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Tradução de Carlos Alberto Nunes

Copyleft   2022 ShakespeareBrasileiro
©
http://shakespearebrasileiro.org/pecas/
Henrique VI - Parte I......................................................................................................7

Henrique VI - Parte II...................................................................................................58

Henrique VI - Parte III...............................................................................................116

Ricardo III....................................................................................................................173

A Comédia dos Erros..................................................................................................239

Tito Andrônico.............................................................................................................274

A Megera Domada.......................................................................................................322

Os Dois Cavalheiros de Verona..................................................................................369


HENRIQUE VI - PARTE I

Shakespeare
Introdução (David Bevington)

Durante a maior parte do século XV, a Inglaterra sofreu a devastação da guerra


civil. Dos longos conflitos entre os Lancastres e os Yorkistas, a chamada Guerra das
Rosas, o país emergiu, em 1485, abalado mas finalmente unido sobre o forte governo
dos Tudors. Para os Elisabetanos, esse período de guerra civil era, ainda, um evento
recente que testou e quase destruiu à autonomia da Inglaterra. Eles estavam, além disso,
apreensivos com suas próprias incertezas políticas e dinásticas. A Rainha Elizabeth,
neta do primeiro rei Tudor, Henrique VII, estava solteira e envelhecendo, e seu sucessor
não estava determinado. Os inimigos católicos dela em casa e fora tramavam um retorno
da antiga fé renunciada por Henrique VIII em sua reforma da igreja. A Espanha tentou
uma invasão da Inglaterra com a Grande Armada em 1588, talvez dois anos antes de
Shakespeare começar a escrever suas peças sobre Henrique VI. Foi em tal era de crise e
excitação patriótica que as peças Henrique VI apareceram pela primeira vez. De fato,
elas ajudaram a estabilizar a moda da peça de história Inglesa, que iria florescer ao
longo dos anos 1590. As guerras civis da Inglaterra podiam ser estudadas e analisadas
agora, de uma perspectiva de mais de cem anos depois, e talvez poderiam prover uma
chave para o momento presente. À disposição estava uma nova edição das Crônicas,
1587, de Raphael Holinshed, juntamente com as crônicas anteriores escritas por Robert
Fabyan, John Stow e Richard Grafton, assim como A União das Duas Nobres e
Ilustradas Famílias de Lancaster e York, de Edward Hall, os Atos e Monumentos dos
Mártires, de John Foxe, e Um Espelho para Magistrados.

Como essas guerras começaram? Os Elisabetanos buscaram por uma resposta,


não em termos econômicos ou sociais, mas em religiosos e morais. De acordo com uma
explicação tradicional e advogada pelo governo, refletida em uma extensão maior
(apesar de com muitas contradições) nas crônicas de Edward Hall, e familiar a
Shakespeare não importando se ele concordava ou não, a Guerra das Rosas foi uma
manifestação da cólera de Deus, uma punição divina infligida no povo da Inglaterra por
causa de seu comportamento desordeiro. O povo e seus governantes trouxeram a guerra
civil sobre si mesmos por ambição egoísta, arrogância e deslealdade. O avô do Rei
Henrique VI, Henrique IV, chegou ao trono em 1399, ao depor e então executar seu
próprio primo, Ricardo II (um momento muito importante, a ser retratado por
Shakespeare em uma peça histórica posterior). Henrique VI era uma criança quando
sucedeu ao trono em 1422, devido à morte precoce de seu pai, Henrique V. Muito
jovem para governar em um primeiro momento, e nunca abençoado com a habilidade de
seu pai de agir firmemente, Henrique VI foi totalmente incapaz de pausar a luta pelo
poder avançada entre os membros de sua ampla e discordante família. Finalmente, seu
próprio título ao trono foi disputado pelo seu parente Ricardo Plantagenet, Duque de
York, que reivindicava ser o legítimo rei, em virtude de sua descendência do tio de
Henrique IV, Lionel, Duque de Clarence. A facção Yorkista marchou em batalha contra
a facção Lancastriana de Henrique VI (assim nomeada pois a família detinha a posse do
ducado de Lancastre por gerações), e a guerra aconteceu.

A visão providencial desses eventos não foi nunca totalmente endossada pelos
cronistas e certamente não foi por Shakespeare. O esquema global de Edward Hall é
indiscutivelmente providencial, e ainda, como um historiador, ele apresenta uma
multiplicidade de detalhes que, cumulativamente, levantam difíceis questões de
interpretação. Ao mesmo tempo, a visão providencial fazia uma boa propaganda para o
regime Tudor, e, como tal, ela deu ampla atualidade à teoria da ira de Deus com relação
a um povo rebelde. O resultado da guerra parece confirmar esse padrão: devastação
universal e a morte dos responsáveis pelo conflito levaria, eventualmente, de acordo
com a teoria, ao apaziguamento da ira de Deus e a restauração da ordem. Ricardo
Plantagenet morreu no conflito, assim como Henrique VI, o filho de Henrique, Eduardo
e muitos outros da nobreza Inglesa. O filho de Ricardo, Eduardo, sobrevive para tornar-
se Eduardo IV, mas sua forma de obter o trono foi tão manifestamente ofensiva à
Providência que (de acordo com a teoria) ele sofreu uma morte compensatória nas mãos
de um Deus furioso, e foi sucedido pelo seu irmão mais novo, Ricardo III. Esse último
rei Yorkista governou apenas dois anos, de 1483 a 1485, e foi através da insana
vingança de Ricardo que Deus, finalmente, vingou-se do caprichoso povo Inglês. Tendo
completado essa purgação, Deus escolheu como seu instrumento de uma nova ordem
Henrique Tudor, Conde de Richmond, Henrique VII. Apesar do retorno de Henrique à
Inglaterra e a derrota de Ricardo na batalha do Campo Bosworth poderem externamente
relembrar o confisco do poder de Henrique IV em detrimento de Ricardo II, a diferença
era crucial para os apologistas Tudors. Ricardo III seria visto, do ponto de vista dos
Tudor, não como um monarca legítimo equivocado, mas como um usurpador louco e
tirano; sua derrota não foi apenas o ato de desobediência de um homem, mas o levantar-
se da nação Inglesa inteira perante à incitação do comando divino. A ascensão de
Henrique VII ao poder foi oficialmente vista não como um precedente para mais
rebelião, mas como uma manifestação da vontade divina sem paralelo na história da
humanidade.

A essência dessa visão providencial dos eventos era que o castigo divino e a
eventual reconciliação revelavam-se na história da guerra. A teoria, claro, servia aos
interesses do estado Tudor e era, em parte, uma arma de propaganda calculadamente
empregada pela classe governante. A aceitação de Shakespeare a tal teoria não deve ser
tomada de antemão, e, de fato, vários estudos recentes expressaram um profundo
ceticismo em relação à teoria como uma base para a dramaturgia de Shakespeare.
Especialmente em sua segunda tetralogia, ou série de quatro peças, de Ricardo II a
Henrique V, Shakespeare revela consideravelmente mais interesse no conflito de
personalidades do que nos padrões de castigos divinos. Shakespeare não endossa à visão
ortodoxa, que o confisco de poder de Bolingbroke foi uma violação do propósito divino
pelo qual ele e a Inglaterra deveriam ser submissos; em vez disso, Shakespeare retrata
às questões com múltiplos aspectos e sujeitas a várias interpretações.

Ao longo de suas peças históricas, de fato, Shakespeare evita expressar a visão


Tudor da história recente através de narradores didáticos ou figuras que, em coro,
poderiam representar o ponto de vista de peças inteiras; em vez disso, ele coloca sua
interpretação nas bocas de personagens assumidamente parciais e auto-interessados,
cujos motivos e testemunhos a plateia pode, então, avaliar se lhe parecem adequados.
Em 1 Henrique VI, por exemplo, a exposição mais detalhada da visão histórica oficial é
dada por Mortimer (2.5), cuja interpretação, apesar da autoridade especial, pelo fato que
um homem moribundo está falando, é consistentemente auto-interesseira com sua
própria reivindicação frustrada ao trono Inglês. Seu sobrinho, Ricardo Plantagenet, que,
é claro, endossa à lógica anti-Lancastriana do discurso de Mortimer, é retratado como
consumido pela ambição pela coroa. Na representação de Shakespeare do conflito
Lancastriano-Yorkista, nenhum lado mantém uma posição ideológica mas, em vez
disso, alteram seus argumentos conforme à conveniência do momento requer. Apesar
de, em sua tetralogia anterior, de 1 Henrique VI até Ricardo III, Shakespeare permitir
que seus personagens competidores escutem por detrás da deposição de Ricardo II, para
explicarem os infortúnios das guerras civis Inglesas, esses personagens frequentemente
falam com auto-interesse e interpretam à história conforme suas próprias vantagens.

As peças individuais dessa tetralogia anterior, se vistas ou lidas separadamente,


não confortam consistentemente o espectador ou leitor com uma garantia que tudo está
funcionando de acordo com o plano de Deus. Os próprios eventos, vistos da perspectiva
imediata do momento, provêm pouco conforto. No final de 1 Henrique VI, o Rei
Henrique rende-se a um casamento desastroso e perde a maior parte da França; no final
de 2 Henrique VI, o bom Duque Humphrey de Gloucester está morto e seus inimigos
políticos oportunistas estão prestes a retirar o Rei Henrique de seu trono. As
hostilidades de Lancaster e York terminam na conclusão de 3 Henrique VI, como é
óbvio, mas as possibilidades de uma paz estável são duvidosas, ao considerar a presença
ameaçadora de Ricardo de Gloucester. A reciprocidade das chacinas que visitam ambos
os lados parece originar-se tanto do insano desejo de vingança da humanidade quanto da
retaliação de Deus. Somente em Ricardo III nós retroativamente vemos um padrão da
ira divina, castigo e eventual apaziguamento que pode, então, ser aplicado à tetralogia
como uma narrativa contínua. O argumento de E. M. W. Tillyard de uma leitura
providencial dessas peças (em seu As Peças Históricas de Shakespeare, 1944) é
baseado, não coincidentemente, em uma visão da tetralogia como um todo coerente. E o
público que via as peças uma de cada vez? As peças, até onde sabemos, foram escritas e
produzidas singularmente e nunca foram interpretadas em uma série contínua. Mesmo
que a tetralogia como um todo possa harmonizar-se, em parte, com as crônicas de
Edward Hall e outros, escritas para glorificar o estado Tudor e para agradecer porque
este terminou com a anarquia prolongada do século XV, podemos ver que Shakespeare
não é um apologista do estado Tudor. Ele dá expressão a uma ansiedade amplamente
sentida em relação ao caos político. Em cada peça individual, e ao longo da tetralogia, a
ironia cósmica predominante enfatiza o abismo entre a tola humanidade e as intenções
inescrutáveis da Providência, oferecendo um potencialmente estimulante conflito do
qual Shakespeare faz um brilhante uso.

Shakespeare escreveu sua primeira tetralogia em algum momento entre 1589 e


1592. Pierce Penniless, 1592, de Thomas Nash, refere-se a 1 Henrique VI como uma
peça de grande satisfação para o público; A Groatworth of Wit, de Robert Greene,
reformula uma linha de 3 Henrique VI naquele mesmo ano; o diário de Philip Henslowe
registra a performance de “harey VI” na primavera de 1592; no mesmo ano, os Homens
do Conde Pembroke, que interpretaram uma versão de 3 Henrique VI sob o título de A
Verdadeira Tragédia de Ricardo, Duque de York, saíram dos negócios. Quanto dessa
primeira tetralogia pode ter sido planejada quando Shakespeare iniciou seu trabalho é
difícil de dizer. De fato, a própria ordem de composição foi, há muito tempo, disputada.
Apesar da defesa do senso comum do Dr. Johnson, que a Parte Dois segue da Parte Um
como uma consequência lógica, alguns estudiosos argumentam que a Parte Um foi
composta por último. Uma peça de evidência é que uma versão corrupta da Parte Dois
foi publicada na versão in quarto de 1594 como A Primeira Parte da Contenda Entre as
Famosas Casas de York e Lancastre e que uma versão corrupta da Parte Três foi
publicada in octavo em 1595 como A Verdadeira Tragédia de Ricardo, Duque de York.
A Parte Um teve que esperar pela publicação no Primeiro Fólio de 1623 e foi registrada
para publicação naquele momento como “A terceira parte de Henrique sexto.” Parece
estranho, ademais, que as Partes Dois e Três não façam menção a Lorde Talbot, tão
proeminente na Parte Um. Se, entretanto, como é provável, as versões impressas
anteriormente das Partes Dois e Três fossem reconstruções de memória, sem a
autoridade do livro de palco oficial, a reivindicação da Parte Dois ter sido escrita
primeiramente pode parecer insubstancial. O próprio fato da publicação prévia das
Partes Dois e Três pode explicar porque a Parte Um foi chamada de “A terceira parte”,
em 1623. Apesar de Talbot não ser mencionado nas Partes Dois e Três, esses textos
relembram importantes aspectos da Parte Um. É certamente possível que Shakespeare
tenha escrito todas as três partes na ordem normal.

Igualmente incômoda é a questão da autoria. Muitas peças Elisabetanas foram


escritas por conjunto de autores e Shakespeare pode ter colaborado com outros,
especialmente no começo de sua carreira. Talvez ele reescreveu obras antigas de
escritores como Thomas Nashe, Robert Greene e Christopher Marlowe. Teorias de
autorias múltiplas, que foram senso comum entre os estudiosos do século dezenove e
então foram muito desconsideradas na crítica do século vinte, têm sido novamente
argumentadas pelos editores da Oxford Shakespeare (1986). Entretanto, há muita razão
para acreditar que Shakespeare é, essencialmente, o autor da série Henrique VI inteira.
O famoso ressentimento de Greene em relação a Shakespeare como a “pretensiosa
gralha embelezada pelas nossas penas” parece mais a inveja de um talento menor do que
a indignação justa de alguém que foi plagiado. O principal critério usado para
“desintegrar” as peças nas mãos de vários supostos colaboradores é aquele do gosto e do
estilo; por exemplo, as escassas cenas cômicas de Joana D’Arc foram, por um longo
período, consideradas muito ásperas para o gênio de Shakespeare. Hoje, a maioria dos
críticos veem uma consistência de visão ao longo das peças Henrique VI, apesar de
inconsistências menores de fatos que podem ser o resultado de simples erros ou de se
utilizar múltiplas fontes, e eles não encontram nada nessas peças que seja inimigo do
germinante gênio de Shakespeare. Essa crença confirma o julgamento de Heminges e
Condell, os companheiros atores de Shakespeare e os editores do Fólio de 1623, que
colocaram todas as peças Henrique VI entre as obras coletadas de Shakespeare
mantendo a ordem histórica.

Se Shakespeare foi, ao menos, o principal responsável pela série Henrique VI,


ele pode ter sido um importante inovador no novo gênero da peça histórica. Somente a
anônima Famosas Vitórias de Henrique V é certamente anterior ao lidar com a história
Inglesa recente. Haviam, certamente, peças sobre história Britânica lendária, tais como
Gorboduc ou As Desventuras de Arthur, ou sobre terras longínquas, tais como
Cambises ou o Tamburlaine de Marlowe. Todas essas peças exploraram por analogia as
questões políticas fascinantes para a Inglaterra Elisabetana, e o imenso sucesso de
Tamburlaine certamente estabeleceu uma moda para grandes cenas de conquista militar.
Ainda, a peça de história Inglesa como uma forma reconhecível nasceu com Henrique
VI. O sucesso foi, evidentemente, tremendo e estabeleceu Shakespeare como um
importante dramaturgo.

1 Henrique VI, como todas as peças da primeira tetralogia de Shakespeare,


engloba um grande número de episódios, um considerável elenco de personagens e um
amplo alcance geográfico. O tema é o da perda dos territórios Ingleses na França por
causa das divisões políticas internas. A estrutura da peça é uma de ação sequencial
mostrada em grande variedade e em cenas alternadas que são tematicamente justapostas
e contrastadas umas com as outras. Nas rápidas idas e vindas entre as cortes Inglesa e
Francesa, por exemplo, Shakespeare estabelece um tema paradoxal: a França triunfa
sobre a fraqueza da Inglaterra, não através de sua própria força. A corte Francesa é,
meramente, uma corte de corrompida frivolidade sexual. Os Ingleses são naturalmente
superiores, mas estão separados por divergências internas, por uma “desafinada
discórdia da nobreza,” e por um “dar de ombros um do outro na corte” (4.1.188-9) entre
aqueles que tentavam obter vantagem do fraco governo de minoria de Henrique VI e sua
reivindicação genealógica vulnerável. Dois jovens parentes de Henrique competiam por
posição: Humphrey, Duque de Gloucester, e o Bispo de Winchester. As intenções de
Humphrey são virtuosas, mas ele é incapaz de prevenir o esquema oportunista de seu
rival. Winchester, apesar de seu chamado eclesiástico, é um homem de ambição
maligna e vida corrupta, totalmente intencionada em destruir o correto Gloucester.
Shakespeare emprega um zombeteiro humor anticlerical contra Winchester e emprega
às simpatias Protestantes de sua plateia Elisabetana contra às intrometidas tentativas da
Igreja Católica em explorar o fraco reinado da Inglaterra para seus próprios propósitos
posteriores.

Mesmo assim, a ameaça à Inglaterra não é vista como uma conspiração católica
completamente; Winchester é apenas um oportunista buscando explorar as vacilações
políticas e o fragmentarismo da corte. De mais perigo a longo prazo é Ricardo
Plantagenet, descendente da reivindicação Yorkista. Desde o início, Shakespeare
retrata-o como astuto, capaz de insinuar-se e aguardar por seu momento e, finalmente,
brutal. Com essas qualidades, ele ameaçadoramente prenuncia seu filho mais jovem e
xará, Ricardo III. Nessa peça, a estratégia de Plantagenet é permitir que a Inglaterra
quebre através dos vários conflitos na corte e com as perdas militares no exterior; uma
vez que a situação é reduzida à anarquia, Plantagenet estará apto a mover-se. A
estratégia funciona muito bem.

Lorde Talbot é o principal defensor do poderio militar da Inglaterra em França, e


vítima eventual da disputa entre a nobreza Inglesa. Ele é a figura heroica dessa peça
com a qual as plateias Elisabetanas identificavam-se. Como Thomas Nashe escreveu em
seu Pierce Penniless, 1592: “Como teria se alegrado o bravo Talbot (o terror dos
Franceses) em pensar que depois de dois séculos de sua descida para a tumba, ele
triunfaria novamente no palco, tendo seus ossos novamente embalsamados com as
lágrimas de dez mil espectadores no mínimo (várias vezes) que, no ator que representa
sua pessoa, imaginaram pasmos ele respirando em carne e osso?” Como o herói
inalterável de 1 Henrique VI, Lorde Talbot reivindica por unidade política e militar
contra os Franceses e demonstra que, com tal unidade, a Inglaterra seria invencível.
Talbot é “o terror dos Franceses” (1.4.42), capaz de resistir a uma tropa de soldados
Franceses apenas com seus punhos, e renomado por dobrar barras de aço. Como a
encarnação da cavalaria, ele entrega uma repreensão plenamente merecida a Sir John
Falstaff (historicamente “Fastolfe,” mas chamado “Falstaff” no texto do Fólio dessa
peça), o soldado covarde que prenuncia o cavaleiro gordo de 1 Henrique IV. Em 1
Henrique VI, a covardice e a honra são representadas em extremos negros e brancos.
Talbot é um general modelo, ilustrando todas as qualidades da grande liderança
advogada pelos compêndios da época: ele é um excitante orador, destemido, argucioso e
preocupado com uma fama duradoura justa. Nas cenas tocantes com seu filho, Talbot
eleva-se triunfante acima da morte para tornar-se a encarnação imortal do bravo
soldado. Ainda, mesmo se 1 Henrique VI oferece este modelo de retórica e artes da
liderança empregadas corretamente, a presença de Talbot, entretanto, empresta-se mais
a uma profunda ansiedade em relação aos eventos históricos do que a uma confiança
reconfortante na assistência divina. A morte desnecessária de Talbot oferece uma
devastadora crítica da fraca liderança que permitiu às autoridades em França serem
divididas entre rivais políticos.
As relações entre homens e mulheres, nessa peça, são também usadas para criar
contrastes temáticos. A principal rival militar de Talbot em França é Joana D’Arc; e,
apesar de muitos estudiosos anteriores quererem negar à autoria de Shakespeare das
cenas de Joana D’Arc, a função temática dela é central. Como uma mulher em uma
armadura Joana é a encarnação da mulher Amazonas dominadora, a quem o efeminado
e auto-indulgente delfim, Charles, fracamente capitula. Os papéis sexuais inverteram-se;
Vênus triunfa sobre Marte. O papel de Joana como uma virgem-guerreira, a
comunicação dela com a demonologia, e sua semelhança obscenamente paródica com a
Virgem Maria, tudo sugere uma ambivalência orientada ao masculino em relação às
mulheres em posições de autoridade – incluindo, por implicação, a Rainha Elizabeth. A
sexualidade de Joana não é apenas diabólica, mas também obsessiva em sua
promiscuidade e aparente instabilidade. Seus captores Ingleses no final da peça (5.4)
ridicularizam Joana, que afirma ser virgem, enquanto tenta salvar sua vida declarando
estar grávida. York troça, “Os céus agora proíbem! A resistente dama com criança?”
Quando ela parece não saber quem é o pai, pois teve muitos parceiros sexuais, o deleite
dele é incontido: “E ainda, de fato, ela é uma pura virgem!” (5.4.65, 83). A irreverência
em relação a reivindicação dela de ser la Pucelle é assim combinada com um golpe
Protestante na Católica Mariolatria. Ela ainda tenta praticar sua bruxaria (com
insinuações sexuais) em Talbot e seu filho, mas em vão. O senso de dever de Talbot
nunca sucumbe à voluptuosidade de Circe. Em seu encontro com a Condessa de
Auvergne, Talbot talentosamente logra outra mulher que, como Joana, pretende
ludibriá-lo. A Condessa finalmente se submete à autoridade cortesã mas firme de
Talbot, assim reestabelecendo o relacionamento tradicional entre homens e mulheres.
Talbot representa todo tipo de decência e ordem que deve prevalecer, mas é
insensivelmente destruído pela divisão política da Inglaterra.

A última mulher introduzida na peça, Margaret de Anjou, é outra mulher


dominadora. Sua relação adúltera com o mundano Suffolk, e sua ascendência sobre o
fraco Henrique VI, terão graves consequências nas peças subsequentes. As cenas dela,
apesar de outrora rejeitadas como reflexões tardias, conectando 1 Henrique VI com as
peças seguintes, de fato recapitulam os motivos da dominância feminina com grande
efeito dramático. O Jovem Henrique VI não é um Talbot; sem experiência no amor e
altamente impressionável, ele rende-se à mera descrição de uma mulher que ele nem
mesmo viu e recusa uma combinação politicamente vantajosa arranjada pelo Duque
Humphrey para que ele possa casar-se com uma conivente mulher Francesa sem dote. O
casamento também antecipa àquele de Eduardo IV (em 3 Henrique VI) com uma pobre
viúva que encantou seus errantes olhos, quando Eduardo poderia ter obtido um generoso
dote e uma aliança favorável ao casar-se com a meia-irmã do Rei Francês. Tais triunfos
sombrios da paixão sobre a razão são emblemáticos do declínio geral da aristocracia
Inglesa. Apesar da fraqueza de Henrique, ele é o personagem central da peça depois de
tudo, e sua debilitada rendição ao amor é um anticlímax adequado para se terminar o
primeiro episódio do declínio da Inglaterra. Somos deixados, no teatro, ao final de 1
Henrique VI, com um sentido estarrecedor de deslocação e perda a qual nenhum
remédio parece estar à disposição.
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Personagens

Res HenriQUE VI. Basser, da Rosa vermelha, da facção de Lancaster.


Duque DE GLOSTER, tio é protetor do rei. CARLOS, delfim, depois rei da França.
Duque pE BEDFORD, tio do rei, regente da França. Rercnier, Duque de Anjou e rei titular de Nápoles.
Tomás BeaurorT, Duque de Exeter, tio-avô do rei. Duque DE BORGONHA.
Henrique BEAUFORT, tio-avô do rei, Bispo de Duque DE ALENÇON.
Winchester, depois cardeal. O bastardo de Orleans.
JoÃo Beaurorr, Conde, depois Duque de O governador de Paris.
Somerset. O canhoneiro-mor de Orleans e seu filho.
RicarDO PLANTAGENETA, filho de Ricardo,
O general das forças francesas em Bordéus.
falecido Conde de Cambridge; depois Duque de
Um sargento francês.
York.
Um porteiro.
ConDE DE WARWICK.
Um velho pastor, pai de Joana la Pucelle.
ConDE DE SALISBURY.
MARGARIDA, filha de Reignier; depois casada com o
ConDE DE SUFFOLK.
Rei Henrique.
Lorpe TaLBor, depois Conde de Shrewsbury.
CONDESSA DE AUVERGNE.
Joun TaLBor, seu filho.
Epmunvo Mortimer, Conde de March.
Joana LA PucELLE, comumente chamada Joana
SIR JOHN FAsTOLFE. d'Arc.
Sir WILLIAM Lucy. Nobres, guardas da Torre, arautos, oficiais, soldados,
Sir WiLLIAM GLANSDALE. mensageiros e criados.
Sir Tomás GARGRAVE. Demônios que aparecem a Pucela.
WoopviLE, tenente da Torre.
O prefeito de Londres. O carcereiro de Mortimer.
Um jurista. Cena
VERNON, da Rosa branca, da facção de York. Parte na Inglaterra, parte na França.
Ato T-
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Cenal
Abadia de Westminster. do que o foi sua vista. Batalhava
Marcha fiinebre. Vê-se o corpo do Rei Henrique V, cercado para o Deus dos exércitos; as preces
pelos Duques de Bedford, Gloster e Exeter, o Conde de da Igreja próspero o fizeram sempre.
Warwick, o Bispo de Winchester, arautos, etc. GLosrER"* À Igreja? Onde se encontra? Não tivessem
rezado os padres, não se lhe teria
BeproRrpD : Cubra-se o céu de negro, em noite o dia rompido cedo o fio da existência.
se transforme! Cometas, que as mudanças Só vos agradaríeis de um monarca
do tempo revelais e dos Estados, efeminado, em quem metêsseis medo
sacudi no alto empíreo vossas tranças como num escolar inexperiente.
de cristal e açoitai as ruins estrelas WINCHESTER"
que na morte de Henrique concordaram! Seja o que for que nos agrade, Gloster,
Era grande demais Henrique, o quinto, o protetor és tu, que só trabalhas
para viver por muito tempo! Nunca para mandar no príncipe e no reino.
a Inglaterra perdeu um rei tão grande. Tua esposa é orgulhosa; ela te infunde
GLosTER* Antes dele não houve na Inglaterra mais medo do que Deus e os padres todos.
nenhum rei no sentido verdadeiro. GLosTER : Não tragas à conversa coisas santas;
Era dotado de virtude e digno amas a carne; nunca vais à Igreja,
de mandar; ao brandir a espada, os raios senão somente a fim de pedir algo
dela a vista dos homens ofuscavam; de que redunde mal para os imigos.
seus braços se estendiam mais ainda Beprorp : Basta de discussões! Acomodai-vos.
do que asas de dragão; em ira aceso, Vamos já para o altar. Arauto, segue-nos.
o olhar faulhante era de mais efeito Ofereçamos armas em vez de ouro,
para atordoar e rechaçar imigos, porque inúteis agora elas ficaram
do que o sol, quando neles dardejava. depois de morto Henrique.
Como dizer? Seus feitos transcendiam Posteridade, aguarda apenas anos
todo discurso; a mão jamais erguia calamitosos, em que as crianças mamem
sem realizar de pronto uma conquista. as lágrimas das mães. Nossa ilha, fonte
ExeTER * Por que razão em vez de preto o nosso vai tornar-se de lágrimas salgadas,
luto por ele não será de sangue? com mulheres, somente, a se carpirem
Henrique já morreu; não torna à vida; pelos mortos. Henrique quinto, invoco-te
achamo-nos ao pé de um caixão fúnebre o espírito! Protege este teu reino!
e à vitória sem mérito da Morte Livra-o de comoções civis, combate
damos honra, tão-só por nos portarmos no alto céu os planetas inimigos!
no jeito de vencidos que acompanham Tua alma vai formar no firmamento
o carro do triunfo. Como! Vamos, uma estrela de glória mais brilhante
então amaldiçoar os ruins planetas do que a de Berenice ou Júlio César.
que se ligaram contra a nossa glória? (Entra um mensageiro.)
Ou pensar que os franceses astuciosos MensacEIRO * Saúde a todos vós, nobres senhores!
são todos feiticeiros e adivinhos Sou portador de novas más da França,
e que, por medo dele, versos mágicos de assassínios, de perdas e derrotas:
recitavam, a fim de aniquilá-lo? Guiena, Orleans, Champanha, Reims, Paris,
WINCHESTER * Foi abençoado pelo Rei dos reis. Poitiers, Gisors estão quase perdidas.
O pavoroso dia do juízo Beprorp : Que dizes, homem, diante do cadáver
não será mais terrível para os francos de Henrique? Fala baixo. À só notícia

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

da perda de cidades tão valiosas, GLosreR* Corramos para o peito dos imigos;
rompe ele o chumbo e se alça de entre os mortos. Bedford, se ainda vacilas, eu combato.
GLosTER* Paris caiu? Ruão capitulou? Beprorp : Por que duvidas, Gloster, do meu brio?
Se Henrique revivesse, essa notícia No pensamento trago ingentes forças
o faria exalar de novo o espírito. com que a França já está desbaratada.
ExerER - Como foi isso? Que traição usaram? (Entra terceiro mensageiro.)
MENSAGEIRO * Terceiro MENSAGEIRO *
Traição nenhuma; foi por falta de homens Meus graciosos senhores, porque lágrimas
e de dinheiro. Entre os soldados fala-se acrescenteis às que o cadáver banham
que mantendes aqui facções diversas do Rei Henrique, a nova ora vos trago
e que, em vez de ingressardes nos combates, do combate terrível ocorrido
discutis sobre a escolha do comando. entre o altivo Talbot e as forças francas.
Este opina que a luta se protele WINCHESTER *
sem despesas de vulto; outro quisera Em que Talbot venceu, não é verdade?
voar ligeiro, mas carece de asas; Tercerro MENSAGEIRO *
um terceiro é de aviso que, sem gastos Oh, não! em que o vencido foi Talbot.
de espécie alguma, apenas com palavras Vou contar-vos por miúdo as circunstâncias.
bonitas e escolhidas fora fácil A dez de agosto esse temível lorde,
alcançarmos a paz. Nobres ingleses, que escassos seis mil homens comandava,
despertai! despertai! não consentindo ao levantar o cerco de Orleans
que a indolência conspurque vossos títulos se viu cercado pelas tropas francas,
recentes. Vossas armas já perderam vinte e três mil ao todo. Não dispondo
todos os lírios; ora tendes menos de tempo, para em ordem pôr seus homens,
da metade do escudo da Inglaterra. nem de piques que à frente dos archeiros
ExeTER Se carência de lágrimas tivéssemos colocasse, eis agudas varas tira
para estes funerais, tão ruins notícias dos cercados de em torno, e manda à pressa
no-las trariam em marés estuantes. no chão fincá-las, como se pudesse,
Beprorp : Excitam-me essas novas; sou regente para impedir o avanço dos cavalos.
da França. Tragam minha cota de armas; O combate durou mais de três horas,
lutarei pela França. Despojemo-nos em que, de lança e espada o inimitável
destas vestes de luto vergonhosas. Talbot perfez milagres que transcendem
Em vez de olhos, feridas nos franceses a inteligência humana. Para o inferno
abrirei, para que eles chorar possam mandou ele centenas de franceses;
suas desgraças ora interrompidas. ninguém se abalançava a resistir-lhe.
(Entra outro mensageiro.) Por aqui, por ali, por toda parte
SEGUNDO MENSAGEIRO * enraivado corria; os inimigos
Nobres, lede estas cartas transbordantes o tinham como autêntico demônio.
de notícias ruins. Contra o domínio O exército francês, estarrecido
da Inglaterra está a França revoltada, diante dele ficou; seus comandados,
com exceção de cidades secundárias. presenciando tão grande valentia,
O delfim Carlos foi coroado em Reims; “Talbot! Talbot!” gritavam, atirando-se
o bastardo de Orleans a ele se uniu; em pleno coração da luta ingente.
Reignier, Duque de Anjou, foi reforçá-lo; E a vitória teria sido nossa,
o Duque de Alençon se acha a seu lado. se papel de covarde não fizesse
ExeTER* Foi coroado o delfim? Para ele correm Sir John Fastolfe, que por trás se achava
todos os nobres? Oh! E nós para onde da vanguarda com o fim de reforçá-la
de tão grande vergonha fugiremos? no perigo e segui-la, e que, de súbito,

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do campo desertou sem dar um tiro. TerceIRO MENSAGEIRO *


À chacina tornou-se pavorosa É preciso, porque já está cercada
no cerco posto pelos inimigos. a cidade de Orleans. À força inglesa
Um infame valão, para que as graças se acha cansada e fraca, tendo o Conde
do delfim conquistasse, a espada atira de Salisbury reclamado auxílio,
no dorso de Talbot, que os adversários por não lhe ser possível, com tão poucos,
enfrentar multidão tão numerosa.
em conjunto jamais fitar puderam.
ExereR* Lembrai-vos do que a Henrique ora jurastes:
BeproRp : Talbot morreu? Então quero matar-me
ou destruir o delfim completamente,
por ter vivido ocioso nesta pompa, ou de todo dobrá-lo ao nosso jugo.
enquanto um general de tanto préstimo Beprorp : Não esqueci; por isso me despeço
foi traído por falta de recursos para aos preparativos consagrar-me.
e entregue a seus covardes inimigos. (Sai)
Terceiro MENSAGEIRO * GLosrER* Vou logo à torre ver a artilharia
Não, ainda está vivo, mas foi feito e as munições, para depois o jovem
prisioneiro e, com ele, Lorde Scales Henrique proclamar rei da Inglaterra.
e Lorde de Hungerford; os mais ficaram (Sai.)
no campo ou, de igual modo, prisioneiros. ExerER" Como especial guardião do novo rei,
BEDFORD * Pagarei eu sozinho o seu resgate. vou para Eltham, onde ele ora se encontra;
lá cuidarei da sua segurança.
Vou logo derrubar do próprio trono
(Sai.)
o delfim Carlos e, com sua coroa,
WINCHESTER *
resgatar meu amigo. Darei quatro Todos têm sua função e emprego à parte;
franceses por um nobre, só, dos nossos. a mim me excluíram:; não me sobrou nada.
Adeus, mestres; reassumo o meu serviço. Mas não hei de ficar por muito tempo
Belas fogueiras vou fazer na França como um João sem papel; vou ver se tiro
a fim de celebrar nosso São Jorge. de Eltham o novo rei, porque me assente
Dez mil soldados levarei perfeitos, ao leme do tesouro incontinenti.
que espantarão a Europa com seus feitos. (Sai)

Ato T- Cena II
França. Diante de Orleans. do focinho, ou se tornam miseráveis
Entram Carlos, com suas tropas, Alençon, Reignier e como ratos no ponto de afogar-se.
outros. REIGNIER* Levantemos o cerco. Por que estarmos
aqui sem fazer nada? Quem temíamos,
CarLos: No céu, como na terra, o verdadeiro já está preso: Talbot. Só resta o louco
curso de Marte ainda não se conhece. Salisbury, que pode a própria bile
Aos ingleses propício era ele, há pouco; gastar em pura perda, pois carece
propício agora é a nós, pois que vencemos. de homens e de dinheiro para a guerra.
Que cidades de monta ainda nos faltam? CarLOs* Mandai tocar alarma! Vamos a eles,
Diante de Orleans estamos sossegados, pela honra dos franceses que perdemos!
e os ingleses, quais pálidos fantasmas, Perdoarei a quem quer que hoje me mate,
uma hora só por mês nos dão combate. se eu recuar um só passo no combate.
ALENÇON* Necessitam de caldo e gordo bife; (Saem.)
ou no jeito de mulos são tratados, (Rebate; movimento de tropas; depois, retirada. Voltam
com o saco de comida sempre perto Carlos, Alençon, Reignier e outros.)


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Henrique VI

CARLOS" É dotada de espírito profético


Quem tal coisa já viu? Que homens que tenho? em grau mais acentuado do que as nove
Cães! Covardes! Poltrões! Nunca eu teria sibilas da alta Roma; ela conhece
fugido, se sozinho não ficasse quanto passou e o que ainda está por vir.
em meio aos inimigos. Dizei: posso trazê-la? Ficai certo
REIGNIER* Salisbury de que é infalível quanto vos declaro.
é um matador terrível, que combate CarLos* Ide buscá-la.
como quem já não tenha amor à vida. (Sai o bastardo.)
Os outros nobres, como leões famélicos Mas façamos antes
viam em nós a apetecida presa. uma experiência. Em meu lugar tu ficas,
ALENÇON * Froissart, um nosso conterrâneo, lembra Reignier, como delfim. Encara-a firme;
que no reinado do terceiro Eduardo fala-lhe sobranceiro. Desse modo
a Inglaterra gerara só Rolandos ficaremos sabendo quanto vale.
e Olivérios, o que hoje, mais que nunca, (Retira-se.)
se confirma, por ela ter enviado (Volta o bastardo de Orleans, com Foana la Pucelle e
contra nós só Golias e Sansões. outros.)
Um contra dez! Só pele em cima do osso! ReicniER* Bela menina, é certo que desejas
Quem poderia imaginar que fossem realizar altos feitos?
dotados de tal ímpeto e ousadia? Joana: Imaginas,
CarLos- Larguemos a cidade; são escravos Reignier, que te é possível enganar-me?
teimosos, a que a fome poderia Onde se acha o delfim? Vem para a frente.
levar ao desespero.
Já os conheço Eu te conheço, muito embora nunca
de muito tempo. Ser-lhes-á mais fácil te haja visto. Não fiques assustado,
com os dentes arrancar uma a uma as pedras que para mim não há coisas ocultas.
da muralha, que o cerco suspenderem. Desejo conversar-te em separado.
RercnIER* Algum estranho mecanismo os braços Deixai-nos sós, senhores; afastai-vos!
lhes movimenta, como o dos relógios ReiGnIER* Porta-se com denodo na investida.
que as horas batem sempre. Não se pode Joana- Delfim, por nascimento eu sou pastora,
conceber que resistam de outro modo. sem instrução alguma em qualquer arte;
Penso que deveríamos deixá-los mas quis o céu e, assim, nossa graciosa
aqui sozinhos. Senhora iluminar minha humildade.
ALENÇON* Seja! Quando eu guardava minhas ovelhinhas,
(Entra o bastardo de Orleans.) expondo o rosto aos raios esbraseantes
O Basrarpo* Onde está o príncipe delfim? Desejo do sol, a mãe de Deus dignou-se em vir-me
falar-lhe; trago novas importantes. visitar, em visão cheia de galas.
CARLOS" Mandou que abandonasse o baixo ofício
Bastardo de Orleans, sede três vezes bem-vindo. e dos males a pátria libertasse;
O BastarDO* Todos tendes a aparência auxilio prometeu e êxito pleno.
desanimada e os olhos abatidos. Revelou-se-me em toda a sua glória;
Foi a última derrota a causa disso? e porque antes eu era mais trigueira,
Coragem! que o socorro já vem perto. quase preta, infundiu-me ela seus raios
Trago comigo uma donzela santa, ofuscantes, que logo me deixaram
que uma visão do céu escolheu para com a beleza abençoada que estais vendo.
levantar este cerco fastidioso Dirige-me as perguntas que quiseres;
e da França expulsar logo os ingleses. sem vacilar responderei a todas.

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Põe-me à prova em combate, se te atreves; REIGNIER*


verás que me acho acima do meu sexo. Não tem mais fim! Convém interrompê-los?
Resolve; serás sempre afortunado ALENÇON* Decerto tem projetos que nós outros,
se à luta me levares a teu lado. coitados, ignoramos. As mulheres
CarLOS* Tua elogiiência me deixou perplexo; sabem tentar com lábia irresistível.
só desejo uma prova do teu mérito: ReicniER* Onde estais, meu senhor? Que decidis?
medires-te comigo num combate Largaremos Orleans ou resistimos?
singular. Se saíres vencedora, Joana: Não! velhacos sem crença, não! vos digo;
é que falaste certo; do contrário, resisti até o último suspiro,
retiro-te de vez toda a confiança. que eu vos protegerei.
Joana: Estou pronta; aqui se acha minha espada CARLOS: Confirmo quanto
ela disse; até o fim resistiremos.
cortadora, de lírios adornada,
Joana O fado me destina para látego
que de um monte de ferro velho eu própria
dos ingleses. Sem dúvida possível,
em Touraine tirei, no cemitério
suspenderei o cerco ainda esta noite.
de Santa Catarina.
Contai só com verões de São Martinho,
CARLOS* Vem, em nome dias alciôneos, porque entrei na guerra.
de Deus; não me arreceio de mulheres. A glória é como um círculo sobre a água,
Joana- Viva, não correrei de nenhum homem. que aumenta sempre mais, até que à força
(Batem-se; vence Joana la Pucelle.) de se alargar, termina em coisa alguma.
CaRLOS* Pára essa mão! És amazona! Lutas Com a morte de Henrique acaba o círculo
com a espada de Débora. da Inglaterra; dispersas se acham todas
Joana Auxilia-me as glórias nele inclusas. Neste instante
a mãe de Cristo; do contrário, eu fora eu sou como o insolente e altivo barco
fraca demais. que a César carregava e sua fortuna.
CarLos* Quem quer que te auxilie, CarLos: Se Maomé se inspirava em uma pomba,
pouco importa. Tu, sim, é que precisas em uma águia, decerto, tu te inspiras.
socorrer-me. Venceste-me a um só tempo Helena, a mãe do grande Constantino,
o coração e as mãos. Pucela excelsa, não era como tu, nem mesmo as filhas
se o teu nome é esse mesmo, ora me deixa de São Filipe. Refulgente estrela
ser teu criado, não teu soberano. de Vênus, que na terra ora te encontras,

É o delfim que te fala desse modo. de que maneira revelar-te a minha


Joana: Os mistérios do amor não valem nada;
veneração?
ALENÇON* Deixemos de mesuras,
minha missão no céu foi consagrada.
para ver como o cerco levantamos.
Só poderei pensar em recompensa
Rercnter: Mulher, agora faze o que puderes
depois de ter vencido esta pendença.
para a honra nos salvar. Atira-os longe
CarLos: Mas até lá dispensa olhar benévolo
da cidade de Orleans e imortaliza-te.
a este escravo que aos pés se te prosterna.
Cartos: Vamos logo tentá-lo. Às armas! Vamos!
ReIGNnIER* Parece-me que o rei conversa muito. Não mais terei confiança em profecias,
ALENÇON"* Ele a está confessando até à camisa; se ela se mostrar falsa neste passo.
senão, não falaria tanto tempo. (Saem.)

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shakespearebrasileiro.org e Henrique VI

Ato T- Cena HI
Londres. Diante da Torre. PrimEIRO CRIADO *
Ante as portas apresenta-se o Duque de Gloster com seus Abri as portas, depressa, para o Lorde
criados de uniforme azul. Protetor; do contrário, as quebraremos.
(Entra Winchester, seguido de criados com uniforme
GLosTER: Vim hoje inspecionar a Torre. Temo aleonado.)
que haja contravenção depois da morte WINCHESTER *
de Henrique. Abri! É Gloster que vos fala. Que ora pretendes, Humphrey ambicioso?
(Os criados batem.) GLosTER* Padre careca, é certo que deste ordem
PriMEIRO GUARDA (dentro) para impedir-me a entrada?
Quem bate por tal modo autoritário? WINCHESTER * Dei, por seres
PrimEIRO CRIADO * usurpador sem fé, não protetor
É o nobre duque. Abri! Duque de Gloster. do reino nem do rei.
SEGUNDO GUARDA (dentro) * GLOSTER* Fora, patente
Seja quem for, entrar é que não entra. conspirador! A morte do nosso último
PriMEIRO CRIADO soberano por ti foi concertada.
Vilãos! Usais de semelhantes termos Permitiste às rameiras o pecado.
com o Lorde Protetor? Vou fazer logo uma devassa nesse
PrimEIRO GUARDA (dentro) * Deus o proteja, chapéu cardinalício, caso sigas
é o que podemos responder. Estamos a pompear tua incrível insolência.
cumprindo ordens somente, e ordens são ordens. WINCHESTER * Recua tu; não cederei um passo.
Grosrer - Que ordens são essas? Quem aqui dá ordens Seja isto outro Damasco, e tu, se o queres,
senão eu, tão-só eu, que sou do reino o maldito Caim, para matares
o único protetor? Quebrai as portas; a Abel, teu próprio irmão.
eu respondo por isso. Hei de deixar-me GLOSTER* Não vou matar-te;
ludibriar desse modo por uns sujos? vou fazer-te recuar usando dessa
(Os homens de Gloster se arremessam contra a porta; vestimenta escarlate como se ela
da parte de dentro aproxima-se o Tenente Woodvile.) fosse uma toalha de batismo para
WooDVILE* te carregar e por longe daqui.
Quem faz esse barulho? Que traidores temos aí? WINCHESTER *
GrosrER: Tenente, conheci-vos Faze como quiseres; desafio-te cara a cara.
pela voz; abri as portas; fala Gloster; GLosrer: Ah! É assim? Tens a ousadia
desejo entrar. de desafiar-me? Olá, meus homens, basta
WoopviLE: Paciência, nobre duque; de atenção ao lugar: espadas fora!
não posso obedecer; foi o Cardeal Uniformes azuis contra aleonados!
de Winchester que o mandou; recebi ordens Padre, toma cuidado com tua barba.
expressas de me opor à tua entrada (Gloster e seus homens atacam o cardeal.)
e à de qualquer pessoa do teu séquito. Vou arrancá-la e moer-te a cachações.
GLOSTER* Quero pisar nesse chapéu de bicos;
Oh fraco Woodvile! Tem-lo em maior conta em que pese ao teu papa e às dignidades
do que a mim? À esse estúpido prelado, da Igreja, puxar-te-ei pelas bochechas
Winchester arrogante, que nosso último em todos os sentidos, hás de ver.
soberano jamais suportar pôde? WINCHESTER Gloster, responderás isto ante o papa.
Não tens amor a Deus nem a teu rei. GLOSTER*
Abre logo; se não, jogar-te-ei fora. Winchester, ganso de uma figa! Tragam-me

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uma corda! Expulsai-os sem detença! a semelhante rixa, cuidar de uma


Que esperais? Quanto a ti, lobo fingido proclamação. Vem, oficial, e grita
de carneiro, vais ver! Fora, uniformes com toda a força que puderes. Vamos!
azuis! Sai logo, hipócrita escarlate! OriciaL : Homens de todas as posições, que hoje
(Os criados de Gloster atacam os do cardeal: vos congregastes para pegar em armas contra a paz
em meio à confusão entra o prefeito de Londres, com seus de Deus e do rei: em nome de Sua Alteza e sob
oficiais.) pena de morte, nós vos intimamos e ordenamos que
Prereirro * Ora, milordes! Vós, os magistrados volteis para vossas casas e não tragais, não manejeis,
supremos, perturbando a paz por modo nem useis, daqui por diante, espada, adaga ou
tão vergonhoso! qualquer outra arma ofensiva.
GLOSTER* Não te metas nisso, GLosTER: Cardeal, não quero violar a lei.
prefeito, pois não sabes que de afrontas Mas espero que ainda nos veremos
eu sofri. Aqui está Beaufort, que pouco para nos entendermos à vontade.
se incomoda com Deus ou com o monarca CARDEAL: Nós nos veremos, Gloster. Este dia
e que em vantagem própria ocupa a Torre. vai-te sair caro; vou tirar-te o sangue
WINCHESTER * Eis Gloster, o inimigo da República, do coração por isto, podes crer-me.
que só promove guerras e não cuida PrereITO - Se prosseguis, mando buscar cacetes.
da paz, sobretaxando com impostos Este cardeal é pior do que o demônio.
exorbitantes vossas bolsas livres. Grosrer" Prefeito, adeus; fizeste o que devíeis.
Porque ele é protetor, procura a ruína WINCHESTER" Abominável Gloster, toma conta
da religião e desejara as armas da cabeça! Não tarda, irei buscá-la.
que na Torre se encontram, como meio (Saem, por lugares diferentes, Gloster e Winchester, com
de se fazer coroar, burlando o príncipe. seus homens.)
Grosrer: Minha resposta não será falada, PrererTO - Dispersai essa gente! Vamos logo!
mas deste jeito. Oh Deus! Como esses nobres são vesanos!
(Tornam a engalfinhar-se.) Não briguei um só dia em quarenta anos.
PrereITO: Só me resta, em meio (Saem.)

Ato T- Cena IV
França. Diante de Orleans. para obter graça. Os espiões do príncipe
Aparece sobre os muros o canhoneiro-mestre com o filho. me informaram há pouco que os ingleses
que estão entrincheirados nos subúrbios
CANHONEIRO-MESTRE vão até aquela torre por passagem
Maroto, não ignoras que a cidade secreta, para espiar-nos a cidade,
se acha cercada e que os ingleses donos a fim de verem qual o melhor meio
já são de seus subúrbios. de nos causarem dano, seja a tiros
O FirLHo: Pai, é certo; de artilharia, seja de escalada.
e muitas vezes já atirei contra eles, Para neutralizar o inconveniente,
mas sem sorte, pois nunca acertei no alvo. coloquei uma peça na passagem
CANHONEIRO-MESTRE * e, há três dias, estou de sentinela
Vais acertar; orienta-te por mim; com o fito de apanhá-los. Mas agora, *
sou o canhoneiro-mestre da cidade; pequeno, fica tu, que me é impossível
preciso realizar alguma proeza demorar por mais tempo.

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Henrique VI

Se descobrires algo, vai contar-me sob a vista de guardas escolhidos,


sem mais demora; estou com o comandante. hábeis atiradores, que a toda hora
(Saí) vinham espiar-me e que me atirariam
O FiLHo- Asseguro-vos, pai; ficai tranquilo; em pleno coração, se, porventura,
se os surpreender, não vos darei cuidado. do meu leito um só passo eu me afastasse.
(Sai.) (Entra um menino com um morrão.)
(Aparecem na Torre os Lordes Salisbury e Talbot, SALISBURY *
Sir William Glansdale, Sir Tomás Gargrave e outros.) Dói-me ouvir-te contar esses tormentos;
SaLrsBury: Talbot, minha alegria, minha vida! ainda havemos de vingar-nos deles.
Novamente entre nós! Como o inimigo Agora em Orleans é hora da ceia;
te tratou? Como foste libertado? através desta grade eu posso os homens
Conta-nos isso do alto desta torre. contar e perceber como os franceses
TaLsor: O Duque de Bedford fez prisioneiro se fortificam. Vamos espiá-los;
um bravo lorde, Ponton de Santrailles. a vista vai te ser muito agradável.
Paguei o meu resgate e fui trocado Sir Tomás Gargrave e Sir William Glansdale,
por ele. Só com o fito de humilhar-me, deixai-me ouvir vossa opinião expressa
queriam permutar-me, no começo, sobre o melhor lugar para assentarmos
por outro prisioneiro sem nobreza, nossos canhões.
o que, indignado, recusei, dizendo GarcRAvE* Na porta norte, penso,
que preferia a morte a tal ultraje por ser lá que se reúnem sempre os nobres.
na minha avaliação. Por fim me deram GLANSDALE* Eu, aqui mesmo, no bastião da ponte.
liberdade, segundo os meus desejos. TaLBor: Pelo que posso ver, esta cidade
Mas sinto o coração despedaçar-se-me precisa passar fome ou ser aos poucos
por causa de Fastolfe, o vil traidor, enfraquecida por escaramuças.
que eu mataria a murros, se ao alcance (Ouve-se um tiro; Salisbury e Sir Tomás Gargrave caem.)
dos braços o tivesse, SaLisBury* Apiada-te, Senhor, dos pecadores!
SALISBURY * Não contaste GARGRAVE*
ainda de que maneira te trataram. Tem piedade, Senhor, de um desgraçado!
TaLBor: Com zombarias, chufas e sarcasmos. TaLBor: Que subitânco acaso vem cruzar-nos
Puseram-me na praça do mercado os projetos? Se falas, Salisbury,
para servir ao povo de espetáculo. dize como te sentes. Fala, espelho
Eis o terror, diziam, dos franceses, dos guerreiros! Tiraram-te um dos olhos
que serve de espantalho aos nossos filhos. e quase uma bochecha. Oh torre infame!
Nessa altura, livrei-me dos soldados Maldita seja a fatal mão que teve
que me prendiam e, com as próprias unhas, parte na execução desta tragédia!
tirei do solo pedras, que jogava Salisbury venceu treze batalhas;
contra os espectadores da vergonha foi ele que formou Henrique quinto
por que estava passando. Meu aspecto na arte da guerra; enquanto no ar soavam
assustador os fez correr a todos. trombetas ou rebates de tambores,
Com receio de expor-se a morte súbita não deixava seu gládio de abater-se
ninguém chegava a mim. Nem férreos muros sobre os cascos imigos. Ainda vives,
poderiam prender-me, acreditavam. Salisbury? Se a voz já te falece,
O medo do meu nome se espalhara sobra-te um olho para o céu fitares,
de tal modo, que todos me supunham em procura de graça. Com um só olho
capaz de desfazer grades de ferro pode o sol enxergar o mundo todo.
e de em pedaços reduzir vigotas Oh céu, não sejas bom para os que vivem,
de diamante. Por isso, me puseram se Salisbury carecer de graça.

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Levai-lhe o corpo; vamos sepultá-lo. MensaceIRO - Os franceses, milorde, nos atacam.


Ainda estás vivo, Sir Tomás Gargrave? O delfim, com uma tal Joana Pucela,
Conversa com Talbot, olha para ele. que é santa e profetisa, vem com forças
Sirva-te, Salisbury, de consolo consideráveis levantar o cerco.
saber que viverás até... (Salisbury geme e faz esforços para levantar-se.)
Faz-me sinal com a mão; sorri-me como TaLBor: Escutai como geme o moribundo
se me dissesse: após minha partida, Salisbury! A impotência de vingar-se
quando eu já não viver, lembra-te sempre
lhe parte o coração. Vou ser, franceses,
de vingar minha morte nos franceses.
para vós todos outro Salisbury.
Fá-lo-ei, Plantageneta e, tal qual Nero,
Pucela ou prostituta,
tocarei harpa contemplando o incêndio
delfim ou cão do mar, hei de marcar-vos
da cidade. Infeliz vai ser a França
só com o meu nome. os corações a patas de cavalo
(Trovões e relâmpagos; depois, alarma.) e a lama reduzir-vos os miolos.
Que tumulto é esse? Levai-me Salisbury para a tenda;
Que se passa no céu? De onde vem tanto em seguida veremos até que ponto
barulho e esse chamado para a luta? os covardes franceses têm coragem.
(Entra um mensageiro.) (Saem.)

Ato T- Cena V
O mesmo. Diante de uma das portas. Vou agora prover sobre alimentos
Rebate; escaramuças. Entra Talbot perseguindo o delfim para a cidade.
e obrigando-o a recuar. Depois, entra Joana la Pucelle, (Pequeno rebate; a Pucela entra para a cidade, com seus
fazendo sair à força vários ingleses. Talbot torna a entrar. soldados.)
Apanha-me, se o podes.
TaLsor: Onde está meu poder e minha força? Desprezo-te o poder. Vai dar coragem
Meu valor onde se acha? Nossas tropas aos ingleses famintos; vai! Ajuda
inglesas se retiram; já não posso Salisbury a fazer o testamento.
nem detê-las; a vista, unicamente, Foi nosso o dia; outros iguais teremos.
de arnesada mulher as põe em fuga. (Sai)
(Torna a entrar Joana la Pucelle.) TaLBor: Giram-me os pensamentos como roda
Ei-la! Quero provar a minha força. de moleiro; não sei onde me encontro,
Demônio ou mãe do diabo, eu te conjuro! nem o que faço. Aquela feiticeira,
És feiticeira; vou tirar-te sangue não por meio da força, como Aníbal,
para tua alma entregar logo ao diabo. mas influindo-lhes medo, expulsa as tropas
Joana- Vem, vem; ver-te-ás, assim, já derrotado. e vence onde lhe apraz, tal como o fumo
(Combatem.) faz às abelhas e o mau-cheiro às pombas,
TaLBor: Consentes, céu, que o inferno prevaleça? dos pombais e colmeias espantando-as.
Farei o coração em pedacinhos Nossa fereza nos valeu a alcunha
com a tensão da coragem, e dos ombros de cães ingleses; tímidos, agora,
os braços tirarei, contanto que hoje como cãezinhos, a ganir, fugimos.
castigue esta rameira corajosa. (Pequeno rebate.)
(Tornam a lutar.) Concidadãos, ou renovai o ataque,
Joana: Adeus, Talbot; tua hora ainda não veio. ou retirai os leões desses escudos!

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

Renunciai ao torrão pátrio, ponde Vós todos sois culpados do trespasse


cordeiros nessas armas, que não correm de Salisbury, pois ninguém se mexe
com mais temor dos lobos os cordeiros, para dar um só golpe em sua defesa.
nem do leopardo os touros e os cavalos, Penetrou a Pucela na cidade
do que vós o fazeis diante de escravos apesar de nós próprios e de quanto
pudéssemos fazer. Oh! se eu tivesse
que nós já tantas vezes subjugamos.
sorte igual à do grande Salisbury!
(Alarma; outra escaramuça.)
À vergonha me faz cobrir o rosto.
Não pode ser. Às tendas recolhei-vos! (Saem, carregando os corpos.)

Ato T- Cena VI
O mesmo. ALENÇON" Há que rejubilar a França inteira,
Aparecem sobre os muros Joana la Pucelle, Carlos, quando souber de como nos portamos.
Reignier, Alençon e soldados. Cartos: Não fomos nós, foi Joana a vencedora.
Por isso, quero seja também dela
Joana: Nossas cores ondeiam sobre os muros, minha coroa. Seu louvor infindo,
Orleans foi retomada dos ingleses; hão de cantar em procissão os monges
assim cumpriu Joana o prometido. e os padres do meu reino. Vou construir-lhe
CaRrLOS* Criatura divinal, filha de Astréia,
pirâmide mais alta que a de Mênfis
de que modo te honrar por tal vitória?
ou de Ródope e em sua remembrança,
Como o jardim de Adônis é o teu voto:
quando vier a morrer, pôr-lhe-ei as cinzas
um dia, todo em flor; no outro, só frutos.
França, exulta com tua profetisa numa urna mais preciosa do que o cofre
gloriosa: retomada foi Orleans! de Dario, com jóias recamado,
Maior bênção jamais nos coube em sorte. que levada será sempre nas festas,
ReicniER* Por que não repicarem logo os sinos diante dos reis da França e das rainhas.
da cidade? Delfim, ordena a todos Não mais diremos: “São Dionísio!” Joana
os cidadãos que acendam ledos fogos la Pucelle será a santa da França.
e que se banqueteiem ao ar livre, O banquete aprestemos; a vitória
pelas ruas, a fim de celebrarmos de hoje vai nos trazer excelsa glória.
o triunfo que por Deus nos foi mandado. (Saem.)

Ato IF - Cena l
Diante de Orleans. Assim se dá com os pobres
Aparecem na porta um sargento francês e duas sentinelas. servidores. Enquanto os outros dormem
sossegados na cama, nós vigiamos
SARGENTO À postos e olho aberto, meus senhores. sem ter vontade disso, neste escuro,
Se ouvirdes algum ruído, ou perceberdes tomando chuva e a tiritar de frio.
soldados junto aos muros, logo ao corpo (Entram Talboi, Bedford, Borgonha, com tropas e
da guarda nos mandai um claro aviso. escadas de escalar; os tambores tocam uma marcha
PRIMEIRA SENTINELA * fúnebre.)
Pois não, sargento. TaLBor: Lorde regente e vós, Borgonha excelso,
(Sai o sargento.) cuja chegada nos valeu as terras
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de Artois, da Picardia e o país Valão, ALENÇON Então, senhores! Ainda nestes trajos?
os franceses se crêem muito seguros O BastTARDO*
nesta noite feliz, tendo passado Ainda, e contentes por estarmos fora.
todo o dia em banquetes e festanças. ReIcNnIER* Sim, já era tempo de deixar os leitos,
Aproveitemos a oportunidade que o barulho até os quartos nos chegara.
para lhes darmos quitação da fraude ALENÇON-* Desde que comecei a trazer armas,
que só puderam realizar por meio jamais tive noticia de uma empresa
de arte diabólica e da mais funesta que se compare com esta em desespero
feitiçaria. e lance de ousadia.
BEDFORD : França sem coragem! O Bastarpo* Esse Talbot,
É ele mesmo que mancha sua alta fama; quero crer, é um espírito do inferno.
por não crer no vigor do próprio braço, REIGNIER* Se não o inferno, o céu o favorece.
junta-se a bruxas e recorre ao inferno. ALENÇON * Eis Carlos; maravilha que escapasse.
BorcoNHA* O BastarDO* Caluda! Santa Joana defendeu-o.
Os traidores não têm outros comparsas. (Entram Carlos e Joana la Pucelle.)
Mas quem é essa Pucela que apregoam CarLOS* Essa é a tua força, dama enganadora?
ser tão casta?
Quiseste lisonjear-nos, ensejando-nos
Tarsor: Uma virgem, dizem todos.
vitória no começo, para agora
BEDFORD : Uma virgem? E assim tão belicosa?
ser dez vezes maior a nossa perda.
BorconHa Rezemos para que ela não se mostre
Joana Por que se mostra Carlos impaciente
tão masculina assim por muito tempo,
com os amigos? Supondes ser possível
caso armada prossiga sob as cores
que o meu poder jamais se modifique?
dos franceses, tal como no começo.
Tenho de ganhar sempre, quer esteja
TarBor: Eles que continuem conversando
velando, quer dormindo, porque a culpa
com os espíritos. Deus é o nosso burgo;
não me atireis por tudo o que aconteça?
sob o seu nome incontrastável vamos
escalar estes muros de granito. Imprevidentes! Se tivesses feito
boa guarda, esta súbita derrota
BeproRD Sobe, bravo Talbot, que te seguimos.
TALBOT Juntos, não. É melhor, segundo penso, não poderia nunca ter-se dado.
entrarmos por lugares diferentes, CaRLOS* Foi vossa a falta, Duque de Alençon,
porque se acontecer que um de nós falhe, pois como comandante dos vigias
o outro pode enfrentar os inimigos. desta noite, não destes a importância
Beprorp : Muito bem; eu escalo aquele canto. devida a comissão tão delicada.
BorconHa- E eu este outro. ALENÇON* Se em vossos quarteirões a vigilância
TaLBoT* Talbot sobe por este, fosse tão eficiente como a minha,
ou cavará sua própria sepultura. não teríamos sido surpreendidos
Salisbury, por ti e pelo direito tão vergonhosamente.
do inglês Henrique, eis-me em combate! Possa O BasTARDO* No meu lado
revelar esta noite quanto eu me acho havia segurança.
pela dedicação a ambos ligado. Rerenier: Deigual modo
(Os ingleses escalam os muros aos gritos de “São Forge! no meu.
Talbot!” entrando todos na cidade.) CaRrLOS* Só sei dizer que toda a noite
PrIMEIRA SENTINELA* passei andando de um para outro lado
Às armas! O inimigo nos assalta! na porção que tocou a mim e a Joana,
(Os franceses saltam os muros, em camisa. Entram por revistando sem pausa as sentinelas.
lados diferentes, o bastardo de Orleans, Alençon, Reignier, Mas afinal, por onde eles entraram?
incompletamente vestidos.) Joana: Não vem ao caso essa questão, milorde,

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VI

por onde, ou de que modo. Não padece (Rebate; entra um soldado inglês gritando “Talbot! Talbot!”
dúvida que um lugar eles acharam Todos fogem, deixando as vestes.)
mal vigiado, por onde entrar puderam. SoLDADO" Sou dono de quanto eles me deixaram.
Agora só nos resta este recurso: O só nome “Talbot” me é como espada,
reunir as nossas forças tresmalhadas pois estou carregado de despojos
e excogitar os meios de causarmos sem usar de outras armas que seu nome.
novos e grandes danos ao inimigo. (Sai)

Ato IH Cena ll
Orleans. Dentro da cidade. pus em fuga o delfim e sua amásia,
Entram Talbot, Bedford, Borgonha, um capitão e outros. quando, de braços dados, eles iam
como um par de rolinhas amorosas,
Beprorp O dia já começa; a noite foge que dia e noite estão sempre juntinhos.
com seu manto de pez que nos cobria. Depois que tudo aqui ficar em ordem,
Mandai cessar a caça aos inimigos. com toda a nossa força os persigamos.
(Toque de retirada.) (Entra um mensageiro.)
TaLBor* Ponde o corpo do velho Salisbury Mensaceiro * Milordes, salve! Aqui, nesta assembléia,
na praça do mercado, bem no meio quem tem o nome de Talbot guerreiro,
da cidade maldita. Considero tão famoso e aplaudido em toda a França?
pago o voto dicado à sua alma nobre, Tazsor- Talbot sou eu. Quem é que quer falar-me?
já que, por cada gota de seu sangue, MENSAGEIRO *
cinco franceses, pelo menos, esta A Condessa de Auvergne, alta e virtuosa,
noite morreram. Para que as idades admirando, modesta, o teu renome,
futuras venham a saber da ruína por mim, grande senhor, te pede queiras
feita para vingá-lo, neste templo no seu pobre castelo visitá-la,
principal vou mandar construir um túmulo para que ela, orgulhosa, dizer possa
para nele depormos seus despojos, que contemplou o herói cuja alta glória
e aí farei gravar, para que todos por todo o mundo em seu louvor ressoa.
possam ler, os horrores deste saque, BorconHa- Sério? Pelo que vejo, nossa guerra
a maneira traiçoeira de sua morte vai transformar-se em cômico desporto,
e o pavor que na França ele infundia. pois que as damas aprazam entrevistas.
Mas, senhores, admira-me que em nosso Não podeis recusar esse convite,
cruento morticínio não tenhamos milorde, tão gentil.
encontrado o delfim nem sua nova TaLsor: Decerto; crede-me.
campeã, essa virtuosa Joana d'Arc, O que a um mundo de gente nunca fora
nem qualquer de seus falsos companheiros. possível com os recursos da oratória,
Beprorp Dizem, Lorde Talbot, que eles saltaram é fácil à bondade feminina.
das camas sonolentas no começo Dizei-lhe que lhe envio muitas graças
da refrega e pularam as muralhas e que, submisso, intento visitá-la.
por entre homens armados, para abrigo Vossas Honras não querem secundar-me?
procurarem no campo. BEDFORD"
BorcoNHA* Eu próprio, — quanto De forma alguma; é contra os bons costumes.
me era possível distinguir no meio Hóspede oferecido, como dizem,
da fumaça e da névoa desta noite — só é bem-vindo quando se despede.

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TaLBor: Se não há outro jeito, irei sozinho (Fala-lhe ao ouvido.)


pôr à prova a hospedagem da senhora. Já me entendestes.
Capitão, vinde cá. CarrrÃo - Sim, milorde; farei como o ordenastes.
(Saem.)

Ato IH: Cena HI


Auvergne. Pátio de um castelo. ConpEssa* Que disse ele? Pergunta-lhe aonde vai.
Entram a condessa e o porteiro. MensacEIRO : Parai, Lorde Talbot; minha graciosa
senhora desejara que dissésseis
ConDESsA* Porteiro, tomai nota da incumbência a razão de voltardes tão depressa.
que vos dei. Uma vez cumprida a ponto, TaLBor: Ora essa! Por estar ela enganada,
trazei-me logo as chaves. vou sair, para a prova, alfim, trazer-lhe
PORTEIRO * Sim, senhora. de que Talbot, de fato, está presente.
ConpEssa* À cilada está pronta; se der tudo (Volta o porteiro, com as chaves.)
certo até o fim, hei de ganhar mais nome ConDESsA* Se és ele mesmo, então és prisioneiro.
do que a rainha cítica, Tomíris, Tarsor- Prisioneiro! De quem?
com o trespasso de Ciro. É grande a fama ConDESSA* Meu, sanguinário
do temível herói, de acordo, em tudo, senhor! Por isso mesmo quis que viesses
com o que dele se conta. Só desejo à minha casa. Tua sombra, há muito,
confirmar pela vista o que os ouvidos se encontra a meu dispor, pois teu retrato
já sabem de tão altas maravilhas. já faz parte de minha galeria.
(Entram o mensageiro e Talbot.) Mas sorte igual teu ser vai ter agora;
MENSAGEIRO * Condessa, vou pôr-te a ferros, pés e mãos atados,
de acordo com o desejo que expendestes, por haveres, tirano, tantos anos
chamado por mensagem, aqui se acha dilapidado este país, matado
Lorde Talbot. nossos homens e posto em cativeiro
Conpessa: Bem-vindo seja. Como! nossos maridos e os filhinhos caros.
Esse homem? Tarsor: Ah,ah,ah!
MENSAGEIRO * Sim, senhora. ConpEssa* Estás rindo, bandido? Essa alegria
ConDESSA* Esse é o flagelo dentro em pouco em gemidos vai mudar-se.
da França? Esse é o Talbot que tanto aí fora TaLBor* Alegro-me, por ver Vossa Excelência
se faz temer, e cujo nome serve na ilusão de possuir mais do que a sombra
para infundir pavor nas nossas crianças? de Talbot, para nela exercitar
Vejo que a fama é fabulosa e falsa. cruel severidade.
Esperava ora ver um segundo Hércules, ConpDEssa: Não sois ele?
outro Heitor de terrível catadura, TaLBoT* Sim, em pessoa.
membros fortes e em tudo bem talhado. ConDESSA* O original, portanto.
Este não passa de um menino, um simples TaLBoT:
anão. Não pode ser; uma criatura Não sou mais do que a sombra de mim próprio.
tão fraca e assim mirrada não pudera Há engano; o original não está presente,
causar tanto pavor aos inimigos. porque o que vedes é a menor das partes
TaLBor- Vejo que minha vinda é inoportuna. de minha humanidade, porção mínima.
Se Vossa Senhoria não se encontra Afirmo-vos, senhora, se estivesse
disposta, voltarei noutra ocasião. toda a figura aqui, de tão notável

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Henrique VI

proporção e grandeza, vosso teto que de muito te excede essa aparência.


não fora suficiente a comportá-la. Não te zangues com meu atrevimento,
ConDESsA : É um vencedor que fala por enigmas: pois estou desolada pela falta
está aqui e está longe, ao mesmo tempo. de reverência que mostrei, tratando-te
De que modo entender essa embrulhada? de modo tão contrário ao que mereces.
TaLBor: Vou mostrar-vos já, já. TaLBor: Não vos amotineis, graciosa dama;
(Sopra na trompa. Ouve-se toque não quero que Talbot vos desiluda
de tambor e, logo após, uma descarga. no que concerne ao espírito, tal como
Os portões são arrombados; entram soldados.) sobre a forma do corpo o fez há pouco.
Então, senhora, Vossos atos em nada me ofenderam.
que dizeis disso? Não estais convicta Outra satisfação de vós não peço
de que Talbot é a sombra de si próprio? senão, com vosso agrado, ser-nos dado
Eis a sua substância, a força, os braços provar do vosso vinho e vera espécie
e os tendões. É com isto que ele ao jugo de iguarias que tendes, porque o estômago
os pescoços de vossa gente obriga do soldado está sempre bem-disposto.
e vos arrasa os burgos, e as cidades ConpeEssa: De todo o coração. E podeis crer-me
vos submete, deixando-as desoladas. que muito honrada estou por ter agora
ConpEssa* Vitorioso Talbot, o erro perdoa-me; no castelo um guerreiro tão famoso.
em tudo és digno, vejo-o, da alta fama, (Saem.)

Aro TT+ Cena IV


Londres. O jardim do templo. mas em julgar coisas sutis não caio;
Entram os Condes de Somerset, Suffolk e Warwick; sou tão bisonho nisso como um gaio.
Ricardo Plantageneta, Vernon e um jurista. PLANTAGENETA * Isso é modo elegante de esquivar-se.
À nudez da verdade é tão patente
PLANTAGENETA* do meu lado, que até vista de míope
Que quer dizer este silêncio, ilustres poderá discerni-la sem trabalho.
nobres e gentis-homens? Ninguém ousa SomERSET:* E tão ataviada ela se encontra
falar, quando se trata da verdade? do meu lado, tão clara e reluzente,
SurroLk* No templo tudo repercute muito; que até vista de cego pode vê-la.
acho o jardim lugar mais conveniente. PLANTAGENETA*
PLANTAGENETA* Ora dizei-me se eu falei verdade, Pois que sois assim parcos de discursos,
ou se o erro é do bulhento Somerset. revelai por sinais o pensamento:
SurroLK: Sempre fui estudante preguiçoso que todo verdadeiro gentil-homem,
no que respeita à lei; por não ter nunca zeloso de seus títulos nativos,
podido submeter-me ao seu talante, se estiver convencido do que eu disse,
obriguei-a a dobrar-se a meus caprichos. colha uma rosa branca, como o faço.
SomERSET* Sereis, então, Lorde Warwick, o juiz. SomERSET" Pois quem não for adulador e fraco
Warwick Dos falcões, qual se libra a mor altura; e ousar ficar do lado da verdade,
dos cachorros, qual uiva com mais força; tire destes espinhos uma rosa
dos corcéis, qual tem marcha mais macia; vermelha, como o faço.
das jovens, qual é de olhos mais brilhantes... WARWICK * Não me agradam
É possível que em todos esses casos corantes; sem as cores da lisonja
eu decida com algum conhecimento; rastejante e jeitosa, eu me decido

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por uma rosa branca, justamente SomersET : Plantageneta, a tua tem espinhos?
como Plantageneta deu o exemplo. PLANTAGENETA *
SurFOLK* E eu apanho uma rosa rubra, como Sim, possui um, pontudo e de bom corte,
o jovem Somerset, por estar certo com que eu defenda o meu direito, ao passo
de que ele em tudo se acha com a verdade. que a tua nutre o bicho da mentira.
Vernon: Parai de colher flores, meus senhores; SOMERSET*
não prossigais sem decidirdes antes Hei de, certo, encontrar amigos que usem
que o lado que ficar com menos rosas minha rosa de sangue e que sustentem
à opinião do adversário se submete. a verdade de tudo quanto eu disse,
SOMERSET* sendo que tu, Plantageneta hipócrita,
Meu bom mestre Vernon, bem observado; correrás com vergonha de ser visto.
se menos eu tiver, quieto subscrevo. PLANTAGENETA* Por esta rosa virginal que tenho
PLANTAGENETA* Eu também. na mão, eu te desprezo e aos teus comparsas,
VERNON: Então, em nome da verdade, como rapazinho teimoso.
da evidência da causa, esta flor pálida SUFFOLK* Não dirijas,
e virginal eu colho, decidindo-me, Plantageneta, para nós o escárnio.
desta maneira, pela rosa branca. PLANTAGENETA"
SomerseT: Cuidado! Não te piques ao colhê-la, Faço-o, Pole orgulhoso; eu vos desprezo
porque teu sangue não transforme a rosa a ambos sem distinção.
branca em rosa vermelha, o que faria SUFFOLK* A minha parte
ficares do meu lado a contragosto. hei de enfiar-te no peito.
VERNON Se por minha opinião eu perder sangue, SOMERSET* Basta, basta,
milorde, essa opinião será meu médico, bom William de la Pole; conferimos
para curar-me logo e, assim, deixar-me muita honra a este labrego, discutindo
do lado em que me encontro por vontade. com ele tanto tempo.
SomERSET* Bem; vamos. Quem mais quer? Warwick" Por Deus, é ser injusto, Somerset.
O Jurista (a Somerset) . O avô dele era o Duque de Clarence,
Se meus livros e o estudo não me enganam, Lionel, terceiro filho do terceiro
as razões que aduzis não vos amparam. Eduardo da Inglaterra. De raízes
Por isso, eu colho uma das rosas brancas. tão fundas brotam rústicos sem títulos?
PLANTAGENETA* PranTAGENETA* Ele é aproveitador dos privilégios
E agora, Somerset, onde se encontra do lugar. Não fora isso, o peito fraco
vosso argumento? não lhe permitiria dizer nada.
SOMERSET: Aqui, nesta bainha, SoMERSET: Por quem me deu à luz, hei de a palavra
pensando na maneira por que possa sustentar em qualquer parte de nossa
deixar tinta de sangue a rosa branca. cristandade. Teu pai, Ricardo, Conde
PLANTAGENETA* Nas faces, enquanto isso, falsificas de Cambridge, não foi executado
a cor de nossas rosas, pois se encontram como traidor, no tempo do rei morto?
descoradas de medo, em testemunho E essa traição não te atingiu, manchando-te,
de que a verdade está do nosso lado. corrompendo-te e excluindo-te do quadro
SomERSET:* Perdão, Plantageneta, não de medo, da nobreza da terra? Ainda carregas
mas de cólera, à vista dessas faces no sangue mancha do seu ato ignóbil.
que imitam nossas rosas e se tornam És um labrego, até que não te limpes.
vermelhas de vergonha. Apesar disso, PLANTAGENETA* Acusaram meu pai, porém contra ele
não te confessa a língua o erro em que te achas. nada ficou provado. Muito embora,
PLANTAGENETA* Tua rosa não tem bicho, de fato, o houvessem condenado à morte
Somerset? como traidor, traidor não foi, jamais,

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Henrique VI

e isso eu sustentarei contra pessoas PLANTAGENETA* Que de afrontas


de títulos melhores que os do próprio sou forçado a agientar sem fazer nada!
Somerset, quando o tempo, no seu curso, Warwick: Á mancha que eles atiraram contra
madurar meu desejo. Quanto ao vosso vossa casa há de ser limpa no próximo
comparsa Pole, e a vós, hei de inscrever-vos parlamento, chamado para as tréguas
no livro da memória, a fim de dar-vos entre Winchester e Gloster. Se não fores
o castigo por esta afronta de hoje. nessa ocasião criado Duque de York,
Que vos acauteleis é o que vos digo. renuncio ao meu título de Warwick.
SOMERSET"* Enquanto espero e como testemunho
Pois que seja; estaremos sempre prontos
do amor que te dedico e do ódio imenso
e hás de reconhecer-nos como imigos
ao orgulhoso Somerset e a William
por esta cor que, a teu mau grado, havemos
de la Pole, contigo uso esta rosa,
de trazer sempre.
profetizando que a disputa que hoje
PLANTAGENETA* Por minha alma, eu juro
criou no jardim do templo os dois partidos
que, em sinal do meu ódio sanguinário,
vai mandar, de uma rosa e de outra rosa,
eu levarei, como do meu partido,
sempre uma rosa pálida e colérica, mil almas para a Morte tenebrosa.
até murchar comigo no meu túmulo PLANTAGENETA'*
ou florescer na altura do meu posto. Meu bom mestre Vernon, fico-vos grato
SurroLk* Continua, até seres asfixiado por terdes minha flor também colhido.
pela própria ambição. E agora, adeus, VERNON: Que hei de sempre trazer para louvar-vos.
até que eu venha a te encontrar de novo. O Jurista: O mesmo farei eu.
(Sai) PLANTAGENETA* Obrigado, senhores.
SomerseT* Eu te acompanho, Pole. Passai bem, Ora vamos jantar, sem mais logiela;
ambicioso Ricardo. vai custar muito sangue esta querela.
(Sai) (Saem.)

Ato I Cena V
Londres. Um quarto na Torre. se curvam sob o fardo das agruras;
Entra Mortimer, carregado por dois carcereiros, numa os braços dessangrados se assemelham
cadeira de braços. a vinha que no solo arrasta os ramos
sem seiva e sem vigor. Os pés, contudo,
MorriMER* Cuidadosos guardiões da minha fraca entorpecidos da inação forçada,
velhice, ora deixai que o moribundo não mais podendo suportar o peso
Mortimer fique aqui. Como pessoa desta pouca de argila, asas revelam
retirada do potro do suplício, do anelo do sepulcro, por saberem
sinto os membros, após prisão tão longa. que me falece outro qualquer recurso.
Estes cabelos brancos, mensageiros Mas meu sobrinho, carcereiro? Vem?
da Morte, envelhecidos em cuidados, PrimEIRO CARCEREIRO *
como o idoso Nestor, o fim de Edmundo Senhor, Plantageneta está em caminho;
Mortimer já proclamam. Estes olhos, mandamo-lo chamar no quarto dele,
como lâmpadas de óleo esperdiçado, no templo. Respondeu-nos que viria,
já se tornaram foscos, sinal certo sem demora, aqui ter.
de estar chegando o fim; os ombros débeis MoRTIMER * E o suficiente.

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Com isso vai rejubilar minha alma. dizei-me a causa de haver sido o Conde
Pobre rapaz! Sofreu, como eu, afrontas. de Cambridge, meu pai, decapitado.
Dês que Henrique Monmouth foi coroado, MoRTIMER* À causa de eu ser preso, meu sobrinho,
antes de cuja glória eu era tido e haver passado toda a florescente
como grande nas armas, vivo nesta mocidade num cárcere nojoso,
sequestração odiosa, ao mesmo tempo para aí definhar, foi o instrumento
que Ricardo passou para a penumbra, maldito de sua morte.
privado de suas honras e da herança. PLaNTAGENETA: Minuciosa
No entanto, agora, o juiz do desespero, explicação te peço dessa causa,
a Morte, árbitro equânime de todas que eu nada sei, nem faço conjeturas.
as misérias humanas, vai soltar-me, MorrIMER* Di-lo-ei, se o permitir o sopro exíguo
concedendo-me a doce liberdade. e a morte não me vier sem que eu termine.
Desejara que o fim de seus cuidados, O avô do rei atual, Henrique quarto,
também, fosse chegado, para que ele depôs Ricardo, seu sobrinho, filho
pudesse recobrar lodo o perdido. de Eduardo, primogênito e legítimo
(Entra Ricardo Plantageneta.) de Eduardo, rei, terceiro dessa série.
PRIMEIRO CARCEREIRO* Mas os Percys do norte, parecendo-lhes
Vosso amado sobrinho vem chegando, injusta a usurpação, um movimento
milorde. tentaram para ao trono me levarem.
Morrimer* Meu amigo aí está, Ricardo Baseavam-se os fidalgos belicosos
Plantageneta? no seguinte argumento: uma vez morto,
PLANTAGENETA* Sim, meu nobre tio; sem herdeiro direto, o Rei Ricardo,
ofendido por modo ignominioso, quem mais perto do trono ficaria,
chega vosso sobrinho, este Ricardo, por parentesco e sangue, era eu, pois minha
com recentes injúrias. mãe me ligava ao Duque de Clarence,
MORTIMER* Põe-me os braços Lionel, filho terceiro do terceiro
de modo que cingir-lhe o colo eu possa, Eduardo, sendo que ele vinha apenas
e exalar-lhe no seio o último alento. do quarto garfo desse tronco heróico,
Avisa-me no instante em que meus lábios João de Gaunt. Observa ora o que segue:
lhe tocarem no rosto, porque um beijo enquanto nessa grande e altiva empresa
fraco, mas afetuoso, eu possa dar-lhe. tentavam eles pôr no trono o herdeiro
Ora, garfo gentil do grande tronco legítimo, eu perdia a liberdade
de York, por que motivo te referes e eles a vida. Decorridos anos,
a recentes injúrias? reinando Henrique quinto, após a morte
PLANTAGENETA* O cansado de seu pai Bolingbroke, o teu saudoso
corpo apóia, primeiro, neste braço pai, Duque de Clarence, que de Edmundo
para, mais à vontade, me escutares Langley provinha, o grande Duque de York,
todos os sofrimentos. Hoje eu tive tendo esposado minha irmã, tua mãe,
com Somerset uma disputa acerba. de meu grande sofrer compadecido,
Na acalorada troca de palavras reuniu forças, visando a libertar-me
fez ele uso da língua extravagante, c a fronte me adornar com o diadema.
ao rosto me lançando a triste morte Mas, como os outros, foi o nobre conde
de meu pai. À censura me pôs trancas também decapitado. Assim ficaram
na boca; do contrário, eu lhe teria os Mortimer, extintos, que podiam
à justa revidado. Por tudo isso, aspirar, com direito, à sucessão.
meu tio, em nome de meu pai e da honra PLANTAGENETA*
de um leal Plantageneta, de nós todos, Dos quais Vossa Honra é o último, milorde.

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MORTIMER* Dá ordem, simplesmente, para o enterro.


Certo. Mas, como vês, não deixo filhos E assim, adeus; que tudo te sorria;
e minha voz truncada inculca morte. sê próspero, na paz como na guerra.
És meu herdeiro: o resto é só contigo; (Morre.)
mas sê prudente em tudo o que fizeres. PLANTAGENETA*
PLANTAGENETA* Que tenha paz, não guerra, tua alma nobre
Jamais esquecerei esses conselhos. no instante de partir. Naquele cárcere
Mas agora reflito que a sentença tua existência inteira consumiste,
dada contra meu pai foi simplesmente como eremita os dias aí passando.
ato de sanguinária tirania. Sim, vou trancar no peito o seu conselho:
MorriMER* Sobrinho, sem falar faze política. nada direi, nem mesmo em frente ao espelho.
À casa de Lencastre se acha fixa Carcereiros, levai-o daqui logo.
mais do que uma montanha; é inabalável. Eu próprio vou prover para que tenha
Ora o teu tio vai mudar de pouso, p melhor enterro do que vida teve.
tal como os reis o fazem com suas cortes, (Saem os carcereiros, carregando o corpo de Mortimer.)
quando lhes chega o enfado, após ficarem Assim, a fosca tocha deste Mortimer
parados muito tempo num só ponto. se extinguiu, abafada sob o peso
PLANTAGENETA: das ambições de seres inferiores.
Se eu pudesse, meu tio, com uma parte Quanto às injúrias e as ofensas todas
de minha mocidade comprar esse lançadas contra os meus por Somerset,
curso assaz apressado da velhice! não duvido: hei de obter condigna e plena
MorrIMER* Serias para mim como o açougueiro reparação. E agora, ao parlamento,
que multiplica os golpes, quando fora ou para ver-me ao sangue reintegrado,
fácil tirar a vida com um somente. ou transformar em bem o averso fado.
Não chores, se o meu bem não te entristece. (Sai)

Ato HI Cenal
Londres. Casa do parlamento. Não penses que, por ter eu preterido
Clarins. Entram o Rei Henrique, Exeter, Gloster, escrever a falar sobre teus crimes
Warwick, Somerset e Suffolk; o Bispo de Winchester, abomináveis, haja em qualquer ponto
Ricardo Plantageneta e outros. Gloster faz menção de deturpado a verdade, ou que não possa
entregar ao rei um memorial; Winchester lho arrebata e verbatim repetir, inteiro, o escrito.
rasga. Não, prelado! A maldade que estadeias
é de tal imprudência, tão pestíferos
WINCHESTER * Trazes linhas assim premeditadas, e lascivos teus planos de discórdia,
panfletos com cuidado redigidos, que até as crianças glosam teu orgulho.
Humphrey de Gloster? Se acusar-me queres, Não passas de usurário pernicioso,
ou contra mim tramar alguma coisa, inimigo da paz, naturalmente
faze-o espontaneamente, sem rebuços, maldoso, mais lascivo e dissoluto
como eu falar pretendo, contestando-te do que se esperaria de pessoa
os argumentos todos, de improviso. de tua situação e de teu posto.
GLosTER* Oh padre estulto! Este lugar me inculca Quanto à tua traição, que há de mais claro?
paciência. À não ser isso, eu te faria Patenteia-se em todas as ciladas
sentir até que ponto me insultaste. que contra a minha vida arquitetaste,

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a da Ponte de Londres, e a da Torre. WARWICK E eu quero crer que Sua Senhoria


Se fôssemos sondar-te os pensamentos, deveria mostrar-se mais humilde.
receio que até o rei, teu soberano, Não vão bem tais maneiras a um prelado.
viria a cair presa da malícia SOMERSET*
invejosa que te infla o coração. Vão bem, quando o seu posto sacrossanto
WincHESTER * Desafio-te, Gloster! Concedei-me, se vê tratado assim com tal desprezo.
senhores, à defesa, ouvido atento. WARWICK" Sacrossanto ou profano, a que isso agora?
Se eu sou o que ele diz, perverso, torpe, Não é Sua Graça o protetor do rei?
ambicioso, por que vivo assim tão pobre? PLANTAGENETA (à parte) -
E como há de explicar-se que eu não cuide Plantageneta, importa que te cales,
de prosperar ou de auferir proventos, para não se dizer: “Falai somente
sempre adstrito às minhas ordinárias quando fordes chamado. Acaso pode
obrigações? No que respeita à pecha vossa altiva opinião ser atendida,
de turbulento, quem, como eu, se mostra quando os nobres discutem?” Não fora isso,
mais amigo da paz, naturalmente, contra Winchester jogara o meu sarcasmo.
quando não provocado? Não, milordes, Rer HENRIQUE:
meu crime é outro; a causa de irritar-se Tios de Winchester e de Gloster, guardas
de tal maneira o duque, é não se ver especiais da Inglaterra; desejara,
sozinho no governo. Ele, somente, se minhas preces fossem eficazes,
deveria estar junto do monarca. em amor e amizade conciliar-vos.
Esse o motivo dos trovões, senhores, Constitui para o reino grande escândalo
que no peito lhe roncam, incitando-o dois fidalgos tão nobres digladiarem.
a rugir contra mim tantas diatribes. Podeis crer-me, milordes, que até os anos
Mas há de ver que eu sou tão bom... inexperientes dizem que as discórdias
GLOSTER* Tão bom? intestinas são víboras nocivas
tu, que és de meu avô simples bastardo? que por dentro destroem a causa pública.
WincHESTER * Oh senhor importante! Por obséquio , (Ouvem-se gritos de: “Abaixo os uniformes amarelos!”
que sois mais do que um tipo prepotente Que barulho é esse?
em um alheio trono? WARWICK * Alguma rixa, aposto,
GLOSTER* Por acaso nascida da malícia dos do bispo.
não sou eu o protetor, padre lascivo? (Novos gritos de: “Pedras! Pedras!”
WINCHESTER" (Entra o prefeito de Londres, com escolta.)
E um prelado eu não sou da santa Igreja? PREFEITO"
GLosrTER* Como um proscrito, sim, que se apodera Oh meus bons lordes, meu virtuoso Henrique!
de um castelo, onde esconde os próprios roubos. tende pena de Londres e do povo!
WincHESTER * Gloster irreverente! Porque estavam proibidos de usar armas,
GLOSTER* Reverendo tanto os homens do bispo como a gente
és nas funções, apenas, não na vida. do partido de Gloster, bolsos cheios
WINCHESTER * de pedras, em dois campos divididos,
Para isso Roma há de prover os meios. com tal fúria uns aos outros as cabeças
GLosrER: Vai lá, em romaria. apedrejaram, que o leviano cérebro
SoMERSET* Deveríeis de alguns arrebentou. Por essas ruas
comedir-vos, milorde. só se vêem estilhaços de vidraças
WARWICK * Vede apenas de janelas, razão por que ficamos
que o bispo não exceda seus limites. forçados a fechar as nossas lojas.
SoMERSET* Penso que deveríeis ser mais pio, (Entram, a lutar, com as cabeças ensangilentadas, os
reconhecendo o que à função compete. homens de Gloster e de Winchester.)

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Rer HENRIQUE: GLosrER * Por piedade


Intimo-vos, em nome da obediência do rei, vou dar o exemplo. Não fora isso,
que me deveis, a vos absterdes desse e desse padre o coração tirara
morticínio e a firmardes amizade. antes de vir a lhe ceder terreno.
Por favor, tio Gloster, acalmai-os. WARWICK *
PrIMEIRO CRIADO Lorde de Winchester, vede como o duque
Se nos proibirem pedras, brigaremos já baniu para longe a fúria e a cólera
a dentadas. descontentes; a fronte lisa o mostra.
SEGUNDO CRIADO Fazei como quiserdes, Por que, então, esse olhar tão duro e trágico?
que estamos de igual modo resolvidos. GLosrER* Winchester, está bem; a mão te estendo.
GLosTER * Homens da minha casa, tomai tento!
Rei Henrique: Ora, tio Beaufort, já vos ouvira
Deixai dessa contenda mais que tola. pregar sobre o rancor, que condenáveis
TErcEIRO CRIADO *
como pecado grave. Ireis agora
desmentir vosso próprio ensinamento,
Milorde, todos nós sabemos quanto
contumaz vos mostrando nesse ponto?
Vossa Graça é direito e justiceiro,
Warwick: Bondoso soberano, é muito justa
e que só cede a Sua Majestade
essa vossa censura. Envergonhai-vos,
na realeza do berço. E antes de vermos
milorde! Cedei logo! Há de ensinar-vos
um príncipe tão grande, um pai bondoso
uma criança o que deveis fazer?
da república assim tão maltratado
WincHEsTER * Duque de Gloster, seja! Retribuo-vos
por essa gente que usa pena e tinta,
a amizade; esta mão vos assegura.
lutaremos, ao lado das esposas
GLOSTER (à parte) *
e dos filhos, até que os adversários
Sim, mas receio muito que em tudo isso
nos reduzam os corpos a pedaços. não entre o coração. Caros amigos
Primeiro CRIADO* e compatriotas! Sirva de bandeira
Quando estivermos mortos, as aparas
de tréguas esta marca, entre nós próprios
de nossas unhas cavarão os campos. e nossos partidários. Deus me ampare
(Tornam a engalfinhar-se.) por eu ter sido em meu falar sincero.
GLOSTER Parai, parai, vos digo! WINCHESTER *
Se me tendes amor, como o afirmastes, Deus me ampare, se eu penso em ser sincero.
escutai-me e abstende-vos de brigas. Rer Henrique: Bravo Duque de Gloster, caro tio,
Rer HENRIQUE: que alegria me causa esse contrato!
Como essas rixas a alma me compungem! Amigos, acabaram-se as disputas.
Lorde de Winchester, como indiferente Reconciliai-vos, como os vossos amos.
ficais, vendo-me em lágrimas desfeito? PrimeIRO CRIADO *
Se não só vós, quem mais será piedoso? Seja! Vou procurar um cirurgião.
Quem há de promover a paz, se os homens SEGUNDO CRIADO *
da Igreja se comprazem com a discórdia? Eu também.
Warwick Cedei, milorde protetor! Cedei TercEIRO CRIADO *
Winchester! Salvo se quereis com essa E eu vou ver se encontro médico
recusa desgraçar vosso monarca numa boa taberna.
juntamente com o reino. Estão patentes (Saem o prefeito, criados, etc.)
os males, sim, os crimes de homicídio Warwick" Recebei esta folha, meu gracioso
decorrentes de vossa inimizade. soberano, que, em nome do direito
Acalmai-vos, portanto, se não tendes de Ricardo Plantageneta
sede de sangue. pomos nas mãos de Vossa Majestade.
WincHESTER * Ceda ele primeiro, GLOSTER*
que eu jamais me rebaixo. Lorde Warwick, muito bem! Bondoso príncipe,

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se observar Vossa Graça as circunstâncias Topos Salve o grande fidalgo, o poderoso


todas do caso, há de encontrar motivos Duque de York!
para dar a Ricardo o seu direito, SOMERSET (à parte) * Pereça o abjeto príncipe,
máxime pelas causas que eu em Eltham o ignóbil Duque de York!
com mais vagar já expus a Vossa Graça. GLOSTER* Fora só de vantagem para Vossa
Rer HENRIQUE Graça cortar o mar e ir até à França,
Essas causas, bom tio, eram de peso. para lá ser coroado. O simples fato
Por isso, caros lordes, nosso alvitre da presença do rei aumenta o afeto
decide que Ricardo seja ao sangue dos amigos leais e de seus súditos,
reintegrado dos seus. bem como desanima os inimigos.
WARWICK * Ao próprio sangue Rer HENRIQUE"
seja ele reintegrado, como justa O parecer de Gloster é uma ordem
recompensa de quanto ao pai foi feito. para o rei. Um conselho de amizade
WINCHESTER" destrói muitos imigos.
Winchester não discorda dos presentes. GLOSTER* Os navios
Rei HENRIQUE:
de Vossa Majestade já estão prontos.
Se Ricardo for fiel, não isso apenas
(Clarins. Saem todos, com exceção de Exeter.)
será dele, mas quanto por herança
ExeTER - Ir à França ou pisar na pátria é o mesmo,
se não podemos ver o que é provável
pertence à casa de York, de onde em linha
nos melhore o destino. Essa recente
direta descendeis.
briga dos pares arde sob as cinzas
PLANTAGENETA* O servo humilde
fingidas de uma falsa cortesia,
vos protesta obediência, prometendo
mas vai logo explodir em chama ardente.
de grado vos servir, enquanto vivo.
Como os membros aos poucos apodrecem
Rer HENRIQUE"
até caírem nervos, carnes e ossos:
Abaixai-vos, entanto, e o pé tocai-me
assim vai dar-se com esta vil discórdia.
com o joelho, e em recompensa desse preito Ora receio venha a realizar-se
de homenagem, à espada valorosa a fatal profecia que no tempo
vos cinjo dos de York. Levantai-vos,
de Henrique quinto andava até na boca
como um Plantageneta, bom Ricardo; das crianças de peito: que um Henrique
levantai-vos criado Duque de York. de Monmouth chegaria a ganhar tudo,
PLANTAGENETA* e um Henrique nascido em Windsor, tudo
Que Ricardo prospere e abaixem vossos chegaria a perder, o que é tão claro
inimigos. E assim como se eleve que Exeter só deseja que seus dias
minha fortuna, morram quantos ousem terminem antes dessa triste idade.
murmurar contra Vossa Majestade, (Sai)

Ato HI Cena Il
França. Diante de Ruão. no modo de empregardes as palavras;
Entram Joana la Pucelle, disfarçada, e soldados, em trajos falai como pessoas que se reúnem
de camponeses, com sacos às costas. na praça do mercado, para o trigo
vender por bom dinheiro. Se obtivermos
Joana Eis a porta de Ruão, que nossa astúcia entrada, como o espero, por acharmos
precisa derrubar. Tomai cuidado as sentinelas fracas e indolentes,
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VI

farei sinal aos nossos companheiros os planos infernais com tal segredo
para o ataque de Carlos, o delfim. soube tecer, que mal nos foi possível
PrIMEIRO SOLDADO * escapar de cair presa de França.
Os sacos vão servir-nos para o saque (Sai)
da cidade, fazendo-nos senhores (Alarma. Movimento de tropas. Trazido da cidade,
de Ruão. Batamos logo. doente, em uma cadeira, entra Bedford: entram Talbot
(Batem.) e Borgonha, com soldados ingleses; depois, por cima dos
Guarpa (dentro) Qui est à? muros, aparecem Joana la Pucelle, Carlos, o bastardo de
Joana: Paysans, pauvres gens de France; Orleans, Alençon e outros.)
gente que vem à feira vender trigo. Joana- Bom dia, meus valentes. Tendes falta
GUARDA (abrindo as portas) * de trigo para pão? Penso que o Duque
Entrai; já soou o sino do mercado. de Borgonha terá de jejuar muito
Joana Vou derrubar-te, Ruão, as fortalezas. antes de comprar outro por tal preço.
(Foana la Pucelle, etc. penetram na cidade.) Continha muito joio? E o gosto, bom?
(Entram Carlos, o bastardo de Orleans, Alençon e tropas.) BorconHaA
CarLOS* Abençoe-nos o plano São Dionísio, Podes chasquear de nós, rameira imunda,
para que consigamos novamente demônio sem pudor. Hei de asfixiar-te
dormir calmos em Ruão. sob o teu trigo, até que te arrependas
O BasTARDO' Por este ponto da colheita alcançada.
foi que a Pucela entrou com seus sequazes. CARLOS* Vossa Graça
Mas, uma vez lá dentro, de que modo até lá poderá morrer de fome.
se arranjará para indicar o meio BEDFORD*
mais seguro e melhor de a acompanharmos? Vinguemo-nos com feitos, não com frases.
ALENÇON* Atirando uma tocha ali da torre. Joana: Que pretendes fazer, barba cinzenta?
Entenderá com isso prevenir-nos Quebrar algumas lanças, num torneio
de que a passagem se acha mal guardada. de morte, assim chumbado na cadeira?
(Aparece a Pucela em uma das ameias, TaLBor: Bruxa imunda da França, repelente
sustentando uma tocha acesa.) demônio, acompanhada por amantes
Joana: Eis a tocha nupcial, de bons auspícios impudicos, arrogas-te o direito
para Ruão, de par com os patriotas, de insultar a velhice valorosa
mas de edaz fogo para os talbotistas. e tachar de covarde um moribundo?
(Sai) Donzela, ainda hei de dar-te algum trabalho,
O BasrarDo* Eis ali, nobre Carlos; nossa amiga ou Talbot de vergonha a morrer venha.
nos envia o sinal do alto da torre. Joana: Tão quente, meu senhor? Calma, Pucela;
CarLos* Brilha como o cometa da vingança quando Talbot troveja, é que vem chuva.
que profetiza a ruína aos inimigos. (Talbot fala baixo com os do seu grupo.)
ALENÇON* Nada de perder tempo. Acabam sempre Deus faça prosperar o parlamento.
mal as indecisões. Entremos todos Quem vai ser o orador?
aos gritos de “O delfim!” e exterminemos TaLBOT* Tereis coragem
quantos guardas acharmos no caminho. de vir nos encontrar aqui no campo?
(Entram na cidade.) Joana: Vejo que Vossa Senhoria julga
(Alarma. Entra Talbot com alguns soldados.) que nós somos dementes. Ninguém briga
TaLsor: para alcançar o que já é seu, de tato.
França, ainda hás de pagar com muitas lágrimas TaLsor: Não me refiro a essa Hécate rilhenta,
esta traição, se à tua felonia mas a ti, Alençon, e aos outros todos;
Talbot sobreviver. Essa maldita quereis combater fora, corpo a corpo,
feiticeira, a Pucela, bruxa infame, como a soldados cumpre?

E
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ALENÇON Signior, no. E ora, bravo Borgonha, sem mais perda


TaLBoT: Signior, a forca! Baixos carroceiros de tempo congreguemos nossas forças
da França! Eles se postam nas muralhas e ataquemos o imigo jactancioso.
como campônios fracos, sem ousarem (Saem todos, com exceção de Bedford e seus homens.)
pegar em armas como gentis-homens. (Alarma. Movimento de tropas. Entram Sir fobn Fastolfe
Joana: Capitães, retiremo-nos; os olhos eum capitão.)
de Talbot não inculcam boa coisa. Carirão*
Deus vos guarde, milorde; só queríamos Sir John Fastolfe, tanta pressa! Aonde ides?
dizer-vos que já estamos aqui dentro. FasroLre: Aonde vou? Vou salvar a pele; estamos
(A Pucela e os demais se retiram.) na iminência de nova derrocada.
TaLBor: Não demora e também nós aí estaremos, CarirÃo: Fugis, deixando aqui Lorde Talbot?
se a fama de Talbot não for fictícia. FasroLrE: Contanto que eu me salve, pouca mossa
Jura, Borgonha, pelo nome honrado me fazem todos os Talbots do mundo.
de tua casa, ofendido pela França (Sai)
publicamente, que hás de entrar de novo Carirão: Covarde, a má fortuna te acompanhe!
na cidade ou aí deixar a vida. (Sai)
Por meu lado, tão certo como Henrique (Retirada. Movimento de tropas. Tornam a entrar, do lado
da Inglaterra ainda vive, e por ter sido da cidade, Foana la Pucelle, Alençon, Carlos, etc,
seu pai conquistador desta cidade, em fuga.)
tão certo como estar dentro dos muros, BeproRD Agora, alma trangjila, te despede,
que por traição perdemos, enterrado quando o quiser o céu, pois estes olhos
o coração do nosso valoroso contemplaram a fuga do inimigo.
Coração-de-Leão, juro a cidade Em que consiste a resistência e o orgulho
reconquistar ou aí deixar a vida. do homem, que nada vale? Os que até há pouco
BorconHa* Meu voto corresponde ao que fizeste. nos desprezavam com remoques, ora
TaLBorT: Antes de irmos, cuídemos deste bravo, se julgam bem felizes, tão-somente
o quase morto Duque de Bedford. por poderem salvar-se pela fuga.
Vinde, milorde, vamos transportar-vos (Morre; é retirado na cadeira.)
para um lugar melhor, mais condizente (Alarma. Voltam Talbot, Borgonha e outros.)
com vossos anos fracos e achacosos. TaLBor: Perdida e recobrada num só dia!
BeproRD* A honra é dupla, Borgonha.
Não me humilheis, Lorde Talbot; desejo Cabe ao céu toda a glória deste feito.
continuar como estou, sentado diante BorconHa* Talbot marcial e belicoso, o peito
da cidade de Ruão, para que tome de Borgonha te serve de sacrário,
parte em vossos pesares e alegrias. onde ele vai construir um monumento
BorconHa-: Bravo Bedford, deveis anuir a isso. em louvor de teus feitos altanados.
BeproRD : Quero ficar; ocorre-me ter lido TaLsor: Gentil duque, obrigado. Mas dizei-me:
que o altivo Pendragon foi carregado, onde se acha a Pucela? Seu demônio
doente, em sua liteira, para o campo familiar, quero crer, está dormindo.
de batalha e venceu os inimigos. E o bastardo com suas valentias,
Penso que eu poderia dar mais ânimo e os dichotes de Carlos, em que deram?
aos nossos combatentes, inflamando-lhes Como! Todos sem vida? A fronte pende
o coração, por tê-los sempre achado Ruão esfeita em tristeza pela perda
como eu em qualquer transe. de tão guapa e lustrosa companhia.
TaLBOT* Oh força indômita Ora cumpre tomar as providências
de um peito moribundo! Pois que seja! mais urgentes, deixando na cidade
Possa o céu conservar Bedford com vida! oficiais de experiência comprovada.

a
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Ao soberano, após, nos juntaremos, falecido, e o enterremos aqui mesmo,


em Paris, onde o moço Henrique se acha, na cidade de Ruão. Jamais fez uso
com a nobreza da corte. de lança cavalheiro tão valente;
BorcoNHA- Quanto Lorde mais gentil coração não se viu nunca.
Talbot determinar, Borgonha aceita. Mas nem dos reis a morte tem piedade;
TaLBor* Mas antes de partirmos não esqueçamos que esse é o fim da mesquinha humanidade.
o nobre Duque de Bedford, há pouco (Saem.)

Ato HI Cena II
Planície nas proximidades de Ruão. Joana - Hão de ver Vossas Honras meu trabalho
Entram Carlos, o bastardo de Orleans, Alençon, Joana la para o bom fim levar a nossa empresa.
Pucelle e tropas. (Ouve-se ao longe ruído de tambor.)
Escutai! Pelo rufo dos tambores
Joana Não vos intimideis por isso, príncipes, deduzo que eles vão para Paris.
nem vos mostreis magoados por ter sido (Marcha inglesa; ao longe passa Talbot com tropas.)
retomada Ruão pelos ingleses. Eis Talbot com as bandeiras desfraldadas
Cuidado, só, não cura, agrava as coisas e após ele os guerreiros da Inglaterra.
para as quais não se pode achar remédio. (Marcha francesa; entra o Duque de Borgonha, com
Deixemos que Talbot furioso exulte tropas.)
mais algum tempo e a cauda pavoneie, Na retaguarda o duque e os seus vêm vindo.
porque em breve haveremos de arrancar-lhe A Fortuna dispôs que ele ficasse
todas as penas e abater-lhe o orgulho, para trás; sugeri uma conferência
se o delfim e os demais me obedecerem. porque possamos conversar com ele.
CarLOS* Fomos por ti guiados até agora, (Toque para parlamentar.)
sem que suspeita alguma ainda tivéssemos CarLos* Conferência com o Duque de Borgonha!
sobre o de que és capaz. Por um pequeno BorcoNHA
revés não perderemos a confiança. Quem convida Borgonha a conferência?
O BastaRrDO Inventa planos de secreto alcance, Joana* O real Carlos de França, teu patrício.
e famosa hás de ser em todo o mundo. BorconHaA-
ALENÇON* Em um lugar sagrado elevar-te-emos Que queres, Carlos? Tenho de ir-me embora.
estátua e cultuar-te-emos como santa. CarLos- Fala, Pucela, e encanta-o com palavras.
Auxilia-nos, pois, virgem graciosa. Joana - Borgonha valoroso, alta esperança
Joana* Que seja! Eis o que Joana decidiu: da França, ora consente que tua serva
com palavras melosas e torneios te dirija a palavra; não te apresses.
persuasivos devemos esforçar-nos BorconHa- Fala, então, mas não sejas enfadonha.
para que o Duque de Borgonha deixe Joana: Contempla a fértil França, tua pátria;
Talbot e se disponha a nos seguir. as cidades e as vilas vê destruídas
CarLos* Oh coração! Se conseguirmos isso, pela devastação de cruel imigo.
deixa a França de ser lugar azado Como olha a mãe o filho pequenino,
para os homens de Henrique. Esses ingleses quando a morte lhe cerra os tenros olhos,
vão parar de jactar-se à nossa custa, mira a doença da França moribunda,
forçados a evacuar nossas províncias. contempla estas feridas, as feridas
ALENÇON* Deverão ser expulsos para sempre, mais contra a natureza, que tu próprio
sem que lhes sobre aqui nenhum ducado. lhe fizeste no peito dolorido.

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Oh! dirige a outra parte a tua espada que ele era teu imigo, libertaram-no
cortadora! Vulnera os que te ofendem, sem resgate nenhum, malgrado o nome
não quem te traz auxílio Uma só gota de Borgonha e de todos seus amigos.
do sangue de tua pátria deveria Ora pois! Estás contra teus patrícios,
causar-te mais pesar do que torrentes ao lado dos que vão ser teus carrascos.
arrancadas dos peitos inimigos. Volta, nobre transviado, volta logo;
Volta, portanto, com efusão de lágrimas Carlos e os outros te abrirão os braços.
e limpa a tua pátria conspurcada. BorconHa- Estou vencido; essas palavras dignas
BorconHa: Ela me enfeitiçou com suas palavras o efeito em mim fizeram de bombardas
ou a natureza me abrandou de súbito. rugidoras, a ponto de obrigarem-me,
Joana- Além do mais, a França inteira, todos quase, a dobrar os joelhos. Compatriotas,
os franceses te exprobram a conduta, pátria amada, perdoai-me. Meus senhores,
duvidando de tua alta progênie. aceitai este abraço mui sincero;
À quem te aliaste? À um povo prepotente meu poder, minhas forças, tudo é vosso.
que só confia em ti por interesse. Adeus, Talbot; não mais confio em ti.
Quando Talbot firmar o pé na França Joana: Como um francês tal qual: virando sempre!
e tu te vires reduzido a um simples CarLos: Valente duque, salve! Tua aliança
instrumento do mal, quem será o dono nos reanima.
do país, a não ser o inglês Henrique, O BasTARDO: E nos torna corajosos.
que te vai expulsar como a um perverso? ALENÇON* O papel da Pucela foi brilhante;
Reflete, ainda é tempo, e vê bem isto: ela merece uma coroa de ouro.
Não caiu prisioneiro dos ingleses CarLOS* Reunamos, meus senhores, nossas forças
teu inimigo, figadal, o Duque para dano causar aos inimigos.
de Orleans? Pois bem, quando os ingleses viram (Saem.)

Ato HI Cena IV
Paris. Uma sala no palácio. com a lealdade de um peito humilde e franco
Entram o Rei Henrique, Gloster, o Bispo de Winchester, toda a glória atribuindo da conquista
York, Suffolk, Somerset, Warwick, Exeter, Vernon, primeiro a Deus, depois a Vossa Graça.
Basset e outros. Ão encontro destes vem Talbot com seus Rei HENRIQUE"
soldados. Este não é Lorde Talbot, tio Gloster,
que reside na França há muito tempo?
TaLBor: Meu príncipe gracioso, honrados pares, GLosTER: Se não vos desagrada, Majestade.
à nova de que estáveis neste reino, Rer HENRIQUE:
dei tréguas, por momentos, aos combates Sede bem-vindo, heróico e vitorioso
a fim de vir saudar meu soberano, capitão! No meu tempo de criança —,
como penhor do que deixa este braço — e velho ainda não sou — meu pai, me lembro,
que trouxe para vossa obediência dizia nunca haver brandido espada
cinquenta fortalezas, sete vilas campeão de mais valor. Vossa lealdade,
defendidas por sólidas muralhas, há muito a apreciamos, vossos grandes
doze cidades, e que fez quinhentos serviços, as fadigas da campanha,
prisioneiros de prol — deixa este braço sem que provado houvésseis até agora
cair a espada aos pés de Vossa Alteza, recompensa nenhuma, ainda que fossem
(Ajoelha-se.) os agradecimentos merecidos,

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porque o rosto jamais vos contemplara. que ataca o meu senhor, o nobre Duque de Somerset.
Por isso, levantai-vos; vossos grandes Vernon: Dou a teu amo o apreço que merece.
serviços vos granjearam ora o título, Basser: Qual é? Não é melhor do que ele York.
que vos damos, de Conde de Shrewsbury, Vernon: Não? Escuta; em sinal, fica com isto.
Tomareis parte em nossa coroação. (Esbofeteia-o.)
(Clarins. Saem todos, com exceção de Vernon e Basset.) Basser* Sabes, vilão, que pela lei das armas
VERNON Agora vós, senhor, que vos mostrastes quem da espada sacar é um homem morto;
tão quente em pleno mar, fazendo pouco não fora isso, esta injúria te custara
caso da cor que em honra do meu nobre muito sangue. Mas Sua Majestade
Lorde de York eu ostento, ainda mantendes
ver-me-á dentro de breve a suplicar-lhe
vosso primeiro dito? me conceda lavar-me desta afronta.
VERNON Vai, miserável; juntos pediremos
BassET* Sim, senhor,
a licença almejada. Depois disso,
enquanto defenderdes o invejoso
te buscarei mais cedo do que pensas.
latido dessa língua malfazeja
(Saem.)

Ato IV: Cenal


Paris. Sala de audiência. Vil cavaleiro, eu fiz um juramento
Entram o Rei Henrique, Gloster, Exeter, York, Suffolk, de que te arrancaria a jarreteira
Somerset, o Bispo de Winchester, Talbot, o governador de dessa perna covarde, quando o acaso
Paris e outros. me fizesse encontrar-te em meu caminho.
(Arranca-lhe a jarreteira.)
GLosTER* Colocai-lhe a coroa na cabeça, Assim o faço, por ver que não mereces
senhor bispo. tão alta dignidade. Nobre Henrique,
WincHESsTER* Deus salve o Rei Henrique, e vós todos, perdoai-me. Na batalha
sexto de nome. de Patay, quando ao todo eu só contava
GLOSTER* Agora o juramento, com seis mil homens e os franceses eram
governador. quase dez vezes mais, este covarde,
(O governador se ajoelha.) antes mesmo do encontro, sem que houvesse
Jurai que a não ser ele, sido dado um só golpe, pôs-se em fuga
outro rei não tereis, que os seus amigos, como fiel escudeiro. Na refrega
tão-somente, serão vossos amigos, perdi mil e duzentos combatentes,
e que tereis como inimigo apenas além de termos sido, eu e outros nobres,
quem se entregar a práticas funestas envolvidos e feitos prisioneiros.
contra seu regimento. Fareis isso, Julgai agora, altos senhores; vede
assim Deus justiceiro vos ampare. se tenho ou não razão, e se é possível
(Sai o governador com o seu séquito.) usar este covarde o distintivo
(Entra Sir Ffobn Fastolfe) da ordem dos cavaleiros. Sim ou não?
FastoLrE* Gracioso rei, ao vir eu de Calais, GLosrTER Para falar verdade, o ato é infamante,
depressa, para vossa coroação, indigno de qualquer pessoa, máxime
entregaram-me em mãos uma missiva de um cavaleiro, um capitão, um chefe.
escrita pelo Duque de Borgonha TazBor: Meus senhores, quando a ordem foi criada,
para a Vossa Grandeza ser entregue. escolhiam-se para cavaleiros
TaLBor: Vergonha a ti e ao Duque de Borgonha! da Jarreteira entre os de berço nobre,

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os virtuosos e bravos, transbordantes TaLBor: Como não, Majestade! Apenas sinto


de indômita coragem, de alta fama ter sido antecipado; deveria
conquistada nos campos de batalha, ter eu próprio pedido esse serviço.
os que sabiam desprezar a morte Rei HENRIQUE:
e trabalhos e riscos não temiam, Não demores, então; reúne os teus homens;
mostrando-se extremados nos perigos. possa ele sentir logo os ruins efeitos
Quem não seja adornado de tais dotes de seu ato traiçoeiro, percebendo
usurpa simplesmente o sacrossanto quanto é prejudicial zombar de amigos.
nome de cavaleiro, profanando TaLBor: Vou já, milorde, no íntimo almejando
a ordem de mais nobreza, e bem merece — que possais derrotar vossos contrários.
a ter valor meu voto nesse caso — (Sai.)
ser degradado como vil labrego (Entram Vernon e Basset.)
que, em uma sebe achado, se ufanasse VERNON - Permiti que eu me bata, soberano!
de nascimento sublimado e nobre. Basser* Meu gracioso senhor, o mesmo eu peço!
Rer Henrique: Vergonha dos ingleses, eis a tua York: Este é um dos meus; favorecei-o, príncipe.
sentença. Sai daqui sem mais delongas; SoMERSET * É este é meu; escutai-o, doce Henrique.
já foste nobre. Sob pena de morte Rer HENRIQUE"
te banimos da corte. Calma, milorde; eles que se expliquem.
(Sai Fastolfe.) Dizei-me cavalheiros, o motivo
Ora, milorde dessas exclamações. Por que licença
protetor, vamos ler a carta escrita para duelo? Com quem quereis bater-vos?
por nosso tio, o Duque de Borgonha. VERNON * Com ele, meu senhor; fui ofendido.
GrosrTER (Examinando o sobrescrito.) — Basser: E eu com ele, também; sou o ofendido.
Que quererá Sua Graça com a mudança HENRIQUE:
de tratamento? Como! “Ao Rei”, somente, Qual é a ofensa de que ambos vos queixais?
sem rodeio nenhum? Não mais se lembra Revelai-me que eu possa responder-vos.
de que é seu soberano? Ou porventura Basser: Este sujeito aqui, quando eu me achava
indica o sobrescrito assim grosseiro em viagem da Inglaterra para a França,
alteração também do signatário? com falar invejoso e maldizente
Mas que vejo? “Levado por motivos zombou da minha rosa, asseverando
especiais, comovido ante as desgraças que sua cor sangiúínea era o reflexo
de minha pátria, à vista dos lamentos do rubor da vergonha do meu mestre,
pungitivos causados pelas vossas quando, de certa feita, renitente,
opressões, decidido me retiro se negara a acatar toda a verdade
de vossa perniciosa companhia, numa questão legal então travada
para juntar-me a Carlos, o legítimo entre ele e o Duque de York, tudo em termos
Rei da França.” Oh traição mais que monstruosa! baixos e ignominiosos, que ora omito,
Pode achar-se nas juras, na amizade, Em resposta a essa ofensa tão grosseira,
na aliança, tal perfídia e falsidade? para que a dignidade do meu mestre
Rer Henrique: Revoltou-se meu tio de Borgonha? não fique maculada, o benefício
GLosTER: Sim, milorde, tornou-se vosso imigo. vos impetro da lei das nossas armas.
Rer HENRIQUE" À carta não contém nada mais grave? VERNON" O mesmo vos suplico, nobre príncipe;
GLosrTER * O mais grave, milorde, é o que eu vos disse. porque embora ele tudo tenha feito
Rer Henrique: Então Lorde Talbot vai conversá-lo para dar algum brilho a suas baixas
e castigo condigno ministrar-lhe. cavilações, forrando-as com conceitos
Milorde, que dizeis? Estais contente? especiosos, sabei, meu soberano,

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Henrique VI

que eu fui o provocado. Antes de tudo, perceberem discórdia na maneira


teve o desplante de atirar remoques de olhardes, ou souberem dorque passa,
a este meu distintivo, asseverando com o ódio que nos têm, serão levados
que a palidez da flor traía em tudo a desobedecer e a revoltar-se.
a fraqueza do peito do meu mestre. Além do mais, é vergonhoso virem
York: Vossa malícia, Somerset, não cansa? a saber soberanos estrangeiros
SoMERSET* Vosso rancor há de explodir, milorde, que entre os pares de Henrique e a alta nobreza
em que vos esforceis por sufocá-lo. se combate por coisa de nonada,
Rei HENRIQUE: a ponto de perderem toda a França.
Oh grande Deus! Como delira a mente Oh! pensai na conquista de meu pai,
transviada dos mortais! Como é que podem na minha inexperiência, não deixando
coisas, assim tão frívolas, ser causa que se perca por uma ninharia
de lutas partidárias dessa monta! quanto nos custou sangue. Vou servir-vos
Amados primos de York e Somerset, de juiz nesta causa. Não creio haja
calma! vos peço, calma! e paz entre ambos. razão, se a usar eu vier a rosa rubra,
York: Deixai que as armas a questão decidam, (Colhendo uma rosa vermelha.)
para depois falar-nos Vossa Alteza para ser doravante suspeitado,
de amizade e de paz. por ninguém, de mostrar-me favorável
SOMERSET* À nós, somente, a Somerset, em detrimento de York.
diz respeito a pendência; decidamo-la Ambos são meus parentes; a ambos voto
entre nós dois, portanto. particular afeto. Com igual base
York: Ora, em penhor, contestar-me a coroa poderiam,
Somerset, aceita isto. sob o pretexto, apenas, de ter uma
VERNON * Não, voltemos o rei dos escoceses. Mas espero
para o ponto inicial da controvérsia. que em vossa discrição heis de argumentos
Basser* Consenti, meu gracioso soberano. achar mais persuasivos do que em minha
GrosrTER" Consentir? Para o diabo vossas rixas! débil capacidade de ensinar-vos.
Antes morrêsseis todos, para que esse Viemos em paz: por isso, continuemos
falatório insolente se acabasse! em paz, como até agora. Primo de York,
Não vos envergonhais, gente impudica, nomeamo-vos regente destas partes
de virdes perturbar o rei e a todos da França. Quanto a vós, meu caro Lorde
com vossas discussões despudoradas? de Somerset, levai vossos cavalos
E vós, milordes, fazeis mal, parece-me, para junto da sua infantaria,
em dar apoio a discussões perversas, e como fiéis vassalos, dignos filhos
mas, sobretudo, em vos aproveitardes de vossos ascendentes, marchai juntos
de suas discussões como pretexto e derramai em vossos inimigos
para vossas quizílias. Aconselho-vos quanta inflamada bile vos agite.
a assumir atitude mais decente. Depois de algum repouso, nós, milorde
ExeTER* Sua Alteza está triste; sede amigos, protetor e os demais retornaremos
meus caros lordes. a Calais, e, depois, para a Inglaterra,
Rer Henrique: Vós, que mostrais ânimo onde espero que em breve os vossos feitos
combativo, achegai-vos. Se em apreço me presenteiem com Alençon, com Carlos,
tendes nosso favor, de agora em diante com toda essa cambada de traidores.
vos intimo a esquecerdes essa rixa, (Clarins. Saem todos, com exceção de York, Warwick, .
bem como seu motivo. E vós, milordes, Exeter e Vernon.)
lembre-vos onde estamos, entre gente Warwick: Dou-vos minha palavra, caro Lorde
caprichosa e volúvel. Se os franceses de York, o rei se revelou fino orador.

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WiLLIAM SHAKESPEARE
em

York: Realmente; desgostou-me, apenas, isso que essas paixões despeito revelassem
de ele adotar de Somerset a insígnia. mais rancoroso, mais rancor violento
Warwick: Ora! Não o censureis por este gesto. do que o pode criar a fantasia.
Foi simples fantasia, doce príncipe, De qualquer forma, uma pessoa simples
sem malícia nenhuma, estou convicto. que visse estas discórdias da nobreza,
York: Se tivesse certeza... Mas deixemos as intrigas da corte, as infindáveis
isso de parte. Assuntos de mais peso disputas partidárias, não deixara
nos reclamam a atenção neste momento. de pressagiar eventos ominosos.
(Saem York, Warwick e Vernon.) mau que uma criança empunhe o cetro;
ExeTER- Fizeste bem, Ricardo, em não falar; pior que gere a inveja a roaz discórdia:
porque se o coração se te expandisse é o princípio da ruína e da mixórdia.
num surto de paixão, receio muito (Sai)

Ato IV: Cena ll


Diante de Bordéus. para afrontar a luta em campo aberto.
Entra Talbot com suas tropas. Se quiseres voltar, com seus exércitos
o delfim te fará cair nas malhas
TazBor: Vai, corneteiro, às portas de Bordéus das ciladas da guerra; à tua esquerda
e chama o general para falar-me. e à direita esquadrões a liberdade
(O corneteiro dá o toque de parlamentar. Sobre os muros de fugir te emparedam. Não te sobra
aparecem o general das forças francesas e outros.) caminho algum, por onde fugir queiras,
Capitães, João Talbot, inglês, vos chama, em que a Morte não vejas com suas claras
servo do Rei Henrique da Inglaterra. devastações. Dez mil franceses, hoje,
Eis o que ele pretende: patenteai-nos juraram, ao tomar o sacramento,
as portas da cidade, submetei-vos, que não disparariam em nenhuma
reconhecei o nosso soberano alma cristã, exceto o inglês Talbot,
como vosso, prestando-lhe a homenagem a sua perigosa artilharia.
de obedientes vassalos, e, sem mora, Acredita: ante nós ainda te encontras
me afastarei daqui com minhas forças com vida, como herói jamais vencido,
sanguinárias. No caso de recusa de espírito indomável. Esta é a última
à paz proposta, alcançareis, apenas, glória do teu louvor, que eu, teu contrário,
provocar meus três fortes auxilares: te rendo, como preito merecido.
a fome escaveirada, o aço cortante Mas antes de poder uma ampulheta,
e o fogo assolador, que, num momento, posta agora a correr, chegar ao termo
reduzirão a nada vossas torres de sua hora arenosa, hão de estes olhos
orgulhosas, que os ventos desafiam. que sadio e corado te contemplam,
Aceitai, pois, o amor que vos ofertam. ver-te murcho, a sangrar, pálido e morto.
GENERAL: Agourenta coruja, anunciadora (Toque de tambor, ao longe.)
da morte, Oh tu, terror de nossa gente, Escuta, escuta!
flagelo sanguinário dos franceses, O tambor do delfim, sinto de alarma,
a tua tirania está no ocaso. para tua alma angustiada canto triste.
Só poderás entrar depois de morto, Vou mandar que anunciem meus tambores
porque estamos, afirmo-o sem receio, a nênia de tua bárbara partida.
fortificados e bastante afoitos (O general e seus homens se retiram do muro.)

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Henrique VI

TaLBor: Só nos disse a verdade; ouço o inimigo. do desses gamos tímidos, que caem
Sigam logo alguns homens da ligeira com um simples beliscão. Sejamos cervos
cavalaria a examinar-lhe os planos. irritados até quase à loucura
Oh disciplina negligente! Quanto e os lebréus enfrentemos sanguinários
descuido! Fomos presos num redil, com nossas testas aêneas, conservando
sempre na defensiva esses covardes.
encurralados todos, um pequeno
Se a cara vida todos estimarem
rebanho de ovelhinhas timoratas,
como eu, gamos bem caros os imigos
oriundas da Inglaterra, ora acossadas irão achar em nós. Deus e São Jorge,
pela matilha dos mastins franceses. Talbot e a causa inglesa, vitorioso
Mas se somos carneiros da Inglaterra, façam nosso pendão no prélio iroso.
mostremos nosso brio, diferente (Saem.)

Ato IV: Cena HI


Planície na Gasconha. A Bordéus! Do contrário, adeus, Talbot;
Entra York, com tropas; chega-se-lhe um mensageiro. adeus, França; adeus, honra da Inglaterra!
York:
York: Ainda não retornaram os espias Oh Deus! Se Somerset, que em seu orgulho
velozes que seguiram nas pisadas desmedido, retém meus cavaleiros,
das poderosas forças do delfim? no lugar de Talbot ora se achasse!
MENSAGEIRO * Um valente fidalgo, então, salváramos,
Já, milorde; e nos dizem que esses homens entregando um traidor que nada vale.
seguem para Bordéus, com o fim precípuo Choro de raiva, ao ver como esse biltre
de lutar com Talbot. Quando de volta, negligente descansa sem cuidados,
viram nossos espias dois exércitos enquanto nós morremos de cansados.
mais fortes, ainda, que ao delfim se uniram, Lucy: Mandai gente em socorro do infeliz!
para Bordéus seguindo todos juntos. York: Quebro a minha palavra; ele, a cerviz.
York: Maldito seja Somerset, por ter-se Chora a Inglaterra; a França está tranquila;
demorado com os homens de cavalo, o traidor Somerset se rejubila.
reforço prometido, para o cerco. Lucy: Então que Deus se apiade da alma grande
O famoso Talbot conta comigo; de Talbot e do moço João, seu filho,
mas um vilão traidor me ludibria, que há duas horas encontrei, no ponto
deixando-me inativo, sem recursos de se ajuntar ao valoroso pai.
para auxiliar o nobre cavalheiro. Há sete anos Talbot não via o filho;
Deus o ampare em tão grave conjuntura; vão se rever no instante de morrerem.
se ele cair, adeus guerra da França! York: Como pode Talbot mostrar ternura
(Entra Sir William Lucy.) ao indicar ao filho a sepultura?
Lucy: Nobre chefe das forças da Inglaterra, Aperta-se-me o peito ao pensamento
jamais, como nesta hora, sobre o solo de uma entrevista alegre em tal momento.
da França foi teu braço tão valioso. Lucy, adeus! Seja infame — é só o que eu digo —
Corre em socorro de Talbot magnânimo, quem me força a deixar morrer o amigo.
que num cinto de ferro se acha preso Tours, Blois, Maine e Poitiers nos rouba o fado,
e ameaçado por fera destruição. tão-só por Somerset ter-se atrasado.
A Bordéus, belicoso Duque de York! (Sai com seus soldados.)

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Lucy: Desta arte, enquanto o abutre da discórdia do guerreiro, ainda há pouco, falecido,
se regala nas carnes de tão grandes mas de memória viva entre seus súditos:
chefes, a negligência sonolenta Henrique quinto! A intriga entre eles obra,
nos trai, nos faz perder a alta conquista enquanto a honra, o país, tudo soçobra.
(Sai)

Ato IV: Gena IV


Outra planície da Gasconha. Não consultais que vossas desavenças
Entra Somerset, com suas tropas, acompanhado de um o privem do socorro prometido,
capitão de Talbot. deixando que o famoso gentil-homem
entregue a vida, em luta contra um mundo
SOoMERSET: É tarde por demais; é-me impossível de desvantagens. Carlos, o bastardo
enviar-lhos agora. York e Talbot de Orleans, Reignier, Borgonha, d'Alençon,
foram muito imprudentes em seus planos. todos o cercam, e Talbot perece
Uma simples surtida da cidade tão-somente por culpa de vós outros.
poderia esmagar as nossas forças. SomERSET* York o mandou; devia enviar-lhe auxílio.
O mais que intrépido Talbot, com este Lucy: York exprobra, também, Vossa Grandeza,
ato de desespero irrefletido jurando que o privais dos contingentes
comprometeu o brilho do seu nome. levantados para esta expedição.
York o envia a morrer sem glória alguma SomERsET* Ele mente; era só mandar pedir-me,
para poder subir, como costuma. e iriam logo aí ter meus cavaleiros.
CarrrãÃo - Eis aí Sir William Lucy, que comigo Não lhe sou devedor de nenhum preito,
veio impetrar socorro para os nossos muito menos de amor; fora humilhar-me,
exércitos exaustos. se lhos tivesse enviado sem pedido.
(Entra Sir William Lucy.) Lucy: Não as forças da França, a fraude inglesa
SoMERSET* Que há de novo, é que enleia o magnânimo Talbot.
Sir William? Quem vos manda a estas paragens? Jamais a pátria o reverá com vida;
Lucy: Quem, milorde? Talbot, traído e vendido, vossas rixas lhe dão mortal ferida.
que, cercado de audaz adversidade, SoMERSET*
suplica aos nobres York e Somerset Pois vamos! Vou lhe enviar os cavaleiros;
que afastem de seus homens esgotados terá socorro dentro de seis horas.
a morte assoladora. E enquanto o grande Lucy: Muito tarde. Até lá, terá morrido,
capitão sua sangue dos cansados, ou estará prisioneiro, pois nem mesmo
dos aguerridos membros, retardando poderia fugir, se em tal pensasse.
seu colapso, somente com a esperança Nem é para Talbot fugir, podendo.
do socorro anelado, vós, sua falsa SomeRrsET: Não tocou a Talbot sorte risonha.
expectativa, os guardas da honra inglesa, Lucy: Dele a glória há de ser; vossa, a vergonha.
vos enlevais com ciúmes e picuinhas. (Saem.)

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Henrique VI

Ato IV - CenaV
O acampamento inglês, perto de Bordéus. Nada pode marear-vos o prestígio;
Entram Talbot e seu filho João. eu sou pássaro ainda sem remígio.
Se fugirdes, dirão que saístes cedo;
TaLBor: Oh jovem João Talbot, mandei buscar-te mas comigo, é certeza: foi por medo.
a fim de te ensinar a arte da guerra, Quem poderá jamais confiar em mim,
para que em ti reviva o nosso nome, se, ao primeiro recontro, eu corro assim?
quando a velhice murcha e os fracos membros De joelhos vos suplico: é melhor glória
chumbarem teu bom pai numa poltrona. morrer, do que viver sem ter história.
Mas — Oh maldosos e agourentos astros! — TaBor: Murchará de tua mãe toda a esperança?
a uma festa da Morte é que chegaste, JoÃo Antes assim, do que manchar-lhe a herança.
perigo inevitável e terrível. TazBor: Por minha bênção, corre sem demora.
Monta, caro menino, no cavalo João Contra o inimigo, sim; fá-lo-ei agora.
mais veloz que tivermos, que eu te mostro TarBor: Parte de mim se salvará contigo.
como a vida salvares pela fuga. João : Não, porém, a que foge do perigo.
Vamos, não te demores; parte logo. TALBOT: És moço; esse ato em nada te deslustra.
JoÃo - Eu me chamo Talbot; sou vosso filho; JoÃo- Sim; vossa glória em mim ficará frustra.
como fugir, então? Oh! se ainda tendes TaLsor: Recebes ordens; serei eu o culpado.
amor a minha mãe, não lhe mancheis João - Morto vós, quem dirá que eu fui mandado?
o nome venerável, rebaixando-me Se o perigo é tão grande, fugi logo.
à posição de um mísero bastardo. TaLsor:
Comigo o mundo inteiro não se importe, Sem mim, no prélio os meus heróis não jogo.
se eu fugir, entregando-vos à morte. Repelem minhas cãs tanta vergonha.
TaLBor: Foge, porque me vingues algum dia. João - E a minha mocidade, já tem ronha?
João - Quem fugisse, jamais retornaria. Não podeis afastar-vos de vós mesmo,
TaLBor* Se ficares, é a morte para os dois. nem a vós, nem a mim. Falais a esmo.
JoÃo- Vós fugireis, então; morra eu, depois. Ide embora, ou ficai; o mesmo eu faço;
É grande a vossa perda; pensai nisso. viver não quero, após vosso trespasso.
Eu nada perco; morro antes do viço, TarBor: Então, glorioso filho, eu me despeço
sem dar ansa nenhuma aos inimigos de ti; já deste mundo és um egresso.
de se julgarem livres de perigos, Lado a lado enfrentemos o perigo;
como o dirão, decerto, em vosso caso, nossas almas no céu terão abrigo.
por nos saberem próximos do ocaso. (Saem.)

Ato IV: Cena VI


Um campo de batalha. nos achamos colérica da França.
Rebate; escaramuças; o filho de Talbot é envolvido; Onde está João Talbot? Pára, descansa,
Talbot o salva. toma fôlego, filho. Dei-te a vida;
ora da morte te livrei dorida.
Tazsor: Por São Jorge e a Vitória, avante, ingleses! JoÃo» Duas vezes meu pai, duas teu filho!
O regente quebrou a palavra dada A vida que me deste, toda brilho,
a Talbot; à mercê ora da espada ia em mim a tornar-se quase extinta,

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WILLIAM SHAKESPEARE

quando, apesar do fado, a espada tinta vingares. Mais um braço, por mais forte
dos combates, forçaste o tempo iroso que seja, pouco vale neste aperto.
a ser comigo, desta vez, bondoso. Fora loucura, grande desacerto,
TazBor: Quando vi tua espada tirar fogo arriscar nossas vidas num barquinho,
da crista do elmo do delfim, o afogo porque se eu não morrer aqui, sozinho,
não mais pude conter, que me impelia vítima dos franceses, é certeza
a te prestar esta alta cortesia, vir a ser da velhice, logo, presa.
conquistando a vitória de semblante Pouco lucro darei aos inimigos,
mais do que ousado. Nesse mesmo instante, se ficar: um só dia de perigos
da velhice a ferrugem, transformada, a menos. Mas em ti tua mãe perece,
se alteou com fúria moça e sublimada, nosso nome famoso, a grande messe
que me fez derrubar Orleans, Borgonha de nossos feitos, tua mocidade
e d'Alençon, poupando-te à vergonha e a glória da Inglaterra. Essa é a verdade.
de aos pés cair da Gália presunçosa. Perderemos mais que isso, se ficares;
O bastardo de Orleans, de espada irosa, mas tudo salvaremos, se escapares.
que em meio à pugna, caro filho, fora JoÃo - Mais do que a espada de Orleans, nocivo
quem primeiro da seiva promissora me é o que vos ouço. Isto é que sangue vivo
te fizera sangrar, a virgindade do coração me tira. À essa vantagem,
colhendo dessa tua heroicidade, de vergonhosa e bárbara roupagem,
foi por mim, logo após, atravessado que a vida poupa e a fama altiva esmaga,
na batalha. Depois de ter trocado ao filho permitindo a fuga, em paga
com ele vários golpes e de um pouco do trespasse do pai, é preferível
de seu sangue bastardo ter, em troco que caia morto, logo, o desprezível
do teu, feito correr, assim lhe disse, corcel que me sustenta e que eu me veja
para humilhá-lo, não por gabolice: igualado aos vilãos da malfazeja
“Derramo-te esse sangue baixo e imundo, França, objeto de escárnio e condenado
de relações ilícitas oriundo, para sempre a ser títere do fado.
para pagar o meu, de fama e brilho, Por toda vossa glória, se eu fugisse,
que tiras a Talbot, meu grande filho.” vosso filho não fora. É caturrice
Nisso advém, a salvá-lo, inesperado falar, pois, nesse assunto. Sendo eu filho
socorro. Mas responde-me, cuidado de Talbot, saberei morrer com brilho.
de teu pai: Como te achas? Dize, João, TaLBor: Nesse caso, meu Ícaro, acompanha
se não queres, agora, sem pressão teu pai de Creta em mais esta façanha
de minha parte, abandonar a pugna desesperada. Tua vida é quanto
para a salvo te pores? Não repugna eu tinha de mais caro. No entretanto,
tal proceder, que tua valentia se queres combater, fica ao meu lado,
te consagrou herói neste alto dia. e gloriosos morramos, filho amado.
Foge, meu filho, para minha morte (Saem.)

Ato IV: Cena VII


Outra parte do campo de batalha. Onde está João, Talbot valente, onde anda?
Alarma; movimento de tropas. Entra o velho Talbot, Oh Morte vencedora e abominanda,
ferido, sustentado por um criado. que o cativeiro mancha, a valentia
desse jovem comigo se associa
Tarsor: Que é da outra minha vida? Foi-se azinha para rirmos de ti! No mais renhido
a que eu dizia propriamente minha. do combate, ao me ver no chão caído,

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Henrique VI

ele, a espada mortífera arrancando, Caros: Se York e Somerset tivessem vindo


vibrou-a sobre mim, qual formidando em socorro dos seus, para nós fora
faminto leão que, em situação premente, sangrenta por demais esta jornada.
o brio natural jamais desmente. O BasTARDO'*
Quando o meu defensor ficou sozinho, Como o leãozinho de Talbot, furioso,
a me velar a ruína com carinho, nos franceses calava o gládio iroso!
a cólera, que a vista sempre turva, Joana Encontrando-o na pugna, o apostrofei:
e o furor do imo peito, numa curva “Herói-menino, lutador de lei,
repentina, arrancaram-no de mim rende-te a uma mulher!” Mas, com desprezo,
para atirá-lo ao tétrico festim. me disse ele em resposta: “Jamais preso
se render a uma rameira imunda
Num mar de sangue, então, meu caro filho
o filho de Talbot”. Com isso, afunda
o espírito afogou com grande brilho.
pelas nossas fileiras, não querendo
Desta arte pereceu minha esperança,
perder tempo comigo. Era tremendo!
meu Ícaro indomável, uma criança.
BorconHa Ele viria a dar um temeroso
(Entram soldados, carregando o corpo do jovem Talbot.) cavaleiro. Ora vede-lo em repouso
CrraDo* Oh meu caro senhor, eis vosso filho!
nos braços do guerreiro — oh quadro belo! —
TaLBor: Morte, jogral infame! Não partilho que o gerou para ser nosso flagelo.
já desta vida, para ser sensível O BastARDO:
ao teu sarcasmo vão e contemptível. Quebremos-lhes os ossos; sobre a terra
À tua tirania insultadora não fique inteira a glória da Inglaterra.
dois Talbots vão fugi-la sem demora, CARLOS:
a teu despeito conseguindo, unidos Oh, não! Se vivos, de ambos nós corremos,
por liames sempiternos, os luzidos seus heróicos despojos não manchemos.
páramos alcançar, enfim libertos (Entra Sir William Lucy, com séquito,
de todos os humanos desconcertos. precedido de um arauto francês.)
Oh tu, que deixas bela a morte dura Lucy Leva-me, arauto, à tenda do delfim,
com essa sanguinosa bordadura, para que eu saiba a quem coube a vitória
fala-me, se ainda vives! Não te importe deste dia glorioso.
o que te possa opor a fera Morte. CARLOS" Que mensagem
Imagina que falas a inimigo de submissão nos trazes?
e que a Morte é um francês que está contigo. Lucy: Submissão,
delfim! Isso é vocábulo francês;
Pobre criança! Sorri; dizer quisera
os ingleses ignoram-lhe o sentido.
que se fosse um francês essa megera,
Só desejo saber dos prisioneiros
ela é que morreria. Nestes braços
e inspecionar os mortos em combate.
o colocai; disponho só de escassos
CarLOS: Falas em prisioneiros? Todos se acham
momentos; suportar não me é possível
no inferno. Apesar disso, quem procuras?
por mais tempo esta vida incompreensível. Lucy: Onde está o grande Alcides deste embate,
Adeus, meus companheiros; ora alcanço o valente Talbot, o nobre Conde º
quanto almejar pudera: no remanso de Shrewsbury? Por seus raros sucessos
destes braços concede-me a ventura nesta campanha, criado grande Conde
que achar possa meu filho a sepultura. de Valência, de Washford e de Waterford,
(Morre.) Lorde Talbot de Goodrig e Urchinfield,
(Alarma. Saem os soldados e o criado, levando os dois Lorde Strange de Blackmere, Lorde Verdun de Alton,
corpos. Entram Carlos, Alençon, Borgonha, o bastardo de Lorde Cromwell de Wingfield, Lorde Furnival de
Orleans, Joana la Pucelle e tropas.) [Sheffield,

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Lorde de Faulconbridge vitorioso dele, apenas, aqui ora estivesse,


três vezes, cavaleiro da nobre ordem decerto confundira até os mais bravos.
de São Miguel, São Jorge, e sempre digno Permiti que o cadáver para o campo
do Tosão de Ouro, o grande marechal dos nossos eu transporte, para obséquias
de Henrique sexto em terra dos franceses? condignas de seu mérito prestar-lhe.
Joana: Mas que estilo vazio e majestoso! Joana* Parece que é o espírito do morto
O turco, que em cingienta e dois países que está neste sujeito presumido,
exerce o mando, não dispõe de estilo tal o ar de mando com que diz as coisas.
mais tedioso e espichado. Quem procuras Dai-lhe, por Deus, os mortos, que eles podem
com títulos tão grandes ora se acha viciar, envenenar o nosso ambiente.
presa das moscas, podre, aos nossos pés. CarLOs* Levem os corpos, depressa.
Lucy: Morreu Talbot, o látego exclusivo Lucy Vou levá-los;
dos franceses, a Nêmesis sombria, vai sair de suas cinzas, muito cedo,
o terror deste reino? Oh! se de balas, a Fênix que há de à França meter medo.
em vez de olhos, no rosto eu dispusesse, CartOSs* Contanto que fiquemos livres deles,
para, na minha cólera, atirar-vo-las faze o que te aprouver. E ora, a caminho
nas faces! Oh! pudesse eu dar-lhe vida! de Paris; a vitória será nossa;
Tanto bastara para terror pânico Talbot já não nos pode fazer mossa.
infundir nos franceses! Se o retrato (Saem.)

Ato V: Cenal
Londres. Um quarto no palácio. apertar esses laços de amizade
Entram o Rei Henrique, Gloster e Exeter. com mais firmeza, o Conde de Armagnac,
parente próximo de Carlos e homem
Rer HENRIQUE" de grande autoridade em toda a França,
Lestes todas as cartas que nos vieram vos oferece a filha em casamento,
do imperador, do papa e de Armagnac? prometendo dotá-la regiamente.
GLosTER* Rer HeNRIQUE*
Sim, milorde; eis o assunto de que tratam: Em casamento? Ainda sou moço, tio,
Junto a Vossa Excelência, humildemente para pensar em núpcias. Com meus anos
todos eles insistem porque seja acomoda-se mais o estudo e os livros
firmada a paz divina entre os dois reinos. do que os fúteis prazeres dos amantes.
Rer HenrIQUE: E que pensa da idéia Vossa Graça? Contudo, mandai vir os emissários
GLosrer : Muito boa, milorde; é o meio único e lhes dai a resposta que quiserdes,
de se pôr termo a essa efusão de sangue que eu me contentarei de qualquer modo,
cristão e de alcançar tranquilidade. contanto que essa escolha tenda à glória
Rer HENRIQUE * Isso, meu tio; pareceu-me sempre de Deus e ao bem-estar da minha pátria.
que era não só contrário à natureza, (Entram um legado e dois embaixadores,
como ímpio, que reinasse entre os adeptos com Winchester, já agora
da mesma fé tão sanguinária guerra, Cardeal Beaufort, em trajos apropriados.)
tantas barbaridades. ExeTER (à parte) *
GLOSTER* Além disso, Como! Milorde de Winchester se encontra
milorde, porque logo consigamos instalado no posto de cardeal?

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Henrique VI

Vejo agora que vai concretizar-se dai-lhe esta jóia, gage do alto afeto
quanto profetizou Henrique quinto: que lhe voto. Milorde protetor,
“Se em algum tempo ele alcançar o posto arranjai uma escolta para a Dover
de cardeal, do chapéu fará coroa”. acompanhá-los. Uma vez a bordo,
Rei HENRIQUE: à fortuna do mar entregai todos.
Embaixadores meus, vossas propostas (Saem o Rei Henrique, com séquito, Gloster, Exeter e
foram devidamente apreciadas; embaixadores.)
é razoável e justo o que dissestes. CARDEAL: Ficai, Lorde Legado; heis de, primeiro,
Por isso, nos achamos resolvidos receber a quantia prometida
a propor condições de paz amiga de minha parte a Sua Santidade
por me ter dado esta roupagem digna.
que enviar pretendemos por Milorde
Lecapo* Ao inteiro dispor de Vossa Graça.
de Winchester, sem demora, ao rei da França.
CARDEAL (à parte) *
GLosTER: No que respeita à idéia de milorde
Winchester, penso, não vai mais curvar-se
vosso mestre, informei Sua Grandeza
a esses pares altivos, por não ser-lhes
com minúcia. Por isso, tendo em vista
inferior. Hás de ver, Humphrey de Gloster,
os altos dotes de moral da noiva, que em dignidade, e força, e nascimento
sua grande beleza e o dote opimo, não vencerás o bispo um só momento.
resolvido está ele a desposá-la. Hei de humilhar-te com esta viravolta,
Rer HENRIQUE (40 embaixador) * ou o país jogarei numa revolta.
Como reforço e prova do contrato (Saem.)

V-
Cena ll
França. Planície em Anjou. CarLOSs* Os espias que dizem? Vamos, fala.
Entram Carlos, Borgonha, Alençon, Joana la Pucelle e MeENsaGEIRO * Os ingleses, que estavam divididos
tropas em marcha. em duas partes, ora se reuniram
para vos atacar sem mais demora.
CarLos* Vão alegrar, milorde, essas notícias CarLOS* À notícia, milordes, nos apanha
os espíritos tristes. Os altivos de surpresa; contudo, preparemo-nos
parisienses estão, diz-se, em revolta
conforme as circunstâncias.
BorconHa- Penso que a alma
novamente e ora se acham com os franceses.
de Talbot não está lá; não tendes causa,
ALENÇON'*
milorde, de temor.
Marchemos, pois, contra Paris, real Carlos
Joana Das paixões ínfimas,
de França; ponde em campo as vossas forças. o medo é a mais maldita. Vamos, Carlos,
Joana: Com eles seja a paz, se estão conosco; distribui ordens, que a vitória é certa;
se não, caiam em ruínas seus palácios. anima os nossos homens com tua fala,
(Entra um mensageiro.) humilha Henrique, o mundo inteiro abala.
MENSAGEIRO * Ào nosso general êxito pleno CarLOS* Avante, nobres; que prospere a França!
e outro tanto aos seus dignos auxiliares. (Saem.)

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WILLIAM SHAKESPEARE

Ato V: Cenalll
França. Diante de Angers. Joana la Pucelle e York se batem;
Alarma; movimento de tropas; entra Foana la Pucelle. Joana éfeita prisioneira; os franceses fogem.)
York: Penso que, desta vez, dama francesa,
Joana: Vence o regente; os nossos não resistem. vos segurei de fato. Vede agora
Ora valei-me, encantos e amuletos! se podeis, com os feitiços costumeiros,
E vós, também, espíritos seletos soltar vossos espíritos, porque eles
que me guiais, mostrando-me o futuro! liberdade vos dêem. Uma alta presa!
(Troveja Parece que foi feita para o diabo. .
Auxiliares velozes, que debaixo Como franze os sobrolhos a megera!
vos achais do potente rei do norte, Certo, qual outra Circe, ela quisera
aparecei-me! Vinde em meu auxílio! metamorfosear-me.
(Entram demônios.) Joana Que outra forma
À pressa com que viestes me dá prova puderas ter mais feia do que a tua?
de vossa costumeira diligência York O delfim Carlos, sim, que é um homem belo;
em me servir. Agora, familiares somente a forma dele é que é aprazível
espíritos, tirados das regiões para esses lindos olhos.
subtérreas poderosas, auxiliai-me Joana: Caia em Carlos
mais uma vez, para que a França vença. e em ti qualquer desgraça tormentosa.
(Os demônios passeiam e nada respondem.) Que no sono tranquilo ambos se vejam
Não fiqueis por mais tempo assim calados. surpreendidos por mãos sanguinolentas.
Fostes alimentados com meu sangue; York: Maldita feiticeira, cala a boca!
ora estou pronta a me privar de um membro, Joana Deixa-me amaldiçoar mais um pouquinho.
que vos entregarei, contanto que outro York Falarás, bruxa imunda, na fogueira.
benefício eu receba, se quiserdes (Saem.)
condescender em me auxiliar de novo. (Rebate; entra Suffolk, conduzindo Margarida.)
(Abaixam a cabeça.) SurroLK: Seja qual for teu nome, és prisioneira.
Não há esperança? Se ora me atenderdes, (Contemplando-a.)
em meu corpo tereis o pagamento. Oh beleza admirável, nada temas,
(Sacodem a cabeça.) nem procures fugir, que eu só te toco
Como! Nem o meu corpo, nem a oferta com respeitosas mãos. Beijo-te os dedos,
do próprio sangue vos incita agora em sinal de amizade, e, reverente,
a me prestar a ajuda de costume? nesses flancos gentis de novo os ponho.
Dou-vos a alma; a alma, o corpo; dou-vos tudo, Desejo honrar-te; dize-me o teu nome.
contanto que a Inglaterra não nos vença. MarcaRrIDA* Chamo-me Margarida; sou princesa,
(Desaparecem.) filha do rei de Nápoles. E tu?
Abandonaram-me! É chegado o tempo SUFFOLK*
de curvar o penacho altivo a França Sou o Conde de Suffolk; esse é o meu nome.
e de pousar a fronte no regaço Não te ofendas, milagre da natura;
da Inglaterra. São fracos meus feitiços, nasceste para que eu te aprisionasse.
fracos demais, e o inferno muito forte É assim que o cisne ampara os emplumados
para me obedecer. Agora, França, cisnezinhos, prendendo-os sob as asas.
vai tua glória reduzir-se a nada. Contudo, se essa prática te ofende,
(Sai.) parte, és livre! Suffolk a ti se rende.
(Alarma. Entram franceses e ingleses, em luta. (Margarida faz menção de retirar-se.)

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Henrique VI

Não te retires! Falta-me coragem Remanesce, entretanto, certo escrúpulo:


de deixá-la partir. A mão quisera embora seja o pai senhor de Nápoles,
soltá-la; o coração não mo consente. Duque de Anjou e Maine, é muito pobre.
Como o sol nas correntes cristalinas Vai opor-se a nobreza a esse consórcio.
faz lucilar os raios refletidos, MARGARIDA Estais ouvindo, capitão? Que tendes?
assim sua beleza fascinante SUFFOLK*
nos meus olhos esplende. Desejara Assim será, por mais que eles se oponham.
dizer-lhe quanto sinto, mas não ouso Henrique é moço, a tudo se acomoda.
falar. Vou recorrer a pena e tinta. Senhora, vou dizer-vos um segredo.
Que fiasco, De la Pole! Não te estragues. MARGARIDA *
Não tens língua? Tens medo da aparência Que importa que eu me encontre prisioncira?
de uma mulher? De tua prisioneira? Parece nobre; saberá acatar-me.
É assim que a principesca majestade SUFFOLK*
da beleza confunde a nossa língua Senhorita, atendei-me alguns instantes.
e nos deixa embotados os sentidos. MARGARIDA (à parte) *
MARGARIDA * Se ainda estivesse em tempo de salvarem-me
Conde de Suffolk — se esse for, realmente, os franceses, ficara eu dispensada
teu verdadeiro nome — que resgate de implorar-lhe o favor.
precisarei pagar, pois estou vendo SurFOLK* Meiga senhora,
que fiquei prisioneira. atenção concedei-me numa causa...
SUFFOLK (à parte) * Como podes MARGARIDA * Não sou eu a primeira mulher presa.
saber que ela se ofende, antes de à prova SurFoLK* Por que falais, senhora, desse modo?
pores o seu amor? MARGARIDA * Peço que desculpeis o quiproquó.
MARGARIDA Por que não falas? SurroLK:* Gentil princesa, consideraríeis
Que resgate é preciso que eu te pague? feliz o cativeiro que acabasse
SUFFOLK (à parte) * É formosa; por isso, cortejável; por vos fazer rainha?
sendo mulher, é força que se renda. MARGARIDA * Ser rainha
MARGARIDA * Aceitarás resgate, sim ou não? cativa é mor desgraça que a do escravo
SUFFOLK (à parte) * nos mais baixos misteres, porque os príncipes
Lembra-te, louco, de que tens esposa. devem ser livres.
Queres desta fazer sua comborça? SUFFOLK* Como vós sereis,
MarcaRrIDA* Melhor será deixá-lo; não me atende. também, se o muito nobre soberano
SUFFOLK (à parte) da feliz Inglaterra estiver livre.
Tudo perdido; a sorte não me ajuda. MarcaRIDA* Que tenho eu com a sua liberdade?
MARGARIDA * SurroLK: Esforçar-me-ei para fazer de ti
Fala às tontas; decerto é algum lunático. a rainha de Henrique, pôr-te um cetro
SUFFOLK (à parte) de ouro nas mãos e uma coroa rara
Poderei conseguir uma dispensa. na cabeça, contanto que consintas
MarGaRrIDA* Desejara alcançar qualquer resposta. em seres minha...
SUFFOLK (à parte) * Vou pedir esta Lady MARGARIDA * O quê?
Margarida... SUFFOLK* Sua querida.
Mas para quem? Ora essa! Para o rei. MARGARIDA
Caluda, que o negócio é de madeira. Não sou digna de ser de Henrique esposa.
MARGARIDA Fala agora em madeira; é carpinteiro. SUFFOLK*
SUFFOLK (à parte) * Não, gentil dama; eu, sim, que não sou digno
Minha paixão, dessa arte, eu premiaria, de cortejar para ele uma criatura
sobre firmar a paz entre os dois reinos. de tal beleza, sem ganhar na escolha.

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WILLIAM SHAKESPEARE

Que achais, senhora, disso? Estais contente? com os condados de Maine e Anjou isentos
MARGARIDA * Se a meu pai agradar, fico contente. de impostos e dos males resultantes
SurroLK* Chamais depressa os capitães e nossos de conflitos armados, minha filha,
porta-estandartes. À seguir, senhora, se Henrique o decidir, será sua esposa.
iremos nos postar ante o castelo SurroLK* Esse vai ser o seu resgate: é livre.
de vosso pai, a quem convidaremos, Quanto aos condados, hei de fazer tudo
por mensageiro idôneo, a vir falar-nos. para que Vossa Graça os goze em paz.
(As tropas adiantam-se.) ReIGNIER*
(Toque para parlamentar, Reignier aparece sobre os muros.) E eu, também, no real nome do monarca
SurroLK* Reignier, olha tua filha prisioneira! de que és representante, a mão te cedo
ReIGnIER* Prisioncira de quem? de minha filha, em gage do contrato.
SUFFOLK* De mim. SurroLK: Reignier da França, eu te agradeço como
ReEIGNIER* E agora, pessoa real, que fala um rei por mim.
Suffolk, que hei de fazer? Sou um soldado, (À parte.) Contudo, eu ficaria mais contente
não sei chorar, nem mesmo lastimar-me de ser procurador em causa própria.
dos caprichos da sorte. Vou já para a Inglaterra, com a notícia,
SUFFOLK * Sim, milorde. para solenizar o desposório.
há remédio bastante; consentires Adeus, Reignier, guarda em palácio de ouro,
pela tua honra, que se torne esposa como convém, diamante tão valioso.
de meu rei tua filha, cujo assenso, REIGNIER*
não sem custo, para isso, obtive agora. Recebe o abraço que eu daria ao príncipe
Desta arte um cativeiro não penoso cristão, Henrique, se ele aqui estivesse.
valeu-lhe liberdade principesca. MarcarIDA- Adeus, milorde; os votos de ventura,
REIGNIER* louvores e orações de Margarida,
Fala Suffolk de acordo com o que pensa? de Suffolk vão ser todos de ora em diante.
SurroLK* À bela Margarida atestar pode (Faz menção de retirar-se.)
que eu não minto, não finjo, nem adulo. SurroLK* Adeus, gentil senhora. Mas, ouvi-me,
REIGNIER* Margarida: é possível que eu não leve
Confiado em teus princípios de nobreza, de vossa parte, para o rei, nenhuma
vou responder aí mesmo ao teu pedido. saudação principesca?
(Retira-se.) MARGARIDA" Cumprimentos
SuFFOLK* Aguardarei aqui tua chegada. que fiquem bem a uma donzela e virgem,
(Toque de trombetas. Entra Reignier.) sua serva, dizei-lhe.
ReIGNIER* SUFFOLK* São palavras
Bem-vindo, bravo conde, em nossas terras! amáveis e expressadas com modéstia.
Pedi de Anjou quanto Vossa Honra almeje. Mas forçado me vejo a importunar-vos,
SurroLK: Obrigado, Reignier; deves julgar-te senhora, novamente: qual a prova
muito feliz por teres uma filha de amor que eu levarei para Sua Graça?
digna de se tornar a companheira MARGARIDA * Um coração, milorde, imaculado,
de um grande soberano. Que resposta que o amor, até o presente, deixou livre.
dá Vossa Graça à minha pretensão? SuFFOLK (dando-lhe um beijo) * E isto também.
ReIGNIER * Já que com vossa escolha distinguistes MARGARIDA *
seu mérito modesto, para dela Não. Isso é teu, porque eu não ousaria
fazer a noiva real de tal monarca: mandar a um rei lembrança tão pueril.
com a condição de que me deixeis no uso (Saem Reignier e Margarida.)
pacífico de minhas propriedades, SurFoLK* Se fosses para mim! Mas, como! Pára,

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Henrique VI

Suffolk! Não te aventures pelos meandros nas graças naturais que a arte ultrapassam;
de semelhante labirinto, de onde quando no mar, renova-lhe a pintura,
te espreita o Minotauro e a baixa intriga. porque, uma vez aos pés de Henrique, possa
Comove Henrique com o retrato dela; privá-lo dos sentidos teu encanto.
reflete em seus adornos admiráveis, (Sai)

Ato V: Cena IV
Acampamento do Duque de York, em Anjou. no campo me guardavas. Não conheces
Entram York, Warwick e outros. teu pai, mulher maldita? Então queimai-a,
queimai-a, que enforcá-la é honra excessiva!
York: Trazei a bruxa que vai ser queimada! (Saí)
(Entram Joana la Pucelle, escoltada, e um pastor.) York: Levai-a logo; já viveu bastante
Pastor: Oh Joana! O coração, assim, me partes. para encher o universo com seus vícios.
Procurei-te por tudo, longe e perto; Joana- Primeiro vos direi quem condenastes:
e ora que tive a sorte de encontrar-te, não foi a mim, gerada na simpleza
verei tua morte cruel e prematura? da vida pastoril, mas a uma filha
Ah, Joana, doce Joana, eu também morro! de progênie real, virtuosa e santa,
Joana+ Decrépito mendigo, baixo e ignóbil escolhida no céu por alta graça
labrego! Eu tenho sangue de fidalga; para milagres realizar na terra.
não és meu pai; nem meu amigo, ao menos. Jamais tive que ver com maus espíritos;
Pastor: Pára, pára! Senhores, escutai-me: mas vós todos, poluídos pelo feio
não é verdade, não. É minha filha: pecado da luxúria, todos, tintos
na paróquia se sabe. Ainda está viva de sangue derramado por criaturas
a mãe dela, que pode dar-vos provas inocentes, sem mancha; todos, podres
de ter sido ela a minha primogênita. de infindos vícios; todos, por não serdes
Warwick: Depravada, renegas os parentes? adornador da graça, julgais sempre
York: Isso mostra que vida ela levava, que só é possível realizar milagres
perversa e vil, que a morte ora arremata. com a ajuda de demônios. Puro engano!
Pastor" Ora, Joana, por que seres teimosa? Desde a mais tenra infância Joana d'Arc
Deus sabe que és parcela de mim mesmo virgem se conservou, imaculada
e que eu já chorei muito por tua causa. nos próprios pensamentos. Se lhe o sangue
Não me renegues, Joana, eu te suplico. virginal tão cruelmente derramardes,
Joana: Retira-te, labrego! Subornastes há de ele o ao céu clamar vingança.
este pobre campônio, com o propósito York: É isso mesmo; fazei-a executar.
de escurecer meu nascimento nobre, WarwiICK* Senhores, atenção! Sendo ela virgem,
Pastor: É certo; eu dei um nobre ao sacerdote não poupeis lenha. Ponde, junto ao poste
no dia em que a mãe dela eu desposei. fatal, tonéis de breu, porque a tortura,
Ajoelha-te e recebe minha bênção, desse modo, não dure muito tempo.
rapariga. Ah, é assim? És renitente? Joana: Nada o peito implacável vos abala?
Maldita, então, seja a hora em que nasceste. Então, Joana, revela quanto és fraca,
Só quisera que o leite que mamaste porque possas gozar do privilégio
no seio de tua mãe fosse veneno da lei. Oh sanguinários homicidas,
de matar rato, ou que te houvesse um lobo estou grávida! O fruto do meu ventre
voraz estraçalhado, quando as cabras não podereis matar, ainda que a morte

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violenta decidais ora levar-me. Yorx- Todo o nosso trabalho vem dar nisso?
Yorx+ Não o queira o céu! A santa virgem grávida! Depois de tantos pares chacinados,
Warwick: Sem dúvida esse é o seu maior milagre. capitães, gentis-homens e soldados,
Deram nisso, afinal, vossos escrúpulos? que tombaram nos campos de batalha,
Yorx* Com o delfim ela andava emparelhada; imolando-se aí em benefício
imaginei qual fosse o seu refúgio. da pátria, ora seremos obrigados
WarwiICK- Levai-a com o bastardo. Que vale ele? a concluir uma paz efeminada?
Máxime sendo o pai o delfim Carlos. Não perdemos, por falta de lealdade,
Joana Enganais-vos; o filho não é dele. traições e intriga, quase tudo quanto
Foi Alençon que obteve o meu amor. fora ganho por nossos ascendentes?
York: Como! Foi Alençon, esse notório Warwick, Warwick! É triste que eu prevejo
Maquiavel? Pois ainda que mil vidas a perda, para nós, de toda a França.
tenha, morra o bastardo! Warwick: York, sê calmo; que se a paz firmarmos,
Joana Oh! perdoai-me! há de ser com tais cláusulas, que pouco
Não vos falei verdade. Nem foi Carlos, poderão os franceses alegrar-se.
nem o duque nomeado, mas o rei (Entram Carlos com seu séquito, o bastardo de Orleans,
de Nápoles, Reignier, o autor de tudo. Reignier e outros.)
WARWICK * CarLos: Lordes ingleses, já que está assentado
Como! Um homem casado? É intolerável. que seja proclamada a paz na França,
York: Isso que é virgem! Foram tantos, que ela viemos saber as condições do pacto.
nem sabe ao certo a quem acusar deva. York Fala, Winchester, a cólera fervente
Warwick" Sinal de que era livre e generosa. me tapa o tubo à voz envenenada,
York: Não há dúvida: é virgem, das mais puras. na presença dos nossos inimigos.
Rameira imunda, condenaste, a um tempo, CARDEAL: Carlos e os mais, assim ficou assentado:
teu fedelho e a ti própria. Fora inútil que, tendo consentido o Rei Henrique,
procurares ainda comover-nos. por indulgência, apenas, e piedade,
Joana: Levai-me, então, daqui. Amaldiçõo-vos. em, dos males da guerra, vos poupar
Jamais o sol glorioso lance os raios a pátria, e em propiciar-vos melhor tempo
sobre o lugar em que vos encontrardes, de paz frutuosa, ficareis vassalos
envolvendo-vos sempre a noite e a triste obedientes de sua potestade.
sombra da morte até que os infortúnios Quanto, Carlos, a ti, desde que jures
e o desespero a todos vos obriguem pagar tributo ao rei e a ele de grado
a quebrar o pescoço numa forca. submeter-te, no posto ficarás
(Sai, escoltada.) de vice-rei, sem que, por isso, em nada
York: Em pedaços te faze, vira cinza, se alterem tuas reais prerrogativas.
maldito e imundo embaixador do inferno! ALENÇON* Vai ele, então, ser sombra de si próprio?
(Entra o Cardeal Beaufort, com séquito.) As frontes adornar com uma coroa,
CARDEAL: Portador de uma carta de poderes sem, contudo, em substância e autoridade,
da parte do monarca, eu vos saúdo, se distinguir nem mesmo dos vassalos?
lorde regente. Pois sabei, milordes: Semelhante proposta é absurda e iníqua.
movidos de piedade ante o espetáculo Cartos: Ninguém ignora que eu já estou de posse
destas lutas sangrentas, os estados de quase todo o território franco,
da Cristandade com ardor pediram muito mais da metade, onde me acatam
que a paz fosse firmada entre a ambiciosa como rei de direito. E ora é preciso -
França e nosso país.Já se acha próximo que pela renda, apenas, do que resta,
daqui o delfim que vem com os do seu séguito eu venha a renunciar tais privilégios,
para tratar conosco da matéria. para ser vice-rei, tão-só, da França?

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Henrique VI

Não, lorde embaixador, é preferível quantas essas que surgem diariamente


conservar o que tenho, com a esperança por continuar a nossa hostilidade.
de cedo conseguir o que me falta, Aceitai a proposta, muito embora
a abrir mão, desde já, de toda a posse. disposto a não cumpri-la, quando virdes
York: És arrogante, Carlos! Por manobras que o momento vos é mais favorável.
secretas procuraste o meio azado Warwick" Que dizes, Carlos; servem nossas
para uma conferência, e ora que o assunto cláusulas?
chegou ao ponto crítico, recorres CaRrLOS* Servem, sim,
mas faço uma objeção: não será vossa
a essas comparações e à parte ficas?
nenhuma das cidades guarnecidas.
Ou o título aceitas que usurpaste,
York Então jura obediência a Sua Alteza;
e isso como uma dádiva do rei,
por tua posição de cavaleiro
de nenhum modo imposta por teu mérito,
compromete-te a sempre obedecer-lhe,
ou serás castigado com mais guerras.
sem rebelde jamais te revelares
RercntER - Não fazeis bem, milorde, por teimoso, contra a coroa inglesa, tu e teus nobres,
em criticar as cláusulas do pacto. contra a coroa inglesa.
Aposto dez contra um que se perdermos (Carlos, etc. prestam obediência.)
esta oportunidade, não teremos Já podeis despedir vossos exércitos
nunca mais outra igual. quando vos aprouver. Suspendei vossas
ALENÇON (à parte, a Carlos) - Para ser franco, insígnias; deixai mudos os tambores,
tendes obrigação de os vossos súditos que agora celebramos paz solene.
poupar de tantas perdas, tantas mortes, (Saem.)

Cena V
Londres. Um quarto no palácio. um volume de linhas tentadoras
Entra o Rei Henrique conversando com Suffolk; Gloster e que os mais duros sentidos despertaram.
Exeter os seguem. E o que é mais: apesar de tão divina,
tão cheia de sublime encantamento,
Rer Henrique - Estou pasmado, nobre conde, diante só deseja, humildosa e reverente,
do admirável retrato que fizestes às ordens vir ficar de Vossa Alteza,
da bela Margarida. Suas virtudes, resultado de seu pendor virtuoso,
realçadas por tais dotes exteriores, posso afirmá-lo, que ora a leva a amar-vos
me deixaram de pronto apaixonado. e a honrar-vos como a seu senhor legítimo.
Como o navio que o tufão obriga, Rer HenRIQUE*
poderoso, a avançar, rompendo as ondas, Henrique não almeja mais do que isso.
arrastado me sinto pelo sopro Consenti, pois, milorde protetor,
de seu conceito a um mísero naufrágio que do rei da Inglaterra Margarida
ou a alcançar o posto em que me seja se torne a real esposa.
concedida a ventura de possuí-la. GLOSTER* Permitindo-o,
SurroLk: Pois meu bom lorde, só falei por cima, adularia, apenas o pecado.
nada mais que o prefácio de seus méritos. Vossa Alteza, milorde, não ignora
Todas as perfeições dessa adorável que está comprometido com outra dama,
criatura — se eu tivesse habilidade digna de toda estima. Como fora
para vo-las expor — integrariam possível anularmos o contrato?

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Como sairá Vossa Honra de tudo isso? Seu espírito intrépido e indomável —
SurroLK* Como um rei, quando jura ilegalmente, como em poucas mulheres se tem visto —
ou como alguém que, após o compromisso nos deixa esperançosos de um herdeiro
de provar-se em torneio, se afastasse digno do nosso rei, que, sendo filho
do recinto da luta por ter visto de um guerreiro sem par, poderá dar-nos
que o adversário era indigno. Muito baixo descendente também de igual bravura,
se acha a filha de um conde sem fortuna. no caso de se unir a uma senhora
Podemos retirar, pois, a palavra. da energia da bela Margarida,
GLosreR: Margarida que é mais do que isso, acaso? Se vossa for, também, a opinião minha,
Seu genitor não vale mais que um conde, Margarida será nossa rainha.
mas que tenha outros títulos gloriosos. Rer Henrique: Ou seja pela força da pintura,
SurroLk: Seu pai é rei, milorde; rei de Nápoles meu bom Lorde de Suffolk, que fizestes,
e de Jerusalém. Goza na França ou pelo fato de, até agora, a minha
de tanta autoridade, que este enlace mocidade não ter sido abalada
vai servir para a paz alicerçar-nos pelas chamas do amor — não sei dizê-lo.
e os franceses manter em obediência. Mas uma coisa é certa: no imo peito
GLosrTER* O mesmo fará o Duque de Armagnac, me encontro de tal modo dividido
por ser parente próximo de Carlos. entre o alarma do medo e o da esperança,
ExerER* Além do mais, é de esperar que dote que me deixam prostrados os pensamentos.
liberalmente a filha, ao passo que o outro Por isso, embarcai logo para a França,
vai ganhar muito mais do que o que entrega. milorde, e assinai lá qualquer tratado,
SurroLK* Ora, milordes, aludis ao dote! procurando que Lady Margarida
Não humilheis, assim, vosso monarca, consinta em empreender a travessia
imaginando-o abjeto, baixo e pobre para a Inglaterra, a fim de ser coroada
para escolher a noiva por dinheiro, e ungida como esposa fidelíssima
não por amor. Henrique pode a sua do Rei Henrique. Para os vossos gastos
rainha enriquecer, sem que precise de representação, cobrai do povo
esposa procurar que o torne rico. o tributo do dízimo. Ide logo,
É próprio só de rudes camponeses vos digo, pois até que retorneis,
negociar as mulheres, como o fazem perplexo ficarei com mil cuidados.
no mercado com bois ou com cavalos. Vós, meu tio, bani qualquer ofensa.
O casamento é assunto muito sério Se me julgásseis pelo que já fostes,
para ser resolvido desse modo. não pelo que ora sois, desculparíeis
Não depende de nós, mas de Sua Graça, a brusca afirmação desta vontade.
tão-somente, escolher a companheira Ora me conduzi para onde eu possa,
de seu leito nupcial. Ora, milordes, sozinho, refletir em meus cuidados.
se Margarida obteve a preferência, (Sai)
não pode haver razão que prevaleça GLosrTER: Sim, cuidados, receio; agora e sempre.
no sentido de à escolha nos opormos. (Saem Gloster e Exeter.)
Uma aliança forçada é puro inferno, SurroLk* Suffolk assim venceu; e, como o jovem
perspectiva de lutas e discórdias, Páris, na Grécia, outrora, ele se apronta
ao passo que o contrário só traz bênçãos, para partir, movido da esperança
é imagem de ventura celestial. de vir a achar no amor igual ventura,
Sendo rei, onde esposa Henrique achara mas de ter melhor fim do que o troiano.
melhor que Margarida, de real sangue? Vai mandar Margarida em nosso rei;
À par do nascimento, a primorosa eu nela mandarei, no rei e no reino.
beleza a torna digna de um monarca. (Sai)

372
HENRIQUE VI - PARTE II

Shakespeare
Introdução (David Bevington)

Henrique VI, Parte Dois é, ao mesmo tempo, uma continuação da narrativa


histórica iniciada em 1 Henrique VI (baseado nas mesmas crônicas fontes) e uma peça
independente, que deve ter sido representada em uma ocasião separada no teatro de
Shakespeare. Como a segunda peça de uma série de quatro, ela é inconclusiva,
iniciando-se em um estado de contínua mudança política e concluindo-se com uma
guerra civil em fase precoce. A consolação providencial parece distante, mesmo que
haja sinais da ira divina agindo nas questões humanas. Ao mesmo tempo, essa peça tem
sua própria integridade de tema e forma dramática.

2 Henrique VI inicia-se onde 1 Henrique VI termina (no ano de 1445) e continua


até a véspera da guerra civil na Batalha de Santo Albano (1455). Os principais eventos
retratados são a queda de Humphrey, Duque de Gloucester, e as raivosas agitações dos
plebeus, levando finalmente à rebelião de Jack Cade. A agitação popular causa a morte
do Duque de Suffolk, assim clamando pela vida de um dos mais cínicos responsáveis
pelos problemas da Inglaterra. O sórdido Cardeal de Winchester também morre uma
morte horrível e instrutiva, sugerindo que a punição divina começa a revelar sua força
inexorável. Entretanto, ao longo dessa ação declinante, testemunhamos, em
contrapartida, a nefasta ascensão de Ricardo Plantagenet, Duque de York.

A estratégia de Ricardo, como aquela de seu filho e xará em Ricardo III, é a de


explorar os antagonismos na corte Inglesa, colocando nobres feudais uns contra os
outros até que seus rivais potenciais pelo poder se destruam a si mesmos. Em particular,
ele tira vantagem da animosidade entre a nova Rainha Margaret e o Duque Humphrey.
Margaret, filha de um príncipe estrangeiro, é uma consorte no estilo autocrático
Europeu. Ela arrogantemente insiste nos privilégios de sua classe nobre e despreza
àqueles que governam em nome da justiça. “É esse o disfarce, / É essa a moda na corte
da Inglaterra?” ela incredulamente indaga a Suffolk, seu amante e aliado político
(1.3.42-3). Suffolk é um homem apto para Margaret, pois ele, também, oprime os
comuns. Uma petição “contra o Duque de Suffolk, por encarcerar os comuns de
Melford” (linhas 23-4) é apenas uma das várias queixas profundas trazidas para atenção
do trono pelas pessoas comuns. Margaret naturalmente ressente o conselho moderado e
justo do Duque Humphrey, que pede ao Rei Henrique uma remediação para às aflições
dos plebeus.

Ricardo de York não tem uma admiração inerente por Suffolk e Margaret, mas
cinicamente os apoia, como uma forma de destruir o bom Duque de Gloucester. Ele
aconselha seus parceiros Salisbury e Warwick, “Pestanejem na insolência do Duque de
Suffolk, / No orgulho de Beaufort, na ambição de Somerset, / Em Buckingham, e em
todos do seu grupo, / Até que eles capturem o pastor do rebanho, / Aquele príncipe
virtuoso, o bom Duque Humphrey” (2.2.70-4). E Humphrey tem, de fato, uma fraqueza
fatal que ele não pode afastar-se: a ambição de sua esposa, Eleanor. Com o plano de
tornar-se a primeira-dama, Eleanor incorre em inevitável conflito com a desapiedada
Rainha Margaret. Winchester e Suffolk, sabendo do orgulho auto-ofuscante de Eleanor,
consideram pateticamente fácil implantar espiões no meio familiar dela, que encorajarão
à propensão dela à bruxaria. Humphrey nunca é pessoalmente contaminado pelo
orgulho de sua esposa, contudo, está também condenado. O Rei Henrique sabe da
bondade de Humphrey mas não pode salvá-lo. Essa queda de um corajoso moderado,
enfatizada no título do texto in Quarto de 1594 (“com a morte do bom Duque
Humphrey”), distingue Humphrey como a mais eminente vítima da segunda peça, tal
como Talbot na Parte Um. Ele é destruído por uma aliança insincera e temporária de
extremistas de ambos os lados: aqueles como Margaret e Suffolk, que aderem-se ao
privilégio despótico, e aqueles tais como York, que deseja incitar os plebeus para seus
próprios propósitos posteriores. Em tempos de confrontação a posição mediana é
inerentemente vulnerável, e sua destruição leva a uma intensificada polarização.

Como York antevê e deseja, os plebeus são, de fato, ingovernáveis quando


desprovidos da liderança moderada de Humphrey. Shakespeare já havia mostrado que
eles tendem a imitar os conflitos de seus anciões (como no ridículo duelo entre Horner,
o Armeiro, e o militar Thump) e são supersticiosamente crédulos (como no episódio de
Simpcox, o homem cego e fraudulento). Agora, incapazes de abrir petições através dos
canais, a voz deles tornou-se importuna. “Os comuns, como uma colmeia raivosa de
abelhas / Que querem seu líder, espalham-se acima e abaixo / E não se importam com
quem eles irão aferroar em sua vingança” (3.2.125-7). À primeira vista, as queixas deles
são plausíveis e sua cólera dirigida para objetos culpados. Eles suspeitam certamente
que o herói deles, Humphrey, foi destruído por Suffolk e o Cardeal, e eles demandam o
banimento de Suffolk. A demanda é louvavelmente motivada por um desejo de agir em
nome do rei e do país, e instiga o fraco Rei Henrique a remover Suffolk do posto, como
ele deveria ter feito há muito, mas a insistência deles parece estabelecer um precedente
para o ativismo dos comuns que tem implicações perturbadoras ao longo das peças de
Shakespeare. Se Suffolk não for banido, eles avisam, eles vão retirá-lo do palácio à
força. O pobre Rei Henrique, lamentando a perda da autoridade conciliatória de
Humphrey, habilmente aponta a questão central da prerrogativa real: “E eu não fui
citado assim por eles, / Apesar de eu propor o que eles solicitam” (3.2.281-2). Na
perspectiva dessa peça, o sucumbir de Henrique à força popular é um comentário sobre
sua própria incapacidade como um governante e uma indicação preocupante do que
virá. O próximo passo, de fato, será a captura e a execução de Suffolk pelos
marinheiros, que tomam à justiça em suas próprias mãos. Apesar de serem corsários e
sequestradores, o tenente fala como se eles fossem os vingadores da morte do Duque
Humphrey (4.1.70-102). Não importando o quanto Suffolk mereça ser condenado, essa
execução sumária ultrapassa às normas do julgamento ante uma autoridade legalmente
constituída. Os servos voltaram-se contra os mestres; os comuns começaram a sentir o
seu próprio poder.

A própria rebelião popular, a insurreição de Cade, é uma burlesca paródia das


demandas populares por justiça social e sugere que qualquer movimento desse tipo está
comprometido em terminar em absurdidade. Shakespeare, por toda sua apreciativa
representação dos homens individuais do povo, é cauteloso com as consequências do
governo da multidão. Apesar da rebelião de Cade ter sido engendrada, na visão da
maioria dos historiadores, à partir das deploráveis condições econômicas de pobreza e
opressão, Shakespeare ignora quaisquer circunstâncias que podem dar simpatias às
reivindicações daqueles que voltam-se contra seus mestres. Pelo contrário, ele acentua
os perigos da agitação popular ao colocar ao lado, com pouca consideração à história, os
piores excessos da própria rebelião de Cade (1450) e da famosa Revolta dos
Camponeses de 1381. As cenas de Cade têm excessos de comédia degradante na forma
da autoafirmação da classe baixa. Nós rimos do contraste entre as noções Utópicas
professadas por Cade, de abundância para todos e sua ambição mesquinha de ser rei. Ele
mata àqueles que se referem a ele como Jack Cade, em vez de seu alegado título de
Lorde Mortimer. Seu movimento é intensamente anti-intelectual. Entretanto, a azeda
piada não denuncia apenas os plebeus. As pretensões insolentes de Cade e suas
insinceras reivindicações genealógicas são uma paródia exagerada, mas reconhecível,
do comportamento aristocrático. Mais importante, nós lembramos que Cade foi
estimulado em sua rebelião pelo demagógico York. Este conspirador “seduziu” Cade a
fazer comoção, enquanto o próprio York lidera um grande exército pessoal e avança
sobre à Irlanda. “Esse demônio aqui deve ser meu substituto” (3.1.371). Os plebeus
podem, de fato, provarem-se irresponsáveis quando estimulados, mas, ao longo de 2
Henrique VI, os aristocratas feudais devem suportar à principal culpa por causar o
descontentamento popular.

Em vistas da necessidade de algum tipo de coerência no meio desse declínio


universal na anarquia e no conflito, a profecia assume uma importância estrutural em 2
Henrique VI, que será acentuada nas peças posteriores da tetralogia. Como no drama
Grego antigo, as profecias são, sempre, eventualmente realizadas. Elas revelam à
necessidade divina, mas em uma linguagem ambígua e enigmática que as pessoas
afetadas pela profecia não compreendem à verdadeira natureza do discurso, até que o
próprio evento esteja sobre elas. Nessa peça, por exemplo, o espírito conjurado que
aparece ante a Duquesa de Gloucester (1.4) prediz que Suffolk morrerá “pela água” e
que Somerset devem “evitar castelos”. Que tipos de avisos são estes? Quando sua hora
chega, Suffolk morre nas mãos de um homem chamado Walter (pronunciado “água”,
apesar de Suffolk tentar desesperadamente insistir no Francês “Gualtier”), ao passo que
Somerset morre na Estalagem do Castelo perto de Santo Albano, no final da peça.
Através dessas insignificantes ninharias, como em Macbeth, grandes homens são
iludidos com a falsa segurança. Não menos enigmática é a profecia sobre o Rei
Henrique e seu antagonista político: “O duque ainda vive, que Henrique deve depor, /
Mas ele sobrevive, e morre uma morte violenta” (1.4.31-2). A primeira frase desse
oráculo é perfeitamente ambígua: ela pode dizer que um duque que ainda vive destituirá
Henrique ou que Henrique destituirá esse duque. Ambas as interpretações provar-se-ão
válidas; durante as guerras dos Lancasters e dos Yorks mostradas em 3 Henrique VI, o
Rei Henrique e seu oponente Yorkista irão, em turnos, tomar o trono um do outro. Em
tal profecia já há o conceito de olho por olho, um Lancastriano por um Yorkista, através
da qual a Providência irá, finalmente, impor sua penalidade sobre um povo rebelado. A
profecia, então, não serve para permitir que os humanos escapem de seus destinos, que
são inevitáveis, mas para dá-los a oportunidade de perceber, ao final, o padrão da justiça
divina. A plateia percebe que a profecia é um aviso divino frequentemente ignorado
pelos tolos seres humanos, e reconhece a necessidade de realização que é trágica e
desanimadora, mas também reconfortante, no sentido que ela mostra que os céus são
justos.

O papel da profecia é, assim, central em 2 Henrique VI, no sentido em que ela dá


à peça um padrão dominante de predição e eventual realização. Entretanto, a
experiência de 2 Henrique VI é turbulenta. Os eventos crescentemente atingem seus
impulsos irreversíveis. As cerimônias e as instituições empregadas no controle do fluxo
não são bem-sucedidas. Ideias abstratas conflitam com inflexíveis realidades; e ideia de
reinado atrai um revigorado grito por autoridade e estabilidade, mas o fato da liderança
inepta do Rei Henrique, e as ambições auto-interessadas de seus antagonistas, convidam
a uma contínua desordem. Como uma obra de arte, 2 Henrique VI combate o problema
de fazer algo artisticamente coerente do caos. Ela o faz, assim como 3 Henrique VI, ao
conter à instabilidade de dentro do padrão recorrente de um olho por um olho.
Qualquer senso de conforto demora para chegar nessa peça. O declínio político e
moral da Inglaterra permanece incontrolado. A rebelião dos plebeus, cinicamente
fomentada por Ricardo, Duque de York, estabeleceu um precedente para mais rebelião.
Sabendo que seus inimigos estão fracos e divididos, Ricardo não esconde mais a
ambição que o levou a aceitar uma designação na Irlanda e, desse modo, liderar um
exército. Sua desculpa para retornar à Inglaterra em armas, para livrar o Rei Henrique
do odioso conselheiro Somerset, é similarmente mostrada como nada menos que um
pretexto para declarar uma guerra civil aberta. Sua justificação final ao desafiar o Rei
Henrique, apesar de toda a bela fala sobre genealogias, é que Ricardo tem a ambição e
puro poder para levar a cabo seu plano. As declarações de Henrique sobre o direito não
são menos governadas pela conveniência, pois ele privadamente confessa à fraqueza de
sua reivindicação. O admirável exemplo, mostrado no final da peça, de um cavalheiro
de Kent chamado Iden, que está contente em viver em paz em seu estado, serve como
um contraste às consternadas ambições que infetaram não apenas Ricardo de York e
seus aliados, mas também a impiedosa Rainha Margaret e àqueles leais a ela. Se, como
A. P. Rossiter argumentou com cogência, 2 Henrique VI é uma “moralidade de estado”
na qual às forças do bem e do mal lutam pela alma da assediada heroína, Respublica
[sic] ou do estado, então, ela deve, finalmente, ser vista como uma peça onde as forças
do bem não são bem-sucedidas. Claramente, o arrogante Suffolk encontra seu
calamitoso destino, mesmo que de uma forma que encoraja ainda mais vingança
privada; Somerset cai, como predito em Santo Albano; e Winchester sofre uma morte de
edificante horror. Ademais, Ricardo de York e a Rainha Margaret, que tiraram proveito
da vitimização do virtuoso Duque Humphrey, estão mais poderosos do que nunca, e o
filho de Ricardo e seu xará está apenas começando a fazer sentir sua presença. Muitas
coisas permanecem por serem compensadas no final de 2 Henrique VI.
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Personagens
Rer Henrique VI. Jorn Hume
sacerdotes.
HumeHrey, Duque de Gloster, seu tio. SouTHWELL
CarpEAL BEAauroRT, Bispo de Winchester, tio-
avô do rei. BoLINGBROKE, feiticeiro.
RicaRDO PLANTAGENETA, Duque de York. Um espírito, invocado por ele.
Tomás HoRNER, armeiro.
EDUARDO
PerER, seu aprendiz.
seus filhos. Escrivão DE CHATHAM,
RicarDO
PrEerEITO DE SANTO ÁLBANO.
SIMPCOX, impostor.
DuQUE DE SOMERSET. Dois assassinos.
DuQUE DE SUFFOLK. Jack CApE, rebelde.
Duque DE BUCKINGHAM.
LorpE CLIFFORD. Jorce Bevis.
O Jovem CLirrroro», seu filho. Joun HoLLanD.
CONDE DE SALISBURY. O carniceiro Drcx, adeptos de Cade.
ConDE DE WARWICK. o tecelão SMITH,
Lorpe ScaLES, governador da Torre. MICAEL, etc.
Srr HuMPHREY STAFFORD.
ALEXANDRE ÍDEN, nobre de Kent.
WILLIAM STAFFORD, seu irmão.
MARGARIDA, esposa do Rei Henrique.
LorpeE Say.
ELgonor, Duquesa de Gloster.
Um Capitão de navio, um patrão e seu ajudante.
MARGERY JOURDAIN, feiticeira.
VALTER WHITMORE. A mulher de Simpcox.
SIR JOHN STANLEY. Nobres, senhoras da nobreza e séquito; arauto,
Dois gentis-homens, prisioneiros juntamente com peticionários, um bedel, xerife e oficiais; cidadãos,
Suffolk. aprendizes, falcoeiros, guardas, soldados,
Vaux. mensageiros, etc.
Mareus Gore.
Cena
Em várias partes da Inglaterra
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Ato T- Cena I
Londres. Uma sala do palácio. me sugere e a alegria transbordante
Toque de trombetas; depois, de oboés. Entram, por um lado, me dita ao coração reconhecido.
o Rei Henrique, o Duque de Gloster, Salisbury, Warwick Rer HENRIQUE
eo Cardeal Beaufort; por outro, a Rainha Margarida, É bela de extasiar; mas seu discurso
conduzida por Suffolk; seguem-se York, Somersei, gracioso, as expressões apresentada
Buckingham e outros. com toda a majestade da prudência,
o espanto me sufocam, provocando-me
SUFFOLK* Ào partir para a França, fui por Vossa lágrimas de alegria. É indescritível
Majestade Imperial encarregado, a ventura que o peito ora me agita.
como procurador de Vossa Graça, Lordes, com voz alegre saudai todos
de esposar a Princesa Margarida o meu amor.
para Vossa Excelência. E assim, na muito Topos: Que tenha vida longa
famosa e antiga Tours, sendo presentes Margarida, a ventura da Inglaterra!
os Reis da França e da Sicília, os Duques RarnHa MARGARIDA * À todos agradeço.
de Orleans, Calábria, de Alençon, Bretanha, (Fanfarras.)
doze barões, vinte colendos bispos SurroLk: Milorde protetor, se for do agrado
e sete condes, pude, enfim, pôr termo de Vossa Graça, os itens aqui se acham
à minha comissão e a desposei. do contrato da paz em que acordaram
Agora, humildemente, dobro os joelhos nosso monarca e o Rei Carlos da França
e, à vista da Inglaterra e de seus pares, durante o prazo de dezoito meses.
deponho o meu direito sobre a rainha GrostER* “Imprimis, fica assentado entre o Rei da
França, Carlos, e William de la Pole, Marquês de
em vossas mãos, que a essência representam
do que eu era, tão-só, a grande sombra. Suffolk, embaixador do Rei Henrique da Inglaterra,
que o dito Henrique desposará Lady Margarida,
Nunca fez um marquês tão feliz mimo;
filha de Reignier, Rei de Nápoles, Sicília e Jerusalém,
nenhum rei jamais viu tão linda esposa.
ea coroará Rainha da Inglaterra antes do dia 30 do
Rer HeNRIQUE-
próximo mês de março. Item, que o ducado de Anjou
Levanta-te, Suffolk. Sede bem-vinda,
e o condado de Maine ficarão livres de qualquer
Rainha Margarida. É-me impossível
obrigação e serão entregues ao rei seu pai...”
dar maior prova de afeição do que este
(Deixa cair o papel.)
beijo afetuoso. Oh Deus, que me criaste! Rei HENRIQUE:
dai-me, também, um peito agradecido, Tio, que estais sentindo?
pois nesta face linda me concedes GLOSTER* Meu gracioso
à alma extasiada um mundo de venturas senhor, peço perdão, mas um mal súbito
terrenas, se vier amor recíproco me ataca o peito e a vista me perturba,
unificar os nossos pensamentos. de todo me impedindo ora a leitura.
RarnHa MARGARIDA * Rer HENRIQUE:
Grande Rei da Inglaterra e meu gracioso Tio de Winchester, por obséquio, lede.
senhor, das conferências que já tive CARDEAL“ “Item, ficou, ainda, decidido entre
convosco em pensamento, assim de dia ambos que os ducados de Anjou e Maine ficarão
como de noite, em sonhos e acordada, livres de qualquer obrigação e serão entregues ao rei
em meio aos cortesãos ou a sós comigo, seu pai, e que ela será enviada ao Rei da Inglaterra à
me vem a audácia, meu estremecido custa deste, sem levar dote algum.”
monarca, de saudar meu rei em termos Rer HenrIQUE-
desornados, tal como o entendimento Agradam-nos os termos. Ajoelhai-vos,

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Henrique VI

Lorde Marquês. Cingindo-vos a espada, dos livros da memória, os caracteres


nós vos criamos o primeiro duque riscando que a alta fama vos conservam,
de Suffolk. Primo de York, aliviamos derrubando as colunas erigidas
Vossa Graça do peso da regência na França conquistada e desfazendo
da França até que expirem os dezoito tudo, como se nada houvesse sido.
meses estipulados. Obrigado, CARDEAL: Sobrinho, a que vem todo esse discurso,
meu tio Winchester, Gloster, Somerset, essa peroração com tais rodeios?
Buckingham, York, Warwick e Salisbury; A França é nossa, e nossa há de ser sempre.
meu reconhecimento a todos pela GLosrer* Sim, meu tio; sê-lo-á, se a conservarmos;
recepção feita à minha real esposa. mas agora é impossível que o façamos.
Vamos logo cuidar da cerimônia Suffolk, o novo duque, que ora o reino
de sua coroação. Tratemos disso. dirige como quer, deu os ducados
(Saem o rei, a rainha e Suffolk.) de Anjou e Maine ao pobre soberano
GLosrER : Valentes pares da Inglaterra, fortes Reignier, cuja aparência alucinante
pilares da nação, o Duque de Humphrey não condiz com a pobreza de sua bolsa.
desabafa convosco seus cuidados, SALISBURY * Pela morte daquele que por todos
vossos cuidados, sim, de toda a pátria. se ofereceu, esses condados eram
Foi só para isso, então, que o mano Henrique da Normandia a chave. Por que chora,
gastou a mocidade, o ouro e seu povo porém, Warwick, o meu valente filho?
nas guerras que empreendeu? Não dormiu ele, WaRwICK* De tristeza, porque estarão perdidos
tantas vezes, no campo, exposto a todas para sempre. Se fosse ainda possível
as intempéries, frios e canículas, reconquistá-los, não derramaria
para fazer valer o seu direito lágrimas, porém sangue com esta espada.
como herdeiro legítimo da França? Anjou e Maine! Eu próprio os conquistei;
E, ademais, meu irmão Beaufort não teve estes braços ganharam essas terras.
de empregar toda a sua inteligência E ora vão entregar só por palavras
a fim de conservar pela política as cidades que o sangue me custaram?
o que Henrique obtivera? E vós, bravo York, Mort Dieu!
Buckingham, Salisbury e Somerset, York: Pereça sufocado o novo duque
não adquiristes fundas cicatrizes de Suffolk, por ter, assim, turvado
na França e Normandia? E eu, porventura, a honra da ilha guerreira. Mais depressa
com meu tio Bedford e os mais provectos me torturara a França e me arrancara
conselheiros do reino, não ficávamos do peito o coração, do que obteria
de manhã até à noite no conselho, que esse pacto eu firmasse. Nunca soube
considerando todas as maneiras senão que os reis ingleses recebiam
de trazer os franceses, sempre, e a França com as esposas enormes somas de ouro.
na mesma sujeição? Sua Grandeza, E agora o Rei Henrique o seu despende
quando criança, em Paris não foi coroado, para casar com quem não possui nada!
a despeito do imigo? Terão sido Grosrer: Pilhéria fina, é certo, e nunca ouvida,
baldadas essas honras e os trabalhos, que Suffolk pedisse nada menos
a conquista de Henrique, a vigilância do que quinze avos para fazer foce
de Bedford, vossos feitos nas campanhas às despesas com a viagem da rainha.
e assim nossos alvitres e conselhos? Ficasse ela na França e lá morresse
Oh pares da Inglaterra! É vergonhoso de fome, antes de ter...
semelhante tratado, e o casamento CARDEAL"
uma fatalidade que vos priva Falais com muito ardor, Milorde Gloster.
de todo brilho, o nome vos apaga À nosso rei aprouve o que foi feito.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

GLosTER* No caso de ser Gloster demitido,


Lorde Winchester, conheço-vos por dentro; ele será o protetor.
não são minhas palavras que vos causam BuckincHAM: Serás
desagrado; sou eu que vos conturbo. tu, ou eu, Somerset, em que se oponham
Manifestai logo o ódio. Nessas faces, a isso o Duque de Gloster e o cardeal.
orgulhoso prelado, eu leio a cólera. (Saem Buckingham e Somerset.)
Se eu não me for embora, iniciaremos SALISBURY *
de novo nossa velha altercação. Foi-se o orgulho; a ambição lhe vai no encalço.
Senhores, passai bem. Após meu trânsito, Enquanto eles só tratam de si próprios,
lembrai-vos desta minha profecia: a nós cumpre cuidar do bem da pátria.
vamos perder a França fatalmente. Nunca vi comportar-se o Duque de Humphrey
(Sai) a não ser como um nobre gentil-homem;
CARDEAL“ O protetor se retirou furioso. mas, ao contrário, vi bastantes vezes
É sabido que ele é meu inimigo, este altivo cardeal — que mais parece
ou melhor, de nós todos e, receio-o soldado do que padre, sempre cheio
bastante, pouco amigo do monarca. de si mesmo e insolente — sem propósito
Considerai, senhores: pelo sangue, jurar como um rufião e fazer coisas
ele é o primeiro herdeiro da coroa. de todo em todo indignas do alto nome
Se este consórcio houvesse dado a Henrique de um regente do império. Caro filho
um grande império e os reinos opulentos Warwick, meu refrigério na velhice,
do Oriente, é quase certo que ele achara tua glória, a lhaneza que te é própria,
razões para mostrar-se desgostoso. bem como a diligência no governo
Vede bem, meus senhores, sem que suas de tua casa, há muito te granjearam
frases alambicadas vos seduzam: o favor dos comuns, entre os quais o único
prudentes sede em tudo e circunspectos. que contigo se iguala é o Duque de Humphrey.
O povo baixo o adula e Humphrey lhe chama, Mano York, o teu papel na governança
o bom Duque de Gloster. Batem palmas, da Irlanda, conduzindo os habitantes
gritando em altas vozes: Jesus guarde à civil disciplina, os altos feitos
nosso bom Duque de Humphrey! Todas essas que na tua regência realizaste
frases aduladoras, meus senhores, no coração da França, te tornaram
receio-o muito, podem vir a dar-nos temido e honrado, a um tempo, dos do povo.
um protetor realmente perigoso. Reunamo-nos, agora, só com o fito
BuckiNGHAM Por que dirigir ele o nosso rei, do bem público, e esforços envidemos
se já tem este idade de orientar-se? a fim de reprimir e aniquilar
Primo de Somerset, a mim aliai-vos, o orgulho do cardeal e de Suffolk,
e em pouco tempo todos nós, com o auxílio e a harta ambição de Somerset e desse
do Duque de Suffolk, derrubaremos Buckingham, amparando o mais possível
do seu lugar o altivo Duque de Humphrey. o bom Duque de Gloster, enquanto ele
CARDEAL: Esse grave negócio exige urgência; trabalhar tendo em vista o bem da pátria.
vou procurar o Duque de Suffolk. WARWICK *
(Sai) Que Deus ampare Warwick, enquanto sua
SomERsET- Primo Buckingham, embora o orgulho pátria ele amar e o bem da causa pública.
de Humphrey e sua posição nos sejam Yorx (à parte):
motivo de desgosto, não percamos Diz York o mesmo, e sabe por que o faz.
de vista esse cardeal cheio de empáfia. SALISBURY *
Sua insolência é mais intolerável Sem perder tempo, então, sejamos dignos
do que todos os príncipes reunidos. dos nossos manes.

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WARWICK“ Nosso Maine foi-se, no meu sangue e na minha carne queimam


querido pai! Perdemos o ducado assim como o fatal tição de Altéia
que Warwick havia ganho e poderia no peito do senhor de Calidona.
ter conservado enquanto fosse vivo. Anjou e Maine entregues aos franceses!
Pensais em manes, pai; eu, no ducado É triste essa notícia; era na França
de Maine, que hei de à França novamente que eu fundava o melhor das esperanças
tomar ou perecer com minha gente. e assim no fértil solo da Inglaterra.
(Saem Warwick e Salisbury.) Há de chegar o dia em que reclame
York Entregamos à França Anjou e Maine; York o que lhe pertence. Eis o motivo
Paris está perdida; a Normandia de eu com os Nevils ficar e de mostrar-me
sem aquelas cidades não se agienta; dedicado a esse altivo Duque de Humphrey,
Suffolk houve por bem concluir o pacto, para, no instante azado, apoderar-me
os pares concordaram, contentíssimo da coroa, a áurea meta a que me esforço.
se acha Henrique por ter feito a barganha Jamais me privará de meus direitos
de dois ducados pela bela filha o orgulhoso Lencastre, nem o cetro
de um duque. Não me cabe censurá-los. nas mãos fracas terá nem o diadema
Que lhes importa o reino? Teus haveres na cabeça; o caráter religioso
é que eles desperdiçam, não o próprio. não se coaduna com as insígnias régias.
Podem gastar à larga os salteadores Acalma-te, York, até que venha o tempo
quanto roubaram, conquistar amigos, favorecer-te; fica alerta e observa,
presentear cortesãs e viver vida enquanto os outros dormem, porque possas
de fidalgos, em festas incessantes,
surpreender os segredos da política.
até esbanjarem tudo, enquanto o mísero E quando Henrique, inteiramente entregue
proprietário lastima os seus haveres,
às venturas do amor com a nova rainha,
por quem pagou tão caro o reino todo,
a cabeça sacode, as mãos retorce,
e Humphrey se desavierem com a nobreza,
desesperado, e à parte se conserva,
então eu erguerei a rosa branca
e, conquanto a partilha esteja vendo
que impregnará com seu perfume suave
de quanto lhe pertence, morto à fome,
todo o ambiente e farei gravar as armas
em nada ousa tocar. Do mesmo modo
de York em meus estandartes, para a casa
faz York, a língua morde, não se mexe,
de Lencastre atacar. Assim, valendo-me
atormenta-se, enquanto são vendidas
da força, hei de fazer rolar por terra
ou trocadas suas terras. Só parece o governo livresco da Inglaterra.
que os reinos da Inglaterra, França e Irlanda
(Sai)

Ato T- Cena II
O mesmo. Quarto em casa do Duque de Gloster. Por que cravas os olhos no chão sujo,
Entram Gloster e a duquesa. contemplando o que a vista te conturba?
Estarás à procura do diadema
Duquesa : Por que a cabeça deixa meu esposo do Rei Henrique, enaltecido pelas
pender, tal como espiga em demasia honrarias do mundo? Se for isso,
carregada por Ceres? Por que causa continua a fixá-lo e as faces roja,
franze os cenhos o grande Duque de Humphrey, até que ele a cabeça te circunde.
como se o molestasse o belo mundo? Estende o braço e alcança o ouro glorioso.

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shakespearebrasileiro.org WiLLiam SHAKESPEARE

Não consegues tocá-lo? O meu te ajuda; Para trás! Não me fales mais sobre isso.
e uma vez que o tenhamos entre os dedos, Duquesa * Como assim, meu senhor!
ao céu levantaremos a cabeça, [Aborrecestes-vos
sem jamais consentirmos que ao chão baixo com Eleonor, tão-só por vos ter ela
a vista sobranceira se degrade. contado o que sonhara? De outra feita
GLrostEr: Oh Nell! Se tens amor a teu marido, ficarei com meu sonho, para ver-me
do peito expele o cancro da ambição! livre de repreensões.
Possa algum pensamento, concebido GLOSTER: Não te amofines;
contra o meu soberano, o pio Henrique, já estou de novo alegre.
transformar-se em meu último suspiro (Entra um mensageiro.)
neste mundo mortal. Ora me deixa Mensageiro : Milorde, é do prazer de Sua Alteza
triste um sonho angustiante desta noite. que vades a cavalo a Santo Albano
Duquesa: à caça do falcão com Suas Graças.
Que sonhou meu senhor? Nada me ocultes, GLosrER * Pois não! Não quererás, Nell, ir conosco?
que eu te retribuirei com o doce conto Duquesa : Sim, meu caro senhor; não me demoro.
do que eu também sonhei de manhãzinha. (Saem Gloster e o mensageiro.)
GLosTER : Sonhei que este bastão, preclara insígnia Se não posso ir na frente, vou segui-los
do meu posto na corte, se partira. enquanto se mostrar Gloster de espírito
O causador do fato, não me lembra. humilde e tão mesquinho. Fosse eu homem,
Sim, pensando melhor, foi o cardeal. um duque, um príncipe de sangue, em pouco
O certo é que, na ponta dos dois troços, tempo removeria esses escolhos
a cabeça fixaram do primeiro enfadonhos, andando sobre troncos
Duque de Suffolk, William de la Pole decapitados. Mas embora seja
e do Duque Edmundo Somerset. mulher, não me permito por mais tempo
Só Deus sabe o que o sonho significa. continuar negligente no pomposo
Duquesa : Muito simples: indica, tão-somente, festival da Fortuna. Onde ficastes,
que se vier a quebrar alguém um galho homem? Sir John! Por que tanto receio?
da alameda de Gloster, a cabeça Estamos sós aqui; tu e eu, somente.
perderá sem demora pela audácia. (Entra Hume.)
Mas agora me escuta, meu querido Hume - Jesus ampare Vossa Majestade.
duque, meu Humphrey: pareceu-me em sonhos Duquesa - Majestade! Sou Graça, simplesmente.
que eu estava sentada em majestosa Hume:
cadeira, em plena catedral de Westminster, Mas com a graça de Deus e os bons conselhos
onde reis e rainhas vão sentar-se de Hume, vai Vossa Graça ver em pouco
para serem coroados; a meus pés que esse título cresce.
se achava Henrique e Lady Margarida, Duquesa Homem, que dizes?
que o diadema me punham na cabeça. Já falaste com a bruxa inteligente,
GLosrer: Não, Eleonor! Terei de censurar-te. a Margery Jourdain, e o feiticeiro
Mulher louca! Eleonor de maus princípios! Rogério Bolingbroke? Estão dispostos
Ésa segunda dama da Inglaterra, a empreender qualquer coisa em meu proveito?
mulher do protetor e dele amada. Hume : Prometeram mostrar a Vossa Alteza
Não desfrutas de todos os prazeres um espírito que eles chamariam
mundanos, muito mais do que te possa do insondável abismo subterrâneo
conceber e abarcar o pensamento? e que há de responder a tudo quanto
E hás de forjar traições para, com isso, Vossa Graça entender de perguntar-lhe.
derrubares a ti e a teu marido Duquesa: Está bem; pensarei sobre esse assunto.
do alto da honra para o pé da infâmia? Logo que retornarmos da caçada

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de Santo Albano, a cabo levaremos cardeal ou o novo Duque de Suffolk.


semelhante projeto. Aceita a paga De qualquer forma a coisa é deste jeito:
de teu trabalho. Por enquanto cuida conhecendo eles a ambição sem peias
tão-só de te alegrar com teus consócios da senhora Eleonor, dão-me dinheiro
neste assunto de tanta relevância. para miná-la e pôr-lhe na cabeça
(Sai) essas conjurações. Um biltre astuto,
Hume: Hume vai distrair-se com o dinheiro dizem eles, dispensa corretores.
da duquesa. É o que eu quero. Mas, cuidado, No entanto eu sou o agente de Suffolk
Sir John Hume! Cuidado com essa boca; e do cardeal. Cuidado, Hume, que acabas
não digais coisa alguma senão: Psiu! chamando os dois de biltres astuciosos!
O assunto exige o máximo segredo. Tudo está neste pé; receio muito
À senhora Eleonor me dá dinheiro que venha a ser a tratantagem de Hume
para eu trazer-lhe a bruxa; ainda que venha a ruína da duquesa. Uma vez ela
do demônio, o ouro é sempre um bom presente. difamada, cairá também o esposo.
Mas também, do outro lado, o ouro me chega; Assim ficarei rico e venturoso.
não sei dizer se quem mo envia é o rico (Saí)

Ato T- Cena II
O mesmo. Um quarto no palácio. casa, terras, minha mulher e tudo o mais.
Entram três ou quatro peticionários, entre os quais o SurroLK* À mulher também? Grande violência,
escudeiro Peter. não há que ver. E a tua, em que consiste? Mas, que é
isso? “Contra o Duque de Suffolk, por haver cercado
PRIMEIRO PETICIONÁRIO * Ficai perto, mestres! o pasto público de Melford.” Que significa isso,
Não demora, milorde protetor vai passar por aqui; senhor velhaco?
será o momento de lhe entregarmos as nossas SEGUNDO PETICIONÁRIO - Ai de mim, senhor! Eu
petições, com todas as formalidades. sou apenas um pobre peticionário, que falo em nome
SEGUNDO PETICIONÁRIO - Sim. Deus o proteja! É do nosso distrito.
um bom homem. Jesus o abençoe. PeTER (apresentando a sua petição) - Contra meu
(Entram Suffolk e a Rainha Margarida.) mestre Tomás Horner, por ter dito
PrimEIRO PETICIONÁRIO - Aí vem vindo ele, me que o Duque de York era o legítimo herdeiro da coroa.
parece, juntamente com a rainha. RarnHa MARGARIDA : Que estás a dizer? O
Com toda a certeza vou ser eu o primeiro. Duque de York disse que ele era o herdeiro legítimo
SEGUNDO PeTICIONÁRIO * Volta, maluco! É o da coroa?
Duque de Suffolk; não é milorde protetor. Perer - Que meu mestre era o herdeiro? Não: de
SurroLk: Então, amigo! Desejas alguma coisa de forma alguma. Foi o meu mestre que disse que ele o
mim? era e que o rei não passava de um usurpador.
PrimEIRO PeTICIONÁRIO * Perdão, milorde; mas eu SurroLk: Não há ninguém aí?
vos tomei por milorde protetor. (Entram criados.)
RarnHa MARGARIDA (lendo os sobrescritos) “A Prende este sujeito e manda imediatamente um
Milorde Protetor”. Vossas petições são endereçadas oficial de justiça à casa de seu mestre. Na presença do
a Sua Senhoria? Deixai-me vê-las. Em que consiste rei iremos ouvir vosso assunto com mais vagar.
a tua? (Saem os criados com Peter.)
PrrmeIRrO PeTICIONÁRIO - À minha, com licença RAarnHA MARGARIDA:
de Vossa Graça, é contra João Goodman, um dos Quanto a vós, que almejais ser protegidos
homens de milorde cardeal, por me ter tomado a sob as asas do nosso protetor,

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recomeçai; Sua Graça vos espera RainHa MARGARIDA *


para fazer justiça. Aliás, esses fidalgos não me causam
(Rasga as petições.) tanto aborrecimento como a esposa
Fora, biltres! do lorde protetor, que varre a corte
Suffolk, manda sair toda essa gente. com seu bando de damas, parecendo
Topos: Vamos; saiamos todos. mais uma imperatriz do que a consorte
(Saem os peticionários.) do Duque de Humphrey. Muitos estrangeiros
RarnHA MARGARIDA * pela rainha a tomam. Porque às costas
Milorde de Suffolk, esse é o costume, traz as rendas de um duque, intimamente
a maneira da corte da Inglaterra? escarnece de nós, por sermos pobres.
É assim que se governa a ilha Britânica Não poderei jamais vingar-me dela?
e de Albion a realeza? O Rei Henrique Conquanto seja uma mulher à-toa,
ainda está como simples tutelado de linhagem somenos, vangloriava-se
do rezingueiro Gloster? Tenho o título há dias, entre os seus admiradores,
eo posto de rainha, para ver-me de que a cauda, tão-só, do seu vestido
sujeita a um simples duque? Vou dizer-te, era de mais valor do que os domínios,
Pole, uma coisa: quando na cidade por junto, de meu pai, enquanto o Duque
de Tours correste lança em homenagem de Suffolk os ducados não lhe havia
do meu amor, e os corações roubaste dado ainda, ao pedir-lhe a mão da filha
às senhoras francesas, fiz idéia . para o Rei da Inglaterra.
de que como eras fosse o Rei Henrique, SUFFOLK*
em coragem, maneiras e elegância. Senhora, eu próprio armei-lhe uma armadilha
Mas ele só aspira à santidade, e pus aí, como negaça, pássaros
rezar ave-marias no rosário; de tão suaves cantos, que é certeza
os profetas e apóstolos o amparam; deixar-se ela prender só para ouvi-los,
por armas tem sentenças da Escritura; sem mais pensar em vos causar desgostos.
seu gabinete é a liça de exercícios; Deixai-a, pois, em paz. E agora dai-me
seus amores, apenas as imagens toda a atenção, que tenho o atrevimento
dos santos que já estão canonizados. de vos aconselhar. Ainda no caso
Quisera que o colégio de cardeais de nos ser o cardeal insuportável,
o escolhesse por papa e que ele fosse forçoso é que com ele e os demais pares
para Roma, onde a tríplice coroa nos aliemos, até que consigamos
na fronte lhe poriam. Fora o estado alijar de uma vez o Duque de Humphrey.
mais de acordo com sua santidade. No que respeita ao Duque de York, a nova
SurFoLK* Acalmai-vos, senhora; Vossa Alteza queixa lhe ensejará pouco proveito.
foi trazida por mim para a Inglaterra. Livrar-nos-emos, desse modo, aos poucos,
Quanto em mim estiver, hei de esforçar-me deles todos, ficando Vossa Graça
para que Vossa Graça fique alegre. sozinha a dirigir o feliz leme.
RarnHa MARGARIDA* (Toque de fanfarra. Entram o Rei Henrique, York
Além do lorde protetor, nós temos e Somerset, em conversa, o Duque e a Duquesa de
Somerset, Buckingham, esse imperioso Gloster, o Cardeal Beaufort, Buckingham, Salisbury e
sacerdote, Beaufort, e o rezingueiro Warwick.)
Duque de York. O menor entre eles todos Rer HENRIQUE
manda mais, na Inglaterra, do que o rei. Tanto faz para mim, meus nobres lordes,
SurroLK: E o maior ainda manda muito menos escolher um ou outro: ou Somerset,
do que os Nevils; Warwick e Salisbury ou York, é indiferente.
não são pares, sequer, da monarquia. York: Se na França

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Henrique VI

York se comportou por modo indigno, na França, se tornassem conhecidos,


seja-lhe ora negada essa regência. a pular ficarias sem cabeça.
SOMERSET* Se Somerset é indigno desse posto, (Gloster sai; a rainha deixa cair o leque.)
nomeai York regente, que eu me afasto. Apanha o leque! Como! Petulante!
Warwick: Ninguém se importa de saber, por ora, Isso não te compete? É assim?
se Vossa Graça é digno; York é o mais digno. (Dá uma bofetada na duquesa.)
CARDEAL Cala essa boca, Warwick; és presunçoso; Não tinha visto,
falam teus superiores. senhora, que éreis vós; peço perdão.
WARWICK * O cardeal Duquesa - Não, francesa atrevida? Não sabíeis
não é meu superior em campo aberto. que era eu? Se com as unhas eu pudesse
BuckiNGHAM * Warwick, todos quantos aqui se acham tocar nessa beleza, mandaria
teus superiores são. estes dez mandamentos afagá-la.
WARWICK * Mas Warwick há de Rer Henrique: Boa tia, acalmai-vos; foi engano.
viver para ser mais do que eles todos. Duquesa - Engano? Rei bondoso, toma tento,
SaLisBurY: Quieto, meu filho! Dai-nos os motivos, que não tardará muito para que ela
Buckingham, de dever ser preferido se te ponha a ninar como a uma criança.
Somerset para o cargo. Mas embora pareça que estes homens
RarnHA MARGARIDA * É muito simples: não usam calça, impune ela não há de
porque o rei determina que assim seja. esbofetear, assim, Lady Eleonor.
GLosrER: Senhora, o rei já tem bastante idade (Sai)
para determinar-se; esses assuntos BuckiNcHAM Vou seguir Eleonor, Lorde Cardeal,
não são para mulheres. e ao mesmo tempo ver o que faz Humphrey.
RarnHa MARGARIDA“ Nesse caso, De esporas Eleonor não necessita;
por que motivo insiste Vossa Graça vai galopar de encontro à destruição.
em ser o protetor de Sua Excelência? (Sai Buckingham.)
GLosrER- Eu sou apenas protetor do reino; (Volta Gloster.)
quando o rei decidir, resigno o posto. GLosrTER: Ora que espaireci lá fora o espírito,
SurroLk Então resigna logo, pondo termo passeando no quadrângulo, falar-vos
nessa insolência. Desde que ficaste pretendo dos negócios da república.
como rei — quem é o rei, senão tu mesmo? — No que respeita a vossas desprezíveis
a república marcha para a ruína; acusações, provai-as, que eu prometo
do outro lado do mar vence o delfim; à lei obedecer. Seja à minha alma
todos os pares, a nobreza toda benigno o Poderoso, em recompensa
do reino são escravos do teu mando. do amor que a meu país c ao rei dedico.
CARDEAL: Supliciaste os comuns; raspaste as arcas Mas, voltando ao assumo de há momentos:
do clero, sem vintém deixando todas digo, meu soberano, que York é o homem
com tuas extorsões. mais apto para ser vosso regente
SOMERSET* Tua suntuosa no território franco.
moradia e os vestidos de tua esposa SUFFOLK * Antes da escolha
arruinaram de todo o erário público. desejara aduzir alguns motivos
BuckINGHAM' A crueldade que te é característica de força não somenos, que demonstram
excede as leis na punição dos crimes, ser York o menos apto para o cargo.
tornando-te passível de castigo. York: Vou revelar-te esses motivos, Suffolk:
RAaiNHA MARGARIDA * em primeiro lugar, por ser inábil
Se os negócios com cargos e cidades — para adular-te o orgulho; o outro, é sabido:
do que temos suspeita — que fizeste se eu fosse designado para o posto,

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Milorde Somerset não me daria


Suplico a Vossa Augusta Majestade
licença de partir e me privara todo o rigor da lei contra este biltre.
de munições e tudo, até que a França HornER: Ah, meu senhor! Quero que me
viesse a cair nas mãos do delfim Carlos. enforquem, se eu falei em semelhante coisa. Este
De outra feita, eu fiquei dançando, à espera rapaz é meu aprendiz. Certa vez, quando o repreendi
de seu auxílio até que Paris fosse por uma falta, ele prometeu de joelhos que se
cercada e se rendesse pela fome. |
vingaria. Tenho testemunhas do fato. Por isso peçoa
Warwick - Posso dar testemunho desse fato. Vossa Majestade não prejudicar um homem honrado!
Nunca jamais tão grande felonia por causa da acusação de um bigorrilha.
cometeu um traidor em nossa terra. Rer Henrique - Que dizem, tio, as leis sobre este caso?
SurFoLK* Paz, Warwick obstinado! GrosrEr : Milorde, eu julgaria deste modo,
Warwick: És a imagem do orgulho. Por que causa caso fosse o juiz: daria o posto
devo calar-me? de Regente da França a Somerset,
(Entram os criados de S, LA
por York estar manchado de suspeita.
conduzindo Horner e Peter.) Quanto a esta gente, designemos dia
SurFoLK: Porter sido a pecha para um combate singular entre ambos,
de traição atirada contra alguém. em lugar apropriado. Afirma este homem
Deus queira que se escuse o Duque de York? que pode aduzir provas da maldade
Yorx- Alguém chamou traidor ao Duque de York? do aprendiz. Esta é a lei, cesta a sentença
Rei HenrIQUE- ,
que daria no caso Humphrey de Gloster.
Que significam, Suffolk, esses termos? Rer HENRIQUE
Que quer toda essa gente? Pois seja assim. Nomeamos Vossa Graça,
SUFFOLK* milorde Somerset, para o alto posto
Com licença
de Vossa Majestade, esse indivíduo de Regente da França.
acusa seu senhor de alta traição. SOMERSET* Humildemente
Afirmou que Ricardo, Duque de York, eu agradeço a Vossa Real Pessoa.
era o herdeiro legítimo do trono Horner: E eu de grado ao combate me submeto.
da Inglaterra e que Vossa Majestade PereR*
Ah, meu senhor! Eu não posso bater-me. Por amor
não passava de um mero usurpador.
Rer HENRIQUE - de Deus, tende piedade de mim. A maldade deste
homem é poderosa contra mim, Deus tenha
Responde, homem: disseste essas palavras?
compaixão de mim! Não serei capaz de dar um só
HornER : Com licença de Vossa Majestade,
golpe. Ah, Deus! Meu coração!
nunca disse tal coisa, nem em tal coisa pensei.
GtosrER : Tens de brigar; se não, te enforcaremos,
Deus é testemunha de que eu estou sendo acusado
Rer Henrique - Ponham-nos na prisão; no último dia
falsamente por este vilão.
do mês próximo, os dois hão de bater-se.
York - Vilão imundo, baixo mesteireiro,
Somerset, vamos logo despachar-te.
vais pagar com a cabeça essas mentiras.
(Saem.)

Ato T- Cena IV
O mesmo. Jardim do Duque de Gloster.
BoLiNGBROKE : Estamos prontos, mestre Hume.
Entram Margery Yourdain, Hume, Southrwell e Bolingbroke.
Sua Senhoria está disposta a presenciar e a ouvir
nossos exorcismos?
Hume : Vinde, mestres. Digo-vos que a duquesa
Hume : Ora, por que não? Não vos preocupeis com
conta com a realização de vossas promessas.
a sua coragem.

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BoLINGBROKE Já ouvi dizer que ela é uma mulher Acabai! Prosseguir não me é possível.
de espírito invencível. Mas será conveniente, mestre BOLINGBROKE*
Hume, ficardes lá em cima com ela, enquanto nós Retorna à escuridão e ao fogo eterno
fazemos o trabalho. E agora peço que vos vades em do lago abrasador. Vai-te, maldito!
nome de Deus. (Trovões e relâmpagos. Desaparece o espírito.)
(Sai Hume.) (Entram apressadamente York e Buckingham, com
Mãe Jourdain, abaixai-vos e rojai pelo chão. John guardas e outras pessoas.)
Southwell, lede. E agora, mãos à obra! Yorx- Prendei esses traidores e toda essa
(Aparece a duquesa, no alto, seguida de Hume.) farandolagem. Bruxa, nós te tínhamos
Duquesa : Muito bem dito, mestres; sede todos de olho, é só o que eu te digo. O quê? A senhora
bem-vindos. Para isto, quanto mais cedo, melhor. também neste lugar? O rei e o reino
BoLrncBrokE : Boa dama, paciência; os feiticeiros vos saberão pagar a diligência.
a hora azada conhecem: noite escura, Milorde protetor, não tenho dúvida,
noite profunda, noite silenciosa, vos recompensará pelo serviço.
a hora em que Tróia foi entregue às chamas, Duquesa - Não prejudica ao rei o meu serviço
em que piam corujas agourentas nem a metade do que o teu costuma,
e uivam os cães de guarda, em que os espíritos duque insolente, que sem causa ameaças.
passeiam e os fantasmas saem dos túmulos: BuckiNcHAM É verdade, senhora; não há causa.
eis o tempo adequado para a empresa E disto, que dizeis?
que vamos iniciar. Mas assentai-vos, (Mostra-lhe o papel.)
senhora, sem receio, porque o espírito Levai-os logo;
que vamos invocar ficará preso prendei-os bem, deixando-os separados.
nos limites de um círculo sagrado. Vós, senhora, tereis de acompanhar-nos.
(Nessa altura, executam as cerimônias do estilo e traçam Stafford, fica com ela.
um círculo. Bolingbroke, ou Soutbrwell, lê: Conjuro-te! (Retiram-se do alto a duquesa e Hume, escoltados.)
etc. Trovões e relâmpagos. Aparece o espírito.) Vão ser examinadas todas essas
EspíriTO - Adsum. bugigangas. Levai-os daqui todos!
MARGERY JOURDAIN * Asmath! (Saem Soutbwell, Bolingbroke etc., escoltados.)
Por esse Deus eterno cujo nome York: Lorde Buckingham, vejo que a vigiastes
te fez tremer de medo, dá-me pronta às maravilhas. Ótima conjura
resposta a quanto aqui vou perguntar-te. para sobre ela levantarmos algo.
Sem isso, não sairás de onde te encontras. Deixai-me ler, milorde, essa escritura
EspíriTo - Pergunta, então. Quisera o fim ver disto. do diabo. Mas, que vejo?
BoLINGBROKE (Iê) - “Vive o duque que a Henrique há de depor,
Primeiro sobre o rei: que será dele? mas por fim há de achar morte violenta.”
EspíriTo - Vive o duque que a Henrique há de depor; Ora, isto é, justamente,
mas por fim há de achar morte violenta. Aio, te, Acacida, Romanos vincere posse.
(Enquanto o espírito fala, Soutkswell escreve a resposta.) Prossigamos:
BOLINGBROKE* “Que morte aguarda o Duque de Suffolk?
Que sorte aguarda o Duque de Suffolk? Morrerá na água, o fim nela encontrando.
EspíriTO * E o Duque Somerset, como termina?
Morrerá na água, o fim nela encontrando. Desconfie de castelos; mais a salvo
BOLINGBROKE* ele estará nos plainos arenosos
E o Duque Somerset, como termina? do que onde altos castelos se levantam.”
EsríriTO - Desconfie de castelos; mais a salvo Vinde milorde, vinde; estes oráculos
ele estará nos plainos arenosos foram duros de obter e são dificeis
do que onde altos castelos se levantam. de decifrar. O rei se acha a caminho

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de Santo Albano; com ele está o marido para que obtenha dele a recompensa.
desta adorável dama. Ora lhe enviemos York: Como o quiserdes, meu bom lorde. Olá!
a notícia, gastando o tempo estrito Quem está aí?
que exija um bom cavalo. Triste almoço (Entra um criado.)
vai ter milorde protetor, realmente. Vai convidar de minha parte os Lordes
BUCKINGHAM * Warwick e Salisbury para cearem
Suplico a Vossa Graça, Lorde de York, esta noite comigo. Não demores!
consentir que seja eu o mensageiro (Fanfarras. Saem.)

Ato IH: Cenal


Santo Albano. CARDEAL: Teu céu está na terra; o que esses olhos
Entram o Rei Henrique, a Rainha Margarida, Gloster, e o espírito ambicionam é a coroa,
o Cardeal Beaufort e Suffolk, com falcoeiros que chamam tesouro sem igual para o teu peito,
pelos falcões. Protetor pernicioso, par nocivo
que o rei e o reino enganas com tua lábia!
RarnHa MARGARIDA * GLosrer: Como deixais, cardeal, que o sacerdócio
Podeis acreditar-me: a caça aquática se vos torne, desta arte, peremptório?
com falcões é desporto inigualável. Tantaene animis coelestibus irae?
SurroLK: Não há rancor, milorde, senão quanto
Nunca vi nada assim nestes sete anos.
se faz mister para uma boa briga
No entanto, permiti que vos declare:
e um par de tal ruindade.
dez contra uma, tão forte estava o vento,
GLOSTER* Quem, milorde?
que mui dificilmente a velha Joana SurroLK* Ora, milorde, vós, se a vosso grande
levantaria o vôo. lorde protetorado isso não pesa.
Rer Henrique" Que saída GLosTER* À Inglaterra conhece tua insolência,
fez o vosso falcão, milorde! Como Suffolk.
pairava ele sereno sobre todos! RarnHa MARGARIDA *
Deus se revela grande nas criaturas. E a tua ambição, Gloster.
Às aves e o homem se comprazem no alto. Rer HENRIQUE * Paz, querida!
SurroLK* Com permissão de Vossa Majestade, Não concorrais para excitar os pares
não causa espanto que o falcão do lorde já de si tão furiosos. São benditos
protetor tenha vôo desse porte, os que trabalham para a paz na terra.
pois ele sabe que seu dono gosta CARDEAL*
de pairar nas alturas e que joga, Éo que eu serei, então, que minha espada
de regra, o pensamento onde não podem vai fazer que haja paz entre mim e'este
protetor orgulhoso.
alcançar os falcões nos seus remígios.
GLOSTER (à parte, ao cardeal) * Santo tio,
GLosTER* Considero, milorde, baixo o espírito
realmente, desejara que assim fosse.
que não sobe mais alto do que um pássaro.
CARDEAL (à parte, a Gloster) * E só teres coragem.
CARDEAL: É o que eu penso, também; ele quisera GLOSTER (à parte, ao cardeal) *
ultrapassar as nuvens. Deixa à parte
GLOSTER* Ah, milorde teus asseclas; sozinho me respondas
cardeal, que estais dizendo? Vossa Graça pelo insulto de agora.
não gostaria de alcançar o céu? CARDEAL (à parte, a Gloster) * Embora eu saiba
Rer HenrIQUE: À mansão da alegria sempiterna. que te falta coragem... Bem, se ousares

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aparecer: à tarde, no lado este Rer HeNRIQUE-


da alameda sombria. Grande vai ser o seu conforto neste
Rer Henrique: Então, milordes? vale terreno; mas a vista pode
CARDEAL * Podeis acreditar-me, primo Gloster: dar-lhe azo de pecar muito mais vezes.
se vosso falcoeiro não tivesse GLosTER: Parai aí, senhores! Trazei o homem
sido tão apressado em chamar a ave, para perto do rei; é da vontade
nós teríamos tido melhor caça. de Sua Graça conversar com ele.
(À parte, a Gloster.) Rer HenriquE-
Leva tua espada dupla. Conta-nos, caro amigo, as circunstâncias,
GLOSTER* Está bem, tio. para que a Deus louvemos por tua causa.
CARDEAL (à parte, a Gloster) - Nasceste cego e agora estás com vista?
Compreendestes? No lado este do bosque. Simpcox: Com licença de Vossa Graça, sou cego
GLOSTER (à parte, ao cardeal) - de nascença,
Ficai certo, cardeal; lá nos veremos.
A MULHER: É isso mesmo; nasceu cego.
Rer HENRIQUE
SurroLk* Quem é essa mulher?
Tio Gloster, que é que há?
A MuLHER" Sou mulher dele, com licença de Vossa
GLOSTER* Nós conversávamos
Senhoria.
de falcoaria; nada mais, milorde.
GrosTER: Se fosses mãe poderias estar melhor
(À parte, ao cardeal) Toma cuidado, padre! Pela mãe
informada.
de Deus, eu vou raspar essa coroa,
Rer Henrique: Onde nasceste?
ou então não saberei pegar na espada.
Simpcox* Em Berwick, no norte, com licença de
CARDEAL Medice teipsum.
Vossa Graça.
Protetor, tomai tento, protegei-vos!
Rer HENRIQUE:
Rer HenrIQUE-
O vento ameaça tempestades, lordes, Pobre alma! Foi bondoso Deus contigo.
como vossa coragem. Essa música Não deixes mais passar uma só noite,
me desagrada. Quando desafinam dia nenhum, sem orações; sê grato
tais cordas, que esperança há de harmonia? por tudo o que te fez o Onipotente.
Deixai que eu solucione essa pendência. RarnHa MARGARIDA *
(Entra um morador de Santo Albano, gritando: Foi por acaso, amigo, ou de propósito
Um milagre!) que procuraste o altar de Santo Albano?
GLosrer Que significa esse barulho? Amigo, Simepcox- Foi pura devoção, Deus é que o sabe.
que espécie de milagre vais contar-nos? Mais de'cem vezes, muito mais, em sonhos
O Morapor: Um milagre! Um milagre! o santo generoso me chamava
SurFOLK* Vai até o rei e narra-lhe o milagre. pelo nome, dizendo: Vem, Simpcox,
O Morapor: Há meia hora, só, um cego, diante rezar no meu altar, que eu te protejo.
do altar de Santo Albano, ficou vendo. A MuLHER: É verdade, senhora; muitas vezes
Nunca tinha enxergado em toda a vida. eu própria ouvi a voz que lhe falava.
Rer HENRIQUE: CARDEAL:
Que Deus seja louvado! Para as almas Como! És coxo?
cheias de fé, faz ele luz das trevas SimPcox* Que Deus não me abandone!
e ministra conforto na desgraça. SurFroLK: Por que ficaste assim?
(Entra o prefeito de Santo Albano com seus confrades. SIMPCOX * Caí de uma árvore.
Simpcox vem carregado em uma A MuLHER* Sim, meu senhor, caiu de uma
cadeira por dois homens; sua mulher e grande ameixeira.
multidão o seguem.) GLosrer - Desde quando eras cego?
CARDEAL" Aí vêm em procissão os moradores SIMPCOX* Oh! Nasci cego.
apresentar a Vossa Alteza o homem. GLosrTER- E trepavas em árvores sem veres?

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Simpcox- Uma só vez, senhor, em toda a vida; Simpcox* Oh, mestre, se o conseguísseis!
quando era moço ainda. Grosrer Senhores de Santo Albano, por acaso
À MULHER: É certo; e caro, não tendes beleguins na cidade e essa coisa a que se
muito caro pagou a tal subida. dá o nome de chibata?
GLosTER: Para arriscares tanto, era preciso PrereITO - Perfeitamente, milorde, com licença de
que fosses mesmo doido por ameixas. Vossa Graça.
Simpcox* Minha mulher, senhor, queria ameixas. GLosTER Então ide buscar-mos, sem demora.
Fez-me subir, senhor, por isso, na árvore, PrereITO * Vai correndo, maroto, chamar um
com perigo de vida. beleguim.
GLOSTER* O rapazinho (Sai um dos moradores.)
é esperto; mas de pouco isto lhe serve. GrosrER : Ponham um banco neste lugar. (Trazem-
Mostra-me os olhos! Vamos! Fecha-os! Abre-os! lhe um banco.) E agora, meu velho, se não quiseres ser
Quero crer que não vês ainda direito. chibateado, pula por cima deste banco, e põe-te ao
Simpcox- Tão claro como o dia, mestre, graças fresco.
a Deus e a Santo Albano. Simpcox- Ah, meu senhor! Eu sou incapaz de ficar
GLOSTER* Que me dizes? de pé, sozinho. Ides torturar-me inutilmente.
De que cor é este manto? (Volta o morador, acompanhado de um beleguim
SiMPCOX* Cor de sangue; com um chicote.)
vermelho como sangue. GLosrer - Não há dúvida, senhor; nós vamos
GLOSTER* Muito bem; restituir-vos as pernas. Beleguim, aplica-lhe umas
ea cor do meu casaco? chibatadas, até que ele salte por cima deste banco.
SiMPCOX* É preto, mestre; BeLEGUIM *Pois não, milorde! Vamos, arranca o
preto como azeviche. gibão!
Rer Henrique: Como podes Simpcox: Ah, mestre! Como o poderei fazer? Sou
conhecer azeviche? incapaz de ficar de pé.
SUFFOLK* Penso que ele (Depois da primeira chibatada, Simpcox salta por cima do
Jamais teve ocasião de contemplá-lo. banco e sai correndo. O povo o acompanha, gritando:
GLosrer: Mas casacos e mantos, aos milhares.
Um milagre!)
Simpcox: Jamais, senhor, em toda a minha vida. Rer HENRIQUE:
GLosrer Dize, velhaco, então, qual é o meu nome. Oh Deus! Como permites estas coisas!
Simpcox* Como posso sabê-lo, mestre? Ignoro-o. RarnHa MARGARIDA
GLosrER: E o nome deste aqui? Fez-me rir o malandro, a correr tanto!
Simpcox-* Não sei, senhor. GLOSTER* Segui-o; levai presa esta rameira,
GLosTER* E o deste? A MuLHERr* Oh, senhor! Só o fizemos por miséria.
Simpcox- Também não sei, senhor. GrosreR * Que seja chibateado nas cidades,
GLosTER: E tu, como te chamas? até Berwick, que é de onde eles vieram.
Simpcox* Saunder Simpcox, com licença de Vossa (Saem o prefeito, o beleguim, a mulher, etc.)
Senhoria. CARDEAL: Fez um grande milagre o protetor.
GLosTER: Pois bem, Saunder, tu és o mais refinado SurroLK* Um coxo transformou num corredor.
velhaco de toda a cristandade. Se tivesses nascido GLosreR : Mais do que isso fizeste: num só dia;
cego, ser-te-ia tão fácil os nossos nomes, como cidades a gritar, em correria.
as cores de nossas vestimentas. A visão permite (Entra Buckingham.)
distinguir cores, mas nomeá-las de súbito, é Rer HENRIQUE:
impossível. Meus senhores, Santo Albano fez um Que novidades traz o primo Buckingham?
milagre neste caso; não julgais que seria prova de BUCKINGHAM *
grande habilidade restituir as pernas a este aleijado? Novas que o coração me deixam trêmulo,

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Henrique VI

à idéia de contar-vo-las. Um grupo Rei HENRIQUE:


de malfeitores, gente sem princípios, Oh Deus! De quanto dano os maus são causa,
sob o amparo imediato da senhora provocando, dessa arte, a própria ruína?
do lorde protetor, dama Eleonor, RarnHa MARGARIDA *
cabeça dessa turba, se livraram Gloster, vê nisso a mancha do teu ninho.
a atos nocivos para vosso Estado, Cuida agora de ti com mais carinho.
com bruxas conversando c feiticeiros. GLosrER* O céu é testemunho onisciente
Surpreendemos a todos em flagrante do meu amor ao rei e à minha gente.
ao chamarem espíritos do inferno, Quanto à minha mulher, não sei dizê-lo:
para inquiri-los sobre a vida e a morte entristece-me ouvir o que contaram.
Ela é de origem nobre; mas, se acaso
do Rei Henrique e de outras personagens
da honra veio a esquecer-se e da virtude,
do conselho privado da coroa,
a ponto de tratar com gente baixa
como, com mais vagar, Vossa Grandeza
que, igual ao piche, mancha a alta nobreza,
vai ser notificado inteiramente.
expulso-a do meu leito com tristeza,
CARDEAL - Desse modo, milorde, vossa esposa
entregando-a à vergonha, à lei e à morte,
se acha detida em Londres. À notícia,
por me haver desonrado desta sorte.
quero crer, vos embota à espada o fio. Rer Henrique" Por esta noite aqui repousaremos;
Faltareis, por sem dúvida, ao encontro.
amanhã voltaremos para Londres,
GrosrtER: Deixa de me afligir, padre ambicioso; para o assunto estudarmos mais de espaço
a desgraça e a tristeza me venceram, e chamarmos à conta os criminosos.
quebrando-me o vigor. E, assim, vencido, Peso igual será posto na balança;
te cedo em tudo, como cederia a espada da justiça tudo alcança.
ante o mais desprezível dos lacaios. (Saem.)

Ato IH Cena II
Londres. Jardim do Duque de York. foi Guilherme de Hatfield; após, Lionel,
Entram York, Salisbury e Warwick. o Duque de Clarence; João de Gaunt
nasceu depois, o Duque de Lencastre;
York: Caros Lordes de Warwick e Salisbury, depois desse nasceu o Duque de York,
agora que concluímos nossa parca Edmundo de Langley; Tomás Woodstock,
refeição, permiti que, enquanto damos Dugue de Closter, foi o sexto; o sétimo
um pequeno passeio, para minha e último filho foi Guilherme de Windsor.
satisfação vos interrogue sobre O Príncipe de Gales morreu antes
meu título à coroa da Inglaterra, do próprio pai, deixando um filho apenas,
que a meu ver é seguro e irrefutável. Ricardo, que foi rei depois da morte
SALISBURY* Desejo ouvir vossas razões, milorde. de Eduardo, até que o Duque de Lencastre,
Warwick: Meu caro York, aqui estamos; se for justo Henrique Bolingbroke, filho e herdeiro
tudo quanto pretendes, é certeza de João de Gaunt, coroado sob o título
porem-se os Nevils todos sob teu mando. de Henrique quarto, viesse a tomar posse
York: Eis o caso, senhores: teve Eduardo do trono, após depor o rei legítimo,
terceiro sete filhos: o primeiro enviando a pobre rainha para a França,
foi o Príncipe Negro, de igual nome, de onde ela viera, e o rei para Pomfret,
o Príncipe de Gales; o segundo onde, como o sabeis, o inofensivo

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WILLIAM SHAKESPEARE

Ricardo foi traiçoeiramente morto.


reclama o trono pelo quarto filho,
Warwick : Pai, o duque falou pura verdade;
João de Gaunt; York o fez pelo terceiro.
foi desse modo que subiu ao trono
Enquanto a descendência de Lionel
a casa de Lencastre.
não desaparecer de todo, a do outro
York: Pela força, não poderá reinar. E o fato é que ela
não por nenhum direito, é que o conserva
m, não desapareceu; floresce em ti,
pois uma vez que faleceu Ricardo, nos teus filhos, pimpolhos desse tronco.
filho do primogênito, devia Logo, pai Salisbury, ajoelhemo-nos
ter reinado o nascido do mais próximo. neste lugar quieto, para sermos
SALISBURY* Os primeiros que a nosso soberano
Mas Guilherme morreu sem deixar filhos. legítimo saudamos, acatando-lhe
York: Sim, mas o Duque de Clarence, cujo a honra de seus direitos à coroa.
s
títulos eu reclamo, por vir dele, AMBOS: Juntos, um viva demos a Ricardo,
que era o terceiro filho de Eduardo, nosso rei, soberano da Inglaterra!
deixou prole: Filipa, com que veio York: Nós vos agradecemos; mas não
posso
a se casar, depois, Mortimer, Conde ser vosso rei, antes de ser coroado
de March, de quem nasceu Rogério, Conde € sem que tinja a lâmina no sangue
de March, tal como o pai. Dele nasceram da casa de Lencastre, e isso não pode
Edmundo, Ana e Eleonor. jamais ser conseguido de um só golpe,
SALISBURY* .
mas com muita prudência e discrição.
Este Edmundo, conforme o li, no reino Segui o meu exemplo nestes dias
de Bolingbroke, reclamou a coroa, perigosos, não vendo as insolências
e rei teria sido a não ser Owen do Duque de Suffolk, o insuportável
Glendower, que até à morte o teve preso. orgulho de Beaufort, a ambição grande
Mas ouçamos, enfim, a história toda. de Somerset, de Buckingham, do bando
York: Com Ana, minha mãe, sua irmã mais velha deles, até que tenham liquidado
,
lídima herdeira da real coroa, com o pastor do rebanho, esse virtuoso
casou Ricardo, Conde de Cantuária, príncipe, o Duque de Humphrey, de alma boa.
que era filho de Edmundo, quinto filho Isso busca essa gente e, buscando isso,
de Eduardo, o terceiro desse nome. vão a morte encontrar, se York é profeta.
Apóio nele as minhas pretensões, SALISBURY* Milorde, separemo-nos; já estamos
por ter sido ela herdeira de Rogério, ao corrente de vossos pensamentos.
Conde de March, que foi filho de Mortimer WARWICK *
, Diz-me o peito que um dia o Conde Warwick
marido de Filipa, única filha
do Duque de Clarence. Desse modo, há de fazer um rei do Duque de York.
York: Uma só coisa, Nevil, eu prometo:
se sempre a descendência do mais velho
Ricardo há de viver, para que o Conde
sobe primeiro ao trono, o rei sou eu.
de Warwick fique sendo o maior homem
WARWICK *
na Inglaterra, depois do soberano.
Não pode haver nada mais claro. Henrique
(Saem.)

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

Ato IT: Cenalll


O mesmo. Sala da Justiça. E agora podes ir, Humphrey de Gloster,
Toque de trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha não menos estimado que no tempo
Margarida, Gloster, York, Suffolk e Salisbury; a Duquesa em que eras protetor do rei.
de Gloster, Margery Jourdain, Soutbwell, Hume e RarnHa MarcarIDA: Não vejo
Bolingbroke, escoltados. razão de precisar o rei adulto
de protetor, ao jeito de meninos.
Rer HENRIQUE: Deus e o rei mandarão nesta Inglaterra.
Vinde, dama Eleonor Cobham, esposa Dai ao rei o bastão, senhor, e a terra.
de Gloster; avançai. Aos nossos olhos GLOSTER*
e aos de Deus, vosso crime é muito grande. Meu bastão? Nobre Henrique, ei-lo; aqui o tens.
Recebei a sentença cominada De tão bom grado agora aqui o resigno,
pela lei para crimes que no livro como teu pai Henrique ao confiar-mo;
de Deus merecedores são da morte. e tão alegremente aos pés to deixo,
Vós quatro voltareis para a prisão, como ambiciosamente outros o esperam.
Adeus, bom rei; que em paz chegues ao porto,
de onde sereis tirados para a pena
capital, Em Smithfield a feiticeira quando eu for para longe e estiver morto.
será queimada e reduzida a cinzas; (Sai)
RAINHA MARGARIDA
vós três sereis na forca estrangulados.
Vós, senhora, de nobre nascimento,
Até que enfim Henrique é rei, de fato,
Margarida rainha e Humphrey de Gloster
em vida perdereis as regalias
menos do que ele próprio, de tal modo
e, depois de uma penitência pública
saí mutilado sob tão duros golpes:
de três dias, íreis viver banida
sim, que a esposa banida a isso equivale.
em vossa própria terra, com Sir John
Confiscado o bastão... Pois que este fique
Stanley, na Ilha de Man.
onde devera estar, na mão de Henrique.
Duquesa: Aceito o exílio,
SurroLK: Assim dobra Eleonor o altivo colo
como aceitara alegremente a morte.
como pinheiro os ramos para o solo.
Gtosrer : Eleonor, como vês, a lei julgou-te;
York: Deixai-o ir, senhores. Com licença
justificar não posso o que a lei pune.
de Vossa Majestade, está parahoje |,
(Saem a duquesa e os demais prisioneiros, escoltados.) marcado o duelo e prontos os dois homens,
Nos olhos tenho lágrimas, tristezas o queixoso e o acusado. Para a liça
sem fim no coração. Humphrey de Gloster, podem o armeiro e o aprendiz ser conduzidos,
semelhante desonra, em tua idade, se quiser ver a luta Vossa Alteza.
sob o peso das mágoas, a cabeça RarnHA MARGARIDA *
te obrigará a baixar até o sepulcro. Sim, meu bom lorde; vim da corte apenas
Suplico permissão a Vossa Graça para ver o remate dessa briga.
para me retirar; consolo querem Rer HENRIQUE:
minhas angústias; a velhice, calma. Em nome, pois, de Deus, aprontai tudo;
Rer HENRIQUE - acabemos com isso; Deus é justo.
Espera ainda um momento, Humphrey de Gloster; York: Nunca vi ninguém mais apavorado
entrega-me o bastão. Deseja Henrique e em ruins disposições do que o apelante,
proteger-se a si próprio. Deus será o aprendiz desse armeiro, meus senhores.
minha esperança, meu amparo e guia; (Entram, por um lado, Horner e seus vizinhos, que bebem
a luz que há de alumiar, enfim, meus passos. com ele, a ponto de o deixarem embriagado; Horner traz

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Ato IT: Cenalll


O mesmo. Sala da Justiça. E agora podes ir, Humphrey de Gloster,
Toque de trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha não menos estimado que no tempo
Margarida, Gloster, York, Suffolk e Salisbury; a Duquesa em que eras protetor do rei.
de Gloster, Margery Jourdain, Soutbwell, Hume e RarnHa MarcarIDA: Não vejo
Bolingbroke, escoltados. razão de precisar o rei adulto
de protetor, ao jeito de meninos.
Rer HENRIQUE: Deus e o rei mandarão nesta Inglaterra.
Vinde, dama Eleonor Cobham, esposa Dai ao rei o bastão, senhor, e a terra.
de Gloster; avançai. Aos nossos olhos GLOSTER*
e aos de Deus, vosso crime é muito grande. Meu bastão? Nobre Henrique, ei-lo; aqui o tens.
Recebei a sentença cominada De tão bom grado agora aqui o resigno,
pela lei para crimes que no livro como teu pai Henrique ao confiar-mo;
de Deus merecedores são da morte. e tão alegremente aos pés to deixo,
Vós quatro voltareis para a prisão, como ambiciosamente outros o esperam.
Adeus, bom rei; que em paz chegues ao porto,
de onde sereis tirados para a pena
capital, Em Smithfield a feiticeira quando eu for para longe e estiver morto.
será queimada e reduzida a cinzas; (Sai)
RAINHA MARGARIDA
vós três sereis na forca estrangulados.
Vós, senhora, de nobre nascimento,
Até que enfim Henrique é rei, de fato,
Margarida rainha e Humphrey de Gloster
em vida perdereis as regalias
menos do que ele próprio, de tal modo
e, depois de uma penitência pública
saí mutilado sob tão duros golpes:
de três dias, íreis viver banida
sim, que a esposa banida a isso equivale.
em vossa própria terra, com Sir John
Confiscado o bastão... Pois que este fique
Stanley, na Ilha de Man.
onde devera estar, na mão de Henrique.
Duquesa: Aceito o exílio,
SurroLK: Assim dobra Eleonor o altivo colo
como aceitara alegremente a morte.
como pinheiro os ramos para o solo.
Gtosrer : Eleonor, como vês, a lei julgou-te;
York: Deixai-o ir, senhores. Com licença
justificar não posso o que a lei pune.
de Vossa Majestade, está parahoje |,
(Saem a duquesa e os demais prisioneiros, escoltados.) marcado o duelo e prontos os dois homens,
Nos olhos tenho lágrimas, tristezas o queixoso e o acusado. Para a liça
sem fim no coração. Humphrey de Gloster, podem o armeiro e o aprendiz ser conduzidos,
semelhante desonra, em tua idade, se quiser ver a luta Vossa Alteza.
sob o peso das mágoas, a cabeça RarnHA MARGARIDA *
te obrigará a baixar até o sepulcro. Sim, meu bom lorde; vim da corte apenas
Suplico permissão a Vossa Graça para ver o remate dessa briga.
para me retirar; consolo querem Rer HENRIQUE:
minhas angústias; a velhice, calma. Em nome, pois, de Deus, aprontai tudo;
Rer HENRIQUE - acabemos com isso; Deus é justo.
Espera ainda um momento, Humphrey de Gloster; York: Nunca vi ninguém mais apavorado
entrega-me o bastão. Deseja Henrique e em ruins disposições do que o apelante,
proteger-se a si próprio. Deus será o aprendiz desse armeiro, meus senhores.
minha esperança, meu amparo e guia; (Entram, por um lado, Horner e seus vizinhos, que bebem
a luz que há de alumiar, enfim, meus passos. com ele, a ponto de o deixarem embriagado; Horner traz

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WiLLiaM SHAKESPEARE

um bastão com um saco de areia numa das pontas; um SALISBURY * Peter de quê?
tambor o precede. Por outro lado, entra Peter, com um
Perer : Peter Cachação.
tambor e um saco de areia, acompanhado deaprendizes, SALISBURY * Cachação! Vê então se aplicas uns
que bebem com ele.) bons cachações em teu mestre.
Primeiro ViziNHo - Vizinho Horner, bebo Horner: Meus mestres, eu vim aqui, como quem
convosco um copo de xerez. Nada de medo, vizin diz, por instigação de meu aprendiz, para provar que
ho;
haveis de sair-vos bem. ele não passa de um velhaco e que eu sou homem
SEGUNDO ViziNHO - E aqui, vizinho, um copinho de bem. No que respeita ao Duque de York, quero
de charneco. morrer se em algum tempo lhe desejei algum mal,
TercEIRO ViziNHO - E eu aqui uma caneca de boa ou ao rei, ou à rainha. E agora, Peter, cuida de ti, que
cerveja dupla, vizinho. Bebei e não tenhais medo do vou malhar-te de rijo.
vosso homem. York: Já está engrolando a língua este velhaco.
Horner - Por minha fé, deixai-o vir, que haveis de Tocai logo o sinal para o combate.
ver como eu me arranjarei. Uma figa para Peter. (Toque de trombetas. Batem-se; Peter derruba o mestre.)
PriMEIRO APRENDIZ * Peter, aqui! Bebo à tua Horner Pára, Peter! Pára! Confesso, confesso a
saúde. Nada de medo. minha traição.
SEGUNDO APRENDIZ Alegra-te, Peter, e não (Morre.)
tenhas medo de teu mestre. Defende o nome dos Yorx- Tirai-lhe a arma. Amigo, rende graças a
aprendizes. Deus e ao bom vinho que subiu à cabeça do teu
PerER* Agradeço a todos. Bebei e rezai por mim, é mestre,
O que vos peço, pois penso que já bebi o meu último Peter: Oh Deus! Venci meus inimigos diante
trago neste mundo. Escuta, Robin, no caso de eu de uma assembléia como esta? Oh Peter! fizeste
morrer, dou-te o meu avental; tu Will, ficarás com prevalecer o teu direito.
o Rer Henrique: Tirai esse traidor de minha vista;
meu martelo; Tom, fica desde já com todo o dinheiro
com a morte demonstrou que era culpado.
que me resta. Só peço que Deus me abençoe; não é
Deus, em sua justiça, revelou-nos
possível que eu resista ao meu mestre, que aprendeu
a verdade e a inocência deste pobre
muito bem a combater.
rapaz, que o criminoso desejara
SALISBURY* Vamos, parai com a bebida e iniciai
matar injustamente. Amigo, vamos;
logo os golpes. Como te chamas, maroto?
vais receber a tua recompensa.
PerER- Peter, ora essa!
(Trombetas; saem.)

Áto IT: CenalV

O mesmo. Uma rua.


GLOSTER"* Então estamos
Entra Gloster, com criados, em trajes de luto.
na hora precisa que me foi imposta
para vir ver passar minha duquesa
GLOsTER Assim, não raro, no mais claro dia
condenada. Difícil há de ser-lhe
há nuvem e ao verão sucede sempre
suportar a aspereza do caminho,
do seco inverno o frio navalhante. pôr os pés delicados no chão duro.
As penas e alegrias se sucedem
Querida Nell, como tua alma nobre
tal como as estações. Que horas, senhores?
deve a vista sofrer do populacho
CrraDo - São dez horas, milorde.
desprezível que o rosto te contempla

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shakespearebrasileiro.org HenrIQquE VI

com olhares sarcásticos, zombando meu inferno, pensar no antigo fausto.


de tua humilhação, essas pessoas Algumas vezes me direi que a esposa
que costumavam ir empós de tua eu sou de Humphrey de Gloster e ele um príncipe
carruagem soberba, quando as ruas e regente da terra. Mas embora
da cidade, em triunfo, atravessavas! regesse e fosse príncipe, impassível
Quietinhos! Creio que ela vem chegando. ele ficou, ao ver sua esquecida
Vou limpar estes olhos macerados duquesa transformada em maravilha
pelo choro e a miséria contemplar-lhe. para os basbaques e alvo das graçolas
(Entra a Duquesa de Gloster, vestida de camisa branca, destes bobos ociosos. Sê paciente,
com um papel preso às costas, descalça e uma tocha não te envergonhes com o que me fazem
acesa na mão; acompanham-na Sir Fobn Stanley, e, impassível, espera que o machado
um xerife e oficiais.) da morte sobre ti fique suspenso,
Crrapo: Se Vossa Graça, consentir, nós vamos o que, poderás crer-me, não demora,
tomá-la do xerife. pois Suffolk, que tudo pode junto
GLOSTER* Não; quietinhos! daquela que te odeia, tem-nos ódio,
Deixemo-la passar, por vossa vida. como York e o ímpio Beaufort, o padre falso.
Duquesa : Vieste ver, meu senhor, minha vergonha? Eles puseram visco pelos ramos
À penitência é de ambos. Vê que todos para prender-te as asas. Pouco importam
nos contemplam; vê como eles te apontam todos os teus esforços, serás preso.
com o dedo, esses basbaques, como te olham, Mas, enquanto tiveres os pés livres,
sacudindo a cabeça. Ah, caro Gloster, nada receies, nem te precipites
evita esses olhares rancorosos: indo de encontro à traça dos imigos.
chora a minha vergonha no teu quarto, GLosrEr : Basta, querida Nell, falas à toa.
sozinho e amaldiçoa os teus imigos, Para eu ser atingido, é necessário
os nossos inimigos. cometer uma falta. Embora o número
GLOSTER* Sê paciente, de meus imigos fosse vinte vezes
querida Nell; esquece a humilhação. maior e cada um deles se orgulhasse
Duquesa: de força vinte vezes aumentada,
Então, Gloster, me ensina como eu possa mal algum poderão eles causar-me
de mim própria esquecer-me. Quando penso enquanto eu for sincero, leal e puro.
que sou tua consorte e que és um príncipe, Desejaras que eu fosse em teu socorro,
protetor do país, quer parecer-me no opróbrio em que te encontras? Mas o escândalo,
que eu não devia ser assim levada, ainda assim, de existir não deixaria,
coberta de vergonha, com um letreiro e eu correra perigo, por ser tido
no dorso e perseguida pela plebe como infrator da lei. A calma é o único
que acha prazer em ver as minhas lágrimas consolo que te resta. Eu te suplico,
e ouvir-me suspirar do fundo da alma. querida Nell, que o coração revistas
Às pedras impiedosas me machucam de paciência. Verás que não demoram
os delicados pés, e, quando mostras a passar estes dias humilhantes.
eu dou de sofrimento, o populacho (Entra um arauto.
ri, mandando que eu veja onde me afirmo. ARrauTO * Intimo Vossa Graça a comparecer no
Ah, caro Gloster, pensas que é possível parlamento de Sua Majestade, que deverá reunir-se
suportar este jugo vergonhoso, em Bury, no primeiro dia do mês próximo.
que eu possa contemplar de novo o mundo, GLosTER* Sem que o consentimento me pedissem!
considerar felizes os que ainda Esquisito... Está bem; não faltarei.
à luz do sol se alegram? Não; o escuro (Sai o arauto.)
minha luz há de ser; a noite, o dia; Despeço-me de ti, querida Nell.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Mestre xerife, não deixeis que a pena todo favor; depressa! Cumpre as ordens
vá além da cominada pelo rei. que tens a meu respeito.
XerrrE: Não se zangue com isso Vossa Graça, STANLEY: É a Ilha de Man,
mas minha comissão termina aqui. minha senhora, onde sereis tratada
Agora é a Sir John Stanley que compete conforme o vosso estado.
acompanhá-la até à Ilha de Man. Duquesa: Neste caso,
GLOSTER Sir John, estais encarregado, agora, muito mal, que é completo o meu opróbrio.
de guardar minha esposa? Tratar-me-eis por maneira vergonhosa?
STANLEY * Com licença STANLEY * Como duquesa é que sereis tratada,
de Vossa Graça, deram-me a incumbência. como esposa do Duque Humphrey de Gloster.
GrosTER- Não useis de aspereza por pedir-vos Duquesa ' Xerife, passai bem, melhor do que eu,
que a trateis com bondade. É bem possível embora o condutor tivésseis sido
que o mundo torne a rir e eu tenha vida de minha humilhação.
para recompensar-vos, se com ela XERIFE: É meu ofício,
fordes bondoso. E assim, Sir John, adeus. minha senhora. Por favor, perdoai-me.
Duquesa Já vos ides, senhor, sem me dizerdes Duquesa : Sim, sim, adeus; estais desobrigado.
adeus? Vamos, Stanley; ficamos ou seguimos?
GLosrER- Dão testemunho minhas lágrimas STANLEY * Senhora, terminada a penitência,
de que não me é possível falar nada. tirai essa camisa. Vamos logo
(Sai-Gloster com os criados.) cuidar de preparar-vos para a viagem.
Duquesa Já partiste? Levaste o meu consolo. Duquesa : Se a camisa eu tirar, não me despojo,
Nada me resta; a morte é que me alegra, com isso, da vergonha. Não; nas vestes
a morte, cujo nome tantas vezes mais ricas ficaria ela aderente,
me pôs medo, por ter eu desejado e se mostrara a todos, fosse a minha
alcançar neste mundo a eternidade. vestimenta qual fosse. Vamos, leva-me;
Peço-te, Stanley, leva-me depressa, desejo ver minha prisão quanto antes.
pouco importa para onde, pois dispenso (Saem.)

Ato HI - Cenal
A abadia de Santo Edmundo, em Bury. quão insolente se tornou, em tudo
Toque de clarins. Entram para o parlamento o Rei diferente, orgulhoso, peremptório?
Henrique, a Rainha Margarida, o Cardeal Beaufort, Conhecemo-lo afável e bondoso;
Suffolk, York, Buckingham e outros. bastava que de longe o relanceássemos,
para se pôr de joelhos. Toda a corte
Rer HenrIQUE* lhe admirava, por isso, a submissão.
Estranho que Milorde Humphrey de Gloster Mas agora, se o encontro, embora seja
não tenha vindo. É contra o seu caráter pela manhã, no tempo em que é costume
ser o último a chegar, qualquer que tenha desejar-se bom dia, o cenho franze,
sido a razão de seu atraso agora. lança olhar carrancudo e passa teso,
RarnHA MARGARIDA * sem dobrar os joelhos, desdenhoso
Não podeis ver, ou não quereis, apenas, das honras que nos cabem por direito.
observar a mudança de seu todo, Ninguém liga ao rosnado de cãezinhos;
a majestade com que diz as coisas, mas até mesmo os homens corajosos,

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ao rugido do leão, tremem de susto. do nosso soberano. Às águas correm


Humphrey não é pessoa de somenos mansamente onde o leito é mais profundo.
importância no reino; se cairdes, Dissimula traição seu todo simples.
a ascensão será dele. Por tudo isso, Não regouga a raposa no momento
me parece não ser boa política — de roubar o cordeiro. Não, milorde,
conhecendo-lhe o gênio rancoroso Gloster é um homem que não foi sondado,
e quanto lucrará com vossa morte — mas a sua perfídia é imperscrutável.
deixar que ele rodeie Vossa Alteza CarpEAL* Contra as formas da lei não criou ele
ou que seja admitido no conselho mortes estranhas para faltas leves?
de Vossa Real Pessoa. Usando apenas York E, quando protetor, não fez coletas
de adulação, granjeou as boas-graças de dinheiro, no reino, para o soldo
“da gente miúda. É de temer, portanto, do exército da França, dinheiro esse
que todos o acompanhem, se ele a idéia que nunca foi enviado e que deu azo
tiver de revoltar-se. Nós estamos às frequentes revoltas das cidades?
na primavera, tempo em que a cizânia BucxincHAM Ora, são faltazinhas, em confronto
é fácil de arrancar. Se permitirdes com as faltas ignoradas, mas que o tempo
que viceje, invade ela o jardim todo mostrará no insinuante Duque de Humphrey.
e acaba sufocando a plantação, Rei HENRIQUE:
por falta de cultivo. O respeitoso Milordes, um momento. Esse cuidado,
cuidado que dedico a Vossa Graça que revelais, de remover espinhos
é que me leva a deduzir tais coisas que aos pés nos poderiam ser nocivos,
do semblante do duque. Se provarem é digno de louvor. Mas, em consciência,
que não tenho razão, chamai a tudo nosso parente Gloster é tão pouco
receios de mulher, e se estes forem capaz de excogitar qualquer tramóia
suscetíveis de serem dissipados contra nossa pessoa, como a ovelha
mediante o raciocínio, de bom grado recental ou a pombinha inofensiva.
me desdirei de tudo, confessando O duque é muito bom, meigo e virtuoso
que caluniei o duque. Contestai-me, para pensar no mal ou, ainda, para
Lordes de York, Suffolk e Buckingham, trabalhar com a intenção de me depor.
se o puderdes, ou então concluí comigo RarnHa MARGARIDA *
que em tudo que falei fui verdadeira. Que pade haver de mais prejudicial
SurroLK* Soube ver muito bem Vossa Grandeza do que uma tal confiança? É uma pombinha?
no interior desse duque. Se eu tivesse Nesse caso, traz penas emprestadas,
dado minha opinião antes da vossa, pois na alma é como o corvo detestável.
teria dito a história que acabamos É cordeiro? Sem dúvida, de pele
de ouvir de Vossa Graça. Aposto a vida tomada de outrem, que o temperamento
em como ele influiu sobre a duquesa como lobo roubaz o qualifica.
para entregar-se às práticas diabólicas. Quem não sabe mudar de compostura,
Mas, mesmo que não fosse ele partícipe quando intenta enganar? Muito cuidado,
do crime dela, o reputar-se de alta milorde! Nosso bem-estar depende
estirpe, o ter-se em conta do mais próximo da supressão desse homem fraudulento.
herdeiro da coroa, e, ainda, quejandas (Entra Somerset.)
jactâncias de nobreza, influiriam SomERSET: Saúde a meu gracioso soberano!
para excitar o cérebro doentio Rer HenRIQUE*
da mulher, o que a fez usar de meios Bem-vindo, Lorde Somerset! Que novas
pecaminosos para a total queda nos trouxeste da França?

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WILLIAM SHAKESPEARE

SOMERSET - Que se encontram para dá-las às tropas, sem que nunca


prejudicados vossos interesses tivesse reclamado pagamento?
naqueles territórios: quanto tínhamos CarDEAL : Essas alegações, milorde, podem
por lá, se acha perdido. vos ser de utilidade.
Rer HenrIQUE- Más notícias, GLOSTER* Nada afirmo
Milorde Somerset; mas Deus égrande. contrário aos fatos, assim Deus me ajude.
York (à parte) - Más novas para mim, que alimentava Yorx- Quando éreis protetor criastes novas
na França tão risonhas esperanças,
modalidades de tortura, para
como no fértil solo da Inglaterra. punir os criminosos, o que à nossa
Em botão minhas flores se estiolam pátria valeu a pecha de crueldade.
e os bichos me devoram a folhagem. GLOSTER-
Mas eu arranjarei esse negócio Como assim? Todos sabem que no tempo
sem perder tempo, ou venderei meu título do meu protetorado me acoimavam
por uma gloriosa sepultura. de indulgente demais, por comover-me
(Entra Gloster.) com as lágrimas dos réus, pois lhes bastava
GLosrer: Saúde e paz ao meu senhor e rei! falar humildemente, para livres
Desculpai-me, senhor, pela demora. ficarem do castigo. Se excetuarmos
SurroLK* Não, Gloster; fica certo de que vieste os autores de crimes sanguinários,
cedo demais, a menos que tu fosses ou os ladrões que na estrada assaltam pobres
mais leal do que és, de fato. Eu te detenho viajantes, à traição, jamais castigo
por crime de traição. lhes infligi à altura de seus crimes.
GLOSTER- Está bem, Duque O assassínio, de fato, esse pecado
de Suffolk. Ainda assim tu não consegues que faz derramar sangue, era punido
ver-me corar ou revelar receio. com maiores torturas do que os outros,
Um coração sem mácula não treme. mais, até, do que a própria felonia.
À corrente mais límpida não se acha SurroLk- Essas faltas, milorde, foram fáceis
tão isenta de lama, como estreme de responder. Mas contra vós são feitas
de traição ao meu rei sempre eu me encontro. acusações mais graves, que não podem
Quem me acusa? Que falta ora me assacam? ficar solucionadas tão sem custo.
York: Estão certos, milorde, de que fostes Em nome de Sua Alteza eu vos detenho,
peitado pela França e que no posto a milorde cardeal vos entregando,
de protetor desviastes o dinheiro para vos conservar sob custódia
destinado aos soldados, o que dera atéo dia do vosso julgamento.
motivo de perder Sua Alteza a França. Rer HENRIQUE
GLOSTER - Estão certos? Quem pensa desse modo? Lorde de Gloster, anima-me a esperança
Jamais roubei o soldo a nossas tropas, de vos ver limpo de qualquer suspeita.
nem peita alguma recebi da França. À consciência me diz que não sois isso.
Deus me assista por ter eu vigilante GLosrer: Oh, gracioso senhor, éperigosa
ficado sempre, sim, noites seguidas, a época em que vivemos. A virtude
só cuidando do bem da nossa pátria. pela negra ambição fica abafada,
Desejo que me seja computada sendo expulso pelo ódio o amor ao próximo.
no último julgamento a menor moeda Domina a corrupção; de vossas terras
que eu tivesse desviado do meu nobre é banida a egiidade. Não me é estranho
soberano, o ceitil que eu amealhasse que eles conspiram contra a minha vida.
para meu uso. Não! Porque os impostos Se eu soubesse que esta ilha se tornara
nos comuns indigentes não pesassem, feliz com minha morte, pondo um termo
quantas libras gastei dos meus haveres, à tirania deles, de bom grado

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Henrique
VI

daria em sacrifício a própria vida. Quem perde tem direito de gritar.


Mas isso apenas constituíra o prólogo Grosrer : Há mais verdade nisso do que acaso
de sua peça, pois milhares de outras pretendíeis dizer. Perdi, realmente;
vidas, que não cogitam de perigo, outros ganharam. Mas malditos sejam
não verão o remate da tragédia todos eles, por terem sido falsos
planejada por eles. A maldade em nosso jogo. Quem desta arte perde
peculiar a Beaufort se lhe reflete tem direito, por certo, de falar.
nos olhos faulhantes e congestos, BuckiNGHAM * Com esse falatório vai deter-nos
bem como a odiosidade tempestuosa ele aqui o dia todo. Tomai conta,
de Suffolk em seu cenho enevoado. Lorde Cardeal, do vosso prisioneiro.
Escarninho, por meio de indiretas, CARDEAL: Senhores, levai logo o duque e, preso,
Buckingham se alivia do pesado guardai-o bem.
fardo de inveja que lhe oprime o peito. Groster: | Ássimo Rei Henrique
York, esse cruel, que alcança a própria lua, joga fora a muleta, antes que as pernas
cujo braço insolente eu já retive, o possam sustentar. Assim te privam
está tramando contra a minha vida do pastor, quando lobos já disputam,
por motivos sem base consistente. rosnando, a primazia de comer-te.
E vós, minha senhora soberana, Ah! se fosse infundado o meu receio!
juntamente com os outros, sem para isso Temo a tua queda, meu bondoso Henrique.
terdes razão alguma, acumulastes (Saem os guardas, com Gloster.)
desgraças sobre mim, não vos poupando Rer Henrique: Fazei e desfazei, milordes, como
no afã de transformar meu soberano vos ditar a prudência, comportando-vos,
no meu maior imigo. Sim, vós todos como se aqui presente também fôssemos.
contra mim conspirastes — tive aviso RarnHa MARGARIDA *
de vossas reuniões — para da vida Vossa Alteza abandona o parlamento?
sem mancha me privardes. Testemunhas Rer HENRIQUE:
falsas não faltarão, nem mesmo montes Sim, Margarida, o peito se me afoga
de traições, para a culpa me aumentarem. na tristeza, sentindo eu que suas ondas
Comprova-se o provérbio: “Para dar até os olhos me chegam. Tenho o corpo
num cão, sempre se encontra um pau à mão.” cercado de misérias, porque nada
CarDEAL* Meu soberano, são intoleráveis pode haver mais mesquinho e miserável
esses ultrajes. Sendo permitido que o descontentamento. Ah, tio Gloster!
censurar, repreender assim de público tens no rosto a lhaneza, a honra, a verdade.
quantos cuidam de vossa real pessoa, No entanto, meu bom Gloster, chegou a hora
protegendo-a da sanha dos traidores de eu ser esforçado a te julgar culposo
e dos punhais secretos, e, se inteira e a me temer do teu devotamento.
liberdade se der aos ofensores Qual a estrela funesta que te inveja,
para falarem tudo o que entenderem, desse modo, a fortuna, para que estes
temo que venha a arrefecer-se o zelo nobres e a nossa esposa Margarida
dos que cuidam do bem de Vossa Graça. se empenhem em destruir-te a vida inócua?
SurroLK* Não acaba ele de lançar ao rosto Jamais fizeste mal a nenhum deles,
de nossa soberana ignominiosas como a ninguém. Tal como o carniceiro,
palavras, muito embora dirigidas quando o bezerro arrasta, após laçá-lo,
com grande habilidade, no sentido batendo no coitado sempre que ele
de insinuar que ela houvesse subornado se rebela, até o pôr no sanguinoso
testemunhas com o fim de derrubá-lo? matadouro: de modo igual levaram-no,
RarnHA MARGARIDA * sem remorsos, daqui. E como corre,

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WILLIAM SHAKESPEARE

desorientada, a mãe, mugindo, e os olho


s cardeal, e vós, Milorde de Suffolk,
não desvia da estrada em que sumira
dizei o que pensais sinceramente:
o inocente filhinho, reduzida
não fora o mesmo encarregar uma águi
tão-somente a chorar-lhe a perda imensa: a
famélica da guarda de um pintinho
assim lastimo o caso do bom Gloster,
contra abutre voraz, e pôr no cargo
chorando tristes lágrimas e inúteis,
de protetor do rei Humphrey de Gloster?
a procurá-lo com estes olhos baços,
RarnHa MARGARIDA:
sem que socorro algum possa prestar-lhe,
Seria certa a morte do coitado.
tão poderosos são seus inimigos
Surroik: Tendes razão, senhora. Entã
encarniçados. Hei de, pois, chorá-lo, o não fora
rematada loucura dar a guarda
sem cessar de dizer na minha dor:
do rebanho à raposa? Uma vez que haja
se há traição, não é Gloster o traidor.
provas de que se trata de assassino
(Sai) | contumaz, é estultícia lhe negarmos
RarnHa MARGARIDA *
qualquer culpa tão-só por não ter tido
Senhores livres, sob os quentes raios
tempo de executar o seu projeto.
do sola fria neve se derrete.
Que morra, então, antes que as fauces
Henrique, o meu senhor, é um tanto frio fiquem
maculadas de sangue carmesim.
nos negócios de monta, muito cheio
É raposa, inimigo natural
de piedade insensata. Humphrey de Gloster
do rebanho, como o é Humphrey de Gloster
soube prendê-lo como faz o triste
do soberano; sobram-nos as provas.
crocodilo, que finge ternas lágrimas
Nem vos percais em sutilezas sobre
para pegar o incauto transeunte,
o modo de matá-lo: por astúcia
ou como a serpe enovelada em meio
ou armadilha, acordado ou em pleno sono
do canteiro florido, que, com a pele ,
o modo pouco importa, uma vez que ele
faiscante, atrai a criança que, levada
venha a morrer. É sempre boa a fraude
pelo brilho, a julgara algo excelente.
para apanhar quem é vezeiro em fraude.
Podeis crer-me, senhores: se vós todos
RarnHa MARGARIDA *
fôsseis sábios como eu — e neste assunto
Isso sim, é que é falar com decisão,
presumo que me julgo imparcialmente —
Suffolk três vezes nobre.
este Gloster em pouco se veria
SUFFOLK* Não é tanto,
livre do mundo, para que ficássemos
salvo se à decisão se seguir o ato,
livres todos do medo que nos causa.
pois nem sempre se diz o que se pensa.
CarDEAL* Será boa política matá-lo.
Mas, para pôr de acordo a língua e o peit
Mas para isso é mister excogitarmos o,
uma vez que a façanha é meritória,
algum pretexto. Fora conveniente
além de preservar meu soberano
que aparência legal se desse ao caso.
de seu feroz imigo, enunciai a ordem,
SUFFOLK* À meu ver será isso má política.
que eu serei logo dela o sacerdote.
O rei há de esforçar-se por salvá-lo.
CarDEAL: Milorde de Suffolk, eu desejara
O povo há de querer também salvá-lo,
que ele morresse, antes de terdes tempo
sendo que não dispomos de argumento
de fazer votos. Basta me dizerdes
valioso algum, senão suspeita, apenas,
que consentis no feito e que o aprovais,
de nossa parte, para condená-lo.
para que do estante eu me encarregue,
Yorx- Não desejais, portanto, vê-lo morto.
tanto eu velo por nosso soberano.
SUFFOLK -
SurroLK* Eis minha mão; a ação é meritória.
Oh York! Ninguém me excede nesse ponto.
RarnHa MARGARIDA: É também o que eu digo.
York York é quem tem razões mais poderosas
York: Eu também; e uma vez que os três estamos
de querer vê-lo morto. Mas, milorde
de acordo nesse ponto, é de somenos

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

importância impugnar alguém o feito. grupo de homens tirados dos condados,


(Entra um mensageiro.) para a sorte tentardes nesta empresa?
MENSAGEIRO * York Sim, milorde cardeal, se for do agrado
Cheguei neste momento, grandes lordes, de Sua Majestade.
da Irlanda com a notícia de se terem SUFFOLK* Nesses casos,
levantado os rebeldes, que aos ingleses nossa palavra é seu consentimento.
à espada a vida tiram. Enviai logo Ele confirma quanto decidirmos.
socorro, meus senhores, porque à fúria Aceita, pois, o encargo, nobre York.
deles ponhamos termo, antes que a chaga York: Dou-me por satisfeito. Cuidai logo,
fique incurável, pois enquanto é fresca senhores, de reunir os meus soldados,
sempre há esperanças de que a sarar venha. enquanto eu vou tratar de alguns negócios.
CARDEAL * Eis uma brecha que requer urgente SurroLK* Incumbência, milorde, a que de grado
reparação. Que aconselhais em caso me entregarei. E agora, retornemos
de tanta monta? a falar desse falso Duque de Humphrey.
York: Opino que se mande CARDEAL : Não falemos mais dele; vou tratá-lo
Somerset para lá como regente. de tal maneira, que daqui por diante
Governante de sorte é queé preciso; decerto há de deixar de incomodar-nos.
e que ele a tem, o demonstrou na França. Parti logo, Suffolk, o dia finda;
SOMERSET: Se com sua política manhosa hei de falar-vos deste caso ainda.
tivesse em meu lugar estado York, York: Milorde, esperarei quatorze dias,
não ficara na França tanto tempo. em Bristol, a chegada dos meus homens,
York: Não; como tu não viera a perder tudo. para logo embarcá-los para a Irlanda.
Teria preferido ficar morto SurroLk* Tudo a ponto obtereis, Milorde de York.
a acarretar desonra de tal porte (Saem todos, com exceção de York.)
para a pátria, na França demorando-me York: Agora, ou nunca mais, York, enrijéce
até que tudo a se perder viesse. teus grandes pensamentos e transforma
Mostra uma cicatriz em todo o corpo! em decisão a dúvida. Sê quanto
Não revela nos prélios muito zelo desejas ser ou vota o que és à morte,
quem só cuida de pôr a salvo o pêlo. como indigno, sequer, de ser vivido.
RainHA MARGARIDA * Deixa o pálido medo para os homens
Basta! Basta! Bem pode essa faísca de nascimento vil, não lhe permitas
vir a tornar-se em vorador incêndio, que se'abrigue num peito generoso.
se houver a jeito vento e combustível. Como da primavera os aguaceiros,
Cessa, bom York; amado Somerset, os pensamentos, rápidos, me ocorrem,
fica mais calmo. Se tivesses sido com o poder preocupados eles todos.
regente em lugar dele, York, é possível Mais ocupado, ainda, do que a aranha
que menos, ainda, tu tivesses feito. laboriosa, meu cérebro arquiteta
York: ciladas, com que apanhe os meus imigos.
Como! Menos que nada? Então, que a mancha Muito bem, nobres! Ato é de política
recaia em todos nós. mandar-me para fora com um exército.
SOMERSET"* Em ti, inclusive, Restituís, com isso, a vida à serpe
uma vez que desejas a vergonha. faminta que, afagada em vossos peitos,
CarpEAL: Milorde de York, a sorte ponde à prova. acabaria — era fatal — mordendo-vos
Os quernes irlandeses revoltados o coração. Eu precisava de homens,
estão em armas, amassando argila e vós mos arranjastes. Bem; aceito-os
com sangue dos ingleses. Decidis-vos de bom grado. Contudo, ficai certos
air para a Irlanda à frente de um seleto de que entregais a um louco armas afiadas.

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Ao mesmo tempo que, na Irlanda, minhas cabelo em desalinho, conversava


tropas eu for mantendo, na Inglaterra ele como os inimigos e me vinha,
provocarei escura tempestade depois, incógnito, pôr a par de todas
que enviará para o céu ou para o inferno as suas vilanias. Esse monstro
dez mil almas, com ímpeto crescente, vai substituir-me aqui, pois se parece
até que eu tenha a fronte circundada muito, realmente, com o defunto Mortimer,
pelo diademo de ouro, que, no jeito nos traços fisionômicos, no modo
dos raios transparentes do sol claro, de falar e de andar. Dessa maneira,
fará aplacar o torvelinho insano. fico sabendo quanto à casa de York
Para esse fim, como instrumento azado,
é dedicado o povo e de que modo
seduzi um teimoso homem de Kent, receberiam muitas pretensões.
João Cade de Ashford, Admitindo-se que ele seja preso,
para à vontade provocar distúrbios, colocado no potro, torturado,
valendo-se do nome de João Mortimer. sei que por mais castigos que lhes inflijam,
Vi, certa vez, na Irlanda, esse teimoso jamais dirá que o aconselhei a armar-se.
Cade opondo-se a quernes aguerridos. Digamos que ele alcance o que deseja —
Lutou tanto, que as coxas lhe deixaram o que é muito provável — bem, da Irlanda
os dardos como iroso porco-espinho. virei colher com minhas forças tudo
Socorrido, por fim, vi como dava quanto esse vilanaz houver semeado.
cabriolas, tal qual mouro dançarino Morto Humphrey — o que é certo — eHenrique
que sacudisse os dardos sanguinosos
[posto
como se fossem guisos. Muitas vezes de parte, tudo o mais fica a meu gosto.
em ardiloso querme disfarçado, (Sai)

Ato HI Cena II
Bury. Um quarto no palácio. O rei e os pares todos estão perto.
Entram apressadamente alguns assassinos, Refizestes o leito? Tudo se acha
conforme as ordens que eu vos tinha dado?
PRIMEIRO ASSASSINO * PRIMEIRO ASSASSINO
Vai logo à casa de Milorde Suffolk Tudo, milorde.
e dize-lhe que o duque despachamos, Surrork: Então parti. Depressa!
conforme ele ordenara.
(Saem os assassinos.)
SEGUNDO ÁssassINO * Oh! quem nos dera (Trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha
que tudo ainda estivesse por fazer! Margarida, o Cardeal Beaufort, Somerset, nobres
Já ouviste alguém falar com tal espírito
e outros.)
de contrição? Res Henrique Ide logo chamar o nosso tio.
(Entra Suffolk.) Queremos julgar hoje Sua Graça,
PrimEIRO Assassino - Milorde vem chegando. para ver se é culpado, como o afirmam.
SurroLK Liquidastes a coisa, camaradas? SurroLk: Vou chamá-lo já, já, meu nobre lorde.
PriMEIRO AssASSsINO “ Sim, milorde, está morto.
(Sai)
SurroLK: Belas palavras. Ora dirigi-vos Rer HENRIQUE
à minha casa; quero vos premiar Lordes, tomai vossos lugares. Peço-vos
por esse empreendimento venturoso. que não sejais com nosso tio Gloster

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rigorosos senão somente até onde o teu contacto. Sai da minha frente,
a opinião sã provar que ele é, realmente, mensageiro sinistro! Tens nos olhos
passível de castigo. a majestade cruel da tirania,
RarnHa MARGARIDA Deus nos livre que o mundo atemoriza. Afasta a vista
de que o mal a tal ponto prevaleça, de mim; esses teus olhos me lancinam.
fazendo condenar um gentil-homem Não te retires, não! Vem, basilisco:
inocente. Permita Deus que o duque deixa sem vida o espectador incauto!
se lave das suspeitas que lhe assacam. Alegria hei de achar na morte escura.
Rer Henrique: Agradeço-te, Meg; essas palavras É dupla morte para mim a vida,
me deixam satisfeito.
uma vez que está morto Humphrey de Gloster.
(Volta Suffolk.) RarnHa MARGARIDA *
E então? Que causa
Por que razão tratais Milorde Suffolk
te faz tremer? Por que te achas tão pálido?
dessa maneira? Muito embora o duque
Suffolk, e nosso tio? Que acontece?
lhe fosse desafeto, ele deplora,
SurroLk: Está morto, milorde; Gloster se acha
como cristão sincero, o seu trespasse.
morto no leito.
Quanto a mim, muito embora ele tivesse
RarnHAa MARGARIDA: Não! Deus não o permita!
sido meu adversário, se possível
CARDEAL: Juízo incógnito de Deus! Sonhei
fosse chamá-lo à vida só com lágrimas
esta noite que o duque estava mudo,
abundantes, gemidos do imo peito,
que não podia pronunciar palavra.
suspiros de fazer gelar o sangue,
(O rei desmaia.)
RarnHa MARGARIDA *
quisera ficar cega só de tanto
Que tem o meu senhor? Socorro, lordes!
chorar, adoecer com meus gemidos
O rei está morto! e ter a cor da quaresmeira pálida
SomerseT: Ocorpo levantai-lhe; com suspiros que o sangue me chupassem,
apertai-lhe o nariz. contanto que vivesse o nobre duque.
RarnHa MARGARIDA: Correi! Socorro! Quem sabe o que de mim dirá o mundo?
Socorro! Vamos! Abre, Henrique, os olhos! Todos sabiam que éramos imigos
SurroLk: Calma, senhora; ele já está voltando declarados. Talvez haja quem pense
asi. que eu fiz desparecer o nobre duque.
Rer Henrique - Oh Deus do céu! Meu nome vai ficar, assim, ferido
RArnHA MARGARIDA * Que está sentindo pela calúnia; assunto de conversa
meu gracioso senhor? nas cortes há de ser minha vergonha.
SUFFOLK* Coragem, ânimo, É quanto eu vou ganhar com a morte dele.
meu soberano, meu gracioso Henrique! Quem pode haver mais infeliz? Saber-me
Rer HenRIQUE- rainha e ter a infâmia por coroa?
Como! O Lorde de Suffolk me incita Rer HenrIQUE-
a não desanimar? Não soltou ele, Choro o destino do infeliz amigo.
neste momento, as notas do seu canto RarNHA MARGARIDA *
de corvo, cuja lúgubre toada Chora, então, minha sorte, que eu sou muito
me privou dos sentidos, e ora pensa mais infeliz do que ele. Como! Afastas-te
que com o chilreio da carriça, vindo de mim? O rosto escondes? Porventura
de um coração vazio e concitando-me sou alguma leprosa? Anda, contempla-me,
a não desanimar, será possível Como! Ficaste surdo como as víboras?
fazer com que me esqueça do outro canto? Então cria também veneno, para
Não escondas o fel nessas palavras matares a rainha que esqueceste.
açucaradas. Não me toques! Proíbo-te! Teu consolo se encontra circunscrito
Como picada de serpente, assusta-me no túmulo de Gloster? É que a Dama

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WiLLIAM SHA KESPEARE

Margarida jamais te fora grata. que com meu coração se concertassem,


Deverias mandar fazer a estátua de cegos os chamando, de lunetas
do duque e ajoelhar-te diante dela, sem préstimo nenhum, só por não verem
deixando o meu retrato como escudo as costas de Álbion, por que eu tanto ansiava.
de uma cervejaria. Foi por isso Que de vezes pedi a Lorde Suffolk,
que eu estive em perigo de naufrágio o agente da inconstância que te é própria,
e por mais de uma vez me vi jogada que me encantasse como fez Ascânio
das costas da Inglaterra pelos ventos com a tresloucada Dido, quando os feitos
contrários, que de novo me levavam do pai lhe enumerava desde o incêndio
para a terra nativa? Que presságio de Tróia! Não estou enfeitiçada
se poderia tirar disso, afora tanto quanto ela? E tu, não és tão falso
querer dizer-me o vento cauteloso: quanto Ascânio? Ai de mim! Não me é possível
“Não procures o ninho do escorpião, viver mais. Morre logo. Margarida;
nem ponhas pé nas praias inimigas”? lastima Henrique a tua vida longa.
Que fiz senão amaldiçoar os ventos (Barulho fora. Entram Warwick e Salisbury; o povo se
meigos e quem de suas aêneas covas
aglomera nas portas.)
os deixara escapar, pedindo, instante, Warwick Poderoso senhor, estão dizendo
que soprassem do lado das benditas que foi traiçoeiramente assassinado
praias inglesas, ou que nosso barco o bom Duque de Gloster, e que o Conde
dirigisse de encontro a algum penedo? de Suffolk e o cardeal têm parte nisso.
Contudo, Éolo não quis ser assassino; Tal como abelhas irritadas, quando
a teu cargo deixou o odioso ofício. lhes falta o guia, em toda parte o povo
O mar, também, em seus donosos saltos corre sem direção, não se importando
não me quis afogar, porque sabia com quem possam picar em represália.
que com tua dureza acabarias À custo consegui pôr cobro à sua
afogando-me em lágrimas salgadas frenética revolta, até que cheguem
como ele próprio. Os alcantis rachados, a saber das minúcias do trespasse.
humildosos baixavam-se até às praias, Rer HENRIQUE *
para não me ferirem com seus flancos Bom Warwick, é verdade que está morto;
lacerados, porque tinham consciência mas como isso se deu, só Deus o sabe,
de que teu coração de pederneira,
não Henrique. Penetra até o seu quarto,
mais insensível que eles, terminara
contempla o corpo inanimado e faze
por matar Margarida em teu palácio.
conjeturas acerca dessa morte
Enquanto eu enxergava as brancacentas repentina.
costas deste país, quando das praias Warwick Fá-lo-ei, meu soberano.
nos levava, sem rumo, a tempestade, Aguarda o meu retorno, Salisbury,
eu me deixava estar no tombadilho,
junto da multidão enraivecida.
em meio ao temporal; e quando a minha
(Warwick entra para o quarto e Salisbury se retira.)
vista perscrutadora ante a caligem Rer Henrique" Oh tu, juiz de todos e de tudo,
do céu ficou turvada, eu do pescoço pára os meus pensamentos, que se esforçam
retirei uma jóia inestimável,
por convencer-me de que mãos violentas
um coração cercado de diamantes,
puseram termo à vida do bom Gloster!
ea joguei para terra. Receberam-na Se carecer de base essa suspeita,
as ondas. De igual modo eu desejara perdoa-me, senhor, que a ti, somente,
que tu meu coração em ti acolhesses. compete o julgamento. De bom grado
E no momento em que eu perdi de vista com mil beijos os lábios dessangrados
a formosa Inglaterra, disse aos olhos
lhe aqueceria, as faces lhe banhara

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com um oceano de lágrimas salgadas, distendidas as mãos como no gesto


ao corpo surdo e mudo repetira de quem lutado houvesse, em desespero,
toda a minha afeição e nestes dedos para ser dominado pela força.
apertara seus dedos insensíveis. Contemplai o lençol; vede cabelos
Mas são inúteis todas essas provas neste ponto. Ele tinha sempre a barba
de meu amor. De que valera, agora, bem tratada; ora se acha em desalinho,
contemplar-lhe a figura perecível, como trigo no estio, derrubado
senão para aumentar minha tristeza? por grande tempestade. Não se pode
(Volta Warwick com outras pessoas, trazendo num leito o concluir de outra maneira: houve violência;
corpo de Gloster.) o menor destes dados os comprova.
WARWICK" Avançai, meu gracioso soberano; SurroLk: Warwick, a ser assim, quem poderia
vinde ver o cadáver. ter morto o Duque de Humphrey? Ele estava
Rer Henrique: Fora o mesmo sob minha proteção e de Beaufort.
que ver quanto é profundo o meu sepulcro. E eu quero crer, senhor, que nós não somos
Com sua alma fugiu todo o consolo assassinos.
que eu tinha neste mundo. Contemplá-lo WaRrwiICK : Vós éreis inimigos
equivale a me ver em vida morto. declarados do duque, e, apesar disso,
WarwICK* Com tanta segurança como espera ficastes incumbidos de guardá-lo.
minha alma ir para junto do terrível Não tencionáveis, certamente, dar-lhe
rei que se humanizou, para que a todos tratamento amistoso. Está se vendo
os homens libertasse da colérica que o bom duque encontrou um inimigo.
maldição de seu pai, estou convicto RarnHa MARGARIDA*
de que violentas mãos foram culpadas Pelo que vejo, suspeitais que a morte
no extinguir-se a existência deste duque prematura do Duque Humphrey de Gloster
três vezes afamado. foi causada por estes gentis-homens?
SUFFOLK * Juramento WARWICK *
terrível, em verdade, e por maneira Quem encontrasse morta uma vitela,
patética enunciado. Mas que pode ainda a sangrar, e um carniceiro ao lado
Lorde Warwick aduzir em seu reforço? com um machado na mão, não suspeitara,
Warwick: Vede como este rosto está congesto. com razão, ter sido ele o autor da morte?
Já vi muitas pessoas falecidas Se no ninho do açor acaso virmos
de morte natural; ficaram magros, uma perdiz, não nos será difícil
pálidos, cor de cinza, o rosto exangue, dizer como morreu, ainda que no alto
que o sangue sempre aflui para o esforçado paire o milhano, sem mostrar no bico
coração, que na luta em que se empenha recurvo nenhum sangue. De igual modo,
contra o inimigo, o chama para perto, é por demais suspeita esta tragédia.
porque possa lutar melhor com a morte. RarnHa MARGARIDA *
Aí se esfria o sangue, sem que às faces Suffolk, sois carniceiro? Onde se encontra
jamais retorne, para colori-las vossa faca? Beaufort tem o apelido
e emprestar-lhes beleza. Agora vede de milhano? Onde estão suas fortes garras?
como o rosto ele tem congesto e negro. SurroLk: Não faço uso de faca, para a vida
Os olhos se apresentam mais saltados tirar de quem esteja entregue ao sono;
do que em vida e nos fixam por maneira mas aqui trago espada vingadora,
pavorosa, tal como de pessoa pela inação coberta de ferrugem,
que tivesse morrido estrangulada, que eu posso mergulhar no rancoroso
Os cabelos ficaram levantados, coração que se atreva a caluniar-me
abertas as narículas com a luta, com o estigma sangrento de assassino.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Dize, orgulhoso Duque de Warwickshire


, Rer Henrique -
se tiveres coragem, que na morte
Não pode haver couraça mais potente
do Duque de Humphrey eu fui parte ativa.
do que um coração limpo. Está três vezes
(Saem o Cardeal Beaufort e Somerset..) armado quem defende a causa justa;
Warwick: Quando o repto é lançado pelo falso
ao passo que está nu, ainda que de aço
Suffolk, Warwick está disposto a tudo.
revestido, o indivíduo de consciência
RAINHA MARGARIDA *
manchada por ciúmes e injustiças.
Não se atreve ele a sofrear o gênio
insolente, nem pôr de parte o vezo (Ouve-se barulho.)
RarnHa MARGARIDA * Que será esse barulho?
de censurar com arrogância, embora
(Tornam a entrar Sufjolk e Warwick, com as espadas
fosse vinte mil vezes desafiado
por Suffolk. desembainhadas.)
Rer HENRIQUE -
Warwick: Oh senhora, ficai quieta,
Então, senhores, arrancais as armas
digo com reverência, porque cada
iracundas, estando nós presente?
palavra a favor dele compromete
Chega a esse ponto o vosso atrevimento?
vossa real dignidade.
De onde se originou esse tumulto?
SUFFOLK Lorde bronco, (Ouve-se o rumor da multidão: Salisbury torna a entra
de proceder ignóbil! Se houve alguma r.)
SALISBURY (falando para dentro) -
senhora da nobreza que o marido
Aguardai um momento, meus senhores;
desonrasse a tal ponto, foi tua mãe,
o soberano vai ficar sabendo
quando se rebaixou para no leito
de quanto pretendeis. Grande monarca,
culposo receber algum saloio
por mim vos diz o povo que se o pérfido
rude e mal educado, em tronco nobre
Suffolk, esse traidor, não for agora
fazendo enxerto de selvagem galho,
condenado à pena última, ou banido
de onde provéns, tu que, decerto, nunca
do solo da Inglaterra, eles, valendo-se
puderas descender da nobre raça
da força, o arrancarão de vosso paço
dos Nevils.
ea pavorosos tratos o submetem,
Warwick - Se amparado não te achasses
até que morra aos poucos. É acusado
pelo escudo do crime, eu defraudara
de haver assassinado o Duque de Humphrey.
de seus emolumentos o carrasco,
Todos estão, por isso, preocupados
libertando-te, assim, de dez mil pechas.
com o risco em que se encontra Vossa Alteza.
E se a presença do meu rei não fosse
É por instinto de lealdade, apenas,
causa de moderar-me, eu te obrigara,
livre do baixo espírito da teima,
poltrão, falso e assassino, a vir de joelhos
que os levasse a se opor a vosso alvitre,
dizer que era a tua mãe que tu aludias
que eles vêm exigir o banimento
há pouco, e que és bastardo de nascença.
do assassino. Cuidosos da pessoa
E depois de te haveres retratado
muito real de seu príncipe, eles dizem
covardemente, eu te daria a paga,
que se acaso intentasse Vossa Alteza
pernicioso vampiro dos que dormem,
descansar, e proibido a todos fosse
enviando essa alma podre para o inferno.
vos perturbar, sob pena de incorrerem
SurroLk- Estarás acordado, quando o sang
ue no vosso desfavor e, até, sob pena
eu te fizer verter, se te atreveres
de morte; não obstante o edito explícito,
a me seguir, saindo deste círculo.
se percebesse alguém uma serpente
Warwick - Vamos logo; se não te arrasto à força
. de língua bífida a esgueirar-se, astuta,
Contenderemos, muito embora sejas
para o lado de Vossa Majestade,
indigno. Vou prestar essa homenagem
fora mais do que urgente despertar-vos
tardia à alma do Duque Humphrey de Gloster.
porque o verme mortal não transmudasse
(Saem Sufjolk e Warwick.) Vosso sono inocente em sono eterno,

404
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Por isso eles proclamam, muito embora de cumprir a palavra que empenhara;
saibam que estão proibidos de fazê-lo, mas o meu juramento é irrevogável.
que até contra o querer de Vossa Alteza (A Suffolk.) Se após três dias fores visto dentro
buscarão amparar-vos contra as falsas de qualquer dependência do meu reino,
serpentes como Suffolk, esse hipócrita, pouco há de ser o mundo todo para
cujo dardo fatal e envenenado, te resgatar a vida. Vem comigo,
dizem todos, privou traiçoeiramente bondoso Warwick, vem, que necessito
da vida vosso tio estremecido falar-te sobre assuntos importantes.
que vale vinte vezes mais do que ele. (Saem o Rei Henrique, Warwick, nobres, etc.)
Povo (dentro) - Milorde Salisbury, vinde logo RarnHa MARGARIDA
trazer-nos a resposta do monarca! Que a desgraça e a tristeza te acompanhem.
SurFoLK* Compreende-se que o povo, gente rude, Sejam teus companheiros a apertura
tivesse enviado esse recado ao rei. do coração e o amargo desconsolo.
Mas vós, milorde, alegre recebestes Com ambos forme o diabo um belo terno
a incumbência tão-só para poderdes e que tripla vingança vos abata.
estadear vossos dotes de orador. SurroLK* Graciosa soberana, deixa dessas
No entanto, as honrarias conquistadas maldições e consente que, tristonho,
por Salisbury se resumem nisto: Suffolk as despedidas te apresente.
em ter sido ele enviado por um bando RarnHA MARGARIDA *
de caldeireiros com recado ao rei. Fora, mulher covarde, desgraçado
Povo (dentro) - A resposta! Se não, faremos força! de coração sem fibra! Não tens força
Rer HenriQuE* À todos agradece, Salisbury, para amaldiçoar teus inimigos?
de minha parte o zelo carinhoso SUFFOLK* À peste atinja a todos! De que vale
de que ora deram provas, e acrescenta lançar-lhes maldições? Se estas matassem,
que mesmo que eles não tivessem vindo como o fatal suspiro da mandrágora,
pedir-me essa medida, eu já me achava eu inventara os termos mais violentos,
resolvido a fazer o que me pedem. penetrantes, malditos e horrorosos
É certo, a todo instante o pensamento de se ouvir, e deixara que dos dentes
me fazia prever que, para o Estado, cerrados me saíssem, com tais mostras
só desgraças de Suffolk adviriam. de ódio implacável, como o faz a Inveja
Por isso eu juro pela majestade macilenta em seu antro repugnante.
daquele de que sou representante Minha língua ficara embaraçada
muito indigno, que mais do que três dias, no próprio turbilhão do que eu dissesse;
sob pena de morrer, não ficará dos olhos me sairiam tantas chispas
Suffolk em nossas terras, a empestar-nos como da pederneira; meus cabelos
o ambiente com seu hálito pestífero. ficariam de pé como os de um louco,
(Sai Salisbury.) parecendo que todos os meus membros
RArNHA MARGARIDA * falassem maldições, só maldições...
Henrique, deixa que a favor eu fale É isso: o coração sinto partir-se-me,
do gracioso Suffolk. se os não amaldiçoar. Seja veneno
Rer Henrique: Oh desgraciosa tudo quanto beberem! Seja bile...
rainha, por chamá-lo de gracioso não, muito mais amargo, o que mais grato
Suffolk! Nem mais uma palavra, digo. lhes souber ao paladar; não gozem sombra
Falando a seu favor, tu só consegues mais agradável do que a do cipreste;
aumentar minha cólera. Ainda mesmo olhar de basiliscos matadores
que eu só tivesse prometido, tinha lancem por toda parte; o mais macio

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contacto deles seja qual mordida


SurroLk: Banido, desse modo, se acha Suffolk
de lagarto; sua música, medonha
dez vezes: uma vez pelo monarca,
como o silvo da serpe, acompanhada
três vezes três por ti. Não me afligira
pelo agoureiro pio da coruja.
viver fora da pátria, se estivesses
Que o negro inferno e os seus horrores todos...
longe dela também. Suffolk achara
RarnHa MARGARIDA *
Papeloso eum deserco, se contasse
Caro Suffolk, é muito! Estás, com isso,
com tua companhia celestial.
aumentando teu próprio sofrimento. Porque onde tu te encontras, o universo
Todas as tuas maldições, no jeito todo está, com as venturas que ele implica;
do sol de encontro ao espelho, ou de espingarda
ao passo que o lugar onde me faltes
carregada em excesso, acabarão
equivale a um deserto. Já não posso
virando contra ti sua potência.
dizer mais nada. Vive, para teres
SurroLK* Mandastes que eu amaldiçoasse, e agora a alegria da vida, que minha única
desejais que me cale? Pelo solo alegria é saber que ainda estás viva.
de que me acho banido, eu poderia
prosseguir neste tom, amaldiçoando (Entra Vaux.)
RarnHA MARGARIDA *
sem cessar, pelo prazo de uma noite
Para onde se dirige Vaux com tantas
de inverno, embora nu eu me encontrasse mostras de pressa? Dize: que há de novo?
no alto de uma montanha em que o cortante
Vaux - Vou levar a notícia a Sua Alteza
frio não deixa nunca crescer a erva,
de que o Cardeal Beaufort está morrendo.
e ainda assim pensara só ter gasto Foi hoje acometido por mal súbito.
no agradável desporto alguns minutos. Respira a custo abrindo muito a boca;
RarnHA MARGARIDA * os olhos tem parados; diz blasfêmias
Oh! pára, por obséquio! Dá-me a mão, contra Deus e maldiz a terra e os homens.
para eu rociá-la com meu triste pranto.
Por vezes fala como se tivesse
Este lugar não deve ser molhado junto de si o espírito de Gloster;
pela chuva do céu, porque perdurem por vezes chama o rei e diz segredos
Os sinais do meu triste monumento.
ao travesseiro, como se falasse
Oh! se este beijo se imprimisse nela,
com Sua Majestade, confessando-lhe
(Beija-lhe a mão.) os pecados de sua alma atribulada.
para que, vendo o selo, tu pensasses Vou procurar o rei para dizer-lhe
nos lábios que escapar deixam milhares
que o moribundo o chama a grandes brados.
de suspiros por ti! Vai! Parte logo!
RAINHA MARGARIDA
porque eu conhecer possa a imensidade Vai; leva ao rei essa mensagem triste.
da minha dor. Enquanto estás presente,
não faço mais que simples conjeturas, (Sai Vaux,)
Oh Deus! Que vale o mundo? Que notícias!
como alguém que no meio da abundância Mas por que lastimar a fugaz perda”
pensasse em privações. Hei de chamar-te
de uma hora, sem lembrar-me da partida
novamente; confia no que digo,
de Suffolk, o tesouro de minha alma?
em que com isso me arrisque a ser banida...
Por que não choro apenas por tua causa,
Sim, que já estou banida, embora apenas Suffolk, a compelir com as carregadas
de ti próprio. Não fales mais; retira-te. * nuvens do sul, para saber que lágrimas
Não! Ainda é cedo. Assim, dois condenados
serão mais abundantes: se as das nuvens,
abraçam-se, separam-se mil vezes,
em benefício da lavoura, ou as minhas,
sofrendo a dor imensa da partida para dar alimento às próprias dores?
cem vezes mais pungente do que a morte. Agora vai; O rei vem vindo, sabê-lo.
E agora, adeus! Adeus a ti e à vida. Se ele aqui te encontrar, és homem morto.

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Henrique VI

SurroLK: Não poderei viver longe de ti. RarNHA MARGARIDA


E o que fora morrer sob os teus olhos, Não, vai logo, conquanto essa partida
senão adormecer nesse regaço? seja tão dolorosa como cáustico
Poderia exalar aqui o espírito posto em chaga mortal. Vai para a França,
tão branda e gentilmente, como o infante meigo Suffolk. Manda-me notícias,
que deixa a vida no materno seio. porque, onde quer que estejas neste globo
Longe de li, tornara-me furioso; terrestre, eu hei de te enviar uma Íris
gritaria que os olhos me fechasses, capaz de descobrir teu paradeiro.
SUFFOLK* Já vou.
que a boca me tapasses com esses lábios,
RAINHA MARGARIDA *
porque, dessa maneira, ou apanharias
Leva meu coração para onde fores.
minha alma fugitiva, ou no teu corpo
SurroLK* Como jóia no escrínio mais dorido
viria eu a insuflá-la, para que ela que jamais encerrou algo valioso.
continuasse a viver no doce Elísio. Tal qual barco em naufrágio nos partimos:
Morrer junto de ti fora um desporto; caio aqui para a morte.
mas, longe, é pior tortura do que a morte. RarnHAa MARGARIDA Eu, deste lado.
Deixa que eu fique. Aceito as consegiiências. (Saem.)

Ato HI - Cena II
Londres. Quarto de dormir do Cardeal Beaufort. Entram como varas com visgo preparadas
o Rei Henrique, Salisbury, Warwick e outros. O cardeal se para minha alma alada embaraçarem.
acha no leito, cercado de criados. Quero água! Ide dizer ao boticário
que me traga o veneno encomendado.
Rer HENRIQUE: Rer Henrique: Oh tu, Motor eterno das esferas,
Beaufort, fala ao teu rei. Que estás sentindo? lança os olhos benignos a este mísero!
CARDEAL: Se és a Morte, eu te dou todo o tesouro Oh! Expulsa o demônio intrometido
da Inglaterra, bastante para a compra que na alma se assentou deste coitado,
de uma outra ilha, contanto que me largues e tira-lhe do peito o desespero!
e me libertes logo destas dores. Warwick: Que esgares ele faz com a dor da morte!
Rer Henrique: Oh! Que sinal de vida mal vivida, SALISBURY *
quando a morte é encarada desse jeito! Não o perturbeis; deixai que em paz se fine.
Warwick: Beaufort, é o soberano que te fala. Rer HeNRIQUE-
CARDEAL: Se Deus assim quiser, paz à sua alma.
Chamai-me ao tribunal quando quiserdes. Lorde Cardeal, se acaso estás pensando
Não faleceu no leito? Onde devia na salvação eterna, a mão levanta,
morrer, então? Tenho eu poder, acaso, em sinal de esperança. Nada! Morre
para fazer alguém viver à força? sem fazer gesto algum. Oh Deus, perdoai-lhe!
Não me tortures mais! Confesso tudo. Warwick: Tão ruim morte inculca vida infame.
Tornou a viver? Mostrai-me onde ele se acha. Rer HenRIQUE:
Darei mil libras, só para enxergá-lo. Não julgueis; somos todos pecadores.
Já não tem olhos; a poeira os cega. Fechai-lhe os olhos; deixai bem cerradas
Penteai-lhe a cabeleira. Vede! Vede! as cortinas e vamos meditar.
como estão arrepiados os cabelos (Saem.)

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Ato IV : Cenal
Kent. Praia perto de Dover. neste negócio.
Canhoneio no mar. Depois, saltam de um bote um capitão Carrrão: Não te mostres duro.
de navio, o patrão, seu ajudante, Valter Whitmore e Deixa-o viver, aceita-lhe o resgate.
outros; com eles, Suffolk, disfarçado, e outros gentis- SurroLk* Contempla esta medalha de São Jorge:
homens, prisioneiros. sou fidalgo. Estipula o meu resgate
na quantia que for, que eu não discuto.
Carirão - Já baixou para o mar o dia esplêndido, WHITMORE *
falante e metediço. Agora o lúgrubre Fidalgo eu também sou; chamo-me Valter
uivar dos lobos despertou os sendeiros Whitmore. Mas, que vejo? Por que tremes?
que a Noite puxam, trágica e tristonha. A morte te apavora desse jeito?
Com suas asas morosas e caídas SurroLK- É teu nome que assim me mete medo,
eles roçam os túmulos dos homens; pois soa como a morte. De uma feita
das fauces tenebrosas vão soltando um homem de saber leu meu horóscopo
por toda parte escuridão pestífera. e disse que eu viria a morrer na água
Fazei, pois, avançar os prisioneiros, em circunstâncias tais como as que o nome
porque enquanto estiver o nosso barco que ora pronunciaste me recordam.
nas dunas ancorado, todos eles. Mas não seja isso causa de ficares
pagarão o resgate aqui na areia, inexorável, que, a rigor, teu nome
ou tingirão com sangue a praia pálida. deve ser pronunciado como Gualter.
Patrão, fica com este prisioneiro; WHITMORE *
e tu aí, como ajudante, tira Gualter ou Valter, pouco me preocupa.
bom proveito deste outro. Este aqui perto, O certo é que a desonra nunca o nome
(Apontando para Suffolk.) nos conspurcou, sem que com nossa espada
Valter Whitmore, te tocou por sorte. limpássemos 3 mancha. Se eu tivesse,
Primeiro GenTIL-HomEM * portanto, de vingar-me como um baixo
Patrão, dizei-me o preço do resgate. mercador, merecera ver quebrada
ParRÃo: Apenas mil coroas, ou a cabeça. esta espada, arrancados e manchados
AJUDANTE: É também o que eu peço; do contrário, os braços, e meu nome proclamado
com o que me coube faço a mesma coisa. no mundo inteiro como o de um covarde.
CarrrÃo - Como! Achais muito duas mil coroas (Põe a mão em Suffolk.)
para vos comportardes como nobres? SUFFOLK*
Cortai a esses malandros o pescoço! Pára, Whitmore! Teu prisioneiro é o Duque
Sim, morrereis. A vida dos consócios de Suffolk; sou príncipe e me sao
que perdemos não fica compensada William de la Pole.
por uma soma assim tão irrisória. WHITMORE -
Primeiro GenTIL-HomEM * O Duque de Suffolk envolto em trapos?
Vou pagá-la, senhor; poupai-me a vida. SuFFOLK* Sim, mas do duque os trapos são apenas
SEGUNDO GENTIL-HomEM * parte acessória. Às vezes Jove usava
E a minha; vou escrever já para casa. de disfarces. Por que não imitá-lo?
WHiTMORE (a Suffolk) * Carrão: Mas há uma diferença: Jove nunca
Perdi um dos olhos, quando da abordagem foi morto como tu vais ser agora.
ao teu navio. Vou vingar-me, agora, SurroLK: Obscuro e vil campônio, o nobre sangue
privando-te da vida, o que a teus sócios do Rei Henrique, o sangue de um Lencastre
também acontecera, se me ouvissem não pode ser vertido por um reles

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Henrique VI

palafreneiro. À mão não me beijaste senhor com a filha de um monarca pífio,


muitas vezes e o estribo não firmaste sem súditos, fortuna, nem diadema.
para eu montar? À trote não correste, Cresceste só por artes do diabo;
sem chapéu, junto à minha mula arreada como o ambicioso Sila, empanturraste
com custosos painéis, considerando-te esse ventre insaciável com pedaços
muito feliz se acaso eu te acenava? do coração sangrento de tua mãe.
À taça não me encheste tantas vezes, Por tua causa foi vendida à França
não viveste das sobras dos banquetes, Maine e Anjou; por tua causa, ainda, os hipócritas
não ficavas de joelho, quando, à mesa, normandos se insurgiram, recusando-nos
Margarida, a rainha, eu festejava? a obediência devida a seus senhores;
Lembra-te de tudo isso e abaixa a crista, os picardos mataram seus regentes,
pondo um cobro a esse orgulho sem proveito. de surpresa atacaram-nos os fortes,
Quantas vezes ficaste em nossa alcova, e em trapos e feridos despacharam
respeitoso, a aguardar minha passagem? para a terra nativa os nossos homens.
Esta mão que escreveu para fazer-te Os Nevils todos, Warwick, o altanado,
benefícios, vai pôr agora um termo que em vão nunca sacaram da bainha
nas sobras dessa língua escandalosa. seus gládios vingadores, revoltaram-se
WHrrmoRE : Que dizeis, capitão? Posso dar logo por ódio a tua pessoa. E a casa de York,
uma espetada neste pobre diabo? que, pela tirania usurpadora,
Carrrão : Primeiro vou feri-lo com palavras foi privada do trono pela morte
como ele fez comigo. vergonhosa de um rei bondoso e puro,
SUFFOLK* São rombudos, no fogo da vindita ora se abrasa,
como tu, vil escravo, os teus insultos.
levantando a bandeira da esperança
com meio sol que por brilhar se esforça,
CariTÃo : Levai-o para bordo e, aí, a cabeça
cortai-lha já.
sob o qual se acha escrito: Invitis nubibus.
Todo o povo de Kent pegou em armas.
SurroLk* Duvido que te atrevas
Enfim, para concluir: a mendicância
a fazer isso; a tua arriscarias.
e o opróbrio se esgueiraram no palácio
CarirÃo - Como não, Pole?
do nosso rei, e tudo por tua causa.
SUFFOLK* Como! Pole?
Some daqui! Levai-o sem demora!
Carrrão- Pole,
SurroLkK- Oh! não ser eu um deus para meu raio
sim senhor; Pole ou pulo, meu fidalgo.
lançar sobre estes vis, rudes e abjetos
Fidalgo, uma ova! Pula para o lodo,
mesteireiros. As coisas mais mesquinhas
para o canil de origem, a privada
enchem de orgulho os indivíduos baixos.
cuja imundície mal-cheirosa estraga Por ser este vilão chefe de um barco
as argentinas águas onde bebe
sem importância, lança mais ameaças
nossa Inglaterra. Agora vou um batoque do que Bargulus, o pirata ilírico.
pôr-te na ávida boca, que os tesouros Não do sangue das águias vive o zangão,
do reino devorou. Esses teus lábios, mas de pilhar o mel das abelhinhas.
que a rainha beijaram, vão, em pouco, Não é possível que me tire a vida
varrer o chão imundo. Riste na hora vassalo assim de tão mesquinha estirpe.
da morte do bondoso Duque de Humphrey; Tuas palavras deixam-me colérico,
mas vais fazer esgares para os ventos não me causam remorso. Estou de viagem
insensíveis, que assobiarão, mofando para a França, por parte da rainha.
de tuas carantonhas. Vais casar-te Intimo-te a me pores do outro lado
com as megeras do inferno, pelo ousio do canal, sem perigo e incontinenti.
de haveres desposado um poderoso Carrrão - Valter!

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WiirmoRE : Vamos, Suffolk? eu vou te pôr depressa vossa crueldade, porque minha morte
do outro lado da vida. jamais fique esquecida. Os grandes homens
SurroLk- É a ti que eu temo. são muitas vezes mortos por mendigos.
Gelidus timor occupat artus.
Um gladiador romano e um vil bandido
WHrrMorE : Razão para ter medo vais ter antes privaram da existência o doce Túlio.
de eu me afastar de ti. Como! Estás manso?
Em Júlio César, com sua mão bastarda,
Dobrarás, finalmente, esse pescoço?
Bruto cravou o punhal; Pompeu, o Grande,
Primeiro GenTIL-HomEM : foi morto por selvagens insulanos.
Meu gracioso senhor, falai-lhe em termos Que muito que uns piratas matem Suffolk?
mais brandos; implorai-lhe os bons favores.
(Saem Wbhitmore, e outros, com Sulfolk.)
SUFFOLK* À voz de Suffolk é dominadora, Carirão : É do nosso prazer que parta livre
inflexível e altiva; não se humilha
um dos que concordaram com o resgate.
para implorar, só sabe ditar ordens. Pode sair. Venham comigo os outros.
Jamais devemos nos dobrar a gente
(Saem todos, com exceção do Primeiro Gentil. Homem.)
como esta, para honrá-los com pedidos.
(Volta Wbitmore com o corpo de Suffolk. )
Poderei pôr no cepo esta cabeça,
WHrrMoRE : Eis a cabeça dele e o corpo exangue.
porém só dobrarei os joelhos diante Deixai-os, até vir para enterrá-los
de Deus que está no céu e do meu rei.
sua amante, a Rainha Margarida.
É preferível que ela dance numa
vara sangrenta a descobrir-me em frente (Sai)
Primeiro GenrIL-HomEM *
de um criado desprezível. A nobreza
Oh! Que sangrento e bárbaro espetáculo!
verdadeira não sabe o que é ter medo. Vou levar o cadáver para o rei.
Saberei suportar quantos suplícios
Ainda que ele o não vingue, os seus amigos
com vossa vilania me infligirdes. o farão, ou a Rainha Margarida,
CarirÃo : Arrastai-o daqui; tapai-lhe a boca. que em vida tanto lhe era dedicada.
SUFFOLK- Não correrei. Soldados, mostrai toda
(Sai com o corpo.)

Ato IV: Cena ll


Blackbearih. Jorge - Se fosse só isso! O conselho do rei não é
Entram Jorge Bevis e Jobn Holland. composto de bons trabalhadores.
Jomn É certo. No entanto, diz-se: “Trabalha em
Jorce : Vamos, trata de arranjar uma espada, nem tua profissão”, o que equivale a afirmar que os
que seja só um pedaço de ripa. Há dois dias que eles magistrados devem ser trabalhadores. Disso se
estão de pé. conclui que nós deveríamos ser magistrados.
Jomn - Razão para que estejam agora com sono. Jorge: Falaste com acerto, porque não há melhor
Jorse : Digo-te que o tecelão Jack Cade tenciona indício de um espírito arguto do que a mão calosa.
pôr pano novo na república, virá-lo e dar-lhe brilho. Jown - Lá vêm eles! Lá vêm eles! Estou
Jomn - Já não é sem tempo, porque já está muito reconhecendo o filho de Best, o curtidor de
usado. Só o que eu digo é que a alegria desapareceu Wingham...
Jorge - Esse vai ficar com a pele de nossos inimigos,
da Inglaterra, depois da vinda dos fidalgos.
para com elas preparar couro de cachorro.
Jorse - Que época miserável a nossa! A virtude não
Jorn ...e o carniceiro Dick...
é apreciada nos artesãos.
Jorge - Esse abaterá o pecado como o faz com as
Jon - A nobreza acha degradante usar avental de
reses, e cortará o pescoço à iniquidade, como se fosse
couro.
o de um vitelo.

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VI

Jomn...e o tecelão Smith... e o meu palafrém irá pastar em Cheapside. Quando


Jorce: Argo, está com o fio da vida tecido. eu for rei... Sim, porque hei de ser rei...
Jown - Vamos logo nos juntar a eles. Topos: Deus guarde Vossa Majestade!
(Tambor. Entram Cade, o açougueiro Dick, o tecelão Cape Obrigado, bom povol... não haverá
Smith, um serrador e muita gente do povo.) necessidade de dinheiro; todo o mundo há de
Cape Nós, John Cade, assim denominado por comer e beber à minha custa. Farei que todos usem
nosso pai putativo... uniforme, para que se comportem como irmãos e me
Dick (à parte) * Quem não te conhecer que te honrem como a seu senhor.
compre! Dick À primeira coisa que devemos fazer é matar
CaDE*...porque o inimigo vai cair diante de nós, os magistrados.
levado pelo espírito de derrubar príncipes e reis, Cape Está no meu programa. Pois não é
recomendamos silêncio. lamentável que a pele de uma ovelha inocente sirva
Dick: Silêncio! para fabricar pergaminho e que esse pergaminho,
Cape: Meu pai foi um Mortimer... uma vez garatujado, possa matar uma pessoa?
Dicx (à parte) - Homem honesto, de fato, e muito Dizem que a abelha dá ferroadas, mas eu afirmo que
bom pedreiro. é a cera de abelha que o faz, porque já me aconteceu
Cape: Minha mãe, uma Plantageneta... selar alguma coisa uma só vez, sem nunca mais
Dick (à parte) * Conheci-a muito bem; era parteira. poder ser dono de mim mesmo. Mas, que é isso?
Cape: Miriha mulher descendia dos Lacys... Quem vem lá?
Dicx (à parte) : Não há dúvida; como filha de um (Entram alguns homens, trazendo o escrivão de
mascate, devia ter vendido muitos laços. Chatham.)
SMITH (à parte) * Mas, ultimamente, por não poder SMITH * O escrivão de Chatham. Ele sabe ler,
mais com a mochila, passou a lavar em casa roupa na escrever e contar.
barrela. Cape: Oh monstro!
Cape: Descendo, portanto, de uma casa honrada. SMITH - Surpreendemo-lo, quando preparava cópias
Dick (à parte) - É certo, por minha fé; o campo é para crianças.
honroso, onde ele nasceu, debaixo de uma sebe. A Cape: Miserável!
única casa que o pai dele teve foi a prisão. SMITH : Traz no bolso um livro com letras
CaDE: Sou corajoso. encarnadas.
SMITH (à parte) * Por necessidade, porque, para Cape: Então é feiticeiro.
pedir esmola, é preciso ter coragem. Dick Sim, e sabe também redigir obrigações e
Cape Resisto ao sofrimento. escrituras judiciais.
Drcx (à parte) - Quem o duvida? Já o vi ser CapE- O homem me dá pena. Por minha honra,
chibateado no mercado três dias seguidos. parece honesto; só virá a morrer, se eu descobrir nele
Cape: Não tenho medo nem de espada nem de fogo. alguma culpa. Chega mais para cá, maroto, que eu
SMITH (à parte) * Como ter medo de espada, com o vou examinar-te. Como te chamas?
casaco à prova de furo? Escrivão : Emanuel.
Dick (à parte) * Mas com o fogo precisa ter cautela, Dick * É o que se costuma escrever no início das
visto trazer nas mãos a marca dos ladrões de mensagens. Mau sinal para vossa causa.
carneiro. Cape: Deixai o caso comigo. Costumas assinar o
Cape: Sede bravos, portanto, que o vosso capitão teu nome, ou usas algum sinal particular, como o
é valente e vai proceder a uma reforma geral. De fazem as pessoas de bem?
futuro, sete pães de meio pêni serão vendidos apenas Escrivão * Graças a Deus, senhor, recebi educação
por um pêni; as canecas de três aros passarão a suficiente para saber assinar o meu nome.
conter dez, sendo considerado felonia beber cerveja Topos* Confessou! Confessou! Levai-o logo! É
fraca. Todo o reino ficará sendo propriedade comum vilão e traidor!

gr
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WiLLIAM SHAKESPEARE

Cape: Levai-o logo, digo. Enforcai-o com a pena e


WiLLiam SrarroRD - É falso.
o tinteiro pendurados ao pescoço.
Cape Eis a questão. Mas digo que é verdade.
(Saem alguns homens com o escrivão.) Tendo sido o mais velho entregue a uma ama,
(Entra Micael.) foi por uma mendiga, após, roubado.
MicagL - Onde está o nosso general?
Criado sem poder saber quem era,
CADE* Aqui, meu caro amigo.
quando adulto, ficou sendo pedreiro.
MicazL : Foge! Foge! Sir Humphrey Stafford e o
Sou filho dele. E, agora, contestai-me.
irmão estão aqui perto com o exército real.
Dick: É isso mesmo. Por isso, ele há de ser rei.
Cape : Pára, vilão! Pára, ou eu te derrubo! Ele terá
SMITH
de se haver com um homem de sua marca. Não é ele,
Senhor, ele construiu a chaminé da casa de meu
acaso, um cavaleiro?
pai. Os tijolos ainda vivem hoje, para confirmar o
MicaegL - Não. fato. Por isso, não o contesteis.
Cape Pois, para ficar sendo seu igual, vou tamb
ém STAFFORD - E vós acreditais em tudo quanto
fazer-me cavaleiro. vos diz esse imbecil que fala à toa?
(Ajoelha-se.) Topos: Acreditamos. Por isso, trataí de vos retira
Levanta-te, Sir John Mortimer! r.
WILLIAM STAFFORD - Jack Cade, foi o Duque de
(Levanta-se.) York que te ensinou tudo isso.
E agora, vamos a eles!
Cape (à parte) - É mentira; fui eu que o inventei.
(Entram Sir Humphrey Stafford e seu irmão William (Alto.) Trata de ir saindo, maroto! Vai dizer ao rei
com um tambor e soldados.) que, por amor de seu pai, Henrique quinto, no
STAFFORD - Canalha revoltada, rebotalho
tempo do qual os meninos brincavam com coroas
do condado de Kent, escória boa
francesas, eu permito que ele reine, mas com a
para a forca, deponde logo as armas!
condição de eu ficar como protetor.
Deixai este lacaio e retornai
Dick - Acrescentai que havemos de cortar a cabeça a
para vossas choupanas. Se o fizerdes,
Lorde Say, por ter vendido o ducado de Maine.
o rei será benigno para todos.
CADE- É justo, porque com isso a Inglaterra ficou
WILLIAM STAFFORD
mutilada, e necessitaria de um bastão para andar,
Mas vingativo, iroso é sanguinário,
se não fosse apoiar-se na minha resistência. Reis
se persistirdes. Rendição ou morte,
camaradas, digo-vos que esse Lorde Say castrou o
portanto: eis o dilema que vos resta.
nosso país, transformando-o em eunuco. Digo mais:
Cape - Nada tenho que ver com esses escravos ele fala francês; logo, é um traidor.
de vestidos de seda. É a ti, bom povo,
STAFFORD : Oh ignorância grosseira e miserável!
que eu me dirijo, a ti que, dentro em breve,
Cape: Se puderdes, respondei-me. Os franceses
espero governar, por ser o herdeiro
são nossos inimigos. Muito bem. Só pergunto uma
legítimo do trono. coisa: quem fala a língua de um inimigo, pode ser um
STAFFORD * Miserável! bom conselheiro?
Teu pai era pedreiro e tu não passas
Topos: Não! Não! É por isso que exigimos a sua
de um cortador de pano. É ou não certo?
cabeça.
Cape E Adão foi jardineiro. WILLIAM STAFFORD -
WILLIAM STAFFORD - À que vem isso? Já que não valem termos brandos, vamos
CADE: É muito fácil. Vede: Edmundo Mortimer
, atacá-los com o exército do rei.
Duque de March, a filha desposou
STAFFORD : Proclama, arauto, em todas as cidades,
do Duque de Clarence, não foi isso?
que os adeptos de Cade são traidores
STAFFORD : Sim, senhor.
e que quantos fugirem da batalha
Cape : Dela teve dois filhos num só parto.
enforcados serão nas próprias casas,

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Henrique
VI

à vista das mulheres e dos filhos, de sapatos ferrados, que são todos
para exemplo. Segui-me tropas leais. honestos e econômicos e, certo,
(Saem os dois Stafjords, com as tropas.) se bandeariam para o nosso lado,
Cape Vós, amigos do povo, acompanhai-me! se tivessem coragem para tanto.
É pela liberdade. Se sois homens, Dick - Eles já estão em ordem e vêm para nos atacar.
mostrai-o agora. Não deixemos vivo CADE- Nós só ficamos em ordem, quando estamos
nenhum lorde, nenhum desses fidalgos. fora de ordem. Vamos! Para a frente!
Só poupai as pessoas que estiverem (Saem.)

Ato IV: Cena HI


Outra parte de Blackbeath. Drcx - Não desejo mais do que isso.
Alarma. Entram os dois partidos e lutam. Caem mortos os Cape: Sim, e para ser franco, não mereces menos,
dois Stafjords. Vou pôr isto como lembrança da vitória.
(Veste a armadura de Sir Hlumpbrey Stafford.)
Cape Onde está Dick, o açougueiro de Ashford? Os dois corpos vão ser arrastados por meu cavalo
Dick: Aqui, senhor. até Londres, onde me devem entregar a espada do
CapE* Os inimigos caem diante de ti como prefeito.
carneiros e bois e tu te comportas como se Dick - Se quisermos prosperar e fazer algo de bom,
estivesses no teu matadouro. Por isso, desejo abramos as prisões e soltemos os presos.
recompensar-te da seguinte maneira: a Cape: Não te preocupes com isso, posso
quaresma vai durar outro tanto e tu terás assegurar-te. Vamos! Marchemos para Londres.
permissão de matar um cento menos um. (Saem.)

sda EV + Cena IV
Londres. Um quarto no palácio. BuCckKINGHAM *
Entra o Rei Henrique lendo uma súplica. Como responde Vossa Graça à súplica
Acompanham-no o Duque de Buckingham e Lorde dos rebeldes?
Say; entra depois a Rainha Margarida, chorando sobre Rer Henrique : Mandando-lhes um bispo,
a cabeça de Suffolk. como parlamentar. Deus não permita
que a morrer venham pela espada tantas
RarnHA MARGARIDA almas simples. Eu próprio, porque a todos
Já ouvi dizer que as penas a alma abrandam, não exponha a uma guerra sanguinária,
degenerada e tímida deixando-a. pretendo entrevistar-me com Jack Cade,
Cessa, pois, de chorar e pensa apenas seu general. Mas, esperai; desejo
na vingança. Mas quem o conseguira reler mais uma vez o que escreveram.
diante deste espetáculo? A cabeça RarnHa MARGARIDA"
aperto no meu peito palpitante; Oh, que bárbaros! Tua majestosa
mas como poderei cingir-lhe o corpo? figura, que exercia poderio

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WILLIAM SHAKESPEARE

sobre mim, como o de um planeta imóvel, reunir forças para aniquilá-los.


não pôde enternecer aqueles olhos RainHa MARGARIDA
indignos, mesmo, de te olhar de frente? Se Suffolk vivesse, acalmar-se-iam
Rer HENRIQUE * os rebeldes de Kent em pouco tempo.
Jack Cade, Lorde Say, jurou que ainda há de Rer HENRIQUE:
vos cortar a cabeça. Lorde Say, os traidores te abominam.
SAY: Mas espero Vem, pois, comigo para Killingworth.
que Vossa Alteza há de cortar a dele. Say - Com isso Vossa Graça perigara,
Rer Henrique: Então, senhora? pois a todos é odiosa a minha vista.
Sempre a morte de Suffolk a chorar? Ficarei aqui mesmo, procurando
Receio, amor, que se fosse eu o morto, ocultar-me do povo baixo e infando.
não chorarias tanto. (Entra o segundo mensageiro.)
RarnHa MARGARIDA * Não, querido, SecunDO MENSAGEIRO -
não te choraria; morreria junto. Em Londres Cade já tomou a ponte;
(Entra um mensageiro.) os moradores fogem diante dele,
Rer HENRIQUE- abandonando as casas; a canalha,
Que há de novo? Por que tamanha pressa? sequiosa de motim, fez com os traidores
MEnsacEIRO - Fugi, milorde! causa comum e juram, todos juntos,
Em Southwark os rebeldes já se encontram. pôr em saque a cidade e vossa corte.
Lorde Mortimer Cade se proclama BuckiNGHAM*
descendente do Duque de Clarence, Pressa, milorde! Vamos, montai logo!
e chama abertamente Vossa Graça Rer HENRIQUE -
de usurpador, jurando coroar-se Vem, Margarida; Deus, nossa esperança,
na abadia de Westminster. Seu exército não há de nos deixar.
é composto de um bando maltrapilho RarnHa MARGARIDA * Minha esperança
de campônios grosseiros e de criados não existe, pois Suffolk está morto.
que desconhecem compaixão. A morte Rei HenrIQUE (A Lorde Say) *
de Stafford e do irmão lhes deu coragem Milorde, adeus; não confieis nos homens
para avançar. Todos os homens doutos, de Kent.
os magistrados, cortesãos, fidalgos, BuckincHAM: Desconfiai de todo o mundo,
são por eles chamados de lagartas para obviar a traição.
que, sem apelo, à morte condenaram. Say: Só deposito
Rer Henrique: Infelizes! Não sabem o que fazem. confiança na inocência de minha alma,
BuckincHAM - Meu soberano, retirai-vos para que me faz corajoso e resoluto.
Killingworth, até termos conseguido (Saem.)

Ato IV : Cena V
O mesmo. À Torre. com jeito de morrer tão cedo.
Já tomaram a ponte,
Lorde Scales e outros aparecem sobre os muros. Embaixo, matando quantos se lhe opunham. O lorde prefeito
alguns cidadãos. pede que Vossa Honra lhe envie socorro da Torre,
para defender a cidade contra os rebeldes.
ScaLES - Comandareis as forças que me seja
ScaLES * Então, Jack Cade foi morto? possível dispensar. Mas os rebeldes
PrimeIRO CIDADÃO * Não, milorde, nem está me deixam preocupado, pois se empenham

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Henrique
VI

em conquistar a Torre. Ide depressa Combatei pelo rei, a pátria, as vidas.


reunir gente em Smithfield, que eu me incumbo E agora, adeus; preciso retirar-me.
de mandar Mateus Goffe em vosso auxílio. (Saem.)

Ato IV: Cena VI]


Londres. Rua Cannon. SoLDADO * Jack Cade! Jack Cade!
Entra Jack Cade com seus partidários e bate com o bastão Cape: Prostrai-o morto!
no marco de Londres. (Matam-no.)
SMITH: Se este sujeito tiver juízo, nunca mais vos
Cape* O dono da cidade agora é Mortimer. E daqui, chamará de Jack Cade. A lição foi boa.
sentado no marco de Londres, eu Dick: Milorde, está formado um exército em
determino e ordeno que, neste primeiro ano Smithfield.
do-nosso reinado, a fonte que mija não verta Cape: Vamos dar-lhe combate. Mas primeiro ide
senão vinho por conta da cidade. Doravante será pôr fogo na ponte de Londres e, se
considerado traição darem-me outro puderdes, incendiar também a Torre. Vamos!
nome além do de Lorde Mortimer. Marchai!
(Entra um soldado, a correr.) (Saem.)

Ato IV: Cena VII


O mesmo. Smithfield. Jown (à parte) - Então vamos ter estatutos mordedores,
Alarma. Por um lado entra Cade com seu bando; por a menos que lhe arrancassem os dentes.
outro, cidadãos com as forças do rei, sob o comando de Cape: Doravante todas as coisas serão em comum.
Mateus Goffe. (Entra um mensageiro.)
Batem-se; os cidadãos são derrotados e Mateus Goffe morto. MEnsacEIRO * Milorde, uma presa! Uma presa!
Aqui está Lorde Say, que vendeu as cidades da
CADE* Assim, pessoal! Agora incumbam-se alguns França e que nos fez pagar no último imposto de
de demolir o palácio Savóia; outros, as escolas de guerra vinte e um quinze avós e um xelim por libra.
Direito. Destruí tudo! (Entra Forge Bevis com Lorde Say.)
Dick : Eu desejava fazer um pedido a Vossa Cave: Bem; ele vai ser decapitado dez vezes por
Excelência. isso. Ah, és tu, lorde seda, ou lorde sarja, ou de
Cape: Ainda que seja uma excelência, só por essa entretela? Encontras-te agora bem no alvo da nossa
palavra vais obtê-la. real jurisdição. Que poderás responder à minha
Dick: Desejo apenas que as leis da Inglaterra majestade, por teres entregue a Normandia a
emanem de vossa boca. Monsieur Basimecu, delfim da França? Torne-se do
Jown (à parte) - Puxa! Serão leis bem doentias, por teu conhecimento, diante dos presentes e, ainda,
causa da lançada que ele recebeu na boca e que ainda da presença de Lorde Mortimer, que eu sou a
não está cicatrizada. vassoura que vai varrer da corte as podridões como
SMITH (à parte) * Não é isso, John; serão leis tu. Corrompeste traiçoeiramente a mocidade do
fedorentas, porque ele tem o hálito de peixe podre. reino com a criação de uma escola de gramática; e
Cape: Já refleti. Será isso que dizes. Vamos! enquanto os nossos pais não dispunham de outros
Queimai todos os registros do reino! Minha boca vai livros além do giz e da talha, foste causa de se
ser, daqui por diante, o parlamento da Inglaterra. introduzir a imprensa e de se construir uma fábrica

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WiLLiIAM SHAKESPEARE

de papel, com prejuízo do rei, da coroa e da estrangeiras, diante de monarcas,


dignidade. Vamos provar em tua cara que tu te não pugnou por vós todos esta boca?
serves de pessoas que falam a toda hora em nome é Cape Ora! Quando foi que já deste um só golpe
verbo e outras palavras abomináveis, que ouvidos
nos campos de batalha?
cristãos não podem suportar. Criaste juízes de paz
SAY:
para intimarem as pessoas pobres a comparecerem
Alcançam longe as mãos dos homens grandes.
à sua presença, a fim de tratarem de questões de
Derrubei muitas vezes indivíduos
que elas não entendiam coisa alguma. Puseste-
que eu não via sequer, e os prostrei mortos.
as na prisão e as mandaste para a forca, por elas
George * Que sujeito covarde! Então tu os
não saberem ler, quando, só por isso, mereciam
atacavas por detrás, não é assim?
viver muito mais tempo. Tu montas em cavalos
Say * Se tenho as faces pálidas, a causa
ajaezados, não é verdade?
a achareis em ter eu por vós velado.
SAY - À que vem isso agora?
Cape Dai-lhe um bofetão para que elas tornem a
CapE: É que não devias pôr mantas em teu cavalo,
quando muita gente mais honesta do que tu anda ficar vermelhas.
de gibão e calça. Say - À força de ficar sentado, quando
Dick: E trabalham, também, de camisa, como eu, julgava causas de pessoas pobres,
por exemplo, que sou açougueiro. fiquei cheio de incômodos e doenças.
Say - Homens de Kent... Cape : Vamos dar-te caldo de cânhamo e fortificante
Drcx - Que estais dizendo de Kent? de machado.
Say : Nada; disse apenas que é bona terra, mala gens. Dick - Por que estás tremendo, homem?
Cape Levai-o logo! Levai-o logo! Está falando Say-É da paralisia, não de medo.
latim. Cape Vede como ele sacode a cabeça para o nosso
Say - Escutai-me primeiro e, após, levai-me lado, como quem dissesse; Esperem que eu ainda
seja para onde for. Nos Comentários, hei de haver-me com todos vós! Veremos se essa
César trata de Kent e diz que é a zona cabeça fica quieta na ponta de uma vara. Levai-o
mais culta de toda a ilha. A terra, boa, logo e decapitai-o!
porque de bens repleta; o povo, ativo, Say - Dizei em que vos fui causa de ofensa.
valente, liberal e muito próspero, Acaso cobicei riquezas, honras?
o que me faz confiar que sois piedosos. Dizei: minhas canastras regurgitam
Digo que não vendi a Normandia de ouro extorquido aos pobres? É suntuoso
nem o Maine; daria a própria vida meu guarda-roupa? A quem já dei motivo
para poder reavê-los. A justiça de alguma ofensa, para que me vote,
sempre foi distribuída com indulgência; com tanto empenho, à morte? Estas mãos se acham
as lágrimas e as preces me abalavam, limpas de sangue de inocentes vítimas;
jamais nenhum presente. Que podia neste peito jamais entrou a perfídia.
ter eu de vós tirado, que não fosse Oh! Deixai-me viver! E
para o rei sustentar, o reino e todos? CaDE (à parte): Essas palavras me despertam
Fiz grandes donativos a pessoas a compaixão; mas saberei resistir. Ele tem de
instruídas, por ver que o livro ea pena morrer, quando mais não seja, por haver sabido
me granjearam favor junto ao monarca, defender-se tão bem. Levai-o logo! Traz um
e também por ter visto que a ignorância demônio embaixo da língua; não fala em nome de
é maldição de Deus, e o saber, asas Deus. Vamos, levai-o logo,já o disse, e cortai-lhe
com que nos elevamos para o céu. imediatamente a cabeça. Depois, invadi a casa do
A menos que os espíritos diabólicos seu genro, Sir James Cromer, fazei-lhe o mesmo,
vos dominem, não tendes causa alguma e trazei-me a cabeça de ambos na ponta de duas
para tirar-me a vida. Em quantas cortes varas.

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Topos: Assim o faremos. negociar com os nossos chuços?


Say * Oh caros compatriotas! Se com vossas Cape: Neste instante.
orações fosse Deus tão obstinado, Topos: Admirável!
que seria de vós no transe extremo? (Voltam os rebeldes, com a cabeça de Lorde
Tende piedade, então; poupai-me a vida. Say e a de seu genro.)
Cape: Levai-o logo e fazei o que vos disse. Cape: Não é isto mais admirável, ainda? Que
(Saem alguns homens com Lorde Say.) eles se beijem, agora, já que eram tão afeiçoados,
O mais orgulhoso par do reino não ficará com a quando vivos. Agora os separai, para que eles não
cabeça nos ombros, a menos que me pague tributo. combinem a maneira de entregar mais alguma
Nenhuma donzela se casará, sem me entregar, cidade da França. Soldados, deixai para a noite o
primeiro, a virgindade. Todos os homens me serão saque da cidade, porque vamos passar pelas ruas
submissos ix capite, e nós mandamos e ordenamos a cavalo, levando à frente, por cetro, estas duas
que suas mulheres sejam tão livres quanto o cabeças. Fazei que se beijem em todas as esquinas.
coração o desejar e a língua puder manifestar-se. Marchar!
Drcx Milorde, quando iremos a Cheapside, para (Saem.)

Ato IV - Cena VII


O mesmo. Southwark. toda a França tremeu, com suas armas
Álarma. Entra Cade com todo o seu bando. nos ameacem e sigam seu caminho.
Topos: Deus proteja o soberano! Deus proteja o
CapE: Subi pela Rua do Peixe! Descei pela esquina soberano!
de São Magno! Matai e derrubai a quantos Cape: Como! Buckingham e Clifford, sois assim
encontrardes! Atirai-os ao Tâmisa! tão valentes? E vós, miseráveis campônios, acreditais
(Toque para parlamentar. Retirada.) no que eles estão dizendo? Quereis ser enforcados
Que barulho é esse? Quem teve a ousadia de dar com o perdão à volta do pescoço? Minha espada abriu
o toque de retirada ou de parlamentar, quando eu caminho através das portas de Londres, para que
mandei que prosseguissem na chacina? me abandonásseis no Cervo Branco em Southwark?
(Entram Buckingham e o velho Clifford, com forças.) Pensei que não haveríeis de depor as armas,
BuckINGHAM * enquanto não houvésseis conquistado vossa antiga
Aqui está quem te deu tantos incômodos. liberdade. Mas estou vendo que não passais de
Fica sabendo, Cade, que aqui viemos uns covardes, uns maricas, que se comprazem em
da parte do monarca, como enviados viver como escravos dos nobres. Eles, pois, que vos
para tratar com o povo que iludiste, quebrem o dorso com fardos, e nas próprias barbas
com poder de perdoar os que deixarem vos tomem as casas e na vossa vista vos violem as
teu partido e voltarem para casa. mulheres e filhas. Quanto a mim, vou tratar de
CLrrrorp Cidadãos, que dizeis? Cedereis logo, cuidar de uma só pessoa; e assim caia em todos vós a
aceitando o perdão que vos ofertam, maldição de Deus.
ou deixais que um rebelde vos conduza Topos: Ficamos com Cade! Ficamos com Cade!
para onde ireis morrer? Os que tiverem CLiFFORD:*
amor ao rei, levantem os barretes Filho de Henrique quinto é Cade, acaso,
e gritem: Deus proteja o soberano! para dizerdes que ficais com ele?
E os que ódio lhe tiverem, não prezando Decerto pretende ele conduzir-vos
seu pai Henrique quinto, ante o qual tanto até o centro da França, e dos mais simples

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WiLLIAM SHAKESPEARE

dentre vós transformar em conde ou duque? CADE (à parte) * Quem já viu pena mais fácil de
Não tem asilo ou casa onde se abrigue; soprar do que esta multidão? O nome de Henrique
viver não pode se não for saqueando quinto os leva a perpetrar centenas de ações más e
nossos bens e de quantos vos estimam. lhes dá ânimo para me deixarem desolado. Estou
Não vos envergonhais de que essas lutas percebendo que eles estão combinando em voz baixa
fratricidas ensejem aos temíveis para caírem sobre mim. Não há mais tempo a perder;
franceses, que vencestes tantas vezes, vou abrir caminho com a minha espada. (Alto)
ocasião de fazer a travessia
Apesar dos demônios e do inferno, passarei pelo
do mar e vos vencer? Em meio às lutas
meio de vós! Os céus e a honra sejam testemunhas
intestinas já os vejo tripudiando
de que não é por falta de coragem, mas pela traição
pelas ruas de Londres e chamando-vos
vil e ignominiosa de meus companheiros, que eu sou
a todos “Villageois!” É preferível
obrigado a rodar nos calcanhares.
que morram dez mil Cades miseráveis,
a virdes ser vassalos dos franceses. (Sai.)
BUCKINGHAM *
À França! À França! É tempo de ganhardes
tudo o que vos tomaram. Tende pena Como! Fugiu? Correi ao encalço dele.
da Inglaterra, que é a praia em que nascestes. Receberá de prêmio mil coroas
Henrique tem dinheiro; sois robustos quem levar para o rei sua cabeça.
e destemidos; Deus está conosco: (Saem alguns homens.)
não duvideis, portanto, da vitória. Soldados, vinde! Hei de arranjar um meio
Topos Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o de vos reconciliar com o soberano.
reie Clifford! (Saem.)

Ato IV - Cena IX
Castelo de Kenilworth. | a sentença, humildosos, ora aguardam
Trombetas. O Rei Henrique, a Rainha Margarida e de Vossa Majestade: ou vida, ou morte.
Somerset aparecem no terraço do castelo. Rer HenRIQUE:
Abra o céu suas portas sempiternas
Rer HenrIQUE* Já houve soberano que em seu trono para ouvir minhas graças e louvores.
terreno haja reinado com tão poucas Soldados, neste dia redimistes
alegrias como eu? Não tinha o berço as vidas e mostrastes toda a vossa
de todo abandonado, aos nove meses dedicação à pátria e a vosso príncipe.
de idade, quando fui coroado rei. Prossegui nesse mesmo estado de ânimo
Súdito algum mostrou tanto desejo que, por mais infeliz que seja Henrique,
de ser rei como eu tenho de ser súdito. podeis crer, não será jamais ingrato.
(Entram Buckingham e o velho Clifford.) Perdôo-vos e agradeço-vos. E agora,
BucxrncHAM * Saúde a Vossa Majestade! Trago despeço cada um para seus lares.
novas alvissareiras. Topos: Deus ampare o rei! Deus ampare o rei!
Rer Henrique: Dize, Buckingham, (Entra um mensageiro.)
foi preso o traidor Cade, ou tão-somente MensacEIRO * Permiti Vossa Graça que vos diga
fugiu para fazer-se ainda mais forte? que da Irlanda chegou o Duque de York
(Aparecem embaixo os partidários de Cade, com cordas ao com poderoso e forte contingente
pescoço.) de gallowglasses e de altivos quernes.
CrirroRrD: Fugiu, milorde; todos os seus homens Vem vindo para cá com grande séquito,
se renderam. De cordas ao pescoço, proclamando, por onde quer que passe,

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que suas armas visam tão-somente preciso para que ele os seus disperse.
retirar do teu lado Somerset, Somerser: Milorde,
a quem ele dá o nome de traidor. entrego-me à prisão de mui bom grado,
Rer HENRIQUE: como também a morte aceitaria,
Desta arte entre York e Cade eu me acho aflito, se de mim tanto a pátria reclamasse.
como barco que, após a tempestade, Rer HENRIQUE:
no início da bonança, por piratas Em caso algum usai de termos ásperos,
abordado se visse. Mal foi Cade que ele é altivo e detesta o falar duro.
repelido e seus homens dispersados, BuckINGHAM*
vem York em pé de guerra em sua ajuda. Podeis ficar trangúilo; hei de esforçar-me
Buckingham, vai depressa ao seu encontro para que tudo em vosso bem redunde.
e pergunta a razão dessa atitude. Rei HENRIQUE:
Mandarei para a Torre o Duque Edmundo, Querida esposa, entremos. Aprendamos
podes dizer-lhe. Somerset, pretendo a reinar; a Inglaterra vai ter causa
conservar-te em custódia o tempo apenas de maldizer meu infeliz reinado.
(Saem.)

Ato IV: Cena X


Kent. Jardim de Iden. Não cobiço crescer à custa de outrem,
Entra Cade. nem cumular riquezas ou desonras;
o que tenho me basta; é o suficiente
Cap: De que vale a ambição? Que valho eu próprio, para os pobres e toda a minha gente.
armado de espada e a ponto de morrer de fome? CADE (à parte) * Aí vem o dono do terreno, para
Há cinco dias me escondo nesta mata, sem me me pegar como se eu fosse uma besta perdida, que
atrever a sair dela, porque todo o país anda no houvesse entrado aqui sem sua licença. Ah, vilão!
meu encalço. Mas agora me encontro de tal modo Tencionas trair-me, para ganhares do rei mil coroas,
esfomeado, que embora tivesse de arrendar a por lhe levares a minha cabeça. Mas antes de nos
vida por mil anos, não me seria possível esperar separarmos, vou obrigar-te a comer ferro, como um
mais tempo. Por isso saltei o muro deste jardim, avestruz, e a engolir minha espada, como se fosse um
esperando comer uma pouca de erva, ou colher alfinete grande.
alguma salada, o que seria um ótimo refresco para Ipen * Quem quer que sejas, rude companheiro,
o estômago nesta época de calor. Não há que ver: não te conheço. Por que causa havia
salada ou celada, tanto faz; sempre me foi de grande de te trair? Não basta teres vindo
proveito. Quantas vezes a celada do meu capacete, como um ladrão e entrado em meus domínios
ou ele por inteiro, não impediu que me abrissem para roubar, após saltar o muro?
o crânio com umas alabardadas? E quantas vezes, Ainda por cima queres provocar-me
ainda, depois de uma caminhada longa, não me com esses palavrões desatinados?
serviu de quartilho o casco, para refrescar a língua? Cape: Provocar-te? Sim, pelo melhor sangue que
Pois vai servir-me, agora, de alimento. já foi vertido, e também dizer-te muita coisa na cara.
(Entra Iden, com criados.) Olha bem para mim. Há cinco dias que não como
IpEn * Quem trocara, senhor, este aprazível nada; mas, ainda assim, podes vir com os teus cinco
recanto pela corte tumultuosa? criados, porque se eu não vos deixar tão mortos
Esta modesta herança, recebida como um prego de porta, não quero que Deus me dê
de meu pai, vale tanto quanto um reino. mais capim para comer.

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WILLIAM SHAKESPEARE

Ipen - Não se dirá jamais, enquanto viva casa, por se ter evolado neste ponto a alma invencível
for a Inglaterra, que eu, Alexandre Iden, de Cade.
escudeiro de Kent, aceitei luta Ipen * Foi Cade que eu matei, esse monstruoso
desigual com um faminto miserável. traidor? Espada, só por esse feito
Fixa nos meus teus olhos esgazeados; eu te consagrarei e, quando morto,
vê se me obrigas a abaixar a vista. te porei sobre a minha sepultura.
Compara os nossos membros; és mais fraco. Este sangue jamais será apagado
Tua mão, em confronto com meu punho,
de tua ponta. Hás de trazê-lo sempre
parece um dedo; cabos de vassoura como manto de arauto, que anuncie
são tuas pernas junto destes troncos;
a glória hoje alcançada por teu dono.
meu pé pode lutar contra o conjunto
Cape Iden, adeus. Podes orgulhar-te de tua vitória.
de tua força, e se eu no ar levantasse,
Dize de minha parte ao condado de Kent que ele
tão-somente, este braço, já se achara
perdeu seu melhor homem, e exorta o mundo inteiro
cavada para ti a sepultura.
a se tornar covarde, porque, eu, que nunca tive medo
Mas em vez de palavras, que respostas
de ninguém, fui vencido pela fome, não pela bravura.
pomposas sempre obtém no mesmo estilo,
diga esta espada o que é vedado à língua. (Morre.)
Ipen - Quanto me ultrajas, pode o céu dizê-lo.
CapE* Por minha valentia, eis o mais completo
Morre, malvado, infame, maldição
campeão que já ouvi em toda a minha vida. Aço, se
entortares a ponta ou não picares em pedacinhos de quem te deu à luz. Do mesmo modo
este palhaço ossudo antes de voltares a dormir na que eu mergulhei a espada no teu corpo,
bainha, suplico de joelhos a Jove que te transforme queria mergulhar tua alma no inferno.
em cravo de ferradura. Vou te levar de rasto pelos pés,
(Batem-se; Cade cai.) dando-te por condigna sepultura
Oh! Estou morto! É a fome que me mata, nada mais. um muladar; após, hei de a cabeça
Se dez mil demônios me agredissem depois de eu cortar-te, monstruosa, e, triunfalmente,
ter recuperado as dez refeições perdidas, eu resistiria apresentá-la ao rei, deixando o corpo
abertamente a todos. Resseca-te, jardim! Doravante como grato repasto dos abutres.
fica sendo o cemitério de todos os moradores desta (Sai, com os criados, arrastando o corpo.)

Ato V: Cenal
Kent. Campo de batalha entre Darford e Blackbeath. Sancta Majestas, quem não te comprara,
De um lado, o acampamento do rei; por mais caro que fosses? Quem não sabe .
do outro, entra York com seu exército de irlandeses, com reger, deve aprender a ser mandado.
bandeiras e tambores. Só foi feita para o ouro esta mão forte.
Não posso transformar minhas palavras
York* Assim chega da Irlanda o Duque de York, em ações sem brandir a espada ou o cetro.
com o fim de reclamar os seus direitos E um cetro hei de possuir, tão certo como
e arrancar a coroa da cabeça ser eu dotado de alma, para nele
do fraco Henrique. Sinos, repicai! mandar gravar o lírio dos franceses.
Queimai, fogueiras! Avivais as chamas (Entra Buckingham.)
a fim de receberdes o legítimo, Quem vem chegando aqui? Buckingham, para
o grande soberano da Inglaterra. me perturbar? Mandou-o o rei, decerto.

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HenriquE VI

Dissimulemos, pois. Pode o meu soberano, o bom Henrique,


BuckxincHam: Se chegaste, York, exigir o meu filho primogênito,
com boas intenções, eu te saúdo. não, todos os meus filhos, porque sirvam
York: Humphrey de Buckingham, aceito as tuas como reféns de minha vassalagem.
saudações. Aqui te achas no caráter Hei de os mandar, tão certo como eu vivo.
de mensageiro, ou vieste por ti próprio? Tudo o que é meu: riquezas, armaduras,
BuckiNcHAM:* cavalos, terras, é de Sua Alteza,
Mensageiro de Henrique, nosso digno desde que Somerset a morrer venha.
soberano, com o fim de me informar ' BuckincHAM*
sobre o motivo deste movimento Louvo-te, York, essa branda submissão.
guerreiro em plena paz, e por que causa Vamos juntos à tenda de Sua Graça.
sendo tu, como eu sou, súdito dele, (Entra o Rei Henrique, com séquito.)
mau grado o juramento de obediência, Rer HENRIQUE-
sem sua permissão, reuniste forças Buckingham, contra nós não planeja York
consideráveis e tiveste o ousio nenhum mal, para andardes assim juntos?
de as trazer para perto de sua corte. York: Com humildade e toda submissão
Yorx (à parte) * Mal consigo falar, de tanta cólera. apresenta-se ora York a Vossa Alteza.
Arrancaria rochas, combatera Rer HenrIQUE-
com pedras, a tal ponto essas abjetas Então, por que reuniste tantos homens?
expressões me deixaram transtornado. York: Para expulsar esse traidor do reino,
Como Ajax Telamônio, empregaria Somerset, e lutar contra o monstruoso
em carneiros e bois a minha fúria. Cade, esse rebelde que, segundo
Sou de melhor estirpe do que orei; o que se anda a dizer, já foi vencido.
sou mais real do que ele até no modo (Entra Iden, com a cabeça de Cade.)
de pensar; mas preciso ter cautela. Ipen - Se uma pessoa simples e grosseira
Dissimulemos, pois, até que Henrique pode vir à presença do monarca,
fique mais fraco e minha força cresça. eis-me a cabeça de um traidor trazendo-vos,
(Alto.) Peço-te, Buckingham, que me perdoes a cabeça de Cade, por mim morto.
por não te responder todo esse tempo. Rer HENRIQUE-
Mas tinha a alma turvada de profunda A cabeça de Cade? Deus grandioso,
melancolia. Vou dizer-te a causa como és justo! Deixai-me ver o rosto
de eu ter trazido o exército comigo: sem vida de quem, vivo, me foi causa
para afastar do rei esse orgulhoso de tanta inquietação. Dizei, amigo,
Somerset, que perigo constitui se é certo que tu mesmo a decepaste?
para Sua Graça e, ainda, para o Estado. IDEN* Eu, sim, com permissão de Vossa Graça.
BuckINGHAM : É muita presunção de tua parte. Rer HenriQUE:
Mas se a razão for essa, comunico-te Como te chamas, e qual é teu posto
que o monarca cedeu sobre esse ponto: no Estado?
o Duque Somerset já está na Torre. Ipen“ Alexandre Iden é o meu nome,
York: Empenhas a palavra? Já está preso? um simples escudeiro do condado
BuckINGHAM * de Kent, mas devotado ao soberano.
Palavra de honra; o duque foi detido. BuckincHAM Se milorde o aprovar, fora acertado
York: Buckingham, nesse caso eu licencio criá-lo cavaleiro por tal feito.
minhas tropas. Soldados, agradeço-vos. Rer Henrique: Iden, ajoclha-te.
Dispersai. Procurai-me amanhã cedo (Iden se ajoelha.)
no campo de São Jorge; aí, então, o soldo Ora te levanta
tereis e tudo mais quanto quiserdes. já feito cavaleiro. Como prêmio,

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WiLLIAM SHAKESPEARE

te dou mil marcos e também licença Olá! Chamai meus filhos, para virem
para fazeres parte do meu séquito. servir-me de caução.
Ipen - Deus queira que Iden viva o suficiente (Sai um dos criados.)
para tal galardão, e viva apenas Sei que as espadas
para ser fiel a Vossa Majestade. eles hão de arrancar para livrar-me,
(Entram a Rainha Margarida e Somerset.) antes de permitirem que me prendam.
Rer HenRIQUE- RAINHA MARGARIDA
Vê, Buckingham, vem vindo Somerset Chamai Clifford aqui; venha depressa
com a rainha. Depressa, vai dizer-lhe dizer-nos se os bastardos deste duque
que se esconda do duque. estão em condições de ser fiadores
RarnHa MARGARIDA * Nem mil Yorkes do pai, do vil traidor.
o obrigariam a esconder o rosto; (Sai Buckingham.)
mas frente a frente, e altivo, há de encará-lo. York: Napolitana
York* Como assim! Somerset se encontra livre? de sangue maculado, desterrada
Nesse caso, York, os pensamentos solta de Nápoles, flagelo sanguinário
que há tanto se acham presos, e de acordo da Inglaterra! Meus filhos, todos eles
com o coração a língua deixa agora. de melhor nascimento do que tu,
Terei, então, de suportar a vista vão servir de caução do Duque de York.
de Somerset? Rei falso, por que causa Ai de quem se opuser a esse direito!
faltaste com a palavra, se sabias (Entram, por um lado, Eduardo e
que eu não suporto ultrajes dessa monta? Ricardo Plantageneta, com forças; por outro,
Dei-te o nome de rei? Rei nunca foste. também com forças, o velho Clifford e seu filho.)
Não pode governar nem ser o guia Ei-los que vêm chegando; agora é certo
das multidões quem tanto se revela fazerem bom trabalho.
destituído de brio e de coragem RarnHa MARGARIDA Eis também Clifford,
para se impor a um vil traidor como ele. para impedir que o pai eles afiancem.
Essa cabeça é indigna da coroa. CrirroRD (ajoelhando-se) -
Não foi feita essa mão para dar nome Saúde ao meu senhor e soberano!
a um cetro temeroso, mas apenas York: Clifford, eu te agradeço. Que notícias
para o bastão cingir de peregrinos. nos trazes? Não procures espantar-nos
Eu, sim, é que devera ter a fronte com esse olhar colérico. Nós somos
cingida por esse ouro, pois com o cenho teu soberano, Clifford. Ajoelha-te
fechado ou com um sorriso, como a lança novamente. Perdoamos-te esse equívoco.
de Aquiles, causo a morte ou ensejo a cura. CrirFORD"
Eis a mão que devera estar com o cetro, Eis o meu rei. Não houve equívoco, York.
para leis decretar e dirigi-las. Foi teu o engano, ao presumires lapso
Sai daí! Pelo céu, não continues de minha parte. Levem-no depressa
a mandar por mais tempo em quem foi criado para Bedlam. Terá ficado louco?
pelo céu para ser teu soberano. Rer HENRIQUE:
SOMERSET"* Sim, Clifford, um humor louco e ambicioso
Oh monstruoso traidor! York, cu te prendo o leva a, assim, se opor ao soberano.
por causa da traição que ora perpetras CLirFORD:
contra o rei e a coroa. Petulante É um traidor; para a Torre o mandai logo,
traidor, vamos, retrata-te de joelhos. e ordenai que a cabeça lhe decepem.
York: Queres que cu me ajoelhe? Então pergunta RainHa MARGARIDA*
a estes, primeiro, se eles gostariam Já está detido, mas não se submete;
que eu me dobrasse diante de quem fosse. diz que os filhos o afiançam sob palavra.

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Henrique VI

York: Não o fareis, meus filhos? se te falta a experiência? E se a possuis,


EpuaRrDO - Fá-lo-emos, nobre pai; se for bastante por que dela abusares? Que vergonha!
nossa palavra. Ouve a voz do dever, dobra esses joelhos
Ricarpo* Caso ela não baste, que, de velhos, se vergam para o túmulo.
farão nossas espadas o restante. SaLisBury : Milorde, refleti comigo acerca
Crirrorp : Que estupenda ninhada de traidores! da pretensão deste famoso duque,
York: Mira-te num espelho e dá esse nome e reputo, em consciência, Sua Graça
à tua imagem. Eu sou teu soberano; o legítimo herdeiro do real trono
tu, um arquitraidor. Ponde no poste da Inglaterra.
meus dois ursos valentes, para que eles, Rer HENRIQUE * Jurastes-me obediência,
só com o ruído das cadeias, possam não é verdade?
apavorar estes sabujos tímidos. SALISBURY* É certo.
Chamai depressa Warwick e Salisbury. RerHenrique: — Ecomo pensas
(Tambores; entram Warwick e Salisbury, com forças.) desobrigar-te desse juramento
CLirFoRD - São estes os teus ursos? Vou moê-los perante Deus?
de pancada e tirar-lhes as cadeias SALISBURY* Pecado inominável
para com elas amarrar o guarda, é jurar um pecado, mas pecado
caso tenhas coragem de trazê-los ainda maior é procurar mantê-lo.
para o meio da arena. Quem se julga obrigado por solene
RICARDO" Já vi muitas, juramento a matar qualquer pessoa,
muitas vezes cãezinhos presunçosos a roubar, a forçar a castidade
morder a mão de quem os segurava; de uma virgem sem mancha, a se apropriar
mas quando as garras do urso lhes calava da herança que coubera a uns pobres órfãos,
fundo no pêlo, o rabo logo enfiavam e a negar à viúva o seu direito,
por entre as pernas e a ganir fugiam. sem ter outras razões para tais crimes,
Papel igual é o que farás, no caso afora a alegação de um juramento?
de quereres te opor a Lorde de Warwick. RainHa MARGARIDA *
CrirroRrp : Sai, montão de ira, massa indigerível, Um traidor astucioso não precisa
deformado no corpo e nas maneiras. lançar mão de sofismas.
York: Já vamos aquecer-te. Rer HenRIQUE- Ide logo
CLiFFORD* Mas cuidado, dizer a Buckingham que venha armado.
porque não vos queimeis no próprio fogo. York Manda buscá-lo; chama os teus amigos;
Rer HENRIQUE: estou por tudo, agora: a morte ou o trono.
Por que motivo os teus joelhos, Warwick, CLrrroRD
não se lembraram de dobrar agora? Se os sonhos não nos mentem, a primeira.
“Vergonha a esses cabelos brancos, velho Warwick: Andarias melhor, se te deitasses
Salisbury, que assim guiar-te deixas para sonhar de novo; assim fugirias
por um filho lunático. Pretendes das borrascas do campo de batalha.
assumir o papel de bandoleiro CrrrroRp - Estou disposto a suportar maiores
no teu leito de morte e com teus óculos borrascas do que quantas tu pudesses
agruras procurar? Onde há lealdade? hoje desencadear, e isso pretendo
Onde há dedicação? Se está banida deixar escrito nesse capacete,
da fronte encanecida, como pode pois que até agora eu te conheço apenas
qualquer abrigo achar ainda na terra? pelo lema dos teus.
Queres cavar um túmulo, com o fito WARWICK * Bem, a divisa
de achar a guerra e, assim, manchar de sangue dos velhos Nevils, por meu pai usada,
tua honrada velhice? Por que és velho, um urso preso a uma nodosa estaca,

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WiLLIAM SHAKESPEARE

hoje me encimará o arnez altivo, os rebeldes e todos os seus cúmplices.


como cedro no cimo da montanha RicarDO'*
que em meio aos furacões conserva as folhas. Não mostreis tanto orgulho ao falar nisto,
Até da visão disso terás medo.
que hoje mesmo ceareis com Jesus Cristo.
CLrrroRD Pois hei de te arrancar do capacete
O Moço Crrrrorp
esse urso e espezinhá-lo com desprezo,
Não sabes nada, monstro subalterno.
sem que me faça mossa o guarda dele.
RICARDO Se não no céu, ireis cear no inferno.
O Moço CLirrorp-
Pai vitorioso, às armas! Esmaguemos (Saem por lados diferentes.)

Ato V: Cena II
Santo Albano. seres meu inimigo encarniçado.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Warwick. CrrrroRp - Eu poderia despender louvores
à tua valentia, se a não visse
WARWICK posta a serviço da traição, da infâmia.
Clifford de Cumberland, Warwick te chama! Yorx- Ela vai me amparar contra o teu gládio,
Se não evitas o urso, agora, ao ouvires por a ter sempre usado na defesa
a trombeta colérica, e os gemidos da justiça e do bem.
dos moribundos que o ar vazio ocupam, CLirrORD* Jogo a alma e o corpo.
Clifford, torno a dizer, vem para a luta! York: Parada formidanda. A postos, vamos!
Clifford de Cumberland, lorde orgulhoso (Batem-se. Clijord cai.)
do norte, Warwick está quase sem voz CLrrroRD : La fin couronne les oeuvres.
de tanto te chamar para o combate. (Morre.)
(Entra York.) York: À guerra te deu paz, achaste a calma.
Perdestes o cavalo, nobre lorde? Se lhe permites, Deus, paz a sua alma.
York: Matou-o a mão de Clifford destruidora; (Sai)
mas a minha lhe deu troco na altura, (Entra o moço Clifford.)
transformando em carniça para as gralhas O Moço Crrrrorp':
e os corvos o corcel que ele apreciava. Vergonha e confusão! Debandam todos!
(Entra o velho Clifford.) Nasce a desordem do pavor, ferindo
WARWICK * quem amparar devera. Ó Guerra, filha
Chegou a hora de um de nós, ou de ambos. do inferno, transformada em instrumento
York: Warwick, busca outra caça; deixa-me esta, da cólera dos céus, lança nos frios
que eu lhe vou dar o golpe derradeiro. peitos dos nossos homens os carvões
Warwick: Faze-o, então, nobremente; é por um ardentes da vingança! Não permitas
[trono que nossa gente fuja. Quem à guerra
que te bates. Afirmo-o, com a certeza se consagra, descuida de si próprio;
que tenho de vencer: é pesaroso, só por acaso o egoísta é valoroso,
Clifford, que eu te abandono sem combate. jamais por natureza.
(Saí) (Vê o corpo do pai.)
CLiFFORD* Acabe o mundo
Que estás vendo, York, em mim? Por que paraste? desprezível! As chamas prometidas
York: Tua viril figura poderia do último dia a terra e o céu confundam!
deixar-me por ti preso, se não fosse Abafe a universal trombeta os ruídos

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Henrique VI

particulares e as mesquinhas vozes. conserva; coração, prossegue iroso.


Querido pai, estava destinado Pode o padre rezar pelo inimigo;
que vivesses em paz na mocidade, a um rei cumpre matar, dar o castigo.
que usasses a argentina vestimenta (Alarma; movimento de tropas. Entram o Rei Henrique,
da velhice experiente, e, assim, viesses a Rainha Margarida e outras pessoas, em retirada.)
a acabar em batalha desalmada RarnHA MARGARIDA
Os teus dias de calma e de respeito? Que lerdeza, senhor! Tende mais vida!
à vista deste quadro transformou-se-me Rer HENRIQUE
em pedra o coração, que, enquanto vida Ninguém escapa ao fado, Margarida.
me restar, ficará duro e insensível. RainHa MARGARIDA *
York os velhos não poupa; o mesmo aos filhos Afinal? Nem fugis, nem vos dispondes
farei dos inimigos. Como o orvalho a lutar. É preceito da coragem,
sobre o fogo, serão virgíneas lágrimas sim, da sabedoria, do sentido
para mim, e a beleza que por vezes de defesa, saber perder terreno,
abranda a tirania, para a minha tentando a salvação de qualquer jeito;
cólera, em chama, vai ser óleo e cera. e ora há um jeito, somente: a retirada.
Nada terei que ver, daqui por diante, (Sinal de alarma, ao longe.)
com a compaixão. Se eu me encontrar com um filho Se fordes preso, adeus tudo que temos!
da casa de York, o deixarei em postas Mas se tivermos sorte e conseguirmos
como a doce Medéia fez com Absirto. fugir, o que faremos facilmente,
À crueldade me vai deixar famoso, se não negligenciardes, chegaremos
daqui por diante. Vamos, nova ruína a Londres, onde somos estimados
de um solar tão antigo. e onde reparo se fará depressa
(Carrega o corpo.) na brecha que sofreu nossa fortuna.
Como Enéias (Torna a entrar o moço Clifford.)
outrora carregou o velho Anquises, O Moço Crirrorp
nos meus ombros viris eu te carrego. Se o coração não me pressagiasse
Mas Enéias levava um fardo vivo, maiores infortúnios, eu pudera
mais leve do que as minhas amarguras. blasfemar, sem pedir-vos que partísseis.
(Sai) Mas importa fugirdes; desenfreada
(Entram Ricardo e Somerset, lutando; Somerset é morto.) balbúrdia o coração dos nossos homens
RicarDO Fica-te aí! domina por completo. Fugi logo,
Debaixo deste escudo desprezível se quereis escapar. Ainda haveremos
de uma cervejaria, no castelo de viver para o dia da ventura,
de Santo Albano, Somerset, morrendo, ao imigo cedendo a sorte dura.
dá fama à feiticeira. Espada, a têmpera (Saem.)

Ato V - Cena II
Campo perto de Santo Albano. se esquece dos embates e de todas
Alarma. Retirada. Toque de clarins; as contusões do tempo e, como um bravo
depois, entram York, Ricardo, Warwick e soldados, com na flor da idade, sabe achar recursos
tambores e bandeiras. em qualquer ocasião? Não poderemos
considerar feliz esta jornada,
York: De Salisbury quem me dá notícias, nem dizer que ganhamos um só palmo,
o leão idoso que na sua cólera se ele, acaso, morreu.
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WILLIAM SHAKESPEARE

RICARDO * Meu nobre pai, os nossos inimigos, porque sempre


hoje o ajudei três vezes a montar, com muita rapidez se refizeram.
três vezes o amparei quando caído, York É certo, nossa segurança exige
três o tirei do campo, suplicando-lhe que lhes vamos no encalço, pois, segundo
que se poupasse; mas sempre ia achá-lo me disseram, o rei foi para Londres
onde era grande o risco. Qual vistoso a fim de convocar o parlamento.
tapete em casa pobre, era a vontade Persigamo-los, antes que eles possam
naquele corpo fraco e envelhecido. enviar as circulares. Lorde de Warwick,
Mas, com toda a nobreza, ei-lo que chega! que opinais? Correremos atrás deles?
(Entra Salisbury.) WarwICK* Atrás deles? De forma alguma; à frente
SALISBURY * Por minha espada, hoje lutaste bem. deles, se for possível. Por minha honra,
Pela missa, nós todos. Agradeço-vos, meus senhores, o dia foi glorioso.
Ricardo. Só Deus sabe quanto tempo Há de ficar famosa esta batalha
ainda eu tenho de vida; mas três vezes, de Santo Albano, em que York é o vencedor.
hoje, ele quis que vós me protegêsseis Sigamos para Londres, para a festa!
contra a morte iminente. Meus senhores, Se outras horas contássemos como esta!
não é bastante terem debandado (Saem.)

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HENRIQUE VI - PARTE III

Shakespeare
Introdução (David Bevington)

Henrique VI, Parte III, deve ser considerada não apenas como parte da primeira
série de quatro peças históricas de Shakespeare, mas também como uma peça por si só,
presumidamente vista pela primeira vez por uma plateia Elisabetana que, apesar de
cônscia de um contexto mais amplo, testemunhou essa ação dramática como um evento
independente. Porque 3 Henrique VI representa quase que a fase militar inteira da
guerra civil, ela é a mais recheada e agitada peça da série. Historicamente, ela cobre o
período das batalhas de Wakefield e a Segunda Santo Albano (1460-1461) até as
decisivas vitórias Yorkistas em Barnet e Tewkesbury (1471). Essas e outras batalhas são
de fato representadas no palco, como um tipo de comunicação simplificada que faz uso
eficiente de um limitado número de atores. O método convencional de representar os
conflitos armados consistia de gritos de guerra e incursões (isto é, ataques repentinos e
investidas de soldados armados em resposta a um sinal de ataque), empregando quantos
soldados a companhia teatral poderia reunir, com música marcial e várias entradas e
saídas em sucessões rápidas. As batalhas são, geralmente, precedidas por presunçosas e
floridas trocas retóricas, flytings [ritual de trocas de insultos poéticos], entre os
combatentes. O contexto militar foca nas confrontações heroicas entre líderes
individuais. A representação de batalhas frequentemente utiliza as capacidades físicas
do teatro Elisabetano, como aparições “nos muros” de alguma cidade (isto é, na galeria
superior), arquitetando operações, cercos e afins. Há abundância de mortes
espetaculares em 3 Henrique VI, frequentemente representadas como rituais
abomináveis. Rutland é arrastado de seu tutor pelo implacável Clifford, e Ricardo de
York é zombado com uma coroa de papel da Rainha Margaret; Clifford morre com uma
flecha em seu pescoço, e Warwick, o criador de reis, morre lamentando a vaidade de
toda realização terrena; o Rei Henrique morre na Torre, um prisioneiro indefeso nas
mãos de Ricardo de Gloucester. A peça é, talvez, confusa ao leitor, mas ela respira com
energia violenta no palco.

Simbólico do caos é a falta de um único personagem central. O título da edição


in octavo de 1595 combina as mortes de Ricardo de York e do Rei Henrique como os
episódios mais memoráveis da peça; e nesse foco dual nós vemos o motivo dominante
da reciprocidade, uma morte Yorkista por uma Lancastriana. Esse padrão continuará até
Ricardo III, pois 3 Henrique VI termina com um número agourento de projetos
inacabados; Clarence, por exemplo, finalmente vê que ele deve morrer como
compensação pela sua parte no massacre de Eduardo, o Príncipe Lancastriano de Gales.
Assim como as mortes são balanceadas e contrastadas uma com a outra, a ação militar
também oscila para trás e para frente. Em certos momentos, ambos o Rei Henrique VI e
Eduardo IV estão aprisionados. A roda da fortuna eleva-se para um lado e depois para o
outro. As alianças políticas alteram a balança de poder de uma forma e depois de outra.
A ação é dolorosamente indecisa, a carnificina levando inutilmente a apenas mais
violência. O espetáculo é tornado infinitamente mais agonizante pelo reconhecimento
que tudo isso é um conflito de família. Os plebeus, consequentemente, sofrem:
testemunhamos à angústia de um pai que matou seu filho acidentalmente em batalha e
um filho que matou seu pai (2.5) na batalha de Towton, onde, historicamente, 24.000
pessoas morreram em um dia. O povo, raramente visto, não cria mais os problemas
políticos (como o fazia anteriormente em 2 Henrique VI) mas é mera vítima, esperando
pacientemente por um final. Um emblema recorrente para expressar a total futilidade
dessa guerra é o de um montículo de terra [molehill]. York é coroado zombeteiramente
antes de sua execução em um monte de terra, e o Rei Henrique retira-se do caos de
Towton para um monte de terra para meditar sobre a vida contemplativa feliz que lhe
foi negada. O monte de terra sugere à irônica perversidade da busca humana por poder
mundano, por meio do qual aqueles que possuem o poder são incapazes de exercê-lo
com sabedoria e àqueles que queimam de ambição são negadas oportunidades legítimas.

Um sinal claro do caos moral ao longo dessa peça é o fenômeno do quebrar de


juramentos. Na cena de abertura, Ricardo de York aceita sob juramento uma obrigação
de honra a Henrique VI como seu rei, em troca de ser nomeado rei depois da morte de
Henrique, mas ele em breve discute com seu filho sobre as bases enganosas as quais o
juramento não foi realizado ante “um verdadeiro e lícito magistrado” (1.2.23). Esse
habilidoso equívoco, antecipado nas perfídias do Duque de Suffolk em 1 e 2 Henrique
VI, nos prepara para as perfídias posteriores de Ricardo de Gloucester em Ricardo III.
(Nas fontes de Shakespeare, especialmente Edward Hall, o Parlamento tem um
importante papel em desenvolver o compromisso entre York e Henrique; Shakespeare
mostra-nos, em vez disso, um acordo pessoal feito entre dois líderes competidores na
base da vontade privada e na afirmação do poder militar – um acordo que é facilmente
quebrantável nas mesmas bases pragmáticas.) O Rei Henrique também é,
surpreendentemente, perjuro ao impedir a seu próprio filho a coroa concedida a este
como um direito de nascimento da sagrada lei e do costume. Lewis, o Rei Francês,
justifica sua mudança de aliança, do Rei Henrique para os Yorkistas com base na
simples conveniência. Clarence perjura suas promessas, feitas a seu irmão Eduardo, e
muda de lado na guerra, ofendido com a perfídia de Eduardo, ao ter renunciado a sua
intenção de casar-se com a meia-irmã do Rei Francês. Em breve Clarence estará de
volta ao campo Yorkista, agora traindo às promessas que fez aos Lancastrianos.
Warwick, o criador de reis, perjura suas promessas a Eduardo, porque este solapou à
missão diplomática de Warwick em França. Onde, de fato, a verdade e a justiça
residem, agora que a Inglaterra é governada por dois reis que são ambos perjuros? As
pessoas comuns sentem esse dilema, como revelado nas atitudes dos dois jogadores;
eles capturam Henrique, a quem foram, outrora, leais porque eles estão agora
“juramentados com toda lealdade” a Eduardo, mas estariam novamente sujeitos a
Henrique “Se ele estivesse sentado como o Rei Eduardo está” (3.1.70, 95). A realidade
política e militar governa a ética política; o governante reconhecido é aquele que pode
estabilizar o controle.

Outro signo da decadência moral nessa peça é a dominância do propósito


vingador. 3 Henrique VI, de fato, pode ser vista como um tipo de peça de vingança, na
qual Ricardo de Gloucester finalmente emerge como o vingador consumado em uma
sociedade de vingadores. Na confrontação de abertura entre Yorkistas e Lancastrianos,
Warwick insulta os Lancastrianos com o fato deles terem perdido muitos pais na ação
militar recente de Santo Albano; os pais de Northumberland, Westmorland e Clifford,
todos caíram naquela batalha. (Historicamente, Westmorland e Clifford parecem ser o
mesmo homem, do mesmo pai, o Velho Clifford de 2 Henrique VI; Shakespeare nos dá
mais filhos órfãos de pais nessa divisão de um homem em dois.) Os filhos, claro, juram
vingança. Clifford, renomado “o açougueiro” por sua crueldade, demanda um preço
terrível pela morte de seu pai, através do massacre do jovem e indefeso Rutland e a
execução zombeteira do pai de Rutland, o Duque de York. Os filhos sobreviventes de
York vingam-se, não apenas em Clifford, mas também no Rei Henrique, seu filho
Eduardo e muitos outros. Warwick volta-se contra Eduardo de York, mais para vingar
um insulto do que para ajudar Henrique, sendo derrubado pelos Yorkistas em Barnet
(4.2). O padrão implacável de um olho por um olho eventualmente toma um significado
providencial, especialmente quando visto da percepção tardia proporcionada por
Ricardo III, mas, conforme experienciamos a peça no teatro, a realidade é,
principalmente, de muita brutalidade e horror.

Como nas peças anteriores da série, os relacionamentos entre homens e mulheres


ecoam à discórdia da nação Inglesa e contribuem, consecutivamente, para mais
discórdia. Margaret de Anjou, a defensora desapiedada da reivindicação de seu filho
Eduardo ao trono, age com autoridade cada vez mais masculina, enquanto seu ineficaz
marido Henrique VI abdica da responsabilidade. Ela é o general Lancastriano,
habilidoso na batalha e frequentemente vitorioso, implacável na vingança. Essa inversão
dos papéis masculinos e femininos é refletida no lado Yorkista pelo desastroso
casamento de Eduardo IV com Lady Elizabeth Grey. Ela é uma viúva sem posição
familiar ou poder político para trazer ao casamento – nada, de fato, exceto à ambição
dela em nome de seus parentes. A atração de Eduardo por ela é carnal e imprudente.
Para piorar ainda mais, Warwick negocia nesse momento um acordo de casamento
altamente favorável para Eduardo com a meia-irmã do Rei da França. Eduardo IV,
assim, inconscientemente imita à obstinação de seu correspondente, Henrique VI (cuja
escolha de Margaret de Anjou em 1 Henrique VI não foi menos catastrófica). O
desprezo de Eduardo VI em relação a Warwick leva à deserção deste poderoso líder e,
através dele, a deserção do irmão de Eduardo, Clarence, que sucumbiu aos charmes da
filha de Warwick, Isabel. E, ao passo que 1 Henrique VI ao menos contrabalança à
devoção de Henrique com o exemplo positivo de Lorde Talbot, 3 Henrique VI falha em
descobrir tal personagem central nobre. (Com efeito, somos brevemente introduzidos
aos jovem Conde de Richmond, que será Henrique VII, mas somente como um relance
de um futuro esperançoso.) A quase total falta de qualquer personagem efetivamente
virtuoso dá a 3 Henrique VI seu humor predominantemente desiludido e impotente. Os
heróis foram destruídos.

Apenas Ricardo de Gloucester parece lucrar com o declínio da Inglaterra. Como


seu pai, York, sua estratégia foi a de deixar a Inglaterra esfolar-se na vulnerabilidade
anárquica. Uma vez que o pai York desaparece de cena, o jovem e malevolente
personagem de Ricardo torna-se cada vez mais aparente. Não mais meramente um dos
bravos filhos de York, Ricardo é o novo gênio da discórdia. Como o mais jovem dos
três filhos que irá, eventualmente, suplantar seus irmãos mais velhos e os direitos de
herança deles, Ricardo é o exemplo supremo da inversão em um mundo virado de
ponta-cabeça. Seu brilhante solilóquio em 3.2 é, frequentemente, incluído nas
performances de Ricardo III, porque fornece ricas pistas sobre seu personagem
emergente: ele é ambicioso, cruel, deformado de nascença, e, sobretudo, um enganador
consumado. À plateia ele gaba-se de sua habilidade, reivindicando que, como um
hipócrita, ele irá exceder os talentos combinados de Nestor, Ulisses, Sinon, Proteu e
Maquiavel. A autoconfiança soberba é impressionante, a cruel consistência admirável,
apesar de desprezível. Em um segundo solilóquio, praticamente no final da peça, tendo
já executado Henrique VI e seu filho Eduardo, Ricardo confidencia à plateia que
Clarence será a próxima vítima. E, apesar de Ricardo jurar fidelidade ao seu jovem
sobrinho, Eduardo, o príncipe da coroa Yorkista, na celebração da vitória Yorkista na
qual a peça termina, nós sabemos que o beijo de paz de Ricardo é tão confiável quanto o
beijo de Judas em Cristo (veja 5.7.33-4). Todos aqueles que ficarem entre Ricardo e o
trono serão eliminados. Claramente, os anseios devotos para a paz expressados pelo Rei
Eduardo IV serão cruelmente violados.
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Personagens
Rer Henrique VI. Jorn Hume
sacerdotes.
HumeHrey, Duque de Gloster, seu tio. SouTHWELL
CarpEAL BEAauroRT, Bispo de Winchester, tio-
avô do rei. BoLINGBROKE, feiticeiro.
RicaRDO PLANTAGENETA, Duque de York. Um espírito, invocado por ele.
Tomás HoRNER, armeiro.
EDUARDO
PerER, seu aprendiz.
seus filhos. Escrivão DE CHATHAM,
RicarDO
PrEerEITO DE SANTO ÁLBANO.
SIMPCOX, impostor.
DuQUE DE SOMERSET. Dois assassinos.
DuQUE DE SUFFOLK. Jack CApE, rebelde.
Duque DE BUCKINGHAM.
LorpE CLIFFORD. Jorce Bevis.
O Jovem CLirrroro», seu filho. Joun HoLLanD.
CONDE DE SALISBURY. O carniceiro Drcx, adeptos de Cade.
ConDE DE WARWICK. o tecelão SMITH,
Lorpe ScaLES, governador da Torre. MICAEL, etc.
Srr HuMPHREY STAFFORD.
ALEXANDRE ÍDEN, nobre de Kent.
WILLIAM STAFFORD, seu irmão.
MARGARIDA, esposa do Rei Henrique.
LorpeE Say.
ELgonor, Duquesa de Gloster.
Um Capitão de navio, um patrão e seu ajudante.
MARGERY JOURDAIN, feiticeira.
VALTER WHITMORE. A mulher de Simpcox.
SIR JOHN STANLEY. Nobres, senhoras da nobreza e séquito; arauto,
Dois gentis-homens, prisioneiros juntamente com peticionários, um bedel, xerife e oficiais; cidadãos,
Suffolk. aprendizes, falcoeiros, guardas, soldados,
Vaux. mensageiros, etc.
Mareus Gore.
Cena
Em várias partes da Inglaterra
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Ato T- Cena I
Londres. Uma sala do palácio. me sugere e a alegria transbordante
Toque de trombetas; depois, de oboés. Entram, por um lado, me dita ao coração reconhecido.
o Rei Henrique, o Duque de Gloster, Salisbury, Warwick Rer HENRIQUE
eo Cardeal Beaufort; por outro, a Rainha Margarida, É bela de extasiar; mas seu discurso
conduzida por Suffolk; seguem-se York, Somersei, gracioso, as expressões apresentada
Buckingham e outros. com toda a majestade da prudência,
o espanto me sufocam, provocando-me
SUFFOLK* Ào partir para a França, fui por Vossa lágrimas de alegria. É indescritível
Majestade Imperial encarregado, a ventura que o peito ora me agita.
como procurador de Vossa Graça, Lordes, com voz alegre saudai todos
de esposar a Princesa Margarida o meu amor.
para Vossa Excelência. E assim, na muito Topos: Que tenha vida longa
famosa e antiga Tours, sendo presentes Margarida, a ventura da Inglaterra!
os Reis da França e da Sicília, os Duques RarnHa MARGARIDA * À todos agradeço.
de Orleans, Calábria, de Alençon, Bretanha, (Fanfarras.)
doze barões, vinte colendos bispos SurroLk: Milorde protetor, se for do agrado
e sete condes, pude, enfim, pôr termo de Vossa Graça, os itens aqui se acham
à minha comissão e a desposei. do contrato da paz em que acordaram
Agora, humildemente, dobro os joelhos nosso monarca e o Rei Carlos da França
e, à vista da Inglaterra e de seus pares, durante o prazo de dezoito meses.
deponho o meu direito sobre a rainha GrostER* “Imprimis, fica assentado entre o Rei da
França, Carlos, e William de la Pole, Marquês de
em vossas mãos, que a essência representam
do que eu era, tão-só, a grande sombra. Suffolk, embaixador do Rei Henrique da Inglaterra,
que o dito Henrique desposará Lady Margarida,
Nunca fez um marquês tão feliz mimo;
filha de Reignier, Rei de Nápoles, Sicília e Jerusalém,
nenhum rei jamais viu tão linda esposa.
ea coroará Rainha da Inglaterra antes do dia 30 do
Rer HeNRIQUE-
próximo mês de março. Item, que o ducado de Anjou
Levanta-te, Suffolk. Sede bem-vinda,
e o condado de Maine ficarão livres de qualquer
Rainha Margarida. É-me impossível
obrigação e serão entregues ao rei seu pai...”
dar maior prova de afeição do que este
(Deixa cair o papel.)
beijo afetuoso. Oh Deus, que me criaste! Rei HENRIQUE:
dai-me, também, um peito agradecido, Tio, que estais sentindo?
pois nesta face linda me concedes GLOSTER* Meu gracioso
à alma extasiada um mundo de venturas senhor, peço perdão, mas um mal súbito
terrenas, se vier amor recíproco me ataca o peito e a vista me perturba,
unificar os nossos pensamentos. de todo me impedindo ora a leitura.
RarnHa MARGARIDA * Rer HENRIQUE:
Grande Rei da Inglaterra e meu gracioso Tio de Winchester, por obséquio, lede.
senhor, das conferências que já tive CARDEAL“ “Item, ficou, ainda, decidido entre
convosco em pensamento, assim de dia ambos que os ducados de Anjou e Maine ficarão
como de noite, em sonhos e acordada, livres de qualquer obrigação e serão entregues ao rei
em meio aos cortesãos ou a sós comigo, seu pai, e que ela será enviada ao Rei da Inglaterra à
me vem a audácia, meu estremecido custa deste, sem levar dote algum.”
monarca, de saudar meu rei em termos Rer HenrIQUE-
desornados, tal como o entendimento Agradam-nos os termos. Ajoelhai-vos,

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Henrique VI

Lorde Marquês. Cingindo-vos a espada, dos livros da memória, os caracteres


nós vos criamos o primeiro duque riscando que a alta fama vos conservam,
de Suffolk. Primo de York, aliviamos derrubando as colunas erigidas
Vossa Graça do peso da regência na França conquistada e desfazendo
da França até que expirem os dezoito tudo, como se nada houvesse sido.
meses estipulados. Obrigado, CARDEAL: Sobrinho, a que vem todo esse discurso,
meu tio Winchester, Gloster, Somerset, essa peroração com tais rodeios?
Buckingham, York, Warwick e Salisbury; A França é nossa, e nossa há de ser sempre.
meu reconhecimento a todos pela GLosrer* Sim, meu tio; sê-lo-á, se a conservarmos;
recepção feita à minha real esposa. mas agora é impossível que o façamos.
Vamos logo cuidar da cerimônia Suffolk, o novo duque, que ora o reino
de sua coroação. Tratemos disso. dirige como quer, deu os ducados
(Saem o rei, a rainha e Suffolk.) de Anjou e Maine ao pobre soberano
GLosrER : Valentes pares da Inglaterra, fortes Reignier, cuja aparência alucinante
pilares da nação, o Duque de Humphrey não condiz com a pobreza de sua bolsa.
desabafa convosco seus cuidados, SALISBURY * Pela morte daquele que por todos
vossos cuidados, sim, de toda a pátria. se ofereceu, esses condados eram
Foi só para isso, então, que o mano Henrique da Normandia a chave. Por que chora,
gastou a mocidade, o ouro e seu povo porém, Warwick, o meu valente filho?
nas guerras que empreendeu? Não dormiu ele, WaRwICK* De tristeza, porque estarão perdidos
tantas vezes, no campo, exposto a todas para sempre. Se fosse ainda possível
as intempéries, frios e canículas, reconquistá-los, não derramaria
para fazer valer o seu direito lágrimas, porém sangue com esta espada.
como herdeiro legítimo da França? Anjou e Maine! Eu próprio os conquistei;
E, ademais, meu irmão Beaufort não teve estes braços ganharam essas terras.
de empregar toda a sua inteligência E ora vão entregar só por palavras
a fim de conservar pela política as cidades que o sangue me custaram?
o que Henrique obtivera? E vós, bravo York, Mort Dieu!
Buckingham, Salisbury e Somerset, York: Pereça sufocado o novo duque
não adquiristes fundas cicatrizes de Suffolk, por ter, assim, turvado
na França e Normandia? E eu, porventura, a honra da ilha guerreira. Mais depressa
com meu tio Bedford e os mais provectos me torturara a França e me arrancara
conselheiros do reino, não ficávamos do peito o coração, do que obteria
de manhã até à noite no conselho, que esse pacto eu firmasse. Nunca soube
considerando todas as maneiras senão que os reis ingleses recebiam
de trazer os franceses, sempre, e a França com as esposas enormes somas de ouro.
na mesma sujeição? Sua Grandeza, E agora o Rei Henrique o seu despende
quando criança, em Paris não foi coroado, para casar com quem não possui nada!
a despeito do imigo? Terão sido Grosrer: Pilhéria fina, é certo, e nunca ouvida,
baldadas essas honras e os trabalhos, que Suffolk pedisse nada menos
a conquista de Henrique, a vigilância do que quinze avos para fazer foce
de Bedford, vossos feitos nas campanhas às despesas com a viagem da rainha.
e assim nossos alvitres e conselhos? Ficasse ela na França e lá morresse
Oh pares da Inglaterra! É vergonhoso de fome, antes de ter...
semelhante tratado, e o casamento CARDEAL"
uma fatalidade que vos priva Falais com muito ardor, Milorde Gloster.
de todo brilho, o nome vos apaga À nosso rei aprouve o que foi feito.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

GLosTER* No caso de ser Gloster demitido,


Lorde Winchester, conheço-vos por dentro; ele será o protetor.
não são minhas palavras que vos causam BuckincHAM: Serás
desagrado; sou eu que vos conturbo. tu, ou eu, Somerset, em que se oponham
Manifestai logo o ódio. Nessas faces, a isso o Duque de Gloster e o cardeal.
orgulhoso prelado, eu leio a cólera. (Saem Buckingham e Somerset.)
Se eu não me for embora, iniciaremos SALISBURY *
de novo nossa velha altercação. Foi-se o orgulho; a ambição lhe vai no encalço.
Senhores, passai bem. Após meu trânsito, Enquanto eles só tratam de si próprios,
lembrai-vos desta minha profecia: a nós cumpre cuidar do bem da pátria.
vamos perder a França fatalmente. Nunca vi comportar-se o Duque de Humphrey
(Sai) a não ser como um nobre gentil-homem;
CARDEAL“ O protetor se retirou furioso. mas, ao contrário, vi bastantes vezes
É sabido que ele é meu inimigo, este altivo cardeal — que mais parece
ou melhor, de nós todos e, receio-o soldado do que padre, sempre cheio
bastante, pouco amigo do monarca. de si mesmo e insolente — sem propósito
Considerai, senhores: pelo sangue, jurar como um rufião e fazer coisas
ele é o primeiro herdeiro da coroa. de todo em todo indignas do alto nome
Se este consórcio houvesse dado a Henrique de um regente do império. Caro filho
um grande império e os reinos opulentos Warwick, meu refrigério na velhice,
do Oriente, é quase certo que ele achara tua glória, a lhaneza que te é própria,
razões para mostrar-se desgostoso. bem como a diligência no governo
Vede bem, meus senhores, sem que suas de tua casa, há muito te granjearam
frases alambicadas vos seduzam: o favor dos comuns, entre os quais o único
prudentes sede em tudo e circunspectos. que contigo se iguala é o Duque de Humphrey.
O povo baixo o adula e Humphrey lhe chama, Mano York, o teu papel na governança
o bom Duque de Gloster. Batem palmas, da Irlanda, conduzindo os habitantes
gritando em altas vozes: Jesus guarde à civil disciplina, os altos feitos
nosso bom Duque de Humphrey! Todas essas que na tua regência realizaste
frases aduladoras, meus senhores, no coração da França, te tornaram
receio-o muito, podem vir a dar-nos temido e honrado, a um tempo, dos do povo.
um protetor realmente perigoso. Reunamo-nos, agora, só com o fito
BuckiNGHAM Por que dirigir ele o nosso rei, do bem público, e esforços envidemos
se já tem este idade de orientar-se? a fim de reprimir e aniquilar
Primo de Somerset, a mim aliai-vos, o orgulho do cardeal e de Suffolk,
e em pouco tempo todos nós, com o auxílio e a harta ambição de Somerset e desse
do Duque de Suffolk, derrubaremos Buckingham, amparando o mais possível
do seu lugar o altivo Duque de Humphrey. o bom Duque de Gloster, enquanto ele
CARDEAL: Esse grave negócio exige urgência; trabalhar tendo em vista o bem da pátria.
vou procurar o Duque de Suffolk. WARWICK *
(Sai) Que Deus ampare Warwick, enquanto sua
SomERsET- Primo Buckingham, embora o orgulho pátria ele amar e o bem da causa pública.
de Humphrey e sua posição nos sejam Yorx (à parte):
motivo de desgosto, não percamos Diz York o mesmo, e sabe por que o faz.
de vista esse cardeal cheio de empáfia. SALISBURY *
Sua insolência é mais intolerável Sem perder tempo, então, sejamos dignos
do que todos os príncipes reunidos. dos nossos manes.

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WARWICK“ Nosso Maine foi-se, no meu sangue e na minha carne queimam


querido pai! Perdemos o ducado assim como o fatal tição de Altéia
que Warwick havia ganho e poderia no peito do senhor de Calidona.
ter conservado enquanto fosse vivo. Anjou e Maine entregues aos franceses!
Pensais em manes, pai; eu, no ducado É triste essa notícia; era na França
de Maine, que hei de à França novamente que eu fundava o melhor das esperanças
tomar ou perecer com minha gente. e assim no fértil solo da Inglaterra.
(Saem Warwick e Salisbury.) Há de chegar o dia em que reclame
York Entregamos à França Anjou e Maine; York o que lhe pertence. Eis o motivo
Paris está perdida; a Normandia de eu com os Nevils ficar e de mostrar-me
sem aquelas cidades não se agienta; dedicado a esse altivo Duque de Humphrey,
Suffolk houve por bem concluir o pacto, para, no instante azado, apoderar-me
os pares concordaram, contentíssimo da coroa, a áurea meta a que me esforço.
se acha Henrique por ter feito a barganha Jamais me privará de meus direitos
de dois ducados pela bela filha o orgulhoso Lencastre, nem o cetro
de um duque. Não me cabe censurá-los. nas mãos fracas terá nem o diadema
Que lhes importa o reino? Teus haveres na cabeça; o caráter religioso
é que eles desperdiçam, não o próprio. não se coaduna com as insígnias régias.
Podem gastar à larga os salteadores Acalma-te, York, até que venha o tempo
quanto roubaram, conquistar amigos, favorecer-te; fica alerta e observa,
presentear cortesãs e viver vida enquanto os outros dormem, porque possas
de fidalgos, em festas incessantes,
surpreender os segredos da política.
até esbanjarem tudo, enquanto o mísero E quando Henrique, inteiramente entregue
proprietário lastima os seus haveres,
às venturas do amor com a nova rainha,
por quem pagou tão caro o reino todo,
a cabeça sacode, as mãos retorce,
e Humphrey se desavierem com a nobreza,
desesperado, e à parte se conserva,
então eu erguerei a rosa branca
e, conquanto a partilha esteja vendo
que impregnará com seu perfume suave
de quanto lhe pertence, morto à fome,
todo o ambiente e farei gravar as armas
em nada ousa tocar. Do mesmo modo
de York em meus estandartes, para a casa
faz York, a língua morde, não se mexe,
de Lencastre atacar. Assim, valendo-me
atormenta-se, enquanto são vendidas
da força, hei de fazer rolar por terra
ou trocadas suas terras. Só parece o governo livresco da Inglaterra.
que os reinos da Inglaterra, França e Irlanda
(Sai)

Ato T- Cena II
O mesmo. Quarto em casa do Duque de Gloster. Por que cravas os olhos no chão sujo,
Entram Gloster e a duquesa. contemplando o que a vista te conturba?
Estarás à procura do diadema
Duquesa : Por que a cabeça deixa meu esposo do Rei Henrique, enaltecido pelas
pender, tal como espiga em demasia honrarias do mundo? Se for isso,
carregada por Ceres? Por que causa continua a fixá-lo e as faces roja,
franze os cenhos o grande Duque de Humphrey, até que ele a cabeça te circunde.
como se o molestasse o belo mundo? Estende o braço e alcança o ouro glorioso.

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Não consegues tocá-lo? O meu te ajuda; Para trás! Não me fales mais sobre isso.
e uma vez que o tenhamos entre os dedos, Duquesa * Como assim, meu senhor!
ao céu levantaremos a cabeça, [Aborrecestes-vos
sem jamais consentirmos que ao chão baixo com Eleonor, tão-só por vos ter ela
a vista sobranceira se degrade. contado o que sonhara? De outra feita
GLrostEr: Oh Nell! Se tens amor a teu marido, ficarei com meu sonho, para ver-me
do peito expele o cancro da ambição! livre de repreensões.
Possa algum pensamento, concebido GLOSTER: Não te amofines;
contra o meu soberano, o pio Henrique, já estou de novo alegre.
transformar-se em meu último suspiro (Entra um mensageiro.)
neste mundo mortal. Ora me deixa Mensageiro : Milorde, é do prazer de Sua Alteza
triste um sonho angustiante desta noite. que vades a cavalo a Santo Albano
Duquesa: à caça do falcão com Suas Graças.
Que sonhou meu senhor? Nada me ocultes, GLosrER * Pois não! Não quererás, Nell, ir conosco?
que eu te retribuirei com o doce conto Duquesa : Sim, meu caro senhor; não me demoro.
do que eu também sonhei de manhãzinha. (Saem Gloster e o mensageiro.)
GLosTER : Sonhei que este bastão, preclara insígnia Se não posso ir na frente, vou segui-los
do meu posto na corte, se partira. enquanto se mostrar Gloster de espírito
O causador do fato, não me lembra. humilde e tão mesquinho. Fosse eu homem,
Sim, pensando melhor, foi o cardeal. um duque, um príncipe de sangue, em pouco
O certo é que, na ponta dos dois troços, tempo removeria esses escolhos
a cabeça fixaram do primeiro enfadonhos, andando sobre troncos
Duque de Suffolk, William de la Pole decapitados. Mas embora seja
e do Duque Edmundo Somerset. mulher, não me permito por mais tempo
Só Deus sabe o que o sonho significa. continuar negligente no pomposo
Duquesa : Muito simples: indica, tão-somente, festival da Fortuna. Onde ficastes,
que se vier a quebrar alguém um galho homem? Sir John! Por que tanto receio?
da alameda de Gloster, a cabeça Estamos sós aqui; tu e eu, somente.
perderá sem demora pela audácia. (Entra Hume.)
Mas agora me escuta, meu querido Hume - Jesus ampare Vossa Majestade.
duque, meu Humphrey: pareceu-me em sonhos Duquesa - Majestade! Sou Graça, simplesmente.
que eu estava sentada em majestosa Hume:
cadeira, em plena catedral de Westminster, Mas com a graça de Deus e os bons conselhos
onde reis e rainhas vão sentar-se de Hume, vai Vossa Graça ver em pouco
para serem coroados; a meus pés que esse título cresce.
se achava Henrique e Lady Margarida, Duquesa Homem, que dizes?
que o diadema me punham na cabeça. Já falaste com a bruxa inteligente,
GLosrer: Não, Eleonor! Terei de censurar-te. a Margery Jourdain, e o feiticeiro
Mulher louca! Eleonor de maus princípios! Rogério Bolingbroke? Estão dispostos
Ésa segunda dama da Inglaterra, a empreender qualquer coisa em meu proveito?
mulher do protetor e dele amada. Hume : Prometeram mostrar a Vossa Alteza
Não desfrutas de todos os prazeres um espírito que eles chamariam
mundanos, muito mais do que te possa do insondável abismo subterrâneo
conceber e abarcar o pensamento? e que há de responder a tudo quanto
E hás de forjar traições para, com isso, Vossa Graça entender de perguntar-lhe.
derrubares a ti e a teu marido Duquesa: Está bem; pensarei sobre esse assunto.
do alto da honra para o pé da infâmia? Logo que retornarmos da caçada

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de Santo Albano, a cabo levaremos cardeal ou o novo Duque de Suffolk.


semelhante projeto. Aceita a paga De qualquer forma a coisa é deste jeito:
de teu trabalho. Por enquanto cuida conhecendo eles a ambição sem peias
tão-só de te alegrar com teus consócios da senhora Eleonor, dão-me dinheiro
neste assunto de tanta relevância. para miná-la e pôr-lhe na cabeça
(Sai) essas conjurações. Um biltre astuto,
Hume: Hume vai distrair-se com o dinheiro dizem eles, dispensa corretores.
da duquesa. É o que eu quero. Mas, cuidado, No entanto eu sou o agente de Suffolk
Sir John Hume! Cuidado com essa boca; e do cardeal. Cuidado, Hume, que acabas
não digais coisa alguma senão: Psiu! chamando os dois de biltres astuciosos!
O assunto exige o máximo segredo. Tudo está neste pé; receio muito
À senhora Eleonor me dá dinheiro que venha a ser a tratantagem de Hume
para eu trazer-lhe a bruxa; ainda que venha a ruína da duquesa. Uma vez ela
do demônio, o ouro é sempre um bom presente. difamada, cairá também o esposo.
Mas também, do outro lado, o ouro me chega; Assim ficarei rico e venturoso.
não sei dizer se quem mo envia é o rico (Saí)

Ato T- Cena II
O mesmo. Um quarto no palácio. casa, terras, minha mulher e tudo o mais.
Entram três ou quatro peticionários, entre os quais o SurroLK* À mulher também? Grande violência,
escudeiro Peter. não há que ver. E a tua, em que consiste? Mas, que é
isso? “Contra o Duque de Suffolk, por haver cercado
PRIMEIRO PETICIONÁRIO * Ficai perto, mestres! o pasto público de Melford.” Que significa isso,
Não demora, milorde protetor vai passar por aqui; senhor velhaco?
será o momento de lhe entregarmos as nossas SEGUNDO PETICIONÁRIO - Ai de mim, senhor! Eu
petições, com todas as formalidades. sou apenas um pobre peticionário, que falo em nome
SEGUNDO PETICIONÁRIO - Sim. Deus o proteja! É do nosso distrito.
um bom homem. Jesus o abençoe. PeTER (apresentando a sua petição) - Contra meu
(Entram Suffolk e a Rainha Margarida.) mestre Tomás Horner, por ter dito
PrimEIRO PETICIONÁRIO - Aí vem vindo ele, me que o Duque de York era o legítimo herdeiro da coroa.
parece, juntamente com a rainha. RarnHa MARGARIDA : Que estás a dizer? O
Com toda a certeza vou ser eu o primeiro. Duque de York disse que ele era o herdeiro legítimo
SEGUNDO PeTICIONÁRIO * Volta, maluco! É o da coroa?
Duque de Suffolk; não é milorde protetor. Perer - Que meu mestre era o herdeiro? Não: de
SurroLk: Então, amigo! Desejas alguma coisa de forma alguma. Foi o meu mestre que disse que ele o
mim? era e que o rei não passava de um usurpador.
PrimEIRO PeTICIONÁRIO * Perdão, milorde; mas eu SurroLk: Não há ninguém aí?
vos tomei por milorde protetor. (Entram criados.)
RarnHa MARGARIDA (lendo os sobrescritos) “A Prende este sujeito e manda imediatamente um
Milorde Protetor”. Vossas petições são endereçadas oficial de justiça à casa de seu mestre. Na presença do
a Sua Senhoria? Deixai-me vê-las. Em que consiste rei iremos ouvir vosso assunto com mais vagar.
a tua? (Saem os criados com Peter.)
PrrmeIRrO PeTICIONÁRIO - À minha, com licença RAarnHA MARGARIDA:
de Vossa Graça, é contra João Goodman, um dos Quanto a vós, que almejais ser protegidos
homens de milorde cardeal, por me ter tomado a sob as asas do nosso protetor,

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recomeçai; Sua Graça vos espera RainHa MARGARIDA *


para fazer justiça. Aliás, esses fidalgos não me causam
(Rasga as petições.) tanto aborrecimento como a esposa
Fora, biltres! do lorde protetor, que varre a corte
Suffolk, manda sair toda essa gente. com seu bando de damas, parecendo
Topos: Vamos; saiamos todos. mais uma imperatriz do que a consorte
(Saem os peticionários.) do Duque de Humphrey. Muitos estrangeiros
RarnHA MARGARIDA * pela rainha a tomam. Porque às costas
Milorde de Suffolk, esse é o costume, traz as rendas de um duque, intimamente
a maneira da corte da Inglaterra? escarnece de nós, por sermos pobres.
É assim que se governa a ilha Britânica Não poderei jamais vingar-me dela?
e de Albion a realeza? O Rei Henrique Conquanto seja uma mulher à-toa,
ainda está como simples tutelado de linhagem somenos, vangloriava-se
do rezingueiro Gloster? Tenho o título há dias, entre os seus admiradores,
eo posto de rainha, para ver-me de que a cauda, tão-só, do seu vestido
sujeita a um simples duque? Vou dizer-te, era de mais valor do que os domínios,
Pole, uma coisa: quando na cidade por junto, de meu pai, enquanto o Duque
de Tours correste lança em homenagem de Suffolk os ducados não lhe havia
do meu amor, e os corações roubaste dado ainda, ao pedir-lhe a mão da filha
às senhoras francesas, fiz idéia . para o Rei da Inglaterra.
de que como eras fosse o Rei Henrique, SUFFOLK*
em coragem, maneiras e elegância. Senhora, eu próprio armei-lhe uma armadilha
Mas ele só aspira à santidade, e pus aí, como negaça, pássaros
rezar ave-marias no rosário; de tão suaves cantos, que é certeza
os profetas e apóstolos o amparam; deixar-se ela prender só para ouvi-los,
por armas tem sentenças da Escritura; sem mais pensar em vos causar desgostos.
seu gabinete é a liça de exercícios; Deixai-a, pois, em paz. E agora dai-me
seus amores, apenas as imagens toda a atenção, que tenho o atrevimento
dos santos que já estão canonizados. de vos aconselhar. Ainda no caso
Quisera que o colégio de cardeais de nos ser o cardeal insuportável,
o escolhesse por papa e que ele fosse forçoso é que com ele e os demais pares
para Roma, onde a tríplice coroa nos aliemos, até que consigamos
na fronte lhe poriam. Fora o estado alijar de uma vez o Duque de Humphrey.
mais de acordo com sua santidade. No que respeita ao Duque de York, a nova
SurFoLK* Acalmai-vos, senhora; Vossa Alteza queixa lhe ensejará pouco proveito.
foi trazida por mim para a Inglaterra. Livrar-nos-emos, desse modo, aos poucos,
Quanto em mim estiver, hei de esforçar-me deles todos, ficando Vossa Graça
para que Vossa Graça fique alegre. sozinha a dirigir o feliz leme.
RarnHa MARGARIDA* (Toque de fanfarra. Entram o Rei Henrique, York
Além do lorde protetor, nós temos e Somerset, em conversa, o Duque e a Duquesa de
Somerset, Buckingham, esse imperioso Gloster, o Cardeal Beaufort, Buckingham, Salisbury e
sacerdote, Beaufort, e o rezingueiro Warwick.)
Duque de York. O menor entre eles todos Rer HENRIQUE
manda mais, na Inglaterra, do que o rei. Tanto faz para mim, meus nobres lordes,
SurroLK: E o maior ainda manda muito menos escolher um ou outro: ou Somerset,
do que os Nevils; Warwick e Salisbury ou York, é indiferente.
não são pares, sequer, da monarquia. York: Se na França

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Henrique VI

York se comportou por modo indigno, na França, se tornassem conhecidos,


seja-lhe ora negada essa regência. a pular ficarias sem cabeça.
SOMERSET* Se Somerset é indigno desse posto, (Gloster sai; a rainha deixa cair o leque.)
nomeai York regente, que eu me afasto. Apanha o leque! Como! Petulante!
Warwick: Ninguém se importa de saber, por ora, Isso não te compete? É assim?
se Vossa Graça é digno; York é o mais digno. (Dá uma bofetada na duquesa.)
CARDEAL Cala essa boca, Warwick; és presunçoso; Não tinha visto,
falam teus superiores. senhora, que éreis vós; peço perdão.
WARWICK * O cardeal Duquesa - Não, francesa atrevida? Não sabíeis
não é meu superior em campo aberto. que era eu? Se com as unhas eu pudesse
BuckiNGHAM * Warwick, todos quantos aqui se acham tocar nessa beleza, mandaria
teus superiores são. estes dez mandamentos afagá-la.
WARWICK * Mas Warwick há de Rer Henrique: Boa tia, acalmai-vos; foi engano.
viver para ser mais do que eles todos. Duquesa - Engano? Rei bondoso, toma tento,
SaLisBurY: Quieto, meu filho! Dai-nos os motivos, que não tardará muito para que ela
Buckingham, de dever ser preferido se te ponha a ninar como a uma criança.
Somerset para o cargo. Mas embora pareça que estes homens
RarnHA MARGARIDA * É muito simples: não usam calça, impune ela não há de
porque o rei determina que assim seja. esbofetear, assim, Lady Eleonor.
GLosrER: Senhora, o rei já tem bastante idade (Sai)
para determinar-se; esses assuntos BuckiNcHAM Vou seguir Eleonor, Lorde Cardeal,
não são para mulheres. e ao mesmo tempo ver o que faz Humphrey.
RarnHa MARGARIDA“ Nesse caso, De esporas Eleonor não necessita;
por que motivo insiste Vossa Graça vai galopar de encontro à destruição.
em ser o protetor de Sua Excelência? (Sai Buckingham.)
GLosrER- Eu sou apenas protetor do reino; (Volta Gloster.)
quando o rei decidir, resigno o posto. GLosrTER: Ora que espaireci lá fora o espírito,
SurroLk Então resigna logo, pondo termo passeando no quadrângulo, falar-vos
nessa insolência. Desde que ficaste pretendo dos negócios da república.
como rei — quem é o rei, senão tu mesmo? — No que respeita a vossas desprezíveis
a república marcha para a ruína; acusações, provai-as, que eu prometo
do outro lado do mar vence o delfim; à lei obedecer. Seja à minha alma
todos os pares, a nobreza toda benigno o Poderoso, em recompensa
do reino são escravos do teu mando. do amor que a meu país c ao rei dedico.
CARDEAL: Supliciaste os comuns; raspaste as arcas Mas, voltando ao assumo de há momentos:
do clero, sem vintém deixando todas digo, meu soberano, que York é o homem
com tuas extorsões. mais apto para ser vosso regente
SOMERSET* Tua suntuosa no território franco.
moradia e os vestidos de tua esposa SUFFOLK * Antes da escolha
arruinaram de todo o erário público. desejara aduzir alguns motivos
BuckINGHAM' A crueldade que te é característica de força não somenos, que demonstram
excede as leis na punição dos crimes, ser York o menos apto para o cargo.
tornando-te passível de castigo. York: Vou revelar-te esses motivos, Suffolk:
RAaiNHA MARGARIDA * em primeiro lugar, por ser inábil
Se os negócios com cargos e cidades — para adular-te o orgulho; o outro, é sabido:
do que temos suspeita — que fizeste se eu fosse designado para o posto,

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Milorde Somerset não me daria


Suplico a Vossa Augusta Majestade
licença de partir e me privara todo o rigor da lei contra este biltre.
de munições e tudo, até que a França HornER: Ah, meu senhor! Quero que me
viesse a cair nas mãos do delfim Carlos. enforquem, se eu falei em semelhante coisa. Este
De outra feita, eu fiquei dançando, à espera rapaz é meu aprendiz. Certa vez, quando o repreendi
de seu auxílio até que Paris fosse por uma falta, ele prometeu de joelhos que se
cercada e se rendesse pela fome. |
vingaria. Tenho testemunhas do fato. Por isso peçoa
Warwick - Posso dar testemunho desse fato. Vossa Majestade não prejudicar um homem honrado!
Nunca jamais tão grande felonia por causa da acusação de um bigorrilha.
cometeu um traidor em nossa terra. Rer Henrique - Que dizem, tio, as leis sobre este caso?
SurFoLK* Paz, Warwick obstinado! GrosrEr : Milorde, eu julgaria deste modo,
Warwick: És a imagem do orgulho. Por que causa caso fosse o juiz: daria o posto
devo calar-me? de Regente da França a Somerset,
(Entram os criados de S, LA
por York estar manchado de suspeita.
conduzindo Horner e Peter.) Quanto a esta gente, designemos dia
SurFoLK: Porter sido a pecha para um combate singular entre ambos,
de traição atirada contra alguém. em lugar apropriado. Afirma este homem
Deus queira que se escuse o Duque de York? que pode aduzir provas da maldade
Yorx- Alguém chamou traidor ao Duque de York? do aprendiz. Esta é a lei, cesta a sentença
Rei HenrIQUE- ,
que daria no caso Humphrey de Gloster.
Que significam, Suffolk, esses termos? Rer HENRIQUE
Que quer toda essa gente? Pois seja assim. Nomeamos Vossa Graça,
SUFFOLK* milorde Somerset, para o alto posto
Com licença
de Vossa Majestade, esse indivíduo de Regente da França.
acusa seu senhor de alta traição. SOMERSET* Humildemente
Afirmou que Ricardo, Duque de York, eu agradeço a Vossa Real Pessoa.
era o herdeiro legítimo do trono Horner: E eu de grado ao combate me submeto.
da Inglaterra e que Vossa Majestade PereR*
Ah, meu senhor! Eu não posso bater-me. Por amor
não passava de um mero usurpador.
Rer HENRIQUE - de Deus, tende piedade de mim. A maldade deste
homem é poderosa contra mim, Deus tenha
Responde, homem: disseste essas palavras?
compaixão de mim! Não serei capaz de dar um só
HornER : Com licença de Vossa Majestade,
golpe. Ah, Deus! Meu coração!
nunca disse tal coisa, nem em tal coisa pensei.
GtosrER : Tens de brigar; se não, te enforcaremos,
Deus é testemunha de que eu estou sendo acusado
Rer Henrique - Ponham-nos na prisão; no último dia
falsamente por este vilão.
do mês próximo, os dois hão de bater-se.
York - Vilão imundo, baixo mesteireiro,
Somerset, vamos logo despachar-te.
vais pagar com a cabeça essas mentiras.
(Saem.)

Ato T- Cena IV
O mesmo. Jardim do Duque de Gloster.
BoLiNGBROKE : Estamos prontos, mestre Hume.
Entram Margery Yourdain, Hume, Southrwell e Bolingbroke.
Sua Senhoria está disposta a presenciar e a ouvir
nossos exorcismos?
Hume : Vinde, mestres. Digo-vos que a duquesa
Hume : Ora, por que não? Não vos preocupeis com
conta com a realização de vossas promessas.
a sua coragem.

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

BoLINGBROKE Já ouvi dizer que ela é uma mulher Acabai! Prosseguir não me é possível.
de espírito invencível. Mas será conveniente, mestre BOLINGBROKE*
Hume, ficardes lá em cima com ela, enquanto nós Retorna à escuridão e ao fogo eterno
fazemos o trabalho. E agora peço que vos vades em do lago abrasador. Vai-te, maldito!
nome de Deus. (Trovões e relâmpagos. Desaparece o espírito.)
(Sai Hume.) (Entram apressadamente York e Buckingham, com
Mãe Jourdain, abaixai-vos e rojai pelo chão. John guardas e outras pessoas.)
Southwell, lede. E agora, mãos à obra! Yorx- Prendei esses traidores e toda essa
(Aparece a duquesa, no alto, seguida de Hume.) farandolagem. Bruxa, nós te tínhamos
Duquesa : Muito bem dito, mestres; sede todos de olho, é só o que eu te digo. O quê? A senhora
bem-vindos. Para isto, quanto mais cedo, melhor. também neste lugar? O rei e o reino
BoLrncBrokE : Boa dama, paciência; os feiticeiros vos saberão pagar a diligência.
a hora azada conhecem: noite escura, Milorde protetor, não tenho dúvida,
noite profunda, noite silenciosa, vos recompensará pelo serviço.
a hora em que Tróia foi entregue às chamas, Duquesa - Não prejudica ao rei o meu serviço
em que piam corujas agourentas nem a metade do que o teu costuma,
e uivam os cães de guarda, em que os espíritos duque insolente, que sem causa ameaças.
passeiam e os fantasmas saem dos túmulos: BuckiNcHAM É verdade, senhora; não há causa.
eis o tempo adequado para a empresa E disto, que dizeis?
que vamos iniciar. Mas assentai-vos, (Mostra-lhe o papel.)
senhora, sem receio, porque o espírito Levai-os logo;
que vamos invocar ficará preso prendei-os bem, deixando-os separados.
nos limites de um círculo sagrado. Vós, senhora, tereis de acompanhar-nos.
(Nessa altura, executam as cerimônias do estilo e traçam Stafford, fica com ela.
um círculo. Bolingbroke, ou Soutbrwell, lê: Conjuro-te! (Retiram-se do alto a duquesa e Hume, escoltados.)
etc. Trovões e relâmpagos. Aparece o espírito.) Vão ser examinadas todas essas
EspíriTO - Adsum. bugigangas. Levai-os daqui todos!
MARGERY JOURDAIN * Asmath! (Saem Soutbwell, Bolingbroke etc., escoltados.)
Por esse Deus eterno cujo nome York: Lorde Buckingham, vejo que a vigiastes
te fez tremer de medo, dá-me pronta às maravilhas. Ótima conjura
resposta a quanto aqui vou perguntar-te. para sobre ela levantarmos algo.
Sem isso, não sairás de onde te encontras. Deixai-me ler, milorde, essa escritura
EspíriTo - Pergunta, então. Quisera o fim ver disto. do diabo. Mas, que vejo?
BoLINGBROKE (Iê) - “Vive o duque que a Henrique há de depor,
Primeiro sobre o rei: que será dele? mas por fim há de achar morte violenta.”
EspíriTo - Vive o duque que a Henrique há de depor; Ora, isto é, justamente,
mas por fim há de achar morte violenta. Aio, te, Acacida, Romanos vincere posse.
(Enquanto o espírito fala, Soutkswell escreve a resposta.) Prossigamos:
BOLINGBROKE* “Que morte aguarda o Duque de Suffolk?
Que sorte aguarda o Duque de Suffolk? Morrerá na água, o fim nela encontrando.
EspíriTO * E o Duque Somerset, como termina?
Morrerá na água, o fim nela encontrando. Desconfie de castelos; mais a salvo
BOLINGBROKE* ele estará nos plainos arenosos
E o Duque Somerset, como termina? do que onde altos castelos se levantam.”
EsríriTO - Desconfie de castelos; mais a salvo Vinde milorde, vinde; estes oráculos
ele estará nos plainos arenosos foram duros de obter e são dificeis
do que onde altos castelos se levantam. de decifrar. O rei se acha a caminho

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de Santo Albano; com ele está o marido para que obtenha dele a recompensa.
desta adorável dama. Ora lhe enviemos York: Como o quiserdes, meu bom lorde. Olá!
a notícia, gastando o tempo estrito Quem está aí?
que exija um bom cavalo. Triste almoço (Entra um criado.)
vai ter milorde protetor, realmente. Vai convidar de minha parte os Lordes
BUCKINGHAM * Warwick e Salisbury para cearem
Suplico a Vossa Graça, Lorde de York, esta noite comigo. Não demores!
consentir que seja eu o mensageiro (Fanfarras. Saem.)

Ato IH: Cenal


Santo Albano. CARDEAL: Teu céu está na terra; o que esses olhos
Entram o Rei Henrique, a Rainha Margarida, Gloster, e o espírito ambicionam é a coroa,
o Cardeal Beaufort e Suffolk, com falcoeiros que chamam tesouro sem igual para o teu peito,
pelos falcões. Protetor pernicioso, par nocivo
que o rei e o reino enganas com tua lábia!
RarnHa MARGARIDA * GLosrer: Como deixais, cardeal, que o sacerdócio
Podeis acreditar-me: a caça aquática se vos torne, desta arte, peremptório?
com falcões é desporto inigualável. Tantaene animis coelestibus irae?
SurroLK: Não há rancor, milorde, senão quanto
Nunca vi nada assim nestes sete anos.
se faz mister para uma boa briga
No entanto, permiti que vos declare:
e um par de tal ruindade.
dez contra uma, tão forte estava o vento,
GLOSTER* Quem, milorde?
que mui dificilmente a velha Joana SurroLK* Ora, milorde, vós, se a vosso grande
levantaria o vôo. lorde protetorado isso não pesa.
Rer Henrique" Que saída GLosTER* À Inglaterra conhece tua insolência,
fez o vosso falcão, milorde! Como Suffolk.
pairava ele sereno sobre todos! RarnHa MARGARIDA *
Deus se revela grande nas criaturas. E a tua ambição, Gloster.
Às aves e o homem se comprazem no alto. Rer HENRIQUE * Paz, querida!
SurroLK* Com permissão de Vossa Majestade, Não concorrais para excitar os pares
não causa espanto que o falcão do lorde já de si tão furiosos. São benditos
protetor tenha vôo desse porte, os que trabalham para a paz na terra.
pois ele sabe que seu dono gosta CARDEAL*
de pairar nas alturas e que joga, Éo que eu serei, então, que minha espada
de regra, o pensamento onde não podem vai fazer que haja paz entre mim e'este
protetor orgulhoso.
alcançar os falcões nos seus remígios.
GLOSTER (à parte, ao cardeal) * Santo tio,
GLosTER* Considero, milorde, baixo o espírito
realmente, desejara que assim fosse.
que não sobe mais alto do que um pássaro.
CARDEAL (à parte, a Gloster) * E só teres coragem.
CARDEAL: É o que eu penso, também; ele quisera GLOSTER (à parte, ao cardeal) *
ultrapassar as nuvens. Deixa à parte
GLOSTER* Ah, milorde teus asseclas; sozinho me respondas
cardeal, que estais dizendo? Vossa Graça pelo insulto de agora.
não gostaria de alcançar o céu? CARDEAL (à parte, a Gloster) * Embora eu saiba
Rer HenrIQUE: À mansão da alegria sempiterna. que te falta coragem... Bem, se ousares

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aparecer: à tarde, no lado este Rer HeNRIQUE-


da alameda sombria. Grande vai ser o seu conforto neste
Rer Henrique: Então, milordes? vale terreno; mas a vista pode
CARDEAL * Podeis acreditar-me, primo Gloster: dar-lhe azo de pecar muito mais vezes.
se vosso falcoeiro não tivesse GLosTER: Parai aí, senhores! Trazei o homem
sido tão apressado em chamar a ave, para perto do rei; é da vontade
nós teríamos tido melhor caça. de Sua Graça conversar com ele.
(À parte, a Gloster.) Rer HenriquE-
Leva tua espada dupla. Conta-nos, caro amigo, as circunstâncias,
GLOSTER* Está bem, tio. para que a Deus louvemos por tua causa.
CARDEAL (à parte, a Gloster) - Nasceste cego e agora estás com vista?
Compreendestes? No lado este do bosque. Simpcox: Com licença de Vossa Graça, sou cego
GLOSTER (à parte, ao cardeal) - de nascença,
Ficai certo, cardeal; lá nos veremos.
A MULHER: É isso mesmo; nasceu cego.
Rer HENRIQUE
SurroLk* Quem é essa mulher?
Tio Gloster, que é que há?
A MuLHER" Sou mulher dele, com licença de Vossa
GLOSTER* Nós conversávamos
Senhoria.
de falcoaria; nada mais, milorde.
GrosTER: Se fosses mãe poderias estar melhor
(À parte, ao cardeal) Toma cuidado, padre! Pela mãe
informada.
de Deus, eu vou raspar essa coroa,
Rer Henrique: Onde nasceste?
ou então não saberei pegar na espada.
Simpcox* Em Berwick, no norte, com licença de
CARDEAL Medice teipsum.
Vossa Graça.
Protetor, tomai tento, protegei-vos!
Rer HENRIQUE:
Rer HenrIQUE-
O vento ameaça tempestades, lordes, Pobre alma! Foi bondoso Deus contigo.
como vossa coragem. Essa música Não deixes mais passar uma só noite,
me desagrada. Quando desafinam dia nenhum, sem orações; sê grato
tais cordas, que esperança há de harmonia? por tudo o que te fez o Onipotente.
Deixai que eu solucione essa pendência. RarnHa MARGARIDA *
(Entra um morador de Santo Albano, gritando: Foi por acaso, amigo, ou de propósito
Um milagre!) que procuraste o altar de Santo Albano?
GLosrer Que significa esse barulho? Amigo, Simepcox- Foi pura devoção, Deus é que o sabe.
que espécie de milagre vais contar-nos? Mais de'cem vezes, muito mais, em sonhos
O Morapor: Um milagre! Um milagre! o santo generoso me chamava
SurFOLK* Vai até o rei e narra-lhe o milagre. pelo nome, dizendo: Vem, Simpcox,
O Morapor: Há meia hora, só, um cego, diante rezar no meu altar, que eu te protejo.
do altar de Santo Albano, ficou vendo. A MuLHER: É verdade, senhora; muitas vezes
Nunca tinha enxergado em toda a vida. eu própria ouvi a voz que lhe falava.
Rer HENRIQUE: CARDEAL:
Que Deus seja louvado! Para as almas Como! És coxo?
cheias de fé, faz ele luz das trevas SimPcox* Que Deus não me abandone!
e ministra conforto na desgraça. SurFroLK: Por que ficaste assim?
(Entra o prefeito de Santo Albano com seus confrades. SIMPCOX * Caí de uma árvore.
Simpcox vem carregado em uma A MuLHER* Sim, meu senhor, caiu de uma
cadeira por dois homens; sua mulher e grande ameixeira.
multidão o seguem.) GLosrer - Desde quando eras cego?
CARDEAL" Aí vêm em procissão os moradores SIMPCOX* Oh! Nasci cego.
apresentar a Vossa Alteza o homem. GLosrTER- E trepavas em árvores sem veres?

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Simpcox- Uma só vez, senhor, em toda a vida; Simpcox* Oh, mestre, se o conseguísseis!
quando era moço ainda. Grosrer Senhores de Santo Albano, por acaso
À MULHER: É certo; e caro, não tendes beleguins na cidade e essa coisa a que se
muito caro pagou a tal subida. dá o nome de chibata?
GLosTER: Para arriscares tanto, era preciso PrereITO - Perfeitamente, milorde, com licença de
que fosses mesmo doido por ameixas. Vossa Graça.
Simpcox* Minha mulher, senhor, queria ameixas. GLosTER Então ide buscar-mos, sem demora.
Fez-me subir, senhor, por isso, na árvore, PrereITO * Vai correndo, maroto, chamar um
com perigo de vida. beleguim.
GLOSTER* O rapazinho (Sai um dos moradores.)
é esperto; mas de pouco isto lhe serve. GrosrER : Ponham um banco neste lugar. (Trazem-
Mostra-me os olhos! Vamos! Fecha-os! Abre-os! lhe um banco.) E agora, meu velho, se não quiseres ser
Quero crer que não vês ainda direito. chibateado, pula por cima deste banco, e põe-te ao
Simpcox- Tão claro como o dia, mestre, graças fresco.
a Deus e a Santo Albano. Simpcox- Ah, meu senhor! Eu sou incapaz de ficar
GLOSTER* Que me dizes? de pé, sozinho. Ides torturar-me inutilmente.
De que cor é este manto? (Volta o morador, acompanhado de um beleguim
SiMPCOX* Cor de sangue; com um chicote.)
vermelho como sangue. GLosrer - Não há dúvida, senhor; nós vamos
GLOSTER* Muito bem; restituir-vos as pernas. Beleguim, aplica-lhe umas
ea cor do meu casaco? chibatadas, até que ele salte por cima deste banco.
SiMPCOX* É preto, mestre; BeLEGUIM *Pois não, milorde! Vamos, arranca o
preto como azeviche. gibão!
Rer Henrique: Como podes Simpcox: Ah, mestre! Como o poderei fazer? Sou
conhecer azeviche? incapaz de ficar de pé.
SUFFOLK* Penso que ele (Depois da primeira chibatada, Simpcox salta por cima do
Jamais teve ocasião de contemplá-lo. banco e sai correndo. O povo o acompanha, gritando:
GLosrer: Mas casacos e mantos, aos milhares.
Um milagre!)
Simpcox: Jamais, senhor, em toda a minha vida. Rer HENRIQUE:
GLosrer Dize, velhaco, então, qual é o meu nome. Oh Deus! Como permites estas coisas!
Simpcox* Como posso sabê-lo, mestre? Ignoro-o. RarnHa MARGARIDA
GLosrER: E o nome deste aqui? Fez-me rir o malandro, a correr tanto!
Simpcox-* Não sei, senhor. GLOSTER* Segui-o; levai presa esta rameira,
GLosTER* E o deste? A MuLHERr* Oh, senhor! Só o fizemos por miséria.
Simpcox- Também não sei, senhor. GrosreR * Que seja chibateado nas cidades,
GLosTER: E tu, como te chamas? até Berwick, que é de onde eles vieram.
Simpcox* Saunder Simpcox, com licença de Vossa (Saem o prefeito, o beleguim, a mulher, etc.)
Senhoria. CARDEAL: Fez um grande milagre o protetor.
GLosTER: Pois bem, Saunder, tu és o mais refinado SurroLK* Um coxo transformou num corredor.
velhaco de toda a cristandade. Se tivesses nascido GLosreR : Mais do que isso fizeste: num só dia;
cego, ser-te-ia tão fácil os nossos nomes, como cidades a gritar, em correria.
as cores de nossas vestimentas. A visão permite (Entra Buckingham.)
distinguir cores, mas nomeá-las de súbito, é Rer HENRIQUE:
impossível. Meus senhores, Santo Albano fez um Que novidades traz o primo Buckingham?
milagre neste caso; não julgais que seria prova de BUCKINGHAM *
grande habilidade restituir as pernas a este aleijado? Novas que o coração me deixam trêmulo,

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Henrique VI

à idéia de contar-vo-las. Um grupo Rei HENRIQUE:


de malfeitores, gente sem princípios, Oh Deus! De quanto dano os maus são causa,
sob o amparo imediato da senhora provocando, dessa arte, a própria ruína?
do lorde protetor, dama Eleonor, RarnHa MARGARIDA *
cabeça dessa turba, se livraram Gloster, vê nisso a mancha do teu ninho.
a atos nocivos para vosso Estado, Cuida agora de ti com mais carinho.
com bruxas conversando c feiticeiros. GLosrER* O céu é testemunho onisciente
Surpreendemos a todos em flagrante do meu amor ao rei e à minha gente.
ao chamarem espíritos do inferno, Quanto à minha mulher, não sei dizê-lo:
para inquiri-los sobre a vida e a morte entristece-me ouvir o que contaram.
Ela é de origem nobre; mas, se acaso
do Rei Henrique e de outras personagens
da honra veio a esquecer-se e da virtude,
do conselho privado da coroa,
a ponto de tratar com gente baixa
como, com mais vagar, Vossa Grandeza
que, igual ao piche, mancha a alta nobreza,
vai ser notificado inteiramente.
expulso-a do meu leito com tristeza,
CARDEAL - Desse modo, milorde, vossa esposa
entregando-a à vergonha, à lei e à morte,
se acha detida em Londres. À notícia,
por me haver desonrado desta sorte.
quero crer, vos embota à espada o fio. Rer Henrique" Por esta noite aqui repousaremos;
Faltareis, por sem dúvida, ao encontro.
amanhã voltaremos para Londres,
GrosrtER: Deixa de me afligir, padre ambicioso; para o assunto estudarmos mais de espaço
a desgraça e a tristeza me venceram, e chamarmos à conta os criminosos.
quebrando-me o vigor. E, assim, vencido, Peso igual será posto na balança;
te cedo em tudo, como cederia a espada da justiça tudo alcança.
ante o mais desprezível dos lacaios. (Saem.)

Ato IH Cena II
Londres. Jardim do Duque de York. foi Guilherme de Hatfield; após, Lionel,
Entram York, Salisbury e Warwick. o Duque de Clarence; João de Gaunt
nasceu depois, o Duque de Lencastre;
York: Caros Lordes de Warwick e Salisbury, depois desse nasceu o Duque de York,
agora que concluímos nossa parca Edmundo de Langley; Tomás Woodstock,
refeição, permiti que, enquanto damos Dugue de Closter, foi o sexto; o sétimo
um pequeno passeio, para minha e último filho foi Guilherme de Windsor.
satisfação vos interrogue sobre O Príncipe de Gales morreu antes
meu título à coroa da Inglaterra, do próprio pai, deixando um filho apenas,
que a meu ver é seguro e irrefutável. Ricardo, que foi rei depois da morte
SALISBURY* Desejo ouvir vossas razões, milorde. de Eduardo, até que o Duque de Lencastre,
Warwick: Meu caro York, aqui estamos; se for justo Henrique Bolingbroke, filho e herdeiro
tudo quanto pretendes, é certeza de João de Gaunt, coroado sob o título
porem-se os Nevils todos sob teu mando. de Henrique quarto, viesse a tomar posse
York: Eis o caso, senhores: teve Eduardo do trono, após depor o rei legítimo,
terceiro sete filhos: o primeiro enviando a pobre rainha para a França,
foi o Príncipe Negro, de igual nome, de onde ela viera, e o rei para Pomfret,
o Príncipe de Gales; o segundo onde, como o sabeis, o inofensivo

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WILLIAM SHAKESPEARE

Ricardo foi traiçoeiramente morto.


reclama o trono pelo quarto filho,
Warwick : Pai, o duque falou pura verdade;
João de Gaunt; York o fez pelo terceiro.
foi desse modo que subiu ao trono
Enquanto a descendência de Lionel
a casa de Lencastre.
não desaparecer de todo, a do outro
York: Pela força, não poderá reinar. E o fato é que ela
não por nenhum direito, é que o conserva
m, não desapareceu; floresce em ti,
pois uma vez que faleceu Ricardo, nos teus filhos, pimpolhos desse tronco.
filho do primogênito, devia Logo, pai Salisbury, ajoelhemo-nos
ter reinado o nascido do mais próximo. neste lugar quieto, para sermos
SALISBURY* Os primeiros que a nosso soberano
Mas Guilherme morreu sem deixar filhos. legítimo saudamos, acatando-lhe
York: Sim, mas o Duque de Clarence, cujo a honra de seus direitos à coroa.
s
títulos eu reclamo, por vir dele, AMBOS: Juntos, um viva demos a Ricardo,
que era o terceiro filho de Eduardo, nosso rei, soberano da Inglaterra!
deixou prole: Filipa, com que veio York: Nós vos agradecemos; mas não
posso
a se casar, depois, Mortimer, Conde ser vosso rei, antes de ser coroado
de March, de quem nasceu Rogério, Conde € sem que tinja a lâmina no sangue
de March, tal como o pai. Dele nasceram da casa de Lencastre, e isso não pode
Edmundo, Ana e Eleonor. jamais ser conseguido de um só golpe,
SALISBURY* .
mas com muita prudência e discrição.
Este Edmundo, conforme o li, no reino Segui o meu exemplo nestes dias
de Bolingbroke, reclamou a coroa, perigosos, não vendo as insolências
e rei teria sido a não ser Owen do Duque de Suffolk, o insuportável
Glendower, que até à morte o teve preso. orgulho de Beaufort, a ambição grande
Mas ouçamos, enfim, a história toda. de Somerset, de Buckingham, do bando
York: Com Ana, minha mãe, sua irmã mais velha deles, até que tenham liquidado
,
lídima herdeira da real coroa, com o pastor do rebanho, esse virtuoso
casou Ricardo, Conde de Cantuária, príncipe, o Duque de Humphrey, de alma boa.
que era filho de Edmundo, quinto filho Isso busca essa gente e, buscando isso,
de Eduardo, o terceiro desse nome. vão a morte encontrar, se York é profeta.
Apóio nele as minhas pretensões, SALISBURY* Milorde, separemo-nos; já estamos
por ter sido ela herdeira de Rogério, ao corrente de vossos pensamentos.
Conde de March, que foi filho de Mortimer WARWICK *
, Diz-me o peito que um dia o Conde Warwick
marido de Filipa, única filha
do Duque de Clarence. Desse modo, há de fazer um rei do Duque de York.
York: Uma só coisa, Nevil, eu prometo:
se sempre a descendência do mais velho
Ricardo há de viver, para que o Conde
sobe primeiro ao trono, o rei sou eu.
de Warwick fique sendo o maior homem
WARWICK *
na Inglaterra, depois do soberano.
Não pode haver nada mais claro. Henrique
(Saem.)

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Ato IT: Cenalll


O mesmo. Sala da Justiça. E agora podes ir, Humphrey de Gloster,
Toque de trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha não menos estimado que no tempo
Margarida, Gloster, York, Suffolk e Salisbury; a Duquesa em que eras protetor do rei.
de Gloster, Margery Jourdain, Soutbwell, Hume e RarnHa MarcarIDA: Não vejo
Bolingbroke, escoltados. razão de precisar o rei adulto
de protetor, ao jeito de meninos.
Rer HENRIQUE: Deus e o rei mandarão nesta Inglaterra.
Vinde, dama Eleonor Cobham, esposa Dai ao rei o bastão, senhor, e a terra.
de Gloster; avançai. Aos nossos olhos GLOSTER*
e aos de Deus, vosso crime é muito grande. Meu bastão? Nobre Henrique, ei-lo; aqui o tens.
Recebei a sentença cominada De tão bom grado agora aqui o resigno,
pela lei para crimes que no livro como teu pai Henrique ao confiar-mo;
de Deus merecedores são da morte. e tão alegremente aos pés to deixo,
Vós quatro voltareis para a prisão, como ambiciosamente outros o esperam.
Adeus, bom rei; que em paz chegues ao porto,
de onde sereis tirados para a pena
capital, Em Smithfield a feiticeira quando eu for para longe e estiver morto.
será queimada e reduzida a cinzas; (Sai)
RAINHA MARGARIDA
vós três sereis na forca estrangulados.
Vós, senhora, de nobre nascimento,
Até que enfim Henrique é rei, de fato,
Margarida rainha e Humphrey de Gloster
em vida perdereis as regalias
menos do que ele próprio, de tal modo
e, depois de uma penitência pública
saí mutilado sob tão duros golpes:
de três dias, íreis viver banida
sim, que a esposa banida a isso equivale.
em vossa própria terra, com Sir John
Confiscado o bastão... Pois que este fique
Stanley, na Ilha de Man.
onde devera estar, na mão de Henrique.
Duquesa: Aceito o exílio,
SurroLK: Assim dobra Eleonor o altivo colo
como aceitara alegremente a morte.
como pinheiro os ramos para o solo.
Gtosrer : Eleonor, como vês, a lei julgou-te;
York: Deixai-o ir, senhores. Com licença
justificar não posso o que a lei pune.
de Vossa Majestade, está parahoje |,
(Saem a duquesa e os demais prisioneiros, escoltados.) marcado o duelo e prontos os dois homens,
Nos olhos tenho lágrimas, tristezas o queixoso e o acusado. Para a liça
sem fim no coração. Humphrey de Gloster, podem o armeiro e o aprendiz ser conduzidos,
semelhante desonra, em tua idade, se quiser ver a luta Vossa Alteza.
sob o peso das mágoas, a cabeça RarnHA MARGARIDA *
te obrigará a baixar até o sepulcro. Sim, meu bom lorde; vim da corte apenas
Suplico permissão a Vossa Graça para ver o remate dessa briga.
para me retirar; consolo querem Rer HENRIQUE:
minhas angústias; a velhice, calma. Em nome, pois, de Deus, aprontai tudo;
Rer HENRIQUE - acabemos com isso; Deus é justo.
Espera ainda um momento, Humphrey de Gloster; York: Nunca vi ninguém mais apavorado
entrega-me o bastão. Deseja Henrique e em ruins disposições do que o apelante,
proteger-se a si próprio. Deus será o aprendiz desse armeiro, meus senhores.
minha esperança, meu amparo e guia; (Entram, por um lado, Horner e seus vizinhos, que bebem
a luz que há de alumiar, enfim, meus passos. com ele, a ponto de o deixarem embriagado; Horner traz

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shakespearebrasileiro.org Henrique VI

Ato IT: Cenalll


O mesmo. Sala da Justiça. E agora podes ir, Humphrey de Gloster,
Toque de trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha não menos estimado que no tempo
Margarida, Gloster, York, Suffolk e Salisbury; a Duquesa em que eras protetor do rei.
de Gloster, Margery Jourdain, Soutbwell, Hume e RarnHa MarcarIDA: Não vejo
Bolingbroke, escoltados. razão de precisar o rei adulto
de protetor, ao jeito de meninos.
Rer HENRIQUE: Deus e o rei mandarão nesta Inglaterra.
Vinde, dama Eleonor Cobham, esposa Dai ao rei o bastão, senhor, e a terra.
de Gloster; avançai. Aos nossos olhos GLOSTER*
e aos de Deus, vosso crime é muito grande. Meu bastão? Nobre Henrique, ei-lo; aqui o tens.
Recebei a sentença cominada De tão bom grado agora aqui o resigno,
pela lei para crimes que no livro como teu pai Henrique ao confiar-mo;
de Deus merecedores são da morte. e tão alegremente aos pés to deixo,
Vós quatro voltareis para a prisão, como ambiciosamente outros o esperam.
Adeus, bom rei; que em paz chegues ao porto,
de onde sereis tirados para a pena
capital, Em Smithfield a feiticeira quando eu for para longe e estiver morto.
será queimada e reduzida a cinzas; (Sai)
RAINHA MARGARIDA
vós três sereis na forca estrangulados.
Vós, senhora, de nobre nascimento,
Até que enfim Henrique é rei, de fato,
Margarida rainha e Humphrey de Gloster
em vida perdereis as regalias
menos do que ele próprio, de tal modo
e, depois de uma penitência pública
saí mutilado sob tão duros golpes:
de três dias, íreis viver banida
sim, que a esposa banida a isso equivale.
em vossa própria terra, com Sir John
Confiscado o bastão... Pois que este fique
Stanley, na Ilha de Man.
onde devera estar, na mão de Henrique.
Duquesa: Aceito o exílio,
SurroLK: Assim dobra Eleonor o altivo colo
como aceitara alegremente a morte.
como pinheiro os ramos para o solo.
Gtosrer : Eleonor, como vês, a lei julgou-te;
York: Deixai-o ir, senhores. Com licença
justificar não posso o que a lei pune.
de Vossa Majestade, está parahoje |,
(Saem a duquesa e os demais prisioneiros, escoltados.) marcado o duelo e prontos os dois homens,
Nos olhos tenho lágrimas, tristezas o queixoso e o acusado. Para a liça
sem fim no coração. Humphrey de Gloster, podem o armeiro e o aprendiz ser conduzidos,
semelhante desonra, em tua idade, se quiser ver a luta Vossa Alteza.
sob o peso das mágoas, a cabeça RarnHA MARGARIDA *
te obrigará a baixar até o sepulcro. Sim, meu bom lorde; vim da corte apenas
Suplico permissão a Vossa Graça para ver o remate dessa briga.
para me retirar; consolo querem Rer HENRIQUE:
minhas angústias; a velhice, calma. Em nome, pois, de Deus, aprontai tudo;
Rer HENRIQUE - acabemos com isso; Deus é justo.
Espera ainda um momento, Humphrey de Gloster; York: Nunca vi ninguém mais apavorado
entrega-me o bastão. Deseja Henrique e em ruins disposições do que o apelante,
proteger-se a si próprio. Deus será o aprendiz desse armeiro, meus senhores.
minha esperança, meu amparo e guia; (Entram, por um lado, Horner e seus vizinhos, que bebem
a luz que há de alumiar, enfim, meus passos. com ele, a ponto de o deixarem embriagado; Horner traz

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WiLLiaM SHAKESPEARE

um bastão com um saco de areia numa das pontas; um SALISBURY * Peter de quê?
tambor o precede. Por outro lado, entra Peter, com um
Perer : Peter Cachação.
tambor e um saco de areia, acompanhado deaprendizes, SALISBURY * Cachação! Vê então se aplicas uns
que bebem com ele.) bons cachações em teu mestre.
Primeiro ViziNHo - Vizinho Horner, bebo Horner: Meus mestres, eu vim aqui, como quem
convosco um copo de xerez. Nada de medo, vizin diz, por instigação de meu aprendiz, para provar que
ho;
haveis de sair-vos bem. ele não passa de um velhaco e que eu sou homem
SEGUNDO ViziNHO - E aqui, vizinho, um copinho de bem. No que respeita ao Duque de York, quero
de charneco. morrer se em algum tempo lhe desejei algum mal,
TercEIRO ViziNHO - E eu aqui uma caneca de boa ou ao rei, ou à rainha. E agora, Peter, cuida de ti, que
cerveja dupla, vizinho. Bebei e não tenhais medo do vou malhar-te de rijo.
vosso homem. York: Já está engrolando a língua este velhaco.
Horner - Por minha fé, deixai-o vir, que haveis de Tocai logo o sinal para o combate.
ver como eu me arranjarei. Uma figa para Peter. (Toque de trombetas. Batem-se; Peter derruba o mestre.)
PriMEIRO APRENDIZ * Peter, aqui! Bebo à tua Horner Pára, Peter! Pára! Confesso, confesso a
saúde. Nada de medo. minha traição.
SEGUNDO APRENDIZ Alegra-te, Peter, e não (Morre.)
tenhas medo de teu mestre. Defende o nome dos Yorx- Tirai-lhe a arma. Amigo, rende graças a
aprendizes. Deus e ao bom vinho que subiu à cabeça do teu
PerER* Agradeço a todos. Bebei e rezai por mim, é mestre,
O que vos peço, pois penso que já bebi o meu último Peter: Oh Deus! Venci meus inimigos diante
trago neste mundo. Escuta, Robin, no caso de eu de uma assembléia como esta? Oh Peter! fizeste
morrer, dou-te o meu avental; tu Will, ficarás com prevalecer o teu direito.
o Rer Henrique: Tirai esse traidor de minha vista;
meu martelo; Tom, fica desde já com todo o dinheiro
com a morte demonstrou que era culpado.
que me resta. Só peço que Deus me abençoe; não é
Deus, em sua justiça, revelou-nos
possível que eu resista ao meu mestre, que aprendeu
a verdade e a inocência deste pobre
muito bem a combater.
rapaz, que o criminoso desejara
SALISBURY* Vamos, parai com a bebida e iniciai
matar injustamente. Amigo, vamos;
logo os golpes. Como te chamas, maroto?
vais receber a tua recompensa.
PerER- Peter, ora essa!
(Trombetas; saem.)

Áto IT: CenalV

O mesmo. Uma rua.


GLOSTER"* Então estamos
Entra Gloster, com criados, em trajes de luto.
na hora precisa que me foi imposta
para vir ver passar minha duquesa
GLOsTER Assim, não raro, no mais claro dia
condenada. Difícil há de ser-lhe
há nuvem e ao verão sucede sempre
suportar a aspereza do caminho,
do seco inverno o frio navalhante. pôr os pés delicados no chão duro.
As penas e alegrias se sucedem
Querida Nell, como tua alma nobre
tal como as estações. Que horas, senhores?
deve a vista sofrer do populacho
CrraDo - São dez horas, milorde.
desprezível que o rosto te contempla

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com olhares sarcásticos, zombando meu inferno, pensar no antigo fausto.


de tua humilhação, essas pessoas Algumas vezes me direi que a esposa
que costumavam ir empós de tua eu sou de Humphrey de Gloster e ele um príncipe
carruagem soberba, quando as ruas e regente da terra. Mas embora
da cidade, em triunfo, atravessavas! regesse e fosse príncipe, impassível
Quietinhos! Creio que ela vem chegando. ele ficou, ao ver sua esquecida
Vou limpar estes olhos macerados duquesa transformada em maravilha
pelo choro e a miséria contemplar-lhe. para os basbaques e alvo das graçolas
(Entra a Duquesa de Gloster, vestida de camisa branca, destes bobos ociosos. Sê paciente,
com um papel preso às costas, descalça e uma tocha não te envergonhes com o que me fazem
acesa na mão; acompanham-na Sir Fobn Stanley, e, impassível, espera que o machado
um xerife e oficiais.) da morte sobre ti fique suspenso,
Crrapo: Se Vossa Graça, consentir, nós vamos o que, poderás crer-me, não demora,
tomá-la do xerife. pois Suffolk, que tudo pode junto
GLOSTER* Não; quietinhos! daquela que te odeia, tem-nos ódio,
Deixemo-la passar, por vossa vida. como York e o ímpio Beaufort, o padre falso.
Duquesa : Vieste ver, meu senhor, minha vergonha? Eles puseram visco pelos ramos
À penitência é de ambos. Vê que todos para prender-te as asas. Pouco importam
nos contemplam; vê como eles te apontam todos os teus esforços, serás preso.
com o dedo, esses basbaques, como te olham, Mas, enquanto tiveres os pés livres,
sacudindo a cabeça. Ah, caro Gloster, nada receies, nem te precipites
evita esses olhares rancorosos: indo de encontro à traça dos imigos.
chora a minha vergonha no teu quarto, GLosrEr : Basta, querida Nell, falas à toa.
sozinho e amaldiçoa os teus imigos, Para eu ser atingido, é necessário
os nossos inimigos. cometer uma falta. Embora o número
GLOSTER* Sê paciente, de meus imigos fosse vinte vezes
querida Nell; esquece a humilhação. maior e cada um deles se orgulhasse
Duquesa: de força vinte vezes aumentada,
Então, Gloster, me ensina como eu possa mal algum poderão eles causar-me
de mim própria esquecer-me. Quando penso enquanto eu for sincero, leal e puro.
que sou tua consorte e que és um príncipe, Desejaras que eu fosse em teu socorro,
protetor do país, quer parecer-me no opróbrio em que te encontras? Mas o escândalo,
que eu não devia ser assim levada, ainda assim, de existir não deixaria,
coberta de vergonha, com um letreiro e eu correra perigo, por ser tido
no dorso e perseguida pela plebe como infrator da lei. A calma é o único
que acha prazer em ver as minhas lágrimas consolo que te resta. Eu te suplico,
e ouvir-me suspirar do fundo da alma. querida Nell, que o coração revistas
Às pedras impiedosas me machucam de paciência. Verás que não demoram
os delicados pés, e, quando mostras a passar estes dias humilhantes.
eu dou de sofrimento, o populacho (Entra um arauto.
ri, mandando que eu veja onde me afirmo. ARrauTO * Intimo Vossa Graça a comparecer no
Ah, caro Gloster, pensas que é possível parlamento de Sua Majestade, que deverá reunir-se
suportar este jugo vergonhoso, em Bury, no primeiro dia do mês próximo.
que eu possa contemplar de novo o mundo, GLosTER* Sem que o consentimento me pedissem!
considerar felizes os que ainda Esquisito... Está bem; não faltarei.
à luz do sol se alegram? Não; o escuro (Sai o arauto.)
minha luz há de ser; a noite, o dia; Despeço-me de ti, querida Nell.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Mestre xerife, não deixeis que a pena todo favor; depressa! Cumpre as ordens
vá além da cominada pelo rei. que tens a meu respeito.
XerrrE: Não se zangue com isso Vossa Graça, STANLEY: É a Ilha de Man,
mas minha comissão termina aqui. minha senhora, onde sereis tratada
Agora é a Sir John Stanley que compete conforme o vosso estado.
acompanhá-la até à Ilha de Man. Duquesa: Neste caso,
GLOSTER Sir John, estais encarregado, agora, muito mal, que é completo o meu opróbrio.
de guardar minha esposa? Tratar-me-eis por maneira vergonhosa?
STANLEY * Com licença STANLEY * Como duquesa é que sereis tratada,
de Vossa Graça, deram-me a incumbência. como esposa do Duque Humphrey de Gloster.
GrosTER- Não useis de aspereza por pedir-vos Duquesa ' Xerife, passai bem, melhor do que eu,
que a trateis com bondade. É bem possível embora o condutor tivésseis sido
que o mundo torne a rir e eu tenha vida de minha humilhação.
para recompensar-vos, se com ela XERIFE: É meu ofício,
fordes bondoso. E assim, Sir John, adeus. minha senhora. Por favor, perdoai-me.
Duquesa Já vos ides, senhor, sem me dizerdes Duquesa : Sim, sim, adeus; estais desobrigado.
adeus? Vamos, Stanley; ficamos ou seguimos?
GLosrER- Dão testemunho minhas lágrimas STANLEY * Senhora, terminada a penitência,
de que não me é possível falar nada. tirai essa camisa. Vamos logo
(Sai-Gloster com os criados.) cuidar de preparar-vos para a viagem.
Duquesa Já partiste? Levaste o meu consolo. Duquesa : Se a camisa eu tirar, não me despojo,
Nada me resta; a morte é que me alegra, com isso, da vergonha. Não; nas vestes
a morte, cujo nome tantas vezes mais ricas ficaria ela aderente,
me pôs medo, por ter eu desejado e se mostrara a todos, fosse a minha
alcançar neste mundo a eternidade. vestimenta qual fosse. Vamos, leva-me;
Peço-te, Stanley, leva-me depressa, desejo ver minha prisão quanto antes.
pouco importa para onde, pois dispenso (Saem.)

Ato HI - Cenal
A abadia de Santo Edmundo, em Bury. quão insolente se tornou, em tudo
Toque de clarins. Entram para o parlamento o Rei diferente, orgulhoso, peremptório?
Henrique, a Rainha Margarida, o Cardeal Beaufort, Conhecemo-lo afável e bondoso;
Suffolk, York, Buckingham e outros. bastava que de longe o relanceássemos,
para se pôr de joelhos. Toda a corte
Rer HenrIQUE* lhe admirava, por isso, a submissão.
Estranho que Milorde Humphrey de Gloster Mas agora, se o encontro, embora seja
não tenha vindo. É contra o seu caráter pela manhã, no tempo em que é costume
ser o último a chegar, qualquer que tenha desejar-se bom dia, o cenho franze,
sido a razão de seu atraso agora. lança olhar carrancudo e passa teso,
RarnHA MARGARIDA * sem dobrar os joelhos, desdenhoso
Não podeis ver, ou não quereis, apenas, das honras que nos cabem por direito.
observar a mudança de seu todo, Ninguém liga ao rosnado de cãezinhos;
a majestade com que diz as coisas, mas até mesmo os homens corajosos,

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ao rugido do leão, tremem de susto. do nosso soberano. Às águas correm


Humphrey não é pessoa de somenos mansamente onde o leito é mais profundo.
importância no reino; se cairdes, Dissimula traição seu todo simples.
a ascensão será dele. Por tudo isso, Não regouga a raposa no momento
me parece não ser boa política — de roubar o cordeiro. Não, milorde,
conhecendo-lhe o gênio rancoroso Gloster é um homem que não foi sondado,
e quanto lucrará com vossa morte — mas a sua perfídia é imperscrutável.
deixar que ele rodeie Vossa Alteza CarpEAL* Contra as formas da lei não criou ele
ou que seja admitido no conselho mortes estranhas para faltas leves?
de Vossa Real Pessoa. Usando apenas York E, quando protetor, não fez coletas
de adulação, granjeou as boas-graças de dinheiro, no reino, para o soldo
“da gente miúda. É de temer, portanto, do exército da França, dinheiro esse
que todos o acompanhem, se ele a idéia que nunca foi enviado e que deu azo
tiver de revoltar-se. Nós estamos às frequentes revoltas das cidades?
na primavera, tempo em que a cizânia BucxincHAM Ora, são faltazinhas, em confronto
é fácil de arrancar. Se permitirdes com as faltas ignoradas, mas que o tempo
que viceje, invade ela o jardim todo mostrará no insinuante Duque de Humphrey.
e acaba sufocando a plantação, Rei HENRIQUE:
por falta de cultivo. O respeitoso Milordes, um momento. Esse cuidado,
cuidado que dedico a Vossa Graça que revelais, de remover espinhos
é que me leva a deduzir tais coisas que aos pés nos poderiam ser nocivos,
do semblante do duque. Se provarem é digno de louvor. Mas, em consciência,
que não tenho razão, chamai a tudo nosso parente Gloster é tão pouco
receios de mulher, e se estes forem capaz de excogitar qualquer tramóia
suscetíveis de serem dissipados contra nossa pessoa, como a ovelha
mediante o raciocínio, de bom grado recental ou a pombinha inofensiva.
me desdirei de tudo, confessando O duque é muito bom, meigo e virtuoso
que caluniei o duque. Contestai-me, para pensar no mal ou, ainda, para
Lordes de York, Suffolk e Buckingham, trabalhar com a intenção de me depor.
se o puderdes, ou então concluí comigo RarnHa MARGARIDA *
que em tudo que falei fui verdadeira. Que pade haver de mais prejudicial
SurroLK* Soube ver muito bem Vossa Grandeza do que uma tal confiança? É uma pombinha?
no interior desse duque. Se eu tivesse Nesse caso, traz penas emprestadas,
dado minha opinião antes da vossa, pois na alma é como o corvo detestável.
teria dito a história que acabamos É cordeiro? Sem dúvida, de pele
de ouvir de Vossa Graça. Aposto a vida tomada de outrem, que o temperamento
em como ele influiu sobre a duquesa como lobo roubaz o qualifica.
para entregar-se às práticas diabólicas. Quem não sabe mudar de compostura,
Mas, mesmo que não fosse ele partícipe quando intenta enganar? Muito cuidado,
do crime dela, o reputar-se de alta milorde! Nosso bem-estar depende
estirpe, o ter-se em conta do mais próximo da supressão desse homem fraudulento.
herdeiro da coroa, e, ainda, quejandas (Entra Somerset.)
jactâncias de nobreza, influiriam SomERSET: Saúde a meu gracioso soberano!
para excitar o cérebro doentio Rer HenRIQUE*
da mulher, o que a fez usar de meios Bem-vindo, Lorde Somerset! Que novas
pecaminosos para a total queda nos trouxeste da França?

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WILLIAM SHAKESPEARE

SOMERSET - Que se encontram para dá-las às tropas, sem que nunca


prejudicados vossos interesses tivesse reclamado pagamento?
naqueles territórios: quanto tínhamos CarDEAL : Essas alegações, milorde, podem
por lá, se acha perdido. vos ser de utilidade.
Rer HenrIQUE- Más notícias, GLOSTER* Nada afirmo
Milorde Somerset; mas Deus égrande. contrário aos fatos, assim Deus me ajude.
York (à parte) - Más novas para mim, que alimentava Yorx- Quando éreis protetor criastes novas
na França tão risonhas esperanças,
modalidades de tortura, para
como no fértil solo da Inglaterra. punir os criminosos, o que à nossa
Em botão minhas flores se estiolam pátria valeu a pecha de crueldade.
e os bichos me devoram a folhagem. GLOSTER-
Mas eu arranjarei esse negócio Como assim? Todos sabem que no tempo
sem perder tempo, ou venderei meu título do meu protetorado me acoimavam
por uma gloriosa sepultura. de indulgente demais, por comover-me
(Entra Gloster.) com as lágrimas dos réus, pois lhes bastava
GLosrer: Saúde e paz ao meu senhor e rei! falar humildemente, para livres
Desculpai-me, senhor, pela demora. ficarem do castigo. Se excetuarmos
SurroLK* Não, Gloster; fica certo de que vieste os autores de crimes sanguinários,
cedo demais, a menos que tu fosses ou os ladrões que na estrada assaltam pobres
mais leal do que és, de fato. Eu te detenho viajantes, à traição, jamais castigo
por crime de traição. lhes infligi à altura de seus crimes.
GLOSTER- Está bem, Duque O assassínio, de fato, esse pecado
de Suffolk. Ainda assim tu não consegues que faz derramar sangue, era punido
ver-me corar ou revelar receio. com maiores torturas do que os outros,
Um coração sem mácula não treme. mais, até, do que a própria felonia.
À corrente mais límpida não se acha SurroLk- Essas faltas, milorde, foram fáceis
tão isenta de lama, como estreme de responder. Mas contra vós são feitas
de traição ao meu rei sempre eu me encontro. acusações mais graves, que não podem
Quem me acusa? Que falta ora me assacam? ficar solucionadas tão sem custo.
York: Estão certos, milorde, de que fostes Em nome de Sua Alteza eu vos detenho,
peitado pela França e que no posto a milorde cardeal vos entregando,
de protetor desviastes o dinheiro para vos conservar sob custódia
destinado aos soldados, o que dera atéo dia do vosso julgamento.
motivo de perder Sua Alteza a França. Rer HENRIQUE
GLOSTER - Estão certos? Quem pensa desse modo? Lorde de Gloster, anima-me a esperança
Jamais roubei o soldo a nossas tropas, de vos ver limpo de qualquer suspeita.
nem peita alguma recebi da França. À consciência me diz que não sois isso.
Deus me assista por ter eu vigilante GLosrer: Oh, gracioso senhor, éperigosa
ficado sempre, sim, noites seguidas, a época em que vivemos. A virtude
só cuidando do bem da nossa pátria. pela negra ambição fica abafada,
Desejo que me seja computada sendo expulso pelo ódio o amor ao próximo.
no último julgamento a menor moeda Domina a corrupção; de vossas terras
que eu tivesse desviado do meu nobre é banida a egiidade. Não me é estranho
soberano, o ceitil que eu amealhasse que eles conspiram contra a minha vida.
para meu uso. Não! Porque os impostos Se eu soubesse que esta ilha se tornara
nos comuns indigentes não pesassem, feliz com minha morte, pondo um termo
quantas libras gastei dos meus haveres, à tirania deles, de bom grado

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Henrique
VI

daria em sacrifício a própria vida. Quem perde tem direito de gritar.


Mas isso apenas constituíra o prólogo Grosrer : Há mais verdade nisso do que acaso
de sua peça, pois milhares de outras pretendíeis dizer. Perdi, realmente;
vidas, que não cogitam de perigo, outros ganharam. Mas malditos sejam
não verão o remate da tragédia todos eles, por terem sido falsos
planejada por eles. A maldade em nosso jogo. Quem desta arte perde
peculiar a Beaufort se lhe reflete tem direito, por certo, de falar.
nos olhos faulhantes e congestos, BuckiNGHAM * Com esse falatório vai deter-nos
bem como a odiosidade tempestuosa ele aqui o dia todo. Tomai conta,
de Suffolk em seu cenho enevoado. Lorde Cardeal, do vosso prisioneiro.
Escarninho, por meio de indiretas, CARDEAL: Senhores, levai logo o duque e, preso,
Buckingham se alivia do pesado guardai-o bem.
fardo de inveja que lhe oprime o peito. Groster: | Ássimo Rei Henrique
York, esse cruel, que alcança a própria lua, joga fora a muleta, antes que as pernas
cujo braço insolente eu já retive, o possam sustentar. Assim te privam
está tramando contra a minha vida do pastor, quando lobos já disputam,
por motivos sem base consistente. rosnando, a primazia de comer-te.
E vós, minha senhora soberana, Ah! se fosse infundado o meu receio!
juntamente com os outros, sem para isso Temo a tua queda, meu bondoso Henrique.
terdes razão alguma, acumulastes (Saem os guardas, com Gloster.)
desgraças sobre mim, não vos poupando Rer Henrique: Fazei e desfazei, milordes, como
no afã de transformar meu soberano vos ditar a prudência, comportando-vos,
no meu maior imigo. Sim, vós todos como se aqui presente também fôssemos.
contra mim conspirastes — tive aviso RarnHa MARGARIDA *
de vossas reuniões — para da vida Vossa Alteza abandona o parlamento?
sem mancha me privardes. Testemunhas Rer HENRIQUE:
falsas não faltarão, nem mesmo montes Sim, Margarida, o peito se me afoga
de traições, para a culpa me aumentarem. na tristeza, sentindo eu que suas ondas
Comprova-se o provérbio: “Para dar até os olhos me chegam. Tenho o corpo
num cão, sempre se encontra um pau à mão.” cercado de misérias, porque nada
CarDEAL* Meu soberano, são intoleráveis pode haver mais mesquinho e miserável
esses ultrajes. Sendo permitido que o descontentamento. Ah, tio Gloster!
censurar, repreender assim de público tens no rosto a lhaneza, a honra, a verdade.
quantos cuidam de vossa real pessoa, No entanto, meu bom Gloster, chegou a hora
protegendo-a da sanha dos traidores de eu ser esforçado a te julgar culposo
e dos punhais secretos, e, se inteira e a me temer do teu devotamento.
liberdade se der aos ofensores Qual a estrela funesta que te inveja,
para falarem tudo o que entenderem, desse modo, a fortuna, para que estes
temo que venha a arrefecer-se o zelo nobres e a nossa esposa Margarida
dos que cuidam do bem de Vossa Graça. se empenhem em destruir-te a vida inócua?
SurroLK* Não acaba ele de lançar ao rosto Jamais fizeste mal a nenhum deles,
de nossa soberana ignominiosas como a ninguém. Tal como o carniceiro,
palavras, muito embora dirigidas quando o bezerro arrasta, após laçá-lo,
com grande habilidade, no sentido batendo no coitado sempre que ele
de insinuar que ela houvesse subornado se rebela, até o pôr no sanguinoso
testemunhas com o fim de derrubá-lo? matadouro: de modo igual levaram-no,
RarnHA MARGARIDA * sem remorsos, daqui. E como corre,

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WILLIAM SHAKESPEARE

desorientada, a mãe, mugindo, e os olho


s cardeal, e vós, Milorde de Suffolk,
não desvia da estrada em que sumira
dizei o que pensais sinceramente:
o inocente filhinho, reduzida
não fora o mesmo encarregar uma águi
tão-somente a chorar-lhe a perda imensa: a
famélica da guarda de um pintinho
assim lastimo o caso do bom Gloster,
contra abutre voraz, e pôr no cargo
chorando tristes lágrimas e inúteis,
de protetor do rei Humphrey de Gloster?
a procurá-lo com estes olhos baços,
RarnHa MARGARIDA:
sem que socorro algum possa prestar-lhe,
Seria certa a morte do coitado.
tão poderosos são seus inimigos
Surroik: Tendes razão, senhora. Entã
encarniçados. Hei de, pois, chorá-lo, o não fora
rematada loucura dar a guarda
sem cessar de dizer na minha dor:
do rebanho à raposa? Uma vez que haja
se há traição, não é Gloster o traidor.
provas de que se trata de assassino
(Sai) | contumaz, é estultícia lhe negarmos
RarnHa MARGARIDA *
qualquer culpa tão-só por não ter tido
Senhores livres, sob os quentes raios
tempo de executar o seu projeto.
do sola fria neve se derrete.
Que morra, então, antes que as fauces
Henrique, o meu senhor, é um tanto frio fiquem
maculadas de sangue carmesim.
nos negócios de monta, muito cheio
É raposa, inimigo natural
de piedade insensata. Humphrey de Gloster
do rebanho, como o é Humphrey de Gloster
soube prendê-lo como faz o triste
do soberano; sobram-nos as provas.
crocodilo, que finge ternas lágrimas
Nem vos percais em sutilezas sobre
para pegar o incauto transeunte,
o modo de matá-lo: por astúcia
ou como a serpe enovelada em meio
ou armadilha, acordado ou em pleno sono
do canteiro florido, que, com a pele ,
o modo pouco importa, uma vez que ele
faiscante, atrai a criança que, levada
venha a morrer. É sempre boa a fraude
pelo brilho, a julgara algo excelente.
para apanhar quem é vezeiro em fraude.
Podeis crer-me, senhores: se vós todos
RarnHa MARGARIDA *
fôsseis sábios como eu — e neste assunto
Isso sim, é que é falar com decisão,
presumo que me julgo imparcialmente —
Suffolk três vezes nobre.
este Gloster em pouco se veria
SUFFOLK* Não é tanto,
livre do mundo, para que ficássemos
salvo se à decisão se seguir o ato,
livres todos do medo que nos causa.
pois nem sempre se diz o que se pensa.
CarDEAL* Será boa política matá-lo.
Mas, para pôr de acordo a língua e o peit
Mas para isso é mister excogitarmos o,
uma vez que a façanha é meritória,
algum pretexto. Fora conveniente
além de preservar meu soberano
que aparência legal se desse ao caso.
de seu feroz imigo, enunciai a ordem,
SUFFOLK* À meu ver será isso má política.
que eu serei logo dela o sacerdote.
O rei há de esforçar-se por salvá-lo.
CarDEAL: Milorde de Suffolk, eu desejara
O povo há de querer também salvá-lo,
que ele morresse, antes de terdes tempo
sendo que não dispomos de argumento
de fazer votos. Basta me dizerdes
valioso algum, senão suspeita, apenas,
que consentis no feito e que o aprovais,
de nossa parte, para condená-lo.
para que do estante eu me encarregue,
Yorx- Não desejais, portanto, vê-lo morto.
tanto eu velo por nosso soberano.
SUFFOLK -
SurroLK* Eis minha mão; a ação é meritória.
Oh York! Ninguém me excede nesse ponto.
RarnHa MARGARIDA: É também o que eu digo.
York York é quem tem razões mais poderosas
York: Eu também; e uma vez que os três estamos
de querer vê-lo morto. Mas, milorde
de acordo nesse ponto, é de somenos

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importância impugnar alguém o feito. grupo de homens tirados dos condados,


(Entra um mensageiro.) para a sorte tentardes nesta empresa?
MENSAGEIRO * York Sim, milorde cardeal, se for do agrado
Cheguei neste momento, grandes lordes, de Sua Majestade.
da Irlanda com a notícia de se terem SUFFOLK* Nesses casos,
levantado os rebeldes, que aos ingleses nossa palavra é seu consentimento.
à espada a vida tiram. Enviai logo Ele confirma quanto decidirmos.
socorro, meus senhores, porque à fúria Aceita, pois, o encargo, nobre York.
deles ponhamos termo, antes que a chaga York: Dou-me por satisfeito. Cuidai logo,
fique incurável, pois enquanto é fresca senhores, de reunir os meus soldados,
sempre há esperanças de que a sarar venha. enquanto eu vou tratar de alguns negócios.
CARDEAL * Eis uma brecha que requer urgente SurroLK* Incumbência, milorde, a que de grado
reparação. Que aconselhais em caso me entregarei. E agora, retornemos
de tanta monta? a falar desse falso Duque de Humphrey.
York: Opino que se mande CARDEAL : Não falemos mais dele; vou tratá-lo
Somerset para lá como regente. de tal maneira, que daqui por diante
Governante de sorte é queé preciso; decerto há de deixar de incomodar-nos.
e que ele a tem, o demonstrou na França. Parti logo, Suffolk, o dia finda;
SOMERSET: Se com sua política manhosa hei de falar-vos deste caso ainda.
tivesse em meu lugar estado York, York: Milorde, esperarei quatorze dias,
não ficara na França tanto tempo. em Bristol, a chegada dos meus homens,
York: Não; como tu não viera a perder tudo. para logo embarcá-los para a Irlanda.
Teria preferido ficar morto SurroLk* Tudo a ponto obtereis, Milorde de York.
a acarretar desonra de tal porte (Saem todos, com exceção de York.)
para a pátria, na França demorando-me York: Agora, ou nunca mais, York, enrijéce
até que tudo a se perder viesse. teus grandes pensamentos e transforma
Mostra uma cicatriz em todo o corpo! em decisão a dúvida. Sê quanto
Não revela nos prélios muito zelo desejas ser ou vota o que és à morte,
quem só cuida de pôr a salvo o pêlo. como indigno, sequer, de ser vivido.
RainHA MARGARIDA * Deixa o pálido medo para os homens
Basta! Basta! Bem pode essa faísca de nascimento vil, não lhe permitas
vir a tornar-se em vorador incêndio, que se'abrigue num peito generoso.
se houver a jeito vento e combustível. Como da primavera os aguaceiros,
Cessa, bom York; amado Somerset, os pensamentos, rápidos, me ocorrem,
fica mais calmo. Se tivesses sido com o poder preocupados eles todos.
regente em lugar dele, York, é possível Mais ocupado, ainda, do que a aranha
que menos, ainda, tu tivesses feito. laboriosa, meu cérebro arquiteta
York: ciladas, com que apanhe os meus imigos.
Como! Menos que nada? Então, que a mancha Muito bem, nobres! Ato é de política
recaia em todos nós. mandar-me para fora com um exército.
SOMERSET"* Em ti, inclusive, Restituís, com isso, a vida à serpe
uma vez que desejas a vergonha. faminta que, afagada em vossos peitos,
CarpEAL: Milorde de York, a sorte ponde à prova. acabaria — era fatal — mordendo-vos
Os quernes irlandeses revoltados o coração. Eu precisava de homens,
estão em armas, amassando argila e vós mos arranjastes. Bem; aceito-os
com sangue dos ingleses. Decidis-vos de bom grado. Contudo, ficai certos
air para a Irlanda à frente de um seleto de que entregais a um louco armas afiadas.

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Ao mesmo tempo que, na Irlanda, minhas cabelo em desalinho, conversava


tropas eu for mantendo, na Inglaterra ele como os inimigos e me vinha,
provocarei escura tempestade depois, incógnito, pôr a par de todas
que enviará para o céu ou para o inferno as suas vilanias. Esse monstro
dez mil almas, com ímpeto crescente, vai substituir-me aqui, pois se parece
até que eu tenha a fronte circundada muito, realmente, com o defunto Mortimer,
pelo diademo de ouro, que, no jeito nos traços fisionômicos, no modo
dos raios transparentes do sol claro, de falar e de andar. Dessa maneira,
fará aplacar o torvelinho insano. fico sabendo quanto à casa de York
Para esse fim, como instrumento azado,
é dedicado o povo e de que modo
seduzi um teimoso homem de Kent, receberiam muitas pretensões.
João Cade de Ashford, Admitindo-se que ele seja preso,
para à vontade provocar distúrbios, colocado no potro, torturado,
valendo-se do nome de João Mortimer. sei que por mais castigos que lhes inflijam,
Vi, certa vez, na Irlanda, esse teimoso jamais dirá que o aconselhei a armar-se.
Cade opondo-se a quernes aguerridos. Digamos que ele alcance o que deseja —
Lutou tanto, que as coxas lhe deixaram o que é muito provável — bem, da Irlanda
os dardos como iroso porco-espinho. virei colher com minhas forças tudo
Socorrido, por fim, vi como dava quanto esse vilanaz houver semeado.
cabriolas, tal qual mouro dançarino Morto Humphrey — o que é certo — eHenrique
que sacudisse os dardos sanguinosos
[posto
como se fossem guisos. Muitas vezes de parte, tudo o mais fica a meu gosto.
em ardiloso querme disfarçado, (Sai)

Ato HI Cena II
Bury. Um quarto no palácio. O rei e os pares todos estão perto.
Entram apressadamente alguns assassinos, Refizestes o leito? Tudo se acha
conforme as ordens que eu vos tinha dado?
PRIMEIRO ASSASSINO * PRIMEIRO ASSASSINO
Vai logo à casa de Milorde Suffolk Tudo, milorde.
e dize-lhe que o duque despachamos, Surrork: Então parti. Depressa!
conforme ele ordenara.
(Saem os assassinos.)
SEGUNDO ÁssassINO * Oh! quem nos dera (Trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha
que tudo ainda estivesse por fazer! Margarida, o Cardeal Beaufort, Somerset, nobres
Já ouviste alguém falar com tal espírito
e outros.)
de contrição? Res Henrique Ide logo chamar o nosso tio.
(Entra Suffolk.) Queremos julgar hoje Sua Graça,
PrimEIRO Assassino - Milorde vem chegando. para ver se é culpado, como o afirmam.
SurroLK Liquidastes a coisa, camaradas? SurroLk: Vou chamá-lo já, já, meu nobre lorde.
PriMEIRO AssASSsINO “ Sim, milorde, está morto.
(Sai)
SurroLK: Belas palavras. Ora dirigi-vos Rer HENRIQUE
à minha casa; quero vos premiar Lordes, tomai vossos lugares. Peço-vos
por esse empreendimento venturoso. que não sejais com nosso tio Gloster

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rigorosos senão somente até onde o teu contacto. Sai da minha frente,
a opinião sã provar que ele é, realmente, mensageiro sinistro! Tens nos olhos
passível de castigo. a majestade cruel da tirania,
RarnHa MARGARIDA Deus nos livre que o mundo atemoriza. Afasta a vista
de que o mal a tal ponto prevaleça, de mim; esses teus olhos me lancinam.
fazendo condenar um gentil-homem Não te retires, não! Vem, basilisco:
inocente. Permita Deus que o duque deixa sem vida o espectador incauto!
se lave das suspeitas que lhe assacam. Alegria hei de achar na morte escura.
Rer Henrique: Agradeço-te, Meg; essas palavras É dupla morte para mim a vida,
me deixam satisfeito.
uma vez que está morto Humphrey de Gloster.
(Volta Suffolk.) RarnHa MARGARIDA *
E então? Que causa
Por que razão tratais Milorde Suffolk
te faz tremer? Por que te achas tão pálido?
dessa maneira? Muito embora o duque
Suffolk, e nosso tio? Que acontece?
lhe fosse desafeto, ele deplora,
SurroLk: Está morto, milorde; Gloster se acha
como cristão sincero, o seu trespasse.
morto no leito.
Quanto a mim, muito embora ele tivesse
RarnHAa MARGARIDA: Não! Deus não o permita!
sido meu adversário, se possível
CARDEAL: Juízo incógnito de Deus! Sonhei
fosse chamá-lo à vida só com lágrimas
esta noite que o duque estava mudo,
abundantes, gemidos do imo peito,
que não podia pronunciar palavra.
suspiros de fazer gelar o sangue,
(O rei desmaia.)
RarnHa MARGARIDA *
quisera ficar cega só de tanto
Que tem o meu senhor? Socorro, lordes!
chorar, adoecer com meus gemidos
O rei está morto! e ter a cor da quaresmeira pálida
SomerseT: Ocorpo levantai-lhe; com suspiros que o sangue me chupassem,
apertai-lhe o nariz. contanto que vivesse o nobre duque.
RarnHa MARGARIDA: Correi! Socorro! Quem sabe o que de mim dirá o mundo?
Socorro! Vamos! Abre, Henrique, os olhos! Todos sabiam que éramos imigos
SurroLk: Calma, senhora; ele já está voltando declarados. Talvez haja quem pense
asi. que eu fiz desparecer o nobre duque.
Rer Henrique - Oh Deus do céu! Meu nome vai ficar, assim, ferido
RArnHA MARGARIDA * Que está sentindo pela calúnia; assunto de conversa
meu gracioso senhor? nas cortes há de ser minha vergonha.
SUFFOLK* Coragem, ânimo, É quanto eu vou ganhar com a morte dele.
meu soberano, meu gracioso Henrique! Quem pode haver mais infeliz? Saber-me
Rer HenRIQUE- rainha e ter a infâmia por coroa?
Como! O Lorde de Suffolk me incita Rer HenrIQUE-
a não desanimar? Não soltou ele, Choro o destino do infeliz amigo.
neste momento, as notas do seu canto RarNHA MARGARIDA *
de corvo, cuja lúgubre toada Chora, então, minha sorte, que eu sou muito
me privou dos sentidos, e ora pensa mais infeliz do que ele. Como! Afastas-te
que com o chilreio da carriça, vindo de mim? O rosto escondes? Porventura
de um coração vazio e concitando-me sou alguma leprosa? Anda, contempla-me,
a não desanimar, será possível Como! Ficaste surdo como as víboras?
fazer com que me esqueça do outro canto? Então cria também veneno, para
Não escondas o fel nessas palavras matares a rainha que esqueceste.
açucaradas. Não me toques! Proíbo-te! Teu consolo se encontra circunscrito
Como picada de serpente, assusta-me no túmulo de Gloster? É que a Dama

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WiLLIAM SHA KESPEARE

Margarida jamais te fora grata. que com meu coração se concertassem,


Deverias mandar fazer a estátua de cegos os chamando, de lunetas
do duque e ajoelhar-te diante dela, sem préstimo nenhum, só por não verem
deixando o meu retrato como escudo as costas de Álbion, por que eu tanto ansiava.
de uma cervejaria. Foi por isso Que de vezes pedi a Lorde Suffolk,
que eu estive em perigo de naufrágio o agente da inconstância que te é própria,
e por mais de uma vez me vi jogada que me encantasse como fez Ascânio
das costas da Inglaterra pelos ventos com a tresloucada Dido, quando os feitos
contrários, que de novo me levavam do pai lhe enumerava desde o incêndio
para a terra nativa? Que presságio de Tróia! Não estou enfeitiçada
se poderia tirar disso, afora tanto quanto ela? E tu, não és tão falso
querer dizer-me o vento cauteloso: quanto Ascânio? Ai de mim! Não me é possível
“Não procures o ninho do escorpião, viver mais. Morre logo. Margarida;
nem ponhas pé nas praias inimigas”? lastima Henrique a tua vida longa.
Que fiz senão amaldiçoar os ventos (Barulho fora. Entram Warwick e Salisbury; o povo se
meigos e quem de suas aêneas covas
aglomera nas portas.)
os deixara escapar, pedindo, instante, Warwick Poderoso senhor, estão dizendo
que soprassem do lado das benditas que foi traiçoeiramente assassinado
praias inglesas, ou que nosso barco o bom Duque de Gloster, e que o Conde
dirigisse de encontro a algum penedo? de Suffolk e o cardeal têm parte nisso.
Contudo, Éolo não quis ser assassino; Tal como abelhas irritadas, quando
a teu cargo deixou o odioso ofício. lhes falta o guia, em toda parte o povo
O mar, também, em seus donosos saltos corre sem direção, não se importando
não me quis afogar, porque sabia com quem possam picar em represália.
que com tua dureza acabarias À custo consegui pôr cobro à sua
afogando-me em lágrimas salgadas frenética revolta, até que cheguem
como ele próprio. Os alcantis rachados, a saber das minúcias do trespasse.
humildosos baixavam-se até às praias, Rer HENRIQUE *
para não me ferirem com seus flancos Bom Warwick, é verdade que está morto;
lacerados, porque tinham consciência mas como isso se deu, só Deus o sabe,
de que teu coração de pederneira,
não Henrique. Penetra até o seu quarto,
mais insensível que eles, terminara
contempla o corpo inanimado e faze
por matar Margarida em teu palácio.
conjeturas acerca dessa morte
Enquanto eu enxergava as brancacentas repentina.
costas deste país, quando das praias Warwick Fá-lo-ei, meu soberano.
nos levava, sem rumo, a tempestade, Aguarda o meu retorno, Salisbury,
eu me deixava estar no tombadilho,
junto da multidão enraivecida.
em meio ao temporal; e quando a minha
(Warwick entra para o quarto e Salisbury se retira.)
vista perscrutadora ante a caligem Rer Henrique" Oh tu, juiz de todos e de tudo,
do céu ficou turvada, eu do pescoço pára os meus pensamentos, que se esforçam
retirei uma jóia inestimável,
por convencer-me de que mãos violentas
um coração cercado de diamantes,
puseram termo à vida do bom Gloster!
ea joguei para terra. Receberam-na Se carecer de base essa suspeita,
as ondas. De igual modo eu desejara perdoa-me, senhor, que a ti, somente,
que tu meu coração em ti acolhesses. compete o julgamento. De bom grado
E no momento em que eu perdi de vista com mil beijos os lábios dessangrados
a formosa Inglaterra, disse aos olhos
lhe aqueceria, as faces lhe banhara

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com um oceano de lágrimas salgadas, distendidas as mãos como no gesto


ao corpo surdo e mudo repetira de quem lutado houvesse, em desespero,
toda a minha afeição e nestes dedos para ser dominado pela força.
apertara seus dedos insensíveis. Contemplai o lençol; vede cabelos
Mas são inúteis todas essas provas neste ponto. Ele tinha sempre a barba
de meu amor. De que valera, agora, bem tratada; ora se acha em desalinho,
contemplar-lhe a figura perecível, como trigo no estio, derrubado
senão para aumentar minha tristeza? por grande tempestade. Não se pode
(Volta Warwick com outras pessoas, trazendo num leito o concluir de outra maneira: houve violência;
corpo de Gloster.) o menor destes dados os comprova.
WARWICK" Avançai, meu gracioso soberano; SurroLk: Warwick, a ser assim, quem poderia
vinde ver o cadáver. ter morto o Duque de Humphrey? Ele estava
Rer Henrique: Fora o mesmo sob minha proteção e de Beaufort.
que ver quanto é profundo o meu sepulcro. E eu quero crer, senhor, que nós não somos
Com sua alma fugiu todo o consolo assassinos.
que eu tinha neste mundo. Contemplá-lo WaRrwiICK : Vós éreis inimigos
equivale a me ver em vida morto. declarados do duque, e, apesar disso,
WarwICK* Com tanta segurança como espera ficastes incumbidos de guardá-lo.
minha alma ir para junto do terrível Não tencionáveis, certamente, dar-lhe
rei que se humanizou, para que a todos tratamento amistoso. Está se vendo
os homens libertasse da colérica que o bom duque encontrou um inimigo.
maldição de seu pai, estou convicto RarnHa MARGARIDA*
de que violentas mãos foram culpadas Pelo que vejo, suspeitais que a morte
no extinguir-se a existência deste duque prematura do Duque Humphrey de Gloster
três vezes afamado. foi causada por estes gentis-homens?
SUFFOLK * Juramento WARWICK *
terrível, em verdade, e por maneira Quem encontrasse morta uma vitela,
patética enunciado. Mas que pode ainda a sangrar, e um carniceiro ao lado
Lorde Warwick aduzir em seu reforço? com um machado na mão, não suspeitara,
Warwick: Vede como este rosto está congesto. com razão, ter sido ele o autor da morte?
Já vi muitas pessoas falecidas Se no ninho do açor acaso virmos
de morte natural; ficaram magros, uma perdiz, não nos será difícil
pálidos, cor de cinza, o rosto exangue, dizer como morreu, ainda que no alto
que o sangue sempre aflui para o esforçado paire o milhano, sem mostrar no bico
coração, que na luta em que se empenha recurvo nenhum sangue. De igual modo,
contra o inimigo, o chama para perto, é por demais suspeita esta tragédia.
porque possa lutar melhor com a morte. RarnHa MARGARIDA *
Aí se esfria o sangue, sem que às faces Suffolk, sois carniceiro? Onde se encontra
jamais retorne, para colori-las vossa faca? Beaufort tem o apelido
e emprestar-lhes beleza. Agora vede de milhano? Onde estão suas fortes garras?
como o rosto ele tem congesto e negro. SurroLk: Não faço uso de faca, para a vida
Os olhos se apresentam mais saltados tirar de quem esteja entregue ao sono;
do que em vida e nos fixam por maneira mas aqui trago espada vingadora,
pavorosa, tal como de pessoa pela inação coberta de ferrugem,
que tivesse morrido estrangulada, que eu posso mergulhar no rancoroso
Os cabelos ficaram levantados, coração que se atreva a caluniar-me
abertas as narículas com a luta, com o estigma sangrento de assassino.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Dize, orgulhoso Duque de Warwickshire


, Rer Henrique -
se tiveres coragem, que na morte
Não pode haver couraça mais potente
do Duque de Humphrey eu fui parte ativa.
do que um coração limpo. Está três vezes
(Saem o Cardeal Beaufort e Somerset..) armado quem defende a causa justa;
Warwick: Quando o repto é lançado pelo falso
ao passo que está nu, ainda que de aço
Suffolk, Warwick está disposto a tudo.
revestido, o indivíduo de consciência
RAINHA MARGARIDA *
manchada por ciúmes e injustiças.
Não se atreve ele a sofrear o gênio
insolente, nem pôr de parte o vezo (Ouve-se barulho.)
RarnHa MARGARIDA * Que será esse barulho?
de censurar com arrogância, embora
(Tornam a entrar Sufjolk e Warwick, com as espadas
fosse vinte mil vezes desafiado
por Suffolk. desembainhadas.)
Rer HENRIQUE -
Warwick: Oh senhora, ficai quieta,
Então, senhores, arrancais as armas
digo com reverência, porque cada
iracundas, estando nós presente?
palavra a favor dele compromete
Chega a esse ponto o vosso atrevimento?
vossa real dignidade.
De onde se originou esse tumulto?
SUFFOLK Lorde bronco, (Ouve-se o rumor da multidão: Salisbury torna a entra
de proceder ignóbil! Se houve alguma r.)
SALISBURY (falando para dentro) -
senhora da nobreza que o marido
Aguardai um momento, meus senhores;
desonrasse a tal ponto, foi tua mãe,
o soberano vai ficar sabendo
quando se rebaixou para no leito
de quanto pretendeis. Grande monarca,
culposo receber algum saloio
por mim vos diz o povo que se o pérfido
rude e mal educado, em tronco nobre
Suffolk, esse traidor, não for agora
fazendo enxerto de selvagem galho,
condenado à pena última, ou banido
de onde provéns, tu que, decerto, nunca
do solo da Inglaterra, eles, valendo-se
puderas descender da nobre raça
da força, o arrancarão de vosso paço
dos Nevils.
ea pavorosos tratos o submetem,
Warwick - Se amparado não te achasses
até que morra aos poucos. É acusado
pelo escudo do crime, eu defraudara
de haver assassinado o Duque de Humphrey.
de seus emolumentos o carrasco,
Todos estão, por isso, preocupados
libertando-te, assim, de dez mil pechas.
com o risco em que se encontra Vossa Alteza.
E se a presença do meu rei não fosse
É por instinto de lealdade, apenas,
causa de moderar-me, eu te obrigara,
livre do baixo espírito da teima,
poltrão, falso e assassino, a vir de joelhos
que os levasse a se opor a vosso alvitre,
dizer que era a tua mãe que tu aludias
que eles vêm exigir o banimento
há pouco, e que és bastardo de nascença.
do assassino. Cuidosos da pessoa
E depois de te haveres retratado
muito real de seu príncipe, eles dizem
covardemente, eu te daria a paga,
que se acaso intentasse Vossa Alteza
pernicioso vampiro dos que dormem,
descansar, e proibido a todos fosse
enviando essa alma podre para o inferno.
vos perturbar, sob pena de incorrerem
SurroLk- Estarás acordado, quando o sang
ue no vosso desfavor e, até, sob pena
eu te fizer verter, se te atreveres
de morte; não obstante o edito explícito,
a me seguir, saindo deste círculo.
se percebesse alguém uma serpente
Warwick - Vamos logo; se não te arrasto à força
. de língua bífida a esgueirar-se, astuta,
Contenderemos, muito embora sejas
para o lado de Vossa Majestade,
indigno. Vou prestar essa homenagem
fora mais do que urgente despertar-vos
tardia à alma do Duque Humphrey de Gloster.
porque o verme mortal não transmudasse
(Saem Sufjolk e Warwick.) Vosso sono inocente em sono eterno,

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Por isso eles proclamam, muito embora de cumprir a palavra que empenhara;
saibam que estão proibidos de fazê-lo, mas o meu juramento é irrevogável.
que até contra o querer de Vossa Alteza (A Suffolk.) Se após três dias fores visto dentro
buscarão amparar-vos contra as falsas de qualquer dependência do meu reino,
serpentes como Suffolk, esse hipócrita, pouco há de ser o mundo todo para
cujo dardo fatal e envenenado, te resgatar a vida. Vem comigo,
dizem todos, privou traiçoeiramente bondoso Warwick, vem, que necessito
da vida vosso tio estremecido falar-te sobre assuntos importantes.
que vale vinte vezes mais do que ele. (Saem o Rei Henrique, Warwick, nobres, etc.)
Povo (dentro) - Milorde Salisbury, vinde logo RarnHa MARGARIDA
trazer-nos a resposta do monarca! Que a desgraça e a tristeza te acompanhem.
SurFoLK* Compreende-se que o povo, gente rude, Sejam teus companheiros a apertura
tivesse enviado esse recado ao rei. do coração e o amargo desconsolo.
Mas vós, milorde, alegre recebestes Com ambos forme o diabo um belo terno
a incumbência tão-só para poderdes e que tripla vingança vos abata.
estadear vossos dotes de orador. SurroLK* Graciosa soberana, deixa dessas
No entanto, as honrarias conquistadas maldições e consente que, tristonho,
por Salisbury se resumem nisto: Suffolk as despedidas te apresente.
em ter sido ele enviado por um bando RarnHA MARGARIDA *
de caldeireiros com recado ao rei. Fora, mulher covarde, desgraçado
Povo (dentro) - A resposta! Se não, faremos força! de coração sem fibra! Não tens força
Rer HenriQuE* À todos agradece, Salisbury, para amaldiçoar teus inimigos?
de minha parte o zelo carinhoso SUFFOLK* À peste atinja a todos! De que vale
de que ora deram provas, e acrescenta lançar-lhes maldições? Se estas matassem,
que mesmo que eles não tivessem vindo como o fatal suspiro da mandrágora,
pedir-me essa medida, eu já me achava eu inventara os termos mais violentos,
resolvido a fazer o que me pedem. penetrantes, malditos e horrorosos
É certo, a todo instante o pensamento de se ouvir, e deixara que dos dentes
me fazia prever que, para o Estado, cerrados me saíssem, com tais mostras
só desgraças de Suffolk adviriam. de ódio implacável, como o faz a Inveja
Por isso eu juro pela majestade macilenta em seu antro repugnante.
daquele de que sou representante Minha língua ficara embaraçada
muito indigno, que mais do que três dias, no próprio turbilhão do que eu dissesse;
sob pena de morrer, não ficará dos olhos me sairiam tantas chispas
Suffolk em nossas terras, a empestar-nos como da pederneira; meus cabelos
o ambiente com seu hálito pestífero. ficariam de pé como os de um louco,
(Sai Salisbury.) parecendo que todos os meus membros
RArNHA MARGARIDA * falassem maldições, só maldições...
Henrique, deixa que a favor eu fale É isso: o coração sinto partir-se-me,
do gracioso Suffolk. se os não amaldiçoar. Seja veneno
Rer Henrique: Oh desgraciosa tudo quanto beberem! Seja bile...
rainha, por chamá-lo de gracioso não, muito mais amargo, o que mais grato
Suffolk! Nem mais uma palavra, digo. lhes souber ao paladar; não gozem sombra
Falando a seu favor, tu só consegues mais agradável do que a do cipreste;
aumentar minha cólera. Ainda mesmo olhar de basiliscos matadores
que eu só tivesse prometido, tinha lancem por toda parte; o mais macio

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contacto deles seja qual mordida


SurroLk: Banido, desse modo, se acha Suffolk
de lagarto; sua música, medonha
dez vezes: uma vez pelo monarca,
como o silvo da serpe, acompanhada
três vezes três por ti. Não me afligira
pelo agoureiro pio da coruja.
viver fora da pátria, se estivesses
Que o negro inferno e os seus horrores todos...
longe dela também. Suffolk achara
RarnHa MARGARIDA *
Papeloso eum deserco, se contasse
Caro Suffolk, é muito! Estás, com isso,
com tua companhia celestial.
aumentando teu próprio sofrimento. Porque onde tu te encontras, o universo
Todas as tuas maldições, no jeito todo está, com as venturas que ele implica;
do sol de encontro ao espelho, ou de espingarda
ao passo que o lugar onde me faltes
carregada em excesso, acabarão
equivale a um deserto. Já não posso
virando contra ti sua potência.
dizer mais nada. Vive, para teres
SurroLK* Mandastes que eu amaldiçoasse, e agora a alegria da vida, que minha única
desejais que me cale? Pelo solo alegria é saber que ainda estás viva.
de que me acho banido, eu poderia
prosseguir neste tom, amaldiçoando (Entra Vaux.)
RarnHA MARGARIDA *
sem cessar, pelo prazo de uma noite
Para onde se dirige Vaux com tantas
de inverno, embora nu eu me encontrasse mostras de pressa? Dize: que há de novo?
no alto de uma montanha em que o cortante
Vaux - Vou levar a notícia a Sua Alteza
frio não deixa nunca crescer a erva,
de que o Cardeal Beaufort está morrendo.
e ainda assim pensara só ter gasto Foi hoje acometido por mal súbito.
no agradável desporto alguns minutos. Respira a custo abrindo muito a boca;
RarnHA MARGARIDA * os olhos tem parados; diz blasfêmias
Oh! pára, por obséquio! Dá-me a mão, contra Deus e maldiz a terra e os homens.
para eu rociá-la com meu triste pranto.
Por vezes fala como se tivesse
Este lugar não deve ser molhado junto de si o espírito de Gloster;
pela chuva do céu, porque perdurem por vezes chama o rei e diz segredos
Os sinais do meu triste monumento.
ao travesseiro, como se falasse
Oh! se este beijo se imprimisse nela,
com Sua Majestade, confessando-lhe
(Beija-lhe a mão.) os pecados de sua alma atribulada.
para que, vendo o selo, tu pensasses Vou procurar o rei para dizer-lhe
nos lábios que escapar deixam milhares
que o moribundo o chama a grandes brados.
de suspiros por ti! Vai! Parte logo!
RAINHA MARGARIDA
porque eu conhecer possa a imensidade Vai; leva ao rei essa mensagem triste.
da minha dor. Enquanto estás presente,
não faço mais que simples conjeturas, (Sai Vaux,)
Oh Deus! Que vale o mundo? Que notícias!
como alguém que no meio da abundância Mas por que lastimar a fugaz perda”
pensasse em privações. Hei de chamar-te
de uma hora, sem lembrar-me da partida
novamente; confia no que digo,
de Suffolk, o tesouro de minha alma?
em que com isso me arrisque a ser banida...
Por que não choro apenas por tua causa,
Sim, que já estou banida, embora apenas Suffolk, a compelir com as carregadas
de ti próprio. Não fales mais; retira-te. * nuvens do sul, para saber que lágrimas
Não! Ainda é cedo. Assim, dois condenados
serão mais abundantes: se as das nuvens,
abraçam-se, separam-se mil vezes,
em benefício da lavoura, ou as minhas,
sofrendo a dor imensa da partida para dar alimento às próprias dores?
cem vezes mais pungente do que a morte. Agora vai; O rei vem vindo, sabê-lo.
E agora, adeus! Adeus a ti e à vida. Se ele aqui te encontrar, és homem morto.

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Henrique VI

SurroLK: Não poderei viver longe de ti. RarNHA MARGARIDA


E o que fora morrer sob os teus olhos, Não, vai logo, conquanto essa partida
senão adormecer nesse regaço? seja tão dolorosa como cáustico
Poderia exalar aqui o espírito posto em chaga mortal. Vai para a França,
tão branda e gentilmente, como o infante meigo Suffolk. Manda-me notícias,
que deixa a vida no materno seio. porque, onde quer que estejas neste globo
Longe de li, tornara-me furioso; terrestre, eu hei de te enviar uma Íris
gritaria que os olhos me fechasses, capaz de descobrir teu paradeiro.
SUFFOLK* Já vou.
que a boca me tapasses com esses lábios,
RAINHA MARGARIDA *
porque, dessa maneira, ou apanharias
Leva meu coração para onde fores.
minha alma fugitiva, ou no teu corpo
SurroLK* Como jóia no escrínio mais dorido
viria eu a insuflá-la, para que ela que jamais encerrou algo valioso.
continuasse a viver no doce Elísio. Tal qual barco em naufrágio nos partimos:
Morrer junto de ti fora um desporto; caio aqui para a morte.
mas, longe, é pior tortura do que a morte. RarnHAa MARGARIDA Eu, deste lado.
Deixa que eu fique. Aceito as consegiiências. (Saem.)

Ato HI - Cena II
Londres. Quarto de dormir do Cardeal Beaufort. Entram como varas com visgo preparadas
o Rei Henrique, Salisbury, Warwick e outros. O cardeal se para minha alma alada embaraçarem.
acha no leito, cercado de criados. Quero água! Ide dizer ao boticário
que me traga o veneno encomendado.
Rer HENRIQUE: Rer Henrique: Oh tu, Motor eterno das esferas,
Beaufort, fala ao teu rei. Que estás sentindo? lança os olhos benignos a este mísero!
CARDEAL: Se és a Morte, eu te dou todo o tesouro Oh! Expulsa o demônio intrometido
da Inglaterra, bastante para a compra que na alma se assentou deste coitado,
de uma outra ilha, contanto que me largues e tira-lhe do peito o desespero!
e me libertes logo destas dores. Warwick: Que esgares ele faz com a dor da morte!
Rer Henrique: Oh! Que sinal de vida mal vivida, SALISBURY *
quando a morte é encarada desse jeito! Não o perturbeis; deixai que em paz se fine.
Warwick: Beaufort, é o soberano que te fala. Rer HeNRIQUE-
CARDEAL: Se Deus assim quiser, paz à sua alma.
Chamai-me ao tribunal quando quiserdes. Lorde Cardeal, se acaso estás pensando
Não faleceu no leito? Onde devia na salvação eterna, a mão levanta,
morrer, então? Tenho eu poder, acaso, em sinal de esperança. Nada! Morre
para fazer alguém viver à força? sem fazer gesto algum. Oh Deus, perdoai-lhe!
Não me tortures mais! Confesso tudo. Warwick: Tão ruim morte inculca vida infame.
Tornou a viver? Mostrai-me onde ele se acha. Rer HenRIQUE:
Darei mil libras, só para enxergá-lo. Não julgueis; somos todos pecadores.
Já não tem olhos; a poeira os cega. Fechai-lhe os olhos; deixai bem cerradas
Penteai-lhe a cabeleira. Vede! Vede! as cortinas e vamos meditar.
como estão arrepiados os cabelos (Saem.)

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Ato IV : Cenal
Kent. Praia perto de Dover. neste negócio.
Canhoneio no mar. Depois, saltam de um bote um capitão Carrrão: Não te mostres duro.
de navio, o patrão, seu ajudante, Valter Whitmore e Deixa-o viver, aceita-lhe o resgate.
outros; com eles, Suffolk, disfarçado, e outros gentis- SurroLk* Contempla esta medalha de São Jorge:
homens, prisioneiros. sou fidalgo. Estipula o meu resgate
na quantia que for, que eu não discuto.
Carirão - Já baixou para o mar o dia esplêndido, WHITMORE *
falante e metediço. Agora o lúgrubre Fidalgo eu também sou; chamo-me Valter
uivar dos lobos despertou os sendeiros Whitmore. Mas, que vejo? Por que tremes?
que a Noite puxam, trágica e tristonha. A morte te apavora desse jeito?
Com suas asas morosas e caídas SurroLK- É teu nome que assim me mete medo,
eles roçam os túmulos dos homens; pois soa como a morte. De uma feita
das fauces tenebrosas vão soltando um homem de saber leu meu horóscopo
por toda parte escuridão pestífera. e disse que eu viria a morrer na água
Fazei, pois, avançar os prisioneiros, em circunstâncias tais como as que o nome
porque enquanto estiver o nosso barco que ora pronunciaste me recordam.
nas dunas ancorado, todos eles. Mas não seja isso causa de ficares
pagarão o resgate aqui na areia, inexorável, que, a rigor, teu nome
ou tingirão com sangue a praia pálida. deve ser pronunciado como Gualter.
Patrão, fica com este prisioneiro; WHITMORE *
e tu aí, como ajudante, tira Gualter ou Valter, pouco me preocupa.
bom proveito deste outro. Este aqui perto, O certo é que a desonra nunca o nome
(Apontando para Suffolk.) nos conspurcou, sem que com nossa espada
Valter Whitmore, te tocou por sorte. limpássemos 3 mancha. Se eu tivesse,
Primeiro GenTIL-HomEM * portanto, de vingar-me como um baixo
Patrão, dizei-me o preço do resgate. mercador, merecera ver quebrada
ParRÃo: Apenas mil coroas, ou a cabeça. esta espada, arrancados e manchados
AJUDANTE: É também o que eu peço; do contrário, os braços, e meu nome proclamado
com o que me coube faço a mesma coisa. no mundo inteiro como o de um covarde.
CarrrÃo - Como! Achais muito duas mil coroas (Põe a mão em Suffolk.)
para vos comportardes como nobres? SUFFOLK*
Cortai a esses malandros o pescoço! Pára, Whitmore! Teu prisioneiro é o Duque
Sim, morrereis. A vida dos consócios de Suffolk; sou príncipe e me sao
que perdemos não fica compensada William de la Pole.
por uma soma assim tão irrisória. WHITMORE -
Primeiro GenTIL-HomEM * O Duque de Suffolk envolto em trapos?
Vou pagá-la, senhor; poupai-me a vida. SuFFOLK* Sim, mas do duque os trapos são apenas
SEGUNDO GENTIL-HomEM * parte acessória. Às vezes Jove usava
E a minha; vou escrever já para casa. de disfarces. Por que não imitá-lo?
WHiTMORE (a Suffolk) * Carrão: Mas há uma diferença: Jove nunca
Perdi um dos olhos, quando da abordagem foi morto como tu vais ser agora.
ao teu navio. Vou vingar-me, agora, SurroLK: Obscuro e vil campônio, o nobre sangue
privando-te da vida, o que a teus sócios do Rei Henrique, o sangue de um Lencastre
também acontecera, se me ouvissem não pode ser vertido por um reles

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Henrique VI

palafreneiro. À mão não me beijaste senhor com a filha de um monarca pífio,


muitas vezes e o estribo não firmaste sem súditos, fortuna, nem diadema.
para eu montar? À trote não correste, Cresceste só por artes do diabo;
sem chapéu, junto à minha mula arreada como o ambicioso Sila, empanturraste
com custosos painéis, considerando-te esse ventre insaciável com pedaços
muito feliz se acaso eu te acenava? do coração sangrento de tua mãe.
À taça não me encheste tantas vezes, Por tua causa foi vendida à França
não viveste das sobras dos banquetes, Maine e Anjou; por tua causa, ainda, os hipócritas
não ficavas de joelho, quando, à mesa, normandos se insurgiram, recusando-nos
Margarida, a rainha, eu festejava? a obediência devida a seus senhores;
Lembra-te de tudo isso e abaixa a crista, os picardos mataram seus regentes,
pondo um cobro a esse orgulho sem proveito. de surpresa atacaram-nos os fortes,
Quantas vezes ficaste em nossa alcova, e em trapos e feridos despacharam
respeitoso, a aguardar minha passagem? para a terra nativa os nossos homens.
Esta mão que escreveu para fazer-te Os Nevils todos, Warwick, o altanado,
benefícios, vai pôr agora um termo que em vão nunca sacaram da bainha
nas sobras dessa língua escandalosa. seus gládios vingadores, revoltaram-se
WHrrmoRE : Que dizeis, capitão? Posso dar logo por ódio a tua pessoa. E a casa de York,
uma espetada neste pobre diabo? que, pela tirania usurpadora,
Carrrão : Primeiro vou feri-lo com palavras foi privada do trono pela morte
como ele fez comigo. vergonhosa de um rei bondoso e puro,
SUFFOLK* São rombudos, no fogo da vindita ora se abrasa,
como tu, vil escravo, os teus insultos.
levantando a bandeira da esperança
com meio sol que por brilhar se esforça,
CariTÃo : Levai-o para bordo e, aí, a cabeça
cortai-lha já.
sob o qual se acha escrito: Invitis nubibus.
Todo o povo de Kent pegou em armas.
SurroLk* Duvido que te atrevas
Enfim, para concluir: a mendicância
a fazer isso; a tua arriscarias.
e o opróbrio se esgueiraram no palácio
CarirÃo - Como não, Pole?
do nosso rei, e tudo por tua causa.
SUFFOLK* Como! Pole?
Some daqui! Levai-o sem demora!
Carrrão- Pole,
SurroLkK- Oh! não ser eu um deus para meu raio
sim senhor; Pole ou pulo, meu fidalgo.
lançar sobre estes vis, rudes e abjetos
Fidalgo, uma ova! Pula para o lodo,
mesteireiros. As coisas mais mesquinhas
para o canil de origem, a privada
enchem de orgulho os indivíduos baixos.
cuja imundície mal-cheirosa estraga Por ser este vilão chefe de um barco
as argentinas águas onde bebe
sem importância, lança mais ameaças
nossa Inglaterra. Agora vou um batoque do que Bargulus, o pirata ilírico.
pôr-te na ávida boca, que os tesouros Não do sangue das águias vive o zangão,
do reino devorou. Esses teus lábios, mas de pilhar o mel das abelhinhas.
que a rainha beijaram, vão, em pouco, Não é possível que me tire a vida
varrer o chão imundo. Riste na hora vassalo assim de tão mesquinha estirpe.
da morte do bondoso Duque de Humphrey; Tuas palavras deixam-me colérico,
mas vais fazer esgares para os ventos não me causam remorso. Estou de viagem
insensíveis, que assobiarão, mofando para a França, por parte da rainha.
de tuas carantonhas. Vais casar-te Intimo-te a me pores do outro lado
com as megeras do inferno, pelo ousio do canal, sem perigo e incontinenti.
de haveres desposado um poderoso Carrrão - Valter!

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WiLLIAM SHAKESPEARE

WiirmoRE : Vamos, Suffolk? eu vou te pôr depressa vossa crueldade, porque minha morte
do outro lado da vida. jamais fique esquecida. Os grandes homens
SurroLk- É a ti que eu temo. são muitas vezes mortos por mendigos.
Gelidus timor occupat artus.
Um gladiador romano e um vil bandido
WHrrMorE : Razão para ter medo vais ter antes privaram da existência o doce Túlio.
de eu me afastar de ti. Como! Estás manso?
Em Júlio César, com sua mão bastarda,
Dobrarás, finalmente, esse pescoço?
Bruto cravou o punhal; Pompeu, o Grande,
Primeiro GenTIL-HomEM : foi morto por selvagens insulanos.
Meu gracioso senhor, falai-lhe em termos Que muito que uns piratas matem Suffolk?
mais brandos; implorai-lhe os bons favores.
(Saem Wbhitmore, e outros, com Sulfolk.)
SUFFOLK* À voz de Suffolk é dominadora, Carirão : É do nosso prazer que parta livre
inflexível e altiva; não se humilha
um dos que concordaram com o resgate.
para implorar, só sabe ditar ordens. Pode sair. Venham comigo os outros.
Jamais devemos nos dobrar a gente
(Saem todos, com exceção do Primeiro Gentil. Homem.)
como esta, para honrá-los com pedidos.
(Volta Wbitmore com o corpo de Suffolk. )
Poderei pôr no cepo esta cabeça,
WHrrMoRE : Eis a cabeça dele e o corpo exangue.
porém só dobrarei os joelhos diante Deixai-os, até vir para enterrá-los
de Deus que está no céu e do meu rei.
sua amante, a Rainha Margarida.
É preferível que ela dance numa
vara sangrenta a descobrir-me em frente (Sai)
Primeiro GenrIL-HomEM *
de um criado desprezível. A nobreza
Oh! Que sangrento e bárbaro espetáculo!
verdadeira não sabe o que é ter medo. Vou levar o cadáver para o rei.
Saberei suportar quantos suplícios
Ainda que ele o não vingue, os seus amigos
com vossa vilania me infligirdes. o farão, ou a Rainha Margarida,
CarirÃo : Arrastai-o daqui; tapai-lhe a boca. que em vida tanto lhe era dedicada.
SUFFOLK- Não correrei. Soldados, mostrai toda
(Sai com o corpo.)

Ato IV: Cena ll


Blackbearih. Jorge - Se fosse só isso! O conselho do rei não é
Entram Jorge Bevis e Jobn Holland. composto de bons trabalhadores.
Jomn É certo. No entanto, diz-se: “Trabalha em
Jorce : Vamos, trata de arranjar uma espada, nem tua profissão”, o que equivale a afirmar que os
que seja só um pedaço de ripa. Há dois dias que eles magistrados devem ser trabalhadores. Disso se
estão de pé. conclui que nós deveríamos ser magistrados.
Jomn - Razão para que estejam agora com sono. Jorge: Falaste com acerto, porque não há melhor
Jorse : Digo-te que o tecelão Jack Cade tenciona indício de um espírito arguto do que a mão calosa.
pôr pano novo na república, virá-lo e dar-lhe brilho. Jown - Lá vêm eles! Lá vêm eles! Estou
Jomn - Já não é sem tempo, porque já está muito reconhecendo o filho de Best, o curtidor de
usado. Só o que eu digo é que a alegria desapareceu Wingham...
Jorge - Esse vai ficar com a pele de nossos inimigos,
da Inglaterra, depois da vinda dos fidalgos.
para com elas preparar couro de cachorro.
Jorse - Que época miserável a nossa! A virtude não
Jorn ...e o carniceiro Dick...
é apreciada nos artesãos.
Jorge - Esse abaterá o pecado como o faz com as
Jon - A nobreza acha degradante usar avental de
reses, e cortará o pescoço à iniquidade, como se fosse
couro.
o de um vitelo.

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VI

Jomn...e o tecelão Smith... e o meu palafrém irá pastar em Cheapside. Quando


Jorce: Argo, está com o fio da vida tecido. eu for rei... Sim, porque hei de ser rei...
Jown - Vamos logo nos juntar a eles. Topos: Deus guarde Vossa Majestade!
(Tambor. Entram Cade, o açougueiro Dick, o tecelão Cape Obrigado, bom povol... não haverá
Smith, um serrador e muita gente do povo.) necessidade de dinheiro; todo o mundo há de
Cape Nós, John Cade, assim denominado por comer e beber à minha custa. Farei que todos usem
nosso pai putativo... uniforme, para que se comportem como irmãos e me
Dick (à parte) * Quem não te conhecer que te honrem como a seu senhor.
compre! Dick À primeira coisa que devemos fazer é matar
CaDE*...porque o inimigo vai cair diante de nós, os magistrados.
levado pelo espírito de derrubar príncipes e reis, Cape Está no meu programa. Pois não é
recomendamos silêncio. lamentável que a pele de uma ovelha inocente sirva
Dick: Silêncio! para fabricar pergaminho e que esse pergaminho,
Cape: Meu pai foi um Mortimer... uma vez garatujado, possa matar uma pessoa?
Dicx (à parte) - Homem honesto, de fato, e muito Dizem que a abelha dá ferroadas, mas eu afirmo que
bom pedreiro. é a cera de abelha que o faz, porque já me aconteceu
Cape: Minha mãe, uma Plantageneta... selar alguma coisa uma só vez, sem nunca mais
Dick (à parte) * Conheci-a muito bem; era parteira. poder ser dono de mim mesmo. Mas, que é isso?
Cape: Miriha mulher descendia dos Lacys... Quem vem lá?
Dicx (à parte) : Não há dúvida; como filha de um (Entram alguns homens, trazendo o escrivão de
mascate, devia ter vendido muitos laços. Chatham.)
SMITH (à parte) * Mas, ultimamente, por não poder SMITH * O escrivão de Chatham. Ele sabe ler,
mais com a mochila, passou a lavar em casa roupa na escrever e contar.
barrela. Cape: Oh monstro!
Cape: Descendo, portanto, de uma casa honrada. SMITH - Surpreendemo-lo, quando preparava cópias
Dick (à parte) - É certo, por minha fé; o campo é para crianças.
honroso, onde ele nasceu, debaixo de uma sebe. A Cape: Miserável!
única casa que o pai dele teve foi a prisão. SMITH : Traz no bolso um livro com letras
CaDE: Sou corajoso. encarnadas.
SMITH (à parte) * Por necessidade, porque, para Cape: Então é feiticeiro.
pedir esmola, é preciso ter coragem. Dick Sim, e sabe também redigir obrigações e
Cape Resisto ao sofrimento. escrituras judiciais.
Drcx (à parte) - Quem o duvida? Já o vi ser CapE- O homem me dá pena. Por minha honra,
chibateado no mercado três dias seguidos. parece honesto; só virá a morrer, se eu descobrir nele
Cape: Não tenho medo nem de espada nem de fogo. alguma culpa. Chega mais para cá, maroto, que eu
SMITH (à parte) * Como ter medo de espada, com o vou examinar-te. Como te chamas?
casaco à prova de furo? Escrivão : Emanuel.
Dick (à parte) * Mas com o fogo precisa ter cautela, Dick * É o que se costuma escrever no início das
visto trazer nas mãos a marca dos ladrões de mensagens. Mau sinal para vossa causa.
carneiro. Cape: Deixai o caso comigo. Costumas assinar o
Cape: Sede bravos, portanto, que o vosso capitão teu nome, ou usas algum sinal particular, como o
é valente e vai proceder a uma reforma geral. De fazem as pessoas de bem?
futuro, sete pães de meio pêni serão vendidos apenas Escrivão * Graças a Deus, senhor, recebi educação
por um pêni; as canecas de três aros passarão a suficiente para saber assinar o meu nome.
conter dez, sendo considerado felonia beber cerveja Topos* Confessou! Confessou! Levai-o logo! É
fraca. Todo o reino ficará sendo propriedade comum vilão e traidor!

gr
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WiLLIAM SHAKESPEARE

Cape: Levai-o logo, digo. Enforcai-o com a pena e


WiLLiam SrarroRD - É falso.
o tinteiro pendurados ao pescoço.
Cape Eis a questão. Mas digo que é verdade.
(Saem alguns homens com o escrivão.) Tendo sido o mais velho entregue a uma ama,
(Entra Micael.) foi por uma mendiga, após, roubado.
MicagL - Onde está o nosso general?
Criado sem poder saber quem era,
CADE* Aqui, meu caro amigo.
quando adulto, ficou sendo pedreiro.
MicazL : Foge! Foge! Sir Humphrey Stafford e o
Sou filho dele. E, agora, contestai-me.
irmão estão aqui perto com o exército real.
Dick: É isso mesmo. Por isso, ele há de ser rei.
Cape : Pára, vilão! Pára, ou eu te derrubo! Ele terá
SMITH
de se haver com um homem de sua marca. Não é ele,
Senhor, ele construiu a chaminé da casa de meu
acaso, um cavaleiro?
pai. Os tijolos ainda vivem hoje, para confirmar o
MicaegL - Não. fato. Por isso, não o contesteis.
Cape Pois, para ficar sendo seu igual, vou tamb
ém STAFFORD - E vós acreditais em tudo quanto
fazer-me cavaleiro. vos diz esse imbecil que fala à toa?
(Ajoelha-se.) Topos: Acreditamos. Por isso, trataí de vos retira
Levanta-te, Sir John Mortimer! r.
WILLIAM STAFFORD - Jack Cade, foi o Duque de
(Levanta-se.) York que te ensinou tudo isso.
E agora, vamos a eles!
Cape (à parte) - É mentira; fui eu que o inventei.
(Entram Sir Humphrey Stafford e seu irmão William (Alto.) Trata de ir saindo, maroto! Vai dizer ao rei
com um tambor e soldados.) que, por amor de seu pai, Henrique quinto, no
STAFFORD - Canalha revoltada, rebotalho
tempo do qual os meninos brincavam com coroas
do condado de Kent, escória boa
francesas, eu permito que ele reine, mas com a
para a forca, deponde logo as armas!
condição de eu ficar como protetor.
Deixai este lacaio e retornai
Dick - Acrescentai que havemos de cortar a cabeça a
para vossas choupanas. Se o fizerdes,
Lorde Say, por ter vendido o ducado de Maine.
o rei será benigno para todos.
CADE- É justo, porque com isso a Inglaterra ficou
WILLIAM STAFFORD
mutilada, e necessitaria de um bastão para andar,
Mas vingativo, iroso é sanguinário,
se não fosse apoiar-se na minha resistência. Reis
se persistirdes. Rendição ou morte,
camaradas, digo-vos que esse Lorde Say castrou o
portanto: eis o dilema que vos resta.
nosso país, transformando-o em eunuco. Digo mais:
Cape - Nada tenho que ver com esses escravos ele fala francês; logo, é um traidor.
de vestidos de seda. É a ti, bom povo,
STAFFORD : Oh ignorância grosseira e miserável!
que eu me dirijo, a ti que, dentro em breve,
Cape: Se puderdes, respondei-me. Os franceses
espero governar, por ser o herdeiro
são nossos inimigos. Muito bem. Só pergunto uma
legítimo do trono. coisa: quem fala a língua de um inimigo, pode ser um
STAFFORD * Miserável! bom conselheiro?
Teu pai era pedreiro e tu não passas
Topos: Não! Não! É por isso que exigimos a sua
de um cortador de pano. É ou não certo?
cabeça.
Cape E Adão foi jardineiro. WILLIAM STAFFORD -
WILLIAM STAFFORD - À que vem isso? Já que não valem termos brandos, vamos
CADE: É muito fácil. Vede: Edmundo Mortimer
, atacá-los com o exército do rei.
Duque de March, a filha desposou
STAFFORD : Proclama, arauto, em todas as cidades,
do Duque de Clarence, não foi isso?
que os adeptos de Cade são traidores
STAFFORD : Sim, senhor.
e que quantos fugirem da batalha
Cape : Dela teve dois filhos num só parto.
enforcados serão nas próprias casas,

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Henrique
VI

à vista das mulheres e dos filhos, de sapatos ferrados, que são todos
para exemplo. Segui-me tropas leais. honestos e econômicos e, certo,
(Saem os dois Stafjords, com as tropas.) se bandeariam para o nosso lado,
Cape Vós, amigos do povo, acompanhai-me! se tivessem coragem para tanto.
É pela liberdade. Se sois homens, Dick - Eles já estão em ordem e vêm para nos atacar.
mostrai-o agora. Não deixemos vivo CADE- Nós só ficamos em ordem, quando estamos
nenhum lorde, nenhum desses fidalgos. fora de ordem. Vamos! Para a frente!
Só poupai as pessoas que estiverem (Saem.)

Ato IV: Cena HI


Outra parte de Blackbeath. Drcx - Não desejo mais do que isso.
Alarma. Entram os dois partidos e lutam. Caem mortos os Cape: Sim, e para ser franco, não mereces menos,
dois Stafjords. Vou pôr isto como lembrança da vitória.
(Veste a armadura de Sir Hlumpbrey Stafford.)
Cape Onde está Dick, o açougueiro de Ashford? Os dois corpos vão ser arrastados por meu cavalo
Dick: Aqui, senhor. até Londres, onde me devem entregar a espada do
CapE* Os inimigos caem diante de ti como prefeito.
carneiros e bois e tu te comportas como se Dick - Se quisermos prosperar e fazer algo de bom,
estivesses no teu matadouro. Por isso, desejo abramos as prisões e soltemos os presos.
recompensar-te da seguinte maneira: a Cape: Não te preocupes com isso, posso
quaresma vai durar outro tanto e tu terás assegurar-te. Vamos! Marchemos para Londres.
permissão de matar um cento menos um. (Saem.)

sda EV + Cena IV
Londres. Um quarto no palácio. BuCckKINGHAM *
Entra o Rei Henrique lendo uma súplica. Como responde Vossa Graça à súplica
Acompanham-no o Duque de Buckingham e Lorde dos rebeldes?
Say; entra depois a Rainha Margarida, chorando sobre Rer Henrique : Mandando-lhes um bispo,
a cabeça de Suffolk. como parlamentar. Deus não permita
que a morrer venham pela espada tantas
RarnHA MARGARIDA almas simples. Eu próprio, porque a todos
Já ouvi dizer que as penas a alma abrandam, não exponha a uma guerra sanguinária,
degenerada e tímida deixando-a. pretendo entrevistar-me com Jack Cade,
Cessa, pois, de chorar e pensa apenas seu general. Mas, esperai; desejo
na vingança. Mas quem o conseguira reler mais uma vez o que escreveram.
diante deste espetáculo? A cabeça RarnHa MARGARIDA"
aperto no meu peito palpitante; Oh, que bárbaros! Tua majestosa
mas como poderei cingir-lhe o corpo? figura, que exercia poderio

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WILLIAM SHAKESPEARE

sobre mim, como o de um planeta imóvel, reunir forças para aniquilá-los.


não pôde enternecer aqueles olhos RainHa MARGARIDA
indignos, mesmo, de te olhar de frente? Se Suffolk vivesse, acalmar-se-iam
Rer HENRIQUE * os rebeldes de Kent em pouco tempo.
Jack Cade, Lorde Say, jurou que ainda há de Rer HENRIQUE:
vos cortar a cabeça. Lorde Say, os traidores te abominam.
SAY: Mas espero Vem, pois, comigo para Killingworth.
que Vossa Alteza há de cortar a dele. Say - Com isso Vossa Graça perigara,
Rer Henrique: Então, senhora? pois a todos é odiosa a minha vista.
Sempre a morte de Suffolk a chorar? Ficarei aqui mesmo, procurando
Receio, amor, que se fosse eu o morto, ocultar-me do povo baixo e infando.
não chorarias tanto. (Entra o segundo mensageiro.)
RarnHa MARGARIDA * Não, querido, SecunDO MENSAGEIRO -
não te choraria; morreria junto. Em Londres Cade já tomou a ponte;
(Entra um mensageiro.) os moradores fogem diante dele,
Rer HENRIQUE- abandonando as casas; a canalha,
Que há de novo? Por que tamanha pressa? sequiosa de motim, fez com os traidores
MEnsacEIRO - Fugi, milorde! causa comum e juram, todos juntos,
Em Southwark os rebeldes já se encontram. pôr em saque a cidade e vossa corte.
Lorde Mortimer Cade se proclama BuckiNGHAM*
descendente do Duque de Clarence, Pressa, milorde! Vamos, montai logo!
e chama abertamente Vossa Graça Rer HENRIQUE -
de usurpador, jurando coroar-se Vem, Margarida; Deus, nossa esperança,
na abadia de Westminster. Seu exército não há de nos deixar.
é composto de um bando maltrapilho RarnHa MARGARIDA * Minha esperança
de campônios grosseiros e de criados não existe, pois Suffolk está morto.
que desconhecem compaixão. A morte Rei HenrIQUE (A Lorde Say) *
de Stafford e do irmão lhes deu coragem Milorde, adeus; não confieis nos homens
para avançar. Todos os homens doutos, de Kent.
os magistrados, cortesãos, fidalgos, BuckincHAM: Desconfiai de todo o mundo,
são por eles chamados de lagartas para obviar a traição.
que, sem apelo, à morte condenaram. Say: Só deposito
Rer Henrique: Infelizes! Não sabem o que fazem. confiança na inocência de minha alma,
BuckincHAM - Meu soberano, retirai-vos para que me faz corajoso e resoluto.
Killingworth, até termos conseguido (Saem.)

Ato IV : Cena V
O mesmo. À Torre. com jeito de morrer tão cedo.
Já tomaram a ponte,
Lorde Scales e outros aparecem sobre os muros. Embaixo, matando quantos se lhe opunham. O lorde prefeito
alguns cidadãos. pede que Vossa Honra lhe envie socorro da Torre,
para defender a cidade contra os rebeldes.
ScaLES - Comandareis as forças que me seja
ScaLES * Então, Jack Cade foi morto? possível dispensar. Mas os rebeldes
PrimeIRO CIDADÃO * Não, milorde, nem está me deixam preocupado, pois se empenham

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Henrique
VI

em conquistar a Torre. Ide depressa Combatei pelo rei, a pátria, as vidas.


reunir gente em Smithfield, que eu me incumbo E agora, adeus; preciso retirar-me.
de mandar Mateus Goffe em vosso auxílio. (Saem.)

Ato IV: Cena VI]


Londres. Rua Cannon. SoLDADO * Jack Cade! Jack Cade!
Entra Jack Cade com seus partidários e bate com o bastão Cape: Prostrai-o morto!
no marco de Londres. (Matam-no.)
SMITH: Se este sujeito tiver juízo, nunca mais vos
Cape* O dono da cidade agora é Mortimer. E daqui, chamará de Jack Cade. A lição foi boa.
sentado no marco de Londres, eu Dick: Milorde, está formado um exército em
determino e ordeno que, neste primeiro ano Smithfield.
do-nosso reinado, a fonte que mija não verta Cape: Vamos dar-lhe combate. Mas primeiro ide
senão vinho por conta da cidade. Doravante será pôr fogo na ponte de Londres e, se
considerado traição darem-me outro puderdes, incendiar também a Torre. Vamos!
nome além do de Lorde Mortimer. Marchai!
(Entra um soldado, a correr.) (Saem.)

Ato IV: Cena VII


O mesmo. Smithfield. Jown (à parte) - Então vamos ter estatutos mordedores,
Alarma. Por um lado entra Cade com seu bando; por a menos que lhe arrancassem os dentes.
outro, cidadãos com as forças do rei, sob o comando de Cape: Doravante todas as coisas serão em comum.
Mateus Goffe. (Entra um mensageiro.)
Batem-se; os cidadãos são derrotados e Mateus Goffe morto. MEnsacEIRO * Milorde, uma presa! Uma presa!
Aqui está Lorde Say, que vendeu as cidades da
CADE* Assim, pessoal! Agora incumbam-se alguns França e que nos fez pagar no último imposto de
de demolir o palácio Savóia; outros, as escolas de guerra vinte e um quinze avós e um xelim por libra.
Direito. Destruí tudo! (Entra Forge Bevis com Lorde Say.)
Dick : Eu desejava fazer um pedido a Vossa Cave: Bem; ele vai ser decapitado dez vezes por
Excelência. isso. Ah, és tu, lorde seda, ou lorde sarja, ou de
Cape: Ainda que seja uma excelência, só por essa entretela? Encontras-te agora bem no alvo da nossa
palavra vais obtê-la. real jurisdição. Que poderás responder à minha
Dick: Desejo apenas que as leis da Inglaterra majestade, por teres entregue a Normandia a
emanem de vossa boca. Monsieur Basimecu, delfim da França? Torne-se do
Jown (à parte) - Puxa! Serão leis bem doentias, por teu conhecimento, diante dos presentes e, ainda,
causa da lançada que ele recebeu na boca e que ainda da presença de Lorde Mortimer, que eu sou a
não está cicatrizada. vassoura que vai varrer da corte as podridões como
SMITH (à parte) * Não é isso, John; serão leis tu. Corrompeste traiçoeiramente a mocidade do
fedorentas, porque ele tem o hálito de peixe podre. reino com a criação de uma escola de gramática; e
Cape: Já refleti. Será isso que dizes. Vamos! enquanto os nossos pais não dispunham de outros
Queimai todos os registros do reino! Minha boca vai livros além do giz e da talha, foste causa de se
ser, daqui por diante, o parlamento da Inglaterra. introduzir a imprensa e de se construir uma fábrica

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de papel, com prejuízo do rei, da coroa e da estrangeiras, diante de monarcas,


dignidade. Vamos provar em tua cara que tu te não pugnou por vós todos esta boca?
serves de pessoas que falam a toda hora em nome é Cape Ora! Quando foi que já deste um só golpe
verbo e outras palavras abomináveis, que ouvidos
nos campos de batalha?
cristãos não podem suportar. Criaste juízes de paz
SAY:
para intimarem as pessoas pobres a comparecerem
Alcançam longe as mãos dos homens grandes.
à sua presença, a fim de tratarem de questões de
Derrubei muitas vezes indivíduos
que elas não entendiam coisa alguma. Puseste-
que eu não via sequer, e os prostrei mortos.
as na prisão e as mandaste para a forca, por elas
George * Que sujeito covarde! Então tu os
não saberem ler, quando, só por isso, mereciam
atacavas por detrás, não é assim?
viver muito mais tempo. Tu montas em cavalos
Say * Se tenho as faces pálidas, a causa
ajaezados, não é verdade?
a achareis em ter eu por vós velado.
SAY - À que vem isso agora?
Cape Dai-lhe um bofetão para que elas tornem a
CapE: É que não devias pôr mantas em teu cavalo,
quando muita gente mais honesta do que tu anda ficar vermelhas.
de gibão e calça. Say - À força de ficar sentado, quando
Dick: E trabalham, também, de camisa, como eu, julgava causas de pessoas pobres,
por exemplo, que sou açougueiro. fiquei cheio de incômodos e doenças.
Say - Homens de Kent... Cape : Vamos dar-te caldo de cânhamo e fortificante
Drcx - Que estais dizendo de Kent? de machado.
Say : Nada; disse apenas que é bona terra, mala gens. Dick - Por que estás tremendo, homem?
Cape Levai-o logo! Levai-o logo! Está falando Say-É da paralisia, não de medo.
latim. Cape Vede como ele sacode a cabeça para o nosso
Say - Escutai-me primeiro e, após, levai-me lado, como quem dissesse; Esperem que eu ainda
seja para onde for. Nos Comentários, hei de haver-me com todos vós! Veremos se essa
César trata de Kent e diz que é a zona cabeça fica quieta na ponta de uma vara. Levai-o
mais culta de toda a ilha. A terra, boa, logo e decapitai-o!
porque de bens repleta; o povo, ativo, Say - Dizei em que vos fui causa de ofensa.
valente, liberal e muito próspero, Acaso cobicei riquezas, honras?
o que me faz confiar que sois piedosos. Dizei: minhas canastras regurgitam
Digo que não vendi a Normandia de ouro extorquido aos pobres? É suntuoso
nem o Maine; daria a própria vida meu guarda-roupa? A quem já dei motivo
para poder reavê-los. A justiça de alguma ofensa, para que me vote,
sempre foi distribuída com indulgência; com tanto empenho, à morte? Estas mãos se acham
as lágrimas e as preces me abalavam, limpas de sangue de inocentes vítimas;
jamais nenhum presente. Que podia neste peito jamais entrou a perfídia.
ter eu de vós tirado, que não fosse Oh! Deixai-me viver! E
para o rei sustentar, o reino e todos? CaDE (à parte): Essas palavras me despertam
Fiz grandes donativos a pessoas a compaixão; mas saberei resistir. Ele tem de
instruídas, por ver que o livro ea pena morrer, quando mais não seja, por haver sabido
me granjearam favor junto ao monarca, defender-se tão bem. Levai-o logo! Traz um
e também por ter visto que a ignorância demônio embaixo da língua; não fala em nome de
é maldição de Deus, e o saber, asas Deus. Vamos, levai-o logo,já o disse, e cortai-lhe
com que nos elevamos para o céu. imediatamente a cabeça. Depois, invadi a casa do
A menos que os espíritos diabólicos seu genro, Sir James Cromer, fazei-lhe o mesmo,
vos dominem, não tendes causa alguma e trazei-me a cabeça de ambos na ponta de duas
para tirar-me a vida. Em quantas cortes varas.

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Topos: Assim o faremos. negociar com os nossos chuços?


Say * Oh caros compatriotas! Se com vossas Cape: Neste instante.
orações fosse Deus tão obstinado, Topos: Admirável!
que seria de vós no transe extremo? (Voltam os rebeldes, com a cabeça de Lorde
Tende piedade, então; poupai-me a vida. Say e a de seu genro.)
Cape: Levai-o logo e fazei o que vos disse. Cape: Não é isto mais admirável, ainda? Que
(Saem alguns homens com Lorde Say.) eles se beijem, agora, já que eram tão afeiçoados,
O mais orgulhoso par do reino não ficará com a quando vivos. Agora os separai, para que eles não
cabeça nos ombros, a menos que me pague tributo. combinem a maneira de entregar mais alguma
Nenhuma donzela se casará, sem me entregar, cidade da França. Soldados, deixai para a noite o
primeiro, a virgindade. Todos os homens me serão saque da cidade, porque vamos passar pelas ruas
submissos ix capite, e nós mandamos e ordenamos a cavalo, levando à frente, por cetro, estas duas
que suas mulheres sejam tão livres quanto o cabeças. Fazei que se beijem em todas as esquinas.
coração o desejar e a língua puder manifestar-se. Marchar!
Drcx Milorde, quando iremos a Cheapside, para (Saem.)

Ato IV - Cena VII


O mesmo. Southwark. toda a França tremeu, com suas armas
Álarma. Entra Cade com todo o seu bando. nos ameacem e sigam seu caminho.
Topos: Deus proteja o soberano! Deus proteja o
CapE: Subi pela Rua do Peixe! Descei pela esquina soberano!
de São Magno! Matai e derrubai a quantos Cape: Como! Buckingham e Clifford, sois assim
encontrardes! Atirai-os ao Tâmisa! tão valentes? E vós, miseráveis campônios, acreditais
(Toque para parlamentar. Retirada.) no que eles estão dizendo? Quereis ser enforcados
Que barulho é esse? Quem teve a ousadia de dar com o perdão à volta do pescoço? Minha espada abriu
o toque de retirada ou de parlamentar, quando eu caminho através das portas de Londres, para que
mandei que prosseguissem na chacina? me abandonásseis no Cervo Branco em Southwark?
(Entram Buckingham e o velho Clifford, com forças.) Pensei que não haveríeis de depor as armas,
BuckINGHAM * enquanto não houvésseis conquistado vossa antiga
Aqui está quem te deu tantos incômodos. liberdade. Mas estou vendo que não passais de
Fica sabendo, Cade, que aqui viemos uns covardes, uns maricas, que se comprazem em
da parte do monarca, como enviados viver como escravos dos nobres. Eles, pois, que vos
para tratar com o povo que iludiste, quebrem o dorso com fardos, e nas próprias barbas
com poder de perdoar os que deixarem vos tomem as casas e na vossa vista vos violem as
teu partido e voltarem para casa. mulheres e filhas. Quanto a mim, vou tratar de
CLrrrorp Cidadãos, que dizeis? Cedereis logo, cuidar de uma só pessoa; e assim caia em todos vós a
aceitando o perdão que vos ofertam, maldição de Deus.
ou deixais que um rebelde vos conduza Topos: Ficamos com Cade! Ficamos com Cade!
para onde ireis morrer? Os que tiverem CLiFFORD:*
amor ao rei, levantem os barretes Filho de Henrique quinto é Cade, acaso,
e gritem: Deus proteja o soberano! para dizerdes que ficais com ele?
E os que ódio lhe tiverem, não prezando Decerto pretende ele conduzir-vos
seu pai Henrique quinto, ante o qual tanto até o centro da França, e dos mais simples

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dentre vós transformar em conde ou duque? CADE (à parte) * Quem já viu pena mais fácil de
Não tem asilo ou casa onde se abrigue; soprar do que esta multidão? O nome de Henrique
viver não pode se não for saqueando quinto os leva a perpetrar centenas de ações más e
nossos bens e de quantos vos estimam. lhes dá ânimo para me deixarem desolado. Estou
Não vos envergonhais de que essas lutas percebendo que eles estão combinando em voz baixa
fratricidas ensejem aos temíveis para caírem sobre mim. Não há mais tempo a perder;
franceses, que vencestes tantas vezes, vou abrir caminho com a minha espada. (Alto)
ocasião de fazer a travessia
Apesar dos demônios e do inferno, passarei pelo
do mar e vos vencer? Em meio às lutas
meio de vós! Os céus e a honra sejam testemunhas
intestinas já os vejo tripudiando
de que não é por falta de coragem, mas pela traição
pelas ruas de Londres e chamando-vos
vil e ignominiosa de meus companheiros, que eu sou
a todos “Villageois!” É preferível
obrigado a rodar nos calcanhares.
que morram dez mil Cades miseráveis,
a virdes ser vassalos dos franceses. (Sai.)
BUCKINGHAM *
À França! À França! É tempo de ganhardes
tudo o que vos tomaram. Tende pena Como! Fugiu? Correi ao encalço dele.
da Inglaterra, que é a praia em que nascestes. Receberá de prêmio mil coroas
Henrique tem dinheiro; sois robustos quem levar para o rei sua cabeça.
e destemidos; Deus está conosco: (Saem alguns homens.)
não duvideis, portanto, da vitória. Soldados, vinde! Hei de arranjar um meio
Topos Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o de vos reconciliar com o soberano.
reie Clifford! (Saem.)

Ato IV - Cena IX
Castelo de Kenilworth. | a sentença, humildosos, ora aguardam
Trombetas. O Rei Henrique, a Rainha Margarida e de Vossa Majestade: ou vida, ou morte.
Somerset aparecem no terraço do castelo. Rer HenRIQUE:
Abra o céu suas portas sempiternas
Rer HenrIQUE* Já houve soberano que em seu trono para ouvir minhas graças e louvores.
terreno haja reinado com tão poucas Soldados, neste dia redimistes
alegrias como eu? Não tinha o berço as vidas e mostrastes toda a vossa
de todo abandonado, aos nove meses dedicação à pátria e a vosso príncipe.
de idade, quando fui coroado rei. Prossegui nesse mesmo estado de ânimo
Súdito algum mostrou tanto desejo que, por mais infeliz que seja Henrique,
de ser rei como eu tenho de ser súdito. podeis crer, não será jamais ingrato.
(Entram Buckingham e o velho Clifford.) Perdôo-vos e agradeço-vos. E agora,
BucxrncHAM * Saúde a Vossa Majestade! Trago despeço cada um para seus lares.
novas alvissareiras. Topos: Deus ampare o rei! Deus ampare o rei!
Rer Henrique: Dize, Buckingham, (Entra um mensageiro.)
foi preso o traidor Cade, ou tão-somente MensacEIRO * Permiti Vossa Graça que vos diga
fugiu para fazer-se ainda mais forte? que da Irlanda chegou o Duque de York
(Aparecem embaixo os partidários de Cade, com cordas ao com poderoso e forte contingente
pescoço.) de gallowglasses e de altivos quernes.
CrirroRrD: Fugiu, milorde; todos os seus homens Vem vindo para cá com grande séquito,
se renderam. De cordas ao pescoço, proclamando, por onde quer que passe,

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que suas armas visam tão-somente preciso para que ele os seus disperse.
retirar do teu lado Somerset, Somerser: Milorde,
a quem ele dá o nome de traidor. entrego-me à prisão de mui bom grado,
Rer HENRIQUE: como também a morte aceitaria,
Desta arte entre York e Cade eu me acho aflito, se de mim tanto a pátria reclamasse.
como barco que, após a tempestade, Rer HENRIQUE:
no início da bonança, por piratas Em caso algum usai de termos ásperos,
abordado se visse. Mal foi Cade que ele é altivo e detesta o falar duro.
repelido e seus homens dispersados, BuckINGHAM*
vem York em pé de guerra em sua ajuda. Podeis ficar trangúilo; hei de esforçar-me
Buckingham, vai depressa ao seu encontro para que tudo em vosso bem redunde.
e pergunta a razão dessa atitude. Rei HENRIQUE:
Mandarei para a Torre o Duque Edmundo, Querida esposa, entremos. Aprendamos
podes dizer-lhe. Somerset, pretendo a reinar; a Inglaterra vai ter causa
conservar-te em custódia o tempo apenas de maldizer meu infeliz reinado.
(Saem.)

Ato IV: Cena X


Kent. Jardim de Iden. Não cobiço crescer à custa de outrem,
Entra Cade. nem cumular riquezas ou desonras;
o que tenho me basta; é o suficiente
Cap: De que vale a ambição? Que valho eu próprio, para os pobres e toda a minha gente.
armado de espada e a ponto de morrer de fome? CADE (à parte) * Aí vem o dono do terreno, para
Há cinco dias me escondo nesta mata, sem me me pegar como se eu fosse uma besta perdida, que
atrever a sair dela, porque todo o país anda no houvesse entrado aqui sem sua licença. Ah, vilão!
meu encalço. Mas agora me encontro de tal modo Tencionas trair-me, para ganhares do rei mil coroas,
esfomeado, que embora tivesse de arrendar a por lhe levares a minha cabeça. Mas antes de nos
vida por mil anos, não me seria possível esperar separarmos, vou obrigar-te a comer ferro, como um
mais tempo. Por isso saltei o muro deste jardim, avestruz, e a engolir minha espada, como se fosse um
esperando comer uma pouca de erva, ou colher alfinete grande.
alguma salada, o que seria um ótimo refresco para Ipen * Quem quer que sejas, rude companheiro,
o estômago nesta época de calor. Não há que ver: não te conheço. Por que causa havia
salada ou celada, tanto faz; sempre me foi de grande de te trair? Não basta teres vindo
proveito. Quantas vezes a celada do meu capacete, como um ladrão e entrado em meus domínios
ou ele por inteiro, não impediu que me abrissem para roubar, após saltar o muro?
o crânio com umas alabardadas? E quantas vezes, Ainda por cima queres provocar-me
ainda, depois de uma caminhada longa, não me com esses palavrões desatinados?
serviu de quartilho o casco, para refrescar a língua? Cape: Provocar-te? Sim, pelo melhor sangue que
Pois vai servir-me, agora, de alimento. já foi vertido, e também dizer-te muita coisa na cara.
(Entra Iden, com criados.) Olha bem para mim. Há cinco dias que não como
IpEn * Quem trocara, senhor, este aprazível nada; mas, ainda assim, podes vir com os teus cinco
recanto pela corte tumultuosa? criados, porque se eu não vos deixar tão mortos
Esta modesta herança, recebida como um prego de porta, não quero que Deus me dê
de meu pai, vale tanto quanto um reino. mais capim para comer.

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Ipen - Não se dirá jamais, enquanto viva casa, por se ter evolado neste ponto a alma invencível
for a Inglaterra, que eu, Alexandre Iden, de Cade.
escudeiro de Kent, aceitei luta Ipen * Foi Cade que eu matei, esse monstruoso
desigual com um faminto miserável. traidor? Espada, só por esse feito
Fixa nos meus teus olhos esgazeados; eu te consagrarei e, quando morto,
vê se me obrigas a abaixar a vista. te porei sobre a minha sepultura.
Compara os nossos membros; és mais fraco. Este sangue jamais será apagado
Tua mão, em confronto com meu punho,
de tua ponta. Hás de trazê-lo sempre
parece um dedo; cabos de vassoura como manto de arauto, que anuncie
são tuas pernas junto destes troncos;
a glória hoje alcançada por teu dono.
meu pé pode lutar contra o conjunto
Cape Iden, adeus. Podes orgulhar-te de tua vitória.
de tua força, e se eu no ar levantasse,
Dize de minha parte ao condado de Kent que ele
tão-somente, este braço, já se achara
perdeu seu melhor homem, e exorta o mundo inteiro
cavada para ti a sepultura.
a se tornar covarde, porque, eu, que nunca tive medo
Mas em vez de palavras, que respostas
de ninguém, fui vencido pela fome, não pela bravura.
pomposas sempre obtém no mesmo estilo,
diga esta espada o que é vedado à língua. (Morre.)
Ipen - Quanto me ultrajas, pode o céu dizê-lo.
CapE* Por minha valentia, eis o mais completo
Morre, malvado, infame, maldição
campeão que já ouvi em toda a minha vida. Aço, se
entortares a ponta ou não picares em pedacinhos de quem te deu à luz. Do mesmo modo
este palhaço ossudo antes de voltares a dormir na que eu mergulhei a espada no teu corpo,
bainha, suplico de joelhos a Jove que te transforme queria mergulhar tua alma no inferno.
em cravo de ferradura. Vou te levar de rasto pelos pés,
(Batem-se; Cade cai.) dando-te por condigna sepultura
Oh! Estou morto! É a fome que me mata, nada mais. um muladar; após, hei de a cabeça
Se dez mil demônios me agredissem depois de eu cortar-te, monstruosa, e, triunfalmente,
ter recuperado as dez refeições perdidas, eu resistiria apresentá-la ao rei, deixando o corpo
abertamente a todos. Resseca-te, jardim! Doravante como grato repasto dos abutres.
fica sendo o cemitério de todos os moradores desta (Sai, com os criados, arrastando o corpo.)

Ato V: Cenal
Kent. Campo de batalha entre Darford e Blackbeath. Sancta Majestas, quem não te comprara,
De um lado, o acampamento do rei; por mais caro que fosses? Quem não sabe .
do outro, entra York com seu exército de irlandeses, com reger, deve aprender a ser mandado.
bandeiras e tambores. Só foi feita para o ouro esta mão forte.
Não posso transformar minhas palavras
York* Assim chega da Irlanda o Duque de York, em ações sem brandir a espada ou o cetro.
com o fim de reclamar os seus direitos E um cetro hei de possuir, tão certo como
e arrancar a coroa da cabeça ser eu dotado de alma, para nele
do fraco Henrique. Sinos, repicai! mandar gravar o lírio dos franceses.
Queimai, fogueiras! Avivais as chamas (Entra Buckingham.)
a fim de receberdes o legítimo, Quem vem chegando aqui? Buckingham, para
o grande soberano da Inglaterra. me perturbar? Mandou-o o rei, decerto.

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HenriquE VI

Dissimulemos, pois. Pode o meu soberano, o bom Henrique,


BuckxincHam: Se chegaste, York, exigir o meu filho primogênito,
com boas intenções, eu te saúdo. não, todos os meus filhos, porque sirvam
York: Humphrey de Buckingham, aceito as tuas como reféns de minha vassalagem.
saudações. Aqui te achas no caráter Hei de os mandar, tão certo como eu vivo.
de mensageiro, ou vieste por ti próprio? Tudo o que é meu: riquezas, armaduras,
BuckiNcHAM:* cavalos, terras, é de Sua Alteza,
Mensageiro de Henrique, nosso digno desde que Somerset a morrer venha.
soberano, com o fim de me informar ' BuckincHAM*
sobre o motivo deste movimento Louvo-te, York, essa branda submissão.
guerreiro em plena paz, e por que causa Vamos juntos à tenda de Sua Graça.
sendo tu, como eu sou, súdito dele, (Entra o Rei Henrique, com séquito.)
mau grado o juramento de obediência, Rer HENRIQUE-
sem sua permissão, reuniste forças Buckingham, contra nós não planeja York
consideráveis e tiveste o ousio nenhum mal, para andardes assim juntos?
de as trazer para perto de sua corte. York: Com humildade e toda submissão
Yorx (à parte) * Mal consigo falar, de tanta cólera. apresenta-se ora York a Vossa Alteza.
Arrancaria rochas, combatera Rer HenrIQUE-
com pedras, a tal ponto essas abjetas Então, por que reuniste tantos homens?
expressões me deixaram transtornado. York: Para expulsar esse traidor do reino,
Como Ajax Telamônio, empregaria Somerset, e lutar contra o monstruoso
em carneiros e bois a minha fúria. Cade, esse rebelde que, segundo
Sou de melhor estirpe do que orei; o que se anda a dizer, já foi vencido.
sou mais real do que ele até no modo (Entra Iden, com a cabeça de Cade.)
de pensar; mas preciso ter cautela. Ipen - Se uma pessoa simples e grosseira
Dissimulemos, pois, até que Henrique pode vir à presença do monarca,
fique mais fraco e minha força cresça. eis-me a cabeça de um traidor trazendo-vos,
(Alto.) Peço-te, Buckingham, que me perdoes a cabeça de Cade, por mim morto.
por não te responder todo esse tempo. Rer HENRIQUE-
Mas tinha a alma turvada de profunda A cabeça de Cade? Deus grandioso,
melancolia. Vou dizer-te a causa como és justo! Deixai-me ver o rosto
de eu ter trazido o exército comigo: sem vida de quem, vivo, me foi causa
para afastar do rei esse orgulhoso de tanta inquietação. Dizei, amigo,
Somerset, que perigo constitui se é certo que tu mesmo a decepaste?
para Sua Graça e, ainda, para o Estado. IDEN* Eu, sim, com permissão de Vossa Graça.
BuckINGHAM : É muita presunção de tua parte. Rer HenriQUE:
Mas se a razão for essa, comunico-te Como te chamas, e qual é teu posto
que o monarca cedeu sobre esse ponto: no Estado?
o Duque Somerset já está na Torre. Ipen“ Alexandre Iden é o meu nome,
York: Empenhas a palavra? Já está preso? um simples escudeiro do condado
BuckINGHAM * de Kent, mas devotado ao soberano.
Palavra de honra; o duque foi detido. BuckincHAM Se milorde o aprovar, fora acertado
York: Buckingham, nesse caso eu licencio criá-lo cavaleiro por tal feito.
minhas tropas. Soldados, agradeço-vos. Rer Henrique: Iden, ajoclha-te.
Dispersai. Procurai-me amanhã cedo (Iden se ajoelha.)
no campo de São Jorge; aí, então, o soldo Ora te levanta
tereis e tudo mais quanto quiserdes. já feito cavaleiro. Como prêmio,

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te dou mil marcos e também licença Olá! Chamai meus filhos, para virem
para fazeres parte do meu séquito. servir-me de caução.
Ipen - Deus queira que Iden viva o suficiente (Sai um dos criados.)
para tal galardão, e viva apenas Sei que as espadas
para ser fiel a Vossa Majestade. eles hão de arrancar para livrar-me,
(Entram a Rainha Margarida e Somerset.) antes de permitirem que me prendam.
Rer HenRIQUE- RAINHA MARGARIDA
Vê, Buckingham, vem vindo Somerset Chamai Clifford aqui; venha depressa
com a rainha. Depressa, vai dizer-lhe dizer-nos se os bastardos deste duque
que se esconda do duque. estão em condições de ser fiadores
RarnHa MARGARIDA * Nem mil Yorkes do pai, do vil traidor.
o obrigariam a esconder o rosto; (Sai Buckingham.)
mas frente a frente, e altivo, há de encará-lo. York: Napolitana
York* Como assim! Somerset se encontra livre? de sangue maculado, desterrada
Nesse caso, York, os pensamentos solta de Nápoles, flagelo sanguinário
que há tanto se acham presos, e de acordo da Inglaterra! Meus filhos, todos eles
com o coração a língua deixa agora. de melhor nascimento do que tu,
Terei, então, de suportar a vista vão servir de caução do Duque de York.
de Somerset? Rei falso, por que causa Ai de quem se opuser a esse direito!
faltaste com a palavra, se sabias (Entram, por um lado, Eduardo e
que eu não suporto ultrajes dessa monta? Ricardo Plantageneta, com forças; por outro,
Dei-te o nome de rei? Rei nunca foste. também com forças, o velho Clifford e seu filho.)
Não pode governar nem ser o guia Ei-los que vêm chegando; agora é certo
das multidões quem tanto se revela fazerem bom trabalho.
destituído de brio e de coragem RarnHa MARGARIDA Eis também Clifford,
para se impor a um vil traidor como ele. para impedir que o pai eles afiancem.
Essa cabeça é indigna da coroa. CrirroRD (ajoelhando-se) -
Não foi feita essa mão para dar nome Saúde ao meu senhor e soberano!
a um cetro temeroso, mas apenas York: Clifford, eu te agradeço. Que notícias
para o bastão cingir de peregrinos. nos trazes? Não procures espantar-nos
Eu, sim, é que devera ter a fronte com esse olhar colérico. Nós somos
cingida por esse ouro, pois com o cenho teu soberano, Clifford. Ajoelha-te
fechado ou com um sorriso, como a lança novamente. Perdoamos-te esse equívoco.
de Aquiles, causo a morte ou ensejo a cura. CrirFORD"
Eis a mão que devera estar com o cetro, Eis o meu rei. Não houve equívoco, York.
para leis decretar e dirigi-las. Foi teu o engano, ao presumires lapso
Sai daí! Pelo céu, não continues de minha parte. Levem-no depressa
a mandar por mais tempo em quem foi criado para Bedlam. Terá ficado louco?
pelo céu para ser teu soberano. Rer HENRIQUE:
SOMERSET"* Sim, Clifford, um humor louco e ambicioso
Oh monstruoso traidor! York, cu te prendo o leva a, assim, se opor ao soberano.
por causa da traição que ora perpetras CLirFORD:
contra o rei e a coroa. Petulante É um traidor; para a Torre o mandai logo,
traidor, vamos, retrata-te de joelhos. e ordenai que a cabeça lhe decepem.
York: Queres que cu me ajoelhe? Então pergunta RainHa MARGARIDA*
a estes, primeiro, se eles gostariam Já está detido, mas não se submete;
que eu me dobrasse diante de quem fosse. diz que os filhos o afiançam sob palavra.

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Henrique VI

York: Não o fareis, meus filhos? se te falta a experiência? E se a possuis,


EpuaRrDO - Fá-lo-emos, nobre pai; se for bastante por que dela abusares? Que vergonha!
nossa palavra. Ouve a voz do dever, dobra esses joelhos
Ricarpo* Caso ela não baste, que, de velhos, se vergam para o túmulo.
farão nossas espadas o restante. SaLisBury : Milorde, refleti comigo acerca
Crirrorp : Que estupenda ninhada de traidores! da pretensão deste famoso duque,
York: Mira-te num espelho e dá esse nome e reputo, em consciência, Sua Graça
à tua imagem. Eu sou teu soberano; o legítimo herdeiro do real trono
tu, um arquitraidor. Ponde no poste da Inglaterra.
meus dois ursos valentes, para que eles, Rer HENRIQUE * Jurastes-me obediência,
só com o ruído das cadeias, possam não é verdade?
apavorar estes sabujos tímidos. SALISBURY* É certo.
Chamai depressa Warwick e Salisbury. RerHenrique: — Ecomo pensas
(Tambores; entram Warwick e Salisbury, com forças.) desobrigar-te desse juramento
CLirFoRD - São estes os teus ursos? Vou moê-los perante Deus?
de pancada e tirar-lhes as cadeias SALISBURY* Pecado inominável
para com elas amarrar o guarda, é jurar um pecado, mas pecado
caso tenhas coragem de trazê-los ainda maior é procurar mantê-lo.
para o meio da arena. Quem se julga obrigado por solene
RICARDO" Já vi muitas, juramento a matar qualquer pessoa,
muitas vezes cãezinhos presunçosos a roubar, a forçar a castidade
morder a mão de quem os segurava; de uma virgem sem mancha, a se apropriar
mas quando as garras do urso lhes calava da herança que coubera a uns pobres órfãos,
fundo no pêlo, o rabo logo enfiavam e a negar à viúva o seu direito,
por entre as pernas e a ganir fugiam. sem ter outras razões para tais crimes,
Papel igual é o que farás, no caso afora a alegação de um juramento?
de quereres te opor a Lorde de Warwick. RainHa MARGARIDA *
CrirroRrp : Sai, montão de ira, massa indigerível, Um traidor astucioso não precisa
deformado no corpo e nas maneiras. lançar mão de sofismas.
York: Já vamos aquecer-te. Rer HenRIQUE- Ide logo
CLiFFORD* Mas cuidado, dizer a Buckingham que venha armado.
porque não vos queimeis no próprio fogo. York Manda buscá-lo; chama os teus amigos;
Rer HENRIQUE: estou por tudo, agora: a morte ou o trono.
Por que motivo os teus joelhos, Warwick, CLrrroRD
não se lembraram de dobrar agora? Se os sonhos não nos mentem, a primeira.
“Vergonha a esses cabelos brancos, velho Warwick: Andarias melhor, se te deitasses
Salisbury, que assim guiar-te deixas para sonhar de novo; assim fugirias
por um filho lunático. Pretendes das borrascas do campo de batalha.
assumir o papel de bandoleiro CrrrroRp - Estou disposto a suportar maiores
no teu leito de morte e com teus óculos borrascas do que quantas tu pudesses
agruras procurar? Onde há lealdade? hoje desencadear, e isso pretendo
Onde há dedicação? Se está banida deixar escrito nesse capacete,
da fronte encanecida, como pode pois que até agora eu te conheço apenas
qualquer abrigo achar ainda na terra? pelo lema dos teus.
Queres cavar um túmulo, com o fito WARWICK * Bem, a divisa
de achar a guerra e, assim, manchar de sangue dos velhos Nevils, por meu pai usada,
tua honrada velhice? Por que és velho, um urso preso a uma nodosa estaca,

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WiLLIAM SHAKESPEARE

hoje me encimará o arnez altivo, os rebeldes e todos os seus cúmplices.


como cedro no cimo da montanha RicarDO'*
que em meio aos furacões conserva as folhas. Não mostreis tanto orgulho ao falar nisto,
Até da visão disso terás medo.
que hoje mesmo ceareis com Jesus Cristo.
CLrrroRD Pois hei de te arrancar do capacete
O Moço Crrrrorp
esse urso e espezinhá-lo com desprezo,
Não sabes nada, monstro subalterno.
sem que me faça mossa o guarda dele.
RICARDO Se não no céu, ireis cear no inferno.
O Moço CLirrorp-
Pai vitorioso, às armas! Esmaguemos (Saem por lados diferentes.)

Ato V: Cena II
Santo Albano. seres meu inimigo encarniçado.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Warwick. CrrrroRp - Eu poderia despender louvores
à tua valentia, se a não visse
WARWICK posta a serviço da traição, da infâmia.
Clifford de Cumberland, Warwick te chama! Yorx- Ela vai me amparar contra o teu gládio,
Se não evitas o urso, agora, ao ouvires por a ter sempre usado na defesa
a trombeta colérica, e os gemidos da justiça e do bem.
dos moribundos que o ar vazio ocupam, CLirrORD* Jogo a alma e o corpo.
Clifford, torno a dizer, vem para a luta! York: Parada formidanda. A postos, vamos!
Clifford de Cumberland, lorde orgulhoso (Batem-se. Clijord cai.)
do norte, Warwick está quase sem voz CLrrroRD : La fin couronne les oeuvres.
de tanto te chamar para o combate. (Morre.)
(Entra York.) York: À guerra te deu paz, achaste a calma.
Perdestes o cavalo, nobre lorde? Se lhe permites, Deus, paz a sua alma.
York: Matou-o a mão de Clifford destruidora; (Sai)
mas a minha lhe deu troco na altura, (Entra o moço Clifford.)
transformando em carniça para as gralhas O Moço Crrrrorp':
e os corvos o corcel que ele apreciava. Vergonha e confusão! Debandam todos!
(Entra o velho Clifford.) Nasce a desordem do pavor, ferindo
WARWICK * quem amparar devera. Ó Guerra, filha
Chegou a hora de um de nós, ou de ambos. do inferno, transformada em instrumento
York: Warwick, busca outra caça; deixa-me esta, da cólera dos céus, lança nos frios
que eu lhe vou dar o golpe derradeiro. peitos dos nossos homens os carvões
Warwick: Faze-o, então, nobremente; é por um ardentes da vingança! Não permitas
[trono que nossa gente fuja. Quem à guerra
que te bates. Afirmo-o, com a certeza se consagra, descuida de si próprio;
que tenho de vencer: é pesaroso, só por acaso o egoísta é valoroso,
Clifford, que eu te abandono sem combate. jamais por natureza.
(Saí) (Vê o corpo do pai.)
CLiFFORD* Acabe o mundo
Que estás vendo, York, em mim? Por que paraste? desprezível! As chamas prometidas
York: Tua viril figura poderia do último dia a terra e o céu confundam!
deixar-me por ti preso, se não fosse Abafe a universal trombeta os ruídos

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Henrique VI

particulares e as mesquinhas vozes. conserva; coração, prossegue iroso.


Querido pai, estava destinado Pode o padre rezar pelo inimigo;
que vivesses em paz na mocidade, a um rei cumpre matar, dar o castigo.
que usasses a argentina vestimenta (Alarma; movimento de tropas. Entram o Rei Henrique,
da velhice experiente, e, assim, viesses a Rainha Margarida e outras pessoas, em retirada.)
a acabar em batalha desalmada RarnHA MARGARIDA
Os teus dias de calma e de respeito? Que lerdeza, senhor! Tende mais vida!
à vista deste quadro transformou-se-me Rer HENRIQUE
em pedra o coração, que, enquanto vida Ninguém escapa ao fado, Margarida.
me restar, ficará duro e insensível. RainHa MARGARIDA *
York os velhos não poupa; o mesmo aos filhos Afinal? Nem fugis, nem vos dispondes
farei dos inimigos. Como o orvalho a lutar. É preceito da coragem,
sobre o fogo, serão virgíneas lágrimas sim, da sabedoria, do sentido
para mim, e a beleza que por vezes de defesa, saber perder terreno,
abranda a tirania, para a minha tentando a salvação de qualquer jeito;
cólera, em chama, vai ser óleo e cera. e ora há um jeito, somente: a retirada.
Nada terei que ver, daqui por diante, (Sinal de alarma, ao longe.)
com a compaixão. Se eu me encontrar com um filho Se fordes preso, adeus tudo que temos!
da casa de York, o deixarei em postas Mas se tivermos sorte e conseguirmos
como a doce Medéia fez com Absirto. fugir, o que faremos facilmente,
À crueldade me vai deixar famoso, se não negligenciardes, chegaremos
daqui por diante. Vamos, nova ruína a Londres, onde somos estimados
de um solar tão antigo. e onde reparo se fará depressa
(Carrega o corpo.) na brecha que sofreu nossa fortuna.
Como Enéias (Torna a entrar o moço Clifford.)
outrora carregou o velho Anquises, O Moço Crirrorp
nos meus ombros viris eu te carrego. Se o coração não me pressagiasse
Mas Enéias levava um fardo vivo, maiores infortúnios, eu pudera
mais leve do que as minhas amarguras. blasfemar, sem pedir-vos que partísseis.
(Sai) Mas importa fugirdes; desenfreada
(Entram Ricardo e Somerset, lutando; Somerset é morto.) balbúrdia o coração dos nossos homens
RicarDO Fica-te aí! domina por completo. Fugi logo,
Debaixo deste escudo desprezível se quereis escapar. Ainda haveremos
de uma cervejaria, no castelo de viver para o dia da ventura,
de Santo Albano, Somerset, morrendo, ao imigo cedendo a sorte dura.
dá fama à feiticeira. Espada, a têmpera (Saem.)

Ato V - Cena II
Campo perto de Santo Albano. se esquece dos embates e de todas
Alarma. Retirada. Toque de clarins; as contusões do tempo e, como um bravo
depois, entram York, Ricardo, Warwick e soldados, com na flor da idade, sabe achar recursos
tambores e bandeiras. em qualquer ocasião? Não poderemos
considerar feliz esta jornada,
York: De Salisbury quem me dá notícias, nem dizer que ganhamos um só palmo,
o leão idoso que na sua cólera se ele, acaso, morreu.
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WILLIAM SHAKESPEARE

RICARDO * Meu nobre pai, os nossos inimigos, porque sempre


hoje o ajudei três vezes a montar, com muita rapidez se refizeram.
três vezes o amparei quando caído, York É certo, nossa segurança exige
três o tirei do campo, suplicando-lhe que lhes vamos no encalço, pois, segundo
que se poupasse; mas sempre ia achá-lo me disseram, o rei foi para Londres
onde era grande o risco. Qual vistoso a fim de convocar o parlamento.
tapete em casa pobre, era a vontade Persigamo-los, antes que eles possam
naquele corpo fraco e envelhecido. enviar as circulares. Lorde de Warwick,
Mas, com toda a nobreza, ei-lo que chega! que opinais? Correremos atrás deles?
(Entra Salisbury.) WarwICK* Atrás deles? De forma alguma; à frente
SALISBURY * Por minha espada, hoje lutaste bem. deles, se for possível. Por minha honra,
Pela missa, nós todos. Agradeço-vos, meus senhores, o dia foi glorioso.
Ricardo. Só Deus sabe quanto tempo Há de ficar famosa esta batalha
ainda eu tenho de vida; mas três vezes, de Santo Albano, em que York é o vencedor.
hoje, ele quis que vós me protegêsseis Sigamos para Londres, para a festa!
contra a morte iminente. Meus senhores, Se outras horas contássemos como esta!
não é bastante terem debandado (Saem.)

426
RICARDO III

Shakespeare
Introdução (David Bevington)

O fascinante governante maléfico que nomeia Ricardo III já apareceu na terceira


parte de Henrique VI, na sequência de quatro peças que formam a primeira incursão de
Shakespeare na história Inglesa. No último episódio dessa tetralogia, Ricardo, Duque de
Gloucester, encontra-se totalmente revelado como o gênio maligno da prolongada crise
da guerra civil da Inglaterra. Com uma ousada ação, Shakespeare abre Ricardo III com
seu surpreendente solilóquio; Ricardo toma o palco de uma forma que tem deixado as
plateias encantadas desde que Ricardo Burbage atuou no papel pela primeira vez.
Ricardo anuncia sua determinação em “provar-se um vilão,” ao desafiar e satisfazer à
Natureza, que fez seu corpo deformado. De fato, ele já iniciou seu curso traiçoeiro, e
vemos como sua trama contra Clarence, fundado em algo tão trivial como a letra G,
manipula o Rei e ludibria Clarence. Então, com escandalosa hipocrisia, ele “conforta”
Clarence. Dentro de menos de cem linhas, Shakespeare nos faz sentir quão brilhante,
cínico, charmoso e perigoso Ricardo de Gloucester é. Ricardo procede, dominando os
outros personagens – e a peça inteira – a um nível extraordinário.

Ao organizar essa peça firmemente em torno de Ricardo, Shakespeare resolveu


os problemas de dar forma ao seu drama e da conclusão da série de peças sobre a
rivalidade dinástica de York e Lancaster. Ricardo III inicia e termina com paz, ainda
que a paz recente do Rei Yorkista Eduardo seja desprezada e sabotada por Ricardo
assim que esta é introduzida. A paz é vulnerável nas facções da corte e é
veementemente denunciada pela encarnação viva daquele passado cruel e violento, a
Rainha Margaret. Não pode haver paz na Inglaterra enquanto Ricardo viver para sabotá-
la. Ademais, conforme o enredo move-se do estimulante alcançar do trono de Ricardo
até os eventos de sua queda trágica – quando sua consciência, os espíritos daqueles que
ele assassinou e o Conde de Richmond o punem e o vencem – nós vemos que sua
carreira é parte de uma ordem mais ampla, um plano aparentemente providencial de
compensação da perversidade e injustiça para reconciliar às divisões da Inglaterra. Por
todas as suas lembranças específicas do conflito e das atrocidades passadas, de ambos
os lados, Yorkistas e Lancastrianos, Ricardo III dramatiza um conflito arquetípico entre
o bem e o mal, personificado em Ricardo, o vilão-herói, e Richmond, seu oponente que
interpreta o papel de agente honrado da justiça divina e poética.

Dramaticamente, Richmond, como a Rainha Margaret, é mais um símbolo do


que um personagem completamente desenvolvido. Ricardo é a figura excitante
conforme engana e manipula os outros e finalmente encara a condição isolada e
assustadora que trouxe a si mesmo ao ser um vilão tão consumado. Ele ascende ao
poder através do engano, e, então, está sempre interpretando um papel. A habilidade de
Ricardo como um ator é, aparentemente, ilimitada. Ele já gabou-se, em 3 Henrique VI,
que ele pode enganar mais astutamente que Ulisses, Sinon ou Maquiavel e pode assumir
mais formas que Proteu. Para nós como plateia, ele é cinicamente franco e presunçoso,
ambientando-nos anteriormente para assistir as suas inacreditáveis performances. Em
um instante, ante nossos olhos, ele é o preocupado irmão mais novo de Clarence,
compartilhando o ódio da Rainha Elizabeth e de seus parentes; ele é o cômico tio da
pequena princesa; ou o devoto recluso estudioso da divindade com seus professores
clérigos, relutante em aceitar às responsabilidades do estado que lhe são confiadas por
seus súditos importunos (isto é, por Catesby e Buckingham, que também são atores
nessa cena arranjada).
Nenhuma dessas brilhantes performances, entretanto, equipara-se ao cortejo de
Lady Anne. O próprio Ricardo a vê como o grande teste de seus poderes e está,
adequadamente, impressionado com sua vitória. A cena do cortejo, para alguns críticos,
desafia a credibilidade. Uma chave para a credibilidade deve repousar na esplêndida
atuação. O ator que interpreta Ricardo deve transformar-se, do arrogante vilão que
conhecemos do solilóquio, para um amante atingido pela angústia. O argumento de
Ricardo é, sobretudo, falaciosamente plausível: que ele matou o marido de Anne e seu
padrasto porque a ama desesperadamente. O argumento apela à vaidade, a mais fatal das
fraquezas humanas. Que poder Anne repentinamente parece ter sobre Ricardo! Ela pode
matá-lo ou poupar-lhe a vida. Ricardo sagazmente a julga como alguém que não é capaz
de matar, e então ele arrisca oferecê-la sua espada. Como diretor de palco, ele alterou o
papel dela, de uma sincera enlutada para o estereótipo da mulher orgulhosa adorada pelo
seu humilhado servo no amor. Com esplêndida ironia, Ricardo inverteu a aparência e a
realidade do controle nesse conflito entre homem e mulher, ganhando o controle ao
lisonjear Anne, atribuindo a esta um imenso poder sobre suas emoções e sua vida.
Desse maravilhoso sucesso, Ricardo conclui que é possível fazer com que homens e
mulheres ordinários acreditem em qualquer coisa, até mesmo a trair seus próprios
instintos através “de simples olhares dissimulados e demoníacos” (1.2.239). Ricardo é,
de fato, parecido com o demônio; seu papel deriva, em parte, daquele do Vício das
peças de moralidade, brilhantemente cômico e sinistro. Porém, mesmo o demônio só
pode prevalecer sobre suas vítimas somente quando elas aquiescem no mal. O demônio
pode enganar os sentidos, mas a aceitação do mal é, ainda, um ato de vontade perversa.
Anne é culpada, não importando o quanto podemos apreciar do poder hipnótico da
personalidade de Ricardo. Ao final da cena, ela violou tudo o que mantinha como
sagrado.

A imagem de Ricardo como o demônio ou o Vício levanta questões de


motivação e de significado simbólico, e sugere duas maneiras diferentes de ler a peça,
uma psicológica e a outra providencial. Ricardo é um personagem humano, propelido ao
trono por sua ambição insaciável, como Macbeth? Há alguma pista em relação ao seu
comportamento em sua feiura e misantropia? Alguém pode argumentar que ele
compensa sua feiura e incapacidade de amar com sua determinação em dominar.
Sentindo-se desprezado, ele insulta todos os humanos e busca prová-los fracos e
corruptos para afirmar a si mesmo. Ele expressa uma propensão humana universal pela
crueldade e pela dominação insensata. Entretanto, a proposição que Ricardo é maldoso
porque ele nasceu feio logicamente pode ser revertida também: ele nasceu feio porque
ele é mal. Em termos providenciais, Ricardo pode ser visto como o resultado de um
plano divino no qual o mal ironicamente tem lugar em um esquema mais amplo das
coisas que é, finalmente, benigno.

Esse último conceito, muito devedor às noções da Renascença da


correspondência platônica entre as aparências exteriores e as qualidades interiores, é
embasado na ideia de um imenso conflito no Cosmos entre as forças do bem absoluto e
as forças do mal absoluto, a qual cada evento na vida humana tem um significado e uma
causa divina. O nascimento de Ricardo é, de acordo com essa teoria, uma manifestação
física desse significado divino. O destino providencial, tendo determinado a necessidade
de um gênio do mal nesse ponto da história Inglesa, decreta que Ricardo deve nascer. O
dente e a corcunda meramente fornecem evidências do que já está predeterminado. Nas
hábeis palavras da córica Rainha Margaret, Ricardo “selou em tua natividade / O
escravo da natureza e o filho do inferno” (1.3.229-30). Apesar dele devotar a si mesmo
para a ambição egoísta e a ação maléfica, Ricardo serve, finalmente, ao honrado
propósito da Providência divina nas questões humanas. Ele funciona, nessa
interpretação, como o flagelo de Deus, cujo trama tirana é permitida para que haja
punição justa sobre os transgressores da lei moral. Ele é, fundamentalmente, diferente
dos vilões mais humanos de Shakespeare, como Macbeth e Cláudio, mas pertence, em
vez disso, a um grupo especial de vilões, que inclui Iago de Otelo e Edmundo de Rei
Lear. Como eles, Ricardo é impelido pela motivação humana e pelo seu gênio maligno
preexistente; ele exibe a “malignidade sem motivações” atribuída por Coleridge a Iago.

Tal leitura é apenas uma abordagem em relação ao entendimento e função do


personagem de Ricardo; ele é, também, um ser humano envolvido em um conflito por
poder, motivado pela ambição e ódio. As duas leituras, uma psicológica e a outra
providencial, são complementares e não necessitam contradizer uma a outra. A leitura
psicológica parece mais inteligível para nós hoje, baseada, como ela o é, no caráter e
motivação. A leitura providencial, mais tradicional em sua ideologia, ajuda a explicar
não somente o deleite de Ricardo com o mal, mas também a necessidade por tanto mal e
sofrimento nas guerras civis da Inglaterra. Essa teoria da história deve muito a União
das Duas Ilustres Famílias de Lancaster e York (1542) de Edward Hall, a principal
fonte de Shakespeare, paralelamente às Crônicas de Raphael Holinshed, para as peças
Henrique VI. O tratamento de Shakespeare a Ricardo está, finalmente, em débito com a
História Anglica (1534) de Polydore Vergil e, especialmente, A História do Rei Ricardo
Terceiro, atribuída a Sir Thomas More (publicada em 1557). Essa última obra, adotada,
por sua vez, por Edward Hall, Richard Grafton e Raphael Holinshed, intencionalmente
difama o caráter de Ricardo. Ele torna-se um estudo da natureza da tirania, uma lição
objetiva da maldição colocada por Deus sobre o povo Inglês por causa de sua
pecaminosa desobediência.

Richmond, nessa explicação Tudor, torna-se o ministro de Deus, escolhido para


destruir o flagelo e, depois disso, realizar uma nova e feliz aliança entre Deus e a
humanidade como Rei Henrique VII. Assim, a peça quase não toca no sensível tópico
da sua reivindicação Lancastriana um tanto quanto remota ao trono. Sua vitória em
Bosworth não é mais uma reviravolta da roda da Fortuna, elevando ou depondo reis
Lancastrianos ou Yorkistas, mas o fim de um longo ciclo de violência não natural, e seu
casamento com a Princesa Yorkista Elizabeth é a restauração e o símbolo da unidade e
paz no justo solo da Inglaterra. Apesar dos historiadores modernos considerarem mais
imparcialmente a derrota de Ricardo III no Campo Bosworth em 1485, como uma
derrocada política indiferente da destituição por Henrique IV de Ricardo II, e
enfatizarem que Ricardo III era um administrador talentoso culpado de crimes políticos
não piores do que aqueles de seu sucessor mais venturoso, as plateias Elisabetanas
(sobre as constantes incitações do estado Tudor) não encontrariam significado suficiente
em tal interpretação neutra. Elas foram ensinadas a ver a história como reveladora das
intenções de Deus, e não a ver a ascensão de Henrique VII como um paralelo da
deposição de Ricardo II por Henrique IV, mas, em vez disso, como uma libertação
divinamente sancionada da nação Inglesa, a qual os súditos de Elizabeth eram felizes
herdeiros. De maneira apropriada, o mito Tudor enfatizava a natureza tirânica do
confisco do poder de Ricardo III e, contrariamente, minimizava os elementos
Maquiavélicos e políticos da conquista de Henrique VII. A batalha do Campo Bosworth
era vista como um ato de Deus, o levantar-se de um alguma força irresistível, e, de
forma alguma, como um precedente para rebelião futura.
Nas peças Henrique VI, Shakespeare coloca uma distância considerável entre si
próprio e a leitura da história da ortodoxia Tudor, permitindo às sinistras realidades da
guerra civil falarem por si mesmas. Em Ricardo III, entretanto, o padrão mostrado nas
crônicas provê Shakespeare com um dispositivo estrutural essencial. Ao ver as guerras
civis em retrospecto, Ricardo III potencialmente manifesta um sentido coesivo o qual os
sofrimentos da Inglaterra cumpriram um plano necessário de queda da inocência,
levando, através do pecado e da penitência, a regeneração. O mal é visto, finalmente,
como algo através do qual o bem triunfa, na história Inglesa, assim como na história da
queda da humanidade e a restauração pela graça divina.

Esse esquema providencial impõe uma dupla ironia em Ricardo III. A curto
prazo, Ricardo parece ser um completo mestre sobre suas vítimas. “Seu encarceramento
não deve durar,” Ricardo assegura a seu irmão Clarence. “Eu vou te libertar, ou ficar
convosco” (1.1.114-15). A plateia, já sabendo do segredo, pode arrepiar-se ante o
pavoroso humor dessas ambiguidades. Clarence será, de fato, libertado [entregue,
deliver] – a sua morte. Os criados de Ricardo entendem tais piadas, também. Quando o
Lorde Hastings está a caminho da Torre, onde ele planeja ficar até o almoço,
Buckingham observa à parte, “E jantar também, apesar de você não o saber” (3.2.122).
Buckingham, sabendo que Hastings está prestes a ser preso na Torre e executado por
traição, assustadoramente sugere que Hastings será, em breve, um banquete para
vermes. Um pouco antes, Catesby assegurou Hastings das gentilezas de Ricardo e
Buckingham: “Ambos os príncipes fazem alta conta de você – / [À parte] Pois eles
contam com a cabeça dele sobre a Ponte” (3.2.69-70). Isto é, a cabeça degolada de
Hastings será, em breve, levantada em uma lança na Ponte de Londres como um sinistro
alerta àqueles que entrarão em conflito com o novo regime. Ricardo tem uma frase para
tal argúcia: “Assim, como o Vício formal, Iniquidade, / Eu moralizo dois significados
em uma palavra” (3.1.82-3). O ponto de tais ironias é sempre o mesmo: o vilão
conspirador é mais esperto que suas vítimas, enganando-as através do equívoco e
triunfando sobre a cegueira espiritual delas.

A ironia protelada da peça, entretanto, oferece finalmente outra explicação


possível para as conclusões aparentemente niilistas das cenas anteriores; isto é, talvez
haja um plano mais amplo em ação, do qual Ricardo está inconsciente e no qual ele
interpreta um papel bem diferente do que ele cria para si mesmo. Nessa visão
interpretativa, o Ricardo de Shakespeare cumpre um plano o qual ele está inconsciente,
como nas crônicas de Edward Hall e outros, mesmo no processo que ele,
arrogantemente, considera como seu próprio auto-engrandecimento.

Os planos providenciais são sempre complexos, inescrutáveis às mentes dos


mortais, e entendidos menos por aqueles que involuntariamente os executam. Em uma
tentativa de provar sua própria alegação que a natureza humana é bestial e que um
homem Maquiavélico com autoconfiança total pode forçar seu caminho ao topo,
desconsiderando todas as convenções da moralidade, Ricardo é bem-sucedido ao
demonstrar o oposto. Do momento que ele toma o trono, ele o sente inseguro abaixo de
si; a oposição e a traição crescem em todos os distritos e, em seus últimos momentos,
um mero cavalo vale tanto quanto seu reinado inteiro. Com sarcástica comédia e justiça
poética, Ricardo torna-se o enganador proverbial que é enganado.

Mesmo se essa não for a única maneira de interpretar o personagem de Ricardo,


a peça oferece, para nossa consideração, uma teoria da causalidade divina a qual
praticamente todas as vítimas de Ricardo mereciam seus destinos porque elas
ofenderam a Deus. Profecias e sonhos dão estrutura à sequência de ações punitivas e
mantém o sinistro resultado. Como a córica Margaret observa, um Yorkista deve pagar
por um Lancastriano, olho por olho: Eduardo IV por Henrique VI, o jovem Eduardo V
pelo filho de Henrique VI, Eduardo. Assim, os príncipes Yorkistas, apesar de inocentes,
morrem por causa dos pecados de suas famílias. A Rainha Yorkista Elizabeth, como a
Lancastriana Margaret, deve sobreviver a seu marido até a impotente velhice,
lamentando as cruéis mortes de seus filhos. Clarence vê sua morte como punição por
quebrar seu juramento na batalha de Tewkesbury e por tomar parte no assassinato do
filho de Henrique VI, o Príncipe Eduardo. Os parentes da Rainha foram culpados por
ambição, e Lorde Hastings, de sua parte, é vulnerável porque ele estava disposto a
tramar com Ricardo contra os parentes da Rainha. As maldições de Margaret servem
para alertar os personagens de seus destinos (um alerta que eles cegamente ignoram) e
para convidar cada pessoa a amaldiçoar a si mesma involuntariamente mas com
apropriação irônica. Lady Anne deseja à infelicidade para qualquer mulher tão insana a
ponto de se casar com Ricardo. Buckingham protesta, em um juramento dos mais
sagrados, que a qualquer momento que ele voltar-se contra os parentes da Rainha, ele
merecerá ser punido por traição ao seu melhor amigo (isto é, Ricardo). Os sonhos
servem ao mesmo propósito de advertência divina, dando a Clarence uma intimação
grotesca de sua morte por afogamento (em um barril de vinho da Madeira) e alertando
Hastings (através do sonho de Stanley) que o javali, Ricardo, irá cortar sua cabeça.
Assim, a corte Inglesa pune a si mesma através de Ricardo. Ele é a essência do
faccionalismo dos cortesãos, apto a alcançar o sucesso, como ele o faz, somente porque
eles renegam seus votos mais sagrados e conspiram para destruir um ao outro. Eles
merecem ser logrados em seu próprio jogo deprimente. Entretanto, a queda deles
também é curativa; as vítimas de Ricardo reconhecem à justiça de sua ruína e
penitentemente imploram pelo perdão divino. Ricardo acha a consciência um tormento,
contrariamente, em vez de uma voz de conforto e sabedoria.

Ricardo III contém ironias e ansiedades históricas. A própria carreira maligna


bem-sucedida de Ricardo ao longo de muito da peça demonstra como a retórica e o
teatro podem ser usados para ludibriar e corromper. O processo político parece
propenso à manipulação cínica, e o triunfo vem, principalmente, para aqueles que
sabem como usar a retórica para um efeito calculado. O Lorde Mayor e seus associados
em Londres são tão flexíveis quanto a aristocracia. Por todas as garantias tardias de
significado providencial na ascensão de Ricardo ao poder e sua queda, a nós é permitido
especular desconfortavelmente sobre a ação pragmática da história e sua aparente
habilidade de impulsionar à frente, à proeminência, um mau rei ou um bom, como o
temperamento individual costuma ditar. Finalmente, há a questão de como Ricardo é
suplantado. Quaisquer razões para a dolorosa emergência de Ricardo, o processo de sua
derrocada requer uma ação humana e uma rebelião contra a autoridade real estabelecida
(mesmo que tirânica). Para os observadores atentos no século dezesseis, incluindo a
Rainha Elizabeth, qualquer rebelião como essa, não importando quão aparentemente
necessária, estabelecia um precedente incômodo e uma ameaça à estabilidade
monárquica Tudor. Se Ricardo III encontra respostas reconfortantes na vitória de
Henrique Tudor, Conde de Richmond, ela o faz em face de circunstâncias prementes e
problemáticas.

O padrão de reciprocidade e retaliação é muito mais do que uma forma de


demonstrar um propósito divino último nas questões humanas; ele é, também, uma
forma teatralmente efetiva de estruturar um drama para torná-lo coerente e interessante.
Shakespeare nos impressiona, sobretudo, como um homem do teatro, um artista e
entertainer que sente habilmente o que sua plateia deseja. A forma de Ricardo III,
conforme ela move-se através das ansiedades da ascensão praticamente imparável de
Ricardo ao poder para uma eventual afirmação que traz um encerramento não apenas a
essa peça, mas ao ciclo inteiro de quatro peças, das três partes de Henrique VI e Ricardo
III, é imensamente satisfatória como experiência teatral. Plateias modernas, sem
comprometimento ideológico à visão propagandista que Deus escolheu Henrique VII
como salvador da Inglaterra, podem responder calorosamente às representações
artísticas e teatrais de coerência e padrão da peça. Este padrão permite-nos apreciar às
vilezas de Ricardo como performances teatrais, enquanto percebemos que tais vilezas
estão contidas e desarmadas por uma estrutura mais ampla.

O bem eventualmente triunfa sobre o mal em Ricardo III, somente quando alguns
Ingleses têm a paciência e o senso comum em suportar uma punição presumidamente
merecida e esperar pela libertação. Como em 3 Henrique VI, as pessoas comuns têm
pouca relação com a ação da peça. Eles são córicos porta-vozes e observadores,
virtuosos em sua atitude (exceto pelos dois assassinos subornados de Clarence). Em sua
sabedoria popular comum, eles veem a loucura e o mal que os seus melhores ignoram:
“Ó, cheio de perigo é o Duque de Gloucester, / E os filhos e irmãos da Rainha soberbos
e orgulhosos” (2.3.28-9). E, apesar deles aceitarem Ricardo como governante, eles o
fazem da forma mais relutante; a primeira tentativa de Buckingham de persuadir as
pessoas a esse curso encontra a apatia e o silêncio. A sabedoria deles é a de “deixar tudo
para Deus” (linha 46). Na amplitude do tempo, essa fé na bondade traz a sua justa
recompensa.

Ricardo III comprime o tempo histórico. Ela inicia onde 3 Henrique VI termina,
com o retorno de Eduardo IV ao trono em 1471, e termina com a derrota de Ricardo III,
o último rei Yorkista, na batalha de Bosworth (1485). Por causa de sua relação temática
íntima com algumas passagens em 3 Henrique VI e seu estilo similar baseado em
Sêneca, a peça parece ter sido escrita um pouco depois de suas predecessoras, em algum
momento entre 1591 e 1594. Ela amplamente condensa eventos de catorze anos,
particularmente no início, quando os ritos funerais do Rei Henrique VI (1471), o cortejo
de Ricardo a Lady Anne (1472), o assassinato de Clarence na Torre (1478), e a morte de
Eduardo (1483) acontecem em rápida sucessão. Similarmente, a rebelião de
Buckingham (1483), a navegação frustrada de Richmond (1483), e seu atracar no Porto
de Milford (1485) são também comprimidos. O papel da Rainha Margaret é uma adição
histórica à peça, pois a Rainha viúva nunca deixou a França depois de seu resgate em
1475 por Luís XI.

Ricardo III é irresistível em performance. Não importando o quanto Ricardo


revela a si mesmo como um vilão sem consciência, sua versatilidade como ator e seu
tomar de nós como confidentes convida a um tipo de cumplicidade entre ator e plateia
que é a substância da excitação dramática. Essas qualidades são brilhantes em exibição
nas duas versões em filme, a de Laurence Olivier, em 1955 e na de Ian McKellen, em
1995. A primeira mostra as habilidades de Proteu de Ricardo na enganação, conforme
ele candidamente soliloquia a nós como seus confidentes, então transforma a si mesmo
no devotado irmão de George Clarence (John Gielgud) e então no chocante cortejador
de Lady Anne (Claire Bloom), aparentemente sob o controle da dama que ele venera.
Ian McKellen transfere a peça para uma era imaginada de guerra civil Inglesa, nos anos
1930, onde um cruel e quase nazista Ricardo agarra o seu caminho ao topo. Sua sede
por caos é psicótica, mas há uma dimensão estética também; ele mata com arte e estilo,
e saboreia os resultados ao examinar fotografias de suas vítimas mortas. Seu trabalho de
equipe com Buckingham (Jim Broadbent) para desconcertar os cidadãos de Londres é
algo de belo. Alguns closes focam à fronte franzida de McKellen enquanto ele
contempla seu próximo movimento. Olhando para Ricardo (1996) de Al Pacino,
explora a peça em ensaio com seu elenco de estrelas que inclui Winona Ryder, Kevin
Spacey, Alec Baldwin e Aidan Quinn. Muitos outros grandes atores distinguiram-se no
quintessencial papel teatral de Ricardo, incluindo Marius Goring, Brian Bedford, Ian
Holm, Antony Sher, Kevin Kline e Simon Russell Beale.
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Personagens

Rei EpuaRrDO IV. Sir RICARDO RATCLIFF.


Sir WILLIAM CATESBY.
EDuaRDO, Príncipe de Gales, depois Sir JAMES TRYRRELL.
Rei EduardoV' filhos do Rei. Sir JAMES BLOUNT.
RicaRrDO, Duque de York Srr WALTER HERBERT.
Srr RopeRT BRAKENBURY, tenente da Torre.
Jorce, Duque de Clarence Sir WiLIAM BRANDON.
RicarDO, Duque de Gloster | irmãos do Rei. Cristóvão Urswick, padre.
depois Rei Ricardo III Outro padre.
Lorde Prefeito de Londres. Xerife de Wiltshire.
Um jovem filho de Clarence.
Henrique, Conde de Richmond, depois Rei Ra gentis-homens do séquito de Lady Ana.
Henrique VII
CARDEAL BOURCHIER, Arcebispo de Cantuária.
Tomás ROTHERHAM, Arcebispo de York. ELISABETE, esposa do Rei Eduardo IV.
Joun Morron, Bispo de Ely. MARGARIDA, viúva do Rei Henrique VI.
Duque DE BUCKINGHAM. Duquesa DE Yorx, mãe do Rei Eduardo IV, de
Duque DE NoRrroLX. Clarence e de Gloster.
ConpDE DE SURREY, seu filho. Lapy Ana, viúva de Eduardo, Príncipe de Gales,
ConDE DE RIvERS, irmão da esposa do Rei filho do Rei Henrique VI; depois, casada com o
Eduardo. Duque de Gloster.
Lapy MARGARIDA PLANTAGENETA, jovem filha de
Marquês DE DORSET Clarence.
EoEDE Rar seus filhos. Nobres e outros servidores; dois gentis-homens,
um passavante, escrivão, cidadãos, assassinos,
ConDE DE OxFORD. mensageiros, espectros das pessoas assassinadas por
LorpE Hastincs. Ricardo III, soldados, etc.
LoRrpE STANLEY, denominado também Conde de
Derby.
LorvE LoveL. Cena
Srr Tomas VAUGHAN. Inglaterra.
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tod Cena l
Londres. Uma rua. Por meio de conjuras, arriscadas
Entra Gloster. insinuações, insanas profecias,
pasquins e invencionices, mortal ódio
GLosrTER: Ora pelo sol de York o frio inverno mantenho entre o monarca e o irmão Clarence.
do descontentamento foi mudado Ora, se o Rei Eduardo for tão justo,
em glorioso verão. Às negras nuvens tão veraz quanto eu sou falso e traiçoeiro,
que sobre nós pendiam já se encontram Clarence vai ser hoje transferido
sepultadas no seio do oceano. por causa de uma tola profecia
Agora as fontes temos circundadas segundo a qual um G será o assassino
por grinaldas vistosas; nossas armas dos herdeiros de Eduardo. Pensamentos,
amalgadas estão como troféus; mergulhai, pois Clarence vem chegando.
os severos alarmas se mudaram (Entram Clarence, escoltado, e Brakenbury.)
em reuniões alegres, nossas marchas Bom dia, irmão; a guarda que é que indica
temerosas em danças aprazíveis. junto de Vossa Graça?
À guerra carrancuda as fundas rugas CLARENCE* Interessando-se
da fronte já apagou, e em vez, agora, Sua Alteza por minha segurança,
de montar em cavalos ajaezados envia-me escoltado para a Torre.
para a alma amedrontar de seus contrários GLOSTER* E o motivo?
cheios de medo, lestemente salta CLARENCE* Porque me chamo Jorge.
num quarto de mulher, aos sons alegres GrosTER* Ora, milorde, não é vossa a culpa.
de um lascivo alaúde. Eu, no entretanto, Prender devia, então, vossos padrinhos.
que não nasci para essas travessuras Oh! Com certeza Sua Majestade
desportivas, nem para declarar-me pretende vos rebatizar na Torre.
a um espelho amoroso; eu, que me vejo Mas Clarence, que é que há? Posso sabê-lo?
cunhado por maneira tão grosseira, CLARENCE: Sim, Ricardo, depois que eu tiver ciência
carecente de dotes insinuantes do que se deu; mas juro que até agora
para me pavonear ante uma ninfa não sei de que se trata. No entretanto,
de frívolos requebros; eu, que me acho pelo que dizem, ele se impressiona
falto de proporção, logrado em tudo com profecias, sonhos e outras coisas
por uma natureza enganadora, desse gênero: risca do alfabeto
deformado, incompleto, antes do tempo a letra G por lhe ter dito um mágico
lançado ao mundo vivo, apenas feito que por G seus herdeiros morreriam;
pela metade, tão monstruoso e feio e como G é a letra do meu nome,
que os cães me ladram, se por eles passo... julga que eu sou o G de que se trata.
eu, em suma, nesta época abatida Foi essa ninharia e outras quejandas
de paz amolentada, não conheço que Sua Alteza a me prender levaram.
outra maneira de passar o tempo, GLOSTER*
a não ser contemplando a própria sombra, Sim, eis o que acontece quando os homens
quando o sol a projeta, ou comentando se deixam governar pelas mulheres.
minha deformidade. Se não posso Não é o rei que vos envia à Torre;
tornar-me o amante que divirta os dias é sua esposa, Lady Grey, Clarence;
eloquentes e alegres, determino ela é que o faz fazer esses extremos.
conduzir-me qual biltre rematado Pois não foi ela e aquele senhor digno,
e odiar os vãos prazeres de nossa época. Antônio Woodville, seu mui digno irmão,

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WiLLIAM SHAKESPEARE

que o forçaram, também, a pôr na Torre CLARENCE: Sei perfeitamente,


Lorde Hastings, que hoje, apenas, saiu livre? Brakenbury, a missão que te confiaram;
Ah, Clarence! não temos segurança; desejo obedecer-te.
Clarence! todos nós corremos riscos. GLOSTER* Somos súditos
CLARENCE: Pelo céu, segurança, nestes tempos, da rainha; forçoso é obedecer-lhe.
só a possuem os parentes da rainha Adeus, irmão; vou procurar o rei.
e os arautos que o rei todas as noites De bom grado farei quanto quiserdes,
a Mistress Shore envia. Não soubestes até mesmo chamar de irmã à viúva
da súplica humilhante de Lorde Hastings do Rei Eduardo, se assim for preciso,
porque ela a seu favor intercedesse? para vos libertar. Esta profunda
Grosrer * Humilde suplicando à divindade, desgraça que atingiu nossa irmandade
obteve o camareiro a liberdade. me toca mais no fundo do que acaso
Ouvi, pois, o que penso: o melhor modo possais imaginar.
de estarmos sempre bem com o soberano CLARENCE: Sei que é assim mesmo;
é entrarmos para a casa da rainha a nenhum pode ser ela agradável.
e usarmos sua farda, como todos. GLosrer : Bem; vossa detenção não será longa;
A ciumenta e estragada viúva e ela, hei de livrar-nos ou ficar convosco.
desde que nosso irmão as deixou nobres Mas, até lá, paciência.
são comadres influentes no governo. CLARENCE: Que remédio!
BRAKENBURY* (Saem Clarence, Brakenbury e oguarda.)
Suplico a ambas as Graças me perdoarem, GLosTER Vai, percorre o caminho de onde nunca
mas Sua Majestade me deu ordens retornarás, Clarence ingênuo e simples.
expressas para que pessoa alguma Tenho-te tal amor que dentro em pouco
de qualquer posição ou qualidade, mandarei para o céu tua alma cândida,
com vosso irmão à parte conversasse. se aceitar destas mãos o céu a oferta.
GLosTER: Sim? Se Vossa Excelência for servido, Mas quem vem vindo? É Hastings, já liberto?
Brakenbury, podeis ficar sabendo (Entra Hastings.)
quanto nós conversamos. Não fazemos HasTINGS"
traição, homem! Só disse que o monarca Ao meu gracioso lorde um dia esplêndido.
era sábio e virtuoso e sua esposa GLosrER * Outro tanto desejo ao meu bondoso
muito nobre, de idade já passada, camareiro. Ao ar livre sois bem-vindo.
bela e nada ciumenta. Sim, falamos Mas como suportares a prisão?
da consorte de Shore, que tem lábios Hasrincs: Meu nobre lorde, com paciência, como
de cereja, pezinhos delicados, compete aos prisioneiros. Mas ainda,
olhinhos de boneca e língua afável. milorde, hei de ter vida porque possa
Por último dissemos que os parentes dar agradecimentos às pessoas
da rainha são finos gentis-homens. que foram causa de eu ter sido preso.
Que dizeis? Podereis negar tudo isso? GLosrEr Sem dúvida, sem dúvida, tal como
BRAKENBURY : Não me meto, milorde, nessas coisas. se vai dar com Clarence; são os mesmos
GLosrER * Com Mistress Shore não te metes? Digo-te, os inimigos de ambos, que contra ele
amigo, que, tirante um consulente, prevalecem agora de igual modo.
devem agir os mais secretamente. Hasrincs - Dá muita pena ver engaioladas
BrAKENBURY * Visando quem, milorde, ressalvastes? as águias e com plena liberdade
GLosrTER- O marido, imbecil! Quereis trair-me? para prear os bútios e os milhanos.
BRAKENBURY * Peço que Vossa Graça me perdoe GLosrER E aí por fora, quais as novidades?
e que ponha remate à conferência Hasrrncs : Nenhuma tão ruim como as de casa;
com o nobre duque. o rei está doente, melancólico

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A Tracépia DO RE1 RICARDO III

e fraco; os médicos estão receosos. Feito isso, Deus receba o Rei Eduardo
GrosrER: Por São Paulo, a notícia é ruim, de fato. na sua graça e me conceda o mundo
Abusou, por demais, de um mau regime, para nele agitar-me. Logo tomo
prejudicando a sua real pessoa. por mulher a mais nova filha de Warwick.
Só de pensar, dá pena. Está de cama? Que importa que ao seu pai e a seu marido
Hasrinos Está. tivesse eu dado a morte? O melhor meio
de dar satisfações a essa donzela
GLOSTER* Ide na frente; já vos sigo.
é ficar sendo dela pai e esposo,
(Sai Hastings.)
o que farei, não por amor, decerto,
Viver não pode, espero-o; mas não deve
mas por um fim profundamente oculto
morrer enquanto Jorge despachado
que preciso alcançar com o casamento.
não for em extraposta para o céu. Mas desse jeito estou indo na frente
Vou ver se o encontro, para espicaçá-lo do cavalo. Clarence ainda respira;
contra Clarence com bem aceradas Eduardo está com vida e ocupa o trono:
mentiras e argumentos ponderosos. só depois que tiverem ido embora
Se não gorar meu plano meditado, é que me vai raiar a nova aurora.
não viverá Clarence mais um dia. (Sai)

Atof- Cena II
Londres. Outra rua. calamidades sobre o miserável
Entra o corpo do Rei Hlenrique VT em um esquife aberto. que nos tez miseráveis com tua morte
Gentis-bomens com alabardas fazem a guarda; Lady Ana, do que a aranhas e sapos eu deseje
como carpideira. e a quanto verme venenoso exista.
Se filho vier a ter, seja ele aborto
Ana: Deponde aí mesmo vosso fardo honroso — monstruoso, prematuro à luz trazido,
se é que pode ficar amortalhada cujo aspecto medonho e extravagante
a honra num ataúde — enquanto o pranto à esperançosa mãe pavor infunda.
dos funerais eu verto, lastimando A maldade do pai lhe seja herança.
a queda prematura de Lencastre. Se algum dia casar, torne-se a esposa
Pobre figura fria de um rei santo! mais infeliz com a morte do marido
Pálidas cinzas de uma casa nobre! do que eu com a tua e a do meu jovem dono.
Restos exangues desse sangue real! Levai agora o vosso fardo santo
Permite que ora o espírito eu te invoque, para Chertsey, tirado de São Paulo,
porque ele ouça os gemidos da pobre Ana, a fim de ser ali posto no túmulo.
mulher do teu Eduardo, de teu filho, Sempre que o peso vos deixar cansados,
de teu filho que foi apunhalado parai, para que eu possa novamente
pela mão que te fez essas feridas. sobre o corpo chorar do Rei Henrique.
Nas janelas por onde a tua vida (Os carregadores levantam o ataúde e dão alguns passos.)
se escapou eu derramo o triste bálsamo (Entra Gloster.)
destes doridos olhos. Oh! Maldita GLosTER* Ponde o corpo no chão, carregadores!
seja a mão que estes furos praticou! Ana" Qual foi o negro mágico que o diabo
Maldito o coração que para tanto conjurou para vir se opor aos atos
teve coragem! Sim, maldito o sangue de caridade?
que este sangue verteu. Caiam maiores Grosrer* Biltres! Ponde o corpo

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ANA: Desconheces,
no chão! Caso contrário, por São Paulo,
há de morto ficar aqui o rebelde. vilão, as leis divinas e as humanas.
Primerro GENTIL-HoMEM * As próprias feras mostram-se piedosas.
Afastai-vos, milorde, porque o féretro GLosTER : Não sou fera; no entanto, sou impiedoso.
possa passar. ANA“ O diabo falou certo... Oh coisa estranha!
GLosrER* Cachorro descarado, GLosreR : Mais estranho é haver anjo tão zangado.
pára, quando eu mandar! Se levantares Divina perfeição do belo sexo,
tua alabarda à altura deste peito consente que eu me absolva, nestas mesmas
circunstâncias, de todos esses crimes
por São Paulo, a meus pés hei de prostrar-te
imaginários.
e de pisar em ti, para castigo
ANA: Infecção monstruosa
dessa temeridade.
de homem, deixa que nestas circunstâncias,
(Os carregadores depõem o atatíde no chão.)
por todos os teus crimes conhecidos,
ANA: Como! Todos
maldito, eu te maldiga.
ficastes trêmulos? Estais com medo?
GLOSTER' Oh mulher linda,
Ah! não vos culpo, porque sois humanos muito mais do que cabe nas palavras,
e o olhar humano suportar não pode ouve-me com paciência, porque eu possa
a vista do demônio. Fora, horrendo
desculpar-me, afinal.
comissário do inferno! Tu só tinhas Oh monstro horrendo
ANA“
poder sobre o seu corpo transitório;
mais do que pode crer a mente humana,
sobre tua alma, não. Por isso, vai-te!
só te enforcando é que terás desculpa.
GLosTER* Pelo céu, doce santa, não te mostres GLosrERr- Com esse desespero eu me acusara.
tão zangada. ANA: Por esse desespero te escusaras,
ANA: Por Deus, demônio horrível, infligindo-te a pena merecida
não nos perturbes! Transformaste a terra por teres morto tantos inocentes.
feliz em teu inferno, transbordante GLosrER: Dize que os não matei.
de maldições e de profundas queixas. ANA: Então declara
Se achas prazer em contemplar teus feitos que os não mataram; mas matados foram
horripilantes, olha esta obra-prima e por ti, justamente, infernal monstro.
de toda a tua matança. Oh gentis-homens, GLOSTER*
vede as feridas do defunto Henrique Não matei vosso esposo.
que as frias bocas abrem e, de novo, ANA: Ele está vivo?
põem-se a sangrar. Cria vergonha, monte GLosTER: Não, já morreu; mas pela mão de
de atroz e vil deformidade! É a tua Eduardo.
presença que provoca esta sangueira Ana: Mentes pela garganta! Margarida
das frias veias que já não têm sangue. viu teu gládio assassino, fumegante
Teu feio ato contra a natureza de seu sangue; e contra ela o dirigiras,
faz um dilúvio contra a natureza. se acaso o não desviassem teus irmãos.
Oh Deus! Criaste este sangue; a morte vinga-lhe! Grosrer- Sua língua aleivosa me irritara,
Terra, tu o bebes; vinga-lhe o trespasse! pondo a culpa de todos nos meus ombros
Que um dos teus raios, céu, mate o assassino! inocentes.
Ou então, terra, escancara a larga boca ANA: Foi tua alma sanguinária
para logo tragá-lo, como o fazes que te irritou, porque ela só cogita
com o sangue deste rei de alma bondosa de matanças e crimes. E o monarca
que o seu braço infernal privou da vida. não foi morto por ti?
GLOSTER* Isso eu concedo.
GLosTER: Desconheceis, senhora, a caridade,
que paga o mal com o bem e retribui ANA“ Concedes isso, monstro? Então conceda-me
as maldições com bênçãos. também Deus que danado tu te vejas

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A Tracépia DO Rei RicAaRDO III

por esse crime horrível. Doce ele era, Ana: Seria uma contenda mui razoável
amável e virtuoso. matar o matador do meu marido.
GLOSTER* Merecia GLosrER * Quem te privou, senhora, do marido,
morar com o rei do céu, que o tinha criado. vai-te ajudar a achar melhor marido.
Ana Está no céu, para onde nunca irás. Ana: Melhor, nenhum respira sobre a terra.
GLosrTER- Deve-me, então, ser grato pela ajuda. GLosTER : Vive quem te ama muito mais do
Está melhor no céu do que na terra. que ele.
ANna- E tu não tens melhor lugar que o inferno. Ana: Quem é?
GLosTER- Não; há outro: quereis que vo-lo diga? Groster: Plantageneta.
ANA: À prisão, certamente. Ana" Era o seu nome.
GLOSTER"* Vossa alcova. GLosrER* O nome é o mesmo, mas melhor
Ana: Seja o sono banido do teu quarto! pessoa.
GrosrER Sê-lo-á, enquanto não dormirmos juntos. Ana“ Onde se encontra?
Ana" Espero que assim seja. GLOSTER* Aqui.
GLOSTER* Sei que é assim. (Ana lhe cospe no rosto.)
Porém gentil Lady Ana, arrematemos GLosTER: Por que me cospes?
de uma vez estes ásperos assaltos Ana" Que bem que te seria esse meu cuspo,
de nossa inteligência, para um método se ele atirasse qual mortal veneno!
mais seguro empregar, embora lento. GLOSTER * Jamais o produziu lugar tão doce.
A causa do trespasse prematuro ANA Jamais caiu num sapo tão medonho.
de Eduardo e Henrique, esses Plantagenetas, Fora daqui! Os olhos me infeccionas!
não será, por acaso, tão culpável GLosTER- Esses olhos, senhora, é que me cegam.
como o seu próprio autor? Ana“ Quem dera que eles fossem basiliscos,
ANA: Tu foste a causa; para a morte te darem!
tu és o que fizeste a ação maldita. GLOSTER"* Desejara
GLOSTER' À causa desse efeito a tentes perto: isso mesmo; que, assim, morrera logo;
vossa beleza. Sim, essa beleza eles me estão matando lentamente.
que até durante o sono me mandava Dos meus esses teus olhos tiram lágrimas,
matar o mundo todo, porque uma hora deixando-lhes a luz envergonhada
viesse a gozar em vosso brando seio. com as gotas infantis. Jamais haviam
Ana: Afirmo-te, homicida, que no caso estes olhos chorado. Não, nem mesmo
de eu pensar desse jeito, essa beleza quando choraram meu pai York e Eduardo,
com estas unhas eu própria a destruiria. aos gemidos de Rutland, atingido
GLOSTER" Jamais suportariam estes olhos pela espada do negro e horrendo Clifford,
a vista de tal quadro. Estando eu perto, nem quando teu valente pai contava,
não fareis nenhum dano a essa beleza. como uma criança, a história comovente
Tal como o sol ao mundo, ela me anima: da morte de meu pai e vinte vezes
é meu dia e, ainda mais, é minha vida. parava a suspirar, deixando o rosto
AnA* Que a noite deixe escuro esse teu dia, dos presentes como árvores molhadas
e a tua vida a morte. pela chuva. Naquela época triste
GLOSTER'* Não maldigas, meus olhos varonis sempre metiam
criatura encantadora, de ti mesma, a ridículo as lágrimas humildes.
que para mim és ambos. Ora bem: o que à dor fora impossível,
ANA" Desejara tua beleza o fez, deixando-os cegos
sê-lo, para tomar de ti vingança. de chorar. Jamais fiz nenhuma súplica
GLosrer Seria uma contenda absurda e injusta a amigos ou inimigos; nunca soube
na pessoa vingares-te que te ama. esta boca dizer palavras ternas.

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WiLLiAM SHAKESPEARE

Mas agora que a tua formosura sempre espera, é ditado muito certo.
meu feudo se tornou, vencido abate-se-me GLOSTER: Ficai, pois, com este anel de minha parte.
o altivo coração e a língua fala. ANA Aceitar não é dar.
(Ela lhe lança olhar desdenhoso.) (Coloca o anel no dedo.)
Não ensines aos lábios o desprezo, GLosrER* Vê como o anel o dedo te circunda:
que para os beijos foram eles feitos, assim teu peito faz com meu sofrido
senhora, não para esses sentimentos. coração. Usa os dois, que te pertencem.
Se não sabe perdoar esse orgulhoso E se este servo fiel pode uma graça
coração, aqui tens a aguda espada: solicitar de tua mão graciosa,
esconde-a neste peito verdadeiro, confirma para sempre esta ventura.
e a alma deixa escapar que te idolatra. Ana: De que se trata?
Eilo: ofereço-o, aberto, ao mortal golpe, GLosrER Deixar este dever dorido e triste
e, de joelhos, humilde, a morte imploro. para quem tem mais causa de tristeza
(Descobre o peito; ela faz menção de feri-to.) e ir para Crosby-place sem demora,
Não pares, que eu matei o Rei Henrique, onde, depois de eu ter solenemente
mas foi tua beleza o móvel disso. feito baixar à terra, no mosteiro
Despacha-me depressa; o moço Eduardo de Chertsey, este nobre soberano,
foi por mim trespassado... e lavado seu túmulo com lágrimas
(Ela faz novamente menção de feri-lo.) de meu pesar sincero, in continenti
..mas foi esse vos apresentarei meus cumprimentos.
rosto divino o instigador de tudo. Por diversos motivos ainda ocultos
(Ela deixa tombar a espada.) concedei-me essa graça, vos suplico.
Toma de novo a espada, ou me levanta. Ana: De todo coração. Muito me alegra
Ana* Hipócrita, levanta-te! Conquanto ter visto que ficastes penitente.
eu deseje tua morte, não me agrada Vinde comigo, Berkeley e Tressel.
ser teu carrasco. GLosrTER: Dizei-me adeus.
Grosrer: | Manda que eu me mate, ANA" Não mereceis tal coisa.
nesse caso, que logo eu te obedeço. Mas já que me ensinastes a adular-vos,
AnA"Já o fiz. pensai que já vos tenha dito adeus.
Groster: Mas fizeste-o transtornada (Saem Lady Ana, Tressel e Berkeley.)
pela cólera. Ordena-o novamente, GLosTER- Senhores, carregai de novo o corpo.
que no mesmo momento esta mão forte, GenriL-Homem -* Para Chertsey, milorde?
que, por amor de ti, fez que morresse GLOSTER"*
teu amor, por amor de ti, igualmente, Não, para W'hite-Friars; lá me aguardareis.
matará outro amor mais verdadeiro: (Saem todos, menos Gloster.)
e, assim, tu ficarás, decerto, cúmplice Já houve, acaso, mulher, em todo o mundo,
na morte de ambos. que fosse cortejada desse modo?
Ana: Conhecer quisera Já houve mulher que assim ficasse noiva?
como é esse coração. Vai ser minha, mas não por muito tempo.
GLOSTER* Na língua o trago. Já se viu coisa igual? Matei-lhe o esposo,
Ana Tenho receio que ambos sejam falsos. matei-lhe o sogro, apanho-a no momento
GLosrER - Então, ninguém jamais disse a verdade. do ódio mais acirrado, quando a boca
Ana: Está bem, está bem; guardai a espada. de maldições estava transbordante,
GLOsTER - Estamos, pois, em paz? de lágrimas os olhos, e, ao seu lado,
Ana Depois vereis. sangrando, a causa do seu ódio imenso:
GLosTER* Posso ter esperanças? tendo Deus contra mim, sua consciência
AnA* Quem tem vida e este ataúde, sem que do meu lado

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shakespearebrasileiro.org A TracéDia DO REI RicARDO II

ninguém viesse o pedido reforçar-me; da metade de Eduardo? Eu, que sou coxo,
contando apenas com o favor do diabo, disforme deste jeito? Meu ducado
com olhares fingidos... e, no entanto, contra o vintém de um pobre: mas até hoje
conquistá-la! Isso é o mundo contra nada! eu andava iludido a meu respeito.
Ah! Por minha vida, embora eu não concorde,
Já se esqueceu, talvez, do bravo Príncipe pareço encantador aos olhos dela.
Eduardo, seu marido, que, furioso, Vou tratar de adquirir um bom espelho
eu próprio apunhalei não há três meses, e de pagar uma vintena ou duas
em Tewksbury? Um mais doce gentil-homem de alfaiates que cuidem da maneira
do que ele, mais amável, resultante de me adornar o corpo. Já que tanto
da natureza pródiga, valente, subi no meu conceito, vou mantê-lo
sábio e moço, real em toda a linha, com pequena despesa. Mas primeiro
não poderá mostrar o vasto mundo. porei na sepultura aquele gajo,
Baixará para mim, agora, os olhos para depois voltar a lamentar-me
tendo sido eu o ceifador das áureas junto do meu amor. Sol admirável,
primícias desse príncipe adorável, brilha até que eu adquira um bom espelho
eu, que a joguei ao leito doloroso para eu ver com que monstro eu me assemelho.
da viuvez? Eu, que valho muito menos (Sai.)

Ato Cena II
Londres. Um quarto no palácio. Grey - Lordes de Buckingham e Stanley chegam.
Entram a Rainha Elisabete, Lorde Rivers e Lorde Grey. BuckiNcHAM : Muito bom dia a Vossa Real Graça!
STANLEY * Alegre Deus a Vossa Majestade
Rivers: Minha senhora, calma! Sua Graça como nos dias idos!
ficará bom, de novo, em pouco tempo. RarnHa ELIsaBETE: À Condessa
Grey : Calma, senhora! Vosso desespero de Richmond, meu bondoso Lorde Stanley,
deixa-o pior. Por isso, sede forte. decerto não diria Amém ao vosso
Tende confiança em Deus, reconfortando cumprimento amistoso. Mas, conquanto
Sua Graça com modos mais alegres. seja ela vossa esposa, caro Stanley,
RAINHA ELISABETE: e não me ame, podeis, bondoso lorde,
Se ele vier a morrer, como é que eu fico? ficar certo de que eu não vos odeio
Grey * Perdereis tão-somente tal esposo. por sua insuportável arrogância.
RAINHA ELISABETE* STANLEY *
A morte desse esposo é total perda. Suplico-vos não dardes nenhum crédito
Grey - O céu vos abençoou com um bravo filho, à calúnia invejosa de seus falsos
para que na viuvez vos consolasse. acusadores. Mas, se porventura
RAINHA ELISABETE* for acusada com alguma base,
Ah! Mas é muito criança e está confiada considerai, vos peço, essa fraqueza
sua minoridade inexperiente como produto dos achaques dela
a Ricardo de Gloster, que, é sabido, e não como produto de malícia.
me vota, e a todos vós, ódio de morte. RAINHA ELISABETE*
Rivers Vai ser ele, de fato, o protetor? Vistes hoje o monarca, Lorde Stanley?
RAINHA ELISABETE: STANLEY * Eu e o Duque de Buckingham estamos
Foi indicado, apenas; mas no caso vindo de visitar Sua Majestade.
de falecer o rei, será nomeado. RAINHA ÊLISABETE*
(Entram Buckingham e Stanley.) Notastes nele indícios de melhora?

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BuckiNGHAM Há muitas esperanças; Sua Graça qual é o motivo dessa mal-querença


discorre alegremente. e, esclarecido o fato, removê-lo.
RarnHaA ELISABETE: À Deus prouvera GLosTER* Não sei dizê-lo; o mundo piorou tanto,
deixá-lo com saúde! E lhe falastes? que a carriça se atreve onde a própria águia
BuckINGHAM'* Sim, senhora; deseja fazer pazes mal ousa debicar. Desde que todos
entre o Duque de Gloster e milordes os joãos-ninguém ficaram gentis-homens,
vossos irmãos, e entre estes e milorde virou muito fidalgo um joão-ninguém.
camareiro. Com esse pio intento RAINHA ELISABETE*
à sua real presença a todos chama. Está bem, mano Gloster; nós sabemos
RAINHA ELISABETE* perfeitamente o que visais com isso.
Oh, se isso acontecesse! Mas não creio; Invejais minha dita e a de meus manos.
é impossível. Receio que já esteja Deus queira que nós nunca precisemos
nossa felicidade no declínio. de vós em coisa alguma.
(Entram Gloster, Flastings e Dorset.) GLOSTER* Pois Deus queira
GrosrER * Ofendem-me; não posso suportá-lo. que nós de vós a precisar venhamos.
Quem são os que se queixam junto ao rei Por tricas vossas nosso irmão foi preso;
de que eu — vejam só isto! — sou severo, no desagrado eu me acho; os nobres todos
que amor não lhes dedico? Por São Paulo, desprezados se vêem, enquanto grandes
é preciso amar pouco a Sua Graça, prêmios são diariamente conferidos
para as onças lhe encherem com rumores. a pessoas que apenas há dois dias
Porque adular não sei, nem falar muito, não valiam sequer um simples nobre.
rir na face dos homens, alisá-los RAINHA ELISABETE*
ludibriá-los, fazer-lhes reverências Pelo que me elevou de minha humilde
à francesa, tal qual momo ensinado, felicidade à altura em que me encontro,
passo por inimigo rancoroso. jamais espicacei Sua Majestade
Viver não pode alguém de gênio simples, contra Clarence. Muito longe disso:
alheio a qualquer mal, sem que lhe sejam eu sou a que falei a favor dele,
torcidos os intentos generosos sempre com muito empenho. Injuriais-me,
por qualquer João meloso, astuto e hipócrita? milorde, por maneira vergonhosa,
Grey : A quem, dentre os presentes, se refere contra mim levantando essas suspeitas.
Vossa Graça? GLosTER - Podeis negar a vossa conivência
GLOSTER* É a ti mesmo, que careces na recente prisão de milorde Hastings?
de honestidade e graça. Quando, acaso, Rivers: Ela pode, milorde, que...
te fiz alguma ofensa, ou fui injusto? GLOSTER* Ela pode,
Oua ti? Oua ti? Ou a algum do vosso bando? Lorde Rivers! Ora essa! Quem o ignora?
A peste em todos! Sua Real Graça — Ela pode, senhor, fazer mais que isso:
Deus o conserve além de vosso gosto — colocar-vos em cargos mais rendosos,
não pode respirar um só momento, para depois negar que houvesse tido
sem com queixas idiotas o inquietardes. qualquer influência, atribuindo todas
RAINHA ELISABETE" as honras tão-somente ao vosso mérito.
Alterais, mano Gloster, esse assunto. O que é que ela não pode? Ora, ela pode...
Por sua real disposição, Sua Graça, Sim, poderia, acaso... poderia...
sem ser solicitado por estranhos, Rivers: Que poderia, acaso?
vosso ódio interior talvez visando, GLOSTER* Poderia
ódio que transparece em vosso todo, casar com um rei solteiro, um rapazola
contra meus filhos, meus irmãos e eu própria, de aparência agradável. Pior negócio
mandou chamar-vos, porque saber possa fez vossa avó, tenho certeza disso.

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A TracÉDIA DO REi RICARDO III

RAINHA ELISABETE* o que éreis antes e o que sois agora;


Há muito tempo já milorde Gloster, bem como eu: quanto fui e como me acho.
venho aguentando vossas grosserias RarNHA ELISABETE (à parte) *
e pesados gracejos. Mas por tudo Um vilão assassino é o que és ainda.
quanto há de mais sagrado, estou disposta, GLOSTER*
desta vez, a contar a Sua Graça O bom Clarence não deixou o pai Warwick,
quantos rudes sarcasmos tenho ouvido. tornando-se perjuro?... Que Jesus
Preferia viver como uma simples lhe perdoe esse passo!...
campônia, a ser rainha e majestade, RarnHa MARGARIDA (à parte) * Deus o puna!
para ser assaltada desse jeito, GLOSTER*... para lutar ao lado de Eduardo
pisada e escarnecida. Muito poucas na conquista do trono? À recompensa
alegrias, de fato, me tocaram foi ter sido o coitado encarcerado.
desde que eu sou Rainha da Inglaterra. Quem me dera que me houvesse Deus provido
(Aparece no fundo a Rainha Margarida.) de um coração de pedra, ou que tivesse
RarnHA MARGARIDA (à parte) feito o de Eduardo como o meu: suave
Diminui ainda mais essas pequenas e inclinado à piedade. Sou inocente
alegrias, Oh Deus, é o que eu te peço! por demais, e infantil, para este mundo. .
Tudo me deves: honra, estado e trono. RainHa MARGARIDA (à parte) *
GLosrER : Como! Ameaçais-me de contar ao rei? Então vai para o inferno e deixa o mundo,
Contai-lhe tudo, sem vos esquecerdes cacodemônio! É lá que tens o reino.
de coisa alguma. Olhai: quanto vos disse, Rivers : Naqueles dias tumultuosos, Lorde
na presença do rei vou confirmá-lo. de Gloster, que citais com tanto empenho,
Desta arte arrisco ser mandado preso para provar a nossa inimizade,
para a Torre; mas urge que alguém fale. nós seguíamos nosso soberano
Meus serviços estão quase esquecidos. legítimo, tal como hoje o faríamos
RarnHa MARGARIDA (à parte) * convosco, se chegásseis a ser rei.
Fora, demônio! Tenho-os na memória: GLOSTER * Se eu chegasse a ser rei? Antes mascate!
na Torre assassinaste meu marido, Longe do coração tal pensamento!
meu Henrique; em Tewksbury, meu Eduardo RAINHA ELISABETE*
por ti também veio a perder a vida. Pela pouca alegria, Lorde Gloster
GLosreR: Antes de terdes vindo a ser rainha, que imaginais vos tocaria em sorte
ou O vosso esposo rei, eu era o burro no caso de reinardes, é possível
de carga de seus múltiplos negócios, fazerdes uma idéia de quão pouca
o destruidor de seus inumeráveis devo eu sentir depois de ser rainha.
adversários; era eu que seus amigos RarnHa MARGARIDA (à parte) *
com bolsa liberal recompensava. Tão pouco quanto goza a verdadeira
Cheguei mesmo a verter o próprio sangue rainha, que sou eu, inteiramente
para o seu deixar real. privada de alegria. Mas não posso
RarnHA MARGARIDA (à parte) - Sim, derramaste sopear a paciência por mais tempo.
sangue muito mais nobre do que o de ambos. ( Avançando.)
GLosrer Todo esse tempo, vós e vosso esposo Escutai-me, piratas querelantes,
Grey contra a casa de Lencastre estáveis. que discordais na divisão de quanto
E vós, Rivers, também. Vosso marido me foi roubado. Qual de vós não treme
não morreu, porventura, na batalha só de me olhar? Se como soberana
de Santo Albano, ao lado dos adeptos não vos dobro, tal como cumpre a súditos,
de Margarida? Vejo-me forçado tremer vos faço como a rebelados?
avos fazer lembrada dessas coisas, O meu caro vilão! não te escapulas.

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GLosrER Que vens fazer de novo em minha frente, abri caminho para as minhas rápidas
bruxa louca e enrugada? maldições! Se não vier o vosso chefe
RAarnHA MARGARIDA: Repetir-te a falecer na guerra, que se extinga
a história dos teus crimes; vou contá-la pela devassidão, tal como o nosso
antes de te deixar. pelo assassínio, para dar-lhe o trono.
GLOSTER* Sob pena, acaso, Possa teu filho Eduardo, que ora é Príncipe
de morte não te encontras exilada? de Gales, por Eduardo, que foi Príncipe
RArNHA MARGARIDA * de Gales, meu filhinho, prematuro
Sim, mas achei o exílio mais penoso como este, perecer pela violência!
de quanto possa a morte aqui aprestar-me. És rainha; rainha também fui:
Um esposo me deves e um filhinho; possas sobreviver à tua glória
deves-me um reino. E vós aí, deveis-me na miséria em que a minha eu sobrevivo.
fidelidade. Esta tristeza imensa, Vive bastante, para lastimares
por direito a só vós é que tocara, a perda de teus filhos, para veres
e a mim vossos prazeres usurpados. outra mulher, tal como ora eu te vejo,
GLosTER* À maldição que te lançou meu pai, na posse dos teus títulos, do mesmo
quando a fronte guerreira lhe coroaste modo que ora me fazes. Que muito antes
com papel, quando, à força de sarcasmos, de ti morram teus dias de alegria;
o fizeste verter rios de lágrimas e após compridas horas de amargura,
e, para os olhos enxugar, ao duque morras, por fim, sem seres nem esposa,
deste um lenço molhado no inocente nem mãe, nem mais rainha da Inglaterra!
sangue do meigo Rutland: as palavras Rivers e Dorset, ambos vos acháveis
de maldição que sua alma amargurada presentes — como vós, também Lorde Hastings —
te lançou, ora sobre ti caíram. b quando foi transpassado o meu filhinho
Não somos nós, é Deus que te castiga. por punhais sanguinários. Deus, suplico
RArNHA ELISABETE* que nenhum de vós viva o normal curso
Sim, Deus é justo e protege os inocentes. da natureza, mas, antes do tempo,
Hasrrncs- Oh, pode haver ação mais sanguinária pereçais por qualquer caso imprevisto!
do que a morte daquele inocentinho? GLOSTER"*
Jamais se ouviu falar em tal barbárie. Chegaste ao fim dos teus encantamentos,
Rivers: Até os próprios tiranos derramaram bruxa enrugada?
lágrimas, ao ouvir contar o caso. RarnHA MARGARIDA É ficarias fora?
Dorser: Não houve quem vingança não previsse. Espera aí, cachorro, que hás de ouvir-me.
BUCKINGHAM * Se o céu guardar alguma peste estranha,
Northumberland chorou, vendo o homicídio. que exceda a tudo quanto eu te pudesse
RarinHa MARGARIDA* desejar, oh! retenha-a até que fiquem
Mas que acontece! Antes de minha vinda, maduros teus pecados indizíveis,
rosnáveis, prontos a vos atracardes para atirar-te a tua indignação,
pelo pescoço, e agora todo esse ódio perturbador da paz do pobre mundo.
virastes contra mim? Teve tal força Roa-te o peito o verme do remorso!
no céu a maldição terrível de York, Que por traidores tenhas os amigos,
que o trespasse de Henrique e o do adorável enquanto fores vivo, e dos traidores
Eduardo, a usurpação brutal do reino, faças os teus amigos mais chegados.
meu banimento odioso prevaleçam Que o sono jamais pouse nesses olhos
em confronto com a perda de um fedelho? assassinos, a menos que terríveis
Conseguem maldições cortar as nuvens pesadelos te oprimam nessas horas
e ao céu chegar? Então, nuvens pesadas, com legiões de demônios horrorosos.

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A TrRAcÉDIA DO REI RICARDO III

Monstro marcado, cerdo imundo, aborto emitido de pouco ainda não corre.
que assinalado foste ao nascimento Oh! Se pudesse essa nobreza jovem
como filho do inferno e baixo escravo ter consciência do que é vir a perder-se
da natureza! Oh tu, caluniador e ficar miserável! Os que se acham
do ventre de tua mãe, Oh detestável no alto suportam muitas tempestades;
produto, e infame, dos paternos lombos, ao caírem, reduzem-se a pedaços.
farrapo da honra, desprezível, ouve... GrosTER* Excelente conselho, pelo demo!
GLosrTER" Margarida! Tomai nota, marquês.
RArNHA MARGARIDA ... Ricardo! Dorser: Ele se aplica
GLOSTER* Aqui presente! tanto a mim quanto a vós, milorde Gloster.
RarnHa MARGARIDA" GLOSTER* Sim, mais ainda; mas nasci muito alto.
Não te chamei. Nossos filhotes de águia são criados
GLoster: Então peço desculpas, nos cedros mais altivos; não se importam
porque pensei que o tinhas feito, logo com os ventos e do sol não fazem conta.
depois de me jogares esses nomes. RarnHa MARGARIDA*
RAarnHa MARGARIDA Fazem sombra até ao sol! Ah! muito certo!
Foi o que fiz; mas não pedi resposta. Haja vista meu filho, ora na sombra
Mas deixai-me acabar a maldição.
da morte, cujos raios resplendentes
GLosTER: Já está feito; termina em “Margarida”. tua sombria cólera de pronto
RAINHA ELISABETE*
mergulhou na caligem sempiterna.
Assim, amaldiçoastes a vós mesma.
No nosso ninho de águias foi que os vossos
RAINHA MARGARIDA:
filhotes se criaram. Não consintas,
Rainha rebocada, estulta efígie
Deus, em tal coisa! Nada se te oculta.
do que foi minha dita, por que lanças
açúcar sobre a aranha barriguda
Dá que venha a extinguir-se pelo sangue
cuja teia mortal já te asfixia?
quanto foi conquistado pelo crime!
Louca! Tu própria estás afiando a faca BuckiNGHAM : Calma, por caridade! Ficai quieta!
que te vai dar a morte. Há de haver dia Envergonhai-vos disso!
em que anseies por mim para ensinar-te RainHa MARGARIDA : Nem vergonha
como lançar as maldições mais raras nem caridade deve vir à baila.
neste sapo nocivo e deformado. Sem caridade todos procedestes
Hastings: Acaba, falsa profetisa, com essas e asfixiastes as minhas esperanças.
maldições de maníaca. Não queiras Vergonha é a minha vida e afronta a minha
cansar-nos a paciência, em teu prejuízo. caridade. Ainda vive toda a cólera
RarnHa MARGARIDA da minha dor nessa vergonha imensa.
Envergonhai-vos todos, por me terdes BuckincHAM: Acabai! Acabai!
atribulado tanto a paciência. RainHa MARGARIDA
Rivers: Se aceitásseis conselhos, saberíeis Oh nobre Buckingham, as mãos te beijo,
qual é o vosso dever. como sinal de aliança e de amizade.
RarnHa MARGARIDA O mais sensato Sejas feliz com tua nobre casa.
conselho é que homenagem me presteis. Não estão tuas vestes salpicadas
Oh! Ensinai-me a ser vossa rainha, com nosso sangue, nem te encontras dentro
vós, meus vassalos. Oh! Aconselhai-me do círculo de minhas maldições.
desse jeito e aprendei vosso dever! BUCKINGHAM *
Dorser: Não discutais com ela; está demente. Nem nenhum dos presentes; nunca passam
RArNHA MARGARIDA: as maldições dos lábios que as proferem.
Mestre marquês, silêncio! Sois confiado RarnHa MARGARIDA *
por demais. Vosso título honorífico Não; creio que até ao céu elas se elevam

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e a Deus despertam de seu sono plácido. também, e a todos vós, meus nobres lordes.
Oh Buckingham! Cautela com esse cão! RAINHA ELISABETE"
Quando ele adula, morde; e quando morde, Catesby, não demoro. Vindes, lordes?
seu dente venenoso a morte causa. Rivers : Estamos 20 dispor de Vossa Graça.
Assinalaram-no o pecado e a morte; (Saem todos, com exceção de Gloster.)
marcou-o o inferno, e seus ministros todos GLOSTER"
lhe vão no rasto e como a chefe o servem. Promovo uma desgraça e sou o primeiro
GLosrER * Que diz essa mulher, milorde a levantar o alarma. Sobre os outros
Buckingham? faço pesar o alarma dos malfeitos
BUCKINGHAM * que eu próprio ocasionei. Assim, Clarence,
Nada que eu preze, meu gracioso lorde. por minha instigação, se acha no escuro,
RAainHA MARGARIDA * mas lhe choro o destino, quando em frente
Como! Ainda zombas de meu bom conselho desses simplórios: Hastings, Stanley, Buckingham,
e afagas o demônio de que eu tanto e digo que a rainha e os do seu grupo
te queria livrar? Oh, não te esqueças são os que o rei atiram contra o duque,
do que se está passando, quando as mágoas meu irmão. Eles todos acreditam
o coração te houverem triturado. no que eu afirmo e a me vingar concitam-me
Então dirás que a pobre Margarida de Grey, Rivers e Vaugham. Nessa altura
foi boa profetisa. Que em futuro lhes cito a Bíblia, suspirando fundo,
passeis a ser o objeto de seu ódio, que o mal com o bem retribuir nos manda:
ele do vosso, e todos do de Deus. é a palavra de Deus. Dessa maneira,
(Sai) visto a minha despida vilania
Hasrincs Só de ouvi-la, os cabelos se me eriçam. com farrapos sediços da Escritura.
RIVERS" Pareço um santo, quando sou o diabo.
E os meus também; não sei como anda solta. (Entram dois assassinos.)
GLosrER- Tem razão. Pela santa mãe de Deus, Devagar! Eis os meus executores!
sofreu demais. Eu próprio me arrependo Então, meus camaradas destemidos,
de ter causado a ela desventura.
dispostos e valentes, estais mesmo
RAINHA ELISABETE"
resolvidos a dar remate à coisa?
Que eu saiba, não lhe dei nenhum desgosto. PRIMEIRO ÁSSASSINO
GLosrTER : Mas ficastes com todas as vantagens
Estamos, sim, milorde; só nos falta
do mal que lhe fizeram. Fui ardente
receber a ordem que nos facilite
por demais ao pensar no bem dos outros,
penetrar no local em que ele se acha.
que hoje recordam disso friamente.
GrosreR: Foi bem pensado: tenho-a aqui comigo.
Êo que se está passando com Clarence;
(Dá-lhes uma autorização escrita.)
por se ter esforçado, está engordando
Depois de tudo feito, voltai para
num chiqueiro: foi boa a recompensa.
Crosby-place. Porém, meus camaradas,
Deus perdoe aos que têm culpa no caso.
sede prontos na ação. Além de duros,
RrIvERS - Eis uma conclusão cristã e virtuosa,
não lhe atendais às súplicas. Clarence
pedir o bem dos que nos são nocivos.
tem lábia e poderá vir a abalar-vos
GLOSTER*
o coração, se ouvido lhe prestardes.
Sempre procedo assim. (À parte.) Por ser ladino;
PRIMEIRO ASSASSINO *
que, do contrário, eu me amaldiçoaria.
(Entra Catesby.) Ora, milorde! Nós não perderemos
CATESBY* tempo com muita prosa. Os faladores
são maus executores. Ficai certo:
Senhora, o rei vos chama, e a Vossa Graça

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shakespearebrasileiro.org A TRAGÉDIA DO REI RICARDO III

«
vamos usar os braços, não a língua. rapazes, de vós ambos. Mas, depressa!
GLOSTER* Despachai-vos!
Chorais pedra de moinho, enquanto os bobos PriMEIRO AssAssINO* Pois não, meu nobre lorde.
choram apenas lágrimas. Agrado-me, (Saem.)

Ato T- Cena IV
belas gemas que o limo do oceano
O mesmo. À Torre. namoravam, sem ver os mortos ossos
Entram Clarence e Brakenbury. esparsos em redor inumeráveis.
BRAKENBURY *
BRAKENBURY * No instante de morrer tivestes tempo
Por que está Sua Graça hoje tão triste? de surpreender o abismo e seus segredos?
CLarencE: Oh! Passei uma noite miserável, CLARENCE: Pareceu-me que sim. Por várias vezes
cheia de visões lúgubres e horríveis quis exalar o espírito, mas vinha
pesadelos. Por minha fé cristã, sempre uma onda invejosa a alma deter-me,
noite igual não desejo, nem que seja não consentindo que saísse e fosse
para comprar um mundo de bons dias, procurar o ar vazio, imenso e livre,
tal o pavor sentido nessas horas. ea tal ponto no corpo a comprímia
BRAKENBURY * Que sonhastes, milorde? Revelai-mo. que este quase estourava, pelo esforço
CLARENCE Pareceu-me estar já fora da Torre, de cuspi-la nas ondas do mar fundo.
a bordo de um navio que singrava BRAKENBURY : E não vos despertou tanta agonia?
para Borgonha, onde também se achava CLARENCE Não; foi além da vida o sonho horrível.
meu mano Gloster, que com seus conselhos Foi só então que teve início na alma,
me fez sair do camarote, para de fato, a tempestade. Pareceu-me
passear pelo convés. De lá nós víamos ter passado a corrente melancólica
a Inglaterra e lembravam-nos os tempos com o terrível arrais que os poetas cantam
tão difíceis que tínhamos passado e alcançado a região da noite eterna.
durante a guerra de York e de Lencastre. O primeiro a saudar a alma estrangeira
Ao passarmos por sobre a ponte móvel, foi meu sogro eminente, o famoso Warwick,
pareceu-me que Gloster tropeçara; que a gritar começou: “Qual o castigo
na queda, me jogou, quando eu tentava para o perjúrio que esta monarquia
segurá-lo, por cima da amurada, sinistra inventar pode para o falso
nas agitadas ondas do oceano. Clarence?” Após falar, sumiu-se a sombra.
Oh Deus! como é dorida a morte na água! Depois veio outra, semelhante a um anjo,
Que cachoeira medonha nos ouvidos, de cabeleira clara, toda suja
que de visões terríveis ante os olhos! de sangue coagulado, que em voz alta
Pareceu-me estar vendo mil naufrágios; começou de dizer: “Clarence veio,
entre cadáveres por peixes roídos, Clarence o falso, o trânsfuga, o perjuro,
em meio a barras de ouro e grandes âncoras, que me matou no campo de Tewksbury!
espalhavam-se pedras preciosas, Prendei-o, Fúrias! A ele! Atormentai-o!”
jóias de alto valor, montões de pérolas, Quis parecer-me, então, que um bando enorme
pelo fundo do mar. Umas se achavam de demônios hediondos me cercavam,
nas cabeças dos mortos; e nas órbitas gritando-me aos ouvidos tais horrores
onde outrora brilharam vivos olhos, que, com o barulho, despertei tremendo,
como em mofa a eles próprios, se insinuaram por algum tempo, ainda, acreditando

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que me achava no inferno, tão horrível


que em vós eu resignei minhas funções.
foi a impressão que me ficou do sonho. PRIMEIRO AssASSINO * Podeis ir, meu senhor;
BRAKENBURY - Não admira, milorde, que tivésseis
mostrai com isso que sois sabido. Passai bem.
(Sai Brakenbury.)
ficado horrorizado. Só de ouvir-vos,
me sinto dominado pelo medo. SEGUNDO Assassino : Como! Devemos apunhalá-
CLARENCE Oh Brakenbury, todas essas coisas lo, enquanto está dormindo?
que ora me pesam na alma atribulada, PRIMEIRO ASSASSINO * Não, que, ao despertar,
eu as fiz por amor tão-só de Eduardo. poderá dizer que procedemos como covardes.
E vede a recompensa! Oh Deus, se as minhas
SEGUNDO AssaAssINO - Ao despertar, louco! Ele só
orações mais sentidas forem fracas vai despertar no dia do Juízo Final.
para te comover, e se quiseres
PRIMEIRO ASSASSINO * Pois é isso mesmo; então,
castigar-me por todos esses crimes, ele dirá que o apunhalamos durante o sono.
que em mim, somente, caia a tua cólera! SEGUNDO ÁssassiINO* À palavra “Juízo Final”
Poupa-me os filhos, poupa-me a consorte, despertou dentro de mim uma espécie de remorso.
que não têm culpa alguma! Carcereiro, PRIMEIRO AsSAssINO * Como! Estás com medo?
suplico-te, não saias do meu lado; SEGUNDO AssAssINO “ Não de matá-lo, porque
tenho autorização para isso; mas de ser condenado
tenho a alma carregada e estou com sono.
BRAKENBURY * às penas eternas por o ter feito, que disso não há
Pois não, milorde. Deus vos dê bom sono. autorização que me livre.
(Clarence adormece.) PRIMEIRO ASSASSINO - Pensei que estivesses resolvido.
O cuidado transtorna as horas de ócio SEGUNDO ASSASSINO - Sim, estou resolvido a
deixá-lo viver.
e as próprias estações, mudando a noite
em manhã clara e em noite o meio-dia. PRIMEIRO AssASssINO * Vou procurar de novo O
Os reis não têm mais glória do que o título, Duque de Gloster, para contar-lhe isso.
honras externas por infindas dores. SEGUNDO ASSASSINO * Não, não; demora um
Por imaginações, apenas ganham, pouco; espero que desapareça logo esta minha
muitas vezes, um mundo de cuidados.
disposição pacífica. Em geral, essas coisas só duram
Seus altos nomes e os do povo, em nada o tempo de a gente contar até vinte.
se distinguem, senão pela fachada. PRIMEIRO ASSASSINO * Como te sentes agora?
(Entram os dois assassinos.) SEGUNDO AssASSINO * Ainda percebo no meu
PRIMEIRO AssassINO - Oh! Quem está aí?
íntimo algumas borras e consciência.
BRAKENBURY - Oh camarada, que desejas? Como
PRIMEIRO ÁAssaAssINO * Lembra-te da nossa
conseguiste entrar? recompensa, depois de liquidado o caso.
PRIMEIRO ÁssAssINO * Desejo falar com Clarence SEGUNDO AssassINO * Com a breca! Vai morrer;
e vim por minhas pernas. tinha-me esquecido da recompensa.
BRAKENBURY * Assim! Tão lacônico! PRIMEIRO ASSASSINO * Onde se encontra agora a
tua consciência?
SEGUNDO ASSASSINO *
É melhor isso do que ser tedioso. SEGUNDO AssassINO * Na bolsa do Duque de Gloster.
PRIMEIRO ASSASSINO * Desse jeito, quando ele
Mostra-lhe a nossa comissão, e pronto!
(Entregam um papel a Brakenbury, que o Lê.) abrir a bolsa para nos dar a recompensa, a tua
consciência escapa.
BRAKENBURY : Esse papel me ordena de entregar-vos
em mãos o nobre Duque de Clarence. SEGUNDO ÁsSASSINO : Não importa; que escape.
Não desejo saber o que ele implica, Pouca gente, ou mesmo ninguém cuidará dela.
pois inocente quero conservar-me PRIMEIRO ASSASSINO * E se voltar?
quanto ao que ele sugere. Eis ali o duque; SEGUNDO AsSAssINO * Não me meterei com ela.
É uma coisa perigosa, a consciência; deixa a gente
está dormindo, e as chaves aqui as tendes.
Vou procurar o rei para dizer-lhe covarde. Um indivíduo não pode roubar coisa

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A Tracépia DO Rei RicARDO III

alguma, sem que ela o acuse; não pode blasfemar, Quem vos mandou? Por que motivo viestes?
sem que ela o contenha; não pode deitar-se com AMBOS OS ÁsSASSINOS : Para... para...
a mulher do vizinho, sem que o denuncie: é um CLARENCE: Para matar-me?
espírito tímido e envergonhado, que promove revolta AMBOS OS ASSASSINOS * Sim.
no coração da gente e levanta obstáculos a toda hora. CLARENCE: Falta-vos ânimo
De uma feita obrigou-me a restituir uma bolsa de sequer para dizerdes o a que viestes;
ouro que eu havia encontrado. Quem lhe dá guarida não heis de tê-lo para pô-lo em prática.
vira mendigo; expulsam-na das cidades e dos burgos, Em que vos ofendi, caros amigos?
com coisa perigosa; e quem quer que deseje viver PRIMEIRO ASSASSINO *
bem, trata de confiar apenas em si próprio e de À nós, em nada; mas ao soberano.
passar sem ela. CLARENCE: Farei as pazes com ele novamente.
PriMEIRO AssASSINO * Com os diabos! Sinto-a SEGUNDO ASSASSINO *
neste momento aqui no cotovelo, a persuadir-me de Jamais, milorde. É tempo: preparai-vos.
que não mate o duque. CLARENCE: Escolheram-vos entre tantos homens
SEGUNDO ÁssASSsINO : Firma no espírito o diabo e para dardes a morte a um inocente?
não lhe dês crédito; o que ela deseja, insinuando-se-
Qual é o meu crime? Qual a testemunha
te, desse modo, no ânimo, é que te ponhas a suspirar. que me acusa? Quais foram os jurados ,
PriMEIRO ÁAssAssINO : Não adianta; tenho uma que se manifestaram legalmente
natureza forte; comigo ela não arranjará nada.
diante de um magistrado rigoroso?
SEGUNDO ÁssAssINO : Isso é que é fala de quem
Quem pronunciou o amargo veredicto
presa a reputação própria. Como é, começamos o
para a morte do mísero Clarence?
trabalhinho?
É cometer iniquidade, à morte
PRIMEIRO ÁsSASSINO - Arruma-lhe uma pancada
me condenar sem ser a lei ouvida.
no coco com o punho da espada, e depois o joga no
Eu vos suplico, pois, por vossa crença
barril de malvasia que se acha no quarto vizinho.
na salvação obtida pelo sangue
SEGUNDO AssASSINO * Ótimo conselho! Faremos
de Cristo, derramado por nós todos,
uma sopa dele.
ue vos retireis logo, sem tocar-me.
PriMEIRO ÁssAssINO * Devagar! Está acordando.
SEGUNDO ÁssassINO * Dá logo a pancada! E condenável o ato que intentastes.
PRIMEIRO ÁSSASSINO *
PrIMEIRO ÁsSASSINO * Não; primeiro vamos
conversar com ele. O que vamos fazer é por mandado.
CLARENCE: Guarda, onde estás? Dá-me um copo SEGUNDO ÁSSASSINO *
de vinho. Foi o rei que para isto nos deu ordens.
PriMEIRO ÁssAssINO : Não falta muito, milorde, CLARENCE* Oh vassalos transviados e iludidos!
para terdes vinho à vontade. O grande Rei dos reis, na sua tábua
CLARENCE: Em nome de Deus, quem és? das leis expressamente vos ordena:
PrIMEIRO AssAssINO * Um homem, como vós. Não matarás! Quereis zombar agora,
CLarENcE: Mas não sois como eu, de condição de seu edito santo, para as ordens
real. obedecer de um homem? Sede cautos,
PriMEIRO AssAssINO * Nem vós sois como nós, de que nas mãos ele tem sempre o castigo,
condição leal. para atirá-lo sobre os transgressores.
CLARENCE: Tens a voz de trovão, mas o olhar é SEGUNDO ÁSSASSINO *
humilde. E esse mesmo castigo ele te joga,
PrIMEIRO AssAssINO * Neste momento a minha por teres sido criminoso e falso.
voz é a do rei e o olhar é meu mesmo. Tomaste o sacramento para a causa
CLaRrENcE: Que fala escura, que mortais palavras! defenderes da casa de Lencastre.
Esses olhos me ameaçam. Que se passa PRIMEIRO ÁSSASSINO *
convosco? Por que estais assim tão pálido? Como traidor, quebraste o juramento

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WILLIAM SHAKESPEARE

de Deus, e com essa lâmina traidora vitorioso, incitando-nos a amarmo-nos


ao filho de teu rei furaste as tripas. mutuamente, de leve não pensava
SEGUNDO ÁSSASSINO * que essa amizade a se partir viesse.
Que a defender te achavas obrigado Se relembrardes tudo isso a Gloster
pelo teu juramento. ele há de chorar lágrimas sinceras.
PRIMEIRO ASSASSINO *
PRIMEIRO AssAssINO * Como podes
ameaçar-nos, então, com a lei divina, Chorará, mas é pedra, tal como ele
nos ensinou.
se a tal ponto perjuro te tornaste?
CLARENCE: Ah! Por quem cometi tantas vilezas? CiarencE“ Oh! Não sejais injustos,
Por meu irmão Eduardo. Não posso isso, caluniando-o, pois Gloster é bondoso,
decerto, ele mandou que me matásseis, PRIMEIRO AssASSsINO * Certo,
que esse crime em nós dois pesa igualmente. como neve na ceifa. Tu te enganas;
Se Deus quiser a falta castigar-me, ele é que nos mandou matar-te.
ficai sabendo, a pena será pública. CLARENCE * Não pode ser! Nos braços apertou-me,
Não lhe tireis a causa da mão forte, lastimando-me a sorte e, entre soluços,
que ele não necessita de processos jurou tudo fazer por libertar-me.
PRIMEIRO ASSASSINO *
indiretos ou contra as leis eternas
para o aniquilamento dos culpados. Éo que ele ora pretende, libertando-vos
PRIMEIRO ASSASSINO da servidão terrena, para dar-vos
as ditas celestiais.
Quem, pois te fez seu sanguinário agente,
quando mataste aquele meigo broto SEGUNDO AssASSsINO * Reconciliai-vos
que em beleza crescia, o bravo Príncipe com Deus, milorde, que a hora está chegada.
Plantageneta? CLARENCE: Abrigas na alma tão piedoso instinto
CLARENCE" O amor que então eu tinha para me aconselhares desse modo,
a meu irmão, o diabo e minha cólera. e tão cego te mostras no que toca
PRIMEIRO ASSASSINO * à tua própria alma, que de Deus te afastas,
Pois esse mesmo amor, teu próprio crime, procurando matar-me? Oh, meus senhores,
nosso dever é que ora nos instigam considerai que quem vos deu tal cargo,
ate tirar a vida. ódio vos votará depois do feito.
CLARENCE: Se amor tendes SEGUNDO ÁssaAssINO * Que faremos?
a meu irmão, não me odieis por isso. CLARENCE * Mostrai-vos compassivos,
para que a alma salveis.
Sou seu irmão e lhe dedico amor.
Se vos foi prometido recompensa, PRIMEIRO ASSASSINO * Nós, compassivos?
voltai, que eu vos envio ao mano Gloster Isto é para mulheres e maricas.
que pela minha vida melhor paga CLARENCE: Não revelar piedade é ser selvagem.
vos há dar do que pela notícia diabólico, bestial. Se fôsseis filho
de príncipe e, como eu, neste momento,
da minha morte vos daria Eduardo.
SEGUNDO ASSASSINO * da bela luz privados vos achásseis,
Nisso vos enganais: vosso irmão Gloster qual de vós não pedira instantemente
vos odeia. que o deixassem com vida, se a visita
CLARENCE" Impossível! Ele me ama,
recebesse de feros assassinos?
tem-me grande afeição. Ide falar-lhe. Caro amigo, piedade tens nos olhos,
AMBOS OS ASSASSINOS" vejo-bem. Se esses olhos não são falsos,
É o que faremos logo. vem pôr-te do meu lado e por mim fala,
CLARENCE* Sim, dizei-lhe como o farias caso te encontrasses
que no dia em que o nosso real pai York na minha situação. Como não há de
abençoou os três filhos com seu braço comover a um mendigo um real mendigo?

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A Tracépia DO Rei RICARDO III

SEGUNDO ÁssassINO * Milorde, olhas as costas. dir-lhe-ei que amoleceste.


PriMEIRO ÁssAssINO (apunhalando-o) - Tomai isto, SEGUNDO ÁssAssINO * Desejara
e isto também. No caso de ser pouco, que soubesse que o irmão eu lhe salvara.
vos darei um barril de malvasia. Fica com a recompensa e dize-lhe isso.
(Sai com o corpo.) Sinto-me arrependido desta morte.
SEGUNDO ASSASSINO * (Sat)
Façanha sanguinária, despachada PRIMEIRO ASSASSINO *
desesperadamente. Desejara Pois eu não me arrependo. Sai, covarde!
lavar as mãos, também, como Pilatos, Moleirão! Vou tratar de pôr o corpo
deste horroroso e abominável crime. nalgum buraco, até mandar o duque
(Volta o primeiro assassino.) ordens para que seja sepultado.
PRIMEIRO ASSASSINO - Recebido o dinheiro, caio fora,
Em que estás a pensar, que não me ajudas? que espalhar-se a notícia não demora.
O dugue vai ficar a par de tudo; (Sai)

ARO dd 1 Cena l
Londres. Um quarto no palácio. Querida, amai Lorde Hastings; deixar que ele
Entram o Rei Eduardo, doente, a Rainha Elisabete, vos beije a mão: haja lealdade em tudo.
Dorset, Hastings, Buckingham e outros. RAINHA ELISABETE*
Hastings, eis minha mão; já não me lembro
Rer Epuarpo : Foi muito bem aproveitado o dia. de nossas dissensões: assim eu venha,
Vós, pares, continuar assim unidos. com os meus, a ser feliz.
À todo instante espero uma embaixada Rer EDUARDO : Dorset, abraça-o;
do Redentor, que deste mundo me há de Hastings, vê sempre amigo do marquês.
redimir. Mais trangjúila vai alar-se Dorser : Juro que estes protestos de amizade
minha alma para o céu, depois que eu pude serão de minha parte invioláveis.
firmar na terra a paz entre os amigos. HasriINcs: À mesma coisa eu juro.
Apertai-vos as mãos, Hastings e Rivers; (Abraçam-se.)
sede francos, jurando amor sincero. Rer EDUARDO * Agora sela o pacto, nobre Buckingham,
Rivers : Pelo céu, sinto que a alma está expungida abraçando os parentes da rainha,
de qualquer sentimento rancoroso. para que essa união me deixe alegre.
Selo com esta mão minha amizade. BuckINGHAM (à rainha) -
Hastings : Por minha dita, o mesmo afirmo e juro. Se contra Vossa Graça em algum tempo
Rer Epuarpo : Tende cuidado, para não brincardes virar seu ódio Buckingham, sem mostras
com vosso rei; se não, o que é o supremo de respeitoso amor a vós e aos vossos,
Rei dos reis vos confunde a falsidade, Deus me puna com o ódio das pessoas
determinando que vos torneis ambos de quem maior amor eu esperasse.
o motivo da morte do contrário. Quando eu tiver necessidade extrema
Hasrrncs Por minha dita, juro amor sincero. de recorrer a algum dos meus amigos,
Rivers" De todo coração, juro amar a Hastings. pondo sua amizade a toda a prova,
Rer EDUARDO : Não estás dispensada, cara esposa, falso, vazio, traiçoeiro e pérfido
também, do compromisso; nem vós, Dorset, se revele ele então. É o que a Deus peço,
nem vós, milorde Buckingham, que todos se a vós e aos vossos eu me mostrar frio.
tendes sido facciosos mutuamente. (Abraçam-se.)

sor
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WiLLIAM SHAKESPEARE

GrosrER : Então, senhora,


Rer EpuaRDO * Teu juramento é um tônico, milorde,
para este coração tão combalido. ofereci-vos meu amor para isso,
Só falta estar presente o mano Gloster para me ver, num círculo como este,
alvo de tanto escárnio? Quem não sabe,
para que a paz tão grata arrematemos.
BUCKINGHAM * quem não sabe que é morto o gentil duque?
(Todos revelam susto.)
O nobre duque vem chegando a tempo.
(Entra Gloster.) Não ficam bem tais chufas ao cadáver.
Rer EDUARDO *
GrosrER - Bom dia ao real casal, meus soberanos!
Quem não sabe que é morto o gentil duque?
Nobres pares, a vós um feliz dia.
Quem sabe que morreu?
Rer EDuaRDO * Dia feliz, de fato, foi o de hoje. Ohcéu potente!
RarnHa ELIsaBETE:
Gloster, fizemos obra meritória: em que mundo vivemos?
mudamos em amor o ódio entranhável, Lorde Dorset,
BUCKINGHAM *
em paz a inimizade entre estes pares eu me tornei tão branco quanto os outros?
que de ponta se achavam desde muito. Dorser* Sim, milorde; não há pessoa alguma
GLosrER* Abençoado esforço, nobre príncipe. que o róseo das faces não fugisse.
Se neste grupo de pessoas nobres Rei EpuaRrDO : Clarence já não vive? Mas eu tinha
há alguém que por suspeitas infundadas mandado retirar a ordem de morte.
ou falsa inteligência, como imigo GLosrER: Sim, coitadinho, a vida a perder veio
me considere; por vossa primeira ordem terminante,
se involuntariamente ou num momento por um Mercúrio alado apresentada.
de cólera eu tivesse sido causa A contra-ordem decerto foi levada
de ofender qualquer um dos circunstantes: por algum aleijado que só pôde
reconciliar-me é meu desejo, agora, ver-lhe o sepultamento. Deus permita
com ele, em amizade e paz sinceras. que alguém, menos leal e menos nobre,
A inimizade é para mim a morte; mais perto de sanguíneos pensamentos
odeio-a; só desejo o bem de todos. do que do sangue real e que ainda isento
Começando por vós, nobre senhora, se encontre de suspeita, não proceda
reine paz entre nós, paz verdadeira, com mais culpa do que o infeliz Clarence.
que saberei comprar com meus respeitos. (Entra Stanley.)
Entre nós, igualmente, nobre primo STANLEY - Uma graça, senhor, por meus serviços!
Buckingham, caso algum ressentimento Rer EDUARDO"
tenha achado acolhida em nosso peito; Deixa-me em paz; minha alma está de luto.
Lorde Grey, Lorde Rivers, a ambos falo, SranLEY : Não me levantarei, sem Vossa Alteza
que sem causa me haveis franzido o cenho; me atender.
vós, também, Lorde Scales, Lorde Woodvile, Rer EDUARDO: Então dize o que pretendes.
duques, condes, fidalgos, gentis-homens: SrANLEY - O perdão para um servo que hoje a vida
todos, em suma. O nome eu desejara tirou de um gentil-homem turbulento
saber do inglês com vida a que minha alma até há pouco, do séquito de Norfolk.
possa odiar com mais intensidade Rei EDUARDO : Então eu tive língua para a vida
do que a criança que hoje ao mundo viesse. tirar a meu irmão e terei língua
É a Deus, tão-só, que cu devo esta humildade. para não condenar um vil escravo?
RainHa ELisaBETE- O dia de hoje vai ficar sagrado. Meu irmão não matou; o seu delito
Deus permita que todas as discórdias único foi pensar; no entanto teve
havidas entre nós assim terminem. como castigo a inexorável morte.
Meu nobre soberano, a Vossa Alteza
Quem por ele pediu? Quem, no mais forte
de minha cólera, se pôs de joelhos
suplico receber o irmão Clarence
de novo em vossa graça.
para me concitar à reflexão?

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shakespearebrasileiro.org A Tracépia DO Rei RicARDO III

Quem me falou de amor? Quem, de amizade sendo preciso, contra o sentimento


fraternal, e me fez então lembrado da justiça, que eu ceda! Por meu mano
do momento em que aquela alma inocente ninguém me disse uma palavra, ao menos,
por mim deixara o incontrastável Warwick? nem eu próprio falei comigo mesmo
Quem me contou como ele, na batalha a favor do coitado. Ingrato! Ingrato!
de Tewksbury viera em meu socorro, Os mais altivos dentre vós devíeis-lhe
e disse: “Caro irmão, vive e sê rei!” obrigações; no entanto, nenhum veio
Quem me trouxe à memória o dia em que ambos, interceder por ele. Oh Deus, receio
enregelados e sem vida, quase, que, por isso, recaia o teu castigo
no campo de batalha, ele envolveu-me sobre mim, sobre os meus, sobre vós todos.
nas suas próprias vestes, entregando-se, Hastings, vamos daqui, Pobre Clarence!
franzino e nu à noite entorpecente? (Saem o Rei Eduardo, a rainha, Hastings, Rivers,
Tudo isso, uma brutal e feroz cólera Dorset e Grey.)
já me havia tirado da memória GLOSTER É a precipitação que faz tudo isso.
por modo criminoso, sem que houvesse Vistes como os parentes da rainha
tido nenhum de vós a caridade pálidos se tornaram, ao saberem
de me fazer lembrado. Mas no instante que Clarence morrera? Oh! não cessavam
em que um carreiro, ou um dos vossos criados, de espicaçar o rei para isso mesmo.
pratica um crime, por haver bebido, Mas Deus guarda o castigo. Vamos, lordes,
desfigurando a efígie inestimável levar ao mano Eduardo algum conforto.
do nosso Redentor, sem mais delongas BuckiNGHAM * Estamos ao dispor de Vossa Graça.
sabeis dizer: Perdão! Perdão! de joelhos, (Saem.)

Ato HH Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio. Para isso hei de assaltá-lo diariamente
Entra a Duquesa de York com o filho e a filha de com minhas orações.
Clarence. FiLHA* Farei o mesmo.
Duquesa : Quietinhos, filhos; não faleis assim.
FrLHo : Dize-nos, boa avó: papai morreu? O rei vos tem amor. Meus inocentes,
Duquesa - Não, meu filho. não podeis suspeitar quem fosse a causa
FrLHa Então por que fazeis assim com as mãos de ter vosso bom pai perdido a vida.
e no peito bateis a todo instante, FrLHo : Podemos, avozinha; que o bondoso
repetindo: Oh Clarence, infeliz filho! tio Gloster nos pôs a par de tudo,
FrLHo Por que nos contemplais dessa maneira, contando como o rei fora levado
sacudindo a cabeça, e de infelizes pela esposa a inventar falsos motivos
nos chamais, órfãos, míseros, largados, de o encerrar na prisão. Ao contar isso,
se o nosso nobre pai ainda está vivo? nosso tio chorava, lastimando-nos,
Duquesa : Estais equivocados, meus netinhos; e o rosto me beijou, sem que cessasse
choro a doença do rei, não choro a morte de dizer que eu podia confiar nele
de vosso pai; perdida fora a mágoa como num pai, porque ele me haveria
despendida por quem já está perdido. de estimar como a seu querido filho.
FrLHo : Então, avó, concluís que ele está morto. Duquesa : Como pode assumir a falsidade
É o rei meu tio o causador de tudo. forma tão delicada, o vício imundo
Deus lhe reserva o merecido prêmio. dissimulando com feições virtuosas?
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WiLLIAM SHAKESPEARE

É meu filho, de fato, e o meu opróbrio;


infantis ajudar-vos neste transe?
mas não bebeu, decerto, a hipocrisia FrLHa Sem lágrimas ficou nossa orfandade;
no leite destes peitos. fique vossa viuvez também sem prantos.
FrLHoO* A avozinha RAINHA ELISABETE"
pensa que nosso tio está fingindo? Ajuda não vos peço na tristeza
Duquesa : Sim, meu filho. que estéril eu não sou para queixar-me.
FrLHo - Não posso crer. Mas que barulho é esse? Sinto nos olhos concentrados todos
(Entra a Rainha Elisabete, fora de si; Rivers e os cursos d'água, porque a lua
Dorset a seguem.) úmida me governe e eu possa lágrimas
RAINHA ELISABETE* sem conta derramar que o mundo afoguem.
Oh! Quem me impedirá de lastimar-me, Meu caro esposo, caro Lorde Eduardo!
de gemer, de acusar a sorte ingrata? FrLHos : Caro Lorde Clarence, pai querido!
Lanço contra minha alma o desespero, DuQqUESA*
para imiga tornar-me de mim própria. Choro a perda dos dois, Clarence e Eduardo.
Duquesa À que vem a selvagem impaciência? RAINHA ELISABETE"*
RAINHA ELISABETE * Para um ato de trágica violência. Eduardo, o meu arrimo, já não vive!
Eduardo, meu senhor, teu filho, nosso FrLHos : Clarence, nosso arrimo, já não vive!
soberano, morreu! Por que florirem DuquEsaA-
os galhos, quando o tronco já está seco? Ambos, meus dois arrimos, já não vivem!
Por que as folhas não murcham, por carência RAINHA ELISABETE"*
de seiva? Se quereis viver, chorai; Jamais sofreu viúva tão cruel perda.
se morrer, sede breve, porque possam FrLHos : Jamais filhos sofreram tão cruel perda.
nossas almas aladas e velozes Duquesa : Não sofreu mãe alguma tão cruel perda.
alcançar a do rei, ou, como súditos Ai de mim! Sou a mãe desses queixumes.
obedientes, ficar ao lado dele Dividido é o sofrer de cada um deles;
no novo reino do repouso eterno. somente o meu é inteiro. Ela lastima
Duquesa : Tomo tanto interesse por tua mágoa a morte de um Eduardo: o mesmo eu faço.
quanto direito eu tinha em teu marido. Mas, como eu, por Clarence ela não chora.
Chorei a morte de um consorte digno,
Os meninos a morte de Clarence
tendo passado a vida tão-somente lastimam, como o faço; mas não choram
a contemplar seus vívidos rebentos. a de Eduardo, como eu. Ah! desgraçada
Mas dois espelhos de seus nobres traços três vezes! Sobre mim é que recaem
foram quebrados pela dura morte, todas as vossas lágrimas; sou a ama
só me tendo ficado por consolo de vossa dor conjunta; vou deixá-la
um vidro enganador que me tortura, saciada e farta só com meus soluços.
quando nele contemplo o meu opróbrio. Dorser: Boa mãe, acalmai-vos! Deus se zanga
Ficaste viúva, mas és mãe ainda por terdes recebido desse modo
com o consolo dos filhos. Mas a morte quanto ele decidiu. No baixo mundo
dos braços me arrancou o caro esposo, se chama ingratidão pagar a dívida
para, logo depois, duas muletas com mostras de desgosto, quando fora
dos membros me tomar: Clarence e Eduardo. concedida por mão bondosa e franca.
Oh! Como tenho causa suficiente — Muito mais grave é contra o céu virardes,
não sendo a tua dor senão metade quando ele pede contas da real dívida
de todo o meu sofrer — para com as minhas que com ele fizéreis neste mundo.
lamentações sobrepujar as tuas! Rivers: Minha senhora, com mãe cuidosa
FiLHO - É isso, tia; a morte não chorastes pensai no vosso filho, o moço príncipe.
do nosso pai; por que, com nossas lágrimas Mandai buscá-lo para ser coroado.

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A TracéDiA DO REI RICARDO III

Ele é o vosso consolo neste transe. BuckxincHAM Ora, milorde, para que as feridas
Enterrai vossa dor na sepultura do ódio, há pouco fechadas, não se reabram
do morto Eduardo, e vossas alegrias ante um grande cortejo, o que seria
no trono colocai do vivo Eduardo. tanto mais perigoso, por achar-se
(Entram Gloster, Buckingham, Stanley, nosso Estado ainda novo e sem governo.
Hastings, Ratchiff e outros.) Quando os cavalos correm desenfreados,
GLosrER: Calma, irmã! Todos nós temos motivos tomando a direção que bem entendem,
de lastimar o triste apagamento não só o perigo, mas o medo dele,
do nosso brilhante astro. Mas tristezas é o que penso, precisam ser banidos.
não se curam com lágrimas. Suplico-vos GLosrTER* Penso que o rei fez paz com todos nós.
que me perdoeis, minha bondosa mãe; Do meu lado a promessa é leal e firme.
Rivers Do meu também e, quero crer, de todos.
mas eu não tinha visto Vossa Graça.
Mas, sendo nova a paz, é conveniente
De joelho, humilde, peço a vossa bênção.
Duquesa - Deus te abençoe e ponha-te no peito protegê-la do risco de partir-se
por excesso de gente. Eis porque faço
brandura, caridade, obediência,
meu, também, o pensar do nobre Buckingham,
fidelidade e amor.
de que deve constar de poucos membros
GLosrTER* Amém.
a comissão que for buscar o príncipe.
(À parte) - E me faça morrer depois de velho.
HasriINGS: É o que penso, também.
Eis como a bênção de uma mãe termina.
GrosrER- Então, que seja assim. E ora nomeemos
Não sei porque Sua Graça esqueceu isso.
os que vão ser enviados para Ludlow.
BuckiNGHAM : Príncipes enublados, pares tristes,
Querida mãe, e vós, minha senhora,
que o comum fardo suportais das dores: não quereis dar vossa opinião valiosa
em vosso amor recíproco alegrai-vos. sobre assunto de tanta relevância?
Conquanto esteja gasta toda a ceifa (Saem todos, com exceção de Buckingham e de Gloster.)
do nosso soberano, ainda nos resta BuckKINGHAM *
colher os frutos que promete o filho. Pouco importam, milorde, os escolhidos;
A discórdia de há pouco, abandonada mas, por amor de Deus, não nos excluamos.
por vossos corações intumescidos, Hei de encontrar ensejo, no caminho,
já agora transformada no contrário, para início do assunto combinado:
deve ser preservada com carinho. razões para afastar o jovem príncipe
Parece-me que fora conveniente da orgulhosa família da rainha.
sem demora mandar trazer de Ludlow GLosrER* Oh tu, meu outro eu, meu consistório,
o príncipe, com séquito pequeno, querido primo, meu profeta e oráculo!
para ser logo coroado em Londres. Seguirei, como criança, os teus conselhos.
Rivers: Não ficaremos; vamos para Ludlow.
Por que com pouca gente, Lorde Buckingham? (Saem.)

Ato Il - Cena HI
O mesmo. Uma rua. Acaso sabes a última notícia?
Entram dois cidadãos por lados diferentes. PrimeIRO CIDADÃO*
Já sei: o rei morreu.
PrimeIRO CIDADÃO * SecunDo CIDADÃO : Pior é impossível,
Bom dia, amigo; por que tanta pressa? pelo céu! Coisa boa ninguém conta.
SEGUNDO CIDADÃO O mundo vai virar de catrapus.
Nem eu sei mesmo a causa; é o que vos digo. (Entra o terceiro cidadão.)

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TercEIRO CIDADÃO * carecer desses tios, que o problema


Vizinhos, Deus vos guarde! de quem do trono ficará mais próximo
PrimeÍrO CIDADÃO" E vos conceda vai nos tocar de perto, se Deus grande
muito bom dia. não nos desviar o mal. Oh, como o Duque
Terceiro CIDADÃO * Sabereis, acaso: de Gloster é daninho! Como os filhos
confirmou-se a notícia do trespasse e os irmãos da rainha são soberbos
do nosso Rei Eduardo? e intoleráveis! Se mandados fossem
SEGUNDO CIDADÃO É certo, amigo; todos eles, em vez de governarem,
foi confirmada. Deus nos seja plácido. nossa terra achacada melhorara.
TERCEIRO CIDADÃO * PrimEIRO CIDADÃO"
Aguardai, pois, um mundo tempestuoso. É muito pessimismo! Ainda há esperança.
Primeiro CIDADÃO TERCEIRO CIDADÃO *
Não, pelo céu! Vai para o trono o herdeiro. Quando as nuvens se adensam, as pessoas
TErcEeIrRO CIDADÃO sensatas põem capa; quando as folhas
Ai do país em que uma criança reina! começam de cair, o inverno é próximo;
SEGUNDO CIDADÃO quem não espera pela noite, quando
Há esperanças de termos bom governo, se deita o sol no ocaso? Tempestades
pois enquanto for criança, o seu conselho fora de tempo são sinal de ruína,
governará por ele, e, quando adulto, de colheita estragada. É bem possível
tomará a direção da causa pública. que tudo venha a acabar bem; mas caso
Fará um bom governo, não há dúvida. Deus assim determine, é mais, sem dúvida,
PrimeIRO CIDADÃO do que nós merecemos e eu espero.
Era essa a situação do Estado, quando SEGUNDO CIDADÃO"
em Paris foi coroado Henrique VI, De fato. O coração dos homens se acha
com apenas nove meses. cheio de inquietações. Não é possível
Terceiro CipaDÃo - Era idêntica conversar com ninguém sem que possamos
a situação do Estado? Não, amigos, ler-lhe nos olhos o que na alma sente.
só Deus o sabe; pois naqueles tempos TercEIRO CIDADÃO *
se orgulhava o país de ter um grave Isso acontece sempre que há mudança.
conselho de políticos, e tios Por instinto divino, o entendimento
virtuosos ao monarca não faltavam, do homem sente o perigo, tal como a água
para amparar o rei. que cresce antes de grande tempestade.
PriMEIRO CIDADÃO * Ora, isso mesmo Mas Deus cuidará disso. Para onde ides?
possui o nosso, agora, e dos dois lados, SecunDo CIDADÃO * Fomos chamados pelo juiz.
do pai, como da mãe. TerceIrO CIDADÃO * O mesmo
Tercerro CipaDÃo * Melhor lhe fora se dá comigo; assim, iremos juntos.
(Saem) .
ter só tios paternos, ou de todo

Ato IH Cena IV
O mesmo. Um quarto no palácio. Duquesa: Estou ansiosa
Entram o Arcebispo de York, o jovem Duque de York, a por ver de novo o príncipe. Desde a última
Rainha Elisabete e a Duquesa de York. vez que o vi deve ter crescido muito.
RAINHA ELISABETE*
Arcesispo* Ouvi dizer que eles dormiram ontem Dizem que não; pretendem que meu filho
em Northampton e que hoje à noite dormem York o alcançou.
em Stony-Stratford. É certo, pois, chegarem York É certo, mãe; contudo,
amanhã ou depois. preferia não ter crescido tanto.
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A TragépIA DO REI RICARDO III

Duquesa : Por quê, primo? Crescer é sempre bom. Mensaceiro * Lorde Grey e Lorde Rivers
York: Uma noite, avozinha, quando ceávamos, se acham presos em Pomfret e, com eles,
meu tio Rivers disse que eu crescia Sir Tomás Vaughan.
mais depressa que o mano. “Sim”, meu tio Duquesa: Quem deu essa ordem?
Gloster lhe respondeu, “erva pequena MENSAGEIRO *
tem graça; O joio só produz desgraça”. Os grandes Duques Buckingham e Gloster.
Desde aí não me agrada o crescimento, ArcEBIsPO* Que crimes cometeram?
que as flores perfumadas são morosas MENSAGEIRO * Já vos disse
e o joio e as outras pragas correm muito. tudo quanto sabia a esse respeito.
DuQUESA* É certo; mas o dito não se aplica Quanto às razões de terem sido presos
à pessoa que fez esse reparo. os nobres, meu senhor, não sei de nada.
Dava dó contemplá-lo quando criança. RAINHA ELISABETE*
Crescia devagar e retardado. Ai de mim! Vejo a minha casa em ruínas!
Pela regra, devera ser gracioso. O tigre já apanhou a corça tímida.
ARCEBISPO" O que, em verdade, ele é, graciosa dama. Começou a injuriosa tirania
Duquesa : Penso que sim. Contudo, as mães a atacar o inocente e fraco trono.
duvidam. Sejam bem-vindos, pois, a morte e o crime,
York Por minha fé, tivesse eu me lembrado, bem-vinda a destruição! Como num mapa,
poderia ter feito uma pilhéria já vejo desenhado o fim de tudo.
com meu gracioso tio, que saísse Duquesa : Malditos dias de agitadas lutas
muito mais acertada do que a dele. que tantas vezes estes olhos viram!
Duquesa : Qual seria ela? Dize-a, jovem York. No afã de obter o trono, o meu marido
York: Consta que o crescimento de meu tio perdeu a vida; com variável sorte,
tão depressa se deu, que após duas horas meus filhos se têm visto sacudidos
do nascimento ele morder podia para meu gáudio e minha dor, conforme
uma côdea de pão, ao passo que eu perdessem tudo, ou tudo conquistassem.
levei dois anos para ter um dente. Depois de tudo ganho, quando a rixas
À graça morderia, não, avó? domésticas já estavam removidas,
Duquesa : Quem foi que te disse isso, gentil York? eles mesmos, os próprios vencedores,
York: Ora, avó, a ama dele. a guerrear uns aos outros começaram:
Duquesa: À ama dele? Impossível, que morrera irmão com irmão, sangue com sangue, todos
antes de tu nasceres. contra si mesmos. Oh inaudito ultraje,
York: Nesse caso, fúria insensata, esse rancor aplaca,
não sei dizer de quem soube tal coisa. ou me deixa morrer para que ao menos
RAINHA ELISABETE* contemplar eu não possa a cruel morte!
Menino espirituoso! É muito fino. RAINHA ELISABETE*
ARCEBISPO * Não se zangue com ele Vossa Graça. Vamos, meu filho, procurar abrigo
RainHA ELIsABETE* Têm ouvido as paredes. nalgum lugar sagrado. Adeus, senhora.
(Entra um mensageiro.) Duquesa: Esperai um momento; irei convosco.
ArcEBIsPO * Um mensageiro! Que notícias trazes? RAINHA ELISABETE Não tendes causa.
MensaceIRO * De tal monta, milorde, que me sinto ARCEBISPO (à rainha) - Não fiqueis, senhora;
sem saber como vo-las anuncie. levai vosso tesouro e vossos bens.
RAINHA ELISABETE"* Por minha parte, o selo ora deponho
Como ficou o príncipe? nas mãos de Vossa Graça. Só desejo
MENSAGEIRO * Senhora, que o céu me trate sempre com carinho
ficou bem de saúde. tal qual o meu para convosco e os vossos.
Duquesa: Quais as novas, Vamos; levar-vos-ei para O santuário.
afinal? (Saem.)

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Ato II - Cena I
O mesmo. Uma rua. PríNciPE*
Clarins. Entram o Príncipe de Gales, Gloster, Bem-vindo, milorde Hastings. Que notícias
Buckingham, Catesby, o Cardeal Bourchier e outros. trazeis de nossa mãe? Não virá ver-nos?
Hasrinss: Só Deus sabe o motivo verdadeiro;
BuckINGHAM * vossa mãe a rainha e, junto com ela,
Sede bem-vindo a Londres, vossa câmara, vosso mano York o amparo procuraram
meu doce príncipe. de um lugar inviolável. Desejara
GLOSTER* Bem-vindo, primo, vir saudar Vossa Graça o doce príncipe;
rei dos meus pensamentos. Estou vendo mas sua mãe o dissuadiu do intento.
que a viagem vos deixou cansado e triste. BUCKINGHAM * Que ato pueril e impertinente o deles!
Príncipe" Não, tio; os desagrados muito próprios Lorde Cardeal, apraz a Vossa Graça
da viagem a fizeram cansativa, convencer a rainha de enviar logo
carregada e enfadonha. Desejara o Duque de York ao príncipe seu mano?
ver, à minha chegada, os outros tios. Ide também, Lorde Hastings, arrancai-o
GLosrTER: Meu doce príncipe, a virtude pura dos ciumentos braços da rainha,
de vossos anos não sondou ainda caso infensa ao pedido ela se mostre.
toda a maldade deste baixo mundo. CarpEAL: Se minha débil eloqiência, caro
Só distinguis os homens pelas formas milorde Buckingham, tiver prestígio
exteriores, que muito raramente, para tirar à mãe o Duque de York,
Deus o sabe, ou jamais, estão acordes contai com ele aqui dentro de pouco.
com o coração. Os tios que acabastes Mas se às minhas palavras a rainha
de reclamar vos eram perigosos. se mostrar obstinada, Deus não queira
Vossa Graça escutava os seus dizeres que eu violar possa o privilégio sacro
açucarados, mas não atendia de um santuário abençoado. Não me torno
ao veneno que no íntimo eles trazem. passível de um pecado tão monstruoso
Deus vos proteja dos amigos falsos. nem por toda a Inglaterra.
Príncipe * Deus me proteja dos amigos falsos! BuckiINGHAM Sois demasiadamente escrupuloso,
Mas falso nenhum deles me parece. milorde, muito cheio de pontinhos
GLosrER Eis, milorde, o prefeito da cidade; tradicionais, de cerimônias fúteis.
vem vos cumprimentar. Deveis pesar as coisas tendo em conta
(Entra o prefeito de Londres, com séquito.) nosso tempo grosseiro. Apoderando-vos
PREFEITO: Deus abençoe do duque, não violais nenhum santuário.
Vossa Graça e vos dê muita alegria. A Igreja só concede tal vantagem
Príncipe: Muito obrigado; a todos agradeço. a quem dela faz jus por seus princípios
Pensei que minha mãe e meu mano York normativos, ou a quem revela senso
nos desejassem ver ainda em caminho. para pedir o necessário amparo.
Oh! Como Hastings se mostra preguiçoso, Ora, não tendo o duque merecido
que não nos vem contar onde eles se acham! tal proteção, nem a ela recorrido —
(Entra Hastings.) este é o meu parecer — não pode tê-la.
Retirando-o, portanto, do santuário,
BUCKINGHAM Eis que chega, a suar, O nosso lorde.

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A Tracépia DO REI RICARDO III

que para ele o não é, não violais carta discorre a Hipocrisia, eu moralizo
de liberdade alguma ou privilégio. com termos dúbios.
De homens já ouvi falar que se acolheram Príncipe: Esse Júlio César
a lugares sagrados, não de crianças. foi um grande homem. Seu valor deu brilho
CARDEAL: Vossas razões, milorde, me convencem. ao próprio gênio, e o gênio emprestou vida
Não quereis ir comigo, milorde Hastings? sempiterna a seus feitos valorosos.
Hastings : Pois não, milorde. Não pôde conquistar a Morte o grande
PrínciPE* conquistador, que embora já não viva,
Fazei, bons lordes, toda a diligência ainda vive na fama. Desejara
possível. dizer-vos uma coisa, primo Buckingham...
(Saem o Cardeal Bourchier e Hastings,) BuckINGHAM * Quê, meu gracioso lorde?
Tio Gloster, quando o mano Príncipe: Se eu tiver vida até me tornar homem,
chegar, onde ficamos até o dia hei de reconquistar nossos direitos
de nossa coroação? sobre a França, ou morrer como soldado,
GLOSTER* Onde do agrado depois de ter vivido como rei.
for de Vossa Grandeza. Mas no caso GLOSTER (à parte) *
de me ser permitido dar conselhos, Primavera precoce vem, de regra,
um dia ou dois vossa real pessoa depois de verão curto.
repousará na Torre; com mais calma, (Entram York, Hastings e o Cardeal Bourchier.)
depois, escolhereis o melhor ponto BUCKINGHAM * O Duque de York
para a saúde e, assim, para recreio. chega a tempo.
Príncipe: De todos os lugares, o que menos Príncipe" Ricardo de York, como
me agrada é a Torre. Não foi Júlio César se sente o amado irmão?
que a construiu, milorde? York: Bem, tremendíssimo
BuckiNGHAM* Sim, gracioso senhor, que é assim que eu devo ora chamar-vos.
senhor; foi ele que lhe deu início; PríNciIPE:
mas as idades sucessivas foram Sim, mano; ao meu mau grado, como ao vosso.
as que a reedificaram. Morreu de pouco o dono desse título
PríNciIPE- Essa notícia que muita majestade a perder veio.
consta da história, ou tudo é simples lenda GLosrer: Como se sente o nobre Lorde de York,
que através das idades nos vem vindo? nosso primo?
BUCKINGHAM" York: Obrigado, gentil tio.
Consta da história, meu gracioso lorde. Oh milorde, dissestes que erva inútil
Príncipe: Mas embora, milorde, essa notícia cresce depressa. O príncipe, meu mano,
não tivesse ficado registrada, já me passou de muito em crescimento.
quero crer que a verdade passaria GLosrer: É verdade, milorde.
de um século para outro, como se ela, York: É, pois, inútil?
desse modo, ficasse dividida GLosrtER* Oh, belo primo, não direi tal coisa.
pela posteridade, até que fosse York: Ele vos é obrigado mais do que eu.
chegado o último dia. GLosrER - Como rei, ele pode me dar ordens;
GLosrTER (à parte) * Todos dizem mas vós em mim mandais como parente.
que as crianças precoces vivem pouco. York Tio, podereis dar-me esse punhal?
PríNcIPE: Gtosrer - De todo coração, pequeno primo.
Tio, que estais dizendo? Príncipe - Que é isso, mano! És um pedinte, acaso?
GLOSTER* Que ainda mesmo York: Do meu bom tio; nada ele me nega.
sem o auxílio da escrita, a fama vive Mormente coisa pouca ele não nega.
por muito tempo. (À parte.) Assim, como no teatro GrosreRr: Mas valioso presente eu vos daria.

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York Mais valioso? Dar-me-eis também a espada? BUCKINGHAM:


GLosTER Sim, poderia dar-vo-la, se fosse Milorde, não pensais que esse pequeno
leve bastante para a carregardes. tagarela haja sido orientado
Yorx* Oh! Já sei! Só me dais presentes leves. por sua sutil mãe, para tratar-vos
Em coisas de mais peso dizeis “não”. por modo tão grosseiro e oprobrioso?
GLosTER* O peso é muito para Vossa Graça. GLosrER : Sem dúvida, sem dúvida. É um menino
Yorx- Fosse ela mais pesada, eu a levara falador, vivo, ousado, inteligente,
facilmente. precoce e muito fino: é a mãe em tudo,
GrosrTER* Quereis, pequeno lorde, de cabeça até aos pés.
ficar com a minha espada? BuckxincHAM* Mas não falemos
York: Sim, que, em paga, mais nisso. Catesby, vem para perto,
eu agradecimentos vos daria Juraste que serias tão zeloso
de acordo como trato que me derdes. na execução de quanto pretendemos,
GrosrTERr:* Como? como discreto sobre o que dissermos.
York: Pequeno. Em caminho já ouviste os argumentos.
Príncipe - Tem gênio brincalhão milorde de York. Qual é tua opinião: não te parece
Vossa Graça, meu tio, sabe o jeito fácil ganharmos William Lorde Hastings
de suportá-lo. para o nosso projeto de instalarmos
York- Sim, de carregar-me,
o nobre dugue no real assento
que é o que quereis dizer, não, suportar-me. desta ilha tão famosa?
O mano, tio, zomba de nós ambos.
CaTESBY* Ele dedica
Por eu ser quase, quase um macaquinho, tanta afeição ao príncipe, por causa
do rei defunto, que não se deixara
ele diz que deveis levar-me ao ombro.
conquistar para lhe ir de encontro em nada.
BuckINGHAM * Com que espírito afiado ele responde!
BuckINGHAM E de Stanley, que pensas? Cederá?
Para atenuar o modo zombeteiro
Caressy : Esse fará em tudo tal qual Hastings.
com que se ri do tio, ele a si próprio
BuckincHAM : Bem; então, somente isto: vai, amável
com jeito e graça atira alguns remoques.
Catesby, ver, por alto, o que Lorde Hastings
É admirável: tão moço e tão astuto.
pensa do nosso plano e lhe transmite
GrosTER : Não vos agrada prosseguir, milorde? nosso convite para ir à Torre,
eu e o primo de Buckingham iremos amanhã, fazer parte do conselho
procurar vossa mãe para pedir-lhe em que se vai tratar da coroação.
que vá à Torre vos dar as boas-vindas. Se o achares acessível, encoraja-o
York* Como, milorde! Ireis ficar na Torre? e expõe nossos motivos. Mas no caso
PríncirE* Milorde protetor acha que o devo. de se mostrar com má vontade, frio,
York Não dormiria lá tranquilamente. pesado como chumbo, faze o mesmo:
GrosrER Por que razão? De que teríeis medo? corta logo a conversa e vem contar-nos
York- Ora, decerto da alma enraivecida o que achaste de suas preferências.
de meu tio Clarence. À avó me disse Amanhã reuniremos dois conselhos
que ele fora na Torre assassinado. diferentes, estando reservado
PríncirE* Não tenho medo dos meus tios mortos. para ti, em tudo isso, um grande posto.
GLosTER: Nem dos vivos, espero. GLosrER * Recomenda-me a Lorde William e dize-lhe
PríNCIPE* Não preciso que à velha malta de seus perigosos
ter medo deles, se estão vivos, creio. adversários sangria será feita
Mas sigamos, milorde; é preocupado, no Castelo de Pomfret, amanhã.
por pensar neles, que na Torre eu entro. Em regozijo dessas boas novas,
(Clarins. Saem todos, com exceção de Gloster, recomenda a milorde que dê um beijo
Buckingham e Catesby.) a mais em Mistress Shore.

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A Tracépia DO REI RicaRDO III

BuckINGHAM* Desincumbe-te, GrosrEr* Será decapitado; alguma coisa


Catesby, de tudo com prudência. precisamos fazer. E agora me ouve:
CATESBY* quando eu for rei, reclama-me o condado
Quanto em mim estiver, meus bons senhores.
de Hereford, juntamente com os bens móveis
GLosTER Antes de nos deitarmos, ouviremos
que eram do rei meu mano.
falar de vós, milorde?
CATESBY: Sim, milorde.
BuckINGHAM * Hei de, sem falta,
GLosrER* Em Crosby-place podereis achar-nos. lembrar essa promessa a Vossa Graça.
(Sai Catesby.) GrosTER* Com o máximo prazer será cumprida.
BuckxrnGHAM : Ora dizei, milorde: que faremos Vamos jantar; já é hora. Depois disso,
no caso de observarmos que Lorde Hastings cuidemos de dar forma aos nossos planos.
se recusa a ficar do nosso lado? (Saem.)

Ato HI Cena II
O mesmo. Diante da casa de Lorde Hastings. nada podendo acontecer neste último
Entra um mensageiro. que nos toque de perto, sem que logo
não venha eu a saber. Os seus receios,
MensacEIRO (batendo) - Milorde! Milorde! dize-lhe, são risíveis, não têm base.
Hasrrncs (dentro) * Quem bate? Quanto ao sonho, causou-me admiração
MensacEIRO * Alguém da parte de Lorde Stanley. vê-lo insensato a ponto de dar crédito
Hasrincs : Que horas são? às zombarias de um dormir inquieto.
MensaceIro * Quatro horas já batidas. Fugir do javali, sem que por ele
(Entra Hastings.) vistos ainda estivéssemos, é o mesmo
Hasrincs : Não poderá dormir milorde Stanley, que espicaçá-lo a vir em nosso encalço,
nesta noite tediosa?
e obrigá-lo a caçar contra a vontade.
MENSAGEIRO" Assim parece, Vai; dize ao teu senhor que me procure;
pelo que tenho a vos dizer. Primeiro,
juntos à Torre iremos, onde logo
ele se recomenda a Vossa Graça.
se certificará do tratamento
Hastings: Bem; e depois?
carinhoso que a fera nos vai dar.
MENSAGEIRO * Depois, vos comunica
MeENsacEIRO - Irei, milorde, c lhe direi tudo isso.
que esta noite sonhou que o javali
o elmo lhe derrubou. Mais; dois conselhos (Sai)
vão se reunir, diz ele, e que é possível
(Entra Catesby.)
num deles se resolva o que para ambos,
CaresBy : Muitos bons dias ao meu nobre lorde!
ele e vós, seja causa de desgosto Hasrincs : Bom dia, Catesby; acordaste cedo.
por não estardes nele. Esse o motivo Que é que há em nosso vacilante estado?
de perguntar a Vossa Senhoria Caressry: É certo, nobre lorde, o mundo oscila;
se a cavalo quereis montar com ele, sendo eu de parecer que ele só pode
já já, e a toda pressa galopar ficar firme de novo se Ricardo
na direção do norte, por fugirdes vier a usar a guirlanda da Inglaterra.
dos perigos que na alma ele pressente. Hasrincs*
HasriNGs* Amigo, volta para o teu senhor; Como! Usar a guirlanda? Com isso queres
dize-lhe que não tema os dois conselhos: referir-te à coroa?
num estou eu e Sua Honra; no outro. CATESsBY- Sim, milorde.
Catesby se acha, meu prezado amigo, Hasrrncs- Dos ombros cortar-me-ão esta coroa,

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antes, decerto, que a coroa eu veja Hasrincs : Milorde, tenho tanto amor à vida
tão vergonhosamente colocada. quanto vós, porém nunca — assim protesto —
Pensas que ele, realmente, aspira ao trono? me foi ela tão cara como agora.
CaresBy* Por minha vida, sim, estando certo Sc cu não soubesse, então, que estamos firmes,
de à testa vos achar de seu partido, poderia mostrar-me tão contente?
para poder obtê-lo. À esse respeito, STANLEY * Ao viajarem de Pomfret para Londres,
manda-vos a notícia alvissareira os fidalgos estavam muito alegres,
de que hoje mesmo vossos inimigos, considerando firme o seu estado,
os parentes e adeptos da rainha pois não tinham razão de desconfiança.
hão de morrer em Pomfret. Mas bem vedes que o dia ficou turvo.
HasriNcs* Tal notícia Tenho receio deste surto de ódio.
não me arranca lamentos, que eles todos Queira Deus não me mostre, neste passo,
sempre adversos me foram. Mas dar voto — covarde sem motivo. Então, iremos
meu voto! — aos partidários de Ricardo, à Torre? O dia já está quase gasto.
com prejuízo patente dos legítimos HasrinGs * Calma, milorde! Não sabeis o que houve?
herdeiros do meu mestre! Deus o sabe,
Serão decapitados hoje todos
jamais farei tal coisa, embora morra.
os lordes que nomeastes.
CarEsBy * Que Deus conserve Vossa Senhoria STANLEY * Sob as luzes
da lealdade, estes todos a cabeça
com tão gracioso espírito.
poderiam usar com mais direito
HasTINGS"* Mas hei de
do que o chapéu seus próprios inimigos.
rir sem parar, durante doze meses,
Mas, milorde, partamos.
por ter visto a tragédia das pessoas
(Entra um passavante.)
que junto ao meu monarca me intrigaram.
HasrTincs* Ide adiante,
Catesby, é certo: antes de ter o tempo
que eu vou falar com este camarada.
me deixado mais velho uma quinzena,
(Saem Stanley e Catesby.)
hei de outros expedir que nem suspeitam.
Então, malandro! Como vai o mundo,
CATESBY - É coisa horrível, meu gracioso lorde,
no que te diz respeito?
morrer sem que se esteja preparado.
PASSAVANTE: Bem, milorde;
Hasrincs"
principalmente por mo perguntardes.
Oh! Monstruoso, monstruoso! Isso acontece
HasrINGs - Uma coisa eu te digo: meus negócios
com Rivers, Vaughan, Grey, e o mesmo se há de
vão bem melhor agora do que quando
verificar com mais alguns sujeitos nos falamos aqui. Então, eu ia
que se julgam tão firmes quanto nós, levado para a Torre, por intrigas
nós, sempre caros, como não o ignoras, dos aliados da rainha. Mas agora —
a Buckingham e ao ínclito Ricardo. não o digas a ninguém — hoje esses mesmos
Caresey * Têm-vos em alta estima esses dois príncipes. adversários vão ser decapitados,
(À parte.) Pois a cabeça dele já contemplam e o meu prestígio está maior que nunca.
sobre a ponte de Londres. PassavANTE Deus o mantenha assim, para deleite
HasTINGS"* Estou certo de Vossa Senhoria.
disso mesmo, e mereço esse conceito. HasrINGS* Agradecido,
(Entra Stanley.) meu caro. Vai; bebe isto em meu louvor.
Entrai, amigo. E o vosso javali? (Atira-lhe a bolsa.) .
Receais o javali e andais sem armas? PAssavANTE" Deus guarde a Vossa Senhoria.
STANLEY * Hastings, bom dia; Catesby, bom dia. Adeus.
Podeis zombar; mas, pela cruz sagrada, (Sai.)
receio esses conselhos separados. (Entra um padre.)

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shakespearebrasileiro.org A TragÉDIA DO REI RICARDO III

Papre Belo encontro, milorde; estou contente HasrINGs" Por minha fé,
por ver Vossa Honra. ao ver este santo homem, vêm-me à mente
Hasrincs* Muito agradecido as pessoas a que vos referistes.
de todo o coração, meu bom Sir John. Então, ides à Torre?
Estou vos devendo ainda algum serviço; BucxincHaM* Sim, milorde,
procurai-me no sábado para isso. mas não demoro; penso estar de volta
(Entra Buckingham.) um pouco antes de Vossa Senhoria.
BuckKINGHAM * HasTINGS : É possível, que eu penso em jantar lá.
Falais com o padre, Lorde Camareiro? BUCKINGHAM (à parte) -
E cear, muito embora a contragosto.
Dele precisam só vossos amigos
(Alto) Como é não vindes?
de Pomfret; Vossa Graça não tem nada
HasrINcs* Vou com Vossa Graça.
que ver com confissões.
(Saem.)

Ato HH Cena III


Pomfret. Diante do castelo Grey * Caiu a maldição de Margarida
Entra Ratcliff com alabardeiros, conduzindo, para serem sobre nossas cabeças, quando queixas
executados, Rivers, Grey e Vaughan. amargas me lançou, em vós e em Hastings,
por impassíveis termos presenciado
Rivers: Quero dizer-te apenas, Sir Ricardo Ricardo apunhalar seu caro filho.
Ratcliff, que hoje verás morrer um súdito Rrvers - Então, amaldiçoou também Ricardo;
pela verdade, o seu dever e a honra.
então, amaldiçoou Hastings e Buckingham.
Grey : De vossa malta Deus preserve o príncipe;
Oh Deus! Exalça-lhe as ferventes preces
não passais de vampiros sugadores.
contra eles, como contra nós fizeste.
VaucHAN Os vivos ainda haveis de lastimar-vos
Mas quanto à minha irmã, Oh Deus bondoso,
pelo que hoje se passa.
RarcLirr- Vamos logo! que o nosso sangue leal te satisfaça
A hora de vossa morte já soou. que, como o sabes, vai ser derramado
Rivers - Oh Pomfret, Pomfret, sanguinário cárcere,
contra toda justiça.
ominoso e fatal para a nobreza! RaTcLIFF* Vamos logo!
No âmbito criminoso de teus muros A hora de vossa morte já passou.
em pedaços foi feito o Rei Ricardo Rivers"
segundo, e, para aumento da ignomínia Vamos, Grey; Vaughan, vamos; abracemo-nos
de tua sede horrenda, ora te damos para no céu nos vermos novamente.
para beber o sangue de inocentes. (Saem.)

Ato HI Cena IV
da coroação. Em nome, pois, de Deus,
Buckingham, Stanley, Hastings, o Bispo de E, Ratdlifj; dizei quando será o real dia.
Lovel e outros, sentados à volta de uma mesa; atrás, oficiais BuckrnGHAM Tudo está pronto para o tempo real?
do Conselho. STANLEY * Sim; falta apenas indicar a data.
Exy - Para mim, amanhã é um feliz dia.
HasrrNGs : Digo-vos
8 sem rodeios, meus senhores, BUCKINGHAM *
que a causa de aqui estarmos é o problema Quem está a par do que sobre isso pensa

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BUCKINGHAM : Vamos sair daqui por uns instantes.


o lorde protetor? Quem é o mais íntimo
(Saem Gloster e Buckingham.)
confidente do muito nobre duque?
STANLEY : Não marcamos ainda o grande dia.
ELy : Vossa Graça é o primeiro a saber sempre
Amanhã, quero crer, é muito cedo,
quanto lhe diz respeito, é o que pensamos.
Conhecemos somente nossos rostos;
pois não estou ainda preparado
como o estarei se houver adiamento.
quanto ao que diz com o coração, nem ele (Volta o Bispo de Ely.)
conhece o meu, nem eu, milorde, o vosso,
Exy : Para onde foi milorde protetor?
ou eu o dele, acaso, ou vós o meu.
Lorde Hastings, vós e o duque sois amigos. Mandei alguém buscar estes morangos.
Hasrincs : Agradeço a Sua Graça; sei que O duque Hastings : Hoje Sua Graça está contente € brando.
Algo bom lhe sorri ao pensamento,
me tem amor. Mas quanto a seus projetos
respeito à coroação, não sei de nada
para nos desejar um dia alegre.
Em toda a cristandade não conheço
por não tê-lo sondado nem ter-me ele
homem nenhum que, como o nobre duque,
comunicado o seu prazer gracioso.
Mas vós podeis fixar a data, nobres não consiga ocultar os sentimentos.
O coração no rosto se lhe estampa.
lordes; darei o voto pelo duque,
SranLEY - Vendo-lhe o rosto, que dizeis de quanto
certo de que ele há de ficar contente.
(Entra Gloster.) lhe vai no coração, tendo-se em conta
Exy - Eis o duque chegando na hora azada. que hoje ele está contente?
Hasrtincs"* Que não se acha
GLosrER - Bom dia primos e meus nobres lordes.
Sempre fui dorminhoco, mas espero zangado com nenhum dos circunstantes;
aliás, no olhar de pronto o revelara.
que minha ausência ora não tenha sido
(Voltam Gloster e Buckingham.)
prejudicial à marcha do projeto
que, eu presente, haveria resolvido.
Grosrer: Dizei-me, por obséquio, que castigo
merece quem conspira minha morte
BuckiINGHAM * Mas embora, milorde, não tivésseis
por diabólicos planos e a maldita
entrado à vossa deixa, William Lorde Hastings
teria pronunciado vossa parte...
feitiçaria, a dominar chegando
com seus encantos infernais meu corpo?
Quero dizer: teria dado o voto
HasrINGS"*
por vós para a coroação do rei.
O terno amor que a Vossa Graça eu voto
GLosrTER : Ninguém é mais autorizado nisso
me dá coragem neste nobre círculo,
do que Lorde Hastings. Sua Senhoria
para punir os ofensores, sejam
perfeitamente me conhece e tem-me
eles quais forem. Digo, pois, milorde,
bastante amor. Milorde de Ely, quando
que são merecedores da pena última.
“em Holborn eu estive, há pouco tempo,
GrosTER* Sejam, pois, vossos olhos testemunha
vi em vosso pomar belos morangos.
do mal que me fizeram. Vede como
Por obséquio, mandai buscar alguns. :
me encontro enfeitiçado: o braço vede-me
Exy : De todo o coração, meu caro lorde.
(Sai) desmedrado, qual broto emurchecido.
Foi a mulher de Eduardo, essa monstruosa
GrosrER - Uma palavra à parte, primo Buckingham.
(Tomando-o à parte.) feiticeira, de par com a marafona
da Shore, que, com suas artes negras,
Sobre este assunto Catesby sondou o Hastings,
me deixaram marcado deste jeito.
tendo achado o fidalgo rabugento
Hasrincs : Se tal coisa fizeram, nobre lorde...
de tal modo rebelde, que prefere
vir a morrer a dar consentimento Grosrer “Sei!” protetor da marafona imunda!
a que o filho do seu prezado mestre, Vens falar-me de “se”? És um traidor.
Fora a cabeça dele! Por São Paulo,
como ele, respeitoso, o denomina,
juro não comer nada, até ver isso.
venha a perder o trono da Inglaterra.

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shakespearebrasileiro.org À TracéDiA DO Rei RicARDO III

Ratcliff e Lovel, incumbi-vos disso. RarcLrrr: Vamos, milorde! O duque quer cear.
Os demais, que me amarem, acompanhem-me. Confessai-vos depressa; ele está ansioso
(Saem todos, com exceção de Flastings, Ratcliff' e Lovel,)
por ver vossa cabeça decepada.
HasrinGs : Desgraçada Inglaterra! Não me queixo, Hasrrncs Oh graça transitória dos mortais,
porque eu podia ter evitado isto, que procuramos mais do que a de Deus!
mas fui um louco: Stanley viu em sonhos
Quem no ar de teus sorrisos põe as suas
que o javali lhe derrubara o casco.
esperanças, a vida passa como
Dele me ri e a salvo não quis pôr-me.
marinheiro embriagado, junto ao mastro,
Tropeçou meu cavalo hoje três vezes,
pronto, a cada balanço, a ser cuspido
três vezes empinou diante da Torre,
nas entranhas fatais do imenso abismo.
como se não quisesse carregar-me
para este matadouro. Ora preciso Love - Despachai-vos! É inútil falar muito.
Hasrincs : Ricardo sanguinário! Oh pobre pátria!
do padre que há momentos me falava;
Profetizo-te tempos ominosos,
pesa-me o que eu falei ao passavante
com ar de triunfo, sobre os meus imigos como idade infeliz alguma viu.
que hoje em Pomfret seriam massacrados Levai-me logo para o cruel cepo;
e que em favor e graça eu me encontrava. decepa-me a cabeça e ao duque a leva.
Oh Margarida, Margarida! A tua Muitos que hoje se riem do meu fado,
pesada maldição caiu agora morrerão também cedo, a seu mau grado.
na cabeça infeliz do mísero Hastings. (Saem.)

Ato HI - Cena V
Londres. O parapeito da Torre. BuckincHAaM : Lorde prefeito...
Entram Gloster e Buckingham, com armaduras GLOSTER* À ponte movediça!
enferrujadas e numa admirável desordem. BuckiNGHAM:
Ouvi: som de tambores!
GLosrTER* Vamos, primo; tremer podes, acaso, GLosTER* A muralha,
mudar de cor, interromper o fôlego Catesby! Cuidai disso.
no meio do discurso e, após, de novo, BuckincHAM:* Ao vos mandar
começar a falar uma e mais vezes buscar, lorde prefeito...
como quem estivesse delirando GLosrTER* Olha tuas costas!
transido de terror? Defende-te! São todos inimigos!
BuckincHAM* Perfeitamente, BuckiNGHAM Deus e nossa inocência nos
Sei imitar o trágico solene, protejam!
olhar atrás, espiar à volta, em grandes (Entram Lovel e Rateliff' com a cabeça de Hastings.)
discursos estirar-me, ficar trêmulo,
GLOSTER*
Calma! Calma! São nossos companheiros:
estremecer de susto por um nada,
Ratcliffe Lovel.
suspeita aventar de grande alcance.
LoveL- Vedes a cabeça
A meu serviço tenho olhares fúnebres,
daquele vil traidor, o perigoso
sorrisos contrafeitos, que executam
Hastings não suspeitado.
de grado seus ofícios a toda hora, GLosTER- Tanto afeto
porque meus planos todos favoreçam. lhe dedicava, que conter as lágrimas
Mas Catesby partiu? a esta vista é impossível. Tive-o sempre
GLosTER - Sim; mas ei-lo de volta com o prefeito. pela criatura mais veraz e inócua
(Entram o lorde prefeito e Catesby.) que respirasse em toda a cristandade.

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Fizera dele o livro em que minha alma relatarei aos cidadãos virtuosos
fixara a história de seus mais secretos como andastes corretos nesta causa.
pensamentos. Com tanta habilidade GrosreR: Pois foi para esse fim que desejamos
soube ele disfarçar seus feios vícios que Vossa Senhoria aqui estivesse,
com mostras de virtude que, tirante para evitar as críticas do mundo
seu crime demonstrado, digo, o trato sempre pronto a ajuizar pela aparência.
que ele mantinha com a mulher de Shore, BuCKINGHAM *
a coberto vivia de suspeita. Mais uma vez que, contra o nosso intento,
BuckINGHAM'* não chegastes a tempo, testemunho
Certo; foi o traidor mais resguardado dareis pelo que ouvistes sobre nossas
que já viveu. intenções nisso tudo. E ora, meu caro
Poderíeis pensar, ou crer, ao menos, lorde prefeito, aqui nos despedimos.
se por milagre, quase, não vivêssemos (Sai o lorde prefeito.)
para vo-lo contar, que este astucioso GLosrTER Vai atrás dele, corre, primo Buckingham;
traidor imaginara assassinar-nos vai a Guildhall com ele a toda pressa.
hoje, em pleno Conselho, a mim e ao nobre Chegando lá, no instante mais azado
Lorde de Gloster? alude à bastardia dos dois filhos
PrEFEITO - Intentou tal coisa? de Eduardo e conta ao povo como Eduardo
GLOSTER* mandou matar um cidadão, somente
Como! Tomais-nos por infiéis ou turcos? por haver ele dito que faria
Ou pensais que teríamos, acaso, do filho o herdeiro da coroa, sendo
ido de encontro às normas do direito que aludia tão-só à própria casa
no dar, com tanta urgência, a morte ao biltre, que, pelo emblema, assim era nomeada.
se não fosse o perigo que ameaçava Descreve mais sua bestial luxúria
nossas pessoas e até mesmo o reino sempre à procura de prazeres novos,
nos ter forçado a esse ato decisivo? que esposas atingia, filhas, servas,
PrereiTO - Que tudo vos sorria. Vossas Graças onde quer que seus olhos de rapina
fizeram muito bem em dar-lhe a morte: e o coração selvagem sem governo
é o que ele merecia. Isso há de medo achassem fácil presa. Sendo o caso,
infundir nos traidores do futuro. podes chegar até minha pessoa.
Nunca esperei coisa nenhuma dele, Conta-lhes que no tempo em que se achava
desde que se meteu com Mistress Shore. grávida minha mãe desse insaciável
BuckINGHAM:* Eduardo, combatia em França o nobre
Não queríamos que ele a morrer viesse Duque de York, o meu pai de régia estirpe,
sem Vossa Senhoria ver-lhe o fim, que à conclusão chegou, fazendo o cômputo
o que o zelo impediu destes amigos, exato das semanas, que o rebento
em parte contra nosso próprio alvitre. não podia ser dele, o que em seus traços,
Desejara, milorde, que tivésseis aliás, se patenteava, diferentes
ouvido como o biltre confessava em tudo aos do meu nobre pai, o duque.
trêmulo seus propósitos traiçoeiros, Mas tocai nisso muito pela rama,
para que aos cidadãos os repetísseis, como que de passagem, pois, milorde,
capazes, porventura, de atribuir-nos sabei-lo: minha mãe ainda está viva.
más intenções e lastimar-lhe a morte. BUCKINGHAM *
PrereITO - Mas meu caro senhor, basta-me quanto Não o duvideis, milorde, que o papel
me dissestes; é como se eu o tivesse de orador eu farei como se a paga
visto e ouvido falar. Não tenhais dúvida, de ouro, por que me bato, fosse minha.
mui nobres e leais príncipes, cu próprio E assim, milorde, adeus.

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GLOSTER* Se conseguirdes (A Catesby.) Vai tu buscar frei Penker.


tudo a contento, conduzi-os prestes Dizei-lhes que me venham ver no prazo
ao Castelo Baynard onde hei de achar-me de uma hora no Castelo de Baynard.
na santa companhia de eruditos (Saem Lovel e Catesby.)
bispos e reverendos sacerdotes. Agora vou entrar, para que possa
BuckiNGHAM - Sigo já. Esperai pelas notícias
confeccionar uma ordem reservada
de Guildhall mais ou menos às quatro horas.
que liquide os fedelhos de Clarence,
(Sai)
e ordenar que ninguém, em hora alguma,
GLOSTER*
possa ser admitido junto aos príncipes.
Com toda a urgência, Lovel, vai em busca
do Doutor Shaw. (Sai)

Ato II Cena VI
O mesmo. Uma rua. o original, que em tempo igual foi feito.
Entra um copista. No entanto apenas há cinco horas Hastings
ainda vivia sem ser suspeitado,
Corisra : O ato de acusação contra o bom Lorde imaculado, livre, em liberdade.
Hastings já está copiado, uma bela Belo mundo, realmente! Quem seria
folha com letra grande, porque possa tão bronco que não visse tal embuste?
ser lido hoje em São Paulo. Agora vede Mas quem tão corajoso que o declare?
como as coisas se seguem por si mesmas. Péssimo é o mundo, e acabará em nada
Onze horas eu gastei neste trabalho, porque tamanha infâmia é tolerada.
pois Catesby me enviou ontem à tarde (Sai)

Ato HI Cena VII


O mesmo. Pátio do Castelo Baynard. concebido no tempo em que se achava
Entram Gloster e Buckingham, por lados diferentes. na França vosso pai, das feições dele
que não fazem lembradas as do duque.
Grosrer: Então, que tal? Os cidadãos que dizem? Depois, passei-lhes a falar de vossa
BuckxincHAM : Ora, ficaram mudos. Pela santa fisionomia, como sendo a cópia
Mãe de Deus, ninguém disse uma palavra. fiel da de vosso pai, não só na forma,
GLosTER: Fizestes alusão à bastardia como quanto à nobreza do intelecto.
dos dois filhos de Eduardo? Relatei-lhes os vossos grandes feitos
BuckINGHAM* Fiz; falei-lhes na Escócia, a disciplina nas campanhas,
do contrato, também, com Lady Lucy, vosso saber na paz, vossa bondade,
do casamento por procuração a virtude, a modéstia muito próprias...
realizado na França, da insaciável Cuidei de tudo, em suma, não deixando
avidez dos desejos, da violência esquecido nenhum ponto importante
feita a tantas mulheres da cidade, que podia vos ser de algum proveito.
de sua tirania por nonadas, E ao ver minha oratória terminada,
de sua bastardia, por ter sido disse-lhes: quem quiser o bem da pátria

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grite comigo: “Deus guarde Ricardo, Catesby, e então?


o mui nobre monarca da Inglaterra!” Vosso mestre que disse ao meu pedido?
GLosrter* E eles assim fizeram? CaresBy : Ele suplica, instante, a Vossa Graça,
BuckxiNGHAM - Não, por Deus! nobre lorde, voltardes outro dia,
Ninguém falou palavra. Como estátuas amanhã ou depois. Está lá dentro
ou pedras insensíveis, entreolhavam-se com dois padres de muita reverência,
pálidos como a morte. À esse espetáculo, inteiramente entregue às mais sublimes
fiz-lhes censuras, tendo interrogado meditações. Assunto algum, terreno,
o prefeito a respeito do sentido poderá demovê-lo dessa prática.
daquela teimosia em não falarem. BUCKINGHAM *
Respondeu-me que o povo não tinha hábito Catesby, volta e ao nobre duque dize
de ser interpelado senão pelos que eu, o prefeito e seus vereadores
prefeitos tão-somente. Então, forçado desejamos falar com Sua Graça
se viu a repetir minhas palavras: sobre assunto de grande relevância
“O duque assim concluiu, o duque disse que visa nada menos que ao bem público.
deste modo...” mas nada em nome próprio. CaTESBY - Sem demora vou pô-lo a par de tudo.
Áo terminar, alguns dos meus criados, (Sai)
no fundo do recinto, sacudiram BUCKINGHAM
os chapéus, exclamando umas dez vozes: Ah, milorde! bem vedes: este príncipe
“Deus salve o Rei Ricardo!” Ao que eu, valendo-me não é nenhum Eduardo! Este não vive
dessa oportunidade, ripostei-lhes: recostado no leito da luxúria
“Concidadãos e amigos, obrigado; mas, de joelhos, passa todo o tempo
estas exclamações francas e unânimes rezando e meditando; não graceja
revelam vossa grande discrição com fúteis cortesãs, não; mas discute
e o amor que todos tendes a Ricardo”. com teólogos assuntos de importância.
Neste ponto parei e vim embora. A dormir, não engorda o corpo ocioso;
GrosreRr : Que cepos mudos toda essa cambada! opulenta, a rezar, a alma desperta.
Não quiseram falar? E acaso o lorde Feliz da nossa pátria se este príncipe
prefeito não virá com os vereadores? virtuoso a si chamasse o duro encargo
BuckINGHAM * Está à mão. Revelai algum receio; de dirigir o reino. Mas receio
não faleis se não fordes muito instado. que jamais consigamos demovê-lo.
Deveis apresentar-vos, caro lorde, Prererro* Deus não queira que o duque se recuse!
com um livro de orações e entre dois pios BUCKINGHAM *
sacerdotes, e, assim, com essa base Estou muito apreensivo. Mas eis Catesby.
construirei meu discurso edificante. (Volta Catesby.)
Não cedais facilmente aos nossos rogos; Catesby, e então? Que disse Sua Graça?
neste ponto fazei como as donzelas CarEsBY : Não atina com a causa que vos trouxe
que dizem sempre não, mas vão cedendo. com tantos cidadãos a procurá-lo,
GrosrER : Bem; se pleiteardes com firmeza igual sem ter sido Sua Graça previamente
à que eu empregarei para esquivar-me, advertido de nada. Ele se teme,
é certeza alcançarmos o objetivo. milorde, de algum mal de vossa parte.
BuckINGHAM: Ide para o terraço. Eis o prefeito. BuckINGHAM
(Sai Gloster.) Entristece-me ver que o nobre primo
(Entram o lorde prefeito, vereadores e cidadãos.) possa me suspeitar de não querer-lhe
Sois bem-vindo, milorde. Estou cansado somente bem. Por Deus! Nossa visita
de esperar pelo duque. Penso que ele só tem por móvel boas intenções.
não recebe ninguém. Volta e dize isso mesmo a Sua Graça.
(Entra Catesby, saindo do castelo.) (Sai Catesby.)

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shakespearebrasileiro.org A TracÉDIA DO REI RICARDO III

Quando as pessoas santas e devotas da negra indiferença e o escuro oblívio.


estão com seus rosários, é difícil Para isso remediar, instantemente
demovê-las do zelo religioso: viemos pedir que vossa própria Graça
tanto a contemplação é doce e grata! chame a si o mais alto regimento
(Gloster aparece na galeria superior entre dois bispos. deste vosso país, não como simples
Volta Cateshy.) protetor, delegado ou substituto,
Prererro : Sua Graça ali está entre dois padres! nem obscuro feitor a cargo de outrem,
BuckiNGHAM Duas estacas da virtude, próprias mas como sucessor de sangue a sangue
para impedir um príncipe cristão que a natural herança tem direito,
de cair em vaidade. Vede: um livro vosso império, vós próprio. Por tudo isso,
traz ele, de orações, sinal certíssimo com estes cidadãos, vossos amigos
por que reconhecemos o homem pio, respeitosos e fiéis, cedendo às suas
Plantageneta ilustre, grande príncipe, instigações, em nome da justiça
concede-nos ouvidos favoráveis de nossa causa, venho a Vossa Graça
a este requerimento e nos perdoa certo de que hei de demover-nos o ânimo.
por termos vindo interromper a tua GLosrer: Não sei se o retirar-me silencioso
devoção de cristão muito sincero. ou vos encher de repreensões amargas
GLosrTer: Não precisais, milorde, desculpar-vos. será mais condizente com o meu posto
Eu, sim, é que suplico a Vossa Graça e vossa condição de requerentes.
que me perdoe por haver posposto Se nada eu responder, talvez com isso
ao serviço de Deus os meus amigos calculeis que a ambição de língua presa,
que me vêm visitar. Mas, isso à parte, por ter ficado muda, consentira
que deseja nesta hora Vossa Graça? em levar o áureo jugo do governo
BuckiNcHAM - O que deseja Deus lá das alturas que me quereis impor a meu mau grado.
e os vassalos desta ilha sem governo. Mas se eu vos censurar pelo pedido
GLosrer - Temo haver perpetrado algum deslize sazonado por vosso amor sincero,
que haja ofendido os olhos da cidade. decerto irei magoar muitos amigos.
Viestes me repreender por essa falta. Assim, para falar, mas evitando
BuckiNcHAM : Com efeito, milorde, Vossa Graça bater naquele escolho, e, no decurso
quererá nos ouvir alguns momentos,
do que eu disser, não incidir no outro,
para poderdes reparar a falta? definitivamente vos respondo:
GLosreR : Por isso vivo num país cristão. Meus agradecimentos irrestritos
BuckINGHAM - Então ficai sabendo que consiste merece o vosso amor; mas meu demérito
vossa falta em ceder a sede augusta, não corresponde ao vosso alto pedido.
o majestoso trono, o ofício régio Primeiro, caso todos os obstáculos
de vossos ascendentes, vosso estado ficassem removidos, patenteando-se-me
natural, que no berço recebestes, a estrada para o trono, como herança
a glória da real casa de onde vindes madura e jus do próprio nascimento,
à corrupção de um galho desonrado. de tal maneira tenho pobre o espírito,
A brandura dos vossos pensamentos tão grandes são os meus defeitos, tantos,
adormecidos — que ora despertamos que da minha grandeza eu me escondera —
em bem da pátria — priva de seus membros pequeno barco que o mar alto evita —
esta ilha tão garrida. As cicatrizes antes de ser por ela dominado
da infâmia o belo rosto lhe deformam; e asfixiado nos fumos da vanglória.
seu tronco régio se acha sufocado Mas, graças ao bom Deus, necessidade
pelos enxertos de daninhas plantas, de mim não tendes. Mesmo que a tivésseis,
quase imerso no pântano absorvente não estaria em mim vos dar ajuda.

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WILLIAM SHAKESPEARE

Deixou-nos um real fruto a árvore real, GLOSTER*


que, sazonado pelas horas bentas, Ai! Por que me depondes sobre os ombros
adornará, decerto, o trono augusto tal fardo de cuidados? Eu não sirvo
da Majestade e nos fará felizes para o governo ou para a majestade.
com seu governo. Ponho-lhe nos ombros Não me leveis a mal, instante o peço,
todo o peso que viestes ora impor-me: mas não quero nem posso ceder nisso.
o direito e a fortuna de seu signo. BuckINGHAM * Se por amor e zelo vos negardes
Não queira Deus que a defraudá-lo eu venha. a depor o menino, por ser ele
BuckiNcHAM:* filho de vosso irmão, pois conhecemos
Consciência em Vossa Graça isso revela; toda a ternura que vos enche o peito
mas as vossas razões se nos antolham, e a compaixão gentil e feminina
se bem considerarmos o problema, que vos é própria, sempre que se trata
sem valor e triviais. Que seja Eduardo de assuntos pertinentes à família
filho de vosso irmão, como o dissestes, e a muitas outras dignidades ainda:
éo que não contestamos; mas é filho sabei que em qualquer caso, ou de anuência
de outra mulher, não da mulher de Eduardo. ou de recusa a quanto vos pedimos,
Primeiro, ele pedira Lady Lucy; jamais em nós há de reinar o filho
vossa mãe, que ainda vive, é testemunha de vosso irmão. No trono plantaremos
do que se deu. Depois, por delegados, qualquer pessoa, para eterno opróbrio
o noivado firmou com Lady Bona, e desgraça de toda vossa casa,
irmã do Rei da França. Postas ambas Com esta decisão nos despedimos.
de lado, uma mesquinha suplicante, Vamos, amigos; já falamos muito.
atribulada mãe de muitos filhos, (Saem Buckingham e os cidadãos.)
beleza já fanada, infeliz viúva, CarEsBY * Chamai-os, doce príncipe, de novo;
que no ocaso se achava dos bons dias, acedei ao que pedem. Se reunirdes,
fez presa e compra de seus olhos lúbricos, todo o país virá a sofrer por isso.
seduziu a grandeza de seu posto, GLosrer : Quereis impor-me um mundo de cuidados?
ignominiosamente rebaixando-a Chamai-os, pois.
ao estado de infame bigamia. (Sai Catesby.)
Nesse leito ilegítimo ele teve Não sou feito de pedra;
dela esse Eduardo a que chamamos príncipe, por vossas carinhosas insistências
segundo velha praxe. Eu poderia me sinto penetrado, muito embora
prosseguir por maneira mais amarga, contra a minha consciência e o próprio gênio.
se o respeito a pessoa que ainda vive (Tornam a entrar Buckingham e os outros.)
não me traçasse à língua estreitos lindes. Primo de Buckingham, e vós, sensatos
Por isso, meu bom lorde, aceitar deve concidadãos, já que quereis a sorte
vossa real pessoa o oferecido no dorso me depor, para que o peso
benefício da suma dignidade, dela eu suporte, a meu mau grado, embora,
se não por nosso bem e da Inglaterra, força é ter paciência e conformar-me.
para livrar a vossa nobre casa Mas se a negra calúnia ou o opróbrio horrendo
da corrupção de uma época mesquinha no rasto dessa imposição me vierem,
por meio de uma sucessão legítima. vossa própria insistência há de limpar-me
Prererro- Cedei, milorde; os cidadãos o pedem. de qualquer jaça, qualquer mancha impura,
BuckiNGHAM * Não recuseis, milorde poderoso, pois Deus o sabe e vós em parte vedes
tal oferta de amor. como estou longe de almejar tal coisa.
CATESBY* Oh! Fazei todos PrererTO * Deus abençoe Vossa Graça! Vemos
felizes, concedendo o que vos pedem. tudo isso, sim, e iremos proclamá-lo.

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GrosrER: Com o que não falareis senão verdade. BucKINGHAM *


BuckxincHAM Então eu vos saúdo com o real título: Amanhã, pois, por vós esperaremos.
Longa vida a Ricardo da Inglaterra! E assim nos despedimos satisfeitos.
Topos - Amém! GLOSsTER (aos bispos).
BuckinGHAM * Consentireis em ser coroado logo? Recomecemos nosso pio estudo.
GLOSTER* Adeus, meu primo; adeus, gentis amigos.
Já que o quereis, será quando o marcardes. (Saem.)

Ato IV: Cena l


Londres. Diante da Torre. entre mim e meus filhos? Sou mãe deles.
Entram, por um lado, a Rainha Elisabete, a Duquesa de Quem, pois, me impedirá de visitá-los?
York e o Marquês de Dorset; pelo outro, Ana, Duquesa de Duquesa : Sou a mãe do pai deles; quero vê-los.
Gloster, conduzindo Lady Margarida Plantageneta, filha AnaA* Por lei sou tia deles; no amor, mãe.
pequena de Clarence. Leva-me aonde estão; assumo o risco,
limpando-te de toda e qualquer culpa.
Duquesa : Quem vim eu encontrar? Minha sobrinha BRAKENBURY*
Plantageneta, pela mão trazida Não, senhora; é impossível; não o consinto.
da tia Gloster? Pela minha vida, Prende-me um juramento; desculpai-me.
ela vai indo à Torre, por impulso “ (Sai)
do terno coração, saudar os príncipes. (Entra Stanley.)
Sede bem-vinda, filha. STANLEY * Nobre senhora, caso eu vos encontre
ANA: Deus conceda dentro de uma hora, é certo que no posto
a ambas dias alegres e felizes. de respeitoso espectador eu posso
RainHA ELISABETE: cumprimentar a Vossa Graça de York
E a vós, boa irmãzinha. Para onde ides? como graciosa mãe de duas belas
Ana: Até à Torre, somente, e, como creio, rainhas.
com as mesmas pias intenções que vós: (Á Duquesa de Gloster.) É preciso que, depressa,
para felicitar os gentis príncipes. vades a Westminster, muito real princesa,
RAINHA ELISABETE* para serdes coroada, como esposa
Obrigada, irmãzinha; entremos juntas.
do Rei Ricardo.
(Entra Brakenbury.) RarnHa ELisasere- Oh! Desatai-me o laço,
Eis o tenente que vem vindo a tempo. porque possa bater o comprimido
coração. Do contrário, ante essas novas
Mestre tenente, por obséquio, como
perderei os sentidos.
está passando o príncipe e o moço York?
ANA: Oh! que odioso
BRAKENBURY : Perfeitamente bem, minha senhora,
recado! Que notícia abominável!
Mas desculpai-me: consentir não posso
Dorser: Coragem, mãe! Que sente Vossa Graça?
que os visiteis. O rei me deu severas
RAINHA ELISABETE*
ordens nesse sentido.
Oh! Não me fales, não, Dorset! Retira-te!
RarnHa ELisaBETE* O rei! Quem é ele?
À morte e a destruição atrás te ladram.
BrAKENBURY * Quero dizer, o lorde protetor.
É fatal para os filhos o só nome
RAINHA ELISABETE*
de tua mãe. Se a morte evitar queres,
Que o Senhor o proteja do real título. os mares atravessa e vai em busca
Pensa ele, acaso, em levantar barreiras
de Richmond, longe do poder do inferno.

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shakespearebrasileiro.org WILLIAM SHAKESPEARE

Vai! Foge, foge deste matadouro, do que eu com a morte do meu jovem dono!”
se acrescentar não queres mais um número Mas vede! Antes que o tempo me sobrasse
aos que morreram, e fazer que eu morra para dizer a maldição de novo,
conforme a maldição de Margarida: o fraco coração senti cativo
nem esposa, nem mãe, nem soberana de suas expressões açucaradas,
da Inglaterra. tornando-me, desta arte, a própria vítima
STANLEY * Prudente é este conselho, da minha maldição, que desde essa hora
minha senhora. dos olhos me baniu todo sossego,
(A Dorset.) Aproveitai com urgência porque em seu leito nunca o orvalho de ouro
a vantagem das horas. Hei de cartas do sono me alegrou, sim pesadelos
vos dar para meu filho, apresentando-vos. me traziam desperta a todo instante,
Haveis de achá-lo a vos servir disposto; Além do mais, ele me odeia, em vista
que nada aqui vos poderá dar gosto. de ser eu filha de Warwick. É certeza
Duquesa : Oh vento portador só de misérias! desfazer-se de mim em pouco tempo.
Oh ventre amaldiçoado, leito fúnebre RAINHA ELISABETE"
que lançaste no mundo um basilisco Coitada! Adeus! Lastimo-te o destino.
de olhar fatal, de que ninguém escapa! Ana“ Como eu, de coração, lastimo o vosso.
STANLEY * Vinde, senhora; é urgente o meu recado. RAINHA ELISABETE*
ANA Sigo-vos sem vontade alguma disso. Saudadora infeliz da glória, adeus!
Oh! Se o céu permitisse que a orla de ouro Ana: Mísera, adeus, que dela te despedes!
que a fronte vai cingir-me fosse de aço Duquesa (a Dorset) -
até ao rubro aquecido, para o cérebro Vai procurar Richmond. Felicidades!
me destruir de uma vez! Mortal veneno (A Ana.) Dirige-te para onde está Ricardo.
seja o óleo sacrossanto, porque eu morra Que os anjos te acompanhem.
antes de ouvir dizer: Deus salve a rainha! (À Rainha Elisabete.) Ão santuário
RAINHA ELISABETE* te dirige, onde achar possas consolo.
Vai, coitadinha; não te invejo a glória; Eu vou para o meu túmulo, esperando
nenhum mal te deseja o meu destino. vir a encontrar repouso e paz eterna.
ANA Não! Por quê? Quando o meu presente esposo Oitenta anos vivi, em que eram presas
para mim veio, ao tempo em que eu seguia as poucas alegrias das tristezas.
o cadáver de Henrique; quando apenas RAINHA ELISABETE*
podia ter lavado as mãos do sangue Ainda um momento. Olhemos para a Torre.
daquele anjo que fora meu esposo Compaixão, pedras velhas, dos meninos
e do defunto santo que eu seguia que a inveja emparedou nos vossos muros!
desfeita em lágrimas, ao ver Ricardo Leito duro demais para os pequenos,
fiz-lhe este voto: “Sê maldito”, disse-lhe, ama áspera e selvagem, companheiros
“por de mim teres feito uma viúva velhos e taciturnos dos folguedos
velha, sendo eu tão moça. Que a tristeza, de príncipes tão moços, cuidai deles!
quando casares, te circunde o leito; Assim, de vossas pedras, como adrede,
que a tua esposa — se uma louca achares — minha louca tristeza se despede.
seja mais infeliz com a tua vida (Saem.)

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Ato IV: Cenall


O mesmo. Uma sala de Estado dopalácio. BuckiNGHAM : Deixai-me respirar, meu soberano,
Clarins. Ricardo, em pompa, coroado; Buckingham, refletir um momento. Não demora,
Catesby, um pajem e outros. virei vos dizer algo sobre o assunto.
(Saí)
Rer RICARDO * Fiquem todos de lado. Primo CaTESBY (à parte) *
Buckingham!
O rei está zangado; morde os lábios.
BuckxincHAM: Meu gracioso soberano!
Rer RICARDO (descendo do trono) -
Rer RicaRrDO*
Vou tratar desse assunto com malucos
Dá-me a mão.
de espírito maciço, com rapazes
(Sobe para o trono.) de pouca reflexão. Não se coadunam
Desse modo, nesta altura,
com meus planos pessoas que me espiam
por teu conselho e teu auxílio, se acha
com olhares muito atentos. Nas alturas
sentado o Rei Ricardo. Mas devemos
Buckingham vai ficando circunspecto.
vestir toda esta glória um dia apenas,
Rapaz!
ou será perdurável, porque sempre
Pajem - Milorde!
tenhamos alegria?
Rer RICARDO *
BuckincHaAM* Vivaa glória
Conheces algum homem que se deixe
quanto tempo de vida vós tiverdes!
levar pelo ouro sedutor a um ato
RerRicaRDO:*
secreto de homicídio?
Ah, Buckingham, agora eu faço o toque
para ver se és, realmente, ouro legítimo.
Pajem- Um gentil-homem
conheço, descontente, cuja humilde
Vive o jovem Eduardo; ora adivinha
quanto quero dizer. posição não condiz com seu espírito
BuckxincHAM* Dizei-o, embora, por demais ambicioso. Junto dele
meu caro soberano. o ouro tem a elogiiência de vinte hábeis
RerRicarDO* Ora meu primo, oradores, capaz de demovê-lo
desejara ser rei. a fazer não importa que façanha.
BuckINGHAM'* Rei RicARDO * Como se chama?
Rei sois, de fato, meu três vezes ilustre soberano. Pajem* Chama-se, milorde,
Rer RICARDO* Tyrrell.
Sou rei? Que o seja: mas Eduardo vive. Rer RICARDO : Parece que o conheço. Corre,
BuckINGHAM * pequeno, vai chamá-lo.
É certo, nobre príncipe (Sai o pajem.)
RerRiIcARDO'* Oh! Que amarga Esse finório
consegiiência que Eduardo esteja vivo: Buckingham, cujo espírito não pára
“É certo, nobre príncipe!” Antes, primo, de remexer as coisas, por mais tempo
não eras tão obtuso. É pois, preciso não será meu vizinho de conselho.
que eu me torne mais claro: quero a morte Até agora pôde ele acompanhar-me
dos bastardos e quero que isso seja sem se mostrar cansado. De repente,
resolvido depressa. Então, que dizes precisa tomar fôlego? Que seja!
agora? Fala logo e sê conciso. (Entra Stanley.)
BUCKINGHAM * Lorde Stanley, então! Quais são as últimas?
Vossa Graça fará como entender. STANLEY * Sabei, caro senhor,
Rer RicarDoO Bá, bá! Ficaste frio! Congelou-se que o Marquês Dorset, pelo que me dizem,
todo o teu zelo! Dize-me se eu posso fugiu para Richmond, indo juntar-se-lhe
contar contigo para que eles morram? na terra em que ele habita.

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Rei RICARDO Ouve-me, Catesby, (Sai)


espalha por aí que minha esposa (Volta Buckingham.)
Ana está muito mal. Vou tomar todas BuckincHAM * Milorde, refleti bastante acerca
as precauções para retê-la em casa. da pergunta que há pouco me fizestes.
Procura-me, também, um gentil-homem Rer RiCARDO*
sem recursos, que sirva para esposo Deixai. Dorset fugiu para Richmond.
da filha de Clarence. É caso urgente. BuckxiNGHAM* Sim, milorde, disseram-me.
O rapaz é tontinho; não o temo. Rer RicARDO*
Estás sonhando em pé? Torno a dizer-te É vosso enteado, Stanley. Bem; cuidado!
que espalhes a notícia da doença BUCKINGHAM *
de Ana, minha mulher; acha-se à morte. Vim vos lembrar, milorde, da promessa
Mãos à obra! Desde já me importa muito que me fizestes, penhorando nisso
cercear as esperanças cujo aumento a honra e a palavra: falo do condado
possa vir a me ser prejudicial. de Hereford e de todos os bens móveis
(Sai Catesby.) que, segundo o dissestes, meus seriam.
Preciso desposar minha sobrinha, Rer RICARDO
sem perder tempo. Do contrário, é como Vigiai de perto vossa esposa, Stanley.
se estivesse o meu reino em vidro frágil. Se ela vier a cartear-se com Richmond,
Privá-la dos irmãos e desposá-la! respondereis por isso.
Estranho modo de jogar as cartas! BuCKINGHAM* Que responde
Mas tão metido em sangue ora me encontro, Vossa Grandeza ao meu pedido justo?
que um crime provoca outro. Nestes olhos Rer RicARDO*
não se aloja a piedade choraminga. Lembro-me muito bem que Henrique VI
(Volta o pajem, com Tyrrell.) profetizou um dia que Richmond
Teu nome é Tyrrell? viria a ser coroado, quando ainda
TyrrELL* James Tyrrell, vosso não passava este de um rapaz franzino.
súdito devotado. Rei!... Pode ser...
Rei RICARDO * Com certeza? BuckINGHAM : Milorde!
TyrrELL* Ponde-me à prova, meu gracioso lorde. Rer RICARDO * Por que causa o profeta não me disse
Rer RicarDO Estarias, então, determinado nessa ocasião, se perto eu me encontrava,
a matar um amigo que eu mostrasse? que eu viria a matá-lo?
TyrrELL* Se isso vos agradar; mas preferira BuckINGHAM* Prometestes,
que fossem dois imigos. milorde que o ducado me daríeis...
Rer RICARDO * Pois vais tê-los. Rey RICARDO"
São justamente dois grandes imigos, Richmond! Quando eu estive, há pouco tempo,
perturbadores do meu doce sono em Exeter, o prefeito, gentilmente
os que vais liquidar. Tyrrell, refiro-me me levou ao castelo, a que deu nome
aos dois bastardos que na Torre se acham. de Rougemont... Estremeci, ouvindo-o,
TyrreLL" Mostrai-me o meio de chegar até eles porque um bardo, na Irlanda, me dissera
e livre ficareis do medo deles. que eu não teria vida muito longa
Rer RICARDO depois de ver Richmond.
Doce música é a tua. Ouve-me, Tyrrell: BuCKINGHAM*
fica com este penhor. Vem para perto. Milorde!
(Fala-lhe ao ouvido.) Rer Ricarpo- Ah! Que horas são?
Não precisa mais nada; vem dizer-me BUCKINGHAM * Tenho a ousadia
que já está feita a coisa, e obterás todo de lembrar Vossa Graça da promessa
meu afeto, fazendo-te eu ditoso. que me foi feita.
TyrreLL* Vou cuidar disso já. Rei RicarDo* Bem; mas que horas são?

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shakespearebrasileiro.org A TracÉDIA DO REI RicaRDO III

BucxincHAM: Dez horas, quase. BuckINGHAM - Dizei apenas se o quereis ou não.


Rer RicarDO* Pois deixai que soem. Rer RicarDO - Tu me incomodas; não estou de veia.
BuckINGHAM Por que deixar que soem? (Sai o Rei Ricardo com o séquito.)
Rer RICARDO Porque te BuckiNGHAM Ah, é assim? É com esse pouco caso
[achas, que paga tudo o que lhe fiz? Para isso
como o João do relógio, colocado foi que o fiz rei? Pensemos no pobre Hastings.
entre o meu pensamento eo teu pedido. Irei para Brecknock, enquanto posso,
Não estou hoje em veia de presentes. enquanto não me cortam o pescoço.

Ato IV: Cena II


O mesmo. Rei RicarDO - Vão deixar-me feliz tuas notícias,
Entra Tyrrell. amado Tyrrell?
TyrreLL: Se feliz ficardes
TyRRELL * Já fiz a ação tirana e sanguinária, com saber que está feito o que ordenastes,
o mais infame e abominável feito ficai feliz, então, porque está feito.
de que esta terra se tornou culpada. RerRicaRDO:
Dighton e Forrest, subornados para Mas viste os mortos?
levar a cabo essa carnificina TYRRELL* Vi, meu soberano.
despiedosa, conquanto requintados Rei RICARDO *
vilãos, cães sanguinários, derretendo-se E enterrados também, meu caro Tyrrell?
de piedade e de doce compaixão, TrrreLL* O capelão da Torre os enterrou,
choravam como crianças ante o quadro mas como e em que lugar, não sei dizer-vos.
da morte deles. “Desse modo”, disse RerRicarDO-
Dighton, “estavam os gentis meninos”, Vem ver-me, Tyrrell, logo após a ceia,
“Sim”, disse Forrest, “ambos enlaçando-se para me relatares a sua morte.
nos inocentes braços de alabastro. Pensa, entrementes, no que eu possa dar-te
Os lábios tinham como quatro rosas e o herdeiro sejas do teu próprio anelo.
Adeus.
que se beijassem no mais belo estio.
Um livro de orações se achava em cima TyrreLL: Humildemente me despeço.
da almofada dos dois; por pouco,” disse (Saí.)
Rei RicAaRDO * Mandei prender o filho de Clarence;
Forrest, “não se alterou meu pensamento.
dei um marido desigual à filha;
Mas o demônio...” Nessa altura o biltre
os dois filhos de Eduardo estão dormindo
se deteve. Porém continuou Dighton:
no seio de Abraão; minha esposa Ana
“Asfixiamos as duas obras-primas já deu Boa noite ao mundo. Ora, sabendo
mais admiráveis, certo, do que quantas
que pretende o bretão Richmond casar-se
já havia a natureza dado ao mundo”. com a minha sobrinha Elisabete
Ambos se foram, com a consciência cheia e que olha altivo para o trono, graças
de remorsos. Falar nenhum podia. a esse enlace, para ela me dirijo,
Desse modo os deixei, para a notícia pretendente jovial e prazenteiro.
levar ao sanguinário soberano. (Entra Catesby.)
Ei-lo que chega. CarEsBy : Milorde!
(Entra o Rei Ricardo.) Rer RICARDO - Para entrares assim, trazes notícias
Salve, meu rei lorde! boas ou más?

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CaresBy* Ruins notícias. Morton sonolenta. A demora traz consigo


fugiu para Richmond. Há mais, que Buckingham, a pobreza impotente e rastejante.
por audazes galenses reforçado, Seja a celeridade minhas asas,
se acha em campo; sua força está crescendo. o Mercúrio de Jove, real arauto!
Rer RicaRrDO * Muito mais apreensivo fico à nova Arranja tropas; meu conselho é escudo
de Ely e Richmond do que ante o que me dizes
resistente; sejamos expeditos,
dos recrutas de Buckingham. Em campo!
quando a revolta nos acorda a gritos.
Aprendi que o medroso comentário
é o servidor de chumbo da demora (Saem.)

Ato IV: Cena IV


O mesmo. Diante do palácio. RAINHA ELISABETE*
Entra a Rainha Margarida. Oh Deus! Atiras tenras ovelhinhas
às entranhas do lobo? Onde dormias,
RaÍinHAa MARGARIDA quando esta feia ação foi praticada?
Fica a prosperidade, assim, madura RAINHA MARGARIDA *
e cai nas fauces pútridas da morte. Onde a morte não viu do santo Henrique
Pus-me astuciosamente neste ponto nem do meu doce filho.
para o ocaso espreitar dos meus imigos. Duquesa: Vida morta,
Já presenciei um bárbaro prefácio. vista cega, fantasma de um vivente,
Vou para a França, com a expectativa sede da dor, vergonha do universo,
de que a continuação seja igualmente propriedade do túmulo, que a vida
negra, amargosa e trágica. Retira-te, já de muito usurpou, resumo rápido,
infeliz Margarida. Quem vem vindo? recordação de dias infindáveis
(Entram a Rainha Elisabete e a Duquesa de York.) de sofrimento, oh alma inquieta sempre!
RAINHA ELISABETE: repousa um pouco sobre o legal solo
da Inglaterra, tornado ilegalmente
Ah, meus filhos, meus príncipes queridos,
botões mimosos, doces esperanças,
bêbedo com o sangue de inocentes.
se. vossas gentis almas ainda pairam (Senta-se no chão.)
RAINHA ELISABETE*
pelo ar, se acaso imóveis não se encontram
Oh terra! Se pudesses conceder-me
por nenhuma sentença permanente,
logo uma sepultura, como podes
adejai ao redor de mim com vossas
arranjar-me um repouso melancólico!
asas aéreas e escutai as queixas
Então, em vez de dar repouso aos ossos,
e vossa aflita mãe.
aqui mesmo os guardara. Quem tem causas,
RarnHa MARGARIDA * Vinde dizer-lhe
senão só eu, de se queixar da vida?
que da justiça eterna o duro açoite (Senta-se ao lado da duquesa.)
mudou vossa manhã em velha noite. RarnHa MARGARIDA*
Duquesa : Tão fraca tenho a voz pelo infortúnio, Se a dor antiga inspira reverência
que a língua, fatigada de queixumes, mais do que as outras, concedei à minha,
se me torna parada e silenciosa. pelo menos nesta hora, o privilégio
Como foste morrer, Plantageneta? da ancianidade, permitindo que ela
Por que deixaste de viver, Eduardo? fique em primeira plana.
RAINHA MARGARIDA * (Senta-se ao lado das duas.)
Paga a dívida, assim, Plantageneta Caso as mágoas
a outro Plantageneta; um Eduardo a outro, admitam sociedade, novamente
morrendo, a mortal dívida resgata. contai as vossas, tendo ao lado as minhas.

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Tive um Eduardo, até ser ele morto Ricardo apenas vive, o negro agente
por um Ricardo; meu era um Henrique, do inferno, a quem foi dado o triste encargo
mas um Ricardo mo tirou dos braços; de comprar almas para o reino escuro.
um Eduardo tiveste, enquanto a morte Mas não demora, não demora! Perto
pela mão de Ricardo o não levou; já vem seu triste fim e não chorado.
um Ricardo tiveste, até que morto À terra se escancara, o inferno abrasa,
fosse por um Ricardo. os demônios regougam, rezam santos
Duquesa- Eu também tive para que ele daqui seja levado
um Ricardo; por ti foi ele morto; sem mais tardança. Oh Deus! Rasga-lhe o título
um Rutland também tive, e foste parte da existência, porque ainda eu tenha vida
na morte dele. para dizer: Morreu esse cachorro!
RarnHa MARGARIDA * Teu foi um Clarence, RarnHA ELISABETE:
também, mas morto foi por um Ricardo. Oh! Tu profetizaste que haveria
Esgueirou-se da cova de teu ventre de chegar o momento em que eu te fosse
um mastim infernal que se diverte pedir auxílio para lançar minha
caçando-nos de morte, um cão que teve maldição nessa aranha barriguda,
dentes antes dos olhos, porque ovelhas nesse sapo disforme e repugnante!
dilacerasse e lhes bebesse o sangue. RarnHa MARGARIDA
O fero destruidor da obra divina, Então, eu disse que eras tão-somente
esse tirano sem igual na terra, o fantasma da minha antiga dita,
que o império tem em olhos tumefeitos pobre sombra, rainha de pintura,
de pessoas que choram, de teu ventre arremedo do que eu havia sido,
pôde fugir, tão-só para lançar-nos lisonjeira feição de uma tragédia
na sepultura. Oh Deus, o verdadeiro dolorosa, mulher posta nos píncaros
distribuidor da celestial justiça! para ser logo derrubada,
como te sou agradecida, em vista mãe irrisória de dois filhos belos,
de devorar esse mastim os frutos um sonho do que foras, um suspiro,
do ventre de sua mãe e de obrigá-la simples bolha, uma insígnia de nobreza,
a se associar ao sofrimento alheio! pendão vistoso para ficar alvo
Duquesa - Mulher de Henrique, não te rejubiles de tiros perigosos, soberana
com a minha dor, que Deus é testemunha de brincadeira para encher a cena.
de que eu também sofri como que sofreste. Onde está teu marido? Onde os irmãos?
RarnHa MARGARIDA * Teus dois filhos? As tuas alegrias?
Perdão; eu tenho fome de vingança Quem te faz um pedido e se ajoelha,
e fico satisfeita em contemplá-la. para gritar que Deus proteja a rainha?
Morreu o teu Eduardo, que matara Os pares onde estão, que te adulavam?
meu Eduardo; morreu teu outro Eduardo, Às grandes multidões que te seguiam?
para me compensar do meu Eduardo. Relembra agora quanto foste, para
Ão lado deles, York é secundário, veres ao que desceste: em vez de esposa
que ambos muito aquém ficam da grandeza feliz, uma viúva desditosa;
da minha imensa perda. O teu Clarence em vez de mãe alegre, em desespero
que matou meu Eduardo, já foi morto, ao só nome de mãe; em vez de ver-se
bem como todos os espectadores solicitada, alguém que humilde pede;
daquela peça trágica: o falso Hastings, em vez de uma rainha, verdadeira
Vaughan, Rivers e Grey, já, prematuros, cativa coroada de cuidados;
foram lançados na sombria cova. em vez de uma criatura que me tinha

Sa
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desprezo, desprezada por mim própria; Estás ouvindo? Em maldições sê pródiga.


em vez de comandar a todo o mundo, (Entra o Rei Ricardo, com sua comitiva, em marcha.)
não ser obedecida por ninguém. Rer RICARDO:
Assim virou a roda da justiça Quem ousa interceptar o meu caminho?
para de ti fazer presa do tempo, Duquesa Quem teria podido interceptar-se,
deixando-te a lembrança do que foste em seu maldito ventre te asfixiando,
para que sofras mais com o que és agora. para evitar os crimes, miserável,
O lugar me usurpaste; por que causa que no mundo fizeste!
não haverias de usurpar-me as dores? RAINHA ELISABETE: À fronte escondes
Metade do meu fardo já se encontra nessa coroa de ouro? Se a justiça
nesse pescoço altivo; desprendendo fosse justiça, nela se veria
de sob ele a cabeça fatigada, com fogo assinalada a triste morte
deixo que por inteiro em ti ele pese. do verdadeiro dono da coroa,
Adeus, esposa de York; adeus, rainha de meus irmãos, dos meus queridos filhos.
de sorte desditosa; a dor inglesa Oh miserável, onde estão meus filhos?
vai-me deixar na França sem tristeza. Duquesa: Sapo, onde está o teu irmão Clarence?
RAINHA ELISABETE- Onde o seu filho, o pequenino Ned
Oh tu que em maldições tens experiência, Plantageneta?
a amaldiçoar me ensina os inimigos. RarnHA ELIsaBETE : E Rivers, Vaughan, Grey?
RarnHa MARGARIDA * Duquesa-
Passa vígil as noites e jejuna E o bondoso Hastings? Que foi feito dele?
todos os dias; as tristezas vivas Rer RICARDO“
compara com as venturas do passado; Clarins! Trombetas! Toques de tambores!
imagina teus filhos mais bonitos Que o céu não ouça essas mulheres loucas
do que eles eram e o assassino deles no ungido do Senhor lançar insultos.
mais monstruoso do que é. Se exagerares (Clarins, tambores.)
tua perda, de pronto o mal se agrava Ou me falai em termos e com calma,
e a maldizer aprendes como escrava. ou afogarei nestes clamores bélicos
RAINHA ELISABETE- vossas exclamações disparatadas.
São fracos os meus termos; dá-me os teus. Duquesa - És meu filho?
RarnHa MARGARIDA * Rei RICARDO* Decerto; a Deus dou graças,
À dor os deixará iguais aos meus. a meu pai e a vós mesma.
(Saí) Duquesa* Então escuta
Duquesa : Por que a calamidade é faladora? pacientemente a minha impaciência.
RAINHA ELISABETE* Rer RICARDO
Procuradores aéreos da desgraça, Tenho o gênio, senhora, como o vosso,
sucessores vazios de alegrias incapaz de agúentar qualquer censura.
que não foram testadas, oradores Duquesa Oh! Deixa-me falar!
infelizes de males: dai-lhes ansa! Rer RicARDO* Seja! Eu não ouço.
Muito embora não sirvam para nada, Duquesa: Só direi termos brandos e afetuosos.
a alma deixam da dor desabafada. Rer RICARDO*
Duquesa - Então não fiques muda; vem comigo; Sede concisa, mãe, que eu tenho pressa.
com o sopro de palavras amargosas Duquesa - Estás tão apressado? Só Deus sabe
asfixiemos meu filho amaldiçoado quanto esperei por ti no meu tormento.
que asfixiou teus dois filhos tão mimosos. Rer RICARDO
(Ouve-se toque de trombeta.) E, afinal, não vos trouxe algum consolo?

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Duquesa - Sabes que não, pelo sagrado lenho. Ricardo, vão rezar dentro de um claustro,
Tua vinda me fez da terra o inferno; não chorar sobre o trono. Não atentes,
teu nascimento foi pesado fardo; por isso, contra a vida das coitadas.
impertinente e má foi tua infância; Rei RicarDO - Elisabete, vossa filha é bela,
como escolar, terrível e selvagem, de condição real e muito digna.
ruim, furioso, bárbaro; no tempo RarnHa ELISABETE-
da adolescência, audaz e aventuroso; E vai morrer, por isso, a coitadinha?
como homem, sanguinário, cruel, hipócrita, Oh! Deixai-a viver! Vou conspurcar-lhe
orgulhoso e sutil; no ódio, mais calmo, toda a beleza e corromper-lhe os hábitos;
por isso mesmo muito mais daninho. direi que eu própria fui infiel a Eduardo;
Poderias mostrar-me uma hora, ao menos, sobre ela atirarei o véu da infâmia.
de prazer que me houvesses ensejado Porque não caia do assassino à fúria,
com tua companhia? proclamarei ser ela filha espúria.
RerRiIcARDO- Não, decerto, Rei RicaRDO-
se não for a hora de Humphrey, como era hábito Não lhe manches o berço; é de real sangue.
Vossa Graça dizer quando almoçava RarnHA ELISABETE
sem minha companhia. Mas se eu causo Para salvá-la, negarei até isso.
tão grande desconforto a vossa vista, Rer RiICARDO*
deixai que eu parta, sem vos dar desgosto. Assegura-lhe a vida o nascimento.
Tocai, tambores! RainHa ELIsABETE-
Duquesa: Porobséquio, escuta-me! Assim, seguros, seus irmãos morreram.
Rer RicaRDO : Soi muito azeda. Rer RICARDO: Foi tudo força de funestos astros.
Duquesa Uma palavra apenas. RAINHA ELISABETE-
Rer RicaRDO - Que seja! Não; inimigos maus é que o quiseram.
Duquesa - Ou morres por decreto de Deus justo, Rer RicarDO : São fatais os decretos do destino.
antes de vitorioso retornares RAINHA ELIsABETE-
desta guerra, ou, de velha e de tristeza Quando o destino pelos maus é feito.
morrerei sem tornar a ver-te o rosto. Aos meus filhos tocara pela morte,
A minha maldição, por isso, leva, se o céu te houvesse dado vida bela.
que te deixe no dia da batalha RerRicARDO-
mais cansado que o peso da armadura Dais a entender que assassinei meus primos.
que nessa hora envergares. Minhas preces RAINHA ELISABETE -
ao lado lutarão dos teus contrários; Primos, realmente, as minhas obras-primas,
as pequeninas almas dos dois filhos pelo tio privados do conforto,
de Eduardo hão de, em segredo, nos ouvidos da liberdade, da família, reino,
falar dos teus imigos, prometendo-lhes da própria vida, enfim. Fosse qual fosse
vitória e êxito pleno. Es sanguinário; a mão que lhes furasse o terno peito,
vais ter banhado em sangue o teu sudário. partiu dessa cabeça a ordem para isso,
(Sai) por caminhos tortuosos. É verdade
RAINHA ELISABETE que o cutelo assassino ficaria
Embora eu tenha muito mais motivos sem corte algum, se afiado ele não fosse
para te amaldiçoar, falta-me o espírito no coração de pedra do teu peito,
necessário; só sei dizer Amém. para orgia fazer nas tenras carnes
(Faz menção de se retirar.) das minhas ovelhinhas. Se a dor bárbara
Rer RicarDO- Senhora, uma palavra, por obséquio! com o próprio tempo não ficasse branda,
RAINHA ELISABETE- não te gritara o nome de meus filhos
Já não tenho outros filhos de real sangue sem que estas unhas encontrassem porto
que tu possas matar, que minhas filhas, para âncora lançarem nos teus olhos.

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E eu, pobre barco, na mortal baía, Rer RICARDO: Justamente


a vela rota, a cordoalha esfeita, quem dela vai fazer rainha, não?
me quebrantara nesse pétreo peito. RarnHA ELisaBETE - Como! Tu?
Rer RICARDO * Rer RicarDO : Precisamente. Que pensais do caso?
Senhora, possa eu ter um bom sucesso RarnHa ELIsABETE*
nesta empresa de guerra sanguinosa, De que maneira a corte lhe farias?
como desejo bem a vós e as vossos, Rei RICARDO Isso convosco aprenderei, por terdes
sem nunca vos ter feito nenhum dano. cabal conhecimento do seu gênio.
RarnHA ELISABETE* RarnHa ELISABETE:
Que bem o céu encobre e vai ser visto, Quererás que to ensine?
porque eu senti-lo possa? Rer RICARDO" Sim, senhora:
Rer RicARDO- À elevação de todo o coração.
de vossos próprios filhos, gentil dama. RarnHa ELisaBETE- Então lhe envia
RarnHA ELISABETE- pelo homem que matou seus irmãozinhos
Ao cadafalso, para aí morrerem? dois corações sangrentos, em que estejam
RerRicarDO- À dignidade, aos cimos da fortuna gravadas as palavras: York e Eduardo.
à real imagem da terrena glória. É possível que chore; de presente,
RarnHa ELISABETE- lhe manda um lenço — como Margarida
Adula a minha dor com tua fala: fez com teu pai, mandando-lhe um no sangue
dize-me o estado, a dignidade, o título de Rutland mergulhado — que tivesse
que a qualquer filho meu conceder podes. bebido a seiva rútila do corpo
Rer RICARDO de seu irmão, e dize-lhe que enxugue
Tudo o que tenho; sim, eu próprio, tudo com ele as ternas lágrimas. Se o mimo
doarei a um dos teus filhos, porque possas não tiver o poder de demovê-la,
no Letes do teu peito atribulado escreve-lhe uma carta em que relates
mergulhar a lembrança dolorosa tuas nobres ações; conta-lhe como
dos males que supões te haver eu feito. liquidados por ti foram seus tios
RAINHA ELISABETE Clarence e Rivers e, por causa dela,
Então sê breve, para que este acesso tão-somente, apressaste a despedida
de bondade, ao ser dito, tenha dura de Ana, sua boa tia. Conta-lhe isso.
maior do que a bondade que te é própria. Rer RiCARDO-
Rer RicarDO : De coração direi que amo tua filha. Senhora, estais zombando; desse modo,
RAINHA ELISABETE* não poderei chegar a vossa filha.
De coração a mãe de minha filha RAINHA ELISABETE*
pensa isso mesmo. Não conheço outro; a menos que pudesses
RerRicarpo: Que pensais, portanto? assumir outra forma, sem mais seres
RAINHA ELISABETE* o Ricardo assassino deles todos.
Que amas a minha filha idolatrada, Rer Ricarpo : Dizei-lhe que por ela fiz tudo isso.
de todo o coração, tal como amavas RarnHA ELISABETE*
seus irmãos. De igual modo, do mais fundo Ela terá de odiar-te, por haveres
do coração, eu te agradeço tudo. comprado o amor com tão sangrento espólio.
Rer Ricarpo - Não dês sentido irônico ao que digo. Rer RicarDo - Vede,
Disse que amo tua filha do mais fundo o que está feito já não tem remédio.
do coração, e assim, vou fazer dela Por vezes o homem faz algum dislate,
Rainha da Inglaterra. de que venha mais tarde a arrepender-se.
RainHa ELIsaBETE : Bem; € O esposo, Se a vossos filhos eu privei do trono,
quem pretendes que seja? em recompensa a vossa filha o entrego.

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Se os frutos eu matei de vosso ventre, RarnHA ELISABETE:


para vos aumentar os descendentes, Como devo dizer-lhe: que esposá-la
em vossa filha gerarei herdeiros deseja o irmão do pai, ou é preferível
de quem serás avó, nome não menos chamar-lhe tio? Ou o homem, simplesmente,
caro do que o de mãe. Vossos serão que os tios lhe matou e os irmãozinhos?
do mesmo modo, um grau, somente, abaixo,
Que título escolher, para pedi-la,
mas do mesmo vigor, do mesmo sangue. que Deus, a lei, minha honra deixar possam
Os mesmos sofrimentos vos custaram, mais agradável a seus tenros anos?
salva uma noite, apenas, de gemidos,
Rer RicarDO - Dizei-lhe que decorre dessa aliança
sofridos por quem vós iguais sofrestes.
tranquilidade para a nossa pátria.
Vossos filhos encheram-vos de luto
RAINHA ELISABETE-
na mocidade; os meus só de consolo
Que ela há de conseguir com dura guerra.
vos servirão nos dias da velhice.
RerRicarDO:
Vossa perda consiste só num filho
Dizei-lhe que lhe pede um rei que manda.
que deixou de ser rei; mas dessa perda
RAINHA ELISABETE*
resulta ser rainha vossa filha.
Dar-vos não me é possível mais escusas;
Pede-lhe o que proíbe o Rei dos reis.
aceitai, pois, o bem que dar vos posso.
Rei Ricarpo : Ela se tornará grande rainha.
Dorset, o vosso filho, que a alma tímida RAINHA ELISABETE-
passeia, descontente, no estrangeiro, Para, como sua mãe, chorar o título.
RerRicarDO:
será, por essa aliança, incontinenti,
chamado para a pátria, porque seja Dizei-lhe que hei de amá-la eternamente.
promovido às mais altas dignidades. RarnHA ELISABETE-
O rei que chama esposa à vossa filha, Mas quanto tempo o “eternamente” dura?
familiarmente o chamará de irmão. Rer RicaRDO Durará tanto quanto a vida dela.
Sereis de novo mãe de um soberano, RAINHA ELISABETE:
ficando reparadas as ruínas E a sua bela vida será longa?
de um passado infeliz, pelos tesouros Rer RicarDO - Quanto o céu o quiser e a natureza.
duplamente valiosos da alegria. RAINHA ELISABETE*
Ainda temos na frente belos dias; Quanto o quiser Ricardo e o negro inferno.
as claras gotas de água que chorastes RerRicaRDO:
se mudarão em pérolas do Oriente, Dizei-lhe que eu, seu rei, sou seu vassalo.
pagando-vos o empréstimo com juros RAINHA ELISABETE*
vinte vezes maior, só de venturas. Mas, vassala, tem ela ódio à realeza.
Ide, mãe; ide; vede vossa filha; RerRicarpo: Sede eloquente a meu favor junto a ela.
vossa experiência há de infundir coragem RarnHa ELIsaBETE:
a seus tímidos anos; os ouvidos Deve ser curta uma proposta honesta.
lhe preparai para escutar o canto Rer RICARDO:
de um pretendente; no seu tenro peito Sede, pois, breve, ao lhe dizer que a adoro.
lançai a chama altiva da realeza; RAINHA ELISABETE*
tornai-a familiar com as silenciosas Breve mas desonesto, é estilo duro.
e doces horas das felizes núpcias. RerRicaRrDO: Argumentais por cima e com viveza.
Quando este braço houver dado o castigo RAINHA ELISABETE *
ao pequeno rebelde e cabeçudo Não, com profundidade e em tom funéreo,
Buckingham, voltarei com a fronte ornada como meus filhos, mortos, em seus túmulos.
dos louros da vitória, para ao leito Rer RicARDO : Não insistais, senhora, nessa corda.
de um vencedor encaminhar tua filha, RAINHA ELISABETE-
a quem entregarei o rico espólio, Hei de insistir, contudo, até que a corda
assim tornando-a o César deste César. do coração se parta.

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RerRicarDO- Pormeu Jorge, com teus crimes passados o manchaste.


minha liga, meu trono... Rei RicarDO Se sincero não for o meu propósito
RarnHa ELisaBETE: Profanado, de reparar todas as minhas faltas,
desonrada, usurpado... desejo fracassar neste guerreiro
Rer RicarDO* Juro... cometimento. Eu próprio me confunda!
RAINHA ELISABETE* Nada! Privem-me da alegria o céu e a sorte.
Não jureis, que essa jura não vos prende. Dia, tira-me a luz! Noite, o repouso!
Teu Jorge já perdeu a honra sagrada; Que os astros bons a mim sejam adversos,
manchada, a liga sem virtude se acha; se não for com os mais puros sentimentos,
usurpado, o real trono não tem glória. imaculada devoção e pias
Se queres que eu te creia, faze a jura intenções que eu aspiro a ser o dono
por algo que não tenhas conspurcado. da beleza de tua nobre filha.
RerRicarDO* Nossa felicidade nela se acha.
Está bem: pelo mundo... Sem ela, sobre mim cair já vejo,
RAINHA ELISABETE: Esse está cheio sobre ela própria, sobre ti, sobre almas
de teus crimes. cristãs inumeráveis, sobre a pátria,
Rer RICARDO : À morte de meu pai... morte e desolação, ruína e ocaso.
RarnHA ELISABETE: Só esse enlace poderá evitá-lo.
Tua vida a manchou. Por isso, cara mãe — assim vos chamo —
Rer RicarDO': Então, por mim... sede o advogado do meu puro amor;
RAINHA ELISABETE* mostrai-lhe o que hei de ser, não meu passado;
Tu próprio te aviltaste. não quanto sou, mas quanto ainda me espera.
Rer RICARDO": Nesse caso, Falai-lhe sobre as condições do tempo,
por Deus... sobre a necessidade, sem mostrar-vos
RaÍiNHa ELIsaBETE : Deus em tudo isso está ofendido. mesquinha em se tratando de altos planos.
Se temesses quebrar um juramento RAINHA ELISABETE
feito em seu nome, não terias nunca Terei de ser tentada pelo diabo?
quebrado a união feita por meu marido; Rer RICARDO * Sim, se para algo bom fores tentada.
meus irmãos ainda vivos estariam. RAINHA ELISABETE*
Se temesses quebrar um juramento Eu própria esquecerei que sou eu mesma?
feito em seu nome, essa imperial coroa Rer RICARDO Sim, se a vossa lembrança prejudica.
que te cinge a cabeça, fora posta RAINHA ELISABETE-
na mimosa cabeça de meu filho, No entanto, és o assassino de meus filhos.
vivos estando, ainda, os meus dois príncipes, Rer RicaRDO - Para enterrá-los, sim, em vossa filha.
que ora, associados à poeira dura, É nesse seio odoro que eles hão de
tua perfídia fez presa dos vermes. renascer para vosso próprio alívio.
Por que podes jurar? RArNHA ELISABETE*
RerRicarDO* Pelo futuro. Terei de lhe falar a teu respeito?
RAINHA ELISABETE"* Rei RICARDO"
Ofendido por ti foi no passado. Mãe feliz ficareis, se assim fizerdes.
Eu própria hei de lavar com minhas lágrimas RarnHA ELISABETE*
o futuro por quanto me fizeste; Pois bem, fá-lo-ei. Escreve-me depressa,
vivem ainda os filhos das pessoas porque saibas o que ela tiver dito.
que assassinaste, abandonados jovens RerRicarDO-
que se hão de lastimar por toda a vida; Meu beijo lhe levai. E agora, adeus!
ainda vivem os pais dos que mataste,
velhas plantas mirradas, que hão de o grande
(Bejjaa,
(Saia Rainha Elisabete.)
infortúnio chorar por toda a vida. Louca sentimental! Mulher mudável!
Pelo futuro, não; isto te baste: (Entra Ratcliff: Catesby o segue.)

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Então, que novidades? STANLEY: Richmond está nos mares.


Rarcirr: Poderoso senhor, na costa oeste
RerRicARDO:
vê-se uma grande armada. Pelas praias Que naufrague e sobre ele os mares fiquem.
se apinha multidão de amigos dúbios, Que faz nos mares esse vagabundo
de coração vazio, desarmados
de figado sem sangue?
e incapazes da mínima defesa. STANLEY * À causa, à ignoro;
Richmond é o almirante, é que eles dizem,
mas creio adivinhá-la.
parados todos, a esperarem Buckingham,
Rei RicarDO: Que adivinhas?
que deve vir desembarcar o imigo. STANLEY *
Rei RICARDO * Talvez por Morton, Buckingham e Dorset
Manda ao Duque de Norfolk um dos nossos espicaçado, vem para a Inglaterra
amigos expeditos; vai tu próprio, com o fim de reclamar o real trono.
ou Catesby. Onde Catesby se encontra? Rer Ricarpo - Está vazio o trono? A espada pende
CaresBy : Aqui, milorde. sem dono, acaso? O rei já não respira?
Rer RICARDO Catesby, depressa, Já não tem dono o império? A quem podemos
vai procurar o duque. chamar Rei da Inglaterra, afora o herdeiro,
CarEsBY: Irei, milorde, somente, do grande York? E agora dize:
com a maior rapidez que for possível. que pode ele no mar estar fazendo?
Rer Ricarpo : Ouve-me, Ratcliff: corre a Salisbury,
STANLEY - Afora esse motivo, nada posso
chegando lá... conjeturar.
(A Catesby.) Idiota, desmiolado, Rer RiCARDO- Afora esse motivo,
que fazes que não corres para o duque? ele vem para ser o vosso mestre.
Caressy - Primeiro, poderoso soberano,
Não sabeis porque vem esse galense,
me deverá dizer Vossa Grandeza não é assim? Estou bem desconfiado
o que é preciso que eu lhe comunique. de que queres passar para o seu lado.
Rer RicARDO : É verdade, bom Catesby. Ele deve STANLEY - Não desconfieis de mim, meu soberano.
levantar, sem demora, toda a força
Rer RicaRDO - Nesse caso, onde estão teus efetivos,
que possível lhe for e vir reunir-se-me para ires combatê-lo? Os teus tenentes?
em Salisbury com a maior urgência. Teus seguidores? Não se encontram todos
Caresey ' Irei. na praia ocidental, para os rebeldes
(Sai) desembarcar a salvo?
RarcLirr: E em Salisbury que farei, milorde? STANLEY * Estão no norte
Rer RICARDO * todos os meus amigos, soberano.
Que poderás fazer na minha ausência?
Rei RICARDO - Frios amigos para mim. Que fazem
Rarctrrr: Vossa Grandeza disse que eu fosse antes. eles no norte, em vez de no ocidente
(Entra Stanley.) servirem seu monarca?
Rei RicarDO - Mas já mudei de idéia. Que notícias, STANLEY * Ordem nenhuma
Stanley, nos vens trazer? receberam, senhor, nesse sentido.
STANLEY * Nenhuma boa Se a Vossa Majestade for do agrado,
bastante para ouvirdes com agrado, vos reunir os amigos e encontrar-me
mas nenhuma, também, tão grave, acaso, com Vossa Graça no lugar e em tempo
que não vos possa ser logo contada. que a Vossa Majestade for mais útil.
Rei Ricarpo - Olá! Temos charada? Nem tão boa, Rer RicarDo : Eu sei! Queres partir para juntar-te
nem tão ruim... Por que dás tantas voltas, a Richmond. Desconfio de tudo isso.
se contar podes toda a tua história STANLEY : Poderoso senhor, não tendes causa
pelo atalho mais curto? Novamente: para em dúvida pôr minha amizade.
que notícias? Jamais traidor eu fui; nunca hei de sê-lo.

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Rer RicaRDO * Está bem; vai reunir os teus amigos. que será concedida recompensa
Mas deixa aqui teu filho Jorge Stanley. para quem o traidor me trouxer preso?
Se firme o coração não revelares, TerceIRO MENSAGEIRO *
perigo correrá a cabeça dele. Isso foi proclamado, soberano.
STANLEY * Com ele procedei como eu convosco. (Entra quarto mensageiro.)
(Sai.) Quarto MENSAGEIRO *
(Entra um mensageiro.) Dizem, milorde, que Sir Tomás Lovel
MENSAGEIRO * e o Marquês Dorset se acham em Yorkshire,
Gracioso, soberano, em Devonshire, em armas. Mas decerto Vossa Alteza
vai se alegrar, ouvindo outra notícia:
como estou informado por amigos,
a esquadra do bretão foi dispersada
estão em armas Sir Eduardo Courtney,
por temporal violento, Em Dorsetshire
o altanado prelado, Bispo de Exeter
Richmond mandou um dos batéis à praia
seu irmão, e outros muitos associados.
para inquirir dos que por lá se achassem
(Entram outros mensageiros.)
se podia contar ou não com eles.
SEGUNDO MENSAGEIRO * Responderam-lhe que eram todos homens
Meu soberano, em Kent, armados, se acham
de Buckingham, dispostos a servi-lo.
os Guildfords; sem cessar, para eles chegam Mas ele, desconfiando, fez-se à vela,
grupos frescos de novos rebelados tomando o rumo, logo, da Bretanha.
que lhes reforçam, desse modo, o exército. Rer RICARDO*
(Entra terceiro mensageiro.) Marchemos logo, enquanto temos armas;
TerceIRO MENSAGEIRO * se não para lutar contra os de fora,
As forças, meu senhor, do grande Buckingham... para em casa bater os rebelados.
Rer RICARDO" (Volta Catesby.)
Fora daqui, corujas! Cantos fúnebres CaresBy : Meu soberano, Buckingham foi preso:
é toda vossa fala? Então toma isto, essa é a notícia boa. À outra, que o Conde
(esbofeteia-o.) de Richmond, com possante contingente
para contares novas mais alegres. desembarcou em Milford, é mais fria,
TercerrO MENSAGEIRO * mas precisa ser dita sem rebuços.
O que eu vinha dizer é que por súbitas Rer RicaRrDO * Corramos logo para Salisbury.
inundações e chuvas abundantes, Enquanto conversamos, é possível
ficou disperso o exército de Buckingham que se perca ou se ganhe uma batalha.
e ele errante, por onde ninguém sabe. Providencie alguém para que Buckingham
Rei RicarDO* Então, perdoa. Toma a minha bolsa seja levado para Salisbury.
para que te refaças das pancadas. Os demais me acompanhem.
(Saem.)
Fez proclamar algum discreto amigo

Ato IV: Cena V


O mesmo. Um quarto em casa de Lorde Stanley. Se eu me passar para ele, o moço Jorge
Entra Stanley com Sir Cristovão Urswick. será decapitado.O medo disso
é que me impede de ir em seu socorro.
STANLEY * De minha parte, Sir Cristovão, dize Vai logo; recomenda-me ao teu amo.
a Richmond que meu filho Jorge Stanley Ao mesmo tempo dá-lhe a boa nova
se acha agora trancado na pocilga de que a rainha consentiu, de grado,
do fero e sanguinário javali. em que ele Elisabete a esposar venha.
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que o sangue vos aspira como se ele Oxrorp: Cada consciência vale por mil homens
fosse lavagem suja, e em vossos troncos para lutar contra o homicida horrendo.
estripados constrói o imundo cocho: HerBERT* Não duvido de que seus partidários
esse porco monstruoso se rebolca nos virão procurar.
presentemente bem no centro da ilha, BLUNT": Seus partidários
na cidade de Leicester, segundo
só o são forçados pelo medo. No auge
com certeza o soubemos. De Tamworth
da precisão, sozinho há de encontrar-se.
até lá é um só dia de caminho.
Em nome, pois, de Deus, bravos amigos, RicHmonp- Só temos a lucrar. Com Deus, avante!
por meio desta sanguinosa prova Veloz como a andorinha é a fé, eu o sei:
de um áspero combate, preparemo-nos de reis faz deuses, de um campônio, um rei.
para a colheita de uma paz durável. (Saem.)

Ato V - Cena HI
Campo de Bosworth. (No outro lado do campo entram Richmond, Sir William
Entra o Rei Ricardo, com tropas; o Duque de Norfolk, o Brandon, Oxford e outros oficiais. Alguns soldados armam
Conde de Surrey e outros. a tenda de Richmond.)
RicHMoOND * O sol cansado teve ocaso de ouro
Rei RicarDO: Neste lugar armai a tenda: aqui, e pelo rasto claro de seu carro
no campo de Bosworth. Milorde Surrey, flamejante promete um belo dia.
por que vos mostrais triste? Sir William Brandon, lévareis meu lábaro.
SURREY* Vinte vezes Papel e tinta me trazei à tenda,
mais leve tenho o coração que o rosto. para eu traçar o plano de batalha,
Rei RICARDO" determinar a cada um seu posto
Milorde Norfolk... e distribuir nossa pequena força
NorroLK* Aqui estou, meu príncipe! com justa proporção. Milorde de Oxford,
Rei RicarDO * Que te parece? Vamos ter, decerto, Sir William Brandon, vós, Sir Walter Herbert,
pancadaria grossa. ficai comigo. Com seu regimento
NoRrroLK* Sim, havemos
fica o Conde de Pembroke. Bondoso
de dar e receber, meu soberano.
Capitão Blunt, por mim dai-lhe boa noite
Rei RICARDO Armai a tenda! Aqui dormirei hoje.
e lhe dizei que na segunda hora
(Os soldados começam a armar a tenda.)
da manhã ele deve procurar-me.
E amanhã? Pouco importa? Quem já sabe
Mais uma coisa, capitão, dizei-me:
qual o número certo dos traidores?
sabeis da posição de Lorde Stanley?
NorroLk* Ào todo seis ou sete mil, se tanto.
BLUNT:
REI RICARDO:
Se eu não me equivoquei com suas cores —
Temos, então, três vezes mais do que isso.
o que é quase certeza não ter feito —
Depois, o nome “Rei” é um burgo forte
com que não contam nossos adversários.
seu regimento a meia milha se acha,
Vamos, à tenda! Vinde, gentis-homens, para o sul, quando muito, das reais forças.
vejamos as vantagens do terreno. RicHmonp Se for possível vê-lo sem perigo,
Chamai pessoas de provado senso. bondoso capitão, de minha parte
Transmiti ordens; ninguém fique ocioso, lhe dai este papel; é caso urgente.
que amanhã vai ser dia trabalhoso. BLunr: Fá-lo-ei, por minha vida. E assim, milorde,
(Saem.) Deus vos conceda uma trangúila noite.

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A Tracépia DO REI RicaRrDO III

RicHmonp: Boa noite, caro Blunt. E ora, senhores, RarcLirr: Sim, milorde.
passemos à consulta dos negócios Rer RicarDo : Deixa-me, e recomenda à sentinela
de amanhã. Minha tenda à mão se encontra; que faça boa guarda. Em meio à noite,
o ar aqui fora está cortante e frio. Ratcliff, retorna à minha tenda, para
(Entram para a tenda.) me ajudares a armar-me. Sai, já o disse.
(Ricardo entra para a sua tenda, com Norfolk, Ratdliff e (O Rei Ricardo se retira para a sua tenda.
Catesby.) Saem Ratcliff'e Catesby.)
RerRicARDO* (Abre-se a tenda de Ricbmond, deixando vê-lo
Que horas já são? com seus oficiais.)
CATESBY* Milorde, é hora da ceia: (Entra Stanley.)
são nove horas. STANLEY *
Rer RicarDo - Não quero cear hoje. Que a sorte e o triunfo no elmo se te aninhem.
Dá-me papel e tinta. RICHMOND
Minha viseira corre facilmente? Meu nobre sogro, almejo-te o conforto
À armadura na tenda já foi posta? que possa conceder-te a negra noite.
CarEsBy : Perfeitamente; tudo está de jeito. E a nossa cara mãe, como se encontra?
Rer RICARDO STANLEY: Tenho procuração para abençoar-te .
Assume, meu bom Norfolk, o teu posto; da parte dela que, sem pausa, reza
cuida da guarda; escolhe bons vigias. pela prosperidade de Richmond.
NorroLK* Pois não, meu soberano. Quanto a isso, basta. As horas silenciosas
Rer RicaRDO - Levanta-te amanhã com as cotovias, deslizam e o negrume floconoso
gentil Norfolk. se esbate no nascente. Resumindo,
NorroLK* Prometo-o, soberano. que o tempo não nos deixa ser prolixos:
(Sai) dispõe teus homens para amanhã cedo
Rer RicarDO * Ratcliff! e entrega à decisão dos rubros golpes
Rarcurrr : Milorde? e à guerra de fatais e fixos olhos
Rer RiCARDO* Manda um passavante de armas toda tua fortuna. Do meu lado,
dizer a Stanley, em seu regimento, quanto me for possível — que não posso
que antes de o sol nascer traga seus homens; fazer tudo o que quero — hei de esforçar-me
do contrário, cairá seu filho Jorge por enganar o tempo e para ser-te
na cova cega da eternal caligem. de vantagem no embate duvidoso.
Dá-me um copo de vinho... Traze um facho. Mas não posso mostrar-me diligente
Sela para amanhã meu Surrey branco. para te socorrer, que, se for visto,
Vê o estado das lanças; todas devem Jorge, teu terno irmão, executado
ser resistentes, mas sem muito peso. será à vista de seu próprio pai.
Ratcliff! Passa bem; o vagar e o tempo incerto
Rarcuirrr: Milorde? não nos permitem mostras afetuosas
Rer RICARDO* Viste, acaso, o melancólico nem troca demorada de palavras
Lorde Northumberland? agradáveis, tal como é de costume
RaATCLIFE* Vi-o, em pessoa, entre amigos, há muito, separados.
junto com o Conde Surrey, à tardinha; Deus nos conceda tempo para os ritos
iam de tropa em tropa, percorrendo da amizade. Mais uma vez: adeus!
todas as filas, a animar os homens. Não esmoreças e conquista a glória.
Rer RICARDO * Isso me deixa alegre. Dá-me vinho. RicHmonp : Lordes, reconduzi-o às suas tropas.
Não sinto a alacridade costumeira, Não obstante os cuidados que me afligem,
nem a coragem de antes... Deixa aí!... vou procurar dormir um pouco, para
E o papel, já está pronto? sobre mim não pesar o plúmbeo sono,

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quando raiar o dia em que é forçoso Que os anjos te protejam. Vive e cresce!
que eu me libre nas asas da vitória. (Aparecem os espectros de Rivers, Grey e Vaughan.)
Mais uma vez, boa noite, caros lordes. EspecTRO DE RivERS (40 Rei Ricardo) *
(Saem todos, menos Richmond.) Amanhã pesarei sobre tua alma!
Oh tu, de quem eu me confesso simples Fala-te Rivers, por ti morto em Pomfret.
capitão, lança a vista compassiva Enche-te, pois, de desespero, e morre!
para os meus homens! Dá que eles manejem Especrro DE GREY (ao Rei Ricardo) -
os destruidores ferros de tua cólera, Pensa em Grey e que tua alma desespere!
porque amassar consigam com seus golpes EspeCTRO DE VAUGHAN (40 Rei Ricardo) -
os orgulhosos elmos dos imigos! Pensa em Vaughan com medo criminoso
Usa-nos como meio de castigo e cair deixa tua lança romba!
porque em tua vitória te exaltemos! Enche-te, pois, de desespero, e morre!
Entrego-te minha alma vigilante Os Três Especrros (a Richmond) *
ao cerrar as janelas destes olhos. Desperta e pensa que por ti combate
Que eu durma e vele... Oh! Não me desampares! no peito de Ricardo o que sofremos.
(Dorme.) Desperta e sê o vencedor do dia!
(O espectro do Príncipe Eduardo, filho de Henrique VT, (Aparece o espectro de Hastings.)
aparece entre as duas tendas.) EspecTRO (40 Rei Ricardo) -
Esrpecrro (40 Rei Ricardo) - Sanguinário e culpado, acorda em culpa
Amanhã pesarei sobre tua alma! e em batalha sangrenta acaba os dias.
Relembra a punhalada que me deste Pensa em Lorde Hastings, desespera e morre!
em Tewksbury, no albor da mocidade. (A Richmond.) Alma trangúila, acorda, e nesta guerra
Enche-te, pois, de desespero, e morre! mostra-te O braço forte da Inglaterra!
(A Richmond.) Alegra-te, Richmond, porque (Aparecem os espectros dos dois jovens príncipes.)
[combatem EspecTROS (40 Rei Ricardo) -
de teu lado os espíritos dos príncipes Sonha com teus dois primos asfixiados
mortos injustamente antes do tempo. na Torre! Como chumbo pesaremos
Filho do Rei Henrique eu sou; coragem! em teu peito, Ricardo, para a ruína
(Aparece o espectro do Rei Henrique VL.) te obrigar a baixar e para a morte.
EspecTRO (ao Rei Ricardo) * Falam-te as almas de teus dois sobrinhos;
O corpo ungido, em vida, me crivaste enche-te, pois, de desespero, e morre!
de feridas mortais. Pensa na Torre; (A Richmond.) Dorme, Richmond, em paz e acorda
enche-te, pois, de desprezo, e morre! [alegre!
(A Richmond.) Santo e virtuoso, vence! O mesmo Que os anjos te protejam do javardo!
[Henrique Vive e dá nascimento a florescente
que predisse que havias de ser rei, casa de sangue real. Os infelizes
no sono ora te anima. Vive e cresce! filhos de Eduardo querem que prosperes.
(Aparece o espectro de Clarence.) (Aparece o espectro de Lady Ana.)
EspecTRO (ao Rei Ricardo) * EspECTRO (40 rei Ricardo) -
Amanhã pesarei sobre tua alma, Ricardo, tua esposa, a desgraçada
eu, que fui afogado em vinho infame, Ana, tua esposa que, jamais, uma hora
pobre Clarence, que entregaste à morte. pôde junto de ti dormir tranquila,
Pensa em mim na batalha de amanhã com pesadelos ora te enche o sono.
e cair deixa a tua espada romba. Pensa em mim na batalha de amanhã
Enche-te, pois, de desespero, e morre! e cair deixa a tua espada romba.
(A Richmond.) Salve, broto a casa de Lencastre! (A Richmond.) Alma trangúila, dorme um sono
Rezam por ti os ultrajados Yorkes. [calmo.

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Sonha com a glória, a paz seja contigo, piedade de mim próprio? Pareceu-me
que por ti reza a esposa do inimigo. que à minha tenda tinham vindo as almas
(Aparece o espectro de Buckingham.) de quantos eu matei e que elas todas
EspecrTRro (ao Rei Ricardo) - prometiam lançar dura vingança
Fui o primeiro a te elevar ao trono, amanhã na cabeça de Ricardo.
o último a te provar a tirania. (Entra Ratclifj)
Oh! Durante a batalha pensa em Buckingham Rarcuirrr: Milorde!
e morre no terror de tua infâmia. Rer Ricarpo - Quem está aí?
Sonha com sangue, com traições e morte, RarcLirr: Sou eu, milorde,
sem que na vida encontres mais suporte. [Ratcliff.
(A Richmond.) Morri sem te poder ser ajudante. o matutino galo do povoado
Não reveles temor; luta confiante. a aurora já saudou por duas vezes.
Estarão Deus e os anjos ao teu lado; De pé, vossos amigos se preparam.
Ricardo vai cair presa do fado. Rei RICARDO
(Desaparecem os espectros; o Rei Ricardo acorda Oh Ratcliff! Eu sonhei um sonho horrível!
Sobressaltado.) Que pensas? Estarão eles conosco?
Rei RICARDO Rarcuirr: Sem dúvida, milorde.
Outro cavalo, outro cavalo! Os golpes Rer RICARDO“ Oh! temo... temo...
me pensai! Meu Jesus, tende piedade! RarcLrrr- Não reveleis, senhor, medo de sombra.
Devagar! Devagar! Foi tudo sonho. Rer RiCARDO*
Oh consciência covarde, tu me assustas! Sim, por São Paulo Apóstolo, esta noite
Azul a chama se acha; é meia-noite, sombras lançaram na alma de Ricardo
hora mortal. Um suor frio escorre-me muito mais medo do que poderiam
pelos trêmulos membros. Como! Medo? fazê-lo mil soldados aguerridos
Medo de quê? Não há ninguém por perto. sob o comando do imbecil Richmond.
Ricardo ama Ricardo; eu sou eu mesmo. Ainda é noite. Vem; saiamos juntos.
Haverá aqui dentro um criminoso? Vamos ficar de escuta junto às tendas
Não... Sim: eu próprio. Então, foge depressa. para saber se alguém pensa em trair-nos.
Mas, fugir de mim mesmo? Justifica-se: (Saem.)
poderia vingar-me. Como! Eu próprio (Ricbmond desperta; entra Oxford e outros.)
de mim tomar vingança? Amo-me muito. LorpEs : Bom dia, Richmond!
Por quê? Por algum bem que eu me fizesse? RicHmonp : Peço perdão, zelosos gentis-homens,
Oh, não! Antes me odeio, por odiosas por terdes surpreendido um dorminhoco.
ações que eu pratiquei. Sou um miserável! LorDEs - Dormistes bem, milorde?
Minto; não o sou. Não digas, tolo, coisas RicHmonp- Desde a vossa saída, meus senhores,
feias de ti! Oh tolo, não te adules! tive o mais doce sono, os mais risonhos
De mil línguas distintas é dotada e promissores sonhos que podiam
minha consciência; uma por uma, as línguas, penetrar num espírito cansado.
conta uma história à parte, e todas elas Pareceu-me que as almas cujos corpos
me chamam miserável. O perjúrio Ricardo assassinara, tinham vindo
em seu mais alto grau, crimes horrendos à minha tenda me gritar: Vitória!
em seu mais alto grau, todos os crimes O coração, afirmo-o, ora se encontra
nos mais variados graus, me gritam do alto jucundo à só lembrança desse sonho.
do tribunal: Culpado! Criminoso! À quanto estamos da manhã, milordes?
Desespero; criatura alguma me ama. LorpES Prestes a bater quatro.
Se eu morrer, nenhuma alma há de chorar-me. RICHMOND '
Aliás, por que o fariam, se eu não tenho Tempo é de nos armarmos e ordens darmos.

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(Oração de Richmond aos soldados.) RarcLirr : Que desconhece quanto à guerra toca.
Além do que eu vos disse, compatriotas, Rer RICARDO*
me impede ora falar-vos a premência Falou a verdade. E Surrey, que lhe disse?
do tempo e as circunstâncias. Fervorosas RarcLirr: Sorrindo, acrescentou: “Melhor assim”.
preces de santos e de violentadas Rei RICARDO"
almas à nossa frente se levantam Ele está com a razão; é assim, de fato.
como fortes baluartes. Se excetuarmos (O relógio bate horas.)
Ricardo, os que no campo oposto se acham Soam horas... Trazei-me um calendário.
preferem que tenhamos a vitória Quem já viu hoje o sol?
a dá-la ao que eles seguem. Pois que espécie RATCLIFF* Eu não, milorde.
de chefe é que eles seguem? Gentis-homens, Rer RICARDO: É que ele, então, a aparecer se nega;
um assassino e um tirano sanguinário, porque, pelo almanaque, já devia
que subiu pelo sangue e pelo sangue há uma hora ter surgido no nascente.
se firmou, que lançou mão dos recursos Para alguém será negro o dia de hoje.
mais vis para chegar onde ora se acha, Ratcliff!
e que sacrificou seus auxiliares, Rarcurrr: Milorde?
horrível pedra sem valor, tornada Rei RICARDO * Não veremos hoje o sol.
preciosa tão-somente pelo engaste O céu se adensa sobre os nossos homens;
do trono da Inglaterra que ele usurpa, quisera que essas lágrimas de orvalho
declarado inimigo de Deus grande. viessem da terra. Não haver sol hoje!
Se fordes contra o imigo de Deus grande, Mas por que para mim será mais grave
Deus, em sua justiça, há de amparar-vos, do que para Richmond? O mesmo céu
por serdes seus soldados. Se suardes que para mim se mostra carrancudo,
para depor o monstro, heis de ter sono lança sobre ele olhares também tristes.
sossegado, uma vez morto o tirano. (Entra Norfolk.)
Se os imigos da pátria combaterdes, NorroLk: Milorde, às armas! O inimigo avança!
tereis a recompensa das canseiras Rer RiCARDO*
no bem-estar da pátria. Se lutardes Vamos, depressa! Aprontem meu cavalo!
para as esposas libertar, por elas Dizei a Lorde Stanley que nos traga
sereis saudados como vencedores seus contingentes. Levarei meus homens
de volta a vossos lares. Se livrardes para a planície. Assim vou distribuí-los:
da espada vossos filhos, vossos netos disporei a vanguarda numa linha,
vos darão na velhice a recompensa. partes iguais de peões e de cavalos;
Em nome, pois, de Deus e do Direito os archeiros no centro serão postos.
desfraldai as bandeiras, empunhando João, Duque de Norfolk, e Tomás,
vossas espadas prestes. O resgate Conde de Surrey ficarão com o mando
desta minha audaciosa tentativa desses homens de pé e de cavalo.
consistirá em dar o frio corpo Desse modo disposto, seguiremos
à terra também fria. Mas no caso com o corpo principal, cuja potência
de eu sair vencedor, heis de ter todos reforçada será de cada lado
vossa parte nos lucros deste dia. pela nossa melhor cavalaria.
Clarins, tambores, eia! Para a glória! São Jorge nos proteja. Que achas, Norfolk?
Deus e São Jorge! Richmond e vitória! NorroLk: Plano excelente, belicoso príncipe.
(Saem.) Encontrei isto, cedo, em minha tenda.
(Voltam o Rei Ricardo, Ratcliff, auxiliares e soldados.) (Dá-lhe um papel enrolado.)
Rer RICARDO* Rer RicARDO*
Northumberland que disse de Richmond? “Tóquei de Norfolk, sê mais precavido,

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porque teu mestre Dick está vendido.” pobres ratos famintos! — se não fosse
Não passa de invenção dos inimigos. terem sonhado com esta bela empresa.
Ide, senhores, para os vossos postos. Se tivermos de ser hoje vencidos,
Não nos perturbem a alma nossos sonhos que o sejamos por homens, não por esses
faladores. Consciência é uma palavra ' bastardos da Bretanha, que se viram
que os covardes empregam, inventada por nossos pais batidos em seu próprio
para infundir temor nos homens fortes. país, espezinhados, amassados
Seja nossa consciência o braço forte; e herdeiros se tornaram de vergonha.
nossa lei, as espadas. Eia, avante! Essa gente virá a ficar de posse
Juntos conquistaremos nome eterno, do que é nosso? Tomar-nos as esposas?
ou baixaremos juntos para o inferno. Desonrar-nos as filhas?
(Sua oração para os soldados.) (Tambores, ao longe.)
Que vos direi, além do que já disse? Atenção!
Pensai em quem tereis de dar combate: Ouço os tambores deles! Gentis-homens
da Inglaterra, ao combate! Para a luta,
um bando de velhacos, vagabundos,
valorosos campônios! Pontaria,
desertores, a borra da Bretanha,
meus archeiros! Visai-lhes as cabeças!
vis lacaios do campo, vomitados
Metei esporas nos cavalos árdegos!
pelo país saciado, para a todos
Atolai-vos em sangue; estupefacto
destruir com jogá-los nesta empresa.
deixai o céu com os cotos dessas lanças!
Dormíeis calmamente; eles vos trazem
(Entra um mensageiro.)
somente inquietação. Possuís terras,
Que disse Lorde Stanley? Traz seus homens?
tendes belas esposas; eles querem MensaceIRrO * Milorde, ele se nega a obedecer.
tomar-vos umas, desonrar as outras. Rer RicaRDO * Fora a cabeça de seu filho Jorge!
Quem lhes serve de chefe? Um ser risível, NorroLk- Milorde, o imigo já passou o pântano;
desde muito criado na Bretanha deixai a execução de Jorge Stanley
a expensas da Inglaterra idolatrada, para depois do encontro e da vitória.
um fracalhão que nunca, em toda a vida, Rei RICARDO"
sentiu mais frio do que o dos sapatos, Mil corações me pulsam no imo peito.
quando a neve os recobre. Eia! Obriguemos Às bandeiras à frente! Aos inimigos!
essa corja a cruzar de novo os mares, Que o nosso antigo grito de combate:
metamos o chicote na canalha “Por São Jorge!” a coragem nos insufle
da França, esses mendigos esfaimados, dos dragões ardorosos. Vamos! À eles!
fatigados da vida, que enforcado Paira a vitória sobre os nossos elmos!
se teriam, decerto, por penúria — (Saem.)

Ato V - Cena IV
Outra parte do campo de batalha. Mataram-lhe o cavalo; a pé combate.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Norfolk, com Anda à procura de Richmond té mesmo
tropas. Catesby corre ao seu encontro. na garganta da morte. Vinde logo,
meu caro lorde, ou tudo está perdido.
CaTESsBY * Vinde em socorro, caro Lorde Norfolk! (Alarma. Entra o Rei Ricardo.)
O rei realiza coisas sobre-humanas Rer RicaRrDO : Um cavalo! Um cavalo! Dou meu reino
sem temor enfrentando os inimigos. por um cavalo!

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Carespy: Retirai-vos, príncipe; RicHMOND'


que eu vos arranjarei outro cavalo. Sepultai-os de acordo com seus títulos.
Rer RICARDO Joguei a vida num só lanço, escravo; Proclamai que serão perdoados todos
aceito o que me der o azar dos dados. os fugitivos que nos procurarem
Parece que no campo há seis Richmonds, para se submeter. E após, conforme
já matei cinco, em vez do verdadeiro... juramos ao tomar o sacramento,
Um cavalo! Um cavalo! Dou meu reino uniremos as rosas branca e rubra.
por um cavalo! Sorri, Oh céu, para esta união sincera,
(Saem.) já que tanto ensombraste antigos ódios!
(Alarma. Entram, por diferentes lados, o Rei Ricardo e Que traidor, ao me ouvir, não diz amém?
Richmond, e saem, combatendo. À seguir, tornam a entrar Louca estava a Inglaterra, havia muito;
Richmond, Stanley, que traz a coroa, com diversos outros feria-se a si própria. Dementado,
sangue fraterno o irmão, cego, vertia;
nobres e tropas.)
furioso, o pai matava o próprio filho;
RicHMOND Seja louvado Deus e vossas armas,
forçado, o filho ao pai sacrificava.
amigos vitoriosos. Nosso é o dia:
Tudo isso York e Lencastre ocasionavam,
o sanguinário cão está sem vida.
em horrível discórdia divididos.
STANLEY * Corajoso Richmond, foi com bravura
Ora deixai que os lídimos herdeiros
que te desobrigaste. Aqui te trago
das duas casas reais de tanto brilho,
esta real jóia há muito profanada, Richmond e Elisabete, por desígnio
que eu próprio retirei da fronte morta de Deus a se unir venham. Que seus netos —
do monstro sanguinário, porque ornasses se assim, Deus o quiseres! — o futuro
com ela o teu conspecto. Ei-la! Recebe-a, enriqueçam com a paz de faces brandas,
usa-a, dela te goza e dá-lhe brilho. com fartura risonha e dias prósperos.
RicHmonD* Que a tudo isso diga Deus Amém. Oh gracioso Senhor, embota as armas
E o moço Jorge Stanley, está vivo? dos traidores que queiram novamente
STANLEY * Está salvo, milorde, na cidade nos trazer esses dias sanguinários
de Leicester, para onde poderemos e forçar a Inglaterra desditosa
retirar-nos, se for do vosso agrado. a se afogar num mar de sangue e lágrimas.
RICHMOND: Não chegue a ver a pátria sorridente
Que homens de prol caíram dos dois lados? quem nos privar da paz traiçoeiramente.
STANLEY * Unidos, todos, ora a paz mantém;
João, Duque de Norfolk, Walter, Lorde Ferrers, para ser longa, diga Deus: Amém.
Sir Roberto Brakenbury e Sir William Brandon. (Saem.)
Introdução (David Bevington)

A Comédia dos Erros é uma ótima ilustração do “aprendizado” de Shakespeare


na comédia. Ela imita mais a comédia clássica, especialmente Plauto, do que a obra
madura de Shakespeare. Seu humor verbal, incluindo piadas escatológicas sobre gases,
os desbocados chistes sobre chifres, e os diálogos abertamente ingênuos (como em 2.2),
são, às vezes, adolescentes. Há abundância na peça de humor farsesco de abuso físico,
apelando assim para crianças de todas as idades. É, talvez, a mais descomplicada e
divertida de todas as peças de Shakespeare. Entretanto, os toques suavizantes da
maturidade de Shakespeare estão inconfundivelmente presentes também. Shakespeare
estrutura sua farsa de identidade equivocada na história tragicômica de separação do
velho Egeu, ameaça de morte, e eventual reunião. Ele adiciona personagens as suas
fontes principais, Menaechmi e Amphitruo, de Plauto, para aumentar o interesse no
amor e reconciliar Plauto com as convenções morais Inglesas. Ele toca nos temas da
ilusão, loucura e festividades que figurarão com proeminência em Sonho de uma Noite
de Verão e em Noite de Reis, uma comédia posterior de identidade equivocada. Nesses
aspectos, A Comédia dos Erros é um fascinante prelúdio para o posterior
desenvolvimento de Shakespeare e uma realização valorosa por si só. No palco, ela não
atraiu os maiores atores Shakespearianos, porque não oferece papéis complexos e
dominantes, mas ela raramente falhou em agradar às plateias.

Não podemos ter certeza de quando a peça foi escrita. Uma performance
aconteceu em 28 de Dezembro de 1594, em Gray’s Inn, um dos salões da Corte, ante
uma desregrada plateia de advogados, estudantes de direito e seus convidados. Esta não
foi, provavelmente, a primeira performance, entretanto. Alusões tópicas oferecem dicas
de uma data anterior. Quando Drômio de Siracusa fala da França como “armada e
revertida, fazendo guerra contra seu herdeiro” (3.2.123-4), claramente refere-se à
oposição da Liga Católica a Henrique de Navarra, que era o aparente herdeiro ao trono
Francês até 1593, quando tornou-se rei. Outra alusão, ao envio Espanhol de “armadas
inteiras de galeões” (linhas 135-6), possivelmente perdeu seu ponto cômico logo após a
Invencível Armada de 1588. O estilo da peça, caracterização e construção imitativa são
todos consistentes com uma data entre 1589 e 1593.

Qualquer que seja a data exata, a fascinação jovial de Shakespeare por Plauto é
manifesta. A compreensão de Shakespeare do latim, apesar de debochada por Ben
Jonson, era, sem dúvida, boa o suficiente para permiti-lo ler Plauto com prazer. Ele deve
ter exercitado Latim por anos como estudante na cidade de Stratford-upon-Avon. De
fato, a influência não somente de Plauto, mas também de Ovídio e Sêneca (juntos com
toques de Horácio, Catulo, etc.) é uma característica eminente dos primeiros trabalhos
de Shakespeare, dramáticos e não-dramáticos. Shakespeare pode ter consultado Plauto
no original e em uma tradução contemporânea, como era, frequentemente, seu costume
com fontes não-Inglesas. Das edições da Renascença em Latim de Plauto, ele
aparentemente tomou a estranha designação “Antipholis Sereptus” (isto é, “surreptus”,
retirado), que aparece no texto do Fólio, em uma direção de palco em 2.1.0, para indicar
o gêmeo que separou-se de seu pai. Por outro lado, uma tradução de Menaechmi por
“W.W.” (? William Warner), publicada em 1595, foi registrada em 1594 e podia estar
disponível anteriormente para Shakespeare em manuscrito.

Plauto tinha muito a oferecer a Shakespeare e seus dramaturgos


contemporâneos, especialmente na construção firmemente organizada e complexa do
enredo. O drama Nativo Inglês do século dezesseis tendia a ser episódico e panorâmico
em sua concepção. O aprendizado de Shakespeare na forma neoclássica pode ser vista
em sua observação precisa das unidades de tempo e lugar – aquelas unidades que ele
abertamente desconsiderará na maioria de suas peças posteriores. No início da peça,
Egeu é informado que tem até o pôr do sol para angariar seu dinheiro de resgate, e a
peça então move-se até aquele ponto do tempo, com observações periódicas que agora é
meio-dia, duas da tarde, e assim por diante. (Em certo ponto, o tempo parece até mesmo
ir para trás, mas isso é parte da ilusão da loucura.) A ação é restrita à cidade de Éfeso;
eventos que ocorreram em outros lugares, em tempos anteriores (como a separação da
família de Antífolo), são contadas a nós por pessoas na peça, como o velho Egeu.
Apesar da companhia de Shakespeare não empregar o tipo de cenário desenhado em
perspectiva, utilizado pelos neoclássicos continentais, com localidades fixas para as
casas de frente para uma rua, a produção original dessa peça pode, entretanto, ter usado
uma “casa” no palco, ou uma porta para representar a habitação de Antífolo de Éfeso (a
Fênix) ao longo do drama. A peça inteira pode ser representada como se todas as ações
ocorressem na vizinhança dessa única “casa”, com o estabelecimento do Cortesão e a
Abadia nas proximidades. Nunca mais Shakespeare utilizará tal palco neoclássico.

Essas unidades de tempo e espaço são questões mecânicas, mas elas também
harmonizam-se com uma unidade de ação mais essencial. A história move-se, como que
em perfeito acordo com a teoria neoclássica dos cinco-atos, da exposição e complicação
ao clímax, anagnórise (descoberta) e peripateia (reverso da fortuna). A genialidade do
enredo é decisivamente de Plauto. Shakespeare força para os seus limites as
interconexões dos desentendimentos cômicos, somente para desembaraçar todos esses
nós aparentemente firmes com facilidade. Porém, a imitação de Plauto, mesmo em
matéria de construção, não é de forma alguma sem criatividade, pois Shakespeare
empresta de Plauto ambas a farsa sobre a identidade equivocada dos gêmeos
(Menaechmi) e da comédia mais conhecida de Plauto (Amphitruo), na qual um marido e
seu servo são excluídos de sua própria casa, enquanto um visitante disfarçado usurpa o
papel do mestre. Essas adaptações e rearranjos ingênuos eram comuns entre os
dramaturgos neoclássicos como Ludovico Ariosto, e, apesar de Shakespeare não ter,
aparentemente, utilizado qualquer análogo do século dezesseis dessa peça, ele revela
familiaridade com a comédia neoclássica e uma habilidade de competir com o melhor
que a Europa poderia oferecer nessa área. Essa versatilidade é notável num dramaturgo
jovem que irá revelar-se com o tempo bem menos neoclássico do que um escritor nativo
Inglês. Ademais, mesmo que seu treinamento neoclássico auto-imposto tenha sido
apenas um aprendizado, esse provou-se inestimável para Shakespeare. Apesar de sua
tendência posterior no sentido de um enredo “romântico” – no sentido da descrição de
ações múltiplas estendendo-se por espaços amplamente separados e diferentes períodos
de tempo – as maiores comédias de Shakespeare continuam a apontar no sentido da
mesma resolução gratificante do conflito dramático em uma resolução simples e bem-
estruturada.

Por toda sua habilidade de concepção Plautina, A Comédia dos Erros é bem
distante de The Menaechmi, em tom e espírito. Não há resquícios do cinismo, da dureza
satírica e do tom amoral do original Romano. Os personagens, apesar de ainda
reconhecidos como tipos, são humanizados. O familiar parasita Plautino é totalmente
excluído. O usual servo esperto felizmente torna-se os gêmeos Drômios. O doutor
charlatão de Plauto, Médicus, é hilariamente transposto para Dr. Pinch, um professor
pedante. O papel do cortesão não é mais proeminente. Em vez disso, Shakespeare cria
Luciana, a irmã virtuosa de Adriana, que defende à causa de contenção no casamento e
que eventualmente torna-se noiva de Antífolo de Siracusa. A Comédia dos Erros não
termina, como a maioria das comédias posteriores de Shakespeare, com um desfile de
casais no altar, mas o casamento de Antífolo e Luciana é, pelo menos, um importante
passo nessa direção. Além disso, ficamos sabendo de outro casamento ainda por
acontecer – aquele de Drômio de Éfeso com Luce, a serva da cozinha. Essa paródia
comum de afeição casamenteira é inteiramente Inglesa em caráter e relembra um
espelhamento da corte entre os servos cômicos de Fulgens and Lucrece (cerca de 1497),
de Henry Medwall. O motivo não é suficientemente enfatizado para não ameaçar à
unidade no enredo principal, mas a potencialidade de um enredo duplo é evidente.

Um contraste ainda mais significante com a farsa Plautina é encontrada na saga


romântica do velho Egeu e sua esposa, há muito perdida, a Abadessa. A história deles
não é de identidade equivocada (apesar disso contribuir para a resolução) mas de
separação dolorosa, perambulação e reunião. De fato, a nota colocada no início da peça
pode parecer trágica se não estivéssemos em consonância com as expectativas
convencionais românticas, que os membros separados de uma família provavelmente
reencontrarão um ao outro novamente. Egeu, ameaçado com execução imediata, revela-
nos uma narrativa de um casamento feliz interrompido pela malignidade da fortuna. Em
contraste com a firmemente controlada unidade de tempo da ação farsesca, a narrativa
romântica estende-se (pela lembrança) por muitos anos de erros e sofrimentos. A
história tragicômica de Egeu de testes e paciente persistência é muito parecida com
aquela de Apollonius of Tyre, um conto popular utilizado por Shakespeare em seu
romance posterior Péricles (cerca de 1606-1608). As convenções desse tipo de
romance, de origem essencialmente Grega, enfatizam à improbabilidade: gêmeos
idênticos que podem ser distinguidos apenas por marcas de nascença, uma tempestade
no oceano que parte um barco a vela ao meio, dividindo, de maneira organizada, uma
família, e assim por diante. O mar é emblemático da Fortuna imprevisível, retirando
com uma mão e restaurando com a outra. A esposa que perde-se no mar, como sua
contraparte em Apollonius ou Péricles, leva uma vida de devoção enclausurada,
sugerindo um padrão de morte simbólica, cura e, finalmente, renascimento. O final de A
Comédia dos Erros tem somente uma dica em relação à morte restaurada
misteriosamente à vida: “Depois de tanta angústia, tal natividade!” (5.1.407).

A história de persistência de Egeu contrapõe à farsa de ainda outra maneira. Sua


acusação perante o Duque de Éfeso introduz na peça o mundo “trágico” da lei, punição
e morte. O encontro de Egeu e o carrasco não é ilusório. Seu dilema é o resultado de
amargas “vibrações mortais e intestinas” (1.1.11) entre duas cidades envolvidas num
frenesi de retaliações econômicas. A lei não pode ser piedosa, mesmo que a injustiça da
situação de Egeu seja manifesta a todos, incluindo o Duque. A esses fatores
potencialmente trágicos não se pode dar muita ênfase, pois a primeira cena é breve e nós
somos reassegurados pelo hilário tom da peça (e pela nossa suposição que Egeu é o pai
dos gêmeos Antífolos) que tudo ficará bem. Ainda, a adição de Shakespeare desse
enredo romântico sugere sua inquietação com a farsa pura. Como em suas comédias
posteriores, que são praticamente todas ameaçadas por catástrofes, a resolução de A
Comédia dos Erros é aprofundada em algo que aproxima-se do restabelecimento
miraculoso. Ademais, o cenário de um mundo quase trágico de sofrimento genuíno
eleva nossa apreciação da irrealidade cômica do mundo auto-contido da farsa Plautina e
enfatiza à natureza ilusória dos dilemas que resultam da identidade puramente
equivocada. Tais ilusões são ainda mais cômicas porque elas são as ilusões que
supostamente as pessoas sãs sofrem: disputas e ciúmes no casamento, preocupação com
a aparência respeitável entre os vizinhos, e a suspeita que alguém está sempre sendo
enganado em relação ao dinheiro. Essas são as quimeras que, por parecem tão plausíveis
e ainda assim tão patentemente insanas, são exploradas de maneira farsesca pela
invenção cômica de Shakespeare: a inversão da loucura e da sanidade, sonho e vigília,
ilusão e realidade.

O que acontece quando o comportamento de um gêmeo é tomado como do outro?


A situação é, claro, divertida em si mesma, mas também serve como um teste para os
outros personagens, descobrir quais hipóteses loucas eles irão construir. Adriana, diante
da aparente recusa de seu marido de vir para casa jantar, inicia um discurso raivoso
contra os maridos que negligenciam suas mulheres por causa de amantes. A situação
ilusória, em outras palavras, expõe seus medos latentes. Nós entendemos melhor agora
porque ela age como uma rabugenta: ela teme a rejeição e a deterioração de sua beleza,
e imagina que esta seja a causa da negligência de seu marido. De fato, no momento em
que ela fala, seu marido está ocupado fazendo acordos sobre uma corrente que pretende
dar a Adriana; mas quando, subsequentemente, ele está trancado em sua própria casa e
conclui que Adriana está sendo infiel, ele resolve, em sua fúria, conceder a corrente a
uma cortesã para “ofender minha esposa”. Ele faria isso de fato, se não fosse salvo de
seu impulso destruidor e vingativo pela ação cômica beneficente do enredo farsesco:
através da identidade equivocada, a corrente é entregue às mãos de seu irmão gêmeo.
Mais uma vez, a ilusão incitou um personagem à assumir o pior, em revelar suas
suspeitas de trama contra si. E assim dá-se quando Antífolo de Éfeso é preso por não
pagamento da corrente (ele assume que todos os mercadores são ladrões) ou quando é
rejeitada sua fiança pelo servo que ele pensa ter enviado para buscá-lo (ele assume que
todos os servos são ladrões). Nós rimos perante a capacidade infinita da mente humana
para distorções desse tipo autopunitivo.

A metáfora usada mais frequentemente para expressar esse sentido de


incompreensão, e mesmo uma confusão em relação a própria identidade de alguém, é a
da metamorfose. Todos tomaram do copo de Circe (5.1.271) e foram transformados em
animais – a maioria em burros. Todos escutaram à canção da sereia e estão encantados.
Éfeso, eles concluem, deve ser assombrada por feiticeiros, bruxas, góblins e espíritos
(4.3.11 ff.). Éfeso é, de fato, associada na Bíblia com exorcismo (Atos 19:13 ff.), e
“Circe” sugere que Antífolo de Siracusa é um tranquilo Odisseu. Em tal mundo insano,
os personagens assumem uma licença para embarcarem num feriado de Saturnália. A
experiência de transformação assim leva a várias formas de “liberações” do
comportamento social ordinário, mas a experiência é, também, inquietante, e
continuamente relembra os personagens de exorcismo, inferno e demônios. A ameaça
de incesto paira sobre a questão cômica de dois irmãos compartilhando a mesma esposa,
e, de fato, há um subtexto obscuro em relação aos pares que é inequivocamente presente
ao longo da peça: o par de cidades, Éfeso e Siracusa, o par de gêmeos, o par de servos,
todos tentando descobrir suas identidades no meio dos paradoxos de unicidade e
duplicidade. A ação farsesca da peça nunca está distante da violência. Bruxas e as
servas gordas da cozinha sugerem uma fascinação por mulheres desregradas. Os
personagens podem explicar seus mundos invertidos apenas ao assumirem que todos os
homens são lunáticos, todas as mulheres honestas prostitutas e todos os homens
verdadeiros, ladrões. “Você me conhece, Senhor? …E eu mesmo?” “Estou na Terra, no
céu ou no inferno? / Dormindo ou acordado, louco ou com razão?” (3.2.73-4, 2.2.211-
12). Talvez, como Barbara Freeman sugere, toda a peça possa ser vista como um sonho
de Egeu. É, ao mesmo tempo, reconfortante e hilariamente anticlimático que esses
questionamentos possam finalmente ser resolvidos com a mais mundana das
explicações: há dois Antífolos e dois Drômios.

Contido dentro dessa estrutura de loucura e vigília há um lúdico, ainda que sério,
exame das dinâmicas da corte e do casamento. As duas mulheres mais importantes da
peça são significativamente pareadas e contrastadas. Adriana, a esposa rabugenta,
inquieta-se perante os costumes sociais que permitem seu marido Antífolo vagar no
exterior enquanto ela permanece domesticamente confinada. A sua irmã solteira,
Luciana, endossa a visão tradicional que o marido detém precedência, encontrada em
todos os lugares na natureza: homens “são mestres de suas fêmeas, e seus lordes”
(2.1.24). O que Luciana chama de obediência (linha 29), sua irmã casada chama
“servidão” (linha 26). Quem está certa? O debate, deixado sem resolução, entretanto
levanta questões céticas em relação às hierarquias do casamento. O enredo também
prova e testa através de fantasias de inversão. Uma esposa, acreditando ser rejeitada por
ter envelhecido em sua obediência no casamento, tranca seu marido para fora de casa e
janta com um estranho. Luciana, nesse ínterim, é cortejada pelo que parece ser seu
cunhado e assim deve encarar um conflito entre desejo e lealdade a sua irmã. É claro,
Adriana não sabe que está invertendo à autoridade, ao excluir seu marido de seu próprio
lar, mas o enredo das identidades equivocadas permite-a agir fora de seu autocontrole
sem ser, de fato, culpada de deslealdade. O papel do seu marido é o de interpretar o
homem errante e ser eventualmente perdoado por sua esposa; presumivelmente, sua
exposição no Ato 5 o fará um marido mais tolerante, como o Conde Almaviva no O
Casamento de Fígaro, de Mozart. A descoberta das identidades no Ato 5 permite a
Luciana casar-se com o homem que ela aprendeu a amar, mas sem a culpa da sua
experiência fantasiosa. Os valores patriarcais são restaurados na conclusão da peça,
apesar de os parceiros no amor e no casamento terem sido, até um certo ponto, liberados
pelos seus papéis num enredo de metamorfoses. Essas questões sobre as relações
domésticas serão exploradas posteriormente em A Megera Domada, Otelo, e outras
peças.

O humor em relação à ilusão não deve ser sobre-enfatizado, pois a peça gasta a
maior parte de suas energias na farsa. Os Drômios, com seus incessantes castigos, são
frequentemente o centro de interesse na performance, merecidamente. Shakespeare não
emprega nenhum manipulador de ilusão por detrás das cenas, assim como Puck em
Sonho de uma Noite de Verão ou o Duque em Medida por Medida. Seu interesse na
metáfora do mundo como um palco é discernível apenas como um indicativo da
grandeza que virá. Entretanto, as alterações que Shakespeare faz de Plauto, amplamente
revelam à direção filosófica e idealista que sua comédia posterior tomará.
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Personagens
Sozino, duque de Éfeso. Um segundo mercador, de quem Ângelo é devedor.
Egeu, mercador de Siracusa. PrncH, mestre-escola e exorcista,
EmíLa, esposa de Egeu, abadessa em Éfeso.
ANTÍFOLO DE ÉFESO gêmeos, filhos de Egeu ADRIANA, esposa de Antífolo de Éfeso.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA e de Emília. LucIANA, sua irmã.
Lúcia, criada de Adriana.
Drômio DE Éreso gêmeos, criados dos dois Uma cortesã.
Drômio pr SirRAcUSA | Antífolos. O carcereiro, oficiais de justiça e gente do séquito.

BALTASAR, mercador.
ÂNGELO, ourives. Cena
Um mercador, amigo de Antífolo de Siracusa. Efeso
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Atol
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* Cenal
Uma sala no palácio do duque. de que meu triste fim não foi causado
Entram o duque, Egeu, carcereiro, oficiais e séquito. por falta vergonhosa, mas por puro
sentimento paterno, vou dizer-te
Eceu - Vamos, Solino; apressa a minha queda; quanto me permitir minha tristeza.
de mim, com a morte, este martírio arreda. Nasci em Siracusa, onde uma esposa
Duque: Cala-te, mercador de Siracusa; soube escolher, que em mim teria achado
parcial não posso ser no que respeita toda a felicidade, como eu nela,
à aplicação da lei. A inimizade se não nos fosse adverso o duro fado.
e a luta decorrente dos ultrajes * Vivíamos felizes; em aumento
inomináveis que, de pouco, o vosso ia nossa fortuna, por frequentes
duque infligiu aos nossos compatriotas, e frutuosas viagens que a Epidamno
honrados mercadores que, por falta costumava eu fazer. Mas o trespasso
de florins com que as vidas resgatassem, do meu feitor, na obrigação premente
selaram seus decretos ominosos me pôs de dirigir os bens dispersos,
com o próprio sangue, excluem qualquer réstia dos braços carinhosos me arrancando
de piedade de nosso olhar terrível. de minha terna esposa. Minha ausência
Desde os mortais conflitos intestinos,
não durara seis meses, quando — quase
surgidos entre os vossos compatrícios desfalecida pela doce pena
sediciosos e nós, foi decretado da herança feminina — ela já tinha
em sínodos solenes, não só pelos tomado todas as medidas, para
siracusanos como por nós próprios,
se me juntar, havendo sã e salva
que não se admitiria nenhum tráfico
chegado onde eu me achava. Muito tempo
entre as duas cidades inimigas.
não se passou sem que ela se tornasse
Mais, ainda: se alguém, nascido em Éfeso,
mãe de dois belos filhos, de tal modo
em feiras ou mercados fosse visto
parecidos — oh fato extraordinário! —
de Siracusa, ou, ainda, se um nativo
que só se distinguiam pelos nomes.
siracusano viesse ter ao porto
de Éfeso, morreria e seus bens todos
Na mesma hora, na mesma hospedaria,
seriam confiscados pelo duque, uma mulher do povo de igual fardo
a menos que mil marcos nos pagasse, se livrou, dando à luz dois filhos gêmeos
para se resgatar e ficar livre também mui parecidos, que por serem
da pena cominada. Ora, o mais alto de gente muito pobre eu comprei logo,
cômputo de teus bens escassamente para que a servir viessem meus dois filhos.
chega a cem marcos. Desse modo te achas, Muito orgulhosa de seus dois pimpolhos,
por nossas leis, à morte condenado. falava diariamente minha esposa
Egeu: Consola-me saber que o teu decreto em voltar para casa. À contragosto
hoje põe fim ao meu viver inquieto. fiz-lhe a vontade, mas, ai! muito cedo
Duque: Está bem. Ora quero que nos digas, nos embarcamos.
siracusano, sem rodeio inútil, Uma légua viajamos de Epidamno
por que de tua pátria te afastaste sem que o mar, sempre aos ventos obediente,
e o motivo de estares ora em Éfeso. qualquer trágico indício nos mostrasse
Eceu : Mais pesada tarefa não podia de nossa má ventura. Muito tempo,
ser-me imposta do que isso de contar-te contudo, não ficamos animados,
minha dor indizível. No entretanto, porque o pouco de luz quase apagada
porque dar testemunho possa o mundo que o céu nos enviava, só servia

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para levar a nossas almas tímidas com tal força, que a nossa esperançosa
mensagem certa de uma morte próxima. nau se despedaçou, e de tal modo
Eu, de mim, a aceitara alegremente; se processou nosso divórcio injusto,
mas as lamentações de minha esposa, que a cada um de nós deixou a Fortuna
que, à só idéia do perigo imano, o com que se alegrar e lastimar-se.
chorava sem cessar, e os lastimosos À parte em que se achava minha esposa —
gritos dos dois meninos amoráveis, pobre alma! — ao parecer com menos peso,
que por moda choravam, pois não tinham mas com igual desdita, foi levada
consciência do perigo, me forçaram com mais velocidade pelos ventos,
a procurar adiar o fim de todos, tendo sido eles três à nossa vista
pois outra expectativa era impossível. salvos por pescadores de Corinto,
Ao barco os marinheiros se acolheram, conforme então pensamos. Finalmente,
deixando-nos o casco do navio a bordo nos tomou outro navio.
prestes a se afundar. Minha consorte, Ao ficarem sabendo seus marujos
mais cuidadosa do último nascido, a quem haviam salvo por acaso,
o havia atado a um mastro de reserva deram boa acolhida aos pobres náufragos;
de que os marujos sempre andam providos, ea presa, porventura, aos pescadores
para enfrentar os temporais desfeitos. teriam retomado, se não fosse
À ele um dos outros gêmeos foi atado, terem o barco de moroso curso.
enquanto dos demais eu me ocupava. Por isso, navegaram rumo à pátria.
Dispostos desse modo os nossos filhos, Sabeis agora como eu fui privado
eu e minha mulher, fixos os olhos de toda a minha dita, como os fados
em quem fixo o cuidado sempre tínhamos, adversos minha vida prolongaram,
nos atamos, também, nas duas pontas para eu contar a minha triste história.
do alto mastro, e ao sabor, sempre, das ondas, Duque: Agora, pelo amor dos que lastimas,
na direção seguimos de Corinto, faze-me o obséquio de contar por miúdo
conforme imaginávamos. Por último, tudo o que eles e tu haveis passado.
a dardejar os raios sobre a terra, Eceu - Meu caçula, o mais velho nos cuidados,
desfez o sol a névoa causadora aos dezoito anos revelou desejo
de todo o nosso mal, deixando calmas de procurar o irmão, tendo insistido
de novo as ondas, pela ação benéfica junto de mim, para que seu criado —
de sua luz por que tanto anelávamos, que, como ele, privado também fora
o que nos permitiu ver dois navios de um irmão cujo nome ele levava —
que para nós, com pressa, velejavam: nas investigações o acompanhasse.
um de Corinto, de Epidamno o outro. Assim, porque sofria de saudades
Mas antes de até nós eles chegarem... de meu filho perdido, pus em risco
Oh! Nada mais direi. Deduze o resto, vira perder o que ainda me restava.
ante o que sabes do meu fado mesto. Cinco estios passei na extrema Grécia;
Duque : Adiante, velho! Acaba a tua história. vasculhei os confins da Ásia distante;
Despertas-nos piedade, muito embora e, ao costear, já de volta para a pátria,
conceder-te perdão seja impossível. a Éfeso vim ter, sem esperança
Eceu* Oh! Se os deuses assim tivessem sido, nenhuma, é certo, de poder achá-los,
agora eu acusá-los não pudera mas porque não deixasse inexplorado
de nos terem tratado cruelmente, nenhum lugar capaz de abrigar homens.
pois distantes de nós não se encontravam Da minha vida a história aqui termina.
dez léguas os dois barcos, quando fomos Na morte prematura me julgara
dar de encontro a um penedo imano e a pique, muito feliz ainda assim, se ao cabo

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shakespearebrasileiro.org À COMÉDIA DOS ERROS

de tão longas viagens obtivesse para nossa honra, vou favorecer-te


a certeza de que eles ainda vivem. naquilo que puder. Por essa causa,
Duque: Mísero Egeu, que destinado foste mercador, eu te dou mais este dia
para experimentar o grau mais alto para auxílio amigável angariares,
de uma vida infeliz! Mas podes crer-me: que a vida te resgate. Experimenta
não fosse ir contra a lei, minha coroa, os amigos que em Éfeso tiveres.
a própria dignidade, os juramentos — Toma emprestado, pede esmola e vive,
que violar nunca os príncipes se atrevem, depois de perfazeres a quantia.
muito embora o desejem — neste peito Caso contrário, morrerás; é lei.
tua causa encontrara um advogado. Deixo-o sob tua guarda, carcereiro.
Mas muito embora condenado te aches CARCEREIRO * Pois não, milorde.
e a sentença de morte não me seja Eceu * Pobre, sem esperança, Egeu só lida
possível revocar sem grande dano para o fim postergar da triste vida.
(Saem.)

Ato T: Cenall
O mercado. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Entram Antífolo de Siracusa, Drômio de Siracusa e um É um criado alegre, meu senhor, que muitas
mercador. vezes, quando estou cheio de cuidados
e de melancolia, me dissipa
MercaDoRr* Deveis dizer, por isso, que nascestes todo o humor com seus ditos prazenteiros.
em Epidamno, para vos livrardes Ireis passear comigo na cidade,
de ficar com os bens todos confiscados. para depois jantarmos na estalagem?
Ainda hoje, um mercador de Siracusa MercaDOR Não, meu caro senhor; fui convidado
foi preso, por haver desembarcado, por certos mercadores, com os quais conto
e, porque a vida resgatar não pôde, realizar bons negócios. Desculpai-me.
há de, acorde com a lei desta cidade, Mas às cinco horas nos encontraremos
vir a morrer, antes que o sol no ocaso no mercado, se a idéia vos agrada,
fatigado se deite. Eis o dinheiro podendo, após, fazer-vos companhia
que em confiança me destes, ainda há pouco. até a hora de deitar. Negócio urgente
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* me força a vos deixar por uns instantes.
Drômio, leva-o ao Centauro, onde pousamos,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
e lá te deixa estar até que eu chegue.
Então até mais tarde; sem destino
Para o jantar ainda falta uma hora;
vou distrair-me a ver vossa cidade.
verei, enquanto espero, os mercadores,
MERCADOR Ào vosso bem-estar vos deixo entregue.
estudarei os usos da cidade
(Sai)
e observarei seus belos edifícios.
Depois, de volta para a hospedaria, ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
pretendo repousar, que a longa viagem Quem ao meu bem-estar me deixa entregue,
me deixou lasso e exausto. Vai depressa. faz entrega de todo em todo inútil,
Drômio DE SIRACUSA* pois é do que careço. Sou no mundo
Muita gente talvez tomasse à risca como uma gota de água que à procura
quanto dizeis e se pusesse ao fresco de outra gota no oceano se encontrasse,
carregando tesouro tão opimo. e que, ao cair ali, toda desejos
(Sai) de achar a companheira, desaparece

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na busca, sem ser vista, Assim, comigo: vos chamar, sem haver necessidade
para um irmão e minha mãe achar — de nenhum mensageiro ou de recados.
pobre de mim! — me perco a procurá-los. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
(Entra Drômio de Éfeso.) Pára com isso, Drômio; essas graçolas
Eis outra vez meu almanaque vivo. vêm fora de propósito. Reserva-as
Que é que há? Por que voltaste assim tão cedo? para hora mais alegre. Onde puseste
Drômio DE ÉrEso o ouro que te confiei?
Tão cedo? Perguntai por que tão tarde. Drômio DE Éreso - A mim, senhor?
O capão já tostou; caiu do espeto, Não sei de ouro nenhum que me entregásseis.
de tanto ser virada, a bacorinha; ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
já o relógio da torre deu doze horas Vamos, senhor velhaco, acabai logo
e a patroa me deu uma no rosto; com essas maluquices, e dizei-me
quente ela está por causa da comida de que modo a incumbência foi cumprida.
que esfriou; a comida ficou fria Drômio DE ÉrEsO -
por não terdes voltado para casa; Minha incumbência constitui apenas
não voltaste porque não tendes fome; em vos vir procurar até o mercado
não tendes fome por comido haverdes. e vos levar, senhor, a casa, à Fênix,
Nós, porém, a jejuar nos encontramos; para jantar. Por vós já estão à espera
por vossa culpa em penitência andamos. minha senhora e a irmã.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Ora, tão certo
Detende esses pulmões, senhor: dizei-me como eu ser batizado, me responde
onde está minha bolsa com o dinheiro. onde puseste a salvo o meu dinheiro;
DrÔMiIO DE ÉrESO - se não, te quebrarei essa cabeça
Oh! Aqueles seis pences que me destes jocosa, que só cuida de pilhérias,
na última quarta-feira com o encargo quando me acho indisposto. Dize logo:
de pagar o conserto do rabicho em que lugar puseste os meus mil marcos?
da patroa? Ao seleiro os dei, senhor; DrôMio DE ÉrESO :
não costumo furtar coisa nenhuma. Marcas vossas eu tenho na cabeça;
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* nos ombros tenho marcas da patroa;
Não estou hoje para brincadeiras. mas, reunidas, mil marcos não perfazem.
Deixa de lado as graças e me dize, Se forçado eu me visse a restituí-las
sem subterfúgios, onde está o dinheiro. a Vossa Senhoria, é bem possível
Sendo nós estrangeiros na cidade, que não as recebêsseis com paciência.
como te mostras tão remisso, ousando ANTÍFOLO DE SIRACUSA *
separar-te de soma tão vultosa? Tua patroa? Que patroa, escravo?
Drômio DE ÉrEso DRôMIO DE ÉFESO
Por obséquio, senhor, deixai as graças A senhora de Vossa Senhoria,
para a hora do jantar. Vim procurar-vos minha patroa da estalagem Fênix,
como correio, de ordem da senhora; a mesma que jejua à vossa espera,
se sem vós eu voltar, é coisa certa para jantar e que vos pede, instante,
meter-me na correia, que ela as vossas irdes jantar com ela neste instante.
faltas há de gravar na minha pele. ANTÍFOLO DE SIRACUSA* .
Penso que deveríeis ter no estômago, Como! Zombas de mim na minha frente,
como eu, relógio certo, para a casa conquanto eu to proibisse? Então toma isto.
(Bate-lhe.)

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Ato II: Cenal


Casa de Antífolo de Éfeso. nossa calma tornara-se falace.
Entram Adriana e Luciana. Por não teres marido que te oprima
é que me fazes essa pantomima;
ADRIANA" Nem vem o meu marido nem o escravo mas se chegasses a te ver burlada,
que eu incumbi de o procurar com pressa. tua paciência acabaria em nada.
Devem ser duas horas, Luciana. Luciana Hei de casar-me para ver se acerto.
Luciana: Talvez tenha sido ele convidado Eis o criado; o patrão deve andar perto.
por algum mercador e, do mercado, (Entra Drômio de Éfeso.)
tivesse ido jantar em qualquer parte. ADRIANA: Dizei se O vosso retardado mestre
Mana, vamos comer; não te amofines. ao alcance da mão por fim se encontra.
Da liberdade os homens são senhores; Drômio DE ÉrEso : Fui eu que fiquei ao alcance das
o tempo é o mestre deles; vão e vêm, mãos dele, como dão testemunho as minhas orelhas.
conforme o tempo o enseja. Sê paciente. ApRIANA* Não lhe falaste? Não te disse, acaso,
ADRIANA: Por que hão de ser mais livres do que nós? qual a sua intenção?
Luciana * Porque fora de casa têm negócios. Drômio DE ÉrEso : Disse-me tudo
ADRIANA: Se com ele desta arte eu procedesse, quanto quis, mas foi muito ao pé do ouvido.
ficaria zangado. Maldita mão! Não pude entender nada.
Luciana Não ignoras Luciana Expressou-se por maneira tão ambígua,
que da tua vontade é freio o esposo. que não entendeste o que ele queria dizer?
ADRIANA: Frear se deixam tão-somente os asnos.
Drômio DE Éreso : Expressou-se por maneira tão
Luciana: À liberdade indócil é domada
clara, que pude sentir perfeitamente as pancadas,
pela própria desgraça. Não há nada
mas, apesar disso, por maneira tão ambígua, que mal
sob a vista do céu que não se mova
pude compreender-lhes o alcance.
num limite restrito, assim na terra
ADRIANA: Mas dize: não vem logo para casa?
como no ar e no mar. Todas as fêmeas
Não quer deixar a esposa satisfeita?
dos animais, dos pássaros, dos peixes
Drômio DE Éreso-
seguem ao macho e em tudo lhe obedecem.
Doido cornudo é o que ele me parece.
O homem, ser mais divino, senhor deles,
ADRIANA: Doido cornudo, biltre?
dono do mundo todo, do mar vasto,
que a superioridade do intelecto Drômio DE ÉrEso-
pôs acima de pássaros e peixes, Cornudo por ser doido, simplesmente.
da esposa é dono e mestre. Assim, alegre, Mas que está doido, é certo. Eram já horas,
com ele em tudo concordar te cumpre. lhe disse, de jantar. Sua resposta
ADRIANA: Tanta humildade condiz mais com freira. foi reclamar de mim mil marcos de ouro.
Luciana: O medo é que me faz ficar solteira. “Jantar!” gritei. “Meu ouro!” respondeu-me.
ADRIANA: Casada, talvez fosses uma harpia. “A carne está a queimar!” disse. “Meu Ouro!”
Luciana: À obedecer, de noiva aprenderia. respondeu. “Demorais ainda na rua?”
ADRIANA" Se teu esposo a outra mulher amasse? lhe perguntei. “Meu ouro!” respondeu-me.
Luciana Em casa aguardaria o desenlace. “Onde estão os mil marcos, sem-vergonha,
ADRIANA Sem ser provada, a paciência dura; que eu te dei?” “A leitoa está no ponto
calma é quem vive livre de tortura. de esturricar!” lhe disse. “Meu dinheiro!”
Ao infeliz que a adversidade oprime me respondeu. “Minha senhora...” disse-lhe.
é fácil animar num tom sublime; “Que se enforque!” disse ele; “não conheço
mas se igual fardo no ombro nos pesasse, senhora alguma! O diabo que a carregue!”
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Luciana * Quem falou isso? A culpa é dele só. Tenho a conversa


Drômio DE ÉrEso Meu patrão, senhora. fastídiosa, a alma sempre em tédio imersa?
“Não tenho casa, esposa, nem patroa”, Na indiferença dele se me embota
berrou-me ele cem vezes. Desse modo toda a vivacidade, fico idiota.
minha mensagem, que cabia à língua Deixa-me feia, acaso, este vestido?
dizer no tempo certo, graças a ele Quem me dirige os bens é o meu marido.
torno a trazer nos ombros para casa, Qual a minha ruína, que arruinada
pois neles recebi tunda de mestre. não fosse só por ele? Se fanada
ADRIANA" Volta, maroto, e traze-o para casa. me encontro é que ele o quis. De um simples riso
DrôMio DE ÉrEso dele me nasceria um paraíso.
Voltar para apanhar mais uma coça? Mas, cervo altivo, ele por longe vaga.
Por Deus, mandai um outro mensageiro. De todo o meu amor foi essa a paga.
ADRIANA" Volta, malandro! Do contrário a fronte Luciana O ciúme te maltrata. Deixa disso.
te cruzo de pancada. AprIANA:* Tanto sofrer me fez perder o viço.
Drômio DE Éreso : Ele há de novas É certo; alhures ele encontra abrigo;
cruzes fazer por cima das primeiras. se não, por que não pára ele comigo?
Desta arte me deixais santificado. Disse que uma cadeia me daria,
ADRIANA: Basta de falatório, grosseirão! bem o sabes. Contudo, eu preferia
Vai buscar teu senhor. que ele houvesse esquecido esse presente
Drômio DE ÉrEsO * Serei, acaso, em troca de comigo estar contente.
redondo assim, para me dardes ambos Desta arte fiel ele ficara ao leito.
pancada sem parar, como se eu fosse Sei que as mais belas jóias, sem defeito,
bola de futebol? Sem mais nem menos, com o uso o encanto perdem. O próprio ouro
me aplicais pontapés. A durar isso, se desgasta, em prejuízo do tesouro.
tereis de me mandar forrar de couro. Assim, dos homens o impoluto nome
(Saí) a reiterada tentação carcome.
Luciana: Como a impaciência vos deixou mudada! Já que a minha beleza não lhe agrada,
ADRIANA" À conversar ficou com a namorada, vou chorar tanto, até vir a ser nada.
privando-me de todo o carinho. Luciana * Como o ciúme maltrata esta coitada!
O encanto já perdi? Feia definho? (Saem.)

Ato II Cena ll
Uma praça pública. (Entra Drômio de Siracusa.)
Entra Antífolo de Siracusa. Então, senhor,
já está mais calmo vosso humor jocoso?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA — Repeti, por favor, a brincadeira,
O dinheiro que a Drômio eu tinha dado se gostais de pancada. À hospedaria «
se acha na hospedaria do Centauro, do Centauro vos é desconhecida?
tendo saído o cuidadoso escravo Não vos dei uma bolsa com dinheiro?
para me procurar. Pelo meu cálculo Vossa patroa me quer ver em casa,
e o que disse o hospedeiro, cu não podia para eu jantar com ela? Então, moramos
ter falado com Drômio depois da hora na hospedaria Fênix? Estás louco,
em que nos separamos no mercado. para me responderes desse modo?
Mas ei-lo que aí vem. Drômio DE SIRACUSA"*

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Quando, senhor, vos respondi tal coisa? também o seu porquê, pois dizem todos que não há
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* causa sem porquê.
Agora mesmo, aqui, há meia hora. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Pois foi porque te riste
Drômio DE SIRACUSA* à minha custa. Agora vejamos o porquê: porque de
Não vos falei desde a hora em que ao Centauro novo riste de mim, quando eu falava sério.
me mandastes levar vosso dinheiro. DrôMmio DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Quem sova igual já tomou? Coisa assim nunca mais
Afirmaste, vilão, que eu não te havia me aconteça,
dado dinheiro algum e me falaste pois os porquês que aduzis são porqueiras sem pés
de uma mulher e de eu jantar com ela. nem cabeça. Obrigado, senhor.
Mas penso que na pele tens a prova ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por que obrigado?
de quanto me alegrou essa notícia. Drômio DE Siracusa: Ora, senhor, por essa coisa
Drômio DE SIRACUSA* que me destes por coisa nenhuma.
Fico contente por vos ver alegre. ANTÍFOLO DE SIRACUSA “ Na próxima vez me
Que quer dizer, senhor, essa pilhéria? corrigirei, dando-te coisa nenhuma por alguma
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* coisa. Mas dizei-me, senhor: já são horas de jantar?
Ainda zombas de mim na minha frente? Drômio DE SIRACUSA * Não, senhor; a carne ainda
Pensas que é brincadeira? Então toma isto. não ficou como eu estou.
(Bate-lhe.)
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como assim, senhor?
Drômio DE SIRACUSA*
Que é que lhe falta?
Parai, senhor, por Deus! À brincadeira
Drômio DE SIRACUSA* Ser batida.
ficou séria demais. Por que barganha
AnTÍFOLO DE SIRACUSA * Perfeitamente, senhor;
mereci receber essas pancadas?
com isso ela ficará seca.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SiRACUSA * Nesse caso, peço-vos não
Porque acontece eu conversar convosco
provar bocado.
familiarmente e, para distrair-me,
vos fazer de meu bobo, vossa audácia ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Vossas razões?
vos leva a exorbitar, até quererdes
Drômio DE SIRACUSA * Para não ficardes colérico
apalhaçar as minhas horas sérias. outra vez e não tornardes a me bater.
Quando o sol brilha, as moscas dançam ledas; ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Então, meu senhor,
mas, quando some, logo elas se escondem. aprendei a gracejar só quando houver ocasião,
Para poderdes discretear comigo porque para tudo há tempo certo.
será conveniente ver-me o rosto. Drômio DE SIRACUSA * Era o que eu ousaria
Assim, pelos meus olhos, a atitude contestar, antes de haverdes ficado tão colérico.
sabereis escolher. Caso contrário, ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Em que razões vos
vos meterei pela cabaça o método. firmais, senhor?
Drômio DE SIRACUSA* Drômio DE SirACUSA* Ora, senhor, em uma
Cabaça lhe chamais? Eu preferia ter cabeça, uma razão tão reluzente como a careca reluzente do velho
vez que deixasses de a malhar. A continuardes desse Tempo.
jeito, vou procurar uma cabaça para forrar com ela a ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Vamos ouvi-la, então.
cabeça e não ter de procurar o espírito nas espáduas. Drômio DE SIRACUSA * Quem é calvo por
Mas, por obséquio, senhor: por que me bateis? natureza, em tempo nenhum recupera o cabelo.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Não sabes a causa? ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Não lhe seria possível
Drômio DE SIRACUSA* conseguir isso por meio de um processo de posse
Não sei nada, senhor, a não ser que estou a receber absoluta?
pancada. Drômio DE SiRACUSA* Sim, protestando pela
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Desejas que ta revele? posse de uma peruca, para ficar de posse dos cabelos
Drômio DE SIRACUSA * Perfeitamente, senhor, e de outra pessoa.
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ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por que motivo o Tempo te distraía, nada te causava


é tão sovina de cabelo, quando é certo que este cresce prazer ao tacto, ao paladar comida
com tanta liberalidade? nenhuma te sabia, senão minha
Drômio DE SiRACUSA - Isso é bênção que ele fala, e o conspecto meu, o meu contacto,
reserva aos animais; o que ele nega aos homens em e o assado que por minha mão te dava.
cabelo, dá-lhes em inteligência. Que aconteceu, querido esposo, para
ANTÍFOLO DE SIRACUSA : É por esse motivo que estranho, assim, ficasses de ti mesmo?
que muita gente é dotada de mais cabelo do que Sim, de ti mesmo, disse, pois te encontras
inteligência. afastado de mim, que inseparável
Drômio DE SIRAcUsA — Mas não há quem tenha sendo de ti, me considero ainda
inteligência para perder o cabelo. melhor que a melhor parte de ti mesmo.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Concluíste há pouco que Pois sabe, meu amor: fora mais fácil
as pessoas de muito cabelo são lorpas destituídos de no mar deitares uma gota de água
espírito. para, intacta, depois a recolheres,
Drômio DE SIRACUSA - Quanto mais lorpa, mais sem adição nenhuma ou qualquer perda,
cabelo perde; contudo, perde sempre com alegria. do que sem mim de mim te retirares.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* E a razão disso? Como ficaras no âmago ferido
Drômio DE SIRACUSA - São duas as razões, senhor, se, quando nada, alguém fosse contar-te
e ambas de peso. Antífolo de Siracusa — De peso é que eu era licenciosa e que este corpo
que não devem ser. a ti, só, consagrado, ora poluído
Drômio DE SiRACUSA Razões seguras, pelo pela bestial luxúria se encontrava?
menos. Em tua indignação, não me cuspiras,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Dize quais são elas. aos pés não me calcaras, nestas faces
DrôMmio DE SIRACUSA À primeira é economizar não jogaras o nome de marido,
o dinheiro que deveria gastar com o penteador; a não me rasgaras a manchada cute
segunda, ficar livre de lhe cair o cabelo na sopa. da fronte infiel, e desta mão perjura
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Durante todo esse a aliança nupcial não arrancaras,
tempo, queríeis provar que não há tempo para tudo. com a maldição quebrando-a do divórcio?
Drômio DE SIRACUSA * E consegui-o, senhor, a Sei que o farias. Pois então não tardes:
saber: não há tempo para recuperarmos o cabelo a mancha do adultério em mim se alastra;
perdido pela natureza. trago no sangue o crime da luxúria,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Mas não apresentaste pois se ambos somos um, e prevaricas,
razão substancial do porquê de não haver tempo de na carne trago todo o teu veneno,
recuperá-lo. por teu contágio me tornando impura.
Drômio DE SiRACUSA * Então, corrijo em tempo: Ão nosso leito, pois, sê infiel aliado;
por ser calvo o Tempo, há de ter até ao fim do mundo só assim serei pura e tu honrado.
seguidores calvos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Previa que a conclusão ia Falais comigo, mui graciosa dama?
ser calva. Mas, devagar: quem é que nos está a fazer Não vos conheço, pois há duas horas
sinais dali? que a Éfeso cheguei, tão estrangeiro
(Entram Adriana e Luciana.) à cidade como a isso que dissestes.
ADRIANA" Sim, sim, Antífolo, o conspecto franze, Sou de espírito parco de recursos
lança-me olhar severo. À outras mulheres para entender sequer vossos discursos.
dedica só blandícias. Tua esposa Luciana: Ora, irmão! Pode o mundo mudar tanto?
não sou; não sou Adriana. Houve já tempo Quando a mana trataste desse modo?
em que espontaneamente me juravas Ela mandara te chamar por Drômio...
que nenhuma palavra te era música ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por Drômio?
aos ouvidos, os olhos coisa alguma Drômio DE SIRACUSA * Por mim?

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ADRIANA Por ti... E esta resposta me trouxeste: Estamos num país de fadas lindas,
que ele te esbofeteara e, com seus golpes, de elfos, corujas, de ilusões infindas.
dissera não ser dele a minha casa Façamos-lhe a vontade; do contrário,
e que eu consorte sua jamais fora. nos chupa o sangue espírito nefário.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Luciana:
Conversaste, senhor, com esta senhora? Por que não andas, peste? Vamos, Drômio;
Qual a intenção de toda esta conjura? não me mudes a casa em manicômio.
Drômio DE SIRACUSA* Drômio DE SIRACUSA*
Eu, senhor? Nunca a vi até este instante. Fui transtornado, mestre? Eu não sou eu?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Mentes, vilão! Que há pouco, no mercado, Foste, sim; eu também já não sou eu.
me transmitiste esse recado mesmo. Drômio DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA* Não valho, como gente, um só pataco.
Eu nunca lhe falei em toda a vida. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* À forma ainda conservas.
Como sabe ela, então, o nosso nome? Drômio DE SIrRACUSA * De macaco.
Só se é inspiração. Luciana — Se em algo te mudaste, foi em burro.
ADRIANA * Como desdiz de tanta gravidade Drômio DE SIRACUSA*
desta arte conchavar com vosso escravo É certo; ela me dá capim e eu zurro.
e espicaçá-lo a me fazer pirraças! Se habituado eu não fosse a levar sela,
Seja embora eu culpada de tudo isso, saberia também o nome dela.
não me façais assim tão mau serviço, ADRIANA: Basta! Basta! Não mais hei de portar-me
aumentando com vossa zombaria como uma tola, que a mão leva aos olhos
a imensa dor que a vida me abrevia. para chorar, enquanto o amo e o criado
De vós não mais me afastarei... Oh! Ride! de minha dor se riem.Já está pronto,
Sois o olmo, meu marido; eu, vossa vide, senhor, nosso jantar. Drômio, de guarda
cuja fraqueza à vossa força aliada ficarás no portão. Hoje, marido,
em rijeza transforma-se acendrada. jantaremos em cima; hei de obrigar-vos
Entre nós não há linha divisória, a me contar as vossas peraltices.
se não for, tão-somente, a vil escória Ouve, malandro: caso alguém procure
da turba parasita: erva daninha, teu patrão, dize que ele jantou fora,
musgo e o mais que no tronco cresce asinha, Veda a todos a entrada. Mana, vamos.
e que, por falta de desbaste e corte, Drômio, tu ficarás como porteiro.
te causa confusão e te dá morte. ANTÍFOLO DE SIRACUSA (à parte) -
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Isto é céu, terra, ou inferno verdadeiro?
Fala comigo; sinto-me abalado... Durmo ou velo? Sou louco ou tenho juízo?
Em sonhos, pois, tê-la-ia desposado? Meu nome ela repete com um sorriso.
Ou durmo, ainda, e penso ouvir tudo isto, Pouco importa; vejamos se isto dura;
julgando ver o que jamais hei visto? com ela embarcarei nesta aventura.
Enquanto certa for esta incerteza, Drômio DE SIRACUSA*
deterei a ilusão com mais firmeza. Mestre, é força que eu faça de porteiro?
Luciana Drômio, vai pôr a mesa com os criados. ADRIANA" Se queres conservar o coco inteiro.
Drômio DE SIRACUSA* Luciana: Vamos, Antífolo; o jantar primeiro.
Oh Deus do céu, perdoai os meus pecados! (Saem.)

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Ato HI - Cenal
Diante da casa de Antíolo de Éfeso. Quando avaro é o hospedeiro e o convidado doente.
Entram Antífolo de Éfeso, Drômio de Efeso, Ângelo e Baltasar: No entanto, se primor não for minha comida,
ao menos com prazer vos será oferecida.
ANTÍFOLO DE ÉrESO * A porta está fechada? Abri-la manda asinha.
Desculpai-me, meu caro senhor Ângelo, Drômio DE ÉrEsO
mas minha esposa fica atrabiliária, Brígida, Madalena, Bárbara, Joaninha!
quando fora de casa eu me demoro. Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Dizei-lhe que ficamos distraídos Cretino, idiota, alarve, estúpido, demente!
na oficina, a admirar vossa perícia, Vai-te embora, ou, calado, senta-te ao batente.
na confecção de sua gargantilha, Por que chamar um bando, assim, de servas tontas,
que amanhã lhe trareis sem falta à casa. quando uma já é demais? Pensas que me amedrontas?
Ora vede, afirmou-me este malandro DrôMiIO DE ÉrESO *
que me havia encontrado no mercado, Quem é que em nossa casa ora faz de porteiro?
que lhe bati e reclamara, instante, Ficar aqui não pode o mestre o dia inteiro.
mil marcos de ouro; enfim, que renegara Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
minha esposa e meu lar. Então, borracho, Ora, que vá pescar! Deixe de cretinismo;
que pretendias ao dizer aquilo? se não, com o frio os pés apanham reumatismo.
Drômio DE ÉrEso ANTÍFOLO DE ÉrESO *
Dizei, senhor, embora o que vos agradar, Abre logo! Ou uma tunda esperas que eu te dê?
mas os sinais da sova eu poderei mostrar. Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Fosse eu de pergaminho e vossa mão de tinta, Abrir, caro senhor? Falta saber por quê.
leríeis vossa firma em letra mui distinta ANTÍFOLO DE ÉFESO *
e poderíeis ver o que de vós eu penso. Por quê? Para jantar. De fome estou varado.
ANTÍFOLO DE ÉFESO - Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Penso que sois um asno. Então ide a outra parte; aqui já houve assado.
Drômio DE ÉrEso : Aliás mostrais bom senso, ANTÍFOLO DE ÉFESO *
que outra coisa não é quem, por causa de nada,
Quem és, que assim me pões de minha casa fora?
agúenta o dia todo impropério e pancada.
Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Mas se asno puro eu sou, convém terdes cuidado,
Drômio, caro senhor, gentil porteiro agora.
porque não vos alcance um coice delicado.
DRÔMIO DE ÉrESO *
ANTÍFOLO DE ÉrESO
Roubaste-me, vilão, o ofício e o próprio nome.
Triste me pareceis, meu caro Baltasar;
Aquele me valeu estar morrendo à fome;
mas ficareis alegre à mesa do jantar.
o outro me rende mais: pancada e insultos a esmo.
BaLTASAR* Com tanta gentileza, é o que eu posso
Mas se tivesse sido, há pouco, Drômio mesmo,
esperar.
por outro nome o teu terias já trocado
ANTÍFOLO DE ÉFESO
e desejaras ser mero asno do mercado.
Peixe e carnes, amigos, esplendem mais à mesa;
muita conversa é indício, às vezes, de avareza.
Lúcia (dentro) * Drômio, que barulheira é essa no
BaLTASAR * Banal coisa é comida; a boa prosa é rara. portão? Quem bate assim?
Drômio DE Éreso
ANTÍFOLO DE ÉrESO
Mas uma mesa escassa a boca torna amara. É o mestre, Lúcia; abres ou não?
BaLTASAR* À gentileza à mesa é hóspede eloquente. Lúcia (dentro) *
ANTÍFOLO DE ÉFESO- Chegou tarde demais. Vai; dize ao patrão isso.

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Drômio DE ÉrEsO- Nós gememos cá fora, enquanto na lareira,


Só rindo muito, oh Deus! De tanto rebuliço. lá dentro, o fogo estrala: é bela a brincadeira.
Mas conheceis, acaso, um dito muito certo, ANTÍFOLO DE ÉFESO
de que uma boa sova, às vezes... Vou arrombar a porta e a todos dar o troco.
Lúcia (dentro): Oh! decerto! Drômio DE SIRACUSA (dentro) :
«faz esquecer a fome a quem não vê comida. Vinde, que eu vos prometo abrir em dois o coco.
Drômio DE SIRACUSA (dentro) * Drômio DE ÉrEso-
Se tu te chamas Lúcia, oh Lúcia, és bem sabida! Fácil é prometer; mas com facilidade
ANTÍFOLO DE ÉrESO não se transforma em ato um soco de verdade.
Pequena, não me ouviste? Aqui fala o patrão. Drômio DE SIRACUSA (dentro) *
Lúcia (dentro) - Vejo que de apanhar tu tens muita vontade.
Já vos perguntei isso. Drômio DE ÉrEsO
Drômio DE SIRACUSA (dentro) - Vamos, deixa-me entrar; quero ir até à cozinha.
E vós dissestes “não”. . Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
DRôMiOo DE ÉFESO- Pois não, caro senhor; mas só quando a galinha
Boa resposta, agora; estamos mão por mão. penas já não tiver e o peixe reluzente
ANTÍFOLO DE ÉrEsO puder no mar viver sem guelras e contente.
Vamos, idiota, abri! ANTÍFOLO DE ÉFESO *
Lúcia (dentro)* Pois não, caro senhor; Vou arrombar a porta; arranja uma alavanca.
mas primeiro contai-me a causa desse ardor. Drômio DE ÉrEso-
Drômio DE ÉrEsO" Uma alavanca, mestre? Agora, sim, a tranca
Mestre, arrombai a porta. no gajo vai saltar e, como o seu peixinho
Lúcia (dentro) Assim; malhai de rijo. sem guelras, ele passa a bocejar sozinho.
ANTÍFOLO DE ÉrESO * ANTÍFOLO DE ÉrESO
Deixa, que, após abri-la, a prosa eu te corrijo. À alavanca! Depressa! Há muita urgência!
Lúcia (dentro) - BaLTASAR* Em tudo; amigo, é de mister paciência.
Se eu chamar pela guarda, ireis todos de embrulho. Com isso fazeis guerra à vossa própria
ADRIANA (dentro) * reputação, chamando para dentro
Drômio, que significa à porta esse barulho? do âmbito da malícia a honra impoluta
Drômio DE SIRACUSA (dentro) * de vossa digna esposa. À comprovada
Que posso eu vos dizer? Mas estranhar não há de prudência que lhe é própria, a alta virtude,
quem tiver visto o que eu já vi nesta cidade. os anos, a modéstia, valer fazem
ANTÍFOLO DE ÉFESO a seu favor alguma causa oculta
Esposa, quero ver-te; a fome não me importa. para tal proceder, a qual vos foge.
ADRIANA (dentro) * Não o duvideis, senhor, mas é certeza
Tua esposa, tratante? Afasta-te da porta. que ela vai desculpar-se, revelando-vos
Drômio DE ÉrEsO o motivo de estar fechada a porta.
Esse “tratante”, mestre, a honra vos deixa torta. Deixai que eu vos oriente neste passo.
ÂncELO : Não acharemos cá nem prosa nem Retirai-vos paciente; vamos todos
comida. jantar no Tigre, e quando já for noite,
BaLTASAR* E nós a discutir qual fosse a preferida! sozinho voltareis para saberdes
Drômio DE ÉrEso - a razão desta insólita recusa.
Mandai-os, mestre, entrar, que a fome é desabrida. Se vos dispondes a empregar violência
ANTÍFOLO DE ÉFESO * numa ocasião de tanto movimento,
Há qualquer coisa no ar que nos impede a entrada. hão de surgir, por certo, comentários
Drômio DE ÉrEsO que, pela turba ignara propalados,
Com essa capa, mestre, o frio é quase nada. a despeito do vosso nome limpo,

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acolhida acharão por toda parte, tem feito cenas de ciúme incríveis.
até mesmo na vossa sepultura, Vamos jantar com ela. (A Ángelo.) Ide a cadeia
quando já não viverdes. Que a calúnia, buscar em vossa casa, pois já deve
como bens transmitidos por herança, estar pronta, e levai-a ao Porco-espinho
sempre cresce onde venha a encontrar ansa. que é onde mora a mulher de que vos disse.
ANTÍFOLO DE ÉrEsO- Vou dar-lhe essa cadeia, mas que seja
Tendes razão; vou retirar-me quieto só para minha esposa ficar fula.
e, embora a contragosto, hei de esforçar-me Nossa hospedaria ganhará o presente.
por parecer alegre. Ora me lembro Ide, senhor; não percais tempo: há urgência.
de uma donzela de agradável prosa, Já que meu lar se me tomou imigo,
bonita, espirituosa, algo estouvada, verei se alhures bem-estar consigo.
mas, no fundo, gentil. Por causa dessa ÂnceLo : Pretendo lá chegar dentro de uma hora.
criatura minha esposa — sem motivos ANTÍFOLO DE ÉFESO
para isso, vos afirmo — muitas vezes Vai ficar cara a brincadeira... Embora!
(Saem.)

Ato HI: Cenall


O mesmo. mostraste que traidor foste ao seu leito;
Entram Luciana e Antíolo de Siracusa. bastarda fama alcaçará a vileza,
se de fraseado se valer com jeito.
Luciana : Como se dá que te hajas esquecido Pobres mulheres! Dai-nos a ilusão
dos deveres de esposo? Que a sincera de que somos realmente idolatradas;
floração de um amor tão belo e fido deixai a luva e retirai a mão,
tenha fanado em plena primavera? que inda vos perdoarão essas coitadas.
Na construção, o amor só faz ruínas? Voltai, por isso, mano, sem demora;
Se desposaste minha irmã somente ide falar com a mana e consolá-la,
pela sua riqueza e ora a abominas, que um halo santo a insensatez decora,
sê, ao menos, com ela mais clemente. quando promove paz tingida fala.
Se amas alhures, usa de cautela; ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
esconde o falso amor num manto escuro; Suave senhora, ignoro vosso nome,
não faças desses olhos a janela nem sei por que prodígio o meu soubestes,
por onde ela entreveja o seu futuro. a não ser que à beleza se vos some
Arauto da desonra não consintas algo de espírito e poder celestes.
que tua língua se torne; a deslealdade Ensinai-me a pensar, doce criatura;
se mascara com frases indistintas mostrai à minha inata grosseria,
que o sentimento revelar não há de. fraca, propensa a errar, de essência impura,
Sê de olhar meigo; ao vício dá aparência da vossa meiga voz toda a magia.
de álacre mensageiro da virtude; Por que lutais contra minha alma ingênua, -
guarda em todos os atos conveniência, levando-a por caminho não trilhado?
embora abrigues no imo o crime rude. Sois deusa? Desejais que de alma estrênua,
Ensina a santidade ao vício imundo; depois de eu renascer, fique dotado?
sê perjuro em segredo. Por que dares Então me transformai, que ao vosso encanto
de ti conhecimento a todo o mundo? nada terei a opor. Mas, se é verdade
Que malfeitor assume os próprios ares? que eu sou eu mesmo, o irreprimível pranto
Duplamente a ofendeste, quando, à mesa, de vossa bela irmã fazer não há de

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que eu me convença de que sou casado ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Que é que há, Drômio?
nem de que ao leito dela fui perjuro. Aonde vais com tanta pressa?
A vós é que me sinto agrilhoado; Drômio DE SIRACUSA * Reconheceis-me, senhor?
a vós, tão-só, me prende o amor mais puro. Sou Drômio, realmente? Sou vosso criado? Eu sou
Oh! não me arrastes, divinal sereia, eu mesmo?
com tua voz a perecer nas ondas ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Sim, és Drômio, és meu
que tua irmã provoca. À mágoa alheia criado, és tu mesmo.
não deve preocupar-nos. Não te escondas Drômio DE SIRACUSA * Pois eu sou um asno, sou
de minha vista; deixa que o teu canto criado de uma mulher e não estou em mim mesmo.
pleiteie a tua causa; a coma de ouro ANnTÍFOLO DE SIRACUSA * Que mulher, homem? E
sobre as ondas espalha, porque o espanto de que modo não estás em ti mesmo?
* me leve a cobiçar esse tesouro. Drômio DE SIRACUSA * Ora essa, não estou
E nesse leito, assim, acalentado em mim mesmo, por pertencer a uma mulher,
pela ilusão, encontrarei a morte, uma mulher que me reclama, uma mulher que me
sem maldizer, contudo, do meu fado: persegue, uma mulher que me quer para si.
que morra o leve amor, se não tem sorte. ANTÍFOLO DE SIRACUSA* E que direito ela se
Luciana * Que espécie de loucura vos domina? arroga, para te reclamar como dela?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Drômio DE SiRACUSA * O direito que poderíeis ter
Não é loucura; é a minha triste sina. sobre o vosso cavalo. Como besta legítima é que ela
Luciana: De vossos olhos nasce a causa disso. me quer, isto é, não por eu ser besta, de fato, mas por
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ser ela uma criatura bestial.
Por perto estardes, sol: eis o feitiço. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Quem é ela?
Luciana Contemplai minha irmã desventurada. Drômio DE SIRACUSA * Um corpo respeitável; sim,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* um desses corpos a que não nos podemos referir sem
Olhar a noite, amor, é não ver nada. acrescentarmos: salvo o vosso respeito. Tive sorte
Luciana * Não me chames de amor; sim minha mana. muito magra nesse enlace, apesar de se tratar de um
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * casamento extraordinariamente gordo.
A irmã da mana. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Que entendes por
Luciana: A mana. casamento gordo?
AnTtíroLO DE SirRACUSA* Oh desumana! Drômio DE Siracusa Ora, senhor, é porque se
És tu mesma, de mim a melhor parte, trata de uma cozinheira que é só enxúndia. Não sei
que dos meus olhos a visão reparte, de que modo utilizá-la, se não for aproveitá-la como
o coração mais caro deste peito, lâmpada para fugir dela, valendo-se de sua própria
minha sorte, meu único direito luz. Posso-vos afiançar que a sua rodilha ensebada
de entrar no céu, o céu de minha vida, poderia arder durante um inverno da Polônia. Se ela
quanto almeja minha alma, de atrevida. viver até o dia do Juízo final, há de arder uma semana
Luciana Dize isso tudo a minha irmã, somente. mais do que o mundo.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA * De que cor é ela?
Sê, pois, tua própria irmã, que, eternamente, Drômio DE Siracusa * Negra como estes sapatos,
terás aos pés meu coração rendido; mas de rosto não tão limpo, e isso por suar tanto, que
mulher não tenho; tu não tens marido. poderíamos patinhar com lama acima dos sapatos.
Dá-me a mão. ANTÍFOLO DE SIRACUSA : É defeito que se corrige
Luciana: Acalmai-vos um momento; com água.
vou da mana buscar o assentimento. Drômio DE SiRACUSA * Impossível, senhor; isso faz
(Sai) parte dela; nem todo o dilúvio de Noé chegaria para
(Entra Drômio de Siracusa, apressado.) limpá-la.

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ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como se chama? Não percas tempo; vai direito ao porto.
Drômio DE SIRACUSA * Vera, senhor; mas seu Se houver, acaso, vento favorável,
nome e três quartas, isto é, uma vara e três quartas Não passarei a noite na cidade.
não a alcançariam de uma a outra anca. se achares algum barco quase pronto
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Então é larga de verdade! para sair, volta depressa; eu fico
Drômio DE Siracusa * Não mede mais dos pés no mercado, passeando, à tua espera.
à cabeça do que de uma a outra cadeira; é esférica; Se todos nos conhecem, e eu ninguém,
parece um globo terrestre; eu seria capaz de demorar na cidade não convém.
encontrar nela todos os países do mundo. Drômio DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Em que parte do seu Como quem de urso foge e até da Morte,
corpo se encontra a Escócia? fujo eu de quem me quer para consorte.
Drômio DE SiRACUSA * Descobri-a pela (Sai)
esterilidade: fica na palma das mãos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a França? Neste lugar só moram feiticeiras;
Drômio DE SIRACUSA * Na fronte, senhor, armada é tempo de tratar de sair dele.
e em revolta, a guerrear os próprios cabelos. Aquela que me chama de marido
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a Inglaterra? não a aceita minha alma como esposa.
Drômio DE SIRACUSA * Procurei as escarpas Mas sua bela irmã possui tal graça,
calcárias, mas não encontrei nada branco. No tão soberano olhar, fala aprazível,
entanto, presumo que fique no queixo, pela umidade presença encantadora, que, por pouco
salgada que corre entre ela e a França. fiquei traidor de minha própria causa.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a Espanha? Antes de cometer ação tão feia,
Drômio DE SIRACUSA * Por minha fé, não a vi; mas ficarei surdo ao canto da sereia.
a senti pelo calor do hálito. (Entra Ângelo)
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* E a América? E as ÂnceLo - Mestre Antífolo!
Índias? ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SirAcUSA - Oh, senhor! No nariz, Pronto; assim me chamo.
inteiramente coberta de rubis, carbúnculos, safiras, ÂnceLo - Sei disso, meu senhor. Eis a cadeia.
inclinando a rica aparência para o hálito abrasador da Pensei em vos achar no Porco-espinho;
Espanha, que envia armadas sucessivas de galeões só demorei para acabar a obra.
para tomarem carga no nariz. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA: E a Bélgica e os Países- Que desejais que eu faça desse mimo?
Baixos, onde ficam? ÂnceLo- O que quiserdes; para vós foi feito.
Drômio DE Siracusa* Oh, senhor! Não olhei tão ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ,
para baixo, assim. Em suma, para concluirmos: esse Para mim? Sem o ter encomendado?
pesadelo, essa feiticeira alegou direitos sobre a minha ÂnceLo - Não uma vez, nem duas, mas duzentas.
pessoa; chamou-me de Drômio, jurou que eu era seu Fazei dela presente a vossa esposa;
noivo, enumerou sinais secretos que tenho no corpo, ao jantar vos farei uma visita,
tal como certa mancha numa das espáduas, um sinal para que me pagueis o meu trabalho.
no pescoço, uma grande verruga no braço esquerdo, ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
a ponto de eu fugir dela, tomado de espanto, como Então recebei logo o que vos devo,
quem foge de uma cigana. que é possível não mais pordes os olhos
Se eu carecesse de fé, sem possuir coração resistente, em cima da cadeia e do dinheiro.
ora cachorro seria, ou copeiro da bruxa potente. ÂNGELO - Sois muito espirituoso; passai bem.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* (Sai, deixando a cadeia.)
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ANTÍFOLO DE SIRACUSA* em plena rua ganha-se presente.


Não sei o que pensar disto, também. Vou esperar por Drômio no mercado;
Mas uma coisa é certa: ninguém há de havendo barco, fujo de bom grado.
recusar um tal mimo por vontade. (Sai)
Pelo que vejo, aqui, e aqui somente,

Ato IV: Cenal

Uma praça pública. que o nosso amor seria mais durável


Entram o segundo mercador, Ângelo e um oficial de justiça. nos liames da cadeia; e, assim, faltastes.
ÂnceLo Pondo de parte o vosso humor jocoso,
MercaDoR * Desde o passado Pentecoste a conta eis a nota do peso da cadeia,
me ficaste devendo, sem que a afronta té o último quilate. A qualidade
de vos cobrar té agora eu vos fizesse; do ouro e a mão-de-obra dispendiosa, soma
nem a faria ainda, se não fosse perfazem superior de três ducados
ter de ir à Pérsia e estar necessitado à que eu devo a este amável cavalheiro.
de florins para a viagem. Por tudo isso, Por isso vos suplico lhe pagardes,
dai-me satisfação; caso contrário, pois precisa viajar, só estando, agora,
este oficial tem ordem de prender-vos. a aguardar que eu a dívida liquide.
ÂnceLo - Antífolo me deve justamente ANTÍFOLO DE ÉrESO
a soma que eu vos devo. Neste instante Não tenho aqui dinheiro suficiente
deixei com ele uma cadeia de ouro, para essa conta. Além do mais, preciso
cujo importe às cinco horas será pago. fazer alguns negócios na cidade.
Se a bondade tiverdes de ir comigo Ide, meu bom senhor, com este estrangeiro,
até sua casa, saldarei a dívida à minha residência, sem deixardes
e me confessarei muito obrigado. de levar a cadeia. Minha esposa
(Vindo da casa da Cortesã, entram vos pagará a soma combinada.
Antífolo de Éfeso e Drômio de Éfeso.) É bem possível que cheguemos juntos.
OrrciaL : Poupai-vos do trabalho; ei-lo que chega. ÂnceLo Então vós mesmo levareis o mimo?
ANTÍFOLO DE ÉrESO ANTÍFOLO DE ÉrESO
Enquanto o ourives eu procuro, trata Não; levai-o vós mesmos; estou com pressa.
de comprar uma corda, cujas pontas ÂnceLo : Muito bem; a cadeia está convosco?
destino a minha esposa e seus comparsas, ANTÍFOLO DE ÉrESO
por me terem vedado, em pleno dia, Uma vez que comigo não se encontra,
a entrada em minha casa. Não demores; convosco está, decerto. Do contrário,
compra a corda depressa e leva-a a casa. força será voltardes sem dinheiro.
Drômio DE Éreso ÂnceLo - Por obséquio, senhor, dai-me a cadeia,
Comprarei uma renda de mil libras! pois este cavalheiro está com pressa,
Vou comprar logo a corda. que os ventos e a maré têm prazo certo.
(Sai) Para minha vergonha, já o retive
ANTÍFOLO DE ÉrESO - Bem aviado mais do que fora justo.
ficará quem em vós tiver confiança. ANTÍFOLO DE ÉrEso - Ora, senhor,
Dissestes que a cadeia levaríeis, lançais mão desse plano, como escusa
mas visita nenhuma me fizestes. por haverdes faltado com a palavra
Certamente não foste, por pensar de irdes ao Porco-espinho. À mim cabia


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censurar-vos a falta; ao invés disso, com quanto ouro tiverdes na oficina.


deblaterais como mulher furiosa. ÂnceLo Ora, senhor, hei de achar leis em Éfeso,
MercaDOR Senhor, as horas passam; vamos logo. não o duvido, para vosso opróbrio.
ÂnceLo : Bem vedes como agora ele se esquiva. (Entra Drômio de Siracusa.)
A cadeia... Drômio DE SIRACUSA
ANTÍFOLO DE ÉrEso-* Mestre, há no porto um barco de Epidamno,
Levai-a à minha esposa; que aguarda tão-somente o proprietário
ela vos pagará. para partir. Já pus a bordo toda
ÂNGELO Vamos com isso; nossa bagagem. Comprei óleo, bálsamo
sabeis que eu vo-la dei faz pouco tempo. e aqua-vitae. De jeito está o navio;
Dai-me um sinal qualquer, ou devolvei-a. sopra fresco de terra o alegre vento.
ANTÍFOLO DE ÉFESO * Só a vós e ao dono, mestre, eles aguardam.
Ora, a pilhéria passa dos limites. ANTÍFOLO DE ÉFESO *
À cadeia, senhor! Deixai-me vê-la. Que é isso? Estás maluco? Que navio
MercaDOR * Não tenho tempo para tais parlendas. de Epidamno por mim está esperando?
Dizei-me, bom senhor, vosso propósito: DrôMio DE SIRACUSA *
pagais ou não? No caso de recusa, O navio, senhor, que me incumbistes
farei que este oficial o leve preso.
ANTÍFOLO DE ÉFESO- de procurar para comprar passagem.
Eu pagar-vos? Dizei: quanto vos devo? ANTÍFOLO DE ÉrESO
ÂncELO : O preço, justamente, da cadeia. Bêbedo, o que eu mandei foi que comprasses
ANTÍFOLO DE ÉrESO* uma corda e te disse para o que era.
Nada vos devo, enquanto não for minha. Drômio DE SIRACUSA
ÂnceLo Sabeis que vo-la dei há meia hora. Corda? Nenhuma corda me pedistes.
ANTÍFOLO DE ÉrEsO O que mandastes foi que eu visse um barco.
A mim não destes nada; isso me ofende. ANTÍFOLO DE ÉFESO *
ÂnceLo : Mais me ofendeis, senhor, negando o fato. Com mais vagar resolverei o assunto
Considerai que nisso empenho o crédito. e ensinarei a ouvires o que deves.
Mercapor" Muito bem. Oficial, por queixa minha, Procura Adriana, biltre, sem demora;
prendei-o sem demora. dá-lhe esta chave; dize-lhe que dentro
OFICIAL DE JusTIÇA * Agora mesmo. da gaveta da mesa recoberta
Em nome, pois, do duque, obedecei-me. pelo tapete turco há uma bolsa
ÂnceLo : Minha reputação sofre com isso. cheia de moedas de ouro. Que ma envie
Ou me pagais o preço da cadeia, por ti, depressa. Conta-lhe que me acho
ou vos farei prender in continenti. detido em plena rua e que preciso
ANTÍFOLO DE ÉrESO * pagar uma caução. Não te demores;
Consentir em pagar o que não devo? detido esperarei tempos melhores.
Manda prender-me, estúpido, se o ousares. (Saem o mercador, Ângelo
ÂnceLo : Oficial, eis o vosso emolumento; eo oficial de justiça.)
prendei-o a meu pedido. Em circunstâncias Drômio DE SIRACUSA-* .

como esta, ao próprio irmão eu não poupara, Essa Adriana é da casa em que jantamos
se tentasse ofender-me assim de público. e onde a tal Dosabel me reclamava
OFICIAL DE JUSTIÇA para marido. Mas é muito grande,
Estais preso, senhor; a queixa ouvistes. penso, para cingi-la nestes braços.
ANTÍFOLO DE ÉFESO* Contudo, irei, embora a contragosto;
Sim, obedeço até pagar a fiança. servo é soldado que não larga o posto,
Mas, por Deus, pagareis a brincadeira (Saí)

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Ato IV - Cenall
Um quarto em casa de Antífolo de Éfeso. pôs sobre ele a mãozinha, um desses homens
Entram Adriana e Luciana. de peito duro abotoado de aço.
Um duende, um lobo, um monstro de esconjuro,
ADRIANA: Ah, Luciana, ele teve esse descoco? um sujeito envolvido em couro duro,
Lia-se-lhe no olhar que era sincero? enredador, traiçoeiro-mor, pisa-mansinho,
Estava são? Não parecia louco? que aos homens veda a praça, as ruas e o caminho,
No que disseste acreditar não quero. que parece perder o rasto a toda gente,
Refletia no rosto a luta, acaso, mas nas chamas do inferno os lança eternamente.
dos meteoros do peito em campo raso? ADRIANA: Mas, afinal, que há?
Luciana: Primeiro asseverou não ser casado. Drômio DE SIRACUSA —
ADRIANA Mais, com isso, ele aumenta o meu cuidado. O que há, não sei dizer; sei que ele está na grade.
Luciana: Depois jurou que aqui era estrangeiro. ADRIANA: Como! Está preso? À intimação de quem?
ADRIANA: Perjuro agora, como o foi primeiro. Drômio DE SIRACUSA*
Luciana: Depois, falei de vós. Não sei que intimação o pôs em tal agrura;
ÁDRIANA* E ele, que disse? só sei que o intimador tem farda muito dura.
Luciana: Que a mim, só, amava; o mais era tolice. Urge que lhe mandeis a bolsa da gaveta.
ADRIANA" De que modo falava esse demente? ADRIANA: Vai buscá-la.
Luciana: Se fosse honroso o pleito, convincente. (Sai Luciana.)
Não sei que pensar disso.
Elogiou-me a beleza; após, a fala.
ADRIANA" E tu, que lhe disseste? Vamos; fala. Tinha dívidas e eu sem saber nada.
Conta o resto: foi posto na cadeia?
Luciana: Calma, te peço; é de mister paciência.
Drômio DE SIRACUSA*
ARIANA: Calma não posso ter nesta premência.
É isso, uma cadeia; de aparência
Se não do peito, ao menos hei de o gosto
mais aprazível, mas cadeia, em suma.
fazer da língua. Antífolo é mal posto,
Não ouvistes soar?
feio, velho, corcunda, deformado,
ADRIANA * Quê? À cadeia?
de feições horrorosas, rosto inchado, Drômio DE SIRACUSA*
viciado, bruto, de maldade infinda,
Cadeia, não; o sino! É tempo de ir-me embora;
de corpo horrendo e mente pior ainda. às duas o deixei; ouvi bater uma hora.
Luciana * Quem ciúmes pode ter de tal marido? ADRIANA: Para trás anda o tempo. Oh coisa singular!
Ninguém um mal lastima, se perdido. Drômio DE SIRACUSA*
ADRIANA * Não é assim que o descreve o meu carinho. Se a hora encontra um sargento, o medo a faz recuar.
Se outros olhos o vissem desse jeito! ApRrIANA: Tem dívidas o tempo! Oh, como falas
O abibe chora, quando perde o ninho. certo!
À língua o insulta, mas o adora o peito. Drômio DE SIRACUSA*
(Entra Drômio de Siracusa.) O tempo está falido, a ruína já anda perto.
Drômio DE SIRACUSA* E mais: é um bom gatuno, à espreita e de vigia;
Vamos! Depressa! A bolsa da gaveta! manso se escoa à noite e devagar de dia.
Luciana Por que corres assim? Se o sargento o persegue e os bens tem em penhora,
Drômio DE SiRACUSA * Não sou perneta. que muito que se atrase em cada dia uma hora?
ADRIANA" Onde está teu patrão, Drômio? Não vem? (Volta Luciana.)
Por que demora tanto? Ele está bem? ADRIANA Eis o dinheiro, Drômio; vai depressa
Drômio DE SIRACUSA- e traze o teu senhor já para casa.
Sim, no limbo do Tártaro, no Áverno; De um pensamento, irmã, estou possessa,
muito pior ali do que no inferno. que ora me deixa fria, ora me abrasa.
Um demônio de vestes permanentes (Saem.)

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Ato IV : Cenalll
Uma praça pública. responsabilidade as pessoas que não pagam as suas
Entra Antifolo de Siracusa. obrigações e que diz a toda a gente: “Deus vos dê
bom repouso”, como se todo o mundo estivesse no
ANTÍFOLO DE SIRACUSA"* ponto de ir para a cama.
Não encontro ninguém nesta cidade ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Muito bem, senhor;
que não me cumprimente como a velho ponde remate a essas tolices. Nenhum navio zarpará
conhecido. Meu nome todos sabem. esta noite? Saímos ou não desta cidade?
Uns, dinheiro de empréstimo oferecem; Drômio DE SIRACUSA * Como não, senhor! Há
outros me invitam para cearmos juntos; uma hora vos disse que o barco “Velocidade” partirá
muitos se mostram gratos por finezas esta noite, justamente quando o sargento vos deteve
que eu lhes houvesse feito; outros insistem e vos obrigou a aguardar a chalupa “Retardo”. Aqui
por que lhes compre as mais variadas coisas. estão os anjos que me mandastes buscar, para que
Em sua loja, há pouco, um alfaiate vos livrassem.
me fez entrar, para mostrar-me sedas ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
que para mim comprara e, sem delongas, Este velhaco está louco de todo,
tomou minhas medidas. Com certeza tal como eu. É ilusão tudo o que vemos.
tudo isso é fantasia; aqui residem,
Daqui nos tire algum poder celeste!
decerto, os feiticeiros da Lapônia.
(Entra uma cortesã.)
(Entra Drômio de Siracusa.)
CorrTEsÃ: Mestre Antífolo, salve! Vejo agora
Drômio DE SIRACUSA*
que encontrastes o ourives, finalmente.
Eis o dinheiro, mestre, que pedistes.
É essa a cadeia que me prometestes?
Mas, como conseguistes ver-vos livre
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
do retrato do velho Adão de farda?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA"* Retira-te, Satã! Não me persigas.
Dinheiro que eu pedi? Que Adão é esse? Drômio DE SIRACUSA * Mestre, essa é a senhora
Drômio DE SIRACUSA * Não me refiro ao Adão que Satã?
guardava o paraíso, mas ao Adão que é guarda da ANTÍFOLO DE SIRACUSA * É o diabo.
cadeia, o que se veste com a pele do bezerro matado Drômio DE SIRACUSA*
para o filho pródigo, o que marchava por trás de vós, Não, é pior do que isso: é a avó do diabo, que nos
senhor, como anjo do mal e vos intimou a abandonar aparece sob a forma de uma meretriz leve; de aí
a liberdade. o costume de dizerem as meretrizes: “Deus me
ANTÍFOLO DE SIRACUSA : Não te compreendo. dane!” que é como se dissessem: “Deus faça de
Drômio DE SiRACUSA : Não? Pois é muito simples: mim uma donzela leviana!” Está escrito que elas
refiro-me ao sujeito que anda como um rabecão, aparecem aos homens como anjos leves de luz. Ora,
numa caixa de couro; o indivíduo, senhor, que dá a luz é uma consegiiência do fogo, e o fogo queima.
empurrões nos cavalheiros fatigados e os obriga Logo, as donzelas levianas queimam. Não vos
a repousar; o mesmo que se apiada das pessoas aproximeis dela.
arruinadas e lhes arranja um fato indesfiável; é o CorTESÃ - Vosso criado, senhor, e vós estais
tal, em suma, que se gaba de fazer mais piruetas hoje muito espirituosos. Não quereis vir comigo?
com a sua clava do que os dançarinos com a lança Poderemos comprar aqui perto alguma coisa para
mouresca. cearmos.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como assim? Referes-te Drômio DE Siracusa- Mestre, se fordes cear e
a algum oficial de justiça? houver probabilidade de tomardes sopa, muni-vos de
Drômio DE SIrrRACUSA * Perfeitamente, senhor, uma colher comprida.
ao sargento dos títulos, o mesmo que chama à ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por quê, Drômio?

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À COMÉDIA DOS ERROS

Drômio DE SIRACUSA * Ora, porque quem come Drômio DE SIRACUSA*


com o diabo precisa ter uma colher comprida. Disse o pavão: que orgulho! Ouviste-lo, senhora?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* (Saem Antífolo de Siracusa e
Demônio, para trás! Por que o convite Drômio de Siracusa.)
para cearmos? Como as outras todas, CorTESsà - Não há dúvida: Antífolo está louco;
és uma bruxa. Assim, eu te conjuro se não, não se aviltara desse modo.
a me deixares e ires daqui logo. Ficou com meu anel que vale cerca
CoxrEsà : Dai-me o anel que ao jantar me arrebatastes, de quarenta ducados, prometendo
ou, em troca, a cadeia prometida, que em paga me daria uma cadeia.
que eu sairei, senhor, sem molestar-vos. No entanto, agora nega ambas as coisas.
Drômio DE SIRACUSA* À principal razão de o julgar louco,
Às vezes o demônio pede apenas sem falarmos no acesso de há momentos,
as aparas das unhas, um cabelo, se cinge à história singular que à mesa
uma gota de sangue, uma pevide do jantar me contou, de que se achava
de cereja, uma noz, um quase nada. impedido de entrar na própria casa.
Esta, porém, mais ambiciosa, pede Só se a mulher, por ver o seu estado,
somente uma cadeia... mandou fechar a porta de propósito.
Cuidado, mestre! Se lhe derdes isso, Só me resta o recurso de ir à casa
sacudindo as correntes, o demônio de Antífolo e contar à sua esposa
sem demora virá meter-nos medo. que ele, por ter ficado de repente
CorrEsÃ: Senhor, o anel, ou então dai-me a cadeia. desassisado, me invadiu a casa
- Não acredito que queirais lograr-me. e o anel me arrebatou. Sim, farei isso;
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* reaver o anel perdido é bom serviço.
Corre, Drômio, que é tempo. E tu, oh bruxa, fora! (Sai)

Ato IV. Cena IV


Uma rua. Drômio DE ÉrESO -
Entram Antífolo de Éfeso e um oficial de justiça. Aqui está o com que dar a eles todos
o troco suficiente.
ANTÍFOLO DE ÉrESO - ANTÍFOLO DE ÉrEso - E o meu dinheiro?
Nada temas, amigo, que eu não fujo. Drômio DE ÉrEso -
Antes de te deixar dar-te-ei a soma Ora, senhor, gastei-o nesta corda.
justa da minha fiança. Minha esposa ANTÍFOLO DE ÉFESO-
desde hoje está de gênio insuportável. Quatrocentos ducados pela corda?
Certamente não deu crédito fácil Drômio DE ÉrEso-
ao mensageiro que levou a notícia Com isso, quatrocentas vos comprara.
de que eu me achava em Éfeso detido. ANTÍFOLO DE ÉFESO-
Semelhante notícia — é o que vos digo — Que foi que eu te mandei buscar em casa?
lhe há de ter parecido muito estranha. Drômio DE ÉrEso-
(Entra Drômio de Éfeso com uma corda.) Uma corda, senhor; eis-me de volta.
Meu criado vem vindo. Com certeza ANTÍFOLO DE ÉrEsO-
traz o dinheiro. Então, senhor, trouxestes Recebe, então, de volta este presente.
a encomenda de que eu vos incumbira? (Bate-lhe.)

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OricIAL DE JusTIÇA * Senhor, tende paciência. ANTÍFOLO DE ÉrEso - Cala-te, feiticeiro impertinente!
DrôMio DE ÉrEsO- Não estou louco.
Paciência preciso eu, que estou apanhando. ÁDRIANA* Ah! quem nos dera mesmo,
OriciAL DE Justiça: Filho, detém a língua. pobre alma atribulada!
Drômio DE Éreso : Mandai, então, que ele ANTÍFOLO DE ÉrEso : Então, faceira,
detenha o braço. todos estes são vossos habituados?
ANTÍFOLO DE Éreso : Descarado! Vilão insensível! Este tipo de cara de açafrão
Drômio DE ÉrEso - Desejara ser insensível, senhor, jantou hoje convosco em minha casa,
para não sentir vossas pancadas. enquanto entrada nela me negavam
ANTÍFOLO DE ÉrEso - Só és sensível à pancada, tal as criminosas portas?
qual um asno. ÁDRIANA* Oh, marido!
Drômio DE Éreso - Sou um asno, realmente; e a Deus sabe que hoje tu jantaste em casa.
prova são estas orelhas compridas. Eu o servi desde Se houvesses lá ficado, ora estarias
o dia de meu nascimento até hoje, não tendo recebido livre do opróbrio e de tão grande escândalo.
em pagamento senão pancada. Quando estou com ANTÍFOLO DE ÉFESO-
frio, ele me aquece com pancada; quando estou quente, Jantei em casa? Biltre, que respondes?
ele me esfria com pancada; se durmo, é com pancada Drômio DE Éreso-
que ele me esperta; se me sento, com pancada me faz
Senhor, para ser franco, não jantastes.
levantar; quando saio à rua, é com pancada que ele me ANTÍFOLO DE ÉFESO *
faz atravessar a porta, sendo, também, com pancada
Não nos foi impedida a entrada? À porta
que me dá as boas-vindas. Carrego as pancadas nos não estava trancada?
ombros, como os mendigos os seus fedelhos, e estou
DRrôMio DE ÉrEsO * Justamente;
certo de que, quando ele me deixar aleijado, terei de
fechada a porta, e vós deixado fora.
mendigar com elas de porta em porta.
ANTÍFOLO DE ÉrESO -
AnTÍFOLO DE ÉrEso: Vamos saindo daqui, que
E ela, não me atirou baixos insultos?
minha mulher já chega.
DRÔMIO DE ÉFESO-
(Entram Adriana, Luciana, a cortesã e Pinch.)
Sans fable, vos lançou baixos insultos.
Drômio DE ÉrEso - Senhora, respice finem, atenção
ANTÍFOLO DE ÉFESO-
ao fim! Ou melhor, como diz o profeta e o papagaio:
De mim não riu a sua cozinheira,
Cuidado com o fim da corda!
não me insultou, não me cobriu de chufas?
ANTÍFOLO DE ÉrEsO - Ainda te pões a falar?
Drômio DE ÉrEso-
(Bate-lhe.)
CorTESÃ* E agora, que dizeis? Não está louco? Certes, tudo isso fez a vestal cuca.
ADRIANA É o que faz crer a sua grosseria. ANTÍFOLO DE ÉFESO"
Meu caro Doutor Pinch, sois exorcista; E não me retirei de lá, furioso?
restituí-lhe a razão, é o que vos peço, Drômio DE ÉrEso -
e obtereis de mim tudo o que quiserdes. Isso mesmo; comprovam-no meus ossos,
Luciana - Oh, como ele olha furibundo e firme! que as marcas ainda têm de vossa fúria.
CorrEsà : Vede como a loucura o deixa trêmulo. ApRrIANA: Será prudente concordar com ele?
PrncH * Quero sentir o pulso; dai-me a mão. PrncH : Não há mal; o velhaco tem consciência
ANTÍFOLO DE ÉFESO do estado do patrão, e, concordando
Aqui está a mão; senti no ouvido o pulso. com ele, contribui para acalmá-lo.
(Bate-lhe.) ANTÍFOLO DE ÉrESO-
PrncH Satã que habitas este corpo, intimo-te O ourives subornastes e fui preso.
a obedecer às minhas santas preces AprIANA* Oh, Deus do céu! Para livrar-te logo,
e voltar sem demora para as trevas. mandei por Drômio quanto me pediste,
Pelos santos do céu, eu te conjuro! quando, a correr, buscar foi ele a bolsa.

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Drômio DE Éreso- PincH Atai também o criado; está maluco.


Por mim? Dinheiro? Só se foi em sonho. (Amarram Drômio de Éfeso.)
Certamente pensastes em fazê-lo; ADRIANA Oficial insensato, que pretendes?
mas nem um real, um real sequer me destes. Tens alegria à vista de um coitado
ANTÍFOLO DE ÉFESO- que a si mesmo se ultraja e faz violência?
Não foste procurá-la, porque a bolsa OrIcIAL DE JusTIÇA:
de ducados te desse? Ele é meu prisioneiro; se o levardes,
ADRIANA: Foia casa, de mim exigirão quanto ele deve.
e logo eu lha entreguei. ADRIANA: Antes de ir, desobrigo-te de tudo.
LucianA* Sou testemunha Leva-me ao seu credor, para que eu saiba
de que é verdade o que ela está dizendo. quanto ele deve e a dívida resgate.
Drômio DE Éreso — Meu bom mestre doutor, levai-o a casa
Deus e o cordeiro sejam testemunhas com toda a segurança. Oh dia infame!
de que eu tive a incumbência, tão-somente, ANTÍFOLO DE ÉFESO * Oh prostituta infame!
de ir comprar uma corda. Drômio DE ÉrEso
PrncH* Estão possessos Mestre, por vós me vejo agora preso.
ambos, minha senhora: o amo e o criado. ANTÍFOLO DE ÉrESO *
Na palidez do rosto o reconheço, Cala-te, biltre, que me deixas louco.
na maneira de olhar. Será preciso Drômio DE ÉrEsO
amarrá-los e os pôr em quarto escuro. Quereis que vos amarrem sem motivo?
ANTÍFOLO DE ÉrESO- Ficai louco e gritai: Aqui, diabo!
Fala: por que hoje me trancaste a porta? Luciana: Quanta tolice esses coitados dizem!
Por que não me trouxeste o saco de ouro? ADRIANA: Levai-os logo. Irmã, vinde comigo.
ADRIANA" Eu não te deixei fora, caro esposo. (Saem Pinch, os criados, Antífolo de Éfeso e Drômio de
Drômio DE ÉrEsO * Éfeso.) Dizei: à ordem de quem foi ele preso?
E a mim, caro patrão, não deram nada; OFICIAL DE JUSTIÇA *
mas concordo em que vós ficastes fora. De um tal Ângelo, ourives. Conhecei-lo?
AprIANA* Mentes, vilão dissimulado, tanto ApriANA* Conheço, sim; e a quanto monta a
num caso como no outro. dívida?
ANTÍFOLO DE ÉrEso* Prostituta OrIcIAL DE JusTIÇA*
dissimulada, és falsa em todos eles. À duzentos ducados.
Estás mancomunada com este bando ADRIANA" De que compra?
de desclassificados, para objeto OFICIAL DE JusTIÇA *
me fazeres de opróbrio. Mas com as unhas De uma cadeia que lhe encomendara vosso marido.
vou arrancar-te os olhos mentirosos, ADRIANA" Soube que ele havia
que com minha vergonha se divertem. feito a encomenda para mim; contudo,
ADRIANA" Oh, amarrai-o! Não deixeis que o faça! nunca vi a cadeia.
PrncH * Venha mais gente! O diabo é muito forte. CorTESÃ* Pouco tempo
Luciana: Que olhar! Como está pálido o coitado! depois de entrar, furioso, em minha casa
(Entram três ou quatro homens e amarram vosso marido e arrebatar-me a jóia —
Antífolo de Éfeso.) a mesma que lhe vi no dedo há pouco —
ANTÍFOLO DE ÉrEsO Ireis assassinar-me? com uma cadeia ao colo o vi de novo.
Carcereiro, deténs-me e ora permites que me ADRIANA: É bem possível; porém nunca a vi.
amarrem? Ão ourives levai-me, carcereiro;
OFICIAL DE JUSTIÇA * quero ficar a par de tudo o que houve.
Mestres, deixai-o livre; ele se encontra (Entram Antífolo de Siracusa e Drômio
sob minha guarda; não podeis prendê-lo. de Siracusa, com espadas desembainhadas.)
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Luciana Deus nos acuda! Estão de novo soltos! Vai ao Centauro e tira as nossas coisas.
ADRIANA" E de espadas na mão! Chamai mais gente, Não vejo a hora de entrarmos no navio.
para os prender. Drômio DE SrrACUSA * Ora, senhor, ficai mais esta
OFICIAL DE JUSTIÇA: noite; não nos farão nenhum mal. Bem vedes que nos
Vão nos matar; fujamos. dirigem palavras amáveis, dão-nos dinheiro... Parece
(Saem Adriana, Luciana e o oficial de justiça.) tratar-se de uma nação muito amável; se não fosse a
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* tal montanha de carne louca, que me reclama para
Pelo que vejo, as duas feiticeiras esposo, não importaria de viver aqui e virar bruxo.
a espada as amedronta. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA* À que queria Nem por toda a cidade eu passo a noite
ser vossa esposa, agora vos evita. neste lugar. Por isso, não demores:
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* vai logo pôr a bordo nossas coisas.
(Saem.)

Ato V - Cena l
Uma rua defronte da Abadia. grande prejuízo, pois a não ter sido
Entram o mercador e Ângelo. impedido por nossa controvérsia,
a estas horas se achara velejando.
ÂncELO: Fico triste por ter-vos retardado; Dei-vos essa cadeia, não é certo?
mas, em verdade, posso asseverar-vos ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
que lhe dei a cadeia, embora o negue Creio que sim; jamais neguei tal coisa.
por maneira tão fria e desonesta. Mercapor : Negastes, sim senhor, sob juramento.
MercaDOR* Em que conceito é tido na cidade? ANTÍFOLO DE SIRACUSA *
ÂnceLo- No mais alto; é de crédito infinito, Quem foi que ouviu, quando eu jurei tal coisa?
muito estimado, de impoluto nome; MercaDor"* Eu próprio o ouvi; bem sabes que é
na cidade é o primeiro, sempre, em tudo. verdade, miserável. Que opróbrio!
Uma palavra sua, em qualquer tempo, Teres vida
me faria empenhar toda a fortuna. para te ombreares com pessoas sérias!
MercaDOR* Falai baixo; ei-lo aqui, se não me engano. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
(Entram Antífolo de Siracusa e Não passas de um vilão, por me acusares
Drômio de Siracusa.) dessa maneira. Provarei minha honra
ÂNGELO * Justamente, e ao pescoço traz a mesma e minha honestidade agora mesmo,
cadeia que por modo tão monstruoso se tiveres o ousio de enfrentar-me.
negou ter recebido. Ficai perto Mercapor* Tenho, vilão! Aceito o desafio.
de mim; vou lhe falar. Senhor Antífolo, (Sacam das espadas. Entram Adriana, Luciana,
muito me admira o incômodo e a vergonha a cortesã e outros.)
que me causastes — não sem vos manchardes ApRIANA* Parai, por Deus!
algum tanto — por terdes protestado Não o firais! É louco!
sob juramento e com tamanho afinco, Segurai-o por trás! Tomai-lhe a espada!
não vos ter eu entregue essa cadeia Amarrai Drômio e a casa levai ambos.
que ao pescoço trazeis com tal descaso. Drômio DE SIRACUSA*
Além da queixa, da prisão, do opróbrio Mestre, corramos, pelo-amor de Deus!
por que passei, causastes a este amigo Procuremos abrigo em qualquer casa.

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Aqui perto há um convento; entremos nele; lhe dizia que ele era vil e mau.
do contrário, estaremos liquidados. ABADESSA * De aí ter acabado ele maluco.
(Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa se acolhem à Às queixas venenosas de uma esposa
Abadia. Entra a abadessa.) ciumenta são de efeito mais nocivo
ABADESSA * Boa gente, acalmai-vos. Por que causa do que dentada de cachorro louco.
vos reunis aqui? Parece que essas rixas o impediam
ApriANA: Paralevarmos de dormir; eis a causa de ter ele
meu infeliz marido, que está louco. ficado com o juízo perturbado.
Permiti-nos entrar, porque possamos Disseste que ele, às refeições, só tinha
amarrá-lo e levá-lo para casa, censuras por tempero. Ora, quem come
e ele a razão recuperar consiga. sem a calma precisa, não digere,
ÂnceLO :Percebi logo que ele não estava de onde se originarem grandes febres.
em seu perfeito juízo. E a febre que é, senão um grande acesso
MERCADOR Ora lastimo de loucura? Disseste que o repouso
ter lançado contra ele mão da espada. lhe perturbavas sempre com censuras.
ÁBADESSA * Há quanto tempo anda ele assim possesso? Quando o recreio ameno é perturbado,
ADRIANA Passou toda a semana fatigado, que se segue senão tristeza e funda
aborrecido, triste, nas menores melancolia, irmã do desespero
coisas muito outro do que ser costuma. mais inquieto e feroz? No rasto deste
Mas somente hoje à tarde a sua doença segue uma tropa imensa de moléstias,
chegou a esses acessos de loucura. de pálidas desordens, de inimigos
ÁBADESSA- da vida humana. À consegiiência é clara:
Não perdeu muitos bens nalgum naufrágio? perturbações à mesa ou no repouso
Não teria enterrado algum amigo? o mais cordato ser deixam furioso.
Acaso os olhos não lhe ensejariam Assim, foi tão-somente o teu ciúme
ao coração algum amor ilícito? que perturbou do esposo o claro lume.
É pecado fregiente nos mancebos Luciana Ela só o repreendia com brandura,
que dão aos olhos muita liberdade. e ele com voz lhe respondia dura.
Por qual destas razões sofre ele agora? Deixais tantas censuras sem resposta?
ADRIANA Por nenhuma, a não ser, talvez, pela última, ADRIANA"
algum amor que o desviou de casa. É que ela em mim faz despertar remorsos.
AÁBADESSA * Por isso, certamente, o repreendestes. Entrai, amigos, e amarrai-o firme.
ADRIANA Foi o que fiz, de fato. ABADESSA* Jamais; em minha casa ninguém entra.
ÁBADESSA Mas com modos. ADRIANA"
ADRIANA: Tanto quanto a modéstia o permitia. Dizei aos servos, pois, que o tragam logo.
ABADESSA * Em casa apenas, creio. ÁBADESSA*
ADRIANA: Não; na frente Não, que ele se acolheu a um lugar santo.
de estranhos umas vezes. De vossas mãos deve ficar seguro,
ABADESSA* Mas não muitas. té que a razão cu possa devolver-lhe,
ADRIANA Era o assunto de todas as conversas. ou desista do esforço, por inútil.
Tanto sobre isso eu lhe falava, que ele ADRIANA" Eu, só, quero tratar do meu marido,
mal podia dormir; quando na mesa ser a enfermeira na doença dele;
das refeições, de tanto eu falar nisso, nisso não quero ter quem me auxilie.
não provava bocado; quando estava Deixai, assim, que a casa mo conduzam.
só comigo, era o assunto que eu puxava; ÀABADESSA* Ficai calma. Impossível é entregá-lo
se tínhamos visitas, atirava-lhe sem lançar mão, primeiro, dos recursos
frequentes indiretas. À toda hora de que disponho: drogas benfazejas,

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xaropes, orações, porque consiga que o fez correr as ruas da cidade,


reconduzi-lo à dignidade humana. causando aos transeuntes mil incômodos
É ramo e parte do meu voto sacro, e entrando pelas casas, de onde jóias
caridoso dever da ordem que sirvo. tirava, anéis e o mais que lhe pudesse
Deixai-o, pois, comigo e ide tranquila. ser à fúria agradável. Pude, a custo,
ApRIANA: Não sairei daqui, deixando o esposo. mandá-lo para casa, enquanto eu própria
Não fica bem à vossa santidade procurava pagar os prejuízos
separar da mulher o seu marido. que, aqui e ali, sua fúria cometera.
ABADESSA * Não insistais, que dar-vo-lo não posso. Nisso, não sei por que violentos meios,
(Sai) pôde escapar dos guardas que o detinham
Luciana: Âo duque vos queixai dessa violência. e, juntamente com o criado louco,
ADRIANA" tomados ambos de um violento acesso,
Vou procurá-lo e aos pés prostrar-me dele de espadas nuas sobre nós caíram,
até que minhas lágrimas e preces a fugir nos forçando, até que auxílio
demovam Sua Graça a, pessoalmente, buscássemos de novo. Nesse ponto
entraram na abadia, onde os seguíramos,
tomar desta abadessa meu marido.
SecunDO MERCADOR: Se estou certo, o quadrante do
se a superiora a porta não fechasse,
relógio marca cinco horas, o momento exato
não permitindo que empós dele fôssemos
nem deixando que a casa o conduzissem.
de por aqui passar o próprio duque
Assim, determinei, gracioso duque,
para o vale da morte, o melancólico
nos seja ele ora entregue, porque eu possa
lugar da execução dos condenados,
levá-lo para casa e tratar dele.
um pouco além dos fossos da abadia.
Duque : Teu marido me serve há muito tempo
ÂNGELO E que motivo o traz?
nos trabalhos da guerra. À ti me prende,
SEGUNDO MERCADOR"
desde quando o acolheste como esposo,
Vem assistir ao público espetáculo
minha palavra de honra de que sempre
da decapitação de um reverendo faria o que pudesse em prol de Antífolo.
siracusano, cujo triste fado Algum de vós aí bata na porta
trouxe à nossa baía, contra os duros da abadia e me chame a superiora.
estatutos eleis desta cidade. Antes de ir deixo o caso resolvido.
ÂnceLo : De fato; ei-lo que chega. Vou ver isso. (Entra um criado.)
LucIANA: À passagem do duque caí de joelhos. CriaDO* Fugi, minha patroa, sem demora!
(Entra o duque com seu séquito; Egeu, de cabeça Meu mestre c o criado estão outra vez soltos.
descoberta, o carrasco e auxiliares.) Dão nas criadas, sem poupar nenhuma;
Duque - De novo proclamai: se algum amigo o doutor amarraram; chamuscaram-lhe
dele quiser pagar o seu resgate, a barba com tições, e quando o fogo
ser-lhe-á perdoada a pena. Assim fazemos começava a subir, arremessaram
pela grande piedade que nos causa. sobre o coitado baldes de água suja,
ADRIANA * Mui nobre duque, impetro-te justiça para extinguir as chamas. O meu mestre
contra a abadessa! lhe recomenda calma, enquanto o criado,
Duque- É digna e mui virtuosa; como se faz com os loucos, o tosquia
nenhum mal poderá ter ela feito. com uma grande tesoura. Se não fordes
ADRIANA: Não desagrade a Vossa Graça: Antífolo, em auxílio do mísero, é certeza
meu marido, que eu fiz senhor de todos darem-lhe os loucos conta do canastro.
os meus bens e de mim, seguindo nisso ADRIANA: Cala, imbecil! Teu mestre está aqui dentro;
vossa carta imperiosa, foi, de súbito, ele e o criado. Não sabes o que dizes.
tomado hoje — oh fatal e triste dia! — Crrapo Por minha vida, estou falando sério;
de um vergonhoso ataque de loucura, mal respirei, depois daquela cena.

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Grita por vós e jura que se, acaso, não me transtorna a cólera furiosa,
conseguir vos pegar, há de queimar-vos muito embora os ultrajes a mim feitos
o rosto e vos deixar desfigurada. pudessem deixar louco o homem mais sábio.
(Ouvem-se gritos dentro.) Esta mulher deixou-me hoje na rua,
Ouço-o! Fugi, senhora, sem delongas! quando eu ia jantar, o que este ourives
Duque: Fica junto de mim; não tenhas medo. confirmar poderia, se não fosse
Guardas com alabardas, aqui perto! com ela estar mancomunado agora,
ADRIANA Oh Deus! É meu marido! Testemunhas pois ele me deixou neste momento
sede de que, invisível, ele pôde para ir buscar uma cadeia, tendo
transportar-se pelo ar. Neste momento prometido levá-la ao Porco-espinho,
vimo-lo entrar ali, e ora está fora! onde eu e Baltasar então jantamos.
Isso ultrapassa o entendimento humano. Não tendo aparecido, após a mesa
(Entram Antífolo de Éfeso e Drômio de Éfeso.) saí a procurá-lo e, em companhia
ANTÍFOLO DE ÉrESO * do senhor que aqui está, o achei na rua.
Justiça, grande duque! Eu te suplico: Então jurou-me este astucioso ourives
concede-me justiça por aquele que entrega me fizera da cadeia
serviço que te fiz quando, na guerra, que, Deus o sabe, nunca e nunca eu vira.,
recebi fundo golpe por salvar-te. Sob essa acusação mandou prender-me.
Pelo sangue que, então, por tua causa Obedeci-lhe e, sem demora, a casa
de mim se escoou, concede-me justiça. enviei meu servo empós de alguns ducados,
Eceu : Se o medo à morte não me faz caduco, que ele não trouxe. Então, em termos brandos
vejo meu filho Antífolo com Drômio. falei ao oficial para que, juntos,
ANTÍFOLO DE ÉrESO fôssemos até a casa.
Justiça, doce príncipe, contra essa Em caminho, porém, nós encontramos
mulher que tu me deste como esposa. minha mulher, a irmã e uma caterva
De mim ela abusou, fez-me alta injúria, de cúmplices. Com eles vinha um tipo
desonrou-me, tratou-me com tal fúria, denominado Pinch, um magricela,
que conceber não pode a mente humana espécie de esqueleto, um saltimbanco,
tudo o que hoje me fez essa megera. um charlatão e tirador de sortes,
Duque * Conta o que houve e acharás em mim justiça. um pobre-diabo de olhos encovados,
ANTÍFOLO DE ÉFESO um biltre de olhar baço, um morto-vivo.
Hoje, senhor, ela fechou-me a porta, Pensai só que esse escravo amaldiçoado
para se banquetear com gente à-toa, se arvorou a exorcista e, de olhos fixos
dentro de minha casa. nos meus, tomou-me o pulso e, com seu todo
Duque A falta é grave, de alma penada, a me fitar, me disse
muito grave. É verdade o que ele disse? que eu estava possesso. Nisso, todos
ADRIANA“ Não, meu bom lorde; eu, ele próprio e a mana caíram sobre mim, as mãos me ataram,
jantamos juntos hoje. Morrer quero, amarraram-me os pés, e, juntamente
se tudo o que ele diz não for mentira. com meu servo, também todo ele atado,
Luciana Não quero ver jamais a luz do dia, nos puseram num quarto úmido e escuro.
nem repousar à noite, se verdade Com os dentes pude desfazer os laços
não for quanto ela disse a Vossa Alteza. e libertar-me, vindo in'continenti
ÂNGELO - Quanta mentira! As duas são perjuras; procurar Vossa Graça, a quem suplico
fala a verdade o louco neste ponto. que se me dê satisfação completa
ANTÍFOLO DE ÉrESO * de tanta ofensa e de tão grande opróbrio.
Meu soberano, eu sei o que vos digo; ÂnceLo - Posso afirmar, milorde, que, em verdade,
o vinho não me turva o entendimento; hoje jantar ele não pôde em casa.
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Duque - Mas recebeu, ou não, tua cadeia? devo-lhe esse favor — rocu-me a corda.
ÂNcELO* Sim, milorde; ao pescoço ele a trazia, Ora sou Drômio, escravo desligado.
quando por nós passou; todos a viram. Eceu : Penso que ainda vos lembrais de mim.
SEGUNDO MERCADOR" Posso, demais, jurar que Drômio DE ÉrEso-
vos ouvi Vendo-vos, nos lembramos de nós mesmos,
com estes ouvidos, confessar que tínheis pois até há pouco estávamos atados,
a aludida cadeia, ao passo que antes, como ora vos achais. Pelo que vejo,
no mercado, dissestes o contrário. Pinch vos pôs também no seu regime.
Foi então que eu fiz uso desta espada Egeu - Por que me olhais dessa maneira? Penso
e fostes refugiar-vos na abadia, que sabeis quem eu sou.
de onde saístes, penso, por milagre. ANTÍFOLO DE ÉrESO : Até este instante
ANTÍFOLO DE o : jamais vos tinha visto em toda a vida.
Jamais entrei os muros da abadia, Eceu É que a tristeza me alterou bastante
nem nunca a espada contra mim tirastes. dês que nos separamos. Ás cuidosas
O céu me é testemunha de que nunca horas e o tempo com sua mão deforme
vi nenhuma cadeia. Tudo quanto me deixaram no rosto estranhos sulcos.
Mas respondei se pela voz, ao menos,
contra mim assacastes é mentira.
Duque : Quanta complicação! Até parece
não vos lembrais de mim.
ANTÍFOLO DE ÉFESO : Não.
que a provar vos deu Circe a beberagem.
Eceu- E tu, Drômio?
Se na abadia ele tivesse entrado,
DrôMio DE Éreso
ainda estaria lá. Se fosse louco,
Tampouco eu, meu senhor.
não poderia discorrer com tanto
EceU* Tenho certeza
sangue-frio e coerência. Assegurastes
de que de mim te lembras.
que ele jantou em casa; mas o ourives
Drômio DE ÉrEso - Ora, senhor, e eu tenho
afirma o oposto. E vós, que dizeis disso? certeza de que não me lembro. E quando uma pessoa
Drômio DE Éreso vos nega alguma coisa, será forçoso ficardes atado à
Ele e aquela mulher jantaram juntos, sua palavra.
no Porco-espinho. Eceu - Não me conhece a voz? Oh tempo ingrato!
CorTESÃ* É fato; foi quando ele De tal maneira a língua me fendeste
me arrebatou do dedo aquele anel. nestes curtos sete anos, que meu único
ANTÍFOLO DE ÉrESO filho não reconhece o som rachado
É certo, nobre duque; o anel é dela. de minhas desentoadas amarguras?
Duque: Viste quando ele entrou nesta abadia? Embora tenha o amarfanhado rosto
CorTESÃ: Tão certo como vejo Vossa Graça. recoberto de neve floconosa
Duque : É estranho. Ide chamar a superiora. do inverno destruidor da seiva viva,
(Sai uma pessoa do séquito.) e congelados já me estejam todos
Se não estais variando, enlouquecestes. os condutos do sangue, ainda me resta
Eceu : Mui poderoso duque, uma palavra nesta noite de vida algum resquício
me seja permitida. Ali percebo da memória de outrora, minha lâmpada |
o amigo que me vai salvar a vida, quase extinta ainda emite uma luz tênue, |
por mim pagando a multa cominada. ainda ouve alguma coisa o ouvido mouco.
Duque: Fala, siracusano, o que quiseres. E todas essas testemunhas dizem —
Eceu * Por obséquio, senhor, não sois Antífolo? não posso errar — que tu és meu filho Antífolo.
E não se chama Drômio aquele escravo ANTÍFOLO DE ÉFESO
que a vós está ligado? Não vi meu pai em toda a minha vida.
Drômio DE ÉrEso - Até há uma hora Eceu: Entanto, sabes, jovem, que há sete anos,
ligado a ele estava. Mas por sorte — me separei de ti em Siracusa.

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shakespearebrasileiro.org À COMÉDIA DOS ERROS

Sim, compreendo, meu filho: é que te atanhas sido a sorte dos dois, não sci dizer-te;
de me reconhecer nesta miséria. a mim coube a fortuna que contemplas.
AnríroLo* O duque e todos quantos me conhecem Duque : Isso completa a história começada
podem dar testemunho do que afirmo. nesta manhã. Estes irmãos Antífolos
Jamais vi Siracusa em toda a vida. tão parecidos, e os dois gêmeos Drômios,
Duque: Posso te assegurar, siracusano, que não se diferençam, e o naufrágio
que, há vinte anos, Antífolo é meu súdito a que ela se refere... Os pais são estes
e que ele nunca esteve em Siracusa. destes dois filhos que, por coincidência,
Vejo que a muita idade e os sofrimentos aqui juntos estão. Dize-me, Antífolo:
te fizeram perder de todo o juízo. era Corinto teu lugar de origem?
“(Volta a abadessa com Antífolo de Siracusa e Drômio de ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Siracusa.) Não, milorde; eu cheguei de Siracusa.
ABADESSA * Mui poderoso duque, olhai este homem Duque : Não vos distingo; põe-te deste lado.
que tem sofrido muitas injustiças. ANTÍFOLO DE ÉFESO-
(Todos se aproximam para olhá-lo.) De Corinto eu cheguei, gracioso lorde...
ADRIANA: Ou vejo mal, ou vejo dois maridos. Drômio pe Éreso - E eu com ele.
Duque * Um destes indivíduos gêmeo é do outro. ANTÍFOLO DE ÉFESO-
Dá-se o mesmo com aqueles. Mas quem pode «em companhia do guerreiro excelso,
dizer qual seja o espírito, qual o homem! Duque de Menafon, vosso alto tio.
Drômio DE SIRACUSA"* ADRIANA * Qual de vós dois jantou hoje comigo?
Drômio sou eu, senhor; mandai-o embora. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE Éreso Fui eu, senhora.
Drômio sou eu; não permitais que eu saia. ADRIANA" Sois o meu marido?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE ÉrESO*
Não sois Egeu? Ou acaso sois o espírito Não; respondo por ele.
dele somente? ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA * O mesmo eu digo.
Oh meu antigo mestre! No entanto, ela de esposa me chamava,
Quem foi que vos atou dessa maneira? como de irmão esta gentil menina,
ÁBADESSA sua irmã. (A Luciana.) Tudo quanto então vos disse
Fosse quem fosse, a mim cumpre soltá-lo pretendo confirmar com mais sossego,
dessas cadeias, para que um marido, se sonho não for tudo que ouço e vejo.
com sua liberdade, a ganhar venha. ÂnceLo : Senhor, essa é a cadeia que eu vos dei.
Dize-me, velho Egeu, se já tiveste ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
por esposa uma Emília, que dois gêmeos Creio que sim; não penso em contestá-la.
te brindou de uma vez, dois lindos filhos? ANTÍFOLO DE ÉrEsO-
Oh! Se és o mesmo Egeu, fala-me! fala-me E vós, senhor, por ela me prendestes.
que aqui tu vês aquela mesma Emília. ÂnceLO- Creio que sim; não penso em contestá-lo.
Eceu Se não estou sonhando, tu és Emília. ApRIANA* Mandei pagar por Drômio vossa fiança;
Se és ela mesma, dize onde está o filho mas temo que ele não a tenha pago.
que contigo flutuou no fatal mastro? Drômio DE Éreso : Por mim não.
ABADESSA* Eu, ele e Drômio fomos recolhidos ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
por gente de Epidamno. Pouco tempo Recebi esta bolsa de ducados
depois, no entanto, rudes pescadores por vós enviada por meu servo Drômio.
de Corinto tomaram-lhes meu filho, Vejo agora que os servos nós trocamos;
juntamente com Drômio, entre os primeiros eu passava por ele e ele por mim;
me deixando sozinha. Qual tivesse de aí terem nascido tantos erros.

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shakespearebrasileiro.org WiLLIAM SHAKESPEARE

ANTÍFOLO DE ÉFESO- ANTÍFOLO DE SIRACUSA*


Libertarei meu pai com esses ducados. Isso é comigo. Drômio, eu sou teu mestre.
Duque - Não é preciso; a vida eu lhe concedo. Vem comigo; depois tratamos disso.
CorTESÃ- Meu diamante, senhor, restituí-me. Abraça teu irmão e fica alegre.
ANTÍFOLO DE ÉrESO- (Saem Antiífolo de Siracusa e Antífolo de Éfeso, Adriana
Ei-lo aqui; muito grato pela festa. e Luciana.)
ABADESSA * Famoso duque, dai-vos ao trabalho Drômio DE SIRACUSA*
de ir conosco à abadia, porque a história Aquela cozinheira gordanchuda
possais ouvir de quanto nós passamos. da casa de teu amo, que hoje à tarde
E todos vós que estais aqui reunidos, me tratrou com quitutes, de hoje em diante
a quem os erros de um só dia foram irmã minha vai ser, não minha esposa.
causa de sofrimentos, também vinde, Drômio DE ÉrEso-
que eu vos darei satisfação cabal. Não pareceis meu mano, mas o espelho
Durante trinta e três anos seguidos em que me esteja vendo: um belo tipo,
sofri por vós, meus filhos, só me tendo realmente! Não quereis ir à abadia,
livrado de meu sofrimento neste instante. para ouvir relatar nossas histórias?
O duque, meu marido, meus dois filhos, Drômio DE SIRACUSA*
e vós ambos, também, os calendários Sim, mas primeiro vós; sois o mais velho.
do nascimento deles, vinde todos. Drômio DE ÉrEso-
À vossa a minha dita se associa; É uma questão. Mas como decidi-la?
grande, imensa será nossa alegria. Drômio DE SIRACUSA *
(Saem o duque, a abadessa, Egeu, a cortesã, o mercador, Vamos tirar a sorte para o título
Angelo e pessoas do séquito.) da primogenitura. Mas enquanto
Drômio DE SIRACUSA* não decidirmos isso, ficais sendo
Mestre, trago de bordo as vossas coisas? de nós dois o mais velho.
ANTÍFOLO DE ÉFESO Drômio veÉreso: Então, desta arte:
Que coisas minhas, Drômio, estão a bordo? Se, como irmãos, ao mundo em boa hora viemos,
de mãos dadas, agora, a esta abadia entremos.
(Saem.)
Introdução (David Bevington)

Apesar de Tito Andrônico ter sido distinguida por alguns críticos como indigna
do gênio de Shakespeare – T. S. Eliot chamou-a “uma das peças mais estúpidas e sem
inspiração já escrita” – a recente história da performance mostra que Tito pode ser
brilhantemente bem-sucedida com as plateias. Em sua produção memorável em
Stratford-upon-Avon em 1959, Peter Brook escolheu interpretar a entrada da violentada
e mutilada Lavínia (Vivien Leigh) com fitas escarlates penduradas em seus pulsos e
boca, em uma estilização visual que deu à violência uma seriedade emocional até
mesmo enquanto evita o sangrento realismo. As longas fitas traduziam o texto em
símbolos visuais. Tito (Laurence Olivier) era um sofrido veterano desde o início da
peça, desgastado pela guerra, semelhante a Lear em seus sofrimentos e agonias de
desilusões. A produção mais realista de Deborah Warner, no Teatro Swan, Stratford-
upon-Avon, em 1987, com Sonia Ritter como Lavínia, enfatizava o horror do estupro e
sua dolorosa relevância para um mundo do final do século vinte profundamente
preocupado com os direitos humanos e especialmente com a vitimização da mulher. As
interpretações de Tamora nesta e em outras produções variamente a viram como
exótica, sexualmente magnética, astuta, brincalhona e profundamente sádica. Mais
recentemente, uma versão inovadora em filme de Julie Taymor, com Anthony Hopkins
como Tito, fascinou uma plateia mais ampla com essa relativamente desconhecida peça
de violência gratuita. Hopkins mostra quão repulsivamente o humor negro pode ironizar
os efeitos da crueldade bruta e transformar nosso riso em uma tentativa de compreender
a aparentemente insondável propensão da humanidade pela desumanidade. A crítica
recente, também, considerou Tito seriamente como um estudo sobre a violência que é
dolorosamente relevante para nossa experiência moderna.

Tito Andrônico é, sem dúvida, uma peça do período inicial. Publicada


primeiramente in quarto em 1594 “como foi interpretada pelo Right Honorable [título
honorífico de conselheiro de estado ou juiz] Conde de Pembroke, e o Conde de Sussex e
Servidores,” ela poderia ter sido escrita no início de 1590-1591 ou mesmo antes. A
alusão no Diário do dono de teatro e diretor Philip Henslowe em 24 de Janeiro de 1594,
a uma nova produção pelos Homens de Sussex de “Titus & Ondronicus” pode referir-se
a uma nova peça ou a uma recém revisada ou recém adquirida pelo companhia. A Tito
Andrônico de Shakespeare estava, assim, completamente separada no tempo das
grandes tragédias; Romeu e Julieta é a outra tragédia (excluindo as peças de história
Inglesa) da década anterior a 1599. Ademais, a peça pode não ser inteiramente de
Shakespeare. As primeiras três cenas (Ato 1, juntamente com as cenas 1 e 2 do Ato 2) e
a primeira cena do Ato 4 foram plausivelmente atribuídas a George Peele. Os dois
dramaturgos parecem ter trabalhado independentemente em suas partes, com algumas
discrepâncias resultantes. Shakespeare foi, aparentemente, responsável pelo design geral
da peça. Mesmo assim, Tito Andrônico estava completamente separada no tempo e em
autoria colaborativa das grandes tragédias que Shakespeare produziria, a maioria uma
década ou mais depois. Como podemos responder e avaliar um aprendizado em tragédia
que é tão isolado em termos de carreira artística das tragédias maduras que
consideramos entre suas maiores realizações?

Tito Andrônico contém referências livrescas à autores clássicos – outra indicação


provável de uma composição precoce. Nenhuma outra tragédia, e talvez nenhuma outra
peça de Shakespeare, revela tal evidência direta de aprendizado juvenil. Algumas de
suas muitas frases não traduzidas do Latim são favoritas das crianças da escola, assim
como “Integer vitae” de Horácio, que é imediatamente reconhecida por Chiron. “Eu a li
na gramática há muito tempo,” ele diz (4.2.23). Alusões clássicas comparam os
personagens principais da peça com Enéas e Dido, a Rainha de Cartago; Heitor, o Rei
Príamo e a Rainha Hécuba de Tróia; Ajax e Odisseu entre os Gregos; Hércules,
Prometeu, Orfeu, Coriolano, Semiramis a sereia Rainha da Assíria, Píramo, Cornélia, a
mãe de Gracchi, Actaeon; e outros. Ademais, essas referências eruditas estão longe de
serem uma mera exibição de aprendizado juvenil; através de uma habilidade controlada
e autoconsciente, elas nos permitem explorar um mundo trágico cujas dimensões morais
são definidas em termos de modelos literários clássicos. Especialmente significantes são
as referências às vítimas de estupro e vingança: Virgínia a Romana, assassinada por seu
pai Virgínio para salvá-la do estupro; a casta Lucrécia, estuprada por Tarquínio;
Philomel, estuprada e desprovida de sua língua por Tereu, cujo nome ela então revela ao
tecer a informação em um tapete; e Procne, sua irmã e a esposa de Tereus, que se vinga
de Philomel ao servir o filho de Tereu, Itys, para seu pai em uma refeição.

Tito Andrônico não relata eventos históricos atuais. Shakespeare, auxiliado por
Peele, parece tê-la reunido de uma miscelânea de fontes, nenhuma delas provendo um
modelo narrativo completo. Um panfleto do século dezoito chamado A História de Tito
Andrônico, outrora pensada como uma versão confiável de um original que os
dramaturgos tiveram acesso, foi agora compreendida como uma expansão da história
baseada em uma balada de 1594 que, por conseguinte, foi imitada na peça subsistente,
para que essa peça fosse a primeira na linha de sucessão. Os dramaturgos basearam-se
em materiais variados. As Metamorfoses de Ovídio deram-lhes várias lendas,
especialmente aquelas de Tereu, Philomel e Procne. Tiestes de Sêneca oferecia em uma
forma dramática uma fábula similar de vingança, na qual dois filhos são assassinados e
servidos aos seus pais em um horrendo banquete. Mesmo que Shakespeare tenha
utilizado tais prosas e fontes dramáticas ao escrever sua maior parte da peça, entretanto,
alguns estudiosos acreditam que uma ou mesmo duas peças sobre Tito podem ter
existido antes da de Shakespeare e que podemos deduzir as contribuições delas a sua
obra ao examinar duas peças continentais baseadas nelas: Tragaedia van Tito Andronico
(Alemão, 1620) e Aran en Titus (Holandês, 1641). Possivelmente uma das peças
anteriores foi “Titus & Vespacia” que entrou no Diário de Henslowe em 11 de Abril de
1592, como interpretada pelos Homens do Lorde Strange. Mesmo se os dramaturgos
usaram dessas fontes dramáticas e de prosa, entretanto, eles também conheciam bem os
originais de Ovídio e Sêneca que os inspiraram. A tragédia de vingança Elisabetana,
contendo algumas influências de Sêneca (apesar que esses elementos de Sêneca não
devem ser super-enfatizados), foi uma forte influência formativa, especialmente A
Tragédia Espanhola (cerca de 1587) de Kyd. O fenomenal sucesso recente de Marlowe
deixou sua marca: o assassinato de seu filho Mutius por Tito relembra Tamburlaine
Parte II, e a vanglória desenfreada similar ao Vício de Aaron retoma O Judeu de Malta.
As leituras dos dramaturgos de Virgílio são evidentes não apenas nas referências
repetidas a Dido e Enéas, mas também na escolha do nome Lavínia (A Eneida, Livro 7
ff.)

Como essa considerável lista de influências sugere, Tito Andrônico permanece


próxima aos seus modelos, por mais originais que sejam seus contornos. Apesar da peça
antecipar vários motivos das tragédias posteriores de Shakespeare – a ingratidão de
Roma em relação ao seu honrado general em Coriolano, o factionalismo político
Romano de Júlio César, a debilidade da velhice confrontada com a bestialidade humana
em Rei Lear – Tito Andrônico é o tipo de peça de vingança que se espera de um jovem
dramaturgo e colaborador talentoso no início de 1590. Os modelos bem-sucedidos para
a escrita trágica nesses anos eram Kyd e Marlowe. Greene, Peele e outros pagavam a
esses dois à lisonja da imitação. Assim, também, até um ponto, o fez Shakespeare.
Podemos entender melhor Tito Andrônico se a vemos como uma peça de vingança no
viés dos predecessores imediatos de Shakespeare, com substancial assistência de Peele e
com adições generosas do páthos Ovidiano. Não devemos buscar em Tito Andrônico a
densidade poética e complexidade de visão que encontramos nas tragédias
Shakespearianas posteriores; como uma peça de vingança, Tito Andrônico foca na
violência e no horror, e seu ânimo é de repugnância. O estilo, também, requer alguns
ajustes em nossas expectativas. Devendo muito a Kyd, Marlowe e Ovídio, ela está
repleta de figuras retóricas e alusões clássicas na maneira dos poemas Ovidianos de
Shakespeare do início de 1590, Vênus e Adônis e O Estupro de Lucrécia. Mesmo que
seus dispositivos “primitivos” estejam manifestos, o estilo induz bom efeito dramático
em cenas altamente elaboradas, como quando Tito implora por justiça aos indiferentes
senadores (3.1.1-47) ou prepara uma armadilha para Tamora e seus filhos sob o disfarce
de sua suposta loucura (5.2). A aparente incongruência da ação violenta e a metáfora
elaboradamente refinada, como no florido lamento de Tito pela mutilação de Lavínia
(3.1.65 Primeiro Fólio), não é, como Eugene Waith mostrou (Shakespeare Survey,
1957, 39-49), sem propósitos, pois evoca páthos em nome de um sofrimento horrendo,
de uma maneira deliberadamente Ovidiana, abstraindo e generalizando o tormento
humano. Como em Ovídio, o interesse não está em lições moralizantes mas no “poder
transformador de intensos estados de emoção.”

A violência é um dispositivo duradouro de Tito Andrônico, e sua função deve


ser entendida se a peça não for rejeitada como meramente hiperbólica em seu
derramamento de sangue. Estamos constantemente cônscios do sacrifício humano ritual,
assassinato e mutilações, como na sentença de Tito ao filho de Tamora, Alarbus, e o
assassinato de seu próprio filho Mutius, o massacre pelos filhos de Tamora de Bassiano
e o estupro de Lavínia, a subsequente execução de dois filhos de Tito injustamente
acusados do assassinato de Bassiano, o decepar da mão de Tito, a alimentação de
Tamora com os corpos moídos de seus filhos em uma pasta fina, e assim por diante. A
mutilação selvagem é característica de muitas dessas atrocidades, especialmente no
corte das mãos e língua. O clímax da peça é, na maneira da tragédia de vingança, um
espetáculo de sangue, com as mortes em sucessão rápida de Lavínia, Tamora, Tito e
Saturnino. Essa matança múltipla causa repugnância em alguns espectadores, assim
como T. S. Eliot, mas para outros a violência revela um padrão e oferece sua própria
postura ética em relação à vingança. Apesar de não sentirmos nessa peça de juventude a
mesma perspectiva controlada sobre o mal humano como em Hamlet, por exemplo,
vemos que Shakespeare está intensamente consciente do conflito entre a ordem e a
desordem. Nas cenas finais, Aaron o Mouro é preso e sentenciado à execução, Tamora e
Saturnino são assassinados, o irmão de Tito, Marcus, apela para a justiça Romana por
vingança, com base que a sua família não teve alternativa, e o último filho restante de
Tito, Lucius, jura, como novo imperador, “curar os ferimentos de Roma e remover o seu
infortúnio” (5.3.148). Mesmo que essa resolução não satisfaça inteiramente os dilemas
éticos com os quais a peça inicia, ela revela a relutância de Shakespeare em permitir que
o cumprimento da vingança privada seja a preocupação última da peça. Shakespeare
está completamente interessado nos problemas éticos gerados pela vingança, e o horror
incansável da peça pode ser um comentário à natureza auto-frustrante do código de
vingança. A violência é também integral ao desígnio teatral da peça; seu padrão de
vingança e contra-vingança parece surpreendentemente moderno a nós, afinado como
estamos ao “teatro da crueldade” do século vinte defendido por Antonin Artaud.

A primeira parte de Tito Andrônico funciona para dar ao vingador um motivo


para suas ações sanguinolentas. Ironicamente, Tito é ele próprio responsável por iniciar
os eventos que irão esmagá-lo. Sua família, os Andronici, são os primeiros a praticar a
vingança, um fato que diminui a simpatia que eles posteriormente poderão usufruir
como vítimas e exilados. De fato, é Lucius, finalmente, que tornar-se-á o restaurador da
estabilidade política, que primeiro demanda o assassinato ritual de um Goth cativo, o
filho de Tamora, Alarbus, para apaziguar os espíritos dos Andronici massacrados em
batalha. Tal demanda é entendível em termos de honra familiar, mas é também
vingativa e pagã. Apesar da reivindicação dos Romanos de serem superiores aos
bárbaros que lutam (veja 1.1.379, por exemplo), seus atos frequentemente não
justificam àquela reivindicação por superioridade moral. Essa ironia está completa
quando a Rainha Gótica Tamora e seus filhos tornam-se os porta-vozes da misericórdia
divina. Como o filho de Tamora, Chiron, amargamente observa, “Nem na Cítia se
encontra tal barbárie” (1.1.131).

Igualmente violento e não natural é o assassinato por Tito de seu próprio filho
Mutius, por ajudar no sequestro da filha de Tito, Lavínia. Esse erro trágico origina-se,
como o primeiro, do estreito sentido de Tito de honra familiar. Tito tolamente recusou a
coroa imperial, concedendo-a, ao invés, para o traiçoeiro Saturnino, e prometeu Lavínia
como esposa ao novo imperador, apesar do noivado anterior dela com o irmão virtuoso
e rival de Saturnino, Bassianus. As razões de Tito para essas ações nunca são
satisfatoriamente explicadas, mas presumivelmente resultam de um enganado impulso,
embora honrado, de deixar outros exercerem o poder político enquanto ele, o valente
defensor de Roma, interpreta o papel de estadista sênior. Ele também, como Rei Lear,
imperioso e paternalista em sua própria família, insiste em fazer da sua maneira.
Quando os filhos de Tito e Bassianus são levados ao estratagema do sequestro da dama,
Tito não pode suportar a vergonha de sua promessa violada e então mata Mutius na luta
subsequente. Entretanto, por esse sacrifício em nome do Imperador, Tito recebe
somente ingratidão e hostilidade. Ademais, ele ensinou Tamora e seus filhos a buscarem
vingança.

Uma vez que os Andronici tornaram as vítimas de Tamora e seus partidários,


eles ganham em simpatia. Eles sofrem atrocidades indescritíveis. Caçados por
insultuosos sádicos que se divertem no estupro e na mutilação, os Andronici unem-se
contra o tormento mútuo e altruisticamente tentam diminuir a agonia um do outro. Eles
descobrem que Roma é um “deserto de tigres” (3.1.54) no qual a lei cegamente condena
os filhos inocentes de Tito pelo assassinato de Bassianus. Ademais, Tito cometeu o
primeiro barbarismo e volta-se cada vez mais a este em seu desejo por vingança. Por
causa que os Andronici são muito parecidos com seus inimigos, o ânimo que prevalece,
como na maioria das tragédias de vingança, é mais irônico que trágico. Não há um
sentido forte (apesar da captura de Aaron) que a ordem moral será restaurada
juntamente com a ordem política. Os Andronici são absolvidos, e eles ganharam alguma
sabedoria através do sofrimento, mas eles ainda são os vingadores que ofenderam
primeiro.

Igualmente perturbadora é a representação da peça das relações de gênero. Tito é


uma figura patriarcal que responde com violência a seu próprio filho quando este
desafia sua autoridade de dar sua filha Lavínia para Saturnino. Na sangrenta conclusão
da peça, Tito é o assassino de sua própria filha também, temendo que ela “sobreviva à
sua vergonha” e na presença dela Tito continuamente relembra da desgraça que ele
sofreu por causa de seu estupro (5.3.41-2). O código arcaico da dominação masculina
insiste que a honra de um pai é suprema e que a morte de sua filha é preferível do que
uma vida desonrosa, mesmo se, como no caso de Lavínia, ela seja totalmente inocente e
vitimada em perder sua castidade. (No O Estupro de Lucrécia, uma esposa inocente
deve pagar o mesmo preço terrível para absolver a honra de seu marido.) Como
contraponto, Tamora personifica uma fantasia masculina da espantosa fêmea
transgressora. Porque ela é licenciosa e dominadora, sua sexualidade é intolerável para a
maioria dos nobres Romanos; ela cativa Saturnino e Aaron com sua beleza sexual, mas,
no final dessa peça tal mulher perigosa deve ser levada a um crime horrendo apropriado
de comer seus próprios filhos. A ordem Romana é finalmente restabelecida. Mesmo
assim, sua ascendência patriarcal foi responsável pela carnificina a um nível maior do
que a mais aberta violência erótica dos “bárbaros” não-Romanos como Tamora, seus
filhos e Aaron.

Tito Andrônico expõe muitas convenções da peça de vingança encontradas


anteriormente em A Tragédia Espanhola. O vingador, Tito, é um homem de alta
posição servindo conscientemente ao estado, como o Hieronimo de Kyd, que descobre
que o próprio estado é muito corrupto para fazer justiça aos erros perpetrados contra sua
família. Os malfeitores são membros da família do Imperador, protegidos pela conexão
real. Os interesses públicos e privados confrontam-se, e o bem-estar público é o
perdedor. O vingador tem dificuldade em provar a identidade dos vilões mas encontra
uma maneira engenhosa no final (através da escrita de Lavínia na areia). Uma vez que
se torna o vingador, como Hieronimo, Tito torna-se tão sem remorso e sagaz quanto
seus inimigos. Ele torna-se uma ameaça à ordem pública, pronunciando ameaças
enigmáticas e exibindo as injustiças do estado. Nas margens da verdadeira loucura, ele
também emprega o desvario como um disfarce para suas intrigas maquiavélicas. Sua
conspiração é bem-sucedida em ludibriar à Rainha Tamora ao permiti-lo preparar seu
horrível banquete. O drama termina, como A Tragédia Espanhola, em um tipo de peça-
dentro-da-peça, quando os dois filhos de Tamora tomam os papéis de Estuprador e
Assassino, Tamora a Vingança e Tito o cozinheiro. A dramatização torna-se
determinadamente mortífera com uma rápida sucessão de assassinatos. Tito e Lavínia,
como Hieronimo e Bel-Imperia, não sobrevivem aos seus atos de vingança.

Esse padrão convencional aceita a vingança como inevitável e consistente de


acordo com seu próprio código. Como em A Tragédia Espanhola, onde a córica
Vingança controla a ação para seus próprios propósitos sinistros e dá às boas-vindas ao
sofrimento dos inocentes ou considera o colapso dos governos como úteis, Tito
Andrônico retrata um mundo no qual o vingador pode agir aparentemente apenas
através da violência. Mesmo Lavínia e o jovem neto de Tito endossam a conspiração e o
assassinato. Tito pratica a fraude em relação aos seus inimigos, jurando “sobrepujá-los
em suas próprias tramas” (5.2.143). Nossa atenção é atraída, cada vez mais, para a arte
da “estratégia” de ambos os lados. As maquinações de Aaron e Tamora demandam
ingenuidade em retorno. Um olho deve pagar por um olho; a punição deve adequar-se
ao crime. De fato, Tito e sua família lutam para compreender a natureza moral do seu
universo. “Se qualquer poder tiver pena de lágrimas miseráveis, / A esse poder eu
chamo,” reza Tito, levantando sua mão mutilada aos céus e implorando por assistência
divina (3.1.208-9). Repetidamente, os Andronici perguntam se a justiça divina existe, se
ela preocupa-se com a brutalidade entre os humanos, e se esta justiça ajudará os
indefesos. “Ó céus,” pergunta Marcus, “você pode ouvir o gemido de um bom homem /
E não abrandar, ou não ter compaixão dele? (4.1.124-5). Por que esses males terríveis
devem afligir à raça humana “A não ser que os deuses deleitam-se nas tragédias?” (linha
61). Marcus busca à identidade dos estupradores de sua sobrinha, esperando que Lavínia
esteja apta em “mostrar finalmente / O que Deus descobrirá como vingança” (linhas 74-
5). A vingança é de Deus ou da humanidade? Em parte, pelo menos, Marcus vê a si
mesmo e sua família como agentes da justiça divina, como Hamlet, apesar dos próprios
erros de Tito requererem sua própria destruição. Entretanto, mesmo esses
questionamentos sobre o Cosmos são uma parte da tradição da vingança, pois
Hieronimo em A Tragédia Espanhola implora aos deuses em termos similares. Tito, por
todo o seu pleito aos céus, é essencialmente o vingador em uma peça de vingança. Ele
não se submete, como Hamlet, ao que ele considera ser a vontade da Providência e
espera por qualquer oportunidade que o céu providenciará. Tito jura vingança e procede
com os mais abomináveis atos imagináveis. Em sua morte não há nenhuma fala de
reconciliação entre a vontade divina e humana. Conforme o momento de clímax
aproxima-se, a vingança é vista como uma força do inferno, do “reino infernal,”
enquanto a justiça verdadeira é empregada “com Júpiter no paraíso” (5.2.30; 4.3.40).
Tito é um protagonista adequado a uma peça na qual a vingança procede por suas
próprias regras impiedosas, na qual a brutalidade é o fato dominante da vida, e onde a
violência é o único meio aparente de reparação. As ideias divinas de justiça zombam
das tentativas cegas da humanidade de autogovernança sem oferecer reconforto e
direção.

Tito Andrônico ilumina à natureza do mal mais do que tenta transcendê-lo


através da nobreza humana, como nas tragédias posteriores. Essa qualidade distintiva
torna-se especialmente manifesta pela semelhança externa da peça com Rei Lear. Tito
está velho, fraco em julgamento e vitimado pela sua própria decisão de renunciar ao
poder para a pessoa cuja vileza ele não compreende. Ele é, como Lear diz sobre si
mesmo, certamente menos culpado do que muitos pecadores. Tito aproxima-se da
loucura e generaliza, em sua angústia, sobre a onipresença do assassinato e da
ingratidão na natureza (3.2.52-78). Suas reflexões sobre a injustiça humana sugerem a
imensa dificuldade de distinguir a ilusão da verdadeira substância (“A angústia o forjou
tanto / Que ele toma falsas sombras como verdadeiras substâncias,” linhas 79-80), um
motivo de ilusão que reaparece na alegórica peça-dentro-da-peça. A Rainha Tamora
revela um vício inato e uma depravação sexual como a de Goneril e Regan. Aaron o
Mouro, talvez o primeiro dos arrogantes vilões que, tal qual o Vício, assemelha-se com
Edmundo em Rei Lear, assim como Ricardo III, Dom João (em Muito Barulho por
Nada), e Iago (em Otelo). Tito Andrônico nos mostra, em forma de embrião e próximo
às suas fontes, muitos dos temas e métodos das tragédias posteriores de Shakespeare.

Aaron o Mouro é o personagem mais vital nessa peça de juventude. Como o


Vício da peça de moralidade, ou como o Maquiavel do palco de Marlowe, Aaron tem
deleite no puro mal e mostra sua astúcia para a admiração da plateia. O Mal para ele é
“esporte”, “argúcia”, “estratagema,” e, sobretudo, “política” (5.1.96; 2.3.1; 2.1.104).
Sua malícia abrange toda a humanidade e procede de nenhum motivo além de seu
prazer sinistro em planejar conspirações. Quando é finalmente capturado, Aaron gaba-se
triunfantemente sobre a extensão e variedade de suas cruéis realizações:

Inda maldigo o dia – porém penso


Que poucos cabem nessa maldição –

Em que não tenha feito um mal notório:

Matar alguém, ou planejar sua morte;

Violar uma moça ou pensar em fazê-lo;

Acusar um inocente, perjurar-me;

Trazer inimizade a dois amigos;

Matar o gado de quem já é pobre;

Pôr fogo, à noite, em feno e em celeiros,

Mandando o dono apagá-lo com o pranto.

Muitas vezes tirei mortos da cova

Para encostá-los nas portas de amigos

Que começavam a esquecer da dor.

(5.1.125-37)

Apesar de sua descrição do mal ser cômica e diabólica, esse retrato nos dá um
vívido insight das origens de um tipo particular de vilão sem remorso e soberbo que
Shakespeare iria desenvolver em suas peças históricas e tragédias posteriores.

O lado aparentemente sedutor de Aaron, seus instintos intensamente protetores


em relação ao seu filho bastardo nascido de Tamora, são partes do mal central dessa
peça: orgulho de família tornando-se vingança violenta. Aaron e seu filho, na negritude
de suas feições, são equiparados com o barbarismo, ateísmo pagão (Aaron zomba
daqueles que acreditam em Deus), e diabolismo. Questões raciais são, assim, tão
dolorosamente explícitas como àquelas de gênero, nessa peça: Roma clama
superioridade sobre as pessoas negras e sobre os Cítios, e, entretanto, a peça vê Roma
como fatalmente violenta em suas suposições patriarcais, sexistas e racistas. Aaron e
Tamora não são os opostos morais de Saturnino e seus súditos Romanos, mas são, em
vez disso, simbólicos da escuridão interior e carnalidade compartilhada por todos os
tipos de pessoas.

Como uma peça de vingança, Tito Andrônico é teatralmente efetiva. Para ser
apreciada adequadamente, ela deve ser vista ou lida nesses termos, em vez de com as
expectativas que trazemos de Rei Lear. Aqui Shakespeare apresenta o barbarismo e a
civilização como opostos polares, mas ele recusa equacionar Roma com a civilização, e
não permite a Tito nenhuma escapatória do barbarismo que ele mesmo iniciou.
Nenhuma autoconsciência trágica cresce da humilhação de Tito, como o faz em Rei
Lear, nenhum remorso outro além de ter renunciado o poder a Saturnino. Ao invés da
autoconsciência trágica, somos deixados com uma esmagadora impressão do potencial
humano para a brutalidade. Essa visão é degenerada. A constante lembrança de um
mundo melhor de justiça e compaixão serve meramente para elevar o sentido irônico e
fútil da peça da bondade desperdiçada.
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Personagens
SATURNINO, filho mais velho do último imperador ÁLARBO
de Roma, posteriormente proclamado imperador. Demérrio | filhos de Tamora.
BassIANO, irmão de Saturnino. QuirÃo
Trro ANDRONICO, general romano.
Marco ANDRONICO, tribuno do povo e irmão de AARÃO, mouro amante de Tamora.
Tito. Um capitão, tribunos, mensageiros, um bobo;
romanos.
Lúcio Godos e romanos.
QuinTO Tamora, Rainha dos godos.
filhos de Tito Andronico. Lavínia, filha de Tito Andronico.
Márcio
Múcio Uma ama e uma criança negra.
SENADORES, tribunos, oficiais, soldados e criados.
O Menino Lúcio, filho de Lúcio.
Púsrrio, filho de Marco Andronico. Cena
EmíLio, nobre romano. Roma e arredores.

SEMPRÔNIO
Caro parentes de Tito.
VALENTINO
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Ato T: Ceml
Roma. Vê-se o túmulo dos Andronicos. Em cima, de nossos inimigos. Recoberto
os tribunos e os senadores. Depois entra por um lado de sangue, cinco vezes veio a Roma,
Saturnino com seus partidários, e por outro, Bassiano em dos campos de batalha carregando
companhia dos dele, com tambores e bandeiras. em esquife seus filhos valorosos.
Agora, finalmente, carregado
SaTURNINO * Nobres patrícios, da justiça amparo, de gloriosos espólios, volta a Roma
com armas defendei a minha causa! o mui famoso Tito, o alto Andronico,
E vós, meus compatriotas e ajudantes, em toda sua glória de guerreiro.
com vossos gládios defendei meus títulos Concito-vos, pela honra de tal nome,
hereditários. Sou o primogênito daquele para quem quereis um digno
do que na fronte carregou por último sucessor, e também pelos direitos
o diadema imperial de nosso burgo. do Capitólio e pelos do Senado,
Que a glória de meu pai em mim prossiga, que pretendeis honrar com deferência,
sem de meus anos se tornar imiga. a retirar-vos, desistir da força,
BassrANo - Romanos, companheiros, bons amigos, dispersar vossos homens, para, humildes
defensores de minha justa causa, e em paz, como compete a candidatos,
se até hoje graça achou ante os reais olhos defender vossos méritos.
da alta Roma Bassiano, descendente SATURNINO * Que efeito
de César, tomai conta da passagem sedativo em mim teve a bela fala
que vai ao Capitólio, não deixando desse tribuno!
que a desonra se achegue ao trono altivo Bassiano* De tal modo, Marco,
consagrado à virtude, à continência, tenho confiança em tua integridade
à justiça e à nobreza. Brilhe o mérito nunca abalada, e tanto te honro, e estimo
numa eleição honesta. À liberdade, teu nobre mano Tito e seus rebentos,
romanos, defendei com vossa escolha. e aquela a quem meu pensamento acata,
(Em cima entra Marco Andronico, com a coroa.) a graciosa Lavínia, alto ornamento
Marco: Príncipes, que por meio de partidos de Roma, que aqui mesmo os meus amigos
e de amigos, buscais, ambiciosos, devotados disperso e minha causa
o governo exercer, ficai sabendo a sorte entrego e à proteção do povo,
que os romanos, dos quais com muito zelo a fim de que ele a ponha na balança.
defendemos a causa, por unânime (Saem os seguidores de Bassiano.)
resolução na escolha de seu chefe SATURNINO * Amigos que ampararam meu direito,
a Andronico indicou, chamado o Pio, a todos agradeço e vos dispenso,
pelos serviços leais e numerosos e ao amor e ao favor de minha pátria
que a Roma tem prestado. Mais valente me entrego, como entrego minha causa.
guerreiro, mais nobre homem não se encontra (Saem os seguidores de Saturnino.)
atualmente entre os muros da cidade, Roma, justa e graciosa sê comigo,
Pelo Senado à pátria foi chamado como confiante e bom eu sou contigo.
das duras guerras contra os godos bárbaros. Abri as portas e deixai que eu entre.
Com seus filhos, dos nossos inimigos BassraNo : Como eu, tribunos, candidato humilde.
terror constante, subjugou um povo (Fanarras. Todos se dirigem para o Senado.)
de valor e adestrado nos combates. (Entra um capitão.)
Dez anos já passaram desde que ele, Carirão : Romanos, dai lugar! Eis que Andronico,
tomando a peito a causa da alta Roma, patrono da virtude, o mais valente
castigou com as armas a arrogância campeão de Roma, vencedor em todas

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shakespearebrasileiro.org Tiro ANDRONICO

as batalhas, retorna agora, rico Lúcio Dos prisioneiros godos entregai-nos


de glórias e fortuna, dos lugares o de mais alto brio, porque os membros
que ele delimitou com sua espada, lhe decepemos e, num monte, as carnes
sob o jugo calcando os inimigos. sacrifiquemos ad manes fratrum
(Soam trombetas e tambores; depois entram ante a prisão terrena de seus ossos,
Márcio e Múcio; a seguir, dois homens carregando porque acalmadas fiquem logo as sombras,
um esquife coberto de preto; depois, Lúcio e sem que na terra venham perseguir-nos,
Quinto. Logo após entra Tito Andronico; a seguir, Tamora depois, os seus espectros.
com Alarbo, Quirão, Demétrio, Aarão e outros godos, Trro- Aqui te entrego
prisioneiros. Soldados e povo. Os carregadores depõem o o mais nobre de todos, o primeiro
esquife no chão e Tito fala.) filho desta Rainha desgraçada.
Trro : Salve Roma, no luto vitoriosa! Tamora Parai, irmãos romanos! Vitorioso
Tal como o barco que mui longe havia Tito, conquistador muito gracioso,
sua mercadoria transportado, tem piedade das lágrimas que eu verto,
e com lastro precioso volta ao porto por uma mãe vertidas por seu filho.
de que muito antes a âncora soltara: Se em algum tempo um filho te foi caro,
assim volta Andronico, coroado
oh! não deixes o meu ao desamparo!
com ramos de loureiro, para a pátria Não basta termos vindo para Roma
saudar com lágrimas, porém com lágrimas
para dar brilho ao teu triunfal retorno
como tua cativa, e mais: dobrada
de verdadeiro júbilo, por causa
sob o jugo romano? É necessário
de seu regresso a Roma. Oh grande guarda
que na rua meu filho seja morto,
do nosso Capitólio, lança olhares
por ter com brilho defendido a pátria?
graciosos para os ritos que iniciamos.
Se para ti dever sagrado é a luta
De vinte e cinco filhos valorosos,
em defesa do Rei e da república,
romanos — a metade, justamente,
conosco dá-se o mesmo. Não macules,
do número dos filhos do Rei Príamo —,
Andronico, com sangue o monumento.
contemplai os despojos miseráveis, Se a natureza queres ter dos deuses,
vivos e mortos. Recompense Roma
então faze como eles: sê bondoso,
com amor Os que vivem e com o túmulo que o penhor da nobreza é a própria graça.
junto dos seus antepassados quantos Oh! poupa, Tito, o meu primeiro filho!
eu trouxe para o pouso derradeiro. Trro - Acalmai-vos, senhora, e desculpai-me.
Somente aqui os godos consentiram Os irmãos aqui vedes dos que os godos
que eu embainhasse a espada. Por que causa, viram vivos e mortos. Pelos mortos
tão cruel e indiferente ao próprio sangue, eles exigem religiosamente
Tito, consentes que, insepultos ainda, sacrifício condigno. Vosso filho
teus filhos errem pela praia horrível foi marcado para isso; morrer deve
da Estige pavorosa? Abri caminho para acalmar as sombras que partiram.
para junto dos manos os depormos. Lúcio - Levai-o logo e acendei presto a chama.
(O túmulo é aberto.) Após, com nossos gládios, na fogueira
Lá recebei a saudação silente os membros lhe cortemos, até serem
a que os mortos já se acham habituados consumidos de todo.
e em paz dormi, oh vós que perecestes (Saem Lúcio, Quinto, Márcio e Múcio,
em defesa da pátria! Oh consagrado com Alarbo.)
depósito de minhas alegrias, TamoRA* Oh! que piedade
doce morada de ânimo e nobreza, cruel e irreligiosa!
quantos filhos aí dentro vi caídos, QuirÃo: Em qualquer tempo
que jamais me serão restituídos! metade disso foi a Cítia bárbara?

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shakespearebrasileiro.org WILLIAM SHAKESPEARE

DEMéÉTRIO * com carinho o remédio da velhice,


Não compareis — oh não! — Cítia com Roma. para alegria ao coração trazer-me!
Alarbo foi para o repouso eterno; Que à glória de teu pai, e à senectude
mas nós vivemos para sentir medo sobrevivas, Lavínia, com virtude.
sob a vista de Tito ameaçadora. Marco Viva bastante o mano, o senhor Tito,
Coragem, pois, senhora, mas ao mesmo herói gracioso aos olhos dos romanos.
tempo esperai, que as mesmas divindades Trro - Agradecido, meu gentil tribuno,
que à Rainha de Tróia ensejo deram Marco, meu nobre irmão.
de, por modo cabal, tomar vingança Marco: Sede bem-vindos,
do tirano da Trácia em sua tenda, também, sobrinhos, dessa feliz guerra;
ajudarão Tamora, a soberana os que viveis e os que dormis na glória.
dos godos — quando os godos eram godos Bravos senhores, sorte igual tivestes
e Tamora Rainha — a, nos imigos, todos quantos os gládios empunhastes
vingar-se dos ultrajes sanguinários. no serviço da pátria. Porém triunfo
(Voltam Lúcio, Quinto, Márcio e Múcio com as espadas mais brilhante é toda esta pompa fúnebre
ensangilentadas.) que à dita de Solão deu cumprimento,
Lúcio : Vede, pai e senhor, como cumprimos vencendo o acaso deste leito de honra.
os costumes romanos. Decepamos Tito Andronico, o povo da cidade,
de Alarbo os membros todos; as entranhas de que defensor leal sempre tu foste,
dele as sagradas chamas alimentam, por mim te envia, seu fiel tribuno,
cuja fumaça, parecendo incenso, este pálio de brilho imaculado
vai perfumar o céu. Só resta agora e te convida para concorreres
sepultarmos os manos e com altos à eleição para chefe do governo
cumprimentos em Roma os acolhermos. com os filhos de nosso último monarca.
Tiro - Faça-se desse modo, e que dirija Sê candidato, pois; veste este manto
Andronico a suas almas o adeus último. e dá cabeça a Roma que, nesta hora,
(Toque de trombeta; o esquife é depositado no túmulo.) carece de cabeça.
Em paz e honra repousai, meus filhos, Tiro: À esse glorioso
defensores de Roma valorosos, corpo melhor ficara uma cabeça
ao abrigo ficai aqui das dores que não tremesse de fraqueza e idade.
e das vicissitudes deste mundo. Por que envergar a toga e incomodar-vos,
Deste ponto a traição não vos espreita, ser, por aclamação, hoje escolhido,
a inveja não se exalta, não prosperam amanhã resignar o trono e a vida,
ervas malditas, não há tempestades e a todos aprestar novos trabalhos?
nem barulho; só calma e sono eterno. Roma, fui teu soldado quarenta anos,
Em paz e honra repousai, meus filhos. conduzi com vantagem teus exércitos
(Entra Lavínia.) e enterrei vinte e um filhos valorosos;
Lavínia - Em paz e honra viva o senhor Tito! todos, no campo feitos cavaleiros,
Viva com glória meu senhor e pai! de armas na mão tombaram como bravos,
Vê como a este sepulcro trago as minhas a serviço de sua nobre pátria.
lágrimas tributárias, para os ritos Dai-me um bastão, honroso para um velho,
fúnebres de meus manos, e com lágrimas não cetro de comando para o mundo:
de júbilo a teus pés ora me ajoelho, soube empunhá-lo o que o empunhou por último.
por haveres voltado. Oh! abençoa-me Marco * Tito, obterás o império, se o pedires.
com tua mão guerreira, cuja sorte SATURNINO * Orgulhoso tribuno, que disseste?
os melhores romanos enaltecem. Trro - Príncipe Saturnino, ficai calmo.
Trro : Oh boa Roma, que me preservaste SATURNINO * Romanos, sede justos; as espadas,

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shakespearebrasileiro.org Tiro ANDRONICO

patrícios, arrancai, sem que de novo de Lavínia farei minha consorte,


as embainheis, enquanto Saturnino imperatriz de Roma, de meu peito
não ficar sendo imperador de Roma. dominadora, e no Panteão sagrado
Andronico, antes para o inferno houvesses prometo desposá-la. Ouve, Andronico:
ido, do que a tal ponto me privares essa moção te deixará contente?
do coração do povo. Trro - Sim, meu digno senhor; com esse enlace
Lúcio" Saturnino considero-me honrado sumamente
presunçoso, interrompes o magnânimo por Vossa Graça. À vista, assim, de Roma,
Tito no que de bom te destinasse. a Saturnino, Rei e comandante
Trro: Calma, príncipe; vou restituir-te da república, imperador do mundo,
o coração do povo, procurando consagro minha espada, o carro e todos
de si mesmo aliená-lo. os prisioneiros, dons em tudo dignos
BASSIANO* Não te adulo, do senhor imperial da grande Roma.
Andronico, mas te honro e hei de fazê-lo
Recebe-os, pois, como tributos próprios;
enquanto vivo for. Se reforçares
aos pés te ponho os meus troféus honrosos.
meu partido com teus amigos certos,
SATURNINO * Muito obrigado, muito, alto
agradecido te serei. Bem sabes
Andronico, pai da minha existência. Quanto orgulho
que o reconhecimento, para as almas
sinto por tua causa e teus presentes,
generosas, é nobre recompensa.
Roma virá a saber; e caso eu venha
Trro : Povo de Roma, e vós, tribunos dignos,
em qualquer tempo a me esquecer da mínima
peço vosso sufrágio e vosso apoio.
parcela destes dons inestimáveis,
Para Andronico os concedeis de grado?
romanos, retirai-me vosso apoio.
TriBuUNos : Para a Andronico sermos agradáveis
e celebrarmos seu feliz retorno,
Tiro (a Tamora) - Prisioneira, senhora, sois agora
de nosso imperador, que, bem lembrado
o povo aceitará seu candidato.
Tiro - Tribunos, obrigado. Ora vos peço de vossa posição e dignidade,
que seja eleito o filho primogênito vos dará tratamento em tudo nobre
do imperador defunto, Saturnino, e a vossos seguidores.
cuja virtude, espero-o, sobre Roma SATURNINO * Em verdade,
há de lançar sua luz como na terra que dama encantadora! uma beleza
faz o Titã, deixando sazonada que eu escolhera, se tivesse ainda
nesta nossa república a justiça. de escolher outra vez. Bela Rainha,
Assim, se vos guiais por meus conselhos, clareai esse semblante nebuloso.
coroai-o e a uma voz gritai comigo: Conquanto os acidentes de uma guerra
“Que viva muito nosso imperador!” a alegria te tenham conturbado,
Marco : Com sinais de alegria os mais variados, não vieste para Roma a fim de que alvo
patrícios e plebeus, nós elegemos possas servir do opróbrio, pois tratada
imperador de Roma Saturnino, serás como princesa em toda parte.
gritando: “Viva muito Saturnino!” Fia-te no que eu digo, não deixando
(Prolongado toque de trombeta.) que a tristeza te abata as esperanças.
SATURNINO * Tito Andronico, pelo teu auxílio Senhora, quem vos diz essas palavras
hoje em nossa eleição, como o mereces, poderá vos deixar maior ainda
os agradecimentos te apresento, que a Rainha dos godos. Não vos causa
prometendo pagar-te a gentileza desagrado, Lavínia, quanto eu disse?
por meio de atos claros. E de início, Lavínia - Não, senhor, pois uma real nobreza
Tito, para exalçar tua família vos garante as palavras, é certeza.
em tudo nobre, e tua própria fama, SATURNINO Doce Lavínia, muito agradecido.

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shakespearebrasileiro.org WiLLIAM SHAKESPEARE

Vamos, romanos. Sem nenhum resgate, Às cegas não confio em quem fez mofa
libertemos os presos. Nosso título de mim alguma vez; em ti tampouco,
proclamai com trombetas e tambores. nem em teus filhos, falsos e insolentes,
(Fanfarra, Saturnino, por mímica, faz a corte a Tamora.) que se reuniram para desonrar-me.
BassiANo : Senhor Tito, com vossa permissão, Tirante Saturnino, não havia
esta donzela é minha. quem em Roma servisse de brinquedo?
(Apodera-se de Lavínia.) Mui de acordo esses atos, Andronico,
Trro- Como! Como! estão com tua afirmativa tola
meu senhor! Por acaso falais sério? de que eu pedi de tuas mãos o império.
BassIANO * Sim, nobre Tito, e resolvido, ainda, Trro - Monstruoso! Que censura me assacaste?
a defender à força o meu direito. SATURNINO * Prossegue assim em teu caminho;
Marco - Suum cuique, é a justiça dos romanos; entrega essa mulher volúvel ao que a espada
só reclama o que é dele nosso príncipe. por ela manejou. Vais ter um genro
Lúcio - E há de obtê-lo, se Lúcio tiver vida. muito valente, feito para aliar-se
Trro : Traição! traição! Onde se encontra a guarda à malta de teus filhos turbulentos,
do imperador? Traição, senhor! Lavínia que o alvoroto implantaram na república.
foi surpreendida. Trro- O coração ferido essas palavras
SATURNINO Surpreendida, como? me atingem como acúleos.
Por quem? SATURNINO * Por tudo isso,
BassiANO * Por quem agora arrebatara soberana dos godos, admirável
de todo o mundo a sua noiva cara. Tamora, que, tal como Febe augusta
(Saem Marco e Bassiano, com Lavínia.) entre suas ninfas, na penumbra deixas
Múcio - Ajudai-nos, irmãos, a retirá-la; as romanas mais belas e galantes:
com meu gládio defendo esta saída. se concordares nesta minha súbita
(Saem Lúcio, Quinto e Márcio.) resolução, escolho-te, Tamora,
Trro : Príncipe, ide empós dela, que, de volta, para noiva, criando-te ora mesmo
vo-la trarei já, já. de Roma a imperatriz. Dize, Rainha
Múcio - Por este lado, dos godos: não aplaudes minha escolha?
senhor, não passareis. E agora juro pelos nossos deuses,
Trro- Menino à-toa, já que padre e água-benta temos perto,
como! Queres barrar-me a estrada em Roma? e os fachos brilham tanto, estando tudo
(Apunhala Múcio.) pronto para o himeneu, que me é impossível
Múcio : Socorro, Lúcio! Aqui! (Morre.) rever de Roma as ruas ou de novo
(Volta Lúcio.) entrar em meu palácio, se comigo
Lúcio Fostes injusto, daqui não te levar consorte.
meu senhor, mais do que isso, pois matastes Tamora- E ante a face do céu a Roma eu juro
numa querela injusta vosso filho. que se elevar até ele Saturnino
Trro - Não, filhos meus não sois, nem vós nem ele. a Rainha dos godos, ela escrava
Nunca meus filhos me desonrariam será de seus desejos, amorável
por esse modo. Vamos, restituí ama e mãe para sua mocidade.
Lavínia, biltre, ao nosso imperador. SATURNINO - Bela Rainha, vamos ao Panteão.
Lúcio - Morta, se o desejares, porém nunca Acompanhai, senhores, vosso digno
para ser sua esposa, por achar-se imperador e sua bela noiva,
prometida para outro. mandada pelo céu a Saturnino,
(Sai.) que lhe dará futuro mais risonho.
SATURNINO * Não, não, Tito, Realizaremos lá o desposório.
o imperador já não precisa dela, (Saem todos, com exceção de Tito.)
nem de ti, de ninguém de tua estirpe. Trro - Convite não me fez para o cortejo.
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shakespearebrasileiro.org Tiro ANDRONICO

Tito, quando ficaste tão sozinho, Marco Irmão, implora


desonrado e de ultraje encurvado? em semelhante nome a natureza...
(Voltam Marco, Lúcio, Quinto e Márcio.) Quinro - Pai, nesse nome a natureza fala...
Marco: Oh Tito, Tito! Vê o que fizeste: Tiro Silêncio, para que eu os outros ouça.
numa disputa estúpida mataste Marco : Grande Tito, metade de minha alma...
um filho tão virtuoso! Lúcio - Querido pai, substância de nós todos...
Trro- Não, tribuno Marco : Permite que teu mano Marco enterre
tolo, não é meu filho, como nada neste ninho virtuoso seu sobrinho
és para mim, nem tu nem nenhum desses que com honra morreu e na defesa
que a ti se uniram para esse ato baixo da causa de Lavínia. És um romano,
que desonrou nossa família toda. não sejas bárbaro, que os próprios gregos,
Filhos indignos! Irmão és indigno! após conselho, deram sepultura
Lúcio - Mas deixai que o enterremos como cumpre: a Ajaz que se matara, tendo o filho
junto dos manos deponhamos Múcio. prudente de Laertes defendido
Tiro Traidores, para trás! O corpo dele com calma os funerais. Assim, não queiras
não será colocado no sepulcro. excluir deste sepulcro o jovem Múcio,
Já tem quinhentos anos este túmulo teu filho predileto até há momentos.
que eu mandei refazer com todo o esmero. Trro - Marco, levanta-te. Este é o mais terrível
Em honra aqui repousam tão-somente dia que eu já vivi. Ser por meus filhos
guerreiros e de Roma defensores, em Roma desonrado! Bem; enterra-o,
não quem venha a morrer vilmente em rixas. e a mim logo depois.
Sepultai-o onde bem vos aprouver, (O corpo de Múcio é deposto no túmulo.)
Lúcio: Querido Múcio,
que aqui não será posto.
repousa aí, ao lado dos amigos,
Marco Isso é impiedade,
até que te enfeitemos o sepulcro.
senhor, de vossa parte. Os altos feitos
Topos (ajoelhando-se).
de meu sobrinho Múcio muito o exaltam;
Ninguém derrame lágrimas no corpo
tem de ser sepultado com seus manos.
do jovem Múcio, pois com glória vive
Quinto E Márcio : Terá de sê-lo, ou então o
quem morreu pela causa da virtude.
seguiremos.
Marco Senhor, porque a tristeza dissipemos,
Trro - Terá de ser? Que biltre afirmou isso?
como acontece que a sutil Rainha
Quinto - Quem o sustentará em toda parte,
dos godos tão de súbito tivesse
menos aqui.
subido tanto em Roma?
Trro: Como! Estareis disposto,
Trro- Não sei, Marco;
mesmo, a inumá-lo, embora a meu mau grado? só sei que é isso mesmo. Se houve astúcia,
Marco : Não, nobre Tito; mas te conjuramos somente o céu dizer nos poderia.
a perdoar Múcio e dar-lhe sepultura. Mas não deve ela obrigações ao homem
Trro- Tu também, Marco, me assestaste um golpe que a fez feliz, trazendo-a de tão longe?
e com esses rapazes me deixaste Marco : Decerto; e há de premiá-lo nobremente.
estraçalhado o nome. Considero-vos (Fanfarra. Entram, por um lado, Saturnino com seu
a todos inimigos. Assim sendo, séquito, Tamora, Demétrio, Quirão e Aarão; por outro,
cessai de importunar-me e parti logo. Bassiano, Lavínia e outras pessoas.)
Márcio - Está fora de si, vamos embora. SATURNINO * Bassiano, assim ganhastes vosso
Quinto - Não me retirarei, enquanto os ossos prêmio; que Deus, senhor, vos dê felicidade
não sepultar de Múcio. com vossa bela esposa.
(Marco e os filhos de Tito se ajoelham.) BassIANO * E a vós com a vossa,

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shakespearebrasileiro.org WiLLIAM SHAKESPEARE

meu senhor; não vos digo senão isso, À franqueza da cólera é que exprime
nem menos vos desejo. E aqui despeço-me. seu imenso pesar. Para agradar-me,
SATURNINO * Traidor, havendo lei em Roma ou portanto, lança-lhe um olhar benigno.
força no nosso braço, tu e teus sequazes Não percas, por suposições sem base,
vireis a arrepender-vos deste roubo. um amigo tão digno, nem aflijas
Bassiano : Chamais, senhor, de roubo o apoderar-me seu gentil coração olhando-o duro.
do que é meu mesmo, a que era minha noiva (À parte, a Saturnino.)
e ora é minha consorte? Que decidam Senhor, deixai que eu vos oriente nisto;
sobre isso as leis de Roma, que, entrementes, cedei, dissimulai vosso desgosto.
de posse fico do que me pertence. É de temer que o povo, juntamente
SATURNINO - Pois não, senhor. Tratais-nos secamente: com os patrícios, após melhor exame,
mas, se vida tivermos, haveremos se passe para Tito, derrubando-vos,
de vos tratar mais secamente ainda. então, sob o pretexto de que fostes
BassIANO * Senhor, por quanto fiz, do melhor modo para com ele ingrato, o que reputa
que possível me for, sou responsável, Roma um dos crimes mais abomináveis.
embora nisso empenhe a própria vida. Concedei-me esse ponto e aos meus cuidados
Apenas direi isto a Vossa Graça: deixai o resto, que hei de achar o dia
por meus deveres todos para Roma, para matar a todos e a família
este nobre senhor, o nobre Tito destruir e seu partido, o cruel Tito
foi ultrajado na honra e no conceito, juntamente com seus traidores filhos,
pois, tentando Lavínia restituir-vos, a quem a vida supliquei, embalde,
com a própria mão matou seu filho Múcio, de meu querido filho. Hei de ensinar-lhes
por zelo a vossa causa e de indignado o que seja ajoelhar-se uma Rainha
por contrariado ver-se numa dádiva em plena rua e suplicar em vão.
tão espontânea e livre. Assim, concede-lhe (Alto.)
o teu favor de novo, Saturnino, Querido imperador, vem! Andronico,
pois em seus atos ele pai e amigo vem para cá. Levanta este bom velho,
de ti se mostrou sempre e da cidade. e o coração lhe alegra, que sucumbe
Trro - Deixa de defender meus atos, príncipe à vista dos bulcões de teu conspecto.
Bassiano. Desonrado eu fui somente SATURNINO De pé, Tito, de pé, que minha esposa
por ti e esses aí. Roma e o céu justo prevaleceu.
podem testemunhar o acatamento Trro: À Vossa Alteza e a ela,
€ o amor que votei sempre a Saturnino. senhor, muito agradeço. Essas palavras
Tamora * Muito digno senhor, se em qualquer tempo e esses olhares me dão outra vida.
teus olhos reais algum prazer acharam Tamora Incorporado a Roma, Tito, me acho,
em contemplar Tamora, então permite reconhecida agora felizmente
que imparcialmente sobre todos fale: como romana. Cumpre-me, portanto,
perdoa, amor, o que passou, te peço. aconselhar o imperador em tudo.
SATURNINO * Como, senhora! Ver-me desonrado Morrem hoje, Andronico, as rixas todas;
de público, e perdoar covardemente, deixai que seja o meu mais belo título,
sem de nada tomar cabal vingança? meu senhor, ter-vos eu reconciliado
Tamora * Não, meu caro senhor. As divindades com estes vossos amigos. Dei a minha
de Roma não consintam que eu me tome palavra de honra, príncipe Bassiano,
para vós um motivo de desonra. ao meu marido em como de futuro
Mas a honra atrevo-me a empenhar em como vos mostrareis mais dócil e tratável.
o senhor Tito em tudo está inocente. Assim, ficai tranquilos, meus senhores.

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shakespearebrasileiro.org Trro ANDRONICO

E vós, também, Lavínia. E agora todos, perdôo a falta odiosa destes moços.
seguindo meu conselho, arrependidos Levantai-vos.
ireis ficar de joelho, para a Sua Lavínia, muito embora me tivésseis
Majestade pedir que vos perdoe. deixado como a um biltre, tive sorte,
Lúcio - Assim faremos, e juramos diante tendo jurado pela morte certa
de Sua Alteza que fizemos tudo não me afastar do altar como solteiro.
com boas intenções, visando apenas Vamos; se houver espaço no palácio
a honra de nossa irmã e a nossa própria. do imperador para um noivado duplo,
Marco : É o que eu também confirmo sob palavra. meus hóspedes sereis, Lavínia, e todos
SATURNINO * Retirai-vos; cessai de incomodar-nos. esses vossos amigos. Hoje o dia
Tamora Não, não, meu caro imperador; teremos vai ser de amor, Tamora.
de ser amigos. Marco e seus sobrinhos Tiro: Caso Vossa
vos imploram de joelhos. Impossível Majestade concorde, amanhã mesmo
será que indefirais esse pedido. comigo caçareis pantera e veado.
Vira para o meu lado, coração. Com latidos e trompa, muito cedo
SATURNINO : Por teu pedido, Marco, e de teu mano, vos daremos bom dia.
bem como pelas súplicas instantes SATURNINO : Pois que seja,
da graciosa Tamora, minha esposa, Tito, assim mesmo; muito agradecido.
(Saem.)

Ato HH Cenal
Roma. Diante do palácio. do que amarrado Prometeu no Cáucaso.
Entra Aarão. Fora as vestes de escravo e idéias baixas!
Luzido querer ser, brilhar com pérolas
Aarão * Tamora já subiu para o alto Olimpo, e ouro para servir à soberana

fora dos botes da fortuna incerta; recém-casada. Quê! Para servi-la?


ao abrigo se encontra, entronizada, Direi melhor: para folgar com ela,
do estrondo do trovão e, assim, do fogo esta Rainha, deusa, esta Semíramis,
do relâmpago, longe das ameaças ninfa, sereia que encantar vai prestes
da descorada inveja. Assim como o áureo a Roma do consorte, conduzindo
sol saúda a manhã e, tendo o oceano para o naufrágio o imperador e o Estado.
dourado com seus raios e o zodíaco (Entram discutindo Demétrio e Quirão.)
medido com seu carro esplendoroso, DemérriIO * Quirão, teus poucos anos mostram falha
paira por cima dos mais altos montes: de entendimento; teu entendimento
assim Tamora faz. não tem penetração, não tens maneiras
Dobram-se ao seu espírito as terrenas para que te insinues deste modo
honrarias e, ao cenho seu fechado, junto de quem aceita minha corte
pára e treme a virtude. Aarão, por isso, e que, pelo que viste, é conquistável.
reforça o coração e aguça o espírito, QuirÃo - Demétrio, sempre foste presumido,
para alcançar tua imperial senhora como agora te mostras, pretendendo
na altura em que ela está, já que de há muito que com tuas bravatas me intimide.
em teu triunfo prisioneiro a trazes, À diferença de um ou de dois anos
acorrentada aos elos amorosos, não há de me deixar menos gracioso,
e ao fascinante olhar de Aarão mais presa ou a ti com mais ventura. Considero-me
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tão hábil como tu e tão capaz Amo Lavínia mais que a todo o mundo.
de alcançar o favor de uma senhora. Demérrio : Mocinho, tem cuidado; faze escolha
Aarão: Aqui! Aqui! Dois namorados brigam! mais modesta, porque Lavínia é a meta
Demérrio - Menino, se, por imprudência, nossa de teu irmão mais velho.
mãe vos deu essa espada de brinquedo, AaRrÃo- Porventura
tanto vos exaltais, que contra um próprio ficastes louco? Ignorais, acaso,
parente arremeteis? Deixai guardada como os homens em Roma são violentos
vossa ripa até terdes aprendido e impacientes, sem nunca permitirem
como deveis brandi-la. competição no amor? Senhores, digo-vos
QuirÃo: Nesse em meio, que assim fazendo procurais a morte.
senhor, a minha pouca habilidade QuirÃo Aarão, aceitaria dez mil mortes
te mostrará quanto a fazer me atrevo. para vir a possuir a minha amada.
Demérrio - Como, menino! Estais tão exaltado? Aarão : Possuir! De que maneira?
(Sacam das espadas.) DemérriIO * Que te causa esse espanto? Ela é mulher;
Aarão : Senhores, ora! Ousais sacar da espada pode ser cortejada. Ela é mulher;
tão perto, assim, da casa do monarca, pode ser conquistada. Ela é Lavínia;
e defender vossa querela em público? poderá ser amada. Ora, homem! Ora!
Conheço bem a causa dessa rixa. Muito mais água passa pelo moinho
Mas não quisera por nenhum tesouro do que o moleiro pensa, e é muito fácil —
que vos ouvisse quem tem parte nisso, sabe-lo bem — tirar uma fatia
nem vossa mãe por muito mais quisera de um pão antes cortado. Embora seja
vir a ficar tão desonrada em Roma. Bassiano irmão do Rei, gente mais alta
Corai do que fazeis. Guardai a espada! já tem usado o enfeite de Vulcano.
Demérrio : Não, só o farei depois de mergulhá-la AARÃO (à parte) * Pois não, tão alta como Saturnino.
no peito dele e, pela goela abaixo, DemérRio Então, por que desesperar quem sabe
ter-lhe empurrado os termos insultuosos fazer a corte com olhares meigos,
que ele aqui disse para desonrar-me. palavras e presentes? Como! Nunca
QuirÃo : Para isso estou disposto e preparado, te aconteceu matar estranha corça
covardão desbocado, que trovejas e carregá-la ante o nariz do dono?
apenas com palavras, sem coragem AarÃo Um rapto, ou coisa assim, bem me parece,
teres de fazer uso desse gládio. melhor vos conviria nesse caso.
Aarão - Para trás, digo! QuirÃo: Oh! conviria.
Agora, pelos deuses que os guerreiros DemérRriIO- Aarão, deste no vinte.
godos adoram, esta rixazinha Aarão - Prouvera que também houvésseis dado,
poderá desgraçar-nos num momento. porque ora eu não me visse tão cansado
Senhores, não pensastes, porventura, com todo este barulho. Ouvi-me! ouvi-me!
no risco que correis, para pisardes Sois tão tolos assim, para brigardes
nos direitos de um príncipe? Lavínia por semelhante coisa? Ficaríeis
terá caído tanto, ou tão sem brio aborrecidos, se ambos obtivésseis
Bassiano está, que pelo afeto dela êxito junto dela?
possam surgir disputas, sem nenhuma QuirÃo- Eu não, decerto.
proibição, castigo nem vingança? Demérrio : Nem eu também, se tomar parte nisso.
Muito cuidado, jovens! Se a Rainha Aarão Ora, que opróbrio! Que vos faça amigos
viesse a saber a causa desta briga, quanto ora vos separa. Com política
desafinada a música acharíeis. e habilidade alcançareis o intento.
QuirÃo - Que me importa o saiba ela e todo o Seja este vosso plano; não podendo
mundo? levar a cabo o que é do vosso agrado,

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por violência alcançai o que puderdes. a toda sorte de vingança e infâmias,


Aceitai meu conselho: mais pudica com seus conselhos mais limados há de
do que Lucrécia nunca foi Lavínia, deixar nossos recursos, não querendo
a esposa de Bassiano. Precisamos que venhais a brigar. Pelo contrário;
encontrar uma estrada mais direta a ambos porá no cimo dos desejos.
do que tantos requebros demorados. Como a casa da Fama é nossa corte:
Encontrei o caminho. Meus senhores, cheio de línguas, de olhos e de ouvidos
uma caçada esplêndida se apresta. o palácio está sempre, mas a mata
Às romanas gentis tomarão parte. é insensível, terrível, surda e obtusa.
Espaçosas e grandes alamedas Ali falai e agi, bravos rapazes,
a floresta apresenta, como passos saciai vosso apetite, protegidos
em quantidade menos fregiuentados, do claro olhar do céu e no tesouro
próprios para a violência ou qualquer crime. de Lavínia à vontade regalai-vos.
Fazei que para um ponto desses vossa Qurrão - Teu conselho, rapaz, não mostra cheiro
corça gentil se aparte e dominai-a de covardia.
pela força, se não por argumentos. DeméTRIO - Sit fas aut nefas até que a corrente
Só assim podereis ter esperanças; possa encontrar em que acalmar o fogo,
de outro jeito, nenhuma. Contar vamos qualquer encanto para os meus transportes.
a nossa imperatriz esse projeto; Per Styga, per manes vebor.
seu espírito agudo, consagrado (Saem.)

Ato IH: Cena II


Uma floresta. uma caçada muito barulhenta.
Ouve-se toque de trombeta e latido de cães. SATURNINO * E alegre, meu senhor, mas porventura
Entra Tito Andronico com caçadores etc., Marco, Lúcio, cedo demais para recém-casadas.
Quinto e Márcio. BassiaNo : Lavínia, que dizeis?
Lavínia: Não acho cedo;
Trro - Principiou a caçada, bela e clara acordada já estava havia duas
vem rompendo a manhã; cheiroso é o campo, horas ou mais.
verdejantes os bosques. Desatrela SATURNINO : Então vamos embora.
neste lugar os cães, que sua bulha Tragam-nos logo carros e cavalos.
desperte o imperador e a bela esposa, (A Tamora.)
faça acordar o príncipe. Toquemos Assistireis agora a uma caçada
um carrilhão de caça, porque à volta romana, cara esposa.
toda a corte reboe. Filhos, seja Marco Meus cachorros,
vosso cuidado, como é também nosso, senhor, farão correr a mais ardente
zelar com bem carinho da pessoa pantera da floresta, e são capazes
do imperador. Durante toda a noite de subir ao mais alto promontório.
incomodado fui por pesadelos; Trro - E meus cavalos seguirão a caça
mas conforto me deu o novo dia. por onde quer que vá, de leve o plaino
(Latido de cães e toque de trompa em confusão. roçando como lestes andorinhas.
Entram Saturnino, Tamora, Bassiano, Lavínia, DEMÉTRIO (à parte) *
Demétrio, Quirão e pessoas do séquito.) Quirão, não temos galgos nem cavalo,
Muitos bons dias para Vossa Alteza! mas nossa corça nos dará regalo.
E para vós, princesa, o mesmo número (Saem.)
de dias venturosos. Prometi-vos

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Ato II - Cenall
Trecho isolado da floresta. meu olhar fixo e anunciador da morte,
Entra Aarão com uma bolsa de ouro. meu silêncio, esta atroz melancolia,
este velo lanoso de cabelos
AarÃo * Quem tem inteligência há de julgar-me que se distende agora como serpe
destituído dela, porque embaixo que se prepare para o fatal bote?
de uma árvore tanto ouro enterrar venho, Não, princesa, não são sinais de Vênus.
dele, assim, me privando inteiramente. No coração abrigo só vingança,
Fique sabendo, pois, quem tão mesquinho morte tenho nas mãos, sangue e vindita
conceito faz de mim que todo este ouro martelam-me a cabeça. Ouve, Tamora,
um plano me cunhou que, se com jeito Rainha de minha alma, que só aspira
for realizado, há de trazer ao mundo conservar teu céu íntimo; este dia
uma obra-prima de velhacaria. vai ser para Bassiano decisivo;
Ouro, aí fica e o mal produze asinha ficará muda a sua Filomela;
em quem achar a esmola da Rainha. teus filhos vão roubar-lhe a castidade
(Esconde o ouro.) e a mão lavar no sangue de Bassiano.
(Entra Tamora.) Vês esta carta? Lê-a, por obséquio
Tamora * Querido Aarão, por que te mostras triste, e ao Rei entrega este fatal escrito.
quando tudo em redor é provocante Não me perguntes nada mais, estamos
de tanta alacridade? Os passarinhos sendo espiados. Eis que vem chegando
em cada ramo cantam melodias, uma parte do nosso gordo espólio
a serpente se aquece ao sol risonho, que não suspeita de sua queda próxima.
as folhas tremem sob o vento fresco, Tamora * Oh! doce mouro, para mim mais doce
no chão fazendo sombra axadrezada. que a própria vida!
Descansemos, Aarão, sob este abrigo, AARÃO Nada mais, Rainha;
e enquanto os ecos brincalhões despistam Bassiano já vem perto. Neste em meio
os cães, com voz aguda repetindo vou procurar teus filhos e ajudá-los,
a fanfarra das trompas harmoniosas seja qual for a causa que defendam.
como se a um só tempo percebêssemos (Sai.)
uma dupla caçada, descansemos (Entram Bassiano e Lavínia.)
para apreciar esse latido alegre. BassiaNo : Oh! quem vemos? De Roma a alta
E depois do conflito apaixonado Rainha, separada de seu brilhante séquito?
que o herói errante e Dido — é o que se conta — Ou será Diana com a aparência dela,
outrora aproximou, quando se viram que seus bosques sagrados abandona
por feliz tempestade surpreendidos para ver a caçada na floresta?
e em discreta caverna se abrigaram: TAaMoRA* Atrevido censor de nossos passos
assim, nos braços um do outro presos, particulares, se eu tivesse a força
concluído o passatempo, poderemos que a Diana todos dão, desde este instante
dormir um sono de ouro, enquanto as trompas, com os cornos de Actéone ficaras,
o latido dos cães, a voz dos pássaros e os cachorros a forma transmudada
serão o canto, para nós, das amas, te dilacerariam, insolente,
que faz dormir no berço a criancinha. intrometido que és.
AARÃO * Minha senhora, muito embora Vênus Lavínia Com vossa graça,
mande em vossos desejos, é Saturno gentil imperatriz, mas todos dizem
dominador dos meus. Que significa que em matéria de cornos sois sabida,

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sendo de crer que vós e o vosso mouro quando não cai incontinenti morta,
vos apartastes dos demais apenas Mal tinham terminado o infernal conto,
para tentar a prova. Ampare Jove ameaçaram-me os dois de me amarrarem
dos cães vosso marido neste dia, no tronco deste teixo pavoroso,
que poderão tomá-lo-por um gamo. para eu vir a morrer por modo horrível.
BassiaNo : Rainha, podeis crer, vosso noturno Chamaram-me, depois, de infame adúltera,
cimeriano vossa honra deixa escura goda lasciva, enfim, todos os termos
como a epiderme dele: detestada, insultuosos que nunca ouvido humano
manchada, abominável. Por que causa tenha entendido para tal efeito.
vos encontrais do séquito afastada? E, se, por um milagre, não tivésseis
Por que deixastes vosso bom cavalo aparecido aqui, eles teriam
branco de neve e viestes esconder-vos levado a cabo o plano. Assim, vingai-me,
neste recanto obscuro, pelo bárbaro se amais a vossa mãe e não quiserdes
mouro seguida, se não vos houvesse que de chamar de filhos eu vos deixe.
trazido algum desejo obsceno e torpe? DemérriO : Eis à prova de que ainda sou teu filho.
Lavínia * E tendo sido perturbada em vosso (Apunhala Bassiano.)
divertimento, é justo que meu nobre QuirãÃo - E isto vai demonstrar se eu tenho força.
senhor seja acoimado de impudente. (Apunhala também Bassiano, que morre.)
Por favor, vamos logo, concedamos-lhe
Lavínia * Semíramis... Não, não! Tamora bárbara,
os prazeres do amor da cor de corvo.
pois só te fica bem teu próprio nome,
Este vale é mui próprio para o feito.
é tua a vez.
BassiaNo : O Rei meu mano, vai saber de tudo.
Tamora Empresta-me essa adaga.
Lavínia * Apontado já foi por essas coisas.
Vereis que a mão de vossa mãe, meus filhos,
Bom Rei, como tens sido ludibriado!
punir sabe os insultos a ela feitos.
Tamora : Como tenho paciência para tanto?
Demérrio *
(Entram Demétrio e Quirão.)
Parai, senhora! Ela vai ver mais que isso.
Demérrio * Querida soberana, mãe graciosa,
Malhai primeiro o trigo e, após, a palha
qual a razão de achar-se vossa Alteza
às chamas entregai. Da castidade
tão pálida e confusa?
TAMORA* Porventura se orgulha esta boneca, de seu voto
não terei causa para ficar pálida? conjugal, da lealdade, e com virtude
Estas duas pessoas me atraíram tão bem pintada contra vós se atreve.
para este vale, como vedes, árido Levará, pois, tudo isso para o túmulo?
e desolado; as árvores, embora QuirÃo - Se tal se der, eunuco me declaro.
no verão estejamos, desfolhadas Levemos o marido dela para
e ressequidas se acham, pelo musgo qualquer lugar secreto e de seu corpo
dominadas e pelo fatal visgo. sem vida um travesseiro para nossa
Nunca se mostra o sol, nada aqui vive, luxúria preparemos.
se não for tão-somente o fatal corvo Tamora* Após terdes,
e a coruja noturna. E, ao me mostrarem porém, provado o mel, tirai a vida
este passo horroroso, me disseram dessa vespa, porque ela não nos pique.
que aqui, durante a noite, às horas mortas, QuirÃo : Sobre isso, vos afirmo: tomaremos
dez mil espíritos, silvantes serpes, nossas medidas. Vamos, minha bela,
dez mil támidos sapos e outros tantos teremos de provar, à força, dessa
ouriços tão terrível e confusa virtude que guardais com tanto zelo.
gritaria levantam, que a pessoa Lavínia * Oh Tamora! tens rosto feminino...
mortal que a perceber logo enlouquece, Tamora- Levai-a logo, não desejo ouvi-la.

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Lavínia - Pedi-lhe, meus senhores, que me escute Tamora- Que pedias, então? Deixa-me, louca!
só uma palavrinha. Lavínia * Quero a morte imediata, simplesmente,
DEeMéÉTRIO* Dai-lhe ouvidos, e algo mais, que dizer não me permite
bela senhora. Seja vossa glória a língua da modéstia. Oh! não permitas
contemplar suas lágrimas, mas que estas que eles dêem expansão a essa luxúria
ao coração vos sejam como as gotas que é muito pior que a morte. Nalgum fosso
da chuva para a rocha inabalável. me atira, horrível, onde o olhar humano
Lavínia - Em que tempo se viu os tigrezinhos jamais possa enxergar-me. Assim fazendo
algo à mãe ensinarem? Essa fúria serás uma assassina caridosa.
já a recebeste dela, não lha ensines. Tamora* Meus filhos privarei de sua paga?
O leite que mamaste virou mármore; Essa bondade seu prazer estraga.
tua crueldade vem do peito dela. Demérrio * Vamos! Já nos prendeste muito tempo.
Mas os filhos nem sempre saem à mãe. Lavínia - Nenhuma compaixão nem graça encontro?
(A Quirão.) Oh criatura bestial, mancha e inimiga
Concita-a a ser como mulher: piedosa. de nosso comum nome: que a ruína
QuirÃo - Desejas que bastardo me declare? te caia em cima...
Lavínia * Não gera o corvo a cotovia, é certo. QuirÃo* À boca vou tapar-te.
Porém já ouvi contar— oh! se isso agora Traze o marido dela; é nesta furna
se confirmasse! — que pela piedade que Aarão mandou lançássemos o corpo.
movido, o leão consente que lhe aparem (Demétrio atira o corpo de Bassiano no precipício; depois
as garras reais, como há também quem diga saem Demétrio e Quirão arrastando Lavínia.)
que os corvos dão comida aos pequeninos Tamora* Adeus, filhos; em bom lugar a pondes.
enjeitados, enquanto nos seus ninhos Jamais conhecerá prazer legítimo
deixam morrer à fome os próprios filhos. meu coração, enquanto não ficarem
Oh! muito embora o coração de pedra os Andronicos todos liquidados.
te diga não, revela-te comigo, Vou ver agora o meu querido mouro.
não direi tão bondosa, mas amiga. E que ela perca logo o seu tesouro.
Tamora Não sei o que seja isso. Vamos logo! (Sai)
Lavínia : Oh! deixa que to ensine agora. Em nome (Entra Aarão, com Quinto e Márcio.)
de meu pai que podendo dar-te a morte, AarÃo * Vinde, senhores, o pé firme adiante.
te deixou viva, não te mostres dura, Vou mostrar-vos o horrível precipício
abre os ouvidos surdos. em que a pantera vi adormecida
TamoRA- Muito embora profundamente.
nunca ofendido me tivesses, nunca, Quinto Tenho a vista turva;
justamente por causa desse nome não sei o que seja isso.
teria de mostrar-me sem piedade. Márcio * Eu também tenho,
Lembrai-vos, filhos, que eu chorei debalde posso afirmar. Não fosse ter vergonha,
para que vosso irmão salvar pudesse deixava a caça e descansava um pouco.
do sacrifício, mas o fero Tito (Cai no fosso.)
não se deixou mover. Assim, levai-a Quinto * Como! Caíste! Que traiçoeiro fosso
e com ela fazei o que entenderdes. será este, de boca recoberta
Quanto pior para ela, mais aplausos de espinhos rudes, cujas folhas mostram
de mim recebereis. gotas de sangue fresco, tão recente
Lavínia: Oh! sê Rainha como o orvalho nas flores matutinas?
gentil, Tamora, e neste mesmo instante Esse lugar parece ser funesto.
com tua própria mão me tira a vida. Fala, mano; feriste-te na queda?
Não era a vida que eu pedia tanto; Márcio * Sim, feri-me no quadro mais horrendo
morto Bassiano, eu também morta fora. que ao coração chorar já fez a vista.

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AARÃO (à parte) * de Bassiano infeliz. Vigor não tenho


Agora vou fazer que o Rei os ache, para fazer que venhas até a borda.
para que pense, pelas aparências, Márcio - Nem eu para subir sem teu auxílio.
que são os assassinos do irmão dele. Quinto - Dá-me outra vez a mão; não vou soltá-la
(Sai) enquanto não puder pôr-te aqui fora,
Márcio - Por que não me confortas nem me ajudas ou aí dentro cair. Vir não consegues
a sair desta cova amaldiçoada para onde estou: irei ficar contigo.
e manchada de sangue? (Precipita-se.)
QuinTO* Apoderou-se (Volta Aarão com Saturnino.)
de mim um medo horrível, suor frio SATURNINO : Vem comigo; desejo ver o fosso
me escorre pelas juntas vacilantes. e quem acaba de saltar lá dentro.
O coração suspeita muita coisa Responde-me: quem és, que neste instante
que a vista não percebe. nessa fenda da terra penetraste?
Márcio * Para veres Márcio - Do velho Tito o filho desgraçado,
como teu coração foi verdadeiro, num momento infeliz aqui trazido,
com Aarão olha para aqui, contempla para achar morto teu irmão Bassiano.
esta cena de sangue e morticínio. SATURNINO : Meu irmão? Deve ser pilhéria tua.
Quinto : Aarão já foi embora; o comovido Ele e a esposa se encontram na barraca
coração não consente que meus olhos do lado norte deste ameno bosque.
se fixem no que trêmulos o deixam Não faz uma hora que os deixei lá mesmo.
por simples conjeturas. Mas descreve-me Márcio : Não podemos saber onde o deixastes,
o que se passa; nunca fui tão criança mas — oh dor! — encontramo-lo aqui morto.
como nesta hora, para sentir medo, (Volta Tamora com pessoas do séquito, Tito Andronico e
sem saber bem de quê. Lúcio.)
MÁRCIO * O nobre príncipe Tamora : Onde está meu marido?
Bassiano está todo banhado em sangue, SATURNINO * Aqui, Tamora,
como ovelha abatida, neste fosso embora aflito por mortal tristeza.
maldito, escuro e recendente a crime. Tamora: E teu irmão Bassiano?
Quinto : Como o reconheceste, se está escuro? SATURNINO * Ora mexeste
MárcIO : É que ele traz no dedo ensangiientado no mais fundo da chaga; o desgraçado
uma pedra preciosa que ilumina Bassiano assassinado ali se encontra.
toda a caverna e que, tal como círio Tamora: Tarde demais, então, venho trazer-te
de túmulo, a feição terrosa aclara este fatal escrito, todo o plano
do cadáver e mostra os intestinos da tragédia nefasta.
rugosos deste fosso. Não mais pálida (Entrega-lhe uma carta.)
brilhou a lua sobre o pobre Píramo Causa pasmo
na noite em que cle morto se encontrava que o rosto humano esconda entre sorrisos
no sangue virginal. Oh mano! ajuda-me agradáveis um crime tão hediondo.
com tua fraca mão — temo que o medo, SATURNINO : “Se não nos for possível alcançá-lo
tal como a mim, fraca a tivesse feito — de jeito, caro caçador — refiro-me
a sair deste horrendo receptáculo, a Bassiano — não deixes, pelo menos,
odioso como as fauces do Cocito. de abrir-lhe a sepultura. À recompensa
QuinrTo : Estende-me tua mão, para que eu possa a encontrarás no meio das urtigas,
ajudar-te a sair. Caso eu não tenha ao pé do sabugueiro, junto ao fosso
força para prestar-te esse serviço, em que devemos enterrar Bassiano.
nas fauces tragadoras desse abismo Faze isso e terás ganho amigos certos.”
serei também lançado à sepultura Este é o fosso, e este o pé de sabugueiro.

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Vede, senhores, se encontrais por perto TAMORA:


o caçador que assassinou Bassiano. Não, o próprio Andronico.
AARÃO * Eis a bolsa de moedas, caro príncipe. Trro- Sim, realmente,
SATURNINO (4 Tito) * senhor; mas permiti que eu fique sendo
Dois cães de tua estirpe sanguinária o fiador deles. Pela sepultura
a vida a meu irmão aqui tiraram. veneranda de meus antepassados,
Arrancai-os, senhores, deste fosso a um aceno de Vossa Majestade
e os ponde sob custódia, até que eu tenha eles prontos estão para, com o sangue,
pensado nalgum meio de inaudita se defenderem de qualquer suspeita.
tortura para os dois. SATURNINO - Fiador não serás deles, vem comigo;
TamoRA* Como! Estão dentro alguém traga o cadáver, sem demora;
desse buraco? Oh coisa extraordinária! outros, os assassinos, não deixando
Um crime se descobre facilmente. que conversem. A culpa está patente.
Trro - Possante imperador, sobre os meus fracos Pois, em verdade, se pior fim houvesse
joelhos quero suplicar-te a graça do que a morte, esse fim seria o deles.
com lágrimas a custo derramadas Tamora: Tito, intercederei a favor deles
de que este crime horrível de meus filhos junto do Rei. Não temas por teus filhos;
amaldiçoados, sim, amaldiçoados, tudo acabará bem.
se realmente ficar provado o crime... Tiro: Saiamos, Lúcio;
SATURNINO * Provado? Como vês, está patente. não pares para conversar com eles.
Quem achou esta carta? Vós, Tamora? (Saem por lugares diferentes.)

Áto IH Cena IV
Outra parte da floresta. que meus bens todos possam despertar-me,
Entram, Demétrio e Quirão, conduzindo Lavínia, Se estou desperto, venha algum planeta
violada, com as mãos e a língua decepadas. por terra derrubar-me, porque possa
dormir o sono eterno. Fala, meiga
Demérrio : Se falar podes, vai contar agora sobrinha, que impiedosas mãos e bárbaras
quem te violou e te cortou a língua. te mutilaram desse modo e o corpo
QuirÃo Escreve o pensamento, exprime a idéia te deixaram privado dos dois galhos,
e, se puderes, fazes desses cotos esses doces ornatos, cuja fronde
o papel de escrivão. sombrosa os próprios reis se disputavam,
DEMÉTRIO* Vê como pode para nela dormir, sem que pudessem
garatujar só com sinais e gestos. jamais a dita obter incalculável
Qurrão - Vai buscar água para as mãos lavares. de conquistar-te o amor? Por que não falas?
Demérrio : Língua não tem para pedir, nem mãos Oh dor!
com que possa lavar-se. Ora deixemo-la Um rio carmesim de sangue quente,
sozinha em seu passeio silencioso. como fonte revolta pelo vento,
QuirÃo : Fosse eu, e me haveria já enforcado. se eleva e cai entre os teus lábios róseos,
Demétrio : Ah! se pudesses preparar a corda! sumindo e aparecendo com teu hálito.
(Saem Demétrio e Quirão.) Algum Tereu, decerto, violentou-te,
(Entra Marco.) e, para que não fosse descoberto,
Marco - Quem é? Minha sobrinha, que se escapa a língua te cortou. Viras o rosto
tão velozmente? Prima, uma palavra. ah! — de vergonha, e não obstante teres
Onde está vosso esposo? Se isto é sonho, perdido tanto sangue, que despejas

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como fonte com bocas três abertas, bordar muito melhor que Filomela.
incendem-se-te as faces como o rosto Oh! se esse monstro houvesse visto as tuas
do Titã, quando encontra alguma nuvem. mãos, como as folhas de frondoso choupo,
Devo falar por ti? Foi isso mesmo? palpitarem nas cordas do alaúde,
Oh! se o teu coração eu conhecesse não lhes tocara nem para salvar-se.
e soubesse quem foi o miserável Ou se tivesse nalgum tempo ouvido
e o amaldiçoasse, para meu alívio! a harmonia celeste produzida
À mágoa reprimida, como forno por essa doce língua, a faca houvera
cuja boca é tapada, abrasa o peito, soltado e adormecera, como Cérbero
deixando o coração desfeito em cinzas. aos pés do poeta trácio. Vamos logo
À linda Filomela a língua, apenas, deixar teu pai sem vista, porque um quadro
veio a perder, e num dorido pano como este deixa cego qualquer pai.
pôde bordar tudo o que lhe ia na alma. Uma hora de tormenta alaga os prados
Mas ficaste privada desse meio, mais fragrantes. Que não farão dos olhos
adorável sobrinha, que um mais forte de teu pai meses e anos só de prantos?
Tereu vieste a encontrar. Ele cortou-te Vem, não me fujas: chorarei contigo.
os delicados dedos, que sabiam Fosse meu choro à tua dor abrigo!
(Saem.)

Ato HI Cenal
Lágrimas, apagai a sede seca
Entram senadores, tribunos e oficiais de justiça com da terra; o doce sangue de meus filhos
Márcio e Quinto que, amarrados, vão sendo conduzidos a deixaria rubra de vergonha.
para o lugar de execução; Tito, como suplicante, vai à (Entra Lúcio, com a espada desembainhada.)
frente. Tribunos reverendos, gentis velhos,
soltai meus caros filhos, comutai-lhes
Trro - Meus venerandos padres, escutai-me! a sentença de morte, permitindo
Parai, nobres tribunos! Por piedade que vos afirme quem não chorou nunca
à minha idade, cujos anos jovens que hoje lágrimas teve eloguentíssimas.
foram gastos em guerras perigosas, Lúcro : Oh nobre pai! é em vão que chorais tanto.
enquanto vós dormíeis calmamente; Nenhum tribuno vos está ouvindo;
por todo o sangue que eu verti na grande não há ninguém aqui. À pedra dura
causa de Roma, pelas noites frias relatais vossas mágoas.
que a velar eu passei e pelas lágrimas Trro- Ah! meu Lúcio!
que ora vedes a encher os velhos sulcos deixa-me interceder por teus irmãos.
de minhas faces: sede compassivos Graves tribunos, peço-vos de novo...
para meus filhos ora condenados, Lúcio : Meu gracioso senhor, nenhum tribuno
que alma não corrompida não possuem, vos ouve neste instante.
como em geral se pensa. Pelos outros Trro: Pouco importa,
vinte e dois filhos nunca chorei tanto, rapaz. Se eles me ouvissem, não veriam
porque morreram no alto leito da honra. minha pessoa; mas embora a vissem,
Por estes, estes, na poeira escrevo, de mim não se apiedaram. Mas preciso
nobres tribunos, a profunda mágoa pedir-lhes, muito embora sem proveito.
do coração com minhas tristes lágrimas. Por isso digo às pedras meus pesares.
(Atira-se ao chão. Os senadores, tribunos etc. passam por Se às minhas dores responder não podem,
ele, e saem com os prisioneiros.) num ponto são melhores que os tribunos,

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por não interromperem meu relato. em preces vãs têm elas sido alçadas;
Quando choro, recebem minhas lágrimas, delas fiz uso sem nenhum proveito.
humildes, a meus pés, só parecendo A única coisa que ora exijo delas,
que de mim se condoem. Se em solene por isso, é que uma ajude a cortar a outra.
vestuário se envolvessem, não teria É bom, Lavínia, que ora mãos não tenhas;
Roma tribunos de tão grande preço. para servirem Roma inúteis foram.
A pedra é mole como cera; duros Lúcio Dize, gentil irmã: quem te fez isso?
como pedra são todos os tribunos. Marco - Que dor! Esse instrumento delicioso
Calada é a pedra e não nos incomoda; do pensamento dela, que eloquência
os tribunos, com sua fala, à morte tão agradável modulava sempre,
condenam qualquer um. foi arrancado da gentil gaiola,
(Levanta-se. ) onde, tal como pássaro melódico,
Mas por que causa cantava suaves notas e variadas,
estás de espada nua? que as ouças de nós todos deleitavam.
Lúcio - Para os manos Lúcio : Fala por ela: quem lhe fez tal coisa?
livrar da morte e, por tentado havê-lo, Marco
os juízes me exilaram para sempre. Oh! no parque a encontrei assim, vagante,
Trro - Oh! que homem venturoso! Revelaram-se procurando esconder-se, como a corça
amigos teus. Como, insensato Lúcio, quando é ferida de incurável golpe.
não percebeste que não passa Roma Trro - Sempre ela foi a minha corçazinha.
de um deserto de tigres? Necessitam Quem a feriu me deu mais fundo golpe
de presa os tigres, não havendo em Roma do que se me matasse. Agora me acho
presa alguma, afora eu e minha gente. como alguém num rochedo circundado
Quanto és feliz, por teres-te afastado pelo mar bravo, que a maré montante
desses devoradores! Mas, que vejo? vê subir em cada onda e espera apenas
Quem é que o mano Marco vem trazendo? que uma vaga invejosa enfim o absorva
(Entram Marco e Lavínia.) nas salgadas entranhas. Foi por este
Marco Tito, caminho que meus filhos desgraçados
prepara para o choro os velhos olhos, seguiram para a morte; este outro filho
ou o nobre coração para partir-se. aqui está: exilado foi de Roma.
Trago para teus anos dor pungente. Meu mano aqui, minhas desgraças chora.
Trro - Irá matar-me? Então desejo vê-la. Mas o que mais me punge a alma angustiada
Marco - Esta foi tua filha. é a querida Lavínia, mais querida
Trro: É ainda, Marco. do que minha própria alma. Se eu te houvesse
Lúcio - Oh! que desgraça! Mata-me este quadro. apenas em pintura visto assim,

Trro - Levanta-te, maricas, e olha-a fixo! teria enlouquecido. Que é preciso


Lavínia, fala: qual a mão maldita que faça agora, vendo-te em pessoa
que à vista de teu pai, sem mãos, te manda? maltratada a esse ponto? As mãos te faltam
Que louco quis ao mar deitar mais água para limpar as lágrimas, careces
ou um feixinho de lenha na fogueira de língua para revelar o nome
de Tróia incandescente? Minha mágoa de quem te executou esse martírio.
no auge se achava, antes de aqui chegares, Teu marido morreu; por sua morte
mas, como o Nilo, ela desdenha as margens. sentenciados teus irmãos se viram,
Dá-me essa espada, as mãos quero amputar-me vindo a morrer por isso. Ah! Olha, Márcio!
também, porque debalde se esforçaram Lúcio, meu filho, olha para ela! Quando
pela causa de Roma; alimentando falei nos irmãos dela, frescas lágrimas
minha vida cuidavam de meus males; lhe umedeceram de repente as faces,
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tal como o doce orvalho sobre o lírio AarÃo- Tito Andronico, o imperador meu amo
colhido e quase murcho. te manda dizer isto: se a teus filhos
Marco Talvez chore tens amor, que então Marco, Lúcio, ou mesmo
a morte do marido; talvez mesmo tu, velho Tito, uma das mãos decepe
por saber que os irmãos são inocentes. e a envie para o Rei, que ele, de volta,
Tiro - Se eles mataram teu esposo, fica te mandará com vida teus dois filhos,
contente, pois punidos foram ambos. sendo essa a multa pelo crime deles.
Não, impossível é que cometido Tiro - Oh gracioso monarca! Aarão bondoso!
tivessem tão feio ato, como a prova Canta o corvo tal como a cotovia,
a dor que a própria irmã revela agora. que da aurora nos traz feliz notícia?
Deixa, Lavínia, que eu te beije os lábios, Alegre ao Rei uma das mãos envio.
ou por sinais me dize de que modo Não queres auxiliar-me a decepá-la,
poderei aliviar-te. Não desejas bondoso, Aarão?
que eu, teu bom tio, com teu mano Lúcio,
Lúcio: Pára, senhor! A tua
juntamente contigo nos sentemos
nobre mão, que venceu tantos imigos,
à volta de uma fonte, cabisbaixos,
não lhe será enviada. Para o caso
para as faces fanadas contemplarmos,
a minha vai servir. A mocidade,
porém não secas, tal como as baixadas
mais do que vós, pode esbanjar o sangue,
que a inundação cheias de lama deixa?
que a vida vai salvar de meus dois manos.
Fixaremos a fonte tanto e tanto
Marco : Em defesa de Roma qual das vossas
até que sua limpidez se turve
mãos não se ergueu, brandindo a machadinha
pelo amargor de nossas quentes lágrimas?
sangrenta e a destruição deixando impressa
Ou as mãos, tal como as tuas, cortaremos?
no castelo do imigo? Oh! as mãos de ambos
Ou com os dentes a língua amputaremos,
são altamente heróicas, mas a minha
para passar em pantomima os dias
odiosos que nos restam? Que faremos? se mostrou preguiçosa. Ora, servindo
Nós, que ainda temos língua, combinemos para livrar da morte meus sobrinhos,
algum projeto de miséria extrema para um fim digno as conservei até hoje.
que espanto de nós faça no futuro. Aarão : Decidi qual das mãos será amputada,
Lúcio - Pai, deixai de chorar; vede que nossas porque eles, antes, a morrer não venham.
lamentações a soluçar convidam Marco: A minha.
minha infeliz irmã. Lúcio Pelo céu! não essa; a minha.
Marco: Cara sobrinha, Tiro: Deixai de discutir, senhores! Erva
paciência, meu bom Tito, enxuga os olhos. seca como esta é para ser cortada.
Tiro - Ah Marco, Marco! Sei perfeitamente, Por isso, a minha.
mano, que esse teu lenço não consegue Lúcio Pai bondoso, tenho
enxugar uma só das minhas lágrimas, de ser considerado vosso filho;
porque com as tuas o inundaste, amigo. livrar deixai-me os meus irmãos da morte.
Lúcio - Querida irmã, vou enxugar-te as faces. Marco : Por nosso pai e nossa mãe, consente
Tiro - Olha, Marco, compreendo os gestos dela. que amor fraterno eu te revele agora.
Se ela tivesse língua, ora diria Trro - Decidi entre vós, não corto a minha.
ao mano o que eu te disse: que não pode Lúcro - Vou buscar um machado.
ser-lhe de utilidade o lenço dele Marco Mas apenas
para enxugar-lhe as faces, por achar-se para eu me servir dele.
tão embebido de piedosas lágrimas. (Saem Lúcio e Marco.)
Que harmonia! tão longe do sorriso Trro: Vem cá, Aarão;
quanto do limbo dista o paraíso. vou burlar ambos. Tua mão me empresta,
(Entra Aarão.) que te darei a minha.

Si
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Aarão (à parte) Seisto o nome razão para esta dor? Eu sou o oceano.
de burla merecer, vou ser honesto, Ouve como suspira minha filha.
a ninguém mais burlando em toda a vida. Ela, em prantos, é o céu, eu sou a terra.
Mas enganar-vos vou de outra maneira, Seus suspiros terão, assim, de as minhas
o que havereis de ver dentro de uma hora. ondas intumescer, e minhas várzeas
(Corta a mão de Tito.) — (Voltam Lúcio e Marco.) com seu pranto contínuo hão de mudar-se
Trro : Parai com vossa discussão agora; num dilúvio, inundadas e afogadas.
pois já foi feito o que era necessário. Minhas entranhas não podendo as dores
Entrega minha mão ao Rei, Aarão, comportar que ela mostra, como um bêbedo
e dize-lhe que contra mil perigos terei de vomitá-las. Não mo impeças,
ela sempre o amparou. Ele que a imune. portanto, pois quem perde encontra alívio
Mereceu muito mais; conceda-lhe isso. para a opressão nos termos amargosos.
Quanto a meus filhos, dize-lhe que os tenho (Entra um mensageiro, que traz duas cabeças e uma mão.)
na conta de obras-primas, adquiridas MENSAGEIRO *
por baixo preço e, no entretanto, caro, Muito mal pago foste, alto Andronico,
pois comprei o que é meu. pela mão que mandaste ao soberano.
AARÃO" Vou já, Andronico. Eis as cabeças de teus nobres filhos,
Em troca de tua mão, dentro de pouco e aqui, tua mão, que, por escárnio, volta.
receberás teus filhos. (À parte.) A cabeça É desporto para ele tua mágoa;
deles, quero dizer. Oh! como a idéia, tua resolução, divertimento.
tão-só, dessa partida me deleita! Dor grande sinto em tua dor pensando,
Os tolos que achem na bondade gosto; maior que à idéia de meu pai defunto.
a alma Aarão tem tão negra como o rosto. Marco : Que o Etna, agora, na Sicília esfrie.
(Sai) Seja meu coração inferno ardente.
Tiro - Agora ao céu elevo a mão restante Ultrapassam de muito estas misérias
ea ruína fraca para a terra inclino. a resistência humana. Algum alívio
Se algum poder das lágrimas se apiada obtém quem se lastima com quem chora;
dos infelizes, a ele me dirijo. mas dupla morte é a dor escarnecida.
(A Lavínia.) Lúcio : Oh! que esta vista cause tais feridas,
Como! Queres também ficar de joelho? sem que se extinga a vida detestada!
Faze isso, coração, que nossas preces Que a morte empreste o próprio nome à vida,
o céu nos há de ouvir, nossos suspiros quando a esta apenas os suspiros restam!
hão de deixar a abóbada embaçada, (Lavínia beija Tito.)
ou com sua espessa bruma o sol manchamos Marco: Ah! pobre coração! Essa carícia
como as nuvens com ele às vezes fazem, é tão inoperante quanto o gelo
quando o escondem no seio úmido e mole. para a serpe faminta e enregelada.
Marco - Oh mano, fala com mais senso; deixa Trro : Quando termina este terrível sono?
de atirar-te em abismos tão profundos. Marco - Lisonja, adeus! Morre, Andronico, morre;
Trro : Não é profunda minha dor? sem fundo? não poderás dormir. Vê as cabeças
Que seja assim também minha tristeza. de teus dois filhos, tua mão guerreira,
Marco : Mas que a razão governe teus queixumes. a filha mutilada, este outro filho
Tiro: Se houvesse uma razão para a miséria, banido que, em presença deste quadro,
em limites a dor confinaria. ficou exangue e pálido, e teu mano,
Quando o céu chora, a terra não transborda? eu, como estátua, frio e entorpecido.
Quando o vento enlouquece, não se torna Nunca mais te direi que fiques calmo.
furioso o mar, a abóbada ameaçando Arranca esses cabelos cor de prata;
com o rosto intumescido? E ainda reclamas com os dentes dilacera a mão restante,
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deixando que este horrível espetáculo carrega minha mão, filha, nos dentes.
para sempre nos feche a infeliz vista. E tu, rapaz, some de minha vista;
É a hora de atacar. Por que te calas? ficar não podes, pois estás banido.
Trro- Ah! ah! ah! Vai para os godos e alicia gente.
Marco - Por que estás rindo? Não é hora disso. Se me amas, como o penso, despeçamo-nos
Trro Ora, não me sobrou uma só lágrima. com um beijo; muito que fazer nos resta.
Demais, essa tristeza é um inimigo (Saem Tito, Marco e Lavínia.)
que pretende tornar meus olhos úmidos Lúcio : Adeus, meu pai! adeus, nobre Andronico,
e com o tributo os arrasar de lágrimas. o ser mais infeliz que já viu Roma.
Assim, como depois achar pudera Adeus, Roma orgulhosa; até que Lúcio
a cova da vingança? Estas cabeças retorne deixa aqui penhor mais caro
parece que me falam, ameaçando-me do que sua própria vida. Adeus, Lavínia,
de perder a ventura, enquanto todas nobre irmã. Oh! quem dera que ainda fosses
estas atrocidades não voltarem como antes eras! Mas Lavínia e Lúcio
para a garganta dos autores delas. no esquecimento, apenas, ora vivem,
Vejamos, pois, o que fazer me resta. no sofrimento odioso. Conseguindo
Vós, gente desgraçada, circundai-me, Lúcio viver, há de vingar-te a ofensa.
para que eu possa dirigir-me a todos O altivo Saturnino e sua esposa,
e jurar que essas ofensas vingaremos. como Tarquínio, hão de esmolar à porta.
Jurei. Mano, segura uma cabeça; Vou formar um exército entre os godos,
com esta mão carregarei a outra. que me vingue de Roma e Saturnino.
Lavínia, tu também vais ajudar-nos: (Sai)

Ato IH Cena Il
O mesmo. Casa de Tito em Roma. Um banquete coração te atacar selvagemente,
preparado. Entram Tito, Marco, Lavínia e um menino, não poderás dar nele e reprimi-lo.
filho de Lúcio. Fere-o, menina, com suspiros; mata-o
com teus gemidos, ou uma pequenina
Tiro Assim, assim, sentai-vos. Não comamos faca toma entre os dentes e abre um furo
senão o suficiente para a força perto do coração, para que todas
nos preservar para vingarmos nossos as gotas que caírem de teus olhos
amargos infortúnios. Caro Marco, corram para esse poço e, após enchê-lo,
desata-me este nó do desespero. o tolo afogues com salgadas lágrimas,
Eu e tua sobrinha — pobres almas! que só sabe queixar-se.
carecemos de mãos e não podemos Marco: Ora essa, mano!
aliviar nossa dor decuplicada, não lhe ensines o modo de matar-se
cruzando nossos braços. Esta pobre” com mãos violentas.
destra me foi deixada para o peito Tiro: Ora, Marco! Ora essa!
poder tiranizar. E quando, louco Só eu tenho o direito de ser louco.
de dor, o coração quiser alçar-se Com mãos violentas ela suicidar-se?
na prisão cava desta minha carne, Por que falaste em mãos? Isso é pedirmos
deste modo o reprimo. a Enéias que relate duas vezes
(A Lavínia.) como Tróia acabou e na miséria
Tu, mapa de desgraças, que só falas se viu ele atirado. Oh! não nos fales
por meio de sinais! quando teu pobre em mãos; muda de tema, pois podemos

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lembrar-nos de que mãos já não possuímos. matar um inocente. Vai-te embora;


Ora! como carece de sentido não tens cabida em minha companhia.
minha linguagem! como se possível Marco : Mas senhor, foi apenas uma mosca.
fosse não nos lembrarmos de que estamos Trro - E se essa mosca mãe e pai tivesse?
sem mãos, no caso de que não tivesse Como cair deixara as asas de ouro,
Marco falado nisso. Vamos, vamos! zumbindo no ar gemidos e lamentos!
comecemos. Come isto, rapariga. Pobre e inocente mosca,
Aqui não há bebida. Escuta, Marco, que com seu melodioso cantozinho
quanto ela diz. Interpretar consigo veio para alegrar-nos! e mataste-a!
todos os seus sinais martirizados. Marco : Perdão, senhor, mas era um moscão negro,
Diz que sua bebida é apenas lágrimas, de feia catadura, como o mouro
fermentadas na dor e misturadas da imperatriz. Daí, tê-la matado.
em suas faces. Querelante muda, Tiro: Oh! oh! oh!
leio-te o pensamento; tua mímica Então perdoa haver-te repreendido,
vai ficar sendo para mim tão íntima pois realizaste uma obra meritória.
quanto as sagradas preces para o monge. Dá-me tua faca, que exultar desejo
Não hás de suspirar nem ajoelhar-te, com enganar-me que aqui tenho o mouro
fazer qualquer sinal, um gesto mudo, que viesse adrede para envenanar-me.
sem que eu forme de tudo um alfabeto Este é teu! Este aqui é de Tamora...
e, aplicando-me, venha a interpretá-lo. Ah, bandido!
Menino Avozinho, deixai esses lamentos; Penso que ainda não descemos tanto
alegrai minha tia com uma história. que reunidos matar não consigamos
Marco: Ah! pobre criança! Pela dor movido, uma mosca que venha importunar-nos
chora a grande tristeza do avozinho. sob a figura do retinto mouro.
Trro : Acalma-te, pimpolho, és só de lágrimas, Marco : Pobre homem! De tal modo a dor o abate,
e estas te podem derreter a vida. que a sombra toma pela vera essência.
(Marco bate com a faca no prato.) Trro : Vamos; tirai tudo isso. Vem, Lavínia;
Em que bateste, Marco, com tua faca? vamos para o teu quarto, para lermos
Marco : Nesta mosca, senhor, deixei-a morta. histórias tristes de passadas eras.
Trro - Fora, assassino! O coração me partes. Vem, pequeno, também; tens vista jovem.
De tirania tenho os olhos fartos. Lerás um pouco ao se enturvar a minha.
Não fica bem para um irmão de Tito (Saem.)

Ato IV - Cenal
Roma. Jardim da casa de Tito. Trro - Demasiado ela te ama, Lúcio, para
Entram Tito e Marco; depois entram o jovem Lúcio e querer fazer-te mal.
Lavínia, que corre atrás dele. MENINO * É certo; amava-me,
quando meu pai ainda estava em Roma.
MENINO : Avozinho, socorro! Minha tia Marco - Que quererás dizer, minha sobrinha,
Lavínia vai para onde eu vou; não posso com todos esses gestos?
Trro: Nada temas,
saber o que ela quer. Bom tio Marco,
vede como ela corre! Pobre tia, Lúcio, ela quer dizer alguma coisa.
não posso adivinhar o vosso intento. Observa, Lúcio, como ela te agrada.
Marco Pára, Lúcio; não tenhas medo dela. Com certeza deseja que a acompanhes.

TOO
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Ah, menino! jamais com tanto zelo Marco: Observa, mano,


Cornélia leu para seus próprios filhos como ela indica a página!
como contigo tua tia estuda Tiro Lavínia,
à Oratória de Túlio e a alta poesia. surpreendida assim foste, doce filha,
Marco : Saber não podes por que ela insta tanto? ultrajada e violada, como outrora
Menino : Não, meu senhor, adivinhar não posso; Filomela forçada foi nas matas
salvo se for acesso de loucura, infindáveis, injustas e impiedosas?
pois ouvi muitas vezes do avozinho Vede! vede!
que a dor extrema deixa os homens loucos, Há um vale assim, onde uma vez caçamos —
e tenho lido que Hércuba de Tróia se nunca lá tivéssemos estado! —
enlouqueceu de dor. Daí, ter medo, tal como o poeta o dele aqui descreve,
embora saiba, meu senhor, que minha para a violência feito e para o crime.
nobre tia me tem amor materno, Marco : Por que faria a natureza um antro
não podendo querer, por isso mesmo, tão medonho, se os deuses não achassem
medo infundir em minha mocidade, deleite nas tragédias?
a não ser num momento de loucura. Tiro Filha, fala-nos
Isso me fez jogar o livro longe por meio de sinais, somos amigos.
e fugir dela, sem razão, decerto. Que romano fidalgo ousou tal crime?
Boa tia, perdão. Porém, senhora, Não se terá esgueirado Saturnino
se o tio Marco quiser vir comigo, para junto de ti, como Tarquínio,
de grado irei com Vossa Senhoria. quando deixou o acampamento, para
Marco Sim, Lúcio; farei isso. manchar o sacro leito de Lucrécia?
(Lavínia mexe nos livros que Lúcio deixara cair.) Marco: Boa sobrinha, senta-te; vem, mano,
Tiro - Então, Lavínia? Marco, que será? sentar-te aqui também, Apolo, Palas,
Decerto que folhear um livro desses. Jove e Mercúrio iluminar-me possam,
Qual é deles, menina? Abre-os, pequeno. para que eu venha a descobrir o crime.
Porém és mais instruída e ler consegues Olhai aqui, senhor; olha, Lavínia.
outros escritos. Vem comigo e escolhe O terreno é arenoso; se puderes,
entre os meus livros quantos desejares gira este pau, tal como o faço agora.
para distrair tua mágoa, até que possa (Escreve na areia, segurando o bastão com a boca e
mostrar o céu o autor desse atentado. dirigindo-o com os pés.)
Por que ela agita um braço depois do outro? Consegui escrever o próprio nome,
Marco - Penso que ela deseja revelar-nos sem o auxílio das mãos. Maldito seja
que houve mais de um culpado nesse crime. no fundo da alma quem nos força a tanto.
Sim, decerto, mais de um. Salvo se os braços Boa sobrinha, escreve, e alfim nos mostra
dirige ao céu para implorar vingança. quanto quer Deus que fique manifesto
Tiro : Lúcio, que livro é esse em que ela mexe? para a vingança. O céu te guie a pena
Menino : São “As Metamorfoses”, avozinho, para expressares claramente as mágoas,
de Ovídio. Minha mãe foi quem mo deu. porque fiquemos, afinal, sabendo
Marco : Por amor da defunta, certamente, toda a verdade e o nome dos traidores.
separou-o dos demais. (Lavínia segura o bastão com a boca e escreve, guiando-o
Trro- Cuidado! Vede com os braços mutilados.)
como ela vira as folhas. Auxiliemo-la. Trro : Consegues ler, senhor, o que ela escreve?
Que quer ela? Poderei ler, Lavínia? “Estupro. Quirão. Demétrio.”
É a história trágica de Filomela, Marco : Como! Os filhos lascivos de Tamora
da traição de Tereu e da violência; são os autores deste crime hediondo?
ea violência, receio muito, se acha Tiro - Magni dominator poli,
no fundo de sua pena. Tam lentus audis scelera? tam lentus vides?

Tor
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Marco * Acalma-te, senhor, embora eu saiba E que será, assim, de vosso texto?
que o que ficou escrito sobre a terra Que achas disso, menino?
seja o bastante para uma revolta MENINO Acho, avozinho,
suscitar nos espíritos mais calmos que, se eu fosse homem, não seria o quarto
e armar os corações até das crianças. da mãe deles amparo suficiente
Ajoelha-te comigo; e tu, Lavínia, para esses malfeitores que se encontram
faze o mesmo também. Menino, ajoelha-te — sob o jugo romano.
és a esperança do romano Heitor — MARCO: Assim, menino!
e comigo prestai o juramento Muitas vezes teu pai fez isso mesmo
que outrora fez ao infeliz esposo para esta pátria ingrata.
e ao pai da casta dama desonrada MENINO * Caso eu viva,
Júnio Bruto, ao violada ser Lucrécia: tio, farei de novo a mesma coisa.
que empregaremos todos os recursos Trro : Vamos à sala de armas. Quero armar-te,
para tomar cabal vingança desses Lúcio. Depois, menino, alguns presentes
pérfidos godos, e ou derramaremos de minha parte levarás aos filhos
o sangue deles, ou sob esse ultraje da imperatriz. Vem logo. Vamos. Hás de
perderemos a vida. fazer o que te peço, não é certo?
Tiro: Uma vez isso Menino : Cravando meu punhal no peito deles.
determinado, resta achar os meios. Trro : Não, menino; assim, não. Vou ensinar-te
Irás despertar a ursa, se bulires quanto deves fazer. Vamos, Lavínia.
com os filhos dela. Toma, pois, cuidado: Marco, cuida da casa; vou com Lúcio
se ela te farejar, lembra-te sempre fazer algo na corte. É certo, amigo.
que em liga estreita com o leão se encontra, Pelo céu! vamos ser muito aplaudidos.
o acalenta, deitando-se de costas; (Saem Tito, Lavínia e o menino.)
e, vindo ele a dormir, faz quanto queira. Marco * Deuses, ouvis gemer um homem destes,
Marco, és um caçador inexperiente. sem mostrardes piedade nem ternura?
Deixa isso. Vem comigo; vou prover-me Não o abandones, Marco, em seu delírio.
de uma folha de ferro, e com uma ponta Mais cicatrizes de tristeza mostra
de aço gravarei nela essas palavras, no coração, que marcas dos imigos
para depois guardá-las, que o violento no escudo deformado. No entretanto,
vento norte dispersa toda a areia, tão fiel se mostra que não quer vingar-se.
tal como o faz com as folhas da Sibila. Vingai o velho, oh céus! o alto Andronico.
(Saí)

Ato IV - Cena Il
O mesmo. Um quarto no palácio. trago-vos saudações do alto Andronico. (A parte.)
Entram, por um dos lados, Aarão, Demétrio e Quirão; E que os deuses romanos vos confundam.
por outro, o menino Lúcio e um criado com um feixe de Demérrio : Obrigado, menino. Que foi que houve?
armas, que trazem inscrições em versos. MENINO (à parte) -
O que houve é que já fostes descobertos
QuirÃo : Eis o filho de Lúcio, que nos trouxe, como dois celerados acoimados
Demétrio, uma mensagem. de sedução. (Alto.) Se for de vosso gosto,
AaRÃO* Sim, alguma bem avisado meu avô mandou-vos
mensagem louca de seu louco avô. as mais vistosas armas e prestantes
Menino : Com a humildade possível, meus senhores, de sua coleção, para ornamento

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de vossa mocidade em tudo honrosa, AARÃO (À parte) -


esperança de Roma. Isso me disse Para o diabo, que os deuses nos deixaram.
que vos dissesse, como o faço agora, (Ouve-se um toque de trombeta.)
a Vossas Senhorias entregando Demérrio : Por que soa a trombeta do monarca?
seus mimos, para que fiqueis armados QuirÃo - Sem dúvida por ter nascido um filho
e defendidos, quando for preciso. do imperador.
Dito isto, me despeço de vós ambos. (À parte.) Demérrio - Silêncio! Quem vem vindo?
Como de celerados sanguinários. (Entra a ama, trazendo nos braços uma criança de cor
(Saem o menino e o criado.) preta.)
Demérrio : Que é isto? Um rolo de papel, escrito Ama* Bom dia, meus senhores. Informai-me:
todo à volta! Vejamos: Vistes o mouro Aarão?
(Lê.) Integer vitae, scelerisque puras, AARÃO" Está presente,
Non eget Mauri jaculis, nec arcu. se não tiver saído. Eis aqui Aarão.
QuirÃo + Oh! são versos de Horácio! Sim, recordo- Que é que desejais dele?
me, há muito tempo os li numa gramática. AMa* Oh gentil mouro,
AARÃO" estamos desgraçados! É preciso
Isso! um verso de Horácio. Sois ladino. (À parte.) que nos ajudes, se te queres salvo.
Aarão - Que aconteceu? Por que todo esse miado?
Como é feio ser asno! Não se trata
Que é que procuras ocultar nos braços?
de pilhéria. O velhote está sabendo
Ama: O que dos olhos esconder quisera
quais são os criminosos e lhes manda
do próprio céu, o opróbrio da Rainha,
armas com versos que penetram fundo
a desonra de Roma soberana.
sem que eles o percebam. Se estivesse
Já descansou, senhores, a Rainha;
nossa sagaz imperatriz desperta,
já descansou.
aplaudiria a mente de Andronico.
AARÃO" Descansou, como?
Mas que descanse em seu descanso inquieto. (Álto.)
Ama: Digo
Então, jovens senhores, não foi astro
que deu à luz um filho.
bondoso que nos trouxe para Roma,
AaRÃO* Bom descanso
estrangeiros como éramos e, ainda,
o céu lhe dê. Que foi que lhe enviou ele?
na situação de escravos, para em pouco Ama* Um diabo.
tempo chegarmos a esta culminância? AARÃO* E que ela, então, é a mãe do diabo.
À mim fez bem, na porta do palácio Que bela consegiência!
desafiar o tribuno na presença AMaA* Consegiiência
do próprio irmão. triste, maldita, tão negra e desgraçada.
Demérrio E a mim, ver um fidalgo Eis a criança, tão feia como um sapo
com mimos adular-nos baixamente. que se encontrasse junto dos meninos
AARÃO: E não terá razão, senhor Demétrio? de nossa terra. À imperatriz ta envia,
Não tratastes tão bem a filha dele? tua impressão, tua chancela pura,
Demérrio : Desejara dispor de mil romanas, e manda que o batizes com teu gládio.
para, à vontade, nelas nos saciarmos. AARÃO Sai, prostituta! Preto é cor tão feia?
QuirÃo - Voto cheio de amor e caridoso. Certo te julgas uma flor bonita
AARÃO : Somente vossa mãe está faltando com uma cara dessas.
para dizer amém. DEMéÉrTRIO- Que fizestes,
Quirão - O que faria miserável?
com relação a vinte mil romanas. Aarão: O que já não consegues
DemérRriO * Vamos logo; rezemos para os deuses desfazer.
por nossa mãe, que está com tantas dores. QuirÃo: Nossa mãe está perdida.

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AarÃo Não, vilão; pois por mim foi encontrada. AMA: Em sua cólera
Demérrio ' E assim, cão infernal, a desgraçaste. o imperador vai condená-la à morte.
Coitada dela! Amaldiçoada seja QuirÃo : Coro só de pensar nessa ignomínia.
sua escolha asquerosa, e condenado Aarão Ora, esse é o privilégio da beleza
o produto de um diabo tão lodoso. que vos define. Fora, cor traidora!
QuirÃo - Não deverá viver. que trai pelo rubor os sentimentos
AarÃo : Não deverá morrer. do coração e seus secretos planos.
AMA: Aarão, é a própria mãe que assim resolve. Eis um garoto feito de outra tinta.
AARÃO: Ah! É assim, ama? Então, pessoa alguma, Vede como o negrinho está sorrindo,
a não ser eu, há de aplicar a pena para seu pai, tal como se dissesse:
em minha própria carne e no meu sangue. “Meu velho, sou teu mesmo.” É vosso mano,
Demérrio - Vou fisgar o girino no meu gládio. meus senhores, recentemente feito
Ama, entrega-mo; vou pôr pressa nisso. do mesmo sangue a que deveis a vida;
AaRÃO* Antes, a espada te enfiarei nas tripas. do mesmo ventre em que estivestes presos
(Toma da ama a criança e saca da espada.) foi ele libertado e à luz trazido.
Assassinos, parai! Quereis a vida É vosso irmão do lado certo, embora
tirar do próprio irmão? Pelos ardentes no rosto traga impresso meu carimbo.
fachos do firmamento, que brilhavam Ama: Que devo, Aarão, dizer à imperatriz?
quando foi concebida esta criança, DEMÉTRIO *
na ponta desta minha cimitarra Pensa, Aarão, no que cumpre ora fazermos,
morrerá quem tocar no meu herdeiro, que nós concordaremos com teu plano.
no meu primeiro filho. Jovens, digo-vos Salva a criança, contanto que nos salves.
que nem o próprio Encélado com todos AARÃO - Sentemo-nos, então, e reflitamos.
os filhos de Tifão, bando espantoso, Eu e meu filho ficaremos de olho
nem Alcides glorioso e o deus da guerra, em vós ambos. Sentai-vos aí. E agora
das mãos paternas tirarão a presa. falai em salvação.
Vamos, vamos, meninos coradinhos, (Sentam-se.)
de coração vazio, variegados Demérrio: Quantas mulheres
escudos de taberna, muros brancos viram a criança?
de caiadura: a cor mais firme é a preta AARÃO" É isso, meus senhores;
como carvão, pois não suporta as outras, quando estamos de acordo eu sou cordeiro.
pois toda a água do oceano as negras pernas Mas se o mouro irritais, Aarão se exalta
do cisne não consegue deixar brancas, como o mar bravo, o javali sanhoso,
embora sempre as lave na corrente. a leoa das montanhas. Mas dizei-me:
Dizei à imperatriz que eu tenho idade quantas vezes viram esta criança?
para amparar meus bens. Que me desculpe AMA: À parteira Cornélia, apenas, e cu,
como puder. sem incluirmos, decerto, a parturiente.
Demérrio - Trair, então, pretendes, AarÃo: Vós, a parteira e a imperatriz... É isso?
dessa maneira, tua nobre amante? Duas pessoas guardarão segredo,
AARÃO * Amante é amante, esta criancinha, entanto, quando falta a terceira. Assim, vai logo
sou eu mesmo, o vigor, o próprio quadro contar à imperatriz que eu te disse isto:
de minha mocidade. Que a prefira “Coé! Coé!”
a tudo o mais é certo. Contra o mundo (Apunhala-a. )
saberei defendê-la, e dura pena Assim grita um leitão esfaqueado.
sofrerá quem de vós lhe fizer dano. DEMÉTRIO*
DeMéTRIO * À nossa mãe traz isso opróbrio eterno. Que pretendes, Aarão? Por que a mataste?
QuirÃo - Por essa transgressão tão reprovável Aarão - Oh senhor! Por um ato de política.
vai Roma desprezá-la. Iríamos deixá-la viva, para

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revelar nossa falta? Uma comadre Feito isso, não deveis perder mais tempo:
faladora como ela? Não, méus caros. mandai logo a parteira procurar-me.
E agora vos direi todo o meu plano. Uma vez a parteira e a ama afastadas,
Mora aqui perto meu compatriota as mulheres que falem quanto queiram.
Mulei, cuja mulher na última noite QuirÃo : Pelo que vejo, Aarão, nem mesmo ao vento
deu à luz uma criança parecida confias um segredo.
com ela e, como vós, de pele clara. Demétrio - Esse cuidado
Ide assentar com ele esse negócio; que tens com nossa mãe a deixa e aos filhos
à mulher dai dinheiro, contai a ambos penhorados contigo para sempre.
tudo o que aconteceu e como o filho (Saem Demétrio e Quirão carregando o corpo da ama.)
deles irá subir de agora em diante, Aarão - E agora, tão veloz como andorinhas
passando a ser o herdeiro da coroa, corramos para os godos, para, entre eles,
pois no lugar do meu vai ficar sempre, guardar este tesouro e com os amigos
para acalmar o furacão da corte. da imperatriz falar secretamente.
E que o Rei o acalente como próprio. Vamos, beiçudo, vou depor-vos longe,
Olhai aqui, senhores; como vedes, que a causa sois de toda a trapalhada.
dei-lhe o remédio certo. Raízes comereis e frutas bravas,
(Apontando para a ama.) coalhada e soro. Mamareis em cabra,
É necessário morareis em caverna e, após crescerdes,
que trateis das exéquias dela agora. vos tornareis guerreiro e comandante.
O campo é perto; sois valentes moços. (Sai levando a criança.)

Ato IV: Cena HI


O mesmo. Uma praça pública. peço-vos, entregai-lhe este pedido,
Entra Tito carregando setas, em cujas pontas estão presas dizendo-lhe que trata de um pedido
cartas; seguem-no Marco, o menino Lúcio, Públio, de justiça, de ajuda, e que mandado
Semprônio, Caio e outros senhores, com arcos. pelo velho Andronico foi, de dores
acabrunhado nesta ingrata Roma.
Tiro - Vem, Marco; vem! Este é o caminho, primos. Ah! Roma... Bem, deixei-te, miserável, .
Garoto, agora mostra quanto és hábil quando os sufrágios alcancei do povo
na pontaria. Puxa bem a corda, para eleger a quem me tiraniza.
que a seta irá direito. Ide embora, vos peço. Sede cautos,
Terras Astraea reliquit. sem que deixeis de investigar em todos
Sim, Marcos, não te esqueças disto: foi-se, os navios de guerra. É bem possível
fugiu. Agora, meus senhores, todos que esse maldito imperador a tenha
peguem nos instrumentos. Vós, meu primo, levado para bordo e, assim, parentes,
o oceano rondareis, jogai a rede. podemos assobiar: Adeus, Justiça!
Porventura no mar ireis achá-la, Marco - Oh Públio! não é coisa dolorosa
muito embora a justiça esteja ausente ver desvairar nosso tão nobre tio?
de lá, como da terra. Não, não, Públio! PúsLro - Por isso mesmo, meu senhor, devemos
Não, Semprônio! é preciso fazer isso. dia e noite cuidar muito bem dele,
Precisareis cavar com pá e enxada satisfazendo-lhe os caprichos quanto
até o centro da terra mais profundo. for possível, até que o tempo mostre
Então, chegados à região de Pluto, qualquer remédio azado.

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Marco" Sua mágoa, vossa missiva já chegou a Júpiter.


primos, já não tem cura. Para os godos Tiro: Ah! que fizeste, Túlio! Vê: bateste
vos passai e, em campanha assoladora num dos cornos de Taurus.
desafogai-vos dessa ingrata Roma Marco A pilhéria,
e ao traidor Saturnino dai a paga. meu senhor, está nisso, justamente.

Trro - Então, Públio? Meus mestres, como fostes? Tendo Públio atirado, enraivecido
Conseguistes saber onde ela se acha? ficou o Touro, e tamanha cabeçada
PúsLio : Não, bondoso senhor. Porém mandou-vos deu em Áries, que os cornos do Carneiro
Pluto dizer que se quereis vingança foram parar na corte. E quem havia
da parte dele podereis obtê-la. de encontrá-los, senão o próprio biltre
Quanto à Justiça, é de opinião que se acha da imperatriz? Rindo, ela disse ao mouro
no céu ou em qualquer parte, em desempenho que outro meio não tinha senão dá-lo
de incumbência de Júpiter. Forçoso de presente ao marido.
será, portanto, que espereis um pouco. Trro- Otimamente.
Trro * Comigo é injusto protelando tanto. Deus dê alegria a Sua Senhoria.
Vou mergulhar no lago chamejante (Entra o bobo, com dois pombos num cesto.)
e do Aqueronte pelos calcanhares Novas, novas do céu! Marco, o correio!
para cima trazê-la. Somos, Marco, Maroto, que nos conta? Trazes cartas?
arbustozinhos, não possantes cedros, Terei justiça? Júpiter, que disse?
não gigantes, no jeito dos Ciclopes. Bozo - Quem, o carrasco? Mandou dizer que ainda
Somos de ferro, Marco, é certo; temos não levantou a forca porque o homem só poderá ser
as costas de aço, mas o sofrimento executado na próxima semana.
fê-la dobrar além do suportável. Trro - Mas Júpiter que disse? É o que pergunto.
Porém já que a Justiça nem na terra Bozo - Ora, senhor, não conheço Júpiter. Em toda
se encontra nem no inferno, bater quero minha vida nunca bebemos juntos.
no céu e comover os deuses, para Tiro : Como, vilão! Não és carteiro, acaso?
que a Justiça nos mande, porque nossas Bozo: Sim, senhor, de meus pombos; de mais
injúrias vingue logo. Mãos à obra! ninguém.
Marco, és um bom archeiro. Tiro - Não vieste, então, do céu?
(Dá-lhe flechas.) Bozo Do céu? Ora, senhor! Nunca estive lá. Deus
“Ad Jovem”, esta me livre de ter a ousadia de querer penetrar no céu
é para vós. Esta outra: “Ad Apollinem”, durante os meus dias de mocidade. Vede, dirijo-me
“ad Martem”, para mim. Aqui, menino, com meus pombos para o tribunal popular, para
para Palas; aqui, para Mercúrio. acalmar uma pendência entre meu tio e um dos
Esta outra, Caio, vai para Saturno, criados do imperador.
não para Saturnino; melhor fora Marco - Ora vede, senhor; isto vem a calhar para
disparar contra o vento. Ficai prestes. mandar vossa petição. Dizei-lhe que entregue de
Menino! Marco! A um sinal meu, soltai-as. vossa parte os pombos ao imperador.
Sob palavra, escrevi à maravilha, Tiro Dize-me: saberás transmitir com graça uma
sem deixar de pedir a um só dos deuses. súplica ao imperador?
Marco: Disparai, primos, para a corte as flechas; Bozo - Não, senhor; de forma alguma. Nunca disse
humilhemos o orgulho do monarca. uma graça em toda a minha vida.
Tiro - Disparai, mestres. Trro : Vamos, maroto; basta de conversa.
(Todos disparam suas setas.) Dai ao imperador os vossos pombos.
Bravo, Lúcio! Bravo! Farei que de suas mãos justiça alcances.
Menino, a Virgo no regaço, a Palas! Espera um pouco; toma este dinheiro
Marco : Mais de milha, senhor, passei da lua; por tua comissão.

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Dêem-me papel e tinta. Então, maroto, Trro - Não terás uma faca aí, maroto?
com graça saberás dar um recado? Deixa-me vê-la. Embrulha-a no pedido,
Boso : Sim, senhor. Marco; pois como humilde suplicante
Trro - Então aqui tendes o pedido. E quando foi que escreveste. E tu, depois de o teres
chegardes à frente dele, será preciso que logo vos dado ao imperador, vem ao meu quarto
ajoelheis. Depois, beijai-lhe os pés; depois, entregai- contar-me o que ele disse.
lhe os pombos e, a seguir, aguardai a recompensa. Bozo : Que Deus esteja convosco, senhor. Assim
Ficarei por perto, senhor; fazei as coisas com decisão. farei.
Bozo - Ficai sem cuidado, meu senhor, deixai isso a Tiro - Vamos, Marco, partamos. Públio, segue-me.
meu encargo. (Saem.)

Ato IV: Cena IV


O mesmo. Diante do palácio. Entram Saturnino, Tamora, que em Saturnino é que a Justiça vive.
Demétrio, Quirão, nobres e outras pessoas. Saturnino tem Se ela, acaso, dormita, ele há de logo
nas mãos as flechas disparadas por Tito. despertá-la, de forma que em sua cólera
a destruir venha o mais intolerável
SATURNINO * conspirador do mundo.
Que pensais, meus senhores, desta ofensa? TaMoORA* Meu gracioso
Em qualquer tempo o imperador de Roma senhor, meu mui querido Saturnino,
já se viu perseguido desse modo, senhor de minha vida, dirigente
confundido, vexado e, por ter sido dos pensamentos meus: não te exasperes
sempre imparcial, tratado com desprezo? e considera as faltas da velhice
Senhores, bem sabeis, como os potentes de Tito como efeitos da tristeza,
deuses também o sabem — por mais que esses | por ter perdido os valorosos filhos,
perturbadores da tranquilidade o que fundo o atingiu, atravessando-lhe
de nosso reino falem junto ao povo — o coração. Procura consolá-lo
que não foi feito nada contra os filhos em sua triste sorte, sem castigo
vis do velho Andronico sem do nosso cominar ao maior, ao mais humilde,
lado termos a lei. Dando-se o caso por todas as afrontas. (À parte.). É com lábia
de que a dor a razão lhe transtornasse, que à astuciosa Tamora convém sempre
perseguidos teremos de ser sempre falar com todo o mundo. Mas eu soube,
por seus delírios, frenesis, doidices? Tito, ferir-te e faz correr o sangue
Agora aos deuses escreveu pedindo do coração. Se Aarão for cauteloso,
reparação dos males. Eis a carta tudo vai bem e ao porto chegaremos.
para Júpiter; esta é de Mercúrio; (Entra o bobo.)
esta, de Apolo; esta, do deus da guerra, Que há? Queres falar conosco, amigo?
inocentes escritos para serem Bozo - Sim, em verdade, se Vossa Senhoria for
jogados pelas ruas da cidade! imperial,
Que quer isso dizer, senão apenas TAMORA* À imperatriz sou eu, e aquele que está
difamar o Senado e apresentar-nos sentado ali é o imperador.
por toda a parte como prepotentes? Boso : É ele. Deus e Santo Estêvão vos dêem uma
Pilhéria espirituosa, não, senhores? boa tarde. Trouxe-vos uma carta e um casal de
Como quem diz: não há justiça em Roma. pombos.
Hão de ficar sabendo, ele e os parentes, (Saturnino lê a carta.)

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SATURNINO - Daqui o levai e o pendurai na forca. e me abandonarão para auxiliá-lo.


Bozo : Quanto dinheiro eu vou ganhar? Tamora- Seja Rei, qual teu nome, teu espírito:
TamorA- Vamos, maroto, vais ser mas é enforcado. imperial. Porventura o sol se empana,
Bozo - Enforcado? Pela Virgem! Assim, trouxe o quando voa uma mosca? As águias deixam
pescoço para um belo fim. que os passarinhos cantem, sem nenhuma
(Sai escoltado.) preocupação com seu trinado alegre,
SATURNINO * Acintoso demais, intolerável! certas de que com a sombra de suas asas
Terei de suportar esses insultos? poderão reduzi-los ao silêncio
Sei bem de onde procede a brincadeira. quando bem entenderem. Coisa idêntica
Terei de agúentar tudo isso? Como farás com esses romanos inconstantes.
se seus filhos traidores, que morreram Ânimo, então, imperador! Pois sabe
por terem nosso irmão assassinado, que eu pretendo encantar esse Andronico
por meu alvitre injustamente houvessem com palavras mais doces e, no entanto,
sido mortos no cepo! Ide buscar-me mais fatais do que a isca para O peixe
pelos cabelos esse miserável. ou, para a ovelha, o trevo de carvalho:
Nem a velhice, nem as dignidades uma na isca vai ferir-se; a outra,
lhe servirão de amparo. Só por esta empachada vem a morrer do cibo delicioso.
zombaria vou ser o teu carrasco. SATURNINO * Mas ele junto ao filho, certamente
Velhaco louco e astuto, ao me ajudares não falará por nós.
a conquistar o trono, só pensavas TAMoRA* Caso Tamora
em vir a governar em mim e em Roma. a isso o concite, falará decerto.
(Entra Emílio.) Posso adular-lhe o ouvido encanecido,
Que novidades há? cheio deixando-o com promessas áureas.
EMíLIO : Armas, armas, senhor! Nunca houve em Tivesse o coração inexpugnável
Roma tanta razão para isso. Novamente e surdo o ouvido, coração e ouvido
levantaram-se os godos. Com uma força obedientes à minha voz seriam.
de homens dispostos, que ao espólio visam, (A Emílio.)
vêm contra nós, ao mando obedecendo Vai na frente; sê nosso embaixador.
de Lúcio, o filho de Andronico, o velho, Dize que o Rei parlamentar deseja
que em sua fúria repetir ameaça com o valoroso Lúcio e marca o encontro
quanto fez Coriolano outrora em Roma. justamente na casa de Andronico.
SATURNINO: É o bravo Lúcio o general dos godos? SATURNINO * Desempenha-te, Emílio,
Essa notícia me enregela, e a fronte honrosamente dessa nossa mensagem. Se ele, acaso,
deixo cair tal como as flores fazem pedir reféns para ficar tranquilo,
após a geada, ou a grama nas tormentas. ele que diga qual penhor deseja.
Sim, as preocupações já se aproximam. EmíLio * Com zelo cumprirei vosso mandado.
Sempre foi estimado pelo povo. (Sai.)
Eu próprio ouvi falar bastantes vezes Tamora Vou já à procura de Andronico, o velho,
entre os comuns, quando passeava incógnito, para, com meus recursos, convencê-lo
que banido ele fora injustamente, a fazer que se passe dos guerreiros
sendo geral aspiração que Lúcio godos o bravo Lúcio. E agora, amável
venha a imperar em Roma. imperador, fica de novo alegre,
TAaMORA* De que tendes sepultando o temor em meus conselhos.
tanto receio? Roma não é forte? SATURNINO : Vai convencê-lo, então, e obtém bom
SATURNINO : É; mas os cidadãos preferem Lúcio êxito.
(Saem.)

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Ato V: Cenal
Planície perto de Roma. de tua pele não te traia a origem.
Fanfarra. Entra Lúcio com um exército de godos, com Se a natureza ao menos te tivesse
tambores e bandeiras. dado a cor de tua mãe, ser poderias
imperador. Mas quando o touro e a vaca
Lúcio : Guerreiros valorosos, bons amigos, são cor de leite, nunca o bezerrinho
recebi cartas da grandiosa Roma, sairá como carvão. Quieto, velhaco!
que o ódio refletem que ao monarca votam Fica quietinho aí!” — Dessa maneira,
e o desejo que todos têm de ver-nos. realmente, consolava ele o menino —
Por isso, bons senhores, como vossos “Vou entregar-te a um godo de confiança
títulos o confirmam, revelai-vos que, quando a saber vier que tu nasceste
altivos e impacientes de vingar-vos de uma alta imperatriz, há de com zelo
das injúrias sofridas. Por um dano cuidar de ti por causa de tua mãe.”
que Roma vos tivesse ocasionado, Nessa altura, sacando minha espada,
paga tripla podeis haver agora. de súbito o peguei e vo-lo trouxe,
PrimeIRO GODO * porque dele trateis como quiserdes.
Bravo rebento do ínclito Andronico, Lúcio - Oh godo, este é o demônio em carne e osso
cujo nome já foi pavor dos godos, que o Andronico privou da mão valente,
ora nosso conforto, cujos feitos a pérola que fascinou os olhos
altanados e fama sempiterna da imperatriz, e aqui se encontra o baixo
pagou a ingrata Roma com desprezo produto da luxúria ardente de ambos.
ignominioso: sê conosco ousado. Dize-me, escravo de olho branco: aonde
Iremos todos aonde nos levares, pretendias levar esta futura
como abelhas armadas, que nos dias imagem de tua face demoníaca?
mais quentes do verão o mestre leva Por que não falas? Como! És surdo e mudo?
para os prados floridos, e vinguemo-nos Soldados, uma corda! Pendurai-o
da maldita Tamora. nesta árvore, e ao seu lado o bastardinho.
Gopos* O que ele disse, AaRrÃo : Não toqueis no menino; é de real sangue.
todo o exército diz. Lúcio * Mui semelhante ao pai, para que possa
Lúcio Humildemente ser bom. Primeiro pendurai a criança,
lhe agradeço e a vós todos. Mas quem chega porque ele veja como ela esperneia,
conduzido por um alegre godo? e assim se aflija o coração paterno.
(Entra um godo, conduzindo Aarão que traz nos braços Uma escada!
seu próprio filho.) (Trazem uma escada, na qual
SEGUNDO GoDo"* Aarão é forçado a subir.)
Alto Lúcio, afastei-me das fileiras AaRrÃo : Não mates, Lúcio, a criança.
para ver as ruínas de um mosteiro; De minha parte à imperatriz a entrega.
e quando os olhos eu fixava atento Se fizerdes assim, coisas miríficas
numa casa assolada, ouvi de súbito te contarei, que te serão muito úteis.
choro de criança por detrás de um muro. Se não me ouvires, bem; que me aconteça
Para lá dirigi-me; mas nessa hora seja o que for. Direi apenas isto:
a voz ouvi de alguém que procurava a peste e a maldição sobre vós todos!
desta maneira consolar a criança: Lúcio - Fala. Se me agradar o que disseres,
“Cala-te, escravo escuro! Em meu socorro viva ela ficará, cuidando eu próprio
vem e de tua mãe. Que o colorido de sua educação.

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AaRrÃo* Se te agradares AARÃO: Ora, lavada


do que eu disser? Oh! posso assegurar-te foi, cortada, enfeitada, tendo sido
que na alma há de pungir-te o meu discurso, tudo isso para os dois belo brinquedo.
porque falar pretendo de assassínios, Lúcio : Oh! monstros como tu, bestiais e bárbaros!
violações e massacres, atos negros Aarão Realmente, o guia eu fui do que fizeram.
da escura noite, abomináveis feitos, Da mãe lhes veio o espírito lascivo,
traições, conjuras, vilanias, fraudes tão certo como haver na mesa o trunfo;
terríveis de se ouvir, mas realizadas mas a sede de sangue foi comigo,
por modo lastimável. Isso tudo parece, que aprenderam, tão verdade
sepultado vai ser com minha morte, como atacar um cão de frente sempre.
se não me prometeres que meu filho Bem, que meus atos provem quanto valho.
vivo continuará. Atraí teus irmãos para a traiçoeira
Lúcio Dize o que sabes. cova onde o corpo de Bassiano estava.
Prometo que teu filho fica vivo. É minha a carta por teu pai achada,
AARÃO Jura primeiro, que a falar começo. tendo sido eu, também, que escondi o ouro
Lúcio - Jurar! Por quê? Não crês que Deus exista. de que nela se fala, combinado
Se assim é, como crês num juramento? tendo tudo isso com Tamora e os filhos.
AaRÃO* Que fato houve, em resumo, de que causa
Que importa que eu não creia? É assim, de fato. não achasses de dor, em que eu deixasse
Mas sei que és religioso e que uma coisa de tomar parte ativa? Usei de fraude
tens chamada consciência, e que dás crédito para a mão de teu pai ver decepada,
a vinte ou trinta ritos e momices e, ao recebê-la, retirei-me à parte,
sacerdotais, que cumpres com bem zelo. chegando quase a arrebentar o peito,
Eis o motivo de exigir que jures; de tanta gargalhada. Colocara-me
pois uma vez sabendo que um idiota a espiar por um buraco da parede,
por um deus toma suas bugigangas quando a cabeça recebeu dos filhos,
e a palavra mantém por ela dada, em troco da mão dele. Vi suas lágrimas
nessa base reclamo dele a jura. e ri-me tanto que fiquei com os olhos
Assim, terás de me jurar por esse molhados como os dele, e após, no instante
mesmo deus — pouco importa qual seja ele de contar à Rainha a brincadeira,
adorado por ti e reverenciado, ela quase morreu de tanto gosto,
que salvarás meu filho e o criarás. ao ouvir minha história divertida,
Caso contrário, não te direi nada. vinte beijos me dando pela nova.
Lúcio Juro pelo meu Deus que farei isso. Primerro Gopo - Como! Contas tudo isso sem
AARÃO Fica sabendo, então, logo de início, ficares enrubescido?
que a imperatriz é a mãe deste meu filho. AARÃO: Sim, como um cão negro,
Lúcio - Oh mulher de luxúria insaciável! como diz o provérbio.
AarÃo* Ora, Lúcio! isso foi apenas ato Lúcio: Não te sentes
de caridade, junto com o que ainda arrependido dessas vilanias?
terás de ouvir de mim. Foram seus filhos AARÃO Sim, por não ter dez mil como essas feito.
que mataram Bassiano e, após, violaram Agora mesmo amaldiçõo o dia —
tua irmã, lhe amputaram as mãos brancas, e creio que bem poucos caem dentro
a língua lhe cortaram, enfeitando-a do círculo maldito — em que eu deixasse
da maneira que viste. de praticar qualquer notória infâmia,
Lúcio Oh miserável! como seja: tirar a alguém a vida,
Chamas a isso enfeitar? ou, quando menos, maquinar-lhe a morte,

IIO
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violar uma donzela ou dar a idéia desejo ser um deles, porque viva
para tal fim, sob falso juramento no fogo eterno a me queimar, contanto
contra algum inocente fazer carga, que ao meu lado vos tenha lá no inferno,
entre amigos semear a odiosidade, só para vos atormentar sem pausa
fazer que do alto caia e se arrebente com minhas invectivas amargosas.
o rebanho do pobre, às altas horas Lúcio - Tapai-lhe a boca; não deixeis que fale.
da noite incendiar medas e celeiros, (Entra um godo.)
para aos donos gritar que com suas lágrimas Gopo : Chegou, senhor, de Roma um mensageiro
as chamas apagassem. Muitas vezes que deseja poder falar convosco.
desenterrei dos túmulos os mortos, Lúcio: Fazei-o entrar.
colocando-os de pé, junto das portas (Entra Emílio.)
dos amigos queridos, justamente Emílio, és mui bem-vindo.
quando a dor já se achava quase extinta, Que notícia de Roma nos trouxeste?
na pele dos cadáveres gravando EmíLio - Glorioso Lúcio e vós, fidalgos godos,
com minha faca, tal como na casca o imperador romano vos saúda
das árvores se faz, em caracteres por minha boca. Por haver sabido
romanos: “Não deixeis que a dor se extinga, que em armas vos achais, propõe que em casa
conquanto eu já morresse”. Ora! milhares de vosso pai convosco a falar venha.
de ações terríveis fiz com a mesma calma Podeis pedir reféns, se o desejardes,
com que mato uma mosca, nada havendo que vos serão entregues sem delongas.
que tanto me entristeça como a idéia Primeiro Gopo - Que diz o general?
de mais dez mil não realizar como essas. Lúcio Emílio, caso
Lúcio : Levai esse demônio, sua morte Saturnino a meu pai e ao tio Marco
deve ser prolongada; a forca, apenas, entregue seu penhor, não faltaremos.
fora branda demais. Avante! Marcha!
AARÃO" Se houver demônios, (Saem.)

Cena ll
Roma. Diante da casa de Tito. Trro - Quem veio perturbar meu pensamento?
Entram Tamora, Demétrio e Quirão, disfarçados. Vosso plano é forçar-me a abrir a porta
para que sumam meus projetos tristes,
Tamora* Com esta triste e estranha vestimenta frustro ficando todo o meu trabalho?
falarei a Andronico, declarando-lhe Mas estais enganados. Vede! Quanto
que eu sou a Vingança, lá de baixo enviada fazer pretendo já deixei fixado
para a ele me agregar e dar alívio nestas linhas de sangue, pretendendo
ao seu incomportável sofrimento. realizar tudo o que se encontra escrito.
Batei logo no quarto; dizem que ele Tamora- Tito, só vim aqui para falar-te.
se fecha aí, a excogitar projetos Trro - Não, nem uma palavra; como posso
estranhos de vingança pavorosa. falar com graça, se de mão careço
Dizei-lhe que a Vingança aqui se encontra para com o gesto sublinhar a fala?
para a ruína acelerar de todos Sobre mim tens vantagens. Fora! Fora!
os inimigos dele. Tamora Se soubesses quem sou, desejarias
(Quirão e Demétrio batem na porta.) comigo conversar.
(Tito aparece em cima.) Trro- Não estou louco;

III
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sei muito bem quem és; de testemunho TAamoRA São meus ministros ambos,
sirva este pobre coto, sirvam estas acompanham-me.
linhas da cor de sangue, estes profundos Trro : São teus ministros? Como são chamados?
sulcos cavados pelo sofrimento; Tamora : Morte e Estupro: esses nomes receberam
sirvam também de testemunho os dias por castigarem os culpados disso.
inacabáveis, as pesadas noites, Trro - Deus bondoso! como eles se parecem
as dores infindáveis... Sim, conheço-te com os filhos da Rainha e tu com ela!
perfeitamente, como sendo a nossa Mas nós, homens terrenos, temos olhos
soberba imperatriz, a poderosa enganadores, miseráveis, loucos
Tamora. Vens tirar-me a mão restante? Oh Vingança agradável, não demoro;
Tamora: Sabe, homem triste, que não sou Tamora; vou já falar-te. E se te basta o abraço
essa é tua inimiga: eu, tua amiga. de um lado só, neste momento mesmo
Sou a Vingança, enviada pelo inferno te apertarei ao peito. Desço logo.
para aplacar o abutre corrosivo (Recolhe-se. )
que tens no pensamento, com deixar-te TamorA * Convém ao seu estado concordarmos
plenamente vingado dos imigos. assim com seus caprichos. Com palavras
Vem, pois, saudar-me neste mundo claro; apropriadas dai força a qualquer plano
falemos sobre mortes e assassínios. que eu, acaso, inventar para alimento
Não há esconderijo, escura cova, de sua fantasia tresloucada.
vale brumoso, funda obscuridade Convicto está de que a Vingança eu seja.
onde se escondem, tímidos, o crime Uma vez certo dessa idéia louca,
sanguinolento, o detestado estupro, dir-lhe-ei que mande alguém chamar o filho,
que de encontrar mui fácil não me seja. Lúcio, e, enquanto o retenho num banquete,
Segreda a todos meu terrível nome. hei de fazer que se dispersem todos
Vingança, e logo o criminoso treme. os godos inconstantes, ou inimigos
Trro-Ésa Vingança, então, e foste enviada seus, ao menos, fazer de todos eles.
para que os inimigos eu torture? Aí vem ele. Volto o meu papel.
Tamora: Ela mesma; assim, desce e vem (Entra Tito.)
saudar-me. Tiro - Há muito tempo estou desamparado,
Trro - Um serviço me presta, antes que eu desça. e tudo por tua causa. Sê bem-vinda,
Ao lado teu o Estupro e a Morte vejo. terrível Fúria, à minha casa triste.
Agora prova que a Vingança és mesmo: Estupro e Morte, a vós dois também saúdo.
apunhala-os, ou passa com teu carro Mas como à imperatriz e seus dois filhos
por cima deles, que eu irei saudar-te, vos pareceis! Só falta para o grupo
de cocheiro servir-te, para em volta terdes convosco o mouro. Todo o inferno
do globo nós girarmos. Dois ginetes fornecer não vos pôde um tal demônio?
apropriados arranja, negros, negros Pois sei que a imperatriz não dá um passo
como azeviche, para velozmente sem ter o mouro em sua companhia.
teu carro vingador daqui levarem Para a representardes com capricho,
e procura assassinos em seus antros. indispensável fora que obtivésseis
Quando teu carro com as cabeças deles semelhante demônio. Pouco importa:
estiver carregado, então eu salto sois bem-vindos assim. Mas, que faremos?
para correr junto das rodas como TaMoRA * Andronico, que queres que façamos?
criado humilde, de pé o dia todo, DemérRIO : Mostra-me um assassino, e logo o
desde que Hipério se alce no levante. prendo.
Farei todos os dias isso tudo, QuirÃo - Mostra-me um celerado que violado
se o Estupro e a Morte, que aí estão, matares. tivesse alguém, porque o castigue logo.

II2
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Tamora: Mil sujeitos me mostra, que te Marco * Farei tudo isso e voltarei depressa.
houvessem feito algum dano, para que os castigue. (Sai.)
Tiro - Corre as malditas ruas da cidade, Tamora Ágora vou cuidar de teus negócios;
e quando — oh Morte! — achares um sujeito comigo levo estes meus dois ministros.
perecido contigo, mata-o logo, Trro - Não, não! Deixa comigo o Estupro e a Morte!
porque é um assassino. Vai com ele, Do contrário, farei voltar o mano,
bondoso Estupro; e quando, por teu lado, confiando a Lúcio, apenas, o vingar-me.
encontrares alguém que se pareça TAMoRA (à parte, aos filhos) -
muito contigo, meu bondoso Estupro, Que achais, meninos? Ficareis com ele,
mata-o: um violador é de mulheres. enquanto eu vou contar ao meu marido
Parte no encalço deles, pois na corte que surtiu bom efeito a brincadeira?
do imperador há uma Rainha sempre Cedei aos seus caprichos, adulai-o,
seguida por um mouro. Muito fácil falai-lhe com bons modos, entretendo-o
te será conhecê-la, pois é tua até o meu retorno.
cópia perfeita, da cabeça aos pés. Trro (à parte) - Reconheço-os
Inflige-lhes, te peço, qualquer gênero perfeitamente, muito embora pensem
de morte pavorosa, pois mostraram-se que estou fora do juízo. Hei de apanhá-los
cruéis comigo e minha gente toda. em sua própria armadilha, a esses malditos
mastins do inferno e à mãe que os pôs no mundo.
TAMoRA: Às tuas instruções serão cumpridas.
DEMÉTRIO (à parte, a Tamora) *
Antes, porém, bondoso Tito, peço-te
Podeis sair, senhora, sem cuidado,
que mandes um recado para Lúcio,
deixando-nos aqui.
teu filho triplamente valoroso,
TAMORA: Sim, Andronico;
que contra Roma traz guerreiros godos,
cuidar vai a Vingança dos castigos
e a um banquete o convida em tua casa.
que irão já receber teus inimigos.
Uma vez ele ali, precisamente
(Saí)
em teu festim solene, hei de trazer-te
Trro : Adeus, doce Vingança; estou contente.
a imperatriz e os filhos, o monarca,
QuirÃo : Dize-nos velho: que fazer devemos?
todos os teus imigos, que hão de, humildes, Trro Silêncio! Reservei-vos muita coisa.
a teus pés ajoelhar e suplicar-te, Públio, vem cá! Vem, Caio! Valentino!
podendo tu descarregar em todos (Entram Públio e outras pessoas.)
as tristezas que o peito te angustiam. Púszio : Que desejais?
Que diz desse expediente o alto Andronico? Tiro: Conheces estes dois?
Trro - Mano Marco! Quem chama é o infeliz Tito. PúsLio - Os filhos são da imperatriz, Demétrio,
(Entra Marco.) parece-me, e Quirão.
Marco, procura teu sobrinho Lúcio; Tiro Ora, ora, Públio!
encontrá-lo-ás entre os valentes godos. Estás muito enganado, Morte e Estupro,
Da minha parte, dize-lhe que venha é como eles se chamam. Por tudo isso,
falar-me em minha casa, acompanhado meu gentil Públio, amarra-os; Valentino,
dos mais notáveis príncipes dos godos. Caio, as prestantes mãos sobre eles ponde.
Que onde estiver acampe seus soldados. Suspirarjá me vistes muitas vezes
O imperador e a imperatriz, lhe dize, por este instante que ora se apresenta.
num festim tomam parte em minha casa, Amarrai-os, portanto, com bem força,
devendo Lúcio vir, para saudá-los. ea boca lhes tapai, se protestarem.
Se amor me tens, dá-lhe o recado certo; (Sai. Públio e os outros seguram Quirão e Demétrio.)
e ele que faça tudo o que te disse, QuirÃo : Miseráveis, parai! Somos os filhos
se a vida preza de seu pai idoso. da imperatriz.

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PúsLio- Por isso mesmo vamos Sabeis que vossa mãe vem banquetear-se
dar cumprimento às ordens recebidas. comigo, daqui a pouco, apresentando-se
A boca lhes tapai, não permitindo como a Vingança, por julgar-me louco.
que pronunciem uma só palavra. Ouvi-me, celerados! Vossos ossos
Estás bem preso? Ponde força nisso. vou reduzir a poeira, que no sangue
(Volta Tito com uma faca, e Lavínia com uma bacia.) misturada uma pasta me forneça
Trro : Vem ver, Lavínia; vem. Estão bem presos com que uma torta aprontarei de vossas
os teus dois inimigos. Amarrai-lhes cabeças infamantes, para, logo,
a boca, não deixando que me falem. dizer àquela prostituta, vossa
Oh Quirão e Demétrio! Celerados! maldita mãe, que, como a própria terra,
Eis aqui a fonte que deixastes turva devorar venha os filhos. Esse é o banquete
com todo o vosso lodo, o ameno estio para que a convidei, sendo esse o prato
que destruístes com vosso frio inverno. com que ela vai fartar-se. Pois se minha
Matastes-lhe o marido; condenados filha sofreu bem mais que Filomela,
por esse crime foram seus dois manos. mais do que Progne hei de vingar-me agora.
Perdi uma das mãos por mero escárnio; Preparai as gargantas. Vem, Lavínia.
ela, as duas, a língua, e o que é mais caro (Degola-os.)
que mãos e língua: a pura castidade, Apara o sangue, e, após terem morrido,
por vós roubada, monstros impiedosos! a poeira lhes reduzo os ossos todos,
Que poderíeis alegar em vossa porque a misture neste odioso líquido
defesa, se falar eu vos deixasse? e as vis cabeças coza nessa pasta.
Miseráveis! Implorar graça o pejo Vamos! Vamos! Que todos se azafamem
não vos permitiria. Ouvi, bandidos, nos aprestar o banquete, pois pretendo
de que modo pretendo castigar-vos. mais sinistro deixá-lo e sanguinário
Ficou-me uma das mãos para o pescoço que o festim dos Centauros. Carregai-os...
cortar-vos neste instante, enquanto fixa Assim... Assim... Vou ser o cozinheiro,
Lavínia nos dois cotos a bacia para arranjar as coisas de maneira
que aparar vai vosso culposo sangue. que, ao vir a mãe, eles estejam prontos.
(Saem carregando os cadáveres.)

Ato V Cena HI
O mesmo. Pátio da casa de Tito. Um banquete preparado. Temo que o imperador contra nós todos
Entram Lúcio, Marco e godos, com Aarão prisioneiro. rumine alguma insídia.
AARÃO": Que um demônio
Lúcio * Tio, Marco, uma vez que é da vontade maldições me segrede e me permita
de meu pai que eu retorne para Roma, soltar a língua e articular todo o ódio
por vós me deixo guiar. venenoso que o peito me angustia.
Marco: Como nós todos Lúcio - Para trás, cão maldito! escravo infame!
por ti, venha o que vier. Senhores, ajudai meu tio nisso.
Lúcio: Bondoso tio, (Saem os godos com Aarão; soam trombetas.)
guardai o mouro bárbaro, esse tigre O toque é indício de que o Rei vem perto.
devorador, demônio amaldiçoado. (Entram Saturnino e Tamora, com Emílio, senadores,
Não lhe deis alimento, acorrentai-o tribunos e outras pessoas.)
até que seja conduzido à frente
SATURNINO * Que tal? Há mais de um sol no
da imperatriz, para servir de prova
firmamento?
contra a conduta criminosa dela.

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Lúcio : Por que motivo como sol te julgas? Trro : Matei quem me deixou sem vista os olhos.
Marco : Imperador de Roma, caro Lúcio, Tão desgraçado sou quanto Virgínio,
interrompei a fala. Estas querelas e mil razões mais que ele tenho para
resolvidas terão de ser com calma. perpetrar este crime.
Já está feito.
Está pronto o festim que o cuidadoso SaruRrNINO : Como! Ela foi violada? Então revela-nos
Tito aprestou com um intento honroso, quem foi o autor desse ato.
para o amor, a concórdia e o bem de Roma. Trro- Vossa Alteza
Tomai vossos lugares, por obséquio. não quererá comer? Desdenha o invite?
SATURNINO * Assim faremos, Marco. Tamora: Por que matar o paia própria filha?
(Soam oboés.) Trro - Não fui eu que a matei, porém Demétrio
(Entram Tito, vestido de cozinheiro, Lavínia com um véu com Quirão juntamente. Após haverem
no rosto, o menino Lúcio e outras pessoas. Tito coloca os dela abusado, a língua lhe cortaram.
pratos na mesa.) Eles, apenas, lhe fizeram isso.
Tiro: Gracioso imperador, sois mui bem-vindo. SATURNINO: Ide buscá-los; imediatamente!
Bem-vinda sois, Rainha temerosa. Tiro: Ora, ora! Ambos estão naquela torta
Guerreiros godos, salve! Salve, Lúcio!
com que a mãe deles tem-se regalado,
Saúdo a todos. Muito embora seja comendo, assim, a própria carne que ela
pobre a comida, há de satisfazer-vos.
mesma engendrou. É certo, é certo; atesta-o
Começai, por obséquio.
a ponta aguda desta minha faca.
SATURNINO * Qual a causa
(Mata Tamora.)
de vos vestirdes, Andronico, assim?
SATURNINO * Morre, louco, por essa ação maldita!
Tiro - Para ter a certeza de que nada
(Mata Tito.)
há de faltar para condignamente
Lúcio - Não pode ver o filho ao pai sangrante,
servirmos Vossa Alteza e a imperatriz.
sem que a retribuição dê num instante.
Tamora: Meu bondoso Andronico, muito gratos
vos ficamos por isso. (Maia Saturnino. Grande tumulto. O povo se dispersa em
Trro- Vossas Honras
confusão. Marco, Lúcio e seus partidários sobem à janela.)
realmente o ficariam, se soubessem
Marco * Povo e filhos de Roma, de semblante
quanto em meu coração se passa agora. perplexo, que estas mortes dispersaram
Meu nobre imperador, resolvei-me isto; como aves que debandam sob o impulso
Teria procedido com acerto dos ventos tempestuosos: permiti-me
o impetuoso Virgínio, ao dar a morte que vos ensine a recolher de novo
com a própria mão à filha, por ter sido numa paveia o trigo tresmalhado,
manchada, desonrada e deflorada? num corpo só os arrancados membros!
SATURNINO * Não deixemos que Roma se transforme
Sim, Andronico, com acerto. no seu próprio flagelo, nem forcemos
Trro* E as vossas a cidade, ante a qual possantes reinos
razões, grande senhor? se têm curvado, a lançar mãos violentas
SATURNINO * É que a donzela em si própria, tal como o vil proscrito
sobreviver não deveria à própria que o abandono levasse ao desespero.
desonra nem as dores reavivar-lhe. Se estes sinais de geada, estes meus sulcos,
Trro : Forte razão, possante e decisiva. testemunhas mui graves de experiência
Exemplo, precedente, penhor vivo profunda e verdadeira, não puderem
para que eu, infeliz, o mesmo faça. vos induzir a ouvir minhas palavras,
Morre, morre, Lavínia, e o teu opróbrio, (a Lúcio.)
com ele morre o opróbrio de teu pai. fala, amigo de Roma, como outrora
(Mata Lavínia.) fez nosso antepassado, quando em grave
SATURNINO * Bárbaro, desumano, que fizeste? discurso relatou ao triste ouvido

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da apaixonada Dido toda a história Mas, devagar! Receio ter feito uma
daquela noite lastimosa e rubra digressão muito grande com lembrar-vos
em que os gregos astutos surpreenderam do meu pequeno mérito. Perdoai-me;
o Rei de Tróia, Príamo. Revela-nos mas somos obrigados a elogiar-nos,
o Sinão que os ouvidos nos burlou, quando perto não há pessoa amiga.
ou quem foi que nos trouxe a fatal máquina Marco : Minha é a vez de falar. Vede esta criança.
que produziu em nossa Tróia, em Roma, Tamora a deu à luz; foi concebida
a ferida intestina. Nem de pedra por um mouro sem fé, autor precípuo,
nem de aço tenho o coração, nem posso conspirador de todas estas dores.
dar forma a todo o meu queixume amargo; Esse infame ainda está com vida em casa
afogada se vê minha oratória de Tito, e muito embora seja um réprobo,
nestas ondas de lágrimas que cortam confirmar pode quanto vos afirmo.
minhas palavras, justamente quando Julgai agora se não tinha Tito
deveriam mover-vos a escutar-me, razão para vingar tantos ultrajes
ensejando-me vossa simpatia. inenarráveis, que ultrapassam quanto
Aqui tendes um chefe, cle que conte suportar possa qualquer ser humano.
tudo o que se passou, que seu relato Agora que a verdade toda ouvistes,
o coração em prantos vai deixar-vos. romanos, que dizeis? Se houve exagero
Lúcio : Ficai sabendo então, nobre auditório, no que fizemos, apontai-nos onde,
que Demétrio e Quirão, esses infames, que deste mesmo ponto em que nos vedes,
os assassinos foram de Bassiano, nós todos, os restantes Andronicos,
irmão de nosso Rei, tendo sido eles, sem vacilarmos, de mãos dadas, vamos
outrossim, que violaram nossa irmã. precipitar-nos de cabeça baixa,
Por seus crimes nefandos nossos manos para que nessas pedras pontiagudas
foram decapitados, desprezadas partamos a cabeça e assim, de pronto,
de nosso pai as lágrimas sentidas, ponhamos fim a nossa pobre casa.
sobre o terem privado por embuste Romanos, repeli um suplicante,
da mão leal que a causa defendera que eu e Lúcio morremos neste instante.
de Roma em tantas pugnas e os imigos EmíLio - Vamos, vamos, romano venerável,
enviara para o túmulo. Por último, pela mão traze nosso imperador,
injustamente fui daqui banido; sim, nosso imperador, Lúcio, ele mesmo,
vi contra mim fecharem-se os portões, pois o povo comum, tenho certeza,
a chorar fui expulso da cidade, vai aclamá-lo com a maior presteza.
para, entre os próprios inimigos dela Romanos: Salve Lúcio, de Roma o real senhor!
pedir auxílio, os quais em minhas lágrimas Marco (aos criados) - Ide à triste mansão do velho Tito
sinceras afogaram seus rancores, e arrastai para aqui o mouro incrédulo,
nos braços, como a amigo, recebendo-me. para que condenado seja a um gênero
Pois bem, ficai sabendo que eu, proscrito, de morte sanguinária e pavorosa
fui que comprei a salvação de Roma como pena de sua vida infame.
à custa de meu sangue, tendo a espada (Saem os criados.)
do inimigo desviado de seu peito, (Lúcio, Marco e os demais descem da sacada.)
com receber todo o aço neste corpo. Romanos : Salve Lúcio, de Roma o real senhor!
Jamais fui fanfarrão, sabei-lo todos. Lúcio : Romanos, obrigado. Só desejo
As cicatrizes de meu corpo, embora vir a ter no governo o grato ensejo
sejam mudas, atestam que o relato de dar remédio aos males da cidade,
que vos fiz é sincero e verdadeiro. curando suas dores. Gentil povo,

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um momentinho, ainda, concedei-me, PrimEIRO ROMANO *


que um pesado dever a natureza Ponde remate às dores, Andronicos,
de mim agora exige. Ficai longe; e a sentença dizei do miserável
mas vós, tio, aqui perto, para lágrimas que foi o causador destas desgraças.
sentidas derramarmos neste corpo. Lúcio - Enterrai-o até o peito, porque à fome
Na boca fria, agora, um beijo quente. venha a morrer. Que fique assim, raivoso,
(Beija o cadáver de Tito.) gritando por comida. E havendo, acaso,
estas lágrimas tristes em teu rosto quem o socorra ou compaixão revele,
cheio de sangue, as últimas obséquias venha a morrer por isso. Essa é a sentença.
de teu amado filho. Cuide alguém de enterrá-lo como eu disse.
Marco: À mesma coisa AARÃO
teu mano Marco faz nesses teus lábios: Oh! por que é muda a raiva e surda a cólera?
beijos por beijos, lágrimas por lágrimas. Não sou criança medrosa, para às baixas
E se infinita fosse a soma deles, orações recorrer e, muito menos,
ilimitada, todos eu pagara. para me arrepender dos crimes feitos.
Lúcio - Vem para aqui, menino; vem e aprende Cometera outros, dez mil vezes piores,
conosco a derreter-te de tristeza. se possível me fosse realizá-los.
Teu avô te estimava grandemente. Se em toda a vida fiz uma ação boa,
Quantas e quantas vezes sobre os joelhos no fundo da alma, agora me arrependo.
não te punha a dançar, cantarolava Lúcio - Agora o imperador alguns amigos
para que adormecesses, ajeitando-te daqui removam, para sepultá-lo
para dormir no próprio peito dele! no túmulo de seus antepassados.
Que de histórias bonitas não sabia, Meu pai e minha irmã depositados
próprias para tua idade de alegria! vão ser na sepultura da família.
Como filho amoroso, assim, lembrado Quanto a essa odiosa tigre, essa Tamora,
de tudo isso, derrama algumas gotas não terá ritos fúnebres, nem prantos,
de tua tenra fonte, que a bondosa nem dobre melancólico de sinos
natureza assim manda: com os amigos por ocasião do enterro. Não; jogai-a
ficaremos, na dita e nos perigos. para pasto das feras e das aves.
Dize-lhe adeus; entrega o corpo à terra; Vida animal teve ela, sem piedade;
dize-lhe adeus e te despede dele. não teremos com ela, assim, piedade.
MENINO: Ávozinho, avozinho! Quem me dera Providenciai para que seja logo
ter morrido, contanto que vivêsseis! feita justiça nesse mouro infame,
Oh Senhor! Impossível me é dizer-lhe fonte e origem de nossos males todos.
qualquer palavra, que mo impede o pranto. Apliquemos depois todo o cuidado
Se abrir a boca, em lágrimas me afogo. no bem-estar do nosso grande Estado.
(Voltam os criados com Aarão.) (Saem.)
Introdução (David Bevington)

A Megera Domada (cerca de 1592-1594) mostra o gênio cômico de Shakespeare


no seu melhor. Ao mesmo tempo, ela compartilha com as peças anteriores uma
antecipação das direções que seu gênio irá tomar em Muito Barulho por Nada e outras
comédias do final de 1590. Ao habilidosamente justapor dois enredos e uma introdução,
ou estrutura do enredo, a peça oferece visões contrastantes sobre a batalha dos sexos.
Esse debate sobre a natureza do relacionamento amoroso continuará através de muitas
comédias posteriores. A peça habilmente manipula, também, o dispositivo da identidade
equivocada, como em A Comédia dos Erros, invertendo o relacionamento mestre-servo
para criar um mundo Saturnal transformado, antecipando àquele de Sonho de uma Noite
de Verão e Noite de Reis.

A introdução instala o tema da ilusão, usando um velho motivo chamado de “O


Dormente Acordado” (como encontrado, por exemplo, em As Mil e Uma Noites). Esse
dispositivo estrutura a ação principal da peça, dando-a uma perspectiva adicional. A
Megera Domada pretende, de fato, ser uma peça dentro da peça, um entretenimento
planejado por um argucioso nobre como uma piada prática a um funileiro bêbado,
Christopher Sly. A brincadeira é a de convencer Sly que ele não é Sly, mas um
aristocrata sofrendo alucinações. Estranhamente vestido com novas roupas, Sly é
convidado a presenciar uma peça da galeria no palco. Em uma interpretação chamada O
Domar de uma Megera (impressa em 1594 e agora geralmente pensada como sendo
uma versão anterior da peça de Shakespeare, que emprega uma boa dose de
originalidade consciente, juntamente com algum empréstimo literário e mesmo plágio),
o enredo estruturante conclui ao colocar, de fato, Sly de volta na rua, em frente ao bar
onde foi encontrado. Ao acordar, Sly relembra da peça como um sonho, e propõe
empregar à visão para o bem, domando sua própria esposa. Se esse final reflete um
epílogo agora perdido do texto da peça de Shakespeare, não podemos dizer, mas ele
reforça à ideia da peça como a fantasia de Sly. Como Puck, no final de Sonho de uma
Noite de Verão, encorajando-nos a rejeitar o que vimos como o produto de nosso
próprio cochilo, Sly continuamente relembra-nos que a peça é somente uma ilusão ou
sombra.

Com repetida ousadia, Shakespeare chama a atenção à natureza forçada de seu


artefato, a peça. Quando, por exemplo, Sly finalmente está convencido que ele é, de
fato, um lorde nobre recuperando-se de uma loucura e, vigorosamente, propõe levantar-
se da cama com sua esposa há muito negligenciada, nós estamos comicamente cônscios
que a “esposa” é um impostor, um jovem pajem disfarçado. Porém, essa falsificação dos
papéis não era menos irreal do que a empregada pelos meninos-atores Elisabetanos para
as partes de Katharina e Bianca na peça “real”. Conforme vemos Sly assistir a uma
peça, níveis de significados cruzam-se de maneira imaginativa. Novamente, as pinturas
oferecidas a Sly por seus novos atendentes chamam a atenção para a habilidade da arte
de confundir ilusão e realidade. Em uma pintura, Cytherea está escondida pelos juncos
“Que parecem mover-se descontrolados com a respiração dela, / Mesmo quando os
capins brincam com o vento,” e, em outra pintura, Io aparece “Como se vivamente
pintada como a coisa feita” (Introdução, 2.50-6). A função de Sly, então, é aquela de um
observador inocente que inverte ilusão e realidade em sua mente, concluindo que toda a
sua vida anterior de funileiro, de bares e Cicely Hackets foi irreal. Como seus servos
explicam-lhe, “Esses quinze anos você esteve em um sonho, / Ou quando você acordou,
acordou como se dormisse.” Nós plateia rimos da inocência de Sly, e ainda nós,
também, somos movidos e transformados por uma visão artística que sabemos ser
ilusória.

Como Sly, muitos personagens da ação principal da peça são persuadidos, ou


planejados, a serem o que eles não são. Lucentio e Trânio trocam de papéis de mestre e
servo. Os supostos tutores de Bianca são, de fato, seus cortejadores, usando suas lições
para disfarçar mensagens de amor. Katharina é vencida pelo seu marido, Petruchio, ao
declarar que o sol é a lua e que um velho cavalheiro (Vincentio) é uma bela jovem
dama. Vincentio é publicamente informado que é um impostor e que o Vincentio “real”
(o Pedante) está, naquele momento, olhando para ele pela janela da casa de seu filho
Lucentio. Essa última artimanha não engana o Vincentio real, mas quase tem êxito em
enganar todos os demais. Baptista Minola está prestes a levar Vincentio para a cadeia
pela calúnia infame de declarar que o suposto Lucentio é somente um servo disfarçado.
Vincentio, como o estranho que acaba de chegar, está apto a ver as coisas como elas de
fato são, mas os habitantes de Pádua cresceram acostumados com ficções insanas e
improváveis sobre suas vidas que eles não acordam facilmente para a realidade.

Tais ilusões têm o efeito de desafiar às normas da ordem social. Se um servo


pode interpretar o mestre com tanto sucesso que ninguém pode dizer a diferença,
devemos entender que as distinções sociais são meras construções arbitrárias? Se Sly
pode tornar-se um lorde ao vestir as roupas certas e falar em versos brancos (como na
Introdução, 2.68 e após), os membros da plateia também podem aumentar seus status?
O teatro promove tais questões céticas, pois seu negócio é o de vestir os atores como
pessoas de qualquer classe social que o dramaturgo escolher. Certamente um dos
prazeres da performance teatral para as plateias Elisabetanas era o de sonhar com
avanços sociais ou controle. Ao mesmo tempo, esse teatro trata tal experiência
liberadora como um feriado ou pesadelo farsesco, e como um escape Saturnal;
compreendemos como plateia, que retornaremos às normas de nossas vidas diárias
depois de termos visitado e imaginado um espaço onde qualquer coisa é possível.

Shakespeare multiplica seus dispositivos de ilusão ao combinar dois enredos


inteiramente distintos, cada um preocupado, ao menos em parte, com a inversão cômica
da aparência e realidade: o enredo do domar a megera, envolvendo Petruchio e Kate, e o
enredo romântico mais convencional envolvendo Lucentio e Bianca. Este enredo é
derivado de Supposes de George Gascoigne, uma peça apresentada primeiramente no
Gray´s Inn (um dos Inns da Corte) em 1566, como traduzida da comédia neoclássica de
Ariosto, I Suppositi, 1509. (A obra de Ariosto, por sua vez, era baseada em Eunuchus de
Terêncio e Captivi de Plauto.) Os “Supostos” são identidades equivocadas ou
desentendimentos, os tipos de misturas farsescas que Shakespeare já havia
experimentado em A Comédia dos Erros. Shakespeare, como de costume, romantizou
sua fonte e moralizou-a de sua maneira tipicamente Inglesa. A heroína, que na comédia
Romana de Plauto e Terêncio seria uma cortesã, e que em Supposes ficou grávida de seu
amante clandestino, permanece inteiramente casta na comédia de Shakespeare.
Consequentemente, ele não necessita de um alcoviteiro, ou intermediário, tal como a
indecente Duenna ou Governante de Supposes. A sátira direcionada ao antigo
galanteador da heroína, Grêmio, é muito menos selvagem do que em Supposes, onde o
“pantalão”, Dr. Cleander, é um advogado vilmente corrupto, tipificando a depravação
da sociedade “respeitável”. Apesar das modificações de Shakespeare, entretanto, o
enredo básico permanece um esforço de frustrar à autoridade parental. Os jovens
amantes, escolhendo um ao outro por razões românticas, devem repelir os cálculos
materialistas de seus pais.

Em tal situação padrão, os tipos dos personagens são, também, convencionais.


Grêmio, o envelhecido cortejador opulento é, de fato, nomeado um “pantalão” no texto
(3.1.36-7) para enfatizar sua ancestralidade neoclássica. (Cortejadores magros e tolos
desse tipo eram costumeiramente vestidos com pantalões, sandálias e óculos no palco
Italiano.) Grêmio é, tipicamente, o “barba cinza,” e Baptista Minola “o pai inquisidor”
(3.2.145-6) Mesmo que Shakespeare represente a esses personagens bem mais atraentes
que em Supposes, seus comportamentos mundanos ainda convidam à retaliação dos
jovens. Desde que Baptista Minola insiste em vender sua filha Bianca a quem der o
maior lance, é apropriado que o mais rico pretendente (o suposto Lucentio) deva ser, no
final, um paupérrimo servo (Trânio) disfarçado como um homem de afluência e
posição. Em seu papel tradicional de servo esperto da comédia neoclássica, Trânio
habilmente imita os maneirismos da sociedade respeitável. Ele pode lidar com as meras
superfícies – roupas e reputação – as quais a importância social de um homem é criada,
e pode até mesmo munir a si mesmo com um pai rico. Grêmio e Baptista merecem ser
enganados, porque eles aceitam à ilusão da respeitabilidade como real.

Mesmo os amantes românticos do enredo emprestado são amplamente


convencionais. Com efeito, Shakespeare enfatiza às qualidades virtuosas e a sinceridade
deles. Shakespeare adiciona Hortênsio (que não existe em Supposes) para prover a
Lucentio um genuíno e tolo rival, e Bianca com dois pretendentes mais próximos da sua
idade do que o velho Grêmio. Lucentio e Bianca merecem seu triunfo romântico; eles
são autocentrados, arguciosos e constantes um ao outro. Entretanto, sabemos muito
pouco sobre eles, nem eles viram profundamente um ao outro. A fala de amor de
Lucentio é carregada de imagens convencionais, com elogios aos olhos escuros de
Bianca e seus lábios escarlates. Ao final da peça, ele descobre, para sua surpresa, que
ela pode ser obstinada e mesmo desobediente. Será que a aparente virtude dela esconde
algo dele e de nós? Por causa de o relacionamento entre esses amantes ser superficial,
eles são apropriadamente destinados a um casamento superficial também. A passiva
Bianca torna-se a orgulhosa e insolente esposa.

Por contraste, Petruchio e Kate são os amantes mais interessantes, cujo cortejo
envolve autodescoberta mútua. Reconhecidamente, não devemos exagerar o caso.
Especialmente à primeira vista, esses amantes são também tipos comuns: o
domesticador da megera e sua proverbial esposa rabugenta. (a palavra shrew [megera],
originalmente significando um homem perverso ou maligno, frequentemente aplicado a
um demônio ou a um planeta ameaçador, alterou seu significado para o de uma esposa
turbulenta e ofensiva.) Apesar de parecer que Shakespeare não usou qualquer fonte
única para este enredo, ele era bem familiar com estórias rudes e misóginas,
demonstrando a necessidade de colocar às mulheres em seus lugares. Em uma balada
chama A Merry Jest of a Shrewd and Curst Wife, Lapped in Morel´s Skin (impressa em
cerca de 1550), por exemplo, o marido domestica sua esposa rabugenta ao açoitá-la
violentamente com vara de bétula e então envolvê-la na pele salgada fresca de um
cavalo de arado chamado Morel. (Essa esposa rabugenta, como Kate, tinha uma irmã
mais jovem, obediente e gentil, que era a favorita de seu pai.) Outros dispositivos do
enredo de Shakespeare podem ser encontrados em histórias similares: o alfaiate xingado
por planejar um vestido fora de moda (Accidence of Armory, 1562, de Gerard Legh), a
esposa obrigada em concordar com a declaração de seu marido em relação a alguma
falsificação patente (El Conde Lucanor, cerca de 1335, de Don Juan Manuel), e as três
apostas dos maridos na obediência de suas esposas (The Book of the Knight of La Tour-
Landry, impresso em 1484). No espírito rústico dessa tradição sexista, tão diferente do
sentimento Italianado e refinado de seu outro enredo, Shakespeare introduz Petruchio
como um homem de despreocupada bravata que está pronto para casar com a mulher
mais feia e de língua mais afiada viva, conquanto que ela seja rica. Não importando o
quanto que ele é atraído pelo espírito impetuoso de Kate depois, sua primeira atração
por ela é grosseiramente financeira. Kate é, ademais, uma problemática e insolente
jovem mulher no início, descrita pelos homens que a conhecem com “uma maldição
intolerável / Astuta e desobediente,” e agressiva em seu bullying a Bianca. Ela e
Petruchio encontram-se como grotescas contrapartes cômicas.

Ao final da peça, o padrão tradicional da dominância masculina e da


aquiescência feminina é, ainda, proeminente. A Kate é permitida água, sono e sexo
apenas quando ela submete-se a uma estrutura patriarcal na qual o marido é o
extravagante governante de sua esposa. Kate não é como às jovens heroínas de muitas
outras comédias Shakespearianas (Pórtia em O Mercador de Veneza e Rosalinda em
Como Gostais, por exemplo) que com argúcia guiam seus jovens, imaturos e
excessivamente românticos homens no sentido de uma visão pragmática em relação ao
amor e o casamento; nessa peça, Kate é a única que deve ser conquistada pelo confiante
homem. Sua rabugice é uma ameaça aberta ao controle masculino no laço do
casamento, e, adequadamente, o final cômico da peça celebra à contenção dessa sua
ameaça, juntamente com uma afiada lembrança da resistência que deve persistir nos
outros maridos que falharam em domesticar suas megeras.

Dentro dessa estrutura de referência masculina, entretanto, Petruchio e Kate são


surpreendentemente como Benedick e Beatriz em Muito Barulho por Nada. Petruchio,
por toda sua vociferação, é gradativamente atraído pelo espírito de Kate. Como
combatentes de argúcias, eles são dignos da inimizade um do outro – ou do amor.
Ninguém mais na peça é um par adequado para qualquer um deles. Kate, também, é
atraída por Petruchio, apesar da guerra de palavras dela. Sua angústia é parte uma
proteção defensiva, parte teste da sinceridade dele. Se ela está desdenhosa com os
cortejadores que teve até agora, ela tem boa razão para estar. Compartilhamos da
condescendência dela em relação ao envelhecido Grêmio ou o risível incompetente
Hortênsio. Ela corretamente teme que seu pai deseja desposá-la, para que ele possa
barganhar Bianca ao mais rico competidor. A visão esgotada que Kate tem desse acordo
de casamento é inteiramente defensiva. Não surpreendentemente, ela primeiro vê
Petruchio, as quais as intenções professadas estão longe de serem reconfortantes, como
outro mero aventureiro do amor. Ela está impressionada pelas “linhas” dele ao cortejá-
la, mas necessita testar sua constância e sinceridade. O casamento para ela deve ser um
passo sério, pois a convenção social permite um papel dominante ao homem; Ela pode
esperar, juntamente com Petruchio, alcançar algum tipo de compreensão de qual papel
como esposa e parceira seria honrado? Ela rechaça a maioria dos homens, da sua
maneira rabugenta, que desafia até mesmo a própria masculinidade deles; Petruchio é o
primeiro homem a conter à argúcia e a energia dela com as suas próprias. Ela pode
aprender a viver com esse homem?

A rejeição de Kate aos homens não a deixava feliz, apesar de ser genuíno o seu
desdém pela maioria daqueles que vieram para o cortejo. O “aprendizado” de Petruchio
pode ser visto como dirigido para aquela tristeza, mesmo se seu propósito é
incessantemente masculino em sua suposição que uma esposa rebelde tem que ser
“domesticada” como alguém domestica um falcão. Ao cortejá-la e parcialmente
conquistá-la, Petruchio testa-a ao chegar atrasado ao casamento, ao usar uma vestimenta
incomum e ao transpassar todos os desejos dela. Como o domesticador de falcões,
Petruchio usa duros meios físicos, incluindo à privação de comida e bebida. Ele trata
Kate como sua posse, e nunca vacila em sua certeza que está certo em assim o fazer.
Outros homens aplaudem seu sucesso e desejam somente seguir seu exemplo. A
resolução é, nesses termos, manifestamente mais sexista do que em Muito Barulho por
Nada; é como se Shakespeare trabalhasse o seu caminho através dos problemas do
conflito sexual a partir dessa peça anterior, muito masculina, a uma acomodação mais
complexa e mútua em suas comédias posteriores.

Ao mesmo tempo, é possível ver A Megera Domada como uma peça na qual
uma acomodação genuína é alcançada, mesmo que seja sobre os termos do homem, não
dando nenhuma escolha à mulher. A peça pode encorajar à visão que o tratamento de
Petruchio a Kate, não importando se temporariamente rude, é finalmente benigno em
sua intenção. Petruchio, através de seu comportamento estranho de virar as mesas e
xingar os servos, mostra a Kate uma face feia do que ela obstinadamente é. Ele é bem-
sucedido ao insistir no que, discutivelmente, ela pode desejar também: um
relacionamento bem definido, temperado por respeito mútuo e amor. Nessa
interpretação, Kate pode ganhar alguma coisa ao final da peça. O discurso de
encerramento dela, com sua bela combinação de ironia e hipérbole autoconsciente,
juntamente com sua seriedade na preocupação, pode ser lido como expressando a
maneira na qual o espírito de independência dela e sua nova aceitação da regra
doméstica foram fundidas com sucesso, permitindo-a ganhar o aplauso de todos, em vez
da censura.

Essa não é, de forma alguma, a única maneira de ler a cena final, como as
produções modernas, frequentemente, tornaram claro: Kate emerge de várias produções
de palco como mais ou menos satisfeita, ou como simplesmente resignada, ou
cruelmente doutrinada, ou como apenas interpretando o papel da esposa obediente para
alcançar o que ela deseja. A incerteza da interpretação é um dos grandes prazeres e
desafios hoje, em um mundo cujas ideias de casamento obviamente alteraram-se, desde
que Shakespeare escreveu. Mesmo assim, a peça oferece uma fundação para o
entendimento mútuo, em sua apreciação da seriedade do assunto e sua maravilhosa
transparência, como um texto que oferece a si mesmo para interpretações rivais.
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Personagens
Um nobre Grúmio | . ;
Ena criados de Petrucchio.
Cristóvão SLy, latoeiro.
Estalajadeira personagens
Pajem Um professor, preparado para fazer o papel de
da introdução.
Atores Vicêncio.
Caçadores CATARINA, a megera.
Criados
BrANCA
BarTISTA, rico gentil-homem de Pádua. Viúva | filhas de Batista.
VicÊncio, velho gentil-homem de Pisa.
Lucêncio, filho de Vicêncio, apaixonado de Bianca. Alfaiate, modista e criados a serviço de Batista e de
PerTRUCCHIO, 8 gentil-homem de Verona, Petrucchio.
pretendente de Catarina.
Cena
Grêmio Parte em Pádua, e parte na casa de campo de Petrucchio.
HoRrTÊnsio'
criados de Lucêncio.
TRÂNIO
BroNDELLO
Introdução - Cenal
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Num prado. Defronte de uma cervejaria. por demais frio fora para o sono.
Entram a estalajadeira e Sh. NosrE : Oh animal monstruoso! Está deitado
como um porco. Medonha morte, como
SLy : Hei de vos dar uma tunda, palavra de honra. tua pintura é feia e repulsiva!
EsTALAJADEIRA * Um par de algemas, velhaco! Vamos fazer uma experiência, amigos,
SLy : Marafona! Os Slys não são velhacos. Lede com este bêbedo. Que tal a idéia
as crônicas. Chegamos aqui com Ricardo, o de o pormos numa cama e de o cobrirmos
conquistador. Por isso, pauca palabris. Deixai o com lençóis bem macios, colocarmos-lhe
mundo rodar. Cessa! anéis nos dedos, um banquete opíparo
EsTALAJADEIRA : Não quereis pagar os copos que junto ao leito lhe pormos e solícitos
quebrastes? serventes ao redor, quando ele a ponto
Szy - Não, nem um real. Vai, por São Jerônimo! Vai estiver de acordar? Não esquecera
te aquecer em tua cama fria. sua própria condição este mendigo?
EsTALAJADEIRA* Já sei o que tenho a fazer: vou PRIMEIRO CAÇADOR*
chamar o inspetor do quarteirão. Não teria outra escolha, podeis crer-me.
(Sai) SEGUNDO CAÇADOR*
SLy - Quarteirão ou quinteirão, pouco me importa. Ao despertar, perplexo ficaria.
Hei de responder-lhe de acordo com a lei. Não cederei NosrE : Como de um sonho adulador, ou mesmo
uma polegada, rapaz. E ele que venha com jeito. de inócua fantasia. Carregai-o,
(Deita-se no chão e dorme. portanto, e preparai a brincadeira.
Toque de trompa. Entra um nobre que volta da caçada, Ponde-o com jeito em meu mais belo quarto,
com caçadores e criados.) que adornareis com quadros mui lascivos;
NosrE : Caçador, recomendo-te cuidado água cheirosa e quente na vazia
com meus cachorros. A cadela Merriman cabeça lhe passai, e no aposento
de cansada até espuma. Atrela Clowder queimai lenha aromática, deixando
com a de latido forte. Não notaste, cheiroso todo o ambiente. Arranjai música
rapaz, como o Prateado fez bonito logo que ele acordar, para que toadas
lá na dobra da sebe, quando o rasto possa ouvir agradáveis e divinas.
já fora interrompido? Não quisera E, se acaso falar, sede solícitos
perdê-lo agora nem por vinte libras. e com profunda e humilde reverência
PRIMEIRO CAÇADOR* lhe perguntai: “Vossa Honra que deseja?”
Bellman vale, senhor, tanto quanto ele; Um se apresente com bacia argêntea
não deixou de latir, e por duas vezes cheia de água de rosas em que pétalas
voltou a achar a pista, embora o rasto donosas sobrenadem; o jarro outro
se achasse quase extinto. Acreditai-me: sustente; o guardanapo, enfim, terceiro,
esse é o melhor de todos os cachorros. que lhe perguntará: “Vossa Grandeza
NosrE : És um bobo; se fosse Eco mais ágil, não quer lavar as mãos?” Vestes custosas
valeria por doze iguais a Bellman. tenha alguém prestes, para perguntar-lhe
Mas alimenta-os bem e não descures que muda ele prefere; outro lhe fale
de nenhum, que amanhã teremos caça. de seus cavalos e dos cães de caça,
PRIMEIRO CAÇADOR - Pois não, milorde. e lhe diga que a esposa ainda lastima
Nosre (enxergando Sly) - sua infelicidade, convencendo-o
Que é isso? Morto ou bêbedo? Respira? de que esteve lunático. E se acaso
SEGUNDO CAÇADOR * Respira, sim, milorde. Se a declarar seu estado verdadeiro,
cerveja não o aquecesse, o leito em que se encontra dizei que está sonhando, pois, de fato,

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À MEGERA DOMADA

ele é um nobre importante. Fazei isso, já iniciado um desporto em que vossa arte
gentis senhores, sim, porém, com jeito. muito útil me será. Há aqui um nobre
Passatempo será muito agradável, que esta noite deseja ver alguma
sc discrição souberdes ter em tudo. peça do vosso elenco. Mas receio
PRIMEIRO CAÇADOR* que não possais guardar a compostura
Garanto-vos, milorde, que sairemos à vista da atitude extravagante
bem do nosso papel, sendo certeza de Sua Senhoria, por ser certo
vir ele a convencer-se, tão-somente que Sua Honra jamais foi ao teatro,
por nossa diligência, de que é tudo o que explosão de riso vos causara,
quanto lhe sugerirmos. podendo isso ofendê-lo. Pois vos digo,
NosrE: Levantai-o senhores, que se rirdes, ele torna-se
com bem jeito e na cama o ponde logo. impaciente a valer.
E quando despertar, todos a postos. Um comepIANTE : Nenhum receio
(Sly é carregado. Toque de trombeta.) vos cause isso, milorde; saberíamos
Rapaz, vai logo ver o que esse toque conter-nos, muito embora se tratasse
de trombeta anuncia. do mais risível ser que acaso exista.
(Sai um criado.) Nosrg : Recolhe-os tu à copa, dando a todos
Com certeza bom tratamento, sem que lhes faleça
é algum fidalgo que se encontra em viagem coisa nenhuma do que houver em casa.
e se deteve aqui para descanso. (Sai um criado com os comediantes.)
(Volta o criado.) Rapaz, vai logo procurar meu pajem
Então, que é que há? Bartolomeu e manda que se vista
CRIADO: Com permissão de Vossa como uma dama. Depois disso, leva-o
Senhoria, os atores, que oferecem para o quarto do bêbedo, obedece-lhe
a Vossa Honra os serviços. e dá-lhe sempre o nome de senhora.
NosrE: Manda-os vir. De minha parte dize-lhe que adote
(Entram comediantes.) uma atitude nobre — se lhe importa
Amigos, sois bem-vindos. minha afeição — tal como tenha visto
COMEDIANTES * Obrigados fazerem damas finas em presença
ficamos a Vossa Honra. do marido. Do mesmo modo deve
NoBRrE-: E intenção vossa proceder com esse bêbedo, falando-lhe
passar a noite aqui? com voz suave, fazendo-lhe mesuras
Um comepiaNTE Caso Vossa Honra e lhe dizendo: “Que me ordena agora
se digne de aceitar nossos serviços. Vossa Grandeza, para que revele
Nosre : De todo o coração. Ainda me lembro vossa esposa fiel e muito humilde
deste rapaz, quando representava seu dever e vos prove amor sincero?”
de filho de rendeiro. Era na peça Depois, com beijos provocantes, ternos
em que a corte fazíeis gentilmente abraços, a cabeça assim pendida
a uma senhora nobre. Vosso nome sobre o peito do esposo, ledas lágrimas
já me esqueceu; mas é certeza: dita deverá derramar, por ver a volta
foi vossa parte com bastante engenho da saúde de seu senhor querido,
e naturalidade. que durante sete anos se julgara
Um comEDIANTE : Vossa Graça mendigo repulsivo e miserável.
decerto pensa no papel de Soto. Para que chovam lágrimas de jeito,
Nosre: Perfeitamente! E tu o representaste uma cebola ensejará os meios;
por maneira admirável. Bem; chegaste se ele a trouxer num lenço disfarçada,
na hora precisa, tanto mais que tenho queira ou não queira, há de ficar com os olhos

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WiLLIAM SHAKESPEARE

sempre a lacrimejar. Arranja tudo procurarem conter-se, por não rirem,


com a maior pressa que te for possível. quando mostrarem reverência ao rústico.
Dentro de pouco darei novas ordens. Vou entrar e mostrar-lhes como se há de
(Sai o criado.) fazer a encenação. Minha presença
Sei que o rapaz usurpará os gestos, pode servir para conter-lhes o ânimo
a voz, o porte e a graça de uma dama. por demais galhofeiro, que, sem isso,
Já quero ver o instante em que ele o nome promete ultrapassar os lindes próprios.
der de esposo ao borracho, e em que os criados (Saem.)

Introdução - Cenall
Quarto de dormir em casa do nobre. Aparece Shy com um de cerveja pura, podeis ter-me na conta do velhaco
rico camisolão de dormir, cercado de criados; uns sustentam mais mentiroso de toda a cristandade. Como!
peças de vestuário; outros, bacia, jarros e utensílios Estarei delirando? Aqui...
variados. Entra o nobre, vestido de lacaio. PRIMEIRO CRIADO * Isso é que deixa triste vossa
esposa.
SLy : Pelo amor de Deus, uma caneca de cerveja fina. SEGUNDO CRIADO * Isso é que abate vossos servidores.
PRIMEIRO CRIADO : Não quererá Vossa Grandeza NosrE : Eis a razão de todos os parentes
agora um copo de xerez? se afastarem de casa, como expulsos
SEGUNDO CRIADO : Não apetece por loucura tão rara. Oh nobre lorde!
a Vossa Honra provar estas conservas? pensa em teu berço, faze que retornem
TERCEIRO CRIADO * do exílio teus antigos pensamentos
Que roupa vai Vossa Honra vestir hoje? e bane o sonho degradante e baixo.
SLy: Sou Cristóvão Sly; não me deis o nome de Vê como estão solícitos os criados,
grandeza nem de honra. Nunca na minha vida bebi desejosos somente de servirem-te,
xerez, e se quereis oferecer-me conserva, que seja de ao teu primeiro gesto. Queres música? (Misica.)
carne de vaca. Não me pergunteis que roupa desejo Então escuta: Apolo toca, e logo
vestir, pois nunca tive mais gibão do que dorso, nem dez rouxinóis consonam nas gaiolas.
mais meias do que pernas, nem mais sapatos do que Ou quererás dormir? Vamos deitar-te
os pés. Sim, algumas vezes chego a ter mais pés do num colchão mais macio do que o leito
que sapatos, ou apenas desses sapatos que deixam voluptuoso arranjado de propósito
ver os dedos pelos furos do couro. para Semíramis. Se exteriorares
NosreE : Oh! possa o céu curar Vossa Honra dessa desejo de passear, espalharemos
ociosa fantasia! Que um fidalgo flores pelo caminho; se desejas
tão poderoso, de tão alto berço, montar num dos ginetes, prontamente
tão rico e conceituado, ora se encontre mandarei prepará-lo com os arreios
dominado por um tão baixo espírito! recamados de pérolas e de ouro.
SLy : Como! Quereis dizer-me louco? Então não sou Gostas da falcoaria? Teus falcões
Cristóvão Sly, filho do velho Sly de Turtonheath, mais alto pairam do que as cotovias
bufarinheiro de nascimento, por educação fabricador madrugadoras. Ou caçar preferes?
de cartas, por mutação condutor de urso, e, Teus cães farão que lhes responda a abóbada
presentemente, com a profissão de latoeiro? Bastará celeste, despertando das cavernas
perguntardes a Mariana Hacket, a gorda cervejeira os ecos estridentes.
de Wincot, se ela não me conhece. Se não disser que PrIMEIRO CRIADO - Dize apenas
eu estou apontado no livro dela por quatorze pences que cavalgar desejas, pois teus galgos

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A MEGERA DOMADA

como os veados de fôlego são rápidos, SLy : Nestes quinze anos? Raspa! Que tirada!
mais velozes que a corça. E não falei durante tanto tempo?
SEGUNDO CRIADO" Se preferes PRIMEIRO CRIADO *
quadros, arranjaremos sem demora Oh! falastes, senhor, mas sem sentido.
o retrato de Adônis repousando Pois embora estivésseis neste quarto
nas margens de um regato, ou Citeréia
luxuoso, asseveráveis que vos tinham
velada pelos juncos, parecendo jogado porta fora; dirigíeis
insultos contra a dona da taberna,
que brinca com o próprio hálito e se move
prometendo chamá-la ante a justiça,
como os juncos que os ventos embalançam.
porque em jarros de barro vos servia,
Nosre : lo te vamos mostrar, quando donzela,
sem trazer a medida verdadeira.
como foi surpreendida e arrebatada,
Também chamáveis por Cecília Hacket.
tão vivo o quadro como a própria coisa.
SLy - É o nome da servente da taberna.
TERCEIRO CRIADO*
TERCEIRO CRIADO *
Ou Dafne a errar por entre os espinheiros, Não conheceis, senhor, essa taberna,
as pernas a arranhar de fazer sangue, nem criada nenhuma desse nome,
a cuja vista o triste Apolo chora,
como não conheceis ninguém chamado
tal o primor com que pintadas foram Estêvão Sly, Henrique Pimpernell,
as lágrimas e o sangue. Pedro Turf e João Naps, o velho grego
NoBRrE': És um fidalgo, e outros vinte sujeitos desse tipo.
nada mais que um fidalgo; por consorte SLy- Graças a Deus, agora estou curado.
possuis uma mulher de mais beleza Topos: Amém.
que todas as de nossa idade escura. SLy: Muito obrigado; hei de premiar-te.
PRIMEIRO CRIADO * (Volta o pajem, vestido como uma senhora, com séquito.)
Até o momento em que ela, por tua causa, PajeM : Como se sente meu senhor e mestre?
derramou tantas lágrimas, que o rosto SLy - Muito bem. Isto aqui é divertido.
lhe inundaram gracioso, de invejosas, Onde está minha esposa?
era a criatura mais encantadora Pajem* Aqui presente,
deste mundo; mas ainda se conserva nobre senhor. Que é que desejas dela?
sem confronto possível. SLy : Como! Sois minha esposa e de marido
SLY* Sou fidalgo? não me chamais? Os criados é que devem
Tenho uma esposa assim, ou sonho, acaso? tratar-me de senhor. Sou vosso esposo.
Ou sonhei até agora? Não; dormindo Payem - Meu marido e senhor, senhor e esposo,
não estou: vejo, escuto, falar posso, sou vossa esposa, em tudo obediente.
sinto perfumes suaves, toco em coisas Szy : Sei disso. De que modo hei de chamá-la?
agradáveis. Por minha vida, é certo: NosrE : Madame, meu senhor.
sou nobre de verdade, não latoeiro; SLy: Madame Alice
não sou Cristóvão Sly. Trazei-nos logo ou Joaninha madame?
nossa nobre consorte e, novamente, NoBRrE: Não; madame,
uma caneca de cerveja fina. nada mais. Desse modo é que os fidalgos
SEGUNDO CRIADO * chamam suas esposas.
Não quer lavar as mãos Vossa Grandeza? SLy : Madame esposa, acabam de contar-me
(Os criados apresentam-lhe jarro, bacia e toalha. ) que eu dormi e sonhei mais de quinze anos.
Oh! que felicidade para todos PajEM : É certo; e pareceram-me trinta anos,
vermos que o juízo já recuperastes! porque de vosso leito eu fora excluída.
Szy - É muito tempo. Criados, retirai-vos;
Se quem sois compreendêsseis finalmente!
Nestes quinze anos a sonhar vivestes. deixai-nos sós. Madame, vamos logo:
Andáveis como mergulhado em sono. tirai a roupa e vinde para a cama.

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WiLLIAM SHAKESPEARE

Pajem : Três vezes nobre esposo, instantemente por terem visto que a tristeza o sangue
vos concito a esperar uma ou duas noites, vos tinha congelado. Da loucura
ou, pelo menos, até vir o ocaso, sendo a melancolia a nutridora,
pois me recomendaram vossos médicos acharam bom que ouvísseis uma peça
que do tálamo vosso me afastasse. que a dor expulsa e a vida deixa longa.
Penso que essa razão me justifica. SLy : Com a breca! Pois que venha. Essa
SLy : Sim, uma vez que há isso... Para mim é muito comedísia não será uma farsa de Natal ou peça de
difícil esperar tanto tempo. Mas não desejo voltar saltimbancos?
a ter aqueles sonhos. Assim, será forçoso esperar, Pajem : Não, senhor; é de estofo mais alegre.
apesar da carne e do sangue. SLy - Como! Estofo de mobília?
(Entra um criado.) PajeM : É uma espécie de história.
CrraDo : Tendo sabido vossos comediantes Szy - Vamos vê-la. Madame esposa, vinde
que Vossa Honra está bem, determinaram para o meu lado. O mundo que escorregue,
representar uma comédia alegre, que com isso mais moços nós ficamos.
o que acham proveitoso vossos médicos, (Fanfarras.)

Ato T- Cenal
Pádua. Uma praça pública. como alguém que deixasse uma lagoa
Entram Lucêncio e Trânio. não muito funda, para projetar-se
no mar sequioso de estancar a sede.
Lucêncio : Trânio, bem sabes que por teus desejos Trânio : Mi perdonate, meu gentil senhor,
de ver a bela Pádua, ama das artes, mas concordo convosco nisso tudo,
vim visitar a fértil Lombardia, feliz por ver que persistis no intento
agradável jardim da grande Itália. de aspirar às doçuras da fragrante
Com permissão de meu bom pai armado, filosofia. Apenas, meu bom mestre,
sua vontade e tua companhia — embora admiradores da virtude,
fiel servidor, provado bastas vezes — da moral disciplina, não devemos
respiremos aqui, e em feliz hora virar estóicos — penso — ou mesmo estacas,
no caminho ingressemos dos estudos nem ficar tão devotos de Aristóteles
e do saber. Em Pisa tive o berço, que a Ovídio reneguemos como a réprobo.
muito famosa por seus homens graves. Com vossas relações falai de lógica
Meu pai tem lá morada, comerciante mas na prática usual sede retórico.
com negócios por todo o vasto mundo, Animai-vos com música e poesia;
Vicêncio, do solar dos Bentivoglios. quanto pedir o estômago, servi-vos
O filho de Vicêncio, que educado de matemática ou de metafísica.
foi em Florença, às esperanças deve Onde não há prazer não há proveito.
do pai dar cumprimento, ornamentando Em resumo, senhor: é aconselhável
sua fortuna com virtuosos feitos. estudar o que mais vos for do agrado.
Por isso, Trânio, empregarei o tempo Lucêncio
dos meus estudos com a virtude e a parte Muito obrigado, Trânio; é bom teu plano.
dessa filosofia que se esforça Ah, Biondello! Se em terra já estivesses,
para a ventura que a virtude almeja. poderíamos tudo já ter pronto
Que pensas? Para Pádua vim de Pisa numa casa de jeito preparada

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À MEGERA DOMADA

para os amigos que eu fizer em Pádua. BIANCA" Meu infortúnio,


Mas, paremos. Que gente está chegando? mana, te deixa alegre. Humildemente,
TRâniO - Alguma procissão que vem saudar-nos. senhor, subscrevo quanto decidistes.
(Entram Batista, Catarina, Bianca, Grêmio e Hortênsio.
Os instrumentos e meu livro hão de
Lucêncio e Trânio se conservam à parte.) fazer-me companhia.
Barisra : Deixai de importunar-me, cavalheiros, LucÊncio Escuta, Trânio:
pois conheceis qual seja o meu propósito, não parece que estás a ouvir Minerva?
a saber: não casar minha caçula Horrênsio - Signior Batista, quereis revelar-vos
sem que à mais velha tenha dado esposo. tão estranho a esse ponto? Fico triste
Se vós ambos amais a Catarina, por ver Bianca sofrer por nossa causa.
por eu vos conhecer e estimar muito, Grêmio - Ides encarcerá-la para gáudio
permissão tendes de fazer-lhe a corte. de um demônio infernal, signior Batista?
Grêmio : Antes cortá-la; para mim é áspera. Terá de suportar a língua da outra?
Então Hortênsio, não quereis esposa? Barista: Senhores, calma. Não altero nada.
CATARINA (a Batista) * Bianca, vai para dentro.
(Sai Bianca.)
Por obséquio, senhor, é vosso intento
deixar-me encabulada junto destes Como eu sei que a maior delícia dela
candidatos a esposo? consiste em música, instrumentos, versos,
HorTÊnsio Oh! candidatos, vou chamar professores que lhe possam
minha senhora? Que entendeis por isso? instruir a mocidade. Signior Grêmio,
Sim, candidatos, quando vos tornardes
ou vós, Hortênsio, caso conheçais
mais cândida e gentil. algum, mandai que me procure logo.
CATARINA“ Não tendes causa, Sou sempre amigo das pessoas cultas,
senhor, de tanto medo, que, em verdade,
nada poupando para dar às filhas
ainda não encontrastes o caminho gentil educação. E agora, adeus.
para o coração dela. Mas no caso Catarina, ficai, pois ainda tenho
de o achardes, ficai certo, seu primeiro
de conversar à parte com Bianca.
cuidado consistira em alisar-vos (Sai)
os cabelos com um belo tamborete, CATARINA * Como! Não ficarei. Por que motivo?
pintando-vos o rosto de violete. Quem me impõe hora disto, hora daquilo?
HorTÊnsio Não saberei orientar-me, acaso?
(Saí)
De uma demônia dessas, Deus nos livre!
Grêmio - E a mim também, bom Deus! Grêmio : Ide para junto da mulher do diabo. Tendes
Trânio : Vede, senhor, que bela brincadeira. tão altas qualidades que ninguém aqui está disposto
É louca a rapariga ou rezingueira. a suportar-vos. Nosso amor, Hortênsio, não é tão
Lucêncio : Mas no silêncio da outra vejo réstia grande que não nos permita soprar os dedos juntos
de branda educação e da modéstia. e deixá-lo em jejum. Nosso bolo está cru de ambos
Silêncio, Trânio! os lados. Adeus. Mas pelo amor que dedico à minha
TRrânio - Pois não, senhor. Saciai agora a vista. doce Bianca, se encontrar em qualquer parte um
Barisra: Senhores, porque eu possa pôr em prática professor capaz de ensinar-lhe aquilo em que ela
quanto vos disse... Volta para casa, mais se deleita, encaminhá-lo-ei para o pai dela.
Bianca. Que não seja isso, boa Bianca, Horrênsio : Farei a mesma coisa, signior Grêmio.
razão de te agastares. Continuo, Mas uma palavrinha, por obséquio. Muito embora
minha querida, a te prezar como antes. a natureza de nossa rivalidade não nos tenha
CATARINA : Bonequinha mimada! Melhor fora permitido até agora nenhum entendimento, depois
nos olhos dela enfiar os dedos logo. de refletir sobre o assunto cheguei à conclusão de
Saberia por quê. que para nosso bem comum — no caso de obtermos

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de novo acesso à nossa encantadora amada e de abraso-me, definho, morro, Trânio,


voltarmos a ser os felizes rivais no amor a Bianca se não casar com esta meiga jovem.
— devemos conjugar esforços para alcançar um Aconselha-me, Trânio; sei que o podes.
determinado fim. Trânio, ajuda-me; sei que queres isso.
Grêmio - E qual é esse fim, por obséquio? Trânio - Tempo não é, senhor, de censurar-vos.
Horrênsio : Ora, senhor! Arranjar um marido para Não é com ralhos que a afeição se expulsa.
a irmã dela. Se estais amando, só vos resta agora
Grêmio : Um marido? Um demônio. Redime te captum, quam queas minimo.
Horrênsio - Repito: um marido. Lucêncio - Obrigado, rapaz. Quanto disseste
Grêmio : E eu repito: um demônio. Acreditas já me conforta um pouco. O resto me há de
mesmo, Hortênsio, que embora o pai dela seja muito deixar contente, pois dás bons conselhos.
rico, haja algum louco que se disponha a desposar o TRÂnio - Ficastes na contemplação da moça,
inferno? senhor, tão absorvido, que decerto
Horrênsio : Ora, Grêmio! Conquanto, meu não observastes o que mais importa.
caro amigo, vá além da vossa é da minha paciência Lucêncio - Oh! vi suave beleza no seu rosto,
suportar as suas gritarias, há muitos rapazes bons no como a da filha de Antenor que outrora
mundo — a dificuldade está em sabermos encontrá- Júpiter obrigou a ser humilde,
los — que se disporiam a aceitá-la com todos os seus quando em Creta o levou, na frente dela,
defeitos e com bastante dinheiro. com os joelhos a beijar a areia bela.
Grêmio - Não sei. Enquanto a mim, fora mais fácil Trânio - Não vistes nada mais? Não observastes
aceitar o seu dote, com a condição de ser chibateado como a irmã dela começou de súbito
todas as manhãs no pelourinho. a soltar invectivas, levantando
HorTÊNsio : É certo. Como dizeis, entre batatas tal tempestade que impossível fora
podres não há o que escolher. Mas desde que este a ouvido humano suportar o estrondo?
obstáculo legal nos fez amigos, continuemos no Lucêncio - Vi que ela os lábios de coral movia
mesmo tom até conseguirmos um marido para a o ambiente perfumando com seu hálito.
filha mais velha de Batista, deixando, assim, a mais Celeste era e inefável tudo nela.
nova sem empecilho para casar-se... E recomecemos TRÂnIO : É tempo de tirá-lo de tal êxtase.
a luta! Adorável! Bianca! Feliz de quem se casar com Acordai, meu caro amo! Se em verdade
ela. Quem correr mais depressa, obterá o anel. Que gostais da rapariga, pensai logo
vos parece, signior Grêmio? nos meios de alcançá-la, O caso é este:
Grêmio : Concordo. Desejara ter-lhe feito já a irmã mais velha é tão maligna e bruta
presente do melhor cavalo de Pádua, para que ele que enquanto o pai não se vir livre dela,
desse início às suas pretensões, vindo a conquistá-la mestre, solteira vossa amada fica.
de todo, a desposá-la, a deitar-se com ela e a livrar a Por isso ele a trancou a sete chaves,
casa de sua presença. Saiamos juntos. porque dos importunos se livrasse.
(Saem Grêmio e Hortênsio.) Lucêncio : Trânio, que pai cruel! Mas não notaste
Trânio - Será possível, meu senhor, dizei-me, que se ocupava em alcançar para ela
que predomine o amor assim de súbito? professores capazes?
Lucêncio TRÂNIO* Sim, com a breca!
Oh Trânio, enquanto eu mesmo o não sentira, notei, e agora já formei meu plano.
não julgara possível nem provável. Lucêncio : Eu também, Trânio.
Mas vê: estando aqui, sem fazer nada, TRÂNIO * Mestre, vou jurar-vos
os efeitos do amor encontrei no ócio, que nossos planos se completam, mesmo.
confessando-te agora, lisamente — Lucêncio : Conta-me o teu, primeiro.
a ti que és para mim o que foi Ana TRâÂniIO- Disfarçais-vos
para a Rainha de Cartago — oh Trânio! de professor, para ensinar a moça.

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Eis vossa idéia. Que se passou? Dizei-me.


Lucêncio - Não há tempo
Lucêncio: Certo. É realizável?
TRânio - Não; quem representara vossa parte para gracejos. Vem aqui, maroto.
Precisas ajeitar-te às circunstâncias.
de filho de Vicêncio, em Pádua, e em casa
ficará dedicado só a estudos? Para salvar-me a vida, Trânio assume
minha aparência e veste minha roupa,
Quem há de receber os compatriotas,
os amigos, e festas aprestar-lhes? como eu, para escapar, vesti a dele.
Lucêncio - Basta. Fica tranquilo; tenho um plano. Matei um homem mal saltei em terra,
Não fomos vistos em nenhuma casa; e tenho medo de ter sido visto.
pelo rosto ninguém nos reconhece Ficareis a serviço dele, como
convém, é o que vos digo; e eu daqui logo
como patrão e criado. Assim faremos:
vais ter criados e casa, como eu próprio;
me afastarei, para salvar a vida.
vou ser outra pessoa, um florentino, Compreendestes-me bem?
napolitano ou cidadão de Pisa. BroNDELLO Eu, senhor? Nada.
Já está chocado o plano, vai ser isso. Lucêncio : E nessa boca, nada sobre Trânio.
Não percas tempo, Trânio: tira a roupa,
Trânio agora é Lucêncio.
toma meu manto e meu chapéu de cores. BronDELLO * Tanto melhor para ele. Desejara
Quando Biondello vier, irá servir-te, também ser ele.
TRÂniIO* O mesmo eu desejara,
sendo que antes preciso industriá-lo
para nos dentes não bater com a língua. rapaz, com a condição de que Lucêncio
(Trocam as respectivas roupas.) desposasse a caçula de Batista.
TRâÂnIO Assim terá de ser. Mas não por mim, maroto, por vosso amo,
Em resumo, senhor: sendo ordens vossas, em qualquer sociedade usai comigo
e estando eu obrigado a obedecer-vos,
de muita discrição. Sozinho estando,
pois vosso pai me disse ao nos partirmos: volto a ser Trânio; mas com gente estranha,
“Fica sempre a serviço de meu filho” sou vosso amo Lucêncio.
embora outra intenção ele tivesse, Lucêncio : Vamos logo, Trânio. Só nos falta
tenho certeza — apraz-me ser Lucêncio, pôr em prática uma coisa, que terá de ser feita por
por amor de Lucêncio. ti, que é apresentares-te também como um dos
Lucêncio Sê Lucêncio, pretendentes. Se me perguntares por quê, bastará
Trânio, para lhes seres agradável. que te diga que tenho para isso razões boas e de
Quanto a mim, passarei a ser escravo, peso.
para vir a alcançar essa donzela (Saem. Falam as personagens do prólogo.)
que me feriu os olhos extasiados. PRIMEIRO CRIADO : Estais cochilando, senhor; não
Eis o tratante. estais prestando atenção à peça.
(Entra Biondello.) SLy : Estou prestando, sim, por Santa Ana. É uma
Onde estivestes, biltre? bonita história. Ainda vai demorar muito?
BIrONDELLO Pajem : Começou agora, senhor.
Onde é que estive? Não; dizei, primeiro, Szy - É uma excelente obra-prima, madame senhora.
onde é que estais. Acaso, mestre, as vestes Quem dera que já tivesse acabado!
(Sentam-se e continuam a olhar.)
vos roubou Trânio? Ou vós as dele? Ou ambos?

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Ato T- Cenall
Diante da casa de Hortênsio. mandei que ele batesse em vossa porta,
Entram Petrucchio e Grúmio. sem poder conseguir o que almejava.
Grúmio - Bater na porta? Oh céus! Pois não me
PerRUCCHIO * ordenastes claramente: “Bate-me aqui, maroto; bate
Verona, adeus por uns momentos; quero em mim com bem força, bate sem piedade?” E agora
ver em Pádua uns amigos, e entre todos vos saís com esse “bater na porta?”
o mui querido e dedicado Hortênsio. PerruccHIO : Saí logo, maroto, é o que vos digo.
Sua casa é esta aqui, se não me engano. Horrênsio
Grúmio, maroto, bate! Estou mandando. Calma, Petrucchio; sou penhor de Grúmio.
Grúmio : Bater, senhor? Bater em quem? Alguém Oh! que pendência séria entre vós e ele,
ofendeu Vossa Senhoria? vosso bom Grúmio, criado antigo e sério!
PerruccHio : Maroto, digo: bate-me com força. Mas, caro amigo, que suave brisa
Grúmio vos trouxe a Pádua, de Verona antiga?
Bater em vós, senhor? Oh, senhor! Quem sou PerRUCCHIO *
eu para bater em vós? A que os mancebos pelo mundo espalha
PerruccHio - Vamos, maroto; bate-me na porta, em busca de fortuna, pois em casa
se essa cabeça estúpida te importa. não há oportunidade. Resumindo,
Grúmio : Meu amo arruaceiro agora se revela. signior Hortênsio, a coisa é como segue:
Mas se eu der nele, farei uso da canela. morreu meu pai, Antônio, tendo agora
PerruccHio : Então, maroto: bates ou não bates? saído eu sem destino, tencionando
Não? Nesse caso, bato eu sem dó, casar bem e vencer do melhor modo.
para ouvir-te cantar sol, mi, lá, dó. Ouro tenho na bolsa; bens, na pátria.
(Puxa as orelhas de Grúmio.) Assim, viajo para ver o mundo.
GRrúmio Socorro, gente! Enlouqueceu meu amo. HorTêÊnsio : Petrucchio, deverei, sem mais rodeios,
(Entra Hortênsio.) apresentar-te a uma mulher ferina?
Horrênsio : Que é isso? Que aconteceu? Oh! Não me agradecerias o conselho.
o meu velho amigo Grúmio e o meu bom amigo Mas posso asseverar-te que ela é rica;
Petrucchio! Como vão todos em Verona? sim, muito rica. Mas és meu amigo;
PerruccHIo - Viestes nos separar, Hortênsio amigo? não convém que a desposes.
Con tutto il cuore ben trovato, digo. PETRUCCHIO * Entre amigos,
HorrTÊnsio - Alla nostra casa ben venuto, molto signior Hortênsio, não se fala muito.
honorato signior mio Petrucchio. Vamos, Grúmio, Se conheces alguém bastante rica
levanta-te; acalmai-vos. para que esposa de Petrucchio seja —
Grúmio : Não; pouco importa tudo quanto ele pois o ouro tilintar na dança deve
possa dizer em latim. Se isso não for um motivo do casamento dele — embora seja
legal para eu deixar o serviço dele... Ora vede, senhor, tão feia como a amada de Florêncio,
ele mandou que eu batesse nele, que o surrasse com velha como a Sibila, tão maligna
força. E agora dizei-me se fica bem para um criado e impertinente como a própria esposa
proceder dessa maneira com o patrão, uma pessoa de Sócrates, Xantipa, ou mesmo pior:
que, pelos meus cálculos, já terá seus trinta e dois não poderá deixar-me transformado
anos? nem embotar de meu afeto o gume,
Mas se com força assim tivesse feito, embora seja como o mar Adriático,
saíra Grúmio alegre deste pleito. quando se altera. Vim para casar-me,
PerruccHio - Estúpido maroto. Caro Hortênsio, para uma noiva rica achar em Pádua;

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À MEGERA DOMADA

sendo rica, feliz serei em Pádua. que ela lhe resista, ele lhe marcará o rosto com uma
Grúmio : Ora vede, senhor; ele vos diz francamente figura que a deixará tão desfigurada como um gato
o que pensa. Sendo assim, dai-lhe ouro bastante e sem olhos. Não o conheceis, senhor.
casai-o com uma boneca, ou com um figurino, ou Hoxrrênsio : Petrucchio, espera um pouco; iremos
com uma velha que não tenha um só dente na boca, juntos, pois com Batista se acha meu tesouro;
muito embora tenha tantas doenças como cingiienta de minha vida a jóia está com ele:
e dois cavalos reunidos. Tendo dinheiro, para ele sua filha mais nova, a bela Bianca,
tudo estará bem. que de mim ele afasta e de outros muitos
HoRrTÊnsio - pretendentes, rivais no meu afeto.
Bom Petrucchio, uma vez que andamos tanto, Por julgar impossível — em virtude
vou prosseguir no que era, de começo, dos defeitos há pouco relatados —
somente brincadeira. Tenho meios, que a Catarina alguém escolher possa,
Petrucchio, de ensejar-te uma consorte determinou Batista deste modo:
bastante rica, mui formosa e jovem, que ninguém tenha acesso à bela Bianca
e educada no jeito de fidalga. sem que venha a casar-se Catarina.
Seu único defeito — e que defeito! — Grúmio : Catarina goela:
é ser intoleravelmente brava, o pior nome para uma donzela.
teimosa e cabeçuda sem medida, Horrênsio : Fazei-me ora um favor, caro Petrucchio:
a tal ponto que, embora meus haveres ireis apresentar-me, tendo eu posto
fossem menores, não a desposara vestes sóbrias, ao velho pai de Bianca,
por uma mina de ouro. como perito professor de música,
PeTRUCCHIO * Basta, Hortênsio! para lhe dar lições. Com esse plano,
Não conheces o efeito do dinheiro, terei vagar e liberdade, ao menos,
Dize-me o nome do pai dela, e pronto. de, sem suspeita, lhe fazer a corte.
Vou abordá-la, muito embora alterque Grúmio : Não há nenhuma velhacaria nisso.
mais alto que o trovão, quando rebenta Vede como os moços sabem juntar as cabeças para
no outono a tempestade. enganarem os velhos. Patrão, patrão, olhai para trás!
HorTÊNnsio O pai da jovem Quem é que vem chegando?
é Batista Minola, gentil-homem (Entram Grêmio e Lucêncio, disfarçados,
cortês e afável, sendo o nome dela sobraçando livros.)
Catarina Minola, em toda Pádua Horrênsio - Silêncio, Grúmio. Meu rival é este.
famosa pela língua ralhadora. Petrucchio, fica à parte.
PerRuccHIO * Grúmio :
Conheço o pai, embora a não conheça; Um belo mancebo, e, ainda por cima, apaixonado.
foi muito amigo de meu pai defunto. Grêmio : Oh, muito bem! Já examinei a conta.
Não durmo, Hortênsio, sem a ver primeiro. Ora me ouvi, senhor: quero que todos
Ireis perdoar-me, assim, a liberdade, sejam encadernados ricamente;
logo ao primeiro encontro, de deixar-vos, livros de amor, somente, tomai nota;
salvo se fordes até lá comigo. não deveis ler-lhe nenhum outro assunto.
Grúmio - Peço-vos, senhor, deixai-o ir, enquanto Compreendestes-me? Além dos que obtiverdes
ele está com essa disposição. Por minha alma, se da liberalidade de Batista,
ela o conhecesse tão bem quanto eu, saberia que vos farei donativos generosos.
no caso dele de nada valem as recriminações. Ela Tomai vossos papéis; é necessário
poderá, talvez, chamá-lo umas dez vezes de biltre que perfumados sejam suavemente,
ou coisa assim. Não lhe fará mossa nenhuma. Uma pois mais suave ela é do que os perfumes
vez entrado na dança, ele recorrerá ao vocabulário a que são destinados. Que ireis ler-lhe?
próprio. Vou dizer-vos uma coisa, senhor: por pouco Lucêncio : Seja o que for, podeis estar certíssimo

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de que defenderei a vossa causa namorareis aquela gata brava?


como se fôsseis vós; sim, talvez mesmo GRrúmiIOo
com palavras de muito mais efeito, Se ele lhe fará a corte? Caso contrário, a enforcarei.
salvo se fôsseis, meu senhor, um sábio. PeTRUCCHIO -
Grêmio - Oh! que coisa é a ciência! Por que vim cá, senão para isso mesmo?
Grúmio : Oh! que animal é esta galinhola! Pensais que um ruidozinho me ensurdece?
PerruccHro : Silêncio, maroto. Já não ouvi rugirem leões há tempos?
HorTÊNsiO * Já não ouvi o mar, que o vento empola,
Grúmio, caluda. Signior Grêmio, salve! bramir como javardo enfurecido,
Grêmio - Feliz encontro, meu signior Hortênsio. suando de espumar? As baterias
Não suspeitais para onde vou? A casa já não ouvi, acaso, na campanha,
de Batista Minola. Prometi-lhe ea artilharia arrebentar das nuvens?
que havia de esforçar-me na procura Nos grandes prélios já não tenho ouvido
de um professor para a formosa Bianca. nitrir cavalos, ressoar trombetas,
E tive sorte; achei este mancebo não cessar nunca o alarma, para virdes
que, pelo seu saber e competência, da língua me falar de uma donzela,
muito se recomenda. Lê poesia que não chega a fazer tanto barulho
e outros livros; só bons, posso afiançar-vos. como a castanha no fogão do rústico?
Horrênsio : Muito bem; e eu achei um gentil-homem Ora! Espantalho é só para criança.
que ficou certo de arranjar-me um outro, Grúmio (à parte) - Disso ele não tem medo.
músico, próprio para nossa amada. Grêmio : Hortênsio, escuta!
Assim, não fico atrás no que me cumpre Este senhor chegou em feliz hora.
fazer à bela Bianca tão querida. Tenho o pressentimento de que veio
Grêmio : Por mim querida, como vou prová-lo. para o bem dele e nosso.
GRrúmio (à parte) : Quem vai prová-lo é a bolsa dele. Horrênsio - Assegurei-lhe nossa ajuda nisso,
Horrênsio : Ocasião não é de ventilarmos, com lhe pagarmos todas as despesas.
Grêmio, nossa afeição. Se me escutardes Grêmio:
e usardes de franqueza, vou contar-vos Pois não, contanto que ele a alcance mesmo.
algo que para os dois é de importância. GRrúmio (à parte) - Quisera ter tanta certeza disso
Por acaso encontrei este mancebo como de um bom jantar.
que conosco concorda mui de grado (Entram Trânio, ricamente trajado, e Biondello.)
em cortejar a fera Catarina, Trânio : Deus vos guarde, senhores. Informai-me,
em desposá-la, mesmo, caso o dote por obséguio, o caminho mais direto
dela for conveniente. para ir à casa do signior Minola.
Grêmio - Dito e feito; BronDELLO - O que tem duas filhas mui formosas?
“muito bem. Revelaste-lhe os defeitos, Trânio-
Hortênsio, da donzela? Justamente, Biondello.
PerruccHIO Sei que é brusca, Grêmio - Um momentinho,
rilhenta a conta inteira. Se é só isso, senhor. Decerto não falais da filha...
meus senhores, não vejo inconveniente. Trânio : Filha ou filho, quem sabe? E vós com isso?
Grêmio - Nenhum, amigo? De que terra sois? PerruccHio- Não a briguenta, quero crer, amigo.
PerruccHio - De Verona; do velho Antônio, filho. LucêÊncio (à parte) -
Morreu meu pai; mas vive meu dinheiro; Bem começado, Trânio!
viver pretendo agora prazenteiro. HorrTênsio - Outro momento:
Grêmio - Prazenteiro, com uma fúria dessas? sobre essa jovem, qual é o vosso intento?
Fora estranho. Porém se assim quiserdes, Trânio E vós com isso?
seja, em nome de Deus. Haveis de ter-me Grêmio Nada, certamente,
como auxiliar em tudo. Mas é certo: se sairdes calado incontinenti.

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Trânio : Não é livre esta rua, ou esta viela, PerruccHio - Permiti que vos fale com franqueza.
para nós ambos? Das duas filhas a mais moça, aquela
Grêmio - Certo; mas não ela. que desejais pescar, foi excluída
Trânio - E a razão, por obséquio? pelo pai do convívio dos rapazes,
Grêmio * É muito simples: afirmando ele que a nenhum a entrega
foi escolhida pelo signior Grêmio. sem que a filha mais velha a casar venha.
Horrênsio - Também o foi pelo signior Hortênsio. Livre será então; não antes disso.
Trânio - Devagar, meus senhores. Se fidalgos Trânio - Se for assim, senhor, sendo vós o homem
sois, em verdade, ouvi-me com paciência, que nos irá favorecer a todos,
fazendo-me justiça. Cavalheiro eu inclusive, quebrai logo o gelo,
muito nobre é Batista, a quem de todo realizai logo a proeza de a mais velha
meu pai não é estranho; e embora a filha conquistar, e a mais moça deixai livre
dele fosse mil vezes mais bonita, porque todos possamos cortejá-la.
podia ter bastantes namorados, O que a alcançar não há de ser, decerto,
e, entre eles, eu. À filha da formosa tão desgracioso que se mostre ingrato
Leda teve um milhão de pretendentes. com relação a vós.
Logo, mais um vai ter a bela Bianca. HorrÊnsio: É mui sensato
Assim será. Lucêncio não desiste, quanto dizeis, senhor. E já que vindes
mesmo que venha Páris, lança em riste. também como aspirante à mão da jovem,
Grêmio : Como! Este cavalheiro vai meter-nos deveis gratificar, como nós outros,
a todos no chinelo. esse senhor, de quem nos confessamos
Lucêncio - Dai-lhe corda, devedores eternos.
senhor, que acabará por enroscar-se. TrÂnio Cavalheiro,
PerruccHio : Hortênsio, a que vem tanto sovina não serei; e como prova
palavrório? vos convido a passar comigo a tarde,
Horrênsio - Permiti-me a ousadia da pergunta: para brindes à moça levantarmos.
vistes já acaso a filha de Batista? Como advogados procedamos nisso,
TRâÂnio - Jamais, senhor; mas soube que tem duas: os quais, embora com calor discutam,
uma, formosa pela língua afiada; depois comem e bebem como amigos.
a outra, pela modéstia, encantadora. Grúmio E BroNDELLO * Oh! que excelente idéia!
PerruccHIOo - À primeira, senhor, soltai; é minha. Amigos, vamos.
Grêmio : Pois não; deixo o trabalho para esse HorTêÊnsio
Hércules; Petrucchio, a idéia pode dar bom fruto.
que lhe seja maior que os outros doze. Serei agora vosso ben venuto.
(Saem.)

Ato IH Cena l
Pádua. Um quarto em casa de Batista. sim, do manto ao casaco. E tudo quanto
Entram Catarina e Bianca. me ordenares, farei sem discrepância,
tanto conheço meus deveres para
Branca: Querida irmã, não me façais a injúria, com as pessoas mais velhas.
nem a vós mesma, de tratar-me como CATARINA* Ora intimo-te
criada ou baixa escrava. Isso me humilha. a me dizer a qual dos pretendentes
Quanto aos enfeites, basta me soltardes à tua mão dedicas mais afeto.
as mãos, para que deles me desfaça; Não dissimules; conta-me a verdade.
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Branca: Acreditai-me, irmã: nos homens vivos BariIsTA* Sim, bom dia,
jamais notei fisionomia alguma vizinho Grêmio. Deus vos guarde, amigos.
que particularmente me agradasse. PerruccHio - E a vós, senhor. Dizei-me, por
CATARINA: obséquio:
Bonequinha, é mentira. Não é Hortênsio? não tendes uma filha, Catarina
Branca Se gostais dele, mana, aqui prometo de nome, encantadora e mui virtuosa?
nesse sentido lhe falar, contanto BarisTA : Senhor, tenho uma filha desse nome.
que venhais a possuí-lo. Grêmio Sois muito brusco; procedei com método.
CATARINA Agora entendo: PerrRUCCHIO *
gostais mais de riquezas, preferindo Signior Grêmio, ofendeis-me; com licença.
Grêmio, por isso, para que vos deixe, Senhor, sou um cavalheiro de Verona;
sem dúvida, mais bela. tendo ouvido falar da formosura
BraNCA- Tendes ciúme de vossa filha, seu brilhante espírito,
de mim por causa dele? É brincadeira, a modéstia pudica, as admiráveis
vejo-o bem. E ora noto que outra coisa qualidades, a sociabilidade,
não fizestes senão brincar comigo. sua conduta afável, a ousadia
Quetinha, por obséquio, as mãos soltai-me. tomei de apresentar-me em vossa casa,
CATARINA Se isto é brinquedo, o resto também era. sem cerimônia, para que a verdade
(Bate-lhe. Entra Batista.) do que já tenho ouvido tantas vezes
Barista * Que é isso, dona? Por que tanta fúria? verifique com os olhos. Como gage
Bianca, fica de lado. Pobrezinha! de minha vinda, quero apresentar-vos
Está chorando... Vai buscar a agulha; um dos meus homens, competente em música
não te metas com ela. Que vergonha! e matemático de truz, que pode
Por que motivo, espírito diabólico, polir a educação de vossa filha
quem nunca te fez mal assim maltratas? nessas ciências, em que ele, estou bem certo,
Quando ela te falou em tom mais áspero? já tem conhecimento. Ficai com ele,
CaTARINA Seu silêncio me irrita; hei de vingar-me. a não ser que queirais mesmo ofender-me.
(Faz menção de pegar Bianca.) Chama-se Lício e é natural de Pádua.
BarisTA : Ante meus próprios olhos? Entra, Bianca. BarisTA : Sois bem-vindo, senhor, assim como ele,
(Sai Bianca.) por amor vosso. Quanto à minha filha
CATARINA : Já não me suportais? Agora vejo Catarina — certeza tenho disso —
que ela é vosso tesouro e que é preciso não diz com vosso gênio, o que me pesa.
arranjar-lhe um marido. Em suas núpcias PerruccHio - Vejo que não quereis perder a filha,
descalça dançarei; por causa dela ou que não vos agrada minha aliança.
* conduzirei macacos para o inferno. BarisTA - Não me compreendais mal; digo o que penso.
Não me faleis, pois a chorar vou pôr-me, De onde vindes, senhor? Que nome tendes?
até achar ocasião para vingar-me. PeTRUCCHIO *
(Saí) Eu? Sou Petrucchio; foi meu pai Antônio,
Barista : Já houve alguém, como eu, tão molestado? em toda a Itália muito conhecido.
Mas, quem vem vindo aí? Barisra - Conheço-o bem; assim, sois mui bem-
(Entra Grêmio, com Lucêncio vestido vindo.
pobremente, Petrucchio, com Hortênsio, Grêmio : Acatando, Petrucchio, vossa história,
como professor de música, e Trânio, com Biondello, permiti, por obséquio, que nós outros,
que traz um alaúde e livros.) pobres peticionários, também azo
Grêmio - Muitos bons dias, tenhamos de falar. Ficai de lado;
meu vizinho Batista. apressais-vos demais.

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PeTRUCCHIO * Oh signior Grêmio! Ora passear vamos


Perdão; mas desejava concluir logo. um pouco no pomar. Depois, cearemos.
Grêmio : Não o duvido, meu senhor; mas ainda Muitos bem-vindos sois; a todos peço
haveis de amaldiçoar esse noivado. terem-se nessa conta.
Vizinho, o presente dele vos deixou satisfeito, tenho PerRUccHIO Meu assunto,
certeza disso. Para vos prestar idêntica gentileza, signior Batista, exige muita pressa;
uma vez que eu, mais do que qualquer outra pessoa, não poderei voltar todos os dias
tenho recebido de vossa parte tantas provas de para fazer a corte. Conhecestes
deferência, tomo a liberdade de apresentar-vos este meu pai perfeitamente; em mim o vêdes,
jovem sábio (apresenta Lucêncio) que estudou muito único herdeiro de seus bens e terras,
tempo em Reims e é tão perito em latim e grego que, em minhas mãos, longe de diminuírem,
como aquele o é em música e matemática. Chama-se tomaram grande impulso. Ora dizei-me:
Câmbio. Por obséquio, aceitai os serviços dele. se eu conseguir o amor de vossa filha,
Barisra : Mil agradecimentos, signior Grêmio. que dote ela trará no desposório?
Sois bem-vindo, bondoso Câmbio. (A Trânio.) Mas, Barista : Quando eu morrer, metade do que tenho;
meu amável senhor, tendes aparência de estrangeiro. neste momento, vinte mil coroas.
Poderei ter a ousadia de perguntar o motivo de vossa PerruccHIo : Por esse dote quero assegurar-lhe,
vinda?
se me sobreviver, ficando viúva,
TrÂnio : Perdão, senhor, mas a ousadia é minha,
todas as minhas terras e contratos.
“pois, à vossa cidade sendo estranho,
Ponhamos isso tudo por escrito,
apresento-me como pretendente
porque entre as partes haja um penhor firme.
à mão da bela e virtuosa Bianca.
BarisTa : Sim, mas depois da cláusula precípua:
Não ignoro, também, vosso propósito
o sim da noiva, porque isso é tudo.
de dar a preferência à irmã mais velha.
PerruccHio : Ora, isso é nada. Posso asseverar-vos,
À única permissão que vos impetro
pai, que tão decidido eu sou quanto ela
é que, sabendo a casa de onde eu venho,
pervicaz e orgulhosa. Ão se encontrarem,
me concedais acesso livre e idêntico
duas chamas violentas aniquilam
acolhimento concedido aos outros.
E para a educação de vossa filha quanto a fúria lhes tenha alimentado.
este instrumento simples vos oferto Conquanto o fogo brando se embraveça
e estes autores gregos e latinos. com pouco vento, os furacões terríveis
Aceitai-os, que são de grande mérito. levam diante de si o fogo e tudo.
BarisTA : Sois Lucêncio? De que cidade vindes? Ora, sendo eu assim, compete a ela
Trânio : De Pisa sou, e filho de Vicêncio. ceder aos meus desejos. Sou muito áspero;
BarisTa : Pessoa de prestígio em Pisa, é certo. não vou fazer a corte como criança.
De nome já o conheço. Sois bem-vindo. BATISTA:
; (A Hortênsio:) Que tenhas sorte em tudo e que abençoada
Tomai o alaúde. seja tua pressa. Mas será prudente
(A Lucêncio:) contar com muitos infelizes termos.
E vós, os livros. PerRUccHIO -
Vereis vossas alunas neste instante. Vamos à prova; sou como a montanha
Olá! Alguém daí! que os ventos fortes abalar não podem,
(Entra um criado.) embora de soprar não deixem nunca.
Leva estes moços (Volta Hlortênsio, com a cabeça quebrada.)
a minhas filhas; dize-lhes que os mesmos Barista- Então, amigo? Por que estás tão pálido?
vão ser seus professores. Elas devem HorrêÊnsio : Se estou assim, só pode ser de medo.
tratar bem deles. Barista : Minha filha tem gosto para a música?
(Sai o criado com Hortênsio, Lucêncio e Biondello.) HorrêÊnsio * Creio que ela dará melhor soldado.

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O ferro pode resistir-lhe, nunca Mas ei-la aí. Vamos, Petrucchio; fala.
sonoroso alaúde. (Entra Catarina.)
BATISTA Não pudeste Sois bem-vinda, Quetinha. Esse, disseram-me,
dobrá-la às harmonias do alaúde? É o vosso nome; não é isso mesmo?
HorTÊnsio - CATARINA Sois lerdo para ouvir; quantos meu
Não, que ela o dobrou em mim, primeiro. nome
Disse-lhe apenas que ela se enganava pronunciam, só dizem Catarina.
com relação ao toque, procurando PerRUCCHIO -
os dedos ajeitar-lhe junto às cordas, Por minha alma, mentis. Todos vos chamam
quando ela, com espírito diabólico, Quetinha, simplesmente, a brincalhona
impaciente, gritou: “Isso é que é toque? Quetinha, e, às vezes, a Quetinha brava;
Pois vou tocar de jeito”. Assim dizendo, mas, Quetinha, a Quetinha mais galante
na cabeça me deu tão forte golpe, de toda a cristandade, a superdoce
que através do instrumento abri caminho, Quetinha, o bom-bocado do meu gosto —
algum tempo ficando estupefacto, sim, pois Quetinha é o meu melhor bocado.
como pessoa presa ao pelourinho, Quetinha, meu consolo, ouve-me agora:
a olhar pelo alaúde, enquanto “Imundo tendo ouvido elogiar tua doçura
rabequista”, “Zezé desafinado”, em todas as cidades, a virtude
e outras vinte expressões ela jogava-me, que te é própria, e cantar tua beleza —
que adrede decoradas pareciam, aliás, bem menos do que mereceras —
tão-só para insultar-me. movi-me a desejar-te para esposa.
PeTRUCCHIO* Pelo mundo! CATARINA:
Que rapariga alegre! Amo-a dez vezes Movestes-vos em tempo. Que o demônio
mais agora do que antes. Que vontade que vos moveu a ver-me vos remova,
de conversar com ela alguns momentos! sem demora, daqui. Logo de início
BarisTa (a Flortênsio) - notei que éreis um móvel.
Vem, vem comigo; não te mostres triste; PerruccHIO Como! Um móvel?
continua a ensinar minha caçula; CATARINA:
tem gosto para o estudo e é agradecida. Um tamborete, sim.
Signior Petrucchio, quereis vir conosco, PerruccHIO - Deste no vinte;
ou preferis que eu mande Catarina? então vem logo e sobre mim se senta.
PerruccHio Pois não; mandai-a vir; aqui a CATARINA: Os asnos como vós suportam carga.
espero. PeTRUCCHIO *
(Saem Batista, Grêmio, Trânio e Hortênsio.) As mulheres também suportam carga.
Vou cortejá-la com algum espírito. CATARINA: Mas não um tolo como vós, se é certo
Se me insultar, dir-lhe-ei sem circunlóquios que a mim vos referis.
que como o rouxinol tem ela o canto; PerTRUCCHIO * Boa Quetinha,
franzindo o rosto, lhe direi que é límpida não quero sobrecarregar-te, vendo
como a rósea manhã que o orvalho banha; que és muito moça e leve.
se não disser palavra e ficar muda, CATARINA: Muito leve
elogios farei ao seu talento para ser apanhada por um rústico.
de expressar-se, afirmando que a eloquência Sou tão pesada quanto devo sê-lo.
dela é arrebatadora. Convidando-me PerRrUccCHIO -
a retirar-me, agradecido mostro-me, Pesada, não; preada.
como se o grato invite eu recebesse CATARINA: Ave de preia
de ficar junto dela uma semana. só conheço gavião.
Se desposar-me não quiser, lhe falo PerruccHio : Oh vagarosa
sobre os proclamas e o feliz evento. rolinha, um gavião irá apanhar-te?

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CATARINA: Bruto seria para uma rolinha. CATARINA: Hei de irritar-vos,


PerruccHio : Vamos, vespa; ferina sois bastante. no caso de eu ficar.
CATARINA: Sendo eu vespa, cuidado com o ferrão. PerruccHio: | Nem um pouquinho;
PerruccHrio : Há remédio para isso: arranco-o logo. acho-vos mui gentil. Tinham-me dito
CATARINA: Sim, no caso de o tolo vir a achá-lo. que éreis selvagem, áspera e estouvada;
PeTRUCCHIO - e ora vejo que o boato é mentiroso,
Quem não sabe onde as vespas o têm sempre? pois és muito cortês, encantadora,
No corpinho. de gênio divertido; um pouco tarda
CATARINA: Na língua. para falar, mas suave como as flores
PerRUCCHIO * Como! língua? da primavera. Os lábios tu não mordes,
Língua de quem? tal como as raparigas irritadas.
CATARINA: Na vossa, se em corpinho Não contradizes nunca outras pessoas;
vindes falar-me. Adeus. é sempre branda que manténs conversa
PerruccHIOo Como! Com minha com teus cortejadores, sempre afável,
língua em vosso corpinho? Não, Quetinha; com gentis ademanes. Por que o mundo
voltai; sou um cavalheiro. diz que Quetinha é manca? Oh mundo infame!
CATARINA: Vou ver isso. Quetinha é reta e esbelta como galho
(Bate-lhe.) de aveleira, de tez amorenada
PerRUccHIO : Se me bateres novamente, juro como a avelã, tão doce quanto a fruta.
que te darei um murro. Oh! anda um pouco; sei que não claudicas.
CATARINA* Nesse caso, CATARINA: Vai dar ordem, cretino, aos teus criados. .
perderíeis as armas; pois, batendo-me, PerruccHio : Teria ornado Diana uma floresta
não seríeis em nada cavalheiro, como Quetinha agora este aposento
e, não o sendo, não teríeis armas. com seu porte fidalgo? Oh! que ela seja
PeTRUCCHIO - Quetinha, e tu, Diana, porque casta
Quetinha arauto, inscreve-me em teu livro. Quetinha fique e Diana, brincalhona.
CATARINA : Vosso emblema qual é? Crista de galo? CATARINA * Onde estudastes todo esse discurso?
PerruccHio : Galo sem crista, se Quetinha, agora, PerruccHio : Do espírito me nasce; é de
for a minha franguinha. improviso.
CATARINA: Não desejo CaTARINA* O espírito é fecundo; o dono, estéril.
galo assim; se sois galo, sois corrido. PeTRUCCHIO *
PerruccHio : Quetinha, não te mostres tão azeda. Como! Então não sou sábio?
CATARINA Só fico assim ao ver maçã silvestre. CATARINA: O suficiente
PerruccHio : Aqui não há maçã silvestre; deixa para vos aquecerdes.
de ser azeda. PerruccHIO: Justamente,
CATARINA * Há, sim. querida Catarina, no teu leito.
PeTRUCCHIO * Mostra onde se acha. Mas deixando de lado todo o nosso
CATARINA Se eu tivesse um espelho, mostraria. palavreado, falemos claramente.
PerruccHrio : Então meu rosto é que me mostraríeis? Consentiu vosso pai no casamento;
CATARINA * Tão moço e tão sabido. combinamos o dote. E agora, ainda
PerruccHIo : Por São Jorge, que não queirais, tereis de desposar-me.
sou muito moço, mesmo. Podeis crer-me, Quetinha: eu sou o marido
CATARINA: E já enrugado. que vos convém. Por esta luz o juro,
PerRrRUccHIO- que me permite ver tua beleza —
Só de cuidados. essa beleza que de ti me deixa
CATARINA: Não me dá cuidado. de tal modo rendido — outro marido
PerruccHio : Vamos Quetinha; estou falando sério: que não seja eu, não poderás ter nunca,
não fugireis de mim. pois eu nasci para domar-te, para

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transformar a Quetinha rezingueira de amor os mais ardentes, tão de pronto


numa Quetinha mansa, e tão amável se revelou de mim apaixonada.
como as Quetinhas donas de seus lares. Oh! sois noviços. É uma maravilha
Teu pai vem vindo agora não te insurjas, verificar, quando a mulher e o homem
pois quero Catarina para esposa. ficam sós, como pode um mariquinhas
(Voltam Batista, Grêmio e Trânio.) dominar a megera mais rebelde.
BarisTa - Então, signior Petrucchio, de que modo Quetinha, dá-me a mão. Vou a Veneza
ides com minha filha? comprar a roupa para 0 casamento.
PerRUCCHIO * De que modo, Preparai os festejos, pai, mandando
senhor? Do melhor modo; nem me fora logo convite para os conhecidos.
possível fracassar no meu intento. Certo estou de que a minha Catarina
Barisra : E minha filha Catarina, sempre vai mostrar-se galante.
de rosto carrancudo? BarIsTA* Disso tudo
CATARINA: Dais-me o nome não sei o que pensar; mas dai-me as mãos.
de filha? Pois afirmo sob palavra Petrucchio, Deus vos dê felicidade.
que paternal afeto revelastes Está assentado.
querendo desposar-me com um lunático, Grêmio E TrÂnio : Amém, é o que dizemos;
um João praguejador, um tresloucado, seremos os padrinhos.
que quer impor-se só com juramentos. PerTRUCCHIO * Pai, esposa,
PerruccHIO : cavalheiros, adeus. Vou a Veneza;
Pai, o negócio é assim: vós e os mais todos domingo já está perto. Anéis teremos
que falais dela estais muito enganados. nesse dia, festanças e alto gozo.
Ela só é indigna por política; Agora um beijo no teu caro esposo.
rabugenta não é, mas tão modesta (Saem Petrucchio e Catarina por lados diferentes.)
como a rola; não tem gênio esquentado, Grêmio - Já houve noivado assim tão apressado?
sendo tão fresca quanto a manhã bela. Barisra Tal como o comerciante, muito ou pouco
Em paciência é Griselda rediviva; nesta hora arrisco num negócio louco.
a romana Lucrécia, em castidade. Trânio : Era uma carga que vos molestava;
Em conclusão: deixamos combinado agora ou vos dá lucro ou vai ao fundo.
casarmo-nos no próximo domingo. BATISTA * Só quero um lucro: paz nesse contrato.
CATARINA: Primeiro nesse dia quero ver-te Grêmio : Pacífico para ele foi esse ato.
pendurado na forca. Mas agora, Batista, é mais que tempo
Grêmio : Ouve, Petrucchio, de falarmos em vossa filha Bianca.
ela disse que te quer ver na forca. Chegou o dia por que tanto ansiávamos.
TRÂniIO : É assim vossa história? Então, boa Vosso vizinho sou; a apresentar-me
noite para nosso contrato. fui o primeiro como pretendente.
PerruccHio - Cavalheiros, Trânio - O amor que voto a Bianca não se pode
paciência. Eu a escolhi de motu próprio. comprimir em palavras; ultrapassa
Se nós dois estivermos satisfeitos, vosso próprio conceito.
que vos importa o resto? Combinamos, BarisTA* Jovem, nunca
quando ficamos sós, que em companhia amá-la poderás com tantas veras
de outras pessoas ela impertinente como seu próprio pai.
devia se mostrar. Posso afiançar-vos: TRÂNIO Barba cinzenta,
não fazeis uma idéia de quanto ela teu amor vira gelo.
me tem amor. Oh terna Catarina! Grêmio * E o teu derrete.
Do pescoço pendeu-me, prodigando-me Sai, desmiolado! Brilha a meia-idade.
beijo em cima de beijo, juramentos Trânio : Mas às jovens apraz a mocidade.

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À MEGERA DOMADA

BarisTA : Não brigueis, cavalheiros; tenho um meio TrâÂnio - Grêmio, é sabido que meu pai possui
para solucionar a desavença. nada menos que três carracas fortes,
Vão decidir os fatos. De vós ambos e mais duas galeras e uma dúzia
o que firmar a minha filha dote de embarcações menores. Isso tudo
mais opulento, o amor terá de Bianca. de dote lhe asseguro e mais o dobro
Dizei-me, signior Grêmio, que importância de tudo quanto possas ofertar-lhe.
podeis assegurar-lhe? Grêmio : Não; já ofereci tudo; é quanto tenho.
Grêmio - De começo, Não posso dar-lhe mais do que possuo;
como sabeis, a casa que eu possuo de meus bens e de mim será senhora,
na cidade adornada é ricamente no caso de escolher-me.
com baixelas de prata e ouro abundante, BaTISTA* Sim, confesso
jarros, bacias para as mãos lavar-lhe, que é maior vossa oferta. Assegurando
tão delicadas. São minhas cortinas vosso pai a fortuna como dote
“de tecidos da Tíria; nos meus cofres de minha filha, será vossa esposa.
de marfim as coroas se comprimem; Mas sem isso, perdoai-me: se morrerdes
nas arcas de ciprestes tenho colchas, primeiro, qual será o dote dela?
cortinas, baldaquins, vestes custosas, Trânio : Isso é um sofisma; ele está velho; eu, moço.
batistas finas, almofadas turcas Grêmio : E não morrem os moços como os velhos?
com pérolas tecidas, franjas vindas Barisra - Muito bem, cavalheiros;
de Veneza, com fios de ouro ornadas, resolvi deste modo: no domingo
cobre e estanho a valer, e tudo quanto próximo minha filha Catarina
faz parte de uma casa bem montada. vai casar-se. Pois bem: no outro domingo
Em minha granja tenho uma centena Bianca ficará sendo vossa noiva,
de vacas prontas para boa ordenha, se lhe puderdes dar essa certeza;
além de cento e vinte bois no estábulo, se não, noiva será do signior Grêmio.
e tudo o mais em proporção idêntica. E assim, muito obrigado e adeus para ambos.
Não nego que já sou um tanto idoso. Grêmio : Vizinho, passai bem.
Se eu morrer amanhã, tudo isso é dela, (Sai Batista.)
caso, enquanto eu viver, ela for minha. Não tenho medo
Trânio - Esse “caso” do fim chegou a tempo. de ti. Com a breca, meu taful! Bem tolo
Signior Batista, ouvi-me, Sou filho único seria vosso pai se te fizesse
e herdeiro de meu pai. Se vossa filha dádiva do que tem, para debaixo
se tornar minha esposa, três ou quatro viver de tua mesa na velhice.
casas lhe deixarei na rica Pisa, Uma raposa italiana, moço,
tão belas como quantas tenha em Pádua não arrisca assim fácil o pescoço.
o velho signior Grêmio. Acrescentemos (Sai.)
a isso uma renda de dois mil ducados Trânio - Pele engelhada, o diabo te carregue!
por ano em terras boas para amanho. Mas tenho um dez para ganhar o jogo.
Tudo isso será dela. Então, meu caro Já encontrei a maneira de meu amo
signior Grêmio, deixei-vos achatado? vir a sair-se bem. Não há motivo —
Grêmio - Dois mil ducados anuais de terra? não o vejo — para que um Lucêncio falso
Minhas terras não dão tamanha renda. não tenha um pai Vicêncio também falso.
Mas prometo também que será dela Eis o estranho do caso: os pais, de regra,
minha carraca que ancorada se acha dão vida aos filhos; mas neste noivado
no porto de Marselha. E ora dizei-me pelo filho vai ser o pai gerado.
se não vos achatou minha carraca? (Sai)

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Ato HI - Cenal
Pádua. Um quarto em casa de Batista. HorTÊNSIO (retornando) -
Entram Lucêncio, Hortênsia e Bianca. O instrumento, madame, está afinado.
Branca : Vamos ouvi-lo.
Lucêncio : Rabequista, parai; sois muito ousado. (Flortênsio toca.)
Já não vos lembra, acaso, o acolhimento Oh! o agudo está desafinado!
que vos fez sua mana Catarina? Lucêncio -
Horrênsio : Mas, pedante brigão, esta é a padroeira Cospe no buraco, amigo, e afina-o de novo.
da celeste harmonia. A precedência Branca: Vamos ver agora se eu sei traduzir: “Hac
deveis, pois, conceder-me. E quando houvermos ibat Simois”, não vos conheço; “hic est Sigeia
gasto em música uma hora, igual espaço tellus”, não tenho confiança em vós; “Hic steterat
de tempo gastareis só com leituras. Priami”, tomai cuidado para que ele não nos ouça,
Lucêncio : Asno atrasado, que não leu bastante “regia”, não sejais muito apressado, “celsa senis”, não
para entender por que é que existe música: desespereis.
não é para aliviar o entendimento HorTêÊnsio :
depois do estudo e do trabalho diário? Senhorita, está pronto.
Deixai-me ler, assim, filosofia Lucêncio Falta o baixo.
e, ao descansar, servi vossa harmonia. Horrênsio : O baixo está afinado. O biltre baixo
HorTÊnsio - Maroto, não recebo os teus insultos. é que estraga o conjunto. Que entusiasmo
Branca: Senhores, ofendeis-me duplamente, mostra o nosso pedante! E que atrevido!
por discutirdes sobre o que depende, Mas estou percebendo que o maroto
tão-só, do meu querer. Não sou menina está fazendo a corte à minha amada.
de colégio que apanha chibatadas. Vou passar a observar-te com cuidado,
Não quero ficar presa a horário fixo, professor de uma figa.
desejando estudar como me agrade. BIANCA Com mais tempo
Para cortar a discussão de início, poderei crer; agora, desconfio.
sentemo-nos aqui, e, enquanto lemos, Lucêncio - Não desconfieis, pois é certeza:
tomai vosso instrumento e ide tocando, o Eácida foi Ajax, pelo avô assim chamado.
que ao fim havemos de chegar primeiro. Branca: Sou forçada a dar crédito a meu mestre;
HorrÊnsio : Terminareis, quando eu ficar acorde? se não, afirmo-o, ainda argumentara
(Retira-se.) muito sobre esse ponto duvidoso.
Lucêncio : Isso, nunca. Afinai vosso instrumento. Fiquemos por aqui. Agora, Lício,
Branca: Onde ficamos ontem? chegou a vossa vez. Bondosos mestres,
Lucêncio - Neste ponto, não vos zangueis por eu me ter mostrado
senhorita: pilhérica com ambos.
Hac ibat Simois; hic est Sigeia tellus; Horrênsio (a Lucêncio) + Ora o posto
Hic steterat Priami regia celsa senis. me cedei, indo dar um bom passeio,
Branca: Traduzi. pois não tenho canção para três vozes.
Lucêncio - “Hac ibat”, como já vos disse, “Simois”, Lucêncio
eu me chamo Lucêncio, “hic est”, filho de Vicêncio Sois tão formal, senhor? (À parte.) Não me retiro;
de Pisa, “Sigeia tellus”, disfarçado para alcançar vosso vou observá-lo, pois se não me iludo,
amor. “Hic steterat” e o Lucêncio que se apresentou amando está o nosso belo músico.
para vos fazer a corte, “Priami”, é meu criado Trânio, HorrTÊnsio : Antes, senhora, de tocar nas cordas,
“regia”, que tomou o meu nome, “celsa senis”, para para aprender a posição dos dedos,
melhor enganarmos o velho pantalão. os rudimentos da arte vou dizer-vos.

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À MEGERA DOMADA

Ensinarei a escala por um método CRIADO: Senhora,


mais conciso, agradável e eficiente vosso pai disse que deixeis os livros,
do que quantos ensinam meus colegas. para ajudardes a enfeitar o quarto
Está neste papel, com bela escrita. de vossa irmã, pois amanhã é o dia
do casamento dela.
Branca: Mas há muito deixei atrás a escala.
BraNCA- Adeus, meus mestres;
Horrênsio : Mas a escala de Hortênsio agora lede.
precisarei deixar-vos.
BraNCA*
(Saem Bianca e o criado.)
“Escala”: dos acordes sou o conjunto, Lucêncio : Assim sendo,
A, ré: de Hortênsio pleiteio o amor; causa não tenho para demorar-me.
B, mi: Bianca, escolhe-o de pé junto, (Sai)
C, fá: que terás um bom senhor. Horrênsio : Mas tenho-as eu de espiar este pedante.
D, sol, ré: leva-o uníssona até o porto, Tem aspecto de quem amando se acha.
E, lá, mi: se não queres vê-lo morto. Ah, Bianca! Se tiveres pensamentos
Chamais a isto escala? Não me agrada. tão baixos, para os olhos vagabundos
1

Prefiro a usança antiga; caprichosa lançares a qualquer aventureiro:


não sou para trocar provadas regras pegue-te quem quiser. Vendo-te acaso
borboleteando, Hortênsio não se importa
por invenções fantásticas.
de te deixar e ir bater noutra porta.
(Entra um criado.)
(Sai)

Ato HI: Cena Il


O mesmo. Diante da casa de Batista. sujeito parecesse, pediria
Entram Batista, Grêmio, Trânio, Catarina, Bianca, de mil jovens a mão, marcara a data
Lucêncio e criados. do casamento, convidara amigos,
fazendo publicar logo os proclamas,
BaTISTA (a Trânio) - sem pretender, porém, casar-se nunca.
Hojeé o dia das núpcias de Petrucchio A pobre Catarina doravante
com Catarina, meu senhor Lucêncio; vai apontada ser por toda a gente,
mas não temos notícia de meu genro. que dirá: “Olha a esposa de Petrucchio,
Que se virá a dizer? Quanto motivo quando Petrucchio se casar com ela!”
de zombaria, se não vier o noivo, Trânio : Paciência, Catarina; e vós, Batista.
já estando o padre à espera para os ritos Mas posso garantir-vos que Petrucchio
das núpcias realizar! Que diz Lucêncio tem boas intenções. E que decerto
da afronta que nos fazem? não pôde vir no prazo combinado.
CATARINA: Minha, apenas, Conquanto seja um tanto brusco, tenho-o
é toda a afronta. Tive de, forçada, na conta de sensato; embora alegre,
ceder a mão, contra a vontade própria, é homem de palavra e muito honesto.
a um sujeito estouvado, tipo excêntrico, CATARINA: Prouvera ao céu que nunca o houvesse visto
que ficou noivo à pressa e ora pretende a pobre Catarina!
casar-se com vagar. Bem que eu vos disse (Sai chorando, seguida de Bianca
que era louco varrido e que escondia e de outras pessoas.)
sob a capa de amargas brincadeiras BaristTA: Vai, menina;
a grosseria própria. Porque alegre não te censuro por chorares hoje.

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WILLIAM SHAKESPEARE

Uma injúria como esta deixaria de quarenta fantasias”; um monstro, um verdadeiro


vexado um santo, muito mais pessoa monstro nos trajes, não se parecendo em nada com
de gênio como o teu, tão impaciente. um pajem cristão ou com o criado de um gentil-
(Entra Biondello.) homem.
BronpELLO : Senhor, senhor! novidade! Uma TrÂnio : Algum capricho o leva a assim vestir-se,
novidade embora sempre usasse roupa simples.
velha, uma novidade como igual jamais ouvistes. BarisraA - Alegra-me saber que ele já está em
Barisra : Velha e nova ao mesmo tempo? Como caminho; venha de que jeito vier.
pode ser isso? BronDELLO - Ora, senhor; mas ele não vem vindo.
BronDELLO - Então não será novidade saberdes que Barista : Mas não dissestes que ele já vinha vindo
Petrucchio está a chegar? em caminho?
BarisTA : Já chegou? BronpeLLO : Quem? Eu? Que Petrucchio vem
BronDELLO : Ainda não, senhor. vindo?
Barisra - Então, que é que houve? BarISTA * Sim, que Petrucchio está a chegar.
BronDELLO: Está chegando, senhor. BronDELLO : Não, senhor; o que eu disse foi que o
BarisTA : E quando chegará aqui? cavalo dele o trazia no dorso.
BronDELLO : Quando ele estiver onde eu estou e BaristTA : Ora, ora; é a mesma coisa.
vos vir como eu vos estou vendo. BrONDELLO*
Trânio : Dize logo de uma vez: qual é a tua Não, não, por São Jacó!
novidade velha? Aposto um bom vintém
BronDELLO Ora, Petrucchio vem vindo aí com em que um cavalo só
um chapéu novo e um casaco velho; uns calções três e um homem, mais ninguém,
vezes revirados; um par de botas que já serviram de se eu junto os colocar
candelabro, uma de fivela e a outra de amarrar com não formarão um par.
cordão; uma espada enferrujada e sem bainha, tirada (Entram Petrucchio e Grúmio.)
do arsenal da cidade, com o punho quebrado e com PerruccHIO :
as duas correias arrebentadas. O cavalo em que ele Então, meus elegantes? Todos prontos?
vem é manco e traz uma sela bichada e velha, com BarIsTA*
estribos desaparelhados, além de sofrer de mormo Sois bem-vindo, senhor.
e gosma, de sarna, de escorbuto; está cheio de PerRUCCHIO * Mas não vim bem.
tumores nas juntas, de esparavão caloso; a icterícia BarisTA:
o deixou listado, tem escrófula a mais não poder, Contudo, não coxeais.
vive morto de apoplexia, comido de lombrigas; a TRÂnio Como não vindes
espinha, arrebentada; as pás, fora do lugar; as pernas vestido como eu próprio o desejara.
da frente são mais curtas, o freio, de um lado só, PerruccHIo - Com roupa fina ou não, o que
com cabeçada de couro de carneiro que de tanto ser importava
puxado para impedi-lo de tropeçar, já arrebentou era a ansiedade de vir ter convosco.
em muitas partes, ficando cheio de nós. A silha é de Mas onde está Quetinha, minha noiva
seis variedades de pano; o selim é de mulher, com do coração? Meu pai, como se sente?
duas iniciais indicadoras do nome da dona primitiva, Meus senhores, franzis o sobrecenho.
desenhadas com tachas e aqui e ali costuradas com Por que esta bela companhia fica
barbante. como que estupefacta, parecendo
Barisra - Quem vem com ele? ver algum monumento extraordinário,
BronDELLO : Oh, Senhor! O seu lacaio, enfeitado prodígio raro, ameaçador cometa?
do mesmo jeito que o cavalo, com uma meia de Barista : Ora, senhor, sabeis perfeitamente
linho em uma das pernas e uma perneira de pano que hoje é o dia de vosso casamento.
grosso na outra, ligas listadas de azul e vermelho, um À princípio ficamos pesarosos
velho chapéu que, à guisa de pluma, traz “o humor de medo que não viésseis; mas agora

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mais tristes nos tornamos por vos vermos TRÂnIO: O amor de Bianca,
vestido desse jeito. Tirai isso, senhor, é nada, sem que lhe ajuntemos
que vossa posição não honra e mancha a permissão paterna. Para obtê-la,
nossa festa solene. como já disse a Vossa Senhoria,
TRâÂnIO - E revelai-nos vou procurar um homem — pouco importa
o impedimento grave que afastado quem ele seja; havemos de instruí-lo —
de vossa noiva vos deteve tanto, que Vicêncio de Pisa vai chamar-se
trazendo-vos agora desse modo, e aqui em Pádua caução nos dará plena
tão estranho a vós próprio. de quanto prometi, e mais ainda.
PerruccHio : Fastidioso Assim, de vossa dita, calmamente
fora contar e pior de ouvir ainda. desfrutareis, e com consentimento
Vim cumprir a palavra; é quanto basta, vireis a desposar a doce Bianca.
embora em alguns pontos obrigado Lucêncio : Não fosse o professor, meu camarada,
tivesse sido a me afastar da meta, tão de perto vigiar os passos dela,
do que com mais vagar hei de escusar-me, fora fácil, parece-me, casarmo-nos
satisfações vos dando suficientes. por modo clandestino. Uma vez pronto,
Mas onde está Quetinha? Há quanto tempo embora diga “não” o mundo todo,
não a vejo! A manhã já está passando; contra o mundo, sozinho, a defendera.
já fora tempo de na igreja estarmos. Trânio - Até lá chegaremos pouco a pouco,
Trânio : Não vos apresenteis a vossa noiva se cuidarmos de nossos interesses.
com essa fantasia irreverente. Mantearemos, assim, o velho Grêmio,
Ide ao meu quarto e ponde roupa minha. o pai ranzinza espreitador, Minola,
PeTRUCCHIO * o músico amoroso e fino, Lício,
Não; podeis crer-me. Assim, desejo vê-la. só para o bem de meu senhor Lucêncio.
BarisTA : Mas quero crer que não ireis à igreja Estais vindo da igreja, signior Grêmio?
vestido desse modo. (Volta Grêmio.)
PerruccHIO* | Justamente Grêmio : De tão bom grado como do colégio.
desta maneira, meu senhor. Mas basta TrÂnio : E os casados, vêm vindo para casa?
de tanto palavrório. Ela se casa Grêmio : Casados? Descasados fora certo,
comigo apenas, não com minha roupa. que ela com ele não ganhou marido.
Caso eu pudesse reparar com tanta Tipo intratável!
facilidade em mim o que ela gasta, TRÂNIO Como! Mais do que ela?
como posso trocar estes farrapos, Não é possível.
bem estaria para Catarina, Grêmio Ora, é um demônio,
e melhor para mim. Mas que pateta, um verdadeiro demo.
para tagarelar assim convosco, Trânio- E ela, uma diaba:
quando devera dar a minha noiva uma diaba, a mulher do diabo-chefe.
meu bom dia e selar com um terno beijo Grêmio
meu título inconteste! Qual o quê! É uma ovelha, uma pombinha;
(Saem Petruchio, Grúmio e Biondelo.) junto dele é uma tonta. Vou contar-vos,
TRâÂnio Com tais vestes senhor Lucêncio. Ao perguntar-lhe o padre
deve ele ter em mente alguma coisa. se por esposa ele aceitava a noiva,
Se for possível, vamos persuadi-lo “Sim, pelo raio!” disse, de tal modo
a vestir-se melhor, para ir à igreja. gritando que, de medo, o sacerdote
Barista : Vou atrás dele, para ver como isso deixou cair o livro, e, ao abaixar-se
tudo vai acabar. para apanhá-lo, o noivo tresloucado
(Saem Batista, Grêmio e criados.)

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deu-lhe tamanho murro que rolaram PerruccHio: Isso é impossível.


pelo chão padre e livro, livro e padre. Grêmio : Atendei-me, senhor.
“Quem quiser”, disse, “que os levante agora”. PerTRrRUCCHIO - Isso é impossível.
TrÂnio - E, ao levantar-se o padre, que disse ela? CATARINA: Permiti que vos peça.
Grêmio : Era só medo, que ele sapateava, PerruccHrio - Estou contente.
jurando sem parar, como se o padre CATARINA*
quisesse ludibriá-lo. A cerimônia Contente vos mostrais, porque ficamos?
concluída, pediu vinho. “À vossa saúde!” PerTRUCCHIO -
gritou, como se a bordo ele estivesse Contente, por pedirdes que fiquemos;
com a maruja, a beber alegremente, porém, apesar disso, não ficamos.
depois do furacão. Tendo bebido CATARINA * Vamos, ficai, ficai, se amor me tendes.
parte do moscatel, jogou no rosto PerruccHio : Grúmio, olá! Meu cavalo!
do sacerdote o resto, Grúmio : Está pronto, senhor; a aveia já comeu os
sem dar outra razão senão dizer-nos cavalos.
que era rala e faminta a barba dele CATARINA * Pois muito bem. Farás o que quiseres,
e parecia que implorava um gole. mas hoje não sairei, nem amanhã;
Depois, pelo pescoço toma a noiva só quando o resolver. Senhor, a porta
e com tal bulha lhe beijou os lábios se encontra aberta; é ali vosso caminho;
que fez o eco estrondar na igreja toda. podeis sair de trote, enquanto as botas
Vendo isso, de vergonha vim correndo, tendes macias. Quanto a mim, decido
como estou certo que os demais fizeram. que só sairei quando me der na telha.
Nunca houve casamento tão maluco. Prometeis ser esposo bem cacete,
Ouvi, porém! São os menestréis que tocam. para assim procederdes desde início.
(Ouve-se música. PerruccHio : Acalma-te, Quetinha! Por obséquio,
Voltam Petrucchio, Catarina, Bianca, Batista, Hortênsio, não te zangues comigo.
Grúmio e séquito.) CATARINA: Zango, zango;
PerRUCCHIO - Amigos e senhores, a vós todos que tens que ver com isso? Ficai calmo,
agradeço o trabalho que tivestes. meu pai; ele aqui fica; estou mandando.
Sei que hoje pretendeis jantar comigo Grêmio : Ah! ah! amigo; agora é que são elas!
e preparastes um banquete opíparo. CATARINA: Senhores, dirigi-vos para a sala
Mas o fato é que a pressa não permite do festim nupcial. Agora vejo
que eu me demore aqui. Assim, forçoso que uma mulher pode virar cretina,
será que me despeça de vós todos. se não mostrar coragem suficiente.
Barista : Como! quereis partir ainda esta noite? PerruccHio : Todos irão cear, minha Quetinha,
PerruccHio : De dia, ainda; antes que a noite chegue. porque assim o ordenaste. Ide, senhores,
Não vos mostreis atônitos. Se viésseis para o banquete! Obedecei à noiva,
a saber os negócios que me chamam, bebei à larga à sua virgindade,
longe de me pedirdes que ficasse, soltai rédeas ao júbilo, mostrai-vos
diríeis que me fosse. Agradecido ledos até à loucura, ide enforcar-vos...
me declaro a esta honrada companhia, Mas a minha Quetinha encantadora
que testemunha pôde ser de como deverá ir comigo. Nada disso,
me entreguei a esta esposa pacientíssima, não precisais crescer para o meu lado,
delicada e virtuosa. Ficai todos nem sapatear, nem escumar de raiva.
com meu pai e com ele banqueteai-vos. Quero ser dono do que me pertence;
Bebei em meu louvor. E agora, adeus. ela é minha fazenda, meus bens móveis,
Trânio : Permiti que vos peça aqui ficardes a mobília, o celeiro, a casa, o campo,
até depois da ceia. meu burro, meu cavalo, minha vaca,

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À MEGERA DOMADA

meu tudo, enfim. Aqui ela se encontra. tão louco assim, nunca houve.
Quem coragem tiver, que toque nela; Lucêncio - Senhorita,
saberei defender-me contra o ousado de vossa mana que pensais agora?
que o passo me quiser barrar em Pádua. Branca * Que, sendo louca, desposou um louco.
Desembainha, Grúmio, que cercados Grêmio : Petrucchio está catarinado, juro-o.
estamos por bandidos. Se homem fores, Batista * Amigos e vizinhos, muito embora
salva tua patroa. Não, Quetinha, não ocupem os noivos, por ausentes,
ninguém te tocará; hei de amparar-te seus lugares à mesa, estai bem certos
contra um milhão que seja. de que não faltam bons pitéus na festa.
(Saem Petrucchio, Catarina e Grúmio.) Lucêncio, o posto tomareis do noivo,
BarisTa : Vamos! deixai seguir o par pacífico. e no lugar da irmã senta-se Bianca.
Grêmio : Se demorassem mais, eu morreria TRÂniIO - Vai praticar de noiva a bela Bianca?
de tanta gargalhada. Barisra : Sim, Lucêncio. Avancemos, cavalheiros.
TrÂnio Casamento (Saem.)

Ato IV: Cenal

Uma sala na casa de campo de Petrucchio. Grúmio : Foi, Curtis, antes desta geada. Mas, como
Entra Grúmio. sabes, o inverno amansa o homem, a mulher e o animal,
pois assim o fez com meu velho amo, com minha nova
GRÚMIO À peste que carregue todos os cavalos patroa e comigo mesmo, camarada Curtis.
aguados, os patrões loucos e os caminhos Curris Sai daí, louco de três polegadas! Não sou
intransitáveis!
Já houve quem apanhasse tanto como nenhum animal.
eu? quem ficasse tão marcado, tão cansado quanto Grúmio : Só tenho três polegadas de altura? Pois se
eu? Mandaram-me na frente, para fazer fogo, vindo teus cornos medem um pé de comprimento, deveria
eles atrás, para se aquecerem. Mas se eu não fosse um ser esse, no mínimo, o meu tamanho. Mas não
pote pequeno, que se esquenta com facilidade, poderia queres acender o fogo? Ou deverei queixar-me de ti à
ficar com os lábios grudados nos dentes, de tanto frio; nossa ama, cuja mão — pois ela já se acha à distância
a língua, no céu da boca; o coração, nas costelas, € da mão — tu sentirás dentro de pouco, para teu frio
isso antes de poder chegar para perto de algum fogo consolo, por seres vagaroso no cumprimento de tuas
e descongelar-me. Tenciono aquecer-me soprando no obrigações?
fogo. Com um tempo destes, um homem mais alto do Curris : Por favor, bondoso Grúmio, conta-me
que eu se resfriaria facilmente. Olá! Curtis! Olá! como vai passando o mundo.
(Entra Curtis.) Grúmio - O mundo está frio, Curtis, em todos
Curris : Quem é que me chama com tanto frio os ofícios, com exceção do teu. Por isso, trata de
assim? acender o fogo. Cumpre o teu dever para alcançares
Grúmio : Um pedaço de gelo. Se não acreditais o que te devem, porque o patrão e a patroa estão
no que digo, poderás escorregar do meu ombro quase mortos de frio.
ao calcanhar tão rapidamente como da cabeça ao Curris O fogo está preparado. Por isso, bondoso
pescoço. Fogo, bondoso Curtis. Grúmio, quais são as novidades?
Curris- O patrão e a senhora já vêm vindo, Grúmio? Grúmio : Ora, quantas queiras, todas elas na toada
Grúmio : Oh! vêm, Curtis; vêm. Por isso mesmo, da cantiga “Oh Zé menino! Olá, menino!”
fogo, fogo, sem nenhuma água por cima. Curris: Ora, ora! estás sempre com brincadeiras.
Curris: E ela, é a megera furibunda de que todos Grúmio - Por isso mesmo, cuida do fogo, pois
falam? apanhei um frio extremo. Onde está o cozinheiro?

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A ceia está pronta? a casa enfeitada? os juncos que tagarelar dessa maneira? Vai chamar Nataniel,
espalhados? as teias de aranha retiradas? Todos os José, Nicolau, Filipe, Válter, Biscoitinho e todos os
criados estão de casaco novo e meias brancas e os outros. Que venham com os cabelos bem lisos, as
demais serventes com suas fardas de gala? Os odres blusas azuis bem escovadas e as ligas uniformes.
estão bonitos por dentro e as jarras bonitas por fora? Que façam reverência com a perna esquerda, sem
Os tapetes já foram estendidos, e tudo, enfim, está terem a ousadia de tocar num só pêlo do rabo do
em ordem? cavalo de meu amo, antes de beijarem a mão dele e a
Curris : Tudo está em ordem. Por isso mesmo, da patroa. Estão todos prontos?
torno a perguntar: que novidades há? Curris : Estão.
Grúmio : Em primeiro lugar fica sabendo que meu Grúmio: Então chama-os.
cavalo está estrompado; o patrão e a patroa caíram. Curris - Olá! Estais ouvindo? Precisamos receber o
Curris : Como! patrão e apresentar os cumprimentos à patroa.
Grúmio - Ora, caíram da sela na lama; isso daria Grúmio - Ora, ora! Cumprimento é o que ela tem
uma bela história. bastante.
Curris : Pois vamos ouvi-la, bondoso Grúmio. Curris: E quem não sabe disso?
Grúmio : Então apronta a orelha. Grúmio : Tu, parece, porque estás mandando que
Curris: Aqui está ela. lhe dêem cumprimento.
Grúmio (Dando-lhe uma bofetada) - Ei-la! Curris : Chamei-os para que eles reforcem o
Curris: Isso é o que se chama sentir uma história, crédito dela.
não ouvi-la. Grúmio : Ora, ela não pretenderá pedir-lhes
Grúmio : Por isso mesmo é que tem o nome de emprestado coisa nenhuma.
história sensível. Esse tapa só serviu para chamar a (Entram vários criados.)
atenção de tua orelha. Agora vou começar. Imprimis, NarANIEL * Bem-vindo, Grúmio!
Frcrpe : Então, Grúmio?
descemos por uma coluna sujíssima, vindo meu amo
José - Que é que há, Grúmio?
na garupa da patroa...
NicoLau * Camarada Grúmio!
Curris : Ambos montados no mesmo cavalo?
NaATANIEL * Como vai isso, meu velho?
Grúmio : Que tens que ver com isso?
Grúmio : Bem-vindo, vós; e vós, então? Que foi
Curris : Bem; num cavalo.
que houve convosco? E vós, camarada? E assim
Grúmio : Nesse caso, conta tu mesmo a história. Se
todos os outros cumprimentos. Agora, meus guapos
não me tivesses interrompido, terias ouvido como
companheiros, está tudo pronto? todas as coisas
o cavalo dela caiu, tendo ela ficado por baixo dele,
estão nos eixos?
como também terias ficado sabendo em que lamaçal
NarantEL : Tudo está nos eixos. A que distância se
isso se deu e como ela ficou toda lambuzada de la- encontra o patrão?
ma; como ele a deixou ficar por baixo do cavalo e me Grúmio : À dois passos daqui; provavelmente já
bateu, porque o cavalo havia tropeçado; como ela se está apeando do cavalo. Por isso, não sejas... Santo
atolou naquela imundície, para vir tirá-lo de cima de Deus! Silêncio! Estou ouvindo a voz do patrão.
mim, como ele praguejava, como ela suplicava, ela (Entram Petrucchio e Catarina.)
que nunca o havia feito até então; como eu gritava, PerTRUCCHIO *
como o cavalo escapou e saiu correndo, como a rédea Onde estão esses biltres? Como! A rédea
arrebentou, como eu perdi o meu rabicho, além de ninguém me veio segurar à porta,
muitas outras coisas dignas de memória, que irão nem pegar o cavalo? Onde se encontram
cair no esquecimento, enquanto tu voltarás para tua Gregório, Nataniel, José, Filipe?...
sepultura, sem conhecimento de nada. Topos os CRIADOS"
Curris: Por essa relação, vê-se que ele é mais Aqui, senhor!
intratável do que ela. PerruccHIOo - Aqui, senhor! Aqui,
Grúmio : Sim, o de que o mais atrevido dentre vós senhor! Aqui, senhor! Cabeças ocas,
poderá certificar-se, logo que ele chegar. Mas, para moços de estrebaria é o que sois todos.

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À MEGERA DOMADA

Deveres ninguém tem? Não há serviço? PeTRUCCHIO - Quem a trouxe?


Atenções ninguém mostra? Onde se encontra PRIMEIRO CRIADO *
aquele tolo que eu mandei na frente? Eu.
Grúmio : Aqui, senhor; tão tolo quanto era antes. PerRUccHIO * Pois está queimada e, assim o resto.
PerruccHio : Rústico, mandrião, rocim maldito, Sois todos uns cachorros. E essa besta
não mandei que no parque me esperasses do cozinheiro, onde se encontra? Biltre!
e que levasses estes outros biltres? Velhacos, como tendes a ousadia
Grúmio : O casaco, senhor, de Nataniel estava de servir-me de tudo o que eu não gosto?
só alinhavado; ainda faltava pôr salto no sapato de (Atira ao chão a mesa, pratos etc.)
Filipe; não havia morrão para darmos cor ao chapéu Retirai isso! Copos, pratos, tudo!
de Pedro; falta bainha para a espada de Válter. Só Mal-educados! Grosseirões! Escravos!
estão prontos Gregório, Ralph e Adão. Todos os Como! Estais resmungando? Já vos pego.
outros estão que nem trapos, velhos e indigentes. CATARINA: Marido, por favor, ficai mais calmo.
Mas, assim mesmo, vieram receber-vos. A comida está boa; bastaria
PerruccHio : Ide, mariolas, preparar a sopa. ficardes bem-disposto.
(Saem alguns criados.) PETRUCCHIO * Não, Quetinha;
“Onde está a vida que eu vivia outrora? estava esturricada e ressequida,
Onde estão...” Vem, Quetinha; vem sentar-te... e eu me acho expressamente proibido
Bá, bá, bá! de comidas assim, porque provocam
(Voltam os criados, com sopa.) a cólera e me deixam irritado.
Sois bem-vinda, Quetinha. : Quando é isso? — Será melhor para ambos jejuarmos —
Doce Quetinha, fica mais alegre. sendo por natureza tão coléricos —
Mandriões, tirai-me as botas! Biltres! Quando? do que carne ingerirmos tão assada.
Era um monge da ordem parda, Tem paciência; amanhã repararemos
que caminhava sem guarda. tudo isso; mas por hoje é mais prudente
Vai para o inferno, biltre! O pé me torces. passarmos em jejum. Vem, vem comigo;
(Bate-lbe.) quero levar-te para nosso quarto.
Toma isto, e na outra tenhas mais cuidado. (Saem Petrucchio, Catarina e Curtis.)
Quetinha, fica alegre. Tragam-me água! NaTaNIEL : Pedro, já viste coisa semelhante?
Para onde foi meu galgo Tróilo? Chama-me Pepro - Ele a mata com o próprio gênio dela.
o primo Ferdinando. Aí, maroto! (Volta Curtis.)
(Saí um criado.) Grúmio : Em que parte está ele?
Quetinha, é uma pessoa que precisas Curris : No quarto,
beijar e conhecer. E meus chinelos? fazendo-lhe um sermão de continência.
E água, não trazem? Lava-te, Quetinha, Briga, jura, aconselha, de tal forma
lava-te e fica alegre. que fica sem saber a coitadinha
(O criado deixa cair o jarro. Petrucchio bate nele.) para onde deva olhar, como expressar-se,
Biltre, estúpido! de que jeito ficar, tendo acabado
Ainda o deixas cair? por sentar-se, tal como quem desperta
CATARINA: Tende paciência; de repente de um sonho. Mas, corramos,
foi sem querer. que ele vem vindo aí.
PerruccHio : Cabeça empedernida, (Saem.)
tipo orelhudo, filho da sarjeta! (Volta Petrucchio.)
Vamos, Quetinha, senta-te. Decerto PerruccHio : Comecei desse modo o meu reinado
deves estar com fome. E a ação de graças, com muita habilidade, tencionando
quem dirá: eu ou tu? Que é isto: carne de carneiro? chegar ao fim com êxito completo.
PRIMEIRO CRIADO - Isso mesmo. Meu falcão está afiado e com bem fome,

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e, enquanto não ficar bastante dócil, na arrumação do leito: os travesseiros


não encherá o papo. De outro modo, atiro para um lado, as almofadas
não obedecerá ao meu aceno. para outro, jogo longe os cobertores,
Tenho também outro processo para faço voar os lençóis. Sim, e em toda essa
deixar manso o gavião, fazer que volte barulheira infernal direi que faço
e habituá-lo ao meu grito, isto é, forçá-lo tudo por causa dela. Em suma: ela há
a ficar acordado, como é de hábito de vígil passar a noite; e caso os olhos
fazer com esses milhanos indomáveis venha a fechar, farei tão grande bulha
que se debatem muito. Até agora com ralhos e disputas, que por força
ela não comeu nada, sendo certo terá de despertar. Essa é a maneira
que vai ficar assim o dia todo. de matar com carícias uma esposa.
Na última noite não dormiu, nem há de Dobrarei desse modo o gênio dela,
dormir na noite entrante. De igual modo opinioso e violento. Se alguém sabe
que com a comida fiz, acharei meios como amansar melhor uma megera,
de encontrar hipotéticos defeitos venha ensinar-me, que aqui fico à espera.

Ato IV: Cena Il


(Saí)

Pádua. Diante da casa de Batista. TRâÂnio- Oh falso amor!


Entram Trânio e Hortênsio. Sexo inconstante! Lício, só te digo
que é muito extraordinário.
Trânio : Será possível, caro amigo Lício, Horrênsio - Basta, basta
que outro, que não Lucêncio, possa o afeto de enganos. Não sou Lício, nem sou músico,
vir alcançar da senhorita Bianca? como pareço, mas alguém que sente
Sim, meu caro senhor, posso afirmar-vos repugnância em viver com esta máscara
que ela me tem encorajado muito. por uma criatura que despreza
HorrêÊnsio - Para vos convencer do que vos disse, um cavalheiro e endeusa um lorpa desses.
senhor, ficai de lado e tomai nota Senhor, chamo-me Hortênsio, é o que vos digo.
como ele dá lições. Trânio - Signior Hortênsio, já bastantes vezes
ouvira referências lisonjeiras
(Afastam-se.)
a vosso amor por Bianca. Mas havendo
(Entram Bianca e Lucêncio.)
sido estes olhos testemunhos certos
Lucêncio Aproveitastes,
de sua leviandade, juntamente
senhora, alguma coisa da leitura?
convosco, se de acordo vos mostrardes,
Branca - E vós, mestre, que ledes? Respondei-me
abjurarei de vez o amor de Bianca.
primeiro a essa pergunta.
HorrêÊnsio - Vede como se beijam ternamente,
Lucêncio - O que professo:
signior Lucêncio! Com firmeza juro
aarte de amar.
por esta mão em como vou abster-me
BraNCA: Possais, senhor, ser mestre
de lhe fazer a corte; renuncio
na arte que professais com devoção. a ela, por ser inteiramente indigna
Lucêncio : E vós, a dona de meu coração. das atenções que até hoje, com tamanha
(Afastam-se.) leviandade, eu lhe vinha concedendo.
HorTÊNsio : Trânio : Quero também fazer o juramento
Como isso vai depressa! Não juráveis — não menos firme de jamais casar-me
dizei-me agora — que vossa ama Bianca com ela, embora suplicar-me viesse
a ninguém mais amava em todo o mundo, para esse fim. Que peste! Vede como
se não esse Lucêncio? bestialmente o corteja!

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À MEGERA DOMADA

HorTÊnsio Desejara que faremos com ele?


que, tirante ele, todos a deixassem. TRÂnIO- Se for crédulo
Quanto a mim, porque mais seguramente e acreditar em minha história, alegre
mantenha o juramento, vou casar-me fará o papel paterno de Vicêncio,
nestes três dias próximos com uma dando as cauções que forem necessárias
viúva rica que me foi fiel a Batista Minola, como se ele
durante todo o tempo em que eu estava fosse mesmo Vicêncio. Retirai-vos
pendido para o lado dessa bruxa com vossa noiva; quero estar sozinho.
altiva e impertinente. E assim, meu caro (Saem Lucêncio e Bianca. Entra o professor.)
signior Lucêncio, adeus. O coração Proressor : Deus vos guarde, senhor.
me conquista a bondade feminina, Trânio : E a vós, senhor.
não a bela aparência. E ora despeço-me, Muito bem-vindo sois. Estais de viagem
decidido a cumprir o que vos disse. para mais longe, ou à meta já chegastes?
(Sai Hortênsio.) ProrEssoR : Aqui me deterei por uma ou duas
(Lucêncio e Bianca vêm para a frente.) semanas, nada mais. Depois, em Roma
Trânio - Senhora Bianca, caiba-vos a graça ficarei, para a Trípoli, em seguida,
dos amantes que têm amor sem jaça. me dirigir, se Deus me der saúde.
Sim, apanhei-vos de surpresa, amiga, Trânio : De que cidade sois?
ea vós renunciamos, eu e Hortênsio. ProrEssoR * De Mântua.
Branca: Trânio, estais gracejando? É então verdade TrâÂniO: Mãàntua,
que ambos me renunciastes? meu senhor? Oh! não queira Deus tal coisa!
Trânio - Sim senhora. E a Pádua vindes, sem vos importardes
Lucêncio : Então de Lício já ficamos livres. com vossa vida?
Trânio : Escolheu uma viúva frescalhona Proressor: Minha vida! Como
que noiva e esposa vai ficar num dia. senhor? À coisa me parece séria.
Branca Deus lhe dê alegria. Trânio - Muito séria; é fatal para os mantuanos
Trânio- Vai domá-la. que a Pádua venham. Não sabeis a causa?
BIANCA: É o que ele diz, amigo. Vossos navios acham-se detidos
TRÂniIO Não há dúvida; no porto de Veneza, tendo o doge,
foi tomar aulas de domar, é certo. por questão singular com o vosso duque,
Branca: Como! Aulas de domar? Há escola disso? mandado proclamar o que ora digo.
Trânio - Sim, senhor; e Petrucchio é o professor. É de admirar. Porém se aqui tivésseis
Meios conhece de amansar a bruxa, chegado um pouquinho antes, quase nada,
deixando-a mui discreta e não perluxa ainda teríeis alcançado o arauto.
(Entra Biondello, a correr.) Proressor: Oh! para mim é muito pior a coisa
BronpeLLO: Oh meu caro patrão! Fiquei de espreita do que parece, pois comigo trago
por tanto tempo, que esfalfado me acho. ordens de pagamento de Florença,
Mas, afinal, descer vi da colina que devo apresentar.
um angélico velho que nos serve TRÂniIO* Para servir-vos,
muito bem aos intentos. meu senhor, farei isso, ao mesmo tempo
TRÂniIO* Quem é ele, que vos dou um conselho. Porém antes
Biondello? informai-me se em Pisa já estivestes.
BronDELLO : Um mercador, patrão, ou mesmo ProrEssor: Sim, meu senhor; estive várias vezes;
pedagogo, não sei. Porém de vestes Pisa, famosa por seus homens graves.
muito formais e de aparência e porte Trânio - E entre eles conheceis um tal Vicêncio?
de um verdadeiro pai. ProrEssoR - Não, mas ouvi falar bastante nele,
Lucêncio E agora, Trânio, um mercador de bens incalculáveis.

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Trânio : Pois é meu pai, senhor; e, sob palavra, liquidar os negócios da cidade.
parece-se convosco alguma coisa. Aceitai de bom grado esse serviço.
BrONDELLO (à parte) : ProrEssoR
Tal qual uma ostra e uma maçã madura. Oh meu senhor! Aceito-o, e para sempre
TrâÂnio : Porque a vida vos salve neste aperto, passo a considerar-vos o patrono
vou ser-vos útil só por amor dele. de minha liberdade e minha vida.
Assim, considerai que é muita sorte Trânio - Vamos então concretizar a coisa.
terdes os traços do senhor Vicêncio. De passagem vos digo apenas isto:
Assumireis o nome e o aspecto dele meu pai é aqui esperado a cada instante
e em minha casa muito cordialmente para em contrato assegurar o dote
ficareis alojado. E agora, muito que eu devo dar à filha de Batista.
cuidado para que ninguém suspeite A par hei de vos pôr de quanto importa.
de vossa identidade. Compreendeis-me. Vamos, senhor, vestir-vos como importa.
Em casa ficareis até poderdes (Saem.)

Ato IV: Cena III


Um quarto em casa de Petrucchio. CATARINA
Entram Catarina e Grúmio. Oh! Gosto muito. Meu bondoso Grúmio,
arranja-me isso logo.
Grúmio : Não, não me atrevo. Não; por minha vida. Grúmio - Estou indeciso;
CATARINA: temo que seja por demais colérico.
Quanto mais me maltrata, mais me humilha. Que diríeis de bife com mostarda?
Como! Casou comigo, para à fome CATARINA:
fazer-me perecer? Os mendicantes Meu prato predileto.
que à casa chegam de meu pai recebem Grúmio - Hum! Mas mostarda
a esmola desejada; e se negada é um poucochinho quente.
lhes for, mui facilmente noutras portas CATARINA: Então, o bife;
encontrarão piedade. Eu, no entretanto, põe de lado a mostarda.
que nunca soube o que pedir se chama, Grúmio - Isso eu não faço;
nem a pedir me vi forçada nunca, de Grúmio não tereis mais que mostarda.
de fome estou morrendo, desfaleço CATARINA Os dois, então; ou um; como quiseres.
de tão vígil estar. Fico acordada Grúmio : Nesse caso, a mostarda, sem o bife.
com pragas; alimento-me de gritos. CATARINA: Retira-te daqui, maldoso escravo!
E o que mais me magoa nisso tudo (Bate-lhe.)
é fazer ele tudo sob a capa Só com o nome dos pratos me alimentas? l
do amor mais atencioso, parecendo Sejas maldito, e assim toda essa súcia
que, se eu viesse a dormir ou a alimentar-me que com meu sofrimento se empavona.
cairia logo doente, ou perecera Sai! Sai logo, já disse.
sem maiores delongas. Por obséquio, (Entram Petrucchio, com um prato
vai buscar-me alimento; a qualidade de comida, e Hortênsio.)
não importa; é bastante ser saudável. PerTRUCCHIO * Como passa
Grúmio : Que dizeis de uma perna de vitela? minha Quetinha? Como! Tão tristonha,
CATARINA Ótimo! Não demores; vai buscá-la. meu coração?
Grúmio : Pode ser irritante. E que diríeis Horrênsio : Como passais, senhora?
de tripas gordas muito bem assadas? CATARINA: Fria a mais não poder.

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À MEGERA DOMADA

PeTRUCCHIO* Eleva o espírito; Banal e sujo. É mais um caramujo,


olha-me alegremente, queridinha. uma casca de noz, um brinquedinho,
Bem vês quão cuidadoso eu sou contigo; gorrozinho de criança, bugiaria...
eu mesmo preparei tua comida, Quero um maior, já disse! Levai esse.
não permitindo que outrem a trouxesse. CATARINA: Não, não quero maior; está na moda;
(Coloca o prato sobre a mesa.) é assim que as damas elegantes usam.
Acho, doce Quetinha, que esta minha PerruccHIO
delicadeza é digna de elogios. Quando fores gentil, terás um desses;
Que é isso! Assim calada? É que decerto antes, não.
não gostas do que eu trouxe, tendo sido HorrTênsio (à parte) - Nesse caso, ainda demora.
em pura perda todo o meu trabalho. — CATARINA: Penso, senhor, que devo ter licença
Retirai esse prato! para falar, conforme vou fazê-lo.
CATARINA* Não; deixai-o Não sou nenhuma criança; muita gente
aí mesmo, por favor. melhor que vós já ouviu o que eu dizia.
PerruccHio: | Todo serviço Se não vos agradar, tapai o ouvido.
deve ser sempre recebido, sempre, Mas expressão terei de dar com a língua
com agradecimentos. Neste caso a quanto o coração me traz opresso,
tereis de agradecer-me, antes de haverdes para que ao cabo ele a estourar não venha.
tocado na comida. Antes que isso aconteça, liberdade
CATARINA* completa quero ter para expandir-me.
Obrigada, senhor.
PerrucchHio : Tens razão; é uma touca abominável;
Horrênsio: | Signior Petrucchio,
parece mais cascão de torta, ou antes,
ora! ora! Sois passível de censura.
pastel de seda. Tenho-te amizade
Minha senhora Catarina, quero
muito maior por não gostardes dela.
fazer-vos companhia.
CATARINA: Tenhais ou não, mas é bonita a touca;
PerRUCCHIO (à parte) - Caso me ames,
só ficarei com essa; mais nenhuma.
Hortênsio, come tudo. (Alto. ) Que esse prato
(Sai o modista.)
te faça bem ao coração bondoso.
PerruccHio : Referes-te ao vestido? Vamos, vamos,
Quetinha, come devagar. E agora,
alfaiate: vejamo-lo. Que coisa,
meu doce amor, preciso é que voltemos
à casa de teu pai, para fazermos santo Deus! Isto é pura palhaçada!
um barulhão com todas estas sedas,
Que será isto? Manga? Até parece
canhões, golilhas, anéis de ouro, capas, peça de artilharia. De alto a baixo
casaquinhos e mantas muito guapas, cortado como torta de maçã,
ventarolas e fitas mui vistosas, todo cheio de furos, coitadinho
pulseiras de âmbar, pérolas e rosas. tal como aquecedor de barbearia.
Oh! já acabaste? Espera-te o alfaiate, Arre! Em nome do diabo, como chamas
que vai vestir-te com capricho e arte. a isto, alfaiate?
(Entra o alfaiate.) HorTÊnsio (à parte) : Pelo que estou vendo,
Entra, alfaiate; mostra-me o que trazes. não pegará nem touca nem vestido.
Põe aqui o vestido. ALFAIATE: Recomendaste-me o mais novo corte,
(Entra o modista.) mandando que eu seguisse em tudo a moda.
Novidades, PerTRUCCHIO *
senhor? Que nos trouxestes? É certo, é certo; mas se estais lembrado,
MopisTa* Esta touca não vos mandei pôr a perder o pano,
por Vossa Senhoria encomendada. seguindo em tudo a moda. Tratai logo
PerruccHio - Como! O molde para isso foi alguma de voltar para casa, a toda pressa,
sopeira? Ora, ora! Um prato de veludo! saltando pelos regos do caminho,

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porque freguês, senhor, já não sou vosso. PerruccHio : Lê-a.


Não ficarei com ele; fazei disto Grúmio : Enfiarei essa nota pela garganta dele, se
o uso que bem quiserdes. Fora! fora! ele continuar a afirmar que eu disse semelhante coisa.
CATARINA Nunca tive um vestido tão bem-feito, ALFAIATE * “Imprimis, um vestido bem folgado.”
tão na moda, elegante e bem talhado. Grúmio : Mestre, se algum dia eu falei em vestido
Quereis fazer de mim uma boneca? folgado, podeis costurar-me na aba dele e matar-me
PerruccHio - Uma boneca, justamente; é isso de pancada com um novelo de fio escuro. O que eu
que ele pretende. disse foi: um vestido.
ALFAIATE: Vossa Senhoria — PerruccHio : Prossegui.
foi o que ela afirmou — é que pretende ALFAIATE * “Com uma gola pequena e
transformá-la em boneca.
arredondada.”
PerRrUccHIO * Que arrogância
Grúmio : À gola eu confesso.
monstruosa! Estás mentindo,
ALFAIATE “ “De mangas largas...”
dedal! Mentes, cordel, jarda, três quartos,
Grúmio : Confesso duas mangas.
um quarto, meia jarda, unha, mosquito,
ALFAIATE * *..cortadas com bastante engenho.”
lêndea, grilo do inverno! Desafiar-me
PerruccHiIo : Nisso é que está a velhacaria.
em minha própria casa, com uma meada
GRrúmio : À nota é mentirosa, senhor; a nota é
de linha! Fora, trapo! Fora, resto!
mentirosa. O que eu recomendei foi que as mangas
Fora, aviamentos! Do contrário, meço-te
fossem cortadas e depois recosturadas, o que
com tua própria jarda, porque tenhas
uma lembrança para toda a vida,
poderei provar-te, ainda que me venhas-de dedal no
por seres linguarudo. Pois afirmo-te dedo minguinho.
que puseste a perder a roupa dela. ALFAIATE * O que eu disse é a verdade; e isso mesmo
ALFAIATE * Não; Vossa Senhoria está enganado;
te provaria, se te apanhasse num local de jeito.
o vestido foi feito sob as vistas Grúmio : Pois desde este momento ponho-me à tua
do mestre da oficina; ordens deu Grúmio disposição. Fica com tua nota, entrega-me essa jarda
sobre a maneira como deveríamos e não me poupes.
confeccioná-lo. HorrTêÊnsio - Ora, Grúmio! Assim, ele ficaria com
PerruccHio : Não lhe dei essa ordem: desvantagem.
dei-lhe apenas o pano. PerruccHio : Em resumo, senhor: esse vestido não
ALFAIATE: Mas acaso é para mim.
não lhe dissestes nada sobre o modo Grúmio : Falastes bem, senhor: é para a patroa.
como queríeis que ele fosse feito? PerruccHio : Vamos, leva-o logo daqui, para teu
Grúmio - mestre usá-lo como bem entender.
Sim, com agulha e linha. Grúmio : Toma cuidado, maroto, se tens amor à
ÁLFAIATE* Porventura vida! Levar o vestido de minha ama, para teu mestre
cortar não poderíamos o pano? usá-lo como bem entender!
GRrúmio : Já encrespaste muita gente? PerruccHio : Qual é o sentido de vossas palavras,
ALFAIATE: Já. senhor?
Grúmio : Então não te encrespes para o Grúmio - Ora, senhor! O sentido é mais profundo
meu lado. Já enfeitaste muita gente; então do que poderíeis imaginar. Levar o vestido de minha
não me venhas enfeitar, que eu não gosto de ama, para o patrão dele usar! Ora! Ora!
encrespados nem de enfeites. Repito que disse PeTRUCCHIO (à parte) -
ao teu oficial que cortasse o vestido, mas não Hortênsio, cuida de pagar a nota.
lhe disse que o cortasse em pedacinhos: ergo, (Ao alfaiate.)
estás mentindo. Retira-te; já basta de conversa.
ALFAIATE * Para confirmar o que eu disse, aqui está HoRTÊNSiIO (à parte, ao alfaiate) -
a nota da encomenda. Amanhã pagarei, amigo, a conta.

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Não te molestes com seu modo brusco. pois partiremos já, para festarmos
Podes ir; recomenda-me ao teu amo. em casa de teu pai, despreocupados.
(Sai o alfaiate.) (A Grúmio.)
PerruccHio : Vem, querida Quetinha; assim Chama meus homens; montaremos logo;
faremos põe os cavalos na alameda grande,
uma visita a vosso pai com estas a pé iremos até lá. Vejamos:
vestes pobres e honestas. Nossas bolsas são sete horas, quero crer, agora;
serão vaidosas; nossa roupa, pobre. chegaremos com tempo de jantar.
Êo espírito que deixa o corpo rico. CATARINA*
E assim como através das mais espessas Senhor, posso afiançar-vos: são duas horas;
nuvens o sol penetra, de igual modo nem a ceia, é certeza, alcançaremos.
nas vestes mais humildes a honra brilha. PerruccHio : Serão sete horas antes de
Mais nobre é o gaio do que a cotovia, montarmos.
por ter plumagem muito mais bonita? Vede bem: quanto eu diga, ou faça, ou tenha
Ou mais do que a enguia vale a serpe, idéia de fazer, contrariais sempre.
porque os olhos sua pele nos alegra? Deixai, amigos; hoje já não saio.
Não, querida Quetinha; nada perdes Quando vier a sair, dagora em diante,
com essa roupa humilde e desonrada. a hora que eu disser é que está certa.
Se a teus olhos é opróbrio, toda a culpa HorTênsio - Até no sol este galante manda.
põe sobre mim. Por isso, fica alegre, (Saem.)

Ato IV - Cena IV
Pádua. Diante da casa de Batista. BroNDELLO* Sim; contei-lhe
Entram Trânio e o professor, vestido como Vicêncio. que vosso pai se achava ora em Veneza
e que com ele em Pádua hoje contáveis.
TRÂnio : Esta é a casa, senhor. Posso bater? Trânio : És um rapaz esperto; recebe isto
ProrEssoR: E por que não? Se não me trai o engenho, para a bebida. Mas aí vem Batista.
de mim ainda deve estar lembrado Assumi, meu senhor, vossa aparência.
meu amigo Batista. Foi em Gênova, (Entram Batista e Lucêncio.)
há vinte anos; nós dois nos hospedamos Signior Batista, mui feliz encontro.
na estalagem do Pégaso. (o professor.)
Trânio Isso mesmo. Este é o senhor sobre que já falamos.
Em qualquer circunstância, agora cumpre-vos Revelai-vos agora um pai bondoso,
austeridade revelar paterna. dando-me Bianca para minha herança.
Proressor : Trangjuilizai-vos. Mas aí vem o pajem. ProrEssor : Mais devagar, meu filho.
Bom seria instruí-lo nesse ponto. Com vossa permissão, senhor; mas tendo
(Entra Biondello.) vindo até Pádua por algumas dívidas,
Trânio - Podeis ficar trangúilo. Olá, Biondello! fui informado por Lucêncio duma
vede lá como andais daqui por diante, causa de amor de grande relevância
é o que vos digo. E tende bem presente entre ele e vossa filha. Assim, em parte
que este amigo é o legítimo Vicêncio. pelas informações que de vós tenho,
BronDELLO : Ora! não tenhais medo. em parte pelo amor que ele lhe vota,
TrÂnio- Mas já deste por ela retribuído, para que ele
meu recado a Batista? não espere demais concordo, em minha

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solicitude paternal, em que esse TrâÂnio Não percas tempo


casamento se faça. E se pensardes com os deuses; corre logo e não demores.
do mesmo modo que eu, haveis de achar-me Poderei indicar-vos o caminho,
disposto — após sobre isso conversarmos — signior Batista? Sois bem-vindo. Todo
para firmar as cláusulas de nosso vosso jantar consistirá num prato.
contrato para o dote. Pois convosco Entrai, senhor; em Pisa arranjaremos
não posso revelar-me desconfiado, melhor as coisas.
Signior Batista, tendo em vista as boas BarISTA* Ide; já vos sigo.
referências que sobre vós obtive. (Saem Trânio, o professor e Batista.)
BarisTA : Desculpai-me, senhor, no que vos digo; BronDELLO : Câmbio!
muito me impressionou vossa franqueza Lucêncio : Que disseste, Biondello?
e vossa concisão. É bem verdade: BronDELLO - Não vistes quando o meu amo piscou
vosso filho Lucêncio, aqui presente, para o vosso lado e sorriu?
gosta de minha filha, e Bianca, dele, Lucêncio : E que significará isso, Biondello?
se ambos não forem por demais fingidos. BroNDELLO - Nada, por minha fé; mas ele me deixou
Por isso, caso não tivésseis nada atrás, para que explique o sentido ou a moral de seus
mais a dizer senão que como filho gestos e sinais.
vai ser ele tratado e que adequado Lucêncio : Então explica-me a moral do caso.
dote dareis a Bianca, o casamento BronDELLO - Ei-la: Batista está em lugar seguro,
já está concluído e arrematado tudo: conversando com o falso pai de um filho embusteiro.
com meu consentimento vosso filho Lucêncio : E daí?
desposa minha filha. BronpeELLO : Tereis de levar a filha dele para a ceia.
TRâÂniIO* Agradecido, Lucêncio : E depois?
senhor, vos fico. Em que lugar, agora, BronDELLO * O velho padre da igreja de São Lucas
assentaremos o noivado e o pacto ficará todo esse tempo à vossa disposição.
recíproco assinamos? Lucêncio - E no fim de tudo isso?
BarISTA* Não em minha BronDELLO - Não saberei dizê-lo, a não ser que
casa, signior Lucêncio, que as paredes eles se encontram atarefados com um falso contrato.
ouvem, como o sabeis, e eu tenho um grande Assegurai-vos, portanto, dela, cum privilegio ad
número de criados, sem contarmos imprimendum solum. À igreja! Levai o padre, o
que o velho Grêmio ainda está de espreita, sacristão e algumas testemunhas suficientemente
podendo vir, assim, a interromper-nos. honestas.
Trânio - Em meus alojamentos, nesse caso. Se esta não for a ocasião que esperáveis com tanta alegria,
Meu pai vai ficar lá; e ainda esta noite dizei adeus à formosa Bianca, sem perda de um dia.
poderemos concluir nosso negócio Lucêncio - Escuta, Biondello.
com bastante sigilo e segurança. BronDELLO - Não posso ficar mais tempo. Conheço
Mandareis vosso criado chamar Bianca, uma rapariga que se casou numa tarde, ao ir à horta
enquanto este meu pajem vai correndo apanhar salsa para encher um coelho. O mesmo
buscar-nos o escrivão. O pior que pode podereis fazer, meu senhor. E com isto, adeus. Meu
dar-se por fim é que com tanta pressa amo mandou que eu fosse à igreja de São Lucas, a
venhais a ter pitança mui delgada. fim de dizer ao padre que se aprontasse para quando
BarisTa : Estou de acordo. Câmbio, ide até casa chegásseis com vosso apêndice.
dizer a Bianca que se tenha prestes. (Sai)
Sim, podereis contar-lhe o que se passa: Lucêncio : Posso-o, e fá-lo-ei, se ela ficar alegre.
como o pai de Lucêncio se acha em Pádua Há de ficar; por que duvidar tanto?
e que ela vai casar-se com Lucêncio. Eis o momento de me declarar;
Lucêncio - Que isso aconteça é o que eu suplico mal ficarei, se Câmbio a não pegar.
aos deuses, de todo o coração. (Sai)

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Ato IV : CenaV
Uma estrada pública. Doce Quetinha, com franqueza fala-me:
Entram Petrucchio, Catarina, Hortênsio e criados. já viste uma senhora assim tão fresca?
Como em suas faces o vermelho e o branco
PerruccHio : Depressa, pelo céu! Vamos à casa dura guerra mantêm! Jamais os astros
de vosso pai, de novo. Oh Deus bondoso! o céu tão belamente tachonaram
como estes olhos o seu rosto angélico.
como brilha no céu a lua amiga!
Adorável menina, novamente
CATARINA: Lua? Isto é sol; não há luar ainda.
muito bom dia para ti. Abraça-o,
PerruccHio : Digo que é a lua que tão claro brilha.
doce Quetinha, por ser tão formosa.
CATARINA É o sol, bem vejo, que tão claro brilha.
Horrênsio : Vai deixar o homem louco, pretendendo
PerruccHiIo - Pois pelo filho de meu pai, eu transformá-lo em mulher.
mesmo, CATARINA: Botão formoso,
tem de ser lua ou estrela, ou o que eu quiser, fragrante e virginal, para que ponto
antes de à casa de teu pai nós irmos. te diriges agora? Onde resides?
Recolhei os cavalos! Contrariado Felizes pais de tão galante filha!
de novo! Contrariado sempre e sempre! Mas mais feliz o moço a quem os astros
Horrênsio : Oh! concordai com ele; do contrário, propícios te destinam para sua
não partiremos nunca. companheira tão meiga!
CATARINA Por obséquio, PETRUCCHIO * Ora, Quetinha!
já que chegamos até aqui, sigamos Não estás louca, penso. É um homem velho,
até o fim, seja lua, ou sol, ou quanto cheio de rugas, murcho, enfraquecido,
bem entenderdes. Caso resolvais como estás vendo.
dar-lhe o nome de vela, doravante CATARINA: Velho pai, perdoa
para mim será isso. o engano de meus olhos. Ofuscados
PerruccHIO: Élua, disse. tanto o sol os deixou, que quanto eu veja
CATARINA: Vejo que é lua, mesmo.
só verde me parece. Agora noto
PerRUCCHIO - Estás mentindo
que és um pai venerando. Novamente
peço que me perdoes esse engano.
pois é o sol abençoado.
PerRUCCHIO *
CATARINA* Deus bendito!
Perdoa-lhe, bom velho; e, ao mesmo tempo,
pois é o sol abençoado! Mas já deixa conta-nos teu caminho. Sendo o mesmo
de ser o sol, quando negardes isso. que o nosso, muito alegres ficaremos
Muda-se a lua como vosso espírito; com tua companhia.
será o que quiserdes, e isso mesmo Vicêncio : Belo moço,
ficará sendo para Catarina. e vós, alegre dama, que bastante
Horrênsio : Petrucchio, segue o teu caminho; me espantastes com vosso cumprimento
ganha tão esquisito; chamo-me Vicêncio;
foi a batalha. moro em Pisa, e em caminho estou de Pádua,
PerruccHio : Bem; avante! avante! para fazer uma visita a um filho
Assim a bola correrá depressa, que há muito não revejo.
sem desviar-se da meta. Mas cautela! PerruccHio - O nome dele?
Quem é que vem chegando? Vicêncio *
(Entra Vicêncio, em trajes de viagem.) Lucêncio, meu senhor.
(A Vicêncio. ) Gentil dama PeTRUCCHIO * Feliz encontro
bom dia. Qual é o vosso itinerário? para nós e teu filho. E agora posso

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dizer que assim por lei como por tua Vicêncio Mas tudo isso é verdade, ou simplesmente
veneranda aparência, autorizado vos divertis, por terdes gênio alegre,
me acho para chamar-te pai querido. com as pessoas que encontrais na estrada?
À irmã de minha esposa, esta senhora, HorTÊnsio : Não, pai; é certo; posso assegurar-vos.
já desposou teu filho. Não te espantes PerruccHiIo : Vem, vem conosco, para convencer-te
nem te aborreças, que é de bom conceito, da verdade de tudo o que dissemos.
de rico dote e de família digna. Deixou-te desconfiado a brincadeira.
Além do mais, tem tantas qualidades, (Saem todos, com exceção de Hortênsio.)
que digna a deixam de tornar-se esposa HorrêÊnsio - Petrucchio, muito bem; coragem deste-me.
do mais nobre mancebo. Assim, permite Procuremos a viúva; por mais que ela
que no velho Vicêncio eu dê um abraço, se mostre rezingueira, quanto baste
e vamos juntos ver teu belo filho para domá-la a Hortênsio já ensinaste.
que tua vinda vai deixar alegre. (Sai.)

Ato V: Ceml

Pádua. Diante da casa de Lucêncio. Vicêncio O signior Lucêncio está, meu senhor?
Por um lado entram Biondello, Lucêncio e Bianca; ProrEssoRr : Está, sim senhor; mas não pode
Grêmio passeia no outro lado. atender a ninguém.
Vicêncio - Como! E se alguém lhe trouxesse cem
BroNDELLO : Com jeito e bem depressa, senhor, ou duzentas libras, para maior animação de seus
porque o padre já está à espera. divertimentos?
Lucêncio : Eu vôo, Biondello; mas pode acontecer Proressor: Guardai para vós mesmos vossas
que eles precisem de ti em casa. Por isso, deixa-nos. duzentas libras; enquanto eu tiver vida ele não
BroNDELLO : Não, por minha fé; primeiro terei de precisará disso.
ver a igreja por cima de vosso ombro; depois voltarei PerruccHro : Não vos disse eu que vosso
filho era muito estimado em Pádua? Senhor,
para junto de meu amo, o mais depressa que puder.
estais ouvindo? Deixando de lado frívolos
(Saem Lucêncio, Bianca e Biondella.)
circunlóquios, peço-vos avisar ao signior Lu-
Grêmio : Admiro-me de Câmbio não ter ainda
chegado.
cêncio que o pai dele chegou de Pisa e que o
espera aqui na porta para falar-lhe.
(Entram Petrucchio, Catarina, Vicêncio e criados.)
Proressor Estás mentindo; o pai dele já chegou
PerrucchHro : Esta é a porta; esta é a casa de Lucêncio.
de Pisa e vos contempla agora desta janela.
À de meu pai é perto do mercado.
Vicêncio : Então o pai dele és tu?
Tenho de ir até lá; por isso, deixo-vos.
ProrEssoRr: Perfeitamente; pelo menos é oque
Vicêncio - Tereis primeiro de beber comigo; assegura a mãe dele, se é que posso dar crédito ao
penso que nesta casa posso dar-vos que ela diz.
bom agasalho; e, pelo que parece, PerruccHIO (a Vicêncio) -
há festa aqui. Que quer dizer isso, cavalheiro?
(Bate.) É velhacaria muito grande usurpar o nome de outra
Grêmio: Estão muito ocupados; pessoa.
será melhor baterdes com mais força. ProrEssor : Segurai bem esse biltre; estou certo
(Aparece na janela o professor.) de que ele pretende enganar alguém na cidade, sob a
ProrEssor - Quem é que bate como se quisesse capa de meu nome.
derrubar a porta? (Volta Biondello.)

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À MEGERA DOMADA

BronDELLO - Deixei-os juntos na igreja; o céu lhes senhor. Por obséquio, como julgais que ele se chama?
dê bons ventos. Mas que vejo? Meu velho amo Vicêncio : Como se chama? Como se eu não
Vicêncio! Estamos perdidos e reduzidos a zero. soubesse o nome dele! Criei-o desde a idade de três
Vicêncio (percebendo Biondello) - Vem aqui, corda de anos. Chama-se Trânio.
forca! ProrEssoR: Fora! fora, asno furioso! O nome dele
BronDELLO: Penso que tenho liberdade de é Lucêncio; é o meu único filho e herdeiro de tudo o
movimentos, meu caro senhor. que possuo, eu signior Vicêncio.
Vicêncio : Vinde cá, meu velhaco. Então, já vos Vicêncio : Lucêncio! Oh! ele assassinou o amo!
esquecestes de quem eu sou? Prendei-o! Em nome do doge, intimo-vos a prendê-
BronDELLO Se já me esqueci de vós? Não, senhor; lo! Oh meu filho, meu filho! Celerado, revela-me
não poderia ter-me esquecido de vós, porque nunca onde está meu filho Lucêncio.
vos vi em toda a vida. TrÂnio - Chamai um oficial de justiça.
Vicêncio : Como, notório biltre! Nunca viste o pai (Sai um dos criados e volta com
de teu amo, nunca viste Vicêncio? um oficial de justiça.)
BronDELLO : Quem? meu velho e venerando amo? Levai este louco para a prisão. Pai Batista, ficais
Claro que já o vi; ali está ele, a contemplar-nos incumbido de apresentá-lo às autoridades.
daquela janela. Vicêncio : Vão levar-me para a prisão!
Vicêncio - Ah! é assim? Grêmio : Esperai um pouco, oficial; ele não irá preso.
(Bate em Biondello.) Barisra - Nada de conversas, signior Grêmio; digo-
BronDELLO - Socorro! socorro! Aqui está um louco vos que irá para a prisão.
que quer matar-me. Grêmio - Acautelai-vos, signior Batista, para não
(Sai) serdes ludibriado neste negócio. Atrevo-me a jurar
ProrEssoR: Socorro, filho! Socorro, signior que este é o verdadeiro Vicêncio.
Batista! ProFESssOR Jura-o, se fores capaz.
(Retira-se da janela.) Grêmio : Não, não me atrevo a fazê-lo.
PerruccHio : Quetinha, vamos ficar de lado, para Trânio : Farias melhor dizendo que eu não sou
vermos o fim desta controvérsia. Lucêncio.
(Entram o professor, Batista, Trânio e criados.) Grêmio : Sim, conheço-te como signior Lucêncio.
Trânio - Senhor, quem sois para bater em meu Barisra : Levai esse velho tonto! À prisão com ele!
criado? VicÊncio : É assim que se maltrata um estrangeiro.
Vicêncio * Quem sou eu, senhor? Não; eu é Oh facínora monstruoso!
quem pergunto: quem sois vós, senhor? Oh deuses (Volta Biondello com Lucêncio e Bianca.)
imortais! Oh velhaco aparamentado! De casaco de BronDELLO : Estamos desgraçados. Ali está
seda, calça de veludo, capa escarlate e chapéu de ele, renegai-o; jurai que não o conheceis, se não
ponta! Estou arruinado! estou animado! Enquanto estaremos perdidos.
em casa eu faço o papel de marido econômico, meu Lucêncio (ajoelhando-se) *
filho e meu criado esbanjam tudo na universidade. Pai, perdoa-me.
Trânio - E essa! Que foi que houve? Vrcêncio: Vives, caro filho?
Barista Será que é louco? (Biondello, Trânio e o professor saem correndo.)
Trânio : Senhor, pelos trajes dais-me a impressão Branca (ajoelhando-se) *
de um cavalheiro idoso e de respeito; mas vossa Perdoai-me, pai querido.
linguagem é de louco. Ora, senhor, em que vos Batista: Que fizeste?
importa a vós se eu uso ou deixo de usar pérolas e Onde ficou Lucêncio?
ouro? Agradeço isso ao meu bom pai, que me faculta Lucêncio Aqui está ele,
os meios para sustentar-me. o verdadeiro filho do Vicêncio
Vicêncio - Teu pai? Oh celerado! ele não passava de verdadeiro, que pelo casamento
um fabricante de velas de navio, de Bérgamo. fez dele a tua filha, enquanto os olhos
Barisra - Estais enganado, senhor; estais enganado, uns mistificadores te enganavam.

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Grêmio : Houve malícia refinada para Barista * Eu também,


nos enganar a todos. para sondar esta velhacaria.
Vicêncio E onde se acha (Sai.)
esse patife, Trânio, que a ousadia Lucêncio : Não te amofines, Bianca; ele concorda.
teve de resistir-me e de insultar-me? (Saem Lucêncio e Bianca.)
Barista - Dizei-me agora: este não é meu Câmbio? Grêmio - Malogrou-se meu plano; só me resta
Branca: Câmbio, mas em Lucêncio transformado. pegar o bocado nesta festa.
Lucêncio - É milagre do amor. O amor de Bianca (Sai.)
me fez tomar a posição de Trânio (Petrucchio e Catarina vêm para a frente.)
enquanto meu papel ele assumia CATARINA * Marido, vamos ver como tudo isto vai
no meio de vós outros. Finalmente acabar.
consegui alcançar com alegria PerruccHio : Vamos, Quetinha; mas primeiro
o porto ambicionado da ventura. dá-me um beijo.
Tudo o que Trânio fez foi por minha ordem. CATARINA * Como! No meio da rua?
Perdoai-lhe, caro pai, a meu pedido. PerruccHio : Como! Estás com vergonha de mim?
Vicêncio - Hei de cortar o nariz daquele velhaco, CATARINA: De ti por Deus que não, mas de beijar-te.
que quis mandar-me para a prisão. PerTRUCCHIO *
Barista (a Lucêncio) : Mas dizei-me uma coisa, Então voltamos já. Rapaz, vira o cavalo.
senhor: desposastes minha filha sem pedir o meu CATARINA*
consentimento? Não; dou-te um beijo; dou. Fiquemos;já não falo.
Vicêncio : Trangúilizai-vos, Batista, que nós vos PerTRUCCHIO *
deixaremos satisfeito; mas vou já para dentro, tomar Não está bem assim? Para se entrar na linha
vingança desta picardia. nunca é tarde demais, ensina-me Quetinha.
(Sai) (Saem.)

Ato V - Cena Il
Um quarto em casa de Lucêncio. PerRUCCHIO * Sempre a mesma
Está preparado um banquete. Entram Batista, Vicêncio, coisa: sentai-vos e comei! Sentai-vos
Grêmio, o professor, Lucêncio, Bianca, Petrucchio, e comei!
Catarina, Hortênsio e a vitíva. Barisra : São doçuras cá de Pádua,
Trânio, Biondello, Grimio e outros criados servem. filho Petrucchio.
Horrênsio: Em Pádua tudo é doce.
Lucêncio : Até que enfim as notas dissonantes PerRUccHIO - Acho agradável o que é doce em
acordes se tornaram. Foi-se a guerra Pádua.
selvagem, foi-se enfim; chegou a hora HorrêÊnsio : Desejo, para nosso bem, que seja
de rir do grande medo, dos perigos verdade o que dizeis.
por que todos passamos. Minha bela PeTRUCCHIO * Por minha vida,
Bianca, meu pai saúda gentilmente Hortênsio está com medo da viúva.
que com o teu vou fazer a mesma coisa. Viúva : Não tenho medo de ninguém, afirmo-o.
Irmão Petrucchio, mana Catarina, PerruccHIO * Sois muito espirituosa; no entretanto
e tu, Hortênsio, com tua amável viúva, não apanhastes o sentido. Disse,
dai lugar à alegria; sois bem-vindos tão-somente, que Hortênsio vos temia.
a minha casa. Serve este banquete Vrúva- Quem tem vertigens diz que o mundo roda.
para remate do festim de há pouco. PerruccHio : Resposta bem redonda.
Sentai-vos, por obséquio, para à larga CATARINA* Que sentido,
falarmos e comermos. senhora, emprestais a isso?

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À MEGERA DOMADA

Viúva: Que eu concebo que em grande aperto a corça vos traz sempre.
graças a ele. Barisra- Oh, oh, Petrucchio! Trânio tem mão certa.
PerruccHio * Como assim! Concebe Lucêncio : Agradeço a paulada, meu bom Trânio.
graças a mim? Que diz Hortênsio disso? Horrênsio : Confessai! confessai! Fostes tocado?
Horrênsio - Minha viúva disse apenas que ela PETRUCCHIO*
concebe a explicação. Sim, confesso: arranhou-me. Mas havendo
PETRUCCHIO * Bem consertado. passado de raspão por mim o dardo,
Bondosa viúva, ele merece um beijo. aposto dez contra um em como fostes
CATARINA* atingido de cheio.
“Quem tem vertigens diz que o mundo roda.” BaristA: Mas falando,
Explicai-me, vos peço, essa sentença. filho Petrucchio, seriamente: penso
Vrúva: Que tendo vosso esposo uma megera, que te coube a megera mais rilhenta.
julga a mulher do próximo uma fera. PerRrUccHIO:
Agora conheceis o meu sentido. Bem; não direi que não. Mas como prova
CATARINA: Sentido baixo. cada um de nós mande chamar a esposa.
Vrúva Para vós foi feito. A que se revelar mais obediente,
CATARINA: Sim, para vos ouvir tornei-me baixa. solícita acorrendo ao seu chamado,
PerruccHio : Pega, Quetinha! o prêmio ganhará que instituirmos.
Horrênsio : Pega, viúva! HorrêÊnsio -
PerruccHio - Quetinha vai ficar por cima; jogo Muito bem. E o valor?
cem marcos. Lucêncio * Vinte coroas.
Horrênsio : Não; essa função é minha. PerruccHio : Vinte coroas? Isso arriscaria
PerruccHio : Falou o funcionário. Aqui! Saúde! no meu falcão ou no meu cão de caça.
(Bebe à saude de Hortênsio.) Mas vinte vezes mais, em minha esposa.
BaristaA : Que pensa Grêmio desta gente alegre? Lucêncio -
Grêmio : Dão marradas valentes, podeis crer-me. Então, cem.
Branca: Cabeças e marradas! Poderia Horrênsio : Muito bem.
replicar-vos alguém de fino espírito PerRruccHIO - Está fechado.
que essa vossa cabeça precisara, HorTÊnsio :
para tanto, de chifres.
Quem começa?
Vicêncio * Despertou-vos,
Lucêncio: Eu, decerto. Vai, Biondello;
senhora noiva, a frase?
dize a tua ama que eu a estou chamando.
BraNcA: Sim, sem medo,
BronDELLO : Perfeitamente.
porém, causar-me. Vou dormir de novo.
(Sai)
PerruccHio : Isso é impossível; tendo começado,
BaristTA* Filho, fico sendo
tereis de suportar algumas farpas.
teu parceiro na aposta, meio a meio,
Branca: Serei pássaro, então? Vou para o bosque;
em como Bianca vem.
armai vosso arco para perseguir-me.
Lucêncio - Não quero sócio;
Sois todos mui bem-vindos.
quero ganhar tudo o que é meu, sozinho.
(Saem Bianca, Catarina e a vitíva.)
(Volta Biondello.)
PerrUccHIO - Antecipou-me; signior Trânio, o
Então, que novidades?
pássaro que quisestes pegar saiu voando. Bebo à
BroNDELLO * À patroa,
saúde dos que erram o alvo.
Trânio - Oh meu Senhor! Lucêncio fez comigo senhor, mandou dizer que está ocupada
como o galgo que corre atrás da caça, e que não pode vir.
mas só a apanha para o dono dele. PerruccHio: | Como! Ocupada?
PerruccHIo : Boa imagem, porém canina em parte. Não pode vir? Então isso é resposta?
TRânio : Foi bom, senhor, terdes saído à caça Grêmio : E bem gentil. Pedi a Deus, senhor,
sem companheiro; porém dizem todos que muito pior a vossa não vos mande.

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PerruccHio - Espero uma melhor. PerruccHio - Quero ganhar ainda melhor a aposta:
HorTÊNnsio - Corre, maroto, ela irá dar mais provas de obediência,
e à minha esposa roga que me venha da recente virtude e deferência.
Ney neste instante. Fa aí vem vindo e traz vossas esposas
(Sai Biondello.) renitentes, vencidas pela sua
PerruccHio: Oh,oh! rogar à esposa! persuasão feminina.
Assim é que ela não vem mesmo. (Entra Catarina com Bianca e a vitíva.)
HorTênsio - Temo, Catarina
caro senhor, que a vossa não se deixe não te assenta essa touca; joga-a fora;
dobrar a vossos rogos. calca aos pés semelhante bugiaria!
(Volta Biondello.) (Catarina arranca a touca e joga-a longe.)
Que disse ela, Vrúva - Oh Deus! não quero ter motivo, nunca,
Biondello? Minha esposa, onde se encontra? de lamentar-me, enquanto rebaixada
BroNDELLO - não me vir a tão néscia dependência.
Disse que certamente estais brincando. Branca Fora! fora! Que estúpida obediência!
Não quer vir; se quiserdes, ide vê-la. Lucêncio - Antes fosse também assim estúpida
PerruccHio : De mal para pior. Oh! não quer vir! vossa obediência, que a sabedoria
Oh! que vergonha! Absurdo! Intolerável! da vossa, bela Bianca, desde a ceia
Grúmio, ide procurar vossa patroa me custou tão-somente cem coroas.
e ordenai-lhe que venha aqui falar-me. Branca Supinamente tolo vos mostrastes,
(Sai Grúmio.) apostando sobre ela.
HoRTÊNSIO : Já sei sua resposta. PETRUCCHIO - Catarina,
PerrRUccHIO- Qual? dou-te a incumbência de mostrar a essas
HorTÊnsio - Não vem. esposas cabeçudas que deveres
PerruccHio : Tanto pior a minha sorte; e basta. as prende aos seus senhores e maridos.
(Volta Catarina.) Viúva - Ora! Ora! é brincadeira; não queremos
Barista : Ah! por Nossa Senhora! Eis Catarina. ouvir sermões.
CATARINA: Senhor, qual é vossa vontade, para PerruccHio : Estou mandando; vamos!
mandardes me chamar? Principia por ela.
PerruccHIO - Onde se encontram Viúva Não, não quero;
vossa irmã e a senhora aqui de Hortênsio? não fará tal.
CATARINA: Estão tagarelando ao pé do fogo. PerruccHio : Fará, que estou mandando,
PerruccHio : Vai buscá-las; no caso de renuírem, e a começar por ela.
à força as traze para seus maridos. CATARINA: Ora, que absurdo!
Vai logo, digo, e traze-as sem demora. Desenruga essa fronte carrancuda
(Sai Catarina.) e deixa de lançar esses olhares
Lucêncio : Se falais em milagres, eis um deles. desdenhosos que vão bater em cheio
HoRTÊNsIO : É certo; só não sei o que anuncia. em teu senhor, teu Rei, teu soberano.
PerruccHIO * Ora essa! Paz, amor, vida trangúila, Isso te mancha a formosura como
máxima respeitada e uma legítima no prado faz a geada, teu bom nome
supremacia. Em suma: tudo quanto deixa abatido como a tempestade
torna doce e feliz nossa existência. sacode os mais mimosos botõezinhos,
BarisTa: Sejas muito feliz, caro Petrucchio. sem nunca ser gracioso ou conveniente.
Ganhaste a aposta; acrescentar resolvo A mulher irritada é como fonte
sobre teu lucro vinte mil coroas, remexida: limbosa, repulsiva,
um novo dote de uma nova filha. privada da beleza; e assim mantendo-se,
Tão mudada ela está, que parece outra. não há ninguém, por mais que tenha sede,

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À MEGERA DOMADA

que se atreva a encostar os lábios nela, que nossas qualidades delicadas


a sorver uma gota. Teu marido e nossos corações de acordo fiquem
é teu senhor, teu guardião, tua vida, como nosso hábito externo? Deixai disso,
teu chefe e soberano. É ele que cuida vermezinhos teimosos e impotentes!
de ti; para manter-te, arrisca a vida, O caráter já tive assim tão duro,
com trabalho penoso em mar e em terra; o coração tão grande quanto o vosso,
nas noites borrascosas, acordado; e mais razões, talvez, para palavra
de dia, suportando o frio, enquanto revidar com palavra, picardia
dormes em casa no teu leito quente, com picardia. Mas agora vejo
tranquila e bem segura. Não te pede que nossas lanças são de palha, apenas.
outro tributo além de teu afeto, Nossa força é fraqueza; somos criança
mui sincera obediência e rosto alegre, que muito ambicionando logo cansa.
paga mesquinha de tão grande dívida. Abatendo o furor nos exaltamos.
A submissão que o servo deve ao príncipe Ponde a mão sob os pés de vossos amos.
é a que a mulher ao seu marido deve. Caso o meu queira, a minha já está pronta;
E se ela se mostrar teimosa, indócil, para mim não consiste nisso afronta.
intratável, azeda, rebelada PeTRUCCHIO
contra as suas razoáveis exigências, Oh Quetinha gentil! vem dar-me um beijo.
que mais será senão por isso abjeta Lucêncio - Vai saindo, taful! Ganhaste o queijo.
traidora, sim, traidora do seu próprio Vicêncio - Como é agradável uma criança dócil!
devotado senhor? Tenho vergonha Lucêncio - Como é terrível a mulher indócil!
de ver que são tão simples as mulheres, PerruccHio : Vamos dormir, Quetinha; três casados
para fazerem guerra onde deveram vejo aqui, porém dois bem amarrados.
de joelhos pedir paz ou pretenderem A vós, boa noite; o vencedor fui eu,
dominar, dirigir, mandar em tudo (a Lucêncio.)
quando servir lhes cumpre tão-somente, muito embora ganhásseis o himeneu.
obedecer e amar? Por que motivo (Saem Petrucchio e Catarina.)
temos o corpo delicado e fraco, Horrênsio : Vai saindo; domaste uma megera.
pouco afeito aos trabalhos e experiências Lucêncio - É de admirar, pois furiosa ela era.
do mundo, se não for apenas para (Saem.)
Introdução (David Bevington)

Se por “comédia romântica” exprimimos uma história de amor na qual os


amantes superam os obstáculos colocados pelos seus pais, ciúmes, separações e perigos
para serem finalmente unidos na felicidade do casamento, então Os Dois Cavalheiros de
Verona é, talvez, a primeira de Shakespeare. Apesar de A Comédia dos Erros ser uma
comédia anterior, ela é uma farsa de identidade equivocada, com somente um interesse
secundário no casamento, enquanto Trabalhos de Amor Perdidos é uma invenção
cortesã terminando com o adiamento de todos os casamentos. Nenhuma menção a Os
Dois Cavalheiros de Verona ocorre até ela ser mencionada por Francis Meres, em
Palladis Tamia: Wit´s Treasury, de 1598, mas a peça é, frequentemente, datada por
volta de 1590-1594 com base no estilo: dísticos rimados, versos com o significado
concluindo linha à linha [end-stopped], passagens de excessivo combate de argúcias,
entre outras coisas similares. A Megera Domada (cerca de 1592-1594) é frequentemente
datada um pouco após que Os Dois Cavalheiros de Verona, somente por causa que seu
enredo duplo é mais complexo e suas explorações dos perigos e recompensas da corte
mais desafiadoras. De qualquer forma, Os Dois Cavalheiros de Verona ajuda a definir,
em um estágio anterior, o gênero das mais conhecidas comédias “festivas” de
Shakespeare, de Sonho de uma Noite de Verão a Noite de Reis.

Os Dois Cavalheiros de Verona é, também, o aprendizado de Shakespeare na


ficção romântica da Itália e outros países da Europa meridional, de onde ele
posteriormente derivará tantos enredos de amor ameaçado. Ele localiza sua história na
Itália e dá a alguns de seus personagens nomes Italianos. Ele usa os dispositivos
convencionais do enredo da ficção romântica: a inconstância no amor e na amizade, o
disfarce da heroína como um pajem, o escutar ao acaso [overhearing] os falsos
juramentos, banimento, abandono, a captura por bandidos, e assim por diante.
Praticamente todos os personagens têm um ancestral reconhecível, não somente na
ficção continental, mas no drama neoclássico também: Lucetta é a companhia
convencional da heroína, Thurio é o rico mas indesejado cortejador rival (o pantalão),
Antônio e o Duque são pais tipicamente resolutos que se opõem ao casamento de seus
filhos, Speed e Lance são, no mínimo, supostos servos hábeis que entregam às
mensagens e arranjam encontros, e os quatro jovens amantes são os protagonistas
românticos.

Mesmo nesse aprendizado precoce, de fato, Shakespeare parte da norma


neoclássica de suas fontes continentais. O cenário permanece nominalmente Italiano,
mas o tom é, com frequência, entusiasticamente Inglês, e a atitude de Shakespeare em
relação a seus modelos românticos beira, ocasionalmente, o irreverente. Lucetta é uma
verdadeira amiga de Júlia e uma conselheira virtuosa no amor; o gracejo em torno dela
ser uma “cafetina” ou uma intermediária (1.2.41) relembra-nos quão diferente de uma
governante [duenna] indecente ela realmente é. Thurio, Antônio e o Duque são todos
retratados com tal paciência amigável que eles parecem, às vezes, inadequadamente
motivados como oponentes da felicidade romântica. Sobretudo, Speed e Lance
deixaram seus papéis tradicionais de manipuladores cômicos para tornarem-se palhaços
de vaudeville.

Ademais, as próprias convenções de amor e amizade são apresentadas de uma


maneira que se lança sobre essas convenções uma luz improvável. O que fazemos com
o inconstante Proteus, que rejeita sua fiel Júlia no momento em que está longe dela,
tentando, em vez disso, ganhar a bela dama de seu melhor amigo Valentine, informar o
Duque dos planos de Valentine de fugir com Silvia, e então tentar um assalto violento à
castidade de Silvia? Que tipo de herói romântico é esse, e por que ele deve ser
recompensado ao receber o perdão e ser restaurado a sua Júlia? Mais enigmático de
tudo, é credível que Valentine deve responder a toda essa perfídia ao oferecer renunciar
Silvia a Proteus? Da mesma forma, não é absurdo que os fora-da-lei na floresta próxima
de Mântua tornem-se cavalheiros no exílio e que eles devem oferecer o comando do seu
grupo a Valentine, a quem eles acabaram de capturar? O perdão do Duque a sua filha
fugitiva Silvia não é repentino e não convincente? Esses problemas, que preocuparam
muitos leitores da peça (apesar deles parecerem menos formidáveis aos espectadores de
uma produção real), podem, talvez, ser melhor analisados de duas formas: como um
resultado da combinação de duas fontes com convenções distintas por Shakespeare,
assim sujeitando àquelas convenções a uma perspectiva irônica divertida, e como um
resultado do interesse consciente de Shakespeare no tema do perdão não esperado para
seu protagonista errante.

Usando um dispositivo de enredo que tornar-se-ia costumeiro em suas comédias


românticas, Shakespeare combina duas fontes ficcionais e, desse modo, instala uma
tensão dramática entre as duas. Sua fonte principal parece ter sido Diana, um romance
pastoral popular em Espanhol, do Português Jorge de Montemayor (1520-1561). Sua
heroína, Felismena (correspondente de Júlia), é cortejada por Don Felix (Proteus), cujo
pai (Antônio) desaprova a união e envia Don Félix para longe da corte. Felismena,
seguindo-o disfarçada como pajem, para em uma hospedaria e é convidada pelo
Anfitrião a ouvir uma música, ao que ela ouve Don Félix clamando o amor a uma nova
dama, Célia (Sílvia). Nesse ponto, a semelhança entre Diana e a peça de Shakespeare
acaba. Mesmo até aqui, apesar de várias semelhanças admiráveis, a história não provê
uma contraparte para Valentine, o melhor amigo de Proteus e o fiel amante de Sílvia. O
romance de Montemayor preocupa-se, primariamente, com a inconstância do amor.

Para o motivo da verdadeira amizade, Shakespeare pode ter se voltado para a


história de Titus e Gisippus, como contada por Sir Thomas Elyot em The Governor
(1531). Aqui Gisippus, ao aprender que seu caro amigo Titus apaixonou-se pela sua
amada, não somente renuncia à dama a Titus, mas também barganha a ida dele para a
cama com ela, tudo sem o conhecimento da dama. O ponto dessa história, como o de
outros tratados bem-conhecidos sobre a amizade, assim como o Euphues (1578) e
Endymion (1588) de John Lyly, ou o Damon and Pythias (1565), de Richard Edward, é
que a amizade é uma forma mais alta de afeição humana do que o amor erótico, pois é
desinteressada, platonicamente pura e capaz de ensinar o altruísmo aos outros. Tal
estória de amizade perfeita não provê, entretanto, nenhuma contraparte para Júlia, a
dama abandonada por Proteus. Shakespeare encaixou organizadamente as duas
histórias, criando um quarteto de amantes de duas situações triangulares. O amante falso
da primeira história torna-se também o amigo falso da segunda – somente para ser
superado no final pela generosidade de seu verdadeiro amigo.

O problema dramático criado pela combinação dessas duas histórias é que elas
levantam diferentes expectativas. Uma é dedicada à virtude da constância no amor; a
outra, à amizade. A função última de Valentine é demonstrar verdadeira lealdade a sua
Sílvia. Sua renúncia a ela em favor de Proteus parece inconsistente com seus votos
como um amante. Por outro lado, a dupla perfídia de Proteus, em relação a seu amor a
Júlia e seu amigo Valentine, parece reproduzi-lo indigno da ação generosa que
Valentine lhe concede. O próprio nome de Proteus é sinônimo da inconstância; seu xará
na Odisseia era famoso por sua habilidade de mudar de forma à vontade. (O nome de
Valentine, por outro lado, simboliza constância no amor.) A união dos dois enredos
simultaneamente intensifica a culpa de Proteus e a magnanimidade de Valentine.

Entretanto, Shakespeare engendra uma virtude da aparente falta de credibilidade.


Primeiro, a própria implausibilidade do altruísmo de Valentine no amor e a repentina
conversão de Proteus à virtude permite a Shakespeare zombar gentilmente dos lugares-
comuns literários de suas fontes. Ao mesmo tempo, Shakespeare encontra valor sério
em seus tópicos convencionais de amor e amizade, através do dispositivo do paradoxo.
Quanto mais improváveis as ações de Valentine parecem, mais transcendentes e
maravilhosas elas acontecerão. Shakespeare prepara para o clímax de sua cena de
perdão de várias maneiras. Primeiro, ele apresenta Proteus como uma pessoa
essencialmente nobre que rebaixou-se através de uma falta única. Proteus é bem
nascido, bem-sucedido e belo. A digna Júlia o ama por suas qualidades, e ele responde
com sinceridade e paixão. Ele é igualmente entusiasta como amigo de Valentine.
Somente quando ele vê Sílvia é que Proteus torna-se impotente, “deslumbrado”
(2.4.207). Ele não pode ser totalmente culpado por ser vencido pela paixão, pois os
outros amantes não são menos obedientes aos comandos do amor. De acordo com o
código de amor que infunde essa peça, o amor não pode escolher seu objeto. O destino
infeliz de Proteus é amar Sílvia. Ainda que ele deva ser responsável por suas ações e, de
fato, culpar a si mesmo pela deserção que ele conscientemente cometeu. Seu auto-ódio
aumenta conforme ele torna-se bajulador, mentiroso, traidor e, finalmente, estuprador
em potencial. Como Ângelo em Medida por Medida, Proteus é compulsivamente
motivado ao pecado repugnante, mas a escolha é, em último caso, sua. Falta o insight
psicológico das comédias posteriores – os solilóquios não criam uma atmosfera
sufocante de um pesadelo – mas o padrão de uma queda culpada continua manifesto.

Estaremos provavelmente no caminho errado se tentarmos psicanalisar


Valentine muito de perto; a escolha que ele deve fazer entre amor e amizade é mais um
debate convencional sobre um tema favorito da Renascença do que um retrato realista
do homem envolvido entre ideais conflitantes. Shakespeare não tenta conciliar o que é
absurdo sobre a repentina renúncia de Valentine da mulher que era constantemente leal
a ele e que não tinha a intenção de trocar um amor por outro como se ela fosse o objeto
de algum tipo de permuta moralista. Entretanto, a própria implausibilidade da oferta de
Valentine em renunciar à Sílvia, acentua a nobre intenção por trás do seu gesto. Nós
somos surpreendidos, mesmo comicamente surpreendidos, porque não esperamos tal
altruísmo na natureza humana; mas, se a amizade deve ser vista como a realização
suprema do espírito humano, ela deve transcender à propensão extremamente comum da
rivalidade e ingratidão. A generosidade de Valentine não é alcançada sem conflito
interior. Na cena que culmina na tentativa de estupro, a primeira reação natural dele é de
denúncia furiosa. O que muda sua mente é a profundidade e a sinceridade da confissão
de Proteus e o desejo de perdão: “Se a angústia do coração / É um resgate suficiente do
perdão, / Eu o ofereço aqui” (5.4.74-6). Valentine responde em nome da piedade e com
a sugestão do exemplo divino: “Pela penitência a cólera Eterna é apaziguada” (linha
81). Quanto mais imerecido o perdão, mais altruísta o ato daquele que perdoa. Apenas
ao conquistar seu desejo por Sílvia, Valentine pode ensinar seu amigo o altruísmo e
assim reunir todos os quatros amantes em felicidade perfeita. Os Dois Cavalheiros de
Verona é, assim, em parte uma comédia de perdão, antecipando as peças posteriores nas
quais o protagonista romântico é igualmente culpado e igualmente perdoado: Muito
Barulho por Nada, Medida por Medida, Bem Está o que Bem Acaba, Cimbelino e
outras (veja Shakespeare and the Comedy of Forgiveness, de R. G. Hunter, 1965). Os
Dois Nobres Cavalheiros, escrita muito depois (cerca de 1613) em colaboração com
John Fletcher, é um retorno sofisticado às questões de amizade e de rivalidade sexual
que são tão eminentes em Os Dois Cavalheiros de Verona.

O perdão de Proteus deve vir de Júlia e não menos do que de Valentine. Ela,
também, tem muito a perdoar; como Proteus penitentemente observa, “Ó céus! Se o
homem fosse constante / ele seria perfeito” (5.4.110-11). Júlia inicia uma linhagem de
heroínas Shakespearianas, incluindo Hero, Isabella, Helena e Imogênia, nas peças já
nomeadas, que devem similarmente curar à inconstância pela constância delas. Como
muitas heroínas Shakespearianas, Júlia é destemida, talentosa, modesta mas sagaz,
pacientemente obediente no amor e ainda reservadamente galanteadora, uma verdadeira
amiga e resistente. Disfarçada como um pajem, ela ouve a infidelidade de seu amante e,
ainda assim, nunca perde sua fé nele. Ela pacientemente entrega às mensagens de
Proteus a sua rival (como Viola em Noite de Reis) e gentilmente age como uma
consciência para seu mestre errante.

O uso de disfarce masculino por Júlia antecipa análises mais complexas, nas
comédias posteriores, da natureza ambivalente e parcialmente ilusória das diferenças
entre homem e mulher. Quando Júlia está determinada em usar um disfarce de homem
para seguir Proteus a Milão, ela e Lucetta riem perante a necessidade de Júlia amarrar
seus cabelos e vestir a si mesma com calças adornadas com tapa-sexos (2.7.39-61).
Como um menino ator está interpretando uma jovem mulher disfarçada como um jovem
homem, a graça teatral e o artifício positivamente nos convida para ver o gênero como
algo amplamente definido pela interpretação de papéis e pelas expectativas sociais. A
cena é uma reflexão divertida sobre diferentes maneiras as quais jovens mulheres e
homens apresentam a si mesmos ao mundo.

O repetido dispositivo do ouvir por acaso, como nas comédias posteriores, provê
um teste para as intenções dos protagonistas. Pensando que não estão sendo observados,
eles revelam suas verdadeiras naturezas para o melhor e o pior. Na cena brilhantemente
planejada e improvável do clímax (5.4), Proteus como um possível estuprador é ouvido
pela sua amante rejeitada e seu amigo traído. Por outro lado, Sílvia prova-se leal e casta
em qualquer momento que é observada por Júlia (disfarçada de Sebastian) ou por
Valentine nas cenas da floresta. Esse entreouvir [overhearing] sugere não somente que
os feitos bons e maus da humanidade são testemunhados, mas também que uma
providência beneficente irá proteger os virtuosos. A presença invisível de Valentine
assegurará que Sílvia seja salva do estupro e que Proteus seja prevenido de cometer um
crime de violência de fato. Como nas comédias posteriores desse tipo, o perdão é
possível porque a culpa permanece somente na intenção.

Essas resoluções dos conflitos, quase absurdas mas felizes, acontecem num local
perto da floresta de Mântua, o primeiro dos que Northrop Frye chama de “mundos
verdes” de Shakespeare. (English Institute Essays 1948, pp. 58-73). Apesar de
apresentada de forma incompleta, essa floresta antecipa a Floresta de Arden e outras
paisagens silvestres restauradoras. Seus habitantes são homens banidos protestando à
injustiça da sociedade na corte ou fugitivos amores inclementes. Valentine aprende a
preferir “às madeiras não-frequentadas” do que as “cidades de pessoas prósperas”. Sua
“facção selvagem” de fora-da-lei desiste de atacar “mulheres tolas ou pobres
passageiros” e apropriadamente jura “Pelo nu escalpo do frei gordo de Robin Hood”
(5.4.2-3; 4.1.36-7). Os fora-da-lei são charmosamente adequados aos seus papéis de
ameaçarem e então reunirem os amantes, providencialmente capturando Sílvia no
momento em que ela está a caminho para encontrar Valentine. A ações deles são
altamente improváveis, mas, então, o mesmo pode ser dito do perdão de Valentine a
Proteus e da reconciliação repentina do Duque com seu esperado genro, Valentine.
Como Arden, essa floresta é um local estranho, cujas mudanças no coração são
ocorrências esperadas. A aura de improbabilidade pode também parcialmente explicar o
descuido da peça em relação às distinções sociais e às realidades da geografia: o Duque
é, às vezes, chamado de Imperador, e em um momento Valentine navega de Verona a
Milão (ambas localizadas no interior).

A comédia dos bufões Lance e Speed representa uma função similar àquela da
improbabilidade romântica, ao reduzir o artifício e o melodrama da história de amor.
Como podemos nos preocupar com o banimento de Valentine quando Lance expressa,
“Senhor, há uma proclamação que o Sr. está desaparecido” [trocadilho entre banished e
vanished] (3.1.217)? Ou como podemos afligir-nos perante a corte de Proteus a Sílvia
quando o símbolo de amor que ele envia a ela é transformado no cão malcheiroso de
Lance? Esse tipo de anticlímax absurdo ocorre a todo momento. O primeiro solilóquio
de Lance, sobre a recusa do cão em lamentar a partida deles de Verona (2.3), é um
exemplo brilhante do que poderíamos chamar de vaudeville ou piada cômica de stand-
up, mas ela também comenta sobre a cena imediatamente precedente do adeus choroso
de Proteus a Júlia. A amizade de Lance e Speed e, especialmente sua amizade a seu cão,
deliciosamente blasfema o interesse sério da peça na verdadeira amizade. Numa das
cenas mais engraçadas de Lance (4.4.1-38), ele descreve como ele desinteressadamente
tomou para si a punição do cão ao urinar na saia de baixo de Sílvia. Similarmente, o
espetáculo de Lance apaixonado, catalogando às virtudes e vícios de sua amante,
garante-nos profundamente algo contra um envolvimento muito profundo com os
perigos de Cupido. A peça continuamente relembra-nos da loucura do amor, sem
renegar suas esquisitas alegrias, ou seu mais alto potencial para o altruísmo.
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Personagens
O Duque pe MirÃo, pai de Sílvia. HoTELEIRO, em cuja casa Júlia se hospeda em
Milão.
VALENTINO : ; Proscritos.
os dois cavalheiros.
ProTEU Júzia, amada de Proteu.
SíLvia, amada de Valentino.
ANTÔNIO, pai de Proteu. Lucera, criada de Júlia.
Tório, rival grotesco de Valentino. Criados, músicos.
EcLAMoRr, companheiro de Sílvia, em sua fuga.
SrEED, bufão, criado de Valentino. Cena
Launce, idem de Proteu. Verona; Milão; as fronteiras de Mântua.
PANTINO, servidor de Antônio.
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Ato É Cenal
Verona. Uma praça. de alegria por vinte longas noites,
Entram Valentino e Proteu. tediosas, cansativas, de vigílias.
Quando ganhais, o ganho é problemático;
VALENTINO * Não prossigas querendo persuadir-me, se perdeis, adquiris tão-só trabalhos.
Proteu apaixonado. A mocidade Em resumo: é comprar tolice, apenas,
que em casa passa o tempo, sempre espírito com a razão; ou melhor, se o preferirdes:
caseiro manifesta. Se não fosse ser vencida a razão pela tolice.
as cadeias do amor acorrentarem ProTEU Ássim, por vossa dedução, chamais-me
“teus dias juvenis aos olhos ternos de rematado louco.
* da amada que distingues, eu instara VaLentINO* | Tenho muito
porque comigo fosses, para vermos receio, assim, por vossa dedução,
juntos as maravilhas do universo, que é o que venhais a ser.
em vez de, sem nenhum proveito, em casa ProTEU* Lançais censuras
te deixares ficar, gastando a flórida ao amor; eu, porém, não sou o amor.
juventude num ócio indiferente. VALENTINO - O amor é vosso mestre e vos domina.
Mas já que amas, almejo-te a doçura À meu ver, quem se deixa de tal modo
que me proporcionara igual ventura. dominar por um louco, não merece
ProreU : Já vais, querido Valentino? Adeus! ser incluído entre as pessoas sábias.
Pensa no teu Proteu, sempre que vires ProTEU-
algo digno de nota em tuas viagens. Lê-se, no entanto, que os botões fragrantes
Faze de mim teu companheiro em tudo dão abrigo, por vezes, a lagartas;
quanto achares de bom; e nos perigos — o amor devorador, de igual maneira,
se em perigos te vires, porventura — demora nos espíritos sublimes.
o agravo a minhas preces recomenda. VALENTINO
Ser-te-ei intercessor, meu Valentino. Lê-se, também, que assim como os precoces
VALENTINO" botões pelas lagartas são roídos
Sobre um livro de amor farás as preces? antes de florescerem, os mais tenros
ProTEU Sim, sobre um livro a que dedique amor. entendimentos ficam transformados
VALENTINO * pelo amor em loucura rematada;
De um grande amor alguma história tola: fanados em botão, a perder vêm
como Leandro o Helesponto atravessou. todo o frescor em plena primavera
ProrEU: Profunda história de um profundo amor, e as esperanças de um futuro opimo.
que lhe chegava acima dos sapatos. Mas, por que perder tempo em dar conselhos
VALENTINO * É muito certo, porque o amor vos bate a um partidário da paixão estulta?
muito acima das botas; no entretanto, Adeus, mais uma vez; antecedeu-me
jamais atravessastes o Helesponto. meu pai para levar-me para bordo.
Proreu : Muito acima das botas? Há exagero; Proreu - Quero, também, fazer-te companhia,
não rias do meu caso. meu Valentino.
VALENTINO * Não, que pouco VALENTINO“ Não, caro Proteu,
virias a lucrar. convém nos despedirmos aqui mesmo.
Proreu: De que maneira? Para Milão me escrevas, relatando-me
VALENTINO Porque amar é comprar escárnio à custa teus êxitos no amor e as novidades
de gemidos, trocar olhares tímidos que houver na ausência de teu caro amigo.
por suspiros profundos, um momento Visitar-te-ei também com minhas cartas.

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Proreu : Em Milão te sorriam mil venturas. Proreu : Mas dize-me uma coisa: entregaste minha
VALENTINO" carta a Júlia?
Como a vós cá na pátria. E assim, adeus. SPEED - Perfeitamente, senhor; eu, um carneiro
(Sai) perdido, entreguei vossa carta a uma ovelha
ProreU Atrás da honra ele vai; eu, só do amor. enfeitada; e ela, a ovelha enfeitada, nada deu ao
Deixa os amigos, para lhes dar ansa carneirinho perdido, pelo trabalho de levar-lha.
de se orgulharem dele; eu a mim próprio Proreu : Não há lugar neste pasto para tantos
deixo amigos e o mais, só pelo amor. carneiros.
À causa, Júlia, és tudo dessa mudança; SPEED : Se o terreno está sobrecarregado, fareis
abandonar fizeste-me os estudos, melhor em prendê-la.
perder tempo, guerrear os bons conselhos, ProTEU - Estais vos desviando do caminho direito,
ver com desdém o mundo, o coração senhor; eu faria melhor em vos meter no redil.
débil deixar de meditar em vão. SpEED - Com uma boa rede é que jamais eu me
(Entra Speed.) resolveria a levar vossa carta.
SrEED * Meu bom senhor Proteu, Deus vos ampare. Proreu : Compreendestes mal: não falei em rede,
Não vistes o meu amo? mas em redil.
ProTEU- Neste instante SPEED"
foi ele para o bote de Milão. Rede ou redil, me deixara em estado de não fazer nada.
SPEED * Aposto vinte contra um em como Como entregar a missiva de vossa gentil namorada?
já se acha ele no bote. Assim, perdendo-o, Proreu - Mas, que disse ela, afinal? (Speed sacode a
fiz o papel de bode ou de carneiro. cabeça.) Não disse nada?
ProTEU Sim, perde-se um carneiro facilmente, SpEED - Houve engano da vossa parte, senhor;
mal do rebanho o bom pastor se ausente. perguntastes-me se ela havia respondido nada,
SPEED * Pelo jeito, quereis dizer que meu mestre é e eu fiz sinal afirmativo, sem querer confirmar
pastor e eu sou carneiro? vossa pergunta. Mas já que destes semelhante
Proreu- De fato. interpretação à minha resposta, ficai com ela pelo
SPEED * Nesse caso, são dele os meus chifres, quer vosso trabalho.
eu esteja acordado, quer a dormir. Proreu : Não; ficai vós com ela, pelo carreto da
Proreu Resposta boba, muito própria de carneiro. carta.
SPEED * Que vem provar que eu sou, realmente, um SpEED * Vejo, agora, que vossa incumbência não me foi
carneiro. pesada.
ProreU : Isso mesmo; e teu mestre, pastor. Proreu * Que quereis dizer com isso, senhor?
SrEED * Posso demonstrar-vos o contrário. SpgED - É muito simples, senhor: é que, havendo
ProreUu : Não será fácil fazê-lo porque disponho de entregue a carta, conforme me ordenastes, voltei sem
um argumento decisivo. nada ter recebido pelo meu trabalho.
SPEED * O pastor é que procura o carneiro; não é o Proreu Realmente, tens o espírito muito rápido.
carneiro que procura o pastor. Ora, eu é que procuro SPEED * Apesar do quê não pode alcançar vossa
meu amo, não é meu amo que me procura. Logo, bolsa lerda.
não sou carneiro. Proreu - Vamos, vamos; abri-vos logo em
ProrTEU: O carneiro segue o pastor por causa explicações: que disse ela?
da forragem; O pastor não segue o carneiro por SPEED * Abri primeiro a bolsa, para que o dinheiro e
causa de alimento. Segues a teu amo por causa do as notícias sejam dados a um só tempo.
ordenado, não seguindo ele a ti pelo mesmo motivo: ProreU : Muito bem, senhor, aqui tendes pelo
logo, és carneiro, vosso trabalho. (Dá-lhe dinheiro.) Que disse ela?
SPEED * Mais um argumento dessa força, e ver-me-ei SPEED * Para ser franco, senhor, penso que mui
obrigado a gritar: bé-é! dificilmente podereis conquistá-la.

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Os Dois CAVALHEIROS DE VERONA

Proreu : Como pudeste obter tantas informações? xelim. Mas, como retribuição, daqui por diante sede
SPEED * Não é bem assim, senhor: não obtive dela vós mesmo o portador de vossas cartas. E com isto,
coisa alguma, nem sequer um ducado por lhe haver senhor, hei de vos recomendar ao meu amo.
entregue a carta que lhe mandastes. Por ter sido ela Proreu : Vai pôr a salvo o barco de teu amo,
dura para com o portador de vossos sentimentos que naufragar não há de, enquanto a bordo
é que eu receio que se mostre igualmente dura te encontrares, fadado, como te achas,
convosco, por lhos terdes revelado. Como presentes, a morrer morte seca numa praia.
só deveis dar-lhe pedras, por ser ela tão dura quanto (Sai Speed.)
o aço. Vou procurar um portador mais digno.
Proreu: Como! Não disse nada? Temo que a minha Júlia não tivesse
SpEED - Não; nem mesmo: “Toma isto pelo teu dado importância à carta, por ter sido
trabalho”. Mas quanto a vós, pretendo proclamar esta levada por tão vil correio.
a vossa generosidade, por me haverdes dado meio (Sai.)

Ato T- Cena Il
O mesmo. O jardim da casa de Fúlia. JúLia - Assim, és de opinião que eu jogar deva
Entram Júlia e Luceta. sobre ele o peso do meu grande amor?
LucerTa- Se não vos agradar jogá-lo fora.
JúLia - Luceta, estamos sós; fala-me franco: Józra - No entanto, ele é o que menos me corteja.
és de opinião que eu devo apaixonar-me? Lucera : Mas de todos os vossos pretendentes,
LuceTA Sim, no caso de serdes cautelosa. é o que mais vos exalça.
JúLia : Da turba de fidalgos que não cessam Jócia: Seu mutismo
de me fazer a corte, qual presumes não vai bem com amor muito acendrado.
que mais se possa impor ao meu afeto? Lucera - O fogo oculto lavra com mais força.
Lucera * Repeti, por obséquio, o nome deles, JúLia - Não pode amar quem não revela amor.
que, de acordo com minha mediania, Lucera : Menos ama quem fala só de amor.
vos direi meu pensar, sem subterfúgios. Józra * Quisera conhecer-lhe os sentimentos.
JúLia : O formoso Eglamor que te pareçe? Lucera - Então lede esta carta.
Lucera : De bom nome, formoso e mui'bem posto; Jócia: “A Júlia.” Dize:
mas, sendo eu vós, não fora do meu gosto. quem a escreveu?
Jóia - E do rico Mercátio, que me dizes? LuceTA: Vê-lo-eis pelo contexto.
LuceTaA* De seu dinheiro, bem: dele, não tanto. JúLia - Quero saber! quem ta entregou?
JúLia : E do gentil Proteu, que pensas dele? LuceTa* O pajem
LuceTa- Senhor! Senhor! Que loucas somos todas! de Valentino, mas, segundo penso,
JúLia - Por que motivo exclamas a esse nome? da parte de Proteu. A vós devera
Lucera- Perdão, cara senhora, mas sentira-me ter sido entregue. Vi-o de corrida.
envergonhada, sendo tão indigna, Perdoai-me por ter sido intrometida.
se a emitir opinião eu me atrevesse Jóia - Pela minha modéstia, incomparável
acerca de um fidalgo desse porte. alcoviteira! Imaginais que eu leio
Jóia - Por que só de Proteu não dizes nada? cartas apaixonadas? Que eu podia
Lucera Pois bem: ele é o melhor entre os melhores. conspirar contra a minha mocidade?
JóLia - Vossas razões? Ciladas preparar-lhe? Podeis crer-me:
Lucera : São razões femininas, tão-somente: o ofício é primoroso, em tudo digno
penso que ele é o melhor, porque assim penso. da pessoa incumbida de exercê-lo.

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Retomai essa carta e devolvei-a; Lucera * Para pô-los em música, senhora.


se não, não quero novamente ver-nos. Dizei-me o tom, pois conheceis a toada.
Lucera* O pagamento das intercessoras JúLia * Com a música os cantai de “O amor ligeiro”.
não deverá ser ódio. Lucera * Pesam demais para tão leve toada.
Jócia- Não te vais? Jóia: É que o acompanhamento é muito grande.
LucETA'Sim, porque refletir melhor possais. Lucera * Teriam melodia, se os cantásseis.
(Saí) Jóia - Por que não vós?
JúLia- Eu deveria ter a carta. Pejo-me LuceTA* A música é muito alta
agora de chamar a portadora, para mim.
até porque a induziria à falta Jócia- Quero ouvir vossa cantiga.
pela qual a exprobrei. Ah! Como é tola! (Toma-lhe a carta.)
Sabendo-me mulher, não me ter feito Então, pequena?
ler à força a missiva! Sim, que as damas Lucera* Não saiais da toada,
dizem “não” por modéstia, na esperança que chegareis ao fim, ainda que a ária
de que o interlocutor em “sim” o mude. não me seja do agrado.
Oh! Quão impertinente é esse amor louco, Jócia- Por que causa?
que, no jeito de criança rabugenta, LuceTA* Acho-a muito incisiva.
a ama tenta arranhar, para, humildosa, JóLia- És petulante.
depois, beijar a vara do castigo. Lucera * Foi muito baixa a nota; perturbastes
Como fui incivil para Luceta, a harmonia com essa volta brusca.
mandando-a embora, quando muito grato Falta no canto a voz intermediária.
me fora tê-la agora ao lado! Que ira Jóia - Que tão baixa não seja quanto a vossa.
revelei ao fechar o sobrecenho, LucerTa * Proteu ora dispensa toda ajuda.
quando alegria interna me obrigava JúLia - Não me importunes mais com tanta prosa!
a rir o coração! Por penitência, Eis a declaração no que termina.
Luceta vou chamar, para pedir-lhe (Rasga a carta.)
que me perdoe a falta involuntária. Vai-te; mas deixa esses papéis no chão.
Luceta! Olá! feis pegá-los só para irritar-me.
(Volta Luceta.) LuceTa - Ficou zangada, mas prazer achara
Lucera * Que manda Vossa Graça? se pudesse outra carta aborrecê-la.
JúLia - Já é hora de jantar? (Sai)
LuceTA- Antes já fosse, JúLra - Se esta mesma pudesse aborrecer-me!
porque aplacar a cólera pudésseis Oh mãos cruéis, para rasgar palavras
. coma comida, e poupásseis vossa criada. tão amoráveis! Vespas injuriosas,
JúLia - Que apanhaste do chão com tanto empenho? que em mel tão doce vos fartais e a morte
Lucera * Nada. dais com vossos ferrões às abelhinhas.
Jócia: Então por que foi que te abaixaste? Para me castigar vou beijar todos
Lucera Por causa de um papel que me escapara. estes pedaços de papel. Vejamos:
Júcia- E esse papel é nada? “Bondosa Júlia” Não! Maldosa Júlia!
LuceTA: Sim, é nada Porque tua maldade eu vingar possa,
que me diga respeito. vou atirar-te o nome contra as pedras
Jóia: Então, que fale e calcar com desprezo teu orgulho.
à pessoa a quem ela diz respeito. Oh! Leio aqui: “Proteu, de amor ferido”.
Lucera : Há de falar, decerto, a essa pessoa, Pobre nome ferido! Neste peito
desde que seja interpretada à justa. poderás abrigar-te até sarares
Júzia- Alguém vos escreveu, decerto, em versos. completamente. Assim, vou já pensá-lo
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Os DOIS CAVALHEIROS DE VERONA

com um beijo soberano. Duas vezes, bem juntinho os deixando. Ora, beijai-vos,
ou três, vejo “Proteu” escrito embaixo. abraçai-vos, brigai... o que quiserdes.
Bom vento, não te agites; não removas (Volta Luceta.)
palavra alguma, até que eu possa as letras Lucera* Jantar, senhora: vosso pai espera.
todas da carta achar, com exceção JúLia - Muito bem; vamos logo.
das do meu próprio nome, que merecem LucETA- Deixaremos
por um redemoinho ser levadas, no chão esses papéis pouco discretos?
para que, do alto de um rochedo ingente, JúLia - Se lhes tendes respeito, levantai-os.
a pique e temeroso, às ondas bravas Lucera : Fui repreendida por os ter juntado;
sejam precipitadas. Eis seu nome mas não convém que resfriados fiquem.
duas vezes escrito nesta linha: Júzia - Por eles, vejo-o bem, tens preferência.
“Do esquecido Proteu, do apaixonado Lucera - Podeis falar de tudo o que enxergardes;
" Proteu, para a querida e doce Júlia”. de boa vista eu também sou dotada,
Vou tirar esta... Não, convém deixá-la, muito embora julgueis que cega eu seja.
com tanta gentileza ele a associa JúLia - Não quereis entrar logo? Vamos, vamos.
a seu dorido nome. Vou dobrá-los, (Saem.)

Atol Cena HI
Um quarto em casa de Antônio. por não haver viajado quando moço.
Entram Antônio e Pantino. ANTÔNIO * Não necessitas insistir comigo,
que há um mês venho pensando nesse assunto.
ANTÔNIO * Pantino, que conversa tão solene Sua perda de tempo me preocupa.
teve no claustro meu irmão contigo? Não poderá jamais aperfeiçoar-se,
Panrtino : Falou-me do sobrinho, vosso filho, se não tiver o mundo como mestre.
Proteu. À experiência se adquire pela prática;
Antônio : Que disse ele? consolida-a o veloz curso do tempo.
PanTINO* Não compreende Para onde achais que será bom mandá-lo?
por que motivo Vossa Senhoria PanTINO : Penso que Vossa Graça não ignora
gastar o deixa a mocidade em casa, que Valentino, seu amigo íntimo,
enquanto outras pessoas menos nobres serve na corte real do imperador.
os filhos fazem ir para o estrangeiro, ANTÔNIO * Sei disso.
para nome alcançarem: uns, na guerra, PANTINO * Segundo penso, fora proveitoso
porque nela a fortuna experimentem; que para lá o mandasse Vossa Graça.
outros em busca de longínquas ilhas; Poderá adquirir naquela corte
outros para as escolas superiores. a prática de esgrima e de torneio;
Dizia, pois, que vosso filho mostra no convívio com a gente da nobreza
capacidade para qualquer dessas ouvirá só conversas elevadas,
ocupações, se não para elas todas, sobre adornar-se do que for mais digno
tendo instado comigo, que vos viesse de sua mocidade e nobre origem.
falar e, se preciso, importunar-vos Antônio - Teu conselho me agrada; bem pensado.
para que o não deixeis ficar mais tempo Verás quanto o aprecio na presteza
sem fazer nada em casa, o que, em futuro, de sua execução. Sem mais delongas
lhe ensejará razões de lastimar-se o enviarei para a corte do monarca.

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PanTINO - Se não vos desagrada, amanhã mesmo tomar resolução tão subitânea,
Dom Afonso e mais outros gentis-homens pois o que eu quero, quero: é quanto basta.
de alto nome pretendem ir à corte, Determinei que passes algum tempo
para saudar o imperador, deixando junto do imperador, com Valentino.
à disposição dele os seus serviços. Receberás pensão igual à dele,
ANTÔNIO Para Proteu é boa a companhia. para tua mantença. Amanhã partes;
Nem a propósito: ei-lo. Vou falar-lhe. vai preparar-te, pois. Nada de escusas;
(Entra Proteu.) em minhas decisões sou peremptório.
Proreu : Doce amor! Doces linhas! Doce vida! Proreu- Milorde, é-me impossível preparar-me
Eis sua mão, do coração o agente. assim depressa; dai-me um dia, ou dois.
De seu amor a jura aqui se encontra, Antônio : Mandaremos depois tua bagagem.
o penhor de sua honra. Oh! se aplaudissem Amanhã partirás; não percas tempo.
nossos pais esse amor, porque selassem Vamos, Pantino; quero vosso auxílio
com seu consentimemo nossa dita! para apressarmos a viagem dele,
Oh Júlia celestial! (Saem Antônio e Pantino.)
ANTÔNIO * Então, que carta estás a ler aí? Proreu Fugi do fogo, para não queimar-me,
ProrEU Se Vossa Senhoria não se agasta, mas fui cair no mar, onde me afogo.
uma ou duas palavras que da parte De medo que meu pai me repreendesse
de Valentino vieram, transmitidas minha paixão, não quis mostrar-lhe a carta
por um amigo que com ele esteve. que Júlia me mandara; mas do próprio
ANTÔNIO : Mostra-ma; quero ver as novidades. pretexto excogitado ele fez a arma
ProrEU - Não há, milorde, novidade alguma; mais poderosa contra o meu amor.
tão-somente relata como vive Parece abril, com seus incertos dias,
feliz, em grande apreço, e diariamente o amor primaveril, sempre mudável,
aumentando na estima do monarca, que ora o sol patenteia, resplendente,
desejando que com ele eu me encontrasse, ora em nuvem se esconde, impenetrável.
para compartilhar de sua sorte. (Volta Pantino.)
ANTÔNIO: E que tal vos parece esse desejo? PaLaTINO : Chama-vos vosso pai, senhor Proteu.
Proreu Minha opinião, senhor, depende em tudo Não demoreis, porque ele está com pressa.
da vontade de Vossa Senhoria; ProTEU Sim, tem de ser; concorda o coração,
não se amolda aos desejos dos amigos. muito embora mil vezes diga “não”.
AnTÔnIO : Minha vontade, nisso, está de acordo (Saem.)
com seu desejo. Não te cause espanto

Ato II: Cenal


Milão. Um quarto no palácio do duque. VALENTINO * Que é isso, maroto?
Entram Valentino e Speed. SpEED * Ela não pode ouvir-vos, meu senhor.
VALENTINO * Mas quem vos incumbiu de chamá-la?
SpEED * Vossa luva, senhor. SPEED * Vossa Senhoria, senhor, salvo engano de
VALENTINO" Aqui tenho uma... minha parte.
Deixa-me vê-la... É minha sim; perdi-a. VALENTINO * Tudo fazes com pressa.
Oh doce enfeite que um tesouro encobres! SpEED : No entanto, há pouco tempo fui
Ah, Sílvia, Sílvia! repreendido por ser vagaroso.
SPEED (chamando) - Senhorita Sílvia! Senhorita VALENTINO - Bem; deixemos isso e dize-me se
Sílvia! conheces a senhorita Sílvia.

Too
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SPEED * Por quem Vossa Senhoria está apaixonado? beleza é esquisita e infinita a sua graça.
VALENTINO * Ora essa! Como sabes que estou SPEED * Por uma ser pintada e a outra fora de conta.
apaixonado? VALENTINO * Como pintada? Como fora de conta?
SpEED * Ora, pelos seguintes sinais, muito SrEED- Ora, senhor, ela se pinta de tal modo, para
característicos: primeiro, como o senhor Proteu, parecer bela, que ninguém pode calcular sua beleza.
aprendestes a cruzar os braços, no jeito das pessoas VALENTINO * Que juízo fazes de mim? Sou capaz de
descontentes; a achar gosto em uma canção de amor, calcular sua beleza.
como o fazem os pintarroxos; a passear sozinho, SPEED * Mas não a tornastes a ver, depois que ela
como quem está afetado de peste; a suspirar como ficou deformada.
um colegial que houvesse perdido o A BC; a chorar VALENTINO * E há quanto tempo ela ficou
como uma donzela que acabasse de enterrar a avó; deformada?
a jejuar como quem está de dieta; a ficar de vigília SpEED - Desde que a amais.
como quem tem medo de ladrões; a falar em tom VALENTINO * Amei-a desde o primeiro momento
plangente, como mendigo em dia de Todos os em que a vi, e até hoje a acho belíssima.
Santos. Antes, vossa risada era como o cantar dos SPEED : Se a amais, não podeis vê-la.
galos; vossas passadas lembravam o andar dos leões; VALENTINO * Por que razão?
só jejuáveis depois do jantar; se ficáveis triste era por SpEED - Porque o amor é cego. Oh! Se tivésseis
falta de dinheiro. Presentemente, vos encontrais de os meus olhos! Ou se tivésseis nos olhos a luz de
tal modo metamorfoseado por vossa namorada, que, quando censuráveis Proteu, por andar sem ligas!
ao vos contemplar, custa-me crer que sois, de fato, o VALENTINO * Que é o que eu veria, então?
meu patrão. SPEED * Vossa presente loucura e sua grande
VALENTINO * Vêem-se, realmente, em mim todos deformidade. Aquele, porque apaixonado, não
esses sinais? tinha vista para segurar as meias; vós, por estardes
SPEED * São vistos fora de vós. amando, não vedes se tendes meias ou não.
VALENTINO * Fora de mim? Como é possível? VALENTINO * Nesse caso, tu também estás
SPEED * Fora de vós, sim senhor; porque, fora de vós, apaixonado, porque esta manhã não tiveste vista para
ninguém procederia dessa maneira. De tal modo limpar-me os sapatos.
vos encontrais fora dessas tolices, que essas tolices SpeeD-É certo, senhor, estava apaixonado de
se encontram dentro de vós e brilham através de meu leito. Agradeço-vos o terdes-me sacudido por
vós, como água no urinol, não havendo quem vos causa de meu amor; isso me dará coragem para vos
veja que, tal qual médico, não reconheça que estais censurar pelo vosso.
doente. VALENTINO * Em suma: estou inflamado por causa
VALENTINO * Mas, dize-me, afinal: conheces a dela.
senhorita Sílvia? SPEED : Desejaria que esse fogo se apagasse logo.
SPEED * Aquela de quem não desviais os olhos, VALENTINO * Na noite passada ela me pediu que
quando ela se assenta à mesa? escrevesse alguns versos para alguém que ela ama.
VALENTINO * Percebeste isso? Pois é a essa, SPEED - E o fizestes?
justamente, que me refiro. VALENTINO Sim.
SPEED * Não, senhor; não a conheço. SpEED - Não saíram de pé quebrado?
VALENTINO * Como assim? Observaste que eu não VALENTINO * Não, pequeno; escrevi-os da melhor
desviava dela os olhos, e, no entanto, não a conheces? maneira possível. Mas, caluda! Aí vem vindo ela!
SPEED - Não é uma senhorita desgraciosa? (Entra Sílvia.)
VALENTINO * É tão bela quanto graciosa. SPEED (à parte) * Que bela representação! Magníficos
SpEED * Sei disso perfeitamente, senhor. fantoches! Ele é que vai interpretá-la.
VALENTINO * Que é que sabes? VALENTINO Senhora e soberana, mil bons-dias.
SpEED * Que ela é tão bela quanto graciosa vos parece. SrEED (à parte) - Oh! Dai-lhe apenas uma boa-tarde,
VALENTINO * O que pretendo significar é que sua que vale mais do que mil cumprimentos.

Tor
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Sírvia * Senhor Valentino e servidor, dou-vos dois mil. Quem podia prever tão sério desenlace,
SPEED (à parte) * Era ele que devia pagar os juros; no que, como secretário, a si se declarasse?
entanto é ela quem lhos dá. VALENTINO * Que é que estais a falar sozinho,
VALENTINO : Eis a carta, senhora, que pedistes senhor?
para pessoa amiga, oculta e anônima. SPEED * Fazia versos; a razão está convosco.
Não a escrevi de grado, mas apenas VALENTINO * Razão para quê?
por deferência a Vossa Senhoria. SPEED * Para serdes o padrinho do casamento da
(Entrega-lhe uma carta.) senhorita Sílvia.
SíLvia * Graças, meu servidor; melhor, decerto, VALENTINO * Junto de quem?
um escrivão fazer não poderia. SPEED : Junto de vós mesmo. Ela se vos declarou por
VALENTINO * Podeis crer-me, senhora: foi difícil. meio de uma figura.
Por não saber a quem me dirigia, VALENTINO * Que figura?
escrevi mais ou menos, sem firmeza. SPEED * Uma carta, é o que eu queria dizer.
SíLvia Achastes cansativo esse trabalho? VALENTINO * Mas se ela não me escreveu carta
VALENTINO * Não, senhorita; se vos for do agrado, alguma!
poderei escrever mil cartas dessas. SrEEpD * Que necessidade tinha de fazê-lo, se
Contudo... vos obrigou a escrever para vós mesmo? Não
SíLvia : Belo fecho. Sei o resto. compreendestes a brincadeira?
Contudo, não a aceito; não me importa. VALENTINO : Não, posso afiançar-vos.
Contudo, recebei-a de retorno; SPEED - É no que não posso acreditar, senhor. Mas,
contudo, dou-vos graças, tencionando pelo menos, não observastes que ela estava falando
não vos dar mais trabalho de ora em diante. sério?
SPEED (à parte) * Contudo, sim; contudo, outro VALENTINO * Só observei que ela estava zangada.
contudo. SPEED * Entregou-vos uma carta.
VALENTINO * Que quer dizer com isso Vossa Graça? VALENTINO * Sim, a que eu escrevera para o seu
À carta não ficou do vosso agrado? amigo.
SíLvIA : Ficou; os versos estão bem escritos. SPEED * Carta essa que ela fez chegar às mãos do
Mas, já que foram feitos de mau grado, destinatário, e aqui termina o assunto.
aceitá-los não posso. VALENTINO * Quem dera que fosse só isso!
(Devolve-lhe a carta.) SPEED"
VALENTINO * Senhora, foram para vós escritos. Posso afiançar, senhor, que é isso e nada mais.
SíLVIA - Sim, escreveste-los a meu pedido; “Porque ela, por modéstia ou falta de ocasião,
mas não os quero; todos vos pertencem. deixara sem resposta a vossa devoção.
Desejaria versos mais sentidos. Com medo de confiar a alguém qualquer recado,
VALENTINO Se quiserdes, farei mais uma carta. de intermediário fez o próprio namorado.”
SíLvIA* E, por amor de mim, depois, relede-a. Falo como quem lê, por ter achado escrito.
Se ela vos agradar, bem; se não, bem. Mas, em que estais pensando, senhor? Já é hora de
VALENTINO * Se me agradar, senhora, que acontece? jantar.
SíLvia * Ficai com ela, em paga do trabalho. VALENTINO * Já jantei.
E assim, até amanhã, meu servidor. SpEED - Então, senhor, ouvi-me: muito embora
(Sai) o camaleão Amor possa alimentar-se de ar, no
SpEED * Oh brincadeira rara, estranha e tão visível que me diz respeito, alimento-me de vitualhas e
como o galo da torre e meu nariz risível! estou com regular apetite. Oh! Não sejais como
Meu amo se declara; ela lhe ensina o amor, vossa apaixonada; deixai-vos comover! Deixai-vos
dando lição jeitosa ao grande professor. comover!
(Saem.)

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Os pois cAvALHEIROS DE VERONA

Ato II Cena ll
Verona. Um quarto em casa de Fúlia. qualquer grande desgraça, como pena
Entram Proteu e Júlia. de minha ingratidão. Meu pai me espera.
Não me respondas; a maré está alta;
ProTEU: Paciência, cara Júlia. não a maré que desses olhos cresce,
Jóia: Que remédio! que essa me deteria muito tempo.
ProreU: Logo que for possível voltarei. Adeus, Júlia.
JúLia - Se não mudardes, voltareis depressa. (Sai Júlia.)
Levai de vossa Júlia esta lembrança. Saiu sem dizer nada?
(Dá-lhe um anel.) Sim, que o sincero amor quase não fala;
ProTEU - Outra vos dou em troca; recebei-a. melhor se adorna com ações e fatos
(Dá-lhe outro anel.) a verdadeira fé, não com palavras.
Júra - Selai a troca com um sagrado beijo. (Entra Pantino.)
Proreu Eis minha mão, como penhor de fé. PanTINO: Senhor Proteu, esperam-no.
Se me escapar uma hora, só, do dia, ProTEU É tudo.
em que não suspirar por tua causa, Essa separação me deixa mudo. ;
quero que, na seguinte, me aconteça (Saem.)

Ato II Cena HI
O mesmo. Uma rua. Que o leve a breca, se não for isso. Agora, senhor,
Entra Launce, conduzindo um cão. este bastão é minha irmã, porque, vede bem, ela é
tão branca quanto o lírio e tão esguia quanto uma
Launce Não; ainda vou chorar durante uma hora; vara. Este chapéu é Nan, nossa empregada; eu sou o
é defeito dos Launces. Recebi a minha herança, cachorro... Não, o cachorro é ele mesmo e eu sou o
como o filho pródigo, e parto com o senhor Proteu cachorro... Oh! O cachorro é eu e eu sou eu mesmo...
para a corte imperial. À meu ver, este meu cachorro É isso, é isso... Agora eu me dirijo a meu pai: “A
bênção, pai,” sem que o sapato possa dizer uma só
Crab é o cachorro mais insensível do mundo: minha
palavra, de tanto chorar. Agora eu dou um beijo em
mãe chorava, meu pai gemia, minha irmã gritava, a
meu pai... que continua a chorar. Agora me dirijo
empregada urrava, o gato esfregava as patas, e toda a
para minha mãe... Oh! Se ela pudesse falar neste
casa em grande perplexidade, sem que este animal de
momento como uma mulher que houvesse perdido
coração endurecido derramasse uma lágrima. É uma o juízo! Bem, dou-lhe um beijo... Sim, é isso mesmo,
pedra, um verdadeiro seixo, sem mais piedade do é igualzinho o hálito de minha mãe. Observai como
que um cão. Um judeu teria chorado, se visse a nossa ela suspira. E durante todo esse tempo o cachorro
despedida. Sim, minha avó, ora vede, que não tem não disse uma só palavra, nem derramou uma
olhos, chorou de ficar cega, quando nos despedimos. lágrima, apesar de eu regar a poeira com meu pranto.
Vou mostrar-vos como as coisas se passaram. Este (Entra Pantino.)
sapato é meu pai... Não, não; este sapato do pé PanrTiNo Launce, vai logo para bordo! Teu amo já
esquerdo é meu pai... Não, não; este sapato esquerdo está embarcado. Será preciso muita força de remo,
é minha mãe. Não, não pode ser, também. Sim é para que o alcances. Que é que houve, homem? Por
isso mesmo, por estar com a sola muito gasta. Este que estás a chorar? Vai logo, pedaço de asno! Se
sapato com um furo é minha mãe; e este, meu pai. demorares, vais ter muito com que te coçar.

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Launce : Não importa; porque este coração Launce: De medo que venhais a perder a língua.
endurecido o que merece mesmo é uma boa coça. Pouco importa que eu perca a maré, a viagem, o
PanTINO" À quem te referes, homem? amo e o serviço. Ora, amigo, se o rio vier a secar,
Launce: À Crab, o meu cachorro, que vedes aqui acho-me em condições de o encher com minhas
amarrado. lágrimas; se o vento viesse a parar, poderia impelir
PanTINO - Não foi isso, homem, que eu disse, o navio com a força dos meus suspiros.
mas que podias perder a maré. Ora, perdendo a PanTiINo : Vamos, homem, vamos! Fui encarregado
maré, perderias a viagem, e perdendo a viagem, de chamar-te.
perderias teu amo, e perdendo teu amo, perderias Launce * Podeis chamar-me, senhor, o que quiserdes.
o serviço, e perdendo o serviço... Por que me tapas PanTINO * Não queres ir?
a boca? Launce* Pois bem, irei.
(Saem.)

Ato IH: Cena IV


Milão. Um quarto no palácio do duque. Túrio : Camaleão que demonstra maior vontade de
Entram Valentino, Sílvia, Túrio e Speed. vos beber o sangue do que de respirar o mesmo ar
que respirais.
SíLvia : Servidor! VALENTINO * Já falastes, senhor.
VALENTINO * Senhora! Túrio * Sim, senhor; e, por esta vez, também já
SreED* Mestre, o senhor Túrio vos olha com má terminei.
cara. VALENTINO * Sei disso, senhor; sempre terminais
VALENTINO * É por amor, rapaz. antes de começardes.
SpEED - Mas não há de ser por vós. SíLvia : Bela descarga de palavras, cavalheiros, e
VALENTINO * Então é pela minha dama. feita com muita rapidez.
SpeEp Seria bom que lhe désseis uma boa tunda. VALENTINO * Agradecemos à doadora, senhorita.
Sírvia: Servidor, estais triste. SÍLVIA * À quem vos referis?
VALENTINO * Realmente, senhora, é o que pareço. VALENTINO : À vós, prezada senhorita, que
SíLviA * Pareceis ser o que não sois? trouxestes o fogo. Do olhar de Vossa Senhoria o
VALENTINO * É possível. senhor Túrio toma emprestado o espírito, gastando
Túrio : Então é porque usais de fingimento. generosamente em vossa companhia tudo o que
VALENTINO * Tal como o fazeis. pediu emprestado.
Túrio - Que é o que pareço ser sem que o seja? Túrio : Senhor, se gastardes comigo tantas palavras,
VALENTINO * Sábio. acabareis por levar vosso espírito à bancarrota.
Túrio : E qual é a prova do contrário? VALENTINO - Sei disso, senhor. Contais com
VALENTINO * Vossa loucura. um tesouro de palavras, a ponto de eu pensar que
Túrio : Em que percebeis minha loucura? não tendes outra moeda com que pagar os vossos
VALENTINO * Em vosso gibão. servidores. A julgarmos pela pobreza das fardas,
Túrio : Estou com um gibão duplo. vivem apenas de vossas pobres palavras.
VALENTINO * Neste caso, duplico vossa loucura. SíLvia - Basta, cavalheiros, basta! Aí vem vindo meu pai.
Túrio : De que modo? (Entra o duque.)
SíLvia * Como! Zangado, senhor Túrio? Mudais de cor? Duque Pelo que vejo, filha Sílvia, o cerco
VALENTINO * Deixai-o, senhorita; é uma espécie de que sustentais é grande. Com saúde,
camaleão. Sir Valentino, vosso pai se encontra.

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Que direis, se acaso recebêsseis presos não lhe trouxesse a amada os olhos
carta com boas novas dos amigos? no seu olhar sereno e cristalino.
VALENTINO : Milorde, ficaria agradecido SíLvia : Decerto lhes deu ela liberdade
ao feliz mensageiro da notícia. por ter ficado com penhor mais forte.
Duque Conheceis Dom Antônio? É de Verona. VALENTINO * Creio que ainda sejam prisioneiros.
VALENTINO * Conheço, sim, milorde; é um cavalheiro SíLvia : Se fosse assim, ele estaria cego.
digno de toda estima e que merece Ora, sem poder ver, como o caminho
gozar, de fato, de tão grande apreço. para vos encontrar teria achado?
Duque : Não possui ele um filho? VALENTINO * É que o Amor vê com vinte pares de olhos.
VALENTINO : Possui, milorde; um filho também Túrio : Dizem que o Amor não tem olho nenhum.
digno de herdar o nome e o apreço de tal pai. VALENTINO * Para enxergar amantes como Túrio.
Duque: Conhecei-lo de perto? É que ante coisas toscas, fecha os olhos.
VALENTINO * SíLvia- Basta! Basta! Eis que chega o gentil-homem.
Tanto quanto a mim mesmo. Desde a infância, (Entra Proteu.)
como amigos, vivemos sempre juntos. VALENTINO * Caro Proteu, bem-vindo! Senhorita,
E embora impenitente vagabundo peço-vos confirmar a boa-vinda
tivesse eu sido sempre, que não soube com qualquer mostra de especial clemência.
o alto valor apreciar do tempo, SíLvia : Seu mérito é o penhor da boa-vinda,
para que a mocidade com angélica caso ele seja, realmente, o amigo
perfeição adornasse, Sir Proteu — sobre que tantas vezes conversamos.
que assim ele é chamado — melhor uso VALENTINO * O mesmo, senhorita. Doce dama,
soube fazer de todos os seus dias. consenti que ele, como eu próprio, fique
Moço na idade, velho na experiência; como servo de Vossa Senhoria.
verde nos anos, de saber maduro. SíLvia * Para tal servo a dama é muito baixa.
Numa palavra — pois os elogios Proreu- Não, senhorita: eu é que sou indigno
que prodigar-lhe agora me ocorressem de ser notado por tão digna dama.
muito aquém ficariam da verdade — VALENTINO " Deixai para depois vossos defeitos.
é completo no espírito e no corpo, Recebei-o, senhora, em vossa graça.
sobre ser possuidor das graças todas Proreu - Hei de orgulhar-me de vos ser dicado.
que deixam mais gracioso um gentil-homem. SíLvia * Sempre a dedicação se viu premiada.
Duque Por minha fé, senhor, se for verdade Embora indigna, servo, eu vos saúdo.
quanto estais a dizer, do amor é digno Proreu * Quem tal dissesse, a não ser vós, morrera.
de uma grande princesa e de tornar-se SfLvia * Que sois bem-vindo?
conselheiro de Reis. Pois bem, senhor, ProTEU* Não, que sois indigna.
apresentou-se-me esse gentil-homem (Entra um criado.)
com recomendações de altas pessoas. CriaDo Senhora, vosso pai mandou chamar-vos.
Tenciona aqui ficar por algum tempo. SíLvia * Obedeço-lhe em tudo. Cavalheiro
Penso que essas notícias vos agradam. Túrio, vinde comigo. Novamente,
VALENTINO * Se algo eu podia desejar, era isso. meu novo servidor, eu vos saúdo.
Duque: Acolhei-o de acordo com seu mérito. À conversar vos deixo sobre assuntos
Sílvia, digo isso a vós e ao senhor Túrio, particulares! Quando terminardes,
que Valentino não precisa disso. espero receber notícias vossas.
Mandá-lo-ei para cá neste momento. Proreu - Para servir-vos, ambos nos dispomos.
(Sai) (Saem Sílvia, Túrio e Speed.)
VALENTINO * Foi desse cavalheiro, senhorita, VALENTINO * Ora dizei-me como passam todos.
que vos falei; teria, certamente, ProTEU - Vossos amigos estão bons e enviam
vindo comigo para a corte, caso saudares e lembranças.

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VALENTINO * E dos vossos de levantar a cauda do vestido


amigos, que dizeis? de minha dama, porque a baixa terra
PROTEU* Todos vão bem. a lhe roubar um beijo não se atreva
VALENTINO - E vossa amada? E o amor, tem e, assim, de orgulho inflada, não descure
prosperado? de alimentar a flórca primavera,
Proreu- Minhas histórias sempre vos cansaram. deixando permanente o rude inverno.
Sei que a assuntos de amor sois muito infenso. Proreu - Mas que fanfarronada, Valentino!
VALENTINO: Ah, Proteu! Minha vida está mudada. VALENTINO *
Estou a penitenciar-me do meu crime, Perdão, Proteu; tudo o que eu digo é nada
por ter do amor zombado. Sua altiva frente ao valor de quem reduz a nada
palavra de comando me castiga quantos valores conceber possamos.
com amargos jejuns, fundos gemidos, Ela está só.
noturnas lágrimas e quotidianos Proreu* Então, deixai-a só.
suspiros de partir o coração. VALENTINO *
Em vingança de minha indiferença, Não, pelo mundo inteiro! É minha, amigo.
o Amor o sono dos cativos olhos Como dono de jóia de tal preço,
me expulsou de uma vez e em sentinelas mais rico sou do que se proprietário
os transformou de minha própria angústia. fosse de vinte mares, cujas praias,
Caro Proteu, o Amor é poderoso, em vez de areia, pérolas tivessem,
e de tal modo me deixou vencido, em lugar de água, néctar e rochedos
que reconheço não haver castigos alcantilados de ouro. Não repares
comparáveis aos seus, nem alegria se pensamento algum eu te dedico,
tal como a de servi-lo neste mundo. que fascinado pelo amor me encontras.
Minha conversa, agora, é amor somente; Meu rival imbecil, que, por ser rico,
merendo, almoço, janto, ceio e durmo conta com a proteção do pai de Sílvia,
só com dizer esta palavra: amor. saiu daqui com ela. É necessário,
ProTEU - Basta; o destino revelais nos olhos. portanto, que os procure, pois bem sabes
É essa a deusa de vosso alto culto? quanto o amor é ciumento.
VALENTINO * Justamente. Não é santa celeste? ProTEU- E Sílvia, te ama?
Proreu - Não direi tanto; é perfeição terrena. VALENTINO * Já somos noivos; mais, ainda: as núpcias
VALENTINO * Chamai-lhe divinal. estão marcadas, sobre termos tudo
ProTEU- Fora adulá-la. bem assentado para nossa fuga:
VALENTINO - Oh! Adulai-me! O amor quer elogios. como escalar-lhe a alta janela eu possa
Proreu - Quando doente, me destes muitas pílulas com uma escada de cordas, tudo, tudo,
amargosas; o mesmo vou fazer-vos. para minha ventura foi pensado.
VALENTINO * Então sede sincero a seu respeito: Vamos até meu quarto, bom Proteu,
se não um ser divino, uma criatura porque neste negócio me aconselhes.
sem confronto, senhora e soberana Proreu Ide na frente; dentro de momentos
de todas as mulheres deste mundo. achar-vos saberei. É necessário
ProTEU : Exceto a minha amada. voltar ao cais para tirar de bordo
VALENTINO * Não excluas alguma coisa de uso mais urgente.
nenhuma; a menos que excluir intentes Feito isso, podereis dispor de mim.
a minha própria dama. VALENTINO * Não vais demorar muito?
ProTEU* Não me assiste ProTEU* Não; prometo.
razão de preferir a minha amada? (Sai Valentino.)
VALENTINO * Vou ajudar-te a dar-lhe preferência. Proreu * Como um calor outro calor desmancha
Vai-lhe tocar a distinção suprema e um prego outro retira, de igual modo

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a lembrança de meu amor primeiro de antigamente já não é a mesma.


se acha quase apagada pela influência Mas sua amada, quanto amor lhe tenho!
de um mais recente objeto. É minha vista, Eis a razão de amá-lo desse modo.
porventura, ou o louvor de Valentino, Como hei de vir a apaixonar-me dela
ou a perfeição de Sílvia, ou, simplesmente, com mais vagar, se, assim, tão de surpresa,
minha inconstância que a pensar me leva comecei a adorá-la? Até este instante,
com tão grande desvio? Ela é formosa, só vi sua pintura, o suficiente
tal como Júlia, a quem amor dedico, para ofuscar-me a luz do entendimento.
ou melhor: dediquei, por ser um fato Mas, quando eu vier a contemplar-lhe o encanto,
que o meu amor, agora, está desfeito; razão não há de não tornar-me cego.
como imagem de cera junto ao fogo, Para curar-me hei de envidar os meios;
perdeu toda a impressão do que antes era. se não, minha há de ser, sem mais rodeios.
Noto que frio se acha o grande zelo (Sai.)
que a Valentino eu tinha e que a amizade

Ato IF - Cena V
O mesmo. Uma rua. SpEED - Que grande asno me saíste. Tudo quanto
Entram Speed e Launce. acabas de dizer não oferece resistência.
SPEED * Launce! Por minha honestidade, és bem- LauNcE : É preciso que não passes de um pedaço de
vindo a Milão. pau, para não compreenderes o que eu digo. Pois este
Launce: Não jures falso, bondoso rapaz, porque bastão me oferece resistência.
a verdade é que eu não sou bem-vindo. Sempre fui SPEED : Que estás a dizer?
de opinião que um homem nunca fica inteiramente Launce : Precisamente o que estou a fazer.
perdido, enquanto não for enforcado, e que só Observa-me bem: apóio-me ao meu bastão e ele me
poderá ser bem-vindo a determinado lugar, quando oferece resistência.
lhe pagarem as contas e a hoteleira lhe disser: “Bem- SrpEED - Realmente; mas eu me referia à tua pessoa.
vindo!” Launce: Tudo vem a dar no mesmo; se o bastão
SpEED : Vamos, desmiolado; desejo acompanhar-te
resiste ao meu peso, eu e ele oferecemos resistência.
até a cervejaria, onde, por uma conta de cinco pences,
SpEED - Mas dize-me a verdade: haverá casamento?
poderás obter cinco mil bem-vindos. Mas conta-me
LAuncE* Pergunta isso ao meu cachorro; se ele
lá como o teu mestre se separou de Madame Júlia.
disser que sim, haverá; se disser que não, haverá; se
Launce: Ora! Depois de se terem unido em
sacudir a cauda e nada te responder, haverá.
tristeza, separaram-se por maneira muito folgazã.
SpEED * Donde se conclui que haverá.
SrEED - Mas ela o desposará?
Launce: Não.
LaunceE: Só me arrancarás um segredo tão grande
SPEED * Como assim? Ele se casará com ela? por meio de uma parábola.
Launce* Também não. SPEED * Pouco importa, contanto que mo reveles.
SPEED - Então separaram-se? Mas, Launce, que dizes do meu amo? Deu agora
LAuncE- Não; continuam unidos como um só para ser amante refinado.
peixe. LAuNcE* Sempre o conheci desse jeito.
SPEED * Mas de que jeito se encontram? SPEED: De que jeito?
LaunceE: Ora, quando alguma coisa está bem para Launce* Como um refinado tratante, conforme lhe
ele, está, do mesmo modo, bem para ela. chamaste agora mesmo.

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SPEED * Oh grande pedaço de asno! Tomaste-me no ir comigo à cervejaria, bem; caso contrário, és um
mau sentido. hebreu, um judeu, indigno do nome de cristão.
LauncE* Não falei de ti, meu tolo, mas de teu amo. SPEED * Por quê?
SrEED * O que eu disse foi que meu amo se encontra LaunceE: Por não teres suficiente caridade para
inflado de amor. beber cerveja com um cristão. Como é? Não vens?
Launce * Pois o que eu digo é que pouco se me dá SPEED: Às tuas ordens.
que ele venha a se consumir de amor. Se quiseres (Saem.)

Ato IH Cena VI
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. Se os perder, ganharei com essa perda
Entra Proteu. a mim próprio em lugar de Valentino,
ea Sílvia em vez de Júlia. Mais que amigo
Proreu Deixar de amar a Júlia, é ser perjuro, sou eu para mim mesmo. Quanto a Sílvia —
amar a bela Sílvia, é ser perjuro; seja o céu testemunha, que a fez bela! —
trair o amigo, é ser demais perjuro. em Júlia me faz ver escura etíope.
À mesma causa de eu haver jurado Esquecerei que Júlia ainda está viva
a perjurar três vezes me constrange. só de lembrar que morto já se encontra
O Amor me fez jurar e perjurar. o amor que lhe votei. De Valentino
O doce tentador! Já que pecaste, farei meu inimigo, porque em Sílvia
ao menos à tua vítima sugere mais grato amigo alfim encontrar possa.
passáveis argumentos de desculpa. Para constante ser comigo mesmo,
Adorei uma estrela cintilante, urge que a Valentino eu seja falso.
mas ora é um sol celeste que eu venero. Com uma escada de corda ele pretende
Ligeiramente podem ser quebrados a janela escalar da imortal Sílvia.
votos feitos à pressa. Fora falta Eu, seu rival, fui confidente nisso.
de espírito não ter vontade forte
Vou prevenir, portanto, o pai de Sílvia
para ensinar um meio ao próprio espírito
desse encontro e da fuga em perspectiva.
de escolher o melhor em qualquer caso.
Furioso, há de expulsar a Valentino,
Oh língua irreverente! Ruim chamares
por pretender a filha dar a Túrio.
aquela cujo mérito exaltaste
Uma vez Valentino removido, :
com vinte mil sinceros juramentos?
saberei encontrar alguma traça
Não prosseguir amando, é-me impossível.
para entravar esse noivado estúpido.
É o que se dá, no entanto. Mas só deixo
Amor, dá-me asas para esta vitória,
de amar a quem forçoso era que amasse.
pois, em verdade, é tua toda a glória.
Desta arte perco Júlia e Valentino;
se com eles ficar, perco a mim mesmo. (Sai.)

Ato II Cena VII


Verona. Um quarto em casa de Fúlia. já que és a lousa em que meus pensamentos
Entram Júlia e Luceta. caracteres visíveis adquiriram —
sugere-me algum meio compatível
Júzia - Gentil Luceta, ajuda-me, aconselha-me. com minha dignidade, porque eu possa
Embora amor o assunto agora seja — ir até onde se encontra o meu Proteu.
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LuceraA: Ah! penoso é o caminho e muito longo. originalidade não destoa


Jóia - Jamais uma sincera peregrina do todo de um rapaz que aparentasse
sentiu cansaço para medir reinos mais idade do que eu mostrar pretendo.
com seus passos incertos; muito menos Lucera- E os calções, de que modo hei de
há de cansar-se quem dispõe das asas | cortá-los?
do amor para ir se unir a um namorado JúLia- O mesmo fora se me perguntasses:
de tanta perfeição como Proteu. “Como quereis, caro senhor, que seja
Lucera* Convirá esperar que ele retorne. a saia na largura?” Pouco importa,
JúLra- E não não sabes que minha alma vive boa Luceta, a moda que escolheres.
tão-só de seus olhares? Tem piedade Lucera: Precisareis, então, usar braguilha.
da maneira em que me acho, pela falta Józia : Ora, Luceta! Ficaria feio.
desse alimento, há tanto, suspirado. Lucera Calça redonda vale menos, hoje,
Se de'ciência própria conhecesses do que alfinete, a menos que tivésseis
as impressões do amor, antes pensaras onde espetar os vossos alfinetes.
em acender com neve chama ardente, Józia - Pelo amor que me tens, cara Luceta,
do que extinguir o amor com teus discursos. prepara-me o que achares mais decente.
LuceTa * Não pretendo apagar o amor ardente Mas, rapariga, dize-me: como achas
que vos consome; tão-somente quero que pensará o mundo a meu respeito
o ardor extremo atenuar do fogo, por empreender uma viagem destas,
* porque não queime além do que é razoável. tão do pé para a mão? Receio muito
Józra - Quanto mais o abafares, mais abrasa. que isso me prejudique de algum modo.
À correntinha que se esgueira plácida, Lucera Se assim pensais, convém ficar em casa.
não o ignoras, detida se enfurece; JúLia Isso é o que não farei.
mas, quando o belo curso encontra livre, LucerTa Então não deis ouvido a comentários
faz agradável música com os seixos e segui sem demora. Caso aprove
e beijos dá nos juntos namorados Proteu, quando voltar, o que hajais feito,
que em seu caminho acaso a encontrar venha: de nada valerá qualquer censura,
desta arte, após serpear alegremente, após terdes partido. Mas receio
no selvagem oceano ele se atira. que ele vos desaprove tal medida.
Consente, pois, que eu vá; não me detenhas. Júzia Isso, boa Luceta, não me causa
Tão paciente serei como um regato; qualquer preocupação. Mil juramentos,
todos os passos cansativos, simples um oceano de lágrimas, instâncias
brinquedos me serão, até que o último de um amor infinito, me asseguram
me leve ao meu amor, onde em repouso da parte dele uma acolhida alegre.
me deixarei ficar, como no Elísio LuceTa : Isso tudo a serviço sempre esteve
fica a alma eleita, após trabalhos grandes. dos homens inconstantes.
Lucera* Que vestes pretendeis usar para isso? Jócia- Homens baixos,
JóLia - Não trajes femininos, que é preciso que para fins mesquinhos os empregam.
não me expor ao encontro licencioso Mas estrelas sinceras influíram
dos homens atrevidos. Minha cara no berço de Proteu. Suas palavras
Luceta, arranja-me uma roupa própria são vínculos sagrados; suas juras,
de algum pajem de boa compostura. outros tantos oráculos; sincero
Lucera : Pelo que vejo, Vossa Senhoria seu amor sempre foi, imaculados
vai cortar os cabelos? os pensamentos. Quando chora, as lágrimas
Jócia- Não, menina; lhe traduzem mensagem comovente
pois com fios de seda farei vinte do coração, que se acha tão distante
nós de amor verdadeiros. Semelhante da fraude, quanto a terra do alto céu.

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Lucera Rezai para encontrá-lo desse jeito. para essa viagem com que tanto sonho.
JóLia : Se me amas, não lhe faças a injustiça Contigo fica tudo quanto tenho:
de apresentar com cores menos gratas reputação, bens móveis, propriedades.
sua fidelidade. Caso queiras Mas, em compensação, tens de tirar-me
minha amizade, é força que o aprecies. daqui sem mais delongas. Não repliques.
Vem comigo até o quarto, porque possas Vamos pôr em ação nosso projeto;
tomar nota de tudo o que preciso Impaciente me deixa essa demora.
(Saem.)

Ato HI Cenal
Milão. Ante-sala no palácio do duque. Já percebera que eles se gostavam,
Entram o duque, Túrio e Proteu. quando ambos me julgavam mergulhado
no mais profundo sono, e tencionava,
Duque Deixai-nos, senhor Túrio, por momentos; mesmo, afastar da corte a Valentino,
temos que conversar alguns segredos proibindo-o de falar com minha filha.
muito em particular. Mas, por temer que o ciúme vigilante
(Sai Túrio.) me fizesse tomar picada falsa,
Ora me fala, vindo eu, pois, a ser causa, injustamente,
Proteu, sobre o que intentas revelar-me. da desgraça do jovem — imprudência
Proreu : Meu gracioso senhor, o que pretendo de que até hoje nunca fui passível —
aqui dizer, de revelar a outrem continuei a tratá-lo com carinho,
me veda o imperativo da amizade. para ficar em condições propícias
Mas, quando me recordo dos favores de descobrir o que ora me revelas.
com que me distinguistes o demérito, Mas porque vejas quanto medo eu tinha
obriga-me o dever a vos ser franco, de que isso acontecesse — que é mui fácil
contando-vos o que, por outro modo, de ser sugestionada a mocidade —
de mim nem todo o mundo me arrancara. revelo-te que faço minha filha
Ficai sabendo, pois, excelso príncipe, passar todas as noites na alta torre
que esta noite tenciona o meu amigo de cuja chave nunca me separo.
Valentino roubar a vossa filha. Ser-lhe-á, pois, impossível evadir-se.
Eu também tomei parte na conjura. Proreu: Sabei, nobre senhor, que já pensaram
Sei-que é vossa intenção ligá-la a Túrio, um meio que permita a Valentino
que vossa gentil filha não suporta. subir até onde Sílvia ora se encontra —
Mas se ela vier a ser, assim, raptada, uma escada de corda — e, desse modo,
muito há de padecer, vossa velhice. retirá-la da torre. O nosso jovem
Seguindo nisso o meu dever, prefiro apaixonado foi buscar a escada,
burlar as intenções do próprio amigo, devendo vir com ela agora mesmo.
a nada vos dizer e, desse modo, Podereis surpreendê-lo, se o quiserdes.
sobre a cabeça vos lançar o fardo Mas fazei-o, senhor, de tal maneira,
de tamanha tristeza que, apanhando-vos que minha indiscrição não se descubra,
de improviso, por certo vos levará, que o amor que eu vos dedico, tão-somente,
antes do tempo, para a sepultura. não ódio ao meu amigo, foi a causa
Duque: Agradeço, Proteu, tua franqueza. de eu vos contar agora o plano dele.
Em recompensa, pede o que quiseres. Duque : Dou-te minha palavra em como nunca

IIO
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virá ele a saber que me falaste de eu querer que de mestre ora me sirvas —
acerca disso tudo. pois já sei como se faz a corte,
ProTEU* Adeus milorde. sobre ser diferente a moda de hoje —
Não posso demorar-me; eis Valentino. para ensinar-me o que fazer me cumpre,
; (Saí) porque possa atrair seus belos olhos.
(Entra Valentino.) VALENTINO: Se palavras desdenha, dai-lhe mimos.
Duque : Valentino, aonde vais com tanta pressa? Por vezes pode mais a jóia muda
VALENTINO: Se Vossa Graça o permitir, espera-me do que a palavra ou outra qualquer ajuda.
um mensageiro, a fim de levar cartas Duque: Recusou-se a ficar com um meu presente.
de minha parte para alguns amigos. VALENTINO : É comum que a mulher se descontente
Vou entregar-lhas justamente agora. com o que mais aprecia. Não convém
Duque" São cartas de importância? desanimar, por isso, que o desdém
VALENTINO : Falo nelas apenas de saúde de hoje é prenúncio de um amor mais forte.
Se está zangada, a idéia vos conforte
e do viver contente em vossa corte.
de não ser disso o ócio o causador,
Duque: Sem importância, pois. Demora um pouco;
mas o anseio, tão-só, de um grande amor.
quero comunicar-te alguns assuntos
Se se irrita convosco, não quer isso
que me falam de perto. É reservado.
indicar que vos vades; desserviço
Como não deves ignorar, desejo
mui grande lhe faríeis, pois são poucas
casar Sílvia com meu amigo Túrio.
as que na solidão não ficam loucas.
- VALENTINO
Por mais que diga, alegre vos mostrai,
Sei disso, sim; a união é rica e honrosa,
porque “Ide embora” quer dizer: “Ficai!”
não se duvida, e, sobretudo, o noivo
Adulai-a, endeusai-lhe o imenso encanto;
é virtuoso, liberal e ornado
se for fanhosa, elogiai-lhe o canto,
de qualidades tais que o tornam digno pois que ser chamado homem não merece
de uma esposa como ela. Vossa Graça quem em tal conjuntura desfalece.
já conseguiu de Sílvia o assentimento? Duque : Mas os pais da pessoa de que falo
Duque : Não, podes crer-me; Sílvia é cabeçuda,
já a prometeram para um moço digno,
orgulhosa, frenética, birrenta, e de tal modo segregada a trazem
desobediente, caprichosa, fútil, do convívio dos homens, que impossível
dos deveres filiais nunca se lembra é junto dela obter de dia acesso.
nem de mim, qual de pai, se teme nunca. VALENTINO * Nesse caso, eu de noite a buscaria.
O resultado desse orgulho, digo-te Duque*
aqui em particular, foi despojá-la Sim, mas as portas se acham bem trancadas,
do meu amor de pai. Se noutros tempos e as chaves em seguro; ninguém pode
eu me iludia, a imaginar que os anos chegar de noite até seus aposentos.
que me restam de vida, eu os passaria VALENTINO E escalar a janela? Fora fácil.
sob o amparo da filha carinhosa, Duque: Fica muito alto o quarto, e tão a pique
ora a tomar estado decidi-me, toda a muralha, que impossível fora
casando-me de novo e a entregar Sílvia tentar subir sem arriscar a vida.
para quem resolver ficar com ela. VALENTINO *
Levará como dote a formosura, Uma escada de cordas, com dois ganchos,
pois me despreza e a quanto me pertence. feita com bem capricho, bastaria
VALENTINO * E de mim Vossa Graça que deseja? para escalar uma outra torre de Hero,
Duque : Há uma senhora aqui em Milão, meu caro, desde que houvesse um Leandro para a empresa.
de quem me apaixonei, mas muito esquiva Duque: Então, na qualidade de legítimo
se mostra e arisca sem prestar ouvidos gentil-homem, te peço me dizeres
à elogiiência de um velho. Eis o motivo como é possível arranjar a escada.

III
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VALENTINO * Para quando, senhor, precisais dela? mais do que o estritamente necessário
Duque Para esta noite; o amor é como criança, para te pores fora desta corte,
que quer logo possuir quanto descja. pelo céu! há de em muito minha cólera
VALENTINO : Às sete em ponto vos trarei a escada. exceder a afeição que a minha filha
Duque - Mas escuta: terei de ir lá sozinho. ou a ti sempre votei. Não percas tempo.
Como levar a escada? Não quero ouvir tuas escusas fúteis.
VALENTINO * É muito fácil, Se tens amor à vida, parte logo.
milorde: embaixo de uma boa capa. (Sai)
Duque: Do comprimento dessa? VALENTINO * Antes a morte do que semelhante
VALENTINO Sim, milorde. sofrimento. Morrer é ser banido
Duque : Então me mostra a tua, pois pretendo de mim próprio; e eu sou Sílvia. Estar de Sílvia
mandar fazer uma de igual tamanho. banido é estar banido de mim mesmo.
VALENTINO * Ora, milorde, qualquer capa serve! Banimento mortal! Que luz é luz,
Duque : De que maneira achas que devo usá-la? se Sílvia não for vista? Que alegria
Deixa-me pôr a tua, por obséquio. é alegria, se Sílvia estiver longe?
(Puxa a capa de Valentino.) Salvo se for para pensar, apenas,
Que carta é esta? Como! “Para Sílvia!” que ela se acha ao meu lado e alimentar-me
E este instrumento? Vem no instante azado tão-somente da sombra do que é belo.
para o que tenho em mente. Não repares Só quando passo a noite junto dela
por ter o ousio de violar o selo. no rouxinol encontro algum deleite.
(12) Se de dia não vejo a minha Sílvia,
Com Sílvia sempre estão meus pensamentos, para mim deixa o dia de ser claro.
que para ela eles voam noite e dia. É a minha essência; deixo de ter vida
Se me levassem para lá os ventos, se não ficar, por sua bela influência,
mais do que eles feliz eu estaria. vivificado, iluminado e lépido.
Com ela dormem... Oh Fortuna crassa! Se eu me esquivar dessa mortal sentença,
Viver o dono deles, sem ter crime, não fugirei da morte; aqui ficando,
triste e sozinho, amaldiçoando a graça pela morte serei, logo, alcançado;
que lhes concede graça tão sublime. mas partir é fugir da própria vida.
Mas se os mandei, maldito eu sou em parte, (Entram Proteu e Launce.)
por não ter dessa dita a menor parte. Proreu Corre, pajem! Vai à procura dele!
E isto aqui? Launce Olá! Olá!
Sílvia, à noite virei para livrar-te. Proreu - Que estás a ver?
É isso mesmo: eis a escada para o feito. Launce: Quem íamos procurar. Não há um cabelo
Coimo Faetonte — sim, não tenho dúvida, na cabeça dele que não seja um Valentino.
és o filho de Mérope — tencionas Proreu És Valentino?
dirigir o alto carro para, em chamas, VALENTINO * Não.
com tua insensatez, deixar o mundo? Proreu* Quem, então? Seu espírito?
Queres pegar estrelas cintilantes VALENTINO : Também não.
porque no alto as enxergas? Presunçoso Proreu Então, que és?
labrego, vil intruso, mostra os dentes VALENTINO * Nada.
a teus iguais e, se com vida agora LauncE* Nada pode falar? Posso bater-lhe, meu amo?
sais daqui, fica certo que isto deves Proreu Bater em quê?
mais à minha paciência que a teu mérito. Launce Em nada.
Terás de agradecer-me essa leal prova Proreu Detém-te, maroto!
mais do que quantas esbanjei contigo. Launce* Ora senhor, eu iria bater em nada. Por
Mas, se ficares em meu território obséquio...

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Proreu Basta, já disse! Uma palavra, apenas, ProTEU - Não te queixes de um mal irremediável;
amigo Valentino. remédio busca para o que lamentas.
VaLentiNO* Tenho as ouças De todo bem é gerador o tempo.
entupidas; ouvir não me é possível Ficando, não verás a tua amada,
notícia alguma boa, tão repletas sobre arriscares-te a encurtar a vida.
de notícias ruins elas se encontram. À esperança é o bastão dos namorados;
Proreu : Então as minhas num silêncio mudo com ele parte, e busca manejá-lo
resolvo sepultar, que são bem tristes, contra os maus pensamentos. Tuas cartas
duras e abomináveis. podem vir até aqui, embora estejas
VALENTINO Morreu Sílvia? por lugares longínquos. Se me vierem
ProTEU- Não, Valentino. endereçadas, irão dar ao colo
VALENTINO: É assim: “Não Valentino” branco de leite da mulher que adoras.
para a celeste Sílvia. Desprezou-me? O momento não é para lamúrias.
ProTeu : Não, Valentino. Vamos logo; desejo ir até a porta
VALENTINO" Se o tivesse feito, da cidade contigo. De caminho,
como “Não Valentino” ora me achara. conversaremos com maior largueza
Que novidades há? sobre o que diz respeito a teus amores.
LAUNCE* Senhor, proclamam Se não por ti, por Sílvia, do perigo
que já fostes varrido. em que estás não te esqueças; vem comigo.
ProTEU- Sim, banido VALENTINO * Se encontrares meu pajem Speed,
de tua Sílvia, de Milão, do amigo. dize-lhe que na porta do norte me procure.
VALENTINO * Já me fartei com esse sofrimento, Proreu : Corre, maroto! Vamos, Valentino.
cujo excesso me deixa ora afrontado. VALENTINO * Querida Sílvia! Pobre Valentino!
Sílvia já soube que banido me acho? (Saem Valentino e Proteu.)
ProTEU: Sim; e, ao ouvir o edito irrevogável — Launce Não passo de um bobo, ora vede, mas sou
que em todo o seu rigor ainda se encontra — dotado de espírito suficiente para ver que meu amo
soltou um mar de pérolas desfeitas, é uma espécie de velhaco. À espécie importa pouco,
a que alguns chamam lágrimas, levando-as uma vez que velhaco ele seja. Ainda está por nascer
aos rudes pés do pai. Nos joelhos dele quem saiba que me encontro apaixonado. Mas nem
ela, humilde, se atira, as mãos tão brancas uma parelha de cavalos poderá arrancar de dentro de
a contorcer, como se a dor ingente mim semelhante segredo e o nome da pessoa a que
mais brancas as deixasse. Mas de nada amo. No entanto, é uma mulher; mas que mulher
valeram joelhos prosternados, súplices seja, nem a mim mesmo hei de contar. Contudo,
mãos, profundos suspiros, argentinas é a rapariga do leite. Não, rapariga não, que ela já
lágrimas para o pai inexorável arranjou uma comadre. Sim, rapariga, uma vez que é
abalar do propósito: se acaso empregada do patrão que lhe paga ordenado. Possui
Valentino ficar, à morte o voto. mais qualidades do que um cão de água, o que já
Suas súplicas tanto o aborreceram, é muito para um simples cristão. (Sacando de um
quando, humildosa, a teu favor falava, papel.) Eis o catálogo de suas qualidades. “Imprimis,
que mandou para um cárcere levá-la, pode buscar e carregar.” Ora, um cavalo não poderá
ameaçando-a de ali sempre deixá-la. fazer mais do que isso. Não, um cavalo não poderá ir
VALENTINO * buscar; só pode carregar; logo, ela vale mais do que
Nem mais uma palavra, se as que faltam uma égua. “Item, sabe mungir.” Ora vede, eis uma
carecerem da força de matar-me. virtude doce numa rapariga de mãos limpas.
Se for o caso, peço-te, murmura-mas (Entra Speed.)
aos ouvidos e acaba logo a antífona SPEED - Então, senhor Launce, como vai o vosso capitão?
desse meu sofrimento prolongado. LauncE* À capitânia? No mar, naturalmente.

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SPEED * Sempre o velho vício de brincar com as LAuNcE: Isso não tem importância, uma vez que
palavras. Que novidades há em vosso papel? não durma quando estiver falando.
LauncE* Ás mais pretas novidades de que pudesses SPEED : “Item, é pouco amiga de falar.”
ter ouvido falar. Launce Oh estúpido! Pôr isso na lista dos
SPEED : Pretas como, homem? defeitos! A única virtude da mulher é ser pouco
LaunceE* Ora, pretas como tinta. amiga de falar. Por favor, risca daí esse item e o
SPEED * Deixa-me lê-las. coloca à frente das virtudes.
LaunceE* Sai daí, pascácio! Não sabes ler coisa SPEED “Item, é vaidosa.”
alguma. Launce- Tira isso, também; é herança de Eva, de
SpeEpD - Mentes; sei ler, sim senhor. que não podemos despojá-la.
Launce: Então vou pôr-te à prova. Dize-me uma SpEED “Item, é desprovida de dentes.”
coisa: quem foi que te gerou? Launce Isso, também, para mim carece de
SrEED * Ora essa, o filho de meu avô. importância, porque gosto muito de casca de pão.
Launce * Oh madraço iletrado! Foi o filho de tua SPEED * “Item, é briguenta.”
avó. Isso prova que não sabes ler. Launce : Não há mal nisso, uma vez que não tenha
SpEED - Vamos, tonto; vamos. Põe-me à prova com dentes para morder.
esse papel. SPEED “Item, gosta de provar o seu licorzinho de
LauncE* Bem, que seja; e que São Nicolau te vez em quando.”
proteja. Launce: Se o licor for bom, poderá prová-lo; se não
SpEED - “Imprimis, sabe mungir.” quiser, prová-lo-ei eu, que as coisas boas devem ser
LaunceE: Isso ela sabe. apreciadas.
SpEED “ “Item, sabe fazer boa cerveja.” SPEED * “Item, é muito liberal.”
LauNcE- É daí que vem o provérbio: Já é ter boa Launce : Com relação à língua não poderá sê-lo,
sorte saber fazer cerveja. pois já ficou dito que é pouco amiga de falar; no que
SpEED * “Item, sabe cozer.” respeita à bolsa, não lhe será possível ser liberal,
LAuncE* Antes cozer do que queimar. porque hei de trazê-la sempre bem fechada. Quanto
SPEED : “Item, sabe fazer meias.” ao resto, não está em mim remediar. Adiante.
LauncE* Tanto melhor, se souber fazer tudo à meia. SPEED * Item, tem mais cabelos do que espírito,
SPEED - “Item, sabe lavar c esfregar.” mais defeitos do que cabelos e mais dinheiro do que
LauncE - Uma virtude especial, porque, sendo defeitos.
assim, não haverá necessidade nem de lavá-la nem de Launce: Pára aí! Será minha; só nesse último artigo
esfregá-la. ela foi minha e deixou de sê-lo por duas ou três
SPEED * “Item, sabe fiar.” vezes. Lê outra vez.
Launce: Se ela vive de fiar, eu é que não me fio dela. SPEED * “Item, tem mais cabelos do que espírito...”
SpEEp : “Item, possui inúmeras virtudes anônimas.” Launce : Mais cabelo do que espírito, pode ser.
Launce: O que vale a dizer: virtudes bastardas; Vou prová-lo: a tampa do boião de sal cobre o sal;
carecem de nome por não conhecerem o pai. logo, é mais do que o sal. O cabelo que cobre o
SpEED - “Agora seguem-se os vícios.” espírito é maior do que o espírito, porque o que é
Launce No rasto das virtudes. maior cobre o menor. Que se segue?
SPEED : “Item, não deve ser beijada em jejum, por SpgED - “Mais defeitos do que cabelos...”
causa do hálito.” Launce Monstruoso! Se se pudesse tirar isso!
LauncE* Esse defeito pode ser corrigido com um SPEED * “E mais dinheiro do que defeitos.”
almoço. Launce Bem, essas palavras transformam os
SpEED ' “Item, tem a boca doce.” defeitos em virtudes. Não há dúvida: será minha. E
LAuNncE: Isso compensa o azedo do hálito. se houver casamento, visto nada ser impossível...
SPEED * “Item, fala durante o sono.” SPEED * Que acontecerá?

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Launce* Então eu te direi que o teu amo está à tua SPEED : Por que não me falaste nisso mais cedo? O
espera na porta do norte. diabo leve a tua carta de amor!
SPEED: À minha espera? (Sai)
LAuNcE: Sim, à tua espera. Quem és tu? Ele já LauncE- Agora ele vai apanhar por ter lido minha
esperou por gente muito melhor. carta. Sujeito mal-educado, para se meter no
SPEED * Quer dizer que eu preciso ir para lá? segredo dos outros. Vou atrás dele, para assistir à
Launce Não é suficiente ires; terás de correr até lá, correção.
porque já perdeste muito tempo. (Sai)

Ato HH Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. se opõe a meu desejo.
Entram o duque e Túrio. ProTEU-: Isso fazia,
senhor, quando aqui estava Valentino.
Duque Túrio, nada temais, que ela há de amar-vos, Duque Sim, mas persiste nisso com maldade.
já que de sua vista Valentino Que seria preciso pôr em prática,
banido ora se encontra. para que a rapariga a esquecer viesse
Túrio: Desde que ele Valentino e de Túrio se agradasse?
foi exilado, mais temível ódio ProTEU : Penso que o melhor meio fora contra
por mim ela demonstra; a companhia Valentino assacar origem baixa,
me despreza, me cobre de sarcasmos. covardia e dobrez, coisas que a todas
Já não tenho esperanças de alcançá-la. as mulheres são sempre intoleráveis.
Duque: Essa impressão de amor é qual figura Duque : Mas ela há de pensar que o ódio é que fala.
insculpida no gelo: uma hora, apenas, Proreu- No caso de falar um desafeto.
de calor é bastante para a forma Por isso é necessário que lhe fale
lhe roubar, transformando-a em água pura. quem ela considere amigo dele.
Seus pensamentos congelados breve Duque Então podias incumbir-te disso.
desfeitos hão de ser, ficando o indigno Proreu Contrafeito, milorde, aceito o encargo,
Valentino esquecido por completo. pouco louvável para um gentil-homem,
(Entra Proteu.) mormente em se tratando de um amigo.
Então, senhor Proteu, vosso patrício Duque Onde vossa palavra nada pode
já se foi, acatando nossas ordens? fazer a favor dele, nenhum dano
ProrEuU Sim, meu bom lorde. causarão as calúnias. Não seja isso
Duque : Minha filha ficou muito abatida. motivo, pois, de escrúpulo, mormente
Proreu- O tempo há de curar essa tristeza. por cederes a instâncias de um amigo.
Duque - Penso que sim, mas Túrio está descrente. Proreu : Dou-me por convencido, meu bom lorde.
A confiança, Proteu, que me inspiraste, Se depender, tão-só, dos meus ataques,
pois deste provas de teu grande mérito, deixará vossa filha de estimá-lo.
me leva a te iniciar nestes assuntos. Mas se do coração dela tirardes
Proreu : Se eu deixar de ser leal a Vossa Graça, o amor de Valentino, não se segue
quero sumir do olhar de Vossa Graça. que, só por isso, a Túrio ela a amar venha.
Duque Sabes quanto desejo o casamento Túrio - Quando desenrolardes, pois, de Sílvia,
entre Sir Túrio e minha filha Sílvia. o amor de Valentino, porque inútil
ProreuU Sei, milorde. não fique e embaraçado, é conveniente
Duque : Não ignoras, também, creio, quanto ela que o passeis para mim, sendo bastante

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dispensardes-me tantos elogios traçai sentida linha em que lhe mostre


quantos senões a meu rival lançardes. toda vossa paixão. Sabeis que a lira
Duque Proteu, nós vos confiamos tal assunto de Orfeu era encordoada com tendões
só por sabermos, pelas referências arrancados aos poetas. Com seu toque
de Valentino, que sois fervoroso de ouro ela amolecia as pedras e o aço,
devoto de Cupido, e que impossível mansos deixava os tigres, obrigando
vos será ser mudável ou perjuro. os leviatãs a abandonar as ondas
Essa confiança vos confere acesso para virem dançar na fina areia,
até o quarto de Sílvia, para à larga Depois das elegias lamentosas,
conversardes com ela, pois que se acha sob a janela, à noite, ide postar-vos
sombria, aborrecida, melancólica. de vossa apaixonada, em companhia
Mas por causa do amigo há de acolher-vos. de amena serenata a cuja música
Assim, vos será fácil convencê-la cantareis uma triste melodia.
de odiar a Valentino e amar a Túrio. O sepulcral silêncio da alta noite
Proreu Quanto puder, hei de levar a cabo. vai bem com tais queixumes harmoniosos.
No entanto, senhor Túrio, pouco zelo Isso — mais nada — há de fazê-la vossa.
tendes mostrado. É necessário visgo, Duque: Esses conselhos mostram quanto amaste.
porque possais pegar o anseio dela Túrio : Vou pô-los logo em prática esta noite.
com sonetos chorosos, cujas rimas Por isso, bom Proteu, meu conselheiro,
de vosso ardente amor, tão-só, lhe falem. vamos para a cidade, sem demora,
Duque: Sim, procurar algum músico excelente.
muito pode a poesia sublimada. Tenho um soneto que vem mesmo a ponto
Proreu : Dizei-lhe que ao altar de seus encantos para darmos início ao vosso alvitre.
levais o coração, gemidos, lágrimas. Duque - Mãos à obra, meus senhores.
Escrevei-lhe, escrevei-lhe, até que a tinta ProTEU' Até o jantar convosco ficaremos;
a lia se reduza; após, à lia depois poremos o projeto em prática.
juntai o vosso pranto, e, com a mistura, Duque : Não percais tempo; dou-vos liberdade.
(Saem.)

Ato IV: Cenal


Uma floresta entre Milão e Verona. VALENTINO Amigos...
Entram alguns proscritos. PRIMEIRO PROSCRITO * Não é assim, senhor; somos
vossos inimigos.
PRIMEIRO PROSCRITO * SEGUNDO PROSCRITO * Quieto! Vamos ouvi-lo.
Atenção, companheiros: um viajante! TERCEIRO PROSCRITO * Por minha barba, ouçamo-
SEGUNDO PROSCRITO* lo; parece gente de trato.
Ainda que fossem dez, nada de medo.
VALENTINO * Sabeis, pois, que pouco
Desçamos-lhes a marreta.
tenho a perder. O fado me persegue.
(Entram Valentino e Speed.)
TERCEIRO PROSCRITO : Álto, senhor! Esta roupa modesta é quanto tenho;
Tudo quanto tiverdes, atirai-nos; se me privardes dela, ao mesmo tempo
aliás, haveis de ser, com mais violência, me privareis de todos os haveres.
por nós desvalijado. SEGUNDO PROSCRITO * Para onde ides?
SPEED" Mestre, estamos VALENTINO * Para Verona.
perdidos. Encontramos os velhacos PRIMEIRO PROSCRITO * De onde vindes?
de que tanto se temem os viajantes. VALENTINO * De Milão.

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TERCEIRO PROSCRITO * SEGUNDO PROSCRITO *


Em Milão demorastes muito tempo? E eu de Mântua: num gesto irrefletido
VALENTINO * Quase dezesseis meses; poderia atravessei o coração a um nobre.
ter ficado mais tempo, se a tortuosa PRIMEIRO PROSCRITO *
Fortuna não me houvesse sido adversa. E eu também, por deslizes desse gênero.
SEGUNDO PROSCRITO * Como? Fostes banido? Mas voltemos ao ponto; só contamos
VALENTINO * Sim. nossas faltas a fim de desculpardes
SEGUNDO PROSCRITO * E O crime? a vida irregular que ora levamos.
VALENTINO * Falta cuja lembrança me acabrunha: Possuís bela aparência, sobre serdes
matei um homem, crime de que muito um lingiúista, conforme o declarastes.
me arrependo. Contudo, foi em luta Em nossa situação necessitamos
varonil, sem traição nem deslealdade. justamente de um moço assim prendado.
PRIMEIRO PROSCRITO * SEGUNDO PROSCRITO *
Se foi assim, por que mostrar remorsos? Sim, mas principalmente pelo fato
Mas por tão pouca coisa vos baniram? de ora estardes banido, perguntamo-vos:
VALENTINO E por feliz me dou com tal sentença. Não vos desagradais de ser o nosso
SEGUNDO PROSCRITO * Falais diversas línguas? general e viver a nossa vida
VALENTINO Falo, porque viajei bastante em moço; neste estado selvagem?
se não, teria padecido muito. TERCEIRO PROSCRITO * Que nos dizes?
TERCEIRO PROSCRITO * Pela calva brilhante do pançudo Queres ser um dos nossos? Vamos, fala;
frade de Robin Hood, este sujeito dize que sim e sê nosso cabeça.
daria um belo Rei de nosso bando. Terás nossa homenagem de vassalos;
PRIMEIRO PROSCRITO * será lei para nós tua palavra;
Há de ser nosso. Uma palavra, amigo. vamos amar-te como a Rei e chefe.
SPEED: Aderi, mestre, ao bando, pois se trata PRIMEIRO PROSCRITO *
de uma espécie de honrada ladroíce. Mas morrerás, no caso de renuíres.
VALENTINO * Quieto, vilão! SEGUNDO PROSCRITO *
SEGUNDO PROSCRITO * Vida não hás de ter para gabar-te
Dizei-nos: tendes algo que vos prenda? de quanto te contamos.
VALENTINO * Coisa alguma, a não ser minha VALENTINO * Sim, aceito
fortuna. vosso oferecimento e me resolvo
TERCEIRO PROSCRITO * a convosco viver, dado que nunca
Então sabeis que somos gentis-homens façais mal a mulheres e a viajantes.
que o ardor da mocidade não domada TERCEIRO PROSCRITO *
tirou da sociedade dos ordeiros. Odiamos essas práticas covardes.
Eu próprio de Verona fui banido, E ora serás levado ao nosso bando;
simplesmente por ter tentado o rapto mostrado te será nosso tesouro.
de uma parenta próxima do duque. Dele e de nós a teu prazer dispõe.
(Saem.)

Ato IV: Cena II


Milão. A corte do palácio do duque. junto de minha amada. É, porém, Sílvia
Entra Proteu. por demais bela, verdadeira e santa
para ceder a desvaliosas dádivas.
ProreU : Já traí Valentino; ora é preciso Ela me faz lembrar o meu perjuro,
ser injusto com Túrio. Sob a capa por ter deixado a minha amada Júlia.
de fazer-lhe o elogio, acesso obtive Mas apesar de todos os sarcasmos

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com que ela me atormenta, suficientes que suas trevas deslinda,


para desesperar qualquer amante,
meu amor, semelhante a um cão rasteiro, Então a Sílvia cantemos,
mais forte fica e mais a acaricia. por ser ela primorosa;
Túrio vem vindo. É necessário, agora, sobre os mortais a exalcemos;
postarmo-nos embaixo da janela nesta homenagem donosa
de Sílvia, e deliciarmos-lhe os ouvidos se exaltem seus dons supremos.
com a distração de alguma serenata. HoreLEIRO * Que acontece? Ficastes mais triste
(Entra Túrio com músicos.) agora? Que é isso, homem? Não vos agradou a
Túrio - Então, senhor Proteu, escorregastes música?
na nossa frente. Jóia - Estais enganado; não me agradei do músico.
ProTEU* Sim, meu caro Túrio; HoreLEIRO * Por quê, gentil menino?
pois bem sabeis que o amor sempre escorrega JúLia : Por ser falso no canto.
por onde andar não pode. HoreLEIrO * Como assim? Estarão desafinadas as
Túrio- Sei: contudo, cordas do instrumento?
penso que não amais neste lugar. JúLia - Não; mas com tanta falsidade puxa ele as
ProTeEU Se tal não fosse, longe me encontrara. cordas, que me abala até as cordas do coração.
Túrio- À quem? À Sílvia? HoreLEIRO * Sois dotado de ouvido muito delicado.
ProTEU Sim, por vossa conta. Józia - É certo. Desejara ser surdo; isso me oprime
Túrio - Muito obrigado. E agora, meus senhores, o coração.
com alegria começai a música. HoreLEIRO * Pelo que vejo, não apreciais música.
(O hoteleiro e Júlia aparecem nos fundos; JúLia - Quando é desafinada, acho insuportável.
Júlia em trajes masculinos.) HorTELEIRO *
HoTELEIRO Prestai atenção, que o tema, agora, é outro.
Que tendes, meu jovem hóspede? Pareceis-me Jóia - Esse novo tema é que acaba comigo.
melancólico. De que se trata? HoreLerro : Queríeis, então, que tocassem sempre
JóúLia: a mesma coisa?
Não é nada, hoteleiro; é que não posso ficar alegre. JúLia - Desejara que uma pessoa tocasse sempre
HoreLeIRro - Vinde comigo; vou deixar-vos alegre, a mesma coisa. Mas, dizei-me, hoteleiro: o senhor
levando-vos para um lugar onde podereis ver o Proteu de que falamos vem muitas vezes à casa desta
cavalheiro de que me pedistes notícias. senhorita?
JóLia- E poderei ouvir-lhe a voz? HoTELEIRO *
HoreLerro Sem dúvida. Vou repetir-vos o que me disse o seu criado
Jócia: Será música para mim. Launce: ele a adora acima de tudo.
(Ouve-se música.) Júia - E onde está Launce?
HoreLeIro * Ouvi! Ouvi! HoreLEIRO * Foi procurar o seu cachorro, que por
JúLia : Ele se encontra entre os músicos? determinação do patrão ele deve levar de presente a
HoreLeIro : Encontra-se. Mas, silêncio. Ouçamo-los. essa senhora.
CANçÃo JúLra - Silêncio! Ficai de lado; a companhia se
Quem é Sílvia? Quem é ela, dispersa.
que os jovens todos cativa? ProrEU: Ânimo, senhor Túrio! De tal modo
É sábia, divina e bela: vou pleitear vossa causa, que obrigado
entre as deusas, vera diva vos vereis a elogiar os resultados.
de compostura singela. Túrio * Onde nos encontramos?
ProTEU: Junto ao poço
É tão boa quanto é linda? de São Gregório.
Sim, que a beleza é bondade. Túrio - Adeus.
Cupido nela acha infinda, (Sai Túrio com os músicos.)
deslumbrante claridade (Sílvia aparece na janela de seu quarto.)

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ProTEU: Senhorita, boa-noite a Vossa Graça. ProTEU* Meiga senhora,


SíLvia Muito obrigada a todos pela música. permiti que da terra ora o retire.
Quem falou neste instante? SíLvia- Procura a sepultura da que amaste
ProTEU* Uma pessoa, e seu amor exuma, ou, pelo menos,
senhorita, que pronto conhecereis enterra o teu na mesma sepultura.
pelo timbre da voz, se a imaculada JóLia (à parte) + Semelhante conselho ele não ouve.
verdade de seu peito conhecesseis. ProTEU - Se o coração, senhora, tendes duro,
SíLvia * Senhor Proteu, parece-me. recompensai ao menos meus anelos
ProTEU : Proteu, gentil senhora, e vosso servo. com o retrato que o quarto vos enfeita.
SíLvia * Que desejais? Com ele falarei; ardentes lágrimas
ProTEU* Fazer-vos a vontade. hei de lhe oferecer, fundos suspiros.
SíLvia Ireis fazê-la, pois desejo apenas Já que a essência de vossa perfeição
que vos vades deitar em vossa cama. a outrem se acha votada, sou apenas
Homem sutil, perjuro, falso, hipócrita! uma sombra fugaz que à sombra vossa
Supões-me tão estúpida e inconsciente vai revelar amor sincero e puro.
que possa acreditar nessas lisonjas Jóia (à parte) -
que já embaíram tantas outras jovens? Se fosse a própria essência, estou bem certa,
Vai procurar a tua amada e pede-lhe por fim a enganarias, reduzindo-a
que te perdoe, que eu — ouve-me a pálida à minha condição de simples sombra.
soberana da noite — tão distante SíLvia - Não me alegra saber que sou vosso ídolo.
me acho de dar ouvidos a teus votos, Mas já que apraz à vossa falsidade
que por tua insistência vergonhosa adorar sombras e aparências falsas,
sinto desprezo e nojo e me censuro mandai um portador amanhã cedo
por perder tempo a conversar contigo. buscar o meu retrato. Bom repouso.
ProTEU* Juro-te, coração, que amor eu tive ProTEU- Repousarei tal como o condenado
por uma jovem que já não existe. que só espera a manhã para ser morto.
Jóia (à parte) * Que é falso, se eu falasse, afirmaria, (Sai Proteu; Sílvia se recolhe.)
pois sei que ela inumada não se encontra. JúLia - Vamos, hoteleiro?
SíLvia É possível. Contudo, Valentino, HoreLEIRO * Por minha salvação, estava quase a
teu amigo, ainda vive, e tu bem sabes dormir.
que noiva dele eu sou. Não te envergonhas JúLia - Por obséquio, onde mora o senhor Proteu?
de ofendê-lo com tuas insistências? HoreLeIRro - Ora, em minha casa. Por minha fé,
Proreu- Também se diz que Valentino é morto. penso que já é quase dia.
SíLvia : Então me considera também morta, Júzia- Ainda não; nunca estive de vigília
pois posso asseverar-te que em seu túmulo em noite assim, tão longa e tão pesada.
se encontra o meu amor. (Saem.)

ORA * Cena HI
O mesmo. SfLvia : Quem me chama?
Entra Eglamor. EcLAMOR* Vosso criado
e amigo verdadeiro, que se encontra
EcLamor: Madame Sílvia me aprazou esta hora sempre às ordens de Vossa Senhoria.
para me revelar sua vontade. SíLvia - Mil bons-dias, meu bom Sir Eglamor.
Vai me confiar, decerto, algo importante. EcLamor* Como a vós, muito digna senhorita.
Madame! Obedecendo nisto a vossas ordens,
(Sílvia aparece à janela) vim cedinho saber qual o serviço
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que confiar-me apraz a Vossa Graça. reflete no direito que me assiste


SíLvia * Oh senhor Eglamor, sois um fidalgo — de evitar esse enlace tão sacrílego,
não é lisonja, não; posso jurar-vos — que será pelo céu e pela sorte
valente, sábio, consciencioso, puro. cumulado de males indizíveis.
Não podes ignorar quanta afeição É com o peito tão cheio de tristezas
eu dedico ao banido Valentino, como de areia o mar que te suplico
nem que meu pai à força quer que eu case ires junto comigo, ou, pelo menos,
com o fútil Túrio que minha alma odeia. a ninguém revelar nossa conversa,
Também amaste; ocorre-me a lembrança para que eu, só, possa correr perigo.
de ter-te ouvido que jamais sofreras EcLamor: Senhora, vossa dor me deixa triste.
mágoa tão grande como a do trespasse Sabendo quão direita sois em tudo,
do teu sincero amor, de tua esposa, resolvo-me a fazer-vos a vontade,
sobre cujo sepulcro lhe juraste sem pensar no que possa acontecer-me,
perene e imaculada castidade. contanto que a Fortuna vos sorria.
Eglamor, resolvi ir para Mântua, Quando quereis partir?
onde penso que se acha Valentino; SíLvia- Amanhã cedo.
mas como a estrada é cheia de perigos, EcLamor: Qual o lugar de nosso encontro?
SÍLVIA A cela
desejo tua digna companhia
por confiar em tua honra e probidade. de Frei Patrick, após me confessar.
EcLAamor* Não deixarei Vossa Grandeza em falta.
Não me repliques, Eglamor, com a cólera
Até amanhã, princesa.
de meu pai; pensa apenas na tristeza
SíLvia Muito boa manhã, caro Eglamor.
que me acabrunha, a dor de uma senhora;
(Saem.)

Ato IV: Cena IV


O mesmo. falta cometida por ele próprio, estou certo de que o
Entra Launce com seu cão. teriam enforcado. Sim, por minha vida: teria sido
castigado. Vós mesmos ireis julgar: ele me atira a si
LauncE - Não há quem não fique furioso, ora vede, mesmo por baixo da mesa do duque, em companhia
quando o seu criado procede como cachorro. Um de três ou quatro cachorros afidalgados. Pois não
animal que eu criei desde pequeno, que salvei de havia tido ainda — desculpai-me a expressão —
se afógar, quando três ou quatro de seus irmãos nem tempo de urinar, e já todo o compartimento
e irmãs iam ser jogados na água. Ensinei-lhe as recendia. “Ponham fora daqui a esse cachorro!”
coisas de tal modo, que se poderia dizer: desse jeito exclamava um dos presentes. “Que cachorro é esse?”
até eu ensinaria um cão. Meu amo mandou que perguntava outra pessoa. “Dêem-lhe umas relhadas!”
eu o desse de presente à senhorita Sílvia; porém, dizia um terceiro. “Enforcai-o!” gritou o duque. Por
mal entrei na sala, ele saltou à mesa e roubou uma já estar habituado com aquele cheiro, vi logo que se
perna de capão. Oh! Que coisa horrível não saber tratava de Crab e me dirigi para o criado incumbido
um cachorro comportar-se em boa companhia! Eu de ministrar castigo aos cães. “Amigo”, lhe disse,
desejara possuir um cachorro, como se diz, que se “tencionais chibatear esse cachorro?” “Sem dúvida”,
decidisse a ser cachorro de verdade, para que ele, respondeu-me. “Pois ides praticar uma injustiça”,
por assim dizer, fosse realmente cachorro em todas acrescentei, “por ter sido eu que fiz a coisa que bem
as coisas. Se eu não houvesse revelado mais espírito sabeis”, depois do que, sem usar de cerimônias,
do que ele, para assumir a responsabilidade de uma ele me expulsou do quarto a chibatadas. Quantos

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patrões teriam feito o mesmo com relação a seus Sabes, pois, as razões de minha escolha.
criados? Sim, posso jurar quejá fui posto no tronco Toma agora este anel e, com presteza,
por causa de pudins roubados por ele, só para que leva-o a madame Sílvia.
ele não fosse executado;já fiquei no pelourinho por Quem mo deu muito amor me dedicava.
causa de gansos mortos por ele, só para que ele não Jócia:
viesse a sofrer nada. Já te esqueceste de tudo isso, Dando-o, mostrais que amor nenhum lhe tínheis.
não é assim? Ainda me recordo da partida que me Já estará morta?
pregaste, quando me despedi de madame Sílvia. ProTEU- Não; penso que vive.
Não te recomendara que não me perdesses de vista, Júzia- Ai de mim!
para só fazeres o que eu fizesse? Quando já me viste ProrTeu Por que falas assim?
levantar a perna e molhar a saia de alguma senhora? JóLia: Não me é possível
Alguma vez já me viste fazer semelhante brincadeira? deixar de lastimá-la.
(Entram Proteu e Júlia em trajes masculinos.) PRrOTEU" Qual a causa
Proreu: Chamas-te Sebastião? Muito me agradas; de teres pena dela?
vou arranjar-te logo algum serviço. Jóia: É que parece
Jóia * Farei tudo de muito boamente. que tanto amor ela por vós sentia,
ProTEU* Assim o creio. (À Launce.) Então, vilão quanto por vossa senhorita Sílvia
à-toa, por onde vos metestes, há dois dias?
ora estais revelando. Ela ainda sonha
Launce: Ora, senhor, levei à senhorita Sílvia o com quem de seu amor está esquecido;
cachorro que lhe mandastes de presente.
vós amais quem de vosso amor não cuida.
Proreu- E que disse ela da minha pequena jóia? Dói ver o amor prejudicar-se tanto.
Launce Disse que vosso cachorro era muito reles,
Foi por pensar assim que disse aquilo.
e me incumbiu de vos transmitir agradecimentos de
ProTEU:
cão por semelhante presente.
Bem; leva-lhe este anel e, ao mesmo tempo,
ProTeU Mas ela ficou com o cachorro?
dá-lhe esta carta. O quarto dela é aquele.
Launce* Não, senhor; isso ela não fez; aqui vo-lo
Dize a minha senhora que eu reclamo
trago de volta.
Proreu : Como! É esse o cachorro que lhe o cumprimento da promessa feita:
seu divino retrato. Terminado
ofereceste de minha parte?
teu recado, ao meu quarto volta logo,
LaunceE: Perfeitamente, senhor; o outro, o esquilo,
me foi roubado no mercado pelos filhos do carrasco; onde triste hás de achar-me e solitário.
por essa razão eu levei à senhorita Sílvia o meu (Sai.)
próprio cão, que é dez vezes maior do que o vosso e, JúLia : Quantas mulheres se encarregariam
por isso mesmo, constitui presente muito maior. de tal mensagem? Ah, pobre Proteu!
Proreu* Some da minha vista! Vai em busca Escolheste a raposa para guarda
de meu cachorro, ou nunca me apareças. de tuas ovelhinhas. Pobre louca!
Fora, já disse! Queres irritar-me? Por que ter pena de quem me despreza
Esse biltre a toda hora me envergonha. de todo o coração? De mim se esquece,
(Sai Launce.) porque lhe tem amor; e eu, por amá-lo,
Tomei-te, Sebastião, a meu serviço, também me apiedo dele. Ao separarmo-nos,
em parte, apenas porque necessito dei-lhe este anel como penhor de quanto
de um moço como tu, capaz da máxima lhe seria sincera. Mas agora —
discrição nos recados, que impossível infeliz mensageiro! — sou forçada
é a gente se fiar num louco destes. a pedir o que obter não desejara,
Mas o motivo principal é a tua a levar-lhe o que fora preferível
compostura, as feições, que, se me fala recusar, a elogiar-lhe os sentimentos
certo o pressentimento, testemunham que censurar desejo intimamente.
bons princípios, caráter e lealdade. Sou a amante sincera de meu amo,

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mas não posso ser dele honesto servo Muito sofreu por causa de meu amo.
sem falsa me tomar para mim própria. SfLvia * Conhece-la?
Contudo, vou fazer por ele a corte, Jóia: Conheço-a quase tanto
mas de modo tão frio — o céu o sabe — quanto a mim. À lembrança dos seus males
que espero nunca conseguir o intento. me tem feito chorar mil vezes, crede.
(Entra Sílvia, com acompanhamento.) SfLvia : Já sabe que Proteu se esqueceu dela?
Bom-dia, senhorita; por obséquio, Júzia : Creio que sim; por isso mesmo, sofre.
desejava falar com dona Sílvia. SíLvia : Ela é muito bonita?
SíLvia * Se ela eu fosse, que dela desejaras? Júzia - Já foi, senhora, muito mais bonita.
Júzia : Se fosseis ela, pediria, humilde, Quando ela ainda pensava que meu amo
que ouvísseis com paciência meu recado. lhe dedicava amor, era tão bela
SíLvia - Da parte de quem vindes? quanto sois. É o que eu penso. Mas depois
JóLia- De meu amo, que o espelho ela esqueceu e jogou fora
senhor Proteu, madame. a máscara que o rosto lhe amparava
SÍLVIA: Ah! É a propósito contra o calor do sol, fez o ar fanarem-se
de um retrato, não é? as rosas que lhe as faces coloriam
Jóia: Perfeitamente, e esmaecer da fronte a cor do lírio.
madame. Ora ficou como eu, preta de todo.
SfLvia Úrsula, traze o meu retrato. SíLvia : Qual era a altura dela?
(Trazem o retrato.) Jóia: À minha. Sim, no Pentecostes, quando
Dai-lhe isto e dize-lhe de minha parte tivemos de ensaiar os espetáculos,
que uma Júlia, esquecida de seu falso um papel de mulher deram-me os moços
coração, ficaria mais a jeito com as vestimentas de madame Júlia,
no seu quarto do que esta simples sombra. que, na opinião de todos, me serviam
Júzra: Senhora, por obséquio, eis uma carta... tão bem como se minhas elas fossem.
Perdão, senhora; inadvertidamente Por isso eu sei que ela é da minha altura.
vos dei outro papel. Eis o que eu trouxe Nessa ocasião fi-la chorar bastante,
para ser dado a Vossa Senhoria. pois era muito triste a minha parte,
SíLvIA * Mostra-me o outro, de novo, por obséquio. minha senhora, no papel de Ariadne,
Júzra - Não, senhora; é impossível. Desculpai-me, a lastimar-se da infidelidade
SíLvia : Então fica com este. de Teseu e de sua fuga injusta.
Não quero ler os versos de teu amo; Representei tão bem, com tantas lágrimas,
sei que inflados se encontram de protestos que a minha pobre dona, comovida,
de juramentos novos, que ele se acha chorava amargamente. Morrer quero
pronto a quebrar tão facilmente como neste momento, se não for verdade
eu rasgo este papel. que suas dores eu também sentia.
JóLia- Senhora, este anelzinho, é também vosso. SíLvia : Ela há de ser-te muito grata, jovem.
SíLvia * Maior é o opróbrio dele por enviar-me Coitada! Abandonada e sem consolo!
semelhante presente, pois mil vezes Só de te ouvir falar eu também choro.
o ouvi dizer que, à despedida, Júlia Toma esta bolsa, jovem: dou-ta como
lho dera de lembrança. Muito embora dádiva em atenção daquela pobre
seu falso dedo o anel já profanasse, que tanto e tanto amaste. Passa bem.
a Júlia não farei tal injustiça. Jóia - Ela há de agradecer-vos esse gesto,
Júzra : Ela vos agradece. se a virdes algum dia.
SÍLVIA * Que disseste? (Sai Sílvia com o séquito.)
JúLia : Senhorita, agradeço-vos o serdes Mui virtuosa
compassiva com Júlia. Coitadinha! senhorita, bondosa e encantadora.

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Espero que meu amo seja muito Mas é de testa estreita; a minha é larga.
fracamente acolhido, uma vez que ela Que pode nela achar-se de admirável,
respeita tanto o amor da minha dona. que admirar em mim mesma eu não pudesse,
Ai! Como de si mesmo o amor faz troça. se o louco Amor não fosse um deus sem olhos?
Eis o retrato dela. Examinemo-lo, Vamos, sombra; carrega esta outra sombra,
Penso que este penteado me deixara que ela é tua rival. Forma insensível,
com o rosto tão formoso quanto o dela. adorada vais ser, beijada e amada!
Favoreceu-a, aliás, o artista um pouco, Se em tal idolatria houvesse senso,
ou eu também me favoreço muito. em teu lugar meu ser seria estátua.
Tem cabelos castanhos: eu, bem louros. Vou te ser boa em atenção à dona,
Se o amor de Valentino se decide que foi boa comigo; do contrário,
por esse traço, vou usar cabelos por Jove o juro, as unhas eu metera
postiços de igual cor. Olhos cinzentos nesses olhos sem luz, porque meu amo
possui, iguais aos meus, da cor de vidro. não mais encantos neles encontrasse,
(Saí)

Ato V: Cena l
Milão. Uma abadia. tanto a pressa esporeiam. Ei-la a tempo.
Entra Eglamor. (Entra Sílvia.)
Boa tarde, senhora.
EcLamor: O sol já doira a fimbria do ocidente. SÍLVIA: Amém, amém.
Sílvia me disse que nesta hora, justa, Vamos, bravo Eglamor; passemos logo
nós nos encontraríamos na sela a portinha do muro do convento.
de Frei Patrick. Decerto ela não falta, Tenho medo de estar sendo seguida.
que nunca as horas os amantes perdem, EcLAMOR: Ânimo, que a floresta está a três léguas.
salvo se for para chegarem antes, Se a alcançarmos, sairemos do perigo.
(Saem.)

Ato V- Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. de nada serve, quando o amor demonstra
Entram Túrio, Proteu e Júlia. grande aversão por algo.
Túrio: E do meu rosto,
Túrio : De minha pretensão, que disse Sílvia, que disse ela?
senhor Proteu? Proreu* Que é muito e muito claro.
ProTEU* Oh, meu senhor, achei-a Túrio : Nisso aquela travessa está mentindo,
mais tratável. Contudo, faz reparos que eu tenho a tez escura.
frequentes com respeito a vosso físico. ProTEU: Mas segundo
Túrio - Acha que minhas pernas são compridas? velho ditado, as pérolas são claras:
Proreu - Não; acha que são finas. “Para os olhos da amada um negro é pérola.”
Túrio" Umas botas Jóia (à parte) -
mas farão engrossar. Sim, pérolas que os olhos dela ofusquem.
Jócia (à parte)- | O uso de esporas Preferira ficar a contemplá-las.
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Túrio: E de minha conversa, que disse ela? que ela fugiu para juntar-se ao rústico
Proreu : Desagradável, se falais de guerra. Valentino: Eglamor saiu com ela.
Túrio - Mas gosta de me ouvir falar de amor? É certo; Frei Lourenço encontrou ambos
Júcia (à parte) - Mais lhe agradais, se nada lhe ao passear, penitente, pelo bosque.
disserdes. Conheceu Eglamor, tendo suspeitas
Túrio - E de minha coragem, que disse ela? com relações a Sílvia, cuja máscara
Proreu: Oh meu senhor, sobre isso não tem o impediu de afirmar com segurança.
dúvida. Além do mais, ela aventou o pretexto
JúLia (à parte) * Fora desnecessário, pois bem sabe de ir cedo confessar-se com Patrick,
quanto sois pusilânime. sem que estivesse estado em sua cela.
Túrio: E que disse Esses sinais confirmam sua fuga.
sobre o meu nascimento? Por isso pelo não perderdes tempo
ProTEU* Que de grande com vãos discursos, mas montardes logo
família descendeis. para a mim vos reunirdes junto à encosta
Júzia (à parte) - Desceu, realmente, da montanha da estrada para Mântua,
de muito alto: de um nobre para um tolo. que é por onde eles foram. Persigamo-los
Túrio : Falou-vos de meus bens? sem demora, meus caros gentis-homens.
ProTEU* Sim, com piedade. (Sai)
Túrio Por que motivo? Tóúrio : Isto é que é rapariga sem juízo:
Júzia (à parte) - Por estarem fugir da sorte que empós dela corre!
sob a gerência de outrem. Vou atrás dela, mais, seguramente,
JóLia- Eis o duque. para tomar vingança de Eglamor
(Entra o duque.) que por amor à desmiolada Sílvia,
Duque: Então, senhor Proteu! Túrio, bom dia. (Sai)
Quem viu Sir Eglamor? Proreu Eu também vou, mais por amor de Sílvia
Túrio- Eu não. do que por desamor ao seu comparsa.
Proteu: Nem eu. (Sai)
Duque: E minha filha Sílvia? Józia: E eu mais para estragar todo esse amor,
ProTEU* Também não. do que por Sílvia, a quem conduz o amor.
Duque Então sabei (Saí)

Ato V : Cena HI
Floresta na fronteira de Mântua. Ide com ela para a porta do este;
Entram proscritos com Sílvia. nosso chefe está lá. Nós seguiremos
empós do outro; fugir não lhe é possível,
PRIMEIRO PROSCRITO * Vamos! Paciência. que toda a redondeza está cercada.
Teremos de levá-la ao nosso chefe. (Saem todos, com exceção do primeiro
SíLvia - Mil infortúnios mais acerbos que este proscrito e de Sílvia.)
me ensinaram a ser paciente agora. PRIMEIRO PROSCRITO *
SEGUNDO PROSCRITO * Vamos, levai-a logo. Vamos; vou acompanhá-la até a caverna
PRIMEIRO PROSCRITO * do nosso capitão. Não tenha medo;
E o gentil-homem que com ela vinha? é homem de caráter elevado;
TERCEIRO PROSCRITO * jamais abusará de uma donzela.
Por ter pés ágeis, escapou de todos; SíLvia : Oh Valentino! Tudo por tua causa!
mas Valério e Moisés vão-lhe no encalço. (Saem.)

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Ato VW: CenalIV


Outra parte da floresta. Preferira ser pasto de uma fera,
Entra Valentino. a dever a existência a este homem falso.
Sabe o céu quanto eu amo a Valentino;
VALENTINO como minha alma, sua vida eu prezo.
Como o uso cria no homem um novo hábito! Com a mesma intensidade — não me fora
Este bosque sombrio, esta floresta possível fazer mais — odeio ao falso,
por ninguém frequentada, eu os prefiro ao perjuro Proteu. Por isso, afasta-te!
aos centros florescentes e povoados. Não me importunes mais com teus pedidos.
Aqui sentar-me posso sem ser visto, Proreu : Empreenderia qualquer feito ousado,
e, em consonância com as dolentes notas ainda que logo após morrer devesse,
do rouxinol, cantar minhas desgraças para um olhar obter mais compassivo.
e recordar meus males. Tu que habitas Para quem ama, é grande maldição
neste peito dorido, não o deixes odiá-lo quem lhe prende o coração.
sem morador, de medo que o conjunto SíLvia : Se Proteu só encontra compaixão
venha a se desfazer, por arruinar-se, onde não pode amar, de Júlia lembra-te,
sem deixar nem memória do que fora. teu primitivo amor e mais sincero,
Vem reparar-me, Sílvia, com teu gesto! por cujo afeto dividiste a tua
Alegra o teu pastor, minha adorada! fidelidade em juras infinitas,
(Barulho dentro.) que em juras falsas transmudaste, quando
Quantos gritos na mata o dia todo! me dedicaste amor. Já não te resta
São meus homens; a lei depende deles; nenhuma fé, se duas não tiveres,
certamente dão caça a alguns viajantes. o que é pior do que nada. Antes nenhuma,
Têm-me amor; mas me custa muito esforço do que uma fé mostrar tão importuna.
evitar que ações más eles cometam. Traíste o teu melhor amigo.
Recua, Valentino... Quem vem vindo? ProrEU- Quem
(Afasta-se.) no amor respeita amigos?
(Entram Proteu, Sílvia e Júlia.) SÍLVIA * Todo o mundo,
Proreu - Madame, o que por vós fiz neste instante — menos Proteu.
conquanto não saibais tudo o que possa Prorteu: | Embora. Mas se o espírito
realizar vosso servo — a própria vida de elogientes palavras não tem meios
pondo em perigo para arrebatar-vos para vos alterar a dura forma,
das mãos de quem o amor vos forçaria, como soldado vou fazer a corte,
merece o prêmio de um olhar mais terno. de armas na mão, e amar-vos contra a própria
Almejar menor graça é-me impossível, natureza do amor: usando força.
nem menor poderíeis conceder-me. SíLvia * Oh céus!
VALENTINO (à parte) * ProTEU Hei de obrigar-vos ao que quero.
Como parece um sonho o que ouço e vejo! VALENTINO (avançando) *
Amor, dá-me paciência alguns instantes. Afasta-te, rufião! Não toques nela
SífLvia * Como sou infeliz! Quão miserável! com tuas mãos grosseiras! Falso amigo!
Proreu : Infeliz, senhorita, éreis há pouco; ProreEu : Valentino!
mas com minha chegada vos mudastes. VALENTINO Amigo de hoje, sem qualquer lealdade,
SíLvia* Mais infeliz fiquei com tua vinda, como o são todos! Falso! As esperanças
JuLia: (à parte) - Como eu, quando ele dela se aproxima. me burlaste; somente os próprios olhos
SíLvia : Antes um leão faminto me apanhasse! me poderiam dar esta certeza.

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Já não posso dizer que ainda me resta Quanto este coração tem padecido
um amigo, porque me desmentiras. por teus perjuros todos! Oh Proteu!
Quem merecera fé, se a mão direita Envergonha-te à vista destes trajes.
é infiel ao coração? Oh! Estou triste Possas corar por eu ter envergado
por nunca mais poder confiar em ti. vestes tão imodestas, se, de fato,
Por tua causa fugirei do mundo. pode haver imodéstia nos disfarces
O golpe da amizade é mais profundo. de que se vale o amor. Mas erra menos
Oh tempo ingrato! Que entre tanta gente a mulher no disfarce de um momento
seja traidor o amigo e confidente! do que o homem que troca o sentimento.
Proreu Confunde-me a vergonha do meu crime. Proreu * O homem que troca o sentimento!
Valentino, perdoa. Se a tristeza É certo.
do coração tiver força bastante Oh céus! Porque perfeito o homem ficasse,
para me redimir de minha culpa, falta-lhe ser constante. Esse defeito
aos teus pés a deponho. Minha falta o leva a cometer muitos pecados.
não é maior do que meu sofrimento. Que pode haver em Sílvia a todo instante,
VALENTINO Isso me satisfaz; torno a estimar-te que em Júlia não me mostre o amor constante?
como a um homem de bem. Quem não se dobra VALENTINO"
ao arrependimento, não pertence Vamos, sem mais demora dai-me as mãos.
nem ao céu nem à terra, que são brandos. Ver-vos unidos causa-me alegria;
Por penitência a cólera do Eterno não fora bem brigardes em porfia.
se deixa dominar. E como prova Proreu - Bem sabe o céu que o meu anelo era este.
de quanto o teu falar me comprazeu, JóLra- O meu também.
cedo-te tudo quanto em Sílvia é meu. (Entram proscritos com o duque e Túrio.)
JúLia- Ai de mim! Infeliz! ProscriTO - Uma presa! Uma presa!
Proreu: Acudam o pajem! VALENTINO * Parai! Parai! é o meu senhor, o duque.
VALENTINO * Então, rapaz! Que houve? Vamos! Sede bem-vindo Vossa Graça junto
Fala! de um homem cuja graça está perdida:
JúLia - Oh bom senhor, meu amo encarregou-me Valentino, o banido.
de entregar este anel a dona Sílvia, Duque: Valentino!
coisa que me esqueceu, por negligência. Túrio Ali está Sílvia, e Sílvia me pertence.
ProTEU E o anel, rapaz, onde se encontra? VALENTINO Túrio, ou recua, ou abraçarás a morte.
Jócia- É este Não te aproximes, porque não te possa
(Dá-lhe um anel.) tocar a minha cólera. Não digas
Proreu- Como! Deixa-me vê-lo. que Sílvia te pertence; se o fizeres,
Que acontece? Este anel eu dei a Júlia! nunca mais serás visto por Verona.
JúLia- Oh! Perdoai-me, senhor, mas houve engano. Ei-la diante de ti; mas não consinto
O anel de Sílvia é este. que te aproximes dela, nem, ao menos,
(Mostra outro anel.) que o teu hálito alcance a minha amada.
ProTEU* De que jeito Túrio : Sir Valentino, dela não me importo.
obtiveste este anel? Eu o dera a Júlia Considero tolice rematada
no momento de nossa despedida. chegar a pôr em risco a própria vida
Júzia : Pois foi a própria Júlia quem mo deu, por alguém que nos vota só desprezo.
ea própria Júlia que até aqui o trouxe. Não a reclamo, Sílvia, pois é tua.
Proreu: Como! Júlia! Duque: É preciso que sejas vil e baixo
JúLia : Contempla o alvo de todas as tuas juras, para a deixares tão covardemente
com carinho guardadas no imo peito. depois de haveres feito o que fizeste

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shakespearebrasileiro.org Os DOIS CAVALHEIROS DE VERONA

no afã de conquistá-la. Pelo nome de novo para a corte. Corrigidos


impoluto de meus antepassados, já se acham; são honestos, generosos
tua coragem, Valentino, arranca-me e capazes, senhor, de altos serviços.
aplausos efusivos; considero-te Duque : Concedo tudo; a eles e a ti perdôo.
digno de desposar uma princesa. Emprega-os como achares conveniente.
Digo-te, pois, que neste instante esqueço Vamos; concluamos nossas dissidências
os agravos passados, renuncio com triunfos, alegria e altos festejos.
a todo o meu rancor e, ainda, de novo VALENTINO * Em caminho farei todo o possível
te reconduzo à corte. Tens direito para deixar Vossa Grandeza alegre.
de pedir novo estado, o que confirmo Que pensa Vossa Graça deste pajem?
de antemão; pelo muito que mereces. Duque: Como rapaz, tem graça; está corado.
Valentino, és fidalgo de alto sangue; VALENTINO * Para rapaz, terá graça excessiva.
mereceste ficar com tua Sílvia. Duque : Que quereis insinuar com o trocadilho?
VALENTINO * Fico muito obrigado a Vossa Graça VALENTINO
por esse dom que tão feliz me deixa. Se não vos desagrada, hei de contar-vos,
Agora, por amor de vossa filha e isso vos vai deixar estupefacto,
desejava fazer-vos um pedido. tudo o que se passou. Vamos, Proteu;
Duque Seja qual for, por ti vais alcançá-lo. será vosso castigo ouvir a história
VALENTINO * Estes banidos, entre os quais vivi, só dos vossos amores. Depois disso,
são pessoas de excelsas qualidades. no mesmo dia nós nos casaremos:
Perdoai-lhes os excessos e chamai-os uma festa, uma casa, uma ventura.
(Saem.)
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analysis Plays
quotations
sources Establishing the chronology of
biography
Shakespeare's plays is a most frustrating
theatres
and difficult task. It is impossible to know the
key dates
plots
exact order of succession because there is
faq
no record of the first production date of any
books of Shakespeare's works. However, scholars
glossary have decided upon a specific play
scholars chronology, based upon the following
quiz sources of information: 1) several historical
events and allusions to those events in the
search
plays; 2) the records of performances of the
plays ­­ taken from such places as
Henslowe's diary and the diaries of other
Shakespeare contemporaries like John
 
Manningham (a student at the Inns of Court),
and Thomas Platter (a Swiss businessman);
3) the publication dates of sources; 4) the
dates that the plays appear in print
(remembering that the production of a play
immediately followed the completion of that
play in the Elizabethan age). Despite the fact
that we have an accepted play chronology,
we must keep in mind that the dating is
conjectural. 

Please click on each play to find extensive
study resources and fascinating details.
Please see The Historical Settings of
Shakespeare's Plays (by Date) for a
chronology of the content of the plays.

First First
Plays
Performed Printed
Henry VI,
1590­91 1594?
Part II
Henry VI,
1590­91 1594?
Part III
Henry VI,
1591­92 1623
Part I
1592­93 Richard III 1597
Comedy of
1592­93 1623
Errors
Titus
1593­94 1594
Andronicus
Taming of
1593­94 1623
the Shrew
Two
1594­95 Gentlemen 1623
of Verona
Love's
1594­95 Labour's 1598?
Lost
Bard Bites 
Romeo and
Romeo and
1594­95 1597 Dramatist and Shakespearean scholar Nicholas Rowe
Juliet
was the first to write a critical (annotated) edition of
1595­96 Richard II 1597 Shakespeare's works. 
___ 
A
The average length of a play in Elizabethan England was
Midsummer 3000 lines. With 4,042 lines and 29,551 words, Hamlet is
1595­96 1600
Night's the longest Shakespearean play (based on the first
Dream edition of The Riverside Shakespeare (1974)). With
1,787 lines and 14,369 words, The Comedy of Errors is
1596­97 King John 1623 the shortest Shakespearean play (also based on the first
edition of The Riverside Shakespeare). 
The ___ 
1596­97 Merchant 1600
of Venice Shakespeare's late comedies are considered romances:
The Winter's Tale, The Tempest, Cymbeline, and
Henry IV, Pericles. The Two Noble Kinsman is also sometimes
1597­98 1598 mentioned along side these other plays as a romantic
Part I comedy. 
___ 
Henry IV,
1597­98 1600
Part II Love's Labour's Lost has the highest percentage of
rhyming lines of all of Shakespeare's plays. According to
Much Ado Shakespearean scholar Tucker Brooke, 62.2% of the
1598­99 About 1600 lines in Love's Labour's Lost rhyme. The closest
Nothing competitor is A Midsummer Night's Dream, with 43.4%
rhyming lines. 
1598­99 Henry V 1600 ___ 

Julius The historical time of King Lear is roughly 800 BC,
1599­1600 1623 making it the second­earliest setting of any of
Caesar
Shakespeare's plays. Click here to find out the first. 
As You Like
1599­1600 1623
It
Twelfth
1599­1600 1623
Night
1600­01 Hamlet 1603
The Merry
1600­01 Wives of 1602
Windsor
Troilus and
1601­02 1609
Cressida
All's Well
1602­03 That Ends 1623
Well
Measure
1604­05 for 1623
Measure
1604­05 Othello 1622
1605­06 King Lear 1608
1605­06 Macbeth 1623
Antony and
1606­07 1623
Cleopatra
1607­08 Coriolanus 1623
Timon of
1607­08 1623
Athens
1608­09 Pericles 1609
1609­10 Cymbeline 1623
The
1610­11 Winter's 1623
Tale
The
1611­12 1623
Tempest
1612­13 Henry VIII 1623
The Two
1612­13 Noble 1634
Kinsmen*

*The Two Noble Kinsmen is listed as one of
Shakespeare's plays although it must be
noted that all but a few scholars believe it not
to be an original work by Shakespeare. The
majority of the play was probably written by
John Fletcher, who was a prominent actor
and Shakespeare's close friend. Fletcher
succeeded Shakespeare as foremost
dramatist for the King's Men (the successor
to the Chamberlain's Men). 

How to cite this article:
Mabillard, Amanda. The Chronology of
Shakespeare's Plays. Shakespeare
Online. 20 Aug. 2000. <
http://www.shakespeare­
online.com/keydates/playchron.html >.

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Last updated 01/22/2022 11:42:27
http://www.shakespeare-online.com/keydates/playchron.html

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