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As Comédias
A Comédia dos Erros
Trabalhos de Amor Perdidos
Os Dois Cavalheiros de Verona
A Megera Domada
Sonho de uma Noite de Verão
O Mercador de Veneza
Muito Barulho por Nada
As Alegres Comadres de Windsor
Como Quiserem
Noite de Reis; ou, O Que Você Quiser
Bem Está o que Bem Acaba
Medida por Medida
Tróilo e Créssida
As Histórias
Parte 1 de Rei Henrique VI
Parte 2 de Rei Henrique VI
Parte 3 de Rei Henrique VI
A Tragédia do Rei Ricardo III
A Vida e Morte do Rei João
A Tragédia do Rei Ricardo II
Parte 1 de Rei Henrique IV
Parte 2 de Rei Henrique IV
A Vida do Rei Henrique V
A Famosa História da Vida do Rei Henrique VIII
As Tragédias
Tito Andrônico
Romeu e Julieta
Júlio César
Hamlet, Príncipe da Dinamarca
Otelo, O Mouro de Veneza
Rei Lear
Macbeth
Timão de Atenas
Antônio e Cleópatra
Coriolano
Os Romances
Péricles
Cimbelino
O Conto do Inverno
A Tempestade
Os Dois Nobres Parentes
Tradução de Carlos Alberto Nunes
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Henrique VI - Parte I......................................................................................................7
Ricardo III....................................................................................................................173
Tito Andrônico.............................................................................................................274
A Megera Domada.......................................................................................................322
Shakespeare
Introdução (David Bevington)
A visão providencial desses eventos não foi nunca totalmente endossada pelos
cronistas e certamente não foi por Shakespeare. O esquema global de Edward Hall é
indiscutivelmente providencial, e ainda, como um historiador, ele apresenta uma
multiplicidade de detalhes que, cumulativamente, levantam difíceis questões de
interpretação. Ao mesmo tempo, a visão providencial fazia uma boa propaganda para o
regime Tudor, e, como tal, ela deu ampla atualidade à teoria da ira de Deus com relação
a um povo rebelde. O resultado da guerra parece confirmar esse padrão: devastação
universal e a morte dos responsáveis pelo conflito levaria, eventualmente, de acordo
com a teoria, ao apaziguamento da ira de Deus e a restauração da ordem. Ricardo
Plantagenet morreu no conflito, assim como Henrique VI, o filho de Henrique, Eduardo
e muitos outros da nobreza Inglesa. O filho de Ricardo, Eduardo, sobrevive para tornar-
se Eduardo IV, mas sua forma de obter o trono foi tão manifestamente ofensiva à
Providência que (de acordo com a teoria) ele sofreu uma morte compensatória nas mãos
de um Deus furioso, e foi sucedido pelo seu irmão mais novo, Ricardo III. Esse último
rei Yorkista governou apenas dois anos, de 1483 a 1485, e foi através da insana
vingança de Ricardo que Deus, finalmente, vingou-se do caprichoso povo Inglês. Tendo
completado essa purgação, Deus escolheu como seu instrumento de uma nova ordem
Henrique Tudor, Conde de Richmond, Henrique VII. Apesar do retorno de Henrique à
Inglaterra e a derrota de Ricardo na batalha do Campo Bosworth poderem externamente
relembrar o confisco do poder de Henrique IV em detrimento de Ricardo II, a diferença
era crucial para os apologistas Tudors. Ricardo III seria visto, do ponto de vista dos
Tudor, não como um monarca legítimo equivocado, mas como um usurpador louco e
tirano; sua derrota não foi apenas o ato de desobediência de um homem, mas o levantar-
se da nação Inglesa inteira perante à incitação do comando divino. A ascensão de
Henrique VII ao poder foi oficialmente vista não como um precedente para mais
rebelião, mas como uma manifestação da vontade divina sem paralelo na história da
humanidade.
A essência dessa visão providencial dos eventos era que o castigo divino e a
eventual reconciliação revelavam-se na história da guerra. A teoria, claro, servia aos
interesses do estado Tudor e era, em parte, uma arma de propaganda calculadamente
empregada pela classe governante. A aceitação de Shakespeare a tal teoria não deve ser
tomada de antemão, e, de fato, vários estudos recentes expressaram um profundo
ceticismo em relação à teoria como uma base para a dramaturgia de Shakespeare.
Especialmente em sua segunda tetralogia, ou série de quatro peças, de Ricardo II a
Henrique V, Shakespeare revela consideravelmente mais interesse no conflito de
personalidades do que nos padrões de castigos divinos. Shakespeare não endossa à visão
ortodoxa, que o confisco de poder de Bolingbroke foi uma violação do propósito divino
pelo qual ele e a Inglaterra deveriam ser submissos; em vez disso, Shakespeare retrata
às questões com múltiplos aspectos e sujeitas a várias interpretações.
Mesmo assim, a ameaça à Inglaterra não é vista como uma conspiração católica
completamente; Winchester é apenas um oportunista buscando explorar as vacilações
políticas e o fragmentarismo da corte. De mais perigo a longo prazo é Ricardo
Plantagenet, descendente da reivindicação Yorkista. Desde o início, Shakespeare
retrata-o como astuto, capaz de insinuar-se e aguardar por seu momento e, finalmente,
brutal. Com essas qualidades, ele ameaçadoramente prenuncia seu filho mais jovem e
xará, Ricardo III. Nessa peça, a estratégia de Plantagenet é permitir que a Inglaterra
quebre através dos vários conflitos na corte e com as perdas militares no exterior; uma
vez que a situação é reduzida à anarquia, Plantagenet estará apto a mover-se. A
estratégia funciona muito bem.
Personagens
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shakespearebrasileiro.org Henrique VI
da perda de cidades tão valiosas, GLosreR* Corramos para o peito dos imigos;
rompe ele o chumbo e se alça de entre os mortos. Bedford, se ainda vacilas, eu combato.
GLosTER* Paris caiu? Ruão capitulou? Beprorp : Por que duvidas, Gloster, do meu brio?
Se Henrique revivesse, essa notícia No pensamento trago ingentes forças
o faria exalar de novo o espírito. com que a França já está desbaratada.
ExerER - Como foi isso? Que traição usaram? (Entra terceiro mensageiro.)
MENSAGEIRO * Terceiro MENSAGEIRO *
Traição nenhuma; foi por falta de homens Meus graciosos senhores, porque lágrimas
e de dinheiro. Entre os soldados fala-se acrescenteis às que o cadáver banham
que mantendes aqui facções diversas do Rei Henrique, a nova ora vos trago
e que, em vez de ingressardes nos combates, do combate terrível ocorrido
discutis sobre a escolha do comando. entre o altivo Talbot e as forças francas.
Este opina que a luta se protele WINCHESTER *
sem despesas de vulto; outro quisera Em que Talbot venceu, não é verdade?
voar ligeiro, mas carece de asas; Tercerro MENSAGEIRO *
um terceiro é de aviso que, sem gastos Oh, não! em que o vencido foi Talbot.
de espécie alguma, apenas com palavras Vou contar-vos por miúdo as circunstâncias.
bonitas e escolhidas fora fácil A dez de agosto esse temível lorde,
alcançarmos a paz. Nobres ingleses, que escassos seis mil homens comandava,
despertai! despertai! não consentindo ao levantar o cerco de Orleans
que a indolência conspurque vossos títulos se viu cercado pelas tropas francas,
recentes. Vossas armas já perderam vinte e três mil ao todo. Não dispondo
todos os lírios; ora tendes menos de tempo, para em ordem pôr seus homens,
da metade do escudo da Inglaterra. nem de piques que à frente dos archeiros
ExeTER Se carência de lágrimas tivéssemos colocasse, eis agudas varas tira
para estes funerais, tão ruins notícias dos cercados de em torno, e manda à pressa
no-las trariam em marés estuantes. no chão fincá-las, como se pudesse,
Beprorp : Excitam-me essas novas; sou regente para impedir o avanço dos cavalos.
da França. Tragam minha cota de armas; O combate durou mais de três horas,
lutarei pela França. Despojemo-nos em que, de lança e espada o inimitável
destas vestes de luto vergonhosas. Talbot perfez milagres que transcendem
Em vez de olhos, feridas nos franceses a inteligência humana. Para o inferno
abrirei, para que eles chorar possam mandou ele centenas de franceses;
suas desgraças ora interrompidas. ninguém se abalançava a resistir-lhe.
(Entra outro mensageiro.) Por aqui, por ali, por toda parte
SEGUNDO MENSAGEIRO * enraivado corria; os inimigos
Nobres, lede estas cartas transbordantes o tinham como autêntico demônio.
de notícias ruins. Contra o domínio O exército francês, estarrecido
da Inglaterra está a França revoltada, diante dele ficou; seus comandados,
com exceção de cidades secundárias. presenciando tão grande valentia,
O delfim Carlos foi coroado em Reims; “Talbot! Talbot!” gritavam, atirando-se
o bastardo de Orleans a ele se uniu; em pleno coração da luta ingente.
Reignier, Duque de Anjou, foi reforçá-lo; E a vitória teria sido nossa,
o Duque de Alençon se acha a seu lado. se papel de covarde não fizesse
ExeTER* Foi coroado o delfim? Para ele correm Sir John Fastolfe, que por trás se achava
todos os nobres? Oh! E nós para onde da vanguarda com o fim de reforçá-la
de tão grande vergonha fugiremos? no perigo e segui-la, e que, de súbito,
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Ato T- Cena II
França. Diante de Orleans. do focinho, ou se tornam miseráveis
Entram Carlos, com suas tropas, Alençon, Reignier e como ratos no ponto de afogar-se.
outros. REIGNIER* Levantemos o cerco. Por que estarmos
aqui sem fazer nada? Quem temíamos,
CarLos: No céu, como na terra, o verdadeiro já está preso: Talbot. Só resta o louco
curso de Marte ainda não se conhece. Salisbury, que pode a própria bile
Aos ingleses propício era ele, há pouco; gastar em pura perda, pois carece
propício agora é a nós, pois que vencemos. de homens e de dinheiro para a guerra.
Que cidades de monta ainda nos faltam? CarLOs* Mandai tocar alarma! Vamos a eles,
Diante de Orleans estamos sossegados, pela honra dos franceses que perdemos!
e os ingleses, quais pálidos fantasmas, Perdoarei a quem quer que hoje me mate,
uma hora só por mês nos dão combate. se eu recuar um só passo no combate.
ALENÇON* Necessitam de caldo e gordo bife; (Saem.)
ou no jeito de mulos são tratados, (Rebate; movimento de tropas; depois, retirada. Voltam
com o saco de comida sempre perto Carlos, Alençon, Reignier e outros.)
EÉ
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Henrique VI
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shakespearebrasileiro.org e Henrique VI
Ato T- Cena HI
Londres. Diante da Torre. PrimEIRO CRIADO *
Ante as portas apresenta-se o Duque de Gloster com seus Abri as portas, depressa, para o Lorde
criados de uniforme azul. Protetor; do contrário, as quebraremos.
(Entra Winchester, seguido de criados com uniforme
GLosTER: Vim hoje inspecionar a Torre. Temo aleonado.)
que haja contravenção depois da morte WINCHESTER *
de Henrique. Abri! É Gloster que vos fala. Que ora pretendes, Humphrey ambicioso?
(Os criados batem.) GLosTER* Padre careca, é certo que deste ordem
PriMEIRO GUARDA (dentro) para impedir-me a entrada?
Quem bate por tal modo autoritário? WINCHESTER * Dei, por seres
PrimEIRO CRIADO * usurpador sem fé, não protetor
É o nobre duque. Abri! Duque de Gloster. do reino nem do rei.
SEGUNDO GUARDA (dentro) * GLOSTER* Fora, patente
Seja quem for, entrar é que não entra. conspirador! A morte do nosso último
PriMEIRO CRIADO soberano por ti foi concertada.
Vilãos! Usais de semelhantes termos Permitiste às rameiras o pecado.
com o Lorde Protetor? Vou fazer logo uma devassa nesse
PrimEIRO GUARDA (dentro) * Deus o proteja, chapéu cardinalício, caso sigas
é o que podemos responder. Estamos a pompear tua incrível insolência.
cumprindo ordens somente, e ordens são ordens. WINCHESTER * Recua tu; não cederei um passo.
Grosrer - Que ordens são essas? Quem aqui dá ordens Seja isto outro Damasco, e tu, se o queres,
senão eu, tão-só eu, que sou do reino o maldito Caim, para matares
o único protetor? Quebrai as portas; a Abel, teu próprio irmão.
eu respondo por isso. Hei de deixar-me GLOSTER* Não vou matar-te;
ludibriar desse modo por uns sujos? vou fazer-te recuar usando dessa
(Os homens de Gloster se arremessam contra a porta; vestimenta escarlate como se ela
da parte de dentro aproxima-se o Tenente Woodvile.) fosse uma toalha de batismo para
WooDVILE* te carregar e por longe daqui.
Quem faz esse barulho? Que traidores temos aí? WINCHESTER *
GrosrER: Tenente, conheci-vos Faze como quiseres; desafio-te cara a cara.
pela voz; abri as portas; fala Gloster; GLosrer: Ah! É assim? Tens a ousadia
desejo entrar. de desafiar-me? Olá, meus homens, basta
WoopviLE: Paciência, nobre duque; de atenção ao lugar: espadas fora!
não posso obedecer; foi o Cardeal Uniformes azuis contra aleonados!
de Winchester que o mandou; recebi ordens Padre, toma cuidado com tua barba.
expressas de me opor à tua entrada (Gloster e seus homens atacam o cardeal.)
e à de qualquer pessoa do teu séquito. Vou arrancá-la e moer-te a cachações.
GLOSTER* Quero pisar nesse chapéu de bicos;
Oh fraco Woodvile! Tem-lo em maior conta em que pese ao teu papa e às dignidades
do que a mim? À esse estúpido prelado, da Igreja, puxar-te-ei pelas bochechas
Winchester arrogante, que nosso último em todos os sentidos, hás de ver.
soberano jamais suportar pôde? WINCHESTER Gloster, responderás isto ante o papa.
Não tens amor a Deus nem a teu rei. GLOSTER*
Abre logo; se não, jogar-te-ei fora. Winchester, ganso de uma figa! Tragam-me
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Ato T- Cena IV
França. Diante de Orleans. para obter graça. Os espiões do príncipe
Aparece sobre os muros o canhoneiro-mestre com o filho. me informaram há pouco que os ingleses
que estão entrincheirados nos subúrbios
CANHONEIRO-MESTRE vão até aquela torre por passagem
Maroto, não ignoras que a cidade secreta, para espiar-nos a cidade,
se acha cercada e que os ingleses donos a fim de verem qual o melhor meio
já são de seus subúrbios. de nos causarem dano, seja a tiros
O FirLHo: Pai, é certo; de artilharia, seja de escalada.
e muitas vezes já atirei contra eles, Para neutralizar o inconveniente,
mas sem sorte, pois nunca acertei no alvo. coloquei uma peça na passagem
CANHONEIRO-MESTRE * e, há três dias, estou de sentinela
Vais acertar; orienta-te por mim; com o fito de apanhá-los. Mas agora, *
sou o canhoneiro-mestre da cidade; pequeno, fica tu, que me é impossível
preciso realizar alguma proeza demorar por mais tempo.
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Henrique VI
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Ato T- Cena V
O mesmo. Diante de uma das portas. Vou agora prover sobre alimentos
Rebate; escaramuças. Entra Talbot perseguindo o delfim para a cidade.
e obrigando-o a recuar. Depois, entra Joana la Pucelle, (Pequeno rebate; a Pucela entra para a cidade, com seus
fazendo sair à força vários ingleses. Talbot torna a entrar. soldados.)
Apanha-me, se o podes.
TaLsor: Onde está meu poder e minha força? Desprezo-te o poder. Vai dar coragem
Meu valor onde se acha? Nossas tropas aos ingleses famintos; vai! Ajuda
inglesas se retiram; já não posso Salisbury a fazer o testamento.
nem detê-las; a vista, unicamente, Foi nosso o dia; outros iguais teremos.
de arnesada mulher as põe em fuga. (Sai)
(Torna a entrar Joana la Pucelle.) TaLBor: Giram-me os pensamentos como roda
Ei-la! Quero provar a minha força. de moleiro; não sei onde me encontro,
Demônio ou mãe do diabo, eu te conjuro! nem o que faço. Aquela feiticeira,
És feiticeira; vou tirar-te sangue não por meio da força, como Aníbal,
para tua alma entregar logo ao diabo. mas influindo-lhes medo, expulsa as tropas
Joana- Vem, vem; ver-te-ás, assim, já derrotado. e vence onde lhe apraz, tal como o fumo
(Combatem.) faz às abelhas e o mau-cheiro às pombas,
TaLBor: Consentes, céu, que o inferno prevaleça? dos pombais e colmeias espantando-as.
Farei o coração em pedacinhos Nossa fereza nos valeu a alcunha
com a tensão da coragem, e dos ombros de cães ingleses; tímidos, agora,
os braços tirarei, contanto que hoje como cãezinhos, a ganir, fugimos.
castigue esta rameira corajosa. (Pequeno rebate.)
(Tornam a lutar.) Concidadãos, ou renovai o ataque,
Joana: Adeus, Talbot; tua hora ainda não veio. ou retirai os leões desses escudos!
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Ato T- Cena VI
O mesmo. ALENÇON" Há que rejubilar a França inteira,
Aparecem sobre os muros Joana la Pucelle, Carlos, quando souber de como nos portamos.
Reignier, Alençon e soldados. Cartos: Não fomos nós, foi Joana a vencedora.
Por isso, quero seja também dela
Joana: Nossas cores ondeiam sobre os muros, minha coroa. Seu louvor infindo,
Orleans foi retomada dos ingleses; hão de cantar em procissão os monges
assim cumpriu Joana o prometido. e os padres do meu reino. Vou construir-lhe
CaRrLOS* Criatura divinal, filha de Astréia,
pirâmide mais alta que a de Mênfis
de que modo te honrar por tal vitória?
ou de Ródope e em sua remembrança,
Como o jardim de Adônis é o teu voto:
quando vier a morrer, pôr-lhe-ei as cinzas
um dia, todo em flor; no outro, só frutos.
França, exulta com tua profetisa numa urna mais preciosa do que o cofre
gloriosa: retomada foi Orleans! de Dario, com jóias recamado,
Maior bênção jamais nos coube em sorte. que levada será sempre nas festas,
ReicniER* Por que não repicarem logo os sinos diante dos reis da França e das rainhas.
da cidade? Delfim, ordena a todos Não mais diremos: “São Dionísio!” Joana
os cidadãos que acendam ledos fogos la Pucelle será a santa da França.
e que se banqueteiem ao ar livre, O banquete aprestemos; a vitória
pelas ruas, a fim de celebrarmos de hoje vai nos trazer excelsa glória.
o triunfo que por Deus nos foi mandado. (Saem.)
Ato IF - Cena l
Diante de Orleans. Assim se dá com os pobres
Aparecem na porta um sargento francês e duas sentinelas. servidores. Enquanto os outros dormem
sossegados na cama, nós vigiamos
SARGENTO À postos e olho aberto, meus senhores. sem ter vontade disso, neste escuro,
Se ouvirdes algum ruído, ou perceberdes tomando chuva e a tiritar de frio.
soldados junto aos muros, logo ao corpo (Entram Talboi, Bedford, Borgonha, com tropas e
da guarda nos mandai um claro aviso. escadas de escalar; os tambores tocam uma marcha
PRIMEIRA SENTINELA * fúnebre.)
Pois não, sargento. TaLBor: Lorde regente e vós, Borgonha excelso,
(Sai o sargento.) cuja chegada nos valeu as terras
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de Artois, da Picardia e o país Valão, ALENÇON Então, senhores! Ainda nestes trajos?
os franceses se crêem muito seguros O BastTARDO*
nesta noite feliz, tendo passado Ainda, e contentes por estarmos fora.
todo o dia em banquetes e festanças. ReIcNnIER* Sim, já era tempo de deixar os leitos,
Aproveitemos a oportunidade que o barulho até os quartos nos chegara.
para lhes darmos quitação da fraude ALENÇON-* Desde que comecei a trazer armas,
que só puderam realizar por meio jamais tive noticia de uma empresa
de arte diabólica e da mais funesta que se compare com esta em desespero
feitiçaria. e lance de ousadia.
BEDFORD : França sem coragem! O Bastarpo* Esse Talbot,
É ele mesmo que mancha sua alta fama; quero crer, é um espírito do inferno.
por não crer no vigor do próprio braço, REIGNIER* Se não o inferno, o céu o favorece.
junta-se a bruxas e recorre ao inferno. ALENÇON * Eis Carlos; maravilha que escapasse.
BorcoNHA* O BastarDO* Caluda! Santa Joana defendeu-o.
Os traidores não têm outros comparsas. (Entram Carlos e Joana la Pucelle.)
Mas quem é essa Pucela que apregoam CarLOS* Essa é a tua força, dama enganadora?
ser tão casta?
Quiseste lisonjear-nos, ensejando-nos
Tarsor: Uma virgem, dizem todos.
vitória no começo, para agora
BEDFORD : Uma virgem? E assim tão belicosa?
ser dez vezes maior a nossa perda.
BorconHa Rezemos para que ela não se mostre
Joana Por que se mostra Carlos impaciente
tão masculina assim por muito tempo,
com os amigos? Supondes ser possível
caso armada prossiga sob as cores
que o meu poder jamais se modifique?
dos franceses, tal como no começo.
Tenho de ganhar sempre, quer esteja
TarBor: Eles que continuem conversando
velando, quer dormindo, porque a culpa
com os espíritos. Deus é o nosso burgo;
não me atireis por tudo o que aconteça?
sob o seu nome incontrastável vamos
escalar estes muros de granito. Imprevidentes! Se tivesses feito
boa guarda, esta súbita derrota
BeproRD Sobe, bravo Talbot, que te seguimos.
TALBOT Juntos, não. É melhor, segundo penso, não poderia nunca ter-se dado.
entrarmos por lugares diferentes, CaRLOS* Foi vossa a falta, Duque de Alençon,
porque se acontecer que um de nós falhe, pois como comandante dos vigias
o outro pode enfrentar os inimigos. desta noite, não destes a importância
Beprorp : Muito bem; eu escalo aquele canto. devida a comissão tão delicada.
BorconHa- E eu este outro. ALENÇON* Se em vossos quarteirões a vigilância
TaLBoT* Talbot sobe por este, fosse tão eficiente como a minha,
ou cavará sua própria sepultura. não teríamos sido surpreendidos
Salisbury, por ti e pelo direito tão vergonhosamente.
do inglês Henrique, eis-me em combate! Possa O BasTARDO* No meu lado
revelar esta noite quanto eu me acho havia segurança.
pela dedicação a ambos ligado. Rerenier: Deigual modo
(Os ingleses escalam os muros aos gritos de “São Forge! no meu.
Talbot!” entrando todos na cidade.) CaRrLOS* Só sei dizer que toda a noite
PrIMEIRA SENTINELA* passei andando de um para outro lado
Às armas! O inimigo nos assalta! na porção que tocou a mim e a Joana,
(Os franceses saltam os muros, em camisa. Entram por revistando sem pausa as sentinelas.
lados diferentes, o bastardo de Orleans, Alençon, Reignier, Mas afinal, por onde eles entraram?
incompletamente vestidos.) Joana: Não vem ao caso essa questão, milorde,
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VI
por onde, ou de que modo. Não padece (Rebate; entra um soldado inglês gritando “Talbot! Talbot!”
dúvida que um lugar eles acharam Todos fogem, deixando as vestes.)
mal vigiado, por onde entrar puderam. SoLDADO" Sou dono de quanto eles me deixaram.
Agora só nos resta este recurso: O só nome “Talbot” me é como espada,
reunir as nossas forças tresmalhadas pois estou carregado de despojos
e excogitar os meios de causarmos sem usar de outras armas que seu nome.
novos e grandes danos ao inimigo. (Sai)
Ato IH Cena ll
Orleans. Dentro da cidade. pus em fuga o delfim e sua amásia,
Entram Talbot, Bedford, Borgonha, um capitão e outros. quando, de braços dados, eles iam
como um par de rolinhas amorosas,
Beprorp O dia já começa; a noite foge que dia e noite estão sempre juntinhos.
com seu manto de pez que nos cobria. Depois que tudo aqui ficar em ordem,
Mandai cessar a caça aos inimigos. com toda a nossa força os persigamos.
(Toque de retirada.) (Entra um mensageiro.)
TaLBor* Ponde o corpo do velho Salisbury Mensaceiro * Milordes, salve! Aqui, nesta assembléia,
na praça do mercado, bem no meio quem tem o nome de Talbot guerreiro,
da cidade maldita. Considero tão famoso e aplaudido em toda a França?
pago o voto dicado à sua alma nobre, Tazsor- Talbot sou eu. Quem é que quer falar-me?
já que, por cada gota de seu sangue, MENSAGEIRO *
cinco franceses, pelo menos, esta A Condessa de Auvergne, alta e virtuosa,
noite morreram. Para que as idades admirando, modesta, o teu renome,
futuras venham a saber da ruína por mim, grande senhor, te pede queiras
feita para vingá-lo, neste templo no seu pobre castelo visitá-la,
principal vou mandar construir um túmulo para que ela, orgulhosa, dizer possa
para nele depormos seus despojos, que contemplou o herói cuja alta glória
e aí farei gravar, para que todos por todo o mundo em seu louvor ressoa.
possam ler, os horrores deste saque, BorconHa- Sério? Pelo que vejo, nossa guerra
a maneira traiçoeira de sua morte vai transformar-se em cômico desporto,
e o pavor que na França ele infundia. pois que as damas aprazam entrevistas.
Mas, senhores, admira-me que em nosso Não podeis recusar esse convite,
cruento morticínio não tenhamos milorde, tão gentil.
encontrado o delfim nem sua nova TaLsor: Decerto; crede-me.
campeã, essa virtuosa Joana d'Arc, O que a um mundo de gente nunca fora
nem qualquer de seus falsos companheiros. possível com os recursos da oratória,
Beprorp Dizem, Lorde Talbot, que eles saltaram é fácil à bondade feminina.
das camas sonolentas no começo Dizei-lhe que lhe envio muitas graças
da refrega e pularam as muralhas e que, submisso, intento visitá-la.
por entre homens armados, para abrigo Vossas Honras não querem secundar-me?
procurarem no campo. BEDFORD"
BorcoNHA* Eu próprio, — quanto De forma alguma; é contra os bons costumes.
me era possível distinguir no meio Hóspede oferecido, como dizem,
da fumaça e da névoa desta noite — só é bem-vindo quando se despede.
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Henrique VI
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por uma rosa branca, justamente SomersET : Plantageneta, a tua tem espinhos?
como Plantageneta deu o exemplo. PLANTAGENETA *
SurFOLK* E eu apanho uma rosa rubra, como Sim, possui um, pontudo e de bom corte,
o jovem Somerset, por estar certo com que eu defenda o meu direito, ao passo
de que ele em tudo se acha com a verdade. que a tua nutre o bicho da mentira.
Vernon: Parai de colher flores, meus senhores; SOMERSET*
não prossigais sem decidirdes antes Hei de, certo, encontrar amigos que usem
que o lado que ficar com menos rosas minha rosa de sangue e que sustentem
à opinião do adversário se submete. a verdade de tudo quanto eu disse,
SOMERSET* sendo que tu, Plantageneta hipócrita,
Meu bom mestre Vernon, bem observado; correrás com vergonha de ser visto.
se menos eu tiver, quieto subscrevo. PLANTAGENETA* Por esta rosa virginal que tenho
PLANTAGENETA* Eu também. na mão, eu te desprezo e aos teus comparsas,
VERNON: Então, em nome da verdade, como rapazinho teimoso.
da evidência da causa, esta flor pálida SUFFOLK* Não dirijas,
e virginal eu colho, decidindo-me, Plantageneta, para nós o escárnio.
desta maneira, pela rosa branca. PLANTAGENETA"
SomerseT: Cuidado! Não te piques ao colhê-la, Faço-o, Pole orgulhoso; eu vos desprezo
porque teu sangue não transforme a rosa a ambos sem distinção.
branca em rosa vermelha, o que faria SUFFOLK* A minha parte
ficares do meu lado a contragosto. hei de enfiar-te no peito.
VERNON Se por minha opinião eu perder sangue, SOMERSET* Basta, basta,
milorde, essa opinião será meu médico, bom William de la Pole; conferimos
para curar-me logo e, assim, deixar-me muita honra a este labrego, discutindo
do lado em que me encontro por vontade. com ele tanto tempo.
SomERSET* Bem; vamos. Quem mais quer? Warwick" Por Deus, é ser injusto, Somerset.
O Jurista (a Somerset) . O avô dele era o Duque de Clarence,
Se meus livros e o estudo não me enganam, Lionel, terceiro filho do terceiro
as razões que aduzis não vos amparam. Eduardo da Inglaterra. De raízes
Por isso, eu colho uma das rosas brancas. tão fundas brotam rústicos sem títulos?
PLANTAGENETA* PranTAGENETA* Ele é aproveitador dos privilégios
E agora, Somerset, onde se encontra do lugar. Não fora isso, o peito fraco
vosso argumento? não lhe permitiria dizer nada.
SOMERSET: Aqui, nesta bainha, SoMERSET: Por quem me deu à luz, hei de a palavra
pensando na maneira por que possa sustentar em qualquer parte de nossa
deixar tinta de sangue a rosa branca. cristandade. Teu pai, Ricardo, Conde
PLANTAGENETA* Nas faces, enquanto isso, falsificas de Cambridge, não foi executado
a cor de nossas rosas, pois se encontram como traidor, no tempo do rei morto?
descoradas de medo, em testemunho E essa traição não te atingiu, manchando-te,
de que a verdade está do nosso lado. corrompendo-te e excluindo-te do quadro
SomERSET:* Perdão, Plantageneta, não de medo, da nobreza da terra? Ainda carregas
mas de cólera, à vista dessas faces no sangue mancha do seu ato ignóbil.
que imitam nossas rosas e se tornam És um labrego, até que não te limpes.
vermelhas de vergonha. Apesar disso, PLANTAGENETA* Acusaram meu pai, porém contra ele
não te confessa a língua o erro em que te achas. nada ficou provado. Muito embora,
PLANTAGENETA* Tua rosa não tem bicho, de fato, o houvessem condenado à morte
Somerset? como traidor, traidor não foi, jamais,
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Henrique VI
Ato I Cena V
Londres. Um quarto na Torre. se curvam sob o fardo das agruras;
Entra Mortimer, carregado por dois carcereiros, numa os braços dessangrados se assemelham
cadeira de braços. a vinha que no solo arrasta os ramos
sem seiva e sem vigor. Os pés, contudo,
MorriMER* Cuidadosos guardiões da minha fraca entorpecidos da inação forçada,
velhice, ora deixai que o moribundo não mais podendo suportar o peso
Mortimer fique aqui. Como pessoa desta pouca de argila, asas revelam
retirada do potro do suplício, do anelo do sepulcro, por saberem
sinto os membros, após prisão tão longa. que me falece outro qualquer recurso.
Estes cabelos brancos, mensageiros Mas meu sobrinho, carcereiro? Vem?
da Morte, envelhecidos em cuidados, PrimEIRO CARCEREIRO *
como o idoso Nestor, o fim de Edmundo Senhor, Plantageneta está em caminho;
Mortimer já proclamam. Estes olhos, mandamo-lo chamar no quarto dele,
como lâmpadas de óleo esperdiçado, no templo. Respondeu-nos que viria,
já se tornaram foscos, sinal certo sem demora, aqui ter.
de estar chegando o fim; os ombros débeis MoRTIMER * E o suficiente.
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Com isso vai rejubilar minha alma. dizei-me a causa de haver sido o Conde
Pobre rapaz! Sofreu, como eu, afrontas. de Cambridge, meu pai, decapitado.
Dês que Henrique Monmouth foi coroado, MoRTIMER* À causa de eu ser preso, meu sobrinho,
antes de cuja glória eu era tido e haver passado toda a florescente
como grande nas armas, vivo nesta mocidade num cárcere nojoso,
sequestração odiosa, ao mesmo tempo para aí definhar, foi o instrumento
que Ricardo passou para a penumbra, maldito de sua morte.
privado de suas honras e da herança. PLaNTAGENETA: Minuciosa
No entanto, agora, o juiz do desespero, explicação te peço dessa causa,
a Morte, árbitro equânime de todas que eu nada sei, nem faço conjeturas.
as misérias humanas, vai soltar-me, MorrIMER* Di-lo-ei, se o permitir o sopro exíguo
concedendo-me a doce liberdade. e a morte não me vier sem que eu termine.
Desejara que o fim de seus cuidados, O avô do rei atual, Henrique quarto,
também, fosse chegado, para que ele depôs Ricardo, seu sobrinho, filho
pudesse recobrar lodo o perdido. de Eduardo, primogênito e legítimo
(Entra Ricardo Plantageneta.) de Eduardo, rei, terceiro dessa série.
PRIMEIRO CARCEREIRO* Mas os Percys do norte, parecendo-lhes
Vosso amado sobrinho vem chegando, injusta a usurpação, um movimento
milorde. tentaram para ao trono me levarem.
Morrimer* Meu amigo aí está, Ricardo Baseavam-se os fidalgos belicosos
Plantageneta? no seguinte argumento: uma vez morto,
PLANTAGENETA* Sim, meu nobre tio; sem herdeiro direto, o Rei Ricardo,
ofendido por modo ignominioso, quem mais perto do trono ficaria,
chega vosso sobrinho, este Ricardo, por parentesco e sangue, era eu, pois minha
com recentes injúrias. mãe me ligava ao Duque de Clarence,
MORTIMER* Põe-me os braços Lionel, filho terceiro do terceiro
de modo que cingir-lhe o colo eu possa, Eduardo, sendo que ele vinha apenas
e exalar-lhe no seio o último alento. do quarto garfo desse tronco heróico,
Avisa-me no instante em que meus lábios João de Gaunt. Observa ora o que segue:
lhe tocarem no rosto, porque um beijo enquanto nessa grande e altiva empresa
fraco, mas afetuoso, eu possa dar-lhe. tentavam eles pôr no trono o herdeiro
Ora, garfo gentil do grande tronco legítimo, eu perdia a liberdade
de York, por que motivo te referes e eles a vida. Decorridos anos,
a recentes injúrias? reinando Henrique quinto, após a morte
PLANTAGENETA* O cansado de seu pai Bolingbroke, o teu saudoso
corpo apóia, primeiro, neste braço pai, Duque de Clarence, que de Edmundo
para, mais à vontade, me escutares Langley provinha, o grande Duque de York,
todos os sofrimentos. Hoje eu tive tendo esposado minha irmã, tua mãe,
com Somerset uma disputa acerba. de meu grande sofrer compadecido,
Na acalorada troca de palavras reuniu forças, visando a libertar-me
fez ele uso da língua extravagante, c a fronte me adornar com o diadema.
ao rosto me lançando a triste morte Mas, como os outros, foi o nobre conde
de meu pai. À censura me pôs trancas também decapitado. Assim ficaram
na boca; do contrário, eu lhe teria os Mortimer, extintos, que podiam
à justa revidado. Por tudo isso, aspirar, com direito, à sucessão.
meu tio, em nome de meu pai e da honra PLANTAGENETA*
de um leal Plantageneta, de nós todos, Dos quais Vossa Honra é o último, milorde.
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Ato HI Cenal
Londres. Casa do parlamento. Não penses que, por ter eu preterido
Clarins. Entram o Rei Henrique, Exeter, Gloster, escrever a falar sobre teus crimes
Warwick, Somerset e Suffolk; o Bispo de Winchester, abomináveis, haja em qualquer ponto
Ricardo Plantageneta e outros. Gloster faz menção de deturpado a verdade, ou que não possa
entregar ao rei um memorial; Winchester lho arrebata e verbatim repetir, inteiro, o escrito.
rasga. Não, prelado! A maldade que estadeias
é de tal imprudência, tão pestíferos
WINCHESTER * Trazes linhas assim premeditadas, e lascivos teus planos de discórdia,
panfletos com cuidado redigidos, que até as crianças glosam teu orgulho.
Humphrey de Gloster? Se acusar-me queres, Não passas de usurário pernicioso,
ou contra mim tramar alguma coisa, inimigo da paz, naturalmente
faze-o espontaneamente, sem rebuços, maldoso, mais lascivo e dissoluto
como eu falar pretendo, contestando-te do que se esperaria de pessoa
os argumentos todos, de improviso. de tua situação e de teu posto.
GLosTER* Oh padre estulto! Este lugar me inculca Quanto à tua traição, que há de mais claro?
paciência. À não ser isso, eu te faria Patenteia-se em todas as ciladas
sentir até que ponto me insultaste. que contra a minha vida arquitetaste,
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Ato HI Cena Il
França. Diante de Ruão. no modo de empregardes as palavras;
Entram Joana la Pucelle, disfarçada, e soldados, em trajos falai como pessoas que se reúnem
de camponeses, com sacos às costas. na praça do mercado, para o trigo
vender por bom dinheiro. Se obtivermos
Joana Eis a porta de Ruão, que nossa astúcia entrada, como o espero, por acharmos
precisa derrubar. Tomai cuidado as sentinelas fracas e indolentes,
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VI
farei sinal aos nossos companheiros os planos infernais com tal segredo
para o ataque de Carlos, o delfim. soube tecer, que mal nos foi possível
PrIMEIRO SOLDADO * escapar de cair presa de França.
Os sacos vão servir-nos para o saque (Sai)
da cidade, fazendo-nos senhores (Alarma. Movimento de tropas. Trazido da cidade,
de Ruão. Batamos logo. doente, em uma cadeira, entra Bedford: entram Talbot
(Batem.) e Borgonha, com soldados ingleses; depois, por cima dos
Guarpa (dentro) Qui est à? muros, aparecem Joana la Pucelle, Carlos, o bastardo de
Joana: Paysans, pauvres gens de France; Orleans, Alençon e outros.)
gente que vem à feira vender trigo. Joana- Bom dia, meus valentes. Tendes falta
GUARDA (abrindo as portas) * de trigo para pão? Penso que o Duque
Entrai; já soou o sino do mercado. de Borgonha terá de jejuar muito
Joana Vou derrubar-te, Ruão, as fortalezas. antes de comprar outro por tal preço.
(Foana la Pucelle, etc. penetram na cidade.) Continha muito joio? E o gosto, bom?
(Entram Carlos, o bastardo de Orleans, Alençon e tropas.) BorconHaA
CarLOS* Abençoe-nos o plano São Dionísio, Podes chasquear de nós, rameira imunda,
para que consigamos novamente demônio sem pudor. Hei de asfixiar-te
dormir calmos em Ruão. sob o teu trigo, até que te arrependas
O BasTARDO' Por este ponto da colheita alcançada.
foi que a Pucela entrou com seus sequazes. CARLOS* Vossa Graça
Mas, uma vez lá dentro, de que modo até lá poderá morrer de fome.
se arranjará para indicar o meio BEDFORD*
mais seguro e melhor de a acompanharmos? Vinguemo-nos com feitos, não com frases.
ALENÇON* Atirando uma tocha ali da torre. Joana: Que pretendes fazer, barba cinzenta?
Entenderá com isso prevenir-nos Quebrar algumas lanças, num torneio
de que a passagem se acha mal guardada. de morte, assim chumbado na cadeira?
(Aparece a Pucela em uma das ameias, TaLBor: Bruxa imunda da França, repelente
sustentando uma tocha acesa.) demônio, acompanhada por amantes
Joana: Eis a tocha nupcial, de bons auspícios impudicos, arrogas-te o direito
para Ruão, de par com os patriotas, de insultar a velhice valorosa
mas de edaz fogo para os talbotistas. e tachar de covarde um moribundo?
(Sai) Donzela, ainda hei de dar-te algum trabalho,
O BasrarDo* Eis ali, nobre Carlos; nossa amiga ou Talbot de vergonha a morrer venha.
nos envia o sinal do alto da torre. Joana: Tão quente, meu senhor? Calma, Pucela;
CarLos* Brilha como o cometa da vingança quando Talbot troveja, é que vem chuva.
que profetiza a ruína aos inimigos. (Talbot fala baixo com os do seu grupo.)
ALENÇON* Nada de perder tempo. Acabam sempre Deus faça prosperar o parlamento.
mal as indecisões. Entremos todos Quem vai ser o orador?
aos gritos de “O delfim!” e exterminemos TaLBOT* Tereis coragem
quantos guardas acharmos no caminho. de vir nos encontrar aqui no campo?
(Entram na cidade.) Joana: Vejo que Vossa Senhoria julga
(Alarma. Entra Talbot com alguns soldados.) que nós somos dementes. Ninguém briga
TaLsor: para alcançar o que já é seu, de tato.
França, ainda hás de pagar com muitas lágrimas TaLsor: Não me refiro a essa Hécate rilhenta,
esta traição, se à tua felonia mas a ti, Alençon, e aos outros todos;
Talbot sobreviver. Essa maldita quereis combater fora, corpo a corpo,
feiticeira, a Pucela, bruxa infame, como a soldados cumpre?
E
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a
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Ato HI Cena II
Planície nas proximidades de Ruão. Joana - Hão de ver Vossas Honras meu trabalho
Entram Carlos, o bastardo de Orleans, Alençon, Joana la para o bom fim levar a nossa empresa.
Pucelle e tropas. (Ouve-se ao longe ruído de tambor.)
Escutai! Pelo rufo dos tambores
Joana Não vos intimideis por isso, príncipes, deduzo que eles vão para Paris.
nem vos mostreis magoados por ter sido (Marcha inglesa; ao longe passa Talbot com tropas.)
retomada Ruão pelos ingleses. Eis Talbot com as bandeiras desfraldadas
Cuidado, só, não cura, agrava as coisas e após ele os guerreiros da Inglaterra.
para as quais não se pode achar remédio. (Marcha francesa; entra o Duque de Borgonha, com
Deixemos que Talbot furioso exulte tropas.)
mais algum tempo e a cauda pavoneie, Na retaguarda o duque e os seus vêm vindo.
porque em breve haveremos de arrancar-lhe A Fortuna dispôs que ele ficasse
todas as penas e abater-lhe o orgulho, para trás; sugeri uma conferência
se o delfim e os demais me obedecerem. porque possamos conversar com ele.
CarLOS* Fomos por ti guiados até agora, (Toque para parlamentar.)
sem que suspeita alguma ainda tivéssemos CarLos* Conferência com o Duque de Borgonha!
sobre o de que és capaz. Por um pequeno BorcoNHA
revés não perderemos a confiança. Quem convida Borgonha a conferência?
O BastaRrDO Inventa planos de secreto alcance, Joana* O real Carlos de França, teu patrício.
e famosa hás de ser em todo o mundo. BorconHaA-
ALENÇON* Em um lugar sagrado elevar-te-emos Que queres, Carlos? Tenho de ir-me embora.
estátua e cultuar-te-emos como santa. CarLos- Fala, Pucela, e encanta-o com palavras.
Auxilia-nos, pois, virgem graciosa. Joana - Borgonha valoroso, alta esperança
Joana* Que seja! Eis o que Joana decidiu: da França, ora consente que tua serva
com palavras melosas e torneios te dirija a palavra; não te apresses.
persuasivos devemos esforçar-nos BorconHa- Fala, então, mas não sejas enfadonha.
para que o Duque de Borgonha deixe Joana: Contempla a fértil França, tua pátria;
Talbot e se disponha a nos seguir. as cidades e as vilas vê destruídas
CarLos* Oh coração! Se conseguirmos isso, pela devastação de cruel imigo.
deixa a França de ser lugar azado Como olha a mãe o filho pequenino,
para os homens de Henrique. Esses ingleses quando a morte lhe cerra os tenros olhos,
vão parar de jactar-se à nossa custa, mira a doença da França moribunda,
forçados a evacuar nossas províncias. contempla estas feridas, as feridas
ALENÇON* Deverão ser expulsos para sempre, mais contra a natureza, que tu próprio
sem que lhes sobre aqui nenhum ducado. lhe fizeste no peito dolorido.
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Oh! dirige a outra parte a tua espada que ele era teu imigo, libertaram-no
cortadora! Vulnera os que te ofendem, sem resgate nenhum, malgrado o nome
não quem te traz auxílio Uma só gota de Borgonha e de todos seus amigos.
do sangue de tua pátria deveria Ora pois! Estás contra teus patrícios,
causar-te mais pesar do que torrentes ao lado dos que vão ser teus carrascos.
arrancadas dos peitos inimigos. Volta, nobre transviado, volta logo;
Volta, portanto, com efusão de lágrimas Carlos e os outros te abrirão os braços.
e limpa a tua pátria conspurcada. BorconHa- Estou vencido; essas palavras dignas
BorconHa: Ela me enfeitiçou com suas palavras o efeito em mim fizeram de bombardas
ou a natureza me abrandou de súbito. rugidoras, a ponto de obrigarem-me,
Joana- Além do mais, a França inteira, todos quase, a dobrar os joelhos. Compatriotas,
os franceses te exprobram a conduta, pátria amada, perdoai-me. Meus senhores,
duvidando de tua alta progênie. aceitai este abraço mui sincero;
À quem te aliaste? À um povo prepotente meu poder, minhas forças, tudo é vosso.
que só confia em ti por interesse. Adeus, Talbot; não mais confio em ti.
Quando Talbot firmar o pé na França Joana: Como um francês tal qual: virando sempre!
e tu te vires reduzido a um simples CarLos: Valente duque, salve! Tua aliança
instrumento do mal, quem será o dono nos reanima.
do país, a não ser o inglês Henrique, O BasTARDO: E nos torna corajosos.
que te vai expulsar como a um perverso? ALENÇON* O papel da Pucela foi brilhante;
Reflete, ainda é tempo, e vê bem isto: ela merece uma coroa de ouro.
Não caiu prisioneiro dos ingleses CarLOS* Reunamos, meus senhores, nossas forças
teu inimigo, figadal, o Duque para dano causar aos inimigos.
de Orleans? Pois bem, quando os ingleses viram (Saem.)
Ato HI Cena IV
Paris. Uma sala no palácio. com a lealdade de um peito humilde e franco
Entram o Rei Henrique, Gloster, o Bispo de Winchester, toda a glória atribuindo da conquista
York, Suffolk, Somerset, Warwick, Exeter, Vernon, primeiro a Deus, depois a Vossa Graça.
Basset e outros. Ão encontro destes vem Talbot com seus Rei HENRIQUE"
soldados. Este não é Lorde Talbot, tio Gloster,
que reside na França há muito tempo?
TaLBor: Meu príncipe gracioso, honrados pares, GLosTER: Se não vos desagrada, Majestade.
à nova de que estáveis neste reino, Rer HENRIQUE:
dei tréguas, por momentos, aos combates Sede bem-vindo, heróico e vitorioso
a fim de vir saudar meu soberano, capitão! No meu tempo de criança —,
como penhor do que deixa este braço — e velho ainda não sou — meu pai, me lembro,
que trouxe para vossa obediência dizia nunca haver brandido espada
cinquenta fortalezas, sete vilas campeão de mais valor. Vossa lealdade,
defendidas por sólidas muralhas, há muito a apreciamos, vossos grandes
doze cidades, e que fez quinhentos serviços, as fadigas da campanha,
prisioneiros de prol — deixa este braço sem que provado houvésseis até agora
cair a espada aos pés de Vossa Alteza, recompensa nenhuma, ainda que fossem
(Ajoelha-se.) os agradecimentos merecidos,
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porque o rosto jamais vos contemplara. que ataca o meu senhor, o nobre Duque de Somerset.
Por isso, levantai-vos; vossos grandes Vernon: Dou a teu amo o apreço que merece.
serviços vos granjearam ora o título, Basser: Qual é? Não é melhor do que ele York.
que vos damos, de Conde de Shrewsbury, Vernon: Não? Escuta; em sinal, fica com isto.
Tomareis parte em nossa coroação. (Esbofeteia-o.)
(Clarins. Saem todos, com exceção de Vernon e Basset.) Basser* Sabes, vilão, que pela lei das armas
VERNON Agora vós, senhor, que vos mostrastes quem da espada sacar é um homem morto;
tão quente em pleno mar, fazendo pouco não fora isso, esta injúria te custara
caso da cor que em honra do meu nobre muito sangue. Mas Sua Majestade
Lorde de York eu ostento, ainda mantendes
ver-me-á dentro de breve a suplicar-lhe
vosso primeiro dito? me conceda lavar-me desta afronta.
VERNON Vai, miserável; juntos pediremos
BassET* Sim, senhor,
a licença almejada. Depois disso,
enquanto defenderdes o invejoso
te buscarei mais cedo do que pensas.
latido dessa língua malfazeja
(Saem.)
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em
York: Realmente; desgostou-me, apenas, isso que essas paixões despeito revelassem
de ele adotar de Somerset a insígnia. mais rancoroso, mais rancor violento
Warwick: Ora! Não o censureis por este gesto. do que o pode criar a fantasia.
Foi simples fantasia, doce príncipe, De qualquer forma, uma pessoa simples
sem malícia nenhuma, estou convicto. que visse estas discórdias da nobreza,
York: Se tivesse certeza... Mas deixemos as intrigas da corte, as infindáveis
isso de parte. Assuntos de mais peso disputas partidárias, não deixara
nos reclamam a atenção neste momento. de pressagiar eventos ominosos.
(Saem York, Warwick e Vernon.) mau que uma criança empunhe o cetro;
ExeTER- Fizeste bem, Ricardo, em não falar; pior que gere a inveja a roaz discórdia:
porque se o coração se te expandisse é o princípio da ruína e da mixórdia.
num surto de paixão, receio muito (Sai)
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Henrique VI
TaLBor: Só nos disse a verdade; ouço o inimigo. do desses gamos tímidos, que caem
Sigam logo alguns homens da ligeira com um simples beliscão. Sejamos cervos
cavalaria a examinar-lhe os planos. irritados até quase à loucura
Oh disciplina negligente! Quanto e os lebréus enfrentemos sanguinários
descuido! Fomos presos num redil, com nossas testas aêneas, conservando
sempre na defensiva esses covardes.
encurralados todos, um pequeno
Se a cara vida todos estimarem
rebanho de ovelhinhas timoratas,
como eu, gamos bem caros os imigos
oriundas da Inglaterra, ora acossadas irão achar em nós. Deus e São Jorge,
pela matilha dos mastins franceses. Talbot e a causa inglesa, vitorioso
Mas se somos carneiros da Inglaterra, façam nosso pendão no prélio iroso.
mostremos nosso brio, diferente (Saem.)
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Lucy: Desta arte, enquanto o abutre da discórdia do guerreiro, ainda há pouco, falecido,
se regala nas carnes de tão grandes mas de memória viva entre seus súditos:
chefes, a negligência sonolenta Henrique quinto! A intriga entre eles obra,
nos trai, nos faz perder a alta conquista enquanto a honra, o país, tudo soçobra.
(Sai)
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Ato IV - CenaV
O acampamento inglês, perto de Bordéus. Nada pode marear-vos o prestígio;
Entram Talbot e seu filho João. eu sou pássaro ainda sem remígio.
Se fugirdes, dirão que saístes cedo;
TaLBor: Oh jovem João Talbot, mandei buscar-te mas comigo, é certeza: foi por medo.
a fim de te ensinar a arte da guerra, Quem poderá jamais confiar em mim,
para que em ti reviva o nosso nome, se, ao primeiro recontro, eu corro assim?
quando a velhice murcha e os fracos membros De joelhos vos suplico: é melhor glória
chumbarem teu bom pai numa poltrona. morrer, do que viver sem ter história.
Mas — Oh maldosos e agourentos astros! — TaBor: Murchará de tua mãe toda a esperança?
a uma festa da Morte é que chegaste, JoÃo Antes assim, do que manchar-lhe a herança.
perigo inevitável e terrível. TazBor: Por minha bênção, corre sem demora.
Monta, caro menino, no cavalo João Contra o inimigo, sim; fá-lo-ei agora.
mais veloz que tivermos, que eu te mostro TarBor: Parte de mim se salvará contigo.
como a vida salvares pela fuga. João : Não, porém, a que foge do perigo.
Vamos, não te demores; parte logo. TALBOT: És moço; esse ato em nada te deslustra.
JoÃo - Eu me chamo Talbot; sou vosso filho; JoÃo- Sim; vossa glória em mim ficará frustra.
como fugir, então? Oh! se ainda tendes TaLsor: Recebes ordens; serei eu o culpado.
amor a minha mãe, não lhe mancheis João - Morto vós, quem dirá que eu fui mandado?
o nome venerável, rebaixando-me Se o perigo é tão grande, fugi logo.
à posição de um mísero bastardo. TaLsor:
Comigo o mundo inteiro não se importe, Sem mim, no prélio os meus heróis não jogo.
se eu fugir, entregando-vos à morte. Repelem minhas cãs tanta vergonha.
TaLBor: Foge, porque me vingues algum dia. João - E a minha mocidade, já tem ronha?
João - Quem fugisse, jamais retornaria. Não podeis afastar-vos de vós mesmo,
TaLBor* Se ficares, é a morte para os dois. nem a vós, nem a mim. Falais a esmo.
JoÃo- Vós fugireis, então; morra eu, depois. Ide embora, ou ficai; o mesmo eu faço;
É grande a vossa perda; pensai nisso. viver não quero, após vosso trespasso.
Eu nada perco; morro antes do viço, TarBor: Então, glorioso filho, eu me despeço
sem dar ansa nenhuma aos inimigos de ti; já deste mundo és um egresso.
de se julgarem livres de perigos, Lado a lado enfrentemos o perigo;
como o dirão, decerto, em vosso caso, nossas almas no céu terão abrigo.
por nos saberem próximos do ocaso. (Saem.)
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quando, apesar do fado, a espada tinta vingares. Mais um braço, por mais forte
dos combates, forçaste o tempo iroso que seja, pouco vale neste aperto.
a ser comigo, desta vez, bondoso. Fora loucura, grande desacerto,
TazBor: Quando vi tua espada tirar fogo arriscar nossas vidas num barquinho,
da crista do elmo do delfim, o afogo porque se eu não morrer aqui, sozinho,
não mais pude conter, que me impelia vítima dos franceses, é certeza
a te prestar esta alta cortesia, vir a ser da velhice, logo, presa.
conquistando a vitória de semblante Pouco lucro darei aos inimigos,
mais do que ousado. Nesse mesmo instante, se ficar: um só dia de perigos
da velhice a ferrugem, transformada, a menos. Mas em ti tua mãe perece,
se alteou com fúria moça e sublimada, nosso nome famoso, a grande messe
que me fez derrubar Orleans, Borgonha de nossos feitos, tua mocidade
e d'Alençon, poupando-te à vergonha e a glória da Inglaterra. Essa é a verdade.
de aos pés cair da Gália presunçosa. Perderemos mais que isso, se ficares;
O bastardo de Orleans, de espada irosa, mas tudo salvaremos, se escapares.
que em meio à pugna, caro filho, fora JoÃo - Mais do que a espada de Orleans, nocivo
quem primeiro da seiva promissora me é o que vos ouço. Isto é que sangue vivo
te fizera sangrar, a virgindade do coração me tira. À essa vantagem,
colhendo dessa tua heroicidade, de vergonhosa e bárbara roupagem,
foi por mim, logo após, atravessado que a vida poupa e a fama altiva esmaga,
na batalha. Depois de ter trocado ao filho permitindo a fuga, em paga
com ele vários golpes e de um pouco do trespasse do pai, é preferível
de seu sangue bastardo ter, em troco que caia morto, logo, o desprezível
do teu, feito correr, assim lhe disse, corcel que me sustenta e que eu me veja
para humilhá-lo, não por gabolice: igualado aos vilãos da malfazeja
“Derramo-te esse sangue baixo e imundo, França, objeto de escárnio e condenado
de relações ilícitas oriundo, para sempre a ser títere do fado.
para pagar o meu, de fama e brilho, Por toda vossa glória, se eu fugisse,
que tiras a Talbot, meu grande filho.” vosso filho não fora. É caturrice
Nisso advém, a salvá-lo, inesperado falar, pois, nesse assunto. Sendo eu filho
socorro. Mas responde-me, cuidado de Talbot, saberei morrer com brilho.
de teu pai: Como te achas? Dize, João, TaLBor: Nesse caso, meu Ícaro, acompanha
se não queres, agora, sem pressão teu pai de Creta em mais esta façanha
de minha parte, abandonar a pugna desesperada. Tua vida é quanto
para a salvo te pores? Não repugna eu tinha de mais caro. No entretanto,
tal proceder, que tua valentia se queres combater, fica ao meu lado,
te consagrou herói neste alto dia. e gloriosos morramos, filho amado.
Foge, meu filho, para minha morte (Saem.)
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Ato V: Cenal
Londres. Um quarto no palácio. apertar esses laços de amizade
Entram o Rei Henrique, Gloster e Exeter. com mais firmeza, o Conde de Armagnac,
parente próximo de Carlos e homem
Rer HENRIQUE" de grande autoridade em toda a França,
Lestes todas as cartas que nos vieram vos oferece a filha em casamento,
do imperador, do papa e de Armagnac? prometendo dotá-la regiamente.
GLosTER* Rer HeNRIQUE*
Sim, milorde; eis o assunto de que tratam: Em casamento? Ainda sou moço, tio,
Junto a Vossa Excelência, humildemente para pensar em núpcias. Com meus anos
todos eles insistem porque seja acomoda-se mais o estudo e os livros
firmada a paz divina entre os dois reinos. do que os fúteis prazeres dos amantes.
Rer HenrIQUE: E que pensa da idéia Vossa Graça? Contudo, mandai vir os emissários
GLosrer : Muito boa, milorde; é o meio único e lhes dai a resposta que quiserdes,
de se pôr termo a essa efusão de sangue que eu me contentarei de qualquer modo,
cristão e de alcançar tranquilidade. contanto que essa escolha tenda à glória
Rer HENRIQUE * Isso, meu tio; pareceu-me sempre de Deus e ao bem-estar da minha pátria.
que era não só contrário à natureza, (Entram um legado e dois embaixadores,
como ímpio, que reinasse entre os adeptos com Winchester, já agora
da mesma fé tão sanguinária guerra, Cardeal Beaufort, em trajos apropriados.)
tantas barbaridades. ExeTER (à parte) *
GLOSTER* Além disso, Como! Milorde de Winchester se encontra
milorde, porque logo consigamos instalado no posto de cardeal?
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Henrique VI
Vejo agora que vai concretizar-se dai-lhe esta jóia, gage do alto afeto
quanto profetizou Henrique quinto: que lhe voto. Milorde protetor,
“Se em algum tempo ele alcançar o posto arranjai uma escolta para a Dover
de cardeal, do chapéu fará coroa”. acompanhá-los. Uma vez a bordo,
Rei HENRIQUE: à fortuna do mar entregai todos.
Embaixadores meus, vossas propostas (Saem o Rei Henrique, com séquito, Gloster, Exeter e
foram devidamente apreciadas; embaixadores.)
é razoável e justo o que dissestes. CARDEAL: Ficai, Lorde Legado; heis de, primeiro,
Por isso, nos achamos resolvidos receber a quantia prometida
a propor condições de paz amiga de minha parte a Sua Santidade
por me ter dado esta roupagem digna.
que enviar pretendemos por Milorde
Lecapo* Ao inteiro dispor de Vossa Graça.
de Winchester, sem demora, ao rei da França.
CARDEAL (à parte) *
GLosTER: No que respeita à idéia de milorde
Winchester, penso, não vai mais curvar-se
vosso mestre, informei Sua Grandeza
a esses pares altivos, por não ser-lhes
com minúcia. Por isso, tendo em vista
inferior. Hás de ver, Humphrey de Gloster,
os altos dotes de moral da noiva, que em dignidade, e força, e nascimento
sua grande beleza e o dote opimo, não vencerás o bispo um só momento.
resolvido está ele a desposá-la. Hei de humilhar-te com esta viravolta,
Rer HENRIQUE (40 embaixador) * ou o país jogarei numa revolta.
Como reforço e prova do contrato (Saem.)
V-
Cena ll
França. Planície em Anjou. CarLOSs* Os espias que dizem? Vamos, fala.
Entram Carlos, Borgonha, Alençon, Joana la Pucelle e MeENsaGEIRO * Os ingleses, que estavam divididos
tropas em marcha. em duas partes, ora se reuniram
para vos atacar sem mais demora.
CarLos* Vão alegrar, milorde, essas notícias CarLOS* À notícia, milordes, nos apanha
os espíritos tristes. Os altivos de surpresa; contudo, preparemo-nos
parisienses estão, diz-se, em revolta
conforme as circunstâncias.
BorconHa- Penso que a alma
novamente e ora se acham com os franceses.
de Talbot não está lá; não tendes causa,
ALENÇON'*
milorde, de temor.
Marchemos, pois, contra Paris, real Carlos
Joana Das paixões ínfimas,
de França; ponde em campo as vossas forças. o medo é a mais maldita. Vamos, Carlos,
Joana: Com eles seja a paz, se estão conosco; distribui ordens, que a vitória é certa;
se não, caiam em ruínas seus palácios. anima os nossos homens com tua fala,
(Entra um mensageiro.) humilha Henrique, o mundo inteiro abala.
MENSAGEIRO * Ào nosso general êxito pleno CarLOS* Avante, nobres; que prospere a França!
e outro tanto aos seus dignos auxiliares. (Saem.)
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WILLIAM SHAKESPEARE
Ato V: Cenalll
França. Diante de Angers. Joana la Pucelle e York se batem;
Alarma; movimento de tropas; entra Foana la Pucelle. Joana éfeita prisioneira; os franceses fogem.)
York: Penso que, desta vez, dama francesa,
Joana: Vence o regente; os nossos não resistem. vos segurei de fato. Vede agora
Ora valei-me, encantos e amuletos! se podeis, com os feitiços costumeiros,
E vós, também, espíritos seletos soltar vossos espíritos, porque eles
que me guiais, mostrando-me o futuro! liberdade vos dêem. Uma alta presa!
(Troveja Parece que foi feita para o diabo. .
Auxiliares velozes, que debaixo Como franze os sobrolhos a megera!
vos achais do potente rei do norte, Certo, qual outra Circe, ela quisera
aparecei-me! Vinde em meu auxílio! metamorfosear-me.
(Entram demônios.) Joana Que outra forma
À pressa com que viestes me dá prova puderas ter mais feia do que a tua?
de vossa costumeira diligência York O delfim Carlos, sim, que é um homem belo;
em me servir. Agora, familiares somente a forma dele é que é aprazível
espíritos, tirados das regiões para esses lindos olhos.
subtérreas poderosas, auxiliai-me Joana: Caia em Carlos
mais uma vez, para que a França vença. e em ti qualquer desgraça tormentosa.
(Os demônios passeiam e nada respondem.) Que no sono tranquilo ambos se vejam
Não fiqueis por mais tempo assim calados. surpreendidos por mãos sanguinolentas.
Fostes alimentados com meu sangue; York: Maldita feiticeira, cala a boca!
ora estou pronta a me privar de um membro, Joana Deixa-me amaldiçoar mais um pouquinho.
que vos entregarei, contanto que outro York Falarás, bruxa imunda, na fogueira.
benefício eu receba, se quiserdes (Saem.)
condescender em me auxiliar de novo. (Rebate; entra Suffolk, conduzindo Margarida.)
(Abaixam a cabeça.) SurroLK: Seja qual for teu nome, és prisioneira.
Não há esperança? Se ora me atenderdes, (Contemplando-a.)
em meu corpo tereis o pagamento. Oh beleza admirável, nada temas,
(Sacodem a cabeça.) nem procures fugir, que eu só te toco
Como! Nem o meu corpo, nem a oferta com respeitosas mãos. Beijo-te os dedos,
do próprio sangue vos incita agora em sinal de amizade, e, reverente,
a me prestar a ajuda de costume? nesses flancos gentis de novo os ponho.
Dou-vos a alma; a alma, o corpo; dou-vos tudo, Desejo honrar-te; dize-me o teu nome.
contanto que a Inglaterra não nos vença. MarcaRrIDA* Chamo-me Margarida; sou princesa,
(Desaparecem.) filha do rei de Nápoles. E tu?
Abandonaram-me! É chegado o tempo SUFFOLK*
de curvar o penacho altivo a França Sou o Conde de Suffolk; esse é o meu nome.
e de pousar a fronte no regaço Não te ofendas, milagre da natura;
da Inglaterra. São fracos meus feitiços, nasceste para que eu te aprisionasse.
fracos demais, e o inferno muito forte É assim que o cisne ampara os emplumados
para me obedecer. Agora, França, cisnezinhos, prendendo-os sob as asas.
vai tua glória reduzir-se a nada. Contudo, se essa prática te ofende,
(Sai.) parte, és livre! Suffolk a ti se rende.
(Alarma. Entram franceses e ingleses, em luta. (Margarida faz menção de retirar-se.)
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Henrique VI
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WILLIAM SHAKESPEARE
Que achais, senhora, disso? Estais contente? com os condados de Maine e Anjou isentos
MARGARIDA * Se a meu pai agradar, fico contente. de impostos e dos males resultantes
SurroLK* Chamais depressa os capitães e nossos de conflitos armados, minha filha,
porta-estandartes. À seguir, senhora, se Henrique o decidir, será sua esposa.
iremos nos postar ante o castelo SurroLK* Esse vai ser o seu resgate: é livre.
de vosso pai, a quem convidaremos, Quanto aos condados, hei de fazer tudo
por mensageiro idôneo, a vir falar-nos. para que Vossa Graça os goze em paz.
(As tropas adiantam-se.) ReIGNIER*
(Toque para parlamentar, Reignier aparece sobre os muros.) E eu, também, no real nome do monarca
SurroLK* Reignier, olha tua filha prisioneira! de que és representante, a mão te cedo
ReIGnIER* Prisioncira de quem? de minha filha, em gage do contrato.
SUFFOLK* De mim. SurroLK: Reignier da França, eu te agradeço como
ReEIGNIER* E agora, pessoa real, que fala um rei por mim.
Suffolk, que hei de fazer? Sou um soldado, (À parte.) Contudo, eu ficaria mais contente
não sei chorar, nem mesmo lastimar-me de ser procurador em causa própria.
dos caprichos da sorte. Vou já para a Inglaterra, com a notícia,
SUFFOLK * Sim, milorde. para solenizar o desposório.
há remédio bastante; consentires Adeus, Reignier, guarda em palácio de ouro,
pela tua honra, que se torne esposa como convém, diamante tão valioso.
de meu rei tua filha, cujo assenso, REIGNIER*
não sem custo, para isso, obtive agora. Recebe o abraço que eu daria ao príncipe
Desta arte um cativeiro não penoso cristão, Henrique, se ele aqui estivesse.
valeu-lhe liberdade principesca. MarcarIDA- Adeus, milorde; os votos de ventura,
REIGNIER* louvores e orações de Margarida,
Fala Suffolk de acordo com o que pensa? de Suffolk vão ser todos de ora em diante.
SurroLK* À bela Margarida atestar pode (Faz menção de retirar-se.)
que eu não minto, não finjo, nem adulo. SurroLK* Adeus, gentil senhora. Mas, ouvi-me,
REIGNIER* Margarida: é possível que eu não leve
Confiado em teus princípios de nobreza, de vossa parte, para o rei, nenhuma
vou responder aí mesmo ao teu pedido. saudação principesca?
(Retira-se.) MARGARIDA" Cumprimentos
SuFFOLK* Aguardarei aqui tua chegada. que fiquem bem a uma donzela e virgem,
(Toque de trombetas. Entra Reignier.) sua serva, dizei-lhe.
ReIGNIER* SUFFOLK* São palavras
Bem-vindo, bravo conde, em nossas terras! amáveis e expressadas com modéstia.
Pedi de Anjou quanto Vossa Honra almeje. Mas forçado me vejo a importunar-vos,
SurroLK: Obrigado, Reignier; deves julgar-te senhora, novamente: qual a prova
muito feliz por teres uma filha de amor que eu levarei para Sua Graça?
digna de se tornar a companheira MARGARIDA * Um coração, milorde, imaculado,
de um grande soberano. Que resposta que o amor, até o presente, deixou livre.
dá Vossa Graça à minha pretensão? SuFFOLK (dando-lhe um beijo) * E isto também.
ReIGNIER * Já que com vossa escolha distinguistes MARGARIDA *
seu mérito modesto, para dela Não. Isso é teu, porque eu não ousaria
fazer a noiva real de tal monarca: mandar a um rei lembrança tão pueril.
com a condição de que me deixeis no uso (Saem Reignier e Margarida.)
pacífico de minhas propriedades, SurFoLK* Se fosses para mim! Mas, como! Pára,
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Henrique VI
Suffolk! Não te aventures pelos meandros nas graças naturais que a arte ultrapassam;
de semelhante labirinto, de onde quando no mar, renova-lhe a pintura,
te espreita o Minotauro e a baixa intriga. porque, uma vez aos pés de Henrique, possa
Comove Henrique com o retrato dela; privá-lo dos sentidos teu encanto.
reflete em seus adornos admiráveis, (Sai)
Ato V: Cena IV
Acampamento do Duque de York, em Anjou. no campo me guardavas. Não conheces
Entram York, Warwick e outros. teu pai, mulher maldita? Então queimai-a,
queimai-a, que enforcá-la é honra excessiva!
York: Trazei a bruxa que vai ser queimada! (Saí)
(Entram Joana la Pucelle, escoltada, e um pastor.) York: Levai-a logo; já viveu bastante
Pastor: Oh Joana! O coração, assim, me partes. para encher o universo com seus vícios.
Procurei-te por tudo, longe e perto; Joana- Primeiro vos direi quem condenastes:
e ora que tive a sorte de encontrar-te, não foi a mim, gerada na simpleza
verei tua morte cruel e prematura? da vida pastoril, mas a uma filha
Ah, Joana, doce Joana, eu também morro! de progênie real, virtuosa e santa,
Joana+ Decrépito mendigo, baixo e ignóbil escolhida no céu por alta graça
labrego! Eu tenho sangue de fidalga; para milagres realizar na terra.
não és meu pai; nem meu amigo, ao menos. Jamais tive que ver com maus espíritos;
Pastor: Pára, pára! Senhores, escutai-me: mas vós todos, poluídos pelo feio
não é verdade, não. É minha filha: pecado da luxúria, todos, tintos
na paróquia se sabe. Ainda está viva de sangue derramado por criaturas
a mãe dela, que pode dar-vos provas inocentes, sem mancha; todos, podres
de ter sido ela a minha primogênita. de infindos vícios; todos, por não serdes
Warwick: Depravada, renegas os parentes? adornador da graça, julgais sempre
York: Isso mostra que vida ela levava, que só é possível realizar milagres
perversa e vil, que a morte ora arremata. com a ajuda de demônios. Puro engano!
Pastor" Ora, Joana, por que seres teimosa? Desde a mais tenra infância Joana d'Arc
Deus sabe que és parcela de mim mesmo virgem se conservou, imaculada
e que eu já chorei muito por tua causa. nos próprios pensamentos. Se lhe o sangue
Não me renegues, Joana, eu te suplico. virginal tão cruelmente derramardes,
Joana: Retira-te, labrego! Subornastes há de ele o ao céu clamar vingança.
este pobre campônio, com o propósito York: É isso mesmo; fazei-a executar.
de escurecer meu nascimento nobre, WarwiICK* Senhores, atenção! Sendo ela virgem,
Pastor: É certo; eu dei um nobre ao sacerdote não poupeis lenha. Ponde, junto ao poste
no dia em que a mãe dela eu desposei. fatal, tonéis de breu, porque a tortura,
Ajoelha-te e recebe minha bênção, desse modo, não dure muito tempo.
rapariga. Ah, é assim? És renitente? Joana: Nada o peito implacável vos abala?
Maldita, então, seja a hora em que nasceste. Então, Joana, revela quanto és fraca,
Só quisera que o leite que mamaste porque possas gozar do privilégio
no seio de tua mãe fosse veneno da lei. Oh sanguinários homicidas,
de matar rato, ou que te houvesse um lobo estou grávida! O fruto do meu ventre
voraz estraçalhado, quando as cabras não podereis matar, ainda que a morte
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violenta decidais ora levar-me. Yorx- Todo o nosso trabalho vem dar nisso?
Yorx+ Não o queira o céu! A santa virgem grávida! Depois de tantos pares chacinados,
Warwick: Sem dúvida esse é o seu maior milagre. capitães, gentis-homens e soldados,
Deram nisso, afinal, vossos escrúpulos? que tombaram nos campos de batalha,
Yorx* Com o delfim ela andava emparelhada; imolando-se aí em benefício
imaginei qual fosse o seu refúgio. da pátria, ora seremos obrigados
WarwiICK- Levai-a com o bastardo. Que vale ele? a concluir uma paz efeminada?
Máxime sendo o pai o delfim Carlos. Não perdemos, por falta de lealdade,
Joana Enganais-vos; o filho não é dele. traições e intriga, quase tudo quanto
Foi Alençon que obteve o meu amor. fora ganho por nossos ascendentes?
York: Como! Foi Alençon, esse notório Warwick, Warwick! É triste que eu prevejo
Maquiavel? Pois ainda que mil vidas a perda, para nós, de toda a França.
tenha, morra o bastardo! Warwick: York, sê calmo; que se a paz firmarmos,
Joana Oh! perdoai-me! há de ser com tais cláusulas, que pouco
Não vos falei verdade. Nem foi Carlos, poderão os franceses alegrar-se.
nem o duque nomeado, mas o rei (Entram Carlos com seu séquito, o bastardo de Orleans,
de Nápoles, Reignier, o autor de tudo. Reignier e outros.)
WARWICK * CarLos: Lordes ingleses, já que está assentado
Como! Um homem casado? É intolerável. que seja proclamada a paz na França,
York: Isso que é virgem! Foram tantos, que ela viemos saber as condições do pacto.
nem sabe ao certo a quem acusar deva. York Fala, Winchester, a cólera fervente
Warwick" Sinal de que era livre e generosa. me tapa o tubo à voz envenenada,
York: Não há dúvida: é virgem, das mais puras. na presença dos nossos inimigos.
Rameira imunda, condenaste, a um tempo, CARDEAL: Carlos e os mais, assim ficou assentado:
teu fedelho e a ti própria. Fora inútil que, tendo consentido o Rei Henrique,
procurares ainda comover-nos. por indulgência, apenas, e piedade,
Joana: Levai-me, então, daqui. Amaldiçõo-vos. em, dos males da guerra, vos poupar
Jamais o sol glorioso lance os raios a pátria, e em propiciar-vos melhor tempo
sobre o lugar em que vos encontrardes, de paz frutuosa, ficareis vassalos
envolvendo-vos sempre a noite e a triste obedientes de sua potestade.
sombra da morte até que os infortúnios Quanto, Carlos, a ti, desde que jures
e o desespero a todos vos obriguem pagar tributo ao rei e a ele de grado
a quebrar o pescoço numa forca. submeter-te, no posto ficarás
(Sai, escoltada.) de vice-rei, sem que, por isso, em nada
York: Em pedaços te faze, vira cinza, se alterem tuas reais prerrogativas.
maldito e imundo embaixador do inferno! ALENÇON* Vai ele, então, ser sombra de si próprio?
(Entra o Cardeal Beaufort, com séquito.) As frontes adornar com uma coroa,
CARDEAL: Portador de uma carta de poderes sem, contudo, em substância e autoridade,
da parte do monarca, eu vos saúdo, se distinguir nem mesmo dos vassalos?
lorde regente. Pois sabei, milordes: Semelhante proposta é absurda e iníqua.
movidos de piedade ante o espetáculo Cartos: Ninguém ignora que eu já estou de posse
destas lutas sangrentas, os estados de quase todo o território franco,
da Cristandade com ardor pediram muito mais da metade, onde me acatam
que a paz fosse firmada entre a ambiciosa como rei de direito. E ora é preciso -
França e nosso país.Já se acha próximo que pela renda, apenas, do que resta,
daqui o delfim que vem com os do seu séguito eu venha a renunciar tais privilégios,
para tratar conosco da matéria. para ser vice-rei, tão-só, da França?
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Henrique VI
Cena V
Londres. Um quarto no palácio. um volume de linhas tentadoras
Entra o Rei Henrique conversando com Suffolk; Gloster e que os mais duros sentidos despertaram.
Exeter os seguem. E o que é mais: apesar de tão divina,
tão cheia de sublime encantamento,
Rer Henrique - Estou pasmado, nobre conde, diante só deseja, humildosa e reverente,
do admirável retrato que fizestes às ordens vir ficar de Vossa Alteza,
da bela Margarida. Suas virtudes, resultado de seu pendor virtuoso,
realçadas por tais dotes exteriores, posso afirmá-lo, que ora a leva a amar-vos
me deixaram de pronto apaixonado. e a honrar-vos como a seu senhor legítimo.
Como o navio que o tufão obriga, Rer HenRIQUE*
poderoso, a avançar, rompendo as ondas, Henrique não almeja mais do que isso.
arrastado me sinto pelo sopro Consenti, pois, milorde protetor,
de seu conceito a um mísero naufrágio que do rei da Inglaterra Margarida
ou a alcançar o posto em que me seja se torne a real esposa.
concedida a ventura de possuí-la. GLOSTER* Permitindo-o,
SurroLk: Pois meu bom lorde, só falei por cima, adularia, apenas o pecado.
nada mais que o prefácio de seus méritos. Vossa Alteza, milorde, não ignora
Todas as perfeições dessa adorável que está comprometido com outra dama,
criatura — se eu tivesse habilidade digna de toda estima. Como fora
para vo-las expor — integrariam possível anularmos o contrato?
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WiLLIAM SHAKESPEARE
Como sairá Vossa Honra de tudo isso? Seu espírito intrépido e indomável —
SurroLK* Como um rei, quando jura ilegalmente, como em poucas mulheres se tem visto —
ou como alguém que, após o compromisso nos deixa esperançosos de um herdeiro
de provar-se em torneio, se afastasse digno do nosso rei, que, sendo filho
do recinto da luta por ter visto de um guerreiro sem par, poderá dar-nos
que o adversário era indigno. Muito baixo descendente também de igual bravura,
se acha a filha de um conde sem fortuna. no caso de se unir a uma senhora
Podemos retirar, pois, a palavra. da energia da bela Margarida,
GLosreR: Margarida que é mais do que isso, acaso? Se vossa for, também, a opinião minha,
Seu genitor não vale mais que um conde, Margarida será nossa rainha.
mas que tenha outros títulos gloriosos. Rer Henrique: Ou seja pela força da pintura,
SurroLk: Seu pai é rei, milorde; rei de Nápoles meu bom Lorde de Suffolk, que fizestes,
e de Jerusalém. Goza na França ou pelo fato de, até agora, a minha
de tanta autoridade, que este enlace mocidade não ter sido abalada
vai servir para a paz alicerçar-nos pelas chamas do amor — não sei dizê-lo.
e os franceses manter em obediência. Mas uma coisa é certa: no imo peito
GLosrTER* O mesmo fará o Duque de Armagnac, me encontro de tal modo dividido
por ser parente próximo de Carlos. entre o alarma do medo e o da esperança,
ExerER* Além do mais, é de esperar que dote que me deixam prostrados os pensamentos.
liberalmente a filha, ao passo que o outro Por isso, embarcai logo para a França,
vai ganhar muito mais do que o que entrega. milorde, e assinai lá qualquer tratado,
SurroLK* Ora, milordes, aludis ao dote! procurando que Lady Margarida
Não humilheis, assim, vosso monarca, consinta em empreender a travessia
imaginando-o abjeto, baixo e pobre para a Inglaterra, a fim de ser coroada
para escolher a noiva por dinheiro, e ungida como esposa fidelíssima
não por amor. Henrique pode a sua do Rei Henrique. Para os vossos gastos
rainha enriquecer, sem que precise de representação, cobrai do povo
esposa procurar que o torne rico. o tributo do dízimo. Ide logo,
É próprio só de rudes camponeses vos digo, pois até que retorneis,
negociar as mulheres, como o fazem perplexo ficarei com mil cuidados.
no mercado com bois ou com cavalos. Vós, meu tio, bani qualquer ofensa.
O casamento é assunto muito sério Se me julgásseis pelo que já fostes,
para ser resolvido desse modo. não pelo que ora sois, desculparíeis
Não depende de nós, mas de Sua Graça, a brusca afirmação desta vontade.
tão-somente, escolher a companheira Ora me conduzi para onde eu possa,
de seu leito nupcial. Ora, milordes, sozinho, refletir em meus cuidados.
se Margarida obteve a preferência, (Sai)
não pode haver razão que prevaleça GLosrTER: Sim, cuidados, receio; agora e sempre.
no sentido de à escolha nos opormos. (Saem Gloster e Exeter.)
Uma aliança forçada é puro inferno, SurroLk* Suffolk assim venceu; e, como o jovem
perspectiva de lutas e discórdias, Páris, na Grécia, outrora, ele se apronta
ao passo que o contrário só traz bênçãos, para partir, movido da esperança
é imagem de ventura celestial. de vir a achar no amor igual ventura,
Sendo rei, onde esposa Henrique achara mas de ter melhor fim do que o troiano.
melhor que Margarida, de real sangue? Vai mandar Margarida em nosso rei;
À par do nascimento, a primorosa eu nela mandarei, no rei e no reino.
beleza a torna digna de um monarca. (Sai)
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HENRIQUE VI - PARTE II
Shakespeare
Introdução (David Bevington)
Ricardo de York não tem uma admiração inerente por Suffolk e Margaret, mas
cinicamente os apoia, como uma forma de destruir o bom Duque de Gloucester. Ele
aconselha seus parceiros Salisbury e Warwick, “Pestanejem na insolência do Duque de
Suffolk, / No orgulho de Beaufort, na ambição de Somerset, / Em Buckingham, e em
todos do seu grupo, / Até que eles capturem o pastor do rebanho, / Aquele príncipe
virtuoso, o bom Duque Humphrey” (2.2.70-4). E Humphrey tem, de fato, uma fraqueza
fatal que ele não pode afastar-se: a ambição de sua esposa, Eleanor. Com o plano de
tornar-se a primeira-dama, Eleanor incorre em inevitável conflito com a desapiedada
Rainha Margaret. Winchester e Suffolk, sabendo do orgulho auto-ofuscante de Eleanor,
consideram pateticamente fácil implantar espiões no meio familiar dela, que encorajarão
à propensão dela à bruxaria. Humphrey nunca é pessoalmente contaminado pelo
orgulho de sua esposa, contudo, está também condenado. O Rei Henrique sabe da
bondade de Humphrey mas não pode salvá-lo. Essa queda de um corajoso moderado,
enfatizada no título do texto in Quarto de 1594 (“com a morte do bom Duque
Humphrey”), distingue Humphrey como a mais eminente vítima da segunda peça, tal
como Talbot na Parte Um. Ele é destruído por uma aliança insincera e temporária de
extremistas de ambos os lados: aqueles como Margaret e Suffolk, que aderem-se ao
privilégio despótico, e aqueles tais como York, que deseja incitar os plebeus para seus
próprios propósitos posteriores. Em tempos de confrontação a posição mediana é
inerentemente vulnerável, e sua destruição leva a uma intensificada polarização.
Personagens
Rer Henrique VI. Jorn Hume
sacerdotes.
HumeHrey, Duque de Gloster, seu tio. SouTHWELL
CarpEAL BEAauroRT, Bispo de Winchester, tio-
avô do rei. BoLINGBROKE, feiticeiro.
RicaRDO PLANTAGENETA, Duque de York. Um espírito, invocado por ele.
Tomás HoRNER, armeiro.
EDUARDO
PerER, seu aprendiz.
seus filhos. Escrivão DE CHATHAM,
RicarDO
PrEerEITO DE SANTO ÁLBANO.
SIMPCOX, impostor.
DuQUE DE SOMERSET. Dois assassinos.
DuQUE DE SUFFOLK. Jack CApE, rebelde.
Duque DE BUCKINGHAM.
LorpE CLIFFORD. Jorce Bevis.
O Jovem CLirrroro», seu filho. Joun HoLLanD.
CONDE DE SALISBURY. O carniceiro Drcx, adeptos de Cade.
ConDE DE WARWICK. o tecelão SMITH,
Lorpe ScaLES, governador da Torre. MICAEL, etc.
Srr HuMPHREY STAFFORD.
ALEXANDRE ÍDEN, nobre de Kent.
WILLIAM STAFFORD, seu irmão.
MARGARIDA, esposa do Rei Henrique.
LorpeE Say.
ELgonor, Duquesa de Gloster.
Um Capitão de navio, um patrão e seu ajudante.
MARGERY JOURDAIN, feiticeira.
VALTER WHITMORE. A mulher de Simpcox.
SIR JOHN STANLEY. Nobres, senhoras da nobreza e séquito; arauto,
Dois gentis-homens, prisioneiros juntamente com peticionários, um bedel, xerife e oficiais; cidadãos,
Suffolk. aprendizes, falcoeiros, guardas, soldados,
Vaux. mensageiros, etc.
Mareus Gore.
Cena
Em várias partes da Inglaterra
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Ato T- Cena I
Londres. Uma sala do palácio. me sugere e a alegria transbordante
Toque de trombetas; depois, de oboés. Entram, por um lado, me dita ao coração reconhecido.
o Rei Henrique, o Duque de Gloster, Salisbury, Warwick Rer HENRIQUE
eo Cardeal Beaufort; por outro, a Rainha Margarida, É bela de extasiar; mas seu discurso
conduzida por Suffolk; seguem-se York, Somersei, gracioso, as expressões apresentada
Buckingham e outros. com toda a majestade da prudência,
o espanto me sufocam, provocando-me
SUFFOLK* Ào partir para a França, fui por Vossa lágrimas de alegria. É indescritível
Majestade Imperial encarregado, a ventura que o peito ora me agita.
como procurador de Vossa Graça, Lordes, com voz alegre saudai todos
de esposar a Princesa Margarida o meu amor.
para Vossa Excelência. E assim, na muito Topos: Que tenha vida longa
famosa e antiga Tours, sendo presentes Margarida, a ventura da Inglaterra!
os Reis da França e da Sicília, os Duques RarnHa MARGARIDA * À todos agradeço.
de Orleans, Calábria, de Alençon, Bretanha, (Fanfarras.)
doze barões, vinte colendos bispos SurroLk: Milorde protetor, se for do agrado
e sete condes, pude, enfim, pôr termo de Vossa Graça, os itens aqui se acham
à minha comissão e a desposei. do contrato da paz em que acordaram
Agora, humildemente, dobro os joelhos nosso monarca e o Rei Carlos da França
e, à vista da Inglaterra e de seus pares, durante o prazo de dezoito meses.
deponho o meu direito sobre a rainha GrostER* “Imprimis, fica assentado entre o Rei da
França, Carlos, e William de la Pole, Marquês de
em vossas mãos, que a essência representam
do que eu era, tão-só, a grande sombra. Suffolk, embaixador do Rei Henrique da Inglaterra,
que o dito Henrique desposará Lady Margarida,
Nunca fez um marquês tão feliz mimo;
filha de Reignier, Rei de Nápoles, Sicília e Jerusalém,
nenhum rei jamais viu tão linda esposa.
ea coroará Rainha da Inglaterra antes do dia 30 do
Rer HeNRIQUE-
próximo mês de março. Item, que o ducado de Anjou
Levanta-te, Suffolk. Sede bem-vinda,
e o condado de Maine ficarão livres de qualquer
Rainha Margarida. É-me impossível
obrigação e serão entregues ao rei seu pai...”
dar maior prova de afeição do que este
(Deixa cair o papel.)
beijo afetuoso. Oh Deus, que me criaste! Rei HENRIQUE:
dai-me, também, um peito agradecido, Tio, que estais sentindo?
pois nesta face linda me concedes GLOSTER* Meu gracioso
à alma extasiada um mundo de venturas senhor, peço perdão, mas um mal súbito
terrenas, se vier amor recíproco me ataca o peito e a vista me perturba,
unificar os nossos pensamentos. de todo me impedindo ora a leitura.
RarnHa MARGARIDA * Rer HENRIQUE:
Grande Rei da Inglaterra e meu gracioso Tio de Winchester, por obséquio, lede.
senhor, das conferências que já tive CARDEAL“ “Item, ficou, ainda, decidido entre
convosco em pensamento, assim de dia ambos que os ducados de Anjou e Maine ficarão
como de noite, em sonhos e acordada, livres de qualquer obrigação e serão entregues ao rei
em meio aos cortesãos ou a sós comigo, seu pai, e que ela será enviada ao Rei da Inglaterra à
me vem a audácia, meu estremecido custa deste, sem levar dote algum.”
monarca, de saudar meu rei em termos Rer HenrIQUE-
desornados, tal como o entendimento Agradam-nos os termos. Ajoelhai-vos,
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Ato T- Cena II
O mesmo. Quarto em casa do Duque de Gloster. Por que cravas os olhos no chão sujo,
Entram Gloster e a duquesa. contemplando o que a vista te conturba?
Estarás à procura do diadema
Duquesa : Por que a cabeça deixa meu esposo do Rei Henrique, enaltecido pelas
pender, tal como espiga em demasia honrarias do mundo? Se for isso,
carregada por Ceres? Por que causa continua a fixá-lo e as faces roja,
franze os cenhos o grande Duque de Humphrey, até que ele a cabeça te circunde.
como se o molestasse o belo mundo? Estende o braço e alcança o ouro glorioso.
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Não consegues tocá-lo? O meu te ajuda; Para trás! Não me fales mais sobre isso.
e uma vez que o tenhamos entre os dedos, Duquesa * Como assim, meu senhor!
ao céu levantaremos a cabeça, [Aborrecestes-vos
sem jamais consentirmos que ao chão baixo com Eleonor, tão-só por vos ter ela
a vista sobranceira se degrade. contado o que sonhara? De outra feita
GLrostEr: Oh Nell! Se tens amor a teu marido, ficarei com meu sonho, para ver-me
do peito expele o cancro da ambição! livre de repreensões.
Possa algum pensamento, concebido GLOSTER: Não te amofines;
contra o meu soberano, o pio Henrique, já estou de novo alegre.
transformar-se em meu último suspiro (Entra um mensageiro.)
neste mundo mortal. Ora me deixa Mensageiro : Milorde, é do prazer de Sua Alteza
triste um sonho angustiante desta noite. que vades a cavalo a Santo Albano
Duquesa: à caça do falcão com Suas Graças.
Que sonhou meu senhor? Nada me ocultes, GLosrER * Pois não! Não quererás, Nell, ir conosco?
que eu te retribuirei com o doce conto Duquesa : Sim, meu caro senhor; não me demoro.
do que eu também sonhei de manhãzinha. (Saem Gloster e o mensageiro.)
GLosTER : Sonhei que este bastão, preclara insígnia Se não posso ir na frente, vou segui-los
do meu posto na corte, se partira. enquanto se mostrar Gloster de espírito
O causador do fato, não me lembra. humilde e tão mesquinho. Fosse eu homem,
Sim, pensando melhor, foi o cardeal. um duque, um príncipe de sangue, em pouco
O certo é que, na ponta dos dois troços, tempo removeria esses escolhos
a cabeça fixaram do primeiro enfadonhos, andando sobre troncos
Duque de Suffolk, William de la Pole decapitados. Mas embora seja
e do Duque Edmundo Somerset. mulher, não me permito por mais tempo
Só Deus sabe o que o sonho significa. continuar negligente no pomposo
Duquesa : Muito simples: indica, tão-somente, festival da Fortuna. Onde ficastes,
que se vier a quebrar alguém um galho homem? Sir John! Por que tanto receio?
da alameda de Gloster, a cabeça Estamos sós aqui; tu e eu, somente.
perderá sem demora pela audácia. (Entra Hume.)
Mas agora me escuta, meu querido Hume - Jesus ampare Vossa Majestade.
duque, meu Humphrey: pareceu-me em sonhos Duquesa - Majestade! Sou Graça, simplesmente.
que eu estava sentada em majestosa Hume:
cadeira, em plena catedral de Westminster, Mas com a graça de Deus e os bons conselhos
onde reis e rainhas vão sentar-se de Hume, vai Vossa Graça ver em pouco
para serem coroados; a meus pés que esse título cresce.
se achava Henrique e Lady Margarida, Duquesa Homem, que dizes?
que o diadema me punham na cabeça. Já falaste com a bruxa inteligente,
GLosrer: Não, Eleonor! Terei de censurar-te. a Margery Jourdain, e o feiticeiro
Mulher louca! Eleonor de maus princípios! Rogério Bolingbroke? Estão dispostos
Ésa segunda dama da Inglaterra, a empreender qualquer coisa em meu proveito?
mulher do protetor e dele amada. Hume : Prometeram mostrar a Vossa Alteza
Não desfrutas de todos os prazeres um espírito que eles chamariam
mundanos, muito mais do que te possa do insondável abismo subterrâneo
conceber e abarcar o pensamento? e que há de responder a tudo quanto
E hás de forjar traições para, com isso, Vossa Graça entender de perguntar-lhe.
derrubares a ti e a teu marido Duquesa: Está bem; pensarei sobre esse assunto.
do alto da honra para o pé da infâmia? Logo que retornarmos da caçada
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Ato T- Cena II
O mesmo. Um quarto no palácio. casa, terras, minha mulher e tudo o mais.
Entram três ou quatro peticionários, entre os quais o SurroLK* À mulher também? Grande violência,
escudeiro Peter. não há que ver. E a tua, em que consiste? Mas, que é
isso? “Contra o Duque de Suffolk, por haver cercado
PRIMEIRO PETICIONÁRIO * Ficai perto, mestres! o pasto público de Melford.” Que significa isso,
Não demora, milorde protetor vai passar por aqui; senhor velhaco?
será o momento de lhe entregarmos as nossas SEGUNDO PETICIONÁRIO - Ai de mim, senhor! Eu
petições, com todas as formalidades. sou apenas um pobre peticionário, que falo em nome
SEGUNDO PETICIONÁRIO - Sim. Deus o proteja! É do nosso distrito.
um bom homem. Jesus o abençoe. PeTER (apresentando a sua petição) - Contra meu
(Entram Suffolk e a Rainha Margarida.) mestre Tomás Horner, por ter dito
PrimEIRO PETICIONÁRIO - Aí vem vindo ele, me que o Duque de York era o legítimo herdeiro da coroa.
parece, juntamente com a rainha. RarnHa MARGARIDA : Que estás a dizer? O
Com toda a certeza vou ser eu o primeiro. Duque de York disse que ele era o herdeiro legítimo
SEGUNDO PeTICIONÁRIO * Volta, maluco! É o da coroa?
Duque de Suffolk; não é milorde protetor. Perer - Que meu mestre era o herdeiro? Não: de
SurroLk: Então, amigo! Desejas alguma coisa de forma alguma. Foi o meu mestre que disse que ele o
mim? era e que o rei não passava de um usurpador.
PrimEIRO PeTICIONÁRIO * Perdão, milorde; mas eu SurroLk: Não há ninguém aí?
vos tomei por milorde protetor. (Entram criados.)
RarnHa MARGARIDA (lendo os sobrescritos) “A Prende este sujeito e manda imediatamente um
Milorde Protetor”. Vossas petições são endereçadas oficial de justiça à casa de seu mestre. Na presença do
a Sua Senhoria? Deixai-me vê-las. Em que consiste rei iremos ouvir vosso assunto com mais vagar.
a tua? (Saem os criados com Peter.)
PrrmeIRrO PeTICIONÁRIO - À minha, com licença RAarnHA MARGARIDA:
de Vossa Graça, é contra João Goodman, um dos Quanto a vós, que almejais ser protegidos
homens de milorde cardeal, por me ter tomado a sob as asas do nosso protetor,
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Ato T- Cena IV
O mesmo. Jardim do Duque de Gloster.
BoLiNGBROKE : Estamos prontos, mestre Hume.
Entram Margery Yourdain, Hume, Southrwell e Bolingbroke.
Sua Senhoria está disposta a presenciar e a ouvir
nossos exorcismos?
Hume : Vinde, mestres. Digo-vos que a duquesa
Hume : Ora, por que não? Não vos preocupeis com
conta com a realização de vossas promessas.
a sua coragem.
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BoLINGBROKE Já ouvi dizer que ela é uma mulher Acabai! Prosseguir não me é possível.
de espírito invencível. Mas será conveniente, mestre BOLINGBROKE*
Hume, ficardes lá em cima com ela, enquanto nós Retorna à escuridão e ao fogo eterno
fazemos o trabalho. E agora peço que vos vades em do lago abrasador. Vai-te, maldito!
nome de Deus. (Trovões e relâmpagos. Desaparece o espírito.)
(Sai Hume.) (Entram apressadamente York e Buckingham, com
Mãe Jourdain, abaixai-vos e rojai pelo chão. John guardas e outras pessoas.)
Southwell, lede. E agora, mãos à obra! Yorx- Prendei esses traidores e toda essa
(Aparece a duquesa, no alto, seguida de Hume.) farandolagem. Bruxa, nós te tínhamos
Duquesa : Muito bem dito, mestres; sede todos de olho, é só o que eu te digo. O quê? A senhora
bem-vindos. Para isto, quanto mais cedo, melhor. também neste lugar? O rei e o reino
BoLrncBrokE : Boa dama, paciência; os feiticeiros vos saberão pagar a diligência.
a hora azada conhecem: noite escura, Milorde protetor, não tenho dúvida,
noite profunda, noite silenciosa, vos recompensará pelo serviço.
a hora em que Tróia foi entregue às chamas, Duquesa - Não prejudica ao rei o meu serviço
em que piam corujas agourentas nem a metade do que o teu costuma,
e uivam os cães de guarda, em que os espíritos duque insolente, que sem causa ameaças.
passeiam e os fantasmas saem dos túmulos: BuckiNcHAM É verdade, senhora; não há causa.
eis o tempo adequado para a empresa E disto, que dizeis?
que vamos iniciar. Mas assentai-vos, (Mostra-lhe o papel.)
senhora, sem receio, porque o espírito Levai-os logo;
que vamos invocar ficará preso prendei-os bem, deixando-os separados.
nos limites de um círculo sagrado. Vós, senhora, tereis de acompanhar-nos.
(Nessa altura, executam as cerimônias do estilo e traçam Stafford, fica com ela.
um círculo. Bolingbroke, ou Soutbrwell, lê: Conjuro-te! (Retiram-se do alto a duquesa e Hume, escoltados.)
etc. Trovões e relâmpagos. Aparece o espírito.) Vão ser examinadas todas essas
EspíriTO - Adsum. bugigangas. Levai-os daqui todos!
MARGERY JOURDAIN * Asmath! (Saem Soutbwell, Bolingbroke etc., escoltados.)
Por esse Deus eterno cujo nome York: Lorde Buckingham, vejo que a vigiastes
te fez tremer de medo, dá-me pronta às maravilhas. Ótima conjura
resposta a quanto aqui vou perguntar-te. para sobre ela levantarmos algo.
Sem isso, não sairás de onde te encontras. Deixai-me ler, milorde, essa escritura
EspíriTo - Pergunta, então. Quisera o fim ver disto. do diabo. Mas, que vejo?
BoLINGBROKE (Iê) - “Vive o duque que a Henrique há de depor,
Primeiro sobre o rei: que será dele? mas por fim há de achar morte violenta.”
EspíriTo - Vive o duque que a Henrique há de depor; Ora, isto é, justamente,
mas por fim há de achar morte violenta. Aio, te, Acacida, Romanos vincere posse.
(Enquanto o espírito fala, Soutkswell escreve a resposta.) Prossigamos:
BOLINGBROKE* “Que morte aguarda o Duque de Suffolk?
Que sorte aguarda o Duque de Suffolk? Morrerá na água, o fim nela encontrando.
EspíriTO * E o Duque Somerset, como termina?
Morrerá na água, o fim nela encontrando. Desconfie de castelos; mais a salvo
BOLINGBROKE* ele estará nos plainos arenosos
E o Duque Somerset, como termina? do que onde altos castelos se levantam.”
EsríriTO - Desconfie de castelos; mais a salvo Vinde milorde, vinde; estes oráculos
ele estará nos plainos arenosos foram duros de obter e são dificeis
do que onde altos castelos se levantam. de decifrar. O rei se acha a caminho
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de Santo Albano; com ele está o marido para que obtenha dele a recompensa.
desta adorável dama. Ora lhe enviemos York: Como o quiserdes, meu bom lorde. Olá!
a notícia, gastando o tempo estrito Quem está aí?
que exija um bom cavalo. Triste almoço (Entra um criado.)
vai ter milorde protetor, realmente. Vai convidar de minha parte os Lordes
BUCKINGHAM * Warwick e Salisbury para cearem
Suplico a Vossa Graça, Lorde de York, esta noite comigo. Não demores!
consentir que seja eu o mensageiro (Fanfarras. Saem.)
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Simpcox- Uma só vez, senhor, em toda a vida; Simpcox* Oh, mestre, se o conseguísseis!
quando era moço ainda. Grosrer Senhores de Santo Albano, por acaso
À MULHER: É certo; e caro, não tendes beleguins na cidade e essa coisa a que se
muito caro pagou a tal subida. dá o nome de chibata?
GLosTER: Para arriscares tanto, era preciso PrereITO - Perfeitamente, milorde, com licença de
que fosses mesmo doido por ameixas. Vossa Graça.
Simpcox* Minha mulher, senhor, queria ameixas. GLosTER Então ide buscar-mos, sem demora.
Fez-me subir, senhor, por isso, na árvore, PrereITO * Vai correndo, maroto, chamar um
com perigo de vida. beleguim.
GLOSTER* O rapazinho (Sai um dos moradores.)
é esperto; mas de pouco isto lhe serve. GrosrER : Ponham um banco neste lugar. (Trazem-
Mostra-me os olhos! Vamos! Fecha-os! Abre-os! lhe um banco.) E agora, meu velho, se não quiseres ser
Quero crer que não vês ainda direito. chibateado, pula por cima deste banco, e põe-te ao
Simpcox- Tão claro como o dia, mestre, graças fresco.
a Deus e a Santo Albano. Simpcox- Ah, meu senhor! Eu sou incapaz de ficar
GLOSTER* Que me dizes? de pé, sozinho. Ides torturar-me inutilmente.
De que cor é este manto? (Volta o morador, acompanhado de um beleguim
SiMPCOX* Cor de sangue; com um chicote.)
vermelho como sangue. GLosrer - Não há dúvida, senhor; nós vamos
GLOSTER* Muito bem; restituir-vos as pernas. Beleguim, aplica-lhe umas
ea cor do meu casaco? chibatadas, até que ele salte por cima deste banco.
SiMPCOX* É preto, mestre; BeLEGUIM *Pois não, milorde! Vamos, arranca o
preto como azeviche. gibão!
Rer Henrique: Como podes Simpcox: Ah, mestre! Como o poderei fazer? Sou
conhecer azeviche? incapaz de ficar de pé.
SUFFOLK* Penso que ele (Depois da primeira chibatada, Simpcox salta por cima do
Jamais teve ocasião de contemplá-lo. banco e sai correndo. O povo o acompanha, gritando:
GLosrer: Mas casacos e mantos, aos milhares.
Um milagre!)
Simpcox: Jamais, senhor, em toda a minha vida. Rer HENRIQUE:
GLosrer Dize, velhaco, então, qual é o meu nome. Oh Deus! Como permites estas coisas!
Simpcox* Como posso sabê-lo, mestre? Ignoro-o. RarnHa MARGARIDA
GLosrER: E o nome deste aqui? Fez-me rir o malandro, a correr tanto!
Simpcox-* Não sei, senhor. GLOSTER* Segui-o; levai presa esta rameira,
GLosTER* E o deste? A MuLHERr* Oh, senhor! Só o fizemos por miséria.
Simpcox- Também não sei, senhor. GrosreR * Que seja chibateado nas cidades,
GLosTER: E tu, como te chamas? até Berwick, que é de onde eles vieram.
Simpcox* Saunder Simpcox, com licença de Vossa (Saem o prefeito, o beleguim, a mulher, etc.)
Senhoria. CARDEAL: Fez um grande milagre o protetor.
GLosTER: Pois bem, Saunder, tu és o mais refinado SurroLK* Um coxo transformou num corredor.
velhaco de toda a cristandade. Se tivesses nascido GLosreR : Mais do que isso fizeste: num só dia;
cego, ser-te-ia tão fácil os nossos nomes, como cidades a gritar, em correria.
as cores de nossas vestimentas. A visão permite (Entra Buckingham.)
distinguir cores, mas nomeá-las de súbito, é Rer HENRIQUE:
impossível. Meus senhores, Santo Albano fez um Que novidades traz o primo Buckingham?
milagre neste caso; não julgais que seria prova de BUCKINGHAM *
grande habilidade restituir as pernas a este aleijado? Novas que o coração me deixam trêmulo,
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Henrique VI
Ato IH Cena II
Londres. Jardim do Duque de York. foi Guilherme de Hatfield; após, Lionel,
Entram York, Salisbury e Warwick. o Duque de Clarence; João de Gaunt
nasceu depois, o Duque de Lencastre;
York: Caros Lordes de Warwick e Salisbury, depois desse nasceu o Duque de York,
agora que concluímos nossa parca Edmundo de Langley; Tomás Woodstock,
refeição, permiti que, enquanto damos Dugue de Closter, foi o sexto; o sétimo
um pequeno passeio, para minha e último filho foi Guilherme de Windsor.
satisfação vos interrogue sobre O Príncipe de Gales morreu antes
meu título à coroa da Inglaterra, do próprio pai, deixando um filho apenas,
que a meu ver é seguro e irrefutável. Ricardo, que foi rei depois da morte
SALISBURY* Desejo ouvir vossas razões, milorde. de Eduardo, até que o Duque de Lencastre,
Warwick: Meu caro York, aqui estamos; se for justo Henrique Bolingbroke, filho e herdeiro
tudo quanto pretendes, é certeza de João de Gaunt, coroado sob o título
porem-se os Nevils todos sob teu mando. de Henrique quarto, viesse a tomar posse
York: Eis o caso, senhores: teve Eduardo do trono, após depor o rei legítimo,
terceiro sete filhos: o primeiro enviando a pobre rainha para a França,
foi o Príncipe Negro, de igual nome, de onde ela viera, e o rei para Pomfret,
o Príncipe de Gales; o segundo onde, como o sabeis, o inofensivo
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um bastão com um saco de areia numa das pontas; um SALISBURY * Peter de quê?
tambor o precede. Por outro lado, entra Peter, com um
Perer : Peter Cachação.
tambor e um saco de areia, acompanhado deaprendizes, SALISBURY * Cachação! Vê então se aplicas uns
que bebem com ele.) bons cachações em teu mestre.
Primeiro ViziNHo - Vizinho Horner, bebo Horner: Meus mestres, eu vim aqui, como quem
convosco um copo de xerez. Nada de medo, vizin diz, por instigação de meu aprendiz, para provar que
ho;
haveis de sair-vos bem. ele não passa de um velhaco e que eu sou homem
SEGUNDO ViziNHO - E aqui, vizinho, um copinho de bem. No que respeita ao Duque de York, quero
de charneco. morrer se em algum tempo lhe desejei algum mal,
TercEIRO ViziNHO - E eu aqui uma caneca de boa ou ao rei, ou à rainha. E agora, Peter, cuida de ti, que
cerveja dupla, vizinho. Bebei e não tenhais medo do vou malhar-te de rijo.
vosso homem. York: Já está engrolando a língua este velhaco.
Horner - Por minha fé, deixai-o vir, que haveis de Tocai logo o sinal para o combate.
ver como eu me arranjarei. Uma figa para Peter. (Toque de trombetas. Batem-se; Peter derruba o mestre.)
PriMEIRO APRENDIZ * Peter, aqui! Bebo à tua Horner Pára, Peter! Pára! Confesso, confesso a
saúde. Nada de medo. minha traição.
SEGUNDO APRENDIZ Alegra-te, Peter, e não (Morre.)
tenhas medo de teu mestre. Defende o nome dos Yorx- Tirai-lhe a arma. Amigo, rende graças a
aprendizes. Deus e ao bom vinho que subiu à cabeça do teu
PerER* Agradeço a todos. Bebei e rezai por mim, é mestre,
O que vos peço, pois penso que já bebi o meu último Peter: Oh Deus! Venci meus inimigos diante
trago neste mundo. Escuta, Robin, no caso de eu de uma assembléia como esta? Oh Peter! fizeste
morrer, dou-te o meu avental; tu Will, ficarás com prevalecer o teu direito.
o Rer Henrique: Tirai esse traidor de minha vista;
meu martelo; Tom, fica desde já com todo o dinheiro
com a morte demonstrou que era culpado.
que me resta. Só peço que Deus me abençoe; não é
Deus, em sua justiça, revelou-nos
possível que eu resista ao meu mestre, que aprendeu
a verdade e a inocência deste pobre
muito bem a combater.
rapaz, que o criminoso desejara
SALISBURY* Vamos, parai com a bebida e iniciai
matar injustamente. Amigo, vamos;
logo os golpes. Como te chamas, maroto?
vais receber a tua recompensa.
PerER- Peter, ora essa!
(Trombetas; saem.)
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Mestre xerife, não deixeis que a pena todo favor; depressa! Cumpre as ordens
vá além da cominada pelo rei. que tens a meu respeito.
XerrrE: Não se zangue com isso Vossa Graça, STANLEY: É a Ilha de Man,
mas minha comissão termina aqui. minha senhora, onde sereis tratada
Agora é a Sir John Stanley que compete conforme o vosso estado.
acompanhá-la até à Ilha de Man. Duquesa: Neste caso,
GLOSTER Sir John, estais encarregado, agora, muito mal, que é completo o meu opróbrio.
de guardar minha esposa? Tratar-me-eis por maneira vergonhosa?
STANLEY * Com licença STANLEY * Como duquesa é que sereis tratada,
de Vossa Graça, deram-me a incumbência. como esposa do Duque Humphrey de Gloster.
GrosTER- Não useis de aspereza por pedir-vos Duquesa ' Xerife, passai bem, melhor do que eu,
que a trateis com bondade. É bem possível embora o condutor tivésseis sido
que o mundo torne a rir e eu tenha vida de minha humilhação.
para recompensar-vos, se com ela XERIFE: É meu ofício,
fordes bondoso. E assim, Sir John, adeus. minha senhora. Por favor, perdoai-me.
Duquesa Já vos ides, senhor, sem me dizerdes Duquesa : Sim, sim, adeus; estais desobrigado.
adeus? Vamos, Stanley; ficamos ou seguimos?
GLosrER- Dão testemunho minhas lágrimas STANLEY * Senhora, terminada a penitência,
de que não me é possível falar nada. tirai essa camisa. Vamos logo
(Sai-Gloster com os criados.) cuidar de preparar-vos para a viagem.
Duquesa Já partiste? Levaste o meu consolo. Duquesa : Se a camisa eu tirar, não me despojo,
Nada me resta; a morte é que me alegra, com isso, da vergonha. Não; nas vestes
a morte, cujo nome tantas vezes mais ricas ficaria ela aderente,
me pôs medo, por ter eu desejado e se mostrara a todos, fosse a minha
alcançar neste mundo a eternidade. vestimenta qual fosse. Vamos, leva-me;
Peço-te, Stanley, leva-me depressa, desejo ver minha prisão quanto antes.
pouco importa para onde, pois dispenso (Saem.)
Ato HI - Cenal
A abadia de Santo Edmundo, em Bury. quão insolente se tornou, em tudo
Toque de clarins. Entram para o parlamento o Rei diferente, orgulhoso, peremptório?
Henrique, a Rainha Margarida, o Cardeal Beaufort, Conhecemo-lo afável e bondoso;
Suffolk, York, Buckingham e outros. bastava que de longe o relanceássemos,
para se pôr de joelhos. Toda a corte
Rer HenrIQUE* lhe admirava, por isso, a submissão.
Estranho que Milorde Humphrey de Gloster Mas agora, se o encontro, embora seja
não tenha vindo. É contra o seu caráter pela manhã, no tempo em que é costume
ser o último a chegar, qualquer que tenha desejar-se bom dia, o cenho franze,
sido a razão de seu atraso agora. lança olhar carrancudo e passa teso,
RarnHA MARGARIDA * sem dobrar os joelhos, desdenhoso
Não podeis ver, ou não quereis, apenas, das honras que nos cabem por direito.
observar a mudança de seu todo, Ninguém liga ao rosnado de cãezinhos;
a majestade com que diz as coisas, mas até mesmo os homens corajosos,
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Ato HI Cena II
Bury. Um quarto no palácio. O rei e os pares todos estão perto.
Entram apressadamente alguns assassinos, Refizestes o leito? Tudo se acha
conforme as ordens que eu vos tinha dado?
PRIMEIRO ASSASSINO * PRIMEIRO ASSASSINO
Vai logo à casa de Milorde Suffolk Tudo, milorde.
e dize-lhe que o duque despachamos, Surrork: Então parti. Depressa!
conforme ele ordenara.
(Saem os assassinos.)
SEGUNDO ÁssassINO * Oh! quem nos dera (Trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha
que tudo ainda estivesse por fazer! Margarida, o Cardeal Beaufort, Somerset, nobres
Já ouviste alguém falar com tal espírito
e outros.)
de contrição? Res Henrique Ide logo chamar o nosso tio.
(Entra Suffolk.) Queremos julgar hoje Sua Graça,
PrimEIRO Assassino - Milorde vem chegando. para ver se é culpado, como o afirmam.
SurroLK Liquidastes a coisa, camaradas? SurroLk: Vou chamá-lo já, já, meu nobre lorde.
PriMEIRO AssASSsINO “ Sim, milorde, está morto.
(Sai)
SurroLK: Belas palavras. Ora dirigi-vos Rer HENRIQUE
à minha casa; quero vos premiar Lordes, tomai vossos lugares. Peço-vos
por esse empreendimento venturoso. que não sejais com nosso tio Gloster
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rigorosos senão somente até onde o teu contacto. Sai da minha frente,
a opinião sã provar que ele é, realmente, mensageiro sinistro! Tens nos olhos
passível de castigo. a majestade cruel da tirania,
RarnHa MARGARIDA Deus nos livre que o mundo atemoriza. Afasta a vista
de que o mal a tal ponto prevaleça, de mim; esses teus olhos me lancinam.
fazendo condenar um gentil-homem Não te retires, não! Vem, basilisco:
inocente. Permita Deus que o duque deixa sem vida o espectador incauto!
se lave das suspeitas que lhe assacam. Alegria hei de achar na morte escura.
Rer Henrique: Agradeço-te, Meg; essas palavras É dupla morte para mim a vida,
me deixam satisfeito.
uma vez que está morto Humphrey de Gloster.
(Volta Suffolk.) RarnHa MARGARIDA *
E então? Que causa
Por que razão tratais Milorde Suffolk
te faz tremer? Por que te achas tão pálido?
dessa maneira? Muito embora o duque
Suffolk, e nosso tio? Que acontece?
lhe fosse desafeto, ele deplora,
SurroLk: Está morto, milorde; Gloster se acha
como cristão sincero, o seu trespasse.
morto no leito.
Quanto a mim, muito embora ele tivesse
RarnHAa MARGARIDA: Não! Deus não o permita!
sido meu adversário, se possível
CARDEAL: Juízo incógnito de Deus! Sonhei
fosse chamá-lo à vida só com lágrimas
esta noite que o duque estava mudo,
abundantes, gemidos do imo peito,
que não podia pronunciar palavra.
suspiros de fazer gelar o sangue,
(O rei desmaia.)
RarnHa MARGARIDA *
quisera ficar cega só de tanto
Que tem o meu senhor? Socorro, lordes!
chorar, adoecer com meus gemidos
O rei está morto! e ter a cor da quaresmeira pálida
SomerseT: Ocorpo levantai-lhe; com suspiros que o sangue me chupassem,
apertai-lhe o nariz. contanto que vivesse o nobre duque.
RarnHa MARGARIDA: Correi! Socorro! Quem sabe o que de mim dirá o mundo?
Socorro! Vamos! Abre, Henrique, os olhos! Todos sabiam que éramos imigos
SurroLk: Calma, senhora; ele já está voltando declarados. Talvez haja quem pense
asi. que eu fiz desparecer o nobre duque.
Rer Henrique - Oh Deus do céu! Meu nome vai ficar, assim, ferido
RArnHA MARGARIDA * Que está sentindo pela calúnia; assunto de conversa
meu gracioso senhor? nas cortes há de ser minha vergonha.
SUFFOLK* Coragem, ânimo, É quanto eu vou ganhar com a morte dele.
meu soberano, meu gracioso Henrique! Quem pode haver mais infeliz? Saber-me
Rer HenRIQUE- rainha e ter a infâmia por coroa?
Como! O Lorde de Suffolk me incita Rer HenrIQUE-
a não desanimar? Não soltou ele, Choro o destino do infeliz amigo.
neste momento, as notas do seu canto RarNHA MARGARIDA *
de corvo, cuja lúgubre toada Chora, então, minha sorte, que eu sou muito
me privou dos sentidos, e ora pensa mais infeliz do que ele. Como! Afastas-te
que com o chilreio da carriça, vindo de mim? O rosto escondes? Porventura
de um coração vazio e concitando-me sou alguma leprosa? Anda, contempla-me,
a não desanimar, será possível Como! Ficaste surdo como as víboras?
fazer com que me esqueça do outro canto? Então cria também veneno, para
Não escondas o fel nessas palavras matares a rainha que esqueceste.
açucaradas. Não me toques! Proíbo-te! Teu consolo se encontra circunscrito
Como picada de serpente, assusta-me no túmulo de Gloster? É que a Dama
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Por isso eles proclamam, muito embora de cumprir a palavra que empenhara;
saibam que estão proibidos de fazê-lo, mas o meu juramento é irrevogável.
que até contra o querer de Vossa Alteza (A Suffolk.) Se após três dias fores visto dentro
buscarão amparar-vos contra as falsas de qualquer dependência do meu reino,
serpentes como Suffolk, esse hipócrita, pouco há de ser o mundo todo para
cujo dardo fatal e envenenado, te resgatar a vida. Vem comigo,
dizem todos, privou traiçoeiramente bondoso Warwick, vem, que necessito
da vida vosso tio estremecido falar-te sobre assuntos importantes.
que vale vinte vezes mais do que ele. (Saem o Rei Henrique, Warwick, nobres, etc.)
Povo (dentro) - Milorde Salisbury, vinde logo RarnHa MARGARIDA
trazer-nos a resposta do monarca! Que a desgraça e a tristeza te acompanhem.
SurFoLK* Compreende-se que o povo, gente rude, Sejam teus companheiros a apertura
tivesse enviado esse recado ao rei. do coração e o amargo desconsolo.
Mas vós, milorde, alegre recebestes Com ambos forme o diabo um belo terno
a incumbência tão-só para poderdes e que tripla vingança vos abata.
estadear vossos dotes de orador. SurroLK* Graciosa soberana, deixa dessas
No entanto, as honrarias conquistadas maldições e consente que, tristonho,
por Salisbury se resumem nisto: Suffolk as despedidas te apresente.
em ter sido ele enviado por um bando RarnHA MARGARIDA *
de caldeireiros com recado ao rei. Fora, mulher covarde, desgraçado
Povo (dentro) - A resposta! Se não, faremos força! de coração sem fibra! Não tens força
Rer HenriQuE* À todos agradece, Salisbury, para amaldiçoar teus inimigos?
de minha parte o zelo carinhoso SUFFOLK* À peste atinja a todos! De que vale
de que ora deram provas, e acrescenta lançar-lhes maldições? Se estas matassem,
que mesmo que eles não tivessem vindo como o fatal suspiro da mandrágora,
pedir-me essa medida, eu já me achava eu inventara os termos mais violentos,
resolvido a fazer o que me pedem. penetrantes, malditos e horrorosos
É certo, a todo instante o pensamento de se ouvir, e deixara que dos dentes
me fazia prever que, para o Estado, cerrados me saíssem, com tais mostras
só desgraças de Suffolk adviriam. de ódio implacável, como o faz a Inveja
Por isso eu juro pela majestade macilenta em seu antro repugnante.
daquele de que sou representante Minha língua ficara embaraçada
muito indigno, que mais do que três dias, no próprio turbilhão do que eu dissesse;
sob pena de morrer, não ficará dos olhos me sairiam tantas chispas
Suffolk em nossas terras, a empestar-nos como da pederneira; meus cabelos
o ambiente com seu hálito pestífero. ficariam de pé como os de um louco,
(Sai Salisbury.) parecendo que todos os meus membros
RArNHA MARGARIDA * falassem maldições, só maldições...
Henrique, deixa que a favor eu fale É isso: o coração sinto partir-se-me,
do gracioso Suffolk. se os não amaldiçoar. Seja veneno
Rer Henrique: Oh desgraciosa tudo quanto beberem! Seja bile...
rainha, por chamá-lo de gracioso não, muito mais amargo, o que mais grato
Suffolk! Nem mais uma palavra, digo. lhes souber ao paladar; não gozem sombra
Falando a seu favor, tu só consegues mais agradável do que a do cipreste;
aumentar minha cólera. Ainda mesmo olhar de basiliscos matadores
que eu só tivesse prometido, tinha lancem por toda parte; o mais macio
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Henrique VI
Ato HI - Cena II
Londres. Quarto de dormir do Cardeal Beaufort. Entram como varas com visgo preparadas
o Rei Henrique, Salisbury, Warwick e outros. O cardeal se para minha alma alada embaraçarem.
acha no leito, cercado de criados. Quero água! Ide dizer ao boticário
que me traga o veneno encomendado.
Rer HENRIQUE: Rer Henrique: Oh tu, Motor eterno das esferas,
Beaufort, fala ao teu rei. Que estás sentindo? lança os olhos benignos a este mísero!
CARDEAL: Se és a Morte, eu te dou todo o tesouro Oh! Expulsa o demônio intrometido
da Inglaterra, bastante para a compra que na alma se assentou deste coitado,
de uma outra ilha, contanto que me largues e tira-lhe do peito o desespero!
e me libertes logo destas dores. Warwick: Que esgares ele faz com a dor da morte!
Rer Henrique: Oh! Que sinal de vida mal vivida, SALISBURY *
quando a morte é encarada desse jeito! Não o perturbeis; deixai que em paz se fine.
Warwick: Beaufort, é o soberano que te fala. Rer HeNRIQUE-
CARDEAL: Se Deus assim quiser, paz à sua alma.
Chamai-me ao tribunal quando quiserdes. Lorde Cardeal, se acaso estás pensando
Não faleceu no leito? Onde devia na salvação eterna, a mão levanta,
morrer, então? Tenho eu poder, acaso, em sinal de esperança. Nada! Morre
para fazer alguém viver à força? sem fazer gesto algum. Oh Deus, perdoai-lhe!
Não me tortures mais! Confesso tudo. Warwick: Tão ruim morte inculca vida infame.
Tornou a viver? Mostrai-me onde ele se acha. Rer HenRIQUE:
Darei mil libras, só para enxergá-lo. Não julgueis; somos todos pecadores.
Já não tem olhos; a poeira os cega. Fechai-lhe os olhos; deixai bem cerradas
Penteai-lhe a cabeleira. Vede! Vede! as cortinas e vamos meditar.
como estão arrepiados os cabelos (Saem.)
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Ato IV : Cenal
Kent. Praia perto de Dover. neste negócio.
Canhoneio no mar. Depois, saltam de um bote um capitão Carrrão: Não te mostres duro.
de navio, o patrão, seu ajudante, Valter Whitmore e Deixa-o viver, aceita-lhe o resgate.
outros; com eles, Suffolk, disfarçado, e outros gentis- SurroLk* Contempla esta medalha de São Jorge:
homens, prisioneiros. sou fidalgo. Estipula o meu resgate
na quantia que for, que eu não discuto.
Carirão - Já baixou para o mar o dia esplêndido, WHITMORE *
falante e metediço. Agora o lúgrubre Fidalgo eu também sou; chamo-me Valter
uivar dos lobos despertou os sendeiros Whitmore. Mas, que vejo? Por que tremes?
que a Noite puxam, trágica e tristonha. A morte te apavora desse jeito?
Com suas asas morosas e caídas SurroLK- É teu nome que assim me mete medo,
eles roçam os túmulos dos homens; pois soa como a morte. De uma feita
das fauces tenebrosas vão soltando um homem de saber leu meu horóscopo
por toda parte escuridão pestífera. e disse que eu viria a morrer na água
Fazei, pois, avançar os prisioneiros, em circunstâncias tais como as que o nome
porque enquanto estiver o nosso barco que ora pronunciaste me recordam.
nas dunas ancorado, todos eles. Mas não seja isso causa de ficares
pagarão o resgate aqui na areia, inexorável, que, a rigor, teu nome
ou tingirão com sangue a praia pálida. deve ser pronunciado como Gualter.
Patrão, fica com este prisioneiro; WHITMORE *
e tu aí, como ajudante, tira Gualter ou Valter, pouco me preocupa.
bom proveito deste outro. Este aqui perto, O certo é que a desonra nunca o nome
(Apontando para Suffolk.) nos conspurcou, sem que com nossa espada
Valter Whitmore, te tocou por sorte. limpássemos 3 mancha. Se eu tivesse,
Primeiro GenTIL-HomEM * portanto, de vingar-me como um baixo
Patrão, dizei-me o preço do resgate. mercador, merecera ver quebrada
ParRÃo: Apenas mil coroas, ou a cabeça. esta espada, arrancados e manchados
AJUDANTE: É também o que eu peço; do contrário, os braços, e meu nome proclamado
com o que me coube faço a mesma coisa. no mundo inteiro como o de um covarde.
CarrrÃo - Como! Achais muito duas mil coroas (Põe a mão em Suffolk.)
para vos comportardes como nobres? SUFFOLK*
Cortai a esses malandros o pescoço! Pára, Whitmore! Teu prisioneiro é o Duque
Sim, morrereis. A vida dos consócios de Suffolk; sou príncipe e me sao
que perdemos não fica compensada William de la Pole.
por uma soma assim tão irrisória. WHITMORE -
Primeiro GenTIL-HomEM * O Duque de Suffolk envolto em trapos?
Vou pagá-la, senhor; poupai-me a vida. SuFFOLK* Sim, mas do duque os trapos são apenas
SEGUNDO GENTIL-HomEM * parte acessória. Às vezes Jove usava
E a minha; vou escrever já para casa. de disfarces. Por que não imitá-lo?
WHiTMORE (a Suffolk) * Carrão: Mas há uma diferença: Jove nunca
Perdi um dos olhos, quando da abordagem foi morto como tu vais ser agora.
ao teu navio. Vou vingar-me, agora, SurroLK: Obscuro e vil campônio, o nobre sangue
privando-te da vida, o que a teus sócios do Rei Henrique, o sangue de um Lencastre
também acontecera, se me ouvissem não pode ser vertido por um reles
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WiirmoRE : Vamos, Suffolk? eu vou te pôr depressa vossa crueldade, porque minha morte
do outro lado da vida. jamais fique esquecida. Os grandes homens
SurroLk- É a ti que eu temo. são muitas vezes mortos por mendigos.
Gelidus timor occupat artus.
Um gladiador romano e um vil bandido
WHrrMorE : Razão para ter medo vais ter antes privaram da existência o doce Túlio.
de eu me afastar de ti. Como! Estás manso?
Em Júlio César, com sua mão bastarda,
Dobrarás, finalmente, esse pescoço?
Bruto cravou o punhal; Pompeu, o Grande,
Primeiro GenTIL-HomEM : foi morto por selvagens insulanos.
Meu gracioso senhor, falai-lhe em termos Que muito que uns piratas matem Suffolk?
mais brandos; implorai-lhe os bons favores.
(Saem Wbhitmore, e outros, com Sulfolk.)
SUFFOLK* À voz de Suffolk é dominadora, Carirão : É do nosso prazer que parta livre
inflexível e altiva; não se humilha
um dos que concordaram com o resgate.
para implorar, só sabe ditar ordens. Pode sair. Venham comigo os outros.
Jamais devemos nos dobrar a gente
(Saem todos, com exceção do Primeiro Gentil. Homem.)
como esta, para honrá-los com pedidos.
(Volta Wbitmore com o corpo de Suffolk. )
Poderei pôr no cepo esta cabeça,
WHrrMoRE : Eis a cabeça dele e o corpo exangue.
porém só dobrarei os joelhos diante Deixai-os, até vir para enterrá-los
de Deus que está no céu e do meu rei.
sua amante, a Rainha Margarida.
É preferível que ela dance numa
vara sangrenta a descobrir-me em frente (Sai)
Primeiro GenrIL-HomEM *
de um criado desprezível. A nobreza
Oh! Que sangrento e bárbaro espetáculo!
verdadeira não sabe o que é ter medo. Vou levar o cadáver para o rei.
Saberei suportar quantos suplícios
Ainda que ele o não vingue, os seus amigos
com vossa vilania me infligirdes. o farão, ou a Rainha Margarida,
CarirÃo : Arrastai-o daqui; tapai-lhe a boca. que em vida tanto lhe era dedicada.
SUFFOLK- Não correrei. Soldados, mostrai toda
(Sai com o corpo.)
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à vista das mulheres e dos filhos, de sapatos ferrados, que são todos
para exemplo. Segui-me tropas leais. honestos e econômicos e, certo,
(Saem os dois Stafjords, com as tropas.) se bandeariam para o nosso lado,
Cape Vós, amigos do povo, acompanhai-me! se tivessem coragem para tanto.
É pela liberdade. Se sois homens, Dick - Eles já estão em ordem e vêm para nos atacar.
mostrai-o agora. Não deixemos vivo CADE- Nós só ficamos em ordem, quando estamos
nenhum lorde, nenhum desses fidalgos. fora de ordem. Vamos! Para a frente!
Só poupai as pessoas que estiverem (Saem.)
sda EV + Cena IV
Londres. Um quarto no palácio. BuCckKINGHAM *
Entra o Rei Henrique lendo uma súplica. Como responde Vossa Graça à súplica
Acompanham-no o Duque de Buckingham e Lorde dos rebeldes?
Say; entra depois a Rainha Margarida, chorando sobre Rer Henrique : Mandando-lhes um bispo,
a cabeça de Suffolk. como parlamentar. Deus não permita
que a morrer venham pela espada tantas
RarnHA MARGARIDA almas simples. Eu próprio, porque a todos
Já ouvi dizer que as penas a alma abrandam, não exponha a uma guerra sanguinária,
degenerada e tímida deixando-a. pretendo entrevistar-me com Jack Cade,
Cessa, pois, de chorar e pensa apenas seu general. Mas, esperai; desejo
na vingança. Mas quem o conseguira reler mais uma vez o que escreveram.
diante deste espetáculo? A cabeça RarnHa MARGARIDA"
aperto no meu peito palpitante; Oh, que bárbaros! Tua majestosa
mas como poderei cingir-lhe o corpo? figura, que exercia poderio
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Ato IV : Cena V
O mesmo. À Torre. com jeito de morrer tão cedo.
Já tomaram a ponte,
Lorde Scales e outros aparecem sobre os muros. Embaixo, matando quantos se lhe opunham. O lorde prefeito
alguns cidadãos. pede que Vossa Honra lhe envie socorro da Torre,
para defender a cidade contra os rebeldes.
ScaLES - Comandareis as forças que me seja
ScaLES * Então, Jack Cade foi morto? possível dispensar. Mas os rebeldes
PrimeIRO CIDADÃO * Não, milorde, nem está me deixam preocupado, pois se empenham
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dentre vós transformar em conde ou duque? CADE (à parte) * Quem já viu pena mais fácil de
Não tem asilo ou casa onde se abrigue; soprar do que esta multidão? O nome de Henrique
viver não pode se não for saqueando quinto os leva a perpetrar centenas de ações más e
nossos bens e de quantos vos estimam. lhes dá ânimo para me deixarem desolado. Estou
Não vos envergonhais de que essas lutas percebendo que eles estão combinando em voz baixa
fratricidas ensejem aos temíveis para caírem sobre mim. Não há mais tempo a perder;
franceses, que vencestes tantas vezes, vou abrir caminho com a minha espada. (Alto)
ocasião de fazer a travessia
Apesar dos demônios e do inferno, passarei pelo
do mar e vos vencer? Em meio às lutas
meio de vós! Os céus e a honra sejam testemunhas
intestinas já os vejo tripudiando
de que não é por falta de coragem, mas pela traição
pelas ruas de Londres e chamando-vos
vil e ignominiosa de meus companheiros, que eu sou
a todos “Villageois!” É preferível
obrigado a rodar nos calcanhares.
que morram dez mil Cades miseráveis,
a virdes ser vassalos dos franceses. (Sai.)
BUCKINGHAM *
À França! À França! É tempo de ganhardes
tudo o que vos tomaram. Tende pena Como! Fugiu? Correi ao encalço dele.
da Inglaterra, que é a praia em que nascestes. Receberá de prêmio mil coroas
Henrique tem dinheiro; sois robustos quem levar para o rei sua cabeça.
e destemidos; Deus está conosco: (Saem alguns homens.)
não duvideis, portanto, da vitória. Soldados, vinde! Hei de arranjar um meio
Topos Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o de vos reconciliar com o soberano.
reie Clifford! (Saem.)
Ato IV - Cena IX
Castelo de Kenilworth. | a sentença, humildosos, ora aguardam
Trombetas. O Rei Henrique, a Rainha Margarida e de Vossa Majestade: ou vida, ou morte.
Somerset aparecem no terraço do castelo. Rer HenRIQUE:
Abra o céu suas portas sempiternas
Rer HenrIQUE* Já houve soberano que em seu trono para ouvir minhas graças e louvores.
terreno haja reinado com tão poucas Soldados, neste dia redimistes
alegrias como eu? Não tinha o berço as vidas e mostrastes toda a vossa
de todo abandonado, aos nove meses dedicação à pátria e a vosso príncipe.
de idade, quando fui coroado rei. Prossegui nesse mesmo estado de ânimo
Súdito algum mostrou tanto desejo que, por mais infeliz que seja Henrique,
de ser rei como eu tenho de ser súdito. podeis crer, não será jamais ingrato.
(Entram Buckingham e o velho Clifford.) Perdôo-vos e agradeço-vos. E agora,
BucxrncHAM * Saúde a Vossa Majestade! Trago despeço cada um para seus lares.
novas alvissareiras. Topos: Deus ampare o rei! Deus ampare o rei!
Rer Henrique: Dize, Buckingham, (Entra um mensageiro.)
foi preso o traidor Cade, ou tão-somente MensacEIRO * Permiti Vossa Graça que vos diga
fugiu para fazer-se ainda mais forte? que da Irlanda chegou o Duque de York
(Aparecem embaixo os partidários de Cade, com cordas ao com poderoso e forte contingente
pescoço.) de gallowglasses e de altivos quernes.
CrirroRrD: Fugiu, milorde; todos os seus homens Vem vindo para cá com grande séquito,
se renderam. De cordas ao pescoço, proclamando, por onde quer que passe,
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que suas armas visam tão-somente preciso para que ele os seus disperse.
retirar do teu lado Somerset, Somerser: Milorde,
a quem ele dá o nome de traidor. entrego-me à prisão de mui bom grado,
Rer HENRIQUE: como também a morte aceitaria,
Desta arte entre York e Cade eu me acho aflito, se de mim tanto a pátria reclamasse.
como barco que, após a tempestade, Rer HENRIQUE:
no início da bonança, por piratas Em caso algum usai de termos ásperos,
abordado se visse. Mal foi Cade que ele é altivo e detesta o falar duro.
repelido e seus homens dispersados, BuckINGHAM*
vem York em pé de guerra em sua ajuda. Podeis ficar trangúilo; hei de esforçar-me
Buckingham, vai depressa ao seu encontro para que tudo em vosso bem redunde.
e pergunta a razão dessa atitude. Rei HENRIQUE:
Mandarei para a Torre o Duque Edmundo, Querida esposa, entremos. Aprendamos
podes dizer-lhe. Somerset, pretendo a reinar; a Inglaterra vai ter causa
conservar-te em custódia o tempo apenas de maldizer meu infeliz reinado.
(Saem.)
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WILLIAM SHAKESPEARE
Ipen - Não se dirá jamais, enquanto viva casa, por se ter evolado neste ponto a alma invencível
for a Inglaterra, que eu, Alexandre Iden, de Cade.
escudeiro de Kent, aceitei luta Ipen * Foi Cade que eu matei, esse monstruoso
desigual com um faminto miserável. traidor? Espada, só por esse feito
Fixa nos meus teus olhos esgazeados; eu te consagrarei e, quando morto,
vê se me obrigas a abaixar a vista. te porei sobre a minha sepultura.
Compara os nossos membros; és mais fraco. Este sangue jamais será apagado
Tua mão, em confronto com meu punho,
de tua ponta. Hás de trazê-lo sempre
parece um dedo; cabos de vassoura como manto de arauto, que anuncie
são tuas pernas junto destes troncos;
a glória hoje alcançada por teu dono.
meu pé pode lutar contra o conjunto
Cape Iden, adeus. Podes orgulhar-te de tua vitória.
de tua força, e se eu no ar levantasse,
Dize de minha parte ao condado de Kent que ele
tão-somente, este braço, já se achara
perdeu seu melhor homem, e exorta o mundo inteiro
cavada para ti a sepultura.
a se tornar covarde, porque, eu, que nunca tive medo
Mas em vez de palavras, que respostas
de ninguém, fui vencido pela fome, não pela bravura.
pomposas sempre obtém no mesmo estilo,
diga esta espada o que é vedado à língua. (Morre.)
Ipen - Quanto me ultrajas, pode o céu dizê-lo.
CapE* Por minha valentia, eis o mais completo
Morre, malvado, infame, maldição
campeão que já ouvi em toda a minha vida. Aço, se
entortares a ponta ou não picares em pedacinhos de quem te deu à luz. Do mesmo modo
este palhaço ossudo antes de voltares a dormir na que eu mergulhei a espada no teu corpo,
bainha, suplico de joelhos a Jove que te transforme queria mergulhar tua alma no inferno.
em cravo de ferradura. Vou te levar de rasto pelos pés,
(Batem-se; Cade cai.) dando-te por condigna sepultura
Oh! Estou morto! É a fome que me mata, nada mais. um muladar; após, hei de a cabeça
Se dez mil demônios me agredissem depois de eu cortar-te, monstruosa, e, triunfalmente,
ter recuperado as dez refeições perdidas, eu resistiria apresentá-la ao rei, deixando o corpo
abertamente a todos. Resseca-te, jardim! Doravante como grato repasto dos abutres.
fica sendo o cemitério de todos os moradores desta (Sai, com os criados, arrastando o corpo.)
Ato V: Cenal
Kent. Campo de batalha entre Darford e Blackbeath. Sancta Majestas, quem não te comprara,
De um lado, o acampamento do rei; por mais caro que fosses? Quem não sabe .
do outro, entra York com seu exército de irlandeses, com reger, deve aprender a ser mandado.
bandeiras e tambores. Só foi feita para o ouro esta mão forte.
Não posso transformar minhas palavras
York* Assim chega da Irlanda o Duque de York, em ações sem brandir a espada ou o cetro.
com o fim de reclamar os seus direitos E um cetro hei de possuir, tão certo como
e arrancar a coroa da cabeça ser eu dotado de alma, para nele
do fraco Henrique. Sinos, repicai! mandar gravar o lírio dos franceses.
Queimai, fogueiras! Avivais as chamas (Entra Buckingham.)
a fim de receberdes o legítimo, Quem vem chegando aqui? Buckingham, para
o grande soberano da Inglaterra. me perturbar? Mandou-o o rei, decerto.
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te dou mil marcos e também licença Olá! Chamai meus filhos, para virem
para fazeres parte do meu séquito. servir-me de caução.
Ipen - Deus queira que Iden viva o suficiente (Sai um dos criados.)
para tal galardão, e viva apenas Sei que as espadas
para ser fiel a Vossa Majestade. eles hão de arrancar para livrar-me,
(Entram a Rainha Margarida e Somerset.) antes de permitirem que me prendam.
Rer HenRIQUE- RAINHA MARGARIDA
Vê, Buckingham, vem vindo Somerset Chamai Clifford aqui; venha depressa
com a rainha. Depressa, vai dizer-lhe dizer-nos se os bastardos deste duque
que se esconda do duque. estão em condições de ser fiadores
RarnHa MARGARIDA * Nem mil Yorkes do pai, do vil traidor.
o obrigariam a esconder o rosto; (Sai Buckingham.)
mas frente a frente, e altivo, há de encará-lo. York: Napolitana
York* Como assim! Somerset se encontra livre? de sangue maculado, desterrada
Nesse caso, York, os pensamentos solta de Nápoles, flagelo sanguinário
que há tanto se acham presos, e de acordo da Inglaterra! Meus filhos, todos eles
com o coração a língua deixa agora. de melhor nascimento do que tu,
Terei, então, de suportar a vista vão servir de caução do Duque de York.
de Somerset? Rei falso, por que causa Ai de quem se opuser a esse direito!
faltaste com a palavra, se sabias (Entram, por um lado, Eduardo e
que eu não suporto ultrajes dessa monta? Ricardo Plantageneta, com forças; por outro,
Dei-te o nome de rei? Rei nunca foste. também com forças, o velho Clifford e seu filho.)
Não pode governar nem ser o guia Ei-los que vêm chegando; agora é certo
das multidões quem tanto se revela fazerem bom trabalho.
destituído de brio e de coragem RarnHa MARGARIDA Eis também Clifford,
para se impor a um vil traidor como ele. para impedir que o pai eles afiancem.
Essa cabeça é indigna da coroa. CrirroRD (ajoelhando-se) -
Não foi feita essa mão para dar nome Saúde ao meu senhor e soberano!
a um cetro temeroso, mas apenas York: Clifford, eu te agradeço. Que notícias
para o bastão cingir de peregrinos. nos trazes? Não procures espantar-nos
Eu, sim, é que devera ter a fronte com esse olhar colérico. Nós somos
cingida por esse ouro, pois com o cenho teu soberano, Clifford. Ajoelha-te
fechado ou com um sorriso, como a lança novamente. Perdoamos-te esse equívoco.
de Aquiles, causo a morte ou ensejo a cura. CrirFORD"
Eis a mão que devera estar com o cetro, Eis o meu rei. Não houve equívoco, York.
para leis decretar e dirigi-las. Foi teu o engano, ao presumires lapso
Sai daí! Pelo céu, não continues de minha parte. Levem-no depressa
a mandar por mais tempo em quem foi criado para Bedlam. Terá ficado louco?
pelo céu para ser teu soberano. Rer HENRIQUE:
SOMERSET"* Sim, Clifford, um humor louco e ambicioso
Oh monstruoso traidor! York, cu te prendo o leva a, assim, se opor ao soberano.
por causa da traição que ora perpetras CLirFORD:
contra o rei e a coroa. Petulante É um traidor; para a Torre o mandai logo,
traidor, vamos, retrata-te de joelhos. e ordenai que a cabeça lhe decepem.
York: Queres que cu me ajoelhe? Então pergunta RainHa MARGARIDA*
a estes, primeiro, se eles gostariam Já está detido, mas não se submete;
que eu me dobrasse diante de quem fosse. diz que os filhos o afiançam sob palavra.
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Ato V: Cena II
Santo Albano. seres meu inimigo encarniçado.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Warwick. CrrrroRp - Eu poderia despender louvores
à tua valentia, se a não visse
WARWICK posta a serviço da traição, da infâmia.
Clifford de Cumberland, Warwick te chama! Yorx- Ela vai me amparar contra o teu gládio,
Se não evitas o urso, agora, ao ouvires por a ter sempre usado na defesa
a trombeta colérica, e os gemidos da justiça e do bem.
dos moribundos que o ar vazio ocupam, CLirrORD* Jogo a alma e o corpo.
Clifford, torno a dizer, vem para a luta! York: Parada formidanda. A postos, vamos!
Clifford de Cumberland, lorde orgulhoso (Batem-se. Clijord cai.)
do norte, Warwick está quase sem voz CLrrroRD : La fin couronne les oeuvres.
de tanto te chamar para o combate. (Morre.)
(Entra York.) York: À guerra te deu paz, achaste a calma.
Perdestes o cavalo, nobre lorde? Se lhe permites, Deus, paz a sua alma.
York: Matou-o a mão de Clifford destruidora; (Sai)
mas a minha lhe deu troco na altura, (Entra o moço Clifford.)
transformando em carniça para as gralhas O Moço Crrrrorp':
e os corvos o corcel que ele apreciava. Vergonha e confusão! Debandam todos!
(Entra o velho Clifford.) Nasce a desordem do pavor, ferindo
WARWICK * quem amparar devera. Ó Guerra, filha
Chegou a hora de um de nós, ou de ambos. do inferno, transformada em instrumento
York: Warwick, busca outra caça; deixa-me esta, da cólera dos céus, lança nos frios
que eu lhe vou dar o golpe derradeiro. peitos dos nossos homens os carvões
Warwick: Faze-o, então, nobremente; é por um ardentes da vingança! Não permitas
[trono que nossa gente fuja. Quem à guerra
que te bates. Afirmo-o, com a certeza se consagra, descuida de si próprio;
que tenho de vencer: é pesaroso, só por acaso o egoísta é valoroso,
Clifford, que eu te abandono sem combate. jamais por natureza.
(Saí) (Vê o corpo do pai.)
CLiFFORD* Acabe o mundo
Que estás vendo, York, em mim? Por que paraste? desprezível! As chamas prometidas
York: Tua viril figura poderia do último dia a terra e o céu confundam!
deixar-me por ti preso, se não fosse Abafe a universal trombeta os ruídos
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Henrique VI
Ato V - Cena II
Campo perto de Santo Albano. se esquece dos embates e de todas
Alarma. Retirada. Toque de clarins; as contusões do tempo e, como um bravo
depois, entram York, Ricardo, Warwick e soldados, com na flor da idade, sabe achar recursos
tambores e bandeiras. em qualquer ocasião? Não poderemos
considerar feliz esta jornada,
York: De Salisbury quem me dá notícias, nem dizer que ganhamos um só palmo,
o leão idoso que na sua cólera se ele, acaso, morreu.
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WILLIAM SHAKESPEARE
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HENRIQUE VI - PARTE III
Shakespeare
Introdução (David Bevington)
Henrique VI, Parte III, deve ser considerada não apenas como parte da primeira
série de quatro peças históricas de Shakespeare, mas também como uma peça por si só,
presumidamente vista pela primeira vez por uma plateia Elisabetana que, apesar de
cônscia de um contexto mais amplo, testemunhou essa ação dramática como um evento
independente. Porque 3 Henrique VI representa quase que a fase militar inteira da
guerra civil, ela é a mais recheada e agitada peça da série. Historicamente, ela cobre o
período das batalhas de Wakefield e a Segunda Santo Albano (1460-1461) até as
decisivas vitórias Yorkistas em Barnet e Tewkesbury (1471). Essas e outras batalhas são
de fato representadas no palco, como um tipo de comunicação simplificada que faz uso
eficiente de um limitado número de atores. O método convencional de representar os
conflitos armados consistia de gritos de guerra e incursões (isto é, ataques repentinos e
investidas de soldados armados em resposta a um sinal de ataque), empregando quantos
soldados a companhia teatral poderia reunir, com música marcial e várias entradas e
saídas em sucessões rápidas. As batalhas são, geralmente, precedidas por presunçosas e
floridas trocas retóricas, flytings [ritual de trocas de insultos poéticos], entre os
combatentes. O contexto militar foca nas confrontações heroicas entre líderes
individuais. A representação de batalhas frequentemente utiliza as capacidades físicas
do teatro Elisabetano, como aparições “nos muros” de alguma cidade (isto é, na galeria
superior), arquitetando operações, cercos e afins. Há abundância de mortes
espetaculares em 3 Henrique VI, frequentemente representadas como rituais
abomináveis. Rutland é arrastado de seu tutor pelo implacável Clifford, e Ricardo de
York é zombado com uma coroa de papel da Rainha Margaret; Clifford morre com uma
flecha em seu pescoço, e Warwick, o criador de reis, morre lamentando a vaidade de
toda realização terrena; o Rei Henrique morre na Torre, um prisioneiro indefeso nas
mãos de Ricardo de Gloucester. A peça é, talvez, confusa ao leitor, mas ela respira com
energia violenta no palco.
Personagens
Rer Henrique VI. Jorn Hume
sacerdotes.
HumeHrey, Duque de Gloster, seu tio. SouTHWELL
CarpEAL BEAauroRT, Bispo de Winchester, tio-
avô do rei. BoLINGBROKE, feiticeiro.
RicaRDO PLANTAGENETA, Duque de York. Um espírito, invocado por ele.
Tomás HoRNER, armeiro.
EDUARDO
PerER, seu aprendiz.
seus filhos. Escrivão DE CHATHAM,
RicarDO
PrEerEITO DE SANTO ÁLBANO.
SIMPCOX, impostor.
DuQUE DE SOMERSET. Dois assassinos.
DuQUE DE SUFFOLK. Jack CApE, rebelde.
Duque DE BUCKINGHAM.
LorpE CLIFFORD. Jorce Bevis.
O Jovem CLirrroro», seu filho. Joun HoLLanD.
CONDE DE SALISBURY. O carniceiro Drcx, adeptos de Cade.
ConDE DE WARWICK. o tecelão SMITH,
Lorpe ScaLES, governador da Torre. MICAEL, etc.
Srr HuMPHREY STAFFORD.
ALEXANDRE ÍDEN, nobre de Kent.
WILLIAM STAFFORD, seu irmão.
MARGARIDA, esposa do Rei Henrique.
LorpeE Say.
ELgonor, Duquesa de Gloster.
Um Capitão de navio, um patrão e seu ajudante.
MARGERY JOURDAIN, feiticeira.
VALTER WHITMORE. A mulher de Simpcox.
SIR JOHN STANLEY. Nobres, senhoras da nobreza e séquito; arauto,
Dois gentis-homens, prisioneiros juntamente com peticionários, um bedel, xerife e oficiais; cidadãos,
Suffolk. aprendizes, falcoeiros, guardas, soldados,
Vaux. mensageiros, etc.
Mareus Gore.
Cena
Em várias partes da Inglaterra
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Ato T- Cena I
Londres. Uma sala do palácio. me sugere e a alegria transbordante
Toque de trombetas; depois, de oboés. Entram, por um lado, me dita ao coração reconhecido.
o Rei Henrique, o Duque de Gloster, Salisbury, Warwick Rer HENRIQUE
eo Cardeal Beaufort; por outro, a Rainha Margarida, É bela de extasiar; mas seu discurso
conduzida por Suffolk; seguem-se York, Somersei, gracioso, as expressões apresentada
Buckingham e outros. com toda a majestade da prudência,
o espanto me sufocam, provocando-me
SUFFOLK* Ào partir para a França, fui por Vossa lágrimas de alegria. É indescritível
Majestade Imperial encarregado, a ventura que o peito ora me agita.
como procurador de Vossa Graça, Lordes, com voz alegre saudai todos
de esposar a Princesa Margarida o meu amor.
para Vossa Excelência. E assim, na muito Topos: Que tenha vida longa
famosa e antiga Tours, sendo presentes Margarida, a ventura da Inglaterra!
os Reis da França e da Sicília, os Duques RarnHa MARGARIDA * À todos agradeço.
de Orleans, Calábria, de Alençon, Bretanha, (Fanfarras.)
doze barões, vinte colendos bispos SurroLk: Milorde protetor, se for do agrado
e sete condes, pude, enfim, pôr termo de Vossa Graça, os itens aqui se acham
à minha comissão e a desposei. do contrato da paz em que acordaram
Agora, humildemente, dobro os joelhos nosso monarca e o Rei Carlos da França
e, à vista da Inglaterra e de seus pares, durante o prazo de dezoito meses.
deponho o meu direito sobre a rainha GrostER* “Imprimis, fica assentado entre o Rei da
França, Carlos, e William de la Pole, Marquês de
em vossas mãos, que a essência representam
do que eu era, tão-só, a grande sombra. Suffolk, embaixador do Rei Henrique da Inglaterra,
que o dito Henrique desposará Lady Margarida,
Nunca fez um marquês tão feliz mimo;
filha de Reignier, Rei de Nápoles, Sicília e Jerusalém,
nenhum rei jamais viu tão linda esposa.
ea coroará Rainha da Inglaterra antes do dia 30 do
Rer HeNRIQUE-
próximo mês de março. Item, que o ducado de Anjou
Levanta-te, Suffolk. Sede bem-vinda,
e o condado de Maine ficarão livres de qualquer
Rainha Margarida. É-me impossível
obrigação e serão entregues ao rei seu pai...”
dar maior prova de afeição do que este
(Deixa cair o papel.)
beijo afetuoso. Oh Deus, que me criaste! Rei HENRIQUE:
dai-me, também, um peito agradecido, Tio, que estais sentindo?
pois nesta face linda me concedes GLOSTER* Meu gracioso
à alma extasiada um mundo de venturas senhor, peço perdão, mas um mal súbito
terrenas, se vier amor recíproco me ataca o peito e a vista me perturba,
unificar os nossos pensamentos. de todo me impedindo ora a leitura.
RarnHa MARGARIDA * Rer HENRIQUE:
Grande Rei da Inglaterra e meu gracioso Tio de Winchester, por obséquio, lede.
senhor, das conferências que já tive CARDEAL“ “Item, ficou, ainda, decidido entre
convosco em pensamento, assim de dia ambos que os ducados de Anjou e Maine ficarão
como de noite, em sonhos e acordada, livres de qualquer obrigação e serão entregues ao rei
em meio aos cortesãos ou a sós comigo, seu pai, e que ela será enviada ao Rei da Inglaterra à
me vem a audácia, meu estremecido custa deste, sem levar dote algum.”
monarca, de saudar meu rei em termos Rer HenrIQUE-
desornados, tal como o entendimento Agradam-nos os termos. Ajoelhai-vos,
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Henrique VI
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Ato T- Cena II
O mesmo. Quarto em casa do Duque de Gloster. Por que cravas os olhos no chão sujo,
Entram Gloster e a duquesa. contemplando o que a vista te conturba?
Estarás à procura do diadema
Duquesa : Por que a cabeça deixa meu esposo do Rei Henrique, enaltecido pelas
pender, tal como espiga em demasia honrarias do mundo? Se for isso,
carregada por Ceres? Por que causa continua a fixá-lo e as faces roja,
franze os cenhos o grande Duque de Humphrey, até que ele a cabeça te circunde.
como se o molestasse o belo mundo? Estende o braço e alcança o ouro glorioso.
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Não consegues tocá-lo? O meu te ajuda; Para trás! Não me fales mais sobre isso.
e uma vez que o tenhamos entre os dedos, Duquesa * Como assim, meu senhor!
ao céu levantaremos a cabeça, [Aborrecestes-vos
sem jamais consentirmos que ao chão baixo com Eleonor, tão-só por vos ter ela
a vista sobranceira se degrade. contado o que sonhara? De outra feita
GLrostEr: Oh Nell! Se tens amor a teu marido, ficarei com meu sonho, para ver-me
do peito expele o cancro da ambição! livre de repreensões.
Possa algum pensamento, concebido GLOSTER: Não te amofines;
contra o meu soberano, o pio Henrique, já estou de novo alegre.
transformar-se em meu último suspiro (Entra um mensageiro.)
neste mundo mortal. Ora me deixa Mensageiro : Milorde, é do prazer de Sua Alteza
triste um sonho angustiante desta noite. que vades a cavalo a Santo Albano
Duquesa: à caça do falcão com Suas Graças.
Que sonhou meu senhor? Nada me ocultes, GLosrER * Pois não! Não quererás, Nell, ir conosco?
que eu te retribuirei com o doce conto Duquesa : Sim, meu caro senhor; não me demoro.
do que eu também sonhei de manhãzinha. (Saem Gloster e o mensageiro.)
GLosTER : Sonhei que este bastão, preclara insígnia Se não posso ir na frente, vou segui-los
do meu posto na corte, se partira. enquanto se mostrar Gloster de espírito
O causador do fato, não me lembra. humilde e tão mesquinho. Fosse eu homem,
Sim, pensando melhor, foi o cardeal. um duque, um príncipe de sangue, em pouco
O certo é que, na ponta dos dois troços, tempo removeria esses escolhos
a cabeça fixaram do primeiro enfadonhos, andando sobre troncos
Duque de Suffolk, William de la Pole decapitados. Mas embora seja
e do Duque Edmundo Somerset. mulher, não me permito por mais tempo
Só Deus sabe o que o sonho significa. continuar negligente no pomposo
Duquesa : Muito simples: indica, tão-somente, festival da Fortuna. Onde ficastes,
que se vier a quebrar alguém um galho homem? Sir John! Por que tanto receio?
da alameda de Gloster, a cabeça Estamos sós aqui; tu e eu, somente.
perderá sem demora pela audácia. (Entra Hume.)
Mas agora me escuta, meu querido Hume - Jesus ampare Vossa Majestade.
duque, meu Humphrey: pareceu-me em sonhos Duquesa - Majestade! Sou Graça, simplesmente.
que eu estava sentada em majestosa Hume:
cadeira, em plena catedral de Westminster, Mas com a graça de Deus e os bons conselhos
onde reis e rainhas vão sentar-se de Hume, vai Vossa Graça ver em pouco
para serem coroados; a meus pés que esse título cresce.
se achava Henrique e Lady Margarida, Duquesa Homem, que dizes?
que o diadema me punham na cabeça. Já falaste com a bruxa inteligente,
GLosrer: Não, Eleonor! Terei de censurar-te. a Margery Jourdain, e o feiticeiro
Mulher louca! Eleonor de maus princípios! Rogério Bolingbroke? Estão dispostos
Ésa segunda dama da Inglaterra, a empreender qualquer coisa em meu proveito?
mulher do protetor e dele amada. Hume : Prometeram mostrar a Vossa Alteza
Não desfrutas de todos os prazeres um espírito que eles chamariam
mundanos, muito mais do que te possa do insondável abismo subterrâneo
conceber e abarcar o pensamento? e que há de responder a tudo quanto
E hás de forjar traições para, com isso, Vossa Graça entender de perguntar-lhe.
derrubares a ti e a teu marido Duquesa: Está bem; pensarei sobre esse assunto.
do alto da honra para o pé da infâmia? Logo que retornarmos da caçada
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Ato T- Cena II
O mesmo. Um quarto no palácio. casa, terras, minha mulher e tudo o mais.
Entram três ou quatro peticionários, entre os quais o SurroLK* À mulher também? Grande violência,
escudeiro Peter. não há que ver. E a tua, em que consiste? Mas, que é
isso? “Contra o Duque de Suffolk, por haver cercado
PRIMEIRO PETICIONÁRIO * Ficai perto, mestres! o pasto público de Melford.” Que significa isso,
Não demora, milorde protetor vai passar por aqui; senhor velhaco?
será o momento de lhe entregarmos as nossas SEGUNDO PETICIONÁRIO - Ai de mim, senhor! Eu
petições, com todas as formalidades. sou apenas um pobre peticionário, que falo em nome
SEGUNDO PETICIONÁRIO - Sim. Deus o proteja! É do nosso distrito.
um bom homem. Jesus o abençoe. PeTER (apresentando a sua petição) - Contra meu
(Entram Suffolk e a Rainha Margarida.) mestre Tomás Horner, por ter dito
PrimEIRO PETICIONÁRIO - Aí vem vindo ele, me que o Duque de York era o legítimo herdeiro da coroa.
parece, juntamente com a rainha. RarnHa MARGARIDA : Que estás a dizer? O
Com toda a certeza vou ser eu o primeiro. Duque de York disse que ele era o herdeiro legítimo
SEGUNDO PeTICIONÁRIO * Volta, maluco! É o da coroa?
Duque de Suffolk; não é milorde protetor. Perer - Que meu mestre era o herdeiro? Não: de
SurroLk: Então, amigo! Desejas alguma coisa de forma alguma. Foi o meu mestre que disse que ele o
mim? era e que o rei não passava de um usurpador.
PrimEIRO PeTICIONÁRIO * Perdão, milorde; mas eu SurroLk: Não há ninguém aí?
vos tomei por milorde protetor. (Entram criados.)
RarnHa MARGARIDA (lendo os sobrescritos) “A Prende este sujeito e manda imediatamente um
Milorde Protetor”. Vossas petições são endereçadas oficial de justiça à casa de seu mestre. Na presença do
a Sua Senhoria? Deixai-me vê-las. Em que consiste rei iremos ouvir vosso assunto com mais vagar.
a tua? (Saem os criados com Peter.)
PrrmeIRrO PeTICIONÁRIO - À minha, com licença RAarnHA MARGARIDA:
de Vossa Graça, é contra João Goodman, um dos Quanto a vós, que almejais ser protegidos
homens de milorde cardeal, por me ter tomado a sob as asas do nosso protetor,
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Ato T- Cena IV
O mesmo. Jardim do Duque de Gloster.
BoLiNGBROKE : Estamos prontos, mestre Hume.
Entram Margery Yourdain, Hume, Southrwell e Bolingbroke.
Sua Senhoria está disposta a presenciar e a ouvir
nossos exorcismos?
Hume : Vinde, mestres. Digo-vos que a duquesa
Hume : Ora, por que não? Não vos preocupeis com
conta com a realização de vossas promessas.
a sua coragem.
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BoLINGBROKE Já ouvi dizer que ela é uma mulher Acabai! Prosseguir não me é possível.
de espírito invencível. Mas será conveniente, mestre BOLINGBROKE*
Hume, ficardes lá em cima com ela, enquanto nós Retorna à escuridão e ao fogo eterno
fazemos o trabalho. E agora peço que vos vades em do lago abrasador. Vai-te, maldito!
nome de Deus. (Trovões e relâmpagos. Desaparece o espírito.)
(Sai Hume.) (Entram apressadamente York e Buckingham, com
Mãe Jourdain, abaixai-vos e rojai pelo chão. John guardas e outras pessoas.)
Southwell, lede. E agora, mãos à obra! Yorx- Prendei esses traidores e toda essa
(Aparece a duquesa, no alto, seguida de Hume.) farandolagem. Bruxa, nós te tínhamos
Duquesa : Muito bem dito, mestres; sede todos de olho, é só o que eu te digo. O quê? A senhora
bem-vindos. Para isto, quanto mais cedo, melhor. também neste lugar? O rei e o reino
BoLrncBrokE : Boa dama, paciência; os feiticeiros vos saberão pagar a diligência.
a hora azada conhecem: noite escura, Milorde protetor, não tenho dúvida,
noite profunda, noite silenciosa, vos recompensará pelo serviço.
a hora em que Tróia foi entregue às chamas, Duquesa - Não prejudica ao rei o meu serviço
em que piam corujas agourentas nem a metade do que o teu costuma,
e uivam os cães de guarda, em que os espíritos duque insolente, que sem causa ameaças.
passeiam e os fantasmas saem dos túmulos: BuckiNcHAM É verdade, senhora; não há causa.
eis o tempo adequado para a empresa E disto, que dizeis?
que vamos iniciar. Mas assentai-vos, (Mostra-lhe o papel.)
senhora, sem receio, porque o espírito Levai-os logo;
que vamos invocar ficará preso prendei-os bem, deixando-os separados.
nos limites de um círculo sagrado. Vós, senhora, tereis de acompanhar-nos.
(Nessa altura, executam as cerimônias do estilo e traçam Stafford, fica com ela.
um círculo. Bolingbroke, ou Soutbrwell, lê: Conjuro-te! (Retiram-se do alto a duquesa e Hume, escoltados.)
etc. Trovões e relâmpagos. Aparece o espírito.) Vão ser examinadas todas essas
EspíriTO - Adsum. bugigangas. Levai-os daqui todos!
MARGERY JOURDAIN * Asmath! (Saem Soutbwell, Bolingbroke etc., escoltados.)
Por esse Deus eterno cujo nome York: Lorde Buckingham, vejo que a vigiastes
te fez tremer de medo, dá-me pronta às maravilhas. Ótima conjura
resposta a quanto aqui vou perguntar-te. para sobre ela levantarmos algo.
Sem isso, não sairás de onde te encontras. Deixai-me ler, milorde, essa escritura
EspíriTo - Pergunta, então. Quisera o fim ver disto. do diabo. Mas, que vejo?
BoLINGBROKE (Iê) - “Vive o duque que a Henrique há de depor,
Primeiro sobre o rei: que será dele? mas por fim há de achar morte violenta.”
EspíriTo - Vive o duque que a Henrique há de depor; Ora, isto é, justamente,
mas por fim há de achar morte violenta. Aio, te, Acacida, Romanos vincere posse.
(Enquanto o espírito fala, Soutkswell escreve a resposta.) Prossigamos:
BOLINGBROKE* “Que morte aguarda o Duque de Suffolk?
Que sorte aguarda o Duque de Suffolk? Morrerá na água, o fim nela encontrando.
EspíriTO * E o Duque Somerset, como termina?
Morrerá na água, o fim nela encontrando. Desconfie de castelos; mais a salvo
BOLINGBROKE* ele estará nos plainos arenosos
E o Duque Somerset, como termina? do que onde altos castelos se levantam.”
EsríriTO - Desconfie de castelos; mais a salvo Vinde milorde, vinde; estes oráculos
ele estará nos plainos arenosos foram duros de obter e são dificeis
do que onde altos castelos se levantam. de decifrar. O rei se acha a caminho
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de Santo Albano; com ele está o marido para que obtenha dele a recompensa.
desta adorável dama. Ora lhe enviemos York: Como o quiserdes, meu bom lorde. Olá!
a notícia, gastando o tempo estrito Quem está aí?
que exija um bom cavalo. Triste almoço (Entra um criado.)
vai ter milorde protetor, realmente. Vai convidar de minha parte os Lordes
BUCKINGHAM * Warwick e Salisbury para cearem
Suplico a Vossa Graça, Lorde de York, esta noite comigo. Não demores!
consentir que seja eu o mensageiro (Fanfarras. Saem.)
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Simpcox- Uma só vez, senhor, em toda a vida; Simpcox* Oh, mestre, se o conseguísseis!
quando era moço ainda. Grosrer Senhores de Santo Albano, por acaso
À MULHER: É certo; e caro, não tendes beleguins na cidade e essa coisa a que se
muito caro pagou a tal subida. dá o nome de chibata?
GLosTER: Para arriscares tanto, era preciso PrereITO - Perfeitamente, milorde, com licença de
que fosses mesmo doido por ameixas. Vossa Graça.
Simpcox* Minha mulher, senhor, queria ameixas. GLosTER Então ide buscar-mos, sem demora.
Fez-me subir, senhor, por isso, na árvore, PrereITO * Vai correndo, maroto, chamar um
com perigo de vida. beleguim.
GLOSTER* O rapazinho (Sai um dos moradores.)
é esperto; mas de pouco isto lhe serve. GrosrER : Ponham um banco neste lugar. (Trazem-
Mostra-me os olhos! Vamos! Fecha-os! Abre-os! lhe um banco.) E agora, meu velho, se não quiseres ser
Quero crer que não vês ainda direito. chibateado, pula por cima deste banco, e põe-te ao
Simpcox- Tão claro como o dia, mestre, graças fresco.
a Deus e a Santo Albano. Simpcox- Ah, meu senhor! Eu sou incapaz de ficar
GLOSTER* Que me dizes? de pé, sozinho. Ides torturar-me inutilmente.
De que cor é este manto? (Volta o morador, acompanhado de um beleguim
SiMPCOX* Cor de sangue; com um chicote.)
vermelho como sangue. GLosrer - Não há dúvida, senhor; nós vamos
GLOSTER* Muito bem; restituir-vos as pernas. Beleguim, aplica-lhe umas
ea cor do meu casaco? chibatadas, até que ele salte por cima deste banco.
SiMPCOX* É preto, mestre; BeLEGUIM *Pois não, milorde! Vamos, arranca o
preto como azeviche. gibão!
Rer Henrique: Como podes Simpcox: Ah, mestre! Como o poderei fazer? Sou
conhecer azeviche? incapaz de ficar de pé.
SUFFOLK* Penso que ele (Depois da primeira chibatada, Simpcox salta por cima do
Jamais teve ocasião de contemplá-lo. banco e sai correndo. O povo o acompanha, gritando:
GLosrer: Mas casacos e mantos, aos milhares.
Um milagre!)
Simpcox: Jamais, senhor, em toda a minha vida. Rer HENRIQUE:
GLosrer Dize, velhaco, então, qual é o meu nome. Oh Deus! Como permites estas coisas!
Simpcox* Como posso sabê-lo, mestre? Ignoro-o. RarnHa MARGARIDA
GLosrER: E o nome deste aqui? Fez-me rir o malandro, a correr tanto!
Simpcox-* Não sei, senhor. GLOSTER* Segui-o; levai presa esta rameira,
GLosTER* E o deste? A MuLHERr* Oh, senhor! Só o fizemos por miséria.
Simpcox- Também não sei, senhor. GrosreR * Que seja chibateado nas cidades,
GLosTER: E tu, como te chamas? até Berwick, que é de onde eles vieram.
Simpcox* Saunder Simpcox, com licença de Vossa (Saem o prefeito, o beleguim, a mulher, etc.)
Senhoria. CARDEAL: Fez um grande milagre o protetor.
GLosTER: Pois bem, Saunder, tu és o mais refinado SurroLK* Um coxo transformou num corredor.
velhaco de toda a cristandade. Se tivesses nascido GLosreR : Mais do que isso fizeste: num só dia;
cego, ser-te-ia tão fácil os nossos nomes, como cidades a gritar, em correria.
as cores de nossas vestimentas. A visão permite (Entra Buckingham.)
distinguir cores, mas nomeá-las de súbito, é Rer HENRIQUE:
impossível. Meus senhores, Santo Albano fez um Que novidades traz o primo Buckingham?
milagre neste caso; não julgais que seria prova de BUCKINGHAM *
grande habilidade restituir as pernas a este aleijado? Novas que o coração me deixam trêmulo,
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Henrique VI
Ato IH Cena II
Londres. Jardim do Duque de York. foi Guilherme de Hatfield; após, Lionel,
Entram York, Salisbury e Warwick. o Duque de Clarence; João de Gaunt
nasceu depois, o Duque de Lencastre;
York: Caros Lordes de Warwick e Salisbury, depois desse nasceu o Duque de York,
agora que concluímos nossa parca Edmundo de Langley; Tomás Woodstock,
refeição, permiti que, enquanto damos Dugue de Closter, foi o sexto; o sétimo
um pequeno passeio, para minha e último filho foi Guilherme de Windsor.
satisfação vos interrogue sobre O Príncipe de Gales morreu antes
meu título à coroa da Inglaterra, do próprio pai, deixando um filho apenas,
que a meu ver é seguro e irrefutável. Ricardo, que foi rei depois da morte
SALISBURY* Desejo ouvir vossas razões, milorde. de Eduardo, até que o Duque de Lencastre,
Warwick: Meu caro York, aqui estamos; se for justo Henrique Bolingbroke, filho e herdeiro
tudo quanto pretendes, é certeza de João de Gaunt, coroado sob o título
porem-se os Nevils todos sob teu mando. de Henrique quarto, viesse a tomar posse
York: Eis o caso, senhores: teve Eduardo do trono, após depor o rei legítimo,
terceiro sete filhos: o primeiro enviando a pobre rainha para a França,
foi o Príncipe Negro, de igual nome, de onde ela viera, e o rei para Pomfret,
o Príncipe de Gales; o segundo onde, como o sabeis, o inofensivo
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WiLLiaM SHAKESPEARE
um bastão com um saco de areia numa das pontas; um SALISBURY * Peter de quê?
tambor o precede. Por outro lado, entra Peter, com um
Perer : Peter Cachação.
tambor e um saco de areia, acompanhado deaprendizes, SALISBURY * Cachação! Vê então se aplicas uns
que bebem com ele.) bons cachações em teu mestre.
Primeiro ViziNHo - Vizinho Horner, bebo Horner: Meus mestres, eu vim aqui, como quem
convosco um copo de xerez. Nada de medo, vizin diz, por instigação de meu aprendiz, para provar que
ho;
haveis de sair-vos bem. ele não passa de um velhaco e que eu sou homem
SEGUNDO ViziNHO - E aqui, vizinho, um copinho de bem. No que respeita ao Duque de York, quero
de charneco. morrer se em algum tempo lhe desejei algum mal,
TercEIRO ViziNHO - E eu aqui uma caneca de boa ou ao rei, ou à rainha. E agora, Peter, cuida de ti, que
cerveja dupla, vizinho. Bebei e não tenhais medo do vou malhar-te de rijo.
vosso homem. York: Já está engrolando a língua este velhaco.
Horner - Por minha fé, deixai-o vir, que haveis de Tocai logo o sinal para o combate.
ver como eu me arranjarei. Uma figa para Peter. (Toque de trombetas. Batem-se; Peter derruba o mestre.)
PriMEIRO APRENDIZ * Peter, aqui! Bebo à tua Horner Pára, Peter! Pára! Confesso, confesso a
saúde. Nada de medo. minha traição.
SEGUNDO APRENDIZ Alegra-te, Peter, e não (Morre.)
tenhas medo de teu mestre. Defende o nome dos Yorx- Tirai-lhe a arma. Amigo, rende graças a
aprendizes. Deus e ao bom vinho que subiu à cabeça do teu
PerER* Agradeço a todos. Bebei e rezai por mim, é mestre,
O que vos peço, pois penso que já bebi o meu último Peter: Oh Deus! Venci meus inimigos diante
trago neste mundo. Escuta, Robin, no caso de eu de uma assembléia como esta? Oh Peter! fizeste
morrer, dou-te o meu avental; tu Will, ficarás com prevalecer o teu direito.
o Rer Henrique: Tirai esse traidor de minha vista;
meu martelo; Tom, fica desde já com todo o dinheiro
com a morte demonstrou que era culpado.
que me resta. Só peço que Deus me abençoe; não é
Deus, em sua justiça, revelou-nos
possível que eu resista ao meu mestre, que aprendeu
a verdade e a inocência deste pobre
muito bem a combater.
rapaz, que o criminoso desejara
SALISBURY* Vamos, parai com a bebida e iniciai
matar injustamente. Amigo, vamos;
logo os golpes. Como te chamas, maroto?
vais receber a tua recompensa.
PerER- Peter, ora essa!
(Trombetas; saem.)
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Mestre xerife, não deixeis que a pena todo favor; depressa! Cumpre as ordens
vá além da cominada pelo rei. que tens a meu respeito.
XerrrE: Não se zangue com isso Vossa Graça, STANLEY: É a Ilha de Man,
mas minha comissão termina aqui. minha senhora, onde sereis tratada
Agora é a Sir John Stanley que compete conforme o vosso estado.
acompanhá-la até à Ilha de Man. Duquesa: Neste caso,
GLOSTER Sir John, estais encarregado, agora, muito mal, que é completo o meu opróbrio.
de guardar minha esposa? Tratar-me-eis por maneira vergonhosa?
STANLEY * Com licença STANLEY * Como duquesa é que sereis tratada,
de Vossa Graça, deram-me a incumbência. como esposa do Duque Humphrey de Gloster.
GrosTER- Não useis de aspereza por pedir-vos Duquesa ' Xerife, passai bem, melhor do que eu,
que a trateis com bondade. É bem possível embora o condutor tivésseis sido
que o mundo torne a rir e eu tenha vida de minha humilhação.
para recompensar-vos, se com ela XERIFE: É meu ofício,
fordes bondoso. E assim, Sir John, adeus. minha senhora. Por favor, perdoai-me.
Duquesa Já vos ides, senhor, sem me dizerdes Duquesa : Sim, sim, adeus; estais desobrigado.
adeus? Vamos, Stanley; ficamos ou seguimos?
GLosrER- Dão testemunho minhas lágrimas STANLEY * Senhora, terminada a penitência,
de que não me é possível falar nada. tirai essa camisa. Vamos logo
(Sai-Gloster com os criados.) cuidar de preparar-vos para a viagem.
Duquesa Já partiste? Levaste o meu consolo. Duquesa : Se a camisa eu tirar, não me despojo,
Nada me resta; a morte é que me alegra, com isso, da vergonha. Não; nas vestes
a morte, cujo nome tantas vezes mais ricas ficaria ela aderente,
me pôs medo, por ter eu desejado e se mostrara a todos, fosse a minha
alcançar neste mundo a eternidade. vestimenta qual fosse. Vamos, leva-me;
Peço-te, Stanley, leva-me depressa, desejo ver minha prisão quanto antes.
pouco importa para onde, pois dispenso (Saem.)
Ato HI - Cenal
A abadia de Santo Edmundo, em Bury. quão insolente se tornou, em tudo
Toque de clarins. Entram para o parlamento o Rei diferente, orgulhoso, peremptório?
Henrique, a Rainha Margarida, o Cardeal Beaufort, Conhecemo-lo afável e bondoso;
Suffolk, York, Buckingham e outros. bastava que de longe o relanceássemos,
para se pôr de joelhos. Toda a corte
Rer HenrIQUE* lhe admirava, por isso, a submissão.
Estranho que Milorde Humphrey de Gloster Mas agora, se o encontro, embora seja
não tenha vindo. É contra o seu caráter pela manhã, no tempo em que é costume
ser o último a chegar, qualquer que tenha desejar-se bom dia, o cenho franze,
sido a razão de seu atraso agora. lança olhar carrancudo e passa teso,
RarnHA MARGARIDA * sem dobrar os joelhos, desdenhoso
Não podeis ver, ou não quereis, apenas, das honras que nos cabem por direito.
observar a mudança de seu todo, Ninguém liga ao rosnado de cãezinhos;
a majestade com que diz as coisas, mas até mesmo os homens corajosos,
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Ato HI Cena II
Bury. Um quarto no palácio. O rei e os pares todos estão perto.
Entram apressadamente alguns assassinos, Refizestes o leito? Tudo se acha
conforme as ordens que eu vos tinha dado?
PRIMEIRO ASSASSINO * PRIMEIRO ASSASSINO
Vai logo à casa de Milorde Suffolk Tudo, milorde.
e dize-lhe que o duque despachamos, Surrork: Então parti. Depressa!
conforme ele ordenara.
(Saem os assassinos.)
SEGUNDO ÁssassINO * Oh! quem nos dera (Trombetas. Entram o Rei Henrique, a Rainha
que tudo ainda estivesse por fazer! Margarida, o Cardeal Beaufort, Somerset, nobres
Já ouviste alguém falar com tal espírito
e outros.)
de contrição? Res Henrique Ide logo chamar o nosso tio.
(Entra Suffolk.) Queremos julgar hoje Sua Graça,
PrimEIRO Assassino - Milorde vem chegando. para ver se é culpado, como o afirmam.
SurroLK Liquidastes a coisa, camaradas? SurroLk: Vou chamá-lo já, já, meu nobre lorde.
PriMEIRO AssASSsINO “ Sim, milorde, está morto.
(Sai)
SurroLK: Belas palavras. Ora dirigi-vos Rer HENRIQUE
à minha casa; quero vos premiar Lordes, tomai vossos lugares. Peço-vos
por esse empreendimento venturoso. que não sejais com nosso tio Gloster
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rigorosos senão somente até onde o teu contacto. Sai da minha frente,
a opinião sã provar que ele é, realmente, mensageiro sinistro! Tens nos olhos
passível de castigo. a majestade cruel da tirania,
RarnHa MARGARIDA Deus nos livre que o mundo atemoriza. Afasta a vista
de que o mal a tal ponto prevaleça, de mim; esses teus olhos me lancinam.
fazendo condenar um gentil-homem Não te retires, não! Vem, basilisco:
inocente. Permita Deus que o duque deixa sem vida o espectador incauto!
se lave das suspeitas que lhe assacam. Alegria hei de achar na morte escura.
Rer Henrique: Agradeço-te, Meg; essas palavras É dupla morte para mim a vida,
me deixam satisfeito.
uma vez que está morto Humphrey de Gloster.
(Volta Suffolk.) RarnHa MARGARIDA *
E então? Que causa
Por que razão tratais Milorde Suffolk
te faz tremer? Por que te achas tão pálido?
dessa maneira? Muito embora o duque
Suffolk, e nosso tio? Que acontece?
lhe fosse desafeto, ele deplora,
SurroLk: Está morto, milorde; Gloster se acha
como cristão sincero, o seu trespasse.
morto no leito.
Quanto a mim, muito embora ele tivesse
RarnHAa MARGARIDA: Não! Deus não o permita!
sido meu adversário, se possível
CARDEAL: Juízo incógnito de Deus! Sonhei
fosse chamá-lo à vida só com lágrimas
esta noite que o duque estava mudo,
abundantes, gemidos do imo peito,
que não podia pronunciar palavra.
suspiros de fazer gelar o sangue,
(O rei desmaia.)
RarnHa MARGARIDA *
quisera ficar cega só de tanto
Que tem o meu senhor? Socorro, lordes!
chorar, adoecer com meus gemidos
O rei está morto! e ter a cor da quaresmeira pálida
SomerseT: Ocorpo levantai-lhe; com suspiros que o sangue me chupassem,
apertai-lhe o nariz. contanto que vivesse o nobre duque.
RarnHa MARGARIDA: Correi! Socorro! Quem sabe o que de mim dirá o mundo?
Socorro! Vamos! Abre, Henrique, os olhos! Todos sabiam que éramos imigos
SurroLk: Calma, senhora; ele já está voltando declarados. Talvez haja quem pense
asi. que eu fiz desparecer o nobre duque.
Rer Henrique - Oh Deus do céu! Meu nome vai ficar, assim, ferido
RArnHA MARGARIDA * Que está sentindo pela calúnia; assunto de conversa
meu gracioso senhor? nas cortes há de ser minha vergonha.
SUFFOLK* Coragem, ânimo, É quanto eu vou ganhar com a morte dele.
meu soberano, meu gracioso Henrique! Quem pode haver mais infeliz? Saber-me
Rer HenRIQUE- rainha e ter a infâmia por coroa?
Como! O Lorde de Suffolk me incita Rer HenrIQUE-
a não desanimar? Não soltou ele, Choro o destino do infeliz amigo.
neste momento, as notas do seu canto RarNHA MARGARIDA *
de corvo, cuja lúgubre toada Chora, então, minha sorte, que eu sou muito
me privou dos sentidos, e ora pensa mais infeliz do que ele. Como! Afastas-te
que com o chilreio da carriça, vindo de mim? O rosto escondes? Porventura
de um coração vazio e concitando-me sou alguma leprosa? Anda, contempla-me,
a não desanimar, será possível Como! Ficaste surdo como as víboras?
fazer com que me esqueça do outro canto? Então cria também veneno, para
Não escondas o fel nessas palavras matares a rainha que esqueceste.
açucaradas. Não me toques! Proíbo-te! Teu consolo se encontra circunscrito
Como picada de serpente, assusta-me no túmulo de Gloster? É que a Dama
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Por isso eles proclamam, muito embora de cumprir a palavra que empenhara;
saibam que estão proibidos de fazê-lo, mas o meu juramento é irrevogável.
que até contra o querer de Vossa Alteza (A Suffolk.) Se após três dias fores visto dentro
buscarão amparar-vos contra as falsas de qualquer dependência do meu reino,
serpentes como Suffolk, esse hipócrita, pouco há de ser o mundo todo para
cujo dardo fatal e envenenado, te resgatar a vida. Vem comigo,
dizem todos, privou traiçoeiramente bondoso Warwick, vem, que necessito
da vida vosso tio estremecido falar-te sobre assuntos importantes.
que vale vinte vezes mais do que ele. (Saem o Rei Henrique, Warwick, nobres, etc.)
Povo (dentro) - Milorde Salisbury, vinde logo RarnHa MARGARIDA
trazer-nos a resposta do monarca! Que a desgraça e a tristeza te acompanhem.
SurFoLK* Compreende-se que o povo, gente rude, Sejam teus companheiros a apertura
tivesse enviado esse recado ao rei. do coração e o amargo desconsolo.
Mas vós, milorde, alegre recebestes Com ambos forme o diabo um belo terno
a incumbência tão-só para poderdes e que tripla vingança vos abata.
estadear vossos dotes de orador. SurroLK* Graciosa soberana, deixa dessas
No entanto, as honrarias conquistadas maldições e consente que, tristonho,
por Salisbury se resumem nisto: Suffolk as despedidas te apresente.
em ter sido ele enviado por um bando RarnHA MARGARIDA *
de caldeireiros com recado ao rei. Fora, mulher covarde, desgraçado
Povo (dentro) - A resposta! Se não, faremos força! de coração sem fibra! Não tens força
Rer HenriQuE* À todos agradece, Salisbury, para amaldiçoar teus inimigos?
de minha parte o zelo carinhoso SUFFOLK* À peste atinja a todos! De que vale
de que ora deram provas, e acrescenta lançar-lhes maldições? Se estas matassem,
que mesmo que eles não tivessem vindo como o fatal suspiro da mandrágora,
pedir-me essa medida, eu já me achava eu inventara os termos mais violentos,
resolvido a fazer o que me pedem. penetrantes, malditos e horrorosos
É certo, a todo instante o pensamento de se ouvir, e deixara que dos dentes
me fazia prever que, para o Estado, cerrados me saíssem, com tais mostras
só desgraças de Suffolk adviriam. de ódio implacável, como o faz a Inveja
Por isso eu juro pela majestade macilenta em seu antro repugnante.
daquele de que sou representante Minha língua ficara embaraçada
muito indigno, que mais do que três dias, no próprio turbilhão do que eu dissesse;
sob pena de morrer, não ficará dos olhos me sairiam tantas chispas
Suffolk em nossas terras, a empestar-nos como da pederneira; meus cabelos
o ambiente com seu hálito pestífero. ficariam de pé como os de um louco,
(Sai Salisbury.) parecendo que todos os meus membros
RArNHA MARGARIDA * falassem maldições, só maldições...
Henrique, deixa que a favor eu fale É isso: o coração sinto partir-se-me,
do gracioso Suffolk. se os não amaldiçoar. Seja veneno
Rer Henrique: Oh desgraciosa tudo quanto beberem! Seja bile...
rainha, por chamá-lo de gracioso não, muito mais amargo, o que mais grato
Suffolk! Nem mais uma palavra, digo. lhes souber ao paladar; não gozem sombra
Falando a seu favor, tu só consegues mais agradável do que a do cipreste;
aumentar minha cólera. Ainda mesmo olhar de basiliscos matadores
que eu só tivesse prometido, tinha lancem por toda parte; o mais macio
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Ato HI - Cena II
Londres. Quarto de dormir do Cardeal Beaufort. Entram como varas com visgo preparadas
o Rei Henrique, Salisbury, Warwick e outros. O cardeal se para minha alma alada embaraçarem.
acha no leito, cercado de criados. Quero água! Ide dizer ao boticário
que me traga o veneno encomendado.
Rer HENRIQUE: Rer Henrique: Oh tu, Motor eterno das esferas,
Beaufort, fala ao teu rei. Que estás sentindo? lança os olhos benignos a este mísero!
CARDEAL: Se és a Morte, eu te dou todo o tesouro Oh! Expulsa o demônio intrometido
da Inglaterra, bastante para a compra que na alma se assentou deste coitado,
de uma outra ilha, contanto que me largues e tira-lhe do peito o desespero!
e me libertes logo destas dores. Warwick: Que esgares ele faz com a dor da morte!
Rer Henrique: Oh! Que sinal de vida mal vivida, SALISBURY *
quando a morte é encarada desse jeito! Não o perturbeis; deixai que em paz se fine.
Warwick: Beaufort, é o soberano que te fala. Rer HeNRIQUE-
CARDEAL: Se Deus assim quiser, paz à sua alma.
Chamai-me ao tribunal quando quiserdes. Lorde Cardeal, se acaso estás pensando
Não faleceu no leito? Onde devia na salvação eterna, a mão levanta,
morrer, então? Tenho eu poder, acaso, em sinal de esperança. Nada! Morre
para fazer alguém viver à força? sem fazer gesto algum. Oh Deus, perdoai-lhe!
Não me tortures mais! Confesso tudo. Warwick: Tão ruim morte inculca vida infame.
Tornou a viver? Mostrai-me onde ele se acha. Rer HenRIQUE:
Darei mil libras, só para enxergá-lo. Não julgueis; somos todos pecadores.
Já não tem olhos; a poeira os cega. Fechai-lhe os olhos; deixai bem cerradas
Penteai-lhe a cabeleira. Vede! Vede! as cortinas e vamos meditar.
como estão arrepiados os cabelos (Saem.)
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Ato IV : Cenal
Kent. Praia perto de Dover. neste negócio.
Canhoneio no mar. Depois, saltam de um bote um capitão Carrrão: Não te mostres duro.
de navio, o patrão, seu ajudante, Valter Whitmore e Deixa-o viver, aceita-lhe o resgate.
outros; com eles, Suffolk, disfarçado, e outros gentis- SurroLk* Contempla esta medalha de São Jorge:
homens, prisioneiros. sou fidalgo. Estipula o meu resgate
na quantia que for, que eu não discuto.
Carirão - Já baixou para o mar o dia esplêndido, WHITMORE *
falante e metediço. Agora o lúgrubre Fidalgo eu também sou; chamo-me Valter
uivar dos lobos despertou os sendeiros Whitmore. Mas, que vejo? Por que tremes?
que a Noite puxam, trágica e tristonha. A morte te apavora desse jeito?
Com suas asas morosas e caídas SurroLK- É teu nome que assim me mete medo,
eles roçam os túmulos dos homens; pois soa como a morte. De uma feita
das fauces tenebrosas vão soltando um homem de saber leu meu horóscopo
por toda parte escuridão pestífera. e disse que eu viria a morrer na água
Fazei, pois, avançar os prisioneiros, em circunstâncias tais como as que o nome
porque enquanto estiver o nosso barco que ora pronunciaste me recordam.
nas dunas ancorado, todos eles. Mas não seja isso causa de ficares
pagarão o resgate aqui na areia, inexorável, que, a rigor, teu nome
ou tingirão com sangue a praia pálida. deve ser pronunciado como Gualter.
Patrão, fica com este prisioneiro; WHITMORE *
e tu aí, como ajudante, tira Gualter ou Valter, pouco me preocupa.
bom proveito deste outro. Este aqui perto, O certo é que a desonra nunca o nome
(Apontando para Suffolk.) nos conspurcou, sem que com nossa espada
Valter Whitmore, te tocou por sorte. limpássemos 3 mancha. Se eu tivesse,
Primeiro GenTIL-HomEM * portanto, de vingar-me como um baixo
Patrão, dizei-me o preço do resgate. mercador, merecera ver quebrada
ParRÃo: Apenas mil coroas, ou a cabeça. esta espada, arrancados e manchados
AJUDANTE: É também o que eu peço; do contrário, os braços, e meu nome proclamado
com o que me coube faço a mesma coisa. no mundo inteiro como o de um covarde.
CarrrÃo - Como! Achais muito duas mil coroas (Põe a mão em Suffolk.)
para vos comportardes como nobres? SUFFOLK*
Cortai a esses malandros o pescoço! Pára, Whitmore! Teu prisioneiro é o Duque
Sim, morrereis. A vida dos consócios de Suffolk; sou príncipe e me sao
que perdemos não fica compensada William de la Pole.
por uma soma assim tão irrisória. WHITMORE -
Primeiro GenTIL-HomEM * O Duque de Suffolk envolto em trapos?
Vou pagá-la, senhor; poupai-me a vida. SuFFOLK* Sim, mas do duque os trapos são apenas
SEGUNDO GENTIL-HomEM * parte acessória. Às vezes Jove usava
E a minha; vou escrever já para casa. de disfarces. Por que não imitá-lo?
WHiTMORE (a Suffolk) * Carrão: Mas há uma diferença: Jove nunca
Perdi um dos olhos, quando da abordagem foi morto como tu vais ser agora.
ao teu navio. Vou vingar-me, agora, SurroLK: Obscuro e vil campônio, o nobre sangue
privando-te da vida, o que a teus sócios do Rei Henrique, o sangue de um Lencastre
também acontecera, se me ouvissem não pode ser vertido por um reles
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WiirmoRE : Vamos, Suffolk? eu vou te pôr depressa vossa crueldade, porque minha morte
do outro lado da vida. jamais fique esquecida. Os grandes homens
SurroLk- É a ti que eu temo. são muitas vezes mortos por mendigos.
Gelidus timor occupat artus.
Um gladiador romano e um vil bandido
WHrrMorE : Razão para ter medo vais ter antes privaram da existência o doce Túlio.
de eu me afastar de ti. Como! Estás manso?
Em Júlio César, com sua mão bastarda,
Dobrarás, finalmente, esse pescoço?
Bruto cravou o punhal; Pompeu, o Grande,
Primeiro GenTIL-HomEM : foi morto por selvagens insulanos.
Meu gracioso senhor, falai-lhe em termos Que muito que uns piratas matem Suffolk?
mais brandos; implorai-lhe os bons favores.
(Saem Wbhitmore, e outros, com Sulfolk.)
SUFFOLK* À voz de Suffolk é dominadora, Carirão : É do nosso prazer que parta livre
inflexível e altiva; não se humilha
um dos que concordaram com o resgate.
para implorar, só sabe ditar ordens. Pode sair. Venham comigo os outros.
Jamais devemos nos dobrar a gente
(Saem todos, com exceção do Primeiro Gentil. Homem.)
como esta, para honrá-los com pedidos.
(Volta Wbitmore com o corpo de Suffolk. )
Poderei pôr no cepo esta cabeça,
WHrrMoRE : Eis a cabeça dele e o corpo exangue.
porém só dobrarei os joelhos diante Deixai-os, até vir para enterrá-los
de Deus que está no céu e do meu rei.
sua amante, a Rainha Margarida.
É preferível que ela dance numa
vara sangrenta a descobrir-me em frente (Sai)
Primeiro GenrIL-HomEM *
de um criado desprezível. A nobreza
Oh! Que sangrento e bárbaro espetáculo!
verdadeira não sabe o que é ter medo. Vou levar o cadáver para o rei.
Saberei suportar quantos suplícios
Ainda que ele o não vingue, os seus amigos
com vossa vilania me infligirdes. o farão, ou a Rainha Margarida,
CarirÃo : Arrastai-o daqui; tapai-lhe a boca. que em vida tanto lhe era dedicada.
SUFFOLK- Não correrei. Soldados, mostrai toda
(Sai com o corpo.)
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à vista das mulheres e dos filhos, de sapatos ferrados, que são todos
para exemplo. Segui-me tropas leais. honestos e econômicos e, certo,
(Saem os dois Stafjords, com as tropas.) se bandeariam para o nosso lado,
Cape Vós, amigos do povo, acompanhai-me! se tivessem coragem para tanto.
É pela liberdade. Se sois homens, Dick - Eles já estão em ordem e vêm para nos atacar.
mostrai-o agora. Não deixemos vivo CADE- Nós só ficamos em ordem, quando estamos
nenhum lorde, nenhum desses fidalgos. fora de ordem. Vamos! Para a frente!
Só poupai as pessoas que estiverem (Saem.)
sda EV + Cena IV
Londres. Um quarto no palácio. BuCckKINGHAM *
Entra o Rei Henrique lendo uma súplica. Como responde Vossa Graça à súplica
Acompanham-no o Duque de Buckingham e Lorde dos rebeldes?
Say; entra depois a Rainha Margarida, chorando sobre Rer Henrique : Mandando-lhes um bispo,
a cabeça de Suffolk. como parlamentar. Deus não permita
que a morrer venham pela espada tantas
RarnHA MARGARIDA almas simples. Eu próprio, porque a todos
Já ouvi dizer que as penas a alma abrandam, não exponha a uma guerra sanguinária,
degenerada e tímida deixando-a. pretendo entrevistar-me com Jack Cade,
Cessa, pois, de chorar e pensa apenas seu general. Mas, esperai; desejo
na vingança. Mas quem o conseguira reler mais uma vez o que escreveram.
diante deste espetáculo? A cabeça RarnHa MARGARIDA"
aperto no meu peito palpitante; Oh, que bárbaros! Tua majestosa
mas como poderei cingir-lhe o corpo? figura, que exercia poderio
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Ato IV : Cena V
O mesmo. À Torre. com jeito de morrer tão cedo.
Já tomaram a ponte,
Lorde Scales e outros aparecem sobre os muros. Embaixo, matando quantos se lhe opunham. O lorde prefeito
alguns cidadãos. pede que Vossa Honra lhe envie socorro da Torre,
para defender a cidade contra os rebeldes.
ScaLES - Comandareis as forças que me seja
ScaLES * Então, Jack Cade foi morto? possível dispensar. Mas os rebeldes
PrimeIRO CIDADÃO * Não, milorde, nem está me deixam preocupado, pois se empenham
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dentre vós transformar em conde ou duque? CADE (à parte) * Quem já viu pena mais fácil de
Não tem asilo ou casa onde se abrigue; soprar do que esta multidão? O nome de Henrique
viver não pode se não for saqueando quinto os leva a perpetrar centenas de ações más e
nossos bens e de quantos vos estimam. lhes dá ânimo para me deixarem desolado. Estou
Não vos envergonhais de que essas lutas percebendo que eles estão combinando em voz baixa
fratricidas ensejem aos temíveis para caírem sobre mim. Não há mais tempo a perder;
franceses, que vencestes tantas vezes, vou abrir caminho com a minha espada. (Alto)
ocasião de fazer a travessia
Apesar dos demônios e do inferno, passarei pelo
do mar e vos vencer? Em meio às lutas
meio de vós! Os céus e a honra sejam testemunhas
intestinas já os vejo tripudiando
de que não é por falta de coragem, mas pela traição
pelas ruas de Londres e chamando-vos
vil e ignominiosa de meus companheiros, que eu sou
a todos “Villageois!” É preferível
obrigado a rodar nos calcanhares.
que morram dez mil Cades miseráveis,
a virdes ser vassalos dos franceses. (Sai.)
BUCKINGHAM *
À França! À França! É tempo de ganhardes
tudo o que vos tomaram. Tende pena Como! Fugiu? Correi ao encalço dele.
da Inglaterra, que é a praia em que nascestes. Receberá de prêmio mil coroas
Henrique tem dinheiro; sois robustos quem levar para o rei sua cabeça.
e destemidos; Deus está conosco: (Saem alguns homens.)
não duvideis, portanto, da vitória. Soldados, vinde! Hei de arranjar um meio
Topos Viva Clifford! Viva Clifford! Seguiremos o de vos reconciliar com o soberano.
reie Clifford! (Saem.)
Ato IV - Cena IX
Castelo de Kenilworth. | a sentença, humildosos, ora aguardam
Trombetas. O Rei Henrique, a Rainha Margarida e de Vossa Majestade: ou vida, ou morte.
Somerset aparecem no terraço do castelo. Rer HenRIQUE:
Abra o céu suas portas sempiternas
Rer HenrIQUE* Já houve soberano que em seu trono para ouvir minhas graças e louvores.
terreno haja reinado com tão poucas Soldados, neste dia redimistes
alegrias como eu? Não tinha o berço as vidas e mostrastes toda a vossa
de todo abandonado, aos nove meses dedicação à pátria e a vosso príncipe.
de idade, quando fui coroado rei. Prossegui nesse mesmo estado de ânimo
Súdito algum mostrou tanto desejo que, por mais infeliz que seja Henrique,
de ser rei como eu tenho de ser súdito. podeis crer, não será jamais ingrato.
(Entram Buckingham e o velho Clifford.) Perdôo-vos e agradeço-vos. E agora,
BucxrncHAM * Saúde a Vossa Majestade! Trago despeço cada um para seus lares.
novas alvissareiras. Topos: Deus ampare o rei! Deus ampare o rei!
Rer Henrique: Dize, Buckingham, (Entra um mensageiro.)
foi preso o traidor Cade, ou tão-somente MensacEIRO * Permiti Vossa Graça que vos diga
fugiu para fazer-se ainda mais forte? que da Irlanda chegou o Duque de York
(Aparecem embaixo os partidários de Cade, com cordas ao com poderoso e forte contingente
pescoço.) de gallowglasses e de altivos quernes.
CrirroRrD: Fugiu, milorde; todos os seus homens Vem vindo para cá com grande séquito,
se renderam. De cordas ao pescoço, proclamando, por onde quer que passe,
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que suas armas visam tão-somente preciso para que ele os seus disperse.
retirar do teu lado Somerset, Somerser: Milorde,
a quem ele dá o nome de traidor. entrego-me à prisão de mui bom grado,
Rer HENRIQUE: como também a morte aceitaria,
Desta arte entre York e Cade eu me acho aflito, se de mim tanto a pátria reclamasse.
como barco que, após a tempestade, Rer HENRIQUE:
no início da bonança, por piratas Em caso algum usai de termos ásperos,
abordado se visse. Mal foi Cade que ele é altivo e detesta o falar duro.
repelido e seus homens dispersados, BuckINGHAM*
vem York em pé de guerra em sua ajuda. Podeis ficar trangúilo; hei de esforçar-me
Buckingham, vai depressa ao seu encontro para que tudo em vosso bem redunde.
e pergunta a razão dessa atitude. Rei HENRIQUE:
Mandarei para a Torre o Duque Edmundo, Querida esposa, entremos. Aprendamos
podes dizer-lhe. Somerset, pretendo a reinar; a Inglaterra vai ter causa
conservar-te em custódia o tempo apenas de maldizer meu infeliz reinado.
(Saem.)
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WILLIAM SHAKESPEARE
Ipen - Não se dirá jamais, enquanto viva casa, por se ter evolado neste ponto a alma invencível
for a Inglaterra, que eu, Alexandre Iden, de Cade.
escudeiro de Kent, aceitei luta Ipen * Foi Cade que eu matei, esse monstruoso
desigual com um faminto miserável. traidor? Espada, só por esse feito
Fixa nos meus teus olhos esgazeados; eu te consagrarei e, quando morto,
vê se me obrigas a abaixar a vista. te porei sobre a minha sepultura.
Compara os nossos membros; és mais fraco. Este sangue jamais será apagado
Tua mão, em confronto com meu punho,
de tua ponta. Hás de trazê-lo sempre
parece um dedo; cabos de vassoura como manto de arauto, que anuncie
são tuas pernas junto destes troncos;
a glória hoje alcançada por teu dono.
meu pé pode lutar contra o conjunto
Cape Iden, adeus. Podes orgulhar-te de tua vitória.
de tua força, e se eu no ar levantasse,
Dize de minha parte ao condado de Kent que ele
tão-somente, este braço, já se achara
perdeu seu melhor homem, e exorta o mundo inteiro
cavada para ti a sepultura.
a se tornar covarde, porque, eu, que nunca tive medo
Mas em vez de palavras, que respostas
de ninguém, fui vencido pela fome, não pela bravura.
pomposas sempre obtém no mesmo estilo,
diga esta espada o que é vedado à língua. (Morre.)
Ipen - Quanto me ultrajas, pode o céu dizê-lo.
CapE* Por minha valentia, eis o mais completo
Morre, malvado, infame, maldição
campeão que já ouvi em toda a minha vida. Aço, se
entortares a ponta ou não picares em pedacinhos de quem te deu à luz. Do mesmo modo
este palhaço ossudo antes de voltares a dormir na que eu mergulhei a espada no teu corpo,
bainha, suplico de joelhos a Jove que te transforme queria mergulhar tua alma no inferno.
em cravo de ferradura. Vou te levar de rasto pelos pés,
(Batem-se; Cade cai.) dando-te por condigna sepultura
Oh! Estou morto! É a fome que me mata, nada mais. um muladar; após, hei de a cabeça
Se dez mil demônios me agredissem depois de eu cortar-te, monstruosa, e, triunfalmente,
ter recuperado as dez refeições perdidas, eu resistiria apresentá-la ao rei, deixando o corpo
abertamente a todos. Resseca-te, jardim! Doravante como grato repasto dos abutres.
fica sendo o cemitério de todos os moradores desta (Sai, com os criados, arrastando o corpo.)
Ato V: Cenal
Kent. Campo de batalha entre Darford e Blackbeath. Sancta Majestas, quem não te comprara,
De um lado, o acampamento do rei; por mais caro que fosses? Quem não sabe .
do outro, entra York com seu exército de irlandeses, com reger, deve aprender a ser mandado.
bandeiras e tambores. Só foi feita para o ouro esta mão forte.
Não posso transformar minhas palavras
York* Assim chega da Irlanda o Duque de York, em ações sem brandir a espada ou o cetro.
com o fim de reclamar os seus direitos E um cetro hei de possuir, tão certo como
e arrancar a coroa da cabeça ser eu dotado de alma, para nele
do fraco Henrique. Sinos, repicai! mandar gravar o lírio dos franceses.
Queimai, fogueiras! Avivais as chamas (Entra Buckingham.)
a fim de receberdes o legítimo, Quem vem chegando aqui? Buckingham, para
o grande soberano da Inglaterra. me perturbar? Mandou-o o rei, decerto.
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HenriquE VI
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WiLLIAM SHAKESPEARE
te dou mil marcos e também licença Olá! Chamai meus filhos, para virem
para fazeres parte do meu séquito. servir-me de caução.
Ipen - Deus queira que Iden viva o suficiente (Sai um dos criados.)
para tal galardão, e viva apenas Sei que as espadas
para ser fiel a Vossa Majestade. eles hão de arrancar para livrar-me,
(Entram a Rainha Margarida e Somerset.) antes de permitirem que me prendam.
Rer HenRIQUE- RAINHA MARGARIDA
Vê, Buckingham, vem vindo Somerset Chamai Clifford aqui; venha depressa
com a rainha. Depressa, vai dizer-lhe dizer-nos se os bastardos deste duque
que se esconda do duque. estão em condições de ser fiadores
RarnHa MARGARIDA * Nem mil Yorkes do pai, do vil traidor.
o obrigariam a esconder o rosto; (Sai Buckingham.)
mas frente a frente, e altivo, há de encará-lo. York: Napolitana
York* Como assim! Somerset se encontra livre? de sangue maculado, desterrada
Nesse caso, York, os pensamentos solta de Nápoles, flagelo sanguinário
que há tanto se acham presos, e de acordo da Inglaterra! Meus filhos, todos eles
com o coração a língua deixa agora. de melhor nascimento do que tu,
Terei, então, de suportar a vista vão servir de caução do Duque de York.
de Somerset? Rei falso, por que causa Ai de quem se opuser a esse direito!
faltaste com a palavra, se sabias (Entram, por um lado, Eduardo e
que eu não suporto ultrajes dessa monta? Ricardo Plantageneta, com forças; por outro,
Dei-te o nome de rei? Rei nunca foste. também com forças, o velho Clifford e seu filho.)
Não pode governar nem ser o guia Ei-los que vêm chegando; agora é certo
das multidões quem tanto se revela fazerem bom trabalho.
destituído de brio e de coragem RarnHa MARGARIDA Eis também Clifford,
para se impor a um vil traidor como ele. para impedir que o pai eles afiancem.
Essa cabeça é indigna da coroa. CrirroRD (ajoelhando-se) -
Não foi feita essa mão para dar nome Saúde ao meu senhor e soberano!
a um cetro temeroso, mas apenas York: Clifford, eu te agradeço. Que notícias
para o bastão cingir de peregrinos. nos trazes? Não procures espantar-nos
Eu, sim, é que devera ter a fronte com esse olhar colérico. Nós somos
cingida por esse ouro, pois com o cenho teu soberano, Clifford. Ajoelha-te
fechado ou com um sorriso, como a lança novamente. Perdoamos-te esse equívoco.
de Aquiles, causo a morte ou ensejo a cura. CrirFORD"
Eis a mão que devera estar com o cetro, Eis o meu rei. Não houve equívoco, York.
para leis decretar e dirigi-las. Foi teu o engano, ao presumires lapso
Sai daí! Pelo céu, não continues de minha parte. Levem-no depressa
a mandar por mais tempo em quem foi criado para Bedlam. Terá ficado louco?
pelo céu para ser teu soberano. Rer HENRIQUE:
SOMERSET"* Sim, Clifford, um humor louco e ambicioso
Oh monstruoso traidor! York, cu te prendo o leva a, assim, se opor ao soberano.
por causa da traição que ora perpetras CLirFORD:
contra o rei e a coroa. Petulante É um traidor; para a Torre o mandai logo,
traidor, vamos, retrata-te de joelhos. e ordenai que a cabeça lhe decepem.
York: Queres que cu me ajoelhe? Então pergunta RainHa MARGARIDA*
a estes, primeiro, se eles gostariam Já está detido, mas não se submete;
que eu me dobrasse diante de quem fosse. diz que os filhos o afiançam sob palavra.
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Henrique VI
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Ato V: Cena II
Santo Albano. seres meu inimigo encarniçado.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Warwick. CrrrroRp - Eu poderia despender louvores
à tua valentia, se a não visse
WARWICK posta a serviço da traição, da infâmia.
Clifford de Cumberland, Warwick te chama! Yorx- Ela vai me amparar contra o teu gládio,
Se não evitas o urso, agora, ao ouvires por a ter sempre usado na defesa
a trombeta colérica, e os gemidos da justiça e do bem.
dos moribundos que o ar vazio ocupam, CLirrORD* Jogo a alma e o corpo.
Clifford, torno a dizer, vem para a luta! York: Parada formidanda. A postos, vamos!
Clifford de Cumberland, lorde orgulhoso (Batem-se. Clijord cai.)
do norte, Warwick está quase sem voz CLrrroRD : La fin couronne les oeuvres.
de tanto te chamar para o combate. (Morre.)
(Entra York.) York: À guerra te deu paz, achaste a calma.
Perdestes o cavalo, nobre lorde? Se lhe permites, Deus, paz a sua alma.
York: Matou-o a mão de Clifford destruidora; (Sai)
mas a minha lhe deu troco na altura, (Entra o moço Clifford.)
transformando em carniça para as gralhas O Moço Crrrrorp':
e os corvos o corcel que ele apreciava. Vergonha e confusão! Debandam todos!
(Entra o velho Clifford.) Nasce a desordem do pavor, ferindo
WARWICK * quem amparar devera. Ó Guerra, filha
Chegou a hora de um de nós, ou de ambos. do inferno, transformada em instrumento
York: Warwick, busca outra caça; deixa-me esta, da cólera dos céus, lança nos frios
que eu lhe vou dar o golpe derradeiro. peitos dos nossos homens os carvões
Warwick: Faze-o, então, nobremente; é por um ardentes da vingança! Não permitas
[trono que nossa gente fuja. Quem à guerra
que te bates. Afirmo-o, com a certeza se consagra, descuida de si próprio;
que tenho de vencer: é pesaroso, só por acaso o egoísta é valoroso,
Clifford, que eu te abandono sem combate. jamais por natureza.
(Saí) (Vê o corpo do pai.)
CLiFFORD* Acabe o mundo
Que estás vendo, York, em mim? Por que paraste? desprezível! As chamas prometidas
York: Tua viril figura poderia do último dia a terra e o céu confundam!
deixar-me por ti preso, se não fosse Abafe a universal trombeta os ruídos
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Henrique VI
Ato V - Cena II
Campo perto de Santo Albano. se esquece dos embates e de todas
Alarma. Retirada. Toque de clarins; as contusões do tempo e, como um bravo
depois, entram York, Ricardo, Warwick e soldados, com na flor da idade, sabe achar recursos
tambores e bandeiras. em qualquer ocasião? Não poderemos
considerar feliz esta jornada,
York: De Salisbury quem me dá notícias, nem dizer que ganhamos um só palmo,
o leão idoso que na sua cólera se ele, acaso, morreu.
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WILLIAM SHAKESPEARE
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RICARDO III
Shakespeare
Introdução (David Bevington)
Esse esquema providencial impõe uma dupla ironia em Ricardo III. A curto
prazo, Ricardo parece ser um completo mestre sobre suas vítimas. “Seu encarceramento
não deve durar,” Ricardo assegura a seu irmão Clarence. “Eu vou te libertar, ou ficar
convosco” (1.1.114-15). A plateia, já sabendo do segredo, pode arrepiar-se ante o
pavoroso humor dessas ambiguidades. Clarence será, de fato, libertado [entregue,
deliver] – a sua morte. Os criados de Ricardo entendem tais piadas, também. Quando o
Lorde Hastings está a caminho da Torre, onde ele planeja ficar até o almoço,
Buckingham observa à parte, “E jantar também, apesar de você não o saber” (3.2.122).
Buckingham, sabendo que Hastings está prestes a ser preso na Torre e executado por
traição, assustadoramente sugere que Hastings será, em breve, um banquete para
vermes. Um pouco antes, Catesby assegurou Hastings das gentilezas de Ricardo e
Buckingham: “Ambos os príncipes fazem alta conta de você – / [À parte] Pois eles
contam com a cabeça dele sobre a Ponte” (3.2.69-70). Isto é, a cabeça degolada de
Hastings será, em breve, levantada em uma lança na Ponte de Londres como um sinistro
alerta àqueles que entrarão em conflito com o novo regime. Ricardo tem uma frase para
tal argúcia: “Assim, como o Vício formal, Iniquidade, / Eu moralizo dois significados
em uma palavra” (3.1.82-3). O ponto de tais ironias é sempre o mesmo: o vilão
conspirador é mais esperto que suas vítimas, enganando-as através do equívoco e
triunfando sobre a cegueira espiritual delas.
O bem eventualmente triunfa sobre o mal em Ricardo III, somente quando alguns
Ingleses têm a paciência e o senso comum em suportar uma punição presumidamente
merecida e esperar pela libertação. Como em 3 Henrique VI, as pessoas comuns têm
pouca relação com a ação da peça. Eles são córicos porta-vozes e observadores,
virtuosos em sua atitude (exceto pelos dois assassinos subornados de Clarence). Em sua
sabedoria popular comum, eles veem a loucura e o mal que os seus melhores ignoram:
“Ó, cheio de perigo é o Duque de Gloucester, / E os filhos e irmãos da Rainha soberbos
e orgulhosos” (2.3.28-9). E, apesar deles aceitarem Ricardo como governante, eles o
fazem da forma mais relutante; a primeira tentativa de Buckingham de persuadir as
pessoas a esse curso encontra a apatia e o silêncio. A sabedoria deles é a de “deixar tudo
para Deus” (linha 46). Na amplitude do tempo, essa fé na bondade traz a sua justa
recompensa.
Ricardo III comprime o tempo histórico. Ela inicia onde 3 Henrique VI termina,
com o retorno de Eduardo IV ao trono em 1471, e termina com a derrota de Ricardo III,
o último rei Yorkista, na batalha de Bosworth (1485). Por causa de sua relação temática
íntima com algumas passagens em 3 Henrique VI e seu estilo similar baseado em
Sêneca, a peça parece ter sido escrita um pouco depois de suas predecessoras, em algum
momento entre 1591 e 1594. Ela amplamente condensa eventos de catorze anos,
particularmente no início, quando os ritos funerais do Rei Henrique VI (1471), o cortejo
de Ricardo a Lady Anne (1472), o assassinato de Clarence na Torre (1478), e a morte de
Eduardo (1483) acontecem em rápida sucessão. Similarmente, a rebelião de
Buckingham (1483), a navegação frustrada de Richmond (1483), e seu atracar no Porto
de Milford (1485) são também comprimidos. O papel da Rainha Margaret é uma adição
histórica à peça, pois a Rainha viúva nunca deixou a França depois de seu resgate em
1475 por Luís XI.
Personagens
tod Cena l
Londres. Uma rua. Por meio de conjuras, arriscadas
Entra Gloster. insinuações, insanas profecias,
pasquins e invencionices, mortal ódio
GLosrTER: Ora pelo sol de York o frio inverno mantenho entre o monarca e o irmão Clarence.
do descontentamento foi mudado Ora, se o Rei Eduardo for tão justo,
em glorioso verão. Às negras nuvens tão veraz quanto eu sou falso e traiçoeiro,
que sobre nós pendiam já se encontram Clarence vai ser hoje transferido
sepultadas no seio do oceano. por causa de uma tola profecia
Agora as fontes temos circundadas segundo a qual um G será o assassino
por grinaldas vistosas; nossas armas dos herdeiros de Eduardo. Pensamentos,
amalgadas estão como troféus; mergulhai, pois Clarence vem chegando.
os severos alarmas se mudaram (Entram Clarence, escoltado, e Brakenbury.)
em reuniões alegres, nossas marchas Bom dia, irmão; a guarda que é que indica
temerosas em danças aprazíveis. junto de Vossa Graça?
À guerra carrancuda as fundas rugas CLARENCE* Interessando-se
da fronte já apagou, e em vez, agora, Sua Alteza por minha segurança,
de montar em cavalos ajaezados envia-me escoltado para a Torre.
para a alma amedrontar de seus contrários GLOSTER* E o motivo?
cheios de medo, lestemente salta CLARENCE* Porque me chamo Jorge.
num quarto de mulher, aos sons alegres GrosTER* Ora, milorde, não é vossa a culpa.
de um lascivo alaúde. Eu, no entretanto, Prender devia, então, vossos padrinhos.
que não nasci para essas travessuras Oh! Com certeza Sua Majestade
desportivas, nem para declarar-me pretende vos rebatizar na Torre.
a um espelho amoroso; eu, que me vejo Mas Clarence, que é que há? Posso sabê-lo?
cunhado por maneira tão grosseira, CLARENCE: Sim, Ricardo, depois que eu tiver ciência
carecente de dotes insinuantes do que se deu; mas juro que até agora
para me pavonear ante uma ninfa não sei de que se trata. No entretanto,
de frívolos requebros; eu, que me acho pelo que dizem, ele se impressiona
falto de proporção, logrado em tudo com profecias, sonhos e outras coisas
por uma natureza enganadora, desse gênero: risca do alfabeto
deformado, incompleto, antes do tempo a letra G por lhe ter dito um mágico
lançado ao mundo vivo, apenas feito que por G seus herdeiros morreriam;
pela metade, tão monstruoso e feio e como G é a letra do meu nome,
que os cães me ladram, se por eles passo... julga que eu sou o G de que se trata.
eu, em suma, nesta época abatida Foi essa ninharia e outras quejandas
de paz amolentada, não conheço que Sua Alteza a me prender levaram.
outra maneira de passar o tempo, GLOSTER*
a não ser contemplando a própria sombra, Sim, eis o que acontece quando os homens
quando o sol a projeta, ou comentando se deixam governar pelas mulheres.
minha deformidade. Se não posso Não é o rei que vos envia à Torre;
tornar-me o amante que divirta os dias é sua esposa, Lady Grey, Clarence;
eloquentes e alegres, determino ela é que o faz fazer esses extremos.
conduzir-me qual biltre rematado Pois não foi ela e aquele senhor digno,
e odiar os vãos prazeres de nossa época. Antônio Woodville, seu mui digno irmão,
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A Tracépia DO RE1 RICARDO III
e fraco; os médicos estão receosos. Feito isso, Deus receba o Rei Eduardo
GrosrER: Por São Paulo, a notícia é ruim, de fato. na sua graça e me conceda o mundo
Abusou, por demais, de um mau regime, para nele agitar-me. Logo tomo
prejudicando a sua real pessoa. por mulher a mais nova filha de Warwick.
Só de pensar, dá pena. Está de cama? Que importa que ao seu pai e a seu marido
Hasrinos Está. tivesse eu dado a morte? O melhor meio
de dar satisfações a essa donzela
GLOSTER* Ide na frente; já vos sigo.
é ficar sendo dela pai e esposo,
(Sai Hastings.)
o que farei, não por amor, decerto,
Viver não pode, espero-o; mas não deve
mas por um fim profundamente oculto
morrer enquanto Jorge despachado
que preciso alcançar com o casamento.
não for em extraposta para o céu. Mas desse jeito estou indo na frente
Vou ver se o encontro, para espicaçá-lo do cavalo. Clarence ainda respira;
contra Clarence com bem aceradas Eduardo está com vida e ocupa o trono:
mentiras e argumentos ponderosos. só depois que tiverem ido embora
Se não gorar meu plano meditado, é que me vai raiar a nova aurora.
não viverá Clarence mais um dia. (Sai)
Atof- Cena II
Londres. Outra rua. calamidades sobre o miserável
Entra o corpo do Rei Hlenrique VT em um esquife aberto. que nos tez miseráveis com tua morte
Gentis-bomens com alabardas fazem a guarda; Lady Ana, do que a aranhas e sapos eu deseje
como carpideira. e a quanto verme venenoso exista.
Se filho vier a ter, seja ele aborto
Ana: Deponde aí mesmo vosso fardo honroso — monstruoso, prematuro à luz trazido,
se é que pode ficar amortalhada cujo aspecto medonho e extravagante
a honra num ataúde — enquanto o pranto à esperançosa mãe pavor infunda.
dos funerais eu verto, lastimando A maldade do pai lhe seja herança.
a queda prematura de Lencastre. Se algum dia casar, torne-se a esposa
Pobre figura fria de um rei santo! mais infeliz com a morte do marido
Pálidas cinzas de uma casa nobre! do que eu com a tua e a do meu jovem dono.
Restos exangues desse sangue real! Levai agora o vosso fardo santo
Permite que ora o espírito eu te invoque, para Chertsey, tirado de São Paulo,
porque ele ouça os gemidos da pobre Ana, a fim de ser ali posto no túmulo.
mulher do teu Eduardo, de teu filho, Sempre que o peso vos deixar cansados,
de teu filho que foi apunhalado parai, para que eu possa novamente
pela mão que te fez essas feridas. sobre o corpo chorar do Rei Henrique.
Nas janelas por onde a tua vida (Os carregadores levantam o ataúde e dão alguns passos.)
se escapou eu derramo o triste bálsamo (Entra Gloster.)
destes doridos olhos. Oh! Maldita GLosTER* Ponde o corpo no chão, carregadores!
seja a mão que estes furos praticou! Ana" Qual foi o negro mágico que o diabo
Maldito o coração que para tanto conjurou para vir se opor aos atos
teve coragem! Sim, maldito o sangue de caridade?
que este sangue verteu. Caiam maiores Grosrer* Biltres! Ponde o corpo
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ANA: Desconheces,
no chão! Caso contrário, por São Paulo,
há de morto ficar aqui o rebelde. vilão, as leis divinas e as humanas.
Primerro GENTIL-HoMEM * As próprias feras mostram-se piedosas.
Afastai-vos, milorde, porque o féretro GLosTER : Não sou fera; no entanto, sou impiedoso.
possa passar. ANA“ O diabo falou certo... Oh coisa estranha!
GLosrER* Cachorro descarado, GLosreR : Mais estranho é haver anjo tão zangado.
pára, quando eu mandar! Se levantares Divina perfeição do belo sexo,
tua alabarda à altura deste peito consente que eu me absolva, nestas mesmas
circunstâncias, de todos esses crimes
por São Paulo, a meus pés hei de prostrar-te
imaginários.
e de pisar em ti, para castigo
ANA: Infecção monstruosa
dessa temeridade.
de homem, deixa que nestas circunstâncias,
(Os carregadores depõem o atatíde no chão.)
por todos os teus crimes conhecidos,
ANA: Como! Todos
maldito, eu te maldiga.
ficastes trêmulos? Estais com medo?
GLOSTER' Oh mulher linda,
Ah! não vos culpo, porque sois humanos muito mais do que cabe nas palavras,
e o olhar humano suportar não pode ouve-me com paciência, porque eu possa
a vista do demônio. Fora, horrendo
desculpar-me, afinal.
comissário do inferno! Tu só tinhas Oh monstro horrendo
ANA“
poder sobre o seu corpo transitório;
mais do que pode crer a mente humana,
sobre tua alma, não. Por isso, vai-te!
só te enforcando é que terás desculpa.
GLosTER* Pelo céu, doce santa, não te mostres GLosrERr- Com esse desespero eu me acusara.
tão zangada. ANA: Por esse desespero te escusaras,
ANA: Por Deus, demônio horrível, infligindo-te a pena merecida
não nos perturbes! Transformaste a terra por teres morto tantos inocentes.
feliz em teu inferno, transbordante GLosrER: Dize que os não matei.
de maldições e de profundas queixas. ANA: Então declara
Se achas prazer em contemplar teus feitos que os não mataram; mas matados foram
horripilantes, olha esta obra-prima e por ti, justamente, infernal monstro.
de toda a tua matança. Oh gentis-homens, GLOSTER*
vede as feridas do defunto Henrique Não matei vosso esposo.
que as frias bocas abrem e, de novo, ANA: Ele está vivo?
põem-se a sangrar. Cria vergonha, monte GLosTER: Não, já morreu; mas pela mão de
de atroz e vil deformidade! É a tua Eduardo.
presença que provoca esta sangueira Ana: Mentes pela garganta! Margarida
das frias veias que já não têm sangue. viu teu gládio assassino, fumegante
Teu feio ato contra a natureza de seu sangue; e contra ela o dirigiras,
faz um dilúvio contra a natureza. se acaso o não desviassem teus irmãos.
Oh Deus! Criaste este sangue; a morte vinga-lhe! Grosrer- Sua língua aleivosa me irritara,
Terra, tu o bebes; vinga-lhe o trespasse! pondo a culpa de todos nos meus ombros
Que um dos teus raios, céu, mate o assassino! inocentes.
Ou então, terra, escancara a larga boca ANA: Foi tua alma sanguinária
para logo tragá-lo, como o fazes que te irritou, porque ela só cogita
com o sangue deste rei de alma bondosa de matanças e crimes. E o monarca
que o seu braço infernal privou da vida. não foi morto por ti?
GLOSTER* Isso eu concedo.
GLosTER: Desconheceis, senhora, a caridade,
que paga o mal com o bem e retribui ANA“ Concedes isso, monstro? Então conceda-me
as maldições com bênçãos. também Deus que danado tu te vejas
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A Tracépia DO Rei RicAaRDO III
por esse crime horrível. Doce ele era, Ana: Seria uma contenda mui razoável
amável e virtuoso. matar o matador do meu marido.
GLOSTER* Merecia GLosrER * Quem te privou, senhora, do marido,
morar com o rei do céu, que o tinha criado. vai-te ajudar a achar melhor marido.
Ana Está no céu, para onde nunca irás. Ana: Melhor, nenhum respira sobre a terra.
GLosrTER- Deve-me, então, ser grato pela ajuda. GLosTER : Vive quem te ama muito mais do
Está melhor no céu do que na terra. que ele.
ANna- E tu não tens melhor lugar que o inferno. Ana: Quem é?
GLosTER- Não; há outro: quereis que vo-lo diga? Groster: Plantageneta.
ANA: À prisão, certamente. Ana" Era o seu nome.
GLOSTER"* Vossa alcova. GLosrER* O nome é o mesmo, mas melhor
Ana: Seja o sono banido do teu quarto! pessoa.
GrosrER Sê-lo-á, enquanto não dormirmos juntos. Ana“ Onde se encontra?
Ana" Espero que assim seja. GLOSTER* Aqui.
GLOSTER* Sei que é assim. (Ana lhe cospe no rosto.)
Porém gentil Lady Ana, arrematemos GLosTER: Por que me cospes?
de uma vez estes ásperos assaltos Ana" Que bem que te seria esse meu cuspo,
de nossa inteligência, para um método se ele atirasse qual mortal veneno!
mais seguro empregar, embora lento. GLOSTER * Jamais o produziu lugar tão doce.
A causa do trespasse prematuro ANA Jamais caiu num sapo tão medonho.
de Eduardo e Henrique, esses Plantagenetas, Fora daqui! Os olhos me infeccionas!
não será, por acaso, tão culpável GLosTER- Esses olhos, senhora, é que me cegam.
como o seu próprio autor? Ana“ Quem dera que eles fossem basiliscos,
ANA: Tu foste a causa; para a morte te darem!
tu és o que fizeste a ação maldita. GLOSTER"* Desejara
GLOSTER' À causa desse efeito a tentes perto: isso mesmo; que, assim, morrera logo;
vossa beleza. Sim, essa beleza eles me estão matando lentamente.
que até durante o sono me mandava Dos meus esses teus olhos tiram lágrimas,
matar o mundo todo, porque uma hora deixando-lhes a luz envergonhada
viesse a gozar em vosso brando seio. com as gotas infantis. Jamais haviam
Ana: Afirmo-te, homicida, que no caso estes olhos chorado. Não, nem mesmo
de eu pensar desse jeito, essa beleza quando choraram meu pai York e Eduardo,
com estas unhas eu própria a destruiria. aos gemidos de Rutland, atingido
GLOSTER" Jamais suportariam estes olhos pela espada do negro e horrendo Clifford,
a vista de tal quadro. Estando eu perto, nem quando teu valente pai contava,
não fareis nenhum dano a essa beleza. como uma criança, a história comovente
Tal como o sol ao mundo, ela me anima: da morte de meu pai e vinte vezes
é meu dia e, ainda mais, é minha vida. parava a suspirar, deixando o rosto
AnA* Que a noite deixe escuro esse teu dia, dos presentes como árvores molhadas
e a tua vida a morte. pela chuva. Naquela época triste
GLOSTER'* Não maldigas, meus olhos varonis sempre metiam
criatura encantadora, de ti mesma, a ridículo as lágrimas humildes.
que para mim és ambos. Ora bem: o que à dor fora impossível,
ANA" Desejara tua beleza o fez, deixando-os cegos
sê-lo, para tomar de ti vingança. de chorar. Jamais fiz nenhuma súplica
GLosrer Seria uma contenda absurda e injusta a amigos ou inimigos; nunca soube
na pessoa vingares-te que te ama. esta boca dizer palavras ternas.
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WiLLiAM SHAKESPEARE
Mas agora que a tua formosura sempre espera, é ditado muito certo.
meu feudo se tornou, vencido abate-se-me GLOSTER: Ficai, pois, com este anel de minha parte.
o altivo coração e a língua fala. ANA Aceitar não é dar.
(Ela lhe lança olhar desdenhoso.) (Coloca o anel no dedo.)
Não ensines aos lábios o desprezo, GLosrER* Vê como o anel o dedo te circunda:
que para os beijos foram eles feitos, assim teu peito faz com meu sofrido
senhora, não para esses sentimentos. coração. Usa os dois, que te pertencem.
Se não sabe perdoar esse orgulhoso E se este servo fiel pode uma graça
coração, aqui tens a aguda espada: solicitar de tua mão graciosa,
esconde-a neste peito verdadeiro, confirma para sempre esta ventura.
e a alma deixa escapar que te idolatra. Ana: De que se trata?
Eilo: ofereço-o, aberto, ao mortal golpe, GLosrER Deixar este dever dorido e triste
e, de joelhos, humilde, a morte imploro. para quem tem mais causa de tristeza
(Descobre o peito; ela faz menção de feri-to.) e ir para Crosby-place sem demora,
Não pares, que eu matei o Rei Henrique, onde, depois de eu ter solenemente
mas foi tua beleza o móvel disso. feito baixar à terra, no mosteiro
Despacha-me depressa; o moço Eduardo de Chertsey, este nobre soberano,
foi por mim trespassado... e lavado seu túmulo com lágrimas
(Ela faz novamente menção de feri-lo.) de meu pesar sincero, in continenti
..mas foi esse vos apresentarei meus cumprimentos.
rosto divino o instigador de tudo. Por diversos motivos ainda ocultos
(Ela deixa tombar a espada.) concedei-me essa graça, vos suplico.
Toma de novo a espada, ou me levanta. Ana: De todo coração. Muito me alegra
Ana* Hipócrita, levanta-te! Conquanto ter visto que ficastes penitente.
eu deseje tua morte, não me agrada Vinde comigo, Berkeley e Tressel.
ser teu carrasco. GLosrTER: Dizei-me adeus.
Grosrer: | Manda que eu me mate, ANA" Não mereceis tal coisa.
nesse caso, que logo eu te obedeço. Mas já que me ensinastes a adular-vos,
AnA"Já o fiz. pensai que já vos tenha dito adeus.
Groster: Mas fizeste-o transtornada (Saem Lady Ana, Tressel e Berkeley.)
pela cólera. Ordena-o novamente, GLosTER- Senhores, carregai de novo o corpo.
que no mesmo momento esta mão forte, GenriL-Homem -* Para Chertsey, milorde?
que, por amor de ti, fez que morresse GLOSTER"*
teu amor, por amor de ti, igualmente, Não, para W'hite-Friars; lá me aguardareis.
matará outro amor mais verdadeiro: (Saem todos, menos Gloster.)
e, assim, tu ficarás, decerto, cúmplice Já houve, acaso, mulher, em todo o mundo,
na morte de ambos. que fosse cortejada desse modo?
Ana: Conhecer quisera Já houve mulher que assim ficasse noiva?
como é esse coração. Vai ser minha, mas não por muito tempo.
GLOSTER* Na língua o trago. Já se viu coisa igual? Matei-lhe o esposo,
Ana Tenho receio que ambos sejam falsos. matei-lhe o sogro, apanho-a no momento
GLosrER - Então, ninguém jamais disse a verdade. do ódio mais acirrado, quando a boca
Ana: Está bem, está bem; guardai a espada. de maldições estava transbordante,
GLOsTER - Estamos, pois, em paz? de lágrimas os olhos, e, ao seu lado,
Ana Depois vereis. sangrando, a causa do seu ódio imenso:
GLosTER* Posso ter esperanças? tendo Deus contra mim, sua consciência
AnA* Quem tem vida e este ataúde, sem que do meu lado
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ninguém viesse o pedido reforçar-me; da metade de Eduardo? Eu, que sou coxo,
contando apenas com o favor do diabo, disforme deste jeito? Meu ducado
com olhares fingidos... e, no entanto, contra o vintém de um pobre: mas até hoje
conquistá-la! Isso é o mundo contra nada! eu andava iludido a meu respeito.
Ah! Por minha vida, embora eu não concorde,
Já se esqueceu, talvez, do bravo Príncipe pareço encantador aos olhos dela.
Eduardo, seu marido, que, furioso, Vou tratar de adquirir um bom espelho
eu próprio apunhalei não há três meses, e de pagar uma vintena ou duas
em Tewksbury? Um mais doce gentil-homem de alfaiates que cuidem da maneira
do que ele, mais amável, resultante de me adornar o corpo. Já que tanto
da natureza pródiga, valente, subi no meu conceito, vou mantê-lo
sábio e moço, real em toda a linha, com pequena despesa. Mas primeiro
não poderá mostrar o vasto mundo. porei na sepultura aquele gajo,
Baixará para mim, agora, os olhos para depois voltar a lamentar-me
tendo sido eu o ceifador das áureas junto do meu amor. Sol admirável,
primícias desse príncipe adorável, brilha até que eu adquira um bom espelho
eu, que a joguei ao leito doloroso para eu ver com que monstro eu me assemelho.
da viuvez? Eu, que valho muito menos (Sai.)
Ato Cena II
Londres. Um quarto no palácio. Grey - Lordes de Buckingham e Stanley chegam.
Entram a Rainha Elisabete, Lorde Rivers e Lorde Grey. BuckiNcHAM : Muito bom dia a Vossa Real Graça!
STANLEY * Alegre Deus a Vossa Majestade
Rivers: Minha senhora, calma! Sua Graça como nos dias idos!
ficará bom, de novo, em pouco tempo. RarnHa ELIsaBETE: À Condessa
Grey : Calma, senhora! Vosso desespero de Richmond, meu bondoso Lorde Stanley,
deixa-o pior. Por isso, sede forte. decerto não diria Amém ao vosso
Tende confiança em Deus, reconfortando cumprimento amistoso. Mas, conquanto
Sua Graça com modos mais alegres. seja ela vossa esposa, caro Stanley,
RAINHA ELISABETE: e não me ame, podeis, bondoso lorde,
Se ele vier a morrer, como é que eu fico? ficar certo de que eu não vos odeio
Grey * Perdereis tão-somente tal esposo. por sua insuportável arrogância.
RAINHA ELISABETE* STANLEY *
A morte desse esposo é total perda. Suplico-vos não dardes nenhum crédito
Grey - O céu vos abençoou com um bravo filho, à calúnia invejosa de seus falsos
para que na viuvez vos consolasse. acusadores. Mas, se porventura
RAINHA ELISABETE* for acusada com alguma base,
Ah! Mas é muito criança e está confiada considerai, vos peço, essa fraqueza
sua minoridade inexperiente como produto dos achaques dela
a Ricardo de Gloster, que, é sabido, e não como produto de malícia.
me vota, e a todos vós, ódio de morte. RAINHA ELISABETE*
Rivers Vai ser ele, de fato, o protetor? Vistes hoje o monarca, Lorde Stanley?
RAINHA ELISABETE: STANLEY * Eu e o Duque de Buckingham estamos
Foi indicado, apenas; mas no caso vindo de visitar Sua Majestade.
de falecer o rei, será nomeado. RAINHA ÊLISABETE*
(Entram Buckingham e Stanley.) Notastes nele indícios de melhora?
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A TracÉDIA DO REi RICARDO III
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GLosrER Que vens fazer de novo em minha frente, abri caminho para as minhas rápidas
bruxa louca e enrugada? maldições! Se não vier o vosso chefe
RAarnHA MARGARIDA: Repetir-te a falecer na guerra, que se extinga
a história dos teus crimes; vou contá-la pela devassidão, tal como o nosso
antes de te deixar. pelo assassínio, para dar-lhe o trono.
GLOSTER* Sob pena, acaso, Possa teu filho Eduardo, que ora é Príncipe
de morte não te encontras exilada? de Gales, por Eduardo, que foi Príncipe
RArNHA MARGARIDA * de Gales, meu filhinho, prematuro
Sim, mas achei o exílio mais penoso como este, perecer pela violência!
de quanto possa a morte aqui aprestar-me. És rainha; rainha também fui:
Um esposo me deves e um filhinho; possas sobreviver à tua glória
deves-me um reino. E vós aí, deveis-me na miséria em que a minha eu sobrevivo.
fidelidade. Esta tristeza imensa, Vive bastante, para lastimares
por direito a só vós é que tocara, a perda de teus filhos, para veres
e a mim vossos prazeres usurpados. outra mulher, tal como ora eu te vejo,
GLosTER* À maldição que te lançou meu pai, na posse dos teus títulos, do mesmo
quando a fronte guerreira lhe coroaste modo que ora me fazes. Que muito antes
com papel, quando, à força de sarcasmos, de ti morram teus dias de alegria;
o fizeste verter rios de lágrimas e após compridas horas de amargura,
e, para os olhos enxugar, ao duque morras, por fim, sem seres nem esposa,
deste um lenço molhado no inocente nem mãe, nem mais rainha da Inglaterra!
sangue do meigo Rutland: as palavras Rivers e Dorset, ambos vos acháveis
de maldição que sua alma amargurada presentes — como vós, também Lorde Hastings —
te lançou, ora sobre ti caíram. b quando foi transpassado o meu filhinho
Não somos nós, é Deus que te castiga. por punhais sanguinários. Deus, suplico
RArNHA ELISABETE* que nenhum de vós viva o normal curso
Sim, Deus é justo e protege os inocentes. da natureza, mas, antes do tempo,
Hasrrncs- Oh, pode haver ação mais sanguinária pereçais por qualquer caso imprevisto!
do que a morte daquele inocentinho? GLOSTER"*
Jamais se ouviu falar em tal barbárie. Chegaste ao fim dos teus encantamentos,
Rivers: Até os próprios tiranos derramaram bruxa enrugada?
lágrimas, ao ouvir contar o caso. RarnHA MARGARIDA É ficarias fora?
Dorser: Não houve quem vingança não previsse. Espera aí, cachorro, que hás de ouvir-me.
BUCKINGHAM * Se o céu guardar alguma peste estranha,
Northumberland chorou, vendo o homicídio. que exceda a tudo quanto eu te pudesse
RarinHa MARGARIDA* desejar, oh! retenha-a até que fiquem
Mas que acontece! Antes de minha vinda, maduros teus pecados indizíveis,
rosnáveis, prontos a vos atracardes para atirar-te a tua indignação,
pelo pescoço, e agora todo esse ódio perturbador da paz do pobre mundo.
virastes contra mim? Teve tal força Roa-te o peito o verme do remorso!
no céu a maldição terrível de York, Que por traidores tenhas os amigos,
que o trespasse de Henrique e o do adorável enquanto fores vivo, e dos traidores
Eduardo, a usurpação brutal do reino, faças os teus amigos mais chegados.
meu banimento odioso prevaleçam Que o sono jamais pouse nesses olhos
em confronto com a perda de um fedelho? assassinos, a menos que terríveis
Conseguem maldições cortar as nuvens pesadelos te oprimam nessas horas
e ao céu chegar? Então, nuvens pesadas, com legiões de demônios horrorosos.
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A TrRAcÉDIA DO REI RICARDO III
Monstro marcado, cerdo imundo, aborto emitido de pouco ainda não corre.
que assinalado foste ao nascimento Oh! Se pudesse essa nobreza jovem
como filho do inferno e baixo escravo ter consciência do que é vir a perder-se
da natureza! Oh tu, caluniador e ficar miserável! Os que se acham
do ventre de tua mãe, Oh detestável no alto suportam muitas tempestades;
produto, e infame, dos paternos lombos, ao caírem, reduzem-se a pedaços.
farrapo da honra, desprezível, ouve... GrosTER* Excelente conselho, pelo demo!
GLosrTER" Margarida! Tomai nota, marquês.
RArNHA MARGARIDA ... Ricardo! Dorser: Ele se aplica
GLOSTER* Aqui presente! tanto a mim quanto a vós, milorde Gloster.
RarnHa MARGARIDA" GLOSTER* Sim, mais ainda; mas nasci muito alto.
Não te chamei. Nossos filhotes de águia são criados
GLoster: Então peço desculpas, nos cedros mais altivos; não se importam
porque pensei que o tinhas feito, logo com os ventos e do sol não fazem conta.
depois de me jogares esses nomes. RarnHa MARGARIDA*
RAarnHa MARGARIDA Fazem sombra até ao sol! Ah! muito certo!
Foi o que fiz; mas não pedi resposta. Haja vista meu filho, ora na sombra
Mas deixai-me acabar a maldição.
da morte, cujos raios resplendentes
GLosTER: Já está feito; termina em “Margarida”. tua sombria cólera de pronto
RAINHA ELISABETE*
mergulhou na caligem sempiterna.
Assim, amaldiçoastes a vós mesma.
No nosso ninho de águias foi que os vossos
RAINHA MARGARIDA:
filhotes se criaram. Não consintas,
Rainha rebocada, estulta efígie
Deus, em tal coisa! Nada se te oculta.
do que foi minha dita, por que lanças
açúcar sobre a aranha barriguda
Dá que venha a extinguir-se pelo sangue
cuja teia mortal já te asfixia?
quanto foi conquistado pelo crime!
Louca! Tu própria estás afiando a faca BuckiNGHAM : Calma, por caridade! Ficai quieta!
que te vai dar a morte. Há de haver dia Envergonhai-vos disso!
em que anseies por mim para ensinar-te RainHa MARGARIDA : Nem vergonha
como lançar as maldições mais raras nem caridade deve vir à baila.
neste sapo nocivo e deformado. Sem caridade todos procedestes
Hastings: Acaba, falsa profetisa, com essas e asfixiastes as minhas esperanças.
maldições de maníaca. Não queiras Vergonha é a minha vida e afronta a minha
cansar-nos a paciência, em teu prejuízo. caridade. Ainda vive toda a cólera
RarnHa MARGARIDA da minha dor nessa vergonha imensa.
Envergonhai-vos todos, por me terdes BuckincHAM: Acabai! Acabai!
atribulado tanto a paciência. RainHa MARGARIDA
Rivers: Se aceitásseis conselhos, saberíeis Oh nobre Buckingham, as mãos te beijo,
qual é o vosso dever. como sinal de aliança e de amizade.
RarnHa MARGARIDA O mais sensato Sejas feliz com tua nobre casa.
conselho é que homenagem me presteis. Não estão tuas vestes salpicadas
Oh! Ensinai-me a ser vossa rainha, com nosso sangue, nem te encontras dentro
vós, meus vassalos. Oh! Aconselhai-me do círculo de minhas maldições.
desse jeito e aprendei vosso dever! BUCKINGHAM *
Dorser: Não discutais com ela; está demente. Nem nenhum dos presentes; nunca passam
RArNHA MARGARIDA: as maldições dos lábios que as proferem.
Mestre marquês, silêncio! Sois confiado RarnHa MARGARIDA *
por demais. Vosso título honorífico Não; creio que até ao céu elas se elevam
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e a Deus despertam de seu sono plácido. também, e a todos vós, meus nobres lordes.
Oh Buckingham! Cautela com esse cão! RAINHA ELISABETE"
Quando ele adula, morde; e quando morde, Catesby, não demoro. Vindes, lordes?
seu dente venenoso a morte causa. Rivers : Estamos 20 dispor de Vossa Graça.
Assinalaram-no o pecado e a morte; (Saem todos, com exceção de Gloster.)
marcou-o o inferno, e seus ministros todos GLOSTER"
lhe vão no rasto e como a chefe o servem. Promovo uma desgraça e sou o primeiro
GLosrER * Que diz essa mulher, milorde a levantar o alarma. Sobre os outros
Buckingham? faço pesar o alarma dos malfeitos
BUCKINGHAM * que eu próprio ocasionei. Assim, Clarence,
Nada que eu preze, meu gracioso lorde. por minha instigação, se acha no escuro,
RAainHA MARGARIDA * mas lhe choro o destino, quando em frente
Como! Ainda zombas de meu bom conselho desses simplórios: Hastings, Stanley, Buckingham,
e afagas o demônio de que eu tanto e digo que a rainha e os do seu grupo
te queria livrar? Oh, não te esqueças são os que o rei atiram contra o duque,
do que se está passando, quando as mágoas meu irmão. Eles todos acreditam
o coração te houverem triturado. no que eu afirmo e a me vingar concitam-me
Então dirás que a pobre Margarida de Grey, Rivers e Vaugham. Nessa altura
foi boa profetisa. Que em futuro lhes cito a Bíblia, suspirando fundo,
passeis a ser o objeto de seu ódio, que o mal com o bem retribuir nos manda:
ele do vosso, e todos do de Deus. é a palavra de Deus. Dessa maneira,
(Sai) visto a minha despida vilania
Hasrincs Só de ouvi-la, os cabelos se me eriçam. com farrapos sediços da Escritura.
RIVERS" Pareço um santo, quando sou o diabo.
E os meus também; não sei como anda solta. (Entram dois assassinos.)
GLosrER- Tem razão. Pela santa mãe de Deus, Devagar! Eis os meus executores!
sofreu demais. Eu próprio me arrependo Então, meus camaradas destemidos,
de ter causado a ela desventura.
dispostos e valentes, estais mesmo
RAINHA ELISABETE"
resolvidos a dar remate à coisa?
Que eu saiba, não lhe dei nenhum desgosto. PRIMEIRO ÁSSASSINO
GLosrTER : Mas ficastes com todas as vantagens
Estamos, sim, milorde; só nos falta
do mal que lhe fizeram. Fui ardente
receber a ordem que nos facilite
por demais ao pensar no bem dos outros,
penetrar no local em que ele se acha.
que hoje recordam disso friamente.
GrosreR: Foi bem pensado: tenho-a aqui comigo.
Êo que se está passando com Clarence;
(Dá-lhes uma autorização escrita.)
por se ter esforçado, está engordando
Depois de tudo feito, voltai para
num chiqueiro: foi boa a recompensa.
Crosby-place. Porém, meus camaradas,
Deus perdoe aos que têm culpa no caso.
sede prontos na ação. Além de duros,
RrIvERS - Eis uma conclusão cristã e virtuosa,
não lhe atendais às súplicas. Clarence
pedir o bem dos que nos são nocivos.
tem lábia e poderá vir a abalar-vos
GLOSTER*
o coração, se ouvido lhe prestardes.
Sempre procedo assim. (À parte.) Por ser ladino;
PRIMEIRO ASSASSINO *
que, do contrário, eu me amaldiçoaria.
(Entra Catesby.) Ora, milorde! Nós não perderemos
CATESBY* tempo com muita prosa. Os faladores
são maus executores. Ficai certo:
Senhora, o rei vos chama, e a Vossa Graça
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«
vamos usar os braços, não a língua. rapazes, de vós ambos. Mas, depressa!
GLOSTER* Despachai-vos!
Chorais pedra de moinho, enquanto os bobos PriMEIRO AssAssINO* Pois não, meu nobre lorde.
choram apenas lágrimas. Agrado-me, (Saem.)
Ato T- Cena IV
belas gemas que o limo do oceano
O mesmo. À Torre. namoravam, sem ver os mortos ossos
Entram Clarence e Brakenbury. esparsos em redor inumeráveis.
BRAKENBURY *
BRAKENBURY * No instante de morrer tivestes tempo
Por que está Sua Graça hoje tão triste? de surpreender o abismo e seus segredos?
CLarencE: Oh! Passei uma noite miserável, CLARENCE: Pareceu-me que sim. Por várias vezes
cheia de visões lúgubres e horríveis quis exalar o espírito, mas vinha
pesadelos. Por minha fé cristã, sempre uma onda invejosa a alma deter-me,
noite igual não desejo, nem que seja não consentindo que saísse e fosse
para comprar um mundo de bons dias, procurar o ar vazio, imenso e livre,
tal o pavor sentido nessas horas. ea tal ponto no corpo a comprímia
BRAKENBURY * Que sonhastes, milorde? Revelai-mo. que este quase estourava, pelo esforço
CLARENCE Pareceu-me estar já fora da Torre, de cuspi-la nas ondas do mar fundo.
a bordo de um navio que singrava BRAKENBURY : E não vos despertou tanta agonia?
para Borgonha, onde também se achava CLARENCE Não; foi além da vida o sonho horrível.
meu mano Gloster, que com seus conselhos Foi só então que teve início na alma,
me fez sair do camarote, para de fato, a tempestade. Pareceu-me
passear pelo convés. De lá nós víamos ter passado a corrente melancólica
a Inglaterra e lembravam-nos os tempos com o terrível arrais que os poetas cantam
tão difíceis que tínhamos passado e alcançado a região da noite eterna.
durante a guerra de York e de Lencastre. O primeiro a saudar a alma estrangeira
Ao passarmos por sobre a ponte móvel, foi meu sogro eminente, o famoso Warwick,
pareceu-me que Gloster tropeçara; que a gritar começou: “Qual o castigo
na queda, me jogou, quando eu tentava para o perjúrio que esta monarquia
segurá-lo, por cima da amurada, sinistra inventar pode para o falso
nas agitadas ondas do oceano. Clarence?” Após falar, sumiu-se a sombra.
Oh Deus! como é dorida a morte na água! Depois veio outra, semelhante a um anjo,
Que cachoeira medonha nos ouvidos, de cabeleira clara, toda suja
que de visões terríveis ante os olhos! de sangue coagulado, que em voz alta
Pareceu-me estar vendo mil naufrágios; começou de dizer: “Clarence veio,
entre cadáveres por peixes roídos, Clarence o falso, o trânsfuga, o perjuro,
em meio a barras de ouro e grandes âncoras, que me matou no campo de Tewksbury!
espalhavam-se pedras preciosas, Prendei-o, Fúrias! A ele! Atormentai-o!”
jóias de alto valor, montões de pérolas, Quis parecer-me, então, que um bando enorme
pelo fundo do mar. Umas se achavam de demônios hediondos me cercavam,
nas cabeças dos mortos; e nas órbitas gritando-me aos ouvidos tais horrores
onde outrora brilharam vivos olhos, que, com o barulho, despertei tremendo,
como em mofa a eles próprios, se insinuaram por algum tempo, ainda, acreditando
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alguma, sem que ela o acuse; não pode blasfemar, Quem vos mandou? Por que motivo viestes?
sem que ela o contenha; não pode deitar-se com AMBOS OS ÁsSASSINOS : Para... para...
a mulher do vizinho, sem que o denuncie: é um CLARENCE: Para matar-me?
espírito tímido e envergonhado, que promove revolta AMBOS OS ASSASSINOS * Sim.
no coração da gente e levanta obstáculos a toda hora. CLARENCE: Falta-vos ânimo
De uma feita obrigou-me a restituir uma bolsa de sequer para dizerdes o a que viestes;
ouro que eu havia encontrado. Quem lhe dá guarida não heis de tê-lo para pô-lo em prática.
vira mendigo; expulsam-na das cidades e dos burgos, Em que vos ofendi, caros amigos?
com coisa perigosa; e quem quer que deseje viver PRIMEIRO ASSASSINO *
bem, trata de confiar apenas em si próprio e de À nós, em nada; mas ao soberano.
passar sem ela. CLARENCE: Farei as pazes com ele novamente.
PriMEIRO AssASSINO * Com os diabos! Sinto-a SEGUNDO ASSASSINO *
neste momento aqui no cotovelo, a persuadir-me de Jamais, milorde. É tempo: preparai-vos.
que não mate o duque. CLARENCE: Escolheram-vos entre tantos homens
SEGUNDO ÁssASSsINO : Firma no espírito o diabo e para dardes a morte a um inocente?
não lhe dês crédito; o que ela deseja, insinuando-se-
Qual é o meu crime? Qual a testemunha
te, desse modo, no ânimo, é que te ponhas a suspirar. que me acusa? Quais foram os jurados ,
PriMEIRO ÁAssAssINO : Não adianta; tenho uma que se manifestaram legalmente
natureza forte; comigo ela não arranjará nada.
diante de um magistrado rigoroso?
SEGUNDO ÁssAssINO : Isso é que é fala de quem
Quem pronunciou o amargo veredicto
presa a reputação própria. Como é, começamos o
para a morte do mísero Clarence?
trabalhinho?
É cometer iniquidade, à morte
PRIMEIRO ÁsSASSINO - Arruma-lhe uma pancada
me condenar sem ser a lei ouvida.
no coco com o punho da espada, e depois o joga no
Eu vos suplico, pois, por vossa crença
barril de malvasia que se acha no quarto vizinho.
na salvação obtida pelo sangue
SEGUNDO AssASSINO * Ótimo conselho! Faremos
de Cristo, derramado por nós todos,
uma sopa dele.
ue vos retireis logo, sem tocar-me.
PriMEIRO ÁssAssINO * Devagar! Está acordando.
SEGUNDO ÁssassINO * Dá logo a pancada! E condenável o ato que intentastes.
PRIMEIRO ÁSSASSINO *
PrIMEIRO ÁsSASSINO * Não; primeiro vamos
conversar com ele. O que vamos fazer é por mandado.
CLARENCE: Guarda, onde estás? Dá-me um copo SEGUNDO ÁSSASSINO *
de vinho. Foi o rei que para isto nos deu ordens.
PriMEIRO ÁssAssINO : Não falta muito, milorde, CLARENCE* Oh vassalos transviados e iludidos!
para terdes vinho à vontade. O grande Rei dos reis, na sua tábua
CLARENCE: Em nome de Deus, quem és? das leis expressamente vos ordena:
PrIMEIRO AssAssINO * Um homem, como vós. Não matarás! Quereis zombar agora,
CLarENcE: Mas não sois como eu, de condição de seu edito santo, para as ordens
real. obedecer de um homem? Sede cautos,
PriMEIRO AssAssINO * Nem vós sois como nós, de que nas mãos ele tem sempre o castigo,
condição leal. para atirá-lo sobre os transgressores.
CLARENCE: Tens a voz de trovão, mas o olhar é SEGUNDO ÁSSASSINO *
humilde. E esse mesmo castigo ele te joga,
PrIMEIRO AssAssINO * Neste momento a minha por teres sido criminoso e falso.
voz é a do rei e o olhar é meu mesmo. Tomaste o sacramento para a causa
CLaRrENcE: Que fala escura, que mortais palavras! defenderes da casa de Lencastre.
Esses olhos me ameaçam. Que se passa PRIMEIRO ÁSSASSINO *
convosco? Por que estais assim tão pálido? Como traidor, quebraste o juramento
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ARO dd 1 Cena l
Londres. Um quarto no palácio. Querida, amai Lorde Hastings; deixar que ele
Entram o Rei Eduardo, doente, a Rainha Elisabete, vos beije a mão: haja lealdade em tudo.
Dorset, Hastings, Buckingham e outros. RAINHA ELISABETE*
Hastings, eis minha mão; já não me lembro
Rer Epuarpo : Foi muito bem aproveitado o dia. de nossas dissensões: assim eu venha,
Vós, pares, continuar assim unidos. com os meus, a ser feliz.
À todo instante espero uma embaixada Rer EDUARDO : Dorset, abraça-o;
do Redentor, que deste mundo me há de Hastings, vê sempre amigo do marquês.
redimir. Mais trangjúila vai alar-se Dorser : Juro que estes protestos de amizade
minha alma para o céu, depois que eu pude serão de minha parte invioláveis.
firmar na terra a paz entre os amigos. HasriINcs: À mesma coisa eu juro.
Apertai-vos as mãos, Hastings e Rivers; (Abraçam-se.)
sede francos, jurando amor sincero. Rer EDUARDO * Agora sela o pacto, nobre Buckingham,
Rivers : Pelo céu, sinto que a alma está expungida abraçando os parentes da rainha,
de qualquer sentimento rancoroso. para que essa união me deixe alegre.
Selo com esta mão minha amizade. BuckINGHAM (à rainha) -
Hastings : Por minha dita, o mesmo afirmo e juro. Se contra Vossa Graça em algum tempo
Rer Epuarpo : Tende cuidado, para não brincardes virar seu ódio Buckingham, sem mostras
com vosso rei; se não, o que é o supremo de respeitoso amor a vós e aos vossos,
Rei dos reis vos confunde a falsidade, Deus me puna com o ódio das pessoas
determinando que vos torneis ambos de quem maior amor eu esperasse.
o motivo da morte do contrário. Quando eu tiver necessidade extrema
Hasrrncs Por minha dita, juro amor sincero. de recorrer a algum dos meus amigos,
Rivers" De todo coração, juro amar a Hastings. pondo sua amizade a toda a prova,
Rer EDUARDO : Não estás dispensada, cara esposa, falso, vazio, traiçoeiro e pérfido
também, do compromisso; nem vós, Dorset, se revele ele então. É o que a Deus peço,
nem vós, milorde Buckingham, que todos se a vós e aos vossos eu me mostrar frio.
tendes sido facciosos mutuamente. (Abraçam-se.)
sor
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Ato HH Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio. Para isso hei de assaltá-lo diariamente
Entra a Duquesa de York com o filho e a filha de com minhas orações.
Clarence. FiLHA* Farei o mesmo.
Duquesa : Quietinhos, filhos; não faleis assim.
FrLHo : Dize-nos, boa avó: papai morreu? O rei vos tem amor. Meus inocentes,
Duquesa - Não, meu filho. não podeis suspeitar quem fosse a causa
FrLHa Então por que fazeis assim com as mãos de ter vosso bom pai perdido a vida.
e no peito bateis a todo instante, FrLHo : Podemos, avozinha; que o bondoso
repetindo: Oh Clarence, infeliz filho! tio Gloster nos pôs a par de tudo,
FrLHo Por que nos contemplais dessa maneira, contando como o rei fora levado
sacudindo a cabeça, e de infelizes pela esposa a inventar falsos motivos
nos chamais, órfãos, míseros, largados, de o encerrar na prisão. Ao contar isso,
se o nosso nobre pai ainda está vivo? nosso tio chorava, lastimando-nos,
Duquesa : Estais equivocados, meus netinhos; e o rosto me beijou, sem que cessasse
choro a doença do rei, não choro a morte de dizer que eu podia confiar nele
de vosso pai; perdida fora a mágoa como num pai, porque ele me haveria
despendida por quem já está perdido. de estimar como a seu querido filho.
FrLHo : Então, avó, concluís que ele está morto. Duquesa : Como pode assumir a falsidade
É o rei meu tio o causador de tudo. forma tão delicada, o vício imundo
Deus lhe reserva o merecido prêmio. dissimulando com feições virtuosas?
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A TracéDiA DO REI RICARDO III
Ele é o vosso consolo neste transe. BuckxincHAM Ora, milorde, para que as feridas
Enterrai vossa dor na sepultura do ódio, há pouco fechadas, não se reabram
do morto Eduardo, e vossas alegrias ante um grande cortejo, o que seria
no trono colocai do vivo Eduardo. tanto mais perigoso, por achar-se
(Entram Gloster, Buckingham, Stanley, nosso Estado ainda novo e sem governo.
Hastings, Ratchiff e outros.) Quando os cavalos correm desenfreados,
GLosrER: Calma, irmã! Todos nós temos motivos tomando a direção que bem entendem,
de lastimar o triste apagamento não só o perigo, mas o medo dele,
do nosso brilhante astro. Mas tristezas é o que penso, precisam ser banidos.
não se curam com lágrimas. Suplico-vos GLosrTER* Penso que o rei fez paz com todos nós.
que me perdoeis, minha bondosa mãe; Do meu lado a promessa é leal e firme.
Rivers Do meu também e, quero crer, de todos.
mas eu não tinha visto Vossa Graça.
Mas, sendo nova a paz, é conveniente
De joelho, humilde, peço a vossa bênção.
Duquesa - Deus te abençoe e ponha-te no peito protegê-la do risco de partir-se
por excesso de gente. Eis porque faço
brandura, caridade, obediência,
meu, também, o pensar do nobre Buckingham,
fidelidade e amor.
de que deve constar de poucos membros
GLosrTER* Amém.
a comissão que for buscar o príncipe.
(À parte) - E me faça morrer depois de velho.
HasriINGS: É o que penso, também.
Eis como a bênção de uma mãe termina.
GrosrER- Então, que seja assim. E ora nomeemos
Não sei porque Sua Graça esqueceu isso.
os que vão ser enviados para Ludlow.
BuckiNGHAM : Príncipes enublados, pares tristes,
Querida mãe, e vós, minha senhora,
que o comum fardo suportais das dores: não quereis dar vossa opinião valiosa
em vosso amor recíproco alegrai-vos. sobre assunto de tanta relevância?
Conquanto esteja gasta toda a ceifa (Saem todos, com exceção de Buckingham e de Gloster.)
do nosso soberano, ainda nos resta BuckKINGHAM *
colher os frutos que promete o filho. Pouco importam, milorde, os escolhidos;
A discórdia de há pouco, abandonada mas, por amor de Deus, não nos excluamos.
por vossos corações intumescidos, Hei de encontrar ensejo, no caminho,
já agora transformada no contrário, para início do assunto combinado:
deve ser preservada com carinho. razões para afastar o jovem príncipe
Parece-me que fora conveniente da orgulhosa família da rainha.
sem demora mandar trazer de Ludlow GLosrER* Oh tu, meu outro eu, meu consistório,
o príncipe, com séquito pequeno, querido primo, meu profeta e oráculo!
para ser logo coroado em Londres. Seguirei, como criança, os teus conselhos.
Rivers: Não ficaremos; vamos para Ludlow.
Por que com pouca gente, Lorde Buckingham? (Saem.)
Ato Il - Cena HI
O mesmo. Uma rua. Acaso sabes a última notícia?
Entram dois cidadãos por lados diferentes. PrimeIRO CIDADÃO*
Já sei: o rei morreu.
PrimeIRO CIDADÃO * SecunDo CIDADÃO : Pior é impossível,
Bom dia, amigo; por que tanta pressa? pelo céu! Coisa boa ninguém conta.
SEGUNDO CIDADÃO O mundo vai virar de catrapus.
Nem eu sei mesmo a causa; é o que vos digo. (Entra o terceiro cidadão.)
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Ato IH Cena IV
O mesmo. Um quarto no palácio. Duquesa: Estou ansiosa
Entram o Arcebispo de York, o jovem Duque de York, a por ver de novo o príncipe. Desde a última
Rainha Elisabete e a Duquesa de York. vez que o vi deve ter crescido muito.
RAINHA ELISABETE*
Arcesispo* Ouvi dizer que eles dormiram ontem Dizem que não; pretendem que meu filho
em Northampton e que hoje à noite dormem York o alcançou.
em Stony-Stratford. É certo, pois, chegarem York É certo, mãe; contudo,
amanhã ou depois. preferia não ter crescido tanto.
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A TragépIA DO REI RICARDO III
Duquesa : Por quê, primo? Crescer é sempre bom. Mensaceiro * Lorde Grey e Lorde Rivers
York: Uma noite, avozinha, quando ceávamos, se acham presos em Pomfret e, com eles,
meu tio Rivers disse que eu crescia Sir Tomás Vaughan.
mais depressa que o mano. “Sim”, meu tio Duquesa: Quem deu essa ordem?
Gloster lhe respondeu, “erva pequena MENSAGEIRO *
tem graça; O joio só produz desgraça”. Os grandes Duques Buckingham e Gloster.
Desde aí não me agrada o crescimento, ArcEBIsPO* Que crimes cometeram?
que as flores perfumadas são morosas MENSAGEIRO * Já vos disse
e o joio e as outras pragas correm muito. tudo quanto sabia a esse respeito.
DuQUESA* É certo; mas o dito não se aplica Quanto às razões de terem sido presos
à pessoa que fez esse reparo. os nobres, meu senhor, não sei de nada.
Dava dó contemplá-lo quando criança. RAINHA ELISABETE*
Crescia devagar e retardado. Ai de mim! Vejo a minha casa em ruínas!
Pela regra, devera ser gracioso. O tigre já apanhou a corça tímida.
ARCEBISPO" O que, em verdade, ele é, graciosa dama. Começou a injuriosa tirania
Duquesa : Penso que sim. Contudo, as mães a atacar o inocente e fraco trono.
duvidam. Sejam bem-vindos, pois, a morte e o crime,
York Por minha fé, tivesse eu me lembrado, bem-vinda a destruição! Como num mapa,
poderia ter feito uma pilhéria já vejo desenhado o fim de tudo.
com meu gracioso tio, que saísse Duquesa : Malditos dias de agitadas lutas
muito mais acertada do que a dele. que tantas vezes estes olhos viram!
Duquesa : Qual seria ela? Dize-a, jovem York. No afã de obter o trono, o meu marido
York: Consta que o crescimento de meu tio perdeu a vida; com variável sorte,
tão depressa se deu, que após duas horas meus filhos se têm visto sacudidos
do nascimento ele morder podia para meu gáudio e minha dor, conforme
uma côdea de pão, ao passo que eu perdessem tudo, ou tudo conquistassem.
levei dois anos para ter um dente. Depois de tudo ganho, quando a rixas
À graça morderia, não, avó? domésticas já estavam removidas,
Duquesa : Quem foi que te disse isso, gentil York? eles mesmos, os próprios vencedores,
York: Ora, avó, a ama dele. a guerrear uns aos outros começaram:
Duquesa: À ama dele? Impossível, que morrera irmão com irmão, sangue com sangue, todos
antes de tu nasceres. contra si mesmos. Oh inaudito ultraje,
York: Nesse caso, fúria insensata, esse rancor aplaca,
não sei dizer de quem soube tal coisa. ou me deixa morrer para que ao menos
RAINHA ELISABETE* contemplar eu não possa a cruel morte!
Menino espirituoso! É muito fino. RAINHA ELISABETE*
ARCEBISPO * Não se zangue com ele Vossa Graça. Vamos, meu filho, procurar abrigo
RainHA ELIsABETE* Têm ouvido as paredes. nalgum lugar sagrado. Adeus, senhora.
(Entra um mensageiro.) Duquesa: Esperai um momento; irei convosco.
ArcEBIsPO * Um mensageiro! Que notícias trazes? RAINHA ELISABETE Não tendes causa.
MensaceIRO * De tal monta, milorde, que me sinto ARCEBISPO (à rainha) - Não fiqueis, senhora;
sem saber como vo-las anuncie. levai vosso tesouro e vossos bens.
RAINHA ELISABETE"* Por minha parte, o selo ora deponho
Como ficou o príncipe? nas mãos de Vossa Graça. Só desejo
MENSAGEIRO * Senhora, que o céu me trate sempre com carinho
ficou bem de saúde. tal qual o meu para convosco e os vossos.
Duquesa: Quais as novas, Vamos; levar-vos-ei para O santuário.
afinal? (Saem.)
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Ato II - Cena I
O mesmo. Uma rua. PríNciPE*
Clarins. Entram o Príncipe de Gales, Gloster, Bem-vindo, milorde Hastings. Que notícias
Buckingham, Catesby, o Cardeal Bourchier e outros. trazeis de nossa mãe? Não virá ver-nos?
Hasrinss: Só Deus sabe o motivo verdadeiro;
BuckINGHAM * vossa mãe a rainha e, junto com ela,
Sede bem-vindo a Londres, vossa câmara, vosso mano York o amparo procuraram
meu doce príncipe. de um lugar inviolável. Desejara
GLOSTER* Bem-vindo, primo, vir saudar Vossa Graça o doce príncipe;
rei dos meus pensamentos. Estou vendo mas sua mãe o dissuadiu do intento.
que a viagem vos deixou cansado e triste. BUCKINGHAM * Que ato pueril e impertinente o deles!
Príncipe" Não, tio; os desagrados muito próprios Lorde Cardeal, apraz a Vossa Graça
da viagem a fizeram cansativa, convencer a rainha de enviar logo
carregada e enfadonha. Desejara o Duque de York ao príncipe seu mano?
ver, à minha chegada, os outros tios. Ide também, Lorde Hastings, arrancai-o
GLosrTER: Meu doce príncipe, a virtude pura dos ciumentos braços da rainha,
de vossos anos não sondou ainda caso infensa ao pedido ela se mostre.
toda a maldade deste baixo mundo. CarpEAL: Se minha débil eloqiência, caro
Só distinguis os homens pelas formas milorde Buckingham, tiver prestígio
exteriores, que muito raramente, para tirar à mãe o Duque de York,
Deus o sabe, ou jamais, estão acordes contai com ele aqui dentro de pouco.
com o coração. Os tios que acabastes Mas se às minhas palavras a rainha
de reclamar vos eram perigosos. se mostrar obstinada, Deus não queira
Vossa Graça escutava os seus dizeres que eu violar possa o privilégio sacro
açucarados, mas não atendia de um santuário abençoado. Não me torno
ao veneno que no íntimo eles trazem. passível de um pecado tão monstruoso
Deus vos proteja dos amigos falsos. nem por toda a Inglaterra.
Príncipe * Deus me proteja dos amigos falsos! BuckiINGHAM Sois demasiadamente escrupuloso,
Mas falso nenhum deles me parece. milorde, muito cheio de pontinhos
GLosrER Eis, milorde, o prefeito da cidade; tradicionais, de cerimônias fúteis.
vem vos cumprimentar. Deveis pesar as coisas tendo em conta
(Entra o prefeito de Londres, com séquito.) nosso tempo grosseiro. Apoderando-vos
PREFEITO: Deus abençoe do duque, não violais nenhum santuário.
Vossa Graça e vos dê muita alegria. A Igreja só concede tal vantagem
Príncipe: Muito obrigado; a todos agradeço. a quem dela faz jus por seus princípios
Pensei que minha mãe e meu mano York normativos, ou a quem revela senso
nos desejassem ver ainda em caminho. para pedir o necessário amparo.
Oh! Como Hastings se mostra preguiçoso, Ora, não tendo o duque merecido
que não nos vem contar onde eles se acham! tal proteção, nem a ela recorrido —
(Entra Hastings.) este é o meu parecer — não pode tê-la.
Retirando-o, portanto, do santuário,
BUCKINGHAM Eis que chega, a suar, O nosso lorde.
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A Tracépia DO REI RICARDO III
que para ele o não é, não violais carta discorre a Hipocrisia, eu moralizo
de liberdade alguma ou privilégio. com termos dúbios.
De homens já ouvi falar que se acolheram Príncipe: Esse Júlio César
a lugares sagrados, não de crianças. foi um grande homem. Seu valor deu brilho
CARDEAL: Vossas razões, milorde, me convencem. ao próprio gênio, e o gênio emprestou vida
Não quereis ir comigo, milorde Hastings? sempiterna a seus feitos valorosos.
Hastings : Pois não, milorde. Não pôde conquistar a Morte o grande
PrínciPE* conquistador, que embora já não viva,
Fazei, bons lordes, toda a diligência ainda vive na fama. Desejara
possível. dizer-vos uma coisa, primo Buckingham...
(Saem o Cardeal Bourchier e Hastings,) BuckINGHAM * Quê, meu gracioso lorde?
Tio Gloster, quando o mano Príncipe: Se eu tiver vida até me tornar homem,
chegar, onde ficamos até o dia hei de reconquistar nossos direitos
de nossa coroação? sobre a França, ou morrer como soldado,
GLOSTER* Onde do agrado depois de ter vivido como rei.
for de Vossa Grandeza. Mas no caso GLOSTER (à parte) *
de me ser permitido dar conselhos, Primavera precoce vem, de regra,
um dia ou dois vossa real pessoa depois de verão curto.
repousará na Torre; com mais calma, (Entram York, Hastings e o Cardeal Bourchier.)
depois, escolhereis o melhor ponto BUCKINGHAM * O Duque de York
para a saúde e, assim, para recreio. chega a tempo.
Príncipe: De todos os lugares, o que menos Príncipe" Ricardo de York, como
me agrada é a Torre. Não foi Júlio César se sente o amado irmão?
que a construiu, milorde? York: Bem, tremendíssimo
BuckiNGHAM* Sim, gracioso senhor, que é assim que eu devo ora chamar-vos.
senhor; foi ele que lhe deu início; PríNciIPE:
mas as idades sucessivas foram Sim, mano; ao meu mau grado, como ao vosso.
as que a reedificaram. Morreu de pouco o dono desse título
PríNciIPE- Essa notícia que muita majestade a perder veio.
consta da história, ou tudo é simples lenda GLosrer: Como se sente o nobre Lorde de York,
que através das idades nos vem vindo? nosso primo?
BUCKINGHAM" York: Obrigado, gentil tio.
Consta da história, meu gracioso lorde. Oh milorde, dissestes que erva inútil
Príncipe: Mas embora, milorde, essa notícia cresce depressa. O príncipe, meu mano,
não tivesse ficado registrada, já me passou de muito em crescimento.
quero crer que a verdade passaria GLosrer: É verdade, milorde.
de um século para outro, como se ela, York: É, pois, inútil?
desse modo, ficasse dividida GLosrtER* Oh, belo primo, não direi tal coisa.
pela posteridade, até que fosse York: Ele vos é obrigado mais do que eu.
chegado o último dia. GLosrER - Como rei, ele pode me dar ordens;
GLosrTER (à parte) * Todos dizem mas vós em mim mandais como parente.
que as crianças precoces vivem pouco. York Tio, podereis dar-me esse punhal?
PríNcIPE: Gtosrer - De todo coração, pequeno primo.
Tio, que estais dizendo? Príncipe - Que é isso, mano! És um pedinte, acaso?
GLOSTER* Que ainda mesmo York: Do meu bom tio; nada ele me nega.
sem o auxílio da escrita, a fama vive Mormente coisa pouca ele não nega.
por muito tempo. (À parte.) Assim, como no teatro GrosreRr: Mas valioso presente eu vos daria.
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A Tracépia DO REI RicaRDO III
Ato HI Cena II
O mesmo. Diante da casa de Lorde Hastings. nada podendo acontecer neste último
Entra um mensageiro. que nos toque de perto, sem que logo
não venha eu a saber. Os seus receios,
MensacEIRO (batendo) - Milorde! Milorde! dize-lhe, são risíveis, não têm base.
Hasrrncs (dentro) * Quem bate? Quanto ao sonho, causou-me admiração
MensacEIRO * Alguém da parte de Lorde Stanley. vê-lo insensato a ponto de dar crédito
Hasrincs : Que horas são? às zombarias de um dormir inquieto.
MensaceIro * Quatro horas já batidas. Fugir do javali, sem que por ele
(Entra Hastings.) vistos ainda estivéssemos, é o mesmo
Hasrincs : Não poderá dormir milorde Stanley, que espicaçá-lo a vir em nosso encalço,
nesta noite tediosa?
e obrigá-lo a caçar contra a vontade.
MENSAGEIRO" Assim parece, Vai; dize ao teu senhor que me procure;
pelo que tenho a vos dizer. Primeiro,
juntos à Torre iremos, onde logo
ele se recomenda a Vossa Graça.
se certificará do tratamento
Hastings: Bem; e depois?
carinhoso que a fera nos vai dar.
MENSAGEIRO * Depois, vos comunica
MeENsacEIRO - Irei, milorde, c lhe direi tudo isso.
que esta noite sonhou que o javali
o elmo lhe derrubou. Mais; dois conselhos (Sai)
vão se reunir, diz ele, e que é possível
(Entra Catesby.)
num deles se resolva o que para ambos,
CaresBy : Muitos bons dias ao meu nobre lorde!
ele e vós, seja causa de desgosto Hasrincs : Bom dia, Catesby; acordaste cedo.
por não estardes nele. Esse o motivo Que é que há em nosso vacilante estado?
de perguntar a Vossa Senhoria Caressry: É certo, nobre lorde, o mundo oscila;
se a cavalo quereis montar com ele, sendo eu de parecer que ele só pode
já já, e a toda pressa galopar ficar firme de novo se Ricardo
na direção do norte, por fugirdes vier a usar a guirlanda da Inglaterra.
dos perigos que na alma ele pressente. Hasrincs*
HasriNGs* Amigo, volta para o teu senhor; Como! Usar a guirlanda? Com isso queres
dize-lhe que não tema os dois conselhos: referir-te à coroa?
num estou eu e Sua Honra; no outro. CATESsBY- Sim, milorde.
Catesby se acha, meu prezado amigo, Hasrrncs- Dos ombros cortar-me-ão esta coroa,
SIr
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antes, decerto, que a coroa eu veja Hasrincs : Milorde, tenho tanto amor à vida
tão vergonhosamente colocada. quanto vós, porém nunca — assim protesto —
Pensas que ele, realmente, aspira ao trono? me foi ela tão cara como agora.
CaresBy* Por minha vida, sim, estando certo Sc cu não soubesse, então, que estamos firmes,
de à testa vos achar de seu partido, poderia mostrar-me tão contente?
para poder obtê-lo. À esse respeito, STANLEY * Ao viajarem de Pomfret para Londres,
manda-vos a notícia alvissareira os fidalgos estavam muito alegres,
de que hoje mesmo vossos inimigos, considerando firme o seu estado,
os parentes e adeptos da rainha pois não tinham razão de desconfiança.
hão de morrer em Pomfret. Mas bem vedes que o dia ficou turvo.
HasriNcs* Tal notícia Tenho receio deste surto de ódio.
não me arranca lamentos, que eles todos Queira Deus não me mostre, neste passo,
sempre adversos me foram. Mas dar voto — covarde sem motivo. Então, iremos
meu voto! — aos partidários de Ricardo, à Torre? O dia já está quase gasto.
com prejuízo patente dos legítimos HasrinGs * Calma, milorde! Não sabeis o que houve?
herdeiros do meu mestre! Deus o sabe,
Serão decapitados hoje todos
jamais farei tal coisa, embora morra.
os lordes que nomeastes.
CarEsBy * Que Deus conserve Vossa Senhoria STANLEY * Sob as luzes
da lealdade, estes todos a cabeça
com tão gracioso espírito.
poderiam usar com mais direito
HasTINGS"* Mas hei de
do que o chapéu seus próprios inimigos.
rir sem parar, durante doze meses,
Mas, milorde, partamos.
por ter visto a tragédia das pessoas
(Entra um passavante.)
que junto ao meu monarca me intrigaram.
HasrTincs* Ide adiante,
Catesby, é certo: antes de ter o tempo
que eu vou falar com este camarada.
me deixado mais velho uma quinzena,
(Saem Stanley e Catesby.)
hei de outros expedir que nem suspeitam.
Então, malandro! Como vai o mundo,
CATESBY - É coisa horrível, meu gracioso lorde,
no que te diz respeito?
morrer sem que se esteja preparado.
PASSAVANTE: Bem, milorde;
Hasrincs"
principalmente por mo perguntardes.
Oh! Monstruoso, monstruoso! Isso acontece
HasrINGs - Uma coisa eu te digo: meus negócios
com Rivers, Vaughan, Grey, e o mesmo se há de
vão bem melhor agora do que quando
verificar com mais alguns sujeitos nos falamos aqui. Então, eu ia
que se julgam tão firmes quanto nós, levado para a Torre, por intrigas
nós, sempre caros, como não o ignoras, dos aliados da rainha. Mas agora —
a Buckingham e ao ínclito Ricardo. não o digas a ninguém — hoje esses mesmos
Caresey * Têm-vos em alta estima esses dois príncipes. adversários vão ser decapitados,
(À parte.) Pois a cabeça dele já contemplam e o meu prestígio está maior que nunca.
sobre a ponte de Londres. PassavANTE Deus o mantenha assim, para deleite
HasTINGS"* Estou certo de Vossa Senhoria.
disso mesmo, e mereço esse conceito. HasrINGS* Agradecido,
(Entra Stanley.) meu caro. Vai; bebe isto em meu louvor.
Entrai, amigo. E o vosso javali? (Atira-lhe a bolsa.) .
Receais o javali e andais sem armas? PAssavANTE" Deus guarde a Vossa Senhoria.
STANLEY * Hastings, bom dia; Catesby, bom dia. Adeus.
Podeis zombar; mas, pela cruz sagrada, (Sai.)
receio esses conselhos separados. (Entra um padre.)
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Papre Belo encontro, milorde; estou contente HasrINGs" Por minha fé,
por ver Vossa Honra. ao ver este santo homem, vêm-me à mente
Hasrincs* Muito agradecido as pessoas a que vos referistes.
de todo o coração, meu bom Sir John. Então, ides à Torre?
Estou vos devendo ainda algum serviço; BucxincHaM* Sim, milorde,
procurai-me no sábado para isso. mas não demoro; penso estar de volta
(Entra Buckingham.) um pouco antes de Vossa Senhoria.
BuckKINGHAM * HasTINGS : É possível, que eu penso em jantar lá.
Falais com o padre, Lorde Camareiro? BUCKINGHAM (à parte) -
E cear, muito embora a contragosto.
Dele precisam só vossos amigos
(Alto) Como é não vindes?
de Pomfret; Vossa Graça não tem nada
HasrINcs* Vou com Vossa Graça.
que ver com confissões.
(Saem.)
Ato HI Cena IV
da coroação. Em nome, pois, de Deus,
Buckingham, Stanley, Hastings, o Bispo de E, Ratdlifj; dizei quando será o real dia.
Lovel e outros, sentados à volta de uma mesa; atrás, oficiais BuckrnGHAM Tudo está pronto para o tempo real?
do Conselho. STANLEY * Sim; falta apenas indicar a data.
Exy - Para mim, amanhã é um feliz dia.
HasrrNGs : Digo-vos
8 sem rodeios, meus senhores, BUCKINGHAM *
que a causa de aqui estarmos é o problema Quem está a par do que sobre isso pensa
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Ratcliff e Lovel, incumbi-vos disso. RarcLrrr: Vamos, milorde! O duque quer cear.
Os demais, que me amarem, acompanhem-me. Confessai-vos depressa; ele está ansioso
(Saem todos, com exceção de Flastings, Ratcliff' e Lovel,)
por ver vossa cabeça decepada.
HasrinGs : Desgraçada Inglaterra! Não me queixo, Hasrrncs Oh graça transitória dos mortais,
porque eu podia ter evitado isto, que procuramos mais do que a de Deus!
mas fui um louco: Stanley viu em sonhos
Quem no ar de teus sorrisos põe as suas
que o javali lhe derrubara o casco.
esperanças, a vida passa como
Dele me ri e a salvo não quis pôr-me.
marinheiro embriagado, junto ao mastro,
Tropeçou meu cavalo hoje três vezes,
pronto, a cada balanço, a ser cuspido
três vezes empinou diante da Torre,
nas entranhas fatais do imenso abismo.
como se não quisesse carregar-me
para este matadouro. Ora preciso Love - Despachai-vos! É inútil falar muito.
Hasrincs : Ricardo sanguinário! Oh pobre pátria!
do padre que há momentos me falava;
Profetizo-te tempos ominosos,
pesa-me o que eu falei ao passavante
com ar de triunfo, sobre os meus imigos como idade infeliz alguma viu.
que hoje em Pomfret seriam massacrados Levai-me logo para o cruel cepo;
e que em favor e graça eu me encontrava. decepa-me a cabeça e ao duque a leva.
Oh Margarida, Margarida! A tua Muitos que hoje se riem do meu fado,
pesada maldição caiu agora morrerão também cedo, a seu mau grado.
na cabeça infeliz do mísero Hastings. (Saem.)
Ato HI - Cena V
Londres. O parapeito da Torre. BuckincHAaM : Lorde prefeito...
Entram Gloster e Buckingham, com armaduras GLOSTER* À ponte movediça!
enferrujadas e numa admirável desordem. BuckiNGHAM:
Ouvi: som de tambores!
GLosrTER* Vamos, primo; tremer podes, acaso, GLosTER* A muralha,
mudar de cor, interromper o fôlego Catesby! Cuidai disso.
no meio do discurso e, após, de novo, BuckincHAM:* Ao vos mandar
começar a falar uma e mais vezes buscar, lorde prefeito...
como quem estivesse delirando GLosrTER* Olha tuas costas!
transido de terror? Defende-te! São todos inimigos!
BuckincHAM* Perfeitamente, BuckiNGHAM Deus e nossa inocência nos
Sei imitar o trágico solene, protejam!
olhar atrás, espiar à volta, em grandes (Entram Lovel e Rateliff' com a cabeça de Hastings.)
discursos estirar-me, ficar trêmulo,
GLOSTER*
Calma! Calma! São nossos companheiros:
estremecer de susto por um nada,
Ratcliffe Lovel.
suspeita aventar de grande alcance.
LoveL- Vedes a cabeça
A meu serviço tenho olhares fúnebres,
daquele vil traidor, o perigoso
sorrisos contrafeitos, que executam
Hastings não suspeitado.
de grado seus ofícios a toda hora, GLosTER- Tanto afeto
porque meus planos todos favoreçam. lhe dedicava, que conter as lágrimas
Mas Catesby partiu? a esta vista é impossível. Tive-o sempre
GLosTER - Sim; mas ei-lo de volta com o prefeito. pela criatura mais veraz e inócua
(Entram o lorde prefeito e Catesby.) que respirasse em toda a cristandade.
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Fizera dele o livro em que minha alma relatarei aos cidadãos virtuosos
fixara a história de seus mais secretos como andastes corretos nesta causa.
pensamentos. Com tanta habilidade GrosreR: Pois foi para esse fim que desejamos
soube ele disfarçar seus feios vícios que Vossa Senhoria aqui estivesse,
com mostras de virtude que, tirante para evitar as críticas do mundo
seu crime demonstrado, digo, o trato sempre pronto a ajuizar pela aparência.
que ele mantinha com a mulher de Shore, BuCKINGHAM *
a coberto vivia de suspeita. Mais uma vez que, contra o nosso intento,
BuckINGHAM'* não chegastes a tempo, testemunho
Certo; foi o traidor mais resguardado dareis pelo que ouvistes sobre nossas
que já viveu. intenções nisso tudo. E ora, meu caro
Poderíeis pensar, ou crer, ao menos, lorde prefeito, aqui nos despedimos.
se por milagre, quase, não vivêssemos (Sai o lorde prefeito.)
para vo-lo contar, que este astucioso GLosrTER Vai atrás dele, corre, primo Buckingham;
traidor imaginara assassinar-nos vai a Guildhall com ele a toda pressa.
hoje, em pleno Conselho, a mim e ao nobre Chegando lá, no instante mais azado
Lorde de Gloster? alude à bastardia dos dois filhos
PrEFEITO - Intentou tal coisa? de Eduardo e conta ao povo como Eduardo
GLOSTER* mandou matar um cidadão, somente
Como! Tomais-nos por infiéis ou turcos? por haver ele dito que faria
Ou pensais que teríamos, acaso, do filho o herdeiro da coroa, sendo
ido de encontro às normas do direito que aludia tão-só à própria casa
no dar, com tanta urgência, a morte ao biltre, que, pelo emblema, assim era nomeada.
se não fosse o perigo que ameaçava Descreve mais sua bestial luxúria
nossas pessoas e até mesmo o reino sempre à procura de prazeres novos,
nos ter forçado a esse ato decisivo? que esposas atingia, filhas, servas,
PrereiTO - Que tudo vos sorria. Vossas Graças onde quer que seus olhos de rapina
fizeram muito bem em dar-lhe a morte: e o coração selvagem sem governo
é o que ele merecia. Isso há de medo achassem fácil presa. Sendo o caso,
infundir nos traidores do futuro. podes chegar até minha pessoa.
Nunca esperei coisa nenhuma dele, Conta-lhes que no tempo em que se achava
desde que se meteu com Mistress Shore. grávida minha mãe desse insaciável
BuckINGHAM:* Eduardo, combatia em França o nobre
Não queríamos que ele a morrer viesse Duque de York, o meu pai de régia estirpe,
sem Vossa Senhoria ver-lhe o fim, que à conclusão chegou, fazendo o cômputo
o que o zelo impediu destes amigos, exato das semanas, que o rebento
em parte contra nosso próprio alvitre. não podia ser dele, o que em seus traços,
Desejara, milorde, que tivésseis aliás, se patenteava, diferentes
ouvido como o biltre confessava em tudo aos do meu nobre pai, o duque.
trêmulo seus propósitos traiçoeiros, Mas tocai nisso muito pela rama,
para que aos cidadãos os repetísseis, como que de passagem, pois, milorde,
capazes, porventura, de atribuir-nos sabei-lo: minha mãe ainda está viva.
más intenções e lastimar-lhe a morte. BUCKINGHAM *
PrereITO - Mas meu caro senhor, basta-me quanto Não o duvideis, milorde, que o papel
me dissestes; é como se eu o tivesse de orador eu farei como se a paga
visto e ouvido falar. Não tenhais dúvida, de ouro, por que me bato, fosse minha.
mui nobres e leais príncipes, cu próprio E assim, milorde, adeus.
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Ato II Cena VI
O mesmo. Uma rua. o original, que em tempo igual foi feito.
Entra um copista. No entanto apenas há cinco horas Hastings
ainda vivia sem ser suspeitado,
Corisra : O ato de acusação contra o bom Lorde imaculado, livre, em liberdade.
Hastings já está copiado, uma bela Belo mundo, realmente! Quem seria
folha com letra grande, porque possa tão bronco que não visse tal embuste?
ser lido hoje em São Paulo. Agora vede Mas quem tão corajoso que o declare?
como as coisas se seguem por si mesmas. Péssimo é o mundo, e acabará em nada
Onze horas eu gastei neste trabalho, porque tamanha infâmia é tolerada.
pois Catesby me enviou ontem à tarde (Sai)
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Vai! Foge, foge deste matadouro, do que eu com a morte do meu jovem dono!”
se acrescentar não queres mais um número Mas vede! Antes que o tempo me sobrasse
aos que morreram, e fazer que eu morra para dizer a maldição de novo,
conforme a maldição de Margarida: o fraco coração senti cativo
nem esposa, nem mãe, nem soberana de suas expressões açucaradas,
da Inglaterra. tornando-me, desta arte, a própria vítima
STANLEY * Prudente é este conselho, da minha maldição, que desde essa hora
minha senhora. dos olhos me baniu todo sossego,
(A Dorset.) Aproveitai com urgência porque em seu leito nunca o orvalho de ouro
a vantagem das horas. Hei de cartas do sono me alegrou, sim pesadelos
vos dar para meu filho, apresentando-vos. me traziam desperta a todo instante,
Haveis de achá-lo a vos servir disposto; Além do mais, ele me odeia, em vista
que nada aqui vos poderá dar gosto. de ser eu filha de Warwick. É certeza
Duquesa : Oh vento portador só de misérias! desfazer-se de mim em pouco tempo.
Oh ventre amaldiçoado, leito fúnebre RAINHA ELISABETE"
que lançaste no mundo um basilisco Coitada! Adeus! Lastimo-te o destino.
de olhar fatal, de que ninguém escapa! Ana“ Como eu, de coração, lastimo o vosso.
STANLEY * Vinde, senhora; é urgente o meu recado. RAINHA ELISABETE*
ANA Sigo-vos sem vontade alguma disso. Saudadora infeliz da glória, adeus!
Oh! Se o céu permitisse que a orla de ouro Ana: Mísera, adeus, que dela te despedes!
que a fronte vai cingir-me fosse de aço Duquesa (a Dorset) -
até ao rubro aquecido, para o cérebro Vai procurar Richmond. Felicidades!
me destruir de uma vez! Mortal veneno (A Ana.) Dirige-te para onde está Ricardo.
seja o óleo sacrossanto, porque eu morra Que os anjos te acompanhem.
antes de ouvir dizer: Deus salve a rainha! (À Rainha Elisabete.) Ão santuário
RAINHA ELISABETE* te dirige, onde achar possas consolo.
Vai, coitadinha; não te invejo a glória; Eu vou para o meu túmulo, esperando
nenhum mal te deseja o meu destino. vir a encontrar repouso e paz eterna.
ANA Não! Por quê? Quando o meu presente esposo Oitenta anos vivi, em que eram presas
para mim veio, ao tempo em que eu seguia as poucas alegrias das tristezas.
o cadáver de Henrique; quando apenas RAINHA ELISABETE*
podia ter lavado as mãos do sangue Ainda um momento. Olhemos para a Torre.
daquele anjo que fora meu esposo Compaixão, pedras velhas, dos meninos
e do defunto santo que eu seguia que a inveja emparedou nos vossos muros!
desfeita em lágrimas, ao ver Ricardo Leito duro demais para os pequenos,
fiz-lhe este voto: “Sê maldito”, disse-lhe, ama áspera e selvagem, companheiros
“por de mim teres feito uma viúva velhos e taciturnos dos folguedos
velha, sendo eu tão moça. Que a tristeza, de príncipes tão moços, cuidai deles!
quando casares, te circunde o leito; Assim, de vossas pedras, como adrede,
que a tua esposa — se uma louca achares — minha louca tristeza se despede.
seja mais infeliz com a tua vida (Saem.)
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Tive um Eduardo, até ser ele morto Ricardo apenas vive, o negro agente
por um Ricardo; meu era um Henrique, do inferno, a quem foi dado o triste encargo
mas um Ricardo mo tirou dos braços; de comprar almas para o reino escuro.
um Eduardo tiveste, enquanto a morte Mas não demora, não demora! Perto
pela mão de Ricardo o não levou; já vem seu triste fim e não chorado.
um Ricardo tiveste, até que morto À terra se escancara, o inferno abrasa,
fosse por um Ricardo. os demônios regougam, rezam santos
Duquesa- Eu também tive para que ele daqui seja levado
um Ricardo; por ti foi ele morto; sem mais tardança. Oh Deus! Rasga-lhe o título
um Rutland também tive, e foste parte da existência, porque ainda eu tenha vida
na morte dele. para dizer: Morreu esse cachorro!
RarnHa MARGARIDA * Teu foi um Clarence, RarnHA ELISABETE:
também, mas morto foi por um Ricardo. Oh! Tu profetizaste que haveria
Esgueirou-se da cova de teu ventre de chegar o momento em que eu te fosse
um mastim infernal que se diverte pedir auxílio para lançar minha
caçando-nos de morte, um cão que teve maldição nessa aranha barriguda,
dentes antes dos olhos, porque ovelhas nesse sapo disforme e repugnante!
dilacerasse e lhes bebesse o sangue. RarnHa MARGARIDA
O fero destruidor da obra divina, Então, eu disse que eras tão-somente
esse tirano sem igual na terra, o fantasma da minha antiga dita,
que o império tem em olhos tumefeitos pobre sombra, rainha de pintura,
de pessoas que choram, de teu ventre arremedo do que eu havia sido,
pôde fugir, tão-só para lançar-nos lisonjeira feição de uma tragédia
na sepultura. Oh Deus, o verdadeiro dolorosa, mulher posta nos píncaros
distribuidor da celestial justiça! para ser logo derrubada,
como te sou agradecida, em vista mãe irrisória de dois filhos belos,
de devorar esse mastim os frutos um sonho do que foras, um suspiro,
do ventre de sua mãe e de obrigá-la simples bolha, uma insígnia de nobreza,
a se associar ao sofrimento alheio! pendão vistoso para ficar alvo
Duquesa - Mulher de Henrique, não te rejubiles de tiros perigosos, soberana
com a minha dor, que Deus é testemunha de brincadeira para encher a cena.
de que eu também sofri como que sofreste. Onde está teu marido? Onde os irmãos?
RarnHa MARGARIDA * Teus dois filhos? As tuas alegrias?
Perdão; eu tenho fome de vingança Quem te faz um pedido e se ajoelha,
e fico satisfeita em contemplá-la. para gritar que Deus proteja a rainha?
Morreu o teu Eduardo, que matara Os pares onde estão, que te adulavam?
meu Eduardo; morreu teu outro Eduardo, Às grandes multidões que te seguiam?
para me compensar do meu Eduardo. Relembra agora quanto foste, para
Ão lado deles, York é secundário, veres ao que desceste: em vez de esposa
que ambos muito aquém ficam da grandeza feliz, uma viúva desditosa;
da minha imensa perda. O teu Clarence em vez de mãe alegre, em desespero
que matou meu Eduardo, já foi morto, ao só nome de mãe; em vez de ver-se
bem como todos os espectadores solicitada, alguém que humilde pede;
daquela peça trágica: o falso Hastings, em vez de uma rainha, verdadeira
Vaughan, Rivers e Grey, já, prematuros, cativa coroada de cuidados;
foram lançados na sombria cova. em vez de uma criatura que me tinha
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Duquesa - Sabes que não, pelo sagrado lenho. Ricardo, vão rezar dentro de um claustro,
Tua vinda me fez da terra o inferno; não chorar sobre o trono. Não atentes,
teu nascimento foi pesado fardo; por isso, contra a vida das coitadas.
impertinente e má foi tua infância; Rei RicarDO - Elisabete, vossa filha é bela,
como escolar, terrível e selvagem, de condição real e muito digna.
ruim, furioso, bárbaro; no tempo RarnHa ELISABETE-
da adolescência, audaz e aventuroso; E vai morrer, por isso, a coitadinha?
como homem, sanguinário, cruel, hipócrita, Oh! Deixai-a viver! Vou conspurcar-lhe
orgulhoso e sutil; no ódio, mais calmo, toda a beleza e corromper-lhe os hábitos;
por isso mesmo muito mais daninho. direi que eu própria fui infiel a Eduardo;
Poderias mostrar-me uma hora, ao menos, sobre ela atirarei o véu da infâmia.
de prazer que me houvesses ensejado Porque não caia do assassino à fúria,
com tua companhia? proclamarei ser ela filha espúria.
RerRiIcARDO- Não, decerto, Rei RicaRDO-
se não for a hora de Humphrey, como era hábito Não lhe manches o berço; é de real sangue.
Vossa Graça dizer quando almoçava RarnHA ELISABETE
sem minha companhia. Mas se eu causo Para salvá-la, negarei até isso.
tão grande desconforto a vossa vista, Rer RiICARDO*
deixai que eu parta, sem vos dar desgosto. Assegura-lhe a vida o nascimento.
Tocai, tambores! RainHa ELIsABETE-
Duquesa: Porobséquio, escuta-me! Assim, seguros, seus irmãos morreram.
Rer RicaRDO : Soi muito azeda. Rer RICARDO: Foi tudo força de funestos astros.
Duquesa Uma palavra apenas. RAINHA ELISABETE-
Rer RicaRDO - Que seja! Não; inimigos maus é que o quiseram.
Duquesa - Ou morres por decreto de Deus justo, Rer RicarDO : São fatais os decretos do destino.
antes de vitorioso retornares RAINHA ELIsABETE-
desta guerra, ou, de velha e de tristeza Quando o destino pelos maus é feito.
morrerei sem tornar a ver-te o rosto. Aos meus filhos tocara pela morte,
A minha maldição, por isso, leva, se o céu te houvesse dado vida bela.
que te deixe no dia da batalha RerRicARDO-
mais cansado que o peso da armadura Dais a entender que assassinei meus primos.
que nessa hora envergares. Minhas preces RAINHA ELISABETE -
ao lado lutarão dos teus contrários; Primos, realmente, as minhas obras-primas,
as pequeninas almas dos dois filhos pelo tio privados do conforto,
de Eduardo hão de, em segredo, nos ouvidos da liberdade, da família, reino,
falar dos teus imigos, prometendo-lhes da própria vida, enfim. Fosse qual fosse
vitória e êxito pleno. Es sanguinário; a mão que lhes furasse o terno peito,
vais ter banhado em sangue o teu sudário. partiu dessa cabeça a ordem para isso,
(Sai) por caminhos tortuosos. É verdade
RAINHA ELISABETE que o cutelo assassino ficaria
Embora eu tenha muito mais motivos sem corte algum, se afiado ele não fosse
para te amaldiçoar, falta-me o espírito no coração de pedra do teu peito,
necessário; só sei dizer Amém. para orgia fazer nas tenras carnes
(Faz menção de se retirar.) das minhas ovelhinhas. Se a dor bárbara
Rer RicarDO- Senhora, uma palavra, por obséquio! com o próprio tempo não ficasse branda,
RAINHA ELISABETE- não te gritara o nome de meus filhos
Já não tenho outros filhos de real sangue sem que estas unhas encontrassem porto
que tu possas matar, que minhas filhas, para âncora lançarem nos teus olhos.
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Rer RicaRDO * Está bem; vai reunir os teus amigos. que será concedida recompensa
Mas deixa aqui teu filho Jorge Stanley. para quem o traidor me trouxer preso?
Se firme o coração não revelares, TerceIRO MENSAGEIRO *
perigo correrá a cabeça dele. Isso foi proclamado, soberano.
STANLEY * Com ele procedei como eu convosco. (Entra quarto mensageiro.)
(Sai.) Quarto MENSAGEIRO *
(Entra um mensageiro.) Dizem, milorde, que Sir Tomás Lovel
MENSAGEIRO * e o Marquês Dorset se acham em Yorkshire,
Gracioso, soberano, em Devonshire, em armas. Mas decerto Vossa Alteza
vai se alegrar, ouvindo outra notícia:
como estou informado por amigos,
a esquadra do bretão foi dispersada
estão em armas Sir Eduardo Courtney,
por temporal violento, Em Dorsetshire
o altanado prelado, Bispo de Exeter
Richmond mandou um dos batéis à praia
seu irmão, e outros muitos associados.
para inquirir dos que por lá se achassem
(Entram outros mensageiros.)
se podia contar ou não com eles.
SEGUNDO MENSAGEIRO * Responderam-lhe que eram todos homens
Meu soberano, em Kent, armados, se acham
de Buckingham, dispostos a servi-lo.
os Guildfords; sem cessar, para eles chegam Mas ele, desconfiando, fez-se à vela,
grupos frescos de novos rebelados tomando o rumo, logo, da Bretanha.
que lhes reforçam, desse modo, o exército. Rer RICARDO*
(Entra terceiro mensageiro.) Marchemos logo, enquanto temos armas;
TerceIRO MENSAGEIRO * se não para lutar contra os de fora,
As forças, meu senhor, do grande Buckingham... para em casa bater os rebelados.
Rer RICARDO" (Volta Catesby.)
Fora daqui, corujas! Cantos fúnebres CaresBy : Meu soberano, Buckingham foi preso:
é toda vossa fala? Então toma isto, essa é a notícia boa. À outra, que o Conde
(esbofeteia-o.) de Richmond, com possante contingente
para contares novas mais alegres. desembarcou em Milford, é mais fria,
TercerrO MENSAGEIRO * mas precisa ser dita sem rebuços.
O que eu vinha dizer é que por súbitas Rer RicaRrDO * Corramos logo para Salisbury.
inundações e chuvas abundantes, Enquanto conversamos, é possível
ficou disperso o exército de Buckingham que se perca ou se ganhe uma batalha.
e ele errante, por onde ninguém sabe. Providencie alguém para que Buckingham
Rei RicarDO* Então, perdoa. Toma a minha bolsa seja levado para Salisbury.
para que te refaças das pancadas. Os demais me acompanhem.
(Saem.)
Fez proclamar algum discreto amigo
que o sangue vos aspira como se ele Oxrorp: Cada consciência vale por mil homens
fosse lavagem suja, e em vossos troncos para lutar contra o homicida horrendo.
estripados constrói o imundo cocho: HerBERT* Não duvido de que seus partidários
esse porco monstruoso se rebolca nos virão procurar.
presentemente bem no centro da ilha, BLUNT": Seus partidários
na cidade de Leicester, segundo
só o são forçados pelo medo. No auge
com certeza o soubemos. De Tamworth
da precisão, sozinho há de encontrar-se.
até lá é um só dia de caminho.
Em nome, pois, de Deus, bravos amigos, RicHmonp- Só temos a lucrar. Com Deus, avante!
por meio desta sanguinosa prova Veloz como a andorinha é a fé, eu o sei:
de um áspero combate, preparemo-nos de reis faz deuses, de um campônio, um rei.
para a colheita de uma paz durável. (Saem.)
Ato V - Cena HI
Campo de Bosworth. (No outro lado do campo entram Richmond, Sir William
Entra o Rei Ricardo, com tropas; o Duque de Norfolk, o Brandon, Oxford e outros oficiais. Alguns soldados armam
Conde de Surrey e outros. a tenda de Richmond.)
RicHMoOND * O sol cansado teve ocaso de ouro
Rei RicarDO: Neste lugar armai a tenda: aqui, e pelo rasto claro de seu carro
no campo de Bosworth. Milorde Surrey, flamejante promete um belo dia.
por que vos mostrais triste? Sir William Brandon, lévareis meu lábaro.
SURREY* Vinte vezes Papel e tinta me trazei à tenda,
mais leve tenho o coração que o rosto. para eu traçar o plano de batalha,
Rei RICARDO" determinar a cada um seu posto
Milorde Norfolk... e distribuir nossa pequena força
NorroLK* Aqui estou, meu príncipe! com justa proporção. Milorde de Oxford,
Rei RicarDO * Que te parece? Vamos ter, decerto, Sir William Brandon, vós, Sir Walter Herbert,
pancadaria grossa. ficai comigo. Com seu regimento
NoRrroLK* Sim, havemos
fica o Conde de Pembroke. Bondoso
de dar e receber, meu soberano.
Capitão Blunt, por mim dai-lhe boa noite
Rei RICARDO Armai a tenda! Aqui dormirei hoje.
e lhe dizei que na segunda hora
(Os soldados começam a armar a tenda.)
da manhã ele deve procurar-me.
E amanhã? Pouco importa? Quem já sabe
Mais uma coisa, capitão, dizei-me:
qual o número certo dos traidores?
sabeis da posição de Lorde Stanley?
NorroLk* Ào todo seis ou sete mil, se tanto.
BLUNT:
REI RICARDO:
Se eu não me equivoquei com suas cores —
Temos, então, três vezes mais do que isso.
o que é quase certeza não ter feito —
Depois, o nome “Rei” é um burgo forte
com que não contam nossos adversários.
seu regimento a meia milha se acha,
Vamos, à tenda! Vinde, gentis-homens, para o sul, quando muito, das reais forças.
vejamos as vantagens do terreno. RicHmonp Se for possível vê-lo sem perigo,
Chamai pessoas de provado senso. bondoso capitão, de minha parte
Transmiti ordens; ninguém fique ocioso, lhe dai este papel; é caso urgente.
que amanhã vai ser dia trabalhoso. BLunr: Fá-lo-ei, por minha vida. E assim, milorde,
(Saem.) Deus vos conceda uma trangúila noite.
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A Tracépia DO REI RicaRrDO III
RicHmonp: Boa noite, caro Blunt. E ora, senhores, RarcLirr: Sim, milorde.
passemos à consulta dos negócios Rer RicarDo : Deixa-me, e recomenda à sentinela
de amanhã. Minha tenda à mão se encontra; que faça boa guarda. Em meio à noite,
o ar aqui fora está cortante e frio. Ratcliff, retorna à minha tenda, para
(Entram para a tenda.) me ajudares a armar-me. Sai, já o disse.
(Ricardo entra para a sua tenda, com Norfolk, Ratdliff e (O Rei Ricardo se retira para a sua tenda.
Catesby.) Saem Ratcliff'e Catesby.)
RerRicARDO* (Abre-se a tenda de Ricbmond, deixando vê-lo
Que horas já são? com seus oficiais.)
CATESBY* Milorde, é hora da ceia: (Entra Stanley.)
são nove horas. STANLEY *
Rer RicarDo - Não quero cear hoje. Que a sorte e o triunfo no elmo se te aninhem.
Dá-me papel e tinta. RICHMOND
Minha viseira corre facilmente? Meu nobre sogro, almejo-te o conforto
À armadura na tenda já foi posta? que possa conceder-te a negra noite.
CarEsBy : Perfeitamente; tudo está de jeito. E a nossa cara mãe, como se encontra?
Rer RICARDO STANLEY: Tenho procuração para abençoar-te .
Assume, meu bom Norfolk, o teu posto; da parte dela que, sem pausa, reza
cuida da guarda; escolhe bons vigias. pela prosperidade de Richmond.
NorroLK* Pois não, meu soberano. Quanto a isso, basta. As horas silenciosas
Rer RicaRDO - Levanta-te amanhã com as cotovias, deslizam e o negrume floconoso
gentil Norfolk. se esbate no nascente. Resumindo,
NorroLK* Prometo-o, soberano. que o tempo não nos deixa ser prolixos:
(Sai) dispõe teus homens para amanhã cedo
Rer RicarDO * Ratcliff! e entrega à decisão dos rubros golpes
Rarcurrr : Milorde? e à guerra de fatais e fixos olhos
Rer RiCARDO* Manda um passavante de armas toda tua fortuna. Do meu lado,
dizer a Stanley, em seu regimento, quanto me for possível — que não posso
que antes de o sol nascer traga seus homens; fazer tudo o que quero — hei de esforçar-me
do contrário, cairá seu filho Jorge por enganar o tempo e para ser-te
na cova cega da eternal caligem. de vantagem no embate duvidoso.
Dá-me um copo de vinho... Traze um facho. Mas não posso mostrar-me diligente
Sela para amanhã meu Surrey branco. para te socorrer, que, se for visto,
Vê o estado das lanças; todas devem Jorge, teu terno irmão, executado
ser resistentes, mas sem muito peso. será à vista de seu próprio pai.
Ratcliff! Passa bem; o vagar e o tempo incerto
Rarcuirrr: Milorde? não nos permitem mostras afetuosas
Rer RICARDO* Viste, acaso, o melancólico nem troca demorada de palavras
Lorde Northumberland? agradáveis, tal como é de costume
RaATCLIFE* Vi-o, em pessoa, entre amigos, há muito, separados.
junto com o Conde Surrey, à tardinha; Deus nos conceda tempo para os ritos
iam de tropa em tropa, percorrendo da amizade. Mais uma vez: adeus!
todas as filas, a animar os homens. Não esmoreças e conquista a glória.
Rer RICARDO * Isso me deixa alegre. Dá-me vinho. RicHmonp : Lordes, reconduzi-o às suas tropas.
Não sinto a alacridade costumeira, Não obstante os cuidados que me afligem,
nem a coragem de antes... Deixa aí!... vou procurar dormir um pouco, para
E o papel, já está pronto? sobre mim não pesar o plúmbeo sono,
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quando raiar o dia em que é forçoso Que os anjos te protejam. Vive e cresce!
que eu me libre nas asas da vitória. (Aparecem os espectros de Rivers, Grey e Vaughan.)
Mais uma vez, boa noite, caros lordes. EspecTRO DE RivERS (40 Rei Ricardo) *
(Saem todos, menos Richmond.) Amanhã pesarei sobre tua alma!
Oh tu, de quem eu me confesso simples Fala-te Rivers, por ti morto em Pomfret.
capitão, lança a vista compassiva Enche-te, pois, de desespero, e morre!
para os meus homens! Dá que eles manejem Especrro DE GREY (ao Rei Ricardo) -
os destruidores ferros de tua cólera, Pensa em Grey e que tua alma desespere!
porque amassar consigam com seus golpes EspeCTRO DE VAUGHAN (40 Rei Ricardo) -
os orgulhosos elmos dos imigos! Pensa em Vaughan com medo criminoso
Usa-nos como meio de castigo e cair deixa tua lança romba!
porque em tua vitória te exaltemos! Enche-te, pois, de desespero, e morre!
Entrego-te minha alma vigilante Os Três Especrros (a Richmond) *
ao cerrar as janelas destes olhos. Desperta e pensa que por ti combate
Que eu durma e vele... Oh! Não me desampares! no peito de Ricardo o que sofremos.
(Dorme.) Desperta e sê o vencedor do dia!
(O espectro do Príncipe Eduardo, filho de Henrique VT, (Aparece o espectro de Hastings.)
aparece entre as duas tendas.) EspecTRO (40 Rei Ricardo) -
Esrpecrro (40 Rei Ricardo) - Sanguinário e culpado, acorda em culpa
Amanhã pesarei sobre tua alma! e em batalha sangrenta acaba os dias.
Relembra a punhalada que me deste Pensa em Lorde Hastings, desespera e morre!
em Tewksbury, no albor da mocidade. (A Richmond.) Alma trangúila, acorda, e nesta guerra
Enche-te, pois, de desespero, e morre! mostra-te O braço forte da Inglaterra!
(A Richmond.) Alegra-te, Richmond, porque (Aparecem os espectros dos dois jovens príncipes.)
[combatem EspecTROS (40 Rei Ricardo) -
de teu lado os espíritos dos príncipes Sonha com teus dois primos asfixiados
mortos injustamente antes do tempo. na Torre! Como chumbo pesaremos
Filho do Rei Henrique eu sou; coragem! em teu peito, Ricardo, para a ruína
(Aparece o espectro do Rei Henrique VL.) te obrigar a baixar e para a morte.
EspecTRO (ao Rei Ricardo) * Falam-te as almas de teus dois sobrinhos;
O corpo ungido, em vida, me crivaste enche-te, pois, de desespero, e morre!
de feridas mortais. Pensa na Torre; (A Richmond.) Dorme, Richmond, em paz e acorda
enche-te, pois, de desprezo, e morre! [alegre!
(A Richmond.) Santo e virtuoso, vence! O mesmo Que os anjos te protejam do javardo!
[Henrique Vive e dá nascimento a florescente
que predisse que havias de ser rei, casa de sangue real. Os infelizes
no sono ora te anima. Vive e cresce! filhos de Eduardo querem que prosperes.
(Aparece o espectro de Clarence.) (Aparece o espectro de Lady Ana.)
EspecTRO (ao Rei Ricardo) * EspECTRO (40 rei Ricardo) -
Amanhã pesarei sobre tua alma, Ricardo, tua esposa, a desgraçada
eu, que fui afogado em vinho infame, Ana, tua esposa que, jamais, uma hora
pobre Clarence, que entregaste à morte. pôde junto de ti dormir tranquila,
Pensa em mim na batalha de amanhã com pesadelos ora te enche o sono.
e cair deixa a tua espada romba. Pensa em mim na batalha de amanhã
Enche-te, pois, de desespero, e morre! e cair deixa a tua espada romba.
(A Richmond.) Salve, broto a casa de Lencastre! (A Richmond.) Alma trangúila, dorme um sono
Rezam por ti os ultrajados Yorkes. [calmo.
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Sonha com a glória, a paz seja contigo, piedade de mim próprio? Pareceu-me
que por ti reza a esposa do inimigo. que à minha tenda tinham vindo as almas
(Aparece o espectro de Buckingham.) de quantos eu matei e que elas todas
EspecrTRro (ao Rei Ricardo) - prometiam lançar dura vingança
Fui o primeiro a te elevar ao trono, amanhã na cabeça de Ricardo.
o último a te provar a tirania. (Entra Ratclifj)
Oh! Durante a batalha pensa em Buckingham Rarcuirrr: Milorde!
e morre no terror de tua infâmia. Rer Ricarpo - Quem está aí?
Sonha com sangue, com traições e morte, RarcLirr: Sou eu, milorde,
sem que na vida encontres mais suporte. [Ratcliff.
(A Richmond.) Morri sem te poder ser ajudante. o matutino galo do povoado
Não reveles temor; luta confiante. a aurora já saudou por duas vezes.
Estarão Deus e os anjos ao teu lado; De pé, vossos amigos se preparam.
Ricardo vai cair presa do fado. Rei RICARDO
(Desaparecem os espectros; o Rei Ricardo acorda Oh Ratcliff! Eu sonhei um sonho horrível!
Sobressaltado.) Que pensas? Estarão eles conosco?
Rei RICARDO Rarcuirr: Sem dúvida, milorde.
Outro cavalo, outro cavalo! Os golpes Rer RICARDO“ Oh! temo... temo...
me pensai! Meu Jesus, tende piedade! RarcLrrr- Não reveleis, senhor, medo de sombra.
Devagar! Devagar! Foi tudo sonho. Rer RiCARDO*
Oh consciência covarde, tu me assustas! Sim, por São Paulo Apóstolo, esta noite
Azul a chama se acha; é meia-noite, sombras lançaram na alma de Ricardo
hora mortal. Um suor frio escorre-me muito mais medo do que poderiam
pelos trêmulos membros. Como! Medo? fazê-lo mil soldados aguerridos
Medo de quê? Não há ninguém por perto. sob o comando do imbecil Richmond.
Ricardo ama Ricardo; eu sou eu mesmo. Ainda é noite. Vem; saiamos juntos.
Haverá aqui dentro um criminoso? Vamos ficar de escuta junto às tendas
Não... Sim: eu próprio. Então, foge depressa. para saber se alguém pensa em trair-nos.
Mas, fugir de mim mesmo? Justifica-se: (Saem.)
poderia vingar-me. Como! Eu próprio (Ricbmond desperta; entra Oxford e outros.)
de mim tomar vingança? Amo-me muito. LorpEs : Bom dia, Richmond!
Por quê? Por algum bem que eu me fizesse? RicHmonp : Peço perdão, zelosos gentis-homens,
Oh, não! Antes me odeio, por odiosas por terdes surpreendido um dorminhoco.
ações que eu pratiquei. Sou um miserável! LorDEs - Dormistes bem, milorde?
Minto; não o sou. Não digas, tolo, coisas RicHmonp- Desde a vossa saída, meus senhores,
feias de ti! Oh tolo, não te adules! tive o mais doce sono, os mais risonhos
De mil línguas distintas é dotada e promissores sonhos que podiam
minha consciência; uma por uma, as línguas, penetrar num espírito cansado.
conta uma história à parte, e todas elas Pareceu-me que as almas cujos corpos
me chamam miserável. O perjúrio Ricardo assassinara, tinham vindo
em seu mais alto grau, crimes horrendos à minha tenda me gritar: Vitória!
em seu mais alto grau, todos os crimes O coração, afirmo-o, ora se encontra
nos mais variados graus, me gritam do alto jucundo à só lembrança desse sonho.
do tribunal: Culpado! Criminoso! À quanto estamos da manhã, milordes?
Desespero; criatura alguma me ama. LorpES Prestes a bater quatro.
Se eu morrer, nenhuma alma há de chorar-me. RICHMOND '
Aliás, por que o fariam, se eu não tenho Tempo é de nos armarmos e ordens darmos.
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shakespearebrasileiro.org WILLIAM SHAKESPEARE
(Oração de Richmond aos soldados.) RarcLirr : Que desconhece quanto à guerra toca.
Além do que eu vos disse, compatriotas, Rer RICARDO*
me impede ora falar-vos a premência Falou a verdade. E Surrey, que lhe disse?
do tempo e as circunstâncias. Fervorosas RarcLirr: Sorrindo, acrescentou: “Melhor assim”.
preces de santos e de violentadas Rei RICARDO"
almas à nossa frente se levantam Ele está com a razão; é assim, de fato.
como fortes baluartes. Se excetuarmos (O relógio bate horas.)
Ricardo, os que no campo oposto se acham Soam horas... Trazei-me um calendário.
preferem que tenhamos a vitória Quem já viu hoje o sol?
a dá-la ao que eles seguem. Pois que espécie RATCLIFF* Eu não, milorde.
de chefe é que eles seguem? Gentis-homens, Rer RICARDO: É que ele, então, a aparecer se nega;
um assassino e um tirano sanguinário, porque, pelo almanaque, já devia
que subiu pelo sangue e pelo sangue há uma hora ter surgido no nascente.
se firmou, que lançou mão dos recursos Para alguém será negro o dia de hoje.
mais vis para chegar onde ora se acha, Ratcliff!
e que sacrificou seus auxiliares, Rarcurrr: Milorde?
horrível pedra sem valor, tornada Rei RICARDO * Não veremos hoje o sol.
preciosa tão-somente pelo engaste O céu se adensa sobre os nossos homens;
do trono da Inglaterra que ele usurpa, quisera que essas lágrimas de orvalho
declarado inimigo de Deus grande. viessem da terra. Não haver sol hoje!
Se fordes contra o imigo de Deus grande, Mas por que para mim será mais grave
Deus, em sua justiça, há de amparar-vos, do que para Richmond? O mesmo céu
por serdes seus soldados. Se suardes que para mim se mostra carrancudo,
para depor o monstro, heis de ter sono lança sobre ele olhares também tristes.
sossegado, uma vez morto o tirano. (Entra Norfolk.)
Se os imigos da pátria combaterdes, NorroLk: Milorde, às armas! O inimigo avança!
tereis a recompensa das canseiras Rer RiCARDO*
no bem-estar da pátria. Se lutardes Vamos, depressa! Aprontem meu cavalo!
para as esposas libertar, por elas Dizei a Lorde Stanley que nos traga
sereis saudados como vencedores seus contingentes. Levarei meus homens
de volta a vossos lares. Se livrardes para a planície. Assim vou distribuí-los:
da espada vossos filhos, vossos netos disporei a vanguarda numa linha,
vos darão na velhice a recompensa. partes iguais de peões e de cavalos;
Em nome, pois, de Deus e do Direito os archeiros no centro serão postos.
desfraldai as bandeiras, empunhando João, Duque de Norfolk, e Tomás,
vossas espadas prestes. O resgate Conde de Surrey ficarão com o mando
desta minha audaciosa tentativa desses homens de pé e de cavalo.
consistirá em dar o frio corpo Desse modo disposto, seguiremos
à terra também fria. Mas no caso com o corpo principal, cuja potência
de eu sair vencedor, heis de ter todos reforçada será de cada lado
vossa parte nos lucros deste dia. pela nossa melhor cavalaria.
Clarins, tambores, eia! Para a glória! São Jorge nos proteja. Que achas, Norfolk?
Deus e São Jorge! Richmond e vitória! NorroLk: Plano excelente, belicoso príncipe.
(Saem.) Encontrei isto, cedo, em minha tenda.
(Voltam o Rei Ricardo, Ratcliff, auxiliares e soldados.) (Dá-lhe um papel enrolado.)
Rer RICARDO* Rer RicARDO*
Northumberland que disse de Richmond? “Tóquei de Norfolk, sê mais precavido,
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shakespearebrasileiro.org A Tracépia DO Rei RicARDO III
porque teu mestre Dick está vendido.” pobres ratos famintos! — se não fosse
Não passa de invenção dos inimigos. terem sonhado com esta bela empresa.
Ide, senhores, para os vossos postos. Se tivermos de ser hoje vencidos,
Não nos perturbem a alma nossos sonhos que o sejamos por homens, não por esses
faladores. Consciência é uma palavra ' bastardos da Bretanha, que se viram
que os covardes empregam, inventada por nossos pais batidos em seu próprio
para infundir temor nos homens fortes. país, espezinhados, amassados
Seja nossa consciência o braço forte; e herdeiros se tornaram de vergonha.
nossa lei, as espadas. Eia, avante! Essa gente virá a ficar de posse
Juntos conquistaremos nome eterno, do que é nosso? Tomar-nos as esposas?
ou baixaremos juntos para o inferno. Desonrar-nos as filhas?
(Sua oração para os soldados.) (Tambores, ao longe.)
Que vos direi, além do que já disse? Atenção!
Pensai em quem tereis de dar combate: Ouço os tambores deles! Gentis-homens
da Inglaterra, ao combate! Para a luta,
um bando de velhacos, vagabundos,
valorosos campônios! Pontaria,
desertores, a borra da Bretanha,
meus archeiros! Visai-lhes as cabeças!
vis lacaios do campo, vomitados
Metei esporas nos cavalos árdegos!
pelo país saciado, para a todos
Atolai-vos em sangue; estupefacto
destruir com jogá-los nesta empresa.
deixai o céu com os cotos dessas lanças!
Dormíeis calmamente; eles vos trazem
(Entra um mensageiro.)
somente inquietação. Possuís terras,
Que disse Lorde Stanley? Traz seus homens?
tendes belas esposas; eles querem MensaceIRrO * Milorde, ele se nega a obedecer.
tomar-vos umas, desonrar as outras. Rer RicaRDO * Fora a cabeça de seu filho Jorge!
Quem lhes serve de chefe? Um ser risível, NorroLk- Milorde, o imigo já passou o pântano;
desde muito criado na Bretanha deixai a execução de Jorge Stanley
a expensas da Inglaterra idolatrada, para depois do encontro e da vitória.
um fracalhão que nunca, em toda a vida, Rei RICARDO"
sentiu mais frio do que o dos sapatos, Mil corações me pulsam no imo peito.
quando a neve os recobre. Eia! Obriguemos Às bandeiras à frente! Aos inimigos!
essa corja a cruzar de novo os mares, Que o nosso antigo grito de combate:
metamos o chicote na canalha “Por São Jorge!” a coragem nos insufle
da França, esses mendigos esfaimados, dos dragões ardorosos. Vamos! À eles!
fatigados da vida, que enforcado Paira a vitória sobre os nossos elmos!
se teriam, decerto, por penúria — (Saem.)
Ato V - Cena IV
Outra parte do campo de batalha. Mataram-lhe o cavalo; a pé combate.
Alarma. Movimento de tropas. Entra Norfolk, com Anda à procura de Richmond té mesmo
tropas. Catesby corre ao seu encontro. na garganta da morte. Vinde logo,
meu caro lorde, ou tudo está perdido.
CaTESsBY * Vinde em socorro, caro Lorde Norfolk! (Alarma. Entra o Rei Ricardo.)
O rei realiza coisas sobre-humanas Rer RicaRrDO : Um cavalo! Um cavalo! Dou meu reino
sem temor enfrentando os inimigos. por um cavalo!
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shakespearebrasileiro.org WiLLiaM SHAKESPEARE
Não podemos ter certeza de quando a peça foi escrita. Uma performance
aconteceu em 28 de Dezembro de 1594, em Gray’s Inn, um dos salões da Corte, ante
uma desregrada plateia de advogados, estudantes de direito e seus convidados. Esta não
foi, provavelmente, a primeira performance, entretanto. Alusões tópicas oferecem dicas
de uma data anterior. Quando Drômio de Siracusa fala da França como “armada e
revertida, fazendo guerra contra seu herdeiro” (3.2.123-4), claramente refere-se à
oposição da Liga Católica a Henrique de Navarra, que era o aparente herdeiro ao trono
Francês até 1593, quando tornou-se rei. Outra alusão, ao envio Espanhol de “armadas
inteiras de galeões” (linhas 135-6), possivelmente perdeu seu ponto cômico logo após a
Invencível Armada de 1588. O estilo da peça, caracterização e construção imitativa são
todos consistentes com uma data entre 1589 e 1593.
Qualquer que seja a data exata, a fascinação jovial de Shakespeare por Plauto é
manifesta. A compreensão de Shakespeare do latim, apesar de debochada por Ben
Jonson, era, sem dúvida, boa o suficiente para permiti-lo ler Plauto com prazer. Ele deve
ter exercitado Latim por anos como estudante na cidade de Stratford-upon-Avon. De
fato, a influência não somente de Plauto, mas também de Ovídio e Sêneca (juntos com
toques de Horácio, Catulo, etc.) é uma característica eminente dos primeiros trabalhos
de Shakespeare, dramáticos e não-dramáticos. Shakespeare pode ter consultado Plauto
no original e em uma tradução contemporânea, como era, frequentemente, seu costume
com fontes não-Inglesas. Das edições da Renascença em Latim de Plauto, ele
aparentemente tomou a estranha designação “Antipholis Sereptus” (isto é, “surreptus”,
retirado), que aparece no texto do Fólio, em uma direção de palco em 2.1.0, para indicar
o gêmeo que separou-se de seu pai. Por outro lado, uma tradução de Menaechmi por
“W.W.” (? William Warner), publicada em 1595, foi registrada em 1594 e podia estar
disponível anteriormente para Shakespeare em manuscrito.
Essas unidades de tempo e espaço são questões mecânicas, mas elas também
harmonizam-se com uma unidade de ação mais essencial. A história move-se, como que
em perfeito acordo com a teoria neoclássica dos cinco-atos, da exposição e complicação
ao clímax, anagnórise (descoberta) e peripateia (reverso da fortuna). A genialidade do
enredo é decisivamente de Plauto. Shakespeare força para os seus limites as
interconexões dos desentendimentos cômicos, somente para desembaraçar todos esses
nós aparentemente firmes com facilidade. Porém, a imitação de Plauto, mesmo em
matéria de construção, não é de forma alguma sem criatividade, pois Shakespeare
empresta de Plauto ambas a farsa sobre a identidade equivocada dos gêmeos
(Menaechmi) e da comédia mais conhecida de Plauto (Amphitruo), na qual um marido e
seu servo são excluídos de sua própria casa, enquanto um visitante disfarçado usurpa o
papel do mestre. Essas adaptações e rearranjos ingênuos eram comuns entre os
dramaturgos neoclássicos como Ludovico Ariosto, e, apesar de Shakespeare não ter,
aparentemente, utilizado qualquer análogo do século dezesseis dessa peça, ele revela
familiaridade com a comédia neoclássica e uma habilidade de competir com o melhor
que a Europa poderia oferecer nessa área. Essa versatilidade é notável num dramaturgo
jovem que irá revelar-se com o tempo bem menos neoclássico do que um escritor nativo
Inglês. Ademais, mesmo que seu treinamento neoclássico auto-imposto tenha sido
apenas um aprendizado, esse provou-se inestimável para Shakespeare. Apesar de sua
tendência posterior no sentido de um enredo “romântico” – no sentido da descrição de
ações múltiplas estendendo-se por espaços amplamente separados e diferentes períodos
de tempo – as maiores comédias de Shakespeare continuam a apontar no sentido da
mesma resolução gratificante do conflito dramático em uma resolução simples e bem-
estruturada.
Por toda sua habilidade de concepção Plautina, A Comédia dos Erros é bem
distante de The Menaechmi, em tom e espírito. Não há resquícios do cinismo, da dureza
satírica e do tom amoral do original Romano. Os personagens, apesar de ainda
reconhecidos como tipos, são humanizados. O familiar parasita Plautino é totalmente
excluído. O usual servo esperto felizmente torna-se os gêmeos Drômios. O doutor
charlatão de Plauto, Médicus, é hilariamente transposto para Dr. Pinch, um professor
pedante. O papel do cortesão não é mais proeminente. Em vez disso, Shakespeare cria
Luciana, a irmã virtuosa de Adriana, que defende à causa de contenção no casamento e
que eventualmente torna-se noiva de Antífolo de Siracusa. A Comédia dos Erros não
termina, como a maioria das comédias posteriores de Shakespeare, com um desfile de
casais no altar, mas o casamento de Antífolo e Luciana é, pelo menos, um importante
passo nessa direção. Além disso, ficamos sabendo de outro casamento ainda por
acontecer – aquele de Drômio de Éfeso com Luce, a serva da cozinha. Essa paródia
comum de afeição casamenteira é inteiramente Inglesa em caráter e relembra um
espelhamento da corte entre os servos cômicos de Fulgens and Lucrece (cerca de 1497),
de Henry Medwall. O motivo não é suficientemente enfatizado para não ameaçar à
unidade no enredo principal, mas a potencialidade de um enredo duplo é evidente.
Contido dentro dessa estrutura de loucura e vigília há um lúdico, ainda que sério,
exame das dinâmicas da corte e do casamento. As duas mulheres mais importantes da
peça são significativamente pareadas e contrastadas. Adriana, a esposa rabugenta,
inquieta-se perante os costumes sociais que permitem seu marido Antífolo vagar no
exterior enquanto ela permanece domesticamente confinada. A sua irmã solteira,
Luciana, endossa a visão tradicional que o marido detém precedência, encontrada em
todos os lugares na natureza: homens “são mestres de suas fêmeas, e seus lordes”
(2.1.24). O que Luciana chama de obediência (linha 29), sua irmã casada chama
“servidão” (linha 26). Quem está certa? O debate, deixado sem resolução, entretanto
levanta questões céticas em relação às hierarquias do casamento. O enredo também
prova e testa através de fantasias de inversão. Uma esposa, acreditando ser rejeitada por
ter envelhecido em sua obediência no casamento, tranca seu marido para fora de casa e
janta com um estranho. Luciana, nesse ínterim, é cortejada pelo que parece ser seu
cunhado e assim deve encarar um conflito entre desejo e lealdade a sua irmã. É claro,
Adriana não sabe que está invertendo à autoridade, ao excluir seu marido de seu próprio
lar, mas o enredo das identidades equivocadas permite-a agir fora de seu autocontrole
sem ser, de fato, culpada de deslealdade. O papel do seu marido é o de interpretar o
homem errante e ser eventualmente perdoado por sua esposa; presumivelmente, sua
exposição no Ato 5 o fará um marido mais tolerante, como o Conde Almaviva no O
Casamento de Fígaro, de Mozart. A descoberta das identidades no Ato 5 permite a
Luciana casar-se com o homem que ela aprendeu a amar, mas sem a culpa da sua
experiência fantasiosa. Os valores patriarcais são restaurados na conclusão da peça,
apesar de os parceiros no amor e no casamento terem sido, até um certo ponto, liberados
pelos seus papéis num enredo de metamorfoses. Essas questões sobre as relações
domésticas serão exploradas posteriormente em A Megera Domada, Otelo, e outras
peças.
O humor em relação à ilusão não deve ser sobre-enfatizado, pois a peça gasta a
maior parte de suas energias na farsa. Os Drômios, com seus incessantes castigos, são
frequentemente o centro de interesse na performance, merecidamente. Shakespeare não
emprega nenhum manipulador de ilusão por detrás das cenas, assim como Puck em
Sonho de uma Noite de Verão ou o Duque em Medida por Medida. Seu interesse na
metáfora do mundo como um palco é discernível apenas como um indicativo da
grandeza que virá. Entretanto, as alterações que Shakespeare faz de Plauto, amplamente
revelam à direção filosófica e idealista que sua comédia posterior tomará.
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Personagens
Sozino, duque de Éfeso. Um segundo mercador, de quem Ângelo é devedor.
Egeu, mercador de Siracusa. PrncH, mestre-escola e exorcista,
EmíLa, esposa de Egeu, abadessa em Éfeso.
ANTÍFOLO DE ÉFESO gêmeos, filhos de Egeu ADRIANA, esposa de Antífolo de Éfeso.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA e de Emília. LucIANA, sua irmã.
Lúcia, criada de Adriana.
Drômio DE Éreso gêmeos, criados dos dois Uma cortesã.
Drômio pr SirRAcUSA | Antífolos. O carcereiro, oficiais de justiça e gente do séquito.
BALTASAR, mercador.
ÂNGELO, ourives. Cena
Um mercador, amigo de Antífolo de Siracusa. Efeso
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Atol
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* Cenal
Uma sala no palácio do duque. de que meu triste fim não foi causado
Entram o duque, Egeu, carcereiro, oficiais e séquito. por falta vergonhosa, mas por puro
sentimento paterno, vou dizer-te
Eceu - Vamos, Solino; apressa a minha queda; quanto me permitir minha tristeza.
de mim, com a morte, este martírio arreda. Nasci em Siracusa, onde uma esposa
Duque: Cala-te, mercador de Siracusa; soube escolher, que em mim teria achado
parcial não posso ser no que respeita toda a felicidade, como eu nela,
à aplicação da lei. A inimizade se não nos fosse adverso o duro fado.
e a luta decorrente dos ultrajes * Vivíamos felizes; em aumento
inomináveis que, de pouco, o vosso ia nossa fortuna, por frequentes
duque infligiu aos nossos compatriotas, e frutuosas viagens que a Epidamno
honrados mercadores que, por falta costumava eu fazer. Mas o trespasso
de florins com que as vidas resgatassem, do meu feitor, na obrigação premente
selaram seus decretos ominosos me pôs de dirigir os bens dispersos,
com o próprio sangue, excluem qualquer réstia dos braços carinhosos me arrancando
de piedade de nosso olhar terrível. de minha terna esposa. Minha ausência
Desde os mortais conflitos intestinos,
não durara seis meses, quando — quase
surgidos entre os vossos compatrícios desfalecida pela doce pena
sediciosos e nós, foi decretado da herança feminina — ela já tinha
em sínodos solenes, não só pelos tomado todas as medidas, para
siracusanos como por nós próprios,
se me juntar, havendo sã e salva
que não se admitiria nenhum tráfico
chegado onde eu me achava. Muito tempo
entre as duas cidades inimigas.
não se passou sem que ela se tornasse
Mais, ainda: se alguém, nascido em Éfeso,
mãe de dois belos filhos, de tal modo
em feiras ou mercados fosse visto
parecidos — oh fato extraordinário! —
de Siracusa, ou, ainda, se um nativo
que só se distinguiam pelos nomes.
siracusano viesse ter ao porto
de Éfeso, morreria e seus bens todos
Na mesma hora, na mesma hospedaria,
seriam confiscados pelo duque, uma mulher do povo de igual fardo
a menos que mil marcos nos pagasse, se livrou, dando à luz dois filhos gêmeos
para se resgatar e ficar livre também mui parecidos, que por serem
da pena cominada. Ora, o mais alto de gente muito pobre eu comprei logo,
cômputo de teus bens escassamente para que a servir viessem meus dois filhos.
chega a cem marcos. Desse modo te achas, Muito orgulhosa de seus dois pimpolhos,
por nossas leis, à morte condenado. falava diariamente minha esposa
Egeu: Consola-me saber que o teu decreto em voltar para casa. À contragosto
hoje põe fim ao meu viver inquieto. fiz-lhe a vontade, mas, ai! muito cedo
Duque: Está bem. Ora quero que nos digas, nos embarcamos.
siracusano, sem rodeio inútil, Uma légua viajamos de Epidamno
por que de tua pátria te afastaste sem que o mar, sempre aos ventos obediente,
e o motivo de estares ora em Éfeso. qualquer trágico indício nos mostrasse
Eceu : Mais pesada tarefa não podia de nossa má ventura. Muito tempo,
ser-me imposta do que isso de contar-te contudo, não ficamos animados,
minha dor indizível. No entretanto, porque o pouco de luz quase apagada
porque dar testemunho possa o mundo que o céu nos enviava, só servia
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para levar a nossas almas tímidas com tal força, que a nossa esperançosa
mensagem certa de uma morte próxima. nau se despedaçou, e de tal modo
Eu, de mim, a aceitara alegremente; se processou nosso divórcio injusto,
mas as lamentações de minha esposa, que a cada um de nós deixou a Fortuna
que, à só idéia do perigo imano, o com que se alegrar e lastimar-se.
chorava sem cessar, e os lastimosos À parte em que se achava minha esposa —
gritos dos dois meninos amoráveis, pobre alma! — ao parecer com menos peso,
que por moda choravam, pois não tinham mas com igual desdita, foi levada
consciência do perigo, me forçaram com mais velocidade pelos ventos,
a procurar adiar o fim de todos, tendo sido eles três à nossa vista
pois outra expectativa era impossível. salvos por pescadores de Corinto,
Ao barco os marinheiros se acolheram, conforme então pensamos. Finalmente,
deixando-nos o casco do navio a bordo nos tomou outro navio.
prestes a se afundar. Minha consorte, Ao ficarem sabendo seus marujos
mais cuidadosa do último nascido, a quem haviam salvo por acaso,
o havia atado a um mastro de reserva deram boa acolhida aos pobres náufragos;
de que os marujos sempre andam providos, ea presa, porventura, aos pescadores
para enfrentar os temporais desfeitos. teriam retomado, se não fosse
À ele um dos outros gêmeos foi atado, terem o barco de moroso curso.
enquanto dos demais eu me ocupava. Por isso, navegaram rumo à pátria.
Dispostos desse modo os nossos filhos, Sabeis agora como eu fui privado
eu e minha mulher, fixos os olhos de toda a minha dita, como os fados
em quem fixo o cuidado sempre tínhamos, adversos minha vida prolongaram,
nos atamos, também, nas duas pontas para eu contar a minha triste história.
do alto mastro, e ao sabor, sempre, das ondas, Duque: Agora, pelo amor dos que lastimas,
na direção seguimos de Corinto, faze-me o obséquio de contar por miúdo
conforme imaginávamos. Por último, tudo o que eles e tu haveis passado.
a dardejar os raios sobre a terra, Eceu - Meu caçula, o mais velho nos cuidados,
desfez o sol a névoa causadora aos dezoito anos revelou desejo
de todo o nosso mal, deixando calmas de procurar o irmão, tendo insistido
de novo as ondas, pela ação benéfica junto de mim, para que seu criado —
de sua luz por que tanto anelávamos, que, como ele, privado também fora
o que nos permitiu ver dois navios de um irmão cujo nome ele levava —
que para nós, com pressa, velejavam: nas investigações o acompanhasse.
um de Corinto, de Epidamno o outro. Assim, porque sofria de saudades
Mas antes de até nós eles chegarem... de meu filho perdido, pus em risco
Oh! Nada mais direi. Deduze o resto, vira perder o que ainda me restava.
ante o que sabes do meu fado mesto. Cinco estios passei na extrema Grécia;
Duque : Adiante, velho! Acaba a tua história. vasculhei os confins da Ásia distante;
Despertas-nos piedade, muito embora e, ao costear, já de volta para a pátria,
conceder-te perdão seja impossível. a Éfeso vim ter, sem esperança
Eceu* Oh! Se os deuses assim tivessem sido, nenhuma, é certo, de poder achá-los,
agora eu acusá-los não pudera mas porque não deixasse inexplorado
de nos terem tratado cruelmente, nenhum lugar capaz de abrigar homens.
pois distantes de nós não se encontravam Da minha vida a história aqui termina.
dez léguas os dois barcos, quando fomos Na morte prematura me julgara
dar de encontro a um penedo imano e a pique, muito feliz ainda assim, se ao cabo
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shakespearebrasileiro.org À COMÉDIA DOS ERROS
Ato T: Cenall
O mercado. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Entram Antífolo de Siracusa, Drômio de Siracusa e um É um criado alegre, meu senhor, que muitas
mercador. vezes, quando estou cheio de cuidados
e de melancolia, me dissipa
MercaDoRr* Deveis dizer, por isso, que nascestes todo o humor com seus ditos prazenteiros.
em Epidamno, para vos livrardes Ireis passear comigo na cidade,
de ficar com os bens todos confiscados. para depois jantarmos na estalagem?
Ainda hoje, um mercador de Siracusa MercaDOR Não, meu caro senhor; fui convidado
foi preso, por haver desembarcado, por certos mercadores, com os quais conto
e, porque a vida resgatar não pôde, realizar bons negócios. Desculpai-me.
há de, acorde com a lei desta cidade, Mas às cinco horas nos encontraremos
vir a morrer, antes que o sol no ocaso no mercado, se a idéia vos agrada,
fatigado se deite. Eis o dinheiro podendo, após, fazer-vos companhia
que em confiança me destes, ainda há pouco. até a hora de deitar. Negócio urgente
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* me força a vos deixar por uns instantes.
Drômio, leva-o ao Centauro, onde pousamos,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
e lá te deixa estar até que eu chegue.
Então até mais tarde; sem destino
Para o jantar ainda falta uma hora;
vou distrair-me a ver vossa cidade.
verei, enquanto espero, os mercadores,
MERCADOR Ào vosso bem-estar vos deixo entregue.
estudarei os usos da cidade
(Sai)
e observarei seus belos edifícios.
Depois, de volta para a hospedaria, ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
pretendo repousar, que a longa viagem Quem ao meu bem-estar me deixa entregue,
me deixou lasso e exausto. Vai depressa. faz entrega de todo em todo inútil,
Drômio DE SIRACUSA* pois é do que careço. Sou no mundo
Muita gente talvez tomasse à risca como uma gota de água que à procura
quanto dizeis e se pusesse ao fresco de outra gota no oceano se encontrasse,
carregando tesouro tão opimo. e que, ao cair ali, toda desejos
(Sai) de achar a companheira, desaparece
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shakespearebrasileiro.org WiLLIAM SHAKESPEARE
na busca, sem ser vista, Assim, comigo: vos chamar, sem haver necessidade
para um irmão e minha mãe achar — de nenhum mensageiro ou de recados.
pobre de mim! — me perco a procurá-los. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
(Entra Drômio de Éfeso.) Pára com isso, Drômio; essas graçolas
Eis outra vez meu almanaque vivo. vêm fora de propósito. Reserva-as
Que é que há? Por que voltaste assim tão cedo? para hora mais alegre. Onde puseste
Drômio DE ÉrEso o ouro que te confiei?
Tão cedo? Perguntai por que tão tarde. Drômio DE Éreso - A mim, senhor?
O capão já tostou; caiu do espeto, Não sei de ouro nenhum que me entregásseis.
de tanto ser virada, a bacorinha; ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
já o relógio da torre deu doze horas Vamos, senhor velhaco, acabai logo
e a patroa me deu uma no rosto; com essas maluquices, e dizei-me
quente ela está por causa da comida de que modo a incumbência foi cumprida.
que esfriou; a comida ficou fria Drômio DE ÉrEsO -
por não terdes voltado para casa; Minha incumbência constitui apenas
não voltaste porque não tendes fome; em vos vir procurar até o mercado
não tendes fome por comido haverdes. e vos levar, senhor, a casa, à Fênix,
Nós, porém, a jejuar nos encontramos; para jantar. Por vós já estão à espera
por vossa culpa em penitência andamos. minha senhora e a irmã.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Ora, tão certo
Detende esses pulmões, senhor: dizei-me como eu ser batizado, me responde
onde está minha bolsa com o dinheiro. onde puseste a salvo o meu dinheiro;
DrÔMiIO DE ÉrESO - se não, te quebrarei essa cabeça
Oh! Aqueles seis pences que me destes jocosa, que só cuida de pilhérias,
na última quarta-feira com o encargo quando me acho indisposto. Dize logo:
de pagar o conserto do rabicho em que lugar puseste os meus mil marcos?
da patroa? Ao seleiro os dei, senhor; DrôMio DE ÉrESO :
não costumo furtar coisa nenhuma. Marcas vossas eu tenho na cabeça;
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* nos ombros tenho marcas da patroa;
Não estou hoje para brincadeiras. mas, reunidas, mil marcos não perfazem.
Deixa de lado as graças e me dize, Se forçado eu me visse a restituí-las
sem subterfúgios, onde está o dinheiro. a Vossa Senhoria, é bem possível
Sendo nós estrangeiros na cidade, que não as recebêsseis com paciência.
como te mostras tão remisso, ousando ANTÍFOLO DE SIRACUSA *
separar-te de soma tão vultosa? Tua patroa? Que patroa, escravo?
Drômio DE ÉrEso DRôMIO DE ÉFESO
Por obséquio, senhor, deixai as graças A senhora de Vossa Senhoria,
para a hora do jantar. Vim procurar-vos minha patroa da estalagem Fênix,
como correio, de ordem da senhora; a mesma que jejua à vossa espera,
se sem vós eu voltar, é coisa certa para jantar e que vos pede, instante,
meter-me na correia, que ela as vossas irdes jantar com ela neste instante.
faltas há de gravar na minha pele. ANTÍFOLO DE SIRACUSA* .
Penso que deveríeis ter no estômago, Como! Zombas de mim na minha frente,
como eu, relógio certo, para a casa conquanto eu to proibisse? Então toma isto.
(Bate-lhe.)
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Ato II Cena ll
Uma praça pública. (Entra Drômio de Siracusa.)
Entra Antífolo de Siracusa. Então, senhor,
já está mais calmo vosso humor jocoso?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA — Repeti, por favor, a brincadeira,
O dinheiro que a Drômio eu tinha dado se gostais de pancada. À hospedaria «
se acha na hospedaria do Centauro, do Centauro vos é desconhecida?
tendo saído o cuidadoso escravo Não vos dei uma bolsa com dinheiro?
para me procurar. Pelo meu cálculo Vossa patroa me quer ver em casa,
e o que disse o hospedeiro, cu não podia para eu jantar com ela? Então, moramos
ter falado com Drômio depois da hora na hospedaria Fênix? Estás louco,
em que nos separamos no mercado. para me responderes desse modo?
Mas ei-lo que aí vem. Drômio DE SIRACUSA"*
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Quando, senhor, vos respondi tal coisa? também o seu porquê, pois dizem todos que não há
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* causa sem porquê.
Agora mesmo, aqui, há meia hora. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Pois foi porque te riste
Drômio DE SIRACUSA* à minha custa. Agora vejamos o porquê: porque de
Não vos falei desde a hora em que ao Centauro novo riste de mim, quando eu falava sério.
me mandastes levar vosso dinheiro. DrôMmio DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Quem sova igual já tomou? Coisa assim nunca mais
Afirmaste, vilão, que eu não te havia me aconteça,
dado dinheiro algum e me falaste pois os porquês que aduzis são porqueiras sem pés
de uma mulher e de eu jantar com ela. nem cabeça. Obrigado, senhor.
Mas penso que na pele tens a prova ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por que obrigado?
de quanto me alegrou essa notícia. Drômio DE Siracusa: Ora, senhor, por essa coisa
Drômio DE SIRACUSA* que me destes por coisa nenhuma.
Fico contente por vos ver alegre. ANTÍFOLO DE SIRACUSA “ Na próxima vez me
Que quer dizer, senhor, essa pilhéria? corrigirei, dando-te coisa nenhuma por alguma
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* coisa. Mas dizei-me, senhor: já são horas de jantar?
Ainda zombas de mim na minha frente? Drômio DE SIRACUSA * Não, senhor; a carne ainda
Pensas que é brincadeira? Então toma isto. não ficou como eu estou.
(Bate-lhe.)
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como assim, senhor?
Drômio DE SIRACUSA*
Que é que lhe falta?
Parai, senhor, por Deus! À brincadeira
Drômio DE SIRACUSA* Ser batida.
ficou séria demais. Por que barganha
AnTÍFOLO DE SIRACUSA * Perfeitamente, senhor;
mereci receber essas pancadas?
com isso ela ficará seca.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SiRACUSA * Nesse caso, peço-vos não
Porque acontece eu conversar convosco
provar bocado.
familiarmente e, para distrair-me,
vos fazer de meu bobo, vossa audácia ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Vossas razões?
vos leva a exorbitar, até quererdes
Drômio DE SIRACUSA * Para não ficardes colérico
apalhaçar as minhas horas sérias. outra vez e não tornardes a me bater.
Quando o sol brilha, as moscas dançam ledas; ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Então, meu senhor,
mas, quando some, logo elas se escondem. aprendei a gracejar só quando houver ocasião,
Para poderdes discretear comigo porque para tudo há tempo certo.
será conveniente ver-me o rosto. Drômio DE SIRACUSA * Era o que eu ousaria
Assim, pelos meus olhos, a atitude contestar, antes de haverdes ficado tão colérico.
sabereis escolher. Caso contrário, ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Em que razões vos
vos meterei pela cabaça o método. firmais, senhor?
Drômio DE SIRACUSA* Drômio DE SirACUSA* Ora, senhor, em uma
Cabaça lhe chamais? Eu preferia ter cabeça, uma razão tão reluzente como a careca reluzente do velho
vez que deixasses de a malhar. A continuardes desse Tempo.
jeito, vou procurar uma cabaça para forrar com ela a ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Vamos ouvi-la, então.
cabeça e não ter de procurar o espírito nas espáduas. Drômio DE SIRACUSA * Quem é calvo por
Mas, por obséquio, senhor: por que me bateis? natureza, em tempo nenhum recupera o cabelo.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Não sabes a causa? ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Não lhe seria possível
Drômio DE SIRACUSA* conseguir isso por meio de um processo de posse
Não sei nada, senhor, a não ser que estou a receber absoluta?
pancada. Drômio DE SiRACUSA* Sim, protestando pela
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Desejas que ta revele? posse de uma peruca, para ficar de posse dos cabelos
Drômio DE SIRACUSA * Perfeitamente, senhor, e de outra pessoa.
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ADRIANA Por ti... E esta resposta me trouxeste: Estamos num país de fadas lindas,
que ele te esbofeteara e, com seus golpes, de elfos, corujas, de ilusões infindas.
dissera não ser dele a minha casa Façamos-lhe a vontade; do contrário,
e que eu consorte sua jamais fora. nos chupa o sangue espírito nefário.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Luciana:
Conversaste, senhor, com esta senhora? Por que não andas, peste? Vamos, Drômio;
Qual a intenção de toda esta conjura? não me mudes a casa em manicômio.
Drômio DE SIRACUSA* Drômio DE SIRACUSA*
Eu, senhor? Nunca a vi até este instante. Fui transtornado, mestre? Eu não sou eu?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Mentes, vilão! Que há pouco, no mercado, Foste, sim; eu também já não sou eu.
me transmitiste esse recado mesmo. Drômio DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA* Não valho, como gente, um só pataco.
Eu nunca lhe falei em toda a vida. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* À forma ainda conservas.
Como sabe ela, então, o nosso nome? Drômio DE SIrRACUSA * De macaco.
Só se é inspiração. Luciana — Se em algo te mudaste, foi em burro.
ADRIANA * Como desdiz de tanta gravidade Drômio DE SIRACUSA*
desta arte conchavar com vosso escravo É certo; ela me dá capim e eu zurro.
e espicaçá-lo a me fazer pirraças! Se habituado eu não fosse a levar sela,
Seja embora eu culpada de tudo isso, saberia também o nome dela.
não me façais assim tão mau serviço, ADRIANA: Basta! Basta! Não mais hei de portar-me
aumentando com vossa zombaria como uma tola, que a mão leva aos olhos
a imensa dor que a vida me abrevia. para chorar, enquanto o amo e o criado
De vós não mais me afastarei... Oh! Ride! de minha dor se riem.Já está pronto,
Sois o olmo, meu marido; eu, vossa vide, senhor, nosso jantar. Drômio, de guarda
cuja fraqueza à vossa força aliada ficarás no portão. Hoje, marido,
em rijeza transforma-se acendrada. jantaremos em cima; hei de obrigar-vos
Entre nós não há linha divisória, a me contar as vossas peraltices.
se não for, tão-somente, a vil escória Ouve, malandro: caso alguém procure
da turba parasita: erva daninha, teu patrão, dize que ele jantou fora,
musgo e o mais que no tronco cresce asinha, Veda a todos a entrada. Mana, vamos.
e que, por falta de desbaste e corte, Drômio, tu ficarás como porteiro.
te causa confusão e te dá morte. ANTÍFOLO DE SIRACUSA (à parte) -
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Isto é céu, terra, ou inferno verdadeiro?
Fala comigo; sinto-me abalado... Durmo ou velo? Sou louco ou tenho juízo?
Em sonhos, pois, tê-la-ia desposado? Meu nome ela repete com um sorriso.
Ou durmo, ainda, e penso ouvir tudo isto, Pouco importa; vejamos se isto dura;
julgando ver o que jamais hei visto? com ela embarcarei nesta aventura.
Enquanto certa for esta incerteza, Drômio DE SIRACUSA*
deterei a ilusão com mais firmeza. Mestre, é força que eu faça de porteiro?
Luciana Drômio, vai pôr a mesa com os criados. ADRIANA" Se queres conservar o coco inteiro.
Drômio DE SIRACUSA* Luciana: Vamos, Antífolo; o jantar primeiro.
Oh Deus do céu, perdoai os meus pecados! (Saem.)
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Ato HI - Cenal
Diante da casa de Antíolo de Éfeso. Quando avaro é o hospedeiro e o convidado doente.
Entram Antífolo de Éfeso, Drômio de Efeso, Ângelo e Baltasar: No entanto, se primor não for minha comida,
ao menos com prazer vos será oferecida.
ANTÍFOLO DE ÉrESO * A porta está fechada? Abri-la manda asinha.
Desculpai-me, meu caro senhor Ângelo, Drômio DE ÉrEsO
mas minha esposa fica atrabiliária, Brígida, Madalena, Bárbara, Joaninha!
quando fora de casa eu me demoro. Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Dizei-lhe que ficamos distraídos Cretino, idiota, alarve, estúpido, demente!
na oficina, a admirar vossa perícia, Vai-te embora, ou, calado, senta-te ao batente.
na confecção de sua gargantilha, Por que chamar um bando, assim, de servas tontas,
que amanhã lhe trareis sem falta à casa. quando uma já é demais? Pensas que me amedrontas?
Ora vede, afirmou-me este malandro DrôMiIO DE ÉrESO *
que me havia encontrado no mercado, Quem é que em nossa casa ora faz de porteiro?
que lhe bati e reclamara, instante, Ficar aqui não pode o mestre o dia inteiro.
mil marcos de ouro; enfim, que renegara Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
minha esposa e meu lar. Então, borracho, Ora, que vá pescar! Deixe de cretinismo;
que pretendias ao dizer aquilo? se não, com o frio os pés apanham reumatismo.
Drômio DE ÉrEso ANTÍFOLO DE ÉrESO *
Dizei, senhor, embora o que vos agradar, Abre logo! Ou uma tunda esperas que eu te dê?
mas os sinais da sova eu poderei mostrar. Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Fosse eu de pergaminho e vossa mão de tinta, Abrir, caro senhor? Falta saber por quê.
leríeis vossa firma em letra mui distinta ANTÍFOLO DE ÉFESO *
e poderíeis ver o que de vós eu penso. Por quê? Para jantar. De fome estou varado.
ANTÍFOLO DE ÉFESO - Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Penso que sois um asno. Então ide a outra parte; aqui já houve assado.
Drômio DE ÉrEso : Aliás mostrais bom senso, ANTÍFOLO DE ÉFESO *
que outra coisa não é quem, por causa de nada,
Quem és, que assim me pões de minha casa fora?
agúenta o dia todo impropério e pancada.
Drômio DE SIRACUSA (dentro) -
Mas se asno puro eu sou, convém terdes cuidado,
Drômio, caro senhor, gentil porteiro agora.
porque não vos alcance um coice delicado.
DRÔMIO DE ÉrESO *
ANTÍFOLO DE ÉrESO
Roubaste-me, vilão, o ofício e o próprio nome.
Triste me pareceis, meu caro Baltasar;
Aquele me valeu estar morrendo à fome;
mas ficareis alegre à mesa do jantar.
o outro me rende mais: pancada e insultos a esmo.
BaLTASAR* Com tanta gentileza, é o que eu posso
Mas se tivesse sido, há pouco, Drômio mesmo,
esperar.
por outro nome o teu terias já trocado
ANTÍFOLO DE ÉFESO
e desejaras ser mero asno do mercado.
Peixe e carnes, amigos, esplendem mais à mesa;
muita conversa é indício, às vezes, de avareza.
Lúcia (dentro) * Drômio, que barulheira é essa no
BaLTASAR * Banal coisa é comida; a boa prosa é rara. portão? Quem bate assim?
Drômio DE Éreso
ANTÍFOLO DE ÉrESO
Mas uma mesa escassa a boca torna amara. É o mestre, Lúcia; abres ou não?
BaLTASAR* À gentileza à mesa é hóspede eloquente. Lúcia (dentro) *
ANTÍFOLO DE ÉFESO- Chegou tarde demais. Vai; dize ao patrão isso.
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acolhida acharão por toda parte, tem feito cenas de ciúme incríveis.
até mesmo na vossa sepultura, Vamos jantar com ela. (A Ángelo.) Ide a cadeia
quando já não viverdes. Que a calúnia, buscar em vossa casa, pois já deve
como bens transmitidos por herança, estar pronta, e levai-a ao Porco-espinho
sempre cresce onde venha a encontrar ansa. que é onde mora a mulher de que vos disse.
ANTÍFOLO DE ÉrEsO- Vou dar-lhe essa cadeia, mas que seja
Tendes razão; vou retirar-me quieto só para minha esposa ficar fula.
e, embora a contragosto, hei de esforçar-me Nossa hospedaria ganhará o presente.
por parecer alegre. Ora me lembro Ide, senhor; não percais tempo: há urgência.
de uma donzela de agradável prosa, Já que meu lar se me tomou imigo,
bonita, espirituosa, algo estouvada, verei se alhures bem-estar consigo.
mas, no fundo, gentil. Por causa dessa ÂnceLo : Pretendo lá chegar dentro de uma hora.
criatura minha esposa — sem motivos ANTÍFOLO DE ÉFESO
para isso, vos afirmo — muitas vezes Vai ficar cara a brincadeira... Embora!
(Saem.)
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que eu me convença de que sou casado ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Que é que há, Drômio?
nem de que ao leito dela fui perjuro. Aonde vais com tanta pressa?
A vós é que me sinto agrilhoado; Drômio DE SIRACUSA * Reconheceis-me, senhor?
a vós, tão-só, me prende o amor mais puro. Sou Drômio, realmente? Sou vosso criado? Eu sou
Oh! não me arrastes, divinal sereia, eu mesmo?
com tua voz a perecer nas ondas ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Sim, és Drômio, és meu
que tua irmã provoca. À mágoa alheia criado, és tu mesmo.
não deve preocupar-nos. Não te escondas Drômio DE SIRACUSA * Pois eu sou um asno, sou
de minha vista; deixa que o teu canto criado de uma mulher e não estou em mim mesmo.
pleiteie a tua causa; a coma de ouro ANnTÍFOLO DE SIRACUSA * Que mulher, homem? E
sobre as ondas espalha, porque o espanto de que modo não estás em ti mesmo?
* me leve a cobiçar esse tesouro. Drômio DE SIRACUSA * Ora essa, não estou
E nesse leito, assim, acalentado em mim mesmo, por pertencer a uma mulher,
pela ilusão, encontrarei a morte, uma mulher que me reclama, uma mulher que me
sem maldizer, contudo, do meu fado: persegue, uma mulher que me quer para si.
que morra o leve amor, se não tem sorte. ANTÍFOLO DE SIRACUSA* E que direito ela se
Luciana * Que espécie de loucura vos domina? arroga, para te reclamar como dela?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Drômio DE SiRACUSA * O direito que poderíeis ter
Não é loucura; é a minha triste sina. sobre o vosso cavalo. Como besta legítima é que ela
Luciana: De vossos olhos nasce a causa disso. me quer, isto é, não por eu ser besta, de fato, mas por
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ser ela uma criatura bestial.
Por perto estardes, sol: eis o feitiço. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Quem é ela?
Luciana Contemplai minha irmã desventurada. Drômio DE SIRACUSA * Um corpo respeitável; sim,
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* um desses corpos a que não nos podemos referir sem
Olhar a noite, amor, é não ver nada. acrescentarmos: salvo o vosso respeito. Tive sorte
Luciana * Não me chames de amor; sim minha mana. muito magra nesse enlace, apesar de se tratar de um
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * casamento extraordinariamente gordo.
A irmã da mana. ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Que entendes por
Luciana: A mana. casamento gordo?
AnTtíroLO DE SirRACUSA* Oh desumana! Drômio DE Siracusa Ora, senhor, é porque se
És tu mesma, de mim a melhor parte, trata de uma cozinheira que é só enxúndia. Não sei
que dos meus olhos a visão reparte, de que modo utilizá-la, se não for aproveitá-la como
o coração mais caro deste peito, lâmpada para fugir dela, valendo-se de sua própria
minha sorte, meu único direito luz. Posso-vos afiançar que a sua rodilha ensebada
de entrar no céu, o céu de minha vida, poderia arder durante um inverno da Polônia. Se ela
quanto almeja minha alma, de atrevida. viver até o dia do Juízo final, há de arder uma semana
Luciana Dize isso tudo a minha irmã, somente. mais do que o mundo.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE SIRACUSA * De que cor é ela?
Sê, pois, tua própria irmã, que, eternamente, Drômio DE Siracusa * Negra como estes sapatos,
terás aos pés meu coração rendido; mas de rosto não tão limpo, e isso por suar tanto, que
mulher não tenho; tu não tens marido. poderíamos patinhar com lama acima dos sapatos.
Dá-me a mão. ANTÍFOLO DE SIRACUSA : É defeito que se corrige
Luciana: Acalmai-vos um momento; com água.
vou da mana buscar o assentimento. Drômio DE SiRACUSA * Impossível, senhor; isso faz
(Sai) parte dela; nem todo o dilúvio de Noé chegaria para
(Entra Drômio de Siracusa, apressado.) limpá-la.
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ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como se chama? Não percas tempo; vai direito ao porto.
Drômio DE SIRACUSA * Vera, senhor; mas seu Se houver, acaso, vento favorável,
nome e três quartas, isto é, uma vara e três quartas Não passarei a noite na cidade.
não a alcançariam de uma a outra anca. se achares algum barco quase pronto
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* Então é larga de verdade! para sair, volta depressa; eu fico
Drômio DE Siracusa * Não mede mais dos pés no mercado, passeando, à tua espera.
à cabeça do que de uma a outra cadeira; é esférica; Se todos nos conhecem, e eu ninguém,
parece um globo terrestre; eu seria capaz de demorar na cidade não convém.
encontrar nela todos os países do mundo. Drômio DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Em que parte do seu Como quem de urso foge e até da Morte,
corpo se encontra a Escócia? fujo eu de quem me quer para consorte.
Drômio DE SiRACUSA * Descobri-a pela (Sai)
esterilidade: fica na palma das mãos. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a França? Neste lugar só moram feiticeiras;
Drômio DE SIRACUSA * Na fronte, senhor, armada é tempo de tratar de sair dele.
e em revolta, a guerrear os próprios cabelos. Aquela que me chama de marido
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a Inglaterra? não a aceita minha alma como esposa.
Drômio DE SIRACUSA * Procurei as escarpas Mas sua bela irmã possui tal graça,
calcárias, mas não encontrei nada branco. No tão soberano olhar, fala aprazível,
entanto, presumo que fique no queixo, pela umidade presença encantadora, que, por pouco
salgada que corre entre ela e a França. fiquei traidor de minha própria causa.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Onde fica a Espanha? Antes de cometer ação tão feia,
Drômio DE SIRACUSA * Por minha fé, não a vi; mas ficarei surdo ao canto da sereia.
a senti pelo calor do hálito. (Entra Ângelo)
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* E a América? E as ÂnceLo - Mestre Antífolo!
Índias? ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SirAcUSA - Oh, senhor! No nariz, Pronto; assim me chamo.
inteiramente coberta de rubis, carbúnculos, safiras, ÂnceLo - Sei disso, meu senhor. Eis a cadeia.
inclinando a rica aparência para o hálito abrasador da Pensei em vos achar no Porco-espinho;
Espanha, que envia armadas sucessivas de galeões só demorei para acabar a obra.
para tomarem carga no nariz. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
ANTÍFOLO DE SIRACUSA: E a Bélgica e os Países- Que desejais que eu faça desse mimo?
Baixos, onde ficam? ÂnceLo- O que quiserdes; para vós foi feito.
Drômio DE Siracusa* Oh, senhor! Não olhei tão ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ,
para baixo, assim. Em suma, para concluirmos: esse Para mim? Sem o ter encomendado?
pesadelo, essa feiticeira alegou direitos sobre a minha ÂnceLo - Não uma vez, nem duas, mas duzentas.
pessoa; chamou-me de Drômio, jurou que eu era seu Fazei dela presente a vossa esposa;
noivo, enumerou sinais secretos que tenho no corpo, ao jantar vos farei uma visita,
tal como certa mancha numa das espáduas, um sinal para que me pagueis o meu trabalho.
no pescoço, uma grande verruga no braço esquerdo, ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
a ponto de eu fugir dela, tomado de espanto, como Então recebei logo o que vos devo,
quem foge de uma cigana. que é possível não mais pordes os olhos
Se eu carecesse de fé, sem possuir coração resistente, em cima da cadeia e do dinheiro.
ora cachorro seria, ou copeiro da bruxa potente. ÂNGELO - Sois muito espirituoso; passai bem.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* (Sai, deixando a cadeia.)
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Pá
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como esta, ao próprio irmão eu não poupara, Essa Adriana é da casa em que jantamos
se tentasse ofender-me assim de público. e onde a tal Dosabel me reclamava
OFICIAL DE JUSTIÇA para marido. Mas é muito grande,
Estais preso, senhor; a queixa ouvistes. penso, para cingi-la nestes braços.
ANTÍFOLO DE ÉFESO* Contudo, irei, embora a contragosto;
Sim, obedeço até pagar a fiança. servo é soldado que não larga o posto,
Mas, por Deus, pagareis a brincadeira (Saí)
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Ato IV - Cenall
Um quarto em casa de Antífolo de Éfeso. pôs sobre ele a mãozinha, um desses homens
Entram Adriana e Luciana. de peito duro abotoado de aço.
Um duende, um lobo, um monstro de esconjuro,
ADRIANA: Ah, Luciana, ele teve esse descoco? um sujeito envolvido em couro duro,
Lia-se-lhe no olhar que era sincero? enredador, traiçoeiro-mor, pisa-mansinho,
Estava são? Não parecia louco? que aos homens veda a praça, as ruas e o caminho,
No que disseste acreditar não quero. que parece perder o rasto a toda gente,
Refletia no rosto a luta, acaso, mas nas chamas do inferno os lança eternamente.
dos meteoros do peito em campo raso? ADRIANA: Mas, afinal, que há?
Luciana: Primeiro asseverou não ser casado. Drômio DE SIRACUSA —
ADRIANA Mais, com isso, ele aumenta o meu cuidado. O que há, não sei dizer; sei que ele está na grade.
Luciana: Depois jurou que aqui era estrangeiro. ADRIANA: Como! Está preso? À intimação de quem?
ADRIANA: Perjuro agora, como o foi primeiro. Drômio DE SIRACUSA*
Luciana: Depois, falei de vós. Não sei que intimação o pôs em tal agrura;
ÁDRIANA* E ele, que disse? só sei que o intimador tem farda muito dura.
Luciana: Que a mim, só, amava; o mais era tolice. Urge que lhe mandeis a bolsa da gaveta.
ADRIANA" De que modo falava esse demente? ADRIANA: Vai buscá-la.
Luciana: Se fosse honroso o pleito, convincente. (Sai Luciana.)
Não sei que pensar disso.
Elogiou-me a beleza; após, a fala.
ADRIANA" E tu, que lhe disseste? Vamos; fala. Tinha dívidas e eu sem saber nada.
Conta o resto: foi posto na cadeia?
Luciana: Calma, te peço; é de mister paciência.
Drômio DE SIRACUSA*
ARIANA: Calma não posso ter nesta premência.
É isso, uma cadeia; de aparência
Se não do peito, ao menos hei de o gosto
mais aprazível, mas cadeia, em suma.
fazer da língua. Antífolo é mal posto,
Não ouvistes soar?
feio, velho, corcunda, deformado,
ADRIANA * Quê? À cadeia?
de feições horrorosas, rosto inchado, Drômio DE SIRACUSA*
viciado, bruto, de maldade infinda,
Cadeia, não; o sino! É tempo de ir-me embora;
de corpo horrendo e mente pior ainda. às duas o deixei; ouvi bater uma hora.
Luciana * Quem ciúmes pode ter de tal marido? ADRIANA: Para trás anda o tempo. Oh coisa singular!
Ninguém um mal lastima, se perdido. Drômio DE SIRACUSA*
ADRIANA * Não é assim que o descreve o meu carinho. Se a hora encontra um sargento, o medo a faz recuar.
Se outros olhos o vissem desse jeito! ApRrIANA: Tem dívidas o tempo! Oh, como falas
O abibe chora, quando perde o ninho. certo!
À língua o insulta, mas o adora o peito. Drômio DE SIRACUSA*
(Entra Drômio de Siracusa.) O tempo está falido, a ruína já anda perto.
Drômio DE SIRACUSA* E mais: é um bom gatuno, à espreita e de vigia;
Vamos! Depressa! A bolsa da gaveta! manso se escoa à noite e devagar de dia.
Luciana Por que corres assim? Se o sargento o persegue e os bens tem em penhora,
Drômio DE SiRACUSA * Não sou perneta. que muito que se atrase em cada dia uma hora?
ADRIANA" Onde está teu patrão, Drômio? Não vem? (Volta Luciana.)
Por que demora tanto? Ele está bem? ADRIANA Eis o dinheiro, Drômio; vai depressa
Drômio DE SIRACUSA- e traze o teu senhor já para casa.
Sim, no limbo do Tártaro, no Áverno; De um pensamento, irmã, estou possessa,
muito pior ali do que no inferno. que ora me deixa fria, ora me abrasa.
Um demônio de vestes permanentes (Saem.)
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Ato IV : Cenalll
Uma praça pública. responsabilidade as pessoas que não pagam as suas
Entra Antifolo de Siracusa. obrigações e que diz a toda a gente: “Deus vos dê
bom repouso”, como se todo o mundo estivesse no
ANTÍFOLO DE SIRACUSA"* ponto de ir para a cama.
Não encontro ninguém nesta cidade ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Muito bem, senhor;
que não me cumprimente como a velho ponde remate a essas tolices. Nenhum navio zarpará
conhecido. Meu nome todos sabem. esta noite? Saímos ou não desta cidade?
Uns, dinheiro de empréstimo oferecem; Drômio DE SIRACUSA * Como não, senhor! Há
outros me invitam para cearmos juntos; uma hora vos disse que o barco “Velocidade” partirá
muitos se mostram gratos por finezas esta noite, justamente quando o sargento vos deteve
que eu lhes houvesse feito; outros insistem e vos obrigou a aguardar a chalupa “Retardo”. Aqui
por que lhes compre as mais variadas coisas. estão os anjos que me mandastes buscar, para que
Em sua loja, há pouco, um alfaiate vos livrassem.
me fez entrar, para mostrar-me sedas ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
que para mim comprara e, sem delongas, Este velhaco está louco de todo,
tomou minhas medidas. Com certeza tal como eu. É ilusão tudo o que vemos.
tudo isso é fantasia; aqui residem,
Daqui nos tire algum poder celeste!
decerto, os feiticeiros da Lapônia.
(Entra uma cortesã.)
(Entra Drômio de Siracusa.)
CorrTEsÃ: Mestre Antífolo, salve! Vejo agora
Drômio DE SIRACUSA*
que encontrastes o ourives, finalmente.
Eis o dinheiro, mestre, que pedistes.
É essa a cadeia que me prometestes?
Mas, como conseguistes ver-vos livre
ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
do retrato do velho Adão de farda?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA"* Retira-te, Satã! Não me persigas.
Dinheiro que eu pedi? Que Adão é esse? Drômio DE SIRACUSA * Mestre, essa é a senhora
Drômio DE SIRACUSA * Não me refiro ao Adão que Satã?
guardava o paraíso, mas ao Adão que é guarda da ANTÍFOLO DE SIRACUSA * É o diabo.
cadeia, o que se veste com a pele do bezerro matado Drômio DE SIRACUSA*
para o filho pródigo, o que marchava por trás de vós, Não, é pior do que isso: é a avó do diabo, que nos
senhor, como anjo do mal e vos intimou a abandonar aparece sob a forma de uma meretriz leve; de aí
a liberdade. o costume de dizerem as meretrizes: “Deus me
ANTÍFOLO DE SIRACUSA : Não te compreendo. dane!” que é como se dissessem: “Deus faça de
Drômio DE SiRACUSA : Não? Pois é muito simples: mim uma donzela leviana!” Está escrito que elas
refiro-me ao sujeito que anda como um rabecão, aparecem aos homens como anjos leves de luz. Ora,
numa caixa de couro; o indivíduo, senhor, que dá a luz é uma consegiiência do fogo, e o fogo queima.
empurrões nos cavalheiros fatigados e os obriga Logo, as donzelas levianas queimam. Não vos
a repousar; o mesmo que se apiada das pessoas aproximeis dela.
arruinadas e lhes arranja um fato indesfiável; é o CorTESÃ - Vosso criado, senhor, e vós estais
tal, em suma, que se gaba de fazer mais piruetas hoje muito espirituosos. Não quereis vir comigo?
com a sua clava do que os dançarinos com a lança Poderemos comprar aqui perto alguma coisa para
mouresca. cearmos.
ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Como assim? Referes-te Drômio DE Siracusa- Mestre, se fordes cear e
a algum oficial de justiça? houver probabilidade de tomardes sopa, muni-vos de
Drômio DE SIrrRACUSA * Perfeitamente, senhor, uma colher comprida.
ao sargento dos títulos, o mesmo que chama à ANTÍFOLO DE SIRACUSA * Por quê, Drômio?
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OricIAL DE JusTIÇA * Senhor, tende paciência. ANTÍFOLO DE ÉrEso - Cala-te, feiticeiro impertinente!
DrôMio DE ÉrEsO- Não estou louco.
Paciência preciso eu, que estou apanhando. ÁDRIANA* Ah! quem nos dera mesmo,
OriciAL DE Justiça: Filho, detém a língua. pobre alma atribulada!
Drômio DE Éreso : Mandai, então, que ele ANTÍFOLO DE ÉrEso : Então, faceira,
detenha o braço. todos estes são vossos habituados?
ANTÍFOLO DE Éreso : Descarado! Vilão insensível! Este tipo de cara de açafrão
Drômio DE ÉrEso - Desejara ser insensível, senhor, jantou hoje convosco em minha casa,
para não sentir vossas pancadas. enquanto entrada nela me negavam
ANTÍFOLO DE ÉrEso - Só és sensível à pancada, tal as criminosas portas?
qual um asno. ÁDRIANA* Oh, marido!
Drômio DE Éreso - Sou um asno, realmente; e a Deus sabe que hoje tu jantaste em casa.
prova são estas orelhas compridas. Eu o servi desde Se houvesses lá ficado, ora estarias
o dia de meu nascimento até hoje, não tendo recebido livre do opróbrio e de tão grande escândalo.
em pagamento senão pancada. Quando estou com ANTÍFOLO DE ÉFESO-
frio, ele me aquece com pancada; quando estou quente, Jantei em casa? Biltre, que respondes?
ele me esfria com pancada; se durmo, é com pancada Drômio DE Éreso-
que ele me esperta; se me sento, com pancada me faz
Senhor, para ser franco, não jantastes.
levantar; quando saio à rua, é com pancada que ele me ANTÍFOLO DE ÉFESO *
faz atravessar a porta, sendo, também, com pancada
Não nos foi impedida a entrada? À porta
que me dá as boas-vindas. Carrego as pancadas nos não estava trancada?
ombros, como os mendigos os seus fedelhos, e estou
DRrôMio DE ÉrEsO * Justamente;
certo de que, quando ele me deixar aleijado, terei de
fechada a porta, e vós deixado fora.
mendigar com elas de porta em porta.
ANTÍFOLO DE ÉrESO -
AnTÍFOLO DE ÉrEso: Vamos saindo daqui, que
E ela, não me atirou baixos insultos?
minha mulher já chega.
DRÔMIO DE ÉFESO-
(Entram Adriana, Luciana, a cortesã e Pinch.)
Sans fable, vos lançou baixos insultos.
Drômio DE ÉrEso - Senhora, respice finem, atenção
ANTÍFOLO DE ÉFESO-
ao fim! Ou melhor, como diz o profeta e o papagaio:
De mim não riu a sua cozinheira,
Cuidado com o fim da corda!
não me insultou, não me cobriu de chufas?
ANTÍFOLO DE ÉrEsO - Ainda te pões a falar?
Drômio DE ÉrEso-
(Bate-lhe.)
CorTESÃ* E agora, que dizeis? Não está louco? Certes, tudo isso fez a vestal cuca.
ADRIANA É o que faz crer a sua grosseria. ANTÍFOLO DE ÉFESO"
Meu caro Doutor Pinch, sois exorcista; E não me retirei de lá, furioso?
restituí-lhe a razão, é o que vos peço, Drômio DE ÉrEso -
e obtereis de mim tudo o que quiserdes. Isso mesmo; comprovam-no meus ossos,
Luciana - Oh, como ele olha furibundo e firme! que as marcas ainda têm de vossa fúria.
CorrEsà : Vede como a loucura o deixa trêmulo. ApRrIANA: Será prudente concordar com ele?
PrncH * Quero sentir o pulso; dai-me a mão. PrncH : Não há mal; o velhaco tem consciência
ANTÍFOLO DE ÉFESO do estado do patrão, e, concordando
Aqui está a mão; senti no ouvido o pulso. com ele, contribui para acalmá-lo.
(Bate-lhe.) ANTÍFOLO DE ÉrESO-
PrncH Satã que habitas este corpo, intimo-te O ourives subornastes e fui preso.
a obedecer às minhas santas preces AprIANA* Oh, Deus do céu! Para livrar-te logo,
e voltar sem demora para as trevas. mandei por Drômio quanto me pediste,
Pelos santos do céu, eu te conjuro! quando, a correr, buscar foi ele a bolsa.
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Luciana Deus nos acuda! Estão de novo soltos! Vai ao Centauro e tira as nossas coisas.
ADRIANA" E de espadas na mão! Chamai mais gente, Não vejo a hora de entrarmos no navio.
para os prender. Drômio DE SrrACUSA * Ora, senhor, ficai mais esta
OFICIAL DE JUSTIÇA: noite; não nos farão nenhum mal. Bem vedes que nos
Vão nos matar; fujamos. dirigem palavras amáveis, dão-nos dinheiro... Parece
(Saem Adriana, Luciana e o oficial de justiça.) tratar-se de uma nação muito amável; se não fosse a
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* tal montanha de carne louca, que me reclama para
Pelo que vejo, as duas feiticeiras esposo, não importaria de viver aqui e virar bruxo.
a espada as amedronta. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA* À que queria Nem por toda a cidade eu passo a noite
ser vossa esposa, agora vos evita. neste lugar. Por isso, não demores:
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* vai logo pôr a bordo nossas coisas.
(Saem.)
Ato V - Cena l
Uma rua defronte da Abadia. grande prejuízo, pois a não ter sido
Entram o mercador e Ângelo. impedido por nossa controvérsia,
a estas horas se achara velejando.
ÂncELO: Fico triste por ter-vos retardado; Dei-vos essa cadeia, não é certo?
mas, em verdade, posso asseverar-vos ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
que lhe dei a cadeia, embora o negue Creio que sim; jamais neguei tal coisa.
por maneira tão fria e desonesta. Mercapor : Negastes, sim senhor, sob juramento.
MercaDOR* Em que conceito é tido na cidade? ANTÍFOLO DE SIRACUSA *
ÂnceLo- No mais alto; é de crédito infinito, Quem foi que ouviu, quando eu jurei tal coisa?
muito estimado, de impoluto nome; MercaDor"* Eu próprio o ouvi; bem sabes que é
na cidade é o primeiro, sempre, em tudo. verdade, miserável. Que opróbrio!
Uma palavra sua, em qualquer tempo, Teres vida
me faria empenhar toda a fortuna. para te ombreares com pessoas sérias!
MercaDOR* Falai baixo; ei-lo aqui, se não me engano. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
(Entram Antífolo de Siracusa e Não passas de um vilão, por me acusares
Drômio de Siracusa.) dessa maneira. Provarei minha honra
ÂNGELO * Justamente, e ao pescoço traz a mesma e minha honestidade agora mesmo,
cadeia que por modo tão monstruoso se tiveres o ousio de enfrentar-me.
negou ter recebido. Ficai perto Mercapor* Tenho, vilão! Aceito o desafio.
de mim; vou lhe falar. Senhor Antífolo, (Sacam das espadas. Entram Adriana, Luciana,
muito me admira o incômodo e a vergonha a cortesã e outros.)
que me causastes — não sem vos manchardes ApRIANA* Parai, por Deus!
algum tanto — por terdes protestado Não o firais! É louco!
sob juramento e com tamanho afinco, Segurai-o por trás! Tomai-lhe a espada!
não vos ter eu entregue essa cadeia Amarrai Drômio e a casa levai ambos.
que ao pescoço trazeis com tal descaso. Drômio DE SIRACUSA*
Além da queixa, da prisão, do opróbrio Mestre, corramos, pelo-amor de Deus!
por que passei, causastes a este amigo Procuremos abrigo em qualquer casa.
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Aqui perto há um convento; entremos nele; lhe dizia que ele era vil e mau.
do contrário, estaremos liquidados. ABADESSA * De aí ter acabado ele maluco.
(Antífolo de Siracusa e Drômio de Siracusa se acolhem à Às queixas venenosas de uma esposa
Abadia. Entra a abadessa.) ciumenta são de efeito mais nocivo
ABADESSA * Boa gente, acalmai-vos. Por que causa do que dentada de cachorro louco.
vos reunis aqui? Parece que essas rixas o impediam
ApriANA: Paralevarmos de dormir; eis a causa de ter ele
meu infeliz marido, que está louco. ficado com o juízo perturbado.
Permiti-nos entrar, porque possamos Disseste que ele, às refeições, só tinha
amarrá-lo e levá-lo para casa, censuras por tempero. Ora, quem come
e ele a razão recuperar consiga. sem a calma precisa, não digere,
ÂnceLO :Percebi logo que ele não estava de onde se originarem grandes febres.
em seu perfeito juízo. E a febre que é, senão um grande acesso
MERCADOR Ora lastimo de loucura? Disseste que o repouso
ter lançado contra ele mão da espada. lhe perturbavas sempre com censuras.
ÁBADESSA * Há quanto tempo anda ele assim possesso? Quando o recreio ameno é perturbado,
ADRIANA Passou toda a semana fatigado, que se segue senão tristeza e funda
aborrecido, triste, nas menores melancolia, irmã do desespero
coisas muito outro do que ser costuma. mais inquieto e feroz? No rasto deste
Mas somente hoje à tarde a sua doença segue uma tropa imensa de moléstias,
chegou a esses acessos de loucura. de pálidas desordens, de inimigos
ÁBADESSA- da vida humana. À consegiiência é clara:
Não perdeu muitos bens nalgum naufrágio? perturbações à mesa ou no repouso
Não teria enterrado algum amigo? o mais cordato ser deixam furioso.
Acaso os olhos não lhe ensejariam Assim, foi tão-somente o teu ciúme
ao coração algum amor ilícito? que perturbou do esposo o claro lume.
É pecado fregiente nos mancebos Luciana Ela só o repreendia com brandura,
que dão aos olhos muita liberdade. e ele com voz lhe respondia dura.
Por qual destas razões sofre ele agora? Deixais tantas censuras sem resposta?
ADRIANA Por nenhuma, a não ser, talvez, pela última, ADRIANA"
algum amor que o desviou de casa. É que ela em mim faz despertar remorsos.
AÁBADESSA * Por isso, certamente, o repreendestes. Entrai, amigos, e amarrai-o firme.
ADRIANA Foi o que fiz, de fato. ABADESSA* Jamais; em minha casa ninguém entra.
ÁBADESSA Mas com modos. ADRIANA"
ADRIANA: Tanto quanto a modéstia o permitia. Dizei aos servos, pois, que o tragam logo.
ABADESSA * Em casa apenas, creio. ÁBADESSA*
ADRIANA: Não; na frente Não, que ele se acolheu a um lugar santo.
de estranhos umas vezes. De vossas mãos deve ficar seguro,
ABADESSA* Mas não muitas. té que a razão cu possa devolver-lhe,
ADRIANA Era o assunto de todas as conversas. ou desista do esforço, por inútil.
Tanto sobre isso eu lhe falava, que ele ADRIANA" Eu, só, quero tratar do meu marido,
mal podia dormir; quando na mesa ser a enfermeira na doença dele;
das refeições, de tanto eu falar nisso, nisso não quero ter quem me auxilie.
não provava bocado; quando estava Deixai, assim, que a casa mo conduzam.
só comigo, era o assunto que eu puxava; ÀABADESSA* Ficai calma. Impossível é entregá-lo
se tínhamos visitas, atirava-lhe sem lançar mão, primeiro, dos recursos
frequentes indiretas. À toda hora de que disponho: drogas benfazejas,
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Grita por vós e jura que se, acaso, não me transtorna a cólera furiosa,
conseguir vos pegar, há de queimar-vos muito embora os ultrajes a mim feitos
o rosto e vos deixar desfigurada. pudessem deixar louco o homem mais sábio.
(Ouvem-se gritos dentro.) Esta mulher deixou-me hoje na rua,
Ouço-o! Fugi, senhora, sem delongas! quando eu ia jantar, o que este ourives
Duque: Fica junto de mim; não tenhas medo. confirmar poderia, se não fosse
Guardas com alabardas, aqui perto! com ela estar mancomunado agora,
ADRIANA Oh Deus! É meu marido! Testemunhas pois ele me deixou neste momento
sede de que, invisível, ele pôde para ir buscar uma cadeia, tendo
transportar-se pelo ar. Neste momento prometido levá-la ao Porco-espinho,
vimo-lo entrar ali, e ora está fora! onde eu e Baltasar então jantamos.
Isso ultrapassa o entendimento humano. Não tendo aparecido, após a mesa
(Entram Antífolo de Éfeso e Drômio de Éfeso.) saí a procurá-lo e, em companhia
ANTÍFOLO DE ÉrESO * do senhor que aqui está, o achei na rua.
Justiça, grande duque! Eu te suplico: Então jurou-me este astucioso ourives
concede-me justiça por aquele que entrega me fizera da cadeia
serviço que te fiz quando, na guerra, que, Deus o sabe, nunca e nunca eu vira.,
recebi fundo golpe por salvar-te. Sob essa acusação mandou prender-me.
Pelo sangue que, então, por tua causa Obedeci-lhe e, sem demora, a casa
de mim se escoou, concede-me justiça. enviei meu servo empós de alguns ducados,
Eceu : Se o medo à morte não me faz caduco, que ele não trouxe. Então, em termos brandos
vejo meu filho Antífolo com Drômio. falei ao oficial para que, juntos,
ANTÍFOLO DE ÉrESO fôssemos até a casa.
Justiça, doce príncipe, contra essa Em caminho, porém, nós encontramos
mulher que tu me deste como esposa. minha mulher, a irmã e uma caterva
De mim ela abusou, fez-me alta injúria, de cúmplices. Com eles vinha um tipo
desonrou-me, tratou-me com tal fúria, denominado Pinch, um magricela,
que conceber não pode a mente humana espécie de esqueleto, um saltimbanco,
tudo o que hoje me fez essa megera. um charlatão e tirador de sortes,
Duque * Conta o que houve e acharás em mim justiça. um pobre-diabo de olhos encovados,
ANTÍFOLO DE ÉFESO um biltre de olhar baço, um morto-vivo.
Hoje, senhor, ela fechou-me a porta, Pensai só que esse escravo amaldiçoado
para se banquetear com gente à-toa, se arvorou a exorcista e, de olhos fixos
dentro de minha casa. nos meus, tomou-me o pulso e, com seu todo
Duque A falta é grave, de alma penada, a me fitar, me disse
muito grave. É verdade o que ele disse? que eu estava possesso. Nisso, todos
ADRIANA“ Não, meu bom lorde; eu, ele próprio e a mana caíram sobre mim, as mãos me ataram,
jantamos juntos hoje. Morrer quero, amarraram-me os pés, e, juntamente
se tudo o que ele diz não for mentira. com meu servo, também todo ele atado,
Luciana Não quero ver jamais a luz do dia, nos puseram num quarto úmido e escuro.
nem repousar à noite, se verdade Com os dentes pude desfazer os laços
não for quanto ela disse a Vossa Alteza. e libertar-me, vindo in'continenti
ÂNGELO - Quanta mentira! As duas são perjuras; procurar Vossa Graça, a quem suplico
fala a verdade o louco neste ponto. que se me dê satisfação completa
ANTÍFOLO DE ÉrESO * de tanta ofensa e de tão grande opróbrio.
Meu soberano, eu sei o que vos digo; ÂnceLo - Posso afirmar, milorde, que, em verdade,
o vinho não me turva o entendimento; hoje jantar ele não pôde em casa.
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Duque - Mas recebeu, ou não, tua cadeia? devo-lhe esse favor — rocu-me a corda.
ÂNcELO* Sim, milorde; ao pescoço ele a trazia, Ora sou Drômio, escravo desligado.
quando por nós passou; todos a viram. Eceu : Penso que ainda vos lembrais de mim.
SEGUNDO MERCADOR" Posso, demais, jurar que Drômio DE ÉrEso-
vos ouvi Vendo-vos, nos lembramos de nós mesmos,
com estes ouvidos, confessar que tínheis pois até há pouco estávamos atados,
a aludida cadeia, ao passo que antes, como ora vos achais. Pelo que vejo,
no mercado, dissestes o contrário. Pinch vos pôs também no seu regime.
Foi então que eu fiz uso desta espada Egeu - Por que me olhais dessa maneira? Penso
e fostes refugiar-vos na abadia, que sabeis quem eu sou.
de onde saístes, penso, por milagre. ANTÍFOLO DE ÉrESO : Até este instante
ANTÍFOLO DE o : jamais vos tinha visto em toda a vida.
Jamais entrei os muros da abadia, Eceu É que a tristeza me alterou bastante
nem nunca a espada contra mim tirastes. dês que nos separamos. Ás cuidosas
O céu me é testemunha de que nunca horas e o tempo com sua mão deforme
vi nenhuma cadeia. Tudo quanto me deixaram no rosto estranhos sulcos.
Mas respondei se pela voz, ao menos,
contra mim assacastes é mentira.
Duque : Quanta complicação! Até parece
não vos lembrais de mim.
ANTÍFOLO DE ÉFESO : Não.
que a provar vos deu Circe a beberagem.
Eceu- E tu, Drômio?
Se na abadia ele tivesse entrado,
DrôMio DE Éreso
ainda estaria lá. Se fosse louco,
Tampouco eu, meu senhor.
não poderia discorrer com tanto
EceU* Tenho certeza
sangue-frio e coerência. Assegurastes
de que de mim te lembras.
que ele jantou em casa; mas o ourives
Drômio DE ÉrEso - Ora, senhor, e eu tenho
afirma o oposto. E vós, que dizeis disso? certeza de que não me lembro. E quando uma pessoa
Drômio DE Éreso vos nega alguma coisa, será forçoso ficardes atado à
Ele e aquela mulher jantaram juntos, sua palavra.
no Porco-espinho. Eceu - Não me conhece a voz? Oh tempo ingrato!
CorTESÃ* É fato; foi quando ele De tal maneira a língua me fendeste
me arrebatou do dedo aquele anel. nestes curtos sete anos, que meu único
ANTÍFOLO DE ÉrESO filho não reconhece o som rachado
É certo, nobre duque; o anel é dela. de minhas desentoadas amarguras?
Duque: Viste quando ele entrou nesta abadia? Embora tenha o amarfanhado rosto
CorTESÃ: Tão certo como vejo Vossa Graça. recoberto de neve floconosa
Duque : É estranho. Ide chamar a superiora. do inverno destruidor da seiva viva,
(Sai uma pessoa do séquito.) e congelados já me estejam todos
Se não estais variando, enlouquecestes. os condutos do sangue, ainda me resta
Eceu : Mui poderoso duque, uma palavra nesta noite de vida algum resquício
me seja permitida. Ali percebo da memória de outrora, minha lâmpada |
o amigo que me vai salvar a vida, quase extinta ainda emite uma luz tênue, |
por mim pagando a multa cominada. ainda ouve alguma coisa o ouvido mouco.
Duque: Fala, siracusano, o que quiseres. E todas essas testemunhas dizem —
Eceu * Por obséquio, senhor, não sois Antífolo? não posso errar — que tu és meu filho Antífolo.
E não se chama Drômio aquele escravo ANTÍFOLO DE ÉFESO
que a vós está ligado? Não vi meu pai em toda a minha vida.
Drômio DE ÉrEso - Até há uma hora Eceu: Entanto, sabes, jovem, que há sete anos,
ligado a ele estava. Mas por sorte — me separei de ti em Siracusa.
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Sim, compreendo, meu filho: é que te atanhas sido a sorte dos dois, não sci dizer-te;
de me reconhecer nesta miséria. a mim coube a fortuna que contemplas.
AnríroLo* O duque e todos quantos me conhecem Duque : Isso completa a história começada
podem dar testemunho do que afirmo. nesta manhã. Estes irmãos Antífolos
Jamais vi Siracusa em toda a vida. tão parecidos, e os dois gêmeos Drômios,
Duque: Posso te assegurar, siracusano, que não se diferençam, e o naufrágio
que, há vinte anos, Antífolo é meu súdito a que ela se refere... Os pais são estes
e que ele nunca esteve em Siracusa. destes dois filhos que, por coincidência,
Vejo que a muita idade e os sofrimentos aqui juntos estão. Dize-me, Antífolo:
te fizeram perder de todo o juízo. era Corinto teu lugar de origem?
“(Volta a abadessa com Antífolo de Siracusa e Drômio de ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Siracusa.) Não, milorde; eu cheguei de Siracusa.
ABADESSA * Mui poderoso duque, olhai este homem Duque : Não vos distingo; põe-te deste lado.
que tem sofrido muitas injustiças. ANTÍFOLO DE ÉFESO-
(Todos se aproximam para olhá-lo.) De Corinto eu cheguei, gracioso lorde...
ADRIANA: Ou vejo mal, ou vejo dois maridos. Drômio pe Éreso - E eu com ele.
Duque * Um destes indivíduos gêmeo é do outro. ANTÍFOLO DE ÉFESO-
Dá-se o mesmo com aqueles. Mas quem pode «em companhia do guerreiro excelso,
dizer qual seja o espírito, qual o homem! Duque de Menafon, vosso alto tio.
Drômio DE SIRACUSA"* ADRIANA * Qual de vós dois jantou hoje comigo?
Drômio sou eu, senhor; mandai-o embora. ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE Éreso Fui eu, senhora.
Drômio sou eu; não permitais que eu saia. ADRIANA" Sois o meu marido?
ANTÍFOLO DE SIRACUSA* ANTÍFOLO DE ÉrESO*
Não sois Egeu? Ou acaso sois o espírito Não; respondo por ele.
dele somente? ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
Drômio DE SIRACUSA * O mesmo eu digo.
Oh meu antigo mestre! No entanto, ela de esposa me chamava,
Quem foi que vos atou dessa maneira? como de irmão esta gentil menina,
ÁBADESSA sua irmã. (A Luciana.) Tudo quanto então vos disse
Fosse quem fosse, a mim cumpre soltá-lo pretendo confirmar com mais sossego,
dessas cadeias, para que um marido, se sonho não for tudo que ouço e vejo.
com sua liberdade, a ganhar venha. ÂnceLo : Senhor, essa é a cadeia que eu vos dei.
Dize-me, velho Egeu, se já tiveste ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
por esposa uma Emília, que dois gêmeos Creio que sim; não penso em contestá-la.
te brindou de uma vez, dois lindos filhos? ANTÍFOLO DE ÉrEsO-
Oh! Se és o mesmo Egeu, fala-me! fala-me E vós, senhor, por ela me prendestes.
que aqui tu vês aquela mesma Emília. ÂnceLO- Creio que sim; não penso em contestá-lo.
Eceu Se não estou sonhando, tu és Emília. ApRIANA* Mandei pagar por Drômio vossa fiança;
Se és ela mesma, dize onde está o filho mas temo que ele não a tenha pago.
que contigo flutuou no fatal mastro? Drômio DE Éreso : Por mim não.
ABADESSA* Eu, ele e Drômio fomos recolhidos ANTÍFOLO DE SIRACUSA*
por gente de Epidamno. Pouco tempo Recebi esta bolsa de ducados
depois, no entanto, rudes pescadores por vós enviada por meu servo Drômio.
de Corinto tomaram-lhes meu filho, Vejo agora que os servos nós trocamos;
juntamente com Drômio, entre os primeiros eu passava por ele e ele por mim;
me deixando sozinha. Qual tivesse de aí terem nascido tantos erros.
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Apesar de Tito Andrônico ter sido distinguida por alguns críticos como indigna
do gênio de Shakespeare – T. S. Eliot chamou-a “uma das peças mais estúpidas e sem
inspiração já escrita” – a recente história da performance mostra que Tito pode ser
brilhantemente bem-sucedida com as plateias. Em sua produção memorável em
Stratford-upon-Avon em 1959, Peter Brook escolheu interpretar a entrada da violentada
e mutilada Lavínia (Vivien Leigh) com fitas escarlates penduradas em seus pulsos e
boca, em uma estilização visual que deu à violência uma seriedade emocional até
mesmo enquanto evita o sangrento realismo. As longas fitas traduziam o texto em
símbolos visuais. Tito (Laurence Olivier) era um sofrido veterano desde o início da
peça, desgastado pela guerra, semelhante a Lear em seus sofrimentos e agonias de
desilusões. A produção mais realista de Deborah Warner, no Teatro Swan, Stratford-
upon-Avon, em 1987, com Sonia Ritter como Lavínia, enfatizava o horror do estupro e
sua dolorosa relevância para um mundo do final do século vinte profundamente
preocupado com os direitos humanos e especialmente com a vitimização da mulher. As
interpretações de Tamora nesta e em outras produções variamente a viram como
exótica, sexualmente magnética, astuta, brincalhona e profundamente sádica. Mais
recentemente, uma versão inovadora em filme de Julie Taymor, com Anthony Hopkins
como Tito, fascinou uma plateia mais ampla com essa relativamente desconhecida peça
de violência gratuita. Hopkins mostra quão repulsivamente o humor negro pode ironizar
os efeitos da crueldade bruta e transformar nosso riso em uma tentativa de compreender
a aparentemente insondável propensão da humanidade pela desumanidade. A crítica
recente, também, considerou Tito seriamente como um estudo sobre a violência que é
dolorosamente relevante para nossa experiência moderna.
Tito Andrônico não relata eventos históricos atuais. Shakespeare, auxiliado por
Peele, parece tê-la reunido de uma miscelânea de fontes, nenhuma delas provendo um
modelo narrativo completo. Um panfleto do século dezoito chamado A História de Tito
Andrônico, outrora pensada como uma versão confiável de um original que os
dramaturgos tiveram acesso, foi agora compreendida como uma expansão da história
baseada em uma balada de 1594 que, por conseguinte, foi imitada na peça subsistente,
para que essa peça fosse a primeira na linha de sucessão. Os dramaturgos basearam-se
em materiais variados. As Metamorfoses de Ovídio deram-lhes várias lendas,
especialmente aquelas de Tereu, Philomel e Procne. Tiestes de Sêneca oferecia em uma
forma dramática uma fábula similar de vingança, na qual dois filhos são assassinados e
servidos aos seus pais em um horrendo banquete. Mesmo que Shakespeare tenha
utilizado tais prosas e fontes dramáticas ao escrever sua maior parte da peça, entretanto,
alguns estudiosos acreditam que uma ou mesmo duas peças sobre Tito podem ter
existido antes da de Shakespeare e que podemos deduzir as contribuições delas a sua
obra ao examinar duas peças continentais baseadas nelas: Tragaedia van Tito Andronico
(Alemão, 1620) e Aran en Titus (Holandês, 1641). Possivelmente uma das peças
anteriores foi “Titus & Vespacia” que entrou no Diário de Henslowe em 11 de Abril de
1592, como interpretada pelos Homens do Lorde Strange. Mesmo se os dramaturgos
usaram dessas fontes dramáticas e de prosa, entretanto, eles também conheciam bem os
originais de Ovídio e Sêneca que os inspiraram. A tragédia de vingança Elisabetana,
contendo algumas influências de Sêneca (apesar que esses elementos de Sêneca não
devem ser super-enfatizados), foi uma forte influência formativa, especialmente A
Tragédia Espanhola (cerca de 1587) de Kyd. O fenomenal sucesso recente de Marlowe
deixou sua marca: o assassinato de seu filho Mutius por Tito relembra Tamburlaine
Parte II, e a vanglória desenfreada similar ao Vício de Aaron retoma O Judeu de Malta.
As leituras dos dramaturgos de Virgílio são evidentes não apenas nas referências
repetidas a Dido e Enéas, mas também na escolha do nome Lavínia (A Eneida, Livro 7
ff.)
Igualmente violento e não natural é o assassinato por Tito de seu próprio filho
Mutius, por ajudar no sequestro da filha de Tito, Lavínia. Esse erro trágico origina-se,
como o primeiro, do estreito sentido de Tito de honra familiar. Tito tolamente recusou a
coroa imperial, concedendo-a, ao invés, para o traiçoeiro Saturnino, e prometeu Lavínia
como esposa ao novo imperador, apesar do noivado anterior dela com o irmão virtuoso
e rival de Saturnino, Bassianus. As razões de Tito para essas ações nunca são
satisfatoriamente explicadas, mas presumivelmente resultam de um enganado impulso,
embora honrado, de deixar outros exercerem o poder político enquanto ele, o valente
defensor de Roma, interpreta o papel de estadista sênior. Ele também, como Rei Lear,
imperioso e paternalista em sua própria família, insiste em fazer da sua maneira.
Quando os filhos de Tito e Bassianus são levados ao estratagema do sequestro da dama,
Tito não pode suportar a vergonha de sua promessa violada e então mata Mutius na luta
subsequente. Entretanto, por esse sacrifício em nome do Imperador, Tito recebe
somente ingratidão e hostilidade. Ademais, ele ensinou Tamora e seus filhos a buscarem
vingança.
(5.1.125-37)
Apesar de sua descrição do mal ser cômica e diabólica, esse retrato nos dá um
vívido insight das origens de um tipo particular de vilão sem remorso e soberbo que
Shakespeare iria desenvolver em suas peças históricas e tragédias posteriores.
Como uma peça de vingança, Tito Andrônico é teatralmente efetiva. Para ser
apreciada adequadamente, ela deve ser vista ou lida nesses termos, em vez de com as
expectativas que trazemos de Rei Lear. Aqui Shakespeare apresenta o barbarismo e a
civilização como opostos polares, mas ele recusa equacionar Roma com a civilização, e
não permite a Tito nenhuma escapatória do barbarismo que ele mesmo iniciou.
Nenhuma autoconsciência trágica cresce da humilhação de Tito, como o faz em Rei
Lear, nenhum remorso outro além de ter renunciado o poder a Saturnino. Ao invés da
autoconsciência trágica, somos deixados com uma esmagadora impressão do potencial
humano para a brutalidade. Essa visão é degenerada. A constante lembrança de um
mundo melhor de justiça e compaixão serve meramente para elevar o sentido irônico e
fútil da peça da bondade desperdiçada.
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Personagens
SATURNINO, filho mais velho do último imperador ÁLARBO
de Roma, posteriormente proclamado imperador. Demérrio | filhos de Tamora.
BassIANO, irmão de Saturnino. QuirÃo
Trro ANDRONICO, general romano.
Marco ANDRONICO, tribuno do povo e irmão de AARÃO, mouro amante de Tamora.
Tito. Um capitão, tribunos, mensageiros, um bobo;
romanos.
Lúcio Godos e romanos.
QuinTO Tamora, Rainha dos godos.
filhos de Tito Andronico. Lavínia, filha de Tito Andronico.
Márcio
Múcio Uma ama e uma criança negra.
SENADORES, tribunos, oficiais, soldados e criados.
O Menino Lúcio, filho de Lúcio.
Púsrrio, filho de Marco Andronico. Cena
EmíLio, nobre romano. Roma e arredores.
SEMPRÔNIO
Caro parentes de Tito.
VALENTINO
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Ato T: Ceml
Roma. Vê-se o túmulo dos Andronicos. Em cima, de nossos inimigos. Recoberto
os tribunos e os senadores. Depois entra por um lado de sangue, cinco vezes veio a Roma,
Saturnino com seus partidários, e por outro, Bassiano em dos campos de batalha carregando
companhia dos dele, com tambores e bandeiras. em esquife seus filhos valorosos.
Agora, finalmente, carregado
SaTURNINO * Nobres patrícios, da justiça amparo, de gloriosos espólios, volta a Roma
com armas defendei a minha causa! o mui famoso Tito, o alto Andronico,
E vós, meus compatriotas e ajudantes, em toda sua glória de guerreiro.
com vossos gládios defendei meus títulos Concito-vos, pela honra de tal nome,
hereditários. Sou o primogênito daquele para quem quereis um digno
do que na fronte carregou por último sucessor, e também pelos direitos
o diadema imperial de nosso burgo. do Capitólio e pelos do Senado,
Que a glória de meu pai em mim prossiga, que pretendeis honrar com deferência,
sem de meus anos se tornar imiga. a retirar-vos, desistir da força,
BassrANo - Romanos, companheiros, bons amigos, dispersar vossos homens, para, humildes
defensores de minha justa causa, e em paz, como compete a candidatos,
se até hoje graça achou ante os reais olhos defender vossos méritos.
da alta Roma Bassiano, descendente SATURNINO * Que efeito
de César, tomai conta da passagem sedativo em mim teve a bela fala
que vai ao Capitólio, não deixando desse tribuno!
que a desonra se achegue ao trono altivo Bassiano* De tal modo, Marco,
consagrado à virtude, à continência, tenho confiança em tua integridade
à justiça e à nobreza. Brilhe o mérito nunca abalada, e tanto te honro, e estimo
numa eleição honesta. À liberdade, teu nobre mano Tito e seus rebentos,
romanos, defendei com vossa escolha. e aquela a quem meu pensamento acata,
(Em cima entra Marco Andronico, com a coroa.) a graciosa Lavínia, alto ornamento
Marco: Príncipes, que por meio de partidos de Roma, que aqui mesmo os meus amigos
e de amigos, buscais, ambiciosos, devotados disperso e minha causa
o governo exercer, ficai sabendo a sorte entrego e à proteção do povo,
que os romanos, dos quais com muito zelo a fim de que ele a ponha na balança.
defendemos a causa, por unânime (Saem os seguidores de Bassiano.)
resolução na escolha de seu chefe SATURNINO * Amigos que ampararam meu direito,
a Andronico indicou, chamado o Pio, a todos agradeço e vos dispenso,
pelos serviços leais e numerosos e ao amor e ao favor de minha pátria
que a Roma tem prestado. Mais valente me entrego, como entrego minha causa.
guerreiro, mais nobre homem não se encontra (Saem os seguidores de Saturnino.)
atualmente entre os muros da cidade, Roma, justa e graciosa sê comigo,
Pelo Senado à pátria foi chamado como confiante e bom eu sou contigo.
das duras guerras contra os godos bárbaros. Abri as portas e deixai que eu entre.
Com seus filhos, dos nossos inimigos BassraNo : Como eu, tribunos, candidato humilde.
terror constante, subjugou um povo (Fanarras. Todos se dirigem para o Senado.)
de valor e adestrado nos combates. (Entra um capitão.)
Dez anos já passaram desde que ele, Carirão : Romanos, dai lugar! Eis que Andronico,
tomando a peito a causa da alta Roma, patrono da virtude, o mais valente
castigou com as armas a arrogância campeão de Roma, vencedor em todas
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Vamos, romanos. Sem nenhum resgate, Às cegas não confio em quem fez mofa
libertemos os presos. Nosso título de mim alguma vez; em ti tampouco,
proclamai com trombetas e tambores. nem em teus filhos, falsos e insolentes,
(Fanfarra, Saturnino, por mímica, faz a corte a Tamora.) que se reuniram para desonrar-me.
BassiANo : Senhor Tito, com vossa permissão, Tirante Saturnino, não havia
esta donzela é minha. quem em Roma servisse de brinquedo?
(Apodera-se de Lavínia.) Mui de acordo esses atos, Andronico,
Trro- Como! Como! estão com tua afirmativa tola
meu senhor! Por acaso falais sério? de que eu pedi de tuas mãos o império.
BassIANO * Sim, nobre Tito, e resolvido, ainda, Trro - Monstruoso! Que censura me assacaste?
a defender à força o meu direito. SATURNINO * Prossegue assim em teu caminho;
Marco - Suum cuique, é a justiça dos romanos; entrega essa mulher volúvel ao que a espada
só reclama o que é dele nosso príncipe. por ela manejou. Vais ter um genro
Lúcio - E há de obtê-lo, se Lúcio tiver vida. muito valente, feito para aliar-se
Trro : Traição! traição! Onde se encontra a guarda à malta de teus filhos turbulentos,
do imperador? Traição, senhor! Lavínia que o alvoroto implantaram na república.
foi surpreendida. Trro- O coração ferido essas palavras
SATURNINO Surpreendida, como? me atingem como acúleos.
Por quem? SATURNINO * Por tudo isso,
BassiANO * Por quem agora arrebatara soberana dos godos, admirável
de todo o mundo a sua noiva cara. Tamora, que, tal como Febe augusta
(Saem Marco e Bassiano, com Lavínia.) entre suas ninfas, na penumbra deixas
Múcio - Ajudai-nos, irmãos, a retirá-la; as romanas mais belas e galantes:
com meu gládio defendo esta saída. se concordares nesta minha súbita
(Saem Lúcio, Quinto e Márcio.) resolução, escolho-te, Tamora,
Trro : Príncipe, ide empós dela, que, de volta, para noiva, criando-te ora mesmo
vo-la trarei já, já. de Roma a imperatriz. Dize, Rainha
Múcio - Por este lado, dos godos: não aplaudes minha escolha?
senhor, não passareis. E agora juro pelos nossos deuses,
Trro- Menino à-toa, já que padre e água-benta temos perto,
como! Queres barrar-me a estrada em Roma? e os fachos brilham tanto, estando tudo
(Apunhala Múcio.) pronto para o himeneu, que me é impossível
Múcio : Socorro, Lúcio! Aqui! (Morre.) rever de Roma as ruas ou de novo
(Volta Lúcio.) entrar em meu palácio, se comigo
Lúcio Fostes injusto, daqui não te levar consorte.
meu senhor, mais do que isso, pois matastes Tamora- E ante a face do céu a Roma eu juro
numa querela injusta vosso filho. que se elevar até ele Saturnino
Trro - Não, filhos meus não sois, nem vós nem ele. a Rainha dos godos, ela escrava
Nunca meus filhos me desonrariam será de seus desejos, amorável
por esse modo. Vamos, restituí ama e mãe para sua mocidade.
Lavínia, biltre, ao nosso imperador. SATURNINO - Bela Rainha, vamos ao Panteão.
Lúcio - Morta, se o desejares, porém nunca Acompanhai, senhores, vosso digno
para ser sua esposa, por achar-se imperador e sua bela noiva,
prometida para outro. mandada pelo céu a Saturnino,
(Sai.) que lhe dará futuro mais risonho.
SATURNINO * Não, não, Tito, Realizaremos lá o desposório.
o imperador já não precisa dela, (Saem todos, com exceção de Tito.)
nem de ti, de ninguém de tua estirpe. Trro - Convite não me fez para o cortejo.
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meu senhor; não vos digo senão isso, À franqueza da cólera é que exprime
nem menos vos desejo. E aqui despeço-me. seu imenso pesar. Para agradar-me,
SATURNINO * Traidor, havendo lei em Roma ou portanto, lança-lhe um olhar benigno.
força no nosso braço, tu e teus sequazes Não percas, por suposições sem base,
vireis a arrepender-vos deste roubo. um amigo tão digno, nem aflijas
Bassiano : Chamais, senhor, de roubo o apoderar-me seu gentil coração olhando-o duro.
do que é meu mesmo, a que era minha noiva (À parte, a Saturnino.)
e ora é minha consorte? Que decidam Senhor, deixai que eu vos oriente nisto;
sobre isso as leis de Roma, que, entrementes, cedei, dissimulai vosso desgosto.
de posse fico do que me pertence. É de temer que o povo, juntamente
SATURNINO - Pois não, senhor. Tratais-nos secamente: com os patrícios, após melhor exame,
mas, se vida tivermos, haveremos se passe para Tito, derrubando-vos,
de vos tratar mais secamente ainda. então, sob o pretexto de que fostes
BassIANO * Senhor, por quanto fiz, do melhor modo para com ele ingrato, o que reputa
que possível me for, sou responsável, Roma um dos crimes mais abomináveis.
embora nisso empenhe a própria vida. Concedei-me esse ponto e aos meus cuidados
Apenas direi isto a Vossa Graça: deixai o resto, que hei de achar o dia
por meus deveres todos para Roma, para matar a todos e a família
este nobre senhor, o nobre Tito destruir e seu partido, o cruel Tito
foi ultrajado na honra e no conceito, juntamente com seus traidores filhos,
pois, tentando Lavínia restituir-vos, a quem a vida supliquei, embalde,
com a própria mão matou seu filho Múcio, de meu querido filho. Hei de ensinar-lhes
por zelo a vossa causa e de indignado o que seja ajoelhar-se uma Rainha
por contrariado ver-se numa dádiva em plena rua e suplicar em vão.
tão espontânea e livre. Assim, concede-lhe (Alto.)
o teu favor de novo, Saturnino, Querido imperador, vem! Andronico,
pois em seus atos ele pai e amigo vem para cá. Levanta este bom velho,
de ti se mostrou sempre e da cidade. e o coração lhe alegra, que sucumbe
Trro - Deixa de defender meus atos, príncipe à vista dos bulcões de teu conspecto.
Bassiano. Desonrado eu fui somente SATURNINO De pé, Tito, de pé, que minha esposa
por ti e esses aí. Roma e o céu justo prevaleceu.
podem testemunhar o acatamento Trro: À Vossa Alteza e a ela,
€ o amor que votei sempre a Saturnino. senhor, muito agradeço. Essas palavras
Tamora * Muito digno senhor, se em qualquer tempo e esses olhares me dão outra vida.
teus olhos reais algum prazer acharam Tamora Incorporado a Roma, Tito, me acho,
em contemplar Tamora, então permite reconhecida agora felizmente
que imparcialmente sobre todos fale: como romana. Cumpre-me, portanto,
perdoa, amor, o que passou, te peço. aconselhar o imperador em tudo.
SATURNINO * Como, senhora! Ver-me desonrado Morrem hoje, Andronico, as rixas todas;
de público, e perdoar covardemente, deixai que seja o meu mais belo título,
sem de nada tomar cabal vingança? meu senhor, ter-vos eu reconciliado
Tamora * Não, meu caro senhor. As divindades com estes vossos amigos. Dei a minha
de Roma não consintam que eu me tome palavra de honra, príncipe Bassiano,
para vós um motivo de desonra. ao meu marido em como de futuro
Mas a honra atrevo-me a empenhar em como vos mostrareis mais dócil e tratável.
o senhor Tito em tudo está inocente. Assim, ficai tranquilos, meus senhores.
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E vós, também, Lavínia. E agora todos, perdôo a falta odiosa destes moços.
seguindo meu conselho, arrependidos Levantai-vos.
ireis ficar de joelho, para a Sua Lavínia, muito embora me tivésseis
Majestade pedir que vos perdoe. deixado como a um biltre, tive sorte,
Lúcio - Assim faremos, e juramos diante tendo jurado pela morte certa
de Sua Alteza que fizemos tudo não me afastar do altar como solteiro.
com boas intenções, visando apenas Vamos; se houver espaço no palácio
a honra de nossa irmã e a nossa própria. do imperador para um noivado duplo,
Marco : É o que eu também confirmo sob palavra. meus hóspedes sereis, Lavínia, e todos
SATURNINO * Retirai-vos; cessai de incomodar-nos. esses vossos amigos. Hoje o dia
Tamora Não, não, meu caro imperador; teremos vai ser de amor, Tamora.
de ser amigos. Marco e seus sobrinhos Tiro: Caso Vossa
vos imploram de joelhos. Impossível Majestade concorde, amanhã mesmo
será que indefirais esse pedido. comigo caçareis pantera e veado.
Vira para o meu lado, coração. Com latidos e trompa, muito cedo
SATURNINO : Por teu pedido, Marco, e de teu mano, vos daremos bom dia.
bem como pelas súplicas instantes SATURNINO : Pois que seja,
da graciosa Tamora, minha esposa, Tito, assim mesmo; muito agradecido.
(Saem.)
Ato HH Cenal
Roma. Diante do palácio. do que amarrado Prometeu no Cáucaso.
Entra Aarão. Fora as vestes de escravo e idéias baixas!
Luzido querer ser, brilhar com pérolas
Aarão * Tamora já subiu para o alto Olimpo, e ouro para servir à soberana
tão hábil como tu e tão capaz Amo Lavínia mais que a todo o mundo.
de alcançar o favor de uma senhora. Demérrio : Mocinho, tem cuidado; faze escolha
Aarão: Aqui! Aqui! Dois namorados brigam! mais modesta, porque Lavínia é a meta
Demérrio - Menino, se, por imprudência, nossa de teu irmão mais velho.
mãe vos deu essa espada de brinquedo, AaRrÃo- Porventura
tanto vos exaltais, que contra um próprio ficastes louco? Ignorais, acaso,
parente arremeteis? Deixai guardada como os homens em Roma são violentos
vossa ripa até terdes aprendido e impacientes, sem nunca permitirem
como deveis brandi-la. competição no amor? Senhores, digo-vos
QuirÃo: Nesse em meio, que assim fazendo procurais a morte.
senhor, a minha pouca habilidade QuirÃo Aarão, aceitaria dez mil mortes
te mostrará quanto a fazer me atrevo. para vir a possuir a minha amada.
Demérrio - Como, menino! Estais tão exaltado? Aarão : Possuir! De que maneira?
(Sacam das espadas.) DemérriIO * Que te causa esse espanto? Ela é mulher;
Aarão : Senhores, ora! Ousais sacar da espada pode ser cortejada. Ela é mulher;
tão perto, assim, da casa do monarca, pode ser conquistada. Ela é Lavínia;
e defender vossa querela em público? poderá ser amada. Ora, homem! Ora!
Conheço bem a causa dessa rixa. Muito mais água passa pelo moinho
Mas não quisera por nenhum tesouro do que o moleiro pensa, e é muito fácil —
que vos ouvisse quem tem parte nisso, sabe-lo bem — tirar uma fatia
nem vossa mãe por muito mais quisera de um pão antes cortado. Embora seja
vir a ficar tão desonrada em Roma. Bassiano irmão do Rei, gente mais alta
Corai do que fazeis. Guardai a espada! já tem usado o enfeite de Vulcano.
Demérrio : Não, só o farei depois de mergulhá-la AARÃO (à parte) * Pois não, tão alta como Saturnino.
no peito dele e, pela goela abaixo, DemérRio Então, por que desesperar quem sabe
ter-lhe empurrado os termos insultuosos fazer a corte com olhares meigos,
que ele aqui disse para desonrar-me. palavras e presentes? Como! Nunca
QuirÃo : Para isso estou disposto e preparado, te aconteceu matar estranha corça
covardão desbocado, que trovejas e carregá-la ante o nariz do dono?
apenas com palavras, sem coragem AarÃo Um rapto, ou coisa assim, bem me parece,
teres de fazer uso desse gládio. melhor vos conviria nesse caso.
Aarão - Para trás, digo! QuirÃo: Oh! conviria.
Agora, pelos deuses que os guerreiros DemérRriIO- Aarão, deste no vinte.
godos adoram, esta rixazinha Aarão - Prouvera que também houvésseis dado,
poderá desgraçar-nos num momento. porque ora eu não me visse tão cansado
Senhores, não pensastes, porventura, com todo este barulho. Ouvi-me! ouvi-me!
no risco que correis, para pisardes Sois tão tolos assim, para brigardes
nos direitos de um príncipe? Lavínia por semelhante coisa? Ficaríeis
terá caído tanto, ou tão sem brio aborrecidos, se ambos obtivésseis
Bassiano está, que pelo afeto dela êxito junto dela?
possam surgir disputas, sem nenhuma QuirÃo- Eu não, decerto.
proibição, castigo nem vingança? Demérrio : Nem eu também, se tomar parte nisso.
Muito cuidado, jovens! Se a Rainha Aarão Ora, que opróbrio! Que vos faça amigos
viesse a saber a causa desta briga, quanto ora vos separa. Com política
desafinada a música acharíeis. e habilidade alcançareis o intento.
QuirÃo - Que me importa o saiba ela e todo o Seja este vosso plano; não podendo
mundo? levar a cabo o que é do vosso agrado,
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Ato II - Cenall
Trecho isolado da floresta. meu olhar fixo e anunciador da morte,
Entra Aarão com uma bolsa de ouro. meu silêncio, esta atroz melancolia,
este velo lanoso de cabelos
AarÃo * Quem tem inteligência há de julgar-me que se distende agora como serpe
destituído dela, porque embaixo que se prepare para o fatal bote?
de uma árvore tanto ouro enterrar venho, Não, princesa, não são sinais de Vênus.
dele, assim, me privando inteiramente. No coração abrigo só vingança,
Fique sabendo, pois, quem tão mesquinho morte tenho nas mãos, sangue e vindita
conceito faz de mim que todo este ouro martelam-me a cabeça. Ouve, Tamora,
um plano me cunhou que, se com jeito Rainha de minha alma, que só aspira
for realizado, há de trazer ao mundo conservar teu céu íntimo; este dia
uma obra-prima de velhacaria. vai ser para Bassiano decisivo;
Ouro, aí fica e o mal produze asinha ficará muda a sua Filomela;
em quem achar a esmola da Rainha. teus filhos vão roubar-lhe a castidade
(Esconde o ouro.) e a mão lavar no sangue de Bassiano.
(Entra Tamora.) Vês esta carta? Lê-a, por obséquio
Tamora * Querido Aarão, por que te mostras triste, e ao Rei entrega este fatal escrito.
quando tudo em redor é provocante Não me perguntes nada mais, estamos
de tanta alacridade? Os passarinhos sendo espiados. Eis que vem chegando
em cada ramo cantam melodias, uma parte do nosso gordo espólio
a serpente se aquece ao sol risonho, que não suspeita de sua queda próxima.
as folhas tremem sob o vento fresco, Tamora * Oh! doce mouro, para mim mais doce
no chão fazendo sombra axadrezada. que a própria vida!
Descansemos, Aarão, sob este abrigo, AARÃO Nada mais, Rainha;
e enquanto os ecos brincalhões despistam Bassiano já vem perto. Neste em meio
os cães, com voz aguda repetindo vou procurar teus filhos e ajudá-los,
a fanfarra das trompas harmoniosas seja qual for a causa que defendam.
como se a um só tempo percebêssemos (Sai.)
uma dupla caçada, descansemos (Entram Bassiano e Lavínia.)
para apreciar esse latido alegre. BassiaNo : Oh! quem vemos? De Roma a alta
E depois do conflito apaixonado Rainha, separada de seu brilhante séquito?
que o herói errante e Dido — é o que se conta — Ou será Diana com a aparência dela,
outrora aproximou, quando se viram que seus bosques sagrados abandona
por feliz tempestade surpreendidos para ver a caçada na floresta?
e em discreta caverna se abrigaram: TAaMoRA* Atrevido censor de nossos passos
assim, nos braços um do outro presos, particulares, se eu tivesse a força
concluído o passatempo, poderemos que a Diana todos dão, desde este instante
dormir um sono de ouro, enquanto as trompas, com os cornos de Actéone ficaras,
o latido dos cães, a voz dos pássaros e os cachorros a forma transmudada
serão o canto, para nós, das amas, te dilacerariam, insolente,
que faz dormir no berço a criancinha. intrometido que és.
AARÃO * Minha senhora, muito embora Vênus Lavínia Com vossa graça,
mande em vossos desejos, é Saturno gentil imperatriz, mas todos dizem
dominador dos meus. Que significa que em matéria de cornos sois sabida,
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sendo de crer que vós e o vosso mouro quando não cai incontinenti morta,
vos apartastes dos demais apenas Mal tinham terminado o infernal conto,
para tentar a prova. Ampare Jove ameaçaram-me os dois de me amarrarem
dos cães vosso marido neste dia, no tronco deste teixo pavoroso,
que poderão tomá-lo-por um gamo. para eu vir a morrer por modo horrível.
BassiaNo : Rainha, podeis crer, vosso noturno Chamaram-me, depois, de infame adúltera,
cimeriano vossa honra deixa escura goda lasciva, enfim, todos os termos
como a epiderme dele: detestada, insultuosos que nunca ouvido humano
manchada, abominável. Por que causa tenha entendido para tal efeito.
vos encontrais do séquito afastada? E, se, por um milagre, não tivésseis
Por que deixastes vosso bom cavalo aparecido aqui, eles teriam
branco de neve e viestes esconder-vos levado a cabo o plano. Assim, vingai-me,
neste recanto obscuro, pelo bárbaro se amais a vossa mãe e não quiserdes
mouro seguida, se não vos houvesse que de chamar de filhos eu vos deixe.
trazido algum desejo obsceno e torpe? DemérriO : Eis à prova de que ainda sou teu filho.
Lavínia * E tendo sido perturbada em vosso (Apunhala Bassiano.)
divertimento, é justo que meu nobre QuirãÃo - E isto vai demonstrar se eu tenho força.
senhor seja acoimado de impudente. (Apunhala também Bassiano, que morre.)
Por favor, vamos logo, concedamos-lhe
Lavínia * Semíramis... Não, não! Tamora bárbara,
os prazeres do amor da cor de corvo.
pois só te fica bem teu próprio nome,
Este vale é mui próprio para o feito.
é tua a vez.
BassiaNo : O Rei meu mano, vai saber de tudo.
Tamora Empresta-me essa adaga.
Lavínia * Apontado já foi por essas coisas.
Vereis que a mão de vossa mãe, meus filhos,
Bom Rei, como tens sido ludibriado!
punir sabe os insultos a ela feitos.
Tamora : Como tenho paciência para tanto?
Demérrio *
(Entram Demétrio e Quirão.)
Parai, senhora! Ela vai ver mais que isso.
Demérrio * Querida soberana, mãe graciosa,
Malhai primeiro o trigo e, após, a palha
qual a razão de achar-se vossa Alteza
às chamas entregai. Da castidade
tão pálida e confusa?
TAMORA* Porventura se orgulha esta boneca, de seu voto
não terei causa para ficar pálida? conjugal, da lealdade, e com virtude
Estas duas pessoas me atraíram tão bem pintada contra vós se atreve.
para este vale, como vedes, árido Levará, pois, tudo isso para o túmulo?
e desolado; as árvores, embora QuirÃo - Se tal se der, eunuco me declaro.
no verão estejamos, desfolhadas Levemos o marido dela para
e ressequidas se acham, pelo musgo qualquer lugar secreto e de seu corpo
dominadas e pelo fatal visgo. sem vida um travesseiro para nossa
Nunca se mostra o sol, nada aqui vive, luxúria preparemos.
se não for tão-somente o fatal corvo Tamora* Após terdes,
e a coruja noturna. E, ao me mostrarem porém, provado o mel, tirai a vida
este passo horroroso, me disseram dessa vespa, porque ela não nos pique.
que aqui, durante a noite, às horas mortas, QuirÃo : Sobre isso, vos afirmo: tomaremos
dez mil espíritos, silvantes serpes, nossas medidas. Vamos, minha bela,
dez mil támidos sapos e outros tantos teremos de provar, à força, dessa
ouriços tão terrível e confusa virtude que guardais com tanto zelo.
gritaria levantam, que a pessoa Lavínia * Oh Tamora! tens rosto feminino...
mortal que a perceber logo enlouquece, Tamora- Levai-a logo, não desejo ouvi-la.
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Lavínia - Pedi-lhe, meus senhores, que me escute Tamora- Que pedias, então? Deixa-me, louca!
só uma palavrinha. Lavínia * Quero a morte imediata, simplesmente,
DEeMéÉTRIO* Dai-lhe ouvidos, e algo mais, que dizer não me permite
bela senhora. Seja vossa glória a língua da modéstia. Oh! não permitas
contemplar suas lágrimas, mas que estas que eles dêem expansão a essa luxúria
ao coração vos sejam como as gotas que é muito pior que a morte. Nalgum fosso
da chuva para a rocha inabalável. me atira, horrível, onde o olhar humano
Lavínia - Em que tempo se viu os tigrezinhos jamais possa enxergar-me. Assim fazendo
algo à mãe ensinarem? Essa fúria serás uma assassina caridosa.
já a recebeste dela, não lha ensines. Tamora* Meus filhos privarei de sua paga?
O leite que mamaste virou mármore; Essa bondade seu prazer estraga.
tua crueldade vem do peito dela. Demérrio * Vamos! Já nos prendeste muito tempo.
Mas os filhos nem sempre saem à mãe. Lavínia - Nenhuma compaixão nem graça encontro?
(A Quirão.) Oh criatura bestial, mancha e inimiga
Concita-a a ser como mulher: piedosa. de nosso comum nome: que a ruína
QuirÃo - Desejas que bastardo me declare? te caia em cima...
Lavínia * Não gera o corvo a cotovia, é certo. QuirÃo* À boca vou tapar-te.
Porém já ouvi contar— oh! se isso agora Traze o marido dela; é nesta furna
se confirmasse! — que pela piedade que Aarão mandou lançássemos o corpo.
movido, o leão consente que lhe aparem (Demétrio atira o corpo de Bassiano no precipício; depois
as garras reais, como há também quem diga saem Demétrio e Quirão arrastando Lavínia.)
que os corvos dão comida aos pequeninos Tamora* Adeus, filhos; em bom lugar a pondes.
enjeitados, enquanto nos seus ninhos Jamais conhecerá prazer legítimo
deixam morrer à fome os próprios filhos. meu coração, enquanto não ficarem
Oh! muito embora o coração de pedra os Andronicos todos liquidados.
te diga não, revela-te comigo, Vou ver agora o meu querido mouro.
não direi tão bondosa, mas amiga. E que ela perca logo o seu tesouro.
Tamora Não sei o que seja isso. Vamos logo! (Sai)
Lavínia : Oh! deixa que to ensine agora. Em nome (Entra Aarão, com Quinto e Márcio.)
de meu pai que podendo dar-te a morte, AarÃo * Vinde, senhores, o pé firme adiante.
te deixou viva, não te mostres dura, Vou mostrar-vos o horrível precipício
abre os ouvidos surdos. em que a pantera vi adormecida
TamoRA- Muito embora profundamente.
nunca ofendido me tivesses, nunca, Quinto Tenho a vista turva;
justamente por causa desse nome não sei o que seja isso.
teria de mostrar-me sem piedade. Márcio * Eu também tenho,
Lembrai-vos, filhos, que eu chorei debalde posso afirmar. Não fosse ter vergonha,
para que vosso irmão salvar pudesse deixava a caça e descansava um pouco.
do sacrifício, mas o fero Tito (Cai no fosso.)
não se deixou mover. Assim, levai-a Quinto * Como! Caíste! Que traiçoeiro fosso
e com ela fazei o que entenderdes. será este, de boca recoberta
Quanto pior para ela, mais aplausos de espinhos rudes, cujas folhas mostram
de mim recebereis. gotas de sangue fresco, tão recente
Lavínia: Oh! sê Rainha como o orvalho nas flores matutinas?
gentil, Tamora, e neste mesmo instante Esse lugar parece ser funesto.
com tua própria mão me tira a vida. Fala, mano; feriste-te na queda?
Não era a vida que eu pedia tanto; Márcio * Sim, feri-me no quadro mais horrendo
morto Bassiano, eu também morta fora. que ao coração chorar já fez a vista.
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Áto IH Cena IV
Outra parte da floresta. que meus bens todos possam despertar-me,
Entram, Demétrio e Quirão, conduzindo Lavínia, Se estou desperto, venha algum planeta
violada, com as mãos e a língua decepadas. por terra derrubar-me, porque possa
dormir o sono eterno. Fala, meiga
Demérrio : Se falar podes, vai contar agora sobrinha, que impiedosas mãos e bárbaras
quem te violou e te cortou a língua. te mutilaram desse modo e o corpo
QuirÃo Escreve o pensamento, exprime a idéia te deixaram privado dos dois galhos,
e, se puderes, fazes desses cotos esses doces ornatos, cuja fronde
o papel de escrivão. sombrosa os próprios reis se disputavam,
DEMÉTRIO* Vê como pode para nela dormir, sem que pudessem
garatujar só com sinais e gestos. jamais a dita obter incalculável
Qurrão - Vai buscar água para as mãos lavares. de conquistar-te o amor? Por que não falas?
Demérrio : Língua não tem para pedir, nem mãos Oh dor!
com que possa lavar-se. Ora deixemo-la Um rio carmesim de sangue quente,
sozinha em seu passeio silencioso. como fonte revolta pelo vento,
QuirÃo : Fosse eu, e me haveria já enforcado. se eleva e cai entre os teus lábios róseos,
Demétrio : Ah! se pudesses preparar a corda! sumindo e aparecendo com teu hálito.
(Saem Demétrio e Quirão.) Algum Tereu, decerto, violentou-te,
(Entra Marco.) e, para que não fosse descoberto,
Marco - Quem é? Minha sobrinha, que se escapa a língua te cortou. Viras o rosto
tão velozmente? Prima, uma palavra. ah! — de vergonha, e não obstante teres
Onde está vosso esposo? Se isto é sonho, perdido tanto sangue, que despejas
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como fonte com bocas três abertas, bordar muito melhor que Filomela.
incendem-se-te as faces como o rosto Oh! se esse monstro houvesse visto as tuas
do Titã, quando encontra alguma nuvem. mãos, como as folhas de frondoso choupo,
Devo falar por ti? Foi isso mesmo? palpitarem nas cordas do alaúde,
Oh! se o teu coração eu conhecesse não lhes tocara nem para salvar-se.
e soubesse quem foi o miserável Ou se tivesse nalgum tempo ouvido
e o amaldiçoasse, para meu alívio! a harmonia celeste produzida
À mágoa reprimida, como forno por essa doce língua, a faca houvera
cuja boca é tapada, abrasa o peito, soltado e adormecera, como Cérbero
deixando o coração desfeito em cinzas. aos pés do poeta trácio. Vamos logo
À linda Filomela a língua, apenas, deixar teu pai sem vista, porque um quadro
veio a perder, e num dorido pano como este deixa cego qualquer pai.
pôde bordar tudo o que lhe ia na alma. Uma hora de tormenta alaga os prados
Mas ficaste privada desse meio, mais fragrantes. Que não farão dos olhos
adorável sobrinha, que um mais forte de teu pai meses e anos só de prantos?
Tereu vieste a encontrar. Ele cortou-te Vem, não me fujas: chorarei contigo.
os delicados dedos, que sabiam Fosse meu choro à tua dor abrigo!
(Saem.)
Ato HI Cenal
Lágrimas, apagai a sede seca
Entram senadores, tribunos e oficiais de justiça com da terra; o doce sangue de meus filhos
Márcio e Quinto que, amarrados, vão sendo conduzidos a deixaria rubra de vergonha.
para o lugar de execução; Tito, como suplicante, vai à (Entra Lúcio, com a espada desembainhada.)
frente. Tribunos reverendos, gentis velhos,
soltai meus caros filhos, comutai-lhes
Trro - Meus venerandos padres, escutai-me! a sentença de morte, permitindo
Parai, nobres tribunos! Por piedade que vos afirme quem não chorou nunca
à minha idade, cujos anos jovens que hoje lágrimas teve eloguentíssimas.
foram gastos em guerras perigosas, Lúcro : Oh nobre pai! é em vão que chorais tanto.
enquanto vós dormíeis calmamente; Nenhum tribuno vos está ouvindo;
por todo o sangue que eu verti na grande não há ninguém aqui. À pedra dura
causa de Roma, pelas noites frias relatais vossas mágoas.
que a velar eu passei e pelas lágrimas Trro- Ah! meu Lúcio!
que ora vedes a encher os velhos sulcos deixa-me interceder por teus irmãos.
de minhas faces: sede compassivos Graves tribunos, peço-vos de novo...
para meus filhos ora condenados, Lúcio : Meu gracioso senhor, nenhum tribuno
que alma não corrompida não possuem, vos ouve neste instante.
como em geral se pensa. Pelos outros Trro: Pouco importa,
vinte e dois filhos nunca chorei tanto, rapaz. Se eles me ouvissem, não veriam
porque morreram no alto leito da honra. minha pessoa; mas embora a vissem,
Por estes, estes, na poeira escrevo, de mim não se apiedaram. Mas preciso
nobres tribunos, a profunda mágoa pedir-lhes, muito embora sem proveito.
do coração com minhas tristes lágrimas. Por isso digo às pedras meus pesares.
(Atira-se ao chão. Os senadores, tribunos etc. passam por Se às minhas dores responder não podem,
ele, e saem com os prisioneiros.) num ponto são melhores que os tribunos,
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por não interromperem meu relato. em preces vãs têm elas sido alçadas;
Quando choro, recebem minhas lágrimas, delas fiz uso sem nenhum proveito.
humildes, a meus pés, só parecendo A única coisa que ora exijo delas,
que de mim se condoem. Se em solene por isso, é que uma ajude a cortar a outra.
vestuário se envolvessem, não teria É bom, Lavínia, que ora mãos não tenhas;
Roma tribunos de tão grande preço. para servirem Roma inúteis foram.
A pedra é mole como cera; duros Lúcio Dize, gentil irmã: quem te fez isso?
como pedra são todos os tribunos. Marco - Que dor! Esse instrumento delicioso
Calada é a pedra e não nos incomoda; do pensamento dela, que eloquência
os tribunos, com sua fala, à morte tão agradável modulava sempre,
condenam qualquer um. foi arrancado da gentil gaiola,
(Levanta-se. ) onde, tal como pássaro melódico,
Mas por que causa cantava suaves notas e variadas,
estás de espada nua? que as ouças de nós todos deleitavam.
Lúcio - Para os manos Lúcio : Fala por ela: quem lhe fez tal coisa?
livrar da morte e, por tentado havê-lo, Marco
os juízes me exilaram para sempre. Oh! no parque a encontrei assim, vagante,
Trro - Oh! que homem venturoso! Revelaram-se procurando esconder-se, como a corça
amigos teus. Como, insensato Lúcio, quando é ferida de incurável golpe.
não percebeste que não passa Roma Trro - Sempre ela foi a minha corçazinha.
de um deserto de tigres? Necessitam Quem a feriu me deu mais fundo golpe
de presa os tigres, não havendo em Roma do que se me matasse. Agora me acho
presa alguma, afora eu e minha gente. como alguém num rochedo circundado
Quanto és feliz, por teres-te afastado pelo mar bravo, que a maré montante
desses devoradores! Mas, que vejo? vê subir em cada onda e espera apenas
Quem é que o mano Marco vem trazendo? que uma vaga invejosa enfim o absorva
(Entram Marco e Lavínia.) nas salgadas entranhas. Foi por este
Marco Tito, caminho que meus filhos desgraçados
prepara para o choro os velhos olhos, seguiram para a morte; este outro filho
ou o nobre coração para partir-se. aqui está: exilado foi de Roma.
Trago para teus anos dor pungente. Meu mano aqui, minhas desgraças chora.
Trro - Irá matar-me? Então desejo vê-la. Mas o que mais me punge a alma angustiada
Marco - Esta foi tua filha. é a querida Lavínia, mais querida
Trro: É ainda, Marco. do que minha própria alma. Se eu te houvesse
Lúcio - Oh! que desgraça! Mata-me este quadro. apenas em pintura visto assim,
tal como o doce orvalho sobre o lírio AarÃo- Tito Andronico, o imperador meu amo
colhido e quase murcho. te manda dizer isto: se a teus filhos
Marco Talvez chore tens amor, que então Marco, Lúcio, ou mesmo
a morte do marido; talvez mesmo tu, velho Tito, uma das mãos decepe
por saber que os irmãos são inocentes. e a envie para o Rei, que ele, de volta,
Tiro - Se eles mataram teu esposo, fica te mandará com vida teus dois filhos,
contente, pois punidos foram ambos. sendo essa a multa pelo crime deles.
Não, impossível é que cometido Tiro - Oh gracioso monarca! Aarão bondoso!
tivessem tão feio ato, como a prova Canta o corvo tal como a cotovia,
a dor que a própria irmã revela agora. que da aurora nos traz feliz notícia?
Deixa, Lavínia, que eu te beije os lábios, Alegre ao Rei uma das mãos envio.
ou por sinais me dize de que modo Não queres auxiliar-me a decepá-la,
poderei aliviar-te. Não desejas bondoso, Aarão?
que eu, teu bom tio, com teu mano Lúcio,
Lúcio: Pára, senhor! A tua
juntamente contigo nos sentemos
nobre mão, que venceu tantos imigos,
à volta de uma fonte, cabisbaixos,
não lhe será enviada. Para o caso
para as faces fanadas contemplarmos,
a minha vai servir. A mocidade,
porém não secas, tal como as baixadas
mais do que vós, pode esbanjar o sangue,
que a inundação cheias de lama deixa?
que a vida vai salvar de meus dois manos.
Fixaremos a fonte tanto e tanto
Marco : Em defesa de Roma qual das vossas
até que sua limpidez se turve
mãos não se ergueu, brandindo a machadinha
pelo amargor de nossas quentes lágrimas?
sangrenta e a destruição deixando impressa
Ou as mãos, tal como as tuas, cortaremos?
no castelo do imigo? Oh! as mãos de ambos
Ou com os dentes a língua amputaremos,
são altamente heróicas, mas a minha
para passar em pantomima os dias
odiosos que nos restam? Que faremos? se mostrou preguiçosa. Ora, servindo
Nós, que ainda temos língua, combinemos para livrar da morte meus sobrinhos,
algum projeto de miséria extrema para um fim digno as conservei até hoje.
que espanto de nós faça no futuro. Aarão : Decidi qual das mãos será amputada,
Lúcio - Pai, deixai de chorar; vede que nossas porque eles, antes, a morrer não venham.
lamentações a soluçar convidam Marco: A minha.
minha infeliz irmã. Lúcio Pelo céu! não essa; a minha.
Marco: Cara sobrinha, Tiro: Deixai de discutir, senhores! Erva
paciência, meu bom Tito, enxuga os olhos. seca como esta é para ser cortada.
Tiro - Ah Marco, Marco! Sei perfeitamente, Por isso, a minha.
mano, que esse teu lenço não consegue Lúcio Pai bondoso, tenho
enxugar uma só das minhas lágrimas, de ser considerado vosso filho;
porque com as tuas o inundaste, amigo. livrar deixai-me os meus irmãos da morte.
Lúcio - Querida irmã, vou enxugar-te as faces. Marco : Por nosso pai e nossa mãe, consente
Tiro - Olha, Marco, compreendo os gestos dela. que amor fraterno eu te revele agora.
Se ela tivesse língua, ora diria Trro - Decidi entre vós, não corto a minha.
ao mano o que eu te disse: que não pode Lúcro - Vou buscar um machado.
ser-lhe de utilidade o lenço dele Marco Mas apenas
para enxugar-lhe as faces, por achar-se para eu me servir dele.
tão embebido de piedosas lágrimas. (Saem Lúcio e Marco.)
Que harmonia! tão longe do sorriso Trro: Vem cá, Aarão;
quanto do limbo dista o paraíso. vou burlar ambos. Tua mão me empresta,
(Entra Aarão.) que te darei a minha.
Si
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Aarão (à parte) Seisto o nome razão para esta dor? Eu sou o oceano.
de burla merecer, vou ser honesto, Ouve como suspira minha filha.
a ninguém mais burlando em toda a vida. Ela, em prantos, é o céu, eu sou a terra.
Mas enganar-vos vou de outra maneira, Seus suspiros terão, assim, de as minhas
o que havereis de ver dentro de uma hora. ondas intumescer, e minhas várzeas
(Corta a mão de Tito.) — (Voltam Lúcio e Marco.) com seu pranto contínuo hão de mudar-se
Trro : Parai com vossa discussão agora; num dilúvio, inundadas e afogadas.
pois já foi feito o que era necessário. Minhas entranhas não podendo as dores
Entrega minha mão ao Rei, Aarão, comportar que ela mostra, como um bêbedo
e dize-lhe que contra mil perigos terei de vomitá-las. Não mo impeças,
ela sempre o amparou. Ele que a imune. portanto, pois quem perde encontra alívio
Mereceu muito mais; conceda-lhe isso. para a opressão nos termos amargosos.
Quanto a meus filhos, dize-lhe que os tenho (Entra um mensageiro, que traz duas cabeças e uma mão.)
na conta de obras-primas, adquiridas MENSAGEIRO *
por baixo preço e, no entretanto, caro, Muito mal pago foste, alto Andronico,
pois comprei o que é meu. pela mão que mandaste ao soberano.
AARÃO" Vou já, Andronico. Eis as cabeças de teus nobres filhos,
Em troca de tua mão, dentro de pouco e aqui, tua mão, que, por escárnio, volta.
receberás teus filhos. (À parte.) A cabeça É desporto para ele tua mágoa;
deles, quero dizer. Oh! como a idéia, tua resolução, divertimento.
tão-só, dessa partida me deleita! Dor grande sinto em tua dor pensando,
Os tolos que achem na bondade gosto; maior que à idéia de meu pai defunto.
a alma Aarão tem tão negra como o rosto. Marco : Que o Etna, agora, na Sicília esfrie.
(Sai) Seja meu coração inferno ardente.
Tiro - Agora ao céu elevo a mão restante Ultrapassam de muito estas misérias
ea ruína fraca para a terra inclino. a resistência humana. Algum alívio
Se algum poder das lágrimas se apiada obtém quem se lastima com quem chora;
dos infelizes, a ele me dirijo. mas dupla morte é a dor escarnecida.
(A Lavínia.) Lúcio : Oh! que esta vista cause tais feridas,
Como! Queres também ficar de joelho? sem que se extinga a vida detestada!
Faze isso, coração, que nossas preces Que a morte empreste o próprio nome à vida,
o céu nos há de ouvir, nossos suspiros quando a esta apenas os suspiros restam!
hão de deixar a abóbada embaçada, (Lavínia beija Tito.)
ou com sua espessa bruma o sol manchamos Marco: Ah! pobre coração! Essa carícia
como as nuvens com ele às vezes fazem, é tão inoperante quanto o gelo
quando o escondem no seio úmido e mole. para a serpe faminta e enregelada.
Marco - Oh mano, fala com mais senso; deixa Trro : Quando termina este terrível sono?
de atirar-te em abismos tão profundos. Marco - Lisonja, adeus! Morre, Andronico, morre;
Trro : Não é profunda minha dor? sem fundo? não poderás dormir. Vê as cabeças
Que seja assim também minha tristeza. de teus dois filhos, tua mão guerreira,
Marco : Mas que a razão governe teus queixumes. a filha mutilada, este outro filho
Tiro: Se houvesse uma razão para a miséria, banido que, em presença deste quadro,
em limites a dor confinaria. ficou exangue e pálido, e teu mano,
Quando o céu chora, a terra não transborda? eu, como estátua, frio e entorpecido.
Quando o vento enlouquece, não se torna Nunca mais te direi que fiques calmo.
furioso o mar, a abóbada ameaçando Arranca esses cabelos cor de prata;
com o rosto intumescido? E ainda reclamas com os dentes dilacera a mão restante,
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deixando que este horrível espetáculo carrega minha mão, filha, nos dentes.
para sempre nos feche a infeliz vista. E tu, rapaz, some de minha vista;
É a hora de atacar. Por que te calas? ficar não podes, pois estás banido.
Trro- Ah! ah! ah! Vai para os godos e alicia gente.
Marco - Por que estás rindo? Não é hora disso. Se me amas, como o penso, despeçamo-nos
Trro Ora, não me sobrou uma só lágrima. com um beijo; muito que fazer nos resta.
Demais, essa tristeza é um inimigo (Saem Tito, Marco e Lavínia.)
que pretende tornar meus olhos úmidos Lúcio : Adeus, meu pai! adeus, nobre Andronico,
e com o tributo os arrasar de lágrimas. o ser mais infeliz que já viu Roma.
Assim, como depois achar pudera Adeus, Roma orgulhosa; até que Lúcio
a cova da vingança? Estas cabeças retorne deixa aqui penhor mais caro
parece que me falam, ameaçando-me do que sua própria vida. Adeus, Lavínia,
de perder a ventura, enquanto todas nobre irmã. Oh! quem dera que ainda fosses
estas atrocidades não voltarem como antes eras! Mas Lavínia e Lúcio
para a garganta dos autores delas. no esquecimento, apenas, ora vivem,
Vejamos, pois, o que fazer me resta. no sofrimento odioso. Conseguindo
Vós, gente desgraçada, circundai-me, Lúcio viver, há de vingar-te a ofensa.
para que eu possa dirigir-me a todos O altivo Saturnino e sua esposa,
e jurar que essas ofensas vingaremos. como Tarquínio, hão de esmolar à porta.
Jurei. Mano, segura uma cabeça; Vou formar um exército entre os godos,
com esta mão carregarei a outra. que me vingue de Roma e Saturnino.
Lavínia, tu também vais ajudar-nos: (Sai)
Ato IH Cena Il
O mesmo. Casa de Tito em Roma. Um banquete coração te atacar selvagemente,
preparado. Entram Tito, Marco, Lavínia e um menino, não poderás dar nele e reprimi-lo.
filho de Lúcio. Fere-o, menina, com suspiros; mata-o
com teus gemidos, ou uma pequenina
Tiro Assim, assim, sentai-vos. Não comamos faca toma entre os dentes e abre um furo
senão o suficiente para a força perto do coração, para que todas
nos preservar para vingarmos nossos as gotas que caírem de teus olhos
amargos infortúnios. Caro Marco, corram para esse poço e, após enchê-lo,
desata-me este nó do desespero. o tolo afogues com salgadas lágrimas,
Eu e tua sobrinha — pobres almas! que só sabe queixar-se.
carecemos de mãos e não podemos Marco: Ora essa, mano!
aliviar nossa dor decuplicada, não lhe ensines o modo de matar-se
cruzando nossos braços. Esta pobre” com mãos violentas.
destra me foi deixada para o peito Tiro: Ora, Marco! Ora essa!
poder tiranizar. E quando, louco Só eu tenho o direito de ser louco.
de dor, o coração quiser alçar-se Com mãos violentas ela suicidar-se?
na prisão cava desta minha carne, Por que falaste em mãos? Isso é pedirmos
deste modo o reprimo. a Enéias que relate duas vezes
(A Lavínia.) como Tróia acabou e na miséria
Tu, mapa de desgraças, que só falas se viu ele atirado. Oh! não nos fales
por meio de sinais! quando teu pobre em mãos; muda de tema, pois podemos
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Ato IV - Cenal
Roma. Jardim da casa de Tito. Trro - Demasiado ela te ama, Lúcio, para
Entram Tito e Marco; depois entram o jovem Lúcio e querer fazer-te mal.
Lavínia, que corre atrás dele. MENINO * É certo; amava-me,
quando meu pai ainda estava em Roma.
MENINO : Avozinho, socorro! Minha tia Marco - Que quererás dizer, minha sobrinha,
Lavínia vai para onde eu vou; não posso com todos esses gestos?
Trro: Nada temas,
saber o que ela quer. Bom tio Marco,
vede como ela corre! Pobre tia, Lúcio, ela quer dizer alguma coisa.
não posso adivinhar o vosso intento. Observa, Lúcio, como ela te agrada.
Marco Pára, Lúcio; não tenhas medo dela. Com certeza deseja que a acompanhes.
TOO
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Tor
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Marco * Acalma-te, senhor, embora eu saiba E que será, assim, de vosso texto?
que o que ficou escrito sobre a terra Que achas disso, menino?
seja o bastante para uma revolta MENINO Acho, avozinho,
suscitar nos espíritos mais calmos que, se eu fosse homem, não seria o quarto
e armar os corações até das crianças. da mãe deles amparo suficiente
Ajoelha-te comigo; e tu, Lavínia, para esses malfeitores que se encontram
faze o mesmo também. Menino, ajoelha-te — sob o jugo romano.
és a esperança do romano Heitor — MARCO: Assim, menino!
e comigo prestai o juramento Muitas vezes teu pai fez isso mesmo
que outrora fez ao infeliz esposo para esta pátria ingrata.
e ao pai da casta dama desonrada MENINO * Caso eu viva,
Júnio Bruto, ao violada ser Lucrécia: tio, farei de novo a mesma coisa.
que empregaremos todos os recursos Trro : Vamos à sala de armas. Quero armar-te,
para tomar cabal vingança desses Lúcio. Depois, menino, alguns presentes
pérfidos godos, e ou derramaremos de minha parte levarás aos filhos
o sangue deles, ou sob esse ultraje da imperatriz. Vem logo. Vamos. Hás de
perderemos a vida. fazer o que te peço, não é certo?
Tiro: Uma vez isso Menino : Cravando meu punhal no peito deles.
determinado, resta achar os meios. Trro : Não, menino; assim, não. Vou ensinar-te
Irás despertar a ursa, se bulires quanto deves fazer. Vamos, Lavínia.
com os filhos dela. Toma, pois, cuidado: Marco, cuida da casa; vou com Lúcio
se ela te farejar, lembra-te sempre fazer algo na corte. É certo, amigo.
que em liga estreita com o leão se encontra, Pelo céu! vamos ser muito aplaudidos.
o acalenta, deitando-se de costas; (Saem Tito, Lavínia e o menino.)
e, vindo ele a dormir, faz quanto queira. Marco * Deuses, ouvis gemer um homem destes,
Marco, és um caçador inexperiente. sem mostrardes piedade nem ternura?
Deixa isso. Vem comigo; vou prover-me Não o abandones, Marco, em seu delírio.
de uma folha de ferro, e com uma ponta Mais cicatrizes de tristeza mostra
de aço gravarei nela essas palavras, no coração, que marcas dos imigos
para depois guardá-las, que o violento no escudo deformado. No entretanto,
vento norte dispersa toda a areia, tão fiel se mostra que não quer vingar-se.
tal como o faz com as folhas da Sibila. Vingai o velho, oh céus! o alto Andronico.
(Saí)
Ato IV - Cena Il
O mesmo. Um quarto no palácio. trago-vos saudações do alto Andronico. (A parte.)
Entram, por um dos lados, Aarão, Demétrio e Quirão; E que os deuses romanos vos confundam.
por outro, o menino Lúcio e um criado com um feixe de Demérrio : Obrigado, menino. Que foi que houve?
armas, que trazem inscrições em versos. MENINO (à parte) -
O que houve é que já fostes descobertos
QuirÃo : Eis o filho de Lúcio, que nos trouxe, como dois celerados acoimados
Demétrio, uma mensagem. de sedução. (Alto.) Se for de vosso gosto,
AaRÃO* Sim, alguma bem avisado meu avô mandou-vos
mensagem louca de seu louco avô. as mais vistosas armas e prestantes
Menino : Com a humildade possível, meus senhores, de sua coleção, para ornamento
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AarÃo Não, vilão; pois por mim foi encontrada. AMA: Em sua cólera
Demérrio ' E assim, cão infernal, a desgraçaste. o imperador vai condená-la à morte.
Coitada dela! Amaldiçoada seja QuirÃo : Coro só de pensar nessa ignomínia.
sua escolha asquerosa, e condenado Aarão Ora, esse é o privilégio da beleza
o produto de um diabo tão lodoso. que vos define. Fora, cor traidora!
QuirÃo - Não deverá viver. que trai pelo rubor os sentimentos
AarÃo : Não deverá morrer. do coração e seus secretos planos.
AMA: Aarão, é a própria mãe que assim resolve. Eis um garoto feito de outra tinta.
AARÃO: Ah! É assim, ama? Então, pessoa alguma, Vede como o negrinho está sorrindo,
a não ser eu, há de aplicar a pena para seu pai, tal como se dissesse:
em minha própria carne e no meu sangue. “Meu velho, sou teu mesmo.” É vosso mano,
Demérrio - Vou fisgar o girino no meu gládio. meus senhores, recentemente feito
Ama, entrega-mo; vou pôr pressa nisso. do mesmo sangue a que deveis a vida;
AaRÃO* Antes, a espada te enfiarei nas tripas. do mesmo ventre em que estivestes presos
(Toma da ama a criança e saca da espada.) foi ele libertado e à luz trazido.
Assassinos, parai! Quereis a vida É vosso irmão do lado certo, embora
tirar do próprio irmão? Pelos ardentes no rosto traga impresso meu carimbo.
fachos do firmamento, que brilhavam Ama: Que devo, Aarão, dizer à imperatriz?
quando foi concebida esta criança, DEMÉTRIO *
na ponta desta minha cimitarra Pensa, Aarão, no que cumpre ora fazermos,
morrerá quem tocar no meu herdeiro, que nós concordaremos com teu plano.
no meu primeiro filho. Jovens, digo-vos Salva a criança, contanto que nos salves.
que nem o próprio Encélado com todos AARÃO - Sentemo-nos, então, e reflitamos.
os filhos de Tifão, bando espantoso, Eu e meu filho ficaremos de olho
nem Alcides glorioso e o deus da guerra, em vós ambos. Sentai-vos aí. E agora
das mãos paternas tirarão a presa. falai em salvação.
Vamos, vamos, meninos coradinhos, (Sentam-se.)
de coração vazio, variegados Demérrio: Quantas mulheres
escudos de taberna, muros brancos viram a criança?
de caiadura: a cor mais firme é a preta AARÃO" É isso, meus senhores;
como carvão, pois não suporta as outras, quando estamos de acordo eu sou cordeiro.
pois toda a água do oceano as negras pernas Mas se o mouro irritais, Aarão se exalta
do cisne não consegue deixar brancas, como o mar bravo, o javali sanhoso,
embora sempre as lave na corrente. a leoa das montanhas. Mas dizei-me:
Dizei à imperatriz que eu tenho idade quantas vezes viram esta criança?
para amparar meus bens. Que me desculpe AMA: À parteira Cornélia, apenas, e cu,
como puder. sem incluirmos, decerto, a parturiente.
Demérrio - Trair, então, pretendes, AarÃo: Vós, a parteira e a imperatriz... É isso?
dessa maneira, tua nobre amante? Duas pessoas guardarão segredo,
AARÃO * Amante é amante, esta criancinha, entanto, quando falta a terceira. Assim, vai logo
sou eu mesmo, o vigor, o próprio quadro contar à imperatriz que eu te disse isto:
de minha mocidade. Que a prefira “Coé! Coé!”
a tudo o mais é certo. Contra o mundo (Apunhala-a. )
saberei defendê-la, e dura pena Assim grita um leitão esfaqueado.
sofrerá quem de vós lhe fizer dano. DEMÉTRIO*
DeMéTRIO * À nossa mãe traz isso opróbrio eterno. Que pretendes, Aarão? Por que a mataste?
QuirÃo - Por essa transgressão tão reprovável Aarão - Oh senhor! Por um ato de política.
vai Roma desprezá-la. Iríamos deixá-la viva, para
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revelar nossa falta? Uma comadre Feito isso, não deveis perder mais tempo:
faladora como ela? Não, méus caros. mandai logo a parteira procurar-me.
E agora vos direi todo o meu plano. Uma vez a parteira e a ama afastadas,
Mora aqui perto meu compatriota as mulheres que falem quanto queiram.
Mulei, cuja mulher na última noite QuirÃo : Pelo que vejo, Aarão, nem mesmo ao vento
deu à luz uma criança parecida confias um segredo.
com ela e, como vós, de pele clara. Demétrio - Esse cuidado
Ide assentar com ele esse negócio; que tens com nossa mãe a deixa e aos filhos
à mulher dai dinheiro, contai a ambos penhorados contigo para sempre.
tudo o que aconteceu e como o filho (Saem Demétrio e Quirão carregando o corpo da ama.)
deles irá subir de agora em diante, Aarão - E agora, tão veloz como andorinhas
passando a ser o herdeiro da coroa, corramos para os godos, para, entre eles,
pois no lugar do meu vai ficar sempre, guardar este tesouro e com os amigos
para acalmar o furacão da corte. da imperatriz falar secretamente.
E que o Rei o acalente como próprio. Vamos, beiçudo, vou depor-vos longe,
Olhai aqui, senhores; como vedes, que a causa sois de toda a trapalhada.
dei-lhe o remédio certo. Raízes comereis e frutas bravas,
(Apontando para a ama.) coalhada e soro. Mamareis em cabra,
É necessário morareis em caverna e, após crescerdes,
que trateis das exéquias dela agora. vos tornareis guerreiro e comandante.
O campo é perto; sois valentes moços. (Sai levando a criança.)
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Trro - Então, Públio? Meus mestres, como fostes? Tendo Públio atirado, enraivecido
Conseguistes saber onde ela se acha? ficou o Touro, e tamanha cabeçada
PúsLio : Não, bondoso senhor. Porém mandou-vos deu em Áries, que os cornos do Carneiro
Pluto dizer que se quereis vingança foram parar na corte. E quem havia
da parte dele podereis obtê-la. de encontrá-los, senão o próprio biltre
Quanto à Justiça, é de opinião que se acha da imperatriz? Rindo, ela disse ao mouro
no céu ou em qualquer parte, em desempenho que outro meio não tinha senão dá-lo
de incumbência de Júpiter. Forçoso de presente ao marido.
será, portanto, que espereis um pouco. Trro- Otimamente.
Trro * Comigo é injusto protelando tanto. Deus dê alegria a Sua Senhoria.
Vou mergulhar no lago chamejante (Entra o bobo, com dois pombos num cesto.)
e do Aqueronte pelos calcanhares Novas, novas do céu! Marco, o correio!
para cima trazê-la. Somos, Marco, Maroto, que nos conta? Trazes cartas?
arbustozinhos, não possantes cedros, Terei justiça? Júpiter, que disse?
não gigantes, no jeito dos Ciclopes. Bozo - Quem, o carrasco? Mandou dizer que ainda
Somos de ferro, Marco, é certo; temos não levantou a forca porque o homem só poderá ser
as costas de aço, mas o sofrimento executado na próxima semana.
fê-la dobrar além do suportável. Trro - Mas Júpiter que disse? É o que pergunto.
Porém já que a Justiça nem na terra Bozo - Ora, senhor, não conheço Júpiter. Em toda
se encontra nem no inferno, bater quero minha vida nunca bebemos juntos.
no céu e comover os deuses, para Tiro : Como, vilão! Não és carteiro, acaso?
que a Justiça nos mande, porque nossas Bozo: Sim, senhor, de meus pombos; de mais
injúrias vingue logo. Mãos à obra! ninguém.
Marco, és um bom archeiro. Tiro - Não vieste, então, do céu?
(Dá-lhe flechas.) Bozo Do céu? Ora, senhor! Nunca estive lá. Deus
“Ad Jovem”, esta me livre de ter a ousadia de querer penetrar no céu
é para vós. Esta outra: “Ad Apollinem”, durante os meus dias de mocidade. Vede, dirijo-me
“ad Martem”, para mim. Aqui, menino, com meus pombos para o tribunal popular, para
para Palas; aqui, para Mercúrio. acalmar uma pendência entre meu tio e um dos
Esta outra, Caio, vai para Saturno, criados do imperador.
não para Saturnino; melhor fora Marco - Ora vede, senhor; isto vem a calhar para
disparar contra o vento. Ficai prestes. mandar vossa petição. Dizei-lhe que entregue de
Menino! Marco! A um sinal meu, soltai-as. vossa parte os pombos ao imperador.
Sob palavra, escrevi à maravilha, Tiro Dize-me: saberás transmitir com graça uma
sem deixar de pedir a um só dos deuses. súplica ao imperador?
Marco: Disparai, primos, para a corte as flechas; Bozo - Não, senhor; de forma alguma. Nunca disse
humilhemos o orgulho do monarca. uma graça em toda a minha vida.
Tiro - Disparai, mestres. Trro : Vamos, maroto; basta de conversa.
(Todos disparam suas setas.) Dai ao imperador os vossos pombos.
Bravo, Lúcio! Bravo! Farei que de suas mãos justiça alcances.
Menino, a Virgo no regaço, a Palas! Espera um pouco; toma este dinheiro
Marco : Mais de milha, senhor, passei da lua; por tua comissão.
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Dêem-me papel e tinta. Então, maroto, Trro - Não terás uma faca aí, maroto?
com graça saberás dar um recado? Deixa-me vê-la. Embrulha-a no pedido,
Boso : Sim, senhor. Marco; pois como humilde suplicante
Trro - Então aqui tendes o pedido. E quando foi que escreveste. E tu, depois de o teres
chegardes à frente dele, será preciso que logo vos dado ao imperador, vem ao meu quarto
ajoelheis. Depois, beijai-lhe os pés; depois, entregai- contar-me o que ele disse.
lhe os pombos e, a seguir, aguardai a recompensa. Bozo : Que Deus esteja convosco, senhor. Assim
Ficarei por perto, senhor; fazei as coisas com decisão. farei.
Bozo - Ficai sem cuidado, meu senhor, deixai isso a Tiro - Vamos, Marco, partamos. Públio, segue-me.
meu encargo. (Saem.)
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Ato V: Cenal
Planície perto de Roma. de tua pele não te traia a origem.
Fanfarra. Entra Lúcio com um exército de godos, com Se a natureza ao menos te tivesse
tambores e bandeiras. dado a cor de tua mãe, ser poderias
imperador. Mas quando o touro e a vaca
Lúcio : Guerreiros valorosos, bons amigos, são cor de leite, nunca o bezerrinho
recebi cartas da grandiosa Roma, sairá como carvão. Quieto, velhaco!
que o ódio refletem que ao monarca votam Fica quietinho aí!” — Dessa maneira,
e o desejo que todos têm de ver-nos. realmente, consolava ele o menino —
Por isso, bons senhores, como vossos “Vou entregar-te a um godo de confiança
títulos o confirmam, revelai-vos que, quando a saber vier que tu nasceste
altivos e impacientes de vingar-vos de uma alta imperatriz, há de com zelo
das injúrias sofridas. Por um dano cuidar de ti por causa de tua mãe.”
que Roma vos tivesse ocasionado, Nessa altura, sacando minha espada,
paga tripla podeis haver agora. de súbito o peguei e vo-lo trouxe,
PrimeIRO GODO * porque dele trateis como quiserdes.
Bravo rebento do ínclito Andronico, Lúcio - Oh godo, este é o demônio em carne e osso
cujo nome já foi pavor dos godos, que o Andronico privou da mão valente,
ora nosso conforto, cujos feitos a pérola que fascinou os olhos
altanados e fama sempiterna da imperatriz, e aqui se encontra o baixo
pagou a ingrata Roma com desprezo produto da luxúria ardente de ambos.
ignominioso: sê conosco ousado. Dize-me, escravo de olho branco: aonde
Iremos todos aonde nos levares, pretendias levar esta futura
como abelhas armadas, que nos dias imagem de tua face demoníaca?
mais quentes do verão o mestre leva Por que não falas? Como! És surdo e mudo?
para os prados floridos, e vinguemo-nos Soldados, uma corda! Pendurai-o
da maldita Tamora. nesta árvore, e ao seu lado o bastardinho.
Gopos* O que ele disse, AaRrÃo : Não toqueis no menino; é de real sangue.
todo o exército diz. Lúcio * Mui semelhante ao pai, para que possa
Lúcio Humildemente ser bom. Primeiro pendurai a criança,
lhe agradeço e a vós todos. Mas quem chega porque ele veja como ela esperneia,
conduzido por um alegre godo? e assim se aflija o coração paterno.
(Entra um godo, conduzindo Aarão que traz nos braços Uma escada!
seu próprio filho.) (Trazem uma escada, na qual
SEGUNDO GoDo"* Aarão é forçado a subir.)
Alto Lúcio, afastei-me das fileiras AaRrÃo : Não mates, Lúcio, a criança.
para ver as ruínas de um mosteiro; De minha parte à imperatriz a entrega.
e quando os olhos eu fixava atento Se fizerdes assim, coisas miríficas
numa casa assolada, ouvi de súbito te contarei, que te serão muito úteis.
choro de criança por detrás de um muro. Se não me ouvires, bem; que me aconteça
Para lá dirigi-me; mas nessa hora seja o que for. Direi apenas isto:
a voz ouvi de alguém que procurava a peste e a maldição sobre vós todos!
desta maneira consolar a criança: Lúcio - Fala. Se me agradar o que disseres,
“Cala-te, escravo escuro! Em meu socorro viva ela ficará, cuidando eu próprio
vem e de tua mãe. Que o colorido de sua educação.
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violar uma donzela ou dar a idéia desejo ser um deles, porque viva
para tal fim, sob falso juramento no fogo eterno a me queimar, contanto
contra algum inocente fazer carga, que ao meu lado vos tenha lá no inferno,
entre amigos semear a odiosidade, só para vos atormentar sem pausa
fazer que do alto caia e se arrebente com minhas invectivas amargosas.
o rebanho do pobre, às altas horas Lúcio - Tapai-lhe a boca; não deixeis que fale.
da noite incendiar medas e celeiros, (Entra um godo.)
para aos donos gritar que com suas lágrimas Gopo : Chegou, senhor, de Roma um mensageiro
as chamas apagassem. Muitas vezes que deseja poder falar convosco.
desenterrei dos túmulos os mortos, Lúcio: Fazei-o entrar.
colocando-os de pé, junto das portas (Entra Emílio.)
dos amigos queridos, justamente Emílio, és mui bem-vindo.
quando a dor já se achava quase extinta, Que notícia de Roma nos trouxeste?
na pele dos cadáveres gravando EmíLio - Glorioso Lúcio e vós, fidalgos godos,
com minha faca, tal como na casca o imperador romano vos saúda
das árvores se faz, em caracteres por minha boca. Por haver sabido
romanos: “Não deixeis que a dor se extinga, que em armas vos achais, propõe que em casa
conquanto eu já morresse”. Ora! milhares de vosso pai convosco a falar venha.
de ações terríveis fiz com a mesma calma Podeis pedir reféns, se o desejardes,
com que mato uma mosca, nada havendo que vos serão entregues sem delongas.
que tanto me entristeça como a idéia Primeiro Gopo - Que diz o general?
de mais dez mil não realizar como essas. Lúcio Emílio, caso
Lúcio : Levai esse demônio, sua morte Saturnino a meu pai e ao tio Marco
deve ser prolongada; a forca, apenas, entregue seu penhor, não faltaremos.
fora branda demais. Avante! Marcha!
AARÃO" Se houver demônios, (Saem.)
Cena ll
Roma. Diante da casa de Tito. Trro - Quem veio perturbar meu pensamento?
Entram Tamora, Demétrio e Quirão, disfarçados. Vosso plano é forçar-me a abrir a porta
para que sumam meus projetos tristes,
Tamora* Com esta triste e estranha vestimenta frustro ficando todo o meu trabalho?
falarei a Andronico, declarando-lhe Mas estais enganados. Vede! Quanto
que eu sou a Vingança, lá de baixo enviada fazer pretendo já deixei fixado
para a ele me agregar e dar alívio nestas linhas de sangue, pretendendo
ao seu incomportável sofrimento. realizar tudo o que se encontra escrito.
Batei logo no quarto; dizem que ele Tamora- Tito, só vim aqui para falar-te.
se fecha aí, a excogitar projetos Trro - Não, nem uma palavra; como posso
estranhos de vingança pavorosa. falar com graça, se de mão careço
Dizei-lhe que a Vingança aqui se encontra para com o gesto sublinhar a fala?
para a ruína acelerar de todos Sobre mim tens vantagens. Fora! Fora!
os inimigos dele. Tamora Se soubesses quem sou, desejarias
(Quirão e Demétrio batem na porta.) comigo conversar.
(Tito aparece em cima.) Trro- Não estou louco;
III
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sei muito bem quem és; de testemunho TAamoRA São meus ministros ambos,
sirva este pobre coto, sirvam estas acompanham-me.
linhas da cor de sangue, estes profundos Trro : São teus ministros? Como são chamados?
sulcos cavados pelo sofrimento; Tamora : Morte e Estupro: esses nomes receberam
sirvam também de testemunho os dias por castigarem os culpados disso.
inacabáveis, as pesadas noites, Trro - Deus bondoso! como eles se parecem
as dores infindáveis... Sim, conheço-te com os filhos da Rainha e tu com ela!
perfeitamente, como sendo a nossa Mas nós, homens terrenos, temos olhos
soberba imperatriz, a poderosa enganadores, miseráveis, loucos
Tamora. Vens tirar-me a mão restante? Oh Vingança agradável, não demoro;
Tamora: Sabe, homem triste, que não sou Tamora; vou já falar-te. E se te basta o abraço
essa é tua inimiga: eu, tua amiga. de um lado só, neste momento mesmo
Sou a Vingança, enviada pelo inferno te apertarei ao peito. Desço logo.
para aplacar o abutre corrosivo (Recolhe-se. )
que tens no pensamento, com deixar-te TamorA * Convém ao seu estado concordarmos
plenamente vingado dos imigos. assim com seus caprichos. Com palavras
Vem, pois, saudar-me neste mundo claro; apropriadas dai força a qualquer plano
falemos sobre mortes e assassínios. que eu, acaso, inventar para alimento
Não há esconderijo, escura cova, de sua fantasia tresloucada.
vale brumoso, funda obscuridade Convicto está de que a Vingança eu seja.
onde se escondem, tímidos, o crime Uma vez certo dessa idéia louca,
sanguinolento, o detestado estupro, dir-lhe-ei que mande alguém chamar o filho,
que de encontrar mui fácil não me seja. Lúcio, e, enquanto o retenho num banquete,
Segreda a todos meu terrível nome. hei de fazer que se dispersem todos
Vingança, e logo o criminoso treme. os godos inconstantes, ou inimigos
Trro-Ésa Vingança, então, e foste enviada seus, ao menos, fazer de todos eles.
para que os inimigos eu torture? Aí vem ele. Volto o meu papel.
Tamora: Ela mesma; assim, desce e vem (Entra Tito.)
saudar-me. Tiro - Há muito tempo estou desamparado,
Trro - Um serviço me presta, antes que eu desça. e tudo por tua causa. Sê bem-vinda,
Ao lado teu o Estupro e a Morte vejo. terrível Fúria, à minha casa triste.
Agora prova que a Vingança és mesmo: Estupro e Morte, a vós dois também saúdo.
apunhala-os, ou passa com teu carro Mas como à imperatriz e seus dois filhos
por cima deles, que eu irei saudar-te, vos pareceis! Só falta para o grupo
de cocheiro servir-te, para em volta terdes convosco o mouro. Todo o inferno
do globo nós girarmos. Dois ginetes fornecer não vos pôde um tal demônio?
apropriados arranja, negros, negros Pois sei que a imperatriz não dá um passo
como azeviche, para velozmente sem ter o mouro em sua companhia.
teu carro vingador daqui levarem Para a representardes com capricho,
e procura assassinos em seus antros. indispensável fora que obtivésseis
Quando teu carro com as cabeças deles semelhante demônio. Pouco importa:
estiver carregado, então eu salto sois bem-vindos assim. Mas, que faremos?
para correr junto das rodas como TaMoRA * Andronico, que queres que façamos?
criado humilde, de pé o dia todo, DemérRIO : Mostra-me um assassino, e logo o
desde que Hipério se alce no levante. prendo.
Farei todos os dias isso tudo, QuirÃo - Mostra-me um celerado que violado
se o Estupro e a Morte, que aí estão, matares. tivesse alguém, porque o castigue logo.
II2
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Tamora: Mil sujeitos me mostra, que te Marco * Farei tudo isso e voltarei depressa.
houvessem feito algum dano, para que os castigue. (Sai.)
Tiro - Corre as malditas ruas da cidade, Tamora Ágora vou cuidar de teus negócios;
e quando — oh Morte! — achares um sujeito comigo levo estes meus dois ministros.
perecido contigo, mata-o logo, Trro - Não, não! Deixa comigo o Estupro e a Morte!
porque é um assassino. Vai com ele, Do contrário, farei voltar o mano,
bondoso Estupro; e quando, por teu lado, confiando a Lúcio, apenas, o vingar-me.
encontrares alguém que se pareça TAMoRA (à parte, aos filhos) -
muito contigo, meu bondoso Estupro, Que achais, meninos? Ficareis com ele,
mata-o: um violador é de mulheres. enquanto eu vou contar ao meu marido
Parte no encalço deles, pois na corte que surtiu bom efeito a brincadeira?
do imperador há uma Rainha sempre Cedei aos seus caprichos, adulai-o,
seguida por um mouro. Muito fácil falai-lhe com bons modos, entretendo-o
te será conhecê-la, pois é tua até o meu retorno.
cópia perfeita, da cabeça aos pés. Trro (à parte) - Reconheço-os
Inflige-lhes, te peço, qualquer gênero perfeitamente, muito embora pensem
de morte pavorosa, pois mostraram-se que estou fora do juízo. Hei de apanhá-los
cruéis comigo e minha gente toda. em sua própria armadilha, a esses malditos
mastins do inferno e à mãe que os pôs no mundo.
TAMoRA: Às tuas instruções serão cumpridas.
DEMÉTRIO (à parte, a Tamora) *
Antes, porém, bondoso Tito, peço-te
Podeis sair, senhora, sem cuidado,
que mandes um recado para Lúcio,
deixando-nos aqui.
teu filho triplamente valoroso,
TAMORA: Sim, Andronico;
que contra Roma traz guerreiros godos,
cuidar vai a Vingança dos castigos
e a um banquete o convida em tua casa.
que irão já receber teus inimigos.
Uma vez ele ali, precisamente
(Saí)
em teu festim solene, hei de trazer-te
Trro : Adeus, doce Vingança; estou contente.
a imperatriz e os filhos, o monarca,
QuirÃo : Dize-nos velho: que fazer devemos?
todos os teus imigos, que hão de, humildes, Trro Silêncio! Reservei-vos muita coisa.
a teus pés ajoelhar e suplicar-te, Públio, vem cá! Vem, Caio! Valentino!
podendo tu descarregar em todos (Entram Públio e outras pessoas.)
as tristezas que o peito te angustiam. Púszio : Que desejais?
Que diz desse expediente o alto Andronico? Tiro: Conheces estes dois?
Trro - Mano Marco! Quem chama é o infeliz Tito. PúsLio - Os filhos são da imperatriz, Demétrio,
(Entra Marco.) parece-me, e Quirão.
Marco, procura teu sobrinho Lúcio; Tiro Ora, ora, Públio!
encontrá-lo-ás entre os valentes godos. Estás muito enganado, Morte e Estupro,
Da minha parte, dize-lhe que venha é como eles se chamam. Por tudo isso,
falar-me em minha casa, acompanhado meu gentil Públio, amarra-os; Valentino,
dos mais notáveis príncipes dos godos. Caio, as prestantes mãos sobre eles ponde.
Que onde estiver acampe seus soldados. Suspirarjá me vistes muitas vezes
O imperador e a imperatriz, lhe dize, por este instante que ora se apresenta.
num festim tomam parte em minha casa, Amarrai-os, portanto, com bem força,
devendo Lúcio vir, para saudá-los. ea boca lhes tapai, se protestarem.
Se amor me tens, dá-lhe o recado certo; (Sai. Públio e os outros seguram Quirão e Demétrio.)
e ele que faça tudo o que te disse, QuirÃo : Miseráveis, parai! Somos os filhos
se a vida preza de seu pai idoso. da imperatriz.
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PúsLio- Por isso mesmo vamos Sabeis que vossa mãe vem banquetear-se
dar cumprimento às ordens recebidas. comigo, daqui a pouco, apresentando-se
A boca lhes tapai, não permitindo como a Vingança, por julgar-me louco.
que pronunciem uma só palavra. Ouvi-me, celerados! Vossos ossos
Estás bem preso? Ponde força nisso. vou reduzir a poeira, que no sangue
(Volta Tito com uma faca, e Lavínia com uma bacia.) misturada uma pasta me forneça
Trro : Vem ver, Lavínia; vem. Estão bem presos com que uma torta aprontarei de vossas
os teus dois inimigos. Amarrai-lhes cabeças infamantes, para, logo,
a boca, não deixando que me falem. dizer àquela prostituta, vossa
Oh Quirão e Demétrio! Celerados! maldita mãe, que, como a própria terra,
Eis aqui a fonte que deixastes turva devorar venha os filhos. Esse é o banquete
com todo o vosso lodo, o ameno estio para que a convidei, sendo esse o prato
que destruístes com vosso frio inverno. com que ela vai fartar-se. Pois se minha
Matastes-lhe o marido; condenados filha sofreu bem mais que Filomela,
por esse crime foram seus dois manos. mais do que Progne hei de vingar-me agora.
Perdi uma das mãos por mero escárnio; Preparai as gargantas. Vem, Lavínia.
ela, as duas, a língua, e o que é mais caro (Degola-os.)
que mãos e língua: a pura castidade, Apara o sangue, e, após terem morrido,
por vós roubada, monstros impiedosos! a poeira lhes reduzo os ossos todos,
Que poderíeis alegar em vossa porque a misture neste odioso líquido
defesa, se falar eu vos deixasse? e as vis cabeças coza nessa pasta.
Miseráveis! Implorar graça o pejo Vamos! Vamos! Que todos se azafamem
não vos permitiria. Ouvi, bandidos, nos aprestar o banquete, pois pretendo
de que modo pretendo castigar-vos. mais sinistro deixá-lo e sanguinário
Ficou-me uma das mãos para o pescoço que o festim dos Centauros. Carregai-os...
cortar-vos neste instante, enquanto fixa Assim... Assim... Vou ser o cozinheiro,
Lavínia nos dois cotos a bacia para arranjar as coisas de maneira
que aparar vai vosso culposo sangue. que, ao vir a mãe, eles estejam prontos.
(Saem carregando os cadáveres.)
Ato V Cena HI
O mesmo. Pátio da casa de Tito. Um banquete preparado. Temo que o imperador contra nós todos
Entram Lúcio, Marco e godos, com Aarão prisioneiro. rumine alguma insídia.
AARÃO": Que um demônio
Lúcio * Tio, Marco, uma vez que é da vontade maldições me segrede e me permita
de meu pai que eu retorne para Roma, soltar a língua e articular todo o ódio
por vós me deixo guiar. venenoso que o peito me angustia.
Marco: Como nós todos Lúcio - Para trás, cão maldito! escravo infame!
por ti, venha o que vier. Senhores, ajudai meu tio nisso.
Lúcio: Bondoso tio, (Saem os godos com Aarão; soam trombetas.)
guardai o mouro bárbaro, esse tigre O toque é indício de que o Rei vem perto.
devorador, demônio amaldiçoado. (Entram Saturnino e Tamora, com Emílio, senadores,
Não lhe deis alimento, acorrentai-o tribunos e outras pessoas.)
até que seja conduzido à frente
SATURNINO * Que tal? Há mais de um sol no
da imperatriz, para servir de prova
firmamento?
contra a conduta criminosa dela.
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Lúcio : Por que motivo como sol te julgas? Trro : Matei quem me deixou sem vista os olhos.
Marco : Imperador de Roma, caro Lúcio, Tão desgraçado sou quanto Virgínio,
interrompei a fala. Estas querelas e mil razões mais que ele tenho para
resolvidas terão de ser com calma. perpetrar este crime.
Já está feito.
Está pronto o festim que o cuidadoso SaruRrNINO : Como! Ela foi violada? Então revela-nos
Tito aprestou com um intento honroso, quem foi o autor desse ato.
para o amor, a concórdia e o bem de Roma. Trro- Vossa Alteza
Tomai vossos lugares, por obséquio. não quererá comer? Desdenha o invite?
SATURNINO * Assim faremos, Marco. Tamora: Por que matar o paia própria filha?
(Soam oboés.) Trro - Não fui eu que a matei, porém Demétrio
(Entram Tito, vestido de cozinheiro, Lavínia com um véu com Quirão juntamente. Após haverem
no rosto, o menino Lúcio e outras pessoas. Tito coloca os dela abusado, a língua lhe cortaram.
pratos na mesa.) Eles, apenas, lhe fizeram isso.
Tiro: Gracioso imperador, sois mui bem-vindo. SATURNINO: Ide buscá-los; imediatamente!
Bem-vinda sois, Rainha temerosa. Tiro: Ora, ora! Ambos estão naquela torta
Guerreiros godos, salve! Salve, Lúcio!
com que a mãe deles tem-se regalado,
Saúdo a todos. Muito embora seja comendo, assim, a própria carne que ela
pobre a comida, há de satisfazer-vos.
mesma engendrou. É certo, é certo; atesta-o
Começai, por obséquio.
a ponta aguda desta minha faca.
SATURNINO * Qual a causa
(Mata Tamora.)
de vos vestirdes, Andronico, assim?
SATURNINO * Morre, louco, por essa ação maldita!
Tiro - Para ter a certeza de que nada
(Mata Tito.)
há de faltar para condignamente
Lúcio - Não pode ver o filho ao pai sangrante,
servirmos Vossa Alteza e a imperatriz.
sem que a retribuição dê num instante.
Tamora: Meu bondoso Andronico, muito gratos
vos ficamos por isso. (Maia Saturnino. Grande tumulto. O povo se dispersa em
Trro- Vossas Honras
confusão. Marco, Lúcio e seus partidários sobem à janela.)
realmente o ficariam, se soubessem
Marco * Povo e filhos de Roma, de semblante
quanto em meu coração se passa agora. perplexo, que estas mortes dispersaram
Meu nobre imperador, resolvei-me isto; como aves que debandam sob o impulso
Teria procedido com acerto dos ventos tempestuosos: permiti-me
o impetuoso Virgínio, ao dar a morte que vos ensine a recolher de novo
com a própria mão à filha, por ter sido numa paveia o trigo tresmalhado,
manchada, desonrada e deflorada? num corpo só os arrancados membros!
SATURNINO * Não deixemos que Roma se transforme
Sim, Andronico, com acerto. no seu próprio flagelo, nem forcemos
Trro* E as vossas a cidade, ante a qual possantes reinos
razões, grande senhor? se têm curvado, a lançar mãos violentas
SATURNINO * É que a donzela em si própria, tal como o vil proscrito
sobreviver não deveria à própria que o abandono levasse ao desespero.
desonra nem as dores reavivar-lhe. Se estes sinais de geada, estes meus sulcos,
Trro : Forte razão, possante e decisiva. testemunhas mui graves de experiência
Exemplo, precedente, penhor vivo profunda e verdadeira, não puderem
para que eu, infeliz, o mesmo faça. vos induzir a ouvir minhas palavras,
Morre, morre, Lavínia, e o teu opróbrio, (a Lúcio.)
com ele morre o opróbrio de teu pai. fala, amigo de Roma, como outrora
(Mata Lavínia.) fez nosso antepassado, quando em grave
SATURNINO * Bárbaro, desumano, que fizeste? discurso relatou ao triste ouvido
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da apaixonada Dido toda a história Mas, devagar! Receio ter feito uma
daquela noite lastimosa e rubra digressão muito grande com lembrar-vos
em que os gregos astutos surpreenderam do meu pequeno mérito. Perdoai-me;
o Rei de Tróia, Príamo. Revela-nos mas somos obrigados a elogiar-nos,
o Sinão que os ouvidos nos burlou, quando perto não há pessoa amiga.
ou quem foi que nos trouxe a fatal máquina Marco : Minha é a vez de falar. Vede esta criança.
que produziu em nossa Tróia, em Roma, Tamora a deu à luz; foi concebida
a ferida intestina. Nem de pedra por um mouro sem fé, autor precípuo,
nem de aço tenho o coração, nem posso conspirador de todas estas dores.
dar forma a todo o meu queixume amargo; Esse infame ainda está com vida em casa
afogada se vê minha oratória de Tito, e muito embora seja um réprobo,
nestas ondas de lágrimas que cortam confirmar pode quanto vos afirmo.
minhas palavras, justamente quando Julgai agora se não tinha Tito
deveriam mover-vos a escutar-me, razão para vingar tantos ultrajes
ensejando-me vossa simpatia. inenarráveis, que ultrapassam quanto
Aqui tendes um chefe, cle que conte suportar possa qualquer ser humano.
tudo o que se passou, que seu relato Agora que a verdade toda ouvistes,
o coração em prantos vai deixar-vos. romanos, que dizeis? Se houve exagero
Lúcio : Ficai sabendo então, nobre auditório, no que fizemos, apontai-nos onde,
que Demétrio e Quirão, esses infames, que deste mesmo ponto em que nos vedes,
os assassinos foram de Bassiano, nós todos, os restantes Andronicos,
irmão de nosso Rei, tendo sido eles, sem vacilarmos, de mãos dadas, vamos
outrossim, que violaram nossa irmã. precipitar-nos de cabeça baixa,
Por seus crimes nefandos nossos manos para que nessas pedras pontiagudas
foram decapitados, desprezadas partamos a cabeça e assim, de pronto,
de nosso pai as lágrimas sentidas, ponhamos fim a nossa pobre casa.
sobre o terem privado por embuste Romanos, repeli um suplicante,
da mão leal que a causa defendera que eu e Lúcio morremos neste instante.
de Roma em tantas pugnas e os imigos EmíLio - Vamos, vamos, romano venerável,
enviara para o túmulo. Por último, pela mão traze nosso imperador,
injustamente fui daqui banido; sim, nosso imperador, Lúcio, ele mesmo,
vi contra mim fecharem-se os portões, pois o povo comum, tenho certeza,
a chorar fui expulso da cidade, vai aclamá-lo com a maior presteza.
para, entre os próprios inimigos dela Romanos: Salve Lúcio, de Roma o real senhor!
pedir auxílio, os quais em minhas lágrimas Marco (aos criados) - Ide à triste mansão do velho Tito
sinceras afogaram seus rancores, e arrastai para aqui o mouro incrédulo,
nos braços, como a amigo, recebendo-me. para que condenado seja a um gênero
Pois bem, ficai sabendo que eu, proscrito, de morte sanguinária e pavorosa
fui que comprei a salvação de Roma como pena de sua vida infame.
à custa de meu sangue, tendo a espada (Saem os criados.)
do inimigo desviado de seu peito, (Lúcio, Marco e os demais descem da sacada.)
com receber todo o aço neste corpo. Romanos : Salve Lúcio, de Roma o real senhor!
Jamais fui fanfarrão, sabei-lo todos. Lúcio : Romanos, obrigado. Só desejo
As cicatrizes de meu corpo, embora vir a ter no governo o grato ensejo
sejam mudas, atestam que o relato de dar remédio aos males da cidade,
que vos fiz é sincero e verdadeiro. curando suas dores. Gentil povo,
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shakespearebrasileiro.org Tiro ANDRONICO
Por contraste, Petruchio e Kate são os amantes mais interessantes, cujo cortejo
envolve autodescoberta mútua. Reconhecidamente, não devemos exagerar o caso.
Especialmente à primeira vista, esses amantes são também tipos comuns: o
domesticador da megera e sua proverbial esposa rabugenta. (a palavra shrew [megera],
originalmente significando um homem perverso ou maligno, frequentemente aplicado a
um demônio ou a um planeta ameaçador, alterou seu significado para o de uma esposa
turbulenta e ofensiva.) Apesar de parecer que Shakespeare não usou qualquer fonte
única para este enredo, ele era bem familiar com estórias rudes e misóginas,
demonstrando a necessidade de colocar às mulheres em seus lugares. Em uma balada
chama A Merry Jest of a Shrewd and Curst Wife, Lapped in Morel´s Skin (impressa em
cerca de 1550), por exemplo, o marido domestica sua esposa rabugenta ao açoitá-la
violentamente com vara de bétula e então envolvê-la na pele salgada fresca de um
cavalo de arado chamado Morel. (Essa esposa rabugenta, como Kate, tinha uma irmã
mais jovem, obediente e gentil, que era a favorita de seu pai.) Outros dispositivos do
enredo de Shakespeare podem ser encontrados em histórias similares: o alfaiate xingado
por planejar um vestido fora de moda (Accidence of Armory, 1562, de Gerard Legh), a
esposa obrigada em concordar com a declaração de seu marido em relação a alguma
falsificação patente (El Conde Lucanor, cerca de 1335, de Don Juan Manuel), e as três
apostas dos maridos na obediência de suas esposas (The Book of the Knight of La Tour-
Landry, impresso em 1484). No espírito rústico dessa tradição sexista, tão diferente do
sentimento Italianado e refinado de seu outro enredo, Shakespeare introduz Petruchio
como um homem de despreocupada bravata que está pronto para casar com a mulher
mais feia e de língua mais afiada viva, conquanto que ela seja rica. Não importando o
quanto que ele é atraído pelo espírito impetuoso de Kate depois, sua primeira atração
por ela é grosseiramente financeira. Kate é, ademais, uma problemática e insolente
jovem mulher no início, descrita pelos homens que a conhecem com “uma maldição
intolerável / Astuta e desobediente,” e agressiva em seu bullying a Bianca. Ela e
Petruchio encontram-se como grotescas contrapartes cômicas.
A rejeição de Kate aos homens não a deixava feliz, apesar de ser genuíno o seu
desdém pela maioria daqueles que vieram para o cortejo. O “aprendizado” de Petruchio
pode ser visto como dirigido para aquela tristeza, mesmo se seu propósito é
incessantemente masculino em sua suposição que uma esposa rebelde tem que ser
“domesticada” como alguém domestica um falcão. Ao cortejá-la e parcialmente
conquistá-la, Petruchio testa-a ao chegar atrasado ao casamento, ao usar uma vestimenta
incomum e ao transpassar todos os desejos dela. Como o domesticador de falcões,
Petruchio usa duros meios físicos, incluindo à privação de comida e bebida. Ele trata
Kate como sua posse, e nunca vacila em sua certeza que está certo em assim o fazer.
Outros homens aplaudem seu sucesso e desejam somente seguir seu exemplo. A
resolução é, nesses termos, manifestamente mais sexista do que em Muito Barulho por
Nada; é como se Shakespeare trabalhasse o seu caminho através dos problemas do
conflito sexual a partir dessa peça anterior, muito masculina, a uma acomodação mais
complexa e mútua em suas comédias posteriores.
Ao mesmo tempo, é possível ver A Megera Domada como uma peça na qual
uma acomodação genuína é alcançada, mesmo que seja sobre os termos do homem, não
dando nenhuma escolha à mulher. A peça pode encorajar à visão que o tratamento de
Petruchio a Kate, não importando se temporariamente rude, é finalmente benigno em
sua intenção. Petruchio, através de seu comportamento estranho de virar as mesas e
xingar os servos, mostra a Kate uma face feia do que ela obstinadamente é. Ele é bem-
sucedido ao insistir no que, discutivelmente, ela pode desejar também: um
relacionamento bem definido, temperado por respeito mútuo e amor. Nessa
interpretação, Kate pode ganhar alguma coisa ao final da peça. O discurso de
encerramento dela, com sua bela combinação de ironia e hipérbole autoconsciente,
juntamente com sua seriedade na preocupação, pode ser lido como expressando a
maneira na qual o espírito de independência dela e sua nova aceitação da regra
doméstica foram fundidas com sucesso, permitindo-a ganhar o aplauso de todos, em vez
da censura.
Essa não é, de forma alguma, a única maneira de ler a cena final, como as
produções modernas, frequentemente, tornaram claro: Kate emerge de várias produções
de palco como mais ou menos satisfeita, ou como simplesmente resignada, ou
cruelmente doutrinada, ou como apenas interpretando o papel da esposa obediente para
alcançar o que ela deseja. A incerteza da interpretação é um dos grandes prazeres e
desafios hoje, em um mundo cujas ideias de casamento obviamente alteraram-se, desde
que Shakespeare escreveu. Mesmo assim, a peça oferece uma fundação para o
entendimento mútuo, em sua apreciação da seriedade do assunto e sua maravilhosa
transparência, como um texto que oferece a si mesmo para interpretações rivais.
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Personagens
Um nobre Grúmio | . ;
Ena criados de Petrucchio.
Cristóvão SLy, latoeiro.
Estalajadeira personagens
Pajem Um professor, preparado para fazer o papel de
da introdução.
Atores Vicêncio.
Caçadores CATARINA, a megera.
Criados
BrANCA
BarTISTA, rico gentil-homem de Pádua. Viúva | filhas de Batista.
VicÊncio, velho gentil-homem de Pisa.
Lucêncio, filho de Vicêncio, apaixonado de Bianca. Alfaiate, modista e criados a serviço de Batista e de
PerTRUCCHIO, 8 gentil-homem de Verona, Petrucchio.
pretendente de Catarina.
Cena
Grêmio Parte em Pádua, e parte na casa de campo de Petrucchio.
HoRrTÊnsio'
criados de Lucêncio.
TRÂNIO
BroNDELLO
Introdução - Cenal
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Num prado. Defronte de uma cervejaria. por demais frio fora para o sono.
Entram a estalajadeira e Sh. NosrE : Oh animal monstruoso! Está deitado
como um porco. Medonha morte, como
SLy : Hei de vos dar uma tunda, palavra de honra. tua pintura é feia e repulsiva!
EsTALAJADEIRA * Um par de algemas, velhaco! Vamos fazer uma experiência, amigos,
SLy : Marafona! Os Slys não são velhacos. Lede com este bêbedo. Que tal a idéia
as crônicas. Chegamos aqui com Ricardo, o de o pormos numa cama e de o cobrirmos
conquistador. Por isso, pauca palabris. Deixai o com lençóis bem macios, colocarmos-lhe
mundo rodar. Cessa! anéis nos dedos, um banquete opíparo
EsTALAJADEIRA : Não quereis pagar os copos que junto ao leito lhe pormos e solícitos
quebrastes? serventes ao redor, quando ele a ponto
Szy - Não, nem um real. Vai, por São Jerônimo! Vai estiver de acordar? Não esquecera
te aquecer em tua cama fria. sua própria condição este mendigo?
EsTALAJADEIRA* Já sei o que tenho a fazer: vou PRIMEIRO CAÇADOR*
chamar o inspetor do quarteirão. Não teria outra escolha, podeis crer-me.
(Sai) SEGUNDO CAÇADOR*
SLy - Quarteirão ou quinteirão, pouco me importa. Ao despertar, perplexo ficaria.
Hei de responder-lhe de acordo com a lei. Não cederei NosrE : Como de um sonho adulador, ou mesmo
uma polegada, rapaz. E ele que venha com jeito. de inócua fantasia. Carregai-o,
(Deita-se no chão e dorme. portanto, e preparai a brincadeira.
Toque de trompa. Entra um nobre que volta da caçada, Ponde-o com jeito em meu mais belo quarto,
com caçadores e criados.) que adornareis com quadros mui lascivos;
NosrE : Caçador, recomendo-te cuidado água cheirosa e quente na vazia
com meus cachorros. A cadela Merriman cabeça lhe passai, e no aposento
de cansada até espuma. Atrela Clowder queimai lenha aromática, deixando
com a de latido forte. Não notaste, cheiroso todo o ambiente. Arranjai música
rapaz, como o Prateado fez bonito logo que ele acordar, para que toadas
lá na dobra da sebe, quando o rasto possa ouvir agradáveis e divinas.
já fora interrompido? Não quisera E, se acaso falar, sede solícitos
perdê-lo agora nem por vinte libras. e com profunda e humilde reverência
PRIMEIRO CAÇADOR* lhe perguntai: “Vossa Honra que deseja?”
Bellman vale, senhor, tanto quanto ele; Um se apresente com bacia argêntea
não deixou de latir, e por duas vezes cheia de água de rosas em que pétalas
voltou a achar a pista, embora o rasto donosas sobrenadem; o jarro outro
se achasse quase extinto. Acreditai-me: sustente; o guardanapo, enfim, terceiro,
esse é o melhor de todos os cachorros. que lhe perguntará: “Vossa Grandeza
NosrE : És um bobo; se fosse Eco mais ágil, não quer lavar as mãos?” Vestes custosas
valeria por doze iguais a Bellman. tenha alguém prestes, para perguntar-lhe
Mas alimenta-os bem e não descures que muda ele prefere; outro lhe fale
de nenhum, que amanhã teremos caça. de seus cavalos e dos cães de caça,
PRIMEIRO CAÇADOR - Pois não, milorde. e lhe diga que a esposa ainda lastima
Nosre (enxergando Sly) - sua infelicidade, convencendo-o
Que é isso? Morto ou bêbedo? Respira? de que esteve lunático. E se acaso
SEGUNDO CAÇADOR * Respira, sim, milorde. Se a declarar seu estado verdadeiro,
cerveja não o aquecesse, o leito em que se encontra dizei que está sonhando, pois, de fato,
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À MEGERA DOMADA
ele é um nobre importante. Fazei isso, já iniciado um desporto em que vossa arte
gentis senhores, sim, porém, com jeito. muito útil me será. Há aqui um nobre
Passatempo será muito agradável, que esta noite deseja ver alguma
sc discrição souberdes ter em tudo. peça do vosso elenco. Mas receio
PRIMEIRO CAÇADOR* que não possais guardar a compostura
Garanto-vos, milorde, que sairemos à vista da atitude extravagante
bem do nosso papel, sendo certeza de Sua Senhoria, por ser certo
vir ele a convencer-se, tão-somente que Sua Honra jamais foi ao teatro,
por nossa diligência, de que é tudo o que explosão de riso vos causara,
quanto lhe sugerirmos. podendo isso ofendê-lo. Pois vos digo,
NosrE: Levantai-o senhores, que se rirdes, ele torna-se
com bem jeito e na cama o ponde logo. impaciente a valer.
E quando despertar, todos a postos. Um comepIANTE : Nenhum receio
(Sly é carregado. Toque de trombeta.) vos cause isso, milorde; saberíamos
Rapaz, vai logo ver o que esse toque conter-nos, muito embora se tratasse
de trombeta anuncia. do mais risível ser que acaso exista.
(Sai um criado.) Nosrg : Recolhe-os tu à copa, dando a todos
Com certeza bom tratamento, sem que lhes faleça
é algum fidalgo que se encontra em viagem coisa nenhuma do que houver em casa.
e se deteve aqui para descanso. (Sai um criado com os comediantes.)
(Volta o criado.) Rapaz, vai logo procurar meu pajem
Então, que é que há? Bartolomeu e manda que se vista
CRIADO: Com permissão de Vossa como uma dama. Depois disso, leva-o
Senhoria, os atores, que oferecem para o quarto do bêbedo, obedece-lhe
a Vossa Honra os serviços. e dá-lhe sempre o nome de senhora.
NosrE: Manda-os vir. De minha parte dize-lhe que adote
(Entram comediantes.) uma atitude nobre — se lhe importa
Amigos, sois bem-vindos. minha afeição — tal como tenha visto
COMEDIANTES * Obrigados fazerem damas finas em presença
ficamos a Vossa Honra. do marido. Do mesmo modo deve
NoBRrE-: E intenção vossa proceder com esse bêbedo, falando-lhe
passar a noite aqui? com voz suave, fazendo-lhe mesuras
Um comepiaNTE Caso Vossa Honra e lhe dizendo: “Que me ordena agora
se digne de aceitar nossos serviços. Vossa Grandeza, para que revele
Nosre : De todo o coração. Ainda me lembro vossa esposa fiel e muito humilde
deste rapaz, quando representava seu dever e vos prove amor sincero?”
de filho de rendeiro. Era na peça Depois, com beijos provocantes, ternos
em que a corte fazíeis gentilmente abraços, a cabeça assim pendida
a uma senhora nobre. Vosso nome sobre o peito do esposo, ledas lágrimas
já me esqueceu; mas é certeza: dita deverá derramar, por ver a volta
foi vossa parte com bastante engenho da saúde de seu senhor querido,
e naturalidade. que durante sete anos se julgara
Um comEDIANTE : Vossa Graça mendigo repulsivo e miserável.
decerto pensa no papel de Soto. Para que chovam lágrimas de jeito,
Nosre: Perfeitamente! E tu o representaste uma cebola ensejará os meios;
por maneira admirável. Bem; chegaste se ele a trouxer num lenço disfarçada,
na hora precisa, tanto mais que tenho queira ou não queira, há de ficar com os olhos
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WiLLIAM SHAKESPEARE
Introdução - Cenall
Quarto de dormir em casa do nobre. Aparece Shy com um de cerveja pura, podeis ter-me na conta do velhaco
rico camisolão de dormir, cercado de criados; uns sustentam mais mentiroso de toda a cristandade. Como!
peças de vestuário; outros, bacia, jarros e utensílios Estarei delirando? Aqui...
variados. Entra o nobre, vestido de lacaio. PRIMEIRO CRIADO * Isso é que deixa triste vossa
esposa.
SLy : Pelo amor de Deus, uma caneca de cerveja fina. SEGUNDO CRIADO * Isso é que abate vossos servidores.
PRIMEIRO CRIADO : Não quererá Vossa Grandeza NosrE : Eis a razão de todos os parentes
agora um copo de xerez? se afastarem de casa, como expulsos
SEGUNDO CRIADO : Não apetece por loucura tão rara. Oh nobre lorde!
a Vossa Honra provar estas conservas? pensa em teu berço, faze que retornem
TERCEIRO CRIADO * do exílio teus antigos pensamentos
Que roupa vai Vossa Honra vestir hoje? e bane o sonho degradante e baixo.
SLy: Sou Cristóvão Sly; não me deis o nome de Vê como estão solícitos os criados,
grandeza nem de honra. Nunca na minha vida bebi desejosos somente de servirem-te,
xerez, e se quereis oferecer-me conserva, que seja de ao teu primeiro gesto. Queres música? (Misica.)
carne de vaca. Não me pergunteis que roupa desejo Então escuta: Apolo toca, e logo
vestir, pois nunca tive mais gibão do que dorso, nem dez rouxinóis consonam nas gaiolas.
mais meias do que pernas, nem mais sapatos do que Ou quererás dormir? Vamos deitar-te
os pés. Sim, algumas vezes chego a ter mais pés do num colchão mais macio do que o leito
que sapatos, ou apenas desses sapatos que deixam voluptuoso arranjado de propósito
ver os dedos pelos furos do couro. para Semíramis. Se exteriorares
NosreE : Oh! possa o céu curar Vossa Honra dessa desejo de passear, espalharemos
ociosa fantasia! Que um fidalgo flores pelo caminho; se desejas
tão poderoso, de tão alto berço, montar num dos ginetes, prontamente
tão rico e conceituado, ora se encontre mandarei prepará-lo com os arreios
dominado por um tão baixo espírito! recamados de pérolas e de ouro.
SLy : Como! Quereis dizer-me louco? Então não sou Gostas da falcoaria? Teus falcões
Cristóvão Sly, filho do velho Sly de Turtonheath, mais alto pairam do que as cotovias
bufarinheiro de nascimento, por educação fabricador madrugadoras. Ou caçar preferes?
de cartas, por mutação condutor de urso, e, Teus cães farão que lhes responda a abóbada
presentemente, com a profissão de latoeiro? Bastará celeste, despertando das cavernas
perguntardes a Mariana Hacket, a gorda cervejeira os ecos estridentes.
de Wincot, se ela não me conhece. Se não disser que PrIMEIRO CRIADO - Dize apenas
eu estou apontado no livro dela por quatorze pences que cavalgar desejas, pois teus galgos
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A MEGERA DOMADA
como os veados de fôlego são rápidos, SLy : Nestes quinze anos? Raspa! Que tirada!
mais velozes que a corça. E não falei durante tanto tempo?
SEGUNDO CRIADO" Se preferes PRIMEIRO CRIADO *
quadros, arranjaremos sem demora Oh! falastes, senhor, mas sem sentido.
o retrato de Adônis repousando Pois embora estivésseis neste quarto
nas margens de um regato, ou Citeréia
luxuoso, asseveráveis que vos tinham
velada pelos juncos, parecendo jogado porta fora; dirigíeis
insultos contra a dona da taberna,
que brinca com o próprio hálito e se move
prometendo chamá-la ante a justiça,
como os juncos que os ventos embalançam.
porque em jarros de barro vos servia,
Nosre : lo te vamos mostrar, quando donzela,
sem trazer a medida verdadeira.
como foi surpreendida e arrebatada,
Também chamáveis por Cecília Hacket.
tão vivo o quadro como a própria coisa.
SLy - É o nome da servente da taberna.
TERCEIRO CRIADO*
TERCEIRO CRIADO *
Ou Dafne a errar por entre os espinheiros, Não conheceis, senhor, essa taberna,
as pernas a arranhar de fazer sangue, nem criada nenhuma desse nome,
a cuja vista o triste Apolo chora,
como não conheceis ninguém chamado
tal o primor com que pintadas foram Estêvão Sly, Henrique Pimpernell,
as lágrimas e o sangue. Pedro Turf e João Naps, o velho grego
NoBRrE': És um fidalgo, e outros vinte sujeitos desse tipo.
nada mais que um fidalgo; por consorte SLy- Graças a Deus, agora estou curado.
possuis uma mulher de mais beleza Topos: Amém.
que todas as de nossa idade escura. SLy: Muito obrigado; hei de premiar-te.
PRIMEIRO CRIADO * (Volta o pajem, vestido como uma senhora, com séquito.)
Até o momento em que ela, por tua causa, PajeM : Como se sente meu senhor e mestre?
derramou tantas lágrimas, que o rosto SLy - Muito bem. Isto aqui é divertido.
lhe inundaram gracioso, de invejosas, Onde está minha esposa?
era a criatura mais encantadora Pajem* Aqui presente,
deste mundo; mas ainda se conserva nobre senhor. Que é que desejas dela?
sem confronto possível. SLy : Como! Sois minha esposa e de marido
SLY* Sou fidalgo? não me chamais? Os criados é que devem
Tenho uma esposa assim, ou sonho, acaso? tratar-me de senhor. Sou vosso esposo.
Ou sonhei até agora? Não; dormindo Payem - Meu marido e senhor, senhor e esposo,
não estou: vejo, escuto, falar posso, sou vossa esposa, em tudo obediente.
sinto perfumes suaves, toco em coisas Szy : Sei disso. De que modo hei de chamá-la?
agradáveis. Por minha vida, é certo: NosrE : Madame, meu senhor.
sou nobre de verdade, não latoeiro; SLy: Madame Alice
não sou Cristóvão Sly. Trazei-nos logo ou Joaninha madame?
nossa nobre consorte e, novamente, NoBRrE: Não; madame,
uma caneca de cerveja fina. nada mais. Desse modo é que os fidalgos
SEGUNDO CRIADO * chamam suas esposas.
Não quer lavar as mãos Vossa Grandeza? SLy : Madame esposa, acabam de contar-me
(Os criados apresentam-lhe jarro, bacia e toalha. ) que eu dormi e sonhei mais de quinze anos.
Oh! que felicidade para todos PajEM : É certo; e pareceram-me trinta anos,
vermos que o juízo já recuperastes! porque de vosso leito eu fora excluída.
Szy - É muito tempo. Criados, retirai-vos;
Se quem sois compreendêsseis finalmente!
Nestes quinze anos a sonhar vivestes. deixai-nos sós. Madame, vamos logo:
Andáveis como mergulhado em sono. tirai a roupa e vinde para a cama.
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WiLLIAM SHAKESPEARE
Pajem : Três vezes nobre esposo, instantemente por terem visto que a tristeza o sangue
vos concito a esperar uma ou duas noites, vos tinha congelado. Da loucura
ou, pelo menos, até vir o ocaso, sendo a melancolia a nutridora,
pois me recomendaram vossos médicos acharam bom que ouvísseis uma peça
que do tálamo vosso me afastasse. que a dor expulsa e a vida deixa longa.
Penso que essa razão me justifica. SLy : Com a breca! Pois que venha. Essa
SLy : Sim, uma vez que há isso... Para mim é muito comedísia não será uma farsa de Natal ou peça de
difícil esperar tanto tempo. Mas não desejo voltar saltimbancos?
a ter aqueles sonhos. Assim, será forçoso esperar, Pajem : Não, senhor; é de estofo mais alegre.
apesar da carne e do sangue. SLy - Como! Estofo de mobília?
(Entra um criado.) PajeM : É uma espécie de história.
CrraDo : Tendo sabido vossos comediantes Szy - Vamos vê-la. Madame esposa, vinde
que Vossa Honra está bem, determinaram para o meu lado. O mundo que escorregue,
representar uma comédia alegre, que com isso mais moços nós ficamos.
o que acham proveitoso vossos médicos, (Fanfarras.)
Ato T- Cenal
Pádua. Uma praça pública. como alguém que deixasse uma lagoa
Entram Lucêncio e Trânio. não muito funda, para projetar-se
no mar sequioso de estancar a sede.
Lucêncio : Trânio, bem sabes que por teus desejos Trânio : Mi perdonate, meu gentil senhor,
de ver a bela Pádua, ama das artes, mas concordo convosco nisso tudo,
vim visitar a fértil Lombardia, feliz por ver que persistis no intento
agradável jardim da grande Itália. de aspirar às doçuras da fragrante
Com permissão de meu bom pai armado, filosofia. Apenas, meu bom mestre,
sua vontade e tua companhia — embora admiradores da virtude,
fiel servidor, provado bastas vezes — da moral disciplina, não devemos
respiremos aqui, e em feliz hora virar estóicos — penso — ou mesmo estacas,
no caminho ingressemos dos estudos nem ficar tão devotos de Aristóteles
e do saber. Em Pisa tive o berço, que a Ovídio reneguemos como a réprobo.
muito famosa por seus homens graves. Com vossas relações falai de lógica
Meu pai tem lá morada, comerciante mas na prática usual sede retórico.
com negócios por todo o vasto mundo, Animai-vos com música e poesia;
Vicêncio, do solar dos Bentivoglios. quanto pedir o estômago, servi-vos
O filho de Vicêncio, que educado de matemática ou de metafísica.
foi em Florença, às esperanças deve Onde não há prazer não há proveito.
do pai dar cumprimento, ornamentando Em resumo, senhor: é aconselhável
sua fortuna com virtuosos feitos. estudar o que mais vos for do agrado.
Por isso, Trânio, empregarei o tempo Lucêncio
dos meus estudos com a virtude e a parte Muito obrigado, Trânio; é bom teu plano.
dessa filosofia que se esforça Ah, Biondello! Se em terra já estivesses,
para a ventura que a virtude almeja. poderíamos tudo já ter pronto
Que pensas? Para Pádua vim de Pisa numa casa de jeito preparada
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Ato T- Cenall
Diante da casa de Hortênsio. mandei que ele batesse em vossa porta,
Entram Petrucchio e Grúmio. sem poder conseguir o que almejava.
Grúmio - Bater na porta? Oh céus! Pois não me
PerRUCCHIO * ordenastes claramente: “Bate-me aqui, maroto; bate
Verona, adeus por uns momentos; quero em mim com bem força, bate sem piedade?” E agora
ver em Pádua uns amigos, e entre todos vos saís com esse “bater na porta?”
o mui querido e dedicado Hortênsio. PerruccHIO : Saí logo, maroto, é o que vos digo.
Sua casa é esta aqui, se não me engano. Horrênsio
Grúmio, maroto, bate! Estou mandando. Calma, Petrucchio; sou penhor de Grúmio.
Grúmio : Bater, senhor? Bater em quem? Alguém Oh! que pendência séria entre vós e ele,
ofendeu Vossa Senhoria? vosso bom Grúmio, criado antigo e sério!
PerruccHio : Maroto, digo: bate-me com força. Mas, caro amigo, que suave brisa
Grúmio vos trouxe a Pádua, de Verona antiga?
Bater em vós, senhor? Oh, senhor! Quem sou PerRUCCHIO *
eu para bater em vós? A que os mancebos pelo mundo espalha
PerruccHio - Vamos, maroto; bate-me na porta, em busca de fortuna, pois em casa
se essa cabeça estúpida te importa. não há oportunidade. Resumindo,
Grúmio : Meu amo arruaceiro agora se revela. signior Hortênsio, a coisa é como segue:
Mas se eu der nele, farei uso da canela. morreu meu pai, Antônio, tendo agora
PerruccHio : Então, maroto: bates ou não bates? saído eu sem destino, tencionando
Não? Nesse caso, bato eu sem dó, casar bem e vencer do melhor modo.
para ouvir-te cantar sol, mi, lá, dó. Ouro tenho na bolsa; bens, na pátria.
(Puxa as orelhas de Grúmio.) Assim, viajo para ver o mundo.
GRrúmio Socorro, gente! Enlouqueceu meu amo. HorTêÊnsio : Petrucchio, deverei, sem mais rodeios,
(Entra Hortênsio.) apresentar-te a uma mulher ferina?
Horrênsio : Que é isso? Que aconteceu? Oh! Não me agradecerias o conselho.
o meu velho amigo Grúmio e o meu bom amigo Mas posso asseverar-te que ela é rica;
Petrucchio! Como vão todos em Verona? sim, muito rica. Mas és meu amigo;
PerruccHIo - Viestes nos separar, Hortênsio amigo? não convém que a desposes.
Con tutto il cuore ben trovato, digo. PETRUCCHIO * Entre amigos,
HorrTÊnsio - Alla nostra casa ben venuto, molto signior Hortênsio, não se fala muito.
honorato signior mio Petrucchio. Vamos, Grúmio, Se conheces alguém bastante rica
levanta-te; acalmai-vos. para que esposa de Petrucchio seja —
Grúmio : Não; pouco importa tudo quanto ele pois o ouro tilintar na dança deve
possa dizer em latim. Se isso não for um motivo do casamento dele — embora seja
legal para eu deixar o serviço dele... Ora vede, senhor, tão feia como a amada de Florêncio,
ele mandou que eu batesse nele, que o surrasse com velha como a Sibila, tão maligna
força. E agora dizei-me se fica bem para um criado e impertinente como a própria esposa
proceder dessa maneira com o patrão, uma pessoa de Sócrates, Xantipa, ou mesmo pior:
que, pelos meus cálculos, já terá seus trinta e dois não poderá deixar-me transformado
anos? nem embotar de meu afeto o gume,
Mas se com força assim tivesse feito, embora seja como o mar Adriático,
saíra Grúmio alegre deste pleito. quando se altera. Vim para casar-me,
PerruccHio - Estúpido maroto. Caro Hortênsio, para uma noiva rica achar em Pádua;
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sendo rica, feliz serei em Pádua. que ela lhe resista, ele lhe marcará o rosto com uma
Grúmio : Ora vede, senhor; ele vos diz francamente figura que a deixará tão desfigurada como um gato
o que pensa. Sendo assim, dai-lhe ouro bastante e sem olhos. Não o conheceis, senhor.
casai-o com uma boneca, ou com um figurino, ou Hoxrrênsio : Petrucchio, espera um pouco; iremos
com uma velha que não tenha um só dente na boca, juntos, pois com Batista se acha meu tesouro;
muito embora tenha tantas doenças como cingiienta de minha vida a jóia está com ele:
e dois cavalos reunidos. Tendo dinheiro, para ele sua filha mais nova, a bela Bianca,
tudo estará bem. que de mim ele afasta e de outros muitos
HoRrTÊnsio - pretendentes, rivais no meu afeto.
Bom Petrucchio, uma vez que andamos tanto, Por julgar impossível — em virtude
vou prosseguir no que era, de começo, dos defeitos há pouco relatados —
somente brincadeira. Tenho meios, que a Catarina alguém escolher possa,
Petrucchio, de ensejar-te uma consorte determinou Batista deste modo:
bastante rica, mui formosa e jovem, que ninguém tenha acesso à bela Bianca
e educada no jeito de fidalga. sem que venha a casar-se Catarina.
Seu único defeito — e que defeito! — Grúmio : Catarina goela:
é ser intoleravelmente brava, o pior nome para uma donzela.
teimosa e cabeçuda sem medida, Horrênsio : Fazei-me ora um favor, caro Petrucchio:
a tal ponto que, embora meus haveres ireis apresentar-me, tendo eu posto
fossem menores, não a desposara vestes sóbrias, ao velho pai de Bianca,
por uma mina de ouro. como perito professor de música,
PeTRUCCHIO * Basta, Hortênsio! para lhe dar lições. Com esse plano,
Não conheces o efeito do dinheiro, terei vagar e liberdade, ao menos,
Dize-me o nome do pai dela, e pronto. de, sem suspeita, lhe fazer a corte.
Vou abordá-la, muito embora alterque Grúmio : Não há nenhuma velhacaria nisso.
mais alto que o trovão, quando rebenta Vede como os moços sabem juntar as cabeças para
no outono a tempestade. enganarem os velhos. Patrão, patrão, olhai para trás!
HorTÊNnsio O pai da jovem Quem é que vem chegando?
é Batista Minola, gentil-homem (Entram Grêmio e Lucêncio, disfarçados,
cortês e afável, sendo o nome dela sobraçando livros.)
Catarina Minola, em toda Pádua Horrênsio - Silêncio, Grúmio. Meu rival é este.
famosa pela língua ralhadora. Petrucchio, fica à parte.
PerRuccHIO * Grúmio :
Conheço o pai, embora a não conheça; Um belo mancebo, e, ainda por cima, apaixonado.
foi muito amigo de meu pai defunto. Grêmio : Oh, muito bem! Já examinei a conta.
Não durmo, Hortênsio, sem a ver primeiro. Ora me ouvi, senhor: quero que todos
Ireis perdoar-me, assim, a liberdade, sejam encadernados ricamente;
logo ao primeiro encontro, de deixar-vos, livros de amor, somente, tomai nota;
salvo se fordes até lá comigo. não deveis ler-lhe nenhum outro assunto.
Grúmio - Peço-vos, senhor, deixai-o ir, enquanto Compreendestes-me? Além dos que obtiverdes
ele está com essa disposição. Por minha alma, se da liberalidade de Batista,
ela o conhecesse tão bem quanto eu, saberia que vos farei donativos generosos.
no caso dele de nada valem as recriminações. Ela Tomai vossos papéis; é necessário
poderá, talvez, chamá-lo umas dez vezes de biltre que perfumados sejam suavemente,
ou coisa assim. Não lhe fará mossa nenhuma. Uma pois mais suave ela é do que os perfumes
vez entrado na dança, ele recorrerá ao vocabulário a que são destinados. Que ireis ler-lhe?
próprio. Vou dizer-vos uma coisa, senhor: por pouco Lucêncio : Seja o que for, podeis estar certíssimo
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Trânio : Não é livre esta rua, ou esta viela, PerruccHio - Permiti que vos fale com franqueza.
para nós ambos? Das duas filhas a mais moça, aquela
Grêmio - Certo; mas não ela. que desejais pescar, foi excluída
Trânio - E a razão, por obséquio? pelo pai do convívio dos rapazes,
Grêmio * É muito simples: afirmando ele que a nenhum a entrega
foi escolhida pelo signior Grêmio. sem que a filha mais velha a casar venha.
Horrênsio - Também o foi pelo signior Hortênsio. Livre será então; não antes disso.
Trânio - Devagar, meus senhores. Se fidalgos Trânio - Se for assim, senhor, sendo vós o homem
sois, em verdade, ouvi-me com paciência, que nos irá favorecer a todos,
fazendo-me justiça. Cavalheiro eu inclusive, quebrai logo o gelo,
muito nobre é Batista, a quem de todo realizai logo a proeza de a mais velha
meu pai não é estranho; e embora a filha conquistar, e a mais moça deixai livre
dele fosse mil vezes mais bonita, porque todos possamos cortejá-la.
podia ter bastantes namorados, O que a alcançar não há de ser, decerto,
e, entre eles, eu. À filha da formosa tão desgracioso que se mostre ingrato
Leda teve um milhão de pretendentes. com relação a vós.
Logo, mais um vai ter a bela Bianca. HorrÊnsio: É mui sensato
Assim será. Lucêncio não desiste, quanto dizeis, senhor. E já que vindes
mesmo que venha Páris, lança em riste. também como aspirante à mão da jovem,
Grêmio : Como! Este cavalheiro vai meter-nos deveis gratificar, como nós outros,
a todos no chinelo. esse senhor, de quem nos confessamos
Lucêncio - Dai-lhe corda, devedores eternos.
senhor, que acabará por enroscar-se. TrÂnio Cavalheiro,
PerruccHio : Hortênsio, a que vem tanto sovina não serei; e como prova
palavrório? vos convido a passar comigo a tarde,
Horrênsio - Permiti-me a ousadia da pergunta: para brindes à moça levantarmos.
vistes já acaso a filha de Batista? Como advogados procedamos nisso,
TRâÂnio - Jamais, senhor; mas soube que tem duas: os quais, embora com calor discutam,
uma, formosa pela língua afiada; depois comem e bebem como amigos.
a outra, pela modéstia, encantadora. Grúmio E BroNDELLO * Oh! que excelente idéia!
PerruccHIOo - À primeira, senhor, soltai; é minha. Amigos, vamos.
Grêmio : Pois não; deixo o trabalho para esse HorTêÊnsio
Hércules; Petrucchio, a idéia pode dar bom fruto.
que lhe seja maior que os outros doze. Serei agora vosso ben venuto.
(Saem.)
Ato IH Cena l
Pádua. Um quarto em casa de Batista. sim, do manto ao casaco. E tudo quanto
Entram Catarina e Bianca. me ordenares, farei sem discrepância,
tanto conheço meus deveres para
Branca: Querida irmã, não me façais a injúria, com as pessoas mais velhas.
nem a vós mesma, de tratar-me como CATARINA* Ora intimo-te
criada ou baixa escrava. Isso me humilha. a me dizer a qual dos pretendentes
Quanto aos enfeites, basta me soltardes à tua mão dedicas mais afeto.
as mãos, para que deles me desfaça; Não dissimules; conta-me a verdade.
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Branca: Acreditai-me, irmã: nos homens vivos BariIsTA* Sim, bom dia,
jamais notei fisionomia alguma vizinho Grêmio. Deus vos guarde, amigos.
que particularmente me agradasse. PerruccHio - E a vós, senhor. Dizei-me, por
CATARINA: obséquio:
Bonequinha, é mentira. Não é Hortênsio? não tendes uma filha, Catarina
Branca Se gostais dele, mana, aqui prometo de nome, encantadora e mui virtuosa?
nesse sentido lhe falar, contanto BarisTA : Senhor, tenho uma filha desse nome.
que venhais a possuí-lo. Grêmio Sois muito brusco; procedei com método.
CATARINA Agora entendo: PerrRUCCHIO *
gostais mais de riquezas, preferindo Signior Grêmio, ofendeis-me; com licença.
Grêmio, por isso, para que vos deixe, Senhor, sou um cavalheiro de Verona;
sem dúvida, mais bela. tendo ouvido falar da formosura
BraNCA- Tendes ciúme de vossa filha, seu brilhante espírito,
de mim por causa dele? É brincadeira, a modéstia pudica, as admiráveis
vejo-o bem. E ora noto que outra coisa qualidades, a sociabilidade,
não fizestes senão brincar comigo. sua conduta afável, a ousadia
Quetinha, por obséquio, as mãos soltai-me. tomei de apresentar-me em vossa casa,
CATARINA Se isto é brinquedo, o resto também era. sem cerimônia, para que a verdade
(Bate-lhe. Entra Batista.) do que já tenho ouvido tantas vezes
Barista * Que é isso, dona? Por que tanta fúria? verifique com os olhos. Como gage
Bianca, fica de lado. Pobrezinha! de minha vinda, quero apresentar-vos
Está chorando... Vai buscar a agulha; um dos meus homens, competente em música
não te metas com ela. Que vergonha! e matemático de truz, que pode
Por que motivo, espírito diabólico, polir a educação de vossa filha
quem nunca te fez mal assim maltratas? nessas ciências, em que ele, estou bem certo,
Quando ela te falou em tom mais áspero? já tem conhecimento. Ficai com ele,
CaTARINA Seu silêncio me irrita; hei de vingar-me. a não ser que queirais mesmo ofender-me.
(Faz menção de pegar Bianca.) Chama-se Lício e é natural de Pádua.
BarisTA : Ante meus próprios olhos? Entra, Bianca. BarisTA : Sois bem-vindo, senhor, assim como ele,
(Sai Bianca.) por amor vosso. Quanto à minha filha
CATARINA : Já não me suportais? Agora vejo Catarina — certeza tenho disso —
que ela é vosso tesouro e que é preciso não diz com vosso gênio, o que me pesa.
arranjar-lhe um marido. Em suas núpcias PerruccHio - Vejo que não quereis perder a filha,
descalça dançarei; por causa dela ou que não vos agrada minha aliança.
* conduzirei macacos para o inferno. BarisTA - Não me compreendais mal; digo o que penso.
Não me faleis, pois a chorar vou pôr-me, De onde vindes, senhor? Que nome tendes?
até achar ocasião para vingar-me. PeTRUCCHIO *
(Saí) Eu? Sou Petrucchio; foi meu pai Antônio,
Barista : Já houve alguém, como eu, tão molestado? em toda a Itália muito conhecido.
Mas, quem vem vindo aí? Barisra - Conheço-o bem; assim, sois mui bem-
(Entra Grêmio, com Lucêncio vestido vindo.
pobremente, Petrucchio, com Hortênsio, Grêmio : Acatando, Petrucchio, vossa história,
como professor de música, e Trânio, com Biondello, permiti, por obséquio, que nós outros,
que traz um alaúde e livros.) pobres peticionários, também azo
Grêmio - Muitos bons dias, tenhamos de falar. Ficai de lado;
meu vizinho Batista. apressais-vos demais.
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O ferro pode resistir-lhe, nunca Mas ei-la aí. Vamos, Petrucchio; fala.
sonoroso alaúde. (Entra Catarina.)
BATISTA Não pudeste Sois bem-vinda, Quetinha. Esse, disseram-me,
dobrá-la às harmonias do alaúde? É o vosso nome; não é isso mesmo?
HorTÊnsio - CATARINA Sois lerdo para ouvir; quantos meu
Não, que ela o dobrou em mim, primeiro. nome
Disse-lhe apenas que ela se enganava pronunciam, só dizem Catarina.
com relação ao toque, procurando PerRUCCHIO -
os dedos ajeitar-lhe junto às cordas, Por minha alma, mentis. Todos vos chamam
quando ela, com espírito diabólico, Quetinha, simplesmente, a brincalhona
impaciente, gritou: “Isso é que é toque? Quetinha, e, às vezes, a Quetinha brava;
Pois vou tocar de jeito”. Assim dizendo, mas, Quetinha, a Quetinha mais galante
na cabeça me deu tão forte golpe, de toda a cristandade, a superdoce
que através do instrumento abri caminho, Quetinha, o bom-bocado do meu gosto —
algum tempo ficando estupefacto, sim, pois Quetinha é o meu melhor bocado.
como pessoa presa ao pelourinho, Quetinha, meu consolo, ouve-me agora:
a olhar pelo alaúde, enquanto “Imundo tendo ouvido elogiar tua doçura
rabequista”, “Zezé desafinado”, em todas as cidades, a virtude
e outras vinte expressões ela jogava-me, que te é própria, e cantar tua beleza —
que adrede decoradas pareciam, aliás, bem menos do que mereceras —
tão-só para insultar-me. movi-me a desejar-te para esposa.
PeTRUCCHIO* Pelo mundo! CATARINA:
Que rapariga alegre! Amo-a dez vezes Movestes-vos em tempo. Que o demônio
mais agora do que antes. Que vontade que vos moveu a ver-me vos remova,
de conversar com ela alguns momentos! sem demora, daqui. Logo de início
BarisTa (a Flortênsio) - notei que éreis um móvel.
Vem, vem comigo; não te mostres triste; PerruccHIO Como! Um móvel?
continua a ensinar minha caçula; CATARINA:
tem gosto para o estudo e é agradecida. Um tamborete, sim.
Signior Petrucchio, quereis vir conosco, PerruccHIO - Deste no vinte;
ou preferis que eu mande Catarina? então vem logo e sobre mim se senta.
PerruccHio Pois não; mandai-a vir; aqui a CATARINA: Os asnos como vós suportam carga.
espero. PeTRUCCHIO *
(Saem Batista, Grêmio, Trânio e Hortênsio.) As mulheres também suportam carga.
Vou cortejá-la com algum espírito. CATARINA: Mas não um tolo como vós, se é certo
Se me insultar, dir-lhe-ei sem circunlóquios que a mim vos referis.
que como o rouxinol tem ela o canto; PerTRUCCHIO * Boa Quetinha,
franzindo o rosto, lhe direi que é límpida não quero sobrecarregar-te, vendo
como a rósea manhã que o orvalho banha; que és muito moça e leve.
se não disser palavra e ficar muda, CATARINA: Muito leve
elogios farei ao seu talento para ser apanhada por um rústico.
de expressar-se, afirmando que a eloquência Sou tão pesada quanto devo sê-lo.
dela é arrebatadora. Convidando-me PerRrUccCHIO -
a retirar-me, agradecido mostro-me, Pesada, não; preada.
como se o grato invite eu recebesse CATARINA: Ave de preia
de ficar junto dela uma semana. só conheço gavião.
Se desposar-me não quiser, lhe falo PerruccHio : Oh vagarosa
sobre os proclamas e o feliz evento. rolinha, um gavião irá apanhar-te?
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BarisTA : Não brigueis, cavalheiros; tenho um meio TrâÂnio - Grêmio, é sabido que meu pai possui
para solucionar a desavença. nada menos que três carracas fortes,
Vão decidir os fatos. De vós ambos e mais duas galeras e uma dúzia
o que firmar a minha filha dote de embarcações menores. Isso tudo
mais opulento, o amor terá de Bianca. de dote lhe asseguro e mais o dobro
Dizei-me, signior Grêmio, que importância de tudo quanto possas ofertar-lhe.
podeis assegurar-lhe? Grêmio : Não; já ofereci tudo; é quanto tenho.
Grêmio - De começo, Não posso dar-lhe mais do que possuo;
como sabeis, a casa que eu possuo de meus bens e de mim será senhora,
na cidade adornada é ricamente no caso de escolher-me.
com baixelas de prata e ouro abundante, BaTISTA* Sim, confesso
jarros, bacias para as mãos lavar-lhe, que é maior vossa oferta. Assegurando
tão delicadas. São minhas cortinas vosso pai a fortuna como dote
“de tecidos da Tíria; nos meus cofres de minha filha, será vossa esposa.
de marfim as coroas se comprimem; Mas sem isso, perdoai-me: se morrerdes
nas arcas de ciprestes tenho colchas, primeiro, qual será o dote dela?
cortinas, baldaquins, vestes custosas, Trânio : Isso é um sofisma; ele está velho; eu, moço.
batistas finas, almofadas turcas Grêmio : E não morrem os moços como os velhos?
com pérolas tecidas, franjas vindas Barisra - Muito bem, cavalheiros;
de Veneza, com fios de ouro ornadas, resolvi deste modo: no domingo
cobre e estanho a valer, e tudo quanto próximo minha filha Catarina
faz parte de uma casa bem montada. vai casar-se. Pois bem: no outro domingo
Em minha granja tenho uma centena Bianca ficará sendo vossa noiva,
de vacas prontas para boa ordenha, se lhe puderdes dar essa certeza;
além de cento e vinte bois no estábulo, se não, noiva será do signior Grêmio.
e tudo o mais em proporção idêntica. E assim, muito obrigado e adeus para ambos.
Não nego que já sou um tanto idoso. Grêmio : Vizinho, passai bem.
Se eu morrer amanhã, tudo isso é dela, (Sai Batista.)
caso, enquanto eu viver, ela for minha. Não tenho medo
Trânio - Esse “caso” do fim chegou a tempo. de ti. Com a breca, meu taful! Bem tolo
Signior Batista, ouvi-me, Sou filho único seria vosso pai se te fizesse
e herdeiro de meu pai. Se vossa filha dádiva do que tem, para debaixo
se tornar minha esposa, três ou quatro viver de tua mesa na velhice.
casas lhe deixarei na rica Pisa, Uma raposa italiana, moço,
tão belas como quantas tenha em Pádua não arrisca assim fácil o pescoço.
o velho signior Grêmio. Acrescentemos (Sai.)
a isso uma renda de dois mil ducados Trânio - Pele engelhada, o diabo te carregue!
por ano em terras boas para amanho. Mas tenho um dez para ganhar o jogo.
Tudo isso será dela. Então, meu caro Já encontrei a maneira de meu amo
signior Grêmio, deixei-vos achatado? vir a sair-se bem. Não há motivo —
Grêmio - Dois mil ducados anuais de terra? não o vejo — para que um Lucêncio falso
Minhas terras não dão tamanha renda. não tenha um pai Vicêncio também falso.
Mas prometo também que será dela Eis o estranho do caso: os pais, de regra,
minha carraca que ancorada se acha dão vida aos filhos; mas neste noivado
no porto de Marselha. E ora dizei-me pelo filho vai ser o pai gerado.
se não vos achatou minha carraca? (Sai)
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Ato HI - Cenal
Pádua. Um quarto em casa de Batista. HorTÊNSIO (retornando) -
Entram Lucêncio, Hortênsia e Bianca. O instrumento, madame, está afinado.
Branca : Vamos ouvi-lo.
Lucêncio : Rabequista, parai; sois muito ousado. (Flortênsio toca.)
Já não vos lembra, acaso, o acolhimento Oh! o agudo está desafinado!
que vos fez sua mana Catarina? Lucêncio -
Horrênsio : Mas, pedante brigão, esta é a padroeira Cospe no buraco, amigo, e afina-o de novo.
da celeste harmonia. A precedência Branca: Vamos ver agora se eu sei traduzir: “Hac
deveis, pois, conceder-me. E quando houvermos ibat Simois”, não vos conheço; “hic est Sigeia
gasto em música uma hora, igual espaço tellus”, não tenho confiança em vós; “Hic steterat
de tempo gastareis só com leituras. Priami”, tomai cuidado para que ele não nos ouça,
Lucêncio : Asno atrasado, que não leu bastante “regia”, não sejais muito apressado, “celsa senis”, não
para entender por que é que existe música: desespereis.
não é para aliviar o entendimento HorTêÊnsio :
depois do estudo e do trabalho diário? Senhorita, está pronto.
Deixai-me ler, assim, filosofia Lucêncio Falta o baixo.
e, ao descansar, servi vossa harmonia. Horrênsio : O baixo está afinado. O biltre baixo
HorTÊnsio - Maroto, não recebo os teus insultos. é que estraga o conjunto. Que entusiasmo
Branca: Senhores, ofendeis-me duplamente, mostra o nosso pedante! E que atrevido!
por discutirdes sobre o que depende, Mas estou percebendo que o maroto
tão-só, do meu querer. Não sou menina está fazendo a corte à minha amada.
de colégio que apanha chibatadas. Vou passar a observar-te com cuidado,
Não quero ficar presa a horário fixo, professor de uma figa.
desejando estudar como me agrade. BIANCA Com mais tempo
Para cortar a discussão de início, poderei crer; agora, desconfio.
sentemo-nos aqui, e, enquanto lemos, Lucêncio - Não desconfieis, pois é certeza:
tomai vosso instrumento e ide tocando, o Eácida foi Ajax, pelo avô assim chamado.
que ao fim havemos de chegar primeiro. Branca: Sou forçada a dar crédito a meu mestre;
HorrÊnsio : Terminareis, quando eu ficar acorde? se não, afirmo-o, ainda argumentara
(Retira-se.) muito sobre esse ponto duvidoso.
Lucêncio : Isso, nunca. Afinai vosso instrumento. Fiquemos por aqui. Agora, Lício,
Branca: Onde ficamos ontem? chegou a vossa vez. Bondosos mestres,
Lucêncio - Neste ponto, não vos zangueis por eu me ter mostrado
senhorita: pilhérica com ambos.
Hac ibat Simois; hic est Sigeia tellus; Horrênsio (a Lucêncio) + Ora o posto
Hic steterat Priami regia celsa senis. me cedei, indo dar um bom passeio,
Branca: Traduzi. pois não tenho canção para três vozes.
Lucêncio - “Hac ibat”, como já vos disse, “Simois”, Lucêncio
eu me chamo Lucêncio, “hic est”, filho de Vicêncio Sois tão formal, senhor? (À parte.) Não me retiro;
de Pisa, “Sigeia tellus”, disfarçado para alcançar vosso vou observá-lo, pois se não me iludo,
amor. “Hic steterat” e o Lucêncio que se apresentou amando está o nosso belo músico.
para vos fazer a corte, “Priami”, é meu criado Trânio, HorrTÊnsio : Antes, senhora, de tocar nas cordas,
“regia”, que tomou o meu nome, “celsa senis”, para para aprender a posição dos dedos,
melhor enganarmos o velho pantalão. os rudimentos da arte vou dizer-vos.
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mais tristes nos tornamos por vos vermos TRÂnIO: O amor de Bianca,
vestido desse jeito. Tirai isso, senhor, é nada, sem que lhe ajuntemos
que vossa posição não honra e mancha a permissão paterna. Para obtê-la,
nossa festa solene. como já disse a Vossa Senhoria,
TRâÂnIO - E revelai-nos vou procurar um homem — pouco importa
o impedimento grave que afastado quem ele seja; havemos de instruí-lo —
de vossa noiva vos deteve tanto, que Vicêncio de Pisa vai chamar-se
trazendo-vos agora desse modo, e aqui em Pádua caução nos dará plena
tão estranho a vós próprio. de quanto prometi, e mais ainda.
PerruccHio : Fastidioso Assim, de vossa dita, calmamente
fora contar e pior de ouvir ainda. desfrutareis, e com consentimento
Vim cumprir a palavra; é quanto basta, vireis a desposar a doce Bianca.
embora em alguns pontos obrigado Lucêncio : Não fosse o professor, meu camarada,
tivesse sido a me afastar da meta, tão de perto vigiar os passos dela,
do que com mais vagar hei de escusar-me, fora fácil, parece-me, casarmo-nos
satisfações vos dando suficientes. por modo clandestino. Uma vez pronto,
Mas onde está Quetinha? Há quanto tempo embora diga “não” o mundo todo,
não a vejo! A manhã já está passando; contra o mundo, sozinho, a defendera.
já fora tempo de na igreja estarmos. Trânio - Até lá chegaremos pouco a pouco,
Trânio : Não vos apresenteis a vossa noiva se cuidarmos de nossos interesses.
com essa fantasia irreverente. Mantearemos, assim, o velho Grêmio,
Ide ao meu quarto e ponde roupa minha. o pai ranzinza espreitador, Minola,
PeTRUCCHIO * o músico amoroso e fino, Lício,
Não; podeis crer-me. Assim, desejo vê-la. só para o bem de meu senhor Lucêncio.
BarisTA : Mas quero crer que não ireis à igreja Estais vindo da igreja, signior Grêmio?
vestido desse modo. (Volta Grêmio.)
PerruccHIO* | Justamente Grêmio : De tão bom grado como do colégio.
desta maneira, meu senhor. Mas basta TrÂnio : E os casados, vêm vindo para casa?
de tanto palavrório. Ela se casa Grêmio : Casados? Descasados fora certo,
comigo apenas, não com minha roupa. que ela com ele não ganhou marido.
Caso eu pudesse reparar com tanta Tipo intratável!
facilidade em mim o que ela gasta, TRÂNIO Como! Mais do que ela?
como posso trocar estes farrapos, Não é possível.
bem estaria para Catarina, Grêmio Ora, é um demônio,
e melhor para mim. Mas que pateta, um verdadeiro demo.
para tagarelar assim convosco, Trânio- E ela, uma diaba:
quando devera dar a minha noiva uma diaba, a mulher do diabo-chefe.
meu bom dia e selar com um terno beijo Grêmio
meu título inconteste! Qual o quê! É uma ovelha, uma pombinha;
(Saem Petruchio, Grúmio e Biondelo.) junto dele é uma tonta. Vou contar-vos,
TRâÂnio Com tais vestes senhor Lucêncio. Ao perguntar-lhe o padre
deve ele ter em mente alguma coisa. se por esposa ele aceitava a noiva,
Se for possível, vamos persuadi-lo “Sim, pelo raio!” disse, de tal modo
a vestir-se melhor, para ir à igreja. gritando que, de medo, o sacerdote
Barista : Vou atrás dele, para ver como isso deixou cair o livro, e, ao abaixar-se
tudo vai acabar. para apanhá-lo, o noivo tresloucado
(Saem Batista, Grêmio e criados.)
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meu tudo, enfim. Aqui ela se encontra. tão louco assim, nunca houve.
Quem coragem tiver, que toque nela; Lucêncio - Senhorita,
saberei defender-me contra o ousado de vossa mana que pensais agora?
que o passo me quiser barrar em Pádua. Branca * Que, sendo louca, desposou um louco.
Desembainha, Grúmio, que cercados Grêmio : Petrucchio está catarinado, juro-o.
estamos por bandidos. Se homem fores, Batista * Amigos e vizinhos, muito embora
salva tua patroa. Não, Quetinha, não ocupem os noivos, por ausentes,
ninguém te tocará; hei de amparar-te seus lugares à mesa, estai bem certos
contra um milhão que seja. de que não faltam bons pitéus na festa.
(Saem Petrucchio, Catarina e Grúmio.) Lucêncio, o posto tomareis do noivo,
BarisTa : Vamos! deixai seguir o par pacífico. e no lugar da irmã senta-se Bianca.
Grêmio : Se demorassem mais, eu morreria TRÂniIO - Vai praticar de noiva a bela Bianca?
de tanta gargalhada. Barisra : Sim, Lucêncio. Avancemos, cavalheiros.
TrÂnio Casamento (Saem.)
Uma sala na casa de campo de Petrucchio. Grúmio : Foi, Curtis, antes desta geada. Mas, como
Entra Grúmio. sabes, o inverno amansa o homem, a mulher e o animal,
pois assim o fez com meu velho amo, com minha nova
GRÚMIO À peste que carregue todos os cavalos patroa e comigo mesmo, camarada Curtis.
aguados, os patrões loucos e os caminhos Curris Sai daí, louco de três polegadas! Não sou
intransitáveis!
Já houve quem apanhasse tanto como nenhum animal.
eu? quem ficasse tão marcado, tão cansado quanto Grúmio : Só tenho três polegadas de altura? Pois se
eu? Mandaram-me na frente, para fazer fogo, vindo teus cornos medem um pé de comprimento, deveria
eles atrás, para se aquecerem. Mas se eu não fosse um ser esse, no mínimo, o meu tamanho. Mas não
pote pequeno, que se esquenta com facilidade, poderia queres acender o fogo? Ou deverei queixar-me de ti à
ficar com os lábios grudados nos dentes, de tanto frio; nossa ama, cuja mão — pois ela já se acha à distância
a língua, no céu da boca; o coração, nas costelas, € da mão — tu sentirás dentro de pouco, para teu frio
isso antes de poder chegar para perto de algum fogo consolo, por seres vagaroso no cumprimento de tuas
e descongelar-me. Tenciono aquecer-me soprando no obrigações?
fogo. Com um tempo destes, um homem mais alto do Curris : Por favor, bondoso Grúmio, conta-me
que eu se resfriaria facilmente. Olá! Curtis! Olá! como vai passando o mundo.
(Entra Curtis.) Grúmio - O mundo está frio, Curtis, em todos
Curris : Quem é que me chama com tanto frio os ofícios, com exceção do teu. Por isso, trata de
assim? acender o fogo. Cumpre o teu dever para alcançares
Grúmio : Um pedaço de gelo. Se não acreditais o que te devem, porque o patrão e a patroa estão
no que digo, poderás escorregar do meu ombro quase mortos de frio.
ao calcanhar tão rapidamente como da cabeça ao Curris O fogo está preparado. Por isso, bondoso
pescoço. Fogo, bondoso Curtis. Grúmio, quais são as novidades?
Curris- O patrão e a senhora já vêm vindo, Grúmio? Grúmio : Ora, quantas queiras, todas elas na toada
Grúmio : Oh! vêm, Curtis; vêm. Por isso mesmo, da cantiga “Oh Zé menino! Olá, menino!”
fogo, fogo, sem nenhuma água por cima. Curris: Ora, ora! estás sempre com brincadeiras.
Curris: E ela, é a megera furibunda de que todos Grúmio - Por isso mesmo, cuida do fogo, pois
falam? apanhei um frio extremo. Onde está o cozinheiro?
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A ceia está pronta? a casa enfeitada? os juncos que tagarelar dessa maneira? Vai chamar Nataniel,
espalhados? as teias de aranha retiradas? Todos os José, Nicolau, Filipe, Válter, Biscoitinho e todos os
criados estão de casaco novo e meias brancas e os outros. Que venham com os cabelos bem lisos, as
demais serventes com suas fardas de gala? Os odres blusas azuis bem escovadas e as ligas uniformes.
estão bonitos por dentro e as jarras bonitas por fora? Que façam reverência com a perna esquerda, sem
Os tapetes já foram estendidos, e tudo, enfim, está terem a ousadia de tocar num só pêlo do rabo do
em ordem? cavalo de meu amo, antes de beijarem a mão dele e a
Curris : Tudo está em ordem. Por isso mesmo, da patroa. Estão todos prontos?
torno a perguntar: que novidades há? Curris : Estão.
Grúmio : Em primeiro lugar fica sabendo que meu Grúmio: Então chama-os.
cavalo está estrompado; o patrão e a patroa caíram. Curris - Olá! Estais ouvindo? Precisamos receber o
Curris : Como! patrão e apresentar os cumprimentos à patroa.
Grúmio - Ora, caíram da sela na lama; isso daria Grúmio - Ora, ora! Cumprimento é o que ela tem
uma bela história. bastante.
Curris : Pois vamos ouvi-la, bondoso Grúmio. Curris: E quem não sabe disso?
Grúmio : Então apronta a orelha. Grúmio : Tu, parece, porque estás mandando que
Curris: Aqui está ela. lhe dêem cumprimento.
Grúmio (Dando-lhe uma bofetada) - Ei-la! Curris : Chamei-os para que eles reforcem o
Curris: Isso é o que se chama sentir uma história, crédito dela.
não ouvi-la. Grúmio : Ora, ela não pretenderá pedir-lhes
Grúmio : Por isso mesmo é que tem o nome de emprestado coisa nenhuma.
história sensível. Esse tapa só serviu para chamar a (Entram vários criados.)
atenção de tua orelha. Agora vou começar. Imprimis, NarANIEL * Bem-vindo, Grúmio!
Frcrpe : Então, Grúmio?
descemos por uma coluna sujíssima, vindo meu amo
José - Que é que há, Grúmio?
na garupa da patroa...
NicoLau * Camarada Grúmio!
Curris : Ambos montados no mesmo cavalo?
NaATANIEL * Como vai isso, meu velho?
Grúmio : Que tens que ver com isso?
Grúmio : Bem-vindo, vós; e vós, então? Que foi
Curris : Bem; num cavalo.
que houve convosco? E vós, camarada? E assim
Grúmio : Nesse caso, conta tu mesmo a história. Se
todos os outros cumprimentos. Agora, meus guapos
não me tivesses interrompido, terias ouvido como
companheiros, está tudo pronto? todas as coisas
o cavalo dela caiu, tendo ela ficado por baixo dele,
estão nos eixos?
como também terias ficado sabendo em que lamaçal
NarantEL : Tudo está nos eixos. A que distância se
isso se deu e como ela ficou toda lambuzada de la- encontra o patrão?
ma; como ele a deixou ficar por baixo do cavalo e me Grúmio : À dois passos daqui; provavelmente já
bateu, porque o cavalo havia tropeçado; como ela se está apeando do cavalo. Por isso, não sejas... Santo
atolou naquela imundície, para vir tirá-lo de cima de Deus! Silêncio! Estou ouvindo a voz do patrão.
mim, como ele praguejava, como ela suplicava, ela (Entram Petrucchio e Catarina.)
que nunca o havia feito até então; como eu gritava, PerTRUCCHIO *
como o cavalo escapou e saiu correndo, como a rédea Onde estão esses biltres? Como! A rédea
arrebentou, como eu perdi o meu rabicho, além de ninguém me veio segurar à porta,
muitas outras coisas dignas de memória, que irão nem pegar o cavalo? Onde se encontram
cair no esquecimento, enquanto tu voltarás para tua Gregório, Nataniel, José, Filipe?...
sepultura, sem conhecimento de nada. Topos os CRIADOS"
Curris: Por essa relação, vê-se que ele é mais Aqui, senhor!
intratável do que ela. PerruccHIOo - Aqui, senhor! Aqui,
Grúmio : Sim, o de que o mais atrevido dentre vós senhor! Aqui, senhor! Cabeças ocas,
poderá certificar-se, logo que ele chegar. Mas, para moços de estrebaria é o que sois todos.
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Trânio : Pois é meu pai, senhor; e, sob palavra, liquidar os negócios da cidade.
parece-se convosco alguma coisa. Aceitai de bom grado esse serviço.
BrONDELLO (à parte) : ProrEssoR
Tal qual uma ostra e uma maçã madura. Oh meu senhor! Aceito-o, e para sempre
TrâÂnio : Porque a vida vos salve neste aperto, passo a considerar-vos o patrono
vou ser-vos útil só por amor dele. de minha liberdade e minha vida.
Assim, considerai que é muita sorte Trânio - Vamos então concretizar a coisa.
terdes os traços do senhor Vicêncio. De passagem vos digo apenas isto:
Assumireis o nome e o aspecto dele meu pai é aqui esperado a cada instante
e em minha casa muito cordialmente para em contrato assegurar o dote
ficareis alojado. E agora, muito que eu devo dar à filha de Batista.
cuidado para que ninguém suspeite A par hei de vos pôr de quanto importa.
de vossa identidade. Compreendeis-me. Vamos, senhor, vestir-vos como importa.
Em casa ficareis até poderdes (Saem.)
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Não te molestes com seu modo brusco. pois partiremos já, para festarmos
Podes ir; recomenda-me ao teu amo. em casa de teu pai, despreocupados.
(Sai o alfaiate.) (A Grúmio.)
PerruccHio : Vem, querida Quetinha; assim Chama meus homens; montaremos logo;
faremos põe os cavalos na alameda grande,
uma visita a vosso pai com estas a pé iremos até lá. Vejamos:
vestes pobres e honestas. Nossas bolsas são sete horas, quero crer, agora;
serão vaidosas; nossa roupa, pobre. chegaremos com tempo de jantar.
Êo espírito que deixa o corpo rico. CATARINA*
E assim como através das mais espessas Senhor, posso afiançar-vos: são duas horas;
nuvens o sol penetra, de igual modo nem a ceia, é certeza, alcançaremos.
nas vestes mais humildes a honra brilha. PerruccHio : Serão sete horas antes de
Mais nobre é o gaio do que a cotovia, montarmos.
por ter plumagem muito mais bonita? Vede bem: quanto eu diga, ou faça, ou tenha
Ou mais do que a enguia vale a serpe, idéia de fazer, contrariais sempre.
porque os olhos sua pele nos alegra? Deixai, amigos; hoje já não saio.
Não, querida Quetinha; nada perdes Quando vier a sair, dagora em diante,
com essa roupa humilde e desonrada. a hora que eu disser é que está certa.
Se a teus olhos é opróbrio, toda a culpa HorTênsio - Até no sol este galante manda.
põe sobre mim. Por isso, fica alegre, (Saem.)
Ato IV - Cena IV
Pádua. Diante da casa de Batista. BroNDELLO* Sim; contei-lhe
Entram Trânio e o professor, vestido como Vicêncio. que vosso pai se achava ora em Veneza
e que com ele em Pádua hoje contáveis.
TRÂnio : Esta é a casa, senhor. Posso bater? Trânio : És um rapaz esperto; recebe isto
ProrEssoR: E por que não? Se não me trai o engenho, para a bebida. Mas aí vem Batista.
de mim ainda deve estar lembrado Assumi, meu senhor, vossa aparência.
meu amigo Batista. Foi em Gênova, (Entram Batista e Lucêncio.)
há vinte anos; nós dois nos hospedamos Signior Batista, mui feliz encontro.
na estalagem do Pégaso. (o professor.)
Trânio Isso mesmo. Este é o senhor sobre que já falamos.
Em qualquer circunstância, agora cumpre-vos Revelai-vos agora um pai bondoso,
austeridade revelar paterna. dando-me Bianca para minha herança.
Proressor : Trangjuilizai-vos. Mas aí vem o pajem. ProrEssor : Mais devagar, meu filho.
Bom seria instruí-lo nesse ponto. Com vossa permissão, senhor; mas tendo
(Entra Biondello.) vindo até Pádua por algumas dívidas,
Trânio - Podeis ficar trangúilo. Olá, Biondello! fui informado por Lucêncio duma
vede lá como andais daqui por diante, causa de amor de grande relevância
é o que vos digo. E tende bem presente entre ele e vossa filha. Assim, em parte
que este amigo é o legítimo Vicêncio. pelas informações que de vós tenho,
BronDELLO : Ora! não tenhais medo. em parte pelo amor que ele lhe vota,
TrÂnio- Mas já deste por ela retribuído, para que ele
meu recado a Batista? não espere demais concordo, em minha
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Ato IV : CenaV
Uma estrada pública. Doce Quetinha, com franqueza fala-me:
Entram Petrucchio, Catarina, Hortênsio e criados. já viste uma senhora assim tão fresca?
Como em suas faces o vermelho e o branco
PerruccHio : Depressa, pelo céu! Vamos à casa dura guerra mantêm! Jamais os astros
de vosso pai, de novo. Oh Deus bondoso! o céu tão belamente tachonaram
como estes olhos o seu rosto angélico.
como brilha no céu a lua amiga!
Adorável menina, novamente
CATARINA: Lua? Isto é sol; não há luar ainda.
muito bom dia para ti. Abraça-o,
PerruccHio : Digo que é a lua que tão claro brilha.
doce Quetinha, por ser tão formosa.
CATARINA É o sol, bem vejo, que tão claro brilha.
Horrênsio : Vai deixar o homem louco, pretendendo
PerruccHiIo - Pois pelo filho de meu pai, eu transformá-lo em mulher.
mesmo, CATARINA: Botão formoso,
tem de ser lua ou estrela, ou o que eu quiser, fragrante e virginal, para que ponto
antes de à casa de teu pai nós irmos. te diriges agora? Onde resides?
Recolhei os cavalos! Contrariado Felizes pais de tão galante filha!
de novo! Contrariado sempre e sempre! Mas mais feliz o moço a quem os astros
Horrênsio : Oh! concordai com ele; do contrário, propícios te destinam para sua
não partiremos nunca. companheira tão meiga!
CATARINA Por obséquio, PETRUCCHIO * Ora, Quetinha!
já que chegamos até aqui, sigamos Não estás louca, penso. É um homem velho,
até o fim, seja lua, ou sol, ou quanto cheio de rugas, murcho, enfraquecido,
bem entenderdes. Caso resolvais como estás vendo.
dar-lhe o nome de vela, doravante CATARINA: Velho pai, perdoa
para mim será isso. o engano de meus olhos. Ofuscados
PerruccHIO: Élua, disse. tanto o sol os deixou, que quanto eu veja
CATARINA: Vejo que é lua, mesmo.
só verde me parece. Agora noto
PerRUCCHIO - Estás mentindo
que és um pai venerando. Novamente
peço que me perdoes esse engano.
pois é o sol abençoado.
PerRUCCHIO *
CATARINA* Deus bendito!
Perdoa-lhe, bom velho; e, ao mesmo tempo,
pois é o sol abençoado! Mas já deixa conta-nos teu caminho. Sendo o mesmo
de ser o sol, quando negardes isso. que o nosso, muito alegres ficaremos
Muda-se a lua como vosso espírito; com tua companhia.
será o que quiserdes, e isso mesmo Vicêncio : Belo moço,
ficará sendo para Catarina. e vós, alegre dama, que bastante
Horrênsio : Petrucchio, segue o teu caminho; me espantastes com vosso cumprimento
ganha tão esquisito; chamo-me Vicêncio;
foi a batalha. moro em Pisa, e em caminho estou de Pádua,
PerruccHio : Bem; avante! avante! para fazer uma visita a um filho
Assim a bola correrá depressa, que há muito não revejo.
sem desviar-se da meta. Mas cautela! PerruccHio - O nome dele?
Quem é que vem chegando? Vicêncio *
(Entra Vicêncio, em trajes de viagem.) Lucêncio, meu senhor.
(A Vicêncio. ) Gentil dama PeTRUCCHIO * Feliz encontro
bom dia. Qual é o vosso itinerário? para nós e teu filho. E agora posso
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dizer que assim por lei como por tua Vicêncio Mas tudo isso é verdade, ou simplesmente
veneranda aparência, autorizado vos divertis, por terdes gênio alegre,
me acho para chamar-te pai querido. com as pessoas que encontrais na estrada?
À irmã de minha esposa, esta senhora, HorTÊnsio : Não, pai; é certo; posso assegurar-vos.
já desposou teu filho. Não te espantes PerruccHiIo : Vem, vem conosco, para convencer-te
nem te aborreças, que é de bom conceito, da verdade de tudo o que dissemos.
de rico dote e de família digna. Deixou-te desconfiado a brincadeira.
Além do mais, tem tantas qualidades, (Saem todos, com exceção de Hortênsio.)
que digna a deixam de tornar-se esposa HorrêÊnsio - Petrucchio, muito bem; coragem deste-me.
do mais nobre mancebo. Assim, permite Procuremos a viúva; por mais que ela
que no velho Vicêncio eu dê um abraço, se mostre rezingueira, quanto baste
e vamos juntos ver teu belo filho para domá-la a Hortênsio já ensinaste.
que tua vinda vai deixar alegre. (Sai.)
Ato V: Ceml
Pádua. Diante da casa de Lucêncio. Vicêncio O signior Lucêncio está, meu senhor?
Por um lado entram Biondello, Lucêncio e Bianca; ProrEssoRr : Está, sim senhor; mas não pode
Grêmio passeia no outro lado. atender a ninguém.
Vicêncio - Como! E se alguém lhe trouxesse cem
BroNDELLO : Com jeito e bem depressa, senhor, ou duzentas libras, para maior animação de seus
porque o padre já está à espera. divertimentos?
Lucêncio : Eu vôo, Biondello; mas pode acontecer Proressor: Guardai para vós mesmos vossas
que eles precisem de ti em casa. Por isso, deixa-nos. duzentas libras; enquanto eu tiver vida ele não
BroNDELLO : Não, por minha fé; primeiro terei de precisará disso.
ver a igreja por cima de vosso ombro; depois voltarei PerruccHro : Não vos disse eu que vosso
filho era muito estimado em Pádua? Senhor,
para junto de meu amo, o mais depressa que puder.
estais ouvindo? Deixando de lado frívolos
(Saem Lucêncio, Bianca e Biondella.)
circunlóquios, peço-vos avisar ao signior Lu-
Grêmio : Admiro-me de Câmbio não ter ainda
chegado.
cêncio que o pai dele chegou de Pisa e que o
espera aqui na porta para falar-lhe.
(Entram Petrucchio, Catarina, Vicêncio e criados.)
Proressor Estás mentindo; o pai dele já chegou
PerrucchHro : Esta é a porta; esta é a casa de Lucêncio.
de Pisa e vos contempla agora desta janela.
À de meu pai é perto do mercado.
Vicêncio : Então o pai dele és tu?
Tenho de ir até lá; por isso, deixo-vos.
ProrEssoRr: Perfeitamente; pelo menos é oque
Vicêncio - Tereis primeiro de beber comigo; assegura a mãe dele, se é que posso dar crédito ao
penso que nesta casa posso dar-vos que ela diz.
bom agasalho; e, pelo que parece, PerruccHIO (a Vicêncio) -
há festa aqui. Que quer dizer isso, cavalheiro?
(Bate.) É velhacaria muito grande usurpar o nome de outra
Grêmio: Estão muito ocupados; pessoa.
será melhor baterdes com mais força. ProrEssor : Segurai bem esse biltre; estou certo
(Aparece na janela o professor.) de que ele pretende enganar alguém na cidade, sob a
ProrEssor - Quem é que bate como se quisesse capa de meu nome.
derrubar a porta? (Volta Biondello.)
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BronDELLO - Deixei-os juntos na igreja; o céu lhes senhor. Por obséquio, como julgais que ele se chama?
dê bons ventos. Mas que vejo? Meu velho amo Vicêncio : Como se chama? Como se eu não
Vicêncio! Estamos perdidos e reduzidos a zero. soubesse o nome dele! Criei-o desde a idade de três
Vicêncio (percebendo Biondello) - Vem aqui, corda de anos. Chama-se Trânio.
forca! ProrEssoR: Fora! fora, asno furioso! O nome dele
BronDELLO: Penso que tenho liberdade de é Lucêncio; é o meu único filho e herdeiro de tudo o
movimentos, meu caro senhor. que possuo, eu signior Vicêncio.
Vicêncio : Vinde cá, meu velhaco. Então, já vos Vicêncio : Lucêncio! Oh! ele assassinou o amo!
esquecestes de quem eu sou? Prendei-o! Em nome do doge, intimo-vos a prendê-
BronDELLO Se já me esqueci de vós? Não, senhor; lo! Oh meu filho, meu filho! Celerado, revela-me
não poderia ter-me esquecido de vós, porque nunca onde está meu filho Lucêncio.
vos vi em toda a vida. TrÂnio - Chamai um oficial de justiça.
Vicêncio : Como, notório biltre! Nunca viste o pai (Sai um dos criados e volta com
de teu amo, nunca viste Vicêncio? um oficial de justiça.)
BronDELLO : Quem? meu velho e venerando amo? Levai este louco para a prisão. Pai Batista, ficais
Claro que já o vi; ali está ele, a contemplar-nos incumbido de apresentá-lo às autoridades.
daquela janela. Vicêncio : Vão levar-me para a prisão!
Vicêncio - Ah! é assim? Grêmio : Esperai um pouco, oficial; ele não irá preso.
(Bate em Biondello.) Barisra - Nada de conversas, signior Grêmio; digo-
BronDELLO - Socorro! socorro! Aqui está um louco vos que irá para a prisão.
que quer matar-me. Grêmio - Acautelai-vos, signior Batista, para não
(Sai) serdes ludibriado neste negócio. Atrevo-me a jurar
ProrEssoR: Socorro, filho! Socorro, signior que este é o verdadeiro Vicêncio.
Batista! ProFESssOR Jura-o, se fores capaz.
(Retira-se da janela.) Grêmio : Não, não me atrevo a fazê-lo.
PerruccHio : Quetinha, vamos ficar de lado, para Trânio : Farias melhor dizendo que eu não sou
vermos o fim desta controvérsia. Lucêncio.
(Entram o professor, Batista, Trânio e criados.) Grêmio : Sim, conheço-te como signior Lucêncio.
Trânio - Senhor, quem sois para bater em meu Barisra : Levai esse velho tonto! À prisão com ele!
criado? VicÊncio : É assim que se maltrata um estrangeiro.
Vicêncio * Quem sou eu, senhor? Não; eu é Oh facínora monstruoso!
quem pergunto: quem sois vós, senhor? Oh deuses (Volta Biondello com Lucêncio e Bianca.)
imortais! Oh velhaco aparamentado! De casaco de BronDELLO : Estamos desgraçados. Ali está
seda, calça de veludo, capa escarlate e chapéu de ele, renegai-o; jurai que não o conheceis, se não
ponta! Estou arruinado! estou animado! Enquanto estaremos perdidos.
em casa eu faço o papel de marido econômico, meu Lucêncio (ajoelhando-se) *
filho e meu criado esbanjam tudo na universidade. Pai, perdoa-me.
Trânio - E essa! Que foi que houve? Vrcêncio: Vives, caro filho?
Barista Será que é louco? (Biondello, Trânio e o professor saem correndo.)
Trânio : Senhor, pelos trajes dais-me a impressão Branca (ajoelhando-se) *
de um cavalheiro idoso e de respeito; mas vossa Perdoai-me, pai querido.
linguagem é de louco. Ora, senhor, em que vos Batista: Que fizeste?
importa a vós se eu uso ou deixo de usar pérolas e Onde ficou Lucêncio?
ouro? Agradeço isso ao meu bom pai, que me faculta Lucêncio Aqui está ele,
os meios para sustentar-me. o verdadeiro filho do Vicêncio
Vicêncio - Teu pai? Oh celerado! ele não passava de verdadeiro, que pelo casamento
um fabricante de velas de navio, de Bérgamo. fez dele a tua filha, enquanto os olhos
Barisra - Estais enganado, senhor; estais enganado, uns mistificadores te enganavam.
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Ato V - Cena Il
Um quarto em casa de Lucêncio. PerRUCCHIO * Sempre a mesma
Está preparado um banquete. Entram Batista, Vicêncio, coisa: sentai-vos e comei! Sentai-vos
Grêmio, o professor, Lucêncio, Bianca, Petrucchio, e comei!
Catarina, Hortênsio e a vitíva. Barisra : São doçuras cá de Pádua,
Trânio, Biondello, Grimio e outros criados servem. filho Petrucchio.
Horrênsio: Em Pádua tudo é doce.
Lucêncio : Até que enfim as notas dissonantes PerRUccHIO - Acho agradável o que é doce em
acordes se tornaram. Foi-se a guerra Pádua.
selvagem, foi-se enfim; chegou a hora HorrêÊnsio : Desejo, para nosso bem, que seja
de rir do grande medo, dos perigos verdade o que dizeis.
por que todos passamos. Minha bela PeTRUCCHIO * Por minha vida,
Bianca, meu pai saúda gentilmente Hortênsio está com medo da viúva.
que com o teu vou fazer a mesma coisa. Viúva : Não tenho medo de ninguém, afirmo-o.
Irmão Petrucchio, mana Catarina, PerruccHIO * Sois muito espirituosa; no entretanto
e tu, Hortênsio, com tua amável viúva, não apanhastes o sentido. Disse,
dai lugar à alegria; sois bem-vindos tão-somente, que Hortênsio vos temia.
a minha casa. Serve este banquete Vrúva- Quem tem vertigens diz que o mundo roda.
para remate do festim de há pouco. PerruccHio : Resposta bem redonda.
Sentai-vos, por obséquio, para à larga CATARINA* Que sentido,
falarmos e comermos. senhora, emprestais a isso?
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À MEGERA DOMADA
Viúva: Que eu concebo que em grande aperto a corça vos traz sempre.
graças a ele. Barisra- Oh, oh, Petrucchio! Trânio tem mão certa.
PerruccHio * Como assim! Concebe Lucêncio : Agradeço a paulada, meu bom Trânio.
graças a mim? Que diz Hortênsio disso? Horrênsio : Confessai! confessai! Fostes tocado?
Horrênsio - Minha viúva disse apenas que ela PETRUCCHIO*
concebe a explicação. Sim, confesso: arranhou-me. Mas havendo
PETRUCCHIO * Bem consertado. passado de raspão por mim o dardo,
Bondosa viúva, ele merece um beijo. aposto dez contra um em como fostes
CATARINA* atingido de cheio.
“Quem tem vertigens diz que o mundo roda.” BaristA: Mas falando,
Explicai-me, vos peço, essa sentença. filho Petrucchio, seriamente: penso
Vrúva: Que tendo vosso esposo uma megera, que te coube a megera mais rilhenta.
julga a mulher do próximo uma fera. PerRrUccHIO:
Agora conheceis o meu sentido. Bem; não direi que não. Mas como prova
CATARINA: Sentido baixo. cada um de nós mande chamar a esposa.
Vrúva Para vós foi feito. A que se revelar mais obediente,
CATARINA: Sim, para vos ouvir tornei-me baixa. solícita acorrendo ao seu chamado,
PerruccHio : Pega, Quetinha! o prêmio ganhará que instituirmos.
Horrênsio : Pega, viúva! HorrêÊnsio -
PerruccHio - Quetinha vai ficar por cima; jogo Muito bem. E o valor?
cem marcos. Lucêncio * Vinte coroas.
Horrênsio : Não; essa função é minha. PerruccHio : Vinte coroas? Isso arriscaria
PerruccHio : Falou o funcionário. Aqui! Saúde! no meu falcão ou no meu cão de caça.
(Bebe à saude de Hortênsio.) Mas vinte vezes mais, em minha esposa.
BaristaA : Que pensa Grêmio desta gente alegre? Lucêncio -
Grêmio : Dão marradas valentes, podeis crer-me. Então, cem.
Branca: Cabeças e marradas! Poderia Horrênsio : Muito bem.
replicar-vos alguém de fino espírito PerRruccHIO - Está fechado.
que essa vossa cabeça precisara, HorTÊnsio :
para tanto, de chifres.
Quem começa?
Vicêncio * Despertou-vos,
Lucêncio: Eu, decerto. Vai, Biondello;
senhora noiva, a frase?
dize a tua ama que eu a estou chamando.
BraNcA: Sim, sem medo,
BronDELLO : Perfeitamente.
porém, causar-me. Vou dormir de novo.
(Sai)
PerruccHio : Isso é impossível; tendo começado,
BaristTA* Filho, fico sendo
tereis de suportar algumas farpas.
teu parceiro na aposta, meio a meio,
Branca: Serei pássaro, então? Vou para o bosque;
em como Bianca vem.
armai vosso arco para perseguir-me.
Lucêncio - Não quero sócio;
Sois todos mui bem-vindos.
quero ganhar tudo o que é meu, sozinho.
(Saem Bianca, Catarina e a vitíva.)
(Volta Biondello.)
PerrUccHIO - Antecipou-me; signior Trânio, o
Então, que novidades?
pássaro que quisestes pegar saiu voando. Bebo à
BroNDELLO * À patroa,
saúde dos que erram o alvo.
Trânio - Oh meu Senhor! Lucêncio fez comigo senhor, mandou dizer que está ocupada
como o galgo que corre atrás da caça, e que não pode vir.
mas só a apanha para o dono dele. PerruccHio: | Como! Ocupada?
PerruccHIo : Boa imagem, porém canina em parte. Não pode vir? Então isso é resposta?
TRânio : Foi bom, senhor, terdes saído à caça Grêmio : E bem gentil. Pedi a Deus, senhor,
sem companheiro; porém dizem todos que muito pior a vossa não vos mande.
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PerruccHio - Espero uma melhor. PerruccHio - Quero ganhar ainda melhor a aposta:
HorTÊNnsio - Corre, maroto, ela irá dar mais provas de obediência,
e à minha esposa roga que me venha da recente virtude e deferência.
Ney neste instante. Fa aí vem vindo e traz vossas esposas
(Sai Biondello.) renitentes, vencidas pela sua
PerruccHio: Oh,oh! rogar à esposa! persuasão feminina.
Assim é que ela não vem mesmo. (Entra Catarina com Bianca e a vitíva.)
HorTênsio - Temo, Catarina
caro senhor, que a vossa não se deixe não te assenta essa touca; joga-a fora;
dobrar a vossos rogos. calca aos pés semelhante bugiaria!
(Volta Biondello.) (Catarina arranca a touca e joga-a longe.)
Que disse ela, Vrúva - Oh Deus! não quero ter motivo, nunca,
Biondello? Minha esposa, onde se encontra? de lamentar-me, enquanto rebaixada
BroNDELLO - não me vir a tão néscia dependência.
Disse que certamente estais brincando. Branca Fora! fora! Que estúpida obediência!
Não quer vir; se quiserdes, ide vê-la. Lucêncio - Antes fosse também assim estúpida
PerruccHio : De mal para pior. Oh! não quer vir! vossa obediência, que a sabedoria
Oh! que vergonha! Absurdo! Intolerável! da vossa, bela Bianca, desde a ceia
Grúmio, ide procurar vossa patroa me custou tão-somente cem coroas.
e ordenai-lhe que venha aqui falar-me. Branca Supinamente tolo vos mostrastes,
(Sai Grúmio.) apostando sobre ela.
HoRTÊNSIO : Já sei sua resposta. PETRUCCHIO - Catarina,
PerrRUccHIO- Qual? dou-te a incumbência de mostrar a essas
HorTÊnsio - Não vem. esposas cabeçudas que deveres
PerruccHio : Tanto pior a minha sorte; e basta. as prende aos seus senhores e maridos.
(Volta Catarina.) Viúva - Ora! Ora! é brincadeira; não queremos
Barista : Ah! por Nossa Senhora! Eis Catarina. ouvir sermões.
CATARINA: Senhor, qual é vossa vontade, para PerruccHio : Estou mandando; vamos!
mandardes me chamar? Principia por ela.
PerruccHIO - Onde se encontram Viúva Não, não quero;
vossa irmã e a senhora aqui de Hortênsio? não fará tal.
CATARINA: Estão tagarelando ao pé do fogo. PerruccHio : Fará, que estou mandando,
PerruccHio : Vai buscá-las; no caso de renuírem, e a começar por ela.
à força as traze para seus maridos. CATARINA: Ora, que absurdo!
Vai logo, digo, e traze-as sem demora. Desenruga essa fronte carrancuda
(Sai Catarina.) e deixa de lançar esses olhares
Lucêncio : Se falais em milagres, eis um deles. desdenhosos que vão bater em cheio
HoRTÊNsIO : É certo; só não sei o que anuncia. em teu senhor, teu Rei, teu soberano.
PerruccHIO * Ora essa! Paz, amor, vida trangúila, Isso te mancha a formosura como
máxima respeitada e uma legítima no prado faz a geada, teu bom nome
supremacia. Em suma: tudo quanto deixa abatido como a tempestade
torna doce e feliz nossa existência. sacode os mais mimosos botõezinhos,
BarisTa: Sejas muito feliz, caro Petrucchio. sem nunca ser gracioso ou conveniente.
Ganhaste a aposta; acrescentar resolvo A mulher irritada é como fonte
sobre teu lucro vinte mil coroas, remexida: limbosa, repulsiva,
um novo dote de uma nova filha. privada da beleza; e assim mantendo-se,
Tão mudada ela está, que parece outra. não há ninguém, por mais que tenha sede,
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À MEGERA DOMADA
O problema dramático criado pela combinação dessas duas histórias é que elas
levantam diferentes expectativas. Uma é dedicada à virtude da constância no amor; a
outra, à amizade. A função última de Valentine é demonstrar verdadeira lealdade a sua
Sílvia. Sua renúncia a ela em favor de Proteus parece inconsistente com seus votos
como um amante. Por outro lado, a dupla perfídia de Proteus, em relação a seu amor a
Júlia e seu amigo Valentine, parece reproduzi-lo indigno da ação generosa que
Valentine lhe concede. O próprio nome de Proteus é sinônimo da inconstância; seu xará
na Odisseia era famoso por sua habilidade de mudar de forma à vontade. (O nome de
Valentine, por outro lado, simboliza constância no amor.) A união dos dois enredos
simultaneamente intensifica a culpa de Proteus e a magnanimidade de Valentine.
O perdão de Proteus deve vir de Júlia e não menos do que de Valentine. Ela,
também, tem muito a perdoar; como Proteus penitentemente observa, “Ó céus! Se o
homem fosse constante / ele seria perfeito” (5.4.110-11). Júlia inicia uma linhagem de
heroínas Shakespearianas, incluindo Hero, Isabella, Helena e Imogênia, nas peças já
nomeadas, que devem similarmente curar à inconstância pela constância delas. Como
muitas heroínas Shakespearianas, Júlia é destemida, talentosa, modesta mas sagaz,
pacientemente obediente no amor e ainda reservadamente galanteadora, uma verdadeira
amiga e resistente. Disfarçada como um pajem, ela ouve a infidelidade de seu amante e,
ainda assim, nunca perde sua fé nele. Ela pacientemente entrega às mensagens de
Proteus a sua rival (como Viola em Noite de Reis) e gentilmente age como uma
consciência para seu mestre errante.
O uso de disfarce masculino por Júlia antecipa análises mais complexas, nas
comédias posteriores, da natureza ambivalente e parcialmente ilusória das diferenças
entre homem e mulher. Quando Júlia está determinada em usar um disfarce de homem
para seguir Proteus a Milão, ela e Lucetta riem perante a necessidade de Júlia amarrar
seus cabelos e vestir a si mesma com calças adornadas com tapa-sexos (2.7.39-61).
Como um menino ator está interpretando uma jovem mulher disfarçada como um jovem
homem, a graça teatral e o artifício positivamente nos convida para ver o gênero como
algo amplamente definido pela interpretação de papéis e pelas expectativas sociais. A
cena é uma reflexão divertida sobre diferentes maneiras as quais jovens mulheres e
homens apresentam a si mesmos ao mundo.
O repetido dispositivo do ouvir por acaso, como nas comédias posteriores, provê
um teste para as intenções dos protagonistas. Pensando que não estão sendo observados,
eles revelam suas verdadeiras naturezas para o melhor e o pior. Na cena brilhantemente
planejada e improvável do clímax (5.4), Proteus como um possível estuprador é ouvido
pela sua amante rejeitada e seu amigo traído. Por outro lado, Sílvia prova-se leal e casta
em qualquer momento que é observada por Júlia (disfarçada de Sebastian) ou por
Valentine nas cenas da floresta. Esse entreouvir [overhearing] sugere não somente que
os feitos bons e maus da humanidade são testemunhados, mas também que uma
providência beneficente irá proteger os virtuosos. A presença invisível de Valentine
assegurará que Sílvia seja salva do estupro e que Proteus seja prevenido de cometer um
crime de violência de fato. Como nas comédias posteriores desse tipo, o perdão é
possível porque a culpa permanece somente na intenção.
Essas resoluções dos conflitos, quase absurdas mas felizes, acontecem num local
perto da floresta de Mântua, o primeiro dos que Northrop Frye chama de “mundos
verdes” de Shakespeare. (English Institute Essays 1948, pp. 58-73). Apesar de
apresentada de forma incompleta, essa floresta antecipa a Floresta de Arden e outras
paisagens silvestres restauradoras. Seus habitantes são homens banidos protestando à
injustiça da sociedade na corte ou fugitivos amores inclementes. Valentine aprende a
preferir “às madeiras não-frequentadas” do que as “cidades de pessoas prósperas”. Sua
“facção selvagem” de fora-da-lei desiste de atacar “mulheres tolas ou pobres
passageiros” e apropriadamente jura “Pelo nu escalpo do frei gordo de Robin Hood”
(5.4.2-3; 4.1.36-7). Os fora-da-lei são charmosamente adequados aos seus papéis de
ameaçarem e então reunirem os amantes, providencialmente capturando Sílvia no
momento em que ela está a caminho para encontrar Valentine. A ações deles são
altamente improváveis, mas, então, o mesmo pode ser dito do perdão de Valentine a
Proteus e da reconciliação repentina do Duque com seu esperado genro, Valentine.
Como Arden, essa floresta é um local estranho, cujas mudanças no coração são
ocorrências esperadas. A aura de improbabilidade pode também parcialmente explicar o
descuido da peça em relação às distinções sociais e às realidades da geografia: o Duque
é, às vezes, chamado de Imperador, e em um momento Valentine navega de Verona a
Milão (ambas localizadas no interior).
A comédia dos bufões Lance e Speed representa uma função similar àquela da
improbabilidade romântica, ao reduzir o artifício e o melodrama da história de amor.
Como podemos nos preocupar com o banimento de Valentine quando Lance expressa,
“Senhor, há uma proclamação que o Sr. está desaparecido” [trocadilho entre banished e
vanished] (3.1.217)? Ou como podemos afligir-nos perante a corte de Proteus a Sílvia
quando o símbolo de amor que ele envia a ela é transformado no cão malcheiroso de
Lance? Esse tipo de anticlímax absurdo ocorre a todo momento. O primeiro solilóquio
de Lance, sobre a recusa do cão em lamentar a partida deles de Verona (2.3), é um
exemplo brilhante do que poderíamos chamar de vaudeville ou piada cômica de stand-
up, mas ela também comenta sobre a cena imediatamente precedente do adeus choroso
de Proteus a Júlia. A amizade de Lance e Speed e, especialmente sua amizade a seu cão,
deliciosamente blasfema o interesse sério da peça na verdadeira amizade. Numa das
cenas mais engraçadas de Lance (4.4.1-38), ele descreve como ele desinteressadamente
tomou para si a punição do cão ao urinar na saia de baixo de Sílvia. Similarmente, o
espetáculo de Lance apaixonado, catalogando às virtudes e vícios de sua amante,
garante-nos profundamente algo contra um envolvimento muito profundo com os
perigos de Cupido. A peça continuamente relembra-nos da loucura do amor, sem
renegar suas esquisitas alegrias, ou seu mais alto potencial para o altruísmo.
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Personagens
O Duque pe MirÃo, pai de Sílvia. HoTELEIRO, em cuja casa Júlia se hospeda em
Milão.
VALENTINO : ; Proscritos.
os dois cavalheiros.
ProTEU Júzia, amada de Proteu.
SíLvia, amada de Valentino.
ANTÔNIO, pai de Proteu. Lucera, criada de Júlia.
Tório, rival grotesco de Valentino. Criados, músicos.
EcLAMoRr, companheiro de Sílvia, em sua fuga.
SrEED, bufão, criado de Valentino. Cena
Launce, idem de Proteu. Verona; Milão; as fronteiras de Mântua.
PANTINO, servidor de Antônio.
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Ato É Cenal
Verona. Uma praça. de alegria por vinte longas noites,
Entram Valentino e Proteu. tediosas, cansativas, de vigílias.
Quando ganhais, o ganho é problemático;
VALENTINO * Não prossigas querendo persuadir-me, se perdeis, adquiris tão-só trabalhos.
Proteu apaixonado. A mocidade Em resumo: é comprar tolice, apenas,
que em casa passa o tempo, sempre espírito com a razão; ou melhor, se o preferirdes:
caseiro manifesta. Se não fosse ser vencida a razão pela tolice.
as cadeias do amor acorrentarem ProTEU Ássim, por vossa dedução, chamais-me
“teus dias juvenis aos olhos ternos de rematado louco.
* da amada que distingues, eu instara VaLentINO* | Tenho muito
porque comigo fosses, para vermos receio, assim, por vossa dedução,
juntos as maravilhas do universo, que é o que venhais a ser.
em vez de, sem nenhum proveito, em casa ProTEU* Lançais censuras
te deixares ficar, gastando a flórida ao amor; eu, porém, não sou o amor.
juventude num ócio indiferente. VALENTINO - O amor é vosso mestre e vos domina.
Mas já que amas, almejo-te a doçura À meu ver, quem se deixa de tal modo
que me proporcionara igual ventura. dominar por um louco, não merece
ProreU : Já vais, querido Valentino? Adeus! ser incluído entre as pessoas sábias.
Pensa no teu Proteu, sempre que vires ProTEU-
algo digno de nota em tuas viagens. Lê-se, no entanto, que os botões fragrantes
Faze de mim teu companheiro em tudo dão abrigo, por vezes, a lagartas;
quanto achares de bom; e nos perigos — o amor devorador, de igual maneira,
se em perigos te vires, porventura — demora nos espíritos sublimes.
o agravo a minhas preces recomenda. VALENTINO
Ser-te-ei intercessor, meu Valentino. Lê-se, também, que assim como os precoces
VALENTINO" botões pelas lagartas são roídos
Sobre um livro de amor farás as preces? antes de florescerem, os mais tenros
ProTEU Sim, sobre um livro a que dedique amor. entendimentos ficam transformados
VALENTINO * pelo amor em loucura rematada;
De um grande amor alguma história tola: fanados em botão, a perder vêm
como Leandro o Helesponto atravessou. todo o frescor em plena primavera
ProrEU: Profunda história de um profundo amor, e as esperanças de um futuro opimo.
que lhe chegava acima dos sapatos. Mas, por que perder tempo em dar conselhos
VALENTINO * É muito certo, porque o amor vos bate a um partidário da paixão estulta?
muito acima das botas; no entretanto, Adeus, mais uma vez; antecedeu-me
jamais atravessastes o Helesponto. meu pai para levar-me para bordo.
Proreu : Muito acima das botas? Há exagero; Proreu - Quero, também, fazer-te companhia,
não rias do meu caso. meu Valentino.
VALENTINO * Não, que pouco VALENTINO“ Não, caro Proteu,
virias a lucrar. convém nos despedirmos aqui mesmo.
Proreu: De que maneira? Para Milão me escrevas, relatando-me
VALENTINO Porque amar é comprar escárnio à custa teus êxitos no amor e as novidades
de gemidos, trocar olhares tímidos que houver na ausência de teu caro amigo.
por suspiros profundos, um momento Visitar-te-ei também com minhas cartas.
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Proreu : Em Milão te sorriam mil venturas. Proreu : Mas dize-me uma coisa: entregaste minha
VALENTINO" carta a Júlia?
Como a vós cá na pátria. E assim, adeus. SPEED - Perfeitamente, senhor; eu, um carneiro
(Sai) perdido, entreguei vossa carta a uma ovelha
ProreU Atrás da honra ele vai; eu, só do amor. enfeitada; e ela, a ovelha enfeitada, nada deu ao
Deixa os amigos, para lhes dar ansa carneirinho perdido, pelo trabalho de levar-lha.
de se orgulharem dele; eu a mim próprio Proreu : Não há lugar neste pasto para tantos
deixo amigos e o mais, só pelo amor. carneiros.
À causa, Júlia, és tudo dessa mudança; SPEED : Se o terreno está sobrecarregado, fareis
abandonar fizeste-me os estudos, melhor em prendê-la.
perder tempo, guerrear os bons conselhos, ProTEU - Estais vos desviando do caminho direito,
ver com desdém o mundo, o coração senhor; eu faria melhor em vos meter no redil.
débil deixar de meditar em vão. SpEED - Com uma boa rede é que jamais eu me
(Entra Speed.) resolveria a levar vossa carta.
SrEED * Meu bom senhor Proteu, Deus vos ampare. Proreu : Compreendestes mal: não falei em rede,
Não vistes o meu amo? mas em redil.
ProTEU- Neste instante SPEED"
foi ele para o bote de Milão. Rede ou redil, me deixara em estado de não fazer nada.
SPEED * Aposto vinte contra um em como Como entregar a missiva de vossa gentil namorada?
já se acha ele no bote. Assim, perdendo-o, Proreu - Mas, que disse ela, afinal? (Speed sacode a
fiz o papel de bode ou de carneiro. cabeça.) Não disse nada?
ProTEU Sim, perde-se um carneiro facilmente, SpEED - Houve engano da vossa parte, senhor;
mal do rebanho o bom pastor se ausente. perguntastes-me se ela havia respondido nada,
SPEED * Pelo jeito, quereis dizer que meu mestre é e eu fiz sinal afirmativo, sem querer confirmar
pastor e eu sou carneiro? vossa pergunta. Mas já que destes semelhante
Proreu- De fato. interpretação à minha resposta, ficai com ela pelo
SPEED * Nesse caso, são dele os meus chifres, quer vosso trabalho.
eu esteja acordado, quer a dormir. Proreu : Não; ficai vós com ela, pelo carreto da
Proreu Resposta boba, muito própria de carneiro. carta.
SPEED * Que vem provar que eu sou, realmente, um SpEED * Vejo, agora, que vossa incumbência não me foi
carneiro. pesada.
ProreU : Isso mesmo; e teu mestre, pastor. Proreu * Que quereis dizer com isso, senhor?
SrEED * Posso demonstrar-vos o contrário. SpgED - É muito simples, senhor: é que, havendo
ProreUu : Não será fácil fazê-lo porque disponho de entregue a carta, conforme me ordenastes, voltei sem
um argumento decisivo. nada ter recebido pelo meu trabalho.
SPEED * O pastor é que procura o carneiro; não é o Proreu Realmente, tens o espírito muito rápido.
carneiro que procura o pastor. Ora, eu é que procuro SPEED * Apesar do quê não pode alcançar vossa
meu amo, não é meu amo que me procura. Logo, bolsa lerda.
não sou carneiro. Proreu - Vamos, vamos; abri-vos logo em
ProrTEU: O carneiro segue o pastor por causa explicações: que disse ela?
da forragem; O pastor não segue o carneiro por SPEED * Abri primeiro a bolsa, para que o dinheiro e
causa de alimento. Segues a teu amo por causa do as notícias sejam dados a um só tempo.
ordenado, não seguindo ele a ti pelo mesmo motivo: ProreU : Muito bem, senhor, aqui tendes pelo
logo, és carneiro, vosso trabalho. (Dá-lhe dinheiro.) Que disse ela?
SPEED * Mais um argumento dessa força, e ver-me-ei SPEED * Para ser franco, senhor, penso que mui
obrigado a gritar: bé-é! dificilmente podereis conquistá-la.
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Os Dois CAVALHEIROS DE VERONA
Proreu : Como pudeste obter tantas informações? xelim. Mas, como retribuição, daqui por diante sede
SPEED * Não é bem assim, senhor: não obtive dela vós mesmo o portador de vossas cartas. E com isto,
coisa alguma, nem sequer um ducado por lhe haver senhor, hei de vos recomendar ao meu amo.
entregue a carta que lhe mandastes. Por ter sido ela Proreu : Vai pôr a salvo o barco de teu amo,
dura para com o portador de vossos sentimentos que naufragar não há de, enquanto a bordo
é que eu receio que se mostre igualmente dura te encontrares, fadado, como te achas,
convosco, por lhos terdes revelado. Como presentes, a morrer morte seca numa praia.
só deveis dar-lhe pedras, por ser ela tão dura quanto (Sai Speed.)
o aço. Vou procurar um portador mais digno.
Proreu: Como! Não disse nada? Temo que a minha Júlia não tivesse
SpEED - Não; nem mesmo: “Toma isto pelo teu dado importância à carta, por ter sido
trabalho”. Mas quanto a vós, pretendo proclamar esta levada por tão vil correio.
a vossa generosidade, por me haverdes dado meio (Sai.)
Ato T- Cena Il
O mesmo. O jardim da casa de Fúlia. JúLia - Assim, és de opinião que eu jogar deva
Entram Júlia e Luceta. sobre ele o peso do meu grande amor?
LucerTa- Se não vos agradar jogá-lo fora.
JúLia - Luceta, estamos sós; fala-me franco: Józra - No entanto, ele é o que menos me corteja.
és de opinião que eu devo apaixonar-me? Lucera : Mas de todos os vossos pretendentes,
LuceTA Sim, no caso de serdes cautelosa. é o que mais vos exalça.
JúLia : Da turba de fidalgos que não cessam Jócia: Seu mutismo
de me fazer a corte, qual presumes não vai bem com amor muito acendrado.
que mais se possa impor ao meu afeto? Lucera - O fogo oculto lavra com mais força.
Lucera * Repeti, por obséquio, o nome deles, JúLia - Não pode amar quem não revela amor.
que, de acordo com minha mediania, Lucera : Menos ama quem fala só de amor.
vos direi meu pensar, sem subterfúgios. Józra * Quisera conhecer-lhe os sentimentos.
JúLia : O formoso Eglamor que te pareçe? Lucera - Então lede esta carta.
Lucera : De bom nome, formoso e mui'bem posto; Jócia: “A Júlia.” Dize:
mas, sendo eu vós, não fora do meu gosto. quem a escreveu?
Jóia - E do rico Mercátio, que me dizes? LuceTA: Vê-lo-eis pelo contexto.
LuceTaA* De seu dinheiro, bem: dele, não tanto. JúLia - Quero saber! quem ta entregou?
JúLia : E do gentil Proteu, que pensas dele? LuceTa* O pajem
LuceTa- Senhor! Senhor! Que loucas somos todas! de Valentino, mas, segundo penso,
JúLia - Por que motivo exclamas a esse nome? da parte de Proteu. A vós devera
Lucera- Perdão, cara senhora, mas sentira-me ter sido entregue. Vi-o de corrida.
envergonhada, sendo tão indigna, Perdoai-me por ter sido intrometida.
se a emitir opinião eu me atrevesse Jóia - Pela minha modéstia, incomparável
acerca de um fidalgo desse porte. alcoviteira! Imaginais que eu leio
Jóia - Por que só de Proteu não dizes nada? cartas apaixonadas? Que eu podia
Lucera Pois bem: ele é o melhor entre os melhores. conspirar contra a minha mocidade?
JóLia - Vossas razões? Ciladas preparar-lhe? Podeis crer-me:
Lucera : São razões femininas, tão-somente: o ofício é primoroso, em tudo digno
penso que ele é o melhor, porque assim penso. da pessoa incumbida de exercê-lo.
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com um beijo soberano. Duas vezes, bem juntinho os deixando. Ora, beijai-vos,
ou três, vejo “Proteu” escrito embaixo. abraçai-vos, brigai... o que quiserdes.
Bom vento, não te agites; não removas (Volta Luceta.)
palavra alguma, até que eu possa as letras Lucera* Jantar, senhora: vosso pai espera.
todas da carta achar, com exceção JúLia - Muito bem; vamos logo.
das do meu próprio nome, que merecem LucETA- Deixaremos
por um redemoinho ser levadas, no chão esses papéis pouco discretos?
para que, do alto de um rochedo ingente, JúLia - Se lhes tendes respeito, levantai-os.
a pique e temeroso, às ondas bravas Lucera : Fui repreendida por os ter juntado;
sejam precipitadas. Eis seu nome mas não convém que resfriados fiquem.
duas vezes escrito nesta linha: Júzia - Por eles, vejo-o bem, tens preferência.
“Do esquecido Proteu, do apaixonado Lucera - Podeis falar de tudo o que enxergardes;
" Proteu, para a querida e doce Júlia”. de boa vista eu também sou dotada,
Vou tirar esta... Não, convém deixá-la, muito embora julgueis que cega eu seja.
com tanta gentileza ele a associa JúLia - Não quereis entrar logo? Vamos, vamos.
a seu dorido nome. Vou dobrá-los, (Saem.)
Atol Cena HI
Um quarto em casa de Antônio. por não haver viajado quando moço.
Entram Antônio e Pantino. ANTÔNIO * Não necessitas insistir comigo,
que há um mês venho pensando nesse assunto.
ANTÔNIO * Pantino, que conversa tão solene Sua perda de tempo me preocupa.
teve no claustro meu irmão contigo? Não poderá jamais aperfeiçoar-se,
Panrtino : Falou-me do sobrinho, vosso filho, se não tiver o mundo como mestre.
Proteu. À experiência se adquire pela prática;
Antônio : Que disse ele? consolida-a o veloz curso do tempo.
PanTINO* Não compreende Para onde achais que será bom mandá-lo?
por que motivo Vossa Senhoria PanTINO : Penso que Vossa Graça não ignora
gastar o deixa a mocidade em casa, que Valentino, seu amigo íntimo,
enquanto outras pessoas menos nobres serve na corte real do imperador.
os filhos fazem ir para o estrangeiro, ANTÔNIO * Sei disso.
para nome alcançarem: uns, na guerra, PANTINO * Segundo penso, fora proveitoso
porque nela a fortuna experimentem; que para lá o mandasse Vossa Graça.
outros em busca de longínquas ilhas; Poderá adquirir naquela corte
outros para as escolas superiores. a prática de esgrima e de torneio;
Dizia, pois, que vosso filho mostra no convívio com a gente da nobreza
capacidade para qualquer dessas ouvirá só conversas elevadas,
ocupações, se não para elas todas, sobre adornar-se do que for mais digno
tendo instado comigo, que vos viesse de sua mocidade e nobre origem.
falar e, se preciso, importunar-vos Antônio - Teu conselho me agrada; bem pensado.
para que o não deixeis ficar mais tempo Verás quanto o aprecio na presteza
sem fazer nada em casa, o que, em futuro, de sua execução. Sem mais delongas
lhe ensejará razões de lastimar-se o enviarei para a corte do monarca.
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PanTINO - Se não vos desagrada, amanhã mesmo tomar resolução tão subitânea,
Dom Afonso e mais outros gentis-homens pois o que eu quero, quero: é quanto basta.
de alto nome pretendem ir à corte, Determinei que passes algum tempo
para saudar o imperador, deixando junto do imperador, com Valentino.
à disposição dele os seus serviços. Receberás pensão igual à dele,
ANTÔNIO Para Proteu é boa a companhia. para tua mantença. Amanhã partes;
Nem a propósito: ei-lo. Vou falar-lhe. vai preparar-te, pois. Nada de escusas;
(Entra Proteu.) em minhas decisões sou peremptório.
Proreu : Doce amor! Doces linhas! Doce vida! Proreu- Milorde, é-me impossível preparar-me
Eis sua mão, do coração o agente. assim depressa; dai-me um dia, ou dois.
De seu amor a jura aqui se encontra, Antônio : Mandaremos depois tua bagagem.
o penhor de sua honra. Oh! se aplaudissem Amanhã partirás; não percas tempo.
nossos pais esse amor, porque selassem Vamos, Pantino; quero vosso auxílio
com seu consentimemo nossa dita! para apressarmos a viagem dele,
Oh Júlia celestial! (Saem Antônio e Pantino.)
ANTÔNIO * Então, que carta estás a ler aí? Proreu Fugi do fogo, para não queimar-me,
ProrEU Se Vossa Senhoria não se agasta, mas fui cair no mar, onde me afogo.
uma ou duas palavras que da parte De medo que meu pai me repreendesse
de Valentino vieram, transmitidas minha paixão, não quis mostrar-lhe a carta
por um amigo que com ele esteve. que Júlia me mandara; mas do próprio
ANTÔNIO : Mostra-ma; quero ver as novidades. pretexto excogitado ele fez a arma
ProrEU - Não há, milorde, novidade alguma; mais poderosa contra o meu amor.
tão-somente relata como vive Parece abril, com seus incertos dias,
feliz, em grande apreço, e diariamente o amor primaveril, sempre mudável,
aumentando na estima do monarca, que ora o sol patenteia, resplendente,
desejando que com ele eu me encontrasse, ora em nuvem se esconde, impenetrável.
para compartilhar de sua sorte. (Volta Pantino.)
ANTÔNIO: E que tal vos parece esse desejo? PaLaTINO : Chama-vos vosso pai, senhor Proteu.
Proreu Minha opinião, senhor, depende em tudo Não demoreis, porque ele está com pressa.
da vontade de Vossa Senhoria; ProTEU Sim, tem de ser; concorda o coração,
não se amolda aos desejos dos amigos. muito embora mil vezes diga “não”.
AnTÔnIO : Minha vontade, nisso, está de acordo (Saem.)
com seu desejo. Não te cause espanto
Too
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SPEED * Por quem Vossa Senhoria está apaixonado? beleza é esquisita e infinita a sua graça.
VALENTINO * Ora essa! Como sabes que estou SPEED * Por uma ser pintada e a outra fora de conta.
apaixonado? VALENTINO * Como pintada? Como fora de conta?
SpEED * Ora, pelos seguintes sinais, muito SrEED- Ora, senhor, ela se pinta de tal modo, para
característicos: primeiro, como o senhor Proteu, parecer bela, que ninguém pode calcular sua beleza.
aprendestes a cruzar os braços, no jeito das pessoas VALENTINO * Que juízo fazes de mim? Sou capaz de
descontentes; a achar gosto em uma canção de amor, calcular sua beleza.
como o fazem os pintarroxos; a passear sozinho, SPEED * Mas não a tornastes a ver, depois que ela
como quem está afetado de peste; a suspirar como ficou deformada.
um colegial que houvesse perdido o A BC; a chorar VALENTINO * E há quanto tempo ela ficou
como uma donzela que acabasse de enterrar a avó; deformada?
a jejuar como quem está de dieta; a ficar de vigília SpEED - Desde que a amais.
como quem tem medo de ladrões; a falar em tom VALENTINO * Amei-a desde o primeiro momento
plangente, como mendigo em dia de Todos os em que a vi, e até hoje a acho belíssima.
Santos. Antes, vossa risada era como o cantar dos SPEED : Se a amais, não podeis vê-la.
galos; vossas passadas lembravam o andar dos leões; VALENTINO * Por que razão?
só jejuáveis depois do jantar; se ficáveis triste era por SpEED - Porque o amor é cego. Oh! Se tivésseis
falta de dinheiro. Presentemente, vos encontrais de os meus olhos! Ou se tivésseis nos olhos a luz de
tal modo metamorfoseado por vossa namorada, que, quando censuráveis Proteu, por andar sem ligas!
ao vos contemplar, custa-me crer que sois, de fato, o VALENTINO * Que é o que eu veria, então?
meu patrão. SPEED * Vossa presente loucura e sua grande
VALENTINO * Vêem-se, realmente, em mim todos deformidade. Aquele, porque apaixonado, não
esses sinais? tinha vista para segurar as meias; vós, por estardes
SPEED * São vistos fora de vós. amando, não vedes se tendes meias ou não.
VALENTINO * Fora de mim? Como é possível? VALENTINO * Nesse caso, tu também estás
SPEED * Fora de vós, sim senhor; porque, fora de vós, apaixonado, porque esta manhã não tiveste vista para
ninguém procederia dessa maneira. De tal modo limpar-me os sapatos.
vos encontrais fora dessas tolices, que essas tolices SpeeD-É certo, senhor, estava apaixonado de
se encontram dentro de vós e brilham através de meu leito. Agradeço-vos o terdes-me sacudido por
vós, como água no urinol, não havendo quem vos causa de meu amor; isso me dará coragem para vos
veja que, tal qual médico, não reconheça que estais censurar pelo vosso.
doente. VALENTINO * Em suma: estou inflamado por causa
VALENTINO * Mas, dize-me, afinal: conheces a dela.
senhorita Sílvia? SPEED : Desejaria que esse fogo se apagasse logo.
SPEED * Aquela de quem não desviais os olhos, VALENTINO * Na noite passada ela me pediu que
quando ela se assenta à mesa? escrevesse alguns versos para alguém que ela ama.
VALENTINO * Percebeste isso? Pois é a essa, SPEED - E o fizestes?
justamente, que me refiro. VALENTINO Sim.
SPEED * Não, senhor; não a conheço. SpEED - Não saíram de pé quebrado?
VALENTINO * Como assim? Observaste que eu não VALENTINO * Não, pequeno; escrevi-os da melhor
desviava dela os olhos, e, no entanto, não a conheces? maneira possível. Mas, caluda! Aí vem vindo ela!
SPEED - Não é uma senhorita desgraciosa? (Entra Sílvia.)
VALENTINO * É tão bela quanto graciosa. SPEED (à parte) * Que bela representação! Magníficos
SpEED * Sei disso perfeitamente, senhor. fantoches! Ele é que vai interpretá-la.
VALENTINO * Que é que sabes? VALENTINO Senhora e soberana, mil bons-dias.
SpEED * Que ela é tão bela quanto graciosa vos parece. SrEED (à parte) - Oh! Dai-lhe apenas uma boa-tarde,
VALENTINO * O que pretendo significar é que sua que vale mais do que mil cumprimentos.
Tor
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Sírvia * Senhor Valentino e servidor, dou-vos dois mil. Quem podia prever tão sério desenlace,
SPEED (à parte) * Era ele que devia pagar os juros; no que, como secretário, a si se declarasse?
entanto é ela quem lhos dá. VALENTINO * Que é que estais a falar sozinho,
VALENTINO : Eis a carta, senhora, que pedistes senhor?
para pessoa amiga, oculta e anônima. SPEED * Fazia versos; a razão está convosco.
Não a escrevi de grado, mas apenas VALENTINO * Razão para quê?
por deferência a Vossa Senhoria. SPEED * Para serdes o padrinho do casamento da
(Entrega-lhe uma carta.) senhorita Sílvia.
SíLvia * Graças, meu servidor; melhor, decerto, VALENTINO * Junto de quem?
um escrivão fazer não poderia. SPEED : Junto de vós mesmo. Ela se vos declarou por
VALENTINO * Podeis crer-me, senhora: foi difícil. meio de uma figura.
Por não saber a quem me dirigia, VALENTINO * Que figura?
escrevi mais ou menos, sem firmeza. SPEED * Uma carta, é o que eu queria dizer.
SíLvia Achastes cansativo esse trabalho? VALENTINO * Mas se ela não me escreveu carta
VALENTINO * Não, senhorita; se vos for do agrado, alguma!
poderei escrever mil cartas dessas. SrEEpD * Que necessidade tinha de fazê-lo, se
Contudo... vos obrigou a escrever para vós mesmo? Não
SíLvia : Belo fecho. Sei o resto. compreendestes a brincadeira?
Contudo, não a aceito; não me importa. VALENTINO : Não, posso afiançar-vos.
Contudo, recebei-a de retorno; SPEED - É no que não posso acreditar, senhor. Mas,
contudo, dou-vos graças, tencionando pelo menos, não observastes que ela estava falando
não vos dar mais trabalho de ora em diante. sério?
SPEED (à parte) * Contudo, sim; contudo, outro VALENTINO * Só observei que ela estava zangada.
contudo. SPEED * Entregou-vos uma carta.
VALENTINO * Que quer dizer com isso Vossa Graça? VALENTINO * Sim, a que eu escrevera para o seu
À carta não ficou do vosso agrado? amigo.
SíLvIA : Ficou; os versos estão bem escritos. SPEED * Carta essa que ela fez chegar às mãos do
Mas, já que foram feitos de mau grado, destinatário, e aqui termina o assunto.
aceitá-los não posso. VALENTINO * Quem dera que fosse só isso!
(Devolve-lhe a carta.) SPEED"
VALENTINO * Senhora, foram para vós escritos. Posso afiançar, senhor, que é isso e nada mais.
SíLVIA - Sim, escreveste-los a meu pedido; “Porque ela, por modéstia ou falta de ocasião,
mas não os quero; todos vos pertencem. deixara sem resposta a vossa devoção.
Desejaria versos mais sentidos. Com medo de confiar a alguém qualquer recado,
VALENTINO Se quiserdes, farei mais uma carta. de intermediário fez o próprio namorado.”
SíLvIA* E, por amor de mim, depois, relede-a. Falo como quem lê, por ter achado escrito.
Se ela vos agradar, bem; se não, bem. Mas, em que estais pensando, senhor? Já é hora de
VALENTINO * Se me agradar, senhora, que acontece? jantar.
SíLvia * Ficai com ela, em paga do trabalho. VALENTINO * Já jantei.
E assim, até amanhã, meu servidor. SpEED - Então, senhor, ouvi-me: muito embora
(Sai) o camaleão Amor possa alimentar-se de ar, no
SpEED * Oh brincadeira rara, estranha e tão visível que me diz respeito, alimento-me de vitualhas e
como o galo da torre e meu nariz risível! estou com regular apetite. Oh! Não sejais como
Meu amo se declara; ela lhe ensina o amor, vossa apaixonada; deixai-vos comover! Deixai-vos
dando lição jeitosa ao grande professor. comover!
(Saem.)
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Os pois cAvALHEIROS DE VERONA
Ato II Cena ll
Verona. Um quarto em casa de Fúlia. qualquer grande desgraça, como pena
Entram Proteu e Júlia. de minha ingratidão. Meu pai me espera.
Não me respondas; a maré está alta;
ProTEU: Paciência, cara Júlia. não a maré que desses olhos cresce,
Jóia: Que remédio! que essa me deteria muito tempo.
ProreU: Logo que for possível voltarei. Adeus, Júlia.
JúLia - Se não mudardes, voltareis depressa. (Sai Júlia.)
Levai de vossa Júlia esta lembrança. Saiu sem dizer nada?
(Dá-lhe um anel.) Sim, que o sincero amor quase não fala;
ProTEU - Outra vos dou em troca; recebei-a. melhor se adorna com ações e fatos
(Dá-lhe outro anel.) a verdadeira fé, não com palavras.
Júra - Selai a troca com um sagrado beijo. (Entra Pantino.)
Proreu Eis minha mão, como penhor de fé. PanTINO: Senhor Proteu, esperam-no.
Se me escapar uma hora, só, do dia, ProTEU É tudo.
em que não suspirar por tua causa, Essa separação me deixa mudo. ;
quero que, na seguinte, me aconteça (Saem.)
Ato II Cena HI
O mesmo. Uma rua. Que o leve a breca, se não for isso. Agora, senhor,
Entra Launce, conduzindo um cão. este bastão é minha irmã, porque, vede bem, ela é
tão branca quanto o lírio e tão esguia quanto uma
Launce Não; ainda vou chorar durante uma hora; vara. Este chapéu é Nan, nossa empregada; eu sou o
é defeito dos Launces. Recebi a minha herança, cachorro... Não, o cachorro é ele mesmo e eu sou o
como o filho pródigo, e parto com o senhor Proteu cachorro... Oh! O cachorro é eu e eu sou eu mesmo...
para a corte imperial. À meu ver, este meu cachorro É isso, é isso... Agora eu me dirijo a meu pai: “A
bênção, pai,” sem que o sapato possa dizer uma só
Crab é o cachorro mais insensível do mundo: minha
palavra, de tanto chorar. Agora eu dou um beijo em
mãe chorava, meu pai gemia, minha irmã gritava, a
meu pai... que continua a chorar. Agora me dirijo
empregada urrava, o gato esfregava as patas, e toda a
para minha mãe... Oh! Se ela pudesse falar neste
casa em grande perplexidade, sem que este animal de
momento como uma mulher que houvesse perdido
coração endurecido derramasse uma lágrima. É uma o juízo! Bem, dou-lhe um beijo... Sim, é isso mesmo,
pedra, um verdadeiro seixo, sem mais piedade do é igualzinho o hálito de minha mãe. Observai como
que um cão. Um judeu teria chorado, se visse a nossa ela suspira. E durante todo esse tempo o cachorro
despedida. Sim, minha avó, ora vede, que não tem não disse uma só palavra, nem derramou uma
olhos, chorou de ficar cega, quando nos despedimos. lágrima, apesar de eu regar a poeira com meu pranto.
Vou mostrar-vos como as coisas se passaram. Este (Entra Pantino.)
sapato é meu pai... Não, não; este sapato do pé PanrTiNo Launce, vai logo para bordo! Teu amo já
esquerdo é meu pai... Não, não; este sapato esquerdo está embarcado. Será preciso muita força de remo,
é minha mãe. Não, não pode ser, também. Sim é para que o alcances. Que é que houve, homem? Por
isso mesmo, por estar com a sola muito gasta. Este que estás a chorar? Vai logo, pedaço de asno! Se
sapato com um furo é minha mãe; e este, meu pai. demorares, vais ter muito com que te coçar.
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Launce : Não importa; porque este coração Launce: De medo que venhais a perder a língua.
endurecido o que merece mesmo é uma boa coça. Pouco importa que eu perca a maré, a viagem, o
PanTINO" À quem te referes, homem? amo e o serviço. Ora, amigo, se o rio vier a secar,
Launce: À Crab, o meu cachorro, que vedes aqui acho-me em condições de o encher com minhas
amarrado. lágrimas; se o vento viesse a parar, poderia impelir
PanTINO - Não foi isso, homem, que eu disse, o navio com a força dos meus suspiros.
mas que podias perder a maré. Ora, perdendo a PanTiINo : Vamos, homem, vamos! Fui encarregado
maré, perderias a viagem, e perdendo a viagem, de chamar-te.
perderias teu amo, e perdendo teu amo, perderias Launce * Podeis chamar-me, senhor, o que quiserdes.
o serviço, e perdendo o serviço... Por que me tapas PanTINO * Não queres ir?
a boca? Launce* Pois bem, irei.
(Saem.)
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Que direis, se acaso recebêsseis presos não lhe trouxesse a amada os olhos
carta com boas novas dos amigos? no seu olhar sereno e cristalino.
VALENTINO : Milorde, ficaria agradecido SíLvia : Decerto lhes deu ela liberdade
ao feliz mensageiro da notícia. por ter ficado com penhor mais forte.
Duque Conheceis Dom Antônio? É de Verona. VALENTINO * Creio que ainda sejam prisioneiros.
VALENTINO * Conheço, sim, milorde; é um cavalheiro SíLvia : Se fosse assim, ele estaria cego.
digno de toda estima e que merece Ora, sem poder ver, como o caminho
gozar, de fato, de tão grande apreço. para vos encontrar teria achado?
Duque : Não possui ele um filho? VALENTINO * É que o Amor vê com vinte pares de olhos.
VALENTINO : Possui, milorde; um filho também Túrio : Dizem que o Amor não tem olho nenhum.
digno de herdar o nome e o apreço de tal pai. VALENTINO * Para enxergar amantes como Túrio.
Duque: Conhecei-lo de perto? É que ante coisas toscas, fecha os olhos.
VALENTINO * SíLvia- Basta! Basta! Eis que chega o gentil-homem.
Tanto quanto a mim mesmo. Desde a infância, (Entra Proteu.)
como amigos, vivemos sempre juntos. VALENTINO * Caro Proteu, bem-vindo! Senhorita,
E embora impenitente vagabundo peço-vos confirmar a boa-vinda
tivesse eu sido sempre, que não soube com qualquer mostra de especial clemência.
o alto valor apreciar do tempo, SíLvia : Seu mérito é o penhor da boa-vinda,
para que a mocidade com angélica caso ele seja, realmente, o amigo
perfeição adornasse, Sir Proteu — sobre que tantas vezes conversamos.
que assim ele é chamado — melhor uso VALENTINO * O mesmo, senhorita. Doce dama,
soube fazer de todos os seus dias. consenti que ele, como eu próprio, fique
Moço na idade, velho na experiência; como servo de Vossa Senhoria.
verde nos anos, de saber maduro. SíLvia * Para tal servo a dama é muito baixa.
Numa palavra — pois os elogios Proreu- Não, senhorita: eu é que sou indigno
que prodigar-lhe agora me ocorressem de ser notado por tão digna dama.
muito aquém ficariam da verdade — VALENTINO " Deixai para depois vossos defeitos.
é completo no espírito e no corpo, Recebei-o, senhora, em vossa graça.
sobre ser possuidor das graças todas Proreu - Hei de orgulhar-me de vos ser dicado.
que deixam mais gracioso um gentil-homem. SíLvia * Sempre a dedicação se viu premiada.
Duque Por minha fé, senhor, se for verdade Embora indigna, servo, eu vos saúdo.
quanto estais a dizer, do amor é digno Proreu * Quem tal dissesse, a não ser vós, morrera.
de uma grande princesa e de tornar-se SfLvia * Que sois bem-vindo?
conselheiro de Reis. Pois bem, senhor, ProTEU* Não, que sois indigna.
apresentou-se-me esse gentil-homem (Entra um criado.)
com recomendações de altas pessoas. CriaDo Senhora, vosso pai mandou chamar-vos.
Tenciona aqui ficar por algum tempo. SíLvia * Obedeço-lhe em tudo. Cavalheiro
Penso que essas notícias vos agradam. Túrio, vinde comigo. Novamente,
VALENTINO * Se algo eu podia desejar, era isso. meu novo servidor, eu vos saúdo.
Duque: Acolhei-o de acordo com seu mérito. À conversar vos deixo sobre assuntos
Sílvia, digo isso a vós e ao senhor Túrio, particulares! Quando terminardes,
que Valentino não precisa disso. espero receber notícias vossas.
Mandá-lo-ei para cá neste momento. Proreu - Para servir-vos, ambos nos dispomos.
(Sai) (Saem Sílvia, Túrio e Speed.)
VALENTINO * Foi desse cavalheiro, senhorita, VALENTINO * Ora dizei-me como passam todos.
que vos falei; teria, certamente, ProTEU - Vossos amigos estão bons e enviam
vindo comigo para a corte, caso saudares e lembranças.
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Ato IF - Cena V
O mesmo. Uma rua. SpEED - Que grande asno me saíste. Tudo quanto
Entram Speed e Launce. acabas de dizer não oferece resistência.
SPEED * Launce! Por minha honestidade, és bem- LauNcE : É preciso que não passes de um pedaço de
vindo a Milão. pau, para não compreenderes o que eu digo. Pois este
Launce: Não jures falso, bondoso rapaz, porque bastão me oferece resistência.
a verdade é que eu não sou bem-vindo. Sempre fui SPEED : Que estás a dizer?
de opinião que um homem nunca fica inteiramente Launce : Precisamente o que estou a fazer.
perdido, enquanto não for enforcado, e que só Observa-me bem: apóio-me ao meu bastão e ele me
poderá ser bem-vindo a determinado lugar, quando oferece resistência.
lhe pagarem as contas e a hoteleira lhe disser: “Bem- SrpEED - Realmente; mas eu me referia à tua pessoa.
vindo!” Launce: Tudo vem a dar no mesmo; se o bastão
SpEED : Vamos, desmiolado; desejo acompanhar-te
resiste ao meu peso, eu e ele oferecemos resistência.
até a cervejaria, onde, por uma conta de cinco pences,
SpEED - Mas dize-me a verdade: haverá casamento?
poderás obter cinco mil bem-vindos. Mas conta-me
LAuncE* Pergunta isso ao meu cachorro; se ele
lá como o teu mestre se separou de Madame Júlia.
disser que sim, haverá; se disser que não, haverá; se
Launce: Ora! Depois de se terem unido em
sacudir a cauda e nada te responder, haverá.
tristeza, separaram-se por maneira muito folgazã.
SpEED * Donde se conclui que haverá.
SrEED - Mas ela o desposará?
Launce: Não.
LaunceE: Só me arrancarás um segredo tão grande
SPEED * Como assim? Ele se casará com ela? por meio de uma parábola.
Launce* Também não. SPEED * Pouco importa, contanto que mo reveles.
SPEED - Então separaram-se? Mas, Launce, que dizes do meu amo? Deu agora
LAuncE- Não; continuam unidos como um só para ser amante refinado.
peixe. LAuNcE* Sempre o conheci desse jeito.
SPEED * Mas de que jeito se encontram? SPEED: De que jeito?
LaunceE: Ora, quando alguma coisa está bem para Launce* Como um refinado tratante, conforme lhe
ele, está, do mesmo modo, bem para ela. chamaste agora mesmo.
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SPEED * Oh grande pedaço de asno! Tomaste-me no ir comigo à cervejaria, bem; caso contrário, és um
mau sentido. hebreu, um judeu, indigno do nome de cristão.
LauncE* Não falei de ti, meu tolo, mas de teu amo. SPEED * Por quê?
SrEED * O que eu disse foi que meu amo se encontra LaunceE: Por não teres suficiente caridade para
inflado de amor. beber cerveja com um cristão. Como é? Não vens?
Launce * Pois o que eu digo é que pouco se me dá SPEED: Às tuas ordens.
que ele venha a se consumir de amor. Se quiseres (Saem.)
Ato IH Cena VI
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. Se os perder, ganharei com essa perda
Entra Proteu. a mim próprio em lugar de Valentino,
ea Sílvia em vez de Júlia. Mais que amigo
Proreu Deixar de amar a Júlia, é ser perjuro, sou eu para mim mesmo. Quanto a Sílvia —
amar a bela Sílvia, é ser perjuro; seja o céu testemunha, que a fez bela! —
trair o amigo, é ser demais perjuro. em Júlia me faz ver escura etíope.
À mesma causa de eu haver jurado Esquecerei que Júlia ainda está viva
a perjurar três vezes me constrange. só de lembrar que morto já se encontra
O Amor me fez jurar e perjurar. o amor que lhe votei. De Valentino
O doce tentador! Já que pecaste, farei meu inimigo, porque em Sílvia
ao menos à tua vítima sugere mais grato amigo alfim encontrar possa.
passáveis argumentos de desculpa. Para constante ser comigo mesmo,
Adorei uma estrela cintilante, urge que a Valentino eu seja falso.
mas ora é um sol celeste que eu venero. Com uma escada de corda ele pretende
Ligeiramente podem ser quebrados a janela escalar da imortal Sílvia.
votos feitos à pressa. Fora falta Eu, seu rival, fui confidente nisso.
de espírito não ter vontade forte
Vou prevenir, portanto, o pai de Sílvia
para ensinar um meio ao próprio espírito
desse encontro e da fuga em perspectiva.
de escolher o melhor em qualquer caso.
Furioso, há de expulsar a Valentino,
Oh língua irreverente! Ruim chamares
por pretender a filha dar a Túrio.
aquela cujo mérito exaltaste
Uma vez Valentino removido, :
com vinte mil sinceros juramentos?
saberei encontrar alguma traça
Não prosseguir amando, é-me impossível.
para entravar esse noivado estúpido.
É o que se dá, no entanto. Mas só deixo
Amor, dá-me asas para esta vitória,
de amar a quem forçoso era que amasse.
pois, em verdade, é tua toda a glória.
Desta arte perco Júlia e Valentino;
se com eles ficar, perco a mim mesmo. (Sai.)
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Lucera Rezai para encontrá-lo desse jeito. para essa viagem com que tanto sonho.
JóLia : Se me amas, não lhe faças a injustiça Contigo fica tudo quanto tenho:
de apresentar com cores menos gratas reputação, bens móveis, propriedades.
sua fidelidade. Caso queiras Mas, em compensação, tens de tirar-me
minha amizade, é força que o aprecies. daqui sem mais delongas. Não repliques.
Vem comigo até o quarto, porque possas Vamos pôr em ação nosso projeto;
tomar nota de tudo o que preciso Impaciente me deixa essa demora.
(Saem.)
Ato HI Cenal
Milão. Ante-sala no palácio do duque. Já percebera que eles se gostavam,
Entram o duque, Túrio e Proteu. quando ambos me julgavam mergulhado
no mais profundo sono, e tencionava,
Duque Deixai-nos, senhor Túrio, por momentos; mesmo, afastar da corte a Valentino,
temos que conversar alguns segredos proibindo-o de falar com minha filha.
muito em particular. Mas, por temer que o ciúme vigilante
(Sai Túrio.) me fizesse tomar picada falsa,
Ora me fala, vindo eu, pois, a ser causa, injustamente,
Proteu, sobre o que intentas revelar-me. da desgraça do jovem — imprudência
Proreu : Meu gracioso senhor, o que pretendo de que até hoje nunca fui passível —
aqui dizer, de revelar a outrem continuei a tratá-lo com carinho,
me veda o imperativo da amizade. para ficar em condições propícias
Mas, quando me recordo dos favores de descobrir o que ora me revelas.
com que me distinguistes o demérito, Mas porque vejas quanto medo eu tinha
obriga-me o dever a vos ser franco, de que isso acontecesse — que é mui fácil
contando-vos o que, por outro modo, de ser sugestionada a mocidade —
de mim nem todo o mundo me arrancara. revelo-te que faço minha filha
Ficai sabendo, pois, excelso príncipe, passar todas as noites na alta torre
que esta noite tenciona o meu amigo de cuja chave nunca me separo.
Valentino roubar a vossa filha. Ser-lhe-á, pois, impossível evadir-se.
Eu também tomei parte na conjura. Proreu: Sabei, nobre senhor, que já pensaram
Sei-que é vossa intenção ligá-la a Túrio, um meio que permita a Valentino
que vossa gentil filha não suporta. subir até onde Sílvia ora se encontra —
Mas se ela vier a ser, assim, raptada, uma escada de corda — e, desse modo,
muito há de padecer, vossa velhice. retirá-la da torre. O nosso jovem
Seguindo nisso o meu dever, prefiro apaixonado foi buscar a escada,
burlar as intenções do próprio amigo, devendo vir com ela agora mesmo.
a nada vos dizer e, desse modo, Podereis surpreendê-lo, se o quiserdes.
sobre a cabeça vos lançar o fardo Mas fazei-o, senhor, de tal maneira,
de tamanha tristeza que, apanhando-vos que minha indiscrição não se descubra,
de improviso, por certo vos levará, que o amor que eu vos dedico, tão-somente,
antes do tempo, para a sepultura. não ódio ao meu amigo, foi a causa
Duque: Agradeço, Proteu, tua franqueza. de eu vos contar agora o plano dele.
Em recompensa, pede o que quiseres. Duque : Dou-te minha palavra em como nunca
IIO
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virá ele a saber que me falaste de eu querer que de mestre ora me sirvas —
acerca disso tudo. pois já sei como se faz a corte,
ProTEU* Adeus milorde. sobre ser diferente a moda de hoje —
Não posso demorar-me; eis Valentino. para ensinar-me o que fazer me cumpre,
; (Saí) porque possa atrair seus belos olhos.
(Entra Valentino.) VALENTINO: Se palavras desdenha, dai-lhe mimos.
Duque : Valentino, aonde vais com tanta pressa? Por vezes pode mais a jóia muda
VALENTINO: Se Vossa Graça o permitir, espera-me do que a palavra ou outra qualquer ajuda.
um mensageiro, a fim de levar cartas Duque: Recusou-se a ficar com um meu presente.
de minha parte para alguns amigos. VALENTINO : É comum que a mulher se descontente
Vou entregar-lhas justamente agora. com o que mais aprecia. Não convém
Duque" São cartas de importância? desanimar, por isso, que o desdém
VALENTINO : Falo nelas apenas de saúde de hoje é prenúncio de um amor mais forte.
Se está zangada, a idéia vos conforte
e do viver contente em vossa corte.
de não ser disso o ócio o causador,
Duque: Sem importância, pois. Demora um pouco;
mas o anseio, tão-só, de um grande amor.
quero comunicar-te alguns assuntos
Se se irrita convosco, não quer isso
que me falam de perto. É reservado.
indicar que vos vades; desserviço
Como não deves ignorar, desejo
mui grande lhe faríeis, pois são poucas
casar Sílvia com meu amigo Túrio.
as que na solidão não ficam loucas.
- VALENTINO
Por mais que diga, alegre vos mostrai,
Sei disso, sim; a união é rica e honrosa,
porque “Ide embora” quer dizer: “Ficai!”
não se duvida, e, sobretudo, o noivo
Adulai-a, endeusai-lhe o imenso encanto;
é virtuoso, liberal e ornado
se for fanhosa, elogiai-lhe o canto,
de qualidades tais que o tornam digno pois que ser chamado homem não merece
de uma esposa como ela. Vossa Graça quem em tal conjuntura desfalece.
já conseguiu de Sílvia o assentimento? Duque : Mas os pais da pessoa de que falo
Duque : Não, podes crer-me; Sílvia é cabeçuda,
já a prometeram para um moço digno,
orgulhosa, frenética, birrenta, e de tal modo segregada a trazem
desobediente, caprichosa, fútil, do convívio dos homens, que impossível
dos deveres filiais nunca se lembra é junto dela obter de dia acesso.
nem de mim, qual de pai, se teme nunca. VALENTINO * Nesse caso, eu de noite a buscaria.
O resultado desse orgulho, digo-te Duque*
aqui em particular, foi despojá-la Sim, mas as portas se acham bem trancadas,
do meu amor de pai. Se noutros tempos e as chaves em seguro; ninguém pode
eu me iludia, a imaginar que os anos chegar de noite até seus aposentos.
que me restam de vida, eu os passaria VALENTINO E escalar a janela? Fora fácil.
sob o amparo da filha carinhosa, Duque: Fica muito alto o quarto, e tão a pique
ora a tomar estado decidi-me, toda a muralha, que impossível fora
casando-me de novo e a entregar Sílvia tentar subir sem arriscar a vida.
para quem resolver ficar com ela. VALENTINO *
Levará como dote a formosura, Uma escada de cordas, com dois ganchos,
pois me despreza e a quanto me pertence. feita com bem capricho, bastaria
VALENTINO * E de mim Vossa Graça que deseja? para escalar uma outra torre de Hero,
Duque : Há uma senhora aqui em Milão, meu caro, desde que houvesse um Leandro para a empresa.
de quem me apaixonei, mas muito esquiva Duque: Então, na qualidade de legítimo
se mostra e arisca sem prestar ouvidos gentil-homem, te peço me dizeres
à elogiiência de um velho. Eis o motivo como é possível arranjar a escada.
III
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VALENTINO * Para quando, senhor, precisais dela? mais do que o estritamente necessário
Duque Para esta noite; o amor é como criança, para te pores fora desta corte,
que quer logo possuir quanto descja. pelo céu! há de em muito minha cólera
VALENTINO : Às sete em ponto vos trarei a escada. exceder a afeição que a minha filha
Duque - Mas escuta: terei de ir lá sozinho. ou a ti sempre votei. Não percas tempo.
Como levar a escada? Não quero ouvir tuas escusas fúteis.
VALENTINO * É muito fácil, Se tens amor à vida, parte logo.
milorde: embaixo de uma boa capa. (Sai)
Duque: Do comprimento dessa? VALENTINO * Antes a morte do que semelhante
VALENTINO Sim, milorde. sofrimento. Morrer é ser banido
Duque : Então me mostra a tua, pois pretendo de mim próprio; e eu sou Sílvia. Estar de Sílvia
mandar fazer uma de igual tamanho. banido é estar banido de mim mesmo.
VALENTINO * Ora, milorde, qualquer capa serve! Banimento mortal! Que luz é luz,
Duque : De que maneira achas que devo usá-la? se Sílvia não for vista? Que alegria
Deixa-me pôr a tua, por obséquio. é alegria, se Sílvia estiver longe?
(Puxa a capa de Valentino.) Salvo se for para pensar, apenas,
Que carta é esta? Como! “Para Sílvia!” que ela se acha ao meu lado e alimentar-me
E este instrumento? Vem no instante azado tão-somente da sombra do que é belo.
para o que tenho em mente. Não repares Só quando passo a noite junto dela
por ter o ousio de violar o selo. no rouxinol encontro algum deleite.
(12) Se de dia não vejo a minha Sílvia,
Com Sílvia sempre estão meus pensamentos, para mim deixa o dia de ser claro.
que para ela eles voam noite e dia. É a minha essência; deixo de ter vida
Se me levassem para lá os ventos, se não ficar, por sua bela influência,
mais do que eles feliz eu estaria. vivificado, iluminado e lépido.
Com ela dormem... Oh Fortuna crassa! Se eu me esquivar dessa mortal sentença,
Viver o dono deles, sem ter crime, não fugirei da morte; aqui ficando,
triste e sozinho, amaldiçoando a graça pela morte serei, logo, alcançado;
que lhes concede graça tão sublime. mas partir é fugir da própria vida.
Mas se os mandei, maldito eu sou em parte, (Entram Proteu e Launce.)
por não ter dessa dita a menor parte. Proreu Corre, pajem! Vai à procura dele!
E isto aqui? Launce Olá! Olá!
Sílvia, à noite virei para livrar-te. Proreu - Que estás a ver?
É isso mesmo: eis a escada para o feito. Launce: Quem íamos procurar. Não há um cabelo
Coimo Faetonte — sim, não tenho dúvida, na cabeça dele que não seja um Valentino.
és o filho de Mérope — tencionas Proreu És Valentino?
dirigir o alto carro para, em chamas, VALENTINO * Não.
com tua insensatez, deixar o mundo? Proreu* Quem, então? Seu espírito?
Queres pegar estrelas cintilantes VALENTINO : Também não.
porque no alto as enxergas? Presunçoso Proreu Então, que és?
labrego, vil intruso, mostra os dentes VALENTINO * Nada.
a teus iguais e, se com vida agora LauncE* Nada pode falar? Posso bater-lhe, meu amo?
sais daqui, fica certo que isto deves Proreu Bater em quê?
mais à minha paciência que a teu mérito. Launce Em nada.
Terás de agradecer-me essa leal prova Proreu Detém-te, maroto!
mais do que quantas esbanjei contigo. Launce* Ora senhor, eu iria bater em nada. Por
Mas, se ficares em meu território obséquio...
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Proreu Basta, já disse! Uma palavra, apenas, ProTEU - Não te queixes de um mal irremediável;
amigo Valentino. remédio busca para o que lamentas.
VaLentiNO* Tenho as ouças De todo bem é gerador o tempo.
entupidas; ouvir não me é possível Ficando, não verás a tua amada,
notícia alguma boa, tão repletas sobre arriscares-te a encurtar a vida.
de notícias ruins elas se encontram. À esperança é o bastão dos namorados;
Proreu : Então as minhas num silêncio mudo com ele parte, e busca manejá-lo
resolvo sepultar, que são bem tristes, contra os maus pensamentos. Tuas cartas
duras e abomináveis. podem vir até aqui, embora estejas
VALENTINO Morreu Sílvia? por lugares longínquos. Se me vierem
ProTEU- Não, Valentino. endereçadas, irão dar ao colo
VALENTINO: É assim: “Não Valentino” branco de leite da mulher que adoras.
para a celeste Sílvia. Desprezou-me? O momento não é para lamúrias.
ProTeu : Não, Valentino. Vamos logo; desejo ir até a porta
VALENTINO" Se o tivesse feito, da cidade contigo. De caminho,
como “Não Valentino” ora me achara. conversaremos com maior largueza
Que novidades há? sobre o que diz respeito a teus amores.
LAUNCE* Senhor, proclamam Se não por ti, por Sílvia, do perigo
que já fostes varrido. em que estás não te esqueças; vem comigo.
ProTEU- Sim, banido VALENTINO * Se encontrares meu pajem Speed,
de tua Sílvia, de Milão, do amigo. dize-lhe que na porta do norte me procure.
VALENTINO * Já me fartei com esse sofrimento, Proreu : Corre, maroto! Vamos, Valentino.
cujo excesso me deixa ora afrontado. VALENTINO * Querida Sílvia! Pobre Valentino!
Sílvia já soube que banido me acho? (Saem Valentino e Proteu.)
ProTEU: Sim; e, ao ouvir o edito irrevogável — Launce Não passo de um bobo, ora vede, mas sou
que em todo o seu rigor ainda se encontra — dotado de espírito suficiente para ver que meu amo
soltou um mar de pérolas desfeitas, é uma espécie de velhaco. À espécie importa pouco,
a que alguns chamam lágrimas, levando-as uma vez que velhaco ele seja. Ainda está por nascer
aos rudes pés do pai. Nos joelhos dele quem saiba que me encontro apaixonado. Mas nem
ela, humilde, se atira, as mãos tão brancas uma parelha de cavalos poderá arrancar de dentro de
a contorcer, como se a dor ingente mim semelhante segredo e o nome da pessoa a que
mais brancas as deixasse. Mas de nada amo. No entanto, é uma mulher; mas que mulher
valeram joelhos prosternados, súplices seja, nem a mim mesmo hei de contar. Contudo,
mãos, profundos suspiros, argentinas é a rapariga do leite. Não, rapariga não, que ela já
lágrimas para o pai inexorável arranjou uma comadre. Sim, rapariga, uma vez que é
abalar do propósito: se acaso empregada do patrão que lhe paga ordenado. Possui
Valentino ficar, à morte o voto. mais qualidades do que um cão de água, o que já
Suas súplicas tanto o aborreceram, é muito para um simples cristão. (Sacando de um
quando, humildosa, a teu favor falava, papel.) Eis o catálogo de suas qualidades. “Imprimis,
que mandou para um cárcere levá-la, pode buscar e carregar.” Ora, um cavalo não poderá
ameaçando-a de ali sempre deixá-la. fazer mais do que isso. Não, um cavalo não poderá ir
VALENTINO * buscar; só pode carregar; logo, ela vale mais do que
Nem mais uma palavra, se as que faltam uma égua. “Item, sabe mungir.” Ora vede, eis uma
carecerem da força de matar-me. virtude doce numa rapariga de mãos limpas.
Se for o caso, peço-te, murmura-mas (Entra Speed.)
aos ouvidos e acaba logo a antífona SPEED - Então, senhor Launce, como vai o vosso capitão?
desse meu sofrimento prolongado. LauncE* À capitânia? No mar, naturalmente.
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SPEED * Sempre o velho vício de brincar com as LAuNcE: Isso não tem importância, uma vez que
palavras. Que novidades há em vosso papel? não durma quando estiver falando.
LauncE* Ás mais pretas novidades de que pudesses SPEED : “Item, é pouco amiga de falar.”
ter ouvido falar. Launce Oh estúpido! Pôr isso na lista dos
SPEED : Pretas como, homem? defeitos! A única virtude da mulher é ser pouco
LaunceE* Ora, pretas como tinta. amiga de falar. Por favor, risca daí esse item e o
SPEED * Deixa-me lê-las. coloca à frente das virtudes.
LaunceE* Sai daí, pascácio! Não sabes ler coisa SPEED “Item, é vaidosa.”
alguma. Launce- Tira isso, também; é herança de Eva, de
SpeEpD - Mentes; sei ler, sim senhor. que não podemos despojá-la.
Launce: Então vou pôr-te à prova. Dize-me uma SpEED “Item, é desprovida de dentes.”
coisa: quem foi que te gerou? Launce Isso, também, para mim carece de
SrEED * Ora essa, o filho de meu avô. importância, porque gosto muito de casca de pão.
Launce * Oh madraço iletrado! Foi o filho de tua SPEED * “Item, é briguenta.”
avó. Isso prova que não sabes ler. Launce : Não há mal nisso, uma vez que não tenha
SpEED - Vamos, tonto; vamos. Põe-me à prova com dentes para morder.
esse papel. SPEED “Item, gosta de provar o seu licorzinho de
LauncE* Bem, que seja; e que São Nicolau te vez em quando.”
proteja. Launce: Se o licor for bom, poderá prová-lo; se não
SpEED - “Imprimis, sabe mungir.” quiser, prová-lo-ei eu, que as coisas boas devem ser
LaunceE: Isso ela sabe. apreciadas.
SpEED “ “Item, sabe fazer boa cerveja.” SPEED * “Item, é muito liberal.”
LauNcE- É daí que vem o provérbio: Já é ter boa Launce : Com relação à língua não poderá sê-lo,
sorte saber fazer cerveja. pois já ficou dito que é pouco amiga de falar; no que
SpEED * “Item, sabe cozer.” respeita à bolsa, não lhe será possível ser liberal,
LAuncE* Antes cozer do que queimar. porque hei de trazê-la sempre bem fechada. Quanto
SPEED : “Item, sabe fazer meias.” ao resto, não está em mim remediar. Adiante.
LauncE* Tanto melhor, se souber fazer tudo à meia. SPEED * Item, tem mais cabelos do que espírito,
SPEED - “Item, sabe lavar c esfregar.” mais defeitos do que cabelos e mais dinheiro do que
LauncE - Uma virtude especial, porque, sendo defeitos.
assim, não haverá necessidade nem de lavá-la nem de Launce: Pára aí! Será minha; só nesse último artigo
esfregá-la. ela foi minha e deixou de sê-lo por duas ou três
SPEED * “Item, sabe fiar.” vezes. Lê outra vez.
Launce: Se ela vive de fiar, eu é que não me fio dela. SPEED * “Item, tem mais cabelos do que espírito...”
SpEEp : “Item, possui inúmeras virtudes anônimas.” Launce : Mais cabelo do que espírito, pode ser.
Launce: O que vale a dizer: virtudes bastardas; Vou prová-lo: a tampa do boião de sal cobre o sal;
carecem de nome por não conhecerem o pai. logo, é mais do que o sal. O cabelo que cobre o
SpEED - “Agora seguem-se os vícios.” espírito é maior do que o espírito, porque o que é
Launce No rasto das virtudes. maior cobre o menor. Que se segue?
SPEED : “Item, não deve ser beijada em jejum, por SpgED - “Mais defeitos do que cabelos...”
causa do hálito.” Launce Monstruoso! Se se pudesse tirar isso!
LauncE* Esse defeito pode ser corrigido com um SPEED * “E mais dinheiro do que defeitos.”
almoço. Launce Bem, essas palavras transformam os
SpEED ' “Item, tem a boca doce.” defeitos em virtudes. Não há dúvida: será minha. E
LAuNncE: Isso compensa o azedo do hálito. se houver casamento, visto nada ser impossível...
SPEED * “Item, fala durante o sono.” SPEED * Que acontecerá?
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Launce* Então eu te direi que o teu amo está à tua SPEED : Por que não me falaste nisso mais cedo? O
espera na porta do norte. diabo leve a tua carta de amor!
SPEED: À minha espera? (Sai)
LAuNcE: Sim, à tua espera. Quem és tu? Ele já LauncE- Agora ele vai apanhar por ter lido minha
esperou por gente muito melhor. carta. Sujeito mal-educado, para se meter no
SPEED * Quer dizer que eu preciso ir para lá? segredo dos outros. Vou atrás dele, para assistir à
Launce Não é suficiente ires; terás de correr até lá, correção.
porque já perdeste muito tempo. (Sai)
Ato HH Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. se opõe a meu desejo.
Entram o duque e Túrio. ProTEU-: Isso fazia,
senhor, quando aqui estava Valentino.
Duque Túrio, nada temais, que ela há de amar-vos, Duque Sim, mas persiste nisso com maldade.
já que de sua vista Valentino Que seria preciso pôr em prática,
banido ora se encontra. para que a rapariga a esquecer viesse
Túrio: Desde que ele Valentino e de Túrio se agradasse?
foi exilado, mais temível ódio ProTEU : Penso que o melhor meio fora contra
por mim ela demonstra; a companhia Valentino assacar origem baixa,
me despreza, me cobre de sarcasmos. covardia e dobrez, coisas que a todas
Já não tenho esperanças de alcançá-la. as mulheres são sempre intoleráveis.
Duque: Essa impressão de amor é qual figura Duque : Mas ela há de pensar que o ódio é que fala.
insculpida no gelo: uma hora, apenas, Proreu- No caso de falar um desafeto.
de calor é bastante para a forma Por isso é necessário que lhe fale
lhe roubar, transformando-a em água pura. quem ela considere amigo dele.
Seus pensamentos congelados breve Duque Então podias incumbir-te disso.
desfeitos hão de ser, ficando o indigno Proreu Contrafeito, milorde, aceito o encargo,
Valentino esquecido por completo. pouco louvável para um gentil-homem,
(Entra Proteu.) mormente em se tratando de um amigo.
Então, senhor Proteu, vosso patrício Duque Onde vossa palavra nada pode
já se foi, acatando nossas ordens? fazer a favor dele, nenhum dano
ProrEuU Sim, meu bom lorde. causarão as calúnias. Não seja isso
Duque : Minha filha ficou muito abatida. motivo, pois, de escrúpulo, mormente
Proreu- O tempo há de curar essa tristeza. por cederes a instâncias de um amigo.
Duque - Penso que sim, mas Túrio está descrente. Proreu : Dou-me por convencido, meu bom lorde.
A confiança, Proteu, que me inspiraste, Se depender, tão-só, dos meus ataques,
pois deste provas de teu grande mérito, deixará vossa filha de estimá-lo.
me leva a te iniciar nestes assuntos. Mas se do coração dela tirardes
Proreu : Se eu deixar de ser leal a Vossa Graça, o amor de Valentino, não se segue
quero sumir do olhar de Vossa Graça. que, só por isso, a Túrio ela a amar venha.
Duque Sabes quanto desejo o casamento Túrio - Quando desenrolardes, pois, de Sílvia,
entre Sir Túrio e minha filha Sílvia. o amor de Valentino, porque inútil
ProreuU Sei, milorde. não fique e embaraçado, é conveniente
Duque : Não ignoras, também, creio, quanto ela que o passeis para mim, sendo bastante
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ORA * Cena HI
O mesmo. SfLvia : Quem me chama?
Entra Eglamor. EcLAMOR* Vosso criado
e amigo verdadeiro, que se encontra
EcLamor: Madame Sílvia me aprazou esta hora sempre às ordens de Vossa Senhoria.
para me revelar sua vontade. SíLvia - Mil bons-dias, meu bom Sir Eglamor.
Vai me confiar, decerto, algo importante. EcLamor* Como a vós, muito digna senhorita.
Madame! Obedecendo nisto a vossas ordens,
(Sílvia aparece à janela) vim cedinho saber qual o serviço
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patrões teriam feito o mesmo com relação a seus Sabes, pois, as razões de minha escolha.
criados? Sim, posso jurar quejá fui posto no tronco Toma agora este anel e, com presteza,
por causa de pudins roubados por ele, só para que leva-o a madame Sílvia.
ele não fosse executado;já fiquei no pelourinho por Quem mo deu muito amor me dedicava.
causa de gansos mortos por ele, só para que ele não Jócia:
viesse a sofrer nada. Já te esqueceste de tudo isso, Dando-o, mostrais que amor nenhum lhe tínheis.
não é assim? Ainda me recordo da partida que me Já estará morta?
pregaste, quando me despedi de madame Sílvia. ProTEU- Não; penso que vive.
Não te recomendara que não me perdesses de vista, Júzia- Ai de mim!
para só fazeres o que eu fizesse? Quando já me viste ProrTeu Por que falas assim?
levantar a perna e molhar a saia de alguma senhora? JóLia: Não me é possível
Alguma vez já me viste fazer semelhante brincadeira? deixar de lastimá-la.
(Entram Proteu e Júlia em trajes masculinos.) PRrOTEU" Qual a causa
Proreu: Chamas-te Sebastião? Muito me agradas; de teres pena dela?
vou arranjar-te logo algum serviço. Jóia: É que parece
Jóia * Farei tudo de muito boamente. que tanto amor ela por vós sentia,
ProTEU* Assim o creio. (À Launce.) Então, vilão quanto por vossa senhorita Sílvia
à-toa, por onde vos metestes, há dois dias?
ora estais revelando. Ela ainda sonha
Launce: Ora, senhor, levei à senhorita Sílvia o com quem de seu amor está esquecido;
cachorro que lhe mandastes de presente.
vós amais quem de vosso amor não cuida.
Proreu- E que disse ela da minha pequena jóia? Dói ver o amor prejudicar-se tanto.
Launce Disse que vosso cachorro era muito reles,
Foi por pensar assim que disse aquilo.
e me incumbiu de vos transmitir agradecimentos de
ProTEU:
cão por semelhante presente.
Bem; leva-lhe este anel e, ao mesmo tempo,
ProTeU Mas ela ficou com o cachorro?
dá-lhe esta carta. O quarto dela é aquele.
Launce* Não, senhor; isso ela não fez; aqui vo-lo
Dize a minha senhora que eu reclamo
trago de volta.
Proreu : Como! É esse o cachorro que lhe o cumprimento da promessa feita:
seu divino retrato. Terminado
ofereceste de minha parte?
teu recado, ao meu quarto volta logo,
LaunceE: Perfeitamente, senhor; o outro, o esquilo,
me foi roubado no mercado pelos filhos do carrasco; onde triste hás de achar-me e solitário.
por essa razão eu levei à senhorita Sílvia o meu (Sai.)
próprio cão, que é dez vezes maior do que o vosso e, JúLia : Quantas mulheres se encarregariam
por isso mesmo, constitui presente muito maior. de tal mensagem? Ah, pobre Proteu!
Proreu* Some da minha vista! Vai em busca Escolheste a raposa para guarda
de meu cachorro, ou nunca me apareças. de tuas ovelhinhas. Pobre louca!
Fora, já disse! Queres irritar-me? Por que ter pena de quem me despreza
Esse biltre a toda hora me envergonha. de todo o coração? De mim se esquece,
(Sai Launce.) porque lhe tem amor; e eu, por amá-lo,
Tomei-te, Sebastião, a meu serviço, também me apiedo dele. Ao separarmo-nos,
em parte, apenas porque necessito dei-lhe este anel como penhor de quanto
de um moço como tu, capaz da máxima lhe seria sincera. Mas agora —
discrição nos recados, que impossível infeliz mensageiro! — sou forçada
é a gente se fiar num louco destes. a pedir o que obter não desejara,
Mas o motivo principal é a tua a levar-lhe o que fora preferível
compostura, as feições, que, se me fala recusar, a elogiar-lhe os sentimentos
certo o pressentimento, testemunham que censurar desejo intimamente.
bons princípios, caráter e lealdade. Sou a amante sincera de meu amo,
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mas não posso ser dele honesto servo Muito sofreu por causa de meu amo.
sem falsa me tomar para mim própria. SfLvia * Conhece-la?
Contudo, vou fazer por ele a corte, Jóia: Conheço-a quase tanto
mas de modo tão frio — o céu o sabe — quanto a mim. À lembrança dos seus males
que espero nunca conseguir o intento. me tem feito chorar mil vezes, crede.
(Entra Sílvia, com acompanhamento.) SfLvia : Já sabe que Proteu se esqueceu dela?
Bom-dia, senhorita; por obséquio, Júzia : Creio que sim; por isso mesmo, sofre.
desejava falar com dona Sílvia. SíLvia : Ela é muito bonita?
SíLvia * Se ela eu fosse, que dela desejaras? Júzia - Já foi, senhora, muito mais bonita.
Júzia : Se fosseis ela, pediria, humilde, Quando ela ainda pensava que meu amo
que ouvísseis com paciência meu recado. lhe dedicava amor, era tão bela
SíLvia - Da parte de quem vindes? quanto sois. É o que eu penso. Mas depois
JóLia- De meu amo, que o espelho ela esqueceu e jogou fora
senhor Proteu, madame. a máscara que o rosto lhe amparava
SÍLVIA: Ah! É a propósito contra o calor do sol, fez o ar fanarem-se
de um retrato, não é? as rosas que lhe as faces coloriam
Jóia: Perfeitamente, e esmaecer da fronte a cor do lírio.
madame. Ora ficou como eu, preta de todo.
SfLvia Úrsula, traze o meu retrato. SíLvia : Qual era a altura dela?
(Trazem o retrato.) Jóia: À minha. Sim, no Pentecostes, quando
Dai-lhe isto e dize-lhe de minha parte tivemos de ensaiar os espetáculos,
que uma Júlia, esquecida de seu falso um papel de mulher deram-me os moços
coração, ficaria mais a jeito com as vestimentas de madame Júlia,
no seu quarto do que esta simples sombra. que, na opinião de todos, me serviam
Júzra: Senhora, por obséquio, eis uma carta... tão bem como se minhas elas fossem.
Perdão, senhora; inadvertidamente Por isso eu sei que ela é da minha altura.
vos dei outro papel. Eis o que eu trouxe Nessa ocasião fi-la chorar bastante,
para ser dado a Vossa Senhoria. pois era muito triste a minha parte,
SíLvIA * Mostra-me o outro, de novo, por obséquio. minha senhora, no papel de Ariadne,
Júzra - Não, senhora; é impossível. Desculpai-me, a lastimar-se da infidelidade
SíLvia : Então fica com este. de Teseu e de sua fuga injusta.
Não quero ler os versos de teu amo; Representei tão bem, com tantas lágrimas,
sei que inflados se encontram de protestos que a minha pobre dona, comovida,
de juramentos novos, que ele se acha chorava amargamente. Morrer quero
pronto a quebrar tão facilmente como neste momento, se não for verdade
eu rasgo este papel. que suas dores eu também sentia.
JóLia- Senhora, este anelzinho, é também vosso. SíLvia : Ela há de ser-te muito grata, jovem.
SíLvia * Maior é o opróbrio dele por enviar-me Coitada! Abandonada e sem consolo!
semelhante presente, pois mil vezes Só de te ouvir falar eu também choro.
o ouvi dizer que, à despedida, Júlia Toma esta bolsa, jovem: dou-ta como
lho dera de lembrança. Muito embora dádiva em atenção daquela pobre
seu falso dedo o anel já profanasse, que tanto e tanto amaste. Passa bem.
a Júlia não farei tal injustiça. Jóia - Ela há de agradecer-vos esse gesto,
Júzra : Ela vos agradece. se a virdes algum dia.
SÍLVIA * Que disseste? (Sai Sílvia com o séquito.)
JúLia : Senhorita, agradeço-vos o serdes Mui virtuosa
compassiva com Júlia. Coitadinha! senhorita, bondosa e encantadora.
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Espero que meu amo seja muito Mas é de testa estreita; a minha é larga.
fracamente acolhido, uma vez que ela Que pode nela achar-se de admirável,
respeita tanto o amor da minha dona. que admirar em mim mesma eu não pudesse,
Ai! Como de si mesmo o amor faz troça. se o louco Amor não fosse um deus sem olhos?
Eis o retrato dela. Examinemo-lo, Vamos, sombra; carrega esta outra sombra,
Penso que este penteado me deixara que ela é tua rival. Forma insensível,
com o rosto tão formoso quanto o dela. adorada vais ser, beijada e amada!
Favoreceu-a, aliás, o artista um pouco, Se em tal idolatria houvesse senso,
ou eu também me favoreço muito. em teu lugar meu ser seria estátua.
Tem cabelos castanhos: eu, bem louros. Vou te ser boa em atenção à dona,
Se o amor de Valentino se decide que foi boa comigo; do contrário,
por esse traço, vou usar cabelos por Jove o juro, as unhas eu metera
postiços de igual cor. Olhos cinzentos nesses olhos sem luz, porque meu amo
possui, iguais aos meus, da cor de vidro. não mais encantos neles encontrasse,
(Saí)
Ato V: Cena l
Milão. Uma abadia. tanto a pressa esporeiam. Ei-la a tempo.
Entra Eglamor. (Entra Sílvia.)
Boa tarde, senhora.
EcLamor: O sol já doira a fimbria do ocidente. SÍLVIA: Amém, amém.
Sílvia me disse que nesta hora, justa, Vamos, bravo Eglamor; passemos logo
nós nos encontraríamos na sela a portinha do muro do convento.
de Frei Patrick. Decerto ela não falta, Tenho medo de estar sendo seguida.
que nunca as horas os amantes perdem, EcLAMOR: Ânimo, que a floresta está a três léguas.
salvo se for para chegarem antes, Se a alcançarmos, sairemos do perigo.
(Saem.)
Ato V- Cena ll
O mesmo. Um quarto no palácio do duque. de nada serve, quando o amor demonstra
Entram Túrio, Proteu e Júlia. grande aversão por algo.
Túrio: E do meu rosto,
Túrio : De minha pretensão, que disse Sílvia, que disse ela?
senhor Proteu? Proreu* Que é muito e muito claro.
ProTEU* Oh, meu senhor, achei-a Túrio : Nisso aquela travessa está mentindo,
mais tratável. Contudo, faz reparos que eu tenho a tez escura.
frequentes com respeito a vosso físico. ProTEU: Mas segundo
Túrio - Acha que minhas pernas são compridas? velho ditado, as pérolas são claras:
Proreu - Não; acha que são finas. “Para os olhos da amada um negro é pérola.”
Túrio" Umas botas Jóia (à parte) -
mas farão engrossar. Sim, pérolas que os olhos dela ofusquem.
Jócia (à parte)- | O uso de esporas Preferira ficar a contemplá-las.
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Túrio: E de minha conversa, que disse ela? que ela fugiu para juntar-se ao rústico
Proreu : Desagradável, se falais de guerra. Valentino: Eglamor saiu com ela.
Túrio - Mas gosta de me ouvir falar de amor? É certo; Frei Lourenço encontrou ambos
Júcia (à parte) - Mais lhe agradais, se nada lhe ao passear, penitente, pelo bosque.
disserdes. Conheceu Eglamor, tendo suspeitas
Túrio - E de minha coragem, que disse ela? com relações a Sílvia, cuja máscara
Proreu: Oh meu senhor, sobre isso não tem o impediu de afirmar com segurança.
dúvida. Além do mais, ela aventou o pretexto
JúLia (à parte) * Fora desnecessário, pois bem sabe de ir cedo confessar-se com Patrick,
quanto sois pusilânime. sem que estivesse estado em sua cela.
Túrio: E que disse Esses sinais confirmam sua fuga.
sobre o meu nascimento? Por isso pelo não perderdes tempo
ProTEU* Que de grande com vãos discursos, mas montardes logo
família descendeis. para a mim vos reunirdes junto à encosta
Júzia (à parte) - Desceu, realmente, da montanha da estrada para Mântua,
de muito alto: de um nobre para um tolo. que é por onde eles foram. Persigamo-los
Túrio : Falou-vos de meus bens? sem demora, meus caros gentis-homens.
ProTEU* Sim, com piedade. (Sai)
Túrio Por que motivo? Tóúrio : Isto é que é rapariga sem juízo:
Júzia (à parte) - Por estarem fugir da sorte que empós dela corre!
sob a gerência de outrem. Vou atrás dela, mais, seguramente,
JóLia- Eis o duque. para tomar vingança de Eglamor
(Entra o duque.) que por amor à desmiolada Sílvia,
Duque: Então, senhor Proteu! Túrio, bom dia. (Sai)
Quem viu Sir Eglamor? Proreu Eu também vou, mais por amor de Sílvia
Túrio- Eu não. do que por desamor ao seu comparsa.
Proteu: Nem eu. (Sai)
Duque: E minha filha Sílvia? Józia: E eu mais para estragar todo esse amor,
ProTEU* Também não. do que por Sílvia, a quem conduz o amor.
Duque Então sabei (Saí)
Ato V : Cena HI
Floresta na fronteira de Mântua. Ide com ela para a porta do este;
Entram proscritos com Sílvia. nosso chefe está lá. Nós seguiremos
empós do outro; fugir não lhe é possível,
PRIMEIRO PROSCRITO * Vamos! Paciência. que toda a redondeza está cercada.
Teremos de levá-la ao nosso chefe. (Saem todos, com exceção do primeiro
SíLvia - Mil infortúnios mais acerbos que este proscrito e de Sílvia.)
me ensinaram a ser paciente agora. PRIMEIRO PROSCRITO *
SEGUNDO PROSCRITO * Vamos, levai-a logo. Vamos; vou acompanhá-la até a caverna
PRIMEIRO PROSCRITO * do nosso capitão. Não tenha medo;
E o gentil-homem que com ela vinha? é homem de caráter elevado;
TERCEIRO PROSCRITO * jamais abusará de uma donzela.
Por ter pés ágeis, escapou de todos; SíLvia : Oh Valentino! Tudo por tua causa!
mas Valério e Moisés vão-lhe no encalço. (Saem.)
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Já não posso dizer que ainda me resta Quanto este coração tem padecido
um amigo, porque me desmentiras. por teus perjuros todos! Oh Proteu!
Quem merecera fé, se a mão direita Envergonha-te à vista destes trajes.
é infiel ao coração? Oh! Estou triste Possas corar por eu ter envergado
por nunca mais poder confiar em ti. vestes tão imodestas, se, de fato,
Por tua causa fugirei do mundo. pode haver imodéstia nos disfarces
O golpe da amizade é mais profundo. de que se vale o amor. Mas erra menos
Oh tempo ingrato! Que entre tanta gente a mulher no disfarce de um momento
seja traidor o amigo e confidente! do que o homem que troca o sentimento.
Proreu Confunde-me a vergonha do meu crime. Proreu * O homem que troca o sentimento!
Valentino, perdoa. Se a tristeza É certo.
do coração tiver força bastante Oh céus! Porque perfeito o homem ficasse,
para me redimir de minha culpa, falta-lhe ser constante. Esse defeito
aos teus pés a deponho. Minha falta o leva a cometer muitos pecados.
não é maior do que meu sofrimento. Que pode haver em Sílvia a todo instante,
VALENTINO Isso me satisfaz; torno a estimar-te que em Júlia não me mostre o amor constante?
como a um homem de bem. Quem não se dobra VALENTINO"
ao arrependimento, não pertence Vamos, sem mais demora dai-me as mãos.
nem ao céu nem à terra, que são brandos. Ver-vos unidos causa-me alegria;
Por penitência a cólera do Eterno não fora bem brigardes em porfia.
se deixa dominar. E como prova Proreu - Bem sabe o céu que o meu anelo era este.
de quanto o teu falar me comprazeu, JóLra- O meu também.
cedo-te tudo quanto em Sílvia é meu. (Entram proscritos com o duque e Túrio.)
JúLia- Ai de mim! Infeliz! ProscriTO - Uma presa! Uma presa!
Proreu: Acudam o pajem! VALENTINO * Parai! Parai! é o meu senhor, o duque.
VALENTINO * Então, rapaz! Que houve? Vamos! Sede bem-vindo Vossa Graça junto
Fala! de um homem cuja graça está perdida:
JúLia - Oh bom senhor, meu amo encarregou-me Valentino, o banido.
de entregar este anel a dona Sílvia, Duque: Valentino!
coisa que me esqueceu, por negligência. Túrio Ali está Sílvia, e Sílvia me pertence.
ProTEU E o anel, rapaz, onde se encontra? VALENTINO Túrio, ou recua, ou abraçarás a morte.
Jócia- É este Não te aproximes, porque não te possa
(Dá-lhe um anel.) tocar a minha cólera. Não digas
Proreu- Como! Deixa-me vê-lo. que Sílvia te pertence; se o fizeres,
Que acontece? Este anel eu dei a Júlia! nunca mais serás visto por Verona.
JúLia- Oh! Perdoai-me, senhor, mas houve engano. Ei-la diante de ti; mas não consinto
O anel de Sílvia é este. que te aproximes dela, nem, ao menos,
(Mostra outro anel.) que o teu hálito alcance a minha amada.
ProTEU* De que jeito Túrio : Sir Valentino, dela não me importo.
obtiveste este anel? Eu o dera a Júlia Considero tolice rematada
no momento de nossa despedida. chegar a pôr em risco a própria vida
Júzia : Pois foi a própria Júlia quem mo deu, por alguém que nos vota só desprezo.
ea própria Júlia que até aqui o trouxe. Não a reclamo, Sílvia, pois é tua.
Proreu: Como! Júlia! Duque: É preciso que sejas vil e baixo
JúLia : Contempla o alvo de todas as tuas juras, para a deixares tão covardemente
com carinho guardadas no imo peito. depois de haveres feito o que fizeste
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shakespearebrasileiro.org Os DOIS CAVALHEIROS DE VERONA
Please click on each play to find extensive
study resources and fascinating details.
Please see The Historical Settings of
Shakespeare's Plays (by Date) for a
chronology of the content of the plays.
First First
Plays
Performed Printed
Henry VI,
159091 1594?
Part II
Henry VI,
159091 1594?
Part III
Henry VI,
159192 1623
Part I
159293 Richard III 1597
Comedy of
159293 1623
Errors
Titus
159394 1594
Andronicus
Taming of
159394 1623
the Shrew
Two
159495 Gentlemen 1623
of Verona
Love's
159495 Labour's 1598?
Lost
Bard Bites
Romeo and
Romeo and
159495 1597 Dramatist and Shakespearean scholar Nicholas Rowe
Juliet
was the first to write a critical (annotated) edition of
159596 Richard II 1597 Shakespeare's works.
___
A
The average length of a play in Elizabethan England was
Midsummer 3000 lines. With 4,042 lines and 29,551 words, Hamlet is
159596 1600
Night's the longest Shakespearean play (based on the first
Dream edition of The Riverside Shakespeare (1974)). With
1,787 lines and 14,369 words, The Comedy of Errors is
159697 King John 1623 the shortest Shakespearean play (also based on the first
edition of The Riverside Shakespeare).
The ___
159697 Merchant 1600
of Venice Shakespeare's late comedies are considered romances:
The Winter's Tale, The Tempest, Cymbeline, and
Henry IV, Pericles. The Two Noble Kinsman is also sometimes
159798 1598 mentioned along side these other plays as a romantic
Part I comedy.
___
Henry IV,
159798 1600
Part II Love's Labour's Lost has the highest percentage of
rhyming lines of all of Shakespeare's plays. According to
Much Ado Shakespearean scholar Tucker Brooke, 62.2% of the
159899 About 1600 lines in Love's Labour's Lost rhyme. The closest
Nothing competitor is A Midsummer Night's Dream, with 43.4%
rhyming lines.
159899 Henry V 1600 ___
Julius The historical time of King Lear is roughly 800 BC,
15991600 1623 making it the secondearliest setting of any of
Caesar
Shakespeare's plays. Click here to find out the first.
As You Like
15991600 1623
It
Twelfth
15991600 1623
Night
160001 Hamlet 1603
The Merry
160001 Wives of 1602
Windsor
Troilus and
160102 1609
Cressida
All's Well
160203 That Ends 1623
Well
Measure
160405 for 1623
Measure
160405 Othello 1622
160506 King Lear 1608
160506 Macbeth 1623
Antony and
160607 1623
Cleopatra
160708 Coriolanus 1623
Timon of
160708 1623
Athens
160809 Pericles 1609
160910 Cymbeline 1623
The
161011 Winter's 1623
Tale
The
161112 1623
Tempest
161213 Henry VIII 1623
The Two
161213 Noble 1634
Kinsmen*
*The Two Noble Kinsmen is listed as one of
Shakespeare's plays although it must be
noted that all but a few scholars believe it not
to be an original work by Shakespeare. The
majority of the play was probably written by
John Fletcher, who was a prominent actor
and Shakespeare's close friend. Fletcher
succeeded Shakespeare as foremost
dramatist for the King's Men (the successor
to the Chamberlain's Men).
How to cite this article:
Mabillard, Amanda. The Chronology of
Shakespeare's Plays. Shakespeare
Online. 20 Aug. 2000. <
http://www.shakespeare
online.com/keydates/playchron.html >.
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Last updated 01/22/2022 11:42:27
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