Srta. Walker, mal pode sentir o cheiro da
geleia no fogo. A pobre levantou e antes mesmo de sair da copa,
vomitou dentro de uma panela vazia na frente de todos.
Então a criada devia estar grávida mesmo.
— A Sra. Baker comentou comigo a possibilidade dela estar
grávida — respondeu Isaac — Então, deve ser verdade.
Price assentiu. Já sabendo que era livre para se sentar, o
secretário puxou uma das cadeiras de frente para a mesa grande do
patrão.
— A Sra. Baker disse que ela foi contratada a um mês —
continuou o marquês, pegando a taça de vinho e finalmente
tomando um gole generoso — E que a outra criada não está agindo
de modo diferente.
— Perfeitamente. Conversei discretamente com a Sra. Finn
depois do incidente na copa, a mulher adora uma conversa e me
falou bastante sobre a Srta. Walker. Disse-me que o pai da criança
foi embora, um soldado do regimento que estava de passagem. O
senhor conhece o tipo, que engravida uma moçoila por vilarejo. Isso
tudo em Liverpool. E sabe o que há em Liverpool?
Lá ia Price de novo com as longuíssimas histórias.
— Não faço a mínima ideia, Price.
— A tecelagem de Branigan.
A tecelagem de Branigan, repetiu Isaac em seus pensamentos.
Branigan era um sujeito da aristocracia, um barão, que tinha uma
tecelagem que produzia lã de vento em popa. Isaac não se
encontrava muito com o barão, mas o homem fora um amigo do pai.
Liverpool, assim como Manchester, era perto e estava crescendo
em números de indústrias, uma capital grande e ocupada. Era
sempre bom bisbilhotar o que a concorrência fazia, ele mesmo
estava fazendo aquilo, não estava?
— Chame a moça aqui — disse Isaac, deixando o almoço de
lado.
O secretário assentiu fielmente e deixou o escritório pela porta
do pátio.
Enquanto isso, Isaac olhou para o relógio de parede atrás dele e
viu que já eram três horas. Estava almoçando na hora que deveria
estar fazendo a refeição leve do dia.
Finalmente cortou o cordeiro, pronto para comê-lo quando
batidas nada enérgicas soaram na porta. Ele conhecia aquelas
batidas muito baixas. Em segundos, sua esposa abria a porta e
entrava no escritório com um sorriso singelo e adorável.
Julia era como uma lufada de primavera em comparação com a
fábrica em seus tijolos escuros. Seu vestido creme com bordados de
flores amarelas exalava frescor, assim como seu enorme chapéu
cheio de flores e folhas que ela deixou sobre a chaise.
Não se importava com as visitas repentinas de Julia, as
adorava, na verdade. Mas ela chegou em um momento que ele
preferia não tê-la ali. Não quando planejava interrogar a Srta.
Walker.
— Isaac — ela foi até ele, ainda sentado na cadeira feito um
tolo, e o beijou no topo de sua cabeça loira — Está almoçando
agora? Que cheiro forte.
Isaac olhou para o prato, havia um molho ao curry sobre seu
cordeiro intocado. Cobriu o prato com a tampa de prata e o levou
para o parapeito da janela, abrindo-a e deixando que o aroma forte
da especiaria não ficasse pelo escritório.
A esposa sorriu para ele, agradecida. Ele faria tudo por ela, meu
Deus, e amava aquela devoção. Mas, naquele momento, não podia
ser o fiel serviçal de sua marquesa. Não poderia passar um pouco
da tarde conversando com a esposa no escritório, nem cedendo seu
lugar de chefe para que ela mexesse em seus papéis e fizesse um
apanhado da situação financeira mensal.
— Eu estive almoçando Heloise, ela me mostrou as orquídeas
que tem cuidado. São flores muito mimadas, sabia? Não sei se teria
paciência — disse ela, sentando-se na chaise e descansando os
pés na extensão do estofado macio — Já lhe disse que temos que
consertar a estufa, não disse? No caminho estive pensando nisso,
decidi parar aqui para vê-lo.
Isaac olhou ansioso para a porta do pátio. Em breve Price
chegaria ali com a criada.
— Parece que ficou muito amiga de Lady Houghton.
— Ela é um doce, fui muito impaciente com ela no começo —
lamentou Julia — Eu estive pensando, Isaac...
Ele a olhou.
— Ah! — o marquês se animou, pegando o chapéu florido e o
enfiando na cabeça da esposa de qualquer jeito — Vamos dar uma
volta nos jardins da frente? O ar fresco irá melhorar seus enjoos. Lá
você me conta no que esteve pensando.
Confusa e com um chapéu torto, Julia foi praticamente içada da
chaise. Isaac já estava a puxando em direção à porta principal do
escritório quando a porta do pátio abriu. Ele fechou os olhos,
inspirando profundamente.
— Lady Winsford! — Price exclamou, olhando quase
horrorizado para o patrão — Que surpresa.
Julia saiu do cabresto que era a mão do marido em seu pulso e
tirou o chapéu, olhando aborrecida para ele. Ele viu o olhar dela ir
para a criada, que estava nervosa olhando para a marquesa.
— Eu estava levando Lady Winsford para uma volta nos jardins
— ele disse, puxando a esposa pela cintura e a mantendo perto dele
— Seja lá o que o fez trazer essa senhorita aqui, pode esperar.
— Não precisa, meu lorde — Julia anunciou, desvencilhando-se
do toque do marido — Na verdade, eu adoraria conversar com os
senhores. Gostaria que a senhorita se retirasse, por um instante.
Depois mando lhe chamar.
A Srta. Walker assentiu energicamente e, ignorando qualquer
deferência na frente do casal de marqueses, ela zarpou para fora
pela porta dos fundos. Isaac olhou para Price, que depois olhou
para Julia.
A marquesa abriu um sorriso doce, daquele tipo que as
coquetes usam para se safar facilmente de problemas.
— Eu tenho dois irmãos mais novos — ela disse, sentando-se
na chaise outra vez — E vocês parecem com todos eles quando
fazem alguma besteira às escondidas.
Price olhou para ele outra vez. Isaac tranquilamente voltou para
sua cadeira.
— Se me permite dizer, Lorde Winsford — começou a falar —
Lady Winsford parece muito interessada no sucesso da tecelagem.
E, pelo o que a marquesa me contou, gosta muito de contabilidade.
Isaac olhou de rabo de olho para a esposa, que não parecia
nada vaidosa com aquela revelação. Certo, ele já sabia que ela
gostava de contabilidade, ela mesma sempre averiguava as
finanças da fábrica por puro prazer.
— Sei muito bem dos gostos de minha esposa, mas o que isso
tem a ver?
Price alisou o lenço branco em volta do pescoço.
— Talvez devêssemos contar...
— Contar o que? — perguntou Julia, olhando aborrecida para o
marido — Você está muito estranho, Isaac. Primeiro fala de um
sócio que não menciona quem é, depois a moça estava ouvindo
atrás da porta e agora... Bem, não sei o que acontece.
O secretário olhou para o patrão com uma expressão de quem
queria rir. Ah, mas Price não riria dele enquanto ele levava uma
bronca da esposa.
— Se não contar, vou descobrir — ela disse, dando de ombros
bastante empertigada — O Sr. Hillington me adora, vai contar tudo
que sabe se eu perguntar.
— Ah, mas ele não sabe — Isaac respondeu — Apenas eu e
Price. E Gilbert.
— Acho bom o senhor contar, meu lorde — aconselhou Price,
puxando uma cadeira e se sentando — Bem, Lady Winsford,
estamos espionando as sericulturas de Cheshire com o intuito de
roubar as operárias da concorrência.
Isaac observou as sobrancelhas da esposa se ergueram de
modo lento e interessado. Ela se arrumou na chaise, pensativa.
— Só isso?
O marquês e o secretário se entreolharam.
— Só — respondeu ele, por fim.
A esposa riu consigo mesma.
— Meu pai e meu irmão serviram a Coroa, não tenho nada
contra espionagem. E, tenho certeza, espionar o concorrente não é
tão alarmante quanto espionar outros países.
— Depende do temperamento de quem está sendo espionado...
— Price disse, incerto, olhando sugestivamente para Isaac — O
marido da senhora consegue ser muito grosseiro quando quer.
Julia o olhou e ele pode ver as engrenagens de sua cabecinha
começando a funcionar.
— Acha que a criada estava o espionando? O que vai fazer com
ela? Isaac, não ouse destratar uma mulher.
— Só íamos fazer umas perguntas — explicou ele, respirando
pesadamente.
Isaac lhe contou a história desde o início. De Gilbert indo até a
Winchester e da Srta. Walker regurgitando em pleno ajantarado. E
de todo o propósito da espionagem.
Ela ficou pensativa, seus dedos distraidamente se enrolando no
tecido da saia.
— Chame a moça, vamos perguntar a verdade, simples assim.
— Ela pode mentir, Lady Winsford — Price observou — Com
certeza tem ordens para fazê-lo.
— É uma moça grávida — Julia arregalou os olhos como se não
fosse óbvio — Se ela for descoberta ela é demitida, se ela continua
sob suspeita, ela é demitida. Se ela voltar para Liverpool demitida,
será castigada pelo contratante. Eu ofereceria mais dinheiro para
ela, o que garantiria muito ao futuro bebê e ela seria fiel a nós.
Isaac gostou de como ela falou nós e não a ele. E gostou de
como ela era esperta e cheia de ideias que refletiam seu gosto pela
tecelagem, a coisa que ele mais amava depois da esposa.
— Então — a esposa continuou, o rosto levemente corado em
animação — Ela permaneceria mentindo para o contratante,
fazendo-o crer que está nos espionando. Enquanto na verdade, está
fazendo o contrário.
Sua esposa tinha a mente maléfica que um empreendedor tinha
que ter. Daria uma ótima mulher de negócios.
— Se quiser espioná-lo, é claro — terminou.
Ele não tinha interesse em espionar Branigan. Seu foco era
Cheshire.
— Não, melhor não — ela respondeu antes dele poder fazê-lo
— Sendo uma moça grávida, não podemos pô-la em risco.
— Lady Winsford — Price finalmente disse alguma coisa, o tom
de sua voz soando muito divertido — A senhora é muito perspicaz e
cautelosa. Se fosse um homem, seria mais bem sucedido que Lorde
Winsford.
Ela agradeceu com um meneio muito educado.
— Sorte sua que não me ofendo com esse tipo de coisa, Price
— Isaac respondeu, satisfeito por ver a esposa ser banhada de
elogios.
— E esse rapaz Gilbert? — perguntou ela para o marido.
— Ele foi procurar um primo, não podemos usar o mesmo
espião em todas as sericulturas. Por enquanto, estamos esperando.
Julia anuiu, pensativa.
— Descobriu algo de interessante?
— As operárias ganham bem pouco, mas são mais qualificadas.
Podemos oferecer o dobro do salário, que é o salário normal aqui.
Além de um pequeno bônus apenas para garantir que elas venham.
Mas não podemos pegar todas, convencer uma ou duas é o
bastante.
Ela assentiu outra vez.
— Chame a moça, então, Sr. Price. A pobre deve estar
aterrorizada. E eu continuarei aqui, agora que já sei de tudo. Ela vai
se sentir menos intimidada caso tenha outra mulher no recinto.
Price pediu licença e se retirou, voltando com a Srta. Walker
cinco minutos depois. A moça estava aterrorizada, as mão juntas na
frente do corpo e os olhos vermelhos. Julia se viu na obrigação de
acalmá-la, indo até a criada e segurando suas mãos.
— Fique calma, Srta. Walker — ela sorriu com doçura e se virou
para o marido — Pode nos deixar a sós?
Price olhou surpreso para o patrão, que se levantou de sua
cadeira macia e chamou o secretário para saírem.
— Nada de ouvir atrás da porta — Julia disse um pouco mais
alto assim que a porta fechou.

***

A Srta. Walker estava se tremendo toda, Julia tinha certeza que


se alguém tocasse nela, ela se despedaçaria.
— Sente-se, Srta. Walker — pediu ela e, assim que viu a criada
negar fervorosamente tamanho abuso, Julia insistiu — Prefiro que
fique sentada. Por favor.
Diante de uma ordem tão educada, ela se sentou na beiradinha
de uma das poltronas em frente a grande mesa do marquês. A
moça ainda tremia, segurando firme em suas próprias mãos.
Julia puxou a outra poltrona e ficou de frente para a Srta.
Walker.
— Soube de sua condição, Srta. Walker.
Os olhos claros dela ficaram imensos de horror e, suplicante,
ela uniu as mãos em frente ao rosto.
— P-Por favor, milady, não me demita. Por favor, p-por favor.
Julia estava começando a se sentir muito mal com a situação da
criada, seja qual fosse, a moça estava desesperada.
Tentando ser gentil e acolhedora, Julia a tocou cuidadosamente
em seu joelho.
— Não vamos demiti-la, pode ficar calma. Como é seu nome?
— Muriel, milady.
Se fosse para a moça se sentir mais confortável, que Julia lhe
dissesse seu nome, também. Sempre achou muito estranho o fato
de conversar com muitas pessoas sem saber seus nomes, apenas
seus sobrenomes ou títulos. Mesmo que não fosse chamá-las pelo
nome de batismo, gostava de ter um nome para o rosto. Um título
passava de pessoa para pessoa, mas o seu nome era apenas seu.
Houvera muitas Ladys Winsford ao longo dos anos, mas apenas
uma Julia.
— Meu nome é Julia — ela disse com um sorriso gentil — Eu
sei que fui rude com você ontem, mas pode confiar em mim.
Também estou grávida e faria qualquer coisa para proteger meu
filho antes mesmo dele nascer. Não é mesmo?
Muriel concordou, chorosa.
— S-Sim, milady.
— Quero que me explique sobre sua gravidez, Muriel. Onde
está o pai?
E, com uma simples pergunta, a criada despencou em lágrimas.
Não conseguiu falar, tudo que saiu de sua boca foi um choro
incontrolável e sôfrego. Julia rapidamente buscou por um lenço em
sua retícula, entregando-a para Muriel que secou os olhos com
muito cuidado.
Usar um lenço da marquesa era um absurdo, mas ela estava
em um estado frágil demais.
— E-Ele... Ele estava de passagem com o regimento, fugiu de
mim quando eu disse que estava grávida. Não o vi até o dia que o
regimento foi embora.. A culpa é minha, milady, e-eu que... — ela
abaixou o tom de voz — eu que o deixei me seduzir. A culpa é toda
minha, s-se eu não fosse uma tola não teria nem dito olá para ele!
Julia tinha quase certeza que a culpa jamais seria de Muriel.
Conhecia o tipo militar, principalmente os solteiros e jovens. Em
diversos jantares e festas para militares que tivera de acompanhar
os pais e o irmão, os rapazes solteiros estavam sempre
conversando sobre o que faziam enquanto estavam em serviço.
Com moças locais, principalmente as de povoados ou cidades
pequenas. Vangloriando-se das conquistas. Nenhuma moça
resistiria a um belo homem com uma casaca vermelha, ela mesmo
os achava muito galantes.
Não sabiam que ela estava ouvindo as conversas libertinas
deles, mas ninguém nunca percebia que Julia era muito atenta.
Sempre a liam como uma moça insossa que ficava ao lado da mãe,
provavelmente muito triste por não dançar com nenhum cavalheiro.
Enquanto isso, ela observava e ouvia tudo, contente por não ser
tirada para dançar. Não era à toa que soubera desde o início que
Tamsin e Dominick estavam juntos, que Jane e Lucas se agarravam
pelo Almack’s e que Petúnia havia se entregado a Lorde Vallance.
Só precisava observar a sutileza na mudança de olhares e saberia
que um homem e uma mulher não eram apenas amigos.
Não tinha experiência por conta própria, mas sempre viu a vida
de todos ao seu redor andar como as engrenagens de um grande
relógio.
— A culpa jamais será sua, Muriel — assegurou Julia,
segurando as mãos calejadas da criada — Sei que alguns homens
se aproveitam da ingenuidade de muitas mulheres. Você tem família
em Liverpool?
— Sim, milady, mas não sabem que estou esperando uma
criança. Eu disse que arrumei um emprego na casa de uma senhora
e que mandaria dinheiro... O Sr. Bran-
Muriel calou a si mesma em um piscar de olhos, como se
tivesse acabo de revelar algo terrível.
— Quero que me conte caso esteja trabalhando para outra
fábrica e tenha sido enviada para cá. Eu sei como as coisas
funcionam, Muriel. Conte-me tudo. Tenho certeza que o Sr. Branigan
não tem uma esposa tão benevolente quanto Lorde Winsford.
Muriel continuou a olhar um tanto aterrorizada, mas assentiu
lentamente e baixou seu olhar para as mãos em seu colo.
— Eu vivia no interior, a uma hora de Liverpool. Trabalhava
como criada na fábrica do Sr. Branigan e ele descobriu que eu fiquei
grávida, não sei como, talvez por meio de alguma fofoca. Disse-me
que me daria cinquenta libras para eu criar meu bebê em paz se eu
espionasse os planos de Lorde Winsford. Pediu-me para descobrir
se milorde havia... Moderado...? Modernizado suas máquinas, não
que eu saberia verificar algo do tipo... N-Não entendo dessas
coisas, milady, eu só sei limpar e cuidar de crianças.
O marido constantemente estava estudando novas patentes
vindas de Londres e do continente. Ela gostava de ver os diagramas
como uma criança curiosa, estava sempre a par dos planos de
Winsford em relação ao maquinário.
— Então milorde começou com a seda — continuou Muriel,
remexendo na costura do lenço — M-Mas eu ainda não contei isso
ao Sr. Branigan. Há outras fábricas em Liverpool, elas crescem sem
parar, todos reclamam de como a cidade ficará suja como Londres.
Todos fazem parte de um conselho e estão começando a brigar
entre si, porque querem produzir várias coisas diferentes ao mesmo
tempo. Lã, linho, algodão, seda.
— O Sr. Branigan lhe disse tudo isso?
Julia achava improvável que uma moça simples como Muriel
pudesse ter acesso aos planos dos grandes industriais de Liverpool.
— Não, eu... Eu ouvi, foi só o que eu ouvi, milady — ela
sussurrou — V-Veja bem, milady, nós criadas estamos sempre
varrendo, limpando, servindo. Ninguém nos enxerga, é fácil ouvir o
que não devemos.
Julia assentiu, pensativa. Se as fábricas em Liverpool estavam
se modernizando para meios de produção em massa como seu
marido entusiasmado com a maquinação fazia, bem, não deveriam
saber que ele estava expandindo. Não poderiam saber que Isaac
havia adicionado seda ao seu catálogo, que suas máquinas eram
eficientes e que não havia nenhum setor não modernizado. Não até
o marido ter estabelecido a sericultura para começar a produzir o
suficiente para ter lucro. Se soubessem poderiam ultrapassá-lo no
que ela estava começando a ver como uma corrida industrial e,
sendo ela uma Ballard agora, não queria ver o nome do negócio da
família ser rebaixado.
— Conte tudo isso a meu marido, Muriel — Julia se levantou,
sendo acompanhada pela criada imediatamente — Não precisa falar
sobre sua vida pessoal, mas conte o que tem acontecido com os
industriais em Liverpool. Tudo o que ouviu, mesmo que não entenda
sobre o assunto, Lorde Winsford vai entender.
Muriel assentiu vigorosamente.
— S-Sim, milady.
Julia deixou o escritório pela porta principal, encontrando Price e
Isaac conversando baixo próximo a escadaria que levava ao
primeiro andar. Quando o marido a viu, foi de encontro com ela
imediatamente.
— A Srta. Walker vai lhe contar o que aconteceu — disse ela,
indicando o caminho com o braço.
Os dois homens voltaram para o escritório, Muriel pareceu
aterrorizada ao enfrentar Isaac outra vez. Mas Julia se colocou ao
lado dela e, como uma mãe protetora, envolveu a criada pelos
ombros. Tinha certeza de que Muriel era mais velha que ela, mas a
pobre parecia tão nervosa que encolheu.
Muriel explicou a situação das indústrias em Liverpool,
consequentemente mencionando Manchester como uma região em
crescimento rápido que também irritava os burgueses locais. Todos
de seu povoado estavam se mudando para os centros mais
urbanos. Alguns estavam até atravessando para a Irlanda,
arrumando empregos em fábricas mesmo com o crescente
acréscimo das máquinas.
— São novos tempos — comentou Isaac, quando ela deu uma
pausa para respirar — Dizem que as máquinas estão tirando
empregos, mas eu discordo. Acredito que a modernização dos
meios de produção tornaram tudo mais acessível. Cidades
pequenas crescerão, pessoas ganharam mais dinheiro e melhorarão
de vida.
Muriel não soube concordar ou discordar, então continuou a
história. Ao final, Price estava pensativo, Isaac procurava por
alguma coisa em suas gavetas e Julia afagava os ombros da aia.
— Eu acho que a Srta. Walker deve ficar conosco — anunciou
Julia, visto que os dois homens pareciam pensar demais — Acha
que há a possibilidade do Sr. Branigan mandar alguém vir atrás de
você, Srta. Walker?
— Não tenho certeza, milady. Ele é um homem muito
ambicioso, falou sobre milorde com muito amargor. Acho que tem
inveja do senhor, milorde.
Isaac solto um som de desprezo.
— Ele não deve gostar da minha forma de guiar um negócio. É
tradicional e antiquado, o tipo que não aceita que os tempos são
outros.
— Acha que ele faria mal a uma moça grávida? — Julia
perguntou, preocupada.
O marido fez um gesto que ela não soube interpretar como uma
afirmação ou negação.
— Não podemos arriscar, ela está com um bebê — ela olhou
para o marido — Eu gostaria que a Srta. Walker servisse em nossa
casa.
Isaac a olhou surpreso com a proposta, mas assentiu.
— Claro, tenho certeza que precisamos de mais uma aia — ele
tirou um pequeno maço de cédulas de uma das gavetas e entregou
para Muriel, cujos olhos pareciam três vezes maiores — Oitenta
libras, para sua criança. E para que você não comente com ninguém
o que viu aqui.
Muriel olhou para a pequena fortuna, depois para Isaac, Julia e
Price.
— E-Eu jamais contaria, milorde — então voltou sua atenção
para Julia — Obrigada, milady, eu serei eternamente fiel a senhora.
P-Posso até mesmo cuidar do bebê da senhora, o que quiser. E-Eu
cuidei de muitos irmãos.
Julia anuiu com um sorriso gentil. Foi até a mesa do marido, que
não questionou quando ela molhou a pena e puxou um papel de
carta. Redigiu uma missiva à Sra. Taylor muito breve, relatando a
chegada de uma nova criada.
— Deixemos esse assunto para quando chegar a Mansão
Ballard. Agora peço que pegue suas coisas e diga que Lady
Winsford pediu que a levasse até a mansão, lá você deve procurar
pela governanta, a Sra. Taylor. Diga que eu a contratei para ser a
babá.
Muriel assentiu com um sorriso aliviado e deixou o escritório em
passos rápidos assim que pegou o bilhete. No momento em que os
três estavam a sós novamente, Julia deu um longo suspiro e olhou
para o marido e o secretário.
— Não foi tão difícil assim, foi? Tudo se resolve com diálogo.
Price deixou um riso baixo escapar, tirando seus óculos para
limpá-los.
— A senhora é uma marquesa e tanto, minha lady.
— Tenho de concordar com Price — disse Isaac, sentando-se
na cadeira de couro macio — Obrigado por nos ajudar, minha
querida.
— Não posso deixar meu marido passar por problemas sozinho
— ela agradeceu com um sorriso encabulado e se sentou de frente
para a mesa — Sou uma ignorante em negócios, mas há coisas que
o bom senso é o suficiente.
O marquês assentiu, deu um suspiro pesado e olhou para nada
em específico.
— Que merda de conselho é esse? — perguntou, aborrecido,
antes de poder censurar a língua — Desculpe-me, Julia.
Ela se desfez do impropério com um aceno. Havia coisas mais
sérias com que se ofender além de impropérios.
Price se deu permissão para explicar:
— Creio que seja algo que existia e funcionava bem quando os
meios manufaturados e artesanais dominavam o mercado. Cada
artesão tinha o domínio de um produto, provavelmente uniam-se em
um grupo para discutir o mercado local. Agora estão todos querendo
produzir diversos produtos, cada um em sua fábrica, de certo que
irão brigar. E irão espionar a concorrência ainda mais.
— Não acho que eu possa perder o controle que tenho sob a lã
e o algodão — observou Isaac — Tenho um título, um nome de
família conhecido e respeitado. Mas eu mal comecei com a seda, é
possível que eles em Liverpool ou Manchester tenham dominado a
maquinofatura de seda antes. Ou em Londres.
— Bem — Julia disse, sua voz baixa e suave sempre chamava
a atenção dos dois imediatamente — Mande alguém ver o que
acontece por lá. Temos muito que observar aqui em Cheshire e em
outros lugares. Poderiam fazer isso, não poderiam?
Price olhou para Isaac e indicou Julia com um sorriso orgulhoso.
— A melhor marquesa.
Julia sorriu vaidosa, contente por ajudar o marido em algo que
ele tanto gostava. Sem contar que aquilo estava lhe dando uma
função parecida com a que tinha em Londres, quando servia de filho
mais velho na ausência de David.
— Vá ver se Gilbert já achou o primo — Isaac ordenou a Price
— E peça que tragam chá para Lady Winsford. Não se esqueça da
geléia.
O secretário se retirou com uma mesura respeitosa. Quando
Julia se viu a sós com o marido foi logo se sentar sobre as pernas
dele e o presentear com um demorado beijo em seus lábios. Isaac a
olhou apaixonado, um dos braços a envolvendo pela cintura
enquanto o outro acariciava sua mão.
— Acho que eu e Price teríamos assustado a Srta. Walker —
assumiu ele, beijando-a em seus dedos delicados — Foi bom você
ter conversado com ela.
— Fico feliz em ajudá-lo, meu amor — contente, Julia acariciou
o rosto dele antes de beijá-lo em sua testa — Eu também me
importo com o nosso negócio.
— Não acho que a Srta. Walker seja uma má pessoa, mas tente
não contratar todas as pessoas que tocam seu coração bondoso,
meu amor.
Ela assentiu, cabisbaixa. Mas era verdade, o mundo não fora
feito para as pessoas boas e ingênuas.
— Vou pedir sua opinião, da próxima vez. Já que eu o ajudo nos
assuntos da fábrica, você pode se intrometer nos assuntos
domésticos da marquesa.
Isaac concordou risonho e, então, descansou a cabeça contra o
peito dela.
— É apenas uma questão de tempo até que tudo esteja
acertado, minha querida. Em breve você estará desfilando por aí
com a seda Ballard. Não só você, como muitas outras damas.
CAPÍTULO 24

O tempo passou e pouco havia se acertado.


Os meses foram passando e a sericultura não produzia mais do
que duas bobinas grandes de seda por mês; cerca de vinte metros
de tecido cada. O marido ainda tinha o domínio da produção de
algodão e lã de todo o condado, mas parecia que suas falhas em
produzir seda na mesma rapidez o deixavam frustrado para além do
que Julia podia apaziguar. Espionar Liverpool não teve nenhum
ganho, ninguém lá estava produzindo seda. Voltaram o foco para
Cheshire novamente.
Contrataram mais dez moças, vindas de sericulturas artesanais
por todo o condado. Elas trabalhavam bem, ensinavam bem e
haviam criado um ritmo satisfatório - mas não ideal, nas palavras do
marquês. Somavam oitenta operárias trabalhando com a seda. Da
primeira bobina, tingida de azul claro, o marido havia mandado
Madame Rutherford fazer um vestido para Julia. O vestido não cabia
mais nela, infelizmente. Já estava com seis meses e tivera de
comprar novos vestidos para acomodar sua barriga que só fazia
crescer.
Apesar dos pesares, seu casamento andava muito bem,
obrigada. O amor que sentia pelo marido só crescia e ela recebia
tudo em troca, sentindo-se a mais amada das esposas. Quando o
marido finalmente estava com ela, após se ausentar por longas
horas, era como se nada além de Julia existisse. Ele passava o dia
inteiro ao lado dela em suas folgas, conversando sobre assuntos
mundanos que não envolviam o trabalho. Quando ficavam no
silêncio da noite, Isaac passava longos minutos com o ouvido
colado na barriga dela, ouvindo o bebê que ele jurava ser uma
menina. Durante a manhã os dois iam até o circuito de cavalaria de
Julia, onde ela andava com Dianna trotando ao seu lado. A égua era
apaixonada por sua dona, de alguma forma identificando que Julia
estranha grávida e eventualmente tocando sua barriga com o
focinho.
Isaac estava se esforçando para ser mais presente e se
desprender daquele estilo de vida que só o estressava. Isaac
mudara muito seus hábitos, voltava antes do jantar e permitia a si
mesmo momentos de diversão. Por vezes Julia o encontrou em seu
escritório desenhando algum projeto engenhoso de um brinquedinho
bobo cheio de engrenagens. Ele mostrava os diagramas para ela e,
semanas depois, lhe presenteava com algum passarinho de
madeira que movia as asas sozinho ou um boneco articulado.
Mas o problema era que, quando o marido ia trabalhar, ela
sentia sua ausência na forma de medo. Medo de alguma
intercorrência em sua gravidez vir à tona e ela estar sozinha.
Embora o marido tenha mudado os hábitos em casa, quando
estava na fábrica ele ficava cego de ambição. Isaac estava mais
obcecado com a sericultura do que antes, certo de que uma hora a
produção aumentaria de ritmo substancialmente. Ele só precisava
daquilo. Lucro, ele repetia, quando desse lucro, ele relaxaria.
Enquanto o futuro da sericultura continuasse incerto, não podia
chamar aquilo de sucesso.
Com isso, Julia se ocupava em visitar a tia, Heloise ou passar
um tempo saudável com Dianna. Sentia muito falta de cavalgar, mas
não era conhecida por ser imprudente. Era muito cuidadosa com
sua gravidez e sempre que sentia o bebê se mover, lembrava-se
que não havia nada mais importante no mundo do que aquele filho.
Nenhum cavalo, nem nenhum marido.
Comemorou seu aniversário de vinte e três anos com uma
barriga enorme e com um bebê chutando feliz. Não havia presente
melhor que aquele lembrete de que ela era capaz de produzir uma
nova vida junto do homem que amava.
Quando deu por si, mais dois meses se passaram e já estava
com oito meses de gravidez. A neve caía em Chester como algodão
cobrindo o campo. Sua vida havia entrado em uma rotina pacata em
que cuidava de sua gigantesca casa, tricotava para o bebê, ficava
com os gatos ou organizava a ala infantil. Não visitava a tecelagem
com tanta frequência, cansava-se fácil de carregar a gravidez por aí
e estava frio demais. A calmaria lhe caía bem, do jeito como
gostava. Lamentou apenas quando Dezembro chegou e ela não
pode ir a Greenhill se unir a família, a viagem era longa e nem ela e
nem o marido queriam arriscar. Nunca haviam ficado grávidos na
vida, não sabiam o que era bom ou ruim.
E assim Dezembro se arrastou até Janeiro. E, ao longo dos
meses, ela acompanhou o marido ficar cada vez mais frustrado com
a sericultura.
Por falar nele, Isaac logo apareceu na sala azul quando acordou
perto das onze e meia. Ele vinha sorridente, segurando uma porção
de cartas. Julia deixou seu tricô de lado - vinha trabalhando em uma
série de roupas para o bebê que nasceria em pleno inverno.
— O que tem aí? — perguntou, curiosa com tanta animação —
Uma carta do Rei?
O marido se abaixou para beijá-la, depois se sentou ao seu lado
e lhe deu um beijo em sua barriga.
— Uma mensagem de sua mãe — ele entregou um pequeno
retângulo selado em cera cor-de-rosa.
Julia pegou a correspondência de imediato.
— E o resto?
Isaac passou por todas as cartas, tirou duas para si e entregou
quatro para a esposa. Eram todas de suas primas. Julia exigia que
todas fizessem atualizações sobre seus bebês e lhe escrevessem
sobre o parto, maternidade e todos os assuntos que Julia ainda era
uma ignorante.
Petúnia tivera uma menina que ela e Vallance chamaram de
Philippa, os cabelos escuros como os do barão. Pouco tempo
depois, Jane dera a luz a um menino loirinho chamado René - uma
homenagem a algum filósofo que ela jurava ter tido muita
importância em uní-la ao marido. Tamsin também dera luz a um
menino, Timothy. O cabelo era no tom de ruivo meio loiro e loiro
meio ruivo como os de Dominick. Os olhos eram redondos e
castanhos como os da mãe, a mistura perfeita.
Só faltava o dela, que estaria ali com eles em apenas três
semanas. Julia tentava não pensar muito no parto, se pensasse
demais algo de ruim aconteceria. Toda vez que tinha uma contração
de treinamento ela pensava que era o fim e, se o marido não
estivesse em casa, ela tinha de recorrer a Natalie para acalmá-la.
— Não sei porque se anima tanto com uma carta da minha mãe
— ela riu, arrebentado o selo — Oh...
Era uma mensagem da mãe, que dizia estar em Derbyshire e
que chegaria em um dia. E estava acompanhada de Emanuelle,
dizendo que ambas ficariam para o parto e mais dois meses depois
do nascimento.
Aquilo era perfeito, ela não sabia como lidaria com as provações
dos primeiros momentos do bebê com a mãe em Londres.
— Eu a convidei para vir nos visitar — respondeu Isaac diante
da confusão dela — Pensei que gostaria disso, meu amor.
Ela queria muito que a mãe estivesse ali durante todos os
últimos meses. Mas não mencionou nada para Mary ou aquilo
atrapalharia o debute de Emanuelle. Restava apenas escrever
longas cartas detalhando cada mês da gravidez. No entanto, a
temporada já havia acabado e todos voltaram para suas
costumeiras vidas.
— Você comentou que gostaria de ter sua mãe aqui durante a
gravidez outro dia desses — o marido olhou para o cesto de tricô e
puxou uma manta pequena e amarela, averiguando-a —
Principalmente agora no final. Não gosto de ter de sair e deixar você
sozinha aqui, nem mesmo por uma hora.
Julia sorriu. Era por isso que amava o marido. Ele sempre
lembrava de tudo que ela falava, mesmo quando ela pensava que
ele não estava ouvindo.
— Obrigada — ela se aconchegou debaixo do braço dele,
pedindo um beijo ao erguer seu rosto na direção dele — Você é um
amor.
— Pois saiba que você é muito mais — disse ele, sorridente, ao
beijá-la.
Ela sorriu contra os lábios de Isaac apenas para capturá-los em
um beijo amoroso e preguiçoso que ela tentou estender para algo
mais íntimo. Estava com saudades do marido, naquela altura da
gravidez e por ordens da parteira, estavam evitando o sexo com
muito custo, resumindo a atividades que não envolviam ter o marido
dentro dela. Terminavam as intimidades sempre com a sensação de
que faltara algo.
— Sinto falta de tê-lo em mim — resmungou ela, manhosa,
beijando o queixo do marido e descendo para o seu pescoço — E
se fizermos só um pouquinho?
— Agora perto da hora do almoço? Estou com fome e,
infelizmente, é de comida mesmo.
Julia resmungou outra vez, abraçando-o e pedindo um beijo ao
formar um biquinho. Isaac riu, beliscou o nariz pequenino dela e
finalmente lhe deu um beijo.
— Isso nunca o impediu.
O marido riu, estava zombando dela por algum motivo
desconhecido.
— O toque da minha mão não é mais suficiente, Lady Winsford?
— Não é grande o bastante.
Isaac riu, mas dessa vez foi baixo e sensual.
— Infelizmente teremos de deixar isso para mais tarde, minha
linda.
— Só um pouquinho — ela pressionou a mão no peito dele,
deslizando-a para baixo.
Julia se sentiu vitoriosa quando arrancou um suspiro rouco de
Isaac. Ele era fácil de convencer, só precisava descer sua mão um
pouquinho para baixo-
— Julia!
Julia e Isaac se afastaram imediatamente. Ninguém mais
ninguém menos que Laura, Emanuelle e a mãe estavam paradas no
batente da enorme porta da sala azul. A caçula parecia muito
encantada com a troca de carinho do casal, mas Julia estava
surpresa demais em ver todas as Wilson ali. As três já não estavam
com os casacos e gorros, sinal de que estavam escondidas ali
enquanto Isaac a enganava com uma carta. E enquanto Julia quase
enfiava a mão dentro da calça do marido, bom Deus.
— Mãe! — Julia tentou se levantar rápido demais e quase caiu
de volta no sofá se não fosse o marido para segurá-la — Obrigada,
meu bem. Pensei que ainda estava a caminho!
— Estávamos ali fora o tempo todo! — Laura disse com
animação, indo até Isaac e o segurando pelo braço — Pedimos para
que Lorde Winsford enganasse você com um bilhete de mentira.
Mamãe o escreveu agora.
Julia olhou para mãe, que sorrateiramente tentava puxar a filha
para longe do cunhado.
— Ela insistiu em vir conosco — a mulher praticamente
lamentou — Disse que queria ver o bebê nascer. Mas sabe muito
bem que não pode.
— Ah, eu quero sim — a menina sorriu de orelha a orelha — O
senhor já viu um parto, Lorde Winsford?
— Laura — Emanuelle se intrometeu, séria — Não faça
perguntas indecentes para um cavalheiro. Mesmo ele sendo seu
irmão por casamento.
Isaac caiu na gargalhada, olhando para a esposa que cobria o
rosto envergonhado com uma das mãos. Mary estava muito
orgulhosa da postura refinada de Emanuelle, por outro lado.
— Eu nunca vi um parto, Laura — respondeu ele, por fim —
Mas quero ver o de todos os meus filhos.
— Ah, não pode ver, Lorde Winsford — Mary balançou a cabeça
com muita sabedoria — Pode ficar ao lado da esposa, mas ver?
Não faça isso com o senhor, não vai querer olhar.
Emanuelle e Laura se entreolharam, a mais nova se tremeu da
cabeça aos pés em um calafrio.
— Laura, querida! — Julia exclamou com uma animação
afetada, a caçula olhando fascinada para a barriga enorme da irmã
— Sir Jonas está morrendo de saudades. E você tem de conhecer
os outros gatos da casa. Eram nove, mas filhotinhos nasceram e
agora temos quatorze.
Os olhos azuis de Laura ficaram gigantescos e seu rostinho
pálido como alabastro corou.
— Oh, sim!
— Emanuelle, vá explorar a casa com Laura — Julia empurrou
a caçula para a irmã — Por favor.
As duas saíram, uma mais rápido que a outra. Não tardou, Julia
estava se sentando no sofá outra vez, com a mãe segurando suas
mãos com um grande sorriso no rosto. Seus pés não aguentavam
muito tempo com ela de pé.
— Você está tão linda, meu amor — Mary disse, emocionada,
antes de olhar para o genro — Suponho que Lorde Winsford tenha
cuidado muito de você. É a grávida mais saudável que conheço.
Isaac assentiu com um meneio educado, sentando-se ao lado
de Julia protetoramente. Ignorando as boas maneiras, ele beijou o
rosto corado dela.
— Por mim, ela não sairia da cama, nem pisaria num chão tão
duro e frio como esse. Passei o último mês tentando convencê-la a
usar uma liteira, eu mesmo carregaria com muito orgulho.
Mary riu, encantada com o tom devoto dele.
— Ele é um exagerado — sussurrou Julia, mas estava toda
sorridente.
— Tenho certeza de que esse é um momento muito esperado
entre mãe e filha — ele se levantou, beijando o topo da cabeça loira
de Julia — Vou acompanhar Emanuelle e Laura na caça aos gatos.
Com licença.
Julia o acompanhou com os olhos até o último vislumbre do
marido. Quando estava a sós com a mãe, deixou-se ceder a
menininha que vivia dentro dela. Abraçou Mary o mais apertado que
pôde, sentindo seus olhos umedecerem de saudades que sentiu da
mãe.
— Ah, mãe... — ela choramingou, Mary afagando as costas dela
pacientemente — Senti tantas saudades da senhora. O começo do
casamento foi tão difícil, havia dias em que ficava sozinha o dia
inteiro. Agora que estou enorme não posso cavalgar... Às vezes é
insuportável de tedioso.
Mary se afastou, um olhar preocupado recaindo sobre a filha ao
que segurou seu rosto choroso.
— Lorde Winsford não tem tratado você bem? Ele me pareceu
tão querido agora.
Julia secou o rosto, afastando-se da mãe.
— Ele é um amor, mas trabalha tanto... Ele mudou, passa mais
tempo em casa. Mas antes era tão ruim ficar sem ele. É uma longa
história, mãe, mas estou feliz que você e as meninas vieram. Cartas
param de matar a saudade depois de um tempo.
— Quer conversar sobre o marquês? — perguntou, cautelosa —
Eu passei muito tempo sem seu pai, minha querida, sei como é
sentir saudades. Antes de você nascer, por três anos, eu via seu pai
a cada três meses, apenas. Eu e David morríamos de saudades.
Julia não poderia comparar a ausência do pai com a de Isaac.
Charles estava servindo a coroa com honra, seu marido tinha o livre
arbítrio de ir para casa cedo e não ia. Claro, Julia já conhecia os
afazeres do marido, mas ainda achava que ele não precisava se
estressar tanto com a sua sericultura.
— Não posso comparar com a senhora, mãe. Meu sofrimento é
o mesmo que o de uma garota mimada, sei que ele tem trabalho a
fazer, só fico com saudades... Ainda mais agora, com um bebê a
caminho, sinto que a qualquer momento eu posso parir e ele não
estará ao meu lado. Tia Gladys diz que eu devo exigir sua
companhia, mas eu jamais faria isso. Isaac ama aquela fábrica.
— Você sempre foi uma moça de palavras diretas, já conversou
com o marquês sobre isso?
Ela deu de ombros, distraindo-se em alisar sua barriga. Gladys
dera o mesmo conselho.
— Meses atrás pedi que ele não me deixasse sozinha no final
da gravidez, mas ele deve ter se esquecido desde lá. Isaac tem
muito o que fazer, eu disse em uma carta que ele começou a
produzir seda, não disse?
A mãe assentiu e secou o rosto de Julia com as costas da mão.
— Tem sido um processo lento, não está do gosto dele e ele
não sossegará até tudo ser um grande sucesso. Parece um menino
teimoso! Eu li bastante sobre a história da sericultura e é fácil notar
que é um processo muito lento e delicado, que demora um pouco
para se estabelecer. Mas ele é tão teimoso...
— No final do dia, homens são sempre meninos — Mary tentou
consolá-la de alguma forma — Mas, fora isso, como andam as
coisas com ele?
Não tinha do que reclamar, não de Isaac como um
companheiro.
— Isaac é um marido muito amoroso, é distraído demais pelo
trabalho. Mas quando estamos só nós dois é como se eu fosse todo
o mundo dele — Julia acabou sorrindo, alisando sua barriga com
enorme afeição — E ele é todo o meu mundo. Ele é tão bom, cuida
de mim tão bem. E vive falando que teremos uma menina, ele quer
que seja uma menina. Diz que será linda como eu, não quer que se
pareça com ele.
Mary riu, voltando a ficar feliz assim que viu a filha corar de
alegria. Tocou a barriga de Julia, esperando sentir alguma coisa,
mas naquele dia o bebê estava quieto. Costumava se mover mais à
noite, uma agitação que, depois de cinco minutos, passava de
divertida para incômoda. Mas ela gostava, era um sinal de que seu
bebê estava muito bem.
— Estou com medo do parto — Julia confessou, suas
sobrancelhas se curvando em uma expressão de temor — Tenho
tanto medo, mãe. Tenho medo de não suportar. Fico pensando nisso
todo santo dia e não quero que minhas preocupações façam mal ao
bebê. Tenho sentido mais daquelas dores que você disse serem
normais no final.
— Fique calma, minha filha. Seu ventre está se preparando para
dar a luz — a mulher lhe afagou o rosto com ternura, arrumando os
fios platinados que se desprendiam por serem muito finos — Sei
que parece algo horripilante, mas tudo acontece naturalmente. Eu
estarei aqui com você, sua tia Gladys e seu marido, também.
Julia suspirou, derrotada, e assentiu. Era o que ela sempre
ouvia, mas não a acalmava muito. No entanto, ter a mãe ali com ela
ajudaria bastante.
— Tenho que dar minha caminhada diária — cuidadosamente
ela se levantou do sofá com a ajuda da mãe — Vamos levar as
meninas até os estábulos, Dianna ficará feliz de conhecer novas
pessoas.

***

Era a décima vez que Emanuelle pedia desculpas pela décima


vez que Laura engatinhava no chão da sala de música para procurar
um gato. Isaac estava achando aquilo tudo muito divertido, mas a
cunhada mais velha parecia odiar o comportamento da irmã.
Quando era garoto ele e as filhas e filhos de Gladys subiam em
árvores, corriam atrás de animais e brincavam de piratas até ficarem
imundos. Quando as meninas começaram a se tornar mais moças,
as brincadeiras foram parando. Laura estava na idade em que as
brincadeiras diminuiam, mas ela não parecia inclinada a ser uma
debutante mansa. Ainda faltavam três anos, talvez mudasse.
Talvez permanecesse cheia de vida e energia para sempre.
— Como foi sua primeira temporada, Emanuelle? — perguntou
Isaac, antes que ela ficasse irritada com a irmã.
— Agradável — respondeu a cunhada, tinha a mesma aura
elegante que Julia, mas parecia ter mais desenvoltura em conversas
banais que a irmã — Fui pedida em casamento três vezes.
Emanuelle dissera aquilo como quem comentava sobre quantas
refeições fizera ao dia. Sem nenhuma vaidade ou interesse.
— E não aceitou nenhuma, suponho — ele disse, um tanto
orgulhoso pela sucesso da cunhada — David deve ter ficado
enciumado com tanto sucesso.
Ela deu uma risadinha reservada e mínima, arrumando-se muito
ereta no sofá verde vivo.
— Ele e papai. Estavam acostumados com Julia sendo uma
solteirona... Mas eu não aceitei nenhum, não.
Isaac tirou o relógio de seu bolso, observando a hora. Tinha de
ir até as fazendas ver um problema na plantação de algodão com
urgência. Um tipo de praga que começara a se alastrar, era tudo o
que dizia na mensagem de um de seus administradores.
Ele queria muito resolver aquilo logo, mas não queria deixar
Julia. Não durante o fim de semana, o tempo em que ele dedicava
cada segundo a fazer companhia a esposa. Julia estava em um
estado delicado, tendo contrações de treinamento repentinamente e
intensas dores nas costas. Em dias ruins, a esposa ficava na cama
com os gatos e com um marido devoto massageando seu corpo
todo.
— Por que não aceitou? — tentou se distrair das obrigações da
herdade, focando a atenção em sua cunhada — Eram feios?
Velhos? Oportunistas?
— Gostaria de sentir algo pelo meu futuro marido. Pelo menos
uma afeição agradável. Sei que o amor, por vezes, cresce com o
tempo. Nenhum deles me encantou. Não me arrependo de ter
rejeitado todos os três.
Isaac compreendia. Era uma exigência que ele tinha antes de
se casar com Julia. Tendo a relação que ele tinha sobre as
intimidades de um casal, Isaac sempre desejou, no mínimo, ter certa
afeição pela esposa. Achá-la bonita, agradável, mesmo que nunca
amassem um ao outro. Por sorte, havia se apaixonado por Julia em
um tempo muito curto. E agora a amava mais que tudo naquela
vida.
Ela e o bebê que logo nasceria.
Olhou de novo para o relógio. Tinha de resolver o problema na
fazenda antes que virasse um problema maior e tomasse ainda
mais de seu tempo. Julia estava na reta final de sua gravidez e ela
havia pedido para que ele não a deixasse só por muito tempo
naquele período. A esposa tinha medo do parto, havia lhe
confessado aquilo no primeiro dia de casamento e ele sempre se
lembrava daquele detalhe.
Tinha de obedecer, até porque ele passava os dias na fábrica
ansioso, com medo de Julia ter algum mal súbito e ele não estar por
perto. Conforme a barriga dela aumentava, a preocupação dele
crescia junto.
Não gostava dos espartilhos dela, nem dos vestidos, todos
apertados em seu tronco. Não importava que fossem próprios para
a maternidade, ainda os julgava como muito justos. Por ele, Julia
andaria de camisola o dia todo. Não, não andaria. Ficaria na cama,
no sofá, numa poltrona. Seria carregada de lugar a lugar.
Tentou sugerir que ele a carregasse, mas Julia disse que ela
deveria andar um pouco - ordens da cozinheira e de Gladys e eu
uma carta muito firme de Mary, ambas com muitos filhos no
currículo.
Ele não discutiria com matronas, nem com a esposa. Sabiam
mais que ele, que ficava colado à esposa em seu tempo livre,
tentando servir de alguma coisa durante aquela jornada feminina.
— O senhor tem algum compromisso? — perguntou Emanuelle,
olhando para o relógio em sua mão — Não precisa fazer sala para
nós. Laura é pior que um cachorrinho, não precisa de cortesia.
A caçula ficou de pé, segurando Andrew - o gato tigrado - em
seus braços depois de puxá-lo de baixo da mesa de centro. O
animal parecia derrotado, não iria se esforçar para sair dos braços
da garota.
— Ora essa — retrucou ela, voltando sua atenção para Lorde
Winsford — O senhor é meu irmão agora, não preciso me portar
como uma boneca. Não é, Lorde Winsford?
Emanuelle olhou suplicante para o cunhado.
— Concordo, Laura — disse ele, segurando o riso quando viu a
mais velha suspirar desapontada — Inclusive, pode me chamar de
Isaac. Chega de formalidades. Para você também, Emanuelle.
— Isaac — Emanuelle testou o nome e sorriu com sutileza —
Laura, por favor, deixe o gato no chão. Pode muito bem brincar com
ele sem torturá-lo. É ele, não é?
A garota olhou para as partes menos dignas do bichano.
— Onde estão as... Coisas dele?
Isaac conseguiu manter o riso discreto.
— Andrew é castrado, Laura.
O gato miou, aborrecido.
— E o que isso significa? — perguntou ela, bastante intrigada —
Sempre ouço chamarem os cavalos disso.
Emanuelle o olhou condolente. Isaac reprimiu um riso e
respondeu muito compenetrado:
— Um médico vem e corta as... Coisas do animal. Sem elas, ele
não pode ter filhotes com uma fêmea.
O rostinho pálido de Laura foi tomado por pesar.
— Que horror!
Andrew miou outra vez, provavelmente concordando.
— Acho que ele gostou de mim — ela olhou para o bichano, que
estava pendurado no ombro dela — O que você acha, Isaac?
Andrew não era um dos gatos mais afetuosos da casa, apenas
tinha preguiça de demonstrar seu desgosto pelas coisas e se
deixava levar.
— Acho que ele a adora, Laura.
— Vai se arrepender disso, meu lorde — lamentou a irmã mais
velha — Ah, lá vem elas.
Isaac quase quebrou o pescoço quando o virou para olhar Mary
e Julia entrando na sala de música do primeiro andar. A esposa
andava devagar, o peso da barriga exigia muito de seu corpo
pequeno de ninfa.
— Está se sentindo bem, meu amor? — ele perguntou
imediatamente, deslocando-se para o lado dela e segurando uma de
suas mãos.
— Estou bem, Isaac — Julia respondeu, um tom levemente
severo seguido de um riso — Não me carregue na frente de minha
mãe, por favor. Ela vai rir de mim. E Laura vai pedir que a carregue
também, ela é louca.
Isaac riu, com toda certeza Laura pediria que ele a levasse nas
costas. A cunhada era uma moça cheia de vida e adorava qualquer
brincadeira.
— Podemos ir até o corredor por um momento? — cochichou
ele, guiando-a para fora da sala até estarem no largo corredor —
Temo ter de sair, meu amor. Há uma praga começando a se alastrar
pelos algodoeiros, não sei quais são os estragos. Recebi a
mensagem assim que acordei, não sei o que está acontecendo.
As sobrancelhas claras dela se ergueram com urgência.
— Meu Deus, vá, sim — ela arrumou o colete dele, alisando a
seda verde escura — Não quero que pense que eu o proíbo de algo,
Isaac. Não podemos perder algodão. Já estamos ruins com a seda.
Sem contar que os fazendeiros ficariam sem dinheiro, não podemos
deixá-los ao léu. E se a praga se alastrar pelas plantações de
comida?
Ele adorava quando ela falava no plural, levando a fábrica e a
herdade como sendo tão dela quanto dele.
— Prometo não me demorar muito — Isaac a puxou para perto
até poder beijá-la, demorando-se nos carinhos da esposa em seu
rosto. Não resistiu e a beijou outra vez, não querendo se afastar de
seus lábios — Eu te amo, desculpe-me por ter de sair.
Ele sentiu um risinho nos lábios dela que ainda estavam colados
nos dele. Julia se afastou o suficiente para poder olhá-lo, seus
braços ao redor do pescoço do marido.
— É uma emergência, Isaac. Não fico chateada com isso. Mas
diga mais uma vez que me ama? Gosto de ouvir.
Isaac riu alto, tomando os lábios de Julia em um beijo
apaixonado, demorado e preguiçoso.
— Eu amo você — sussurrou contra o beijo, movendo seus
lábios em um caminho carinhoso até o ouvido dela — Volto logo
para massagear seus pés.
— Ah, sim, por favor — ela se derreteu toda, sorrindo quando o
marido gargalhou — Vá logo, para meus pés não esperarem tanto.

***
Quando Isaac chegou em um dos vastos campos de algodão, a
neve cobria o chão, o inverno havia despido as árvores por toda a
paisagem e os algodoeiros não davam flor desde o final do outono.
Não era a época para pragas, estava muito frio e o solo estava
muito duro.
Ficou agradecido por ver um pequeno grupo ao invés de uma
multidão de arrendatários curiosos. Não era a primeira vez que
lidava com alguma praga e sempre havia algum curioso querendo
ver o que acontecia. O que era natural, afinal, a renda de todos
dependiam do plantio e do gado. Não queriam que a praga se
alastrasse por vários hectares que não só davam lar aos
algodoeiros, como plantavam o alimento dos animais e dos
moradores.
Os campos de algodão ficavam mais afastados das casas e
construções que formavam os milhares de hectares dos Ballard.
Uma porção de mais ou menos vinte metros quadrados, no limite de
um dos campos, parecia estar em quarentena. Dois homens
colocavam lençóis sobre uma das fileiras de arbustos.
Isaac duvidava que aquilo fizesse uma praga parar, mas poderia
ajudar enquanto decidiam como se livrar do que estivesse atacando
os algodoeiros.
Ele cavalgou pela estrada que delimitava um dos hectares,
circundando o enorme retângulo com várias e várias fileiras de
algodão. Parou em uma edícula que os lavradores usavam para
comer e amarrou Mallow a uma das pilastras que segurava o
telhado.
Do outro lado da estrada, que não era mais larga que duas
carroças, estavam Price, um de seus administradores Heitor Griffin
e Ernie Chambers, um dos arrendatários mais velhos e fazendeiros
mais experientes. Isaac confiava em Chambers para manter o
plantio saudável sempre, o homem entendia da terra como se
tivesse nascido da própria.
— O que aconteceu, afinal? — perguntou o marquês assim que
foi de encontro com os três homens parados entre duas fileiras de
algodoeiros — Não estamos em época de praga.
Isaac olhou para os arbustos cujos botões - que eram poucos a
sobreviver no frio - ainda estavam fechados e verdes. Abaixou-se
para olhar melhor e viu alguns insetos andando sobre os botões,
criaturinhas escuras e pequenas. Tinham uma mandíbula longa e
afiada.
Já havia visto aquele inseto antes, não era a primeira vez. Mas
quando isso acontecia, semanas antes os fazendeiros identificavam
os buracos feitos pelo Bicudo-do-algodoeiro, as larvas ou os ovos.
Não havia nada daquilo em todos os botões que ele olhou, apenas
os besourinhos desgraçados começando a perfurar as maçãs do
algodoeiro.
— Apareceram da noite pro dia, milorde — Chambers anunciou,
a boina marrom espremida em uma das mãos enquanto a outra
bagunçava os fios grisalhos em sua cabeça — Juro pelos meus
netos.
Isaac olhou para Price. O secretário parecia desapontado, mas
não surpreso com a conclusão que ambos tiraram apenas com uma
troca de olhares.
— Alguém os jogou aqui, eles não aparecem no inverno —
disse o marquês, respirando fundo e olhando para a vastidão de
algodoeiros — Até onde vai?
— Até onde eles estão cobrindo com panos, milorde — o
fazendeiro indicou com o queixo — Uns trinta metros quadrados, no
máximo.
Isaac balançou a cabeça, esfregou o rosto com uma das mãos e
olhou para os besouros abaixo dele. Aquilo era represália de alguém
que ele espionou nos últimos sete meses. Provavelmente nunca
descobriria quem, mas só podia ser em Chester.
— As amoreiras, alguém viu algo de diferente nelas hoje? —
perguntou para Chambers.
— Os besouros estão só aqui, milorde.
— Talvez devêssemos queimar esse espaço, Lorde Winsford —
Griffin lamentou, puxando um caderno pequeno de couro de dentro
de sua casaca enquanto mantinha a pasta debaixo de um dos
braços — É um espaço de terra pequeno, não terá prejuízo, desde
que lidemos com isso rápidamente. Sr. Chambers disse que logo o
solo se recupera, as pragas estão somente nos botões.
— É o melhor, milorde — Chambers falou, recolocando a boina
— Não acredito que esses insetos vão sobreviver nesse clima, mas
é melhor não arriscar e matá-los logo com fogo. O solo está tão
congelado que não creio que uma queimada breve atrapalhe as
coisas.
Isaac olhou para o espaço que ocupavam, não era possível que
cada algodoeiro daqueles estivesse com besouros. E de onde
diabos alguém tiraria tantos de uma hora para outra?
Encomendando de algum entomologista lunático que os colecionava
aos montes?
Além de que era uma burrice sem tamanho, jogar praga em
algodoeiros que não floresciam no inverno. No frio que mataria os
insetos. Um ataque amador, mas que não o deixou menos irritado.
Estava perdendo a paciência. A frustração com sua sericultura o
estressava quase sempre, depois de finalmente se livrar da tensão
de mandar alguém espionar por ele. A vida era mais fácil quando
vivia com os estresses normais do algodão e da lã, um negócio
muito bem estabelecido e que lhe dava rios de dinheiro. Mas a
sericultura, seu sonho para a tecelagem, era quase um fiasco que
só lhe causava problemas.
Só queria ficar em casa e massagear os pés da esposa.
Mas a culpa era dele, afinal, fora ele quem começara com
aquela história toda. Tinha de lidar com as consequências de decidir
espionar a concorrência e iniciar um novo negócio desconhecido.
— E então, Lorde Winsford? — Price perguntou, quebrando o
silêncio.
— O que mais eu posso fazer? — ele soltou os braços,
impotente e irritado — Façam o que tiverem de fazer, entendem
mais disso do que eu. E perguntem a cada um aqui se viram alguém
estranho circulando. Até mesmo as crianças. Principalmente as
crianças, elas são muito observadoras. Sr. Chambers, fale com o
pessoal por aqui sobre isso.
— Como quiser, milorde.
— Griffin, ajude o Sr. Chambers e anote tudo o que ouvir. Faça
um registro de todos os algodoeiros afetados e providencie que a
neutralização da praga ocorra de forma segura e sem mais perdas.
Griffin assentiu, anotando tudo mentalmente como ele sempre
fazia. O homem jovem e de cachos castanhos pegou sua pasta e
indicou o caminho para Chambers. O fazendeiro e o administrador
passaram a contar e interrogar os homens e mulheres espalhados
pelos campos.
Isaac caminhou ao longo da estrada, observando os algodoeiros
mais atentamente.
— Alguma sugestão de quem poderia revidar assim, meu lorde?
— perguntou Price.
— Não faço a mínima ideia. Mas suponho que seja algum dos
produtores locais. Nós não causamos prejuízo a ninguém em
Liverpool e Manchester, só mandamos alguém para observar.
O secretário concordou com um meneio pensativo.
— Surrupiamos muitas das operárias por aqui, no final das
contas. Uma hora notariam. É mais sutil atacar uma plantação do
que suas ovelhas.
— Eu pensei que a essa altura estaríamos estabelecidos com a
sericultura para iniciar uma produção mais substancial — Isaac
resmungou, abaixando-se um pouco para ver um besouro se enfiar
dentro de um botão — Mas me enganei. É um processo
extremamente lento, acho que eu deveria ter ouvido meu pai. Ou ser
mais paciente.
Price lhe lançou um sorriso condolente e amigável. Como em
muitos de seus momentos de liberdade, o homem tocou o ombro de
Isaac e lhe deu um aperto firme.
— O mundo dos negócios é feito a base de tentativa e erro, meu
lorde. Mas não desista, a sericultura do senhor ainda é muito jovem.
— Tem razão, Price. Eu sei disso.
Price o acompanhou enquanto ele caminhava para onde
Chambers e dois rapazes conversavam de forma calorosamente
irritadiça. O fazendeiro dava ordens como um general,
provavelmente mandando os lavradores começarem os preparativos
para atear fogo nos algodoeiros afetados e tomarem certeza de que
a praga não estava se alastrando.
— O que o senhor fará se descobrirmos o mandante?
— Um pedido de paz? — ele riu sem muita graça — Não sei,
Price. Claramente não podemos passar o resto dos dias tentando
sabotar uns aos outros em nome da ganância. Talvez o sujeito tenha
uma proposta interessante.
— Acha que a menina grávida deu com a língua entre os
dentes?
A Srta. Walker era muito bondosa, Isaac duvidava que ela
cometeria o mesmo erro outra vez. Infelizmente Muriel perdera o
bebê aos três meses. Demorou mais cinco para se recuperar da
tristeza, consolando-se na promessa de cuidar da futura criança
Ballard.
— Duvido muito, ela adora Julia — respondeu Isaac — Não
faria mal algum à marquesa.
— Também duvido disso, meu lorde, para ser sincero.
Isaac tirou o relógio de seu bolso. Será que Julia estava bem?
— Posso resolver tudo em nome do senhor — disse Price ao
notar sua ansiedade — Agora que já deu as ordens, vou ficar de
olho no processo, ao longo da semana o senhor ficará a par de
tudo. Mais tarde vou até a Mansão Ballard e faço um relatório de
tudo que resolvemos por hoje. E me convido para o jantar dessa
noite.
— Você é muito abusado — ele riu, mas agradeceu com um
tapinha masculino nas costas do secretário — Julia ficará feliz de tê-
lo no jantar. As irmãs dela e a mãe vieram nos visitar.
Price agradeceu com um leve inclinar de cabeça.
— Uma mais encantadora que a outra, se me recordo do
casamento, meu lorde.
Eram sim. Mary era uma mulher muito alegre que o fazia
lembrar da própria mãe, Emanuelle era educada e agradável e
Laura era pura energia e juventude. Ele ainda queria conhecer os
meninos Thomas e Marcus, que escreviam para a irmã a cada duas
semanas. Pelas epístolas dos meninos, eles adoravam se enfiar em
problemas na escola, mas se safavam antes de descobrir que eram
eles os autores.
Ele fazia parte de uma família agora, sem contar que estava
prestes a ter o primeiro filho. Por mais que quisesse ficar ali,
averiguando cada algodoeiro por si só até ter certeza de que estava
tudo perfeito, era melhor voltar para casa.
— Ficarei no aguardo do seu relatório. E de sua companhia
para o jantar.
***

Price foi a estrela do jantar. Primeiro Mary pareceu muito


intrigada com a presença do secretário na mesa de jantar, mas
depois Julia explicou que gostava muito dele e que era um amigo
para o marido. Emanuelle não pareceu incomodada em ter um dos
empregados do cunhado ali, foi muito educada com Price. Laura era
pura animação, perguntando ao homem o que um secretário fazia
exatamente.
Aquilo deu permissão a Isaac de falar pouco, passando o jantar
como um observador em sua cabeceira. Entrava na conversa aqui e
ali, bebia um pouco, mas só. Estava preocupado com os
algodoeiros, o relatório de Price foi muito escasso. Apenas um
apanhado da região afetada em metros quadrados e uma lista com
os lavradores entrevistados. Ainda tinha de esperar para ver se
nenhum besouro havia passado para o restante dos hectares.
Sua preocupação morava na natureza daquele ataque, que
podia ser um aviso inicial. Ele havia sido muito imprudente pegando
as operárias das outras sericulturas, mas acreditava que, naquela
altura, sua seda já estivesse engatada em um ritmo que produzia o
suficiente para um lucro alto.
Fora ingênuo, logo ele que passara a vida inteira ao lado do pai,
aprendendo e virando um homem de negócios. Fora ingênuo e
impaciente. Não queria mais problemas, não o tipo de problema que
destruiu sua propriedade. Se alguém quisesse tomar as operárias
de volta, que fizesse do modo que lhe convinha, ele arrumaria
outras em seguida. Desqualificadas para trabalhar com a seda, mas
bastava ter a paciência de vê-las treinadas. A paciência que ele não
tivera oito meses antes.
Tentou se manter preso ao jantar, naquele momento em família,
mas mal se lembrava do que conversaram quando todos se
recolheram. Quando deu por si, estava se sentando na cama, com
sua calça de algodão e uma camisa grossa de inverno.
— Querido.
A voz de Julia entrou em seus ouvidos como a música mais
doce. Ele olhou para sua esposa linda e perfeita, sentada contra a
cabeceira da cama. Uma mão repousada em sua barriga e a outra
estendida para ele.
— Diga, meu amor — ele se perdeu nos olhos de luar dela,
segurando sua mão delicada e a enchendo de beijos — Estou muito
distraído, desculpe-me.
— Resolveu alguma coisa hoje?
Isaac suspirou e deu de ombros, sentando-se em frente a
esposa e tomando um de seus pézinhos para massageá-lo.
— Temos de esperar, por enquanto, os fazendeiros vão queimar
os algodoeiros atingidos. Mas não é uma área muito grande.
Julia deu um muxoxo lamentoso e estendeu os braços para o
marido.
— Venha aqui, está com uma carinha tão triste.
Ele não fez cerimônia. Abraçou sua esposa e a puxou para
perto, distraindo-se em acariciar a barriga dela. Não demorou muito
e sentiu o bebe se mover, arrancando um sorriso enorme de seu
rosto. Em momentos como aquele, Isaac se esquecia de qualquer
coisa que não fosse Julia e seu futuro filho ou filha.
— Marceline começou a dançar.
Ela riu, contente. Mas, num piscar de olhos, seu rosto foi
tomado por uma expressão de dor.
— Aquelas dores de novo? — ele perguntou, preocupado.
Sentia-se um inútil quando Julia experimentava as contrações de
treinamento. Não havia muito o que fazer além de esperá-las
passar, mas ela ficava tão aflita que partia seu coração — Respire
fundo. Sente-se na beirada da cama.
Ela se arrastou até se sentar no colchão, as pernas pendendo
para fora enquanto ele afagava a base da coluna dela. Aquilo
parecia fazer a dor dela diminuir, ou o conforto do carinho parecia
ser maior que o desconforto.
Com certa urgência, Julia buscou pela mão livre do marido e a
segurou com um pouco de força. Ela sempre ficava nervosa com as
contrações e tudo que Isaac podia fazer era envolvê-la de carinho
até ela se acalmar.
— Não vejo a hora desse bebê nascer — gemeu ela, chorosa —
Eu sou a pior grávida de todas... Não suporto nenhuma dor e tenho
tanto medo de dar a luz.
— Claro que não é — Isaac ficou ao lado dela, sua mão quente
ainda aliviando as dores — Eu tenho certeza que é uma experiência
cheia de momentos assustadores. Eu ficaria com medo.
Ela deu um risinho fraco, deixando a cabeça tombar no ombro
dele.
— Só quero ver meu bebê, pegá-lo nos braços. Queria dormir e
já acordar com ele no colo.
Seria esplêndido se as mães pudessem dormir e os médicos
fizessem todo o trabalho por elas. Ele não teria de se preocupar
com sua esposa fazendo tanta força que romperia alguma coisa
letal.
— Passou — ela deu um longo suspiro, encostando as costas
no peito do marido — Obrigada por cuidar de mim.
— É o que mais me deixa feliz — disse Isaac com sinceridade,
voltando a se deitar na cama e levando Julia consigo.
Quando ela se aconchegou em seus braços de modo que ele
pudesse tocar sua barriga, Julia deixou um sonzinho de satisfação
escapar. Ela fechou os olhos e descansou contra o peito dele.
Não demorou muito e ele percebeu que Julia dormia
tranquilamente, apenas o som agradável do sono dela o embalando
em um momento de pura calmaria. Isaac ficou acordado por
algumas horas, inebriado no perfume dos cabelos claros e finos de
sua esposa, da respiração dela contra o seu corpo e do calor da
presença dela ali.
As duas pessoas mais importantes do mundo estavam ali com
ele, seguras. Uma delas ele ainda não tinha tido o prazer de segurar
em seus braços, mas logo ele faria. Em breve, assim que tudo se
arrumasse e ele pudesse passar todos os dias pensando apenas
em Julia e no filho que em breve nasceria.
Ele, Julia, Marceline ou Oliver.
CAPÍTULO 25

Julia se auto-denominava a grávida mais fresca de todas,


ela não suportava nada que não envolvesse ela sentada no
sofá servida de algum lanchinho. Ou sendo o lanchinho do
marido, já que a gravidez a deixara ainda mais desejosa pelos
toques de Isaac. Seu corpo estava tão mais sensível, tudo
parecia duas vezes mais intenso e, conforme a barriga
aumentava, ela lamentava não poder explorar tanto seu desejo.
Era difícil se embolar com o marido quando tinha uma barriga
grande no meio. Mas Isaac era atencioso, com muita paciência
os dois sempre encontravam uma posição maravilhosa para
ambos.
Aquela jornada estava sendo uma provação, mas jamais
reclamaria com outra mulher sobre o que desgostava na
gravidez. Era uma dádiva divina, ai dela se reclamasse. Amava
muito sentir seu bebê, ver o marido conversando e beijando sua
barriga e passear pela ala infantil imaginando o pequeno por ali.
Mas havia muitos aspectos nada românticos que ela gostaria
que falassem mais sobre. Aspectos que ninguém nunca a
preparou para encarar. Os pés em um estado deplorável, as
dores insuportáveis nas costas, as mudanças de humor.
A barriga, por exemplo, era pesada demais para ela que
mal chegava aos 1,55 de altura. A parteira e todas as matronas
ao seu redor lhe diziam para caminhar um pouco e, por mais
que ela quisesse ficar deitada na cama comendo bombons,
tinha de ir andar. Felizmente o marido ainda estava em casa,
dizendo que qualquer coisa que tivesse de tratar sobre a fábrica
e a infestação, podia fazer de seu escritório.
Os administradores vinham até ele quando necessários e
Price estava sempre disponível. Isaac parecia nervoso com o
ataque recém sofrido aos algodoeiros, mas buscava distração
nas cunhadas já que tudo o que podia fazer era esperar.
Na manhã seguinte, Julia, Isaac e as irmãs caminharam
pelos jardins da Mansão Ballard. Ela logo se cansou e, para
diversão de Laura, Isaac pegou a esposa nos braços e a
carregou até a tenda que fora montada no vasto gramado.
— Não precisava ter me carregado — ela reclamou,
constrangida, enquanto era colocava numa das confortáveis
cadeiras à disposição.
Abaixo da tenda havia três cadeiras macias, uma toalha
com um convescote carregado de sanduíches minúsculos e
doces. E alguns gatos. Sir Jonas, Vivi e Andrew dormiam
espalhados pela tenda. Onde houvesse presença humana, os
três iam atrás.
— Sei que adora quando eu a carrego — zombou Isaac,
beijando-a em suas mãos — Gostaria que eu ficasse aqui e lhe
fizesse companhia?
— Pode ir ficar com elas, minha mãe foi buscar um livro e já
volta. Sem contar que Laura adora você — ela olhou para a
irmã por sobre o ombro — Você é o oposto de David, ele
raramente brinca com os mais novos.
O marido agradeceu com uma reverência teatral.
— Sempre quis ser um irmão mais velho.
Julia sorriu feliz e o deixou voltar para as irmãs. Ao longe
ela o observou conversar com Laura e Emanuelle sobre algo
que as deixavam interessadas. Ele apontava para o horizonte,
gesticulava e explicava alguma coisa. Laura bateu palmas,
risonha, e Emanuelle escondeu um sorriso com muita
elegância.
Aquela visão a deixou muito contente, ver o marido com
suas irmãs era pura família. Logo ela teria uma visão diferente,
a de Isaac com seu primeiro filho. E, nos anos seguintes, mais
e mais filhos.
Exceto que Julia queria ficar uns bons meses sem
engravidar, não queria repetir a aventura tão logo. Bom que o
marido lhe explicou que havia como evitar a concepção,
embora ela achasse difícil conseguir se separar dele no ápice
da paixão. A ideia de injetar algum veneno ou esponja em sua
feminilidade estava fora de questão. Mas tentaria alguma coisa
pelo bem de sua própria sanidade.
Tirando-a de pensamentos que a deixavam culpada, Mary
retornou a tenda com um livro pequeno em mãos. A mulher
sorriu para a filha, sentou-se na cadeira ao lado e relaxou.
Então, Mary olhou novamente para Julia e perguntou,
preocupada:
— Algum problema, querida? Está com uma carinha...
Julia deu de ombros, ocupando-se em afagar sua barriga.
Todos aqueles sentimentos guardados dentro de si subiram por
sua garganta e desaguaram em seus olhos como lágrimas
tímidas. Quando deu por si, as palavras saiam como água em
uma nascente:
— Ficar grávida é mais difícil do que eu imaginei. Há coisas
que eu detesto... E me sinto a pior mulher do mundo por isso. É
tão difícil carregar essa barriga por aí, eu sou tão pequena. E
meus pés não aguentam mais. Há coisas que só consigo fazer
com a ajuda de Natalie, eu já não consigo mais ver certas
partes do meu corpo. Sinto-me reduzida a morada do bebê, não
mais uma pessoa.
— Ah, Julia, não se sinta assim — Mary se apressou em
dizer, ganhando a atenção da filha ao lhe tocar a mão — Há
muitas dificuldades durante a gravidez. Sua avó nunca me falou
que eu acabaria molhando as ceroulas feito uma criança
quando estivesse nos últimos meses, eu morri de vergonha na
primeira vez que aconteceu. Seu pai foi muito atencioso
comigo, mas eu não esqueço a vergonha que senti.
Julia riu, ainda amuada. O bebê fazia pressão sobre sua
bexiga e, se não fosse rápida o bastante, um estrago podia ser
feito. Por sorte, nada nunca aconteceu nas vistas de Isaac.
Havia certos aspectos da gravidez que ela preferia manter no
mundo feminino.
— Eu amo pensar que tudo isso, essa vida em mim, só foi
possível porque Isaac e eu... Porque eu o amo tanto. Isso me
deixa muito feliz, mas...
— É muito complicado — Mary completou, sorrindo com
paciência para a filha — Eu amo ficar grávida, eu amei carregar
cada um de vocês, mas sei que há muitas mulheres por aí que
preferiam tomar uma poção e milagrosamente terem os bebês
nos braços.
Julia adoraria tomar aquela poção. Só queria ter seu
bebezinho logo, sem passar por mais aventuras inesperadas.
— A mãe de Isaac se machucou no parto — ela sussurrou,
seu medo era tão grande que mal conseguia falar alguma coisa
— Sei que ele tem medo que aconteça comigo. E eu tenho
medo também... A senhora me pôs muito medo.
Mary ficou horrorizada com a confissão.
— Eu? Mas eu nunca a deixei ver meus partos, eu...
— Eu não precisei ver, mãe — Julia suspirou, sentindo-se
mal pela mãe — Toda Mayfair podia ouvir. Deve ser uma
experiência terrível, eu sempre soube por o onde a criança
deve sair e seus gritos me faziam pensar que a senhora estava
sendo dilacerada.
Mary murchou cheia de culpa, tocando o rosto de sua filha.
— Ah, minha querida... Não vou mentir, é uma provação,
mas cada mãe lida de um jeito. Sua tia Amy nunca fez uma
cena como eu e sua tia Lucy. Dependendo do corpo, você pode
se mostrar muito forte na hora do parto e aguentar qualquer
coisa.
Julia assentiu, não muito convicta. Só lhe restava esperar e
tentar se manter calma, não queria estressar o bebê.
Distraiu-se ao olhar para o extenso campo ao seu redor.
Emanuelle vinha deslizando pelo gramado. O tom verde
claro do vestido caia bem com os cabelos platinados. Com um
sorriso singelo, ela se sentou junto da irmã e da mãe.
— Como se sente, Julia? Depois de quase um ano casada.
Estou me preparando mentalmente para mais uma temporada.
— Esplêndida, minha querida.
Julia não acabaria com a fantasia doméstica da irmã,
deixaria que ela mesma descobrisse que a vida adulta e a dois
era cheia de altos e baixos. Mas, desde que houvesse amor,
ficaria tudo bem. Ela amava muito o seu marquês, com todos os
seus defeitos e qualidades. E, após meses vivendo com ele, os
dois não tinham desentendimentos sobre a rotina de cada um.
Viviam em harmonia, a vida dos dois se encaixou de tal forma
que faziam parte uma da outra incondicionalmente. E ela
gostava daquilo, estava feliz com a vida que tinha. Afinal, se
casou com o homem que sempre quis.
Seu lindo e gentil marquês.
Com um suspiro apaixonado, ela ficou observando o marido
caminhar com Laura na direção da tenda. Quando ele chegou,
sentou-se sobre a toalha aos pés de Julia e lá ficou, ouvindo
Emanuelle contar sobre sua primeira temporada.
Um momento em família que a fez sorrir por dentro.

***

Era tarde da noite e, com as cortinas fechadas, a única luz


era a da lareira quase apagada. Julia estava morrendo de frio e,
para piorar, mais uma contração de treinamento a havia
acordado.
Ela buscou pelo calor do corpo de Isaac, mas com a barriga
no tamanho que estava era difícil de se manobrar e se enfiar
entre os braços dele. Um tanto torta, Julia puxou o marido pelos
braços até sentí-lo se mexer.
— Está com frio? — a voz dele saiu grogue, mas
preocupada — Vou colocar mais lenha na lareira.
Julia quase prendeu os braços dele ao seu redor e Isaac
compreendeu que era melhor ficar. Encaixou-se atrás dela,
deixando um beijo preguiçoso contra sua têmpora e passando
um dos braços por cima de sua barriga.
Ele logo voltou a dormir e Julia continuou a sentir as dores
agudas das contrações de treinamento. Costumavam durar
cerca de um minuto, então, ela contava cada segundo
ansiosamente.
Quarenta e um, quarenta e dois, quarenta e três.
Alguém bateu na porta.
— Isaac — ela moveu o ombro contra o marido.
Mais uma batida baixa, mas que soou muito urgente.
— Isaac — dessa vez ela empurrou o ombro mais
violentamente, visto que só assim o marido acordava — Há
alguém na porta.
O homem resmungou alguma coisa, deixou o calor dos
cobertores e se dirigiu até a porta do quarto. A luz fraca de um
candelabro se derramou no rosto dele quando uma fresta foi
aberta. Em um momento, Isaac estava confuso e sonolento, no
outro, seu rosto se contorceu em puro horror e urgência.
— O que aconteceu? — Julia tentou sentar, mas a dor
passou para sua lombar em uma daquelas malditas e
assustadoras cólicas. Já era para terem passado.
Isaac correu até seu quarto de vestir, ignorando-a antes de
voltar enquanto se enfiava em uma blusa branca.
— Atearam fogo na fábrica outra vez.
— O que? — Julia conseguiu se sentar, a força da surpresa
foi o bastante — Há alguém por lá? Está sob controle?
Isaac fez que não, já havia vestido as botas antes mesmo
da esposa perceber. Jogara a casaca por cima e fora até ela,
mal subindo na cama.
— Preciso ir — ela sentia o tremor controlado na voz dele.
Antes de deixá-lo ir, Julia o beijou rapidamente e o fez olhar
para ela.
— Por favor, tome cuidado.
Ele saiu do quarto tão rápido que deixou um rastro de
vento. Julia encarou a porta fechada, um misto de medo pela
dor que se intensificava na base de sua coluna e pelo o que
poderia acontecer com o marido correndo para um incêndio.
Por Deus, aquela maldita sericultura havia virado algo de
importante para ela também. Em pouco mais de um ano o
homem teve de enfrentar dois incêndios criminosos contra algo
que lhe era muito importante - um projeto em que ele investira
praticamente toda a sua energia. Algo pelo qual os dois
brigaram, que levou Julia a lágrimas por tantas vezes e, quando
ela finalmente estava tão investida quanto ele, tudo
desmoronava.
Julia não poderia simplesmente voltar a dormir enquanto o
marido corria para um lugar em chamas. Ela queria poder ir
com ele, ajudar de alguma forma, mas nem mesmo se não
estivesse grávida ela poderia ser de algum auxílio. Deixaria
Isaac ainda mais preocupado ao saber que sua esposa estava
em um local que poderia despencar em cima dela.
Tudo o que podia fazer era ficar em casa, em segurança.
Conseguiu escorregar para fora da cama, as mãos
apertando a base de sua coluna enquanto caminhava
lentamente pelo quarto. Um pouco de movimento sempre a
ajudava, mas daquela vez andar parecia causar ondas de dor
que iam de seu ventre até o meio das costas e desciam por
suas pernas como se pegassem fogo.
Julia logo voltou para a cama, respirando fundo e mantendo
o controle de suas lágrimas. Seus olhos ardiam e a garganta
parecia se fechar, sentia o medo se apoderar dela enquanto se
esticava para puxar a campainha ao lado da cama. Com muito
custo, ela conseguiu voltar para a cabeceira antes de Natalie
aparecer, ansiosa.
A criada nem mesmo colocara um roupão, estava com sua
camisola grossa de algodão e os cabelos loiros desalinhados.
Naquela altura da gravidez, se a campainha do quarto do
marquês tocasse no meio da madrugada, Natalia subia
correndo para ver se sua patroa estava bem.
— Madame, está tudo bem? — perguntou, nervosa, indo
até Julia e lhe segurando as mãos — É algo com o bebê? Quer
que eu chame a parteira ou o médico?
Queria que chamassem seu marido, mas, com certeza,
Isaac já estava correndo em cima do cavalo. E parte dela não
queria ter que fazê-lo escolher entre sua fábrica em chamas e a
esposa com mais uma cólica.
Ela ficaria bem, logo passaria. Bastava respirar fundo e se
acalmar, da última vez que o médico da família havia vindo ver
as quantas a marquesa andava, mandara Julia ficar mais
calma. Aquilo só surtia o efeito contrário.
— Chame a minha mãe, p-por favor.
Natalie assentiu e deixou o quarto às pressas, deixando
Julia torcendo para que aquilo não fosse um presságio.

***

Em condições normais, Isaac estaria congelando. O vento


frio da madrugada batia em seu rosto como lâminas afiadas, o
casaco aberto não era o suficiente para esquentá-lo muito bem
nem dentro de casa e calçara suas botas sem colocar meias.
Mas, no estado em que estava, seu corpo todo estava quente.
Daquela vez ele tinha certeza que não era nenhum operário
ou operária revoltados, passara o ano inteiro tendo uma relação
agradável com seus funcionários. Era a mesma pessoa que
tentou jogar pragas ineficientes em seu algodoeiro. Mas
enquanto que insetos não sobrevivem no inverno, chamas
fariam o trabalho da melhor maneira possível.
Da Mansão Ballard até a fábrica era uma hora com uma
carruagem lenta, mas galopando a todo vapor, Isaac logo via a
fumaça subir no céu estrelado. O brilho das chamas era o único
ponto luminoso no horizonte e ele bateu com os estribos em
Mallow para que o cavalo fosse mais rápido.
Correu ao redor do enorme complexo administrativo,
homens iam de um lado para o outro com baldes vermelhos,
entrando pelo pátio e dando ordem aos gritos. Bombeiros de
Chester empurravam os veículos carregados de água para a
parte dos fundos, onde os galpões enfileirados ficavam. O soar
de apitos era ensurdecedor. Ninguém parecia perceber Isaac
ali, todos estavam desesperados para apagar o fogo que só
conseguia ser visto de cima.
Isaac desceu de Mallow e lhe deu um tapa nas ancas para
que o animal corresse para longe do prédio e ficasse em
segurança. Perdido no próprio pátio, ele tentou entender por
onde os bombeiros e os homens das fazendas estavam
entrando para lidar com o fogo.
Sentia-se como um garoto perdido da mãe.
— Lorde Winsford!
A voz de Price se sobressaiu em meio a gritaria de ordens,
o homem vinha suado, descabelado e com a camisa aberta
sem nenhum lenço ou casaco. Seus óculos, sempre
impecavelmente empoleirados em seu nariz, estavam rachados
em uma das lentes. Há quanto tempo aquele incêndio
acontecia? Pelas fumaça e luz que ele via sair de cima da
fábrica, parecia que tudo já estava acontecendo havia algum
tempo.
— Price! — Isaac cortou por entre bombeiros apressados e
segurou o secretário nos ombros — Eu preciso fazer alguma
coisa! O que aconteceu? O que já foi tomado por chamas? Há
alguém preso lá dentro?
O secretário respirou fundo, precisava de fôlego. Puxou
Isaac para longe do caminho e tentou secar o rosto com a
manga da blusa dobrada.
— Já faz uma hor-
— Uma hora?!
— Ficou fora de controle muito rápido — o homem tentou
explicar, mas Isaac girava de um lado para o outro, tentando
entrar — Não entre!
— É a minha fábrica! — esbravejou ele, o corpo todo
tremendo — De novo!
Price tentou ser compreensivo, mas estava tão nervoso
quanto o patrão.
— Começou nos fundos da sericultura, em minutos já havia
tomado todo o galpão. Os bombeiros estão tentando apagar o
incêndio por lá, mas tudo o que havia já foi perdido. Todas as
benditas lagartas, o estoque de folhas de amoreira-
— Pouco me importa as lagartas, Price!
Lagartas, madeira e folhas podiam ser repostas.
— As máquinas, Price. Nos outros galpões, quantos foram
atingidos pelo fogo?
O secretário assentiu rapidamente, focando no que o patrão
queria.
— O fogo está se alastrando para o galpão de aviamento da
seda, os homens da fazenda estão tentando mantê-lo longe do
maquinário para que não passe para outros lugares.
— Certo — ele olhou ao redor, era um pandemônio de
gritos e ordens, apitos ansiosos, homens correndo com baldes
e bombas d’água — Vamos ajudar os homens no galpão de
aviamento.
Um bombeiro escorregou na neve derretida pelo calor que
cercava o prédio, derrubando um balde vermelho cheio de
água. Price puxou Isaac para longe do movimento outra vez, o
marquês sentiu a força do homem ao redor de seu braço.
— O senhor não pode se arriscar dessa vez, tem uma
esposa e logo terá um filho!
Isaac olhou para a luz forte do incêndio iluminando as
paredes pelo pouco que conseguia ver do corredor do lado de
dentro. A fumaça começava a tomar a garagem interna e a sair
pelo pátio.
— Para quê diabos me chamaram então? — retrucou,
soltando-se das mãos do secretário — Faça alguma coisa,
também, ao invés de me dar ordens!
Não esperou uma resposta de Price. Foi até os bombeiros
que entregavam as bombas d'águas após enchê-las outra vez e
pegou um dos longos e pesados cilindros. Price não demorou
para vir atrás dele, voltando a trabalhar junto dos homens
comuns que ajudavam no combate. Ele dava ordens, ajudava a
correr com baldes e bombas e guiava os voluntários para onde
deveriam ir.
Quando Isaac finalmente entrou na fábrica, foi tomado pela
fumaça que nublou sua visão e invadiu seus pulmões. Mas não
tinha tempo para pegar um lenço. Seguiu pela garagem interna,
que abrigava mais alguns veículos dos bombeiros, seus
depósitos de água ambulantes. Quando chegou ao corredor
central que ligava todos os galpões, o calor do fogo vindo de
uma das extremidades o fez começar a suar como um louco.
Quanto mais corria e mais perto estava, mais o estrago podia
ser visto. Os janelões dos galpões de algodão haviam
estourado com o calor, mesmo que o incêndio não tivesse
chegado até eles.
Aquela parte da fábrica era pouco arejada, o que
transformava o corredor em uma espécie de sauna. Ele sentia o
ar quente invadir seus pulmões, mas não parou e continuou
correndo atrás dos bombeiros e dos voluntários. Lá estava
Gilbert, seus administradores, o Sr. Chambers e mais outros
fazendeiros fortes e com idade para trabalhar.
Era como um déjà-vu, tudo aquilo já havia acontecido. Os
bombeiros de Chester correndo, os fazendeiros ajudando, Price
gritando com ele por se arriscar. O calor, a fumaça, o suor.
Estava revivendo o pesadelo que vivera um ano antes, quando
viu parte de seu legado desmoronar em chamas.
E, novamente, sentia-se inútil. Todos queriam protegê-lo
das chamas, como se ele valesse mais que outra pessoa.
Como se todos ali fossem reutilizáveis. Mas aquele era o
trabalho de toda a vida de seu avô, de seu pai e agora era dele.
Aqueles homens ali eram os seus homens, pessoas que
dependiam dele para terem uma terra arável e uma
comunidade estável. Nenhum deles deveria morrer engolfado
em chamas por conta da ganância e veneno que existia no
meio industrial.
A fábrica poderia ruir, mas antes disso ele apagaria aquele
fogo e tiraria todos aqueles homens fiéis de lá.

***

Duas horas mais tarde e as contrações só se intensificaram,


chegando em intervalos menores e durando mais tempo. Ela
andava de um lado para o outro a mando da mãe, mas
principalmente porque não conseguia ficar quieta. Price havia
enviado um recado através de um rapaz sujo e suado que
apareceu na ala da criadagem. O secretário avisou das
condições do incêndio, dizendo-lhe que bombeiros ajudavam e
que estava começando a ficar sob controle.
Mas nenhuma informação sobre Isaac. Ela queria saber se
ele estava bem, mais aterrorizante que o parto era a ideia de
que seu marido poderia ser tomado por chamas.
Mary tentava tranquilizá-la repetindo que os bombeiros
jamais colocariam o marquês em perigo, mas ela via nos olhos
da mãe que ela também estava preocupada com o genro. A
mulher segurava um rosário de pérolas pequenas contra o peito
e deslizava as esferas pelos dedos ansiosamente.
Julia inspirou profundamente e começou a rezar. Nunca fora
uma beata, mas buscava em Deus a calmaria. Por muitas
vezes a família ficou sem notícias de David, embarcado sabe-
se lá em que canto do oceano. Os meses se passavam até que
recebiam uma carta. Tentava não pensar no pior e sempre se
unia à mãe e às irmãs para rezar e pedir que David retornasse
para a Inglaterra.
Agora era seu marido que havia corrido para o perigo e ela
pedia a Deus que protegesse Isaac. Ela não poderia viver em
um mundo onde não teria o sorriso dele todas as manhãs, o
som de sua voz falando que a amava ou o abraço quente onde
ela se sentia tão segura. Queria passar décadas de sua vida o
vendo sorrir enquanto lhe falava sobre seus diagramas de
máquinas de bordar, brinquedos de madeira que andavam
sozinhos e vê-lo animado como um garotinho que acabara de
ganhar um presente novo. Ele não podia ser tirado dela no
momento em que lhe daria um filho, quando ambos
começariam a própria familia. Nunca mais sozinhos, com a
promessa de um futuro cuja casa estaria cheia de crianças
loirinhas e felizes.
Barganhou com Deus, dizendo que suportaria todas as
dores do parte se Ele protegesse seu marido teimoso.
Em meio às suas intermináveis preces sussurradas, Julia
sentiu o que ela temia sentir enquanto o marido estava fora. Um
líquido quente escorreu até seu joelho esquerdo, fazendo-a
parar enquanto andava, petrificada. Nervosa, ela olhou para a
mãe sentada na cama. Estendeu o braço em sua direção e a
chamou com um aceno ansioso.
— M-Mãe.
— O que foi? — Mary se levantou imediatamente,
segurando a mão de Julia.
— A água... A-Acho que começou — ela sussurrou, os
olhos arregalados em horror — O que eu faço?
— Deite-se e fique calma, minha querida —
cuidadosamente Mary a colocou na cama, puxou a campainha
e começou a tirar os vários lençóis da cama — Vamos chamar
a parteira e Gladys.
Julia assentiu e respirou fundo assim que sentiu uma nova
pontada vindo. Mais forte, queimando suas pernas e todo seu
ventre. Ainda sentia o líquido amniótico escorrendo pouco a
pouco, começando a molhar sua camisola e os lençóis.
O marido ainda não voltara e sua preocupação com a
segurança dele só aumentava, somado ao alerta em que ela
entrou. Estava começando, mas não sabia o que esperar a
seguir.
Queria Isaac mais do que qualquer outra coisa. Precisava
dele ali.
Natalie voltou para o quarto, dessa vez ela viera vestida
com um vestido simples e o cabelo bem preso em um coque na
sua nuca.
— Chame a parteira — ordenou Mary, mantendo a
compostura e a calma — Chame Lady Hanes e mande alguém
ir chamar Lorde Winsford imediatamente.
A criada saiu sem precisar responder às ordens, correndo
para a ala dos criados. Julia expirou lentamente, a dor
escalando por suas costas antes de se concentrar onde ela
menos queria.
Mary se sentou na beirada do colchão e segurou em sua
mão, afagando-a lentamente.
— Respire, querida. Está apenas começando.
— Isso não ajuda muito — resmungou Julia, a voz trêmula e
chorosa.
— Eu sei. Enquanto eles não chegam, vamos conversar.
Você me falou que fez amizade com uma baronesa.
A filha assentiu, concentrando-se em falar assim que as
contrações passaram. Ainda sentia o incômodo de uma cólica forte,
mas nada como a onda de dor que vinha sentindo.
— Heloise é adorável — começou, pensando na colega —
Está grávida também.
O rosto de Mary se iluminou em um sorriso.
— Ah, é mesmo? De quanto tempo? Diga-me como ela é. Os
cabelos, os olhos.
— Sete meses, eu acho. E-Ela tem os cabelos ruivos em um
t-tom escuro. Costumava usar umas r-roupas bem feias antes de
casar.
Mary riu e Julia acabou rindo também. Ajeitou-se contra os
travesseiros e voltou a descrição minuciosa de Heloise.
— Lady Houghton tem d-dezenove anos... É muito doce,
seria muito amiga de Tamsin e Petúnia.
— E Lorde Houghton?
— Parece um armazém com braços.
Mary gargalhou, secando o rosto da filha com a manga de
seu grosso robe púrpura. Julia não parava de suar de nervoso.
— Como seu tio Aiden?
— Menor — ela deu um riso trêmulo e a dor veio outra vez,
inundando-a como se a uma lança a perfurasse até o estômago —
De novo...
Mary apertou sua mão, fazendo-a voltar sua atenção para o
barão outra vez. Mas era difícil, parecia que toda a existência de
Julia se resumia à dor e ao medo. Ela tinha de ser forte, passaria
por aquilo várias vezes no futuro. Não queria ter um filho apenas,
queria vários. E se ela quisesse que seu primeiro bebê viesse ao
mundo em segurança, ela tinha de conseguir.
— E-Estou com medo — ela sussurrou — Posso tomar um
pouco de láudano?
O rosto de Mary se contorceu em lamento e Julia soube que
não podia.
— Em casos assim, não é bom, minha querida. Agora me fale
sobre as outras moças daqui. Conte-me tudo e logo irá se esquecer
da dor.
Julia respirou fundo e contou. Falou sobre Lilian, que parecia
ser uma moça na sombra das amigas. Marian, a amargurada que
havia ficado com as ceroulas de fora. A história de Sir Jonas
arruinando o soireè de Gladys a fez rir verdadeiramente. Contou
sobre as fazendas dos Ballards, de como as crianças eram tão
animadas e dos animais bem cuidados. Disso, ela passou para
Dianna e o Sr. Lyndon.
Trinta minutos passaram quando Emanuelle e Laura entraram
no quarto para ver como estava a irmã. Mary permitiu que ambas
consolassem a chorosa marquesa antes de serem retiradas por
Natalie. Emanuelle prometeu que ambas ajudariam a Srta. Walker a
preparar o berçário, que ficava do outro lado da casa de modo a
preservar a ignorância de Laura.
Então, a parteira chegou, acompanhada de algumas criadas
que trouxeram bacias de água fresca e toalhas limpas. Natalie
ordenava para que tudo fosse colocado em seu devido lugar para
depois expulsar as criadas como uma governanta experiente. A
camareira então acendeu todas as arandelas e candelabros do
quarto.
— Lady Winsford — Sra. Tilton, uma parteira corpulenta e
experiente, colocou sua valise ao lado da cama — Como estão as
dores?
— Horriv-veis — gaguejou como resposta, olhando ansiosa
para a porta fechada antes de buscar o olhar da mãe — Quero o
meu marido.
— Ele já deve estar a caminho, querida. Dê tempo do aviso
chegar a ele.
Julia fechou os olhos para outra contração. Onde estaria
Isaac? Como estava o incêndio? Será que ele estava bem? Ferido?
Debaixo de escombros?

***

Os bombeiros diziam que estava sob controle, mas para


Isaac parecia o fim do mundo. Todo o galpão onde as lagartas
ficavam havia sido devastado, só restava brasa e paredes negras. O
galpão de aviamento ainda enfrentava labaredas altas que
conseguiram escapar para o galpão ao lado. Os voluntários e
bombeiros mantinham o fogo naqueles dois galpões, ordens
chegavam aos ouvidos de Isaac, que estava novamente no pátio
após procurar um dos comandantes.
O homem sugeriu que o marquês respirasse ar puro por um
tempo e teve de deixar um homem grande de vigia para que Isaac
não se unisse aos voluntários novamente. Estava imundo de fuligem
e fumaça, o suor fizeram seu cabelo grudar em sua testa e a camisa
estava encharcada. Deveria estar exausto, mas a adrenalina ainda
corria pelas veias. Sabia que se parasse, desmoronaria, e por isso
ficou andando de um lado para o outro tentando ser útil do lado de
fora. Ajudava a recarregar as bombas e a encher os baldes, tudo
para que não despencasse ali.
— Lorde Winsford!
Isaac se virou assim que ouviu a voz de Miles, que vinha
galopando a toda velocidade antes de descer do cavalo e correr até
ele. Agitado, o valete cortava caminho por entre homens suados e
sujos.
Aquilo não era um bom sinal.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou o marquês no
momento que o valete o alcançou — Algo com Lady Winsford?
— O bebê — o homem tentava recuperar o fôlego enquanto
apontava ansiosamente para o cavalo — O bebê está a caminho,
meu lorde. A Sra. Wilson falou que senhor tem de voltar!
Isaac quase deixou o balde que segurava cair. Julia estava
em trabalho de parto, provavelmente o momento mais assustador
de sua vida, e ele estava ali. Devastado porque madeira e tijolo
pegavam fogo.
Máquinas, tecidos, plantas e fibras sempre poderia ser
repostas. Prédios podiam ser reconstruídos. Mas sua esposa era
única, o filho em seu ventre era único. Nada poderia reconstruí-los e
nada seria mais importante que aquelas duas vidas.
Sua fábrica podia virar pó, ele não se importava. Tudo o que
conseguiu pensar foi em Julia aterrorizada e aquilo foi o suficiente
para que ele montasse no cavalo de Miles e galopasse para longe.
Pegou um atalho por entre os bosques, desviando da estrada
antes de voltar para ela quando viu a Mansão Ballard no horizonte.
As janelas da ala dos criados estavam acesas, assim como todo o
primeiro andar.
Isaac forçou o cavalo a dar um último galope assim que
atravessou os portões e desceu do lombo do animal no momento
em que estava quase diante da porta. A mesma fora aberta numa
rapidez eficiente, Sr. Moseby tentou dar espaço para o marquês
passar, mas este quase o atropelou.
Correu pela escada curva, esbarrando em duas criadas que
carregavam panos limpos antes de parar no umbral da porta do
quarto. Lá estava Julia, o rosto pálido como cera, as sobrancelhas
claras se franziam em uma expressão sutil de dor. Ao seu lado,
Mary tocava sua testa molhada com um lenço, enquanto a parteira a
examinava e Gladys andava de um lado para o outro. Duas
assistentes ajudavam a Sra. Tilton com o que ela precisava e
Natalie ajudava Julia a se despir de sua camisola para então cobri-la
com um lençol.
A condessa o viu primeiro, horrorizada com o estado em que
ele se encontrava. Em passadas rápidas, Gladys o levou para longe
no corredor.
— Como ela está? — Isaac engoliu em seco.
— Ainda não está pronta para empurrar o bebê. O senhor
tem certeza que quer ficar durante o parto? Há muita sujeira de todo
o tipo, um homem não deveria ver a esposa assim.
— É a minha esposa, Lady Hanes. Que tipo de pergunta é
essa? Deixe-me entrar, não vou deixá-la sozinha.
— O senhor deve ir se lavar se quer ficar ali dentro, está
imundo. Mandei um lacaio preparar uma bacia e roupas limpas no
quarto de vestir de Julia.
— Avise-a que estou aqui.
Gladys acenou com a cabeça e retornou para o quarto. Isaac
entrou no quarto da esposa, vazio e frio, e foi direto para o quarto de
vestir iluminado por duas arandelas.
— Você vai ter de fazer força quando sentir a criança — a voz
de Mary chegou abafada — Fique calma, por enquanto, para não
apressar o bebê.
O marquês se apressou a se limpar, jogando as roupas sujas
em um balde enquanto fazia a sua higiene da forma mais rápida.
Poderia ter ficado mais limpo, mas se julgou como adequado
quando sentiu o corpo fresco e a cabeça limpa de toda a imundice
do incêndio.
Correu para o quarto ao lado, abrindo a porta contígua no
momento em que a esposa deu um grito de dor. O som percorreu
sua espinha como uma assombração terrível, o lembrete de que
Julia sentia dores que ele jamais seria capaz de apaziguar. Ninguém
jamais seria capaz de amparar aquela dor e era isso que o
consumia, saber que a mulher que amava, a pessoa mais
importante em sua vida, tinha de sofrer.
Sua pequena e delicada marquesa parecia tão menor
naquela cama, tão pálida. O que ele podia fazer para melhorar?
Sentia-se ainda mais inútil.
Aproximou-se da cama em um misto de pressa e cuidado,
quando Julia abriu os olhos e o viu junto dela. Um sorriso cansado
iluminou seus olhos chorosos.
— Isaac — ela sussurrou em quase um sopro de voz — Você
se machucou? Como está a fábrica?
Meu Deus, ela ainda se importava com aquilo? Nada daquilo
importava, nada além dela importava.
— Eu vim o mais rápido que pude — Isaac se sentou do
outro lado da cama, segurando a mão livre dela para enchê-la de
beijos — Estou aqui com você, meu amor.
Ela procurou pela sua mão e a segurou cada vez mais forte.
A cada cinco minutos Julia tentava o máximo que podia suportar a
dor, despencando cansada quando as contrações paravam. Não
precisou de muito para saber que seria uma longa madrugada.

***

O sol já havia nascido e se derramava sobre a Mansão


Ballard que era tomada pela cacofonia de criados indo de um lado
para o outro para trocar as bacias da marquesa. Isso quando a casa
não parava toda vez que Julia gritava com todo o ar dos pulmões.
Não fazia a mínima ideia de que horas eram, mas, em determinado
momento, ouviu uma criada dizer que eram nove da manhã.
Julia já estava fazendo força para empurrar o bebê havia
duas horas desde que a Sra. Tilton avisou que ela deveria fazê-lo. A
parteira se mostrou muito paciente. Quando a marquesa chorava
dizendo que não conseguia, a mulher a incentivava com palavras
doces. Assim como Mary, Gladys e Isaac. Todos eles a
incentivavam e ela tentava deixar aquelas palavras penetrarem em
sua mente.
Ela conseguia. Ela era forte. Ficaria tudo bem, nada de ruim
iria acontecer.
A Srta. Tilton vez ou outra se levantava para sentir sua
barriga, dizendo que o bebê estava na posição certa e que bastava
ela empurrar mais. Isso quando a mulher não colocava seus
malditos dedos dentro dela pela milésima vez e a fazia chorar de
dor, para depois dizer que estava sentindo o bebê.
Então porque seu filho não saía de uma vez?
Aquela era a pior experiência de todas, ao mesmo tempo que
parecia infinita, parecia rápida demais. Sentia-se invadida e exposta,
resumida a um cansaço absurdo. O quarto parecia tão cheio de
gente, tão sufocante com aquelas criadas entrando e saindo e a
vendo tão vulnerável. Ela queria que todos fossem embora, mas ao
mesmo tempo, não conseguiria sem a presença de sua família.
Quando ficava um minuto sem contrações, ela deixava a
cabeça cair no ombro de Isaac e ele lhe sussurrava palavras de
afeto que a incentivaram ainda mais.
A dor lacerante veio outra vez e ela empurrou com toda a
força que tinha, sentindo o que parecia ser uma bola sendo
empurrada por um buraco do tamanho de uma maçã.
— Ah, a cabeça está quase saindo! — Gladys exclamou,
atrás da parteira — Continue assim, meu bem, logo seu bebê estará
aqui.
— É uma criança cabeluda — acrescentou Natalie, sorridente
— Está quase lá, madame!
— Eu não consigo... — Julia mal conseguiu falar, aquela
criança estava pedindo cada gota de energia dentro dela —
Mamãe...
Os incentivos de todas aquelas mulheres não serviam de
mais nada. Ela só queria que terminasse logo, que tudo ficasse bem
e ela estivesse em paz com seu bebê nos braços.
— Você consegue, sim — Mary disse com firmeza, o lenço
secando seu pescoço e rosto — Você está quase lá, muitas
mulheres ainda estariam no começo em tão pouco tempo.
Pouco tempo? Julia estava naquilo já fazia oito horas, o que
ela julgava como muito. Se sua mãe achava aquilo pouco, por Deus,
ela não queria ter outros partos que durassem mais.
— Só mais um pouco, meu amor — a voz de Isaac chegou
em seu ouvido esquerdo, reconfortante e familiar — Estou aqui do
seu lado.
As palavras dele já não surtiam mais efeito, era como uma
longa caminhada, quando se está próximo do objetivo, mas, de
repente, as pernas enfraquecem. Só faltava mais alguns metros, ela
só precisava caminhar mais um pouco e depois ela poderia dormir
junto de seu bebê.
Segurou-se na promessa de que logo veria o rostinho
daquela criança fruto do amor com um homem que ela nunca
acreditou que seria seu marido. O homem mais amável do mundo,
seu marquês imperfeito. Pensou naquela casa cheia, colorida e
repleta de felicidade, onde ela nunca se sentiria sozinha.
O bebê empurrou de novo em mais uma contração e Julia
usou todo o resto de força que tinha para ajudá-lo, um grito veio do
fundo de seu ser. O último grito, que a deixou com a garganta
arranhada, mas que também a fez sentir o maior alívio de todos
quando toda aquela pressão saiu em um movimento rápido.
— Pronto! — A Sra. Tilton exclamou, puxando um pano
grosso que uma das assistentes havia lhe entregado. A outra havia
aparecido com uma tesoura.
Julia tentou olhar o que a mulher fazia, mas seu corpo todo
estava esgotado. Ela deixou as costas cairem contra os travesseiros
na cabeceira enquanto seus olhos se moviam alerta com o
movimento da parteira e suas duas assistentes.
Por que ainda não ouvia seu bebê chorar?
A Sra. Tilton rapidamente se afastou com o embrulho de
panos manchados de sangue nos braços e foi até próximo a lareira.
Mary se pôs de pé e foi até a mulher, Gladys se juntou a ela em uma
roda fechada.
— O que aconteceu? — Isaac perguntou, levantando-se e a
deixando sozinha na cama — Por que não está chorando? Digam
alguma coisa!
Julia tentou chamá-los, mas sua voz mal conseguiu sair
depois de tanto gritar. Ela tentou procurar seu bebê silencioso, mas
todos haviam fechado um certo ao redor do recém-nascido. Era
impossível ver e ouvir qualquer coisa, apenas os movimentos
rápidos das assistentes rondando a parteira.
Seus olhos ficaram turvos e, naquele momento, ela não se
importou nem um pouco se fosse ela se ferir no parto. Se fosse ela
a deixar aquele mundo, não importava. Desde que seu bebê vivesse
e chorasse, ela não se importaria em deixar tudo.
Então, como o som mais belo do mundo, o choro alto e forte
de um bebê ecoou pelo quarto e ela sorriu tão feliz que podia sentir
chegar aos seus olhos. Logo o cerco se abriu e Isaac foi até ela com
um presentinho nos braços, segurando-o com tanto cuidado que
deixou Julia ansiosa para que ele chegasse logo.
— Adivinha? — perguntou ele, sentando-se no colchão e
entregando o pacotinho quente para a esposa, já quietinho — É
uma menina. Eu disse que seria uma menina.
Julia olhou para ela, os olhos meio abertos e meio fechados.
O topo de sua cabeça era dominado por uma cabeleira loira tão
clara que quase reluzia, exceto pela sujeira típica de um bebê que
acabara de nascer. Um rostinho amassado e as mãozinhas eram
tão pequenas escapando do cobertor, tentando agarrar qualquer
coisa. Seu nariz era tão pequeno e encantador, um local que
ganhou um beijo cuidadoso da mãe. E quando Julia sentiu aquelas
mãos pequeninas tocando seu peito, ela desmoronou em um mar de
lágrimas e risos. Aquela era a criança mais perfeita do mundo.
— Ela é tão pequenina — Isaac sussurrou, temendo que
qualquer som pudesse assustá-la — Tão linda.
— Eu sei... — ela sorriu em meio às lágrimas intermináveis —
Fomos nós que fizemos. Nossa pequena Marceline.
Marceline resfolegou baixinho, o som mais encantador que os
dois já ouviram em suas vidas. Isaac e Julia riram para ela, que fez
outro sonzinho parecido com uma vogal e os deixaram eternamente
apaixonados.
Quando foi chamar a mãe para ver, percebeu que o quarto
finalmente estava vazio. Eram apenas os três, numa zona de guerra
após a poeira baixar.
Sentiu um beijo demorado contra sua têmpora e um braço
quente do marido a envolver, trazendo-a para perto junto de
Marceline. Seu cansaço havia sumido, o sono que sentia,
evaporado. Queria passar horas olhando para Marceline, sentindo
toda a delicadeza de seu corpinho contra seu peito, ouvir a
respiração dela.
— Descanse um pouco, meu amor — a voz de Isaac a puxou
de seus devaneios apaixonados — Vou chamá-las de volta para
ajudá-la. Prometo que ninguém vai tirá-la de seus braços.
— E se eu a derrubar? — perguntou, ansiosa, olhando para o
marido e trazendo Marceline para junto de seu peito — E se eu
esmagá-la sem querer?
Ele lhe deu um daqueles sorrisos carinhosos que sempre
dava quando tentava acalmá-la. Um gesto que sempre a fazia sentir
que estava tudo bem.
— Eu estarei aqui olhando vocês — Isaac a ajudou a se
inclinar um pouco mais antes de beijá-la contra os lábios e passar o
carinho para o topo da cabecinha loira de Marceline — Eu sempre
estarei.
CAPÍTULO 26

Três horas depois, Julia fora levada para o quarto da


marquesa enquanto um batalhão de criadas limpavam o outro
quarto. Sua esposa havia caído em um sono profundo depois de
amamentar Marceline, que também estava dormindo.
Isaac andava de um lado para o outro do quarto, balançando
a filha em um ritmo lento que estava o hipnotizando. Poderia passar
horas assim, olhando-a apenas existir, tão pura e inocente. Aquele
bebê em seu colo havia se tornado a coisa mais importante de todo
o mundo em meros segundos. Faria tudo por ela, daria tudo por ela.
O fruto de seu amor por Julia que maravilhosamente se parecia
tanto com ela.
Com um sorriso feliz, ele deslizou o indicador
cuidadosamente pelo ralo cabelo platinado dela. Seria ela mais uma
ninfa da lua como sua esposa? Ele torcia que sim, Julia era a
mulher mais bela que ele já teve a sorte de olhar, queria que todos
os seus filhos fossem como ela.
Para sua infelicidade, a Srta. Walker entrou no quarto para
retirar a primogênita Ballard dos braços de Isaac, que não
conseguia parar de olhar para aquele ser perfeito e pequeno que
era sua filha.
— O senhor precisa descansar também, milorde — insistiu
Muriel, estendendo os braços para pegar a menininha — Homens
como o senhor não devem cuidar de bebês. Eles choram e fazem
muita sujeira.
— Terei de discordar com a senhorita — cuidadosamente, ele
deixou o embrulho que era Marceline mais perto de seu peito —
Traga um moisés para cá, diga para colocarem perto da cama.
Não deixaria sua filha sozinha em um berçário enorme, do
outro lado da casa, onde ele não a ouviria chorar quando precisasse
dele. E Julia jamais permitiria aquilo, não depois do sufoco que foi
convencê-la de que ela poderia dormir e soltar a criança depois de
ter amamentado. Nenhuma das matronas a impediu de amamentar,
Mary confessou que amamentou todos os seus filhos quando não
estava ocupada e Gladys respondeu o mesmo, um tanto
envergonhada de ter sucumbido aos sentimentos mais primitivos do
amor maternal. Isaac não tinha muita experiência observando
mulheres com seus rebentos recém-nascidos, mas sabia que uma
dama não deveria se envolver em tarefas cabíveis a uma ama.
Mulheres comuns faziam aquilo, mulheres de sangue azul não
tinham tempo e muito menos vestidos que permitissem o ato a cada
demanda do neném.
No entanto, depois de ver, pela primeira vez, a sublime
experiência da mulher que mais amava alimentando sua preciosa
filha, ele não gostaria de outra a amamentando. Fora um momento
de muita ternura, Julia não desgrudava os olhos de Marceline e ele
não desgrudava delas. Com certeza Marceline deveria viver aquilo
com a mãe e não com uma ama qualquer.
Cinco minutos depois, um lacaio voltou trazendo um cesto
grande e acolchoado, com uma cortina fina de filó enfeitada por
laços azuis. Colocou o moisés ao lado da cama, perto de Julia,
como Isaac mandara e se retirou em silêncio.
Não queria deixar Marceline ali, longe de seus braços, mas
ele precisava comer um pouco e descansar. Também queria saber o
destino de sua fábrica. Depois que o parto havia terminado e tudo
estava calmo outra vez, seus pensamentos foram para seu legado
em chamas. Price havia retornado e estava em sua edícula,
recuperando-se de todo o esforço físico. O homem estava bem,
assim como ele, só precisava descansar.
Com muito custo, Isaac a colocou na segurança e conforto do
pequeno berço na posição adequada. Mas não conseguiu deixá-la
tão logo, ficou a observando dormir enroladinha em seu cobertor.
Apenas o rostinho de fora, sereno e perfeito. Ela parecia um anjinho,
uma boneca frágil e delicada. Era tão pequena que o surpreendia ao
lembrar o quão grande a barriga de Julia estava e de como seus
gritos de dor assombraram a mansão. Durante o parto se pegou
pensando se ela estaria dando a luz a um menino grande, mas
quando a parteira tirou aquela coisinha de dentro dela, foi um
choque.
Mas tinha de lembrar que sua esposa também era pequena.
Fizera um esforço muito grande. A Sra. Tilton dissera, antes de ir
embora, que Lady Winsford era uma ótima mãe. Seu primeiro parto
durara apenas oito horas e ela não desmaiou por perda de sangue
ou por causa da dor, o que ela julgava como comum em mulheres
que tinham filhos pela primeira vez.
Sua esposa era forte, mais do que ela achava. Esperava que
depois daquela jornada, Julia tivesse menos medo das próximas
gravidezes.
Voltou sua atenção para Julia, que fora penteada e banhada
pela mãe e Natalie. Seus cabelos estavam presos numa trança que
se estendia pelo travesseiro, o rosto havia retornado ao rubor
natural e saudável e parecia dormir tranquila. Ao lado dela, enrolado
contra sua barriga, estava Sir Jonas. O gato estava acordado, as
orelhas se moviam seguindo os passos de Isaac ao se aproximar da
cama. Ele se inclinou e deixou um demorado beijo contra a testa de
Julia, terminando com um breve sobre seus lábios macios.
Ela não acordou, mas deixou um suspiro sonolento escapar
contra o beijo dele, que sorriu.
Com muito custo, Isaac conseguiu sair do quarto. Pediu para
uma criada apressada que passava com uma cesta de lençóis sujos
ir chamar Price. Enquanto descia as escadas, esbarrou em
Emanuelle e Laura. As duas foram muito obedientes e passaram o
parto inteiro longe, indo do berçário para a biblioteca. Isaac tinha
certeza de que ambas puderam ouvir tudo, mas nenhuma das duas
parecia temer o ocorrido como Julia temia. Se sentiam alguma
apreensão, não falaram nada.
— Isaac! — Laura saltitou, esperando o cunhado chegar ao
vestíbulo — Quando poderemos ver Marceline? Mamãe está
dormindo e nos esqueceu aqui, esperando desde o desjejum.
Ele sorriu para a mocinha e sentiu uma vontade fraternal de
lhe bagunçar os cabelos.
— Julia está bem? — perguntou Emanuelle, preocupada.
— Está sim. Podem ir agora, mas tem que fazer muito
silêncio. As duas estão dormindo.
As duas sorriram felizes e Emanuelle levou Laura escadaria
acima.

***
Se Price um dia estivera só o caco, aquilo foi no passado -
que era horas atrás. O homem estava impecável como sempre, a
única diferença era um olhar cansado e a falta dos óculos.
Trouxera consigo um rolo de papel grande debaixo do braço
e, no rosto, um sorriso exausto.
— Meus parabéns pela pequena Lady Marceline, meu lorde.
— Lamento muito que você não tenha ganhado o seu tão
querido herdeiro, Price.
O secretário riu, balançou a cabeça e negou com um aceno.
— Meu senhor, eu daria minha vida por ela.
— Muito obrigado — Isaac lhe deu um forte aperto no ombro,
do tipo que significava um abraço que não podia ser dado — Você é
um bom amigo, Price.
Ele fez uma de suas reverências teatrais e exageradas. Tirou
o rolo de debaixo do braço e o abriu sobre a mesa do escritório. Era
uma planta do setor de produção da fábrica, onde todos os galpões
e a garagem estavam.
Isaac voltou para trás da madeira escura e analisou sua
fábrica de cima. Price se pôs a enumerar os estragos:
— O depósito das lagartas, o galpão de aviamento e o galpão
de xx foram todos tomados. As máquinas devem ser todas
descartadas e novas serão encomendadas de Londres. Perdemos a
maioria das bobinas de linha e de tecido tingido. Janelas precisam
ser recolocadas, o telhado de dois galpões sucumbiu, mas a
estrutura está intacta como da última vez.
Ele averiguou o espaço perdido, deu um longo suspiro e
sentou.
— Eu posso simplesmente desistir da seda, não posso?
As sobrancelhas de Price se ergueram sutilmente.
— Pode, mas... O senhor teimou tanto com todos. Podemos
arcar com as despesas para repor todo o material perdido.
— Não me importa mais, isso só me causou problemas.
Briguei com minha esposa, coloquei homens em risco. Até as
pobres operárias tendo de mudar de função por causa da minha
vaidade.
— Bem... — Price um longo suspiro, puxou uma das cadeiras
acolchoadas de frente para a mesa e fez o abuso de se sentar —
Fico feliz que tenha mudado de ideia, meu lorde. Às vezes
precisamos de uma boa lição da vida.
Isaac riu de si mesmo e concordou com um aceno demorado.
Olhou outra vez para a planta. Gastaria rios de dinheiro para limpar
tudo aquilo, mas estava tudo bem. A vida era maravilhosa, ele tinha
uma filha e uma esposa perfeitas. Suas operárias ficariam satisfeitas
assim que voltassem para as funções originais, ganhando o mesmo
salário e comendo da mesma comida. Seria tudo como antes, mas
melhor.
Seu pai estaria lhe dando uma bronca naquele momento por
ter gastado tanto dinheiro em um projeto que estava fadado à falha
desde o início. Mas Isaac era do tipo que aprendia errando, nunca
sem tentar. O mundo dos negócios não existia sem riscos.
Sentado ali em seu escritório, ponderava sobre as coisas
mais importantes em sua vida. Sua esposa, sua filha
pequenina, suas cunhadas tão encantadoras, sua sogra que
pareia tê-lo adotado. Ele tinha uma família, não tão grande
como a de todo mundo, mas ainda era a família dele. E nada
naquele mundo valeria mais que aquelas pessoas. A seda não
havia dado certo, mas ele ainda tinha todo o legado deixado
pelo seu pai para cuidar e estava feliz com aquilo.
— O Sr. Hillintong está cuidando dos gastos necessários para
os reparos — continuou Price, enrolando a planta — Os
administradores vão resolver tudo para o senhor, não se preocupo.
Quando tudo estiver limpo, o senhor pode ir lá dar uma olhada.
Deseja descobrir quem foi o mandante do crime?
Isaac fez que não, distraído enquanto mexia num trenzinho
inacabado que ele estava esculpindo e montando fazia algumas
semanas diante da possibilidade de ter um filho. Marcelina teria de
brincar com trenzinhos de corda, pelo visto.
— O recado já foi dado, não quero saber quem foi. Tenho
coisas mais importantes com que me preocupar.
Price assentiu com um aceno respeitoso, levantou-se e
colocou a planta debaixo do braço outra vez.
— O senhor precisa de mim para mais alguma coisa? Há
uma senhora modista em Chester que pensa que morri carbonizado.
O marquês riu e o dispensou com um aceno, vendo Price
deixar a sala com mais uma reverência antes de sumir das vistas
dele. Quando se viu sozinho percebeu o quão cansado estava. Seu
corpo todo estava doendo do esforço da noite anterior, sua cabeça
latejava e os olhos ardiam. O silêncio do escritório o fez pensar em
tudo que perdera, na ferida que aquele incêndio havia deixado
aberta em sua propriedade. Ele amava aquela tecelagem, era o seu
trabalho, onde dedicou anos de sua vida adulta. Um incêndio
criminoso o feria profundamente.
Todo o esforço, estresse e trabalho virou pó. Sua ambição
com a seda, reduzida a cinzas. A frustração era tão grande,
misturada com raiva e tristeza, que o fez querer chorar.
Mas ele não o faria. Era um homem orgulhoso e não chorava
por qualquer coisa. Mesmo sozinho, precisava ser forte para limpar
tudo aquilo e precisava ser forte para sua filha e esposa. Do choro
pueril ao choro adulto de Marceline, ele estaria ali para ela todos os
dias.
Para todos os filhos que Julia o presenteasse.
Mas para isso ele precisava se alimentar. A última coisa que
comera foi um copo de leite que Mary o forçou a beber durante o
parto para enganar seu estômago.
Deixaria que as cunhadas ficassem com Julia e Marceline,
enquanto isso, ele faria um banquete digno de guerreiros vikings.

***

Laura e Emanuelle achavam que eram silenciosas, mas o


ouvido de Julia estava em alerta desde o momento que Marceline
nascera. O som da respiração das irmãs a acordara, fazendo-a
pensar que algo havia acontecido com seu bebê. Mas Marceline
estava bem, dormindo enquanto duas Wilson a observavam
cuidadosamente.
— Ela é tão pequenininha — a voz de Laura saia num
sussurro cauteloso — Já imaginou que todos já fomos desse
tamanico?
Emanuelle conteve uma risadinha.
— Um dia ela será do nosso tamanho. E terá o próprio bebê.
— Queria pegá-la no colo... — lamentou a adolescente —
Mas vamos esperar Julia acordar. Eu certamente mataria qualquer
um que pegasse meu bebê enquanto eu estivesse dormindo, irmã
ou não irmã.
Julia se remexeu no colchão, já bastava de observação
silenciosa enquanto sorria feito tola. O som de sua movimentação
chamou a atenção das duas que se viraram e abriram um sorriso
enorme.
— Julia! — Laura cochichou, mas por dentro Julia sabia que
a irmã tinha gritado — Como está se sentindo?
Bem, como responder aquilo? Fisicamente, ela se sentia um
fiapo de gente, dolorida em partes que jamais deveriam doer tanto.
Emocionalmente? A mulher mais feliz das Ilhas Britânicas, com toda
certeza.
— Estou bem, minha querida — Julia se arrastou até ficar
contra a cabeceira acolchoada da cama e esticou os braços — Pode
pegá-la para mim, Emanuelle? Eu não consigo ficar longe dela.
Laura podia adorar crianças, mas não tinha experiência
pegando-as no colo. Emanuelle era muito mais cuidadosa e calma
que a caçula. Com toda a delicadeza do mundo ela pegou Marceline
nos braços e a entregou para Julia. A bebê soltou um suspiro
baixinho e moveu os lábios pequeninos, continuando a dormir
pesadamente.
Julia olhou para aquele anjinho em seus braços e depois
olhou para as irmãs. Não importava o que ditava o manual das
mães de sangue azul, ela ficaria com sua filha nos braços até não
poder mais.
— Sentem-se.
O tom foi gentil, mas como irmã mais velha, as duas a
obedeciam sem precisar pedir muitas vezes. Laura, que sempre
estava agitada, sentou com muito cuidado e continuou hipnotizada
pela miudeza de Marceline.
— Escutem, meus amores — Julia começou, ganhando a
atenção de ambas — Quando se apaixonarem por um homem e
eles por vocês, quero que me perguntem tudo o que quiserem.
Mamãe não vai explicar nada direito, ela foi criada assim, mas quero
que me perguntem tudo. Sem vergonha alguma, está bem?
As duas assentiram, Emanuelle mais preocupada que Laura.
Ainda faltavam três anos para Laura debutar, o que ela julgava
como muito. Não se preocupava com a vida marital, que, para
Emanuelle, podia acontecer a qualquer momento.
— Não deveriam nos deixar em tanta ignorância —
Emanuelle comentou, um tanto amuada — Eu... Já dei meu primeiro
beijo.
Laura a olhou imediatamente, assim como Julia.
— E como foi? — perguntou a caçula, ansiosa.
A irmã do meio deu de ombros, abaixou o rosto e respondeu
bastante encabulada:
— Bom. Eu pensei que fosse só um toque... Mas ele foi muito
caloroso com seus lábios. No começo eu me assustei, mas depois,
eu gostei bastante.
— E não se casou com ele por que? — Laura parecia
revoltada e Julia acabou dando uma risadinha.
— Também estou curiosa com isso. Foi um dos três
cavalheiros que a pediu em casamento?
Emanuelle fez que sim, distraindo-se ao acariciar a testinha
de Marceline com o indicador.
— Ele foi muito gentil quando eu o recusei e disse que
ninguém nunca ficaria sabendo que nos beijamos, que esse tipo de
coisa acontece a todo momento. É isso...
— Mas por que você me parece tão triste? — perguntou a
irmã mais velha.
Emanuelle apenas deu de ombros, desconversando.
Laura fez um sonzinho de desgosto.
— Pobre homem.
— Emanuelle tem de se casar com quem ela quiser, Laura —
Julia a repreendeu com doçura — Quando crescer mais um
pouquinho, verá que há vários cavalheiros por quem podemos nos
apaixonar. Sei que não funciona assim, mas deveríamos ter o direito
de escolher mais vezes.
A caçula assentiu, mas Julia não teve certeza se ela lhe deu
ouvidos. Ainda não era o tipo que interessava Laura, ela estava
mais focada em aspectos mais inocentes de sua adolescência.
Repentinamente, Marceline gorgolejou baixinho e as três as
olharam imediatamente, temendo algum choro estridente. Mas
apenas bocejou abrindo sua boca pequenina o máximo que podia,
fazendo com que todas rissem diante de tamanha fofura. Julia a
trouxe para mais perto e deixou um beijo no topo de sua cabecinha
loira.
— Posso segurá-la? — perguntou Laura, ansiosa — Por
favor. Eu prometo que tomarei muito cuidado como se ela fosse
minha.
Julia não queria se desgrudar de Marceline, mas a carinha
pidona de Laura venceu. A caçula a pegou com um cuidado que
Julia nunca vira a irmã ter e, quando a primogênita estava bem
acomodada nos braços dela, as três irmãs a olharam com
expectativa.
Ela moveu os lábios outra vez, uma mãozinha escapando do
embrulho, e voltou a dormir. Seus olhinhos abriram levemente, mas
não o suficiente para julgá-la como acordada. Nas poucas horas que
passara com sua pequena, Julia aprendeu que recém-nascidos
tinham o bizarro dom de dormir com os olhos abertos.
Laura sorriu feliz por não ter sido o estopim de um desastre
acústico e se abaixou para cheirar os cabelinhos de Marceline.
— Céus, essa criança já está indo de mão em mão?
Mary entrou no quarto com um sorriso radiante e a voz baixa.
Gladys havia retornado para sua casa, dizendo que estaria
disponível para o que precisassem, mas que um momento como
aquele era uma honra para a avó. Ela, como tia-avó da pequena
Marceline, ficaria em segundo plano por enquanto.
— Eu também quero segurá-la — Mary fez um bico e riu
quando Laura segurou a sobrinha possessivamente — Não seja
egoísta.
— Só não demore muito com ela — pediu Julia, já sentindo
falta do calor da filha — Também quero segurá-la.
Feliz e animada, Mary pegou a neta em seus braços e
caminhou pelo quarto enquanto a ninava lentamente. Julia e as
irmãs ficaram observando-as com um sorriso contente no rosto, até
que Emanuelle tocou Laura sutilmente e as duas deixaram o quarto.
Não demorou muito e Mary devolveu a neta para seu lugar de
origem, nos braços e proteção de Julia.
Antes de falar, a mulher se aproximou e deixou um beijo
demorado sobre a testa da filha.
— Você foi muito forte. Foi um parto muito tranquilo se
comparado a alguns que eu tive ou presenciei.
— Gritei tanto quanto a senhora — ela se envergonhou de
lembrar do estado em que se encontrara — Mas, realmente, não foi
tão ruim quanto eu pensei. Quero dizer, foi horrível, mas eu pensei
que seria pior... Eu pensei que todas as mulheres se feriam, não só
a mãe de Isaac.
— As coisas nunca são tão ruins como quando as
imaginamos — Mary olhou uma última vez para a neta — Voltarei
mais tarde, Lorde Winsford estava almoçando e logo ele subirá com
seu almoço. Vocês dois devem descansar muito, ainda não acredito
que ele estava no meio de um incêndio. Céus... Homens são tão
imprudentes.
— Ele é o mais teimoso dos homens. Mas, graças a Deus,
está bem. Pobrezinho... Deve estar devastado com o incêndio.
Marceline soltou mais um sozinho em meio ao sono e Julia a
olhou imediatamente. Ainda tinha muito o que apreender sobre o
que os bebês queriam dizer para as mães.
— Ela deve comer outra vez? — perguntou para Mary —
Como eu saberei que ela está com fome?
A mãe se levantou da cama, deixou um beijo no topo dos
cabelos loiros da filha e lhe afagou o rosto.
— A cada três horas, mesmo se ela estiver dormindo.
Qualquer coisa, a ama de leite irá lhe ajudar.
— Não quero dividí-la assim com outra mulher — a marquesa
disse, sem controlar o tom aborrecido e enciumado de sua voz —
Não quero que ela pense que a ama é sua mãe...
— Entendo o que sente, meu bem. Mas quando não puder
alimentar sua filha, há quem o faça. É sua primeira criança, quando
as próximas vierem tenho certeza de que vai adorar ter várias
criadas ajudando.
Julia assentiu, sem muita convicção. Talvez quando
Marceline fosse um pouco maior. No momento, seu único desejo era
passar cada segundo com ela.
Achava que mesmo não tendo sido criada na inocente
ignorância das moças de família, ainda não estaria preparada para
as várias perguntas e dúvidas que só o tempo responderia.
Uma batida leve soou na porta entreaberta e ela sorriu
radiante quando viu seu marido trazendo uma bandeja de sopa com
pãezinhos. Mary se ofereceu para ajudar, afagando os cabelos de
Isaac com um carinho maternal que encantou Julia.
— Vou deixá-los — anunciou, já na porta — Chamem a mim
se precisarem de alguma coisa. Estarei na biblioteca.
A porta bateu silenciosamente e Julia inspirou o aroma
delicioso da sopa de galinha. Tinha tudo que uma pessoa precisava
para se recuperar. Isaac repousou a bandeja na mesa de cabeceira
e se uniu a ela na cama, beijando-a suavemente sobre seus lábios.
Parecia uma eternidade desde a última vez que o beijara como uma
amante, mas não parecia certo fazê-lo enquanto um bebê dormia
em seus braços.
— Segure-a enquanto eu como, por favor?
— Não precisa pedir, eu poderia segurá-la eternamente — o
sorriso dele era radiante e enorme, a animação exalava de sua voz,
mas seus movimentos eram cautelosos — Talvez, um dia, eu a
devolva para o berço.
Marceline abriu um pouco os olhos trêmulos como se
estivesse tomando certeza de que não era ninguém estranho a
pegando no colo, depois voltou a dormir
Isso se não estivera dormindo o tempo todo.
— Estão todos me dizendo que não devemos segurá-la tanto
ou ficará mimada logo agora — lamentou Julia, com um suspiro —
Mas ela acabou de nascer, eu não consigo ficar sem ela... É tão
maravilhoso sentir o corpinho dela nos meus braços. Não quero que
ela fique mimada, mas também não quero deixá-la sem mim assim
que vem ao mundo.
O marido abriu um sorriso sutil para a filha adormecida.
— Vamos aproveitar o primeiro dia de vida dela antes de
termos que seguir as leis das matriarcas.
Julia riu baixinho e concordou.
Ela demorou para ir comer. Preferiu ficar admirando a visão
de seu marido e sua filha, a cena mais maravilhosa que podia
existir. Isaac a olhava com tanto amor, estava completamente
apaixonado por Marceline, assim como ela estava. O mundo poderia
ruir ao lado deles que nem notariam, seus olhos estavam fixos na
mãozinha dela envolvendo seu dedo.
— Você é tão boazinha, não é? — perguntou Isaac em uma
voz doce totalmente direcionada para a filha — Tão quietinha e
dorminhoca. Acho que ela puxou todo o sono de mim. Ser tão
boazinha e quietinha é o lado de sua mãe.
Julia riu, mas seus olhos ficaram turvos de lágrimas. Tentou
conter seu choro, mas sentia uma torrente de emoções desde que
entrou em trabalho de parto e cada coisinha perfeita a faria se
debulhar.
Não resistiu e caiu em um choro silencioso em meio a um
sorriso feliz. Acabou chamando a atenção do marido, que a olhou
desamparado ao vê-la tomada por lágrimas.
— Meu amor, o que foi? — perguntou, sem saber o que fazer
com Marceline em seus braços, já que não podia abraçar Julia como
sempre fazia.
— Eu estou tão feliz — e as lágrimas caíram ainda mais,
fazendo a rir e chorar ao mesmo tempo — Céus... Eu... Eu sonhei
com você por tanto tempo, mas eu nunca tive nenhuma esperança
de que um dia eu seria a sua esposa. Eu o olhava sempre dos
cantos mais remotos dos salões, o via cortejar as moças mais belas,
olhá-las com tanto querer... Eu sonhava que era eu quem recebia
tanta atenção.
Antes que Isaac pudesse responder, ela continuou:
— Eu tinha certeza de que o amava, mas eu estava
enganada. Eu amava a imagem que criei de você, não o homem de
verdade que eu não conhecia. Eu o amo agora, amo o homem que
não é perfeito como eu imaginei, que se atrasa para o jantar e que
passa tempo demais olhando para imagens de engrenagens e
rodas. Amo você do jeito que é, não do jeito que eu idealizei. E eu
amo o fato de você me amar e de amar a nossa filha. Eu não sei se
consigo encontrar palavras para dizer o quanto eu o amo e o quão
feliz eu estou.
Julia não conseguia mais falar, suas lágrimas caiam até o
seus lábios em uma torrente salgada de emoção. Tudo o que fez foi
olhar para o marido, seu lindo marquês, cujos olhos castanhos
deixaram uma fina lágrimas se perder por sua pele.
Nunca vira seu marido chorar, não a ponto de permitir que os
olhos cedessem. E, fosse de alegria ou tristeza, ela prometa para si
mesma que sempre estaria ali para ele.
Mesmo dolorida, Julia deslizou até ele pela cama grande e o
abraçou o mais apertado que pode. Tomando todo o cuidado para
não incomodar Marceline, que descansava em um dos braços do
pai. O outro, livre, a envolveu pela cintura até que ele pode beijá-la
outra vez.
O sabor de suas lágrimas de alegria se misturou com a
doçura dos lábios dele, que logo passou a beijá-la em seu rosto e
em suas têmporas. Por fim, Isaac a puxou para bem perto ele, onde
Julia se aconchegou debaixo de seu braço.
Daquele jeito ele tinha suas duas meninas bem perto dele.
Julia continuou a olhá-lo apaixonada, acariciando seu rosto e
afagando seus cabelos. Ele retribuiu ao olhar, seu sorriso fazendo
seus olhos castanhos ficarem pequeninos de alegria.
— Eu amo você, Julia. Não há um dia em que eu não
lamente ter demorado tanto para notá-la em minha vida. Eu daria
tudo para voltar no tempo, naquele funeral, e ver o rosto que estava
escondido atrás do véu.
— Eu não valho o sacrifício de reviver uma memória
dolorosa, seu bobo — ela sorriu com certa lisonja — Ninguém
deveria valer.
Isaac a calou com mais um beijo salgado e apaixonado,
mantendo seu nariz junto ao dela em um carinho delicado e íntimo.
— Não haveria dor se eu pudesse vê-la tão bela como a lua e
o mar.
Julia aceitou os elogios daquela vez, permitindo que as
palavras doces e verdadeiras dele entrassem em seu coração.
— Acho que eu também não tenho palavras para dizer o
quanto eu te amo, minha querida. Mas essa menininha aqui é a
maior prova de tudo o que sentimos um pelo outro.
Julia assentiu, sua mão trêmula deslizando suavemente pela
cabeça de Marceline.
— Nosso pequeno presente do amor.
EPÍLOGO

Seis anos depois

Havia virado uma tradição viajar até o litoral no aniversário de


um ano de cada criança Ballard. A primeira ir, Marceline, odiou cada
segundo e quase estourou os tímpanos de Isaac e Julia de tanto
que chorou. O mar era assustador, a areia era incômoda e o vento
era frio demais. A segunda, Caroline, preferiu ficar numa poça que
Isaac cavou e só saiu de lá depois de muita birra. A terceira criança,
Aveline, se apaixonou pelo mar e ria para todo mundo ouvir sempre
que o pai fazia seus pézinhos tocarem a água gelada do oceano.
A quarta criança e o único menino, Oliver, ainda precisava
conhecer aquele gigantesco lago de água salgada. Avelina também
estava experimentando o mar como se fosse a primeira vez, com
apenas dois anos, ela parecia ter se esquecido que já havia ido até
aquela praia no ano anterior.
O clima estava agradável, fazia sol e o vento de verão era
morno e aconchegante. Seu marido e as três filhas brincavam na
areia, cavando buracos enquanto Marceline ajudava Carolina a
encher uma nova piscina para Aveline. A mais nova das três ria
contente sempre que Isaac espirrava água em suas perninhas.
Ela olhou para seu pequenino Oliver. As bochechas
rosadinhas, os olhos azuis e os cabelos platinados cobertos por
uma touquinha. Ele era a cara do avô Charles, para lamento de
Isaac que gostaria de ter o seu herdeiro um tantinho parecido com
ele.
O marido acenou para ela quando a viu e a pequena Aveline
se sacudiu animada diante da promessa de ir para os braços da
mãe. Julia se uniu a todos debaixo de uma tenda onde um intimista
convescote familiar acontecia, com todos os bombons que ela
queria comer e os vários brinquedos que Isaac fazia para suas
meninas.
Eram tantas crianças e ela sorria feliz sempre que se via
coberta por elas. Era bom ver a família crescer, seja a dela com seu
marquês ou as de suas primas amadas.
Tamsin e Dominick não paravam de ter filhos, formando
uma escadinha de três crianças e uma barriga enorme.
Enquanto que Jane havia decidido que o longo processo de
gravidez era mais do que uma erudita curiosa como ela
suportava. Depois de passar dois anos seguidos grávida, Jane
esperou alguns anos para ficar grávida outra vez. Os dois
primeiros, René e Adele já somavam seis e cinco e a pequenina
Sophia tinha poucos meses. Seu desejo de ter dez filhos foi
logo deixado de lado quando ela percebeu que não aguentaria
dez gravidezes. Petúnia, por outro lado, encontrava dificuldades
para conceber que eram esquecidas sempre que via sua
filhinha correr para os braços do pai. Depois que Philippa
nasceu, Petúnia e Elliot não anunciaram mais nenhuma
gravidez de sucesso.
Mas estava tudo bem. A vida não era perfeita, mas era boa.
Uma família não precisava ser enorme para que transbordasse
de amor.
Havia cores e som ali, em uma interminável sinfonia de
risadas e doces vozes chamando por mamãe e papai. Eram
seus lindos presentinhos do amor e Julia tinha mais um
presente ali com ela, dentro de seu ventre, e não via a hora de
anunciar a todos que teriam de marcar mais uma visita ao mar.
Enquanto as meninas se distraiam com a areia para brincar
e o irmãozinho para fazer cosquinhas, Julia olhou para Isaac
distraído com as filhas.
Ele mirou seus olhos castanhos nela e um riso brotou em
seus lábios. Julia nada disse, apenas levou a mão dele até seu
abdômen e caiu na risada quando o viu exibir uma série de
emoções misturadas.
Era aquilo que ela considerava a mais pura alegria e viveria
aquele momento quantas vezes pudesse com seu marido
perfeitamente imperfeito.
SOBRE A AUTORA

Natural do Rio de Janeiro e formada em Psicologia pela Universidade Veiga de


Almeida, Letícia nutre uma paixão pelo século XIX, principalmente pela Regência
e Era Romântica. Na adolescência começou a escrever por diversão
e como forma de explorar sua imaginação, publicando seu livro
primeiro livro após terminar a faculdade. Desde então, não pretende
parar.

IG: @autoraleticiagomes

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