Você está na página 1de 74

Casamento de Mentira

"Makebelieve Marriage"

Flora Kidd

Quando aquele desconhecido lhe propôs casamento, Daphne pensou que estivesse
louco. Mais admirada ficou ao saber que Carlos Reynolds a queria apenas como esposa
temporária. Pagaria um bom dinheiro e, depois de um mês, esse casamento de mentira
seria anulado. Ela só precisaria representar um papel diante da família de Carlos e viver
um tempo na fazenda dele. Que mistério esconderia aquele mexicano belo e charmoso, tão
rude e enigmático? Por que ele desejava uma esposa de aluguel? Daphne gostaria de saber
essas respostas mas, na situação insustentável em que se encontrava, não tinha escolha.
E assim iniciou a mais estranha e excitante aventura de toda a sua vida...

Digitalização: Rosana Gomes


Revisão: Projeto Revisoras
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Livros Abril
Copyright: Flora Kidd
Título original: "Makebelieve Marriage"

Publicado originalmente em 1982 pela


Mills e Boon Ltd.. Londres. Inglaterra
Tradução: Bruna Bruno

Copyright para a língua portuguesa: 1983


Abril S.A. Cultural - São Paulo

Esta obra foi integralmente composta e impressa na


Divisão Gráfíca da Editora Abril S A
Foto da capa: Keystone

2
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

CAPÍTULO I

As luzes de Acapulco brilhavam na noite aveludada, concorrendo com as estrelas


que cintilavam no céu, como diamantes. A temperatura era morna e agradável. Os arbustos
que circundavam a bela mansão de Elza Thomas, em estilo espanhol, mantinham-se
estáticos pela ausência de vento.
A casa ficava numa pequena colina de onde se avistava a baía iluminada.
Elza oferecia uma festa no seu espaçoso salão. Atriz de cinema, trabalhara em
muitos filmes românticos e tivera ardentes casos amorosos, além de quatro casamentos
fracassados. A história de sua vida vinha entretendo o público por mais de vinte anos.
O ambiente estava repleto de estrelas e astros de cinema, esperançosas starlets em
busca de oportunidade, parasitas e até alguns "penetras".
Os trajes eram os mais variados. Algumas mulheres vestiam longos cáftãs coloridos;
outras, sofisticados vestidos curtos de coquetel. As mais extravagantes exibiam calças
bufantes e transparentes de chiffon, com exíguos bustiês.
A maioria usava roupas descontraídas, e até se viam shorts e camisetas.
Os homens vestiam calças esporte e camisas de manga comprida. Algumas,
tipicamente mexicanas, bastante simples. Outras mais elaboradas, com bordados e pregas.
Só um dos homens presentes tinha vindo convencionalmente de terno e gravata. De
estatura mediana e ombros largos, estava encostado num dos pilares que sustinham as
arcadas que emolduravam as portas abertas para o pátio. Mantinha as mãos nos bolsos
das calças, observando com os olhos escuros e penetrantes o movimento do salão. Havia
uma pitada de cinismo em seu olhar.
Duas jovens copeiras se aproximaram, com o tradicional uniforme preto e branco.
Carregavam bandejas repletas de coquetéis. No meio do salão, Elza, alegre e exuberante,
conversava com todos que a cercavam. Gesticulava com as mãos muito brancas, de forma
a fazer reluzir ostensivamente a fileira de anéis que enfeitavam os longos dedos. O cabelo
loiro, penteado com discrição, contrastava com os olhos exageradamente maquilados. Ria
muito, escancarando a boca pintada de um vermelho vivo.
O homem, que continuava encostado no pilar, notou a risada por demais alta e
estridente. Pensou se alguém já a aconselhara a não rir tanto em público, pois se arriscava
a destruir a imagem de mulher elegante e cheia de mistérios que havia conseguido criar, a
duras penas, durante todos aqueles anos de estrelato.
Sentindo-se repentinamente sufocado pela atmosfera teatral do ambiente, por
aquela falsa alegria da "fauna psicodélica" que enchia o salão, ele resolveu andar em
direção ao pátio.
Logo no primeiro passo colidiu com uma copeira que estava entrando, e a bandeja
voou pelos ares. Copos e pratos espatifaram-se no chão. Os convidados pararam de
conversar para apreciar o desastre.
A empregada, uma jovem esbelta, de cabelos loiros e curtos, olhou para os cacos,
desolada, e em seguida fitou o causador do acidente com olhar acusador.

3
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Lo siento, senorita — ele se desculpou. Mas a moça deu a impressão de não


entender suas palavras. Continuou a encará-lo, não tanto pelo transtorno que causara, mas
parecendo admirar sua pele morena e o belo perfil aquilino.
— Sua desastrada! — era a voz de Elza, enraivecida, que se aproximava. — Você
não enxerga? Não olha por onde passa.
— Enxergo muito bem, e olhei por onde estava passando — retrucou a moça, os
olhos azuis lançando chispas de raiva. — Foi culpa dele. — Apontou para o homem de
terno e gravata.
— Ela tem toda a razão — disse o homem em inglês, os lábios recurvados, numa
expressão de autocrítica. — Fui eu quem não viu por onde estava passando. Se me permite,
faço questão de pagar os prejuízos.
— É muita gentileza de sua parte. — A expressão rancorosa de Elza desapareceu
subitamente. Sorrindo, ela tocou o braço do desconhecido. — Mas não posso admitir que
um convidado meu assuma a culpa de uma empregadinha irresponsável. — Virou-se para
a moça, já com a fisionomia dura e implacável. — Não fique aí parada, como um dois de
paus! Mexa-se! Limpe tudo isso imediatamente!
— Não! — Aquela palavra tão curta teve o poder de chamar a atenção de todos os
que tinham perdido o interesse pela cena, e um novo silêncio caiu, pesado, sobre o
ambiente.
— Então, retire-se!
Elza sublinhou a ordem, erguendo um braço, melodramática, indicando a saída.
— Você me ouviu? — perguntou, sem necessidade, já que sua voz autoritária tinha
ecoado por todo o salão. — Saia daqui! Vá embora! Não vou suportar tamanha insolência.
— Elza virou-se para o grupo de admiradores entusiasmados com a interpretação de sua
estrela predileta. — Fiz o que pude para ajudá-la — queixou-se. Falsas lágrimas escorriam
pelo rosto dela. — Eu a trouxe comigo, dei um lar e um emprego. Ela era uma pobre coitada,
filha do meu único irmão. Em troca, a ingrata se colocou entre mim e Mitch, destruindo o
nosso casamento. E o que dá, quando se quer ser caridosa com uma parente pobre!
— Mentirosa! Hipócrita! — A voz de Daphne Thomas fez-se ouvir sobre o tumulto
que as palavras de Elza haviam provocado.
Os presentes vibravam, gozando aquele drama entre tia e sobrinha. Mas Daphne
não estava representando. Dissera apenas o que partira de seu coração.
— Se quer saber, estou cheia de sua caridade... e desses seus amigos nojentos!
Seu olhar caiu, acusador, sobre aquela platéia improvisada, detendo-se no homem,
que havia provocado o incidente. Sem mais uma palavra, saiu da sala pela mesma porta
por onde entrara.
Correndo, percorreu o pátio sombrio e entrou em outra ala da casa. Desta vez, iria
embora para sempre. Ainda não sabia para onde, mas abandonaria aquele emprego de
uma vez por todas. Não podia continuar vivendo e trabalhando ao lado da tia nem mais um
minuto. E, menos ainda, suportar Mitchell Gardner, o quarto marido de Elza, com aquelas
mãos ávidas e olhos cobiçosos, com aquelas constantes indiretas para que ela se tornasse
sua amante, bem debaixo do nariz da mulher.
Logo que terminou de arrumar a bagagem, trocou o uniforme de copeira por um
conjunto de calças e blazer de linho branco e uma blusa verde, sem mangas. Pegou a mala
e a frasqueira e começou a descer pela alameda que levava até a estrada. Ouvia ao longe
o som da música e das vozes.
4
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Daphne desconfiava que Elza teria preferido outro final para a cena do salão. Teria
gostado muito mais se sua única sobrinha, com quem fora aparentemente tão generosa,
tivesse caído de joelhos, suplicando para ser perdoada. Assim, poderia ter acrescentado
um segundo ato ao dramalhão. Fingiria perdoar aquela ingrata que lhe tentara roubar o
marido, permitindo que ela continuasse a trabalhar em sua casa. Haveria aplausos. Daphne
chegou a sorrir daquele pensamento. Quem iria querer o que restava de Mitchell Gardner,
depois de ter sido quase destruído por Elza Thomas?
Estava chegando à estrada, quando um vulto saiu detrás dos arbustos e se dirigiu a
ela.
— Daphne, você não vai nos deixar, vai?
A voz pastosa de Mitchell Gardner denunciava a quantidade de álcool que ele já
ingerira. Com passos trôpegos e inseguros, conseguiu bloquear o caminho à frente dela.
— Sim, vou. — Daphne esperou que ele lhe desse passagem.
— Não posso permitir que nos abandone — o homem insistiu, enrolando a língua,
ao mesmo tempo que a segurava pelos ombros. — Você precisa ficar. Eu preciso de você!
Elza não teve intenção de despedi-la. Você sabe como ela é temperamental. Amanhã já
terá esquecido tudo, e certamente vai querer que você a penteie e trate dela, como sempre.
— Ele a puxou com violência para junto de si. — Daphne, minha doçura, não vá! Fique aqui
comigo. Eu a desejo tanto!
— Não! Não! — Largou a bagagem no chão e com as duas mãos empurrou-o. —
Não quero ficar! Deixe-me! Largue-me! — gritou, batendo com os punhos fechados em seu
peito, odiando aquelas mãos que deslizavam sobre seu corpo.
Quando sentiu a boca de Mitchell sobre seus lábios, a revolta se transformou em
fúria. Daphne começou a se debater e a lhe arranhar o rosto. Se não se livrasse logo, ele
poderia arrastá-la atrás dos arbustos que margeavam a estrada, e violentá-la ali mesmo.
Inesperadamente, uma luz forte os focalizou, e se ouviu o barulho de pneus freando.
Mitchell não se perturbou e continuou na sua tentativa de subjugá-la. Ainda lutando para se
libertar, Daphne ouviu o ruído de uma porta batendo com força. Em seguida, alguém puxou
Mitchell e o esmurrou com violência, fazendo com que rodopiasse até cair, estatelado, no
acostamento da estrada.
Graças à luz dos faróis, ela reconheceu o motorista do carro. Era o mesmo homem
de terno que colidira com ela no salão.
— Você está bem? — perguntou ele, atencioso.
— Agora estou — murmurou Daphne, limpando, com asco, os lábios ainda molhados
pela saliva de Mitchell. — Muito obrigada...
— Não tem de quê. — Ele fez uma pausa, fitando-a. — Eu lhe devia um favor para
compensar o transtorno que causei há pouco. Quer uma carona?
Os gemidos de Mitchell atraíram a atenção de Daphne para o acostamento, onde
ele continuava caído.
— O que você fez a Mitchell?
— Tentei curar-lhe a bebedeira, só isso.
— Espero que não o tenha ferido seriamente...

5
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Olhe aqui, moça — disse ele, impaciente —, tive a impressão de que você não
estava apreciando os avanços dele, por isso interferi. Mas, se quiser ficar, não tenho nada
com isso. — Começou a andar na direção do carro.
Daphne percebeu que Mitchell estava tentando se levantar, enquanto esfregava o
queixo dolorido.
— Ei! Espere! Não quero ficar! — gritou em pânico. Pegou a bagagem e correu atrás
do desconhecido. — Se não for muito incômodo, aceitarei uma carona até o centro.
— Então, entre — ele ordenou secamente. — Dê-me suas malas. Vou colocá-las no
banco de trás.
— Ei, Daphne, para onde você pensa que vai? — gritou Mitchell, já de pé, quando
ela entrou no carro.
Como única resposta, ouviu a pancada seca da porta se fechando, enquanto o
homem de terno se acomodava ao volante, dando a partida.
O carro saiu com os pneus cantando, e passou por Mitchell que gesticulava
desesperado.
— Sou Carlos Reynolds — apresentou-se. — Qual é seu nome?
— Daphne Thomas.
— Então, você é realmente parente de Elza?
— Sou, apesar de que, de uns tempos para cá, preferia não ser — deu um suspiro.
— Teria sido bem melhor se ela não tivesse ido ao País de Gales no ano passado. Não
teria me encontrado, nem me convidado para vir morar com ela!
— Então é verdade? Você estava desempregada quando ela a encontrou?
— Não, não estava. Sou cabeleireira profissional e estava trabalhando num instituto
de beleza em Swansea, onde Elza nasceu. Ela apareceu por lá para fins publicitários. Sabe
como são essas bobagens. A grande estrela volta às suas origens humildes, a celebridade
não esquece a família, nem os parentes pobres. Muito comovente, não é? Acontece que
eu era a única pessoa que restou dessa família. Meu pai, o irmão mais velho de Elza,
morreu num desabamento de uma mina de carvão, há alguns anos — explicou Daphne.
— E o resto? Aquela história de você estar querendo roubar o marido dela, é
verdade?
— É uma grande mentira!
Tinham percorrido um bom trecho da estrada, e já se viam as luzes da cidade.
— Agradeceria se me deixasse na praça — pediu, com delicadeza.
— O que pretende fazer?
— Procurar um lugar para passar a noite.
— E amanhã?
— Vou tentar encontrar trabalho.
— Você fala espanhol?
— Quase nada. Faz pouco tempo que estou no México.
— E você acha que vai encontrar um emprego, falando só inglês?

6
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Talvez em algum salão de beleza de hotel. Quase todos os hóspedes são turistas
que falam inglês — ela argumentou.
— Você não pretende voltar para a sua terra?
— Não, por enquanto. Não tenho dinheiro suficiente para pagar a passagem aérea.
Ele não fez mais comentários até chegarem a Costera Miguel Alemán, a longa
avenida que costeia a baía, com seus altos edifícios e hotéis de luxo, verdadeiro paraíso
dos turistas. O carro entrou numa das transversais, em direção à praça, situada bem no
centro da cidade.
Daphne tornou a pedir a Carlos Reynolds que a deixasse por ali, mas ele pareceu
não ouvir. Continuou na mesma marcha acelerada, passando pela extraordinária catedral,
branca, azul e dourada, com suas torres bizantinas e a cúpula arredondada como a de uma
mesquita. Seguiu por uma rua que desembocava diretamente na rodovia que liga Acapulco
à capital mexicana.
— Pedi que parasse perto da catedral — insistiu. — Mas acho que não ouviu.
— Ouvi, sim — retrucou ele, entrando na auto-estrada e calcando o pedal do
acelerador. O carro deslanchou numa vertiginosa velocidade.
— Onde está indo? Para onde está me levando? — ela começou a se apavorar.
— Você deve saber que esta rodovia leva à Cidade do México — respondeu Carlos,
sem se perturbar.
— Mas eu não quero ir para lá. Por favor, leve-me de volta a Acapulco.
O estranho não respondeu e Daphne entrou em pânico.
— Oh, eu devia ter adivinhado! — desabafou, aflita. — Você é igualzinho a todos
aqueles homens que Elza convida para as festas. Entre você e Mitchell não sei quem é o
pior. Pode parar que eu vou descer aqui mesmo! Não tenho nenhuma intenção de ser
seqüestrada!
— Ninguém está seqüestrando ninguém — ele replicou, com calma. — Só estou
tentando ajudá-la. Sinto-me responsável pelo que aconteceu na casa de Elza. Por minha
causa você acabou perdendo o emprego, e não posso permitir que ande sozinha por aí, em
busca de um hotel barato para passar a noite, e de um emprego duvidoso. Algum mal-
intencionado pode abusar de você.
— Não precisa sentir-se responsável por mim. Não é de hoje que pretendo sair da
casa de Elza. Dispenso a sua ajuda, pois posso cuidar muito bem de mim mesma.
Novamente ela ficou sem resposta, e o carro começou a subir pela Sierra Madre del
Sur.
Atraídas pela claridade dos faróis, moscas espatifavam-se de encontro ao pára-
brisa. Tal como acontece comigo, pensou Daphne, com sua imaginação fantasiosa.
Acabaria seus dias assim? Sempre massacrada e vencida pela crueldade dos outros?
Mordeu os lábios e olhou de soslaio para o perfil moreno de seu companheiro de viagem.
— Quanto tempo leva para chegar à Cidade do México?
— Por esta estrada, umas cinco ou seis horas. Mas não iremos direto para lá. Daqui
a pouco alcançaremos Iguala. Conheço uma pousada que fica por perto, onde podemos
passar a noite.

7
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Pois eu não pretendo passar a noite com você, nem em Iguala, nem em lugar
nenhum — exclamou, desesperada. — Oh, por favor, quer me ouvir? Quero voltar para
Acapulco!
— Você não tem escolha — ele respondeu, secamente. — Não vou parar o carro e
abandoná-la na estrada, nem vou voltar para Acapulco. Estou saturado de lá. Estamos
quase chegando a Iguala, por isso, o melhor que tem a fazer é relaxar. Acalme-se. É meu
dever providenciar um lugar para passar a noite. Amanhã ajudarei você a encontrar
trabalho. É o mínimo que posso fazer, não acha?
— Só peço a Deus que não espere muito de mim — ela ironizou, aceitando porém a
sugestão de Carlos Reynolds. Escorregou no assento e descansou confortavelmente a
cabeça no encosto. Estava realmente exausta.
Aquelas semanas que passara na cada de Elza, a cena deprimente da festa, a luta
corpo a corpo com Mitchell, tudo isso a tinha esgotado. Já não lhe restavam forças para se
opor a esse homem que teimava em ser responsável por ela.
— Não esperar muito de você? O que quis dizer com isso? — ele parecia
surpreendido.
— Deixe para lá.
— Acho que entendi. Não é um pouco tarde para esse tipo de precaução? Se isso a
tranqüiliza, saiba que não sou um daqueles cachorrinhos de estimação de Elza Thomas,
nem sou ator, nem faço parte da indústria cinematográfica.
— E o que estava fazendo na festa de Elza? Não vá me dizer que entrou de
"penetra"?
— Fui convidado pessoalmente por Elza, na véspera da festa. Não fosse esse
convite, eu já teria chegado ao meu destino.
Daphne voltou a observá-lo disfarçadamente. Queixo quadrado, feições bem
marcadas, olhos muitos negros, como os dos mexicanos. Seu rosto era de um moreno
dourado, como se vivesse exposto ao sol. Os cabelos eram castanhos, com reflexos
alourados.
— De onde você é? — ela quis saber.
— Atualmente vivo no Rancho Fontaine, perto de Micatepec.
— Estou no México há somente um mês, portanto me desculpe por não saber... Que
lugar é esse tal de Mica... Mica... Está vendo? Nem sei como se pronuncia — riu, sem
graça. — Fica aqui mesmo, no México?
— Sim. No Estado de Veracruz, ao leste — esclareceu o rapaz.
— Sei que o nome Carlos corresponde a Charles em inglês. Mas Reynolds não é um
sobrenome mexicano. Parece mais de origem inglesa. Quero dizer, a maioria dos
mexicanos tem sobrenome espanhol, não é mesmo?
— Muitos têm — ele concordou. — Mas há também uma infinidade de sobrenomes
italianos, alemães, japoneses, irlandeses, franceses... Como várias das nações do Novo
Mundo, o México tem uma enorme mistura de raças. Na região de Micatepec, por exemplo,
muitos franceses se estabeleceram no início do século passado. Esse Rancho Fontaine,
onde moro, pertenceu a uma dessas famílias de imigrantes, os Fontaine. Há muitos anos o
proprietário do rancho ofereceu o cargo de administrador a meu pai, John Reynolds, um
vaqueiro do Texas. Lá no rancho ele conheceu e casou com minha mãe, que é mexicana.
— Fez uma pausa, e acrescentou, sorrindo: — Espero que essa explicação a satisfaça.
8
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Oh sim, obrigada — retrucou Daphne, muito séria. — Sabe, nunca conheci


ninguém que trabalhasse num rancho... — E depois de um curto silêncio: — Quantos anos
você tem?
— Trinta e quatro. Por que quer saber?
— Mera curiosidade.
— E você?
— Quase vinte e três.
Estavam perto das montanhas, e ela pôde ver os picos recortados tendo como pano
de fundo o céu. Um pouco adiante, luzes brilhavam na escuridão. Iguala?
Sentiu uma contração no estômago. O que estava ela fazendo, dentro daquele carro,
com um homem que mal conhecia? Será que tinha pulado da frigideira para o fogo ao tentar
escapar dos avanços de Mitchell? Nunca enfrentara uma situação daquelas.
Soltou um profundo suspiro e fechou os olhos, recordando-se do dia em que Elza
fora ao instituto de beleza em Swansea para perguntar se alguma Daphne Thomas
trabalhava lá. Ela vibrara. A tão famosa irmã mais nova do pai tinha ido procurá-la! Era
maravilhoso saber que uma parente tão bela, famosa e rica se interessava por ela. Agora
se dava conta de como se enganara a respeito de Elza. Tinha aparecido como a fada-
madrinha da história de Cinderela, que com o toque de sua varinha mágica a transportara
através do oceano Atlântico, até a fabulosa Hollywood. Em troca, Daphne deveria ser sua
camareira.
Durante os primeiros meses tudo tinha corrido bem, pois Elza andava ocupada com
as filmagens de uma nova produção nos estúdios de Hollywood. A vida de Daphne começou
a se complicar quando, terminado o filme, Elza se mudou para a mansão em Acapulco. Aí
é que o marido, Mitchell Gardner, entrou em cena.
Pouco mais jovem que Elza, Mitchell fora no passado um bom ator, com um futuro
que prometia. Era bem apessoado, e, ao contracenar com a grande estrela, se apaixonou
por ela. Enfeitiçado por sua beleza, se divorciou da mulher, abandonando dois filhos
pequenos, a fim de se casar com a atriz.
Isso tinha acontecido há três anos. Daphne não sabia dizer quando aquele
relacionamento começara a deteriorar. Porém, logo depois que chegaram a Acapulco, pôde
perceber que Elza e Mitchell viviam brigando. A atmosfera de tensão era tal, naquela casa,
que nem os criados agüentavam. Também descobriu que Mitchell bebia demais, e que,
quando se embriagava, ia à sua procura para desabafar as mágoas, afirmando que ela era
muito mais compreensiva do que a esposa. Como se não bastasse, ele dava a entender
que seu relacionamento com Daphne era íntimo, talvez para provocar os ciúmes de Elza,
pois sabia que a mulher estava começando a se cansar dele.
Sim, tinha sido muito bom conseguir se livrar daquela situação embaraçosa e
insustentável. Nada do que acontecesse naquela sua nova aventura seria pior do que
acordar, todas as manhãs, apavorada com a idéia de enfrentar o dia, tendo que evitar de
todas as maneiras o assédio e as carícias de Mitchell.
Carlos dirigia em silêncio. Sonolenta e cansada, Daphne cochilou. Despertou ao
ouvir o ruído dos pneus freando sobre o cascalho.
— Onde estamos? — perguntou, endireitando-se no assento.
— No pátio de estacionamento de uma pousada, perto de Iguala. A tal pousada que
mencionei.

9
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Carlos saiu do carro e foi abrir a porta para ela. Daphne hesitou em sair, ainda
desconfiada das intenções daquele quase desconhecido.
— Que passa? Qual é o problema? — ele a encarou friamente.
— Eu... eu não estou bem certa se... — balbuciou. indecisa
— Escute, garota, já é tarde, passa da meia-noite, e não vejo a hora de pegar uma
boa cama — interrompeu, com aspereza. — Desça daí, e vamos ver se eles têm
acomodações disponíveis. — Ela não se mexeu, e Carlos inclinou-se para vê-la melhor. —
Ou você prefere passar a noite no carro?
Continuou imóvel, e Carlos bateu a porta, resmungando em espanhol. Logo se
afastou, deixando Daphne ali sozinha, livre para tomar sua decisão.
Poderia dormir no carro ou ir a pé até a estrada. Talvez conseguisse uma carona de
volta para Acapulco. Mas naquele país estranho não era prudente se meter no carro de
qualquer um. Hoje já fizera uma bobagem, e não queria repetir a dose.
Dentro do automóvel estava muito quente, agora que o ar condicionado tinha sido
desligado. Em que confusão se metera! Nem sequer tinha um lenço na bolsa para enxugar
o suor que escorria da testa. E que sede! Que vontade de beber um refrigerante e tomar
uma bela ducha!
Vagarosamente, abriu a porta do carro e deslizou para fora do assento. Retirou a
bagagem do banco traseiro e começou a andar pelo pátio. Um lampião colonial iluminava
a arcada que dava para a entrada da pousada. Com cuidado, abriu a porta entalhada e se
viu num pequeno saguão, bem arejado e com pouca iluminação.
Apesar da hora tardia, o empregado que estava no balcão da recepção, falando com
Carlos Reynolds, parecia bastante atencioso.
Os dois se viraram para ela, quando a ouviram entrar.
— Tudo arranjado — disse Carlos, com naturalidade, indo na sua direção.
Numa das mãos carregava uma sacola de viagem e na outra trazia uma enorme
chave com a plaqueta indicando o número do quarto.
— Ainda havia um quarto disponível — informou.
— Um quarto?
— Sim, um quarto de casal. É por aqui.
Pegou a mala de Daphne com a mão que levava a chave e começou a subir por uma
escada de ferro toda trabalhada, que levava a um corredor acarpetado. Daphne foi atrás
dele.
— Mas nós precisamos de dois quartos — ela sussurrou, olhando para o porteiro
que os observava.
— Buenas noches, senora — ele a saudou amavelmente.
— Há somente um apartamento disponível. — Carlos se mantinha impassível,
continuando a subir as escadas. — É natural que marido e mulher ocupem o mesmo quarto.
— O quê? Você disse a ele que eu era sua mulher? — Daphne elevou a voz,
exaltada.
— Não grite. Fale baixo, os outros hóspedes já estão dormindo. Precisei inventar
essa história para que você pudesse ficar no quarto comigo, sem problemas de
identificação.
10
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Mas eu não vou ficar no seu quarto!


— Então, volte para o carro.
Ele parou na frente de uma porta e girou a chave na fechadura, abrindo-a facilmente.
Entrou e a fechou em seguida, deixando Daphne do lado de fora. Ela olhou para a escada.
O porteiro estava subindo. Falou alguma coisa para ela em espanhol.
— No entiendo, senor — disse ela, sacudindo a cabeça. Os olhos escuros do
empregado a observaram, intrigados. Daphne não teve outro remédio senão entrar, dando
de cara com Carlos, que a olhava com uma expressão cínica.
— Eu sabia que mais cedo ou mais tarde você ia aparecer — disse ele, dando-lhe
passagem e fechando a porta.
A primeira coisa que viu foi uma ampla cama de casal, forrada com uma colcha de
rendão branco. No piso acarpetado, quadrados brancos e pretos formavam um estranho
mosaico. Duas arcas de madeira entalhada ladeavam a cama, servindo de apoio para dois
abajures, cuja luz suave dava ao quarto um ar de intimidade. Por uma porta espelhada,
entreaberta, ela pôde ver o banheiro.
Carlos já tirara o paletó e começava a desabotoar a camisa, de costas para ela. Os
ombros musculosos, morenos e excepcionalmente largos chamaram sua atenção, quando
ele jogou a camisa em cima de uma prateleira branca que se estendia ao longo da janela.
Ao se sentir observado, Carlos virou-se para ela.
— Vá tirando seu blazer e fique à vontade. Vou usar o banheiro, mas não demoro.
— Mas este apartamento é muito luxuoso. Não posso pagar uma diária dessas —
comentou, indecisa.
— Eu posso — retrucou Carlos, e se dirigiu para o banheiro.
— Nunca estive com um homem no mesmo quarto. Acho... acho que vou dormir no
carpete.
Pelo vão da porta do banheiro ele lançou um olhar sarcástico.
— Faça o que bem entender — respondeu, fechando a porta espelhada.
De uma certa forma, aquela indiferença a tranqüilizou. Daphne despiu o blazer,
pendurando-o num cabide do armário. Parecia que Carlos não se interessava por ela como
mulher, mas como alguém a quem queria ajudar. Descalçou as sandálias e sentou,
experimentando a cama. Era tão larga que podia acomodar quatro pessoas folgadamente.
Não conteve um bocejo. Já que ela sugerira dormir no chão, quem sabe Carlos tomaria a
iniciativa?
Pouco depois a porta do banheiro se abriu e Carlos reapareceu, já de pijama. Sem
a menor cerimônia, puxou os lençóis de seu lado, pronto para se deitar. Ela levantou,
rapidamente.
— Buenas noches — murmurou, espreguiçando-se, e apagou a luz de seu abajur.
Já no banheiro, Daphne tomou uma chuveirada rápida, vestiu a camisola e voltou
para o quarto. Carlos Reynolds estava escondido pelo lençol que o cobria até a cabeça. De
mansinho. Daphne foi para o outro lado da cama, e deitou sem fazer ruído. Cobriu-se, e
apagou a outra lâmpada.
O sono chegou tão rápido quanto a escuridão que invadiu o quarto, levando embora
todas as dúvidas e inquietudes.

11
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Quando despertou, Daphne percebeu que estava numa cama estranha. A primeira
imagem que viu foi um pedaço de céu azul e o sol brilhando, emoldurados pelos contornos
da janela.
Na prateleira branca de alvenaria estavam a sacola de viagem de Carlos, a camisa
cinza e a gravata vermelha que usara na véspera. Isso significava que ele ainda devia estar
no quarto.
Com cautela, virou a cabeça para o lado oposto e, aliviada, constatou que ele já se
levantara. Sentou na cama, apoiando as costas na cabeceira almofadada.
Sentia-se descansada e surpreendentemente confiante. Por quê? Talvez porque
Carlos Reynolds cumprira o prometido: providenciar as acomodações para ela passar a
noite, sem exigir nada em troca. Espreguiçou-se. Chegou a pensar que provavelmente ele
também a ajudaria a conseguir um emprego.
Levantou, foi ao banheiro e, em seguida, colocou um vestido simples, sem mangas,
de algodão azul e branco. Guardou as roupas da noite anterior e trancou a mala. Tirou a
carteira da bolsa e começou a contar o dinheiro que possuía. Mil pesos. Muito pouco. Talvez
não tivesse sido sensata, abandonando, a casa de Elza tão intempestivamente. E se
voltasse e pedisse desculpas por ter sido rude? Não! Só de pensar nisso, um calafrio
percorreu-lhe a espinha. Preferia ser livre, mesmo tendo que enfrentar dificuldades, do que
voltar para aquele ambiente insuportável.
De repente, a porta do apartamento se abriu e Carlos Reynolds entrou, vestindo o
mesmo terno de alpaca, mas agora com uma camisa esporte, sem gravata.
— Buenos dias. Espero que tenha dormido bem. Não quer tomar o café? Já são oito
e quinze, e às nove pretendo estar na estrada.
Foram tomar o café da manhã numa agradável saleta, com mesinhas cobertas por
toalhas de um tecido xadrez.
Usando o cardápio para lhe ocultar parte do rosto, Daphne estudou a fisionomia de
Carlos. Ele, por sua vez, parecia também estar fazendo o mesmo com relação a ela. Tinha
o olhar calculista, como se estivesse avaliando um touro de raça, ou melhor, uma vaca,
corrigiu ela mentalmente.
— Buenos dias, senora y senor. Que desean ustedes?
O garçom era jovem, de olhos castanhos reluzentes e pele cor de jambo. Daphne o
olhou, desconcertada. Ele a chamara de senora... Além disso, não entendera o restante da
frase, e ficou encarando o rapaz, apalermada.
— O que você quer comer? — Carlos veio em seu auxílio. Ela fez o pedido em inglês,
e Carlos traduziu para o garçom.
— Você precisa aprender um pouco de espanhol, se pretende permanecer no
México — aconselhou. Daphne não respondeu. Continuava a fitá-lo, intrigada.
Notou que ele também a examinava, os olhos apertados, como se não a aprovasse
completamente.
— Não deu para aprender alguma coisa, enquanto esteve em Acapulco? — insistiu.
— Notei que Elza tem alguns empregados mexicanos.
— Acontece que nenhum deles ficou lá por muito tempo.
— Por quê? Elza não paga bons salários?

12
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não é questão de dinheiro. E que ela e Mitchell vivem num inferno. — Viu Carlos
erguer as sobrancelhas, admirado, e acrescentou: — Não se agridem fisicamente, se bem
que Elza, de vez em quando, lhe atira coisas. Eu quis dizer que eles discutem muito,
xingam, trocam acusações. — Fez uma careta de desgosto. — Eu cheguei a presenciar
cenas desagradáveis e deprimentes, e, pelo que pude perceber, os empregados logo
ficavam saturados e pediam demissão. Houve uma semana em que ela ficou sem ninguém,
e eu tive que fazer todo o serviço de casa, inclusive cozinhar.
O garçom voltou com o pedido, e quando colocou o suco de laranja na frente de
Daphne ela fez questão de agradecer:
— Muchas gracias.
— Por nada, senora — respondeu o empregado, retirando-se com um sorriso de
satisfação.
— E estranho ser chamada de senora quando não se é casada — disse Daphne, ao
pegar o copo com o suco.
— Você não gostaria de ser? — Carlos fez a pergunta de forma casual.
— Sim, gostaria. Toda moça, acho, pretende se casar um dia. Estou esperando
aparecer o homem certo, que me peça em casamento — confessou desinibida.
Enquanto tomava o suco, observou-o pela borda do copo. Aquela pele tão morena
era como um pedaço de couro curtido pelo sol. Os olhos eram negros como carvão, o nariz
atilado, as narinas afastadas. Os lábios finos tinham uma expressão rígida. Talvez ele
nunca tivesse vivido um sentimento de ternura ou afeição, pensou Daphne.
Ela se sentiu subitamente curiosa a respeito da vida particular de Carlos.
— Você é casado? — aventurou-se a perguntar.
— Si. Sou casado... com você! — respondeu brincando com ela. — Já se esqueceu
que passamos a noite, aqui, como marido e mulher?
— Foi uma farsa, é claro. Mas você pode ser, na realidade, um homem casado,
legalmente casado.
— Você acha que eu iria registrá-la no hotel, como minha esposa, se já fosse casado
com outra mulher?
— Muitos homens fazem isso, com o maior descaramento.
— Não sou esse tipo de homem.
— Como eu podia adivinhar?
— Por acaso a violentei ontem à noite, quando dormimos na mesma cama?
— Não.
Daphne sentiu que ficava vermelha até a raiz dos cabelos.
— Então, você já tem a resposta — pegou o bule e encheu a xícara de café. — Não
tenho esposa. Por enquanto. — Recolocou o bule sobre a mesa e a encarou com olhos
frios e misteriosos. — O que diria se eu a pedisse em casamento e transformasse essa
farsa em realidade?
Daphne emudeceu. Foi um choque aquela proposta inesperada. O garçom
reapareceu com as omeletes que eles haviam encomendado e uma cesta com pãezinhos
e brioches. Colocou tudo na mesa e se foi.

13
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não me venha dizer que esse é o emprego que você prometeu me arrumar... —
ela replicou num tom irônico.
— Se preferir, interprete dessa maneira. — Carlos, calmamente, começou a comer
a omelete, como se o que acabara de dizer fosse a coisa mais natural do mundo.
— Por que você quer casar com alguém que acabou de conhecer? — perguntou,
intrigada. — Você deve conhecer muitas mulheres neste país que se sentiriam felizes em
aceitar sua proposta. Você parece ser um homem de boa situação financeira e... bem, você
não é de se jogar fora!
— Gracias — agradeceu, zombeteiro, inclinando a cabeça. — É bem verdade que
conheço muitas outras mulheres, mas nenhuma delas é adequada para se tornar minha
esposa.
— E o que faz você pensar que eu seja?
Ele terminou de mastigar o último pedaço de omelete, descansou os talheres e se
debruçou sobre a mesa.
— Você está com pouco dinheiro. Não pode comprar sua passagem de volta para a
Inglaterra, e não tem nem o suficiente para pagar um hotel e refeições decentes por mais
de três dias. Certo?
— Sim, é verdade, mas... Como sabe quanto dinheiro eu tenho?
— Quanto à passagem, foi você mesma quem me contou. E quanto ao resto, foi
conclusão minha, depois de ter revistado sua carteira esta manhã, enquanto você dormia.
— Que atrevimento! — ela gritou, enfurecida.
— Psiu! Fique quieta! — ordenou. — Você está chamando a atenção.
Daphne olhou ao redor e viu que muitos dos hóspedes tinham virado a cabeça para
observá-los. Voltou a fitar Carlos, que continuava impassível.
— Você não tinha o direito de mexer na minha bolsa — disse, zangada, em voz
baixa.
— Mas, como eu ia dizendo — continuou ele, ignorando totalmente sua queixa —,
você está com pouco dinheiro. Além disso, é uma estrangeira neste país, não conhece o
idioma, ficando ainda mais difícil conseguir trabalho. Por outro lado, não tem parentes e
amigos, a não ser Elza. — Fez uma pausa, fitando-a bem dentro dos olhos. — Você quer
voltar para a casa dela?
— Deus me livre! Mas, se eu precisar de ajuda, posso procurar a Embaixada
britânica na Cidade do México, ou...
— Estou tentando lhe explicar por que acho que você me convém como esposa. —
Ele a interrompeu, bruscamente. — Por que não fica quietinha e bem comportada, até que
eu termine? Bem, continuando, você é solteira e parece que não tem compromisso com
ninguém. Mesmo assim, deseja se casar, e só está esperando que apareça o "Sr. Certinho."
— Posso falar agora?
— Si, pode.
— Sei muito bem o que eu disse, mas isso não significa que eu vá aceitando, assim,
o primeiro homem que me propõe casamento. Eu precisaria de uma ótima razão para casar.
— Que razão?
— Antes de mais nada, precisaria conhecer bem meu pretendente, gostar dele, e...
14
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Esqueça esse romantismo tolo — disse Carlos, com aspereza. — Se eu lhe


pagasse a passagem aérea para a Inglaterra e ainda por cima lhe desse um bom dinheiro
para montar seu próprio salão de beleza, você... você concordaria em casar comigo, só no
civil, e ir passar uma temporada no rancho onde vivo e trabalho?
— Você deve estar maluco se pensa que pode comprar uma esposa!
— Não quero comprar você — ele retrucou, irritado. — Só quero que faça parte da
minha vida por pouco tempo. Em resumo, você precisa de um emprego e eu preciso de
uma esposa. Se aceitar, poderá viver numa casa razoavelmente confortável, sem ter que
fazer nada. Posso lhe garantir que terá bem menos serviço do que na casa de Elza ou em
qualquer instituto de beleza por aí...
— Você quer apenas que eu interprete um papel? Não vai exigir que eu seja sua
esposa de verdade? Não vai querer que eu... que eu faça amor com você? — perguntou,
vermelha de vergonha.
— Não vou exigir nada, a não ser sua presença dentro de casa, e o direito de poder
apresentá-la à minha mãe e aos parentes dela como minha mulher legítima — esclareceu.
— Essa situação será temporária. Poderá durar um mês, mais ou menos. Como é? Está
interessada?
Antes de responder, Daphne terminou de tomar o café.
— Estou é intrigada — admitiu, finalmente. — A troco de que você precisa de uma
esposa temporária?
— Se concordar com minha proposta, logo que chegar ao rancho descobrirá o motivo
— respondeu, sorridente.
— Não me diga! E como posso aceitar seu oferecimento, se você nem sequer me
explica por que precisa casar com tanta urgência?
— Explicarei depois que você concordar em casar comigo.
— E por que não me contrata, sem que precise se unir a mim através de uma
cerimônia civil?
— Preciso apresentar provas de que o casamento é legalmente válido.
— E o que fará, se eu recusar?
Carlos olhou-a com desdém.
— Vou continuar procurando. Não vai ser difícil achar uma mulher, na capital,
disposta a vender seus serviços. — Aquele olhar penetrante tornou a cair sobre ela. — Mas
eu prefiro você. Sua juventude e esse seu ar de pureza podem tornar meu casamento mais
convincente do que se eu escolhesse uma mulher mais velha e experiente.
— Você deve estar certo de que vou aceitar, só porque me ajudou ontem à noite.
— Eu realmente acredito que você seja o tipo de pessoa que sente obrigação de
retribuir um favor.
— Mas não poderei aceitar, se não souber mais detalhes sobre você e sua família.
Lançando-lhe um olhar crítico e impaciente, Carlos afastou a cadeira e levantou.
— Se quiser mais informações, precisará vir comigo. Caso não esteja interessada,
pode ficar aqui mesmo e procurar, por sua conta e risco, outro emprego. Agora, vou mandar
fechar a conta, senão o gerente pode pensar que vamos passar mais uma noite no hotel.
Tenho certeza de que você não poderá pagar a próxima diária.

15
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Ele saiu da saleta. Daphne olhou as horas: faltavam cinco minutos para as nove. O
que faria? Iria com ele, ou ficaria ali, para tentar tomar um ônibus de volta a Acapulco? Num
gesto impulsivo, pegou uma moeda da bolsa e tirou cara ou coroa. O acaso decidiu que o
acompanharia. Levantou, apressada, para buscar suas coisas no apartamento. Carlos já
estava saindo no momento em que ela chegou.
— Eu... eu resolvi ir com você — disse, quase sem fôlego. — Mas antes vou escovar
os dentes e pegar minha mala.
— Não demore, não posso esperar muito — respondeu ele, indiferente.
Daphne saiu da portaria carregando as duas maletas. Suava muito. Carlos já pusera
o carro em movimento. Ao vê-la, parou e abriu a porta para ela, que então se acomodou.
Ele saiu a toda velocidade. Mas, para sua surpresa, entrou por uma estrada secundária.
— Não vamos pela rodovia? — perguntou, vendo que começavam a subir por uma
estradinha tortuosa e mal pavimentada.
— Não. Este é o caminho para Taxco — foi a seca resposta.
Ela afivelou o cinto de segurança, e chegou a suspender a respiração ao cruzarem
com outro veículo. A estrada era tão estreita que mal dava para um carro.
Deu uma olhada de esguelha para seu companheiro. Era não somente um homem
duro, de poucas palavras, como também tinha nervos de aço, pensou, pois nem por um
segundo tirou o pé do acelerador, vencendo as distâncias com a fisionomia imperturbável.
De repente, ele esbravejou e brecou, com tal violência que, se não fosse o cinto de
segurança, Daphne teria batido com a cabeça no pára-brisa.
Uma boiada estava tranqüilamente atravessando a estrada, logo na virada da curva.
Ao ouvirem o barulho da freada, os bois pararam. Tinham o pêlo cinza-claro, os focinhos
pretos e chifres pontiagudos e curvados.
Carlos buzinou, mas vendo que eles não se mexiam, desceu do carro e começou a
atiçá-los, em espanhol. Nem assim saíram do caminho. Carlos voltou e pôs o carro em
movimento, devagar, passando pela boiada, quase batendo nas ancas dos animais. Depois
de transpor o último obstáculo, acelerou novamente.
— Você me disse que trabalha num rancho. O que faz lá?
— Administro a fazenda para a família Fontaine.
— Assim como fazia seu pai?
— Si.
— E o que aconteceu com seu pai?
— Morreu num acidente, há uns quinze anos. Estava domando um potro bravo e foi
jogado da cela, quebrando o pescoço. Mais tarde, minha mãe casou novamente. Casou
com Claude Fontaine.
— Minha mãe também casou de novo — disse Daphne, disposta a esticar a
conversa, para obter mais informações. — Tenho duas meias-irmãs, filhas do segundo
marido. São mais velhas do que eu, e já casadas. Você tem irmãos?
— Claude Fontaine tinha uma filha quando casou com mamãe. Posso também
considerá-la uma meia-irmã.
— E mais moça ou mais velha que você?
— Mais moça.
16
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Casada?
— Casada, mas agora está se divorciando.
— Sua mãe está esperando que você volte para o rancho, levando uma esposa? —
ela insistiu, sem desanimar com aquelas respostas lacônicas.
— Talvez.
— Talvez — ela fez seco, imitando-lhe a maneira de falar. — Isso é resposta que se
dê? Quem você pensa que é? Clint Eastwood?
Ele a olhou com ar de interrogação.
— E quem é esse Clint Eastwood?
— Oh, você não existe! É um ator de cinema que trabalha em faroestes americanos,
e é de poucas palavras, como você. Nunca vai ao cinema?
— Às vezes, mas nunca vejo faroeste e pouco sei sobre artistas.
— E o que estava fazendo na festa de Elza?
—- Procurando uma esposa — respondeu, enviando-lhe um olhar irônico.
— Onde você conheceu Elza?
— Numa noite em Acapulco. Eu estava sozinho e ela veio me tirar para dançar.
Daphne podia imaginar a cena. Elza devia ter se sentido atraída por aquele homem
de nariz aquilino, bronzeado e sedutor. Certamente, valeu-se de sua popularidade para
chegar até ele.
— Você foi à boate sozinho?
— Fui.
— Por quê?
— Pelo mesmo motivo que fui à festa de Elza. Alguém me sugeriu que se eu fosse
a lugares desse tipo poderia encontrar alguma atriz desempregada que, por um punhado
de dólares, não hesitaria em representar o papel de esposa dedicada.
— Por que não convidou a própria Elza? — sugeriu. — Tenho certeza de que ela
exultaria em ser sua mulher.
— Ela é velha demais para mim. Além disso, já é casada. E tem mais: não gosto do
jeito como ela ri. Acho você muito mais convincente para o papel.
— Já lhe disse que seria muito mais fácil para mim representar esse papel, se
soubesse os motivos da proposta.
— Case comigo e saberá.
Cansada das respostas pouco esclarecedoras de Carlos, Daphne acomodou a
cabeça no encosto e começou a olhar a paisagem.
Enormes cactus se estendiam ao longo da estrada. Mais adiante, rampas rochosas
desciam até alcançar uma extensa planície, cortada por um rio que serpenteava pela verde
vegetação tropical.
— Esta região é tão agreste! Parece muito distante da civilização — comentou ela.
— Não é tão distante assim como você pensa. Logo chegaremos a Taxco.

17
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Por que veio por este caminho, em vez de seguir pela rodovia expressa até a
Cidade do México?
— Teríamos chegado depressa demais, e eu prefiro lhe dar tempo para tomar sua
decisão. Além disso, eu ainda estou de férias e não conheço Taxco.
Daphne se recostou novamente no assento. A precária estrada chegava a outra
colina, circundando-a através de curvas e mais curvas.. Ao dobrarem uma delas, Daphne
viu ao longe um amontoado de telhados vermelhos na encosta, e a cúpula de uma grande
igreja cor-de-rosa, que se destacava na paisagem.
Mas estava por demais atordoada com todos aqueles pensamentos que lhe
ocupavam a mente para apreciar a vista. Seu lado realista rejeitava o oferecimento de
Carlos Reynolds para ser sua esposa apenas por um curto período de tempo. Parecia uma
aventura muito perigosa, mesmo sendo bem remunerada. Como poderia se apresentar num
cartório, ao lado de um desconhecido, para um casamento que não passava de uma
fraude? E onde arrumaria coragem para se apresentar aos parentes do futuro marido?
Instintivamente sacudiu a cabeça, numa negativa muda, e a franja de cabelos
dourados reluziu à luz do sol.
Fingir nunca tinha sido seu forte. A única atriz da família era Elza Thomas. Daphne
nunca a invejara, nem quisera imitá-la. Para ela a vida era algo real e não uma ilusão, uma
peça a ser representada diante de uma platéia. Só conseguiria se casar com um homem
que amasse, admirasse e respeitasse. E, uma vez casada, pretendia ser uma esposa de
verdade, participante e companheira.
Mas seu lado sonhador, o que usava e abusava da imaginação, um lado aventureiro
e audacioso, estava excitado diante daquela perspectiva. Casando-se com Carlos,
naquelas condições extravagantes, poderia descobrir o mistério que o envolvia, poderia
conhecer uma outra faceta daquele país excêntrico, aprender mais sobre os costumes de
seu povo. Sem contar que estaria ajudando alguém, e esse fato mexia com sua
sensibilidade e sua natureza afetiva.
Mas estaria ajudando quem? Carlos Reynolds?
Olhou de soslaio aquele perfil de ave de rapina, severo e contido. Pela fisionomia e
maneira de agir, devia ser um homem com pleno controle da própria vida. Positivamente,
não era o tipo de pessoa que precisasse de ajuda, ainda mais de alguém frágil como era
ela...
Mas a quem aquele casamento temporário iria beneficiai?
Ainda estava se debatendo entre mil dúvidas e reflexões quando o carro enveredou
por uma ladeira de paralelepípedos. Na esquina havia um posto de gasolina.
Passaram por várias casas pintadas de um branco sujo, com portões de ferro batido,
até alcançarem a praça principal, com seu coreto central, cheia de árvores e bancos de
madeira. Estacionaram perto da igreja cor-de-rosa. A fachada era ricamente ornamentada.
Carlos virou-se para ela:
— Chegamos à Cidade da Prata.
— Por que a chamam assim?
— É que neste local, no século XVIII um imigrante chamado José de la Borda
descobriu o mais rico filão de prata deste país. Hoje em dia Taxco é conhecida por suas
ourivesarias, que produzem delicados ornamentos e jóias trabalhadas em prata. E a maior
atração turística do lugar e sua maior fonte de renda. Quer descer, e dar uma caminhada

18
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

por aí? Poderemos almoçar mais tarde. Talvez nem eu nem você possamos passar outra
vez por aqui. Acho que deveríamos aproveitar para conhecer a cidade.
Ele lhe deu um sorriso sedutor. Daphne sentiu o coração bater mais depressa. De
uma forma inexplicável, estava feliz naquela cidadezinha colonial e romântica. Era como se
começasse a viver um conto de fadas. O cenário, com seus sobrados de balcões de ferro,
as ruelas tortuosas, num sobe-e-desce contínuo, as janelas com treliças, a atmosfera de
antigüidade e mistério, tudo era um convite ao sonho.
Daphne chegou a se beliscar para ter certeza de que estava mesmo acordada. E
estava. Aquela igreja barroca, com seu portal esculpido, ainda estava lá, na sua frente.
Parecia balançar diante de seus olhos, por causa do calor que subia do chão escaldante.
— Que pasa? Você está se sentindo mal?
Carlos segurou sua mão. Daphne sentiu as palmas ásperas e calosas.
— Não... não tenho nada. Acho que só estou um pouco tonta — ergueu a mão e
afastou a franja que lhe cobria a testa úmida de suor.
— Deve ser a mudança de altitude — explicou ele, ainda lhe apertando a mão. —
Esta cidade está a 1.650 metros acima do nível do mar, e a atmosfera é bem mais rarefeita
do que a de Acapulco ou Iguala, apesar de não ser tanto quanto a da capital. Esqueci que
não está acostumada a estas alturas. Seria melhor ficarmos aqui sentados até você
melhorar.
— Obrigada. Eu... eu tenho certeza de que logo ficarei bem — murmurou, olhando
para a mão que ainda segurava a sua.
A pele era tão ou mais morena que a do rosto; os dedos longos, fortes e nodosos,
denunciavam ser de alguém que tivesse sempre trabalhado em serviços pesados. Ela
estava gostando daquele contato. Aliás, não faria objeções a qualquer tipo de contato com
ele. Chocada pelo rumo que seus pensamentos estavam tomando, retirou abruptamente a
mão e pegou a alça da bolsa, passando-a sobre o ombro.
— Já estou ótima! — disse, com falsa vitalidade. —- Que tal visitarmos a igreja?
Parece interessante.
— Iremos onde você quiser.
Durante mais de uma hora percorreram os pontos de maior atração da cidade. Foram
ao museu apreciar a fabulosa coleção de objetos de prata da era pré-colombiana. Andaram
pelas ruelas estreitas, entraram nas lojinhas para admirar as modernas bijuterias de prata.
Num pequeno e aconchegante restaurante comeram tacos de pollo, que eram
tortillas recheadas com frango desfiado, feijão frito e cebola. Completaram a refeição com
café, e voltaram a pé para a praça.
Carlos estava abrindo a porta do carro quando um policial se aproximou com um
bloco de notas. Disse alguma coisa em espanhol, e Carlos tirou a carteira de identidade.
Mostrou-a ao policial. Depois de examiná-la, o guarda olhou para Daphne e perguntou
qualquer coisa. Sem compreender, ela se virou para Carlos, num apelo mudo.
— Ele quer ver seu documento de identidade. Mostre o passaporte.
Daphne obedeceu, e o policial disse algo a Carlos, que franziu a testa, respondendo
de maneira áspera. O guarda pareceu não gostar e começou a gesticular.
— O que foi? O que ele disse? — quis saber.

19
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Ele quer que a gente vá até a delegacia. Seremos interrogados pelo chefe, que
fala inglês.
— Por quê? Há alguma coisa errada com meu passaporte? — perguntou, ansiosa.
— Tudo o que sei é que o chefe dele quer nos ver. É melhor acompanhá-lo. A
delegacia é aqui perto, e o interrogatório não deve ser demorado, pois nem você nem eu
temos nada a esconder.
Ao chegarem ao prédio, o guarda os levou a uma sala onde havia somente uma
escrivaninha e algumas cadeiras. O homem sentado por trás da escrivaninha levantou
quando eles chegaram e os convidou para sentar.
— Sou o capitão Delaguerra — apresentou-se em inglês, enquanto eles se
acomodavam. — O sargento Sotomayor examinou seus documentos e constatou que vocês
dois estão sendo procurados pela polícia.
— Procurados? — Daphne não pôde deixar de repetir, perplexa — E por quê? O que
fizemos nós?
O capitão Delaguerra a olhou, franzindo a testa.
— O sargento me assegurou que você é Daphne Thomas, sobrinha de Elza Thomas,
a atriz de cinema que atualmente reside em Acapulco.
— E verdade. Sou mesmo parente de Elza Thomas. Aconteceu alguma coisa com
ela? E por isso que me trouxe até aqui?
— Não, não aconteceu nada com ela. Mas Elza Thomas acha que alguma coisa de
anormal está acontecendo com você, e fez uma denúncia, pedindo que prendessem esse
homem.
— Ela quer que eu seja preso? — Carlos começou a rir. — E por quê? Deus do céu!
O que foi que fiz?
— Elza Thomas o acusa de seqüestro de sua única sobrinha. Ela sabia que vocês
estavam indo em direção à Cidade do México, pois foi você mesmo quem lhe disse, e
alertou a polícia de todas as localidades ao longo do trajeto. A mensagem foi transmitida a
todos os proprietários de hotéis e pousadas, e a noite passada, numa pousada perto de
Iguala, o porteiro da noite levantou suspeitas a seu respeito. Logo pela manhã, avisou a
polícia de Iguala, mas quando os policiais chegaram vocês já tinham deixado o local,
dizendo que pretendiam vir para Taxco. Fomos logo informados, e o sargento Sotomayor
reconheceu seu carro pela placa. — O capitão Delaguerra fez uma pausa e, com ar
compenetrado, continuou — Agora é meu dever detê-lo por tentativa de seqüestro. Ficará
na cadeia, até o dia do julgamento.
Carlos falou com ele em espanhol, bem devagar, mas o tom de voz era agressivo.
Daphne percebeu que ele havia sido rude pela reação do capitão, que enrijeceu os
maxilares e respondeu, exaltado, no mesmo idioma. Levantou de forma brusca e tirou um
par de algemas do cinto.
— Oh, não! — Daphne também se ergueu. — O que pretende fazer? Não pode
prendê-lo, sem mais nem menos! É injusto! Ele não praticou nenhum crime! — Vendo que
o sargento estava colocando as algemas em Carlos, começou a gritar: — Oh, por favor,
escute! Carlos não me raptou. Estou viajando com ele por livre e espontânea vontade! Se
eu realmente estivesse sendo vítima de um seqüestro, não acha que deveria estar contente
por capturarem o meu raptor?
O capitão Deleguerra virou-se para ela, o rosto sisudo e impassível.

20
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Sua tia informou a polícia de Acapulco que seu marido, Mitchell Gardner foi
testemunha do seqüestro, e viu quando esse homem a obrigou a entrar no carro dele à
força, partindo em alta velocidade. O sr. Gardner disse que tentou defendê-la, mas esse tal
Reynolds o agrediu a socos.
— Oh, quantas mentiras! — explodiu Daphne, fervendo de raiva. — Não foi nada
disso. Exatamente o contrário! O sr. Gardner é que estava me importunando. O sr. Reynolds
apenas me defendeu! Ninguém me forçou a entrar naquele carro. Até dei graças a Deus de
poder sair dali!
O capitão se reclinou na cadeira e a fitou com os olhos escuros e indagadores.
— E a noite passada? — perguntou, insinuante, ficou com ele naquela pousada de
Iguala, passando por sua esposa, também por livre e espontânea vontade? O porteiro
informou que você parecia contrariada e assustada, e por isso ficou desconfiado.
— Sim, eu fiquei com ele no hotel porque quis — respondeu Daphne, muito decidida.
Por um longo tempo Daphne e o capitão continuaram se encarando. Ela sentiu as
gotas de suor em sua testa e o coração disparar de aflição.
Súbito, o olhar do capitão se desviou para Carlos.
— Com que finalidade você estava indo para a Cidade do México?
— Para casar lá, com Daphne — respondeu Carlos, sem titubear. — Era nossa
intenção irmos depois para o Estado de Veracruz, onde moro e trabalho.
— Isso é verdade? Você ia mesmo casar com esse homem? — perguntou o policial,
tornando a olhar para Daphne.
Na cabeça de Daphne havia uma grande confusão. Percebeu que Carlos, apesar da
aparente frieza, estava furioso pela possibilidade de ficar preso. Se não confirmasse o que
ele dissera, seria certamente trancado na cadeia como um criminoso qualquer. Não podia
permitir que isso acontecesse. Elza e Mitchell não tinham o direito de cometer tamanha
injustiça contra ele.
— Sim, é verdade. Nós íamos nos casar. É que minha tia, Elza Thomas, não
aprovava esse casamento — inventou na hora. Admirou-se com a própria presença de
espírito. — Então decidimos viajar, para casar na capital. Quando tia Elza descobriu,
mandou o marido atrás de nós, e...
— Vocês estavam fugindo? — interrompeu o capitão, com severidade.
— Não — negou ela. — Bem... interprete como quiser. O fato é que já tenho vinte e
dois anos completos e não preciso do consentimento de ninguém para casar. Tia Elza não
tem o direito de interferir na minha vida. Sou uma mulher livre, maior de idade e em
condições de escolher quem vai ser meu marido. — Respirou fundo, para tomar fôlego. —
Agora, poderia ter a bondade de tirar essas algemas dele e nos liberar? Pretendemos casar
o mais breve possível. Já esperamos demais. Então, ainda pensa que Carlos me
seqüestrou?
O rosto insensível do militar continuou a encará-la, como se não estivesse
convencido.
— Pode ser um truque.
— Como assim?
— Pode ser uma mentira para acobertá-lo. Quem me garante que vocês iam mesmo
casar?
21
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

As suas costas, Daphne ouviu Carlos dizer alguma coisa em espanhol. Logo o
capitão se exaltou. Houve uma troca de palavras ríspidas que ela não conseguiu entender.
Finalmente, Carlos se dirigiu a ela.
— Ele só acredita se nos casarmos aqui mesmo, no cartório de Taxco.
— E se recusarmos?
— Iremos os dois para a cadeia, até a chegada de sua tia.
— Oh, não!
— O que você decide?
O inesperado da situação a assustou. Mas após uma breve hesitação, respondeu,
tranqüila:
— Então, está certo. Casaremos aqui mesmo.
— E quanto ao restante, você vai cumprir?
— Sim.
— Muchas gracias, querida — disse ele, com um brilho de triunfo no olhar. — Se
não fossem essas malditas algemas, eu lhe mostraria o quanto apreciei sua compreensão.
— E virando-se para o capitão: — Está satisfeito agora?
— Estou. — levantou-se da cadeira e ordenou que fossem retiradas as algemas dos
pulsos de Carlos.
Já livre, ele se aproximou de Daphne e a segurou pelos ombros. Beijou-a na boca.
Ela sentiu uma estranha excitação, um desejo louco de prolongar aquele beijo, de torná-lo
ainda mais sensual e penetrante. Mas o gesto de carinho havia sido apenas uma comédia
para enganar o policial. Carlos se afastou dela e começou a falar com o capitão.
Pouco depois estavam no cartório. Os papéis foram preparados com rapidez, sob a
vigilância dos policiais. O capitão Delaguerra e o sargento Sotomayor serviram como
testemunhas. Só depois de preencherem todas as formalidades, foram liberados para
seguir até Cuernavaca, onde passariam a noite.
Carlos levava no bolso a certidão de casamento, o pequeno pedaço de papel que
comprovava serem eles realmente marido e mulher.

CAPITULO III

As pastagens se sucediam uma após outra ao longo da rodovia, numa monotonia só


quebrada eventualmente pelas plantações de bananas. Ao longe se via o perfil das
montanhas, como sombras cinzentas contrastando com as cores vivas do poente.
Daphne se mexeu no banco, procurando uma posição mais cômoda. Sentia calor,
apesar do sol já estar se pondo. Tinham viajado o dia todo, parando apenas duas vezes.
22
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Primeiro na Cidade do México, e depois em Tuxpan, um pequeno mas agradável porto do


golfo do México. De lá tinham desviado para o sul, e em seguida tomado a rodovia que
levava para o interior. O único lugar atraente, com exceção de Tuxpan, tinha sido a vila de
Micatepec, famosa por seu mercado e pelas casas de arquitetura francesa.
Logo estariam chegando ao Rancho Fontaine, onde seria apresentada à mãe e aos
parentes de Carlos como a senora Carlos Reynolds. Estava inquieta e nervosa. Ainda não
se acostumara a esse tratamento, pois nem sequer conseguia acreditar que havia
participado daquela inacreditável cerimônia de casamento em Taxco. Olhou de soslaio para
Carlos. Ele dirigia quieto, muito tranqüilo e seguro de si, com apenas uma mão ao volante,
apoiando a outra no encosto do assento.
Nada havia mudado depois daquele casamento-relâmpago. Em Cuernavaca, tinham
compartilhado o mesmo quarto, mas não da mesma cama, pois naquele hotel os
apartamentos de casal possuíam duas camas. Além do beijo que Carlos lhe dera na
delegacia, por questão de segurança, ele não mais a tinha tocado e muito menos tentado
fazer amor com ela. Também até agora não lhe havia explicado por que precisava de uma
esposa provisória. Daphne soltou um suspiro.
— Cansada? — ele perguntou.
— Um pouco. É uma viagem longa. Ainda falta muito?
— Não, só mais uns dez ou quinze minutos. Temos ainda que passar por uma
porteira e seguir por um atalho, até o rancho.
— Se não se importa, gostaria de saber um pouco mais sobre sua mãe e sobre sua
meia-irmã. Nem sequer sei o nome delas!
— Está certo. Logo que pegarmos o atalho, eu lhe conto.
Poucos quilômetros adiante apareceu a porteira que ele tinha mencionado. Deixando
o motor em funcionamento, ele desceu do carro e foi abri-la. Só depois que passou por ela
desligou o motor.
Uma vasta campina se estendia a perder de vista. Não se viam casas ao redor, e o
único sinal de vida era o gado que pastava preguiçoso pelo capinzal. Parecia ser a mesma
raça de bois que ela havia visto na estradinha de Taxco, com o mesmo pêlo cinzento e o
focinho preto.
— Não conhecia esse tipo de gado — observou Daphne.
— É gado zebu, importado da Ásia. São animais valiosos, de exposição. — Havia
um orgulho indisfarçável em sua voz. — Todas essas terras que você está vendo pertencem
ao Rancho Fontaine. Antigamente era uma hacienda ainda maior. Meu padrasto, Claude,
a herdou do pai que, por sua vez, a recebeu de herança, e assim foi. Na verdade, o primeiro
Fontaine era um imigrante que veio da França em 1830. Essa família pertencia à classe
dos latifundiários que, até a época da revolução, dominava o poder no México.
— E quando aconteceu essa revolução?
— No começo deste século. Depois da revolução houve a reforma agrária. As terras
foram redistribuídas, e os latifundiários perderam seu prestígio político. Para os Fontaine,
restaram cerca de oitocentos acres da antiga hacienda.
— E o restante?
— Foi doado aos lavradores mexicanos que viviam aqui, cultivando a terra. Pelo
antigo sistema, nove entre dez mexicanos viviam nas grandes propriedades, em regime de
semi-escravidão. Em compensação, os donos levavam uma vida faustosa e
23
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

despreocupada. A maioria nem ficava nas fazendas, preferindo gastar os lucros nas capitais
européias. O padrão de vida dos colonos era miserável e revoltante. O pai de minha mãe
foi um desses quase escravos, até que se juntou às falanges dos zapatistas.
— Quem eram esses zapatistas?
— Os seguidores de Emiliano Zapata, que liderou a revolta das classes oprimidas.
O único interesse desses revolucionários era conquistar de volta as terras que eles
afirmavam serem suas, por direito e tradição. Eles assaltavam as hacíendas, incendiavam
as casas, requisitavam as terras e as distribuíam entre eles, passando de combatentes a
agricultores.
— Seu avô também andou incendiando as construções da hacienda Fontaine? —
perguntou, fascinada pela resumida aula de historia mexicana que Carlos estava dando.
— Não. Os Fontaine daquela época foram suficientemente espertos para proporem
a doação das terras espontaneamente, sem derramamento de sangue, sem luta, com a
condição de os revolucionários pouparem suas casas e o gado. Grande parte da
propriedade foi transformada em ejidos, pequenas comunidades agrícolas. Minha mãe
nasceu numa dessas comunidades e chegou a trabalhar como empregada doméstica para
a família Fontaine. Foi assim que meu pai a conheceu, quando chegou do Texas.
— E quando foi que ela casou com Claude Fontaine?
— Cinco anos depois da morte de meu pai.
— Você não se opôs a esse novo casamento?
— Não. E por que haveria de me opor? Eu nem vivia aqui, nesse tempo. Logo que
meu pai morreu, deixei o México e fui trabalhar nos ranchos do Texas e Novo México, para
ganhar experiência.
— Quanto tempo você ficou longe de casa?
— Voltei há seis anos. Claude adoeceu, e o Rancho Fontaine começou a decair por
falta de uma boa administração. Ele aceitou a sugestão de minha mãe e me convidou para
trabalhar no mesmo cargo que tinha sido de meu pai. Claude Fontaine acabou morrendo
há alguns meses.
— Suponho que sua meia-irmã tenha herdado a propriedade.
— O testamento ainda não foi executado — respondeu Carlos, e tornou a ligar o
motor, pondo o carro em marcha. — Minha meia-irmã chama-se Ana Maria, e minha mãe,
Tereza — acrescentou. — Mais alguma coisa que você quer saber?
— Sim. Sua mãe não vai estranhar quando você aparecer com uma mulher que
nunca foi mencionada antes, e apresentá-la como sua esposa?
— E o que a faz pensar que nunca a mencionei?
— Como poderia, se nos conhecemos há dois dias?
— Minha mãe sabe que no ano passado encontrei uma mulher em Acapulco que me
interessou. Essa mulher é você.
— Como posso ser eu? No mínimo, temos nomes diferentes!
— É claro — ele assentiu. — E que eu nunca disse o nome da outra, com quem
pretendia me casar em Acapulco.
— E por que não se casou?

24
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não consegui mais encontrá-la. Foi por isso que precisei procurar outra mulher
para substituí-la.
— Oh, não consigo entender você! — exclamou Daphne, enervada com tanto
mistério.
— E não precisa entender. Compreensão e envolvimento emocional não fazem parte
de nosso acordo — retrucou, ríspido. — Qualquer tipo de sentimentalismo, de romance,
deve ser excluído. E só fazer o que lhe peço, em troca do pagamento que combinamos, e
em poucas semanas você será liberada.
— E se sua mãe fizer perguntas, querendo saber de onde sou, ou coisas do gênero?
O que devo responder?
— Diga a verdade sobre seu trabalho com Elza. A única mentira é que você é a
mesma mulher que encontrei no ano passado. Simples, não?
— Tudo bem. Mas você exige um bocado de mim!
— Para isso está sendo paga — resumiu Carlos, com crueldade. Mordendo os
lábios, Daphne olhou a paisagem através do vidro da janela. O cenário plano e desolado
era completamente estranho a ela. Chegou a sentir saudades das montanhas do País de
Gales.
Aquela melancolia devia ser conseqüência do cansaço. Todo seu espírito de
aventura tinha desaparecido. Teria agido melhor fugindo dele em Cuernavaca.
Oportunidades não lhe faltaram. Ou poderia ter simplesmente sumido no meio da multidão
da capital. Mas não tinha feito nada disso. Afinal, em Taxco havia dado sua palavra de
honra, prometendo cumprir o acordo até o fim, até a hora de levantar vôo para Londres. E
ela não costumava voltar atrás em suas promessas.
O sol já se escondera atrás da linha do horizonte, e as trevas da noite desciam
rapidamente sobre a planície. Finalmente avistou as construções do rancho. Uma casa
grande de telhado vermelho, as telhas francesas, um pátio e os estábulos. Mais adiante
havia mais dois edifícios térreos, de arquitetura moderna. Um deles era retangular, com
várias janelas enfileiradas, e o outro, quadrangular, com uma extensa varanda que se
estendia por toda a fachada. Foi para este último que Carlos levou o carro.
Quando pararam, Daphne desceu, a cabeça doendo, desejando apenas um bom
banho e uma cama para dormir, dormir e dormir...
Estavam retirando a bagagem do porta-malas quando uma luz foi acendida na
varanda, iluminando o pátio fronteiriço, de terra batida.
Um homem gritou para Carlos em espanhol, e ele respondeu, animado. Começaram
um curto diálogo, e de repente Carlos disse qualquer coisa que pareceu surpreendê-lo. O
homem desceu afoito pelos poucos degraus da entrada, indo ao encontro deles.
— Esse é José Valdez, meu primo. É capataz do rancho — explicou. —- Entende
um pouco de inglês. Vou contar a ele sobre você. Se puder, tente falar com José em
espanhol.
O homem era atarracado, de ombros largos, e suas feições angulosas denunciavam
a origem indígena. Vestia calças cinzentas, com uma risca preta lateral, botas de montaria
e uma camisa branca, sem colarinho.
Carlos apresentou Daphne e o homem se abriu num sorriso. Deu duas palmadas
amigáveis nas costas de Carlos e falou em inglês, com um forte acento mexicano:

25
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Finalmente você se decidiu, hermano. Estou contente. — E, dirigindo-se a


Daphne, disse: — Seja bem-vinda, senora.
— Muchas gracias, senor. — E acrescentou, tentando caprichar na pronúncia: —
Mucho gusto em conocerlo.
— El gusto es mio — ele retrucou com amabilidade. Pegou a mala de Daphne e se
encaminhou para o bangalô avarandado.
Nos últimos seis meses, Daphne havia se acostumado ao ambiente luxuoso e
sofisticado da casa de Elza. Aquele bangalô lhe pareceu modesto, quase pobre. Na sala
onde Carlos a fez entrar, não havia tapetes nem carpetes; as paredes eram caiadas de
branco, e a mobília extremamente simples. Viam-se algumas cadeiras e um pequeno sofá
de vime com almofadões de algodão estampado, uma mesa baixa perto da janela, e um
velho guarda-louças que ocupava uma das paredes.
José depositou a mala no chão e saiu da sala, acompanhado por Carlos. Daphne
ouviu suas vozes, num cochicho, a porta da casa. Pouco depois, Carlos voltava.
— Agora vamos nos lavar, trocar de roupa e depois iremos até a sede da fazenda.
Quero que conheça minha mãe e minha meia-irmã o mais breve possível.
— Não podemos deixar para amanhã? — pediu, levando a mão à cabeça dolorida.
— Hoje não estou bem-disposta. Estou morrendo de dor de cabeça.
Ele já ia erguer a mala do chão, mas ao ouvir aquela queixa voltou a olhá-la.
— A tradicional lamúria de esposa? Pois tome um comprimido. Você deve ter trazido
aspirinas na bagagem.
— Não trouxe, a aspirina não resolve. Estou é exausta, e tudo o que quero é uma
boa cama e uma noite de sono. Não estou habituada a viagens tão longas e estafantes.
Amanhã de manhã conhecerei sua família, certo?
— Amanhã não. Hoje à noite, agora — falou com firmeza, parando junto dela.
A camisa que ele usava estava desabotoada quase até a cintura, por causa do calor,
revelando os pêlos negros e emaranhados do peito. Gotas de suor escorriam pelo pescoço,
invadindo aquela carne viril e bronzeada. Subitamente, ela se deu conta daquela
masculinidade, de uma forma como nunca, antes, acontecera.
Estranhas sensações, como agulhadas, tomaram conta do corpo de Daphne,
fazendo com que se sentisse tentada a se encostar nele, a apoiar a cabeça naquele peito
amplo e musculoso, a enfiar as mãos pela camisa aberta, a ouvir as pulsações daquele
coração. E ele a abraçaria ternamente, confortando-a, e procuraria seus lábios com a boca
ávida de um beijo.
Deu um passo atrás, alarmada com aquela sucessão de pensamentos. Afastou a
franja da testa suada, sentindo uma palpitação anormal nas veias das têmporas.
— Hoje estou cansada demais para enfrentar sua família — murmurou, num tom de
súplica. — Se... se você fosse um marido como se deve, saberia compreender, e levaria
em consideração o meu estado.
— Quero que os conheça na minha presença — ele parecia um pouco mais brando.
— Amanhã pela manhã não vou estar aqui, pois precisarei levantar de madrugada para
fiscalizar os currais, os pastos e os boiadeiros, e ver o que fizeram na minha ausência. —
Os olhos negros a fitaram significativamente. — Quanto ao fato de me comportar como um
marido exemplar, quero que tenha em mente que você é apenas uma esposa alugada, e

26
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

eu não tenho a mínima intenção de transformar esse relacionamento em algo verdadeiro e


duradouro. — E mudando de entonação, prosseguiu.
— Agora vou lhe mostrar o quarto de dormir. O banheiro é ao lado. Pode ir se lavar.
Vista uma roupa decente. — Seu olhar crítico percorreu-a por inteiro. — Tenho certeza de
que, se quiser, poderá se apresentar com uma aparência bem melhor do que antes.
— Não vou! — Ela avançou para ele, desafiadora, o rosto pegando fogo pela crítica
que recebera. — Não vejo motivo para fazer tudo o que você quer. Você não manda em
mim!
— Mando, e vou provar!
Carlos foi chegando para perto dela, como um felino pronto a dar o bote.
— O que vai fazer?
Ela começou a se afastar, nervosa e atemorizada. Carlos continuava a avançar.
— Você está se comportando como uma criança manhosa, então vou tratá-la como
tal. Vou lavar seu rosto, pentear seu cabelo, trocar a roupa, e quando estiver arrumadinha,
a levarei para conhecer minha mãe.
— Não se atreva a encostar suas mãos em mim! — disse, raivosa, esquecendo que,
pouco antes, desejara que aquelas mesmas mãos a enlaçassem, a estreitassem, e que
aquela boca voluntariosa a beijasse.
Os olhos escuros brilharam, divertidos, e ele sacudiu a cabeça de um lado para outro.
— Você não deve nunca falar comigo nesse tom. Você não me conhece e não sabe
do que sou capaz!
Sem que esperasse, ele a alcançou e a suspendeu no colo
— Largue-me! — gritou, esmurrando-lhe o peito, inutilmente.
— Só quando estivermos no banheiro.
Foi carregada, esperneando, até a porta do banheiro, que Carlos abriu com o pé.
Colocou-a de pé, junto à pia. e abriu a torneira.
— Você mesma vai tirar sua roupa ou quer que eu taça isso? — ameaçou com voz
suave e olhar matreiro, a mão já no primeiro botão da blusa.
— Não! Não faça isso! Está bem, vou fazer o que você quer. — Olhou-o ressentida,
os olhos cheios d'água. — Se... se soubesse que era tão... tão bruto, nunca teria me casado
com você. Deixaria que o trancassem na cadeia de Taxco e não me importaria que
apodrecesse lá dentro!
Carlos se aproximou mais, o semblante exaltado. Seus olhos lançaram-lhe um olhar
assustador, mas ele não disse uma só palavra, e saiu do banheiro.
Daphne pressionou a cabeça com as mãos, fitando sua face lacrimosa no espelho
da pia. Sentia-se indignada e frustrada.
Indignada com ela mesma, por ter sido idiota ao ponto de ter casado com um
estranho, um bruto, um prepotente. Frustrada, por ter perdido a primeira batalha com Carlos
Reynolds, desde que concordaram em ser um casal de mentira.
Fechou a torneira da pia e encheu de água morna a banheira. Precisava de um
relaxante banho de imersão.

27
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Já dentro da imensa banheira de modelo antigo, olhou para o teto, torcendo o nariz.
Havia muitas manchas de umidade, e em alguns lugares o estuque tinha despregado.
Aquela casa era bem ruinzinha. Esperava coisa melhor do administrador de um rancho
daquele tamanho. Sempre pensara que rancheiros eram pessoas que viviam bem. Ora, que
bobagem. Isso não tinha a menor importância, afinal, ficaria ali por pouco tempo, um mês
no máximo, conforme Carlos havia dito.
Estava em meio a esses pensamentos quando a porta do banheiro se abriu e o
marido tornou a aparecer.
— Já chega! Vá saindo rapidinho dessa banheira que eu também quero me lavar.
Daphne sentou na banheira, num impulso, cruzando os braços sobre os seios para
esconder sua nudez dos olhos indiscretos. Por dentro, espumava de raiva.
— Só saio se sair primeiro! Você não tem o direito de ir entrando assim, sem mais
nem menos, enquanto estou tomando banho!
Fie respondeu com um daqueles olhares sarcásticos em que era especialista e,
alcançando uma toalha, atirou-a na direção dela. Daphne apressou-se em apanhá-la, antes
que caísse na água.
— Sua mala já está no quarto. Apresse-se! — recomendou, antes de tornar a sair.
O quarto era mobiliado com uma ampla cama de casal, coberta por uma colcha
indiana, tecida à mão, e uma grande cômoda de mogno, com gavetas e um espelho oval
em cima. Sobre ela havia uma escova masculina de cabelo, um pente de tartaruga, uma
caixa de madeira entalhada e um porta-retratos com uma foto amarelada.
Usando a toalha de banho como um sarongue, e ainda pingando água, Daphne foi
olhar a foto. Era um homem alto e magro, vestido de vaqueiro, com uma camisa xadrez,
lenço no pescoço e chapéu de abas largas. Os cabelos eram muito claros e o nariz aquilino.
Passava o braço em volta dos ombros de uma mulher morena, bem mais baixa e
rechonchuda, que por sua vez abraçava um garotinho. Foi fácil reconhecer Carlos na figura
daquele menino que parecia ter uns dez anos. Tinha o cabelo bem mais claro que agora.
Sem dúvida era uma clássica pose familiar, um casal feliz e seu filho. Sem saber por que,
Daphne sentiu um aperto na garganta.
— Dios mio! Você ainda não se vestiu?
A voz de Carlos, vinda por trás de seu ombro, a assustou, e ela se virou
imediatamente. Ele também estava com uma toalha de banho amarrada na cintura,
deixando o largo peito bronzeado e sensual à mostra. Era difícil associar aquela
masculinidade adulta à imagem do menino da foto.
— Com você aqui no quarto não vai dar, mesmo, para me vestir — reclamou Daphne,
vendo-o tirar uma muda de roupa de baixo, de uma das gavetas da cômoda. — Não vejo
razão para ocuparmos o mesmo dormitório também aqui. — Começou a abrir sua mala.
— A casa não tem outro quarto?
— Não.
— Vocês moravam aqui no tempo que seu pai era administrador do rancho?
— Si. Claude mandou construir este bangalô para acomodar nossa família.
— E você, onde dormia?
— Quando era pequeno, neste mesmo quarto, num berço. Mais tarde, quando já
estava maior, passei para o sótão.
28
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Enquanto eu estiver aqui, você não pode dormir lá em cima?


Revirou a mala, e escolheu um vestido estampado com flores, de fundo azul e
mangas compridas, que não estava amassado demais.
— Pode ser. Só que o sótão está abarrotado de caixas, de velharias. Se você quiser
mesmo dormir aqui sozinha, o jeito é fazer uma arrumação lá em cima, amanhã. Assim terá
com que se entreter. Ei! Onde você está indo? — perguntou, ao vê-la sair, com vestido e a
lingerie limpa pendurados no braço.
— Vou me vestir no banheiro — respondeu irritada, batendo a porta do quarto com
força.
Já no banheiro, começou a refletir que, afinal de contas, aquilo não passava de um
emprego e ela não podia se deixar envolver emocionalmente. Precisava manter o
autodomínio, controlar seus impulsos. Não podia permitir que esse homem a enervasse, a
fizesse sair do sério.
Estava dando os últimos retoques, quando ouviu a voz de Carlos, indagando se ela
estava melhor da dor de cabeça. Parecia haver uma entonação de zombaria na pergunta,
como se ele não tivesse acreditado na desculpa que ela apresentara.
— Melhorei um pouco — respondeu Daphne pelo vão da porta. Precisava ignorar
suas provocações. Não queria que ele a atingisse ou, pelo menos, não podia dar
demonstração de que ele conseguia atingi-la.
— Gosto desse vestido — ele elogiou quando Daphne voltou ao quarto. — O fundo
azul realça o azul de seus olhos. — Ergueu-lhe o queixo com a mão, como se quisesse
constatar que seus olhos eram mesmo azuis. — Você deve saber que é uma moça bonita,
com essa pele cor de pêssego, esses cabelos dourados, tipicamente ingleses.
— Galeses — ela corrigiu, com voz trêmula. Baixou as pálpebras encabulada.
— Está bem, galeses. No importa. Para minha mãe, não vai fazer diferença. Todos
são gringos.
— O que quer dizer isso?
— É uma palavra local, que distingue qualquer um que não seja mexicano. Muitos
pensam que tem um sentido negativo, mas não. A palavra vem do espanhol griego, que
significa grego.
— Será que ela não vai se importar por você ter casado com uma gringa?
— Por que ela haveria de se importar? Mamãe também casou com um deles —
retrucou Carlos, indiferente. E acrescentou: — Bem, agora vamos indo, que é tarde.
Lá fora a noite estava quente e a escuridão era quase assustadora, não fossem os
fracos lampiões que iluminavam a fachada da velha sede da fazenda.
Carlos abriu a porta da frente, que era decorada com vidro fosco, lapidado com
desenhos de cachos de uvas e folhas de videira. Daphne entrou numa pequena ante-sala,
pouco iluminada e parecendo fria em comparação com a temperatura exterior. Era como
se estivesse entrando em outro mundo, um mundo de elegância decadente, um ambiente
do século XIX.
Uma mulher morena veio ao encontro deles. Era a mesma mulher da fotografia, só
que mais velha, os cabelos negros começando a embranquecer. O rosto estava mais magro
e pequenas rugas lhe rodearam os olhos negros no momento em que sorriu para Carlos.
Ela abriu os braços com afeto e Carlos a beijou no rosto, falando rapidamente em espanhol.
Depois puxou-a por um braço, fazendo com que se aproximasse de Daphne.
29
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Mamãe, esta é minha mulher, Daphne. Casamos ontem em Taxco. Ela não
compreende nosso idioma, fale em inglês. — Fez uma breve pausa e continuou com as
apresentações. — Daphne, esta é minha mãe, Tereza Fontaine.
Tereza olhou para Daphne, os olhos negros muito abertos, perplexa com aquela
notícia inesperada.
Com grande esforço, Daphne procurou sorrir. Estendeu-lhe a mão:
— Buenas noches, senora. Muito prazer em conhecê-la.
— Seja bem-vinda — saudou Tereza, com voz embargada e um forte sotaque.
Segurou as mãos de Daphne entre as suas. — Espero que seja muito feliz ao lado de meu
filho.
Começou a dizer alguma coisa a Carlos em espanhol, mas interrompeu-se ao ouvir
passos na escada. Uma jovem de cabelos cor de cobre, bem lisos, vinha descendo os
últimos degraus. Ao ver Carlos, correu para ele com os braços estendidos.
— Carlos! Mucho gusto en verle! -— exclamou eufórica.
Se ele não segurasse suas mãos, mantendo-a a distância, a moça teria se
dependurado em seu pescoço.
— Quando você chegou? — ele perguntou em inglês.
— Faz dois dias. Procurei chegar em tempo, mas não o encontrei. Mas agora que
você veio, poderemos finalmente cumprir o desejo de meu pai. — A moça era pequena e
magra, e falava o inglês com dificuldade. — Por que você está falando em inglês comigo?
— ela quis saber.
— Por causa de Daphne, minha esposa. — Carlos largou a mão da jovem, e,
passando o braço pelos ombros de Daphne, sorriu. — Daphne, querida, esta é minha meia-
irmã, Ana Maria.
Os olhos da moça se arregalaram, surpresos. Daphne fez um novo esforço para
sorrir.
— Buenas noches, Ana Maria.
Já estava começando a se cansar de repetir sempre as mesmas frases.
— Sua... sua esposa? — exclamou Ana Maria, encarando Carlos, sem dar a mínima
atenção ao cumprimento de Daphne. — No entiendo. Por que você casou com ela?
Em seguida, desandou a falar em espanhol, num tom estridente e alterado. Em
determinado momento chegou a levantar a mão, furiosa, como se fosse esbofeteá-lo, mas
Carlos foi mais rápido, e segurou-lhe o pulso no ar.
Ana Maria olhou com rancor para Daphne. Com um soluço estrangulado, virou-se
abruptamente e subiu as escadas correndo. Ouviu-se a violenta batida de uma porta.
Tereza começou a falar com o filho em espanhol, e, pelo tom de voz, parecia que o
estava repreendendo. Ele respondeu friamente, sacudindo os ombros, e a mãe meneou a
cabeça parecendo preocupada.
— Por favor, perdoe os maus modos de Ana Maria. Ela é muito nervosa. Foi um
choque para ela saber do casamento de Carlos, assim, de repente. Ela sempre teve uma
certa esperança de que...
— Chega, mamãe. Daphne não precisa saber de todos os detalhes. Fizemos uma
viagem cansativa e estamos com fome. Seria possível nos arranjar algo para comer?

30
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

A sala de jantar tinha o mesmo aspecto de luxo decadente dos outros cômodos, com
longas cortinas verdes e prateadas, de brocado, e um gasto tapete persa cobrindo quase
todo o assoalho. Sobre a mesa oval envernizada havia uma toalha de renda, porcelanas
caras, delicados cristais e talheres de prata. Tudo indicava que, no passado, a família
Fontaine tinha sido bastante rica, tendo vivido no luxo e na fartura.
Mas a refeição que Tereza serviu era simples e caseira.
Durante a ceia Carlos e a mãe conversaram sobre o rancho. Daphne só se
manifestou quando Tereza lhe fez algumas perguntas pessoais. Respondeu a tudo com
sinceridade, como Carlos tinha recomendado. Tereza ouviu sem fazer maiores
comentários.
Ana Maria não voltou a aparecer. Ao se retirarem para o bangalô. Tereza tornou a
pedir desculpas ao casal pelo comportamento da enteada.
— Mas amanhã ela irá procurá-la e tenho certeza de que ficarão amigas.
Daphne estava curiosíssima para saber mais sobre Ana Maria, mas achou melhor
ficar quieta e não se envolver com problemas que não lhe diziam respeito.
Depois de ver todo aquele luxo da sede da fazenda, sentiu o coração apertado ao
rever a rusticidade do bangalô. Ali faltava a mão de uma mulher. Mas não ia se meter. Ela
tinha vindo apenas para aparecer diante dos outros como a esposa de Carlos. Nada mais.
— Vou conversar um pouco com José — anunciou Carlos, logo que entraram. —
Boa-noite. — Tornou a sair pela porta por onde entrara.
— Boa-noite — ela retribuiu, com a mesma frieza.
Pelo menos, por enquanto, poderia ocupar o quarto de dormir sozinha, pensou,
aliviada. Será que ele iria se deitar naquela cama enorme quando voltasse?
Vestindo a camisola, foi logo se acomodando, disposta e pegar no sono o mais
rápido possível. Pretendia já estar dormindo quando ele chegasse.
Os lençóis eram limpos, mas rústicos e ásperos, feitos de algodão cru. O colchão
devia ser de capim, e o travesseiro certamente não era de pluma, nem de flocos de algodão.
Que contraste com a casa da sede, pensou, já sonolenta.
A visão de Ana Maria apareceu diante de seus olhos, antes que ela pegasse no
sono. A moça estava vestida de preto. O vestido parecia caro. Devia ser algum modelo de
Paris.
A herdeira dos Fontaine era bonita, elegante e rica. Por que ficara tão zangada com
o casamento de Carlos?
Pare com isso, pensou Daphne. Pare de ficar imaginando coisas. Você tem que
cumprir apenas suas obrigações, os deveres que este seu emprego lhe impõe. Não comece
a se envolver demais. Desligue sua cabeça dessa gente. Dentro de um mês, você estará
voltando para seu país e então esquecerá todos eles.
— Daphne, já vou indo.
A voz de Carlos parecia fazer parte de um sonho. Abriu os olhos devagar. Ele estava
sentado na beira da cama, perto dela, já vestido e com um sombrero na mão.
— Aonde você vai? — perguntou, bocejando.

31
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

O lençol tinha caído para o lado, e a alça da camisola escorregara do ombro,


mostrando a curva do seio. O olhar de Carlos também deslizou para o busto descoberto e,
instintivamente, ela suspendeu a alça.
— Vou fazer uma vistoria no gado. Ficarei fora o dia todo, e também a noite.
Ia embora, ia deixá-la ali sozinha com aquelas duas mulheres estranhas. Nos últimos
três dias ele havia ficado a seu lado, dizendo-lhe o que fazer, protegendo-a, orientando-a,
e agora... agora...
O quarto ainda estava na penumbra, iluminado somente pelos primeiros brilhos da
manhã. Daphne se sentiu vulnerável e medrosa, sem ânimo para enfrentar sozinha aquele
novo dia.
— Não posso ir com você? — perguntou, surpreendida com seu próprio pedido.
— Você sabe montar?
— Não. Não sei.
— Então não poderá ir comigo, pois vou percorrer a fazenda a cavalo.
— Onde vai passar a noite?
— Nós vamos acampar.
— Nós, quem?
— José, eu e alguns rancheiros.
— E o que vou fazer o dia todo? — Estava apavorada de ter que lidar com Tereza e
Ana Maria.
— Faça o que bem entender. Faça o que qualquer esposa faz o dia inteiro — caçoou.
Ele já estava começando a levantar da cama, quando Daphne o reteve pelo braço.
Sentiu a rigidez daqueles músculos escondidos pela manga da camisa de algodão.
Carlos tornou a sentar, olhando fixamente para a mão que o locava.
— Que passa?
Ela já tinha notado que Carlos sempre falava na língua materna quando estava
irritado.
— Eu... eu vou sentir sua falta, Carlos — sussurrou, fitando-o com um olhar
suplicante.
Não era bem aquilo que queria dizer, mas tinha sido a única forma que encontrara
para expressar seus temores. Queria mostrar a ele o quanto havia valorizado sua proteção
naqueles poucos dias que haviam passado juntos.
Ele a encarou. Nos olhos negros havia uma expressão irônica.
— Pensei que você iria ficar contente por poder ficar à vontade na cama, pelos
menos por esta noite.
— Deixe de gracinhas. Falei sério. Vou mesmo sentir sua falta.
Carlos tentou desviar o olhar do rosto aflito de Daphne, mas não conseguiu. Ela
percebeu, e teve uma estranha sensação, como se o espaço que os separava diminuísse
de repente. Seu coração disparou e uma languidez apoderou-se dela. Sentia-se fraca e
zonza, como se fosse desmaiar. E não era por causa da altitude, estavam apenas 60 metros
acima do nível do mar...

32
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Inclinou-se para ele e ficou tão perto que seus lábios chegaram a roçar nos dele.
Recebeu aquele hálito quente, perturbador, e logo em seguida a pressão de um beijo tão
violento e possessivo que a fez perder o ritmo da respiração, e cair sobre o travesseiro.
Um desejo desconhecido e irrefreável tomou conta dela. Daphne passou os braços
pela nuca dele, acariciando sofregamente aqueles cabelos lisos e macios como o pêlo de
um gato, enquanto os beijos se sucediam, cada vez mais vorazes. Subitamente, sentiu que
os bicos de seus seios estavam sendo afagados. Sua mente se apagou enquanto seus
sentidos se acenderam e ela ergueu o ventre, numa busca instintiva de prazer. Uma
fogueira de paixão parecia querer fundi-los num só corpo.
O som insistente de batidas na porta de entrada foi confundido a princípio com as
batidas de seu próprio coração. Mas logo uma voz de homem, gritando o nome de Carlos,
a trouxe de volta à realidade.
Carlos se ergueu e, por um momento, ficou olhando para ela, o rosto afogueado, os
olhos negros chamejantes.
A pessoa que estava batendo começou a falar alto, em espanhol.
Carlos enfiou a camisa dentro das calças e afivelou o cinto. Sem tornar a olhá-la,
perguntou, de forma brusca e irritada:
— Então, era isso que você tanto queria?
Inspirando fundo para retomar o fôlego, ela escondeu o rosto, com as mãos, antes
de responder.
— Eu... eu não sei...
— Se não sabe, não use mais essa espécie de truque — revidou ele com frieza.
Quando o significado daquelas palavras ficou claro em sua mente, Daphne sentou
na cama imediatamente e afastou a franja de sua testa molhada de suor. Carlos já estava
cruzando o quarto em direção à porta, a jaqueta de brim pendurada sobre o ombro, o
chapéu de abas largas colocado na cabeça, as botas fazendo ranger o assoalho. Ela pulou
da cama, fechando a abertura da camisola com a mão, e correu, descalça, atrás dele.
— Espere! Por favor, espere! — gritou, ao vê-lo alcançar a sala. Antes de girar a
maçaneta da porta, ele parou e se virou. A aba do chapéu fazia sombra em seus olhos,
tornando-os ainda mais enigmáticos.
— E agora, o que é?
— Eu... eu preciso lhe dizer uma coisa. — Segurou-se no espaldar da cadeira de
vime. — Aquilo... aquilo não foi um truque.
Os olhos dele se estreitaram, a boca endureceu e ele esfregou o dorso da mão pelos
lábios, como se quisesse apagar a lembrança daqueles beijos. Sacudindo os ombros,
voltou-se novamente para a saída.
— Hasta la vista — disse indiferente, abrindo a porta e desaparecendo pelos degraus
da varanda.
Daphne ficou parada, sofrendo em silêncio a sua dor. Foi andando devagar até a
janela, e, escondendo-se atrás da cortina, ainda conseguiu ver Carlos. Ele montava um
belo cavalo baio. A sela era de couro com aplicações em prata. Junto dele estava José,
que usava um bolero, também bordado com fios de prata, calças cinzentas e uma camisa
branca. Parecia bem mais elegante à luz do sol. Quando os dois já estavam montados,
partiram num galope.

33
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Suspirando, Daphne voltou para o quarto e foi olhar as horas: seis e meia. Cedo
demais. Poderia dormir pelo menos uma horinha... Mas, quando chegou perto da cama e
viu o travesseiro todo amassado, caiu sentada, segurando a cabeça entre as mãos.
Deus do céu! O que tinha acontecido com ela? Por que se comportara como uma
esposa de verdade, uma esposa amorosa, que convida o marido ao beijo antes que ele
saia para o trabalho?
Talvez porque estivesse se sentindo desamparada, desejando conforto e segurança,
pensou consigo mesma, e tinha então oferecido os lábios, esperando receber um beijo
semelhante ao que ele lhe dera na delegacia de Taxco. Um beijo de gratidão por ela estar
representando bem seu papel de esposa. Nunca imaginara que ele a beijasse daquela
forma selvagem, sensual e possessiva.
A simples lembrança daqueles momentos, voltou uma deliciosa excitação.
Gemendo, atormentada pelas sensações físicas que Carlos havia despertado nela,
estendeu-se sobre a cama, apalpando os seios ainda túrgidos pelo desejo de serem
novamente acariciados. Em poucos minutos ele a excitara como nenhum outro homem
jamais conseguira. As carícias libidinosas de Mitchell Gardner só lhe causavam asco, e os
beijos de Ellis, um namorado que tivera em Swansea, ainda na época da escola, eram
tímidos e inexperientes como os dela. Mas, naquela manhã, Carlos a beijara com toda a
paixão de um homem maduro, forte e saudável, que quer uma mulher. Se não fosse a
interrupção de José, certamente ele a teria possuído, mesmo contra a vontade dela. Mas
ela tinha desejado isso! Tinha desejado conhecer com ele o mistério da união total, ansiosa
para que ele a tratasse como sua verdadeira mulher.
Mais uma vez gemeu baixinho. Certamente Carlos havia pensado que ela tinha se
oferecido, como uma mulher vulgar, querendo ter uma relação com ele, sem amor e sem
ternura.
Mas as relações amorosas não faziam parte do trato. Eles não deveriam ter qualquer
espécie de envolvimento, nem físico, nem sentimental, pela simples razão de que aquele
casamento teria uma vida bastante curta.
E se ela tivesse sido deflorada? Poderia acontecer de voltar grávida para a
Inglaterra, carregando no ventre o filho de um estranho que vivia do outro lado do oceano!
Aquilo não podia voltar a acontecer. Não sabia até onde iria sua resistência, e o
melhor seria evitar ficar a sós com Carlos. Hoje mesmo começaria a limpeza e arrumação
do sótão. Se necessário, ela mesma poderia dormir lá em cima. Somente na presença da
mãe de Carlos ou de algum parente, é que ela se mostraria afetuosa, dando a entender
que gostava de estar junto dele.
Precisaria fingir? Não estaria realmente gostando de Carlos? Impossível se
apaixonar por alguém em apenas três dias. Além disso, ele era um homem que dava tão
pouco valor à mulher, um homem que, por conveniência, tinha alugado uma esposa!
Não, ela não podia se apaixonar por Carlos! Nem pensar!
Levantou da cama e trocou a camisola por um vestidinho simples e caseiro. A maior
parte de suas roupas precisava ser lavada, e ela desconfiava que as de Carlos também.
Mas onde lavar roupas naquela casa? Haveria uma máquina de lavar? E para cozinhar,
como faria? Chegara a hora de descobrir essas coisas.
Pegou uma trouxa de roupa suja e saiu para o corredor, em direção à sala. Uma
moça baixinha e morena estava entrando naquele momento, carregando um balde e uma
vassoura.

34
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Buenos dias! — cumprimentou Daphne, achando que aquela moça devia ser a
faxineira que vinha fazer a limpeza diária do bangalô. Carlos já lhe falara a respeito dela.
Mas, ao ver Daphne, os olhos da jovem se arregalaram espantados. Ela largou o
balde e a vassoura no chão e saiu correndo pela porta afora.
Daphne jogou a trouxa de roupa numa cadeira e foi atrás dela.
— Ei! Volte aqui! — gritou.
Mas a moça continuou correndo pelo pátio, balançando a grossa trança de cabelos
negros que lhe caía pelas costas. Sem desanimar, seguiu-a até chegar ao curral, onde
vários garotos, vestidos com jeans surrados, estavam empoleirados nas ripas de madeira
do cercado. Logo que viram Daphne, pareceram se assustar e, pulando para o chão,
seguiram a jovem mexicana, numa incrível balbúrdia.
Daphne foi andando até a velha casa da sede. Tereza Fontaine estava saindo pela
porta para verificar que barulheira era aquela.
— Que pasa? — perguntou, séria, a velha senhora.
— Ela fugiu — explicou Daphne, ofegante pela corrida, apontando a moça de trança
que agora tinha parado e estava cercada pela garotada. — Ela me olhou e saiu correndo!
— Quem? Bonita? A faxineira? — perguntou Tereza, a mão sobre os olhos
tampando a claridade. — Carlos não lhe falou sobre ela?
— Sim, mas não deve ter falado com ela a meu respeito.
Tereza começou a rir, sacudindo os fartos seios e exibindo uma fileira de dentes
brancos e perfeitos.
— Então, não estranho que ela tenha fugido. Deve ter se assustado com seu cabelo
louro e seus olhos claros. Deve ter pensado que você era um mau espírito, vindo do outro
mundo para atormentá-la. Os totonaes, ela pertence a essa tribo, são muito supersticiosos.
Tereza pôs a mão em concha sobre a boca e gritou alguma coisa em direção ao
grupo. Acenou para que eles se aproximassem.
A moça e os moleques começaram a andar vagarosamente, olhando desconfiados
para Daphne, até chegarem perto da varanda.
Tereza falou com eles num estranho dialeto, indicando Daphne com a mão.
Certamente, estava explicando quem ela era. Em seguida, muito encabulados, mas
obedecendo à patroa, subiram um a um os degraus da varanda, e vieram apertar a mão de
Daphne, desejando-lhe boas-vindas.
Tereza voltou a lhes falar com energia, e eles se espalharam como folhas ao vento,
desaparecendo por detrás do curral. Daphne dispôs-se a segui-los, mas Tereza a deteve.
— Não vá. Fique aqui. Deixe que Bonita faça o serviço, não precisa se preocupar.
Ana Maria já deve estar chegando. Ela saiu para andar a cavalo logo cedo.
— É que eu precisava lavar umas roupas de Carlos e minhas...
Se ela ficasse, certamente iriam começar as perguntas embaraçosas.
— Bonita se encarrega disso. Ela faz todo o serviço para Carlos. — Deu um sorriso
melancólico. — Eu costumava fazer o mesmo para o pai dele, Juan, quando ele veio do
Texas para trabalhar no rancho, como administrador. — Seu sorriso pareceu ainda mais
triste. — Eu tinha apenas dezoito anos, e aquele estrangeiro de cabelos claros e olhos
cinzentos pareceu gostar de mim. Ele tinha um espírito livre e forte. Era muito bom.

35
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Conhecia tudo sobre plantação e animais. Não havia ninguém igual a ele. Eu o amei muito.
— Os olhos de Tereza se encheram de lágrimas. — Quando morreu, eu pensei que fosse
também morrer... mas acabei sobrevivendo. — Sua boca tremeu quando ela tentou sorrir
novamente. — Já tomou o café da manhã?
— Não. Ainda não.
— Então, entre. Vamos para a cozinha, assim poderemos conversar e nos conhecer
melhor — sugeriu a mulher.
— E que eu preciso voltar para o bangalô. Tenho tanto o que fazer...
— Não precisa. Bonita se encarrega de tudo. Você ainda não está aclimatada. Não
é bom se esforçar muito nos primeiros dias — segurou Daphne pelo cotovelo e a levou para
dentro. — Fiquei contente por Carlos resolver, finalmente, se casar. Andei fazendo até
promessa à Virgem de Guadalupe, porque não é bom para um homem ficar solteiro tanto
tempo. Já era hora dele ter filhos, e estou doida para ser avó. Você gostaria de ter um nenê,
Daphne?
— Eu? Sim... sim, claro, eu gostaria.
Tereza parecia sinceramente satisfeita por Carlos ter se casado com ela. Daphne
começava a sentir remorsos por ter concordado em participar daquela farsa.
A cozinha era espaçosa e equipada com modernos eletrodomésticos. Num dos
cantos havia uma mesa de copa redonda. Estava arrumada. Tereza foi moer os grãos de
café numa pequena máquina, e logo o ar ficou impregnado de um delicioso aroma.
— Aqui está o suco — anunciou Tereza, trazendo uma jarra transbordante de suco
de laranja. — Sirva-se de cereais e leite. Quer ovos?
— Não, obrigada. Isso é suficiente — disse Daphne, agradecida.
Fazia tempo que ninguém a mimava, que ninguém a tratava com cuidados
maternais.
— O café não demora. — Tereza sentou-se na cadeira em frente. — De início pensei
que você fosse norte-americana. Mas seu sotaque é diferente, mais suave, mais melodioso.
De onde você é?
— Do País de Gales, na Grã-Bretanha.
— Ah, bom! — Tereza mostrava admiração. — E muito longe daqui! Você é alguma
lady, como a nora da rainha?
— Oh, não! — riu. — Sou uma plebéia. — E vendo que Tereza parecia intrigada com
aquela palavra, explicou: — Minha família pertence à classe operária. Meu pai era um
mineiro que trabalhava nas minas de carvão.
— Entendo. Minha família também era de trabalhadores. Meu pai foi lavrador. Lutou
na revolução para conseguir suas terras de volta.
— Mas como sabe sobre a nora da rainha?
— Li a respeito, e assisti ao casamento na televisão.
— Vocês têm televisão?
— Claro. Aqui nós temos de tudo. No passado, Claude Fontaine foi um homem rico.
Morreu há poucos meses, mas o testamento ainda não foi executado. Até agora, não
sabemos quem vai ser o futuro dono do rancho, já que não temos herdeiros diretos.
— Pois eu pensei que Ana Maria...
36
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Ana Maria é filha da primeira mulher de Claude Fontaine, mas não é filha dele. É
apenas enteada, assim como Carlos. Você compreende?
— Acho que sim.
— Carlos não lhe explicou nada sobre a família? — quis saber Tereza.
— Não. Ele só me contou que Ana Maria está se divorciando.
— Isso também é verdade. Agora que o divórcio foi aprovado ela veio para cá em
busca de apoio. — A fisionomia de Tereza denunciava irritação. — A esperança dela era
que... — Interrompeu-se. — Deixe para lá. Carlos não quer que eu a importune com
problemas de família. — E mudando de assunto, comentou: — Você tem um cabelo lindo.
Parece de ouro. Acho que sei por que meu filho a escolheu. Ele gosta de seu tipo. E você?
Gosta do tipo dele?
— Oh, sim... gosto... — gaguejou Daphne. — É um belo homem, tem um tipo
diferente.
— Você quer dizer que ele é mestizo. De fato, ele puxou um pouco o meu tipo
mexicano e um pouco o tipo do pai, gringo. Mas só na aparência, porque interiormente ele
se assemelha mais a meu pai, Luis Valdez. Também Carlos tem um espírito combativo, e
é capaz de lutar com unhas e dentes para defender as coisas dele, assim como meu pai
lutou pela liberdade e pela posse da terra. Carlos é capaz de tudo para conseguir seus
objetivos. Creio que, por isso, finalmente decidiu se casar.
Os olhos de Tereza brilharam com uma estranha luminosidade.
— O que a senhora quis dizer com isso? — perguntou Daphne. Imaginava que
estava prestes a descobrir o motivo pelo qual Carlos se casara com ela. — Que objetivo
que ele pretende alcançar, agora que está casado?
— Ele pode ser o dono do Rancho Fontaine — sussurrou Tereza, com ar de
cumplicidade e triunfo. — Finalmente, a propriedade vai ser nossa. — Lançou um olhar para
a porta da cozinha e se levantou. — Penso ter ouvido Ana Maria chegando. Seria bom que
você fizesse amizade com ela. E evite contrariá-la. Como inimiga, ela é perigosa. Bem, o
café já está pronto.
Tereza estava despejando o café na xícara, quando Ana Maria apareceu, vestindo
jeans, uma blusa xadrezinha, botas de montaria, e trazendo na mão um chicote. Tinha
prendido os cabelos cor de cobre num pequeno coque, e trazia um chapéu de brim de abas
largas, pendurado nas costas por um cordão.
Deu um frio bom-dia a Tereza e se aproximou da mesa. Olhou gulosa o que havia
de bom para comer. Ao deparar com Daphne, estacou por um instante, tensa. Mas logo
abriu um sorriso formal e ocupou um lugar à mesa.
— Ontem à noite me comportei de uma maneira deplorável. Gostaria que me
desculpasse.
— Você ficou nervosa e surpreendida com a notícia inesperada, não é mesmo? —
justificou Daphne, estendendo-lhe a mão.
— Eu fiquei uma fera! Você sabe... — interrompeu-se, mordendo o lábio superior e
baixando as pálpebras para esconder a expressão de seu olhar. — No importa —
murmurou. — Carlos é, e sempre foi, muito querido para mim. Foi ele quem me ensinou
equitação. Foi também meu professor de inglês. Aliás, ele me ensinou várias coisas. Nós
éramos tão unidos... — Olhou desafiante para Daphne. — Éramos mais chegados do que
dois irmãos de sangue. Mesmo assim, ele não me disse nada sobre você, quando vim para

37
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

cá assistir aos funerais do meu padrasto. Para ser franca, ele nunca mencionou seu nome.
Onde vocês se conheceram?
— Em Acapulco.
— Quando?
— O ano passado.
— Carlos foi de férias para lá o ano passado e este ano também — interferiu Tereza.
— Você sabe, Ana Maria, como ele gosta de mudar radicalmente de vida quando está de
férias. Muitas luzes, muita música, muita dança e...
— Muitas mulheres bonitas — completou Ana Maria, com amargura. — Sei disso.
Mas o que você estava fazendo em Acapulco, Daphne? Também passando suas férias?
— Não. Eu estava trabalhando. Eu... eu sou cabeleireira, mas trabalhei como
camareira de uma estrela de cinema por mais de um ano, na casa dela em Acapulco. Talvez
você já tenha ouvido falar de Elza Thomas...
Decidira ocultar seu parentesco com Elza. Esperava ter sido convincente.
— Cabeleireira? — exclamou Tereza, alvoroçada. — E você trouxe todo o material?
Quero dizer, tesouras, secador?
— Sim, trouxe tudo comigo.
— Então, bem que você podia dar um jeito no meu cabelo! Cortar, lavar, fazer uma
mise-en-plis. Enquanto Carlos esteve fora, não tive tempo de ir ao cabeleireiro, no centro
da cidade.
— Você poderia fazer um bom negócio aqui — disse Ana Maria. — As mulheres
mexicanas não sabem se pentear sozinhas. Acho que existem mais salões de beleza por
metro quadrado neste país do que em qualquer outra parte do mundo. Se você puder,
também gostaria que arrumasse meu cabelo.
— Com todo o prazer — respondeu Daphne, lembrando-se do recente conselho de
Tereza.
— Em troca, posso ensiná-la a montar — ofereceu Ana Maria com um sorriso. —
Hoje cedo acompanhei Carlos e José até o rio. Carlos me disse que você não foi junto
porque não sabia montar. Prometi a ele que lhe daria lições. Assim, da próxima vez, você
poderá acompanhá-lo. Que tal?
A proposta parecia atraente e sincera.
— Acho uma boa idéia — retrucou Daphne. — Só que não tenho roupas adequadas.
— Se é por isso, deixe por minha conta — garantiu Ana Maria. — Se quiser podemos
começar hoje mesmo, depois que você tiver tomado seu café.
Combinaram que Daphne buscaria seus jeans e blusa, e Ana Maria forneceria as
botas. Quando a moça levantou para ir providenciar o prometido, Tereza fez uma
advertência.
— Veja só o que vai fazer, Ana Maria. Não gostaria que Daphne se machucasse na
ausência de Carlos. Ele ficaria muito zangado comigo se alguma coisa lhe acontecesse.
Já perto da porta, Ana Maria se virou e arqueou as sobrancelhas numa expressão
de desdém.

38
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— E o que poderia acontecer? Hoje ela só vai treinar no curral, onde posso vigiá-la
de perto. Carlos já me disse qual vai ser o cavalo para os treinos. É a Black Velvet. É uma
égua dócil e paciente. Tudo bem, então?
— Espero que sim — murmurou Tereza. Começou a tirar a mesa do café.
— Daphne, daqui a dez minutos encontro você no bangalô — disse Ana Maria com
determinação.
Logo que a moça saiu, Tereza recomendou:
— Tome cuidado, Daphne. Sei que a preveni para não contrariar Ana Maria, mas
nesse caso, se você quiser, poderá recusar. Diga que prefere esperar por Carlos e que ele
mesmo a ensinará a montar. — Seus olhos se encherem d'água, e a boca tremia.
Continuou: — Odeio cavalos. Desde o dia em que o meu Juan foi morto por um deles,
passei a detestar esses brutos.
— Eu compreendo — consolou Daphne. — Mas gostaria de aprender a montar
enquanto estiver aqui.
— Por quê? Você não vai ficar?
A pergunta de Tereza a pegou de surpresa. Daphne se deu conta de que tinha
cometido um deslize.
— Oh, sim, sim, é claro que vou ficar. Eu quis dizer que queria aproveitar para tomar
aulas enquanto Ana Maria está aqui, pois pode ser que Carlos não tenha tempo para me
ensinar. Gostaria de poder acompanhá-lo quando ele tiver que fiscalizar a manada. Acho
que a mulher de um vaqueiro tem obrigação de saber andar a cavalo, a senhora não acha?
— Já vi que você ama muito meu filho, e que deseja ser uma boa esposa para ele.
— Ela parecia novamente tranqüila. — Estou muito feliz por ele a ter encontrado, Daphne,
mas tenho que confessar que você é totalmente diferente do que eu esperava.
— Oh, e o que a senhora esperava?
— Que ele tivesse escolhido uma mulher mais velha, mais madura e experiente.
Você parece ser jovem e inocente. Não gostaria que alguém viesse a feri-la, muito menos
Carlos. Espero que consiga lidar com ele. Carlos é o que nós chamamos de macho, um
homem durão. Agora, vá se trocar, que ela está esperando por você.
Pensando bem, não era má atriz. Conseguir até mesmo convencer Tereza de que
amava o filho e desejava ser uma boa esposa para ele! Daphne refletia sobre a conversa
enquanto caminhava para o bangalô. Só tinha cometido uma talha durante todo o tempo,
mas consertara a tempo.
As camisas de Carlos, suas blusas e a roupa de baixo de ambos já estavam
estendidas no varal, secando ao sol. A casa cheirava a limpeza. Quando entrou no quarto,
viu a cama já arrumada. Bonita devia ser uma empregada esperta e trabalhadeira.
Contando com alguém tão eficiente, aquelas poucas semanas que passaria no rancho
seriam umas verdadeiras férias. E, ainda por cima, férias remuneradas, pensou, dando uma
risadinha de satisfação.
Tudo o que precisava fazer era se manter calada o máximo possível e fingir que
amava Carlos quando estava na frente dos outros.
As botas de Ana Maria lhe serviram, porém, ficaram um pouco apertadas. Desde que
ela não precisasse andar muito, não haveria problema.
Duas horas bastaram para que aprendesse a montar, a desmontar, a usar o estribo
e as rédeas de forma correta. Estava com tamanha boa vontade que aprendeu
39
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

rapidamente. Na hora do almoço, já conseguia dar uma volta com Black Velvet, trotando
pela arena do curral.
— No fim da tarde, quando estiver mais fresco, vamos juntas dar um pequeno
passeio por aí — disse Ana Maria, entregando o animal a um dos peões para que lhe tirasse
os arreios. — Quem sabe amanhã poderemos dar uma cavalgada mais longa e ir ao
encontro de Carlos? Seria uma boa surpresa para ele. O que me diz disso?
— Eu bem que gostaria! É... ele vai ficar surpreso! — deu uma risada marota.
— Vai ficar muito surpreso! — reforçou a outra, rindo também. Segurou Daphne pelo
ombro e propôs: — Agora, vamos almoçar?
Terminado o almoço, Tereza insistiu para que Daphne fosse descansar.
— Aqui no rancho não adotamos o costume da siesta porque os homens precisam
aproveitar a luz do dia para trabalhar no campo. Mas você ainda não está acostumada ao
calor da tarde e é bom que se deite um pouco.
Daphne dormiu cerca de duas horas depois do almoço e acordou bem disposta,
apesar de sentir os músculos doloridos por causa do exercício.
Lembrando-se da promessa que fizera a Tereza, separou seus apetrechos de
cabeleireira e foi para a casa da sede.
Uma hora depois, Tereza estava com os cabelos limpos, brilhantes, e com um
elegante penteado que a rejuvenescia. Só então Daphne tornou a calçar as botas para ir
ao encontro de Ana Maria no curral. Desta vez, saíram juntas do recinto fechado, uma
montada em Black Velvet, e a outra, num belo cavalo malhado. Depressa, alcançaram um
recanto arborizado à beira do rio, onde algumas vacas pastavam à sombra das acácias.
— Amanhã vamos margear o rio, na direção das montanhas. E por aquele caminho
que Carlos costuma voltar — disse Ana Maria. Apontando para uma das colinas ao longe,
acrescentou: — Lá em cima é que os arqueólogos do Instituto Nacional de Antropologia e
História da Cidade do México estão fazendo escavações. Soube que descobriram ossadas
e utensílios dos primeiros habitantes desta região. Datam de 2 900 a.C. Talvez amanhã
possamos chegar até lá para que você veja o sítio das escavações. Agora, é melhor voltar.
Assim, você terá tempo de arrumar meu cabelo.
Ana Maria puxou as rédeas de seu cavalo, obrigando-o a fazer uma elegante curva.
Começou a trotar em direção aos edifícios da fazenda. Daphne tentou fazer o mesmo com
Black Velvet, mas a égua empacou. Não saía do lugar. Daphne apertou os joelhos, bateu-
lhe com os calcanhares nas ancas, gritou para o animal, mas
Black Velvet não se mexia. Finalmente, ao perceber que Daphne não a seguia, Ana
Maria voltou pelo mesmo caminho e veio puxando a égua pelo cabresto, até chegarem
próximas à sede.
— Ela é um pouco teimosa quando está cansada — disse, e acrescentou, rindo: —
Como é comum ao sexo feminino, ela gosta de trilhar seu próprio caminho. Eu, pelo menos,
gosto. E você, Daphne, também?
— Só quando é possível.
— Que serenidade a sua! Você tem o temperamento dos saxões. Nós, os latinos,
temos sangue quente nas veias. Lutamos para conseguir o que queremos, com
perseverança e determinação. E se alguma mulher tentasse lhe roubar Carlos, o que você
faria? Não lutaria por ele?

40
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Isso iria depender da decisão dele — retrucou Daphne, evasiva, satisfeita pela
outra estar de costas para ela, de forma a não poder ver sua expressão de angústia e
incerteza.
Mas Ana Maria deu um puxão nas rédeas e fez com que o cavalo ficasse de frente
para Daphne. Sob a luz crepuscular, seu rosto, em forma de coração, tinha uma expressão
de desdém.
— Em resumo, se entendi bem, você permitiria que Carlos a trocasse por outra
mulher. Simplesmente abriria mão dele, sem lutar — insistiu, provocante. — Ah, era o que
eu imaginava. Você não o ama. Por que casou com ele? Como conseguiu amarrá-lo? Por
acaso, está esperando um filho dele?
— Não, não estou — disse Daphne. — Casei porque ele me pediu em casamento.
— Quando? Quando foi isso? — indagou a outra, impelindo o cavalo ainda para mais
perto, a fim de poder olhar melhor para Daphne.
— Quando... quando ele foi para Acapulco... há... há duas semanas — arriscou,
desconcertada por aquelas perguntas.
— E você não se surpreendeu por ele a ter pedido em casamento tão depressa? —
continuou á moça.
— Sim, de fato, fiquei surpreendida.
Aquela resposta era sincera. Ana Maria que chegasse às suas próprias conclusões.
— Ele deveria ter esperado. — Olhou para Daphne com ressentimento. — Devia ter
esperado para casar comigo. Esse era o desejo de Claude Fontaine... Era o que nós
tínhamos planejado. — Ela parecia tremer de raiva. Deu um safanão no cavalo para que
tornasse a virar. — Mas o velho idiota cometeu um erro quando fez o testamento. Não fosse
por isso, Carlos... — Ana Maria cortou a frase, sacudindo a cabeça. — No importa. —
Enviou um sorriso forçado para Daphne. — Não faça caso do que eu digo. Agora venha,
vamos tratar do meu cabelo! Você acha que seria melhor cortá-lo, hein? Um corte moderno,
assim como o seu?
Sozinha, deitada na enorme cama de casal, Daphne ouvia os sons noturnos que
invadiam o quarto pelas frestas da janela. Todos os músculos de seu corpo doíam, mas
não era por isso que o sono não vinha. Não conseguia dormir porque as palavras de Ana
Maria ainda lhe martelavam o cérebro.
"Ele devia ter esperado para casar comigo. Esse era o desejo de Claude Fontaine.
Era o que nós tínhamos planejado. Mas o velho idiota cometeu um erro quando fez o
testamento."
Qual teria sido esse erro?
Daphne se virou na cama, inquieta. Precisava parar de questionar. Já bastava saber
que Carlos havia casado com ela para se tornar o futuro proprietário do Rancho Fontaine.
Por que ele não havia contado a ela? Talvez pensasse que ela se recusaria a aceitar o
acordo, se soubesse que o motivo daquele casamento tinha sido a ambição.
Que tal pensar em outra coisa? Que tal pensar que voltaria para o País de Gales
com dinheiro suficiente para abrir seu instituto de beleza? Precisava esquecer Ana Maria,
esquecer Tereza, e todas as complicações causadas pelo testamento feito por um homem
que ela nem conhecia: aquele pálido e frágil aristocrata, cujo retrato estava pendurado na
sala da casa da sede, ao lado dos outros ancestrais da família Fontaine.
Precisava esquecer também Carlos Reynolds.
41
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Agora podia entender por que Ana Maria ficara tão enfurecida ao descobrir que ele
tinha casado com outra.
Acabou adormecendo em meio ao tumulto de seus pensamentos. Só foi despertar
no dia seguinte, ao som do apito que tocava ao amanhecer, para acordar os peões e os
colonos do rancho.
No mesmo instante em que abriu os olhos, a imagem de Carlos voltou-lhe à mente.
Naquele dia ele estaria de volta, e ela se sentiu contente em poder revê-lo.
Quando Bonita chegou para executar seu serviço diário, Daphne se lembrou de que
ainda não tomara nenhuma providência para arrumar o sótão. Com a ajuda de um dicionário
e muitos gestos, conseguiu que Bonita entendesse o que ela queria. A moça foi logo até a
casa da sede e voltou acompanhada de um dos empregados, que carregava uma escada
dobrável de alumínio. Ele armou a escada e foi abrir o alçapão que existia no forro da
cozinha, descendo em seguida.
Daphne e Bonita subiram. Estavam começando a separar algumas caixas, quando
uma voz se fez ouvir na cozinha.
— Daphne! Daphne! Onde você está? Era Ana Maria.
— Aqui no sótão!
Daphne sentiu os músculos do estômago se contraírem. No mínimo, a moça tinha
vindo procurá-la para irem cavalgar juntas. Na verdade, achava mais prudente esperar
Carlos em casa do que ir ao seu encontro. Ele poderia não aprovar que ela se comportasse
como uma esposa saudosa. Abaixou-se e, enfiando a cabeça pelo alçapão, viu Ana Maria,
que olhava para cima.
— O que está fazendo aí?
— Carlos pediu para fazer uma limpeza no sótão.
— E você faz tudo o que ele lhe pede? — zombou a moça. — Por acaso, você é
uma daquelas esposas submissas que fazem tudo que o marido quer? Desça daí para
podermos conversar direito. Já estou ficando com torcicolo!
Relutante, Daphne começou a descer, e, ao chegar ao chão, sacudiu a poeira da
roupa, enquanto Ana Maria a observava sorrindo.
— Por que não pede para Bonita limpar o sótão? Você vai se sujar toda!
— Não sei como pedir — respondeu Daphne, com certa impaciência. — Levei quase
meia hora para ela entender que eu precisava de uma escada.
— Deixe que eu explico. Afinal, o que você quer que ela faça lá em cima?
— Queria que fizesse uma boa faxina, e que arrumasse a cama com roupa limpa.
— Por quê? Vocês estão esperando algum hóspede?
— Não. É que Carlos e eu... bem, nós dois achamos que seria bom termos um quarto
disponível — explicou Daphne. Ela suava em bicas, pois aquele sótão era extremamente
abafado. Pobre de quem fosse dormir lá em cima!
— Então, vou dar ordens a Bonita, assim você pode ir se aprontar para a aula de
equitação.
A aula durou uma hora, e dessa vez Daphne aprendeu a galopar Black Velvet. Deu
várias voltas pela pista do curral e, terminada a lição, Ana Maria sugeriu que fossem tomar
um refrigerante na casa da sede.

42
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Você está fazendo muitos progressos — disse encorajadora. — Carlos já deve


estar voltando. Que tal irmos ao encontro dele logo depois do almoço?
— Não vai estar muito quente para sair por aí, a cavalo?
— Nem tanto. Poderíamos seguir pela margem do rio, sob a sombra das árvores.
Em meia hora alcançaremos o acampamento onde estão sendo feitas as escavações de
que lhe falei. Venha, venha comigo. Se não vier, vou falar a Carlos da mulher medrosa que
ele tem.
— Então, está bem — concordou, um pouco hesitante.
Havia concordado porque, por alguma razão ainda obscura, não queria que Ana
Maria fosse se encontrar com Carlos sozinha. Uma desconfiança crescia dentro dela. Na
verdade, era puro ciúme.
— Mas, antes, preciso ir buscar um chapéu — disse Daphne, decidida.
— Não se incomode, posso lhe emprestar um dos meus sombreros. Agora, vamos
ver o que Tereza preparou para o almoço?
A refeição consistia de tacos recheados com carne e um molho muito apimentado.
Daphne teria preferido algo mais leve, ainda mais porque em seguida ia andar a cavalo.
Mas parecia não haver escolha. Refrescou a boca ardida com uma caneca de cerveja
gelada.
Meia hora depois, estava montada em sua égua, seguindo Ana Maria pela grande
extensão de terra seca e gretada que levava até a margeando rio. O barulho da água
rolando pelas pedras, o verde do capim alto, as ramagens das acácias, tudo dava uma
sensação de frescor e bem-estar. Mas aquele prazer durou pouco, pois Ana Maria entrou
por uma estradinha pedregosa, ladeada de cactus agrestes, que subia até uma chapada
pouco acima do curso do rio. Lá, segundo dissera a moça, estavam sendo feitas as tais
escavações.
O sol ardente, quase a pino, espalhava seus raios por toda parte. O suor escorria
pelo rosto de Daphne e lhe empapava a blusa sob as axilas. Seu estômago estava enjoado
por causa da pimenta dos tacos. Ela aprendera que a comida mexicana era indigesta. Além
disso, estava começando a sentir um ardor nas coxas, devido ao atrito constante com a
sela.
E pensar que Ana Maria, que ia à sua frente, parecia desperta e lépida, muito
atraente com o chapéu de abas largas cobrindo-lhe os olhos. Ela cavalgava ereta na sela,
acompanhando com graça e elegância as ondulações das ancas do animal. Quem a visse,
diria que ela seria capaz de andar a cavalo um dia inteiro.
O íngreme caminho que tinham tomado desembocava numa pequena clareira
formada por lajes rochosas, e circundada por árvores esqueléticas e mirradas.
— Você se importa se dermos uma paradinha por aqui? — perguntou Daphne,
sentindo a garganta seca e ardida. — Gostaria de tomar um gole d'água.
— Pois não.
Ana Maria desceu da sela e prendeu as rédeas num galho seco para que o cavalo
não fugisse. Tirando um cantil de água de um embornal, ofereceu-o a Daphne.
Por sua vez, Daphne desmontou, muito desajeitada, sentindo todas as juntas do
corpo rangendo. Também prendeu sua égua num dos arbustos próximos.
— Tome — disse Ana Maria, lhe passando a água. — Beba à vontade. Não quero
que você morra de sede. Seria muita crueldade fazer isso com uma recém-casada...
43
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Apesar da brincadeira, havia um tom maldoso naquela voz. Daphne lançou um olhar
desconfiado para a companheira, e levou o cantil à boca. A água estava morna, mas serviu
para aliviar a secura da garganta.
Devolvendo o cantil, afastou o chapéu para trás e enxugou o suor do rosto com o
dorso da mão. Ana Maria tornou a guardar o frasco, mas ficou junto do cavalo, observando-
a por alguns segundos, com um sorriso de zombaria...
— Você não nasceu para viver numa região como esta. No verão, o calor é
insuportável e as chuvas torrenciais. Note que ainda estamos em abril. Quando chegar o
verão, não vai agüentar. Certamente vai abandonar Carlos, e pedir o divórcio.
Por um triz Daphne não declarou que, no verão, ela não estaria mais ali. Com toda
a certeza, Ana Maria estava querendo provocá-la. Ergueu o queixo com atrevimento, e,
sustentando o olhar da outra, disparou:
— Foi isso que você fez? Pediu o divórcio a seu marido porque não se deu bem com
o clima do lugar onde vocês moravam?
A risada de Ana Maria chegou a lhe irritar os nervos.
— Não foi por isso. Divorciei-me de Miguel por duas razões. Primeiro, porque eu
estava cansada dele. Ele é rico, mas não é de nada. Em geral, os homens ricos são
péssimos amantes, pois só se preocupam em ganhar dinheiro. Minha mãe pensava a
mesma coisa a respeito de Claude, por isso se separou dele. Meu padrasto lhe deixou uma
boa reserva de dinheiro e bens, mas eu consegui uma bolada bem melhor de Miguel. Dois
milhões! E olhe que não estou falando de pesos. Foram milhões de dólares! — Ana Maria
parecia muito satisfeita com sua esperteza. — A segunda razão do meu divórcio é que eu
pretendia casar com Carlos. — Umedeceu os lábios sensualmente. — Sempre o desejei
como amante.
— E por que não casou logo com ele, e não com Miguel?
Ana Maria tinha muito em comum com algumas das amigas de Elza. Fazia do
casamento uma fonte de renda, pensou Daphne. Mas, raciocinando melhor, chegou à triste
conclusão de que ela também aceitara dinheiro de Carlos para concordar com sua proposta
de casamento.
— Não casei com Carlos, sete anos atrás, porque ele não estava no México —
respondeu Ana Maria. — E também porque, naquela ocasião, ele tinha pouco a oferecer.
Ainda não era herdeiro de Claude. Só depois que casei com Miguel é que aquela... aquela
lavadeira, Tereza, começou a colocar besteiras na cabeça de Claude, insinuando que o
filho dela seria a única pessoa capaz de levar adiante o rancho, pois conhecia criação e
agricultura. O rancho seria uma herança natural e merecida, uma vez que Carlos era o
único neto do grande herói, Luiz Valdez! Uma ova! — Ela destilava ódio por todos os poros.
— Tereza tanto insistiu nesses argumentos que o idiota do Claude acabou fazendo um
testamento a seu favor, lhe deixando a propriedade e metade da fortuna dos Fontaine.
— E quem herdaria a outra metade?
— Ia ser dividida entre Tereza e eu — esclareceu, com evidente ressentimento. —
Fiquei furiosa quando Claude me contou, e foi então que pedi para ele incluir uma cláusula
condicional no testamento.
— Que tipo de condição?
Daphne estava se sentindo completamente confusa e a cabeça começava a latejar.
— Disse a Claude que ele estava sendo injusto comigo, porque eu tinha os mesmos
direitos de Carlos. Aliás, tinha mais direitos, porque eu já era enteada dele há muito mais
44
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

tempo. Conforme eu tinha previsto, Claude ficou muito abalado com a minha acusação, e
acabou concordando em acrescentar a cláusula. Estabelecia que Carlos só herdaria o
rancho e metade da fortuna se casasse comigo dentro do prazo de seis meses após sua
morte. Assim, eu teria tempo para me divorciar e casar com Carlos, quando meu padrasto
morresse. Tudo estava bem planejado, mas Claude fez a cretinice de esquecer de
mencionar meu nome naquela cláusula. — Ana Maria fechou os punhos nervosamente e
soltou uma espécie de urro. — Oh, quando penso nisso parece que vou enlouquecer!
— Não sei se entendi bem — disse Daphne, levando a mão à testa. — Acho tudo
muito confuso.
Realmente, parecia que tudo à sua frente dançava. Seria efeito do calor?
— Quando Claude morreu, há cinco meses e meio, o advogado dele abriu o
testamento. A tal cláusula estava lá. Dizia simplesmente que Carlos seria o herdeiro se
casasse dentro do prazo de seis meses. Mas não dizia com quem! — Apertou os dentes,
fuzilando Daphne com um olhar de ódio. — Veja só! Ele podia casar com qualquer uma,
com qualquer sirigaita que encontrasse em Acapulco, e nem por isso perderia a herança!
Então, se casou com você.
Daphne ficou olhando para ela, abobada, achando que não tinha ouvido bem. De
repente se deu conta do ridículo da situação. Um velho senil, já esclerosado, tinha levado
por água abaixo todas as ambições de Ana Maria. Sem poder se controlar, desatou a rir.
— Oh! Essa foi boa! Foi muito boa!
— Não vejo onde está a graça! — exclamou a outra, possessa.
Chegou a erguer o braço que empunhava o chicote, pronta para agredi-la, mas
depois deixou cair a mão, sem desgrudar os olhos chamejantes dos de Daphne.
— Não achei graça quando soube, nem estou achando graça agora. Fui falar com o
advogado, mas ele me disse que não havia nada a fazer. Falei com Carlos e lhe contei que
Claude queria que casássemos para que nós dois pudéssemos herdar a propriedade e a
fortuna. Disse-lhe também que eu poderia obter o divórcio dentro do prazo estabelecido.
— E ele, o que foi que disse?
— Que eu fosse providenciando o divórcio. Por isso, cheguei à conclusão de que ele
casaria comigo tão logo eu estivesse livre. Ele me enganou e vai pagar caro por isso!
— Oh, não! — suplicou Daphne, preocupada com a expressão venenosa do rosto
de Ana Maria. — Não foi por culpa de Carlos que Claude esqueceu de colocar seu nome
na cláusula.
— Carlos não devia ter casado com você. Era comigo que ele devia ter casado. Isso
eu não perdôo.
— Eu... eu sinto muito. Se eu tivesse sabido antes, eu não... — interrompeu-se. Não
estava sendo sincera. Mesmo que soubesse da tal cláusula, teria se casado da mesma
forma com Carlos, para evitar que ele fosse parar atrás das grades. — Por favor, Ana Maria.
Você não pode perdoar e esquecer? Tenho certeza de que Carlos não se casou comigo
para prejudicá-la.
— Pois eu tenho certeza do contrário — retrucou a moça, tornando a montar no
cavalo. — Já descansou bastante? Podemos continuar?
— Na verdade, eu preferia voltar para casa. Ou, então, ficar aqui mais um pouco até
que refresque, para depois voltar. Não estou me sentindo bem.
Ana Maria olhou-a com antipatia.
45
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Você é bem fraquinha, hein? Pois fique aí descansando até a hora que quiser. Eu
vou andando, depois venho buscá-la.
Sem mais uma palavra, esporeou o cavalo, que saiu a galope, e desapareceu por
trás do rochedos.
Por alguns segundos Daphne ficou olhando Ana Maria sumir na paisagem. Talvez
fosse melhor ir atrás dela. Não. A cabeça doía demais e ela estava sentindo ânsias de
vômito. Melhor seria ficar ali sentada, à espera de que a outra voltasse.
Foi para perto da égua e a livrou da sela, da manta e dos arreios. Levou-a para um
abrigo no rochedo. Em seguida, estendeu a manta no chão, fez da sela um travesseiro e
se deitou à sombra de uma daquelas árvores. De fato, não se sentia bem. Aquilo só podia
ser uma crise estomacal. Não era a primeira vez que sentia aqueles sintomas, desde que
chegara ao México. Fechou os olhos e logo adormeceu.
Acordou sentindo o rosto queimar, assim como as mãos. Abriu os olhos e descobriu
que o sol havia mudado de posição. Agora, a atingia em cheio. Levantou e foi cambaleando
até onde estava Black Velvet, também exposta ao sol escaldante. Arrastou-a para outro
lugar mais abrigado e olhou as horas. Cinco da tarde. Não podia ser! Sacudiu o relógio e o
levou ao ouvido para verificar se estava funcionando. Estava. Já fazia duas horas que Ana
Maria tinha ido. Voltou para o lugar onde estava a sela e começou a procurar pelo cantil de
água. Mas o único cantil existente havia ficado com a moça.
Para conseguir um pouco de água, precisaria voltar até o rio. Resolveu atrelar a
égua. Fez isso com muita dificuldade. Sentia-se tonta e enjoada. Mesmo assim, colocando
o pé no estribo, esforçou-se para montar. Já no lombo da égua, segurou as rédeas e estalou
a língua, pressionando o animal com os joelhos. Mas Black Velvet não se mexeu.
— Ora, vamos! — gritou, desesperada. — Ande, vamos! Nada. A égua permanecia
imóvel.
Inclinou-se sobre o pescoço do animal e sussurrou-lhe ao ouvido:
— Por favor, Black, não seja teimosa. Leve-me de volta para casa.
A égua não deu mostras de ter entendido. Ficou escavando a terra, sem sair do
lugar. Quem sabe ela só entendia espanhol? Esporeou as ancas como tinha visto Ana Maria
fazer com seu cavalo, e... nada.
— Está bem, eu vou a pé! Mas você, sua birrenta, vem comigo! Nem bem acabou
de falar, a égua empinou, com um relincho.
Daphne tentou se agarrar, mas fraca como estava não conseguiu, e escorregou
pelas ancas de Black Velvet, até se estatelar de costas no chão rochoso.
As nuvens no céu pareceram rodar diante de seus olhos. Ficou assim, por um
momento, a respiração suspensa pelo choque. Depois, com grande esforço, começou a
levantar. Ficou de joelhos. Agora, tudo parecia girar à sua volta; as árvores, as rochas, a
terra. Pouco a pouco aquela vertigem foi passando, e ela olhou em volta, à procura da égua.
Black Velvet tinha desaparecido.
Começou a descer pela estradinha pedregosa o mais rápido que podia. As botas
estavam apertadas. De repente, avistou a égua, lá embaixo. Com o pescoço estendido,
bebia água no rio.
Não podia condená-la por aquela fuga, pois ela também estava morta de sede.
Cerrando os dentes por causa da dor que lhe fazia latejar a testa e do enjôo que lhe revolvia
o estômago, recomeçou a caminhada, sentindo na nuca a ardência do sol abrasador. Na
queda, o chapéu havia caído e ela nem se lembrara de apanhá-lo.
46
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Não percebeu em que momento perdeu os sentidos. Só retornou a consciência


quando a noite começou a cair e as primeiras estrelas cintilavam no céu. Naquela escuridão
crescente, se sentiu desorientada, sem saber que direção seguir. Tentaria chegar até a
margem do rio, ladeada pela fileira de árvores que lhe serviam de ponto de referência.
Mal deu alguns passos, cambaleou e tornou a cair. Sentia muito calor e uma terrível
secura na boca. Se pelo menos pudesse alcançar o rio! Poderia se refrescar e saciar a
sede.
Tornou a levantar, deu dois passos e caiu de bruços. Desta vez não fez força para
levantar. Era bem melhor ficar ali, deitada onde eslava, mesmo que acabasse sendo
devorada viva pelas formigas.
Com a chegada da noite, a atmosfera se tornou mais respirável. Daphne não se
mexia. Delirando de febre, apenas sussurrava palavras desconexas.
Não ouviu a camioneta se aproximar, nem percebeu quando o veículo parou. Nem
sequer viu os dois homens que desceram e se dirigiram para ela. Só abriu os olhos quando
um dos homens a pegou no colo e voltou para a camioneta. A luz dos faróis, viu um rosto
barbudo e dois olhos muito azuis.
— Quem é você? — gemeu. Os olhos azuis a fitaram espantados.
— Tom Hutton. E você, quem é?
— Daphne Thomas. Quer dizer... Daphne, Daphne... — Como era mesmo seu novo
sobrenome? — Sou a mulher de Carlos — acrescentou, debilmente.
— Carlos Reynolds? — perguntou o homem de barba, que foi interrompido por
alguém que ela não podia ver, nem ouvir. — Você mora na sede do rancho? — falou
novamente o barbudo, suspendendo-a mais nos braços a fim de acomodá-la no assento da
camionete.
— Moro no bangalô, ao lado da sede.
— Então, vamos levá-la para lá.
Quando o veículo entrou em movimento e começou a balançar, seu enjôo piorou.
Ela ficou branca como um lençol, a fronte inundada de suor. O homem a seu lado lhe
passou o braço pelo ombro, amparando-a.
— Você está num estado miserável! O que aconteceu?
— Você é inglês, não é? — perguntou, em vez de responder.
— Não. Sou canadense. De Toronto. Mas minha mãe era inglesa.
— Eu sou galesa.
— E o que está fazendo aqui, no interior do México.
— E que casei com Carlos.
— Isso você já disse. Parece que esse seu marido não cuida muito bem de você.
— Minha égua fugiu. Tentei alcançá-la, e acabei caindo Daphne se esforçava para
falar. Sua mente estava bloqueada pela febre, o que dificultava o raciocínio.
— Foi uma sorte termos vindo por esse caminho Nós somos arqueólogos e estamos
trabalhando nas escavações do alto da colina.
— Ana Maria foi para lá.
— A égua?
47
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não. Ana Maria. Pensei que ela fosse voltar, mas me enganei.
— Tudo bem, guarde suas explicações para Carlos. Ei, Diego, diminua a marcha.
Parece que vem alguém a cavalo nesta direção. Devem estar à procura da moça.
Confusa, Daphne ouviu a camioneta parar e o homem que a segurava gritou alguma
coisa que ela não conseguiu entender. Como num sonho, ouviu outra voz. Pareceu-lhe ser
de Carlos. O veículo se pôs em marcha novamente e ela deixou cair a cabeça sobre o
ombro do barbudo, inconsciente.
Só voltou a si no momento em que a estavam carregando escada acima. Ao abrir os
olhos, ficou ofuscada com a luz que vinha de uni lustre de cristal. Baixou as pálpebras e
dirigiu o olhar para o rosto do homem que a carregava no colo. Era um rosto moreno, de
olhos muito negros.
— Carlos... — Ergueu debilmente a mão, passando-a por aquele queixo quadrado e
áspero. — Oh, Carlos! Que bom que você está aqui... Fui com Ana Maria ao seu encontro,
mas meu cavalo fugiu. Ana Maria foi avisá-lo?
— Não.
— E onde está ela?
— Não sei.
— Oh, você continua caladão como sempre!
— E você fala demais — retrucou ele, chegando ao alto do patamar e virando pelo
corredor.
— Onde está me levando?
— Para a cama.
— No sótão?
O olhar duro e severo caiu sobre ela. Mas a linha da boca se suavizou, num sorriso.
— Não. Na casa da sede. Você está doente, minha querida. Vai ficar de cama. Vou
chamar um médico.
— Você me chamou de querida. O que quer dizer isso? — perguntou, num fio de
voz, aconchegando a face febril naquele peito forte e protetor.
Carlos não respondeu e se abaixou, deitando-a sobre o leito.
A última pessoa que viu antes de desmaiar novamente foi Tereza, debruçada sobre
ela, o rosto muito sério e contraído de preocupação.

CAPÍTULO VI

A chuva batia incessante no teto de zinco do bangalô. Daphne deixou cair o livro no
colo. Sentia-se melancólica e sonolenta.

48
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Era fim de abril. Estava já há quinze dias no rancho. Ficara de cama durante uma
semana, recuperando-se da forte crise estomacal, que se complicou por uma insolação.
A febre cedeu e, graças à força de sua juventude, ela se recuperou logo. Pôde então
ser levada para o bangalô, a fim de reassumir sua casa.
Mas, agora que voltara, tinha ainda menos oportunidade de ver Carlos. Ele saía de
madrugada, para o trabalho, antes dela acordar, voltando somente à noite, depois que ela
já se recolhera. Daphne começava a se sentir uma esposa negligenciada. Mas por que se
preocupar com essas ausências? Estava sendo paga, e muitíssimo bem. Devia somente
aparecer de vez em quando diante dos rancheiros, e ser apresentada aos parentes que
vinham visitar Tereza. Agora que Ana Maria tinha partido, tudo se tornara muito fácil. Mas
começava a se inquietar, imaginando até quando Carlos pretenderia continuar com aquela
farsa.
Ouvindo o barulho de botas sobre as tábuas da varanda, olhou as horas: cinco e
meia. Carlos estava voltando cedo. Seu coração se acelerou e o rosto se coloriu de
vermelho. Reagia sempre assim, todas as vezes que ele estava para chegar.
Abriu novamente o livro, fingiu que estava lendo. A porta basculante que dava para
a sala se abriu e Carlos apareceu. Vestia uma capa amarela com capuz, ensopada de
chuva. Ainda na soleira, tirou a capa e pendurou-a num gancho da parede. Mal olhou para
Daphne e foi diretamente para a cozinha.
Ela mordeu os lábios, tentando controlar a tentação de ir atrás dele. Voltou sua
atenção para o livro, mas as palavras dançavam diante de seus olhos, sem sentido.
Não podia continuar desse jeito por muito tempo, pensou, desesperada, recalcando
aquele desejo de compartilhar sua vida com ele, assim como seus sonhos, ideais, e... sua
cama de casal. Ele agora dormia no sótão. Até quando agüentaria aquela ansiedade de
querer ser sua verdadeira mulher, sua amante?
— Como está usted?
Lentamente, Daphne ergueu os olhos do livro. Ele tinha voltado da cozinha, trazendo
uma lata de cerveja. Abriu-a, tomou um gole, enquanto esperava uma resposta.
— Hoje estou bem melhor, obrigada. — Baixou os olhos novamente para o livro.
Carlos veio sentar ao seu lado no pequeno sofá de vime.
— Acha que estaria em condições de ir comigo amanhã até a cidade? — perguntou,
esticando as pernas sobre os almofadões. — Tenho um negócio a tratar com o advogado
e gostaria que você estivesse presente. Não vai ser preciso falar nada. E só ficar lá, do meu
lado.
— Para interpretar mais uma cena do meu papel de esposa? Todas as vezes que
falava nisso, ela não podia evitar ser sarcástica.
— Si, como sempre — respondeu Carlos com frieza. Tomando mais um gole de
cerveja, ele procurou relaxar,fechando os olhos. Daphne pôde observar melhor suas
olheiras fundas e as faces encovadas. Ele parecia cansado. Talvez não estivesse dormindo
direito naquele sótão abafado.
— Essa visita ao advogado tem alguma coisa a ver com o testamento de Claude
Fontaine? — perguntou.
Ele abriu os olhos.
— E o que você sabe sobre esse testamento? Por acaso minha mãe andou falando
alguma coisa?
49
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não. Ela não disse uma palavra sobre isso. Foi Ana Maria quem me contou.
— E o que foi que ela disse?
— Tudo. Sobre as condições impostas para você receber a herança, sobre o prazo
de seis meses para você casar...
Ele terminou de tomar a cerveja e colocou a lata vazia no chão.
— E o que mais?
— Que você deveria ter casado com ela, mas que Claude Fontaine esqueceu de
incluir o nome dela na cláusula. Por que você não esperou que ela se divorciasse?
— Porque eu queria herdar o rancho e não confiava que o divórcio saísse a tempo.
— Ela disse que você a enganou. Que a encorajou a pedir o divórcio e depois tirou
o corpo fora e se casou comigo.
— Ah! — ele riu. — Como se ela precisasse ser encorajada para aquele divórcio!
Mesmo antes de Claude morrer, ela já tinha feito uma tentativa, mas Miguel Garcia não
concordou com as exigências dela. O processo acabou sendo arquivado.
— Você bem que teria casado com ela se o divórcio tivesse sido homologado antes
— insistiu Daphne.
— Só em último caso, para conseguir o que eu queria — disse ele. — Só se eu não
encontrasse ninguém mais para casar. — Enviou-lhe um olhar apreciativo. — Como
encontrei você, consegui me livrar de um destino pior do que a morte. Nunca houve afeição
entre nós dois, nunca tivemos a mínima afinidade.
— Pois ela me deu a entender que vocês eram muito chegados...
— Com certeza ela disse isso para que você se sentisse uma intrusa, a causadora
da separação de duas pessoas que se amavam. A esperança dela era que você desistisse,
que abrisse mão de mim, que quebrasse nosso compromisso, antes que eu pudesse levar
as provas ao advogado para que o testamento de Claude fosse executado. — Carlos olhou
com um ar triste para a vidraça, onde a água da chuva caía como um dilúvio. — Eu sabia
o quanto ela era maldosa, sabia que faria de tudo para se vingar de mim, mas nunca pensei
que fosse usar você para me atingir. Você nunca deveria ter saído a cavalo naquele dia,
com a pouca experiência que tinha. Minha mãe me contou que você só tinha tomado duas
aulas.
Daphne aproveitou para contar todos os argumentos que Ana Maria tinha usado para
convencê-la a aprender a montar.
— E eu, muito ingênua, queria parecer uma esposa companheira e apaixonada. —
Ela o olhou com ternura, mas logo se inibiu, e completou: — Naturalmente esse fingimento
fazia parte da farsa.
— Pois ela mentiu para você. Nunca pedi que a ensinasse a montar. E não fui eu
quem escolheu aquela égua cheia de manhas. Ela inventou tudo. Planejou levá-la por
aquele caminho perigoso e a deixou lá abandonada, sem água. Dios! Você poderia ter
morrido se não fosse encontrada a tempo! Entende o quanto se arriscou? — a voz de Carlos
estava um pouco trêmula.
— E você iria ficar com remorsos pelo resto da vida por ter me deixado sozinha,
entregue a estranhos. Como eu poderia adivinhar que Ana Maria fosse tão vingativa e
mentirosa?

50
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Minha mãe tentou preveni-la, mas você se comportou de uma maneira boba e
impulsiva!
— Talvez porque eu seja boba e impulsiva. Se... se eu não fosse, acha que eu estaria
aqui? Acha que eu teria concordado em ser sua esposa temporária? Acreditei em Ana Maria
porque ela me disse que iríamos ao seu encontro.
— Mais uma mentira. Ela sabia perfeitamente que eu viria pelo lado oposto. E
também me mentiu naquela noite quando perguntei onde você estava. Disse-me que você
tinha ficado no acampamento dos arqueólogos e que só voltaria no dia seguinte. A intenção
dela era evitar que eu fosse à sua procura. Mas eu não acreditei. Já estava saindo para ir
procurá-la, quando a camioneta chegou — riu. — Não precisei de muitos argumentos para
convencê-la de que ela não era bem-vinda aqui. Foi embora naquela mesma noite.
— Para onde foi?
— Sei lá, nem quero saber. O que sei é que ela não vai mais ter coragem de colocar
os pés aqui.
— Nem para receber a parte dela na fortuna de Claude Fontaine?
Ele se virou, surpreso.
— Que fortuna? Claude não tinha fortuna alguma quando morreu. — Sacudiu a
cabeça, rindo baixinho. — Pobre Claude! Ele foi o último varão da família Fontaine, uma
estirpe já decadente por causa da imprevidência. Ele era, sem dúvida, um homem educado,
culto. Mas era fraco. O pouco dinheiro que herdou foi gasto com um certo tipo de mulheres,
assim como Maria Fontaine, a mãe de Ana Maria. Era uma prima distante. Esperava um
filho, de outro homem, e conseguiu persuadir Claude a se casar com ela. Depois, se
apossou do restante da fortuna por meio de um processo de divórcio. Tudo o que sobrou
para Claude foi o rancho e, assim mesmo, em péssimas condições de conservação.
— Até que sua mãe o convenceu a chamar você para administrá-lo. Ela também não
pertence à espécie de mulheres a que você se referiu? Claude também não se deixou
influenciar por ela? — provocou Daphne. — Oh, quer saber de uma coisa? Eu acho que
nenhum de vocês é flor que se cheire. São todos uns ambiciosos, sempre prontos para dar
o bote para se apossai do que é dos outros.
— Eu já imaginava que você nunca entenderia retrucou Carlos, sem se alterar. —
Foi por isso que não lhe contei a razão do nosso casamento. Você vem de outro país, com
uma cultura diferente, e não podia mesmo entender essa nossa paixão pela terra. Minha
mãe e toda a família Valdez nutriam esse sentimento. Na nossa ambição de possuir o
Rancho Fontaine não existe essa história de querer se apossar da propriedade alheia. Esta
terra nos pertence por direito e por tradição. Será reorganizada, dentro do princípio do ejido,
para que cada um que nela trabalhe tenha direito à sua parte nos lucros. Deu para entender
melhor?
— Estou tentando. — Depois de um suspiro, continuou: — Você acha mesmo que
Claude Fontaine esqueceu de colocar o nome de Ana Maria na tal cláusula?
— Isso ninguém nunca saberá. — Carlos levantou. — Então, hoje você vai cedo para
a cama para poder me acompanhar amanhã à cidade?
— Sim, vou. Mas onde você vai agora?
— Para a vila.
— Oh, por favor, não vá! — ela pediu segurando-lhe o braço. — Fique aqui comigo.
Eu me sinto tão sozinha, sem você. Fique comigo ou me leve para onde você for...

51
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Sentiu os músculos daquele braço se retesarem. Ele a encarou com tal desprezo
que Daphne estremeceu.
— Já a avisei para não usar esses truques baixos comigo!
— E eu já lhe disse que não são truques. Falo sério. Leve-me com você.
— Para a cantina da vila? Acha que eu vou querer expor você aos olhares cobiçosos
de todos aqueles homens?
— Então, fique aqui comigo — ela insistiu. O rosto estava em brasa pela humilhação
de ter que suplicar a companhia dele.
A mão rude e calosa de Carlos segurou-lhe o queixo, obrigando-o a fitá-lo. Na
penumbra da sala, os olhos negros tinham o brilho de duas pedras de ônix ao fitarem o seu
rosto. A mão que lhe segurava o queixo deslizou suave pelo pescoço. A principio, seus
lábios apenas se roçaram. Mas aquela ansiedade reprimida de todo junto a si explodiu ao
primeiro contato. Ela enlaçou-lhe a nuca, puxando-o para mais perto. O beijo se
aprofundou, intensificou-se e se multiplicou. Caíram, abraçados, sobre os almofadões do
sofá.
Lá fora, a chuva continuava a cair. A natureza estava em fúria. Os beijos tornaram-
se cada vez mais fogosos, penetrantes. As mãos de Carlos, cada vez mais atrevidas,
exigentes. A respiração tornou-se sibilante e apressada pelo desejo e paixão que os estava
levando à beira da entrega total.
Carlos foi o primeiro a se controlar. Erguendo-se de cima dela, a olhou com olhos
ainda febris.
— Isto não faz parte de nosso trato — murmurou, com voz rouca.
— Eu sei. — Os lábios de Daphne continuavam úmidos e entreabertos, num convite
para ir até as últimas conseqüências. Queria continuar a tocar e ser tocada. — Eu sei —
ela repetiu. — Mas isso não quer dizer que não podemos nos amar.
Sem esperar resposta, deslizou a mão pela camisa desabotoada. Sentiu a aspereza
daqueles pêlos negros do peito, a suavidade da pele bronzeada, daqueles ombros largos.
Ele cheirava a cavalo, suor e cerveja, e se não fosse pela exaltação do momento, aquele
odor acre lhe teria, causado repulsa. Porém se sentia incrivelmente atraída pelo cheiro que
parecia evidenciar ainda mais a masculinidade dele. Erguendo a cabeça, tornou a lhe
oferecer os lábios, mas ele não se deixou seduzir pelo apelo. Levantando, de repente,
largou-a estendida sobre o sofá e ficou de costas para ela, olhando a tempestade através
da vidraça.
— O que foi? — exclamou Daphne, levantando-se também e indo atrás dele. — Você
não gosta de fazer amor?
Ele se virou. Seu corpo tremia.
— O que você acha? Sou um homem, um homem com sangue nas veias. Claro que
gosto de fazer amor, de deitar com uma mulher. — Apontou para a porta entreaberta do
quarto. — Gostaria de deitar com você lá naquela cama. Mas não vou permitir que isso
aconteça, que você perca sua virgindade com um homem que não tem nada a lhe oferecer.
Um estranho que logo você não verá mais.
— Mas eu quero ser sua e continuar a seu lado para sempre. Oh, Carlos, você não
compreende...
— Não, não compreendo! Você não percebe que está brincando com fogo? Se nós
chegássemos até o fim, você haveria de se arrepender pelo resto da vida e... e o nosso
52
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

casamento não poderia ser anulado com facilidade. Um dos argumentos que vou
apresentar para a anulação é que nossa união não foi consumada. Ah, Dios, não me olhe
desse jeito. Querida... — Abraçou-a amorosamente. — Você não acha que já tenho a
consciência suficientemente pesada? Já foi muito eu ter pedido para você casar comigo,
tê-la trazido para cá. Eu não pensava que você fosse tão inocente, tão pouco vivida. —
Afastou-a de si e a olhou, triste. — Dentro de duas semanas, tudo terá terminado. Então
irei levá-la até a Cidade do México, colocá-la dentro de um avião, e, quando você chegar
ao seu país, logo esquecerá de mim, e dará graças a Deus por ter saído ilesa desta loucura
toda.
A atitude de Carlos não a consolava nem um pouco. Ele estava se mostrando mais
forte e controlado que ela porque era mais velho e experiente, mais capacitado para resistir
à tentação. Mas tinha que reconhecer que o principal motivo de sua recusa era que ele não
a amava.
Sem dizer nada, apanhou o livro que tinha caído no chão. Quando se voltou, eleja
tinha saído.
A sala ficou silenciosa. Só se ouvia o som da chuva caindo sem parar sobre o telhado
de zinco.
Carlos voltou tarde da noite. Ela ouviu os passos no corredor, indo em direção ao
sótão. Parecia estar cambaleante. Estaria embriagado?
Oh, céus! Como iria agüentar aquela agonia por mais duas semanas? Amanhã,
depois da visita ao advogado, proporia ir logo paia a Cidade o México. Ele não precisaria
acompanhá-la. Deveria haver alguma linha de ônibus de Micatepec até a capital, e,
chegando lá, saberia encontrar o caminho do aeroporto.
Precisava ir embora, antes que perdesse completamente o controle sobre suas
ações, antes que se deixasse dominar totalmente por aquele homem sedutor e enigmático.
Na manhã seguinte, à hora do café, Daphne tomou coragem.
— Sabe... estive pensando... Queria muito falar com você...
Mas Carlos parecia impaciente, e, olhando as horas, apressou-a.
— Agora não. Estamos atrasados. Minha mãe já está nos esperando e precisamos
estar no escritório do advogado antes das dez. Vá dizendo o que tem a dizer pelo caminho.
— No carro não dá. Preciso falar agora. Não vou poder conversar com você na frente
de sua mãe... Eu... eu não sei o quanto ela sabe a nosso respeito.
— Ela não sabe nada. Por quê? O que você quer dizer que ela não pode ouvir?
— É que andei pensando se não seria possível ir embora hoje à tarde, ou amanhã
cedo, depois que você tiver levado a prova de nosso casamento ao advogado. — Daphne
parou, a garganta seca.
— Eu... eu acho que não vou agüentar passar mais duas semanas com você, sem...
sem... ora, você sabe! — exclamou, num soluço.
Carlos deu um profundo suspiro e segurou-lhe a mão. Por um momento, ficaram se
olhando, mudos e estáticos. Ela notou sua palidez, as olheiras. Era o excesso de tequila e
as noites mal dormidas, pensou.
— Se você quiser, pode ir — ele disse, finalmente. Retirou a mão, como se aquele
contato estivesse lhe provocando um choque elétrico. — Mas terá que partir sem o dinheiro
que prometi. Só em meados de maio é que poderei dispor dele. Mas não vou prendê-la
aqui, não tenho esse direito.
53
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Obrigada — sussurrou ela.


Por alguns segundos, travou-se uma batalha silenciosa, como se nenhum dos dois
estivesse dizendo o que realmente sentia. E o que eles sentiam era uma atração imensa
que os impelia um para os braços do outro. Mas isso os obrigaria a mudar suas vidas
completamente. Carlos tratou de sair logo para a varanda, antes que algo mais fosse dito.
Daphne percebeu que poderia ir embora se quisesse. Bem, ali estava a resposta à
sua pergunta, o que esperava mais?
Foi para o quarto, arrumou a mala e guardou o passaporte e o restante do dinheiro
na bolsa.
Quanto saiu. Carlos estava junto ao carro. Ao vê-la com a bagagem na mão, abriu o
porta-malas, em silêncio, guardando a mala e a frasqueira. Tereza já vinha chegando, com
um xale colorido passado sobre os ombros, os passos rápidos. A chuva tinha cessado, mas
o céu continuava nublado e havia uma pesada umidade no ar.
O carro seguiu pela trilha que levava à auto-estrada. Havia poças de água e lama, e
Daphne receou que ficassem atolados. Mas logo alcançaram a rodovia que àquela hora
tinha pouco tráfego. O trajeto foi vencido em poucos minutos.
Quando entraram na cidade, o sol já despontava por trás das nuvens, iluminando os
telhados vermelhos das velhas casas de estilo francês. Em todas as cidades mexicanas em
desenvolvimento, havia o setor moderno, com altas construções de concreto, todas
envidraçadas. O escritório do advogado estava localizado num desses edifícios.
Carlos e Tereza entraram antes, e ela ficou esperando na ante-sala. Passados
alguns minutos, ele veio buscá-la e a apresentou ao advogado que, muito gentil, beijou-lhe
a mão, à moda latina, como teria feito com qualquer mulher casada.
Tudo o que Daphne precisou dizer foi buenos dias, e logo estavam todos saindo do
prédio, sob o sol que já começava a esquentar.
— Agora nós duas iremos às compras — disse Tereza, em tom autoritário, ao
voltarem para o carro. — Carlos vai nos levar ao mercado central, e de lá ele vai para os
bancos. — Virou-se para o filho: — Onde nos encontraremos depois?
— No Ângelo, o restaurante especializado em frutos do mar, lá na praça. Eles fazem
um coquetel de mariscos chamado Vuelve a la Vida que é fantástico! Deixarei o carro
estacionado por perto e nos encontraremos por volta de meio-dia e meia. Está bem assim?
— Está ótimo!
Tereza convidou Daphne a entrar primeiro no carro. Era evidente que estava feliz
com o resultado da entrevista no escritório do advogado.
— Vamos aproveitar para comemorar — continuou ela. — Vai ser um almoço em
comemoração ao casamento de vocês e à posse do Rancho Fontaine. — Os olhos de
Tereza brilharam de satisfação. — É difícil explicar como estou contente por essas terras
terem voltado às mãos de nosso povo. Meu pai deve estar muito feliz lá no Paraíso. —
Olhou para Daphne e, com um sorriso brejeiro, disse: — Você deve estar pensando que
sou muito louca, que não bato bem da cabeça!
— O que penso é que a senhora não é diferente de qualquer pessoa que ame seu
país e sua liberdade — respondeu Daphne, amável. — E tenho certeza que, se não
existissem pessoas como a senhora e seu pai, o México ainda estaria sob o domínio dos
latifundiários e ditadores.

54
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Ah... Já vi que Carlos andou conversando com você! De fato, no passado, nós
tivemos necessidade de revolucionários. Mas, hoje em dia, precisamos mais é de gente
como o meu Juan, que Deus o tenha... e de Carlos. Gente que tenha experiência e
conhecimento para tornar a terra produtiva. Gente que monte indústrias e que nos ensine
a trabalhar nelas. Gente também como você, Daphne — disse Tereza com afeto. — E como
os filhos que virão depois.
— Que Deus a ouça — disse Daphne.
Já estavam chegando à praça principal, muito bela, arborizada e florida. Carlos
estacionou quase em frente ao restaurante onde se encontrariam mais tarde. Ele foi
andando numa direção. Daphne e Tereza foram na direção oposta, e começaram a andar
pelas estreitas ruelas do mercado.
Daphne acompanhou Tereza por entre aquelas bancas repletas de frutas, legumes
e flores, até que viu uma barraca de artigos femininos. Queria comprar uma lembrança para
Tereza como prova de gratidão pelos dias que ela passara à sua cabeceira de doente.
Aproveitou um momento em que ela estava distraída, junto das bancas, discutindo
o preço das laranjas. Voltou então para a tal barraca. Começou admirando os nuipils, os
tradicionais vestidos quadrangulares usados pelas mulheres indígenas, com seus bordados
coloridos, feitos à mão. Mas eram por demais espalhafatosos para uma senhora da idade
de Tereza. Havia também o quechquemitls, uma espécie de poncho, com a abertura para
a cabeça, que ela vira as mulheres dos rancheiros usando sobre as blusas. Examinou lindas
mantilhas de renda, colares de prata, brincos de filigrana e outras bijuterias típicas. Por fim,
calculando o que lhe restava de dinheiro, se decidiu por um quechquemitl tecido à mão, em
preto, vermelho e branco. Era bem discreto.
Pegou o embrulho e ficou no meio da rua, olhando em torno para encontrar um
guarda de trânsito que pudesse informar onde ficava a Rodoviária.
— Ei! Daphne! Daphne Thomas Reynolds! E você, não é?
A voz que a chamava pelo nome não era estranha. Olhando para o lado, viu um
rapaz alto, vestido de jeans e camiseta, com a cabeça coberta por um sombrero de palha.
Vinha andando em sua direção.
— Não se lembra mais de mim? — perguntou o rapaz, parando à sua frente. — Sou
a pessoa que a encontrou naquela noite, mais morta do que viva, e a levou de camioneta
até a sede do Rancho Fontaine. Sou Tom Hutton. Como vai você?

CAPÍTULO VII

Daphne olhou para aquele rosto, para a barba castanha, para os olhos muito azuis,
e por uma fração de segundo se transportou para aquela terrível noite em que quase perdeu
a vida.
— Sim, me lembro de você. — Sorriu e estendeu a mão, para cumprimentá-lo. —
Ainda está trabalhando nas escavações?
55
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Por enquanto não. Paramos ontem. O tempo estava por demais chuvoso e o local
virou um mar de lama... Eu e Diego Gutierez, o Dig, como o chamo, estamos a caminho da
Cidade do México. Acho que já lhe contei, nós dois somos arqueólogos do Instituto de
Antropologia e História, e viemos para cá, com um dos professores, para ajudar nas
pesquisas.
— Pode até ser que já tenha me contado, mas naquela noite eu não tinha a mínima
condição de entender qualquer coisa. Fiquei contente por ter me reconhecido e falado
comigo. Eu estava lhe devendo um agradecimento pelo que fez por mim. Se não fosse por
vocês... — Teve um estremecimento de horror.
— Teria virado carniça para os urubus — completou ele com um sorriso macabro.
— Depois de alguns dias, eu telefonei para o rancho para saber como você estava
passando. Seu marido me informou que sua recuperação estava sendo rápida. — Os olhos
azuis brilharam. — Ele me agradeceu em seu nome, mas devo confessar que não foi muito
amistoso comigo. Não permitiu que eu fosse visitá-la. Ele contou sobre o meu telefonema?
— Não, não contou.
Daphne franziu a testa. Estava intrigada. Por que razão Carlos não tinha dito nada
sobre o telefonema? Deveria saber que ela teria ficado satisfeita em receber a visita de um
jovem tão atencioso e agradável.
— Depois disso, pensava em você freqüentemente — continuou ele. — Não
compreendia como é que uma linda moça do País de Gales teria ido parar naquele fim de
mundo, em Veracruz. O que fez você se afastar de seu país de origem?
— É uma longa história — disse, evasiva, evitando encará-lo. — Por acaso, você
sabe onde fica a estação dos ônibus?
— Sei, sim. Se quiser, posso lhe dar uma carona até lá. A pé é uma boa caminhada.
A camioneta está estacionada do outro lado da praça. Venha, vamos atravessar agora que
tem pouco tráfego!
Segurou-a firmemente pelo cotovelo e ambos se apressaram em atravessar a rua.
Depois cruzaram a praça, cheia de canteiros floridos, até chegarem à camioneta.
— Dig está se despedindo da namorada — explicou Tom Hutton quando pôs o
veículo em movimento. — Ela ainda vai demorar um pouco. A moça é linda. Uma boneca.
Mora numa dessas casas antigas. — Lançou-lhe um olhar curioso. — Por que quer ir até a
rodoviária? Está planejando viajar?
— Sim. Pretendo ir hoje mesmo para a Cidade do México — respondeu Daphne.
Ele não fez comentários. Parecia muito atento na direção, levando o veículo por uma
rua estreita, pavimentada de pedras, que desembocava no setor moderno da cidade. Pouco
depois, enveredou por uma larga avenida até chegarem ao estacionamento de um edifício
com galerias, que era também um centro comercial.
— Os ônibus interestaduais saem daqui. As bilheterias são na galeria. Quer que a
acompanhe?
— Você não se incomoda? E que falo muito mal espanhol, e às vezes me atrapalho
quando falam comigo.
No guichê havia uma fila. Ela explicou a Tom o que queria, e ele se incumbiu de
servir de intérprete entre ela e o funcionário da empresa. Pelo visto, ela precisaria ir até
Tuxpan, e de lá fazer uma baldeação até a capital.

56
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Creio que não vai dar para fazer o trajeto todo num só dia — disse Tom. — O
ônibus para Tuxpan acabou de sair, e agora só haverá outro no fim da tarde. Você precisaria
pernoitar em Tuxpan e tomar o primeiro ônibus para a Cidade do México, no dia seguinte.
Como alternativa, também poderá ficar esta noite por aqui, e tomar o primeiro ônibus para
Tuxpan. São dez horas de viagem, no total: três horas até Tuxpan, e mais sete até a capital.
O que prefere fazer?
— Não sei ainda. Vou pensar um pouco.
— Pois bem. Enquanto pensa, por que não vamos tomar um cafezinho? — convidou
Tom, muito amável. — Tem um bar logo adiante.
Sentaram num bar de esquina, muito movimentado àquela hora, esperando serem
atendidos por um rapazinho indígena. Por algum tempo, ficaram em silêncio. Daphne
estava refletindo sobre o que fazer. Talvez fosse melhor voltar para o rancho com Carlos e
Tereza, e esperar pelas duas semanas quando então Carlos teria o dinheiro para pagá-la.
Talvez fosse melhor tomar o ônibus da tarde para Tuxpan. Passaria a noite lá, e, no outro
dia, seguiria para a Cidade do México.
— Como é? Vai me contar aquela longa história?
A pergunta de Tom dispersou seus pensamentos. Olhou para ele, achando que
aquele rapaz deveria ter quase a idade dela. Pelo tipo físico, poderiam passar por irmãos.
Mas apesar de não serem parentes, ela sentia que Tom tinha uma afeição sincera por ela.
Sentia que era uma pessoa amiga. Ele já a ajudara uma vez. Era alguém em quem poderia
confiar. Mas poderia confiar a ponto de lhe contar sua extravagante história? Mas é claro
que sim, pensou.
Desabafou tudo, desde o momento em que colidira com Carlos na festa de Elza, até
seu atual dilema de não poder suportar a vida ao lado dele por mais duas semanas. Só não
contou os detalhes mais íntimos.
Tom ouviu com atenção. Sua fisionomia passou por várias transformações, à medida
que a história prosseguia. Primeiro, pareceu não acreditar; depois se mostrou perplexo, e
até bastante irritado.
— Deus do céu! Isso é um absurdo! — exclamou quando ela terminou. — Oferecer
dinheiro para você bancar a esposa por um tempo, e depois faltar à palavra. Se eu fosse
você, ficaria insistindo, até que ele pague o que deve. Sabe, bem que desconfiei de que
havia algo estranho quando a encontrei daquele jeito, abandonada e ardendo de febre
naquela estrada que percorre a maior propriedade da região. Reynolds me pareceu tão frio
e esquisito quando telefonei querendo ir visitá-la! Era como se ele não quisesse que eu a
conhecesse. Não, você não pode ir embora sem levar o dinheiro. De uma forma ou de outra,
você fez um trabalho para ele, e merece o pagamento.
— Não creio que eu possa ficar — ela teimou. — Não agüentaria.
— Por que não? — Tom ergueu uma sobrancelha. Seus olhos se estreitaram. — Ah,
então é isso. Ele é um bruto, hein? Andou querendo tirar vantagem da situação?
— Oh, não — negou Daphne. — Não é assim! Ele... ele me fez a proposta de ser
sua mulher temporária porque eu estava com pouco dinheiro, numa situação ruim. E ele
precisava casar, para poder assumir o controle do rancho e transformar a propriedade em
ejidos. Na verdade, ele é uma boa pessoa que se preocupa com os outros.
— Não diga! — ironizou Tom. — Você tem tanta certeza?

57
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Tenho. Se ele não tivesse herdado o rancho, as terras continuariam naquele velho
esquema de parasitas, no estilo de Ana Maria Fontaine, e ninguém se beneficiaria, a não
ser ela.
— Certo, certo — disse Tom. — Já formei um quadro da situação. Apesar dele ter
enganado você quanto à questão do pagamento, você gosta desse homem, admira e
respeita. Só não consegue continuar por mais tempo como falsa esposa. Acertei?
— Acertou — ela confirmou.
Conforme deduzira. Tom tinha-lhe afeição e era compreensivo. Entendera o que ela
sentia por Carlos, sem que ela tivesse que entrar em pormenores.
— De início pensei que pudesse me meter nessa aventura e sair ilesa — continuou.
— Pensei que pudesse representar o papel sem maior envolvimento emocional. Mas me
enganei. Agora preciso ir embora, antes que perca minha capacidade de ação, e antes que
ele possa levantar o dinheiro para me pagar. E por isso que quero ir para a capital. Lá eu
poderia arranjar um emprego com mais facilidade.
— Que tipo de emprego?
— Cabeleireira. Eu sou diplomada.
— Quanto dinheiro você tem?
— Pouco — sentia algum remorso por ter gasto uma boa parte do seu pequeno
capital com o presente de Tereza. — Tenho uns setecentos pesos.
— Puxa! Não vai durar muito. — Tom fez uma longa pausa. Parecia meditar sobre a
situação. — Você trouxe consigo o dinheiro e o passaporte?
— Sim. Vim preparada para viajar. Andei pensando que eu poderia tomar o ônibus
da tarde para Tuxpan e passar a noite na própria Estação Rodoviária, esperando o ônibus
da manhã para a Cidade do México. Assim, economizaria o hotel.
— Tenho uma idéia melhor. — Tirou uma moeda do bolso do jeans e deu ao garçom.
— Você pode vir comigo e Dig. Há lugar suficiente na camioneta. Quando chegarmos à
capital, poderá ficar conosco no apartamento que dividimos.
— É muita bondade sua — disse Daphne indecisa. — Mas não creio que deva
aceitar.
— Pois eu acho que deve — disso Tom com firmeza. Debruçando-se sobre a
mesinha, a fitou, muito sério. — Se você pretende realmente se livrar desse envolvimento,
acho que deveria vir conosco. É sua grande chance. Você precisa de ajuda e não dispõe
de muito dinheiro. Posso ser útil em todos os sentidos. Falo espanhol, lhe ofereço uma
condução grátis, e disponho de um lugar onde você pode se hospedar até conseguir
emprego. Se não aproveitar esta oportunidade, só Deus sabe o que poderá lhe acontecer.
Você é capaz de tomar o ônibus errado, ou encontrar algum sujeito... alguém que queira
tirar vantagem de você, assim como fez Carlos Reynolds.
— Ele não fez isso! — retrucou Daphne. zangada. — Eu entrei nessa história, lúcida
e consciente do que estava fazendo. E, se casei com ele, foi para evitar que o coitado fosse
parar atrás das grades, acusado de um seqüestro que não tinha feito.
— Está bem — caçoou Tom. — Então, você vem comigo e Dig?
— Vou — confirmou ela. Sentia como se estivesse morrendo por dentro. — Mas
antes vou precisar voltar para a praça. Minha bagagem está no carro de Carlos. Além disso,
preciso me encontrar com ele para avisar que irei com vocês. Tínhamos combinado de
almoçar junto com a mãe dele no Ângelo, ao meio-dia e meia.
58
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Tudo bem. Vamos para lá — concordou Tom, levantando. — Já é meio-dia e vinte.


Daphne atravessou a praça a pé. Encontrou Carlos sentado no capo do carro,
conversando com um homem vestido de vaqueiro. Logo que a viu, se despediu do homem
e acenou para ela. Tereza ainda não tinha chegado.
— Acho que você acabou se perdendo de minha mãe — disse Carlos sorrindo. —
Era inevitável. Ela adora ficar pechinchando nesse mercado. Mas logo aparece. Que tal
irmos entrando no restaurante para pedir um aperitivo?
— Não, obrigada — recusou Daphne, quase sem respirar. — Eu... eu gostaria que
me desse a bagagem, por favor. Arrumei uma... uma carona até a Cidade do México. Tom
Hutton e seu amigo Diego vão me levar.
O rosto de Carlos estava um pouco escondido pela aba larga do chapéu, e parecia
que ele havia ficado subitamente pálido. Mas não se moveu. Daphne teve a leve esperança
de que talvez ele se recusasse a entregar a mala. Quem sabe lhe pedisse para ficar,
dissesse para voltarem juntos para o rancho.
Mas Carlos apenas sacudiu os ombros displicente e, tirando do bolso a chave do
carro, abriu o bagageiro e colocou a mala e a frasqueira aos pés dela.
— Você não perdeu tempo. Já encontrou outro protetor.
Cada uma daquelas palavras era como uma agulhada em seu coração. Daphne não
respondeu. Com os lábios trêmulos, as lágrimas surgindo nos olhos azuis, lhe entregou o
pacote do presente de Tereza.
— Por favor, dê isso à sua mãe... com todo o meu carinho — ela murmurou, vendo
aquelas mãos morenas segurarem o embrulho. — E explique tudo a ela.
— Claro que vou explicar. Vou lhe dizer que você me abandonou por outro homem.
Os olhos de Carlos brilharam, brincalhões. Porém os cantos de sua boca
denunciavam tristeza.
— Oh, não! Não faça isso! Ela vai pensar mal de mim!
— Mas é a pura verdade, não é? Você está indo embora com outro homem!
— Não porque o prefira a você. Vou embora com Tom porque é mais conveniente
para mim, já que você não deseja que eu fique por mais tempo do que o estritamente
necessário. Agora, você não precisa mais de uma falsa esposa. Já conseguiu o que tanto
queria. Adeus, Carlos. — Estendeu a mão para a despedida.
Ele não retribuiu. Apenas a olhou de forma fria e vaga, como se não a estivesse
enxergando.
Daphne levantou a mala, passou a frasqueira pelo ombro. Começava a atravessar a
rua, quando ouviu Carlos falando às suas costas.
— Adiós, querida. Faça-me saber o que está fazendo na Capital, e mande seu
endereço para que eu possa lhe remeter dinheiro!
— Não quero esse dinheiro! — ela gritou, irritada. — Por favor, não o mande, porque
não vou aceitá-lo!
Sem olhar para trás atravessou a rua, mal percebendo que obrigara um carro a frear
abruptamente para evitar atropelá-la.
Do outro lado da praça, Tom pegou a mala e a colocou na parte de trás da camioneta.
Ajudou-a a subir na cabina para que sentasse entre ele e Diego, que ia na direção.

59
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

O rapaz, um belo tipo latino, com a pele escura e os cabelos pretos encaracolados,
cumprimentou-a educadamente e lhe perguntou sobre a saúde. Deu a partida no motor.
Antes que saíssem da praça, Daphne olhou para trás, viu Tereza que chegava ao
Ângelo, muito afobada, com a sacola abarrotada de compras.
Pressupondo que ela estivesse triste com aquela partida. Tom e Diego começaram
a conversar animados. Falavam de suas vidas, seus estudos. Logo ela soube que os dois
rapazes estavam fazendo um curso de pós-graduação, uma especialização a respeito dos
índios americanos. Tinham especial interesse pelas raças que habitaram o México: astecas,
maias, e, antes deles, os olmecas, zapotecas, mixtecas e trascanos.
— Eles viveram nesta parte do continente há aproximadamente trinta mil anos —
disse Tom com entusiasmo. — Falavam mais de duzentos dialetos, originários de outras
cento e quarenta línguas, o que indica que pertenciam a inúmeras tribos diferentes.
— O que vocês estavam buscando naquelas escavações? — perguntou Daphne,
fazendo um esforço para se interessar pelo assunto. Sabia que se mantivesse uma
conversa agradável com eles, poderia se distrair da lembrança de Carlos, deixando de
imaginar o que teria acontecido se ela tivesse ficado no rancho.
— Ruínas de edificações, ferramentas e utensílios domésticos, usados naquele
tempo — esclareceu Diego. — E encontramos uma boa quantidade. Estudando e
analisando essas peças é que chegamos à conclusão de que o povo que ali vivia, no ano
2 900 a.C, era de caçadores e pescadores. Usavam canoas feitas de um só tronco e se
alimentavam de peixes, frutos do mar e carne de caça. Encontramos também peças de
cerâmica, de data mais recente. O lugar onde esses nômades viviam deve ter sido invadido
por uma tribo de plantadores de milho, possivelmente os olmecas. Estes se uniram, mais
tarde, aos maias e huastecos, os construtores de El Tajin.
— O que é isso? — quis saber Daphne.
— Era uma cidade situada num vale, entre dois rios importantes. Seus habitantes
controlavam o comércio da região. Mais tarde, se tornou um centro religioso, uma cidade
sagrada dos índios totonacs, os que ajudaram Hernán Cortez, o conquistador espanhol, a
combater os astecas.
—- Os totonacs ainda existem — disse Tom. — E eu não me surpreenderia que seu
mari... quero dizer, que Carlos Reynolds fosse descendente deles, por parte de mãe.
— Carlos me contou sobre o avô dele, Luiz Valdez, que era um zapatista que
combateu na revolução — comentou Daphne.
— Então está explicado! — exclamou Tom. — Está explicado o porquê de ele querer
tanto assumir o controle do Rancho Fontaine. Valdez era um mestiço, meio criollo, que
significa ter sangue espanhol, mas ser nascido no Novo Continente, ter sangue totonac.
Ele acreditava que as terras do México pertenciam aos aborígenes e não aos
imigrantes franceses, que se estabeleceram no Novo Mundo com a garantia de doarem aos
nativos grandes extensões de terras.
— Você foi cair num ninho de vespas, num dos feudos locais, ou, se preferir, numa
minirrevolução, liderada por uma matriarca, a senora Tereza Valdez Reynolds de
Fontaine... Espero ter colocado todos os sobrenomes na devida ordem.
— Talvez devêssemos mostrar El Tajin a Daphne — sugeriu Diego, quando a
camioneta saiu de Naulta e tomou a estrada do norte, rumo a Papantla. — Talvez ela nunca
mais tenha oportunidade de passar por aqui.

60
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Boa idéia — concordou Tom. — Eu bem que gostaria de ver novamente O Templo
dos Nichos, e, pensando bem, não precisaríamos nos desviar muito da rota. Você está
interessada, Daphne?
— Sim, claro que estou.
As palavras de Diego, tão inocentes, tinham despertado nela uma imensa saudade
daquelas poucas horas que passara em Taxco, com Carlos. "Talvez nem eu nem você
possamos passar outra vez por aqui. Acho que deveríamos aproveitar a oportunidade para
conhecer a cidade", tinha dito Carlos, a partir daí ela se apaixonara perdidamente por ele.
Não hesitara em casar com ele, uma hora depois.
Então, por que não havia ficado a seu lado? Por que não esperara, no rancho, até
ele fazer o pagamento, conforme Tom sugerira de início? Seria porque tinha chegado à
conclusão de que Carlos não a amava? Sim, porque se amasse teria tentado retê-la,
quando ela lhe pedira a mala, em Micatepec.
Mas o que poderia ter feito ele? Raptá-la na garupa de um cavalo e sair a pleno
galope, como os heróis dos faroestes americanos?
Sorriu com ironia, caçoando de sua imaginação romântica. Esse tipo de
comportamento pertencia ao passado, tanto no México como nos Estados Unidos. Hoje em
dia, ninguém mais agia dessa forma. Só nos romances de folhetim aconteciam essas
coisas, e Carlos, positivamente, não era nada romântico. Já tivera ocasião de comprovar
isso várias vezes. Talvez nunca tivesse tido tempo para sentir a tão vulgar emoção descrita
como estar apaixonado. Talvez nunca tivesse experimentado essa sensação, apesar de ter
afirmado "gostar de mulheres", e "gostar de fazer amor".
Faria o possível para esquecê-lo. Precisava colocar um ponto final naquela louca
aventura, pôr a cabeça no lugar e procurar um trabalho normal na Cidade do México. As
coisas entrariam nos eixos com o tempo, e ela teria dois novos amigos para ajudá-la.
Passada uma hora, já estavam entrando na adormecida cidadezinha de Papantla.
Pouco depois, a camioneta pegava uma estreita estrada de terra que levava até às famosas
ruínas de El Tajin.
Foram diretamente ao templo, uma pirâmide com cento e sessenta e cinco nichos
distribuídos em fileiras pelos degraus que levavam ao topo. Tom explicou que aquele era
um monumento dedicado à chuva e ao vento, as duas divindades principais da religião
Tajin, seguida pelos totonacs.
— Esse templo deve ter sido reservado para as cerimônias fúnebres de homens de
alta posição social. Eles costumavam fazer sacrifícios humanos aos deuses, nas quadras
onde jogavam a pelota, sob o efeito do pulque, um licor alcoólico, fermentado. El Tajin tinha,
pelo menos, dez dessas quadras de jogo.
— Quadras de tênis? — perguntou, ingênua, Daphne. Já estava começando a sofrer
uma indigestão cultural por ouvir tanta História em tão pouco tempo.
— Não! — Diego riu. — O jogo era praticado com bolas maciças atiradas de uma
extremidade a outra da quadra com a ajuda de ossos grandes do esqueleto humano, no
lugar de bastões; parece que com o fêmur. Era um jogo muito perigoso e os competidores
se arriscavam a ter suas cabeças decepadas. Mas, às tantas, o ritual do pulque se tornava
mais importante do que o jogo da pelota.
— Por quê?

61
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— A finalidade do ritual era atrair as chuvas. Bebia-se tal licor, que provocava visões
depois da morte e dos deuses das trevas. O deus da chuva é também o deus do pulque,
porque sem a chuva não cresce o maguey, planta com que se faz a bebida.
Passearam pelas ruínas por mais de uma hora, até o entardecer. Depois foram
apreciar, juntamente com outros turistas, o espetáculo de um grupo de voladores. Eram
índios totonacs que praticavam um ritual seguido há mais de mil anos.
No alto de um largo poste de madeira de uns 30 metros de altura, os tocatines, os
tais homens voadores, se jogavam no espaço, presos apenas por uma corda que ia se
desenrolando, até que eles ficavam livres no ar, girando em torno do poste. Acompanhava-
os uma música folclórica, tocada por flautistas reunidos na exígua plataforma que se
equilibrava no topo do poste.
Olhando aquelas esbeltas figuras de bronze fazendo acrobacias no ar, e ouvindo a
música das flautas, Daphne se sentiu transportada através do tempo para um mundo pagão
de estranhas crenças e beleza primitiva.
Mas o mundo moderno logo retomou seu lugar no panorama, quando eles deixaram
as ruínas de El Tajin e se dirigiram para Poza Rica, onde uma indústria de aço lançava
fumaça pelas altas chaminés, poluindo a atmosfera.
Com a chegada da noite, o restante do trajeto até a capital se tornou monótono e
cansativo. Pararam apenas para comer num restaurante de beira de estrada, onde
encheram o tanque de gasolina e se revezaram na direção.
Daphne estava cochilando quando chegaram à Cidade do México. Só acordou
quando o veículo finalmente parou.
Olhando para cima, viu fileiras de quadrados iluminados, e só depois de um instante
é que se deu conta de que eram as janelas de altos edifícios de apartamentos.
Pouco depois já estava dentro de um deles, no décimo quinto andar de um prédio,
apreciando a vista noturna da cidade que parecia um gigante de duas cabeças, dividida ao
meio pelo lago Texcoco.
O apartamento era simples, mas bem mobiliado, com sala e dois dormitórios. Tom
cedeu seu quarto a Daphne, dizendo que dormiria no sofá da sala.
Nos dias que se seguiram, com a ajuda dos dois rapazes, Daphne aprendeu a se
virar naquela cidade vibrante e confusa, onde os arranha-céus se misturavam às belas
igrejas barrocas que estavam localizadas a poucos passos de ruínas astecas. Era
realmente uma cidade de três culturas. A asteca, a espanhola, e a mistura de ambas, ou
seja. a mestiça, que representava os mexicanos da atualidade.
O tráfego era intenso. Viam-se pelas ruas mulheres indígenas que vendiam lenços
coloridos, muitas vezes à porta das melhores lojas comerciais. Elegantes restaurantes
internacionais, na Zona Rosa, funcionavam lado a lado, com as cafeterias tipo self-service,
onde os mais pobres iam saborear seus tradicionais tacos.
Uma grande parte do povo usava os ônibus urbanos, enquanto outros preferiam o
moderno sistema do metrô. Daphne logo descobriu que esse era o melhor meio de
transporte para ir a Avenida de la Revolución, onde morava com Tom e Diego, até Pino
Suarez, perto da praça principal, no coração da cidade.
Foi numa das ruas transversais dessa praça que ela acabou encontrando um
emprego, num salão de beleza. O instituto atendia uma freguesia de mulheres de norte-
americanos radicados no México. Os proprietários não se importaram com o fato dela só
falar inglês. O que importava é que ela era competente e rápida, já que o salão vivia repleto.
62
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

O horário era longo e o salário modesto. Demoraria um bom tempo até que ela
pudesse juntar dinheiro suficiente para a passagem de volta.
Talvez nem voltasse mais para a Grã-Bretanha, pensou um dia, ao sair do salão
depois do expediente, indo tomar o metrô na estação de Pino Suarez. Passou pela antiga
Catedral Colonial, onde numa placa estava escrito: "Neste local se deu o histórico encontro
entre Montezuma, o Senhor do México, e o conquistador Hernán Cortez, 1519."
Agora, já tinha até encontrado um lugar fixo para morar. Dividia um pequeno
apartamento com Sandra, uma moça canadense, que era namorada de Tom. Ela também
estudava no Instituto de Antropologia. Já fazia três semanas que morava com Sandra, e
havia passado um mês, desde que deixara Carlos.
Embalada pelo balanço do metrô, Daphne voltou seu pensamento para a praça de
Micatepec. Ouvia então a voz de Carlos pedindo: "Mande seu endereço, para que eu possa
lhe remeter o dinheiro".
Ela não tinha mandado o endereço, apesar de muitas vezes ter sentido a tentação
de lhe escrever para contar como havia conseguido se organizar bem sem a ajuda dele.
Não mandara o endereço principalmente porque não queria receber aquele dinheiro.
Preferia cortar qualquer laço que ainda a prendesse a ele, e sair de tudo aquilo de cabeça
erguida, esquecendo o quanto fora tola e inconseqüente por ter se apaixonado por aquele
homem.
Mas estava sendo difícil apagar Carlos da memória. Freqüentemente ficava
imaginando o que ele estaria fazendo naquele momento. E, para seu próprio espanto,
muitas vezes desejara poder estar no rancho, olhando para aquelas pastagens sem fim,
para as longínquas montanhas, apreciando a bela coloração do sol poente, ouvindo as
cigarras, os grilos, e os acordes da guitarra de José, ansiosa para que Carlos chegasse
logo do trabalho.
Quando entrou no pequeno apartamento Sandra ainda não tinha chegado. Devia
estar na biblioteca do Instituto.
Foi para a cozinha fazer seu jantar. Estava preparando um molho para macarronada,
quando ouviu baterem à porta. Limpou as mãos no pano de copa e foi atender, certa de
que era Tom.
Quando abriu, ficou olhando, atônita, para o homem que esperava no corredor. Ele
usava um terno de alpaca cor de chumbo, uma camisa cinzenta e uma gravata vermelha.
Na mão, trazia um sombrero e olhava para ela, fixamente, os olhos negros e sombrios.

CAPITULO VIII

O primeiro impulso de Daphne foi se atirar em seus braços. Abraçou-o com muito
carinho. Mas os olhos de Carlos estavam frios e severos. O rosto se mantinha fechado, e
a boca sem nenhum sorriso. Todo o seu entusiasmo desapareceu. Ficou imóvel e levantou
o queixo, orgulhosa.

63
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Alô — cumprimentou, com frieza. — Não quer entrar? Como descobriu meu
endereço?
Carlos entrou e ela fechou a porta. Eles se entreolharam. Ele parecia o mesmo,
sempre série e introvertido, com aquele ar enigmático de quem oculta algum segredo.
— Fui até o Instituto de Antropologia e procurei por Tom Hutton. Ele me informou
que você estava morando aqui, junto com a namorada dele. Por que não me escreveu,
conforme lhe pedi?
— Esqueci — mentiu ela. — Andei muito ocupada com meu novo trabalho e acabei
esquecendo.
Ele pareceu não acreditar. Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um envelope que
estendeu para ela.
— Aqui está. E o equivalente a dez mil libras, em pesos mexicanos. Aconselho que
amanhã mesmo abra uma conta num banco e deposite o dinheiro. Agora, poderá parar de
trabalhar e, quando quiser, poderá comprar sua passagem de volta para a Inglaterra.
Daphne olhou para aquele envelope, sentindo um calafrio. Desde que ela aceitasse
o dinheiro e a dívida fosse saldada, ele iria embora para sempre. Sairia definitivamente de
sua vida e a esqueceria, da mesma forma como ela tentara esquecê-lo nas últimas
semanas, sem sucesso. Mas ele conseguiria, porque não havia sentimentos para
atrapalhar. Carlos sempre se resguardara de maiores envolvimentos emocionais.
— Agradeço muito, Carlos, mas não quero esse dinheiro — disse ela, decidida.
— Você precisa aceitar. Concordou em ser minha esposa temporária em troca de
um pagamento, e eu gosto de cumprir minhas obrigações.
— Não casei com você por dinheiro. Casei porque... porque... — sua voz falhou. Não
estava mais conseguindo controlar suas emoções. — Oh, você sabe muito bem por que
casei! Eles iam trancá-lo na cadeia se eu não tivesse feito isso, e eu não queria que o
prendessem. Gostava muito de você para permitir que acontecesse uma barbaridade
dessas. Enfim, eu... eu não casei porque você me ofereceu dinheiro, mas porque gostava
de você e... e... ainda gosto — desabafou, trêmula. Sentia a emoção dominá-la, e preferiu
então se calar.
Carlos não disse nada. Olhou-o, tentando perceber se ele compreendera sua
posição. Mas ele a fitava com tal expressão de descrédito, que acabou se irritando.
— Oh, você não acredita em mim!
— Diós!
Carlos virou-se de costas para ela e jogou o envelope sobre o sofá. Ao se voltar, lhe
lançou um olhar gélido.
— Você está certa. De fato eu não acredito em você. E deveria se sentir feliz por eu
não acreditar. Seu dinheiro está entregue. Pode voltar para a sua terra imediatamente. Eu
me encarregarei da anulação do casamento. Adiós.
Girou sobre os calcanhares e se encaminhou para a saída.
Daphne sentia-se irritada e frustrada. Correu para a porta e se colocou no caminho
dele. Carlos perguntou:
— O que é que há, dessa vez?
A impaciência dele conseguiu tirar Daphne do sério.

64
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Oh, você... seu... Oh, você é o mais arrogante, mais teimoso, mais cruel dos
homens que já conheci! — explodiu, no auge da raiva.
— E daí? — Ergueu os ombros com indiferença. — Saia dessa porta e me deixe
passar. Agradeça à sua boa estrela por este relacionamento ter chegado ao fim. — Deu
mais um passo à frente.
— Agora, me dá licença?
— Não. Não dou licença alguma! Você vai ter que me ouvir. Quero que saiba o que
penso a respeito desse tal relacionamento. Não quero que o capítulo final seja este. — Se
aproximou dele e passou os braços pela abertura do paletó, insinuante e sedutora. — Não
quero que o casamento seja anulado. Pelo contrário, quero que dure para sempre.
— Você não sabe o que está dizendo! — ele falou, arrogante. — Desde o começo,
eu a preveni de que não haveria romance, que tudo não passaria de um mero contrato
comercial, um contrato com data de vencimento.
— Eu sei, mas não funcionou. Quero continuar casada com você, ser sua esposa de
verdade, viver a seu lado, ter filhos seus...
— Não!
Ele a interrompeu, e começou a andar de um lado para outro da sala, parecia uma
fera enjaulada. De repente, parou junto dela, a fisionomia um pouco mais tranqüila. Seu
olhar tinha um brilho de compaixão, quando disse:
— Pensei que tivesse ficado claro, quando me encontrou pela última vez, que eu
não era o homem certo para você, que não pretendia torná-la minha verdadeira esposa.
Essa foi a razão porque você, afinal, acabou indo embora com Hutton.
— Sim, eu fiz isso. Mas àquela altura já era tarde demais. O dano tinha sido
irreparável. Eu já tinha me apaixonado por você, e ainda estou apaixonada!
— Santo Deus! — Carlos recomeçou o seu passeio inquieto pela sala. Despenteava
os cabelos com os dedos nervosos. — Apaixonada! Apaixonada! — repetia aquela palavra
como se fosse um impropério. — Que diabo significa estar apaixonada? E como você pode
dizer que está apaixonada por um homem que há pouco classificou como arrogante,
teimoso e cruel? — Ele a fuzilou com o olhar.
— Oh, eu disse isso porque estava furiosa! Você não queria acreditar em mim, não
queria acreditar que eu gosto de você. Eu precisava fazer com que você me ouvisse. Você
só quer que eu o ouça, mas nunca quer me ouvir. De fato, você age com arrogância quando
não leva em consideração os sentimentos alheios. E é teimoso quando não quer acreditar
no que lhe digo. E esta sendo cruel consigo mesmo, pela maneira como se protege contra
o amor.
A princípio os olhos negros se mostraram surpresos, mas logo tornaram a fitá-la
cheios de desconfiança.
— Você só diz tolices... um monte de bobagens românticas. Como a maioria das
mulheres, você criou ilusões em sua imaginação. Criou uma imagem falsa de um homem.
Fez dele um herói. E depois afirma que se apaixonou por esse ídolo irreal. — Fez uma
pausa. A expressão zombeteira deu lugar a uma fisionomia sombria. — Não quero que
você se apaixone por mim. Não sou o tipo de homem para você se apaixonar. Sou bem
mais velho do que você. e...
— Mais velho? Só onze ou doze anos. Grande coisa!
— E já fiz muita coisa na vida que você não aprovaria.
65
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Estou lá ligando para o que você fez na vida, antes de me conhecer? Ora, o que
me importa é o que você fez depois!
— Sou um sujeito duro, vivido, quase insensível. Tive outras mulheres. E, alguns
anos atrás, quando eu morava no Novo México, casei com uma delas.
— O quê? — Essa notícia inesperada realmente a chocou — E o que aconteceu com
ela?
— Abandonou-me depois de seis meses de casada. Não se acostumou a viver
isolada numa fazenda, a muitos quilômetros de distância da cidade mais próxima. Ficava
sem saber o que fazer o dia inteiro, e exigia minha presença constante. Tal como você. Ela
criou ilusões a meu respeito, e como não correspondi às expectativas, acabou me deixando.
— É que ela não o amava — argumentou Daphne. — Se o amasse de verdade, teria
encontrado uma maneira de se ocupar durante sua ausência. Poderia ter construído uma
vida própria, mesmo estando casada com você. Não sou como ela. Você tem que parar de
pensar que comigo vai ser a mesma coisa quando eu for viver com você.
— Acontece que você não vai viver comigo — ele retrucou. — Você não foi feita para
morar num rancho, suportar aquele clima. — Suspirou. — Lembre-se do que lhe aconteceu
quando saiu a cavalo com Ana Maria? Quase morreu! — Baixou os olhos para o chapéu
que trazia na mão. — O melhor é terminar tudo agora, querida, antes que você se
machuque demais.
— Já sei o que quer dizer isso — disse Daphne.
Estavam tão próximos um do outro que ela podia sentir seu cheiro, ouvir-lhe a
respiração, perceber as radiações de calor que emanavam de seu corpo. Aquele desejo
irrefreável começou a tomar conta dela. Como ansiava tocá-lo, ser tocada, deixar-se
queimar pelas chamas ardentes da paixão!
— O que você quis dizer com isso? — Carlos perguntou.
— Querida. Significa o mesmo que meu amor, em inglês, e não entendo por que
você me chama assim, já que não me ama.
Tornou a abraçá-lo, erguendo o rosto e lhe oferecendo os lábios.
— Pare com isso! Pare de tentar me seduzir! — Com uma expressão de desprezo,
completou. — Agora preciso ir. Tenho um compromisso para o jantar.
— Com uma mulher?
O ciúme a envolveu de tal forma, chegando quase a sufocá-la.
— Si, uma mulher — ele repetiu, impiedoso. — Volte para a Inglaterra, Daphne.
Esqueça tudo o que aconteceu aqui. Case com alguém de seu próprio meio, alguém como
Tom Hutton.
— Mas eu não quero casar com alguém como Tom Hutton — protestou, raivosa. —
Oh, por que não tenta me entender? Por que vive me rejeitando? Você não gosta de mim?
— Gosto. Gosto tanto que não quero que dê esse passo errado, voltando para o
rancho e indo viver a meu lado. — Abriu a porta da rua e fez um gesto, indicando o envelope
que largara no sofá — Esse dinheiro salda seu compromisso para comigo. O que você
devia ter feito por mim, já fez. Agora, pegue o dinheiro e dê o fora. Adeus!
— Carlos, ouça, por favor!
Foi chegando para perto dele, sentindo que poderia derrubar-lhe as defesas se
conseguisse lhe dar ao menos um beijo.
66
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— Não!
Essa foi a última palavra que ela ouviu, antes que a porta batesse.
Ele tinha preferido ir embora, e jantar com outra mulher, em vez de ficar com ela.
Daphne estava louca de ciúmes. Mas não havia mais nada o que fazer. Por que se
atormentar desse jeito? O melhor era esquecer tudo, como ele sugerira, voltar para o País
de Gales, e procurar outro homem de seu próprio meio. Oh, não! Todo o seu ser se revoltou
àquela idéia. Nunca pensara em casar por casar, só para dizer que era uma mulher casada.
E, afinal, ela era casada com Carlos, e pretendia continuar assim, mesmo depois de tudo o
que ele dissera sobre sua vida passada.
Outra de suas pretensões era montar seu próprio instituto de beleza. Deu uma
olhada para o envelope sobre o sofá. Tomou coragem e foi buscá-lo. Começou a imaginar
onde Carlos tinha arrumado tanto dinheiro. Teria pedido um empréstimo? Teria feito alguma
dívida com um banco? Essa era uma pergunta que ela deveria ter feito, em vez de perder
tempo tentando convencê-Io de seus sentimentos. Se não soubesse a origem daquele
dinheiro, não poderia usá-lo. Oh, havia tantas questões que tinham ficado sem respostas.
Sobre a mãe dele, sobre o rancho... e todas ficariam no ar se ela não pudesse mais vê-lo.
Colocou o pesado envelope na bolsa e voltou para a cozinha, a fim de terminar de
fazer o molho para o espaguete. Mas, enquanto lidava com os ingredientes, não parava de
pensar.
Em que lugar haveria de montar o salão? No País de Gales?
Enquanto o molho de tomate fervia na panela. Daphne começou a recordar o
momento em que tinha visto, pela primeira vez, os vastos e agrestes pastos e campinas da
região tropical onde estava situado o Rancho Fontaine. Pouco a pouco, fora admitindo que
não desejava mais voltar para a Grã-Bretanha. Nada mais a prendia lá. Não havia ninguém
querido à sua espera quando voltasse.
E então? Onde montaria o instituto de beleza?
Aqui, na Cidade do México? A resposta veio rápida. Já existiam salões demais na
capital. A concorrência era já muito grande. De fato, ela não rejeitaria viver numa metrópole
movimentada, mas também ali não havia ninguém que lhe fosse caro, que a prendesse.
Então, para onde ir?
Como um flash, apareceu diante de seus olhos um pequeno mas bem organizado
salão de cabeleireiro que Tereza havia lhe mostrado em Micatepec. Era o único da cidade,
tinha dito Tereza, e por causa do grande movimento, se tornava difícil marcar uma hora.
"Você poderia ganhar um bom dinheiro na sua profissão", insinuara a mãe de Carlos,
naquela ocasião.
Mas Daphne não parará para pensar. Estava por demais preocupada com seu
propósito de deixar Carlos, antes que perdesse a coragem de levar isso adiante.
Passou o espaguete pelo escorredor e o colocou num prato fundo.
Como Carlos se esforçara para mantê-la a distância. Tentara até mesmo manchar
sua própria imagem, evidenciando todas as suas falhas e defeitos. Aquela história do
fracassado casamento havia sido contada para desanimá-la. Explicava bem qual era a
posição de Carlos diante das mulheres e do casamento. Quando a primeira esposa o
abandonou, pensou Daphne, ele deveria ter sofrido bastante. Certamente agora temia sair
novamente ferido. Era isso. Tinha medo de permitir que outra mulher compartilhasse de
sua privacidade, de sua vida íntima, pois já conhecia o gosto amargo da desilusão, a dor

67
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

de um abandono. E também não queria que ela sofresse o mesmo, pois, como dissera,
gostava dela e não pretendia feri-la.
Olhou para o prato fundo, à sua frente, os pensamentos tão emaranhados quanto os
fios daquele espaguete.
O que faria? Como poderia convencer Carlos de que amor e casamento podiam
fazer uma dupla harmoniosa, gratificante e satisfatória? Só estando a seu lado, vivendo
com ele, não somente por uma semana, um mês, mas por toda a vida, provando a cada
minuto o seu ponto de vista. Mas como poderia viver com ele, se Carlos continuava a rejeitá-
la?
Pegou no garfo e começou a comer. Esforçava-se por pensar sobre o projeto do
instituto de beleza. Havia uma loja para alugar dentro da galeria do Centro Comercial de
Micatepec, perto da Estação Rodoviária. Era um ponto bom. Mas para abrir um negócio,
ela precisaria ter o apoio de alguém que tivesse um bom tino comercial, alguém que tivesse
nascido no país. Havia somente uma pessoa assim. E não era Carlos.
Precisava entrar em contato com Tereza Fontaine o mais rápido possível.
Depois de ter tomado essa decisão, não mudou mais de idéia. Na semana seguinte,
pediu demissão de seu emprego, se despediu de Tom, de Diego e Sandra, e tomou um
ônibus para Tuxpan, de onde faria a baldeação para Micatepec, rumo ao rancho Fontaine.
A viagem foi longa e exaustiva. Chegou ao Centro Comercial, onde tinha tomado
café com Tom. Sua cabeça latejava e ela estava completamente desanimada. Devia ter
chovido o dia todo. Daphne precisou oferecer o dobro do dinheiro da corrida para que o
motorista do táxi se dispusesse levá-la até o rancho, pois ela dizia que acabariam atolando
no atalho lamacento.
O ar estava pesado e úmido. Sufocava. Quando começaram a atravessar aquela
terreno interminável, cheio de poças de água, ela olhou para as nuvens carregadas no céu,
tão ameaçadoras, e se lembrou das palavras de Ana Maria. "No verão, o calor aqui é
insuportável e as chuvas são torrenciais. Quando chegar o verão, você não vai agüentar.
Vai abandonar Carlos e pedir o divórcio."
Bem, chegara o fim de maio, era quase verão no México, e ela estava de volta, sem
a menor intenção de se divorciar de Carlos. Ao contrário; viera para o rancho com a
esperança de suspender qualquer providência que ele pudesse estar tomando para anular
o casamento.
Felizmente, o táxi venceu todos os obstáculos e eles não ficaram atolados.
Chegaram sãos e salvos no pátio em frente à velha casa da sede. Tinha recomeçado a
chover.
O prédio da frente estava silencioso, as janelas fechadas. Não havia nenhuma luz,
a não ser a dos faróis do táxi.
Daphne contou os pesos e pagou o motorista. Tremia de ansiedade. Nesse
momento, a porta da frente se abriu e uma figura morena apareceu na soleira.
— Senõra Reynolds! — exclamou José Valdez, com ar de espanto — Por que não
mandou avisar que viria hoje? Poderíamos ter mandado alguém à cidade para apanhá-la.
— É que eu não tinha muita certeza... Quero dizer, só hoje de manhã é que resolvi
viajar, e não deu tempo para avisar ninguém — justificou Daphne, saindo do carro debaixo
da chuva.
Resmungando, o motorista desceu para abrir o porta-malas.

68
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

— A senhora Fontaine está em casa? — perguntou ela a José. Estranhava aquela


escuridão total.
— Não. Ela não mora mais aqui. Carlos não lhe contou? Resolveu ir morar na vila
onde nasceu. Não há mais ninguém na casa. Ela será demolida e se construirá uma nova.
— Oh, não! Uma casa tão bonita!
— Já estava em decadência, caindo aos pedaços, assim como a família que viveu
nela — disse José. — Mas a senora está se molhando toda! Vá para o bangalô. Carlos está
lá, e vai ficar contente em vê-la.
— Eu... eu não tenho tanta certeza — disse ela hesitante. Afastou os cabelos
molhados do rosto e sentiu que os sapatos estavam ficando encharcados.
— Pois eu tenho — insistiu José. — Desde que a senora foi embora, há um mês,
está muito difícil trabalhar com ele. Anda mal-humorado, nervoso, como se estivesse
sofrendo muito.
José lhe enviou um largo sorriso encorajador. Depois, vendo que o táxi não
conseguia se mover, as rodas derrapando, correu para junto da janela do motorista.
— Ei amigo, que pasa?
Vendo que a mala também estava ficando encharcada de água, Daphne a
suspendeu pela alça e começou a andar na direção do bangalô. A chuva torrencial batia
sobre o telhado de zinco, produzindo um som muito familiar. Subiu os degraus da varanda
e parou, indecisa, na soleira da porta.
Não era assim que tinha programado o encontro com Carlos. Planejara tornar a vê-
lo na presença da mãe dele, quanto então lhe comunicaria que estava inaugurando seu
salão de beleza no centro da cidade. Esperava reencontrá-lo em igualdade de condições,
se apresentando como uma mulher de negócios, capaz de se sustentar, e ainda querendo
viver ao lado dele, como esposa.
Não queria ter chegado como uma pobre órfã, procurando abrigo em meio à
tempestade, mendigando um canto para passar a noite. Mas que outra coisa poderia fazer?
Abriu a porta da forma mais discreta possível, e depositou a mala no chão. Mas seus
sapatos molhados chiaram quando ela deu os primeiros passos na sala.
Carlos estava sentado junto à mesa, escrevendo. As costas retas, o perfil aquilino
arrogante, toda a sua postura fez Daphne pensar que nunca ele parecera tão impenetrável
e distante.
— Alô, Carlos — ela o saudou, com timidez. — Eu... eu vim para... para ver sua mãe,
mas José disse que ela não mora mais aqui. Ele também disse que eu viesse até o bangalô
e... — Sua voz sumiu, pois Carlos nem sequer se virou. Permaneceu olhando fixamente
para o papel em cima da mesa.
Passaram-se alguns minutos de silêncio. Então ele foi se virando lentamente, a testa
franzida, o olhar curioso ao vê-la daquele jeito, ensopada da cabeça aos pés.
— Como chegou até aqui?
— De ônibus e de táxi.
— Por que veio?
— Já lhe disse. Queria ver sua mãe. Pensei que ela pudesse me ajudar, dando
alguma orientação para a abertura do meu instituto de beleza em Micatepec.

69
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Carlos pareceu ter tomado um choque.


— Eu lhe disse para voltar à Inglaterra. Pensei que a esta altura já tivesse partido.
Que diabo veio fazer aqui? Isto não é lugar para você!
— Não concordo — ela retrucou firme. — Já decidi que não quero voltar para o País
de Gales. Também decidi que vou abrir um instituto na cidade. Assim, poderei ficar mais
perto de onde você mora e trabalha. Voltei para viver a seu lado. Cheguei à conclusão de
que nunca deveria ter me afastado daqui. Eu deveria ter ficado, e assumido as
conseqüências de morar na mesma casa com você.
Daphne foi andando devagarinho para perto dele, e parou bem a seu lado. Olhou
para os cabelos dele, despenteados. Com dedos inseguros, penteou-os para trás, notando
que alguns fios brancos se destacavam naquela cabeleira castanha.
Com um olhar ameaçador, ele afastou a mão que o acariciava.
— Então, você veio para arcar com as conseqüências, hein? Sua louca impulsiva!
E num impulso ainda maior do que aquele que acusava nela, se pôs de pé e a puxou
para si. Buscou seus lábios, esmagando-lhe a boca com um beijo tão feroz que mais parecia
uma punição.
Daphne se entregou àquele castigo como se não tivesse mais vontade própria.
Sufocada pelo abraço e pelos beijos massacrantes, não conseguia respirar, quanto mais
dizer que estava feliz por ter voltado.
Carlos parou de beijá-la, mas não a soltou. Pressionava ainda mais seu corpo de
encontro ao dela.
— Dios! Se você soubesse quanta falta me fez, querida! Vê o que você faz comigo?
O quanto a quero, o quanto você me excita? Você acha que vai também assumir essa
conseqüência, quando estivermos juntos, na mesma cama?
— Sim, sim, eu vou — ela sussurrou junto ao seu ouvido, envolvendo-o pelo
pescoço. — Beije-me, Carlos! Beije-me mais e mais! Beije-me a noite inteira para que eu
possa provar o quanto o amo!
Ele esfregou a rigidez de seu músculo viril de encontro às carnes macias do ventre
de Daphne, e murmurou ofegante:
— Antes, você vai tomar um bom banho quente e se recuperar do cansaço da
viagem. — Afastou-lhe uma mecha de cabelos molhados da testa. — Depois, vou carregá-
la para a cama e lhe ensinar os segredos do amor, durante a noite inteira, se você quiser.
O beijo que se seguiu foi terno e sensual, permitindo que ela correspondesse. Logo
eles estavam novamente um nos braços do outro, sufocados por uma paixão crescente que
lhes soltava todas as amarras e repressões.
De repente, Carlos a repeliu bruscamente.
— Que pasa? — perguntou, olhando para outro lado da sala, onde José estava
parado, olhando a cena com ar malicioso.
— Precisamos de sua ajuda. Aquele maldito táxi ficou atolado no barro.
Carlos olhou desconsolado para Daphne.
— Você vai ter de me desculpar! Vá tomando seu banho, que logo estarei de volta.
Ela já tinha deitado, e caído na cama sonolenta, quando finalmente ele voltou.
Deslizou por baixo dos lençóis, mas dessa vez não procurou manter distância. Logo ela

70
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

sentiu aquelas mãos rudes procurando seus seios, percorrendo todos os espaços de seu
corpo por baixo da camisola, infligindo deliciosas torturas, até que toda sua carne começou
a doer de desejo e prazer.
No auge da excitação, ele tornou a se afastar dela e perguntou:
— Você tem certeza? Quer ir até o fim?
— Tenho — ela respondeu num gemido e se aconchegou novamente junto a ele. —
Eu o amo! Quero você inteiro! Foi por isso que voltei. Para estar sempre ao seu lado, para
ser sua!
— Então, que assim seja! Não consigo mais resistir a você, minha teimosa!
A princípio ela sentiu dor, mas depois pareceu que estava escalando uma montanha.
Arquejante, chegou ao gozo total e, após uma breve pausa, recomeçou todo o prazer.
Sentia como se estivesse flutuando no ar, rodando, rodando, como aqueles índios
voladores, para em seguida voltar à terra, numa queda vertiginosa, gemendo e suspirando.
Naqueles minutos que esteve nos braços de Carlos, recebendo o que tanto desejara
dele, soube o que era a liberdade. E durante quase toda a noite, por várias vezes, voltou a
experimentar essa sensação. Por fim, já exausta, adormeceu.
Só foi acordar na manhã seguinte, aninhada junto àquele corpo moreno que tantos
prazeres lhe havia proporcionado. Um sorriso aflorou em seus lábios. Quando Carlos abriu
os olhos, a fitou e sorriu:
— Como está usted?
— Perfectamente. — Espreguiçou-se com a languidez de quem se sente realizada.
— Y usted?
— Muy bien. Ótimo! Vejo que seu espanhol progrediu muito!
— Obrigada
Daphne se virou de bruços e começou a lhe analisar as feições, procurando
evidências de paixão, mas só encontrou a habitual sisudez.
— Afinal, você está contente por eu ter voltado? — Quis saber, para se sentir segura.
Não se satisfaria somente com o prazer físico. Desejava que ele dissesse que a amava,
que precisava dela.
— Si. Estou contente — respondeu Carlos. Virou-se de costas para ela, a fim de fugir
àquele exame.
— E vai cancelar o pedido de anulação?
Fez-se um silêncio, e Daphne ficou apreensiva. Por fim, ele murmurou, baixinho:
— Se é isso que você quer...
— E o que eu quero sim! — E se ergueu sobre os cotovelos, para poder vê-lo melhor.
Sentia-se próxima da posse total.
Carlos seria dela, finalmente amava aquele homem tão atraente, de tipo latino, com
aqueles olhos negros e misteriosos, um homem no verdadeiro sentido da palavra. Forte,
potente, e mesmo assim tão fechado, escondendo sempre seus sentimentos, protegendo
seu coração contra a invasão do amor... Como poderia persuadi-lo a se abrir, a permitir que
ela compartilhasse de suas emoções?
— Eu te amo — disse ela. O desejo se apoderava dela novamente, querendo se
expandir de alguma forma. Inclinando-se, ela o beijou na boca.
71
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Foi como atear fogo à pólvora. Ele reagiu imediatamente, e as delícias da noite se
renovaram sob a luz pálida da manhã.
O apito que acordava os rancheiros tocou inutilmente, pois eles não se incomodaram
com o novo dia de trabalho que despontava. Porém, mais tarde. Bonita entrou na casa,
muito barulhenta, e os trouxe de volta à realidade. Entorpecidos de tanto amor, eles se
separaram, relutantes.
— Hoje vamos levar a manada para o outro lado do rio — disse Carlos, começando
a se vestir. — Vou ficar fora o dia todo. E você, o que vai fazer?
— Estava querendo ir falar com sua mãe, para me aconselhar — respondeu Daphne,
vestindo um penhoar. — Mas agora não estou bem certa. — Olhou para ele, mordendo os
lábios, doida para fazer a pergunta que a vinha atormentando há vários dias, mas não
desejando estragar aquele novo relacionamento que ainda não se solidificara. — Carlos,
você pode me responder com sinceridade onde arrumou aquele dinheiro que me deu em
pagamento pelo meu trabalho como esposa temporária?
O olhar que ele lhe lançou fez com que Daphne pensasse que ele a odiava.
— Consegui honestamente, se é isso que você quer saber.
— Como? Por favor, me conte.
— Vendi umas terras de minha propriedade no Novo México. Era uma pequena
fazenda, a primeira que tive.
— Era lá que você vivia com... com... Novamente o ciúme a atacou.
Será que um dia conseguiria controlar esse sentimento que nutria pelas pessoas que
um dia fizeram parte da vida de Carlos?
— Com Ellen? — ele disse, com toda a calma.
— Sua primeira esposa?
— Si. Eu morei lá, até ela me abandonar, e continuei morando, até o dia em que
minha mãe me escreveu, pedindo que viesse dar uma ajuda aqui, no Rancho Fontaine.
Isso foi há muito tempo.
Ele sacudiu os ombros, como se tentasse esquecer aquele período de sua vida.
Daphne se sentiu mais segura.
— Eu gostaria de lhe devolver aquele dinheiro — disse ela. Tirou o envelope da
bolsa.
— Por quê? Pensei que você fosse usá-lo para montar seu salão de beleza.
— Eu ia mesmo fazer isso, mas não posso. Esse dinheiro lhe pertence, é seu.
— Já não é mais meu. Agora é seu. É o pagamento que lhe devo por ter casado
comigo.
— Por isso mesmo não o quero. Não casei com você por dinheiro, já disse. Casei
porque o amo. Espero que depois da noite passada acredite em mim. Certamente, você vai
precisar desse dinheiro para incrementar a sua parte do rancho.
— Não vou precisar. Não sou assim tão pobre, se é isso que a preocupa. Aliás, não
pense que vamos morar nesse bangalô para sempre. Logo teremos uma casa melhor, com
muitos quartos e, talvez, até com uma piscina.
— Por favor, aceite o dinheiro de volta. Se... se não aceitar, vou me sentir comprada.
— Entregou-lhe o envelope.
72
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Carlos revirou-o nas mãos, antes de se decidir.


— Está bem. Se você se sente melhor assim, vou aceitá-lo. Mas desde ontem à noite
já me convenci de que você não casou comigo pelo dinheiro. Bem, agora que esta parte do
problema está resolvida, vamos voltar ao princípio. Se você quer de fato abrir um salão em
Micatepec, pode me pedir um empréstimo. Será que posso financiar seu empréstimo?
— Está bem. — Passou-lhe os braços pelo pescoço, com imenso carinho. — No
fundo, no fundo, acho que você também me ama, nem que seja um pouquinho.
— Talvez você tenha razão. — Seus dedos ásperos a obrigaram a levantar o queixo.
— Talvez tenha sido por isso que eu a quis proteger, até contra mim mesmo, desde aquela
noite em que a conheci em Acapulco. Talvez por isso é que preciso tornar a preveni-la que
não vai ser fácil viver aqui ao meu lado, ou mesmo trabalhar no seu salão na cidade. Haverá
dias em que você vai odiar este lugar, e vai se sentir arrependida de não ter voltado para a
sua terra natal. Você vai ter vontade de ir embora, de...
— Não! Fui embora uma vez e não adiantou nada. Já me conscientizei da realidade,
e decidi que quero ficar aqui para sempre, amar você com muita ternura e carinho, e ser
amada, nem que seja só um pouquinho.
— Vai ser bem mais do que isso — disse ele, e procurou novamente os lábios.
Por fim, se separou dela, pegou a jaqueta e o sombrero e dirigiu para a porta.
— Hasta luego, querida — se despediu com um aceno.
— Até logo, meu amor — repetiu Daphne para si mesma. Não seria mais um adeus.
Desta vez, haveria uma volta.

73
Flora Kidd - Casamento de mentira (Julia 219)

Barbara, Sabrina, Julia e Bianca.

Estes são os livros que trazem na capa o coração, símbolo das mais emocionantes
histórias de amor.

Um romance que você não pode perder!

JULIA 221
UMA ROSA PARA EVE
Carole Mortimer

A desilusão que Eve sofrera no passado tinha fechado de vez seu coração para o
amor. Agora ela queria pensar apenas na sua carreira de cantora, sem se envolver mais
com nenhum homem. Por isso, não ia deixar que um milionário insistente e arrogante como
Bart Jordan tentasse conquistá-la. Apesar daqueles olhos verdes e de tantos buquês de
rosas vermelhas... Bart era exatamente o tipo que Eve detestava: prepotente, cheio de
autoconfiança, achando que o dinheiro comprava qualquer coisa. Ela só não imaginava que
Bart fosse tão poderoso a ponto de conseguir aprisioná-la, sem lhe deixar qualquer possibi-
lidade de reagir. Como venceria esse desafio chamado Bart ordan ?

Barbara, Sabrina, Julia e Bianca.


Estes são os livros que trazem na capa o coração, símbolo das mais emocionantes
histórias de amor.

Uma inesquecível história de amor!

JULIA 222
CORRENTES DE OURO
Yvonne Whittal

Na mina de Western Ridges, numa remota cidadezinha da África, os homens


trabalhavam arduamente em busca do ouro. Cresciam e envelheciam embaixo da terra,
cavando à procura do metal que poderia enriquecê-los. Só Greg Delaney não fazia parte
desse mundo. Filho de um mineiro, revoltado com a miséria do pai, ele preferia vestir seu
casaco de couro, subir numa possante moto e passear pela cidade. E foi num desses
passeios que conheceu Susan Brenner, filha do diretor de Western Ridges. Susan pertencia
à alta sociedade. Greg era um contestador. Apesar disso, eles se apaixonaram. Mas a
explosão que abalou a mina, num dia frio e cinzento, mudaria todo o curso de suas vidas.

74

Você também pode gostar