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HISTÓRIA DE PORTUGAL

A EPOPEIA DOS DESCOBRIMENTOS


VOLUME 3

Newton de Macedo (Autor)


José Sousa (Editor da presente colecção)
SOBRE A COLECÇÃO “HISTÓRIA DE PORTUGAL”
A colecção “História de Portugal” que aqui apresentamos em formato digital, pretende levar até aos leitores os
momentos essenciais da vida de um país com quase 900 anos de existência. Uma viagem que começa na formação
do Condado Portucalense e inclui momentos-chave como o reinado de Afonso Henriques, a Revolução de 1383-
1385, as Descobertas, o governo do Marquês de Pombal, o fim da Monarquia e consequente triunfo da República, a
ditadura do Estado Novo e a Revolução de 25 de Abril.
Os primeiros 7 volumes desta colecção baseiam-se nos textos escritos por diversos historiadores portugueses
para a monumental “História de Portugal”, popularmente conhecida pela “História de Barcelos”, dirigida por
Damião Peres entre 1928 e a década de 50. Os volumes 8 a 11 serão totalmente dedicados ao século XX e
elaborados por José Sousa, editor desta colecção.

Volumes da Colecção:

Volume 1: A Fundação do Reino


Volume 2: A Afirmação do País
Volume 3: A Epopeia dos Descobrimentos
Volume 4: Da Índia ao Brasil
Volume 5: A Restauração da Independência
Volume 6: O Tempo do Marquês
Volume 7: Dois Irmãos, Um Trono
Volume 8: O Fim da Monarquia
Volume 9: A República: Vitória e Queda
Volume 10: Salazar
Volume 11: Portugal em Democracia
ÍNDICE

PÁGINA DE ROSTO
SOBRE A COLECÇÃO “HISTÓRIA DE PORTUGAL
INTRODUÇÃO AO VOLUME
ÍNDICE DE IMAGENS
ALJUBARROTA
CEUTA
D. DUARTE
D. AFONSO V
D. JOÃO II
NO PRÓXIMO VOLUME
VOLUMES PUBLICADOS
ÍNDICE DE IMAGENS
1. Casamento de D. João I com Filipa de Lencastre
2. D. Filipa de Lencastre
3. Nuno Álvares Pereira
4. João das Regras
5. Juan I de Castela levanta o cerco a Lisboa
6. Batalha de Aljubarrota
7. Loudel de D. João I
8. Mosteiro da Batalha
9. Painéis de São Vicente
10. Infante D. Henrique
11. A Conquista de Ceuta
12. D. Duarte
13. Tríptico do Infante Santo D. Fernando
14. Afonso V
15. A Conquista de Arzila
16. D. João II
17. Diogo Cão
18. Bartolomeu Dias
INTRODUÇÃO AO VOLUME
A morte do rei D. Fernando deixou Portugal com sérios problemas em mãos. Não falamos apenas do
desaparecimento do monarca. A ausência de um filho varão impedia a sucessão directa ao trono, já que o rei e
Leonor Teles apenas geraram uma filha. Para piorar a situação, a única descendente estava casada com o rei de
Castela, há muito desejoso de anexar Portugal.
A Revolução então preparada, liderada pelo Mestre D. João de Avis, teve a vantagem de contar desde cedo com
o apoio do povo e da burguesia. Alimentada por um certo sentimento nacionalista em preparação, a revolta iniciada
com o assassinato do Conde Andeiro, fiel secretário e amante da rainha Leonor Teles, rapidamente se transformou
numa rebelião contra a ameaça castelhana. A luta pela sucessão de D. Fernando - e apesar das legítimas pretensões
ao trono de João de Castela e da princesa D. Beatriz - foi resolvida através do dom das palavras - as de João das
Regras - e mais tarde nos campos de Aljubarrota.
O apoio prestado pela burguesia ao partido do Mestre de Avis valeu-lhe uma ascensão social nunca antes vista.
A velha nobreza viu-se afastada dos lugares de poder, da vida na corte e da liderança econômica do País por uma
"nova geração de gentes". Será esta nova geração, muitos dos quais companheiros de armas do rei e de Nuno
Álvares Pereira, a comandar o projecto da Expansão Ultramarina.
João I não pretendia apenas ser o fundador de nova dinastia real. Perante um país dividido, e num momento em
que a crise europeia afectava fortemente a economia de uma nação pobre, a expansão do território a outras regiões
ainda desconhecidas era bem aceite pela sociedade em geral. Com a difícil conquista de Ceuta, em 1415, abriu-se a
porta do comércio com África e o Mediterrâneo, então controlado pelos Muçulmanos. Nas mãos dos filhos - e em
particular do Infante D. Henrique - deixou o Mestre de Avis a árdua tarefa de enriquecerem Portugal.
Este terceiro volume da "História de Portugal" percorre um período fulcral na definição do futuro do país (1383-
1495). A uma revolução política seguiu-se outra, económica e geográfica, alimentada pela necessidade de
exterminar a fome da população e de encher os depauperados cofres do Estado. Quem sucedeu a D. João decidiu
levar a política de descobertas mais longe, até à pura expansão territorial da nação.
ALJUBARROTA
Naquela gloriosa manhã de 14 de Agosto de 1385, a hoste portuguesa acampara ao norte de Aljubarrota,
dominando a estrada que de Leiria conduz a Lisboa, disposta a opor-se ao avanço do exército de Castela que, tendo
passado a fronteira por Almeida num dos primeiros dias de Julho, chegara à vista de Coimbra em 31 desse mês e a
Leiria em 11 ou 12 de Agosto. Aproximava-se o momento decisivo da crise que a nação vinha atravessando desde a
morte de D. Fernando, na noite de 22 de Outubro de 1383. E a vontade firme e decidida de viver livre que a grei
revelara no decorrer desses dois anos ia atingir a sua mais alta tensão, tão forte e abrasadora como a luz escaldante
dessa manhã de Agosto.
Dois anos iam quase passados desde o dia em que a morte de D. Fernando, sem herdeiro varão e com a única
filha, D. Beatriz, casada com o rei de Castela, viera levantar com angustioso interesse o problema da sucessão. E a
solução que no curso desses dois anos fora sendo preparada ia agora ter o seu desfecho feliz e heróico na planície de
Aljubarrota.
Quando do casamento de sua filha com o rei de Castela, D. Fernando tivera o cuidado de deixar bem expresso
no contrato antenupcial que nunca, nem num nem outro, poderiam ser reis de portugueses. Por sua morte a regência
seria assumida por D. Leonor Teles até ao dia em que um filho ou filha de D. Beatriz completasse 14 anos. A ele é
que caberia de direito a coroa portuguesa.
Morto porém o rei, D. Leonor, passados os primeiros dias de regência em eu parecera querer conquistar, com
acertadas medidas, as simpatias que em vida do marido nunca conseguira disfrutar, em breve desilude com a sua
conduta aqueles que ainda julgavam possível dar ao problema da sucessão uma solução estritamente legal e pacífica.
A sua intimidade com o conde de Ourém, João Peres Andeiro, torna-se mais escandalosa após a vinda do favorito
para Lisboa a assistir às exéquias solenes que a rainha ordenara para o trigésimo dia do falecimento do marido. Os
preparativos bélicos começados em Castela logo após a morte de D. Fernando alvoroçaram os ânimos com a
suspeita de que a rainha regente não deixaria de patrocinar o propósito da filha e do genro de quebrar brutalmente as
cláusulas do contrato antenupcial.
Esse propósito mascarava-o o rei de Castela com o direito que dizia ter à coroa portuguesa, como primo co-
irmão de D. Fernando, por sua mãe D. Joana de Castela, irmã de D. Constança, mãe de D. Fernando. Mas se era por
essa razão que o rei de Castela pretendia fazer valer os seus direitos e não por ser casado com a filha do falecido rei,
outros pretendentes podiam igualmente alegar os seus: os infantes D. Dinis e D. João, bastardos de D. Pedro e de
Inês de Castro, e um outro bastardo de D. Pedro e de Teresa Lourenço, D. João, Mestre de Aviz. Foi para este último
que se voltou o patriotismo alvoroçado da massa popular, escolhendo-o para chefe do movimento insurrecional que
se tornava inevitável.
Primeiro que tudo urgia libertar a rainha da influência nefasta do favorito castelhano e arrancar-lhe a regência
do reino. Nuno Álvares Pereira, que viera também assistir às exéquias, decide com outros convidados a morte do
Conde de Ourém; o povo de Lisboa, pela boca do velho burguês Álvaro Pais, associa-se com entusiasmo à
insurreição em marcha; o Mestre de Aviz, informado do plano, concorda com ele e aceita mesmo a missão de ser o
executor do favorito.
Os acontecimentos vão precipitar-se: a rainha, receosa da presença de seus adversários na corte, resolve afastar
o Mestre de Aviz, confiando-lhe a defesa da fronteira do Alentejo contra um possível ataque de Castela; hesitante,
entre os compromissos tomados e as ordens da rainha, D. João chega a sair de Lisboa, mas ainda em viagem
retrocede com o pretexto de pedir mais forças, por serem insuficientes as que dispunha para defender o largo trato da
fronteira alentejana.
É no decorrer da entrevista que o Mestre tem com a rainha, surpresa pelo seu regresso inesperado, que o favorito
encontra a morte. Chamando-o de parte, sem explicações nem perda de tempo, o Mestre apunhala-o.
Como fogo a rastilho, a morte de Andeiro é o sinal para o desencadear da revolta popular que em breve bate de
encontro nos muros do paço real, movida pela notícia habilmente posta a correr de que a vida do Mestre corria
perigo. Acalmada a fúria popular pelo sorriso calmo do Mestre, que assoma a uma das janelas do paço, em breve ela
ruge de novo ante o estranho silêncio dos sinos da Sé, a destoar do repicar festivo que de colina em colina anunciava
a Lisboa a morte do favorito odiado. O bispo de Lisboa, o castelhano D. Martinho, é precipitado duma das torres da
Sé.
Nada pode deter já a onda revolucionária; enquanto Álvaro Gonçalves e Álvaro Pais, na esperança de poderem
ainda na medida do possível legalizar o acto revolucionário, partem para Alenquer, onde a rainha se refugiara, a
levar-lhe a estranha proposta do seu casamento com o Mestre. O povo de Lisboa, reunido no átrio da igreja de S.
Domingos, aclama o Mestre, como Defensor e Regedor do Reino, depois de calada, se não vencida, a hesitação dos
burgueses mais ricos pela eloquência enérgica do tanoeiro Afonso Penedo.
Tall samdice quall levamtaram dous çapateiros e dous alfaiates, dizia desprezivelmente o conde João Afonso
Telo, irmão da rainha, ao falar do movimento popular de Lisboa. Mas essa revolução de alfaiates e de sapateiros
seria irreprimível, pois era a própria vontade da Nação, actuando pelo esforço das suas camadas mais profundas e
orientada pela inteligência cautelosa do filho de um rei, o Mestre, que a seu lado tinha para o galvanizar, quando
necessário fosse, a audácia mística, o génio militar de Nuno Álvares e a dialéctica esmagadora de João das Regras.
Que importava eu a maior parte da nobreza e do clero se tivesse bandeado com Castela, se no ímpeto popular se
manifestava a ânsia de liberdade da grei levando de abalada todos os obstáculos? "… e era maravilha de ver", diz
Fernão Lopes, "eu tanto esforço dava Deos nelles, e tanta covardice nos outros, que os castellos que os antiguos rreis
per lomgos tempos jazendo sobrelles, com forças darmas, nom podiam tomar, os poboos meudos, mail armados e
sem capitam, com os ventres ao soil, ante de rreio dia os filhavam per força".
A revolta de Lisboa tornara inevitável a invasão castelhana e, com efeito, a 12 de Janeiro o exército inimigo
chegara a Santarém na sua marcha sobre Lisboa. Já nessa altura o rei castelhano trazia aparentemente reforçados os
seus direitos pela renúncia voluntária de D. Leonor à regência. E enquanto a Flor da Altura desaparecia da cena
política, encerrada por ordem do genro no Mosteiro dos Tordesilhas, Lisboa preparava-se para resistir ao cerco
castelhano.
Com a aclamação do mestre, o motim transformara-se em revolução organizada. Ao elemento popular da sua
cidade de Lisboa, dá o mestre existência legal, criando a Casa dos Vinte e Quatro, corporação constituída por dois
representantes de cada uma das doze bandeiras ou grémios em que se agrupavam as principais profissões mecânicas.
Pela voz do juiz do povo, que os Vinte e Quatro de entre si elegiam, o terceiro estado passava a ter uma maior
interferência na vida da cidade.
De Santarém, onde Nuno Álvares pensava ainda em ir atacá-lo, o rei de Castela desce sobre Lisboa. O cerco por
terra e mar é porém pouco demorado, e a 3 de Setembro, dizimado pela peste, o inimigo retira, convencido embora
de que a rendição da cidade ficava apenas adiada para o ano seguinte.
Os factos iam contudo mostrando que a demanda em que o rei de Castela se metera e acerca da qual escrevera à
cidade de Leão - "hay muy pouco de acabar, segundo el estado em que queda" - era mais difícil do que ele
imaginava. A atitude dos portugueses durante o cerco não fora simplesmente defensiva.
Nuno Álvares Pereira passara ao Alentejo e vencera a 9 de Abril, entre Estremoz e Fronteira, a Batalha dos
Atoleiros, na qual, pela intuição precisa da situação e pela rapidez da decisão tomada para a remediar, o seu génio
militar se revelara. Ante a superioridade numérica dos cavaleiros inimigos, a ordem de D. Nuno aos seus é de apear,
e é na ponta das lanças em riste dos seus cavaleiros transformados em peões que a vanguarda inimiga vem cravar-se,
espalhando a confusão entre os seus. No mar a frota portuguesa devastara as costas da Galiza e regressara ao Tejo a
dar combate aos navios castelhanos nele ancorados.
Quando, no ano seguinte, D. João de Castela tenta recomeçar o interrompido cerco a Lisboa, a situação era-lhe
ainda mais desfavorável. O defensor do reino é já então rei, eleito entre os vários pretendentes, pelas Cortes reunidas
em Coimbra nos primeiros dias de Março de 1385. Fora rude a batalha nelas travada por João das Regras. A maior
parte da nobreza e do clero ou sustentava a candidatura de D. Beatriz ou a do filho mais velho de D. Pedro e D. Inês,
o infante D. João. O meio mais hábil de ganhar a batalha não podia ser nem a violência, como propunha Nuno
Álvares, nem a apresentação de chofre da candidatura do Mestre. O que importava era mostrar que, nem moral nem
legalmente, nenhum dos outros candidatos se podia medir com D. João de Avis.
A ilegitimidade das pretensões de D. João de Castela era manifesta; o contrato nupcial era bem claro: o seu grau
de parentesco com D. Fernando, bem afastado, mas acima de tudo impunha-se a impossibilidade moral de ser rei de
Portugal quem tantas infracções contra ele praticara, que se cada uma se pagasse a cem mil marcos não bastaria todo
o reino de Castela para as pagar.
As pretensões da rainha, portuguesa embora, não resistiram também à dialéctica de João das Regras. Para quê
insistir, argumentava o chanceler, sobre a vida escandalosa de D. Leonor, se a sua simples evocação bastava para se
poder afirmar que D. Beatri seria, quando muito, filha incerta, se não ilegítima do rei falecido?
Os filhos de D. Pedro e de D. Inês tinham por si a garantir a sua legitimidade a palavra do pai, que afirmara,
quatro anos depois da sua subida ao trono, ter casado clandestinamente com Inês de Castro. A hora era grave
demais, continuava o chanceler, para aceitar sem análise uma tal afirmação, quando tudo indicava que ela não tinha
consistência.
Como aceitar por boa uma afirmação tão vaga que o próprio que a tinha feito declarara não se lembrar do mês e
do dia em que a cerimónia se realizara, nem do nome das testemunhas e do sacerdote celebrante? "… nom há aqui
tall de vos outros a que hora preguntassem o dia em que casou, posto que nom fosse festa, mas hum dia simpres, por
muytos anos que ouvesse, que lhe nom lembre o dia ou mez em que foi e ainda as horas se acontecer, posto que lhe
os anos de todo esqueçam."
E porque tornara pública D. Pedro a notícia do seu casamento somente quatro anos após a morte do pai? Para
não magoar este? Mas como aceitar uma tal explicação, se o infante ferido pela morte da Colo de Garça não hesitara
em rebelar-se contra o pai? Mas tivesse embora o casamento sido realizado, nem por isso a legitimidade dos infantes
ficava demonstrada, pois só o Papa poderia ter levantado o impedimento canónico resultante da circunstância de D.
Inês ter sido madrinha do primeiro filho de D. Constança, mulher de D. Pedro. E essa dispensa não fora concedida,
exclamava triunfante o grande jurisconsulto, mostrando aos adversários os documentos em que o Papa a recusara.
Bastardos como o outro filho de D. Pedro, como o mestre de Aviz, continuava o legista, faltava-lhes todavia um
título que o último podia apresentar com orgulho, o amor pela grei e pela terra portuguesa que eles não tinham
hesitado em pisar como inimigos, ao lado de Castela.
E as Cortes reunidas aclamam, em 6 de Abril, o mestre como rei. E é como tal que ele parte imediatamente para
o Minho a obrigar pela força a reconhecê-lo as cidades e vilas hesitantes: Viana do Castelo, Braga, Guimarães e
Ponte de Lima são tomadas pela força; Vila Nova de Gaia e Caminha entregam-se voluntariamente.
Mas chega a notícia de que a invasão castelhana estava iminente, talvez pela fronteira do Alentejo e o rei parte
para o Sul; em breve retrocede ao receber a nova, desta vez confirmada, de que o exército castelhano concentrado
em Ciudad Rodrigo se dispunha a entrar pela fronteira da Beira. Em Abrantes, onde a hoste portuguesa se concentra,
o plano de campanha é largamente debatido pelo rei e seu conselho. Contra todos, Nuno Álvares procura impor a
sua opinião, não havendo razões estratégicas ou de prudência que o convençam a voltar costas ao inimigo.
Responder à ofensiva castelhana com a invasão da Andaluzia, obrigando assim o rei inimigo a ir em socorro da sua
própria terra invadida, como D. João e o seu conselho opinavam, seria correr o risco de, aberto o caminho da capital,
perder Lisboa e com ela o reino.
E risco maior ainda, uma tal retirada estratégica poderia ser interpretada como prova de covardia, pior do que
todas as derrotas, numa hora em que acima de tudo importava mostrar o firme propósito de vencer, atacando sem
hesitações nem excessiva prudência. E como apesar das suas razões o rei hesitasse, D. Nuno, numa das suas
decisões impulsivas, passa das palavras à acção, recusa-se a acompanhar o rei no seu projecto de ir "andar a Sevilha
por cortar duas oliveiras podres" e parte com a sua hoste para Tomar, ao encontro do inimigo.
E foi assim que Aljubarrota nasceu do impeto combativo do Santo Condestável, que atrás de si arrasta,
galvanizando os prudentes, levantando os timoratos, toda a hoste portuguesa com o próprio rei. E na madrugada de
14 de Agosto de 1385, toda ela, 8600 infantes e 1400 cavaleiros apenas, acampa ao norte de Aljubarrota e durante
horas em ordem de batalha a vanguarda comandada por Nuno Álvares, a retaguarda pelo rei, a ala direita, a dos
Namorados, por Mem Rodrigues de Vasconcelos, a esquerda por Antão Vasques e João de Montferrat, espera que
do Norte, dos lados de Leiria, o exército castelhano avance.
Ocupavam os portugueses um alto naturalmente fortificado, "uma praça forte entre dois arroios, de dez a doze
braças de altura", como o rei de Castela o descreverá mais tarde em carta à sua cidade de Múrcia. Alto esse que, se
pelo Norte era difícil de atacar, pelo Sul, em ondulações suaves, era de fácil acesso. E essa configuração do terreno
foi causa da surpresa magoada com que os portugueses viram o exército inimigo chegar, contornar a posição a
caminho do Sul, como se tivesse resolvido não interromper sua marcha sobre Lisboa.
Mas em breve essa surpresa se converte em alvoroço da hora decisiva que se aproxima, pois o inimigo, embora
cansado por marchas forçadas, procurara apenas, com o seu avanço para o Sul, contornar a posição para a atacar
pelo lado mais acessível, donde tinham a mais o sol a seu favor. A luta trava-se ardorosa e decisiva para os destinos
da nacionalidade.
No primeiro embate, ante a superioridade numérica do inimigo, a vanguarda portuguesa cede e o estandarte de
Castela chega bem perto da tenda do rei português. Mas é esse próprio estandarte, dentro em pouco caído em mãos
portuguesas, que será o sinal da debandada castelhana, tão cheia de pânico que o rei inimigo só pára em Lisboa para
embarcar para Sevilha, enquanto D. João I, "segundo o costume de tais batalhas", se conserva no campo três dias.
Um vento de epopeia soprara em Aljubarrota e um novo capítulo, colhido na realidade, vinha juntar-se aos das
novelas de cavalaria, da Távola Redonda ou do Santo Graal. D. Nuno, que "usava muito de ouvir e ler livros de
histórias, especialmente usava mais ler a história de Galaaz em que se continha a suma da Távola Redonda", e que a
Galaaz escolhera para modelo da sua vida heróica e casta, Mem Rodrigues de Vasconcelos, que de si próprio
altivamente dizia "valho tanto como Dom Gula", Gonçalo Vasques Coutinho, "tão bom como D. Tristão", João
Fernandes Pacheco, "tão bom como Lançarote", e como estes tantos outros, todos em volta do seu rei tão bom como
"o bom Rei Artur, flor de liz senhor dêles", acabavam de viver uma daquelas horas raras em que a história se torna
epopeia.
Ao anúncio da vitória, Torres Vedras, Alenquer, Sintra, Óbidos e Leiria, que até então tinham resistido ao rei,
entregam-se voluntariamente, e enquanto ele se dirige para o Norte a tomar Chaves e Braga, mais teimosas na sua
resistência, o condestável passa ao Alentejo, transpõe o Guadiana junto a Badajoz e vence, após porfiada luta, a
Batalha de Valverde, último episódio militar de relevo da guerra contra Castela, que se arrastará por muitos anos
ainda, mas com aspectos meramente episódicos.
O tratado de paz definitiva, com o reconhecimento por parte de Castela da independência portuguesa, só será
assinado em 31 de Outubro de 1411 e definitivamente confirmado pelo Tratado de Medina del Campo, a 30 de
Outubro de 1431.
No dia seguinte, a 1 de Novembro, morria, no Convento do Carmo, Frei Nuno de Santa Maria, o que no mundo
fora o grande condestável. Pouco mais de dois anos depois, 14 de Agosto de 1433, baixa ao túmulo D. João I, que
com a ajuda da grei conseguira cimentar definitivamente os destinos da nacionalidade.
Vencida a crise, postas à prova as suas energias, é para novos destinos, para uma fase de crescimento que já não
cabe na terra que fora conquistada palmo a palmo, que a nação se vai agora encaminhar, servida por "outro mundo
novo e nova geração de gente" que ao lado do mestre viera substituir a velha nobreza que o não tinha acompanhado.
CEUTA
A 25 de Julho de 1415 saía da barra de Lisboa luzida armada de mais de duzentos navios, levando a bordo para
desconhecido destino 19 mil homens de armas e 1700 mercantes. Armada bem digna do império comercial e
marítimo que Lisboa já então era. "Lisboa, diz Fernão Lopes, é grande cidade de muitas e desvairadas gentes...
Havia outrossim mais em Lisboa estantes de muitas terras, não em uma só casa mas muitas casas de uma nação,
assim como genoveses e prazentins e lombardos e catalães de Aragão e de Maiorca e de Milão, que chamavam
milanezes, e corcins e biscainhos; e assim doutras nações a que os reis davam privilégios e liberdades... E estes
faziam vir e enviavam do reino grandes e grossas mercadorias, em guisa que, afora as outras cousas de que nessa
cidade abastadamente carregar podiam, somente de vinhos foi um ano achado que se carregaram doze mil tonéis,
afora os que levaram depois os navios na segunda carregação de Março. E portanto vinham de desvairadas partes
muitos navios a ela, em guisa que, com aqueles que vinham de fora e com os que no reino haviam, jaziam muitas
vezes ante a cidade 400 a 500 navios de carregação; e estavam à carga no rio de Sacavém e à ponta do Montijo da
parte do Ribatejo, 60 a 70 em cada lugar, carregando de sal e de vinhos; e por a grande espessura de muitos navios
que assim jaziam ante a cidade, como dizemos, iam antes as barcas de Almada aportar a Santos, que é um grande
espaço da cidade, não podendo marear entre eles".
A Lisboa de então anunciava já, à distância de um século, a Lisboa manuelina da Ribeira das Naus e da Casa da
Índia.
Seguia na armada o rei acompanhado por três dos filhos já então homens, que tivera do seu casamento com D.
Filipa de Lencastre, no Porto, em 2 de Fevereiro de 1387: D. Duarte, com 24 anos, D. Pedro, com 23,e D. Henrique,
com 21. Iam também o seu filho bastardo D. Afonso, conde de Barcelos, que tendo casado em 1401 com D. Brites
Pereira, filha de Nuno Álvares Pereira, será o tronco da casa de Bragança. Ficavam no reino apenas os infantes ainda
meninos: D. Isabel, a futura esposa de Filipe de Borgonha, D. João e D. Fernando, respetivamente com 15 e 13 anos
de idade.
Com o rei e com os infantes seguia a fina-flor da nova nobreza que viera substituir a velha nobreza, expatriada
ou desaparecida, que se pusera do lado de Castela: o condestável, o almirante Mice Lançarote, o marechal Gonçalo
Vaz Coutinho, o alferes do reino João Gomes da Silva, o mestre de Cristo D. Lopo Dias de Sousa, o prior do
Hospital Álvaro Gomes Camelo, e muitos outros, em cujos rostos o luto nacional recente não conseguia apagar de
todo a expressão de mal contido júbilo pela aventura que iam correr.
Poucos dias antes, a 19 de Julho, morrera em Odivelas D. Filipa de Lencastre, que na hora derradeira fizera
entregar aos infantes das espadas que propositadamente encomendara para com elas serem armados cavaleiros.
A armada chega a Lagos a 27 e só então o rei quebra o sigilo sobre o destino da expedição, mandando anunciar
na igreja, pelo capelão real, Frei João Xira, o seu objetivo - a tomada de Ceuta, a cidade fora em tempos a mais bela
e povoada da Mauritânia e que ainda guardava, à data da expedição, uma importância militar considerável, em
virtude da sua posição estratégica na passagem do Estreito de Gibraltar.
Apesar da pouca distância que separa Lagos de Ceuta, ainda a 19 de Agosto o ataque não tinha sido iniciado,
pois a forte corrente do estreito, o nevoeiro e a tempestade tinham desviado as naus do seu destino e só os pequenos
navios surgem a horas diante da cidade cobiçada. Há quem proponha que se desista do empreendimento, enquanto
outros lembram que se vá tomar Gibraltar, mas o rei põe cobro ás hesitações e ao desânimo que começava a lavrar,
ordenando o ataque para o dia seguinte, 20, e apresentando o plano: o grosso da armada com o rei ancoraria diante
da cidade, para dar ao inimigo a impressão de que o ataque se daria por ali. Ao mesmo tempo o infante D. Henrique,
desembarcando com a sua gente num dos lados da cidade, colheria de surpresa os seus defensores.
E de facto, ante o inesperado ataque dos 150 homens que D. Henrique e D. Duarte desembarcaram, os poucos
defensores da praia debandam, procurando pela Porta da Alminha acolher-se à cidade. Mas por ela entram de roldão
também os soldados portugueses, guiados por D. Henrique, e após cinco horas de luta contínua, sob o sol escaldante
de Agosto, a guarnição do castelo abandona-o e a cidade cai em poder dos portugueses.
A 25 de Agosto, sagrada já em igreja a mesquita da cidade, o rei arma nela cavaleiros os seus filhos, que por sua
vez armam outros fidalgos. Reunido, dias depois, o conselho, para decidir se a cidade devia ou não ser conservada,
D. João I decide que se conserve, pois os reis seus sucessores poderão desejar fazer novas conquistas, e ainda porque
os fidalgos já não precisarão de ir a França ou Inglaterra usar o seu ardor combativo, pois ali tinham vasto campo
para tal.
E tendo deixado como governador da cidade D. Pedro de Menezes, que a governará por 22 anos, o rei regressa
ao reino em 2 de Setembro, prometendo que voltaria no ano seguinte para continuar a conquista. Não voltou, mas
em 1419 uma expedição comandada por D. Henrique e D. João tem de partir em socorro da cidade, cercada, por
terra e por mar, pelo rei de Granada. Mas a cidade resiste a esse combate, como já resistira a um primeiro cerco no
ano anterior.
Quando o vedor da Fazenda, João Afonso de Azambuja, pela primeira vez lhe apresentara o alvitre (resultado)
do ataque a Ceuta, D. João I repelira-o e nessa atitude de recusa se mantém quando os infantes, desejosos de novo
campo para o seu ardor combativo, patrocinam o alvitre: "Depois que as pazes foram firmadas (com Castela)
entenderam elles que nom ficava hi cousa certa em que elles podessem seer cavaleiros pela guisa que o elles
desejavam". Mas se o rei em face do pedido dos infantes "começou de se rir contra eles, mostrando que tinha em
jogo suas palavras, como antes fizera a João Afonso", a sua inteligência cautelosa mas arguta acabou por reconhecer
a importância do alvitre, e pesados os prós e contras por o perfilhar com entusiasmo.
As outras nações peninsulares, embora com o mouro ainda dentro de casa, já tinham iniciado o seu movimento
de expansão marítima. Castela, apenas firmada a paz com Portugal, fizera tre´guas com o rei de Granada e tomara
posse das Canárias, onde os portugueses já tinham chegado no reinado de D. Afonso IV: E nunca mais essas ilhas
nos voltaram às mãos, apesar da tentativa de 1424 e das quatro expedições que mais tarde, frustradas as negociações
diplomáticas, o infante D. Henrique contra ela envia, entre 1450 e 1454.
Não havia pois tempo a perder, se não desejávamos ficar para trás no movimento de expansão, já iniciado pelas
outras nações ibéricas.
E o que sucedera com as Canárias podia repetir-se em todo o Noroeste de África. Já em 1400 uma armada do rei
de Castela atacara Tetuão e limpara momentaneamente o estreito dos piratas que o infestavam.
Todo um complexo de razões de ordem religiosa, política, militar, social e económica acabou por fazer ver ao
rei o interesse vital da expedição, como primeiro passo a dar num caminho que nos levará à descoberta do globo.
Razão de ordem religiosa, pois a conquista de Ceuta não seria mais do que a continuação da cruzada contra os infiéis
no Algarve de além-mar. E que por essa razão pesou no ânimo do rei mostram-no as palavras que dissera a seus
conselheiros: “Se não achar que é serviço de Deus não entendo de o fazer, pois somente aquela cousa é boa e
honesta na qual Deus inteiramente é servido”.
Como razão de ordem político-social, impunha-se o interesse que o rei tinha em dar vazão ao ardor combativo
dos infantes e de todos aqueles que dentro do reino como eles pensavam, ardor que, reprimido, poderia degenerar
em guerra civil ou em nova luta contra Castela. Ao dar o seu consentimento, o rei dissera, refere o cronista, a D.
Henrique: “Se os fidalgos e outros bons homens deste reino não acharem em que exercitar sua força é necessário que
de duas cousas façam uma: ou travarão arruidos e contendas entre si, como se viu que fizeram os romanos depois
que tiveram suas guerras acabadas, ou farão tais danos aos de Castela que se aze de se as pazes quebrarem, a qual
cousa eu não queria por nenhuma guisa”.
Sob o ponto de vista militar e em íntima relação com o factor económico, a tomada de Ceuta impunha-se pela
necessidade de arrancar aos mouros o domínio do estreito. Senhores de Ceuta, Algeciras e Gibraltar, os infiéis
tinham em seu poder a chave das comunicações marítimas entre o Mediterrâneo e o Atlântico e a cada passo as galés
venezianas e genovesas que transportavam para a Flandres os produtos do Oriente eram obrigadas ao pagamento de
pesados tributos de passagem, quando não aprisionadas pelos piratas que nesses e noutros pontos do Magrebe se
acoitavam.
A todas estas razões juntava-se como razão mais forte ainda a certeza de que Ceuta era a chave dum novo
Eldorado, primeiro passo a dar no caminho duma longínqua e cobiçada região aurífera. Com efeito, quase todo o
ouro que durante a Idade Média circulara em Portugal era de origem africana, como o pôs em relevo o historiador
Jaime Cortesão, a propósito dum passo do cronista Zurara: “Sendo naquele tempo o valor da coroa velha do cunho
de França 100 réis e noventa, e as valedias, que era moeda mourisca, oitenta e noventa, e comunalmente esta era a
moeda de ouro que se mais corria nestes reinos; e isto era porquanto quási em todolos tempos dos reis passados,
sempre os mouros de alem trautaram em estes reinos de mercadorias, comprando pela maior parte todolos anos a
frutia do Algarve, a qual não pagavam senão em oiro”.
E não era às cegas que os portugueses iam partir em busca da região africana do ouro. Em atlas dos fins do
século XIV, há já referências à região da Guiné e à abundância do seu ouro, bem como a tentativas já feitas para a
ela chegar (viagem de Ferrer em 1346).
Mas além do ouro, metal precioso, um outro ouro, não menos precioso para a época - as especiarias -, estava nas
mãos dos mouros. Entre o Oriente longínquo que as viagens de Marco Polo e outros já tinham desvendado à
curiosidade intensa e maravilhada do Ocidente europeu e o mundo cristão, interpunha-se a barreira mediterrânica
das cidades muçulmanas. E se as cidades italianas, como Génova e Veneza, pela sua posição geográfica, deviam a
sua prosperidade ao comércio das especiarias por intermédio dos mercadores mouriscos, a existência do
intermediário tornava precária essa prosperidade.
O ideal seria poder prescindir dele e para isso só duas soluções se apresentavam: ou derrubar em cruzada
gigantesca, em que aos motivos religiosos se juntariam os económicos, a barreira mourisca, ou abrir um novo
caminho até ao Oriente. Embora preconizada por muitos, a cruzada nunca foi levada a cabo.
Estava reservada a Portugal a missão histórica, de sentido universal, de efectivar a segunda solução, o
descobrimento dum novo caminho marítimo para o Oriente. Abraço heróico dado por um pequeno povo de dois
milhóes de almas em torno do globo. E o destino quis também que na hora própria, na mente do infante D.
Henrique, se fosse a pouco e pouco formando o sonho grande de dar ao mundo novos mundos, e que a sua vontade
enérgica e pertinaz fosse servir durante longos anos esse sonho, transformando-o em realidade.
Na sua vila da Raposeira, perto da sua base naval de Lagos e mais tarde, a partir de 1443, na vila que manda
construir “no outro cabo que antes do cabo de Sagres está aos que veem de ponente para levante”, o infante, rodeado
duma plêiade de sábios e de viajantes “por haver de tudo manifesta certidão”, vai realizando o seu sonho tão grande
que nele gastará a sua vida e as afeições mais queridas.
O fim imediato da sua actividade é a exploração da costa africana em demanda da região do ouro, fim imediato
que com o tempo se transforma em meio para a realização dum mais vasto plano: o périplo da costa africana em
busca da Índia. E simultaneamente viagens de sondagem para o largo do Atlântico irão erguendo balizas para uma
outra estrada, que levará também à Índia pelo Ocidente. A sua actividade nada despreza que possa servir ao seu
sonho.
Em 1418, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira partem em viagem de reconhecimento à ilha de Porto
Santo, e no ano seguinte à da Madeira, ilhas cuja colonização começa logo anos depois. Entre 1427 e 1431, Gonçalo
Velho Cabral chega às ilhas dos Açores já conhecidas desde o século anterior, e em 1445 começa a sua colonização.
Ao mesmo tempo os varinéis e as barcas do Infante partem anualmente em viagem de exploração ao longo da
costa africana. Em 1434, Gil Eanes dobra o Cabo Bojador e no ano seguinte, em companhia de Afonso Gonçalves
Baldaia, avança 50 léguas para o Sul. Em 1436, Baldaia chega ao rio do Ouro. Interrompidas as viagens de
exploração até 1440 pelo desastre de Tânger, de novo recomeçam nesse ano e são agora as caravelas guiadas por
uma ciência náutica, que já lhes permitia a determinação da latitude pela observação da estrela polar, não de simples
cabotagem, vão do reino ao limite sempre a recuar da costa explorada.
Em 1441, Nuno Tristão chega ao Cabo Branco e Antão Gonçalves traz ao Infante o primeiro carregamento de
escravos. Em 1445, atingida a Senegâmbia, Dinis Dias dobra o Cabo Verde para além do qual no ano seguinte, em
viagem directa, Álvaro Fernandes anda mais 110 léguas.
Para facilitar o comércio com os mouros azenegues e guinéus ergue-se a partir de 1448 a feitoria-castelo de
Arguim.
O projecto da viagem à Índia fora no entanto tomando corpo na alma do Infante. Em 1455, o papa Nicolau V
concede-lhe o monopólio das suas explorações, e o direito de “navegar até às Índias”, e em Março de 1456 outra
bula concede à Ordem de Cristo a espiritualidade de todas as descobertas “desde os cabos Bojador e de Não até por
toda a Guiné e para além daquela praia meridional até aos índios”.
Quando o Infante morre em 1460, as caravelas tinham já chegado, para além do Cabo das Palmas, até à entrada
do Golfo da Guiné. E como as bulas pontifícias o provam, a demanda da Índia pelo périplo da África era já um
propósito consciente do Navegador. Para ocidente, a sondagem do Atlântico chegara com Diogo Gomes perto da
Terra Nova (1452), e em 1460 o mesmo navegador e António da Nova tinham chegado à ilha de Santiago, no
arquipélago de Cabo Verde.
Os proveitos económicos da obra do Infante fazem sentir-se ainda em sua vida, e continuarão a acentuar-se nos
reinados seguintes. A Casa da Guiné, estabelecida em Lagos, torna-se o centro do tráfego africano e nela entram, a
troco de panos azuis e vermelhos, de corais, mantas do Alentejo, etc., os escravos, o ouro, a malagueta, a pimenta e
outros produtos tropicais.
Todavia, apesar dos largos rendimentos de que dispunha como administrador das terras da Ordem de Cristo,
como mestre de Avis de 1448 a 1453, como senhor de todo o comércio da Guiné, pois a coroa renuncia em seu favor
ao quinto das presas e à dízima de tudo o que os navios trouxessem de além do cabo Bojador, o Infante, ao morrer,
estava de tal maneira arruinado com os gastos das expedições que, ainda em tempo de D. Manuel este lamentava em
testamento que tais dívidas não tivessem ainda sido pagas. E bem merecia que o tivessem sido, pois o comércio da
Guiné que ele inicia e que em sua vida não equilibra ainda as despesas e atingirá tais proporções, que João de Barros
poderá escrever mais tarde que as receitas com o comércio da África excedem o total de todas as outras rendas da
Coroa, avaliando em 170 mil dobras o ouro recebido da Guiné.
Ainda antes da descoberta do novo caminho marítimo para a Índia, começávamos já a renovar as condições
económicas do mundo, vulgarizando uma especiaria que até então fora monopólio das cidades italianas: o açúcar,
que o Infante introduz na Madeira. Se no início dá apenas para o consumo nacional, começa, em 1472, a ser
exportado para a Flandres, andando empregadas nesse tráfego, em 1480, vinte naus e quarenta a cinquenta
embarcações menores.
D. João II, com a fundação da nova feitoria-fortaleza de S. Jorge da Mina, em 1481, com a notícia habilmente
posta a correr de que só as caravelas de cuja construção tínhamos o segredo, eram navios capazes de fazer a
navegação daqueles mares. E com as severas penalidades contra os navios estrangeiros que nelas se aventuravam,
consegue manter para o reino o monopólio de todo o comércio de África.
Nos reinados seguintes, porém, a concorrência estrangeira, a baixa dos preços e a escassez de certos produtos
vão arruinando esse comércio. É o mesmo João de Barros que nos fala da sua grande prosperidade no reinado de D.
Manuel, e quem nos diz também que, no reinado seguinte, anos houve em que as despesas excediam as receitas,
chegando no reinado de D. Sebastião a considerar-se conveniente o abandono desse comércio.
Mas não antecipemos… Por enquanto a fortuna do reino vai em crescendo, numa abalada heróica para o ouro da
Índia.
D. DUARTE
Quando, a 15 de Agosto de 1433, D. Duarte, então com 42 anos de idade, se preparava para solenemente tomar
conta do trono, mestre Guedelha, seu físico e astrólogo, foi de opinião que a cerimónia devia ser adiada, pois aquele
dia e hora eram “de mui triste constelação” e o planeta Júpiter estava “retrógrado e o sol em decaimento”.
No ânimo do rei de “humor merencório”, hesitante e contemplativo, mais homem de gabinete do que de acção,
mais amigo de trabalhar a prosa portuguesa em obras que a enriqueceram com os modelos perfeitos do Leal
Conselheiro e da Arte de bem Cavalgar toda a Sela, do que de actos firmes de vontade ante as dificuldades do
governo, nõ deve ter deixado de causar impressão o mau presságio do astrólogo, que o seu curto reinado de cinco
anos veio confirmar.
O desastre de Tânger veio eclipsar momentaneamente a estrela que nos conduzira a Ceuta e que continuava
guiando as caravelas no seu avanço para o Sul. E a hora trágica que a nação então viveu, tendo de escolher entre a
razão do Estado e os impulsos da piedade, tanto como a peste que o vitimou, deve ter contribuído para a morte do
rei, acabrunhado pela “desigual tristeza e contínua paixão que pela desaventura do succedimento do cêrco de Tânger
tomou”.
Quando D. Duarte sobe ao trono, o mais moço dos infantes, D. Fernando, tinha então 34 anos, mas apesar de
homem pela idade, a sua compleição franzina e saúde delicada, aliadas a qualidades morais de ingenuidade,
humildade, espírito caritativo a comprazer-se na divisa que para si escolhera - “Le bien me plait” -, contribuíram
para que os irmãos de mais rija têmpera o considerassem como uma criança.
E criança ele se sentia, ao comparar a sua vida de heroísmo humilde, de oração, jejum e esmolas, com o
heroísmo activo dos irmãos, e desse confronto deve ter nascido o desejo de como eles mostrar que de mais era
capaz: “Eu sou mancebo, dissera êle um dia ao pai, que não fiz ainda por mim cousa por que ouse chamar-me ou
filho de tal Padre ou irmão de tais irmãos: eu, senhor, vos peço por mercê que queirais me dar vossa bençam e
licença para me ir fora destes Reinos, onde Deus e minha ventura me guiarem”.
E a sua ventura levou-o a Tânger, a ser sacrificado em holocausto aos interesses da grei que o santificou pelo
seu sofrimento, rendendo-lhe culto, na Batalha, onde os seus ossos acabam por repousar ao lado dos do pai e dos
irmãos, na Igreja de Nossa Senhora de Oliveira em Guimarães, e em Lisboa até ao último quartel do século XVII.
Ante o pedido do irmão, D. Duarte, sempre hesitante, aconselha-se com D. Henrique que, abrasado no fogo do
seu sonho, aproveita a oportunidade para lançar a ideia duma nova expedição à África, que ele e D. Fernando
chefiariam com os seus cavaleiros de Cristo e de Avis.
D. Fernando tinha razão no seu desejo, pois não era justo que “filho de tal pai e neto de tais avós, assim
desperdiçasse a vida sem fazer alguma cousa de louvor, por que mereça e haja honra”. Como D. João I, aquando da
primeira sugestão para a conquista de Ceuta, D. Duarte nega o seu consentimento, alegando o esgotamento do erário
régio e o pouco entusiasmo que a ideia da expedição encontraria no reino.
Era bem precária a situação financeira que o pai lhe legara. A necessidade de dinheiro para a guerra contra
Castela tinha obrigado D. João I a sucessivas quebras de moeda, tão repetidas que, por cada libra de 1386, da “boa
moeda antiga” se pagavam em 1389 cinco das de então, em 1419 cinquenta e assim sucessivamente até ao ponto de,
por lei de 1422, se pagar quinhentas vezes a mais a soma do que em 1386 era devida aos credores; para os tribunais
a mesma lei estabelecia o multiplicador 700.
Mas fora a guerra contra Castela e a expedição a Ceuta, a propósito da qual ainda em 1441 os representantes do
Porto reclamavam o pagamento das armas, abastecimentos e dinheiro cedido, uma outra circunstância contribuíra
para exaurir o tesouro régio: fora duma tão larga prodigalidade o mestre de Avis para com aqueles que o tinham
ajudado a conquistar o trono, tinham sido tão cerceados os rendimentos da coroa, que o próprio rei pródigo
procurara remediar a situação, pondo em prática, embora sem a promulgar, uma medida que logo no primeiro ano do
seu reinado D. Duarte converte em lei.
A 8 de Abril de 1434 é promulgada a Lei Mental, proibindo a alienação dos bens de raiz e dos direitos da Coroa
que tivessem sido doados perpetuamente, sendo admitidos à sucessão desses bens apenas o filho varão primogénito
e legítimo, com exclusão das mulheres ou de quaisquer outros parentes, lei por que se regulará o regime de
morgadio até à sua extinção, quatro séculos depois, em 1832.
À má situação do erário régio vinha juntar-se o péssimo acolhimento que a ideia da expedição encontraria no
reino e na própria corte. Com efeito, quando já meio decidido pela intervenção de sua mulher, a rainha D. Leonor,
em cujo ânimo D. Henrique conseguira insinuar-se começando a “servi-la mais continuadamente e com mostranças
de mor amor do que antes fazia” e sensibilizando o seu coração de mãe ao fazer herdeiro de todos os seus bens e dos
do irmão D. Fernando o pequeno infante D. Fernando, filho segundo do rei, D. Duarte se decide a fazer um pedido
aos povos para as despesas da expedição, o acolhimento que as cortes de Évora (1436) fazem à proposta não deve
ter deixado dúvidas no seu espírito.
Para assentar numa resolução definitiva e para sossegar os escrúpulos da sua consciência hesitante entre
solicitações contrárias, o rei reúne em Leiria (Agosto de 1436) uma assembleia dos grandes do reino. É nela que pela
voz leal e franca co infante D. Pedro os inconvenientes da expedição são postos em relevo: ser-lhe-ia, a ele infante,
mais proveitoso e prudente não omitir opinião, pois o rei em seu alto juízo já decidira a expedição. Mas a lealdade
que deve a seu rei e irmão obrigam-no a falar “desenganadamente”.
O estado do tesouro não permitia a expedição e não era justo alterar o valor da moeda, nem pedir ao povo
auxílio, tratando-se de guerra tão “voluntária”: ainda há pouco as cortes com os seus murmúrios e hesitações o
tinham mostrado.
A guerra contra os infiéis é legítima quando forçada ou quando dela não resultou males maiores; mas Tânger é
cidade grande que atacada podia contar com o auxílio de toda a moirama desde a Berberia até Meca, em tal guisa
“que os nossos cercadores se achariam cercados”; estivesse o inimigo dentro de casa, de tal modo que para o atacar
não houvesse necessidade de atravessar o mar que “não tem certidão nem pago”, ainda a expedição seria de
aconselhar. Mas assim ir tão longe, partir para onde não se poderia contar com o auxílio imediato do reino, com “o
senhorio dos campos”, era correr uma aventura perigosa.
E fosse embora a fortuna tão propícia que além de Tânger se tomassem ainda Argila e Alcácer, como poderia
mantê-las e povoá-las com um reino “tão despovoado e tão minguado de gente?”. Correr a aventura era perder “boa
capa por mais capelo, pois era certo perder-se Portugal e não se ganhar a África”.
Bom profeta de tragédias era o infante das Sete-Partidas, o herói desgraçado da tragédia de Alfarrobeira! Em
Tânger os nossos cercadores tornar-se-ão cercados e vencidos e o reino todo no seu esforço titânico para manter com
dois milhões de habitantes apenas todo o senhorio dos mares acabará por cair na apagada e vil tristeza de que fala o
poeta.
As palavras de D. Pedro, menos diplomata que o infante D. João, que se limita conciliatoriamente a expor os
prós e contras da expedição, pois “siso e cavalaria não convém em tudo”, embora apoiadas por outro infante, o
conde de Barcelos, não impedem que a expedição seja definitivamente decidida.
Mais do que a influência de D. Leonor que, nos seus ciúmes de mulher e de rainha, bem desejaria ver os infantes
longe da corte, uma forte razão de Estado deve ter decidido o rei. Renunciar a Tânger era renunciar à política de
expansão iniciada com Ceuta, e que as caravelas sem interrupção iam continuando, tendo já dobrado o Cabo Bojador
e descoberto novos arquipélagos.
Por outro lado, a rivalidade entre Portugal e Castela acerca dos direitos sobre as Canárias, Marrocos e Guiné
chegara por essa altura a um momento crítico: um ano antes, em 1424, D. Duarte conseguira por bula pontifícia ver
reconhecidos os seus direitos à posse das Canárias, mas Castela protestara e conseguira do papa uma nova bula na
qual D. Duarte e os portugueses eram censurados por lhe terem pedido aquilo a que não tinham direito.
O rei de Castela alegara os seus direitos não só sobre as Canárias, mas também sobre a Tingitânia - Tânger e
seus territórios - como descendente dos antigos reis godos; urgia pois, antes da bula surtir os seus efeitos, pôr Roma
e Castela ante um facto consumado.
Após um ano de preparativos, sai a armada contra Tânger em Agosto de 1437, sob o comando de D. Henrique e
D. Fernando, levando como condestável o conde de Arraiolos, filho do conde de Barcelos: do Porto tinham já
partido directamente para Ceuta, base das operações, as tropas que D. Pedro, apesar da opinião que expendera na
reunião de Leiria, organizara nas comarcas do Norte.
Na hora da partida, o rei, sempre receoso, entrega a D. Henrique o plano pormenorizado do ataque a efectuar;
três únicos assaltos seriam feitos à cidade, e, no caso de insucesso, a expedição recolheria a Ceuta, onde o rei no ano
seguinte se lhe juntaria com reforços.
Logo em Ceuta surgem os contratempos. Dos 14 mil homens necessários com que se julgava poder contar,
apenas se apuram uns seis mil. Houve logo quem propusesse que, dada a escassez da gente, se adiasse a empresa até
prevenir o rei. Mas D. Henrique decide marchar sobre Tânger, sendo forçado contudo a fazer o longo percurso de
110 km por Tetuão e o vale de Augeras, pois o outro caminho de 60 km por Alcácer-Ceguer tornava-o intransitável
o ataque das tribos aguerridas.
D. Fernando, cuja saúde delicada não lhe permitia acompanhar o irmão por terra, seguira na frota para Tânger.
Estabelecido o acampamento num outeiro sobranceiro à alcáçova da cidade, o primeiro ataque, repelido, dá-se a
20 de Agosto; já sete dias se tinham perdido em trabalhos de fortificação do acampamento, desde a chegada em
frente da cobiçada cidade, a 13 desse mês.
Os dias vão passando à espera de reforços que não chegam para o segundo assalto, que só é dado e inutilmente
também em 5 de Outubro. A situação era já tão crítica que, quando do terceiro assalto, dias depois, a 9, os
assaltantes se encontravam já na situação de assaltados, pois os reis de Fez e de Marrocos, vindos em socorro da
praça sitiada, apertam o acampamento em círculo de ferro, impedindo a ligação entre ele e a praia em frente da qual
a armada pairava.
Perdida a artilharia, com mantimentos apenas para dois dias, os portugueses em vigília contínua, alimentados já
apenas pela carne mal assada dos cavalos, vão repelindo com a energia do desespero os sucessivos ataques dos
mouros, até que a 16 de Outubro se concluem as negociações com o inimigo.
Os portugueses embarcariam apenas com as roupas que traziam sobre seus cansados corpos e em troca Ceuta
seria entregue com todos os cativos que nela se encontravam. Uma paz de cem anos seria firmada entre Portugal e
Marrocos e como penhor da entrega de Ceuta ficaria em poder do governador de Tânger um dos infantes. D.
Fernando, num rebate de consciência, pois o desastre fora em grande parte fruto da sua imprevidência, oferece-se
para refém. Mas o conselho opõe-se e é o irmão D. Fernando quem irá subir o calvário dum tão demorado e
doloroso cativeiro.
Nos 37 dias que o cerco durou, estiveram os portugueses 25 como sitiantes, 12 como sitiados. De nada serve
para evitar o desastre a expedição de socorro que sob o comando do infante D. João chegara a partir do Algarve: os
ventos, tão contrários como a fortuna dos sitiados, afastam a armada de Tânger e quase a deitam a perder.
Quando chega a Lisboa a notícia do desastre e com ela os primeiros vencidos sob o comando do conde de
Arraiolos, pois D. Henrique não voltará à corte até à morte de seu irmão, o rei, o primeiro pensamento desde foi o de
restituir imediatamente Ceuta.
Mas o assunto era grave de mais para poder ser resolvido apenas com os impulsos do seu coração. Por isso o rei
convocou cortes para Leiria, onde em Janeiro de 1438, em seu nome, o doutor João Dosem, depois de preparar o
ânimo da assembleia com a leitura duns apontamentos em que o infante cativo pedia que o libertassem em troca de
Ceuta, pede a todos que dêem o seu parecer por escrito.
Porém, as opiniões contraditórias que se manifestam não fornecem uma indicação decisiva ao ânimo irresoluto
do rei. Como ele, os infantes D. Pedro e D. João, apoiados pela grande maioria dos procuradores das cidades e vilas,
preconizam a entrega imediata de Ceuta.
Mas a maior parte da nobreza e do clero perfilha a opinião do arcebispo de Braga, que entende que o rei não
pode entregar Ceuta, cidade cristã “sem expressa outorga e autoridade do pontífice”.
Que se vá protelando diplomaticamente a resolução do assunto, alvitram outros, lembrando que talvez fosse
possível, sem perder Ceuta, resgatar o infante com dinheiro ou com cativos.
Nem que o infante fosse o príncipe herdeiro, Ceuta deveria ser entregue, proclamava o conde de Arraiolos,
traduzindo o pensamento de D. Henrique. Implacavelmente, o condestável da malograda expedição rebatia os
argumentos com que o pobre infante cativo, na ânsia de liberdade, apoucava as vantagens da posse de Ceuta.
Os escrúpulos levantados pela palavra dada não tinham também razão de ser, pois as negociações concluídas
com os mouros careciam de assinatura real. O que urgia era preparar uma expedição para, pela força, libertar o
infante sem perder Ceuta. E as Cortes, sobrepondo a fria razão de Estado aos impulsos das piedade, perfilharam este
último parecer.
O rei, perplexo, apela para D. Henrique que não assistira às cortes, mas encontra também a razão de Estado a
fazer calar a sua ternura de irmão. Ceuta não devia ser entregue, fosse ele embora quem tivesse ficado prisioneiro
como desejara e propusera a seu conselho.
Que se oferecessem cativos e dinheiro para o resgate e, se este expediente falhasse, uma nova expedição de 24
mil homens seria suficiente para vencer. O rei “mui suspenso” nada decide. Devia ser de mágoa bem carregada o
ambiente da corte do rei merencóreo a partir desse momento. Implacável como o dilema que à sua consciência de rei
e de irmão se punha, era a peste que então grassava no reino, acossando a corte de terra em terra.
Os dias passam nesse ambiente de tristeza e de irresolução até que a 9 de Setembro de 1438, no Convento de
Cristo, em Tomar, o rei falece, legando como desejo derradeiro que libertem o irmão, restituindo embora Ceuta.
No dia da sua morte o sol eclipsa-se, mau presságio a pôr termo a um reinado que sob um mau signo principiara
também, segundo o parecer de mestre Guedelha.
Mau presságio sobretudo para o pobre Fernando, que no seu cativeiro continua a ser perseguido por má estrela,
pois, apesar da rainha regente, de acordo com o infante D. Pedro, ter finalmente decidido cumprir a última vontade
do marido, a fortuna é-lhe sempre contrária.
O navio em que, em 1441, chega a sair para Ceuta a tratar da restituição da cidade, D. Fernando de Castro,
governador da casa do infante D. Henrique, é atacado por um corsário genovês, morrendo o embaixador no combate.
Seu filho Álvaro prossegue viagem para Ceuta, mas a desconfiança dos mouros propondo que se entregue primeiro
Ceuta, faz mais uma vez adiar a resolução do assunto.
Dois anos depois, a 5 de Julho de 1443, morria em Fez o pobre infante. Os seus ossos só voltaram ao reino a
repousar na Batalha, em 1471, após a conquista de Arzila.
E que longo e penoso martírio o do infante cativo! Poucos dias permaneceu em Tânger. Acompanhado de
alguns servidores, entre eles mestre João, seu físico, e João Álvares, seu futuro cronista, D. Fernando marchara para
Arzila por entre as pedras e o cuspo da população raivosa. Sete meses depois nova transferência para Fez, numa
jornada de seis dias, sobre uma alimária desferrada, a que servia de freio uma corda grossa de esparto.
Quando, sob o sol escaldante da terra africana, vencido pelo cansaço e pela sede, pois a própria água lhe
regateavam, seu pobre corpo franzino procurava um pouco de repouso. Era no chão nu que ele podia por momentos
esquecer o seu calvário, pois até uma simples esteira lhe recusavam.
Em Fez as violências redobram, pois os mouros iam perdendo a esperança de que Ceuta lhes fosse restituída.
Carregado de ferros, obrigam-no, de vassoura na mão, a varrer as estrebarias e a tratar das bestas. Isolam-no dos
companheiros, dão-lhe como alimento diário apenas água e dois pães, e por cama duas peles de carneiro onde ele se
deitava, coberto seu magro corpo com os restos duma alcatifa velha, a cabeça a repousar sobre um molho de feno
seco.
Os últimos quinze meses da sua martirizada vida passa-os numa masmorra do palácio real, sem luz e tão estreita
que para dormir se tinha de encolher em cima de um poial.
Em Junho de 1443 a desinteria põe cobro a tão longo martírio; mas nem após a morte as injúrias cessam. Abrem
o seu pobre corpo, enchem-no de sal, murta e louro seco, para que melhor se conserve, e deixam-no suspenso de
cabeça para baixo das ameixas da cidade, durante quatro dias, ao fim dos quais o metem num caixão de madeira que
enterram no mesmo lugar da muralha onde estivera suspenso.
“Certamente grande pecado ganharam dele suas gentes que cá o deixaram morrer”, comentava o inimigo
referindo-se à indiferença dos seus que o tinham abandonado.
D. AFONSO V
Quando D. Duarte morre, contando o príncipe herdeiro, D. Afonso, apenas 6 anos de idade, foi grande a
surpresa ao saber-se que o rei designara sua mulher, D. Leonor, não apenas para testamenteira, mas também para
regente do reino. Todos esperavam que a ingrata missão de governar, pesada de mais para ombros de mulher,
recaísse em qualquer dos três infantes cheios de prestígio que no reino havia.
Há quem aconselhe à rainha que renuncie voluntariamente à regência, enquanto outros, explorando a sua
animosidade contra D. Pedro, duque de Coimbra, lhe pedem que não passe a este a regência, pois podia “nele entrar
o desejo de reinar que vence todolos os outros”.
Para desfazer tal suspeita, é o próprio duque de Coimbra, que fora o primeiro quando da aclamação do pequeno
rei a prestar-lhe homenagem, quem propõe em conselho régio que se reconheça e jure por príncipe herdeiro o
segundo filho de D. Duarte, o infante D. Fernando.
Procedia assim D. Pedro “por mostrar a muitos de danadas imaginações e à rainha D. Leonor principalmente
que aquela fora sempre sua leal e verdadeira tenção de obedecer e não a outra falsa de querer por força reinar, como
lhe faziam crer que ele desejava”.
De momento, a leal atitude de seu cunhado acalma a desconfiança da rainha, que a D. Pedro comunica,
enchendo-o de alegria, uma das últimas vontades do falecido rei, a do casamento do pequeno rei D. Afonso com sua
filha, D. Isabel.
Mas os inimigos do infante, à frente dos quais o conde de Barcelos, que via malograr-se o casamento que
também projectava da sua filha com o moço-rei, não abrandam no seu trabalho de intriga. Nas cortes que reúnem em
Torres Novas para debater o caso da regência, os partidos extremam-se: dum lado a maior parte da nobreza,
pugnando pelo cumprimento integral do testamento de D. Duarte, que confiava a regência só a D. Leonor; do outro,
a maioria dos procuradores das vilas e cidades, “povo e gente miúda”, como desdenhosamente os alcunhavam os
seus adversários, reclamando a regência só para D. Pedro, “sem outra ajuda”.
No primeiro momento, a rainha, conciliadora, propõe que, ficando ela embora com a regência e educação dos
filhos, se dê a D. Pedro, com o título de Defensor dos Reinos por El-Rei, a administração da justiça e a direcção da
defesa nacional. Mas a solução proposta, embora aceite pelos infantes, não agrada a um e outro partido, como não
agrada também o Regimento apresentando por D. Henrique, que intervém conciliatoriamente.
D. Pedro, embora por esse Regimento visse seus direitos diminuídos, declara contudo “que faria o que o infante
seu irmão quisesse”, mas seus partidários reagem e fazem-lhe saber “que ele só sem outrem havia de reger”.
A incompatibilidade acentua-se. Ante o vexame que a rainha lhe inflige, mandando-lhe pedir o documento em
que se comprometera a patrocinar o casamento do moço-rei com sua filha, D. Pedro resolve acabar com o “grande
abatimento que recebia” e retira-se da corte para as suas terras de Coimbra.
Em Lisboa o alvoroço popular a favor do infante vai degenerando em revolta que os emissários da rainha em
vão tentam aplacar. Encorajada pela opinião do infante D. João, que consultado dissera que a regência devia ser
imediatamente entregue a D. Pedro para pôr termo ao vexame que para eles infantes representava a regência da
rainha.
Lisboa destitui as autoridades partidárias desta e nomeia para capitão-mor do mar e seu alferes Álvaro Vaz de
Almada, o grande amigo do infante. O jurisconsulto Diogo Afonso Mangancha e o tanoeiro Lopo Fernandes são a
alma da revolta popular que em breve se estende a outras cidades. O primeiro redige um acordo que o povo reunido
em S. Domingos aprova, pelo qual, embora a rainha fosse “sempre em sua vida honrada e manteúda, acatada e
servida em alto e real estado”, só D. Pedro e por sua morte os irmãos seriam reconhecidos como regentes.
Mas D. Pedro pede a Lisboa que se acalme e que espere a decisão das cortes que tinham sido novamente
convocadas (1439) para a própria capital. Mas nada podia conter já a impaciência da cidade. Quando D. Pedro, à
frente dos seus partidários e homens de armas, chega em Outubro às portas da cidade, uma deputação do povo sai ao
seu encontro e pede-lhe que assuma imediatamente a regência sem esperar pela decisão das cortes. Quando estas
pouco depois se reúnem, limitam-se a confirmar a escolha de Lisboa.
Um golpe mais profundo ainda estava reservado ao orgulho da rainha: as cortes, por proposta de dois
procuradores do Porto, decidem que a educação do moço-rei e do irmão não continuasse nas suas mãos.
Nos cinco anos de vida que ainda lhe restam, tudo a rainha vai tentar para recuperar a regência e os filhos que a
fria razão de Estado lhe tinham arrancado. Logo em 1440, a instâncias suas, Castela envia um embaixador a Lisboa,
pedindo que sejam mantidas quanto à regência as decisões das Cortes de Torres Novas.
Ante o insucesso desse e de outros pedidos, é para a luta armada que ela apela como último recurso. Foge de
Almeirim para a Fortaleza do Crato na esperança de que, conforme o combinado, os seus partidários do Norte,
chefiados pelo conde de Barcelos, se lhe venham juntar.
Mas, ante as medidas rápidas e enérgicas do regente, que conta com o apoio leal dos outros infantes, a última
esperança da rainha cai por terra. Confiando o comando das Beiras a D. Henrique, a comarca de Entre Tejo e
Guadiana a D. João, o Porto a Aires Gomes da Silva, o próprio regente marcha para Avis, a caminho do Crato, que
sem mantimentos se rende ante os 12 mil homens que o vão cercar.
Já nessa altura a rainha, cansada de esperar o prometido auxílio dos seus partidários do Norte, passara a Castela.
Nos fins de 1444, cansada da luta e pressentindo talvez a morte que se aproximava, D. Leonor tenta reconciliar-se
com o regente, manifestando o desejo de regressar ao reino, que não chega a satisfazer, morrendo em Toledo em
1445.
De momento, o triunfo do regente é completo: o conde de Barcelos aparentava submeter-se e desistir de mais
lutas; as Cortes de Torres Vedras (1441) tinham aprovado o projectado casamento da filha do regente com o
pequeno rei e quando este, em Janeiro de 1446, atinge os 16 anos e em Cortes (de Lisboa) o regente lhe entrega a
vara da justiça, é o próprio rei que com ele insta para que continue a seu lado a ajudá-lo na administração do reino.
O casamento de D. Afonso V com D. Isabel, em Maio de 1447, parecia ter vindo ainda mais cimentar o
entendimento entre o rei e seu tio e sogro. Mas é tal a intriga movida pelos inimigos de D. Pedro, que esse período
de colaboração entre ele e o rei, durante o qual foram publicadas as Ordenações Afonsinas, pouco dura.
Em princípios de 1448, levado por “induzimentos alheios”, o rei prescinde da colaboração do seu tio, que “por
não dar causa a mais danamento, logo satisfez e desistiu em tudo do mandado e governança que tinha”.
A tragédia de Alfarrobeira vai-se aproximando, pois o rei, fraco de ânimo como seu pai, vai dando ouvidos a
todas as calúnias que os inimigos do ex-regente faziam correr. Já então duque de Bragança, o conde de Barcelos não
se detém ante nenhuma insinuação: que fora D. Pedro que mandara envenenar a rainha e quem sabe também se o
causador da morte de D. Duarte e do infante D. João; a sua presença na corte era um perigo como o era a presença
dos seus partidários em cargos de confiança.
Em suas terras de Coimbra o ex-regente pressente a tragédia que se aproxima, pois nada valem, junto do rei
desconfiado, as palavras daqueles que tentam defendê-lo: D. Henrique inutilmente procura esclarecer o rei, pois a
calúnia ameaça não o poupar também.
Um dos filhos do próprio duque de Bragança, D. Fernando, vem expressamente de Ceuta, onde era governador,
defender o seu tio, mas recebe ordens de regressar imediatamente a África. Álvaro Vaz de Almada, que D. Afonso V
admirava como modelo de cavalaria, em vão pede ao rei que o deixe combater em campo de caluniadores, ele só
contra três de cada vez.
Nada abranda a desconfiança e a cólera do rei contra o seu tio. Começa por proibir que alguém o visite nas suas
terras de Coimbra, desterra-o da Corte, proibindo-lhe que a ela venha “sob pena de procedimento maior”, demite de
alcaide de Lisboa Álvaro Vaz de Almada e de condestável o filho do ex-regente, Pedro como seu pai.
Tais perseguições vão criando ao ex-regente a desesperada situação de se submeter sem honra ou de reagir e ser
rotulado de rebelde. A uma nova ordem do rei para que entregue todas as armas que possui em seus castelos, ainda
D. Pedro consegue responder com evasivas, embora não a cumpra já; os seus inimigos forçam-no, porém, a um acto
de mais declarada rebeldia: o rei ordena-lhe que deixe passar por suas terras os homens de armas do duque de
Bragança a caminho a Corte, então em Lisboa.
Ante a ameaça de um tal vexame, os partidários do ex-regente indignam-se e aconselham-no a resistência. D.
Pedro apela ainda, numa suprema esperança, para seu irmão D. Henrique, dizendo-lhe que seu propósito não era
agravar o rei nem deixar de receber o irmão; várias vezes o recebera em sua casa, mas nunca como agora ele
trouxera consigo “mil e quinhentos de cavalo, com outra muita gente de pé, que para esta vinda adjuntou sua e
alheia, o que não responde aos tempos passados, nem mesmo à paz e amizade que consigo quere ter”.
A intervenção de D. Henrique junto do rei, se é que a houve, não deu resultado: acusado de delito de
desobediência e deslealdade, o ex-regente recebe da rainha, sua filha, notícia das três sanções que o rei, prestes a
marchar sobre Coimbra, lhe oferecia à escolha: a morte, a prisão perpétua ou o desterro para sempre fora do reino.
Mas “antes morrer grande e honrado que viver pequeno e deshonrado”.
E parte a caminho do Sul com mil homens de cavalo e cinco mil peões a “requerer a El-Rei que com justiça o
ouvisse com seus inimigos”. A 20 de Maio, junto ao ribeiro de Alfarrobeira, no termo de Alverca, a gente do infante
depara com os trinta mil homens do exército do rei. O desgraçado regente cai logo morto, varado por uma seta no
coração, quando procurava deter a fuga da sua vanguarda.
Prevenido da morte do seu amigo, Álvaro Vaz de Almada cumpre o pacto que, antes de partir de Coimbra, com
ele fizera na presença do doutor Álvaro Afonso: cair onde o outro caísse. A pé, primeiro com a lança, depois com a
espada, vai defendendo o arraial, até que cansado mas não ferido ainda, cai por terra, exclamando: “Ó corpo, já sinto
que não podes mais, e tu, minha alma, já tardas”. E em breve sucumbe aos golpes dos inimigos, gritando no minuto
derradeiro: “Ora fartar, rapazes”, ou talvez “Ora vingar, vilanagem”.
E assim ficaram unidos na morte, aqueles que em anos de glória e de aventura nunca se tinham separado. Ao
lado um do outro tinham percorrido, outrora, as sete partidas do mundo, pois Álvaro fora um dos doze companheiros
que D. Pedro, então com 26 anos de idade, consigo levara em 1418 para a sua longa peregrinação pelo mundo.
Álvaro, mais velho, já tinha combatido em Azincourt (1415) ao lado dos ingleses contra os franceses e em
recompensa de seus feitos o rei de Inglaterra agraciara-o com o condado de Avranches e com a comenda de
Jarreteira. Nos dez anos da sua comum peregrinação, cujas peripécias um dos doze, Gomes de Santo Estêvão,
popularizou no seu Auto do Infante D. Pedro de Portugal, o qual andou as sete-partidas do mundo, a sua amizade
tinha-se cimentado de maneira indestrutível: ambos tinham combatido na Hungria contra os turcos, ao serviço do
imperador Segismundo, a cujo lado também combatem os hussitas da Boémia; pela Alemanha, por Chipre,
Constantinopla, Cairo e Palestina em visita à Terra Santa e depois pelas cortes europeias, ambos tinham ligado o seu
destino, que nem a morte em Alfarrobeira consegue separar.
Os anos vão passando e com eles vão-se acalmando as paixões. Os ossos do infante que ficara abandonado todo
o dia no campo de Alfarrobeira e que, à noite, fora metido a monte numa pobre casa cheia de outros corpos onde
estivera três dias, “sem candeia, nem cobertura, nem oração”, são transladados em 1455 para a Batalha. No mesmo
ano vêm repousar a seu lado os ossos de D. Leonor.
Serenadas as lutas internas é para África que se volta a atenção do rei cavaleiro. A tomada de Constantinopla
pelos turcos em 1453 e a ameaça da sua invasão pela Europa Central levam o papa a pregar uma nova cruzada a que
D. Afonso V imediatamente dá a sua adesão, comprometendo-se a servir durante um ano com doze mil homens.
Mas se em D. Afonso V a cultura humanista que recebera de seu preceptor, o italiano Mateus Pisano, não
esfriara os ímpetos de cavaleiro medieval, o mesmo não sucedia com os outros príncipes da Europa.
A cruzada vai sendo adiada indefinidamente, até que em 1458 D. Afonso V resolve empregar o exército que
preparara numa outra cruzada de maior interesse nacional: nesse mesmo ano partem, em 280 navios, 26 mil homens
com destino a Alcácer-Ceguer, acompanhando o rei, seu tio o infante D. Henrique, que morria dois anos depois
(1460) e seu cunhado D. Pedro, um dos poetas do “Cancioneiro” de Garcia de Resende, que sendo mestre de Avis, à
data de Alfarrobeira, tentara ainda vingar pelas armas a morte de seu pai, o regente.
Alcácer-Ceguer é tomada em 23 de Outubro e o seu governo entregue a D. Duarte de Menezes, filho de D.
Pedro de Menezes, primeiro governador de Ceuta. Em 1463 uma outra expedição tenta, sem resultado, apoderar-se
de Tânger; mas a cidade fatídica só é ocupada, sem combate, por os seus habitantes a terem abandonado, quando,
em 1471, de novo o rei passa a África, em companhia já do príncipe D. João, e conquista a cidade de Arzila.
Das duas irmãs do rei, uma, D. Leonor, casa em 1452 com o imperador da Alemanha. Frederico III, outra, D.
Joana, em 1455, com Henrique IV de Castela. Os anos passam sem que a esterilidade do casamento de D. Joana
causasse estranheza, pois Henrique IV já fora acusado publicamente pela sua primeira mulher, Branca de Navarra,
de impotência. Acusação que a sentença de divórcio viera confirmar.
Estranheza causou pois, em 1462, o nascimento da infanta D. Joana, que os inimigos de Henrique IV alcunham
de Beltraneja, atribuíndo a sua paternidade ao favorito do rei, D. Beltrão de la Cueva.
Os grandes de Castela, na luta que então travavam contra o seu rei, chegam a planear a sua deposição, para dar o
trono a sua irmã D. Isabel. Precisando do apoio de D. Afonso V contra os seus inimigos, Henrique IV chega a
combinar com ele, em 1463, o casamento do rei português com sua irmã D. Isabel, e o do príncipe D. João com a
pequenina princesa herdeira de Castela.
Mas estes projectos matrimoniais caem por terra ao mesmo tempo que as cortes, reunidas em 1455 para se
pronunciarem sobre o auxílio que propositadamente viera a Portugal solicitar, D. Joana, mulher de Henrique IV, se
pronunciam pela não intervenção.
Em 1468 os nobres conseguem arrancar ao fraco Henrique IV o reconhecimento do trono, a qual no ano
seguinte, contra a vontade do irmão, casa secretamente em Valladolid com o príncipe Fernando de Aragão. O
projecto do casamento do príncipe herdeiro desfaz-se também. Em 1471 D. João casa com sua prima D. Leonor,
filha do infante D. Fernando.
Henrique IV morre em 1474, declarando por herdeira a princesa D. Joana e pedindo a D. Afonso V que a
aceitasse por esposa.
A preocupação dominante de D. Afonso V, nos anos que lhe restam de vida, vai ser a de assegurar, contra Isabel
e seus partidários, os direitos de sua sobrinha e prometida mulher.
Em Maio de 1475 entra em Espanha pela fronteira do Alentejo à frente de cinco mil homens de cavalo e de
catorze mil infantes e na cidade de Placencia, onde D. Joana o esperava, realizam-se esponsais que nunca chegam a
consumar-se, ao princípio por falta de dispensa papal, depois por conveniência política.
Intitulando-se já rei de Portugal, Castela e Leão, D. Afonso V dirige-se para a cidade de Toro, a cujo castelo pôs
cerco, e daí passa à cidade vizinha de Zamora. Fernando de Aragão marcha sobre Toro acompanhando a meia légua
da cidade; o tempo, porém, passa, sem que os dois exércitos travem batalha.
Só em 2 de Março de 1476, igualadas já as forças dos dois exércitos pela hoste com que o príncipe D. João
correra em auxílio do pai, a luta trava-se “no campo junto com Toro”. Batalha confusa e indecisa, pois as alas
comandadas pelos dois reis inimigos retiram em fuga desordenada e só fica em campo a hoste vitoriosa do príncipe
D. João, cuja vitória todavia não basta para que o exército português avance por Castela.
Em França, onde D. Afonso V procura pessoalmente um prometido auxílio, Luís XI vai-o entretendo com falsas
promessas. Mergulhado em profunda melancolia pelo desabar das suas esperanças, D. Afonso V chega a fugir à sua
comitiva para partir para a Terra Santa e dedicar-se à vida monástica; escreve para o reino participando a sua
resolução e ordenando ao príncipe que se proclame rei. Os seus companheiros conseguem descobri-lo disfarçado
numa pequena aldeia e convencê-lo a regressar ao reino, onde chega em 1477.
Mas a partir dessa altura quem governa de facto é o príncipe D. João, mas não de direito, porque não aceitara a
proposta do pai nesse sentido. D. Afonso V, desiludido, quisera guardar apenas para si o título de Rei dos Algarves.
O tratado de Alcáçovas põe termo em 4 de Setembro de 1479 à luta com Castela. Após a partida de D. Afonso V
a guerra limitara-se a simples episódios de fronteira. Por esse tratado D. Afonso V renunciava ao trono de Castela e
a infanta D. Joana tomava o compromisso de não usar o título de princesa ou de rainha. Como garantia desse tratado
foi simultaneamente assinado o das Terçarias de Moura, pelo qual o príncipe D. Afonso, primogénito de D. João,
casaria mais tarde com a infanta castelhana D. Isabel, filha de Fernando e de Isabel, e D. Joana, a Beltraneja, com o
príncipe D. João de Castela, então com um ano de idade.
D. Joana, o príncipe D. Afonso e D. Isabel passariam a viver em terçaria (caução) em Moura, confiados à guarda
de D. Beatriz, viúva de D. Fernando, duque de Viseu.
Em 28 de Agosto de 1481, com 49 anos de idade e 43 de reinado, morre D. Afonso V, quando mais uma vez
projectava abdicar e recolher-se ao Mosteiro do Varatojo, que fundara no termo de Torres Vedras.
D. JOÃO II
A paixão da guerra e a prodigalidade foram as duas facetas dominantes do espírito de D. Afonso V, o Africano,
que a História com razão poderia também ter cognominado o Pródigo. Os seus companheiros de armas encontravam
sempre aberto o cofre das benesses régias, que com elas se ia exaurindo, ao mesmo tempo que a autoridade real se
cerceava com a concessão de privilégios senhoriais.
Os representantes do Terceiro Estado mais de uma vez tinham manifestado o seu descontentamento por tão
perdulária política; nas Cortes de 1460 os procuradores do povo pedem ao rei que “quisesse ter mão mais firme nas
cousas da corôa, com que sustivesse seu Estado como seus antecessores faziam, e não as dar com tanta soltura e sem
necessidade como dava”. O próprio rei perdulário tinha consciência do seu fraco, embora reconhecendo-se
impotente para o vencer.
Quando da campanha do Toro, ao nomear, antes da partida, seu filho regente, deixa em seu poder uma
declaração segundo a qual todas doações e graças que viesse a fazer durante a campanha, desde que ultrapassassem
dez mil reais de rendimento, seriam anuladas “cono cousas por constrangimento e sem vontade outorgadas” quando
não fossem também pelo Príncipe “aprovadas, consentidas e assinadas”.
Razão tinha o rei em confiar no moço príncipe, em cujo ânimo os interesses da grei e o prestígio da autoridade
régia iriam dominar todas as considerações de ordem particular, mesmo familiares que fossem.
O destino quis que na hora em que por todo o Ocidente europeu, ao cabo de uma luta secular, se trava o combate
decisivo entre a autoridade real e as classes privilegiadas, subisse ao trono o Homem, como Isabel de Castela lhe
chamava, de têmpera suficientemente rija para travar esse combate.
Devia ter sido de alívio a sensação que a alta nobreza e o clero experimentaram, após os quatro dias em que o
príncipe ainda chega a reinar, ao receber a notícia de que D. Afonso V desistira do seu projecto de abdicação. Alívio
pouco duradouro, pois quatro anos depois D. Afonso V morria, apenas com 49 anos de idade.
A partir da sua aclamação em Sintra, em 31 de Agosto de 1481, uma das preocupações dominantes do novo rei
será a de abater a poderosa nobreza territorial, ciosa dos seus privilégios quase reais, transformando-a numa nobreza
palaciana a viver do régio favor.
A luta, que revestirá aspectos trágicos, começa logo no início do reinado. Para as Cortes reunidas em Évora
(Novembro de 1481) faz o rei redigir pelos seus letrados uma nova fórmula de menagem que todos os representantes
em cortes deveriam ler de joelhos ante a pessoa do rei. E por todos foi lida sem excepção, a despeito do protesto que
em conselho régio levantara o duque de Bragança, de ascendência real e cunhado do próprio rei, por se julgar
vexado e diminuído nos seus direitos senhoriais sobre mais de cinquenta terras do reino, nas quais poderia levantar
um exército de 3000 cavaleiros e 10000 peões.
Não contente com esse testemunho protocolar de menagem, o rei, indo ao encontro de uma das pretensões do
Terceiro Estado, tantas vezes já inutilmente formulada, decide que os seus corregedores visitem as terras dos nobres
e averigúem do modo como nelas se administrava “direito e justiça”, e previne o duque de Bragança de que não só o
não isenta dessa correcção, como ainda espera que seja ele o primeiro a dar o exemplo de acatamento à sua decisão.
Estas e outras providências, tomadas de acordo com o braço popular, alarmam a alta nobreza, que começa
cautelosamente a urdir conjuras contra a pessoa do rei.
Cautelosamente, pois pressentiam que ele, implacável na sua política do engrandecimento real, não recuaria
diante de nenhuma sanção contra os rebeldes, só porque o marquês de Montemor, irmão do duque de Bragança, lhe
aparece um dia sem traje de luto pela morte do rei D. Afonso V, não tendo ainda passado o tempo habitual, o rei não
hesita em censurá-lo e em desterrá-lo para Castelo Branco apenas teve um insignificante pretexto.
Da conjura que o duque de Bragança e seu irmão vão urdindo, em entendimento com os reis de Castela, D. João
II vai tendo conhecimento por suborno e denúncias. Não lhe convém porém romper desde logo com seus inimigos,
pois seu filho, o pequeno príncipe D. Afonso, se encontrava em Moura, no cumprimento das Terçarias, em poder de
D. Beatriz, sua sogra como o era também do duque de Bragança.
Convém-lhe mais de momento dissimular, aparentar até fraqueza prevenindo o duque de que desistira de fazer
correcção em suas terras. Mas ao mesmo tempo vai instando, em embaixadas sucessivas, junto dos reis de Castela,
pela revogação do tratado das Terçarias, ou pelo menos pela mudança do infante e das infantas de Moura para
qualquer outro lugar, mais salubre, explicava o rei, mais seguro pensaria ele.
A 15 de Maio de 1482, desfeitas as Terçarias e combinado o casamento do moço príncipe com outra filha dos
Reis Católicos, com a infanta D. Joana, o rei e a corte esperam em Évora a chegada do príncipe.
Nos meses que tinham decorrido o rei fora reunindo as provas da conjura, a correspondência do duque de
Bragança com os Reis de Castela. Quando o duque, que viera no séquito do príncipe e que o rei começara por
receber com provas de amizade, se apresenta no paço, a 30 de Maio, a despedir-se para regressar a suas terras,
protestando mais uma vez contra as calúnias que os seus inimigos levantavam, inopinadamente o rei afirma-lhe o
seu desejo de lhe fazer justiça e o propósito de mandar averiguar do que se dizia. Mas para mais segurança intima o
duque a não sair do paço. A dissimulação tornara-se inútil, pois tinha já em seu poder o filho.
Razão tinha o duque em dizer a um dos seus carcereiros que procurava levantá-lo do abatimento em que o
mergulhara a inesperada prisão: “Senhor Aires da Silva, um homem tal como eu não se prende para se soltar”.
Na cidade, indignada pela nova posta a correr de que tinham procurado atentar contra a vida do rei, o tribunal,
constituído pelos letrados da Casa da Suplicação, começa a organizar o processo. O rei quer que se sigam todos os
trâmites de um processo regular e, àqueles que lhe aconselham uma condenação sumária, responde com lágrimas e
palavras de compaixão pelo duque.
E para que não se duvide da sua imparcialidade, faz nomear para defensor do réu um familiar da Casa de
Bragança, o doutor Diogo Pinheiro. Após o julgamento a que o rei preside, tendo a seu lado sentado em duas sessões
o acusado, que depois se recusa a sancionar com sua presença tal comédia, a sentença de morte é lavrada por entre
as lágrimas do rei “que todos aquela noite lhe viram correr e muitas vezes; porque a cada voto em que cada juiz
concludia na morte do duque, El-Rei chorava com muitos soluços e muita tristeza”.
A 21 de Junho de 1483, a cabeça do duque cai sob o cutelo do carrasco, na Praça de Giraldo, em Évora. A alta
nobreza acabava de sofrer um golpe profundo. Logo após a prisão do duque, as tropas reais tinham ocupado, sem
resistência, todas as suas vilas e castelos, e seus irmãos, o marquês de Montemor, o conde de Faro e D. Álvaro
tinham passado a Castela, onde se refugiam também os três filhos do duque, enviados por sua mãe alarmada.
Mas a luta não estava terminada. Uma nova conjura começa a ser urdida dentro e fora do reino, sob a chefia do
duque de Viseu, irmão da rainha, já esquecido das palavras de censura mas de perdão também que o rei lhe dissera
quando da prisão do duque de Bragança. Ao facto do plano dos conspiradores, em Agosto de 1484, D. João II, então
em Setúbal, fecha-se com o cunhado no guarda-roupa do seu paço e mata-o às punhaladas, ao mesmo tempo que,
cerradas as portas da vila, os outros conspiradores eram presos e implacavelmente feridos pela cólera do rei.
O principal inspirador da nova conjura, o bispo de Évora, D. Garcia de Menezes, é metido numa cisterna do
Castelo de Palmela, onde poucos dias depois morre, de peçonha, dizia-se.
Os outros sofrem também a pena de morte; nem aqueles que na fuga tinham procurado a salvação escapam à
cólera do monarca. Fernão da Silveira, que foge para Castela, é dali expulso a pedido de D. João II e em França,
onde se refugia, cai morto por um agente do rei que de si próprio dirá à hora da morte: “Fui tão mau bicho que nunca
me acenaram que não mordesse.
Cimentada em sangue a autoridade régia, o rei vai entregar-se de novo ao sonho de uma união peninsular que o
pai tanto tinha acarinhado, e que a revogação das Terçarias parecia ter desfeito mais uma vez. Era agora com a
infanta D. Joana, mais afastada, pela idade, do trono de Castela que sua irmã Isabel, que se projectava o casamento
do príncipe.
Ficara porém estabelecido que, se quando o príncipe português atingisse 14 anos, a princesa Isabel não tivesse
ainda casado, seria com ela que o consórcio se realizaria. Os anos passam e quando, em 1488, o príncipe atinge 13
anos, D. Isabel não se casara ainda. O projecto primitivo é retomado com entusiasmo tanto por D. João II como
pelos Reis Católicos e em 1490, celebrados já, por procuração, os esponsais em Sevilha, as cortes reunidas em Évora
votam o levantamento de uma contribuição de 100 mil cruzados destinados a festejar com a devida pompa um tão
auspicioso casamento. O rei quer que a princesa seja recebida com uma sumptuosidade tão grande como a alegria
que em seu peito ia.
Os banquetes, as touradas, os momos vão suceder-se sem interrupção após a chegada da princesa a Évora;
recebida em Elvas a 19 de Novembro por D. Manuel, duque de Beja, a princesa casa religiosamente dois dias depois
no Mosteiro de Santa Maria do Espinheiro e faz a sua entrada solene em Évora, a 27, “posta em mula de muitos
arreios guarnecida”, cujas rédeas o noivo e seu irmão D. Jorge conduzem. As festas prolongam-se até ao Natal, e
com tal magnificiência que só para alimentar as aves destinadas aos banquetes foram precisos, diz o cronista, “mais
de cem moios de trigo”. Ao som das trombetas e charamelas, no banquete celebrado na sala de madeira,
expressamente construída para tal fim, carneiros assados inteiros, com as pontas douradas, vêm sobre uma carreta
dourada, até à mesa do rei. E para que o povo, lá fora, partilhasse na sua alegria do esplendor do banquete, dois
grandes bois assados inteiros também lhe são dados, depois de em carreta simulada terem percorrido a sala, guiados
por um moço fidalgo.
Tinham vindo expressamente cozinheiros de Inglaterra e de outras partes e, para que o luxo dos trajes estivesse
à altura de tais festas, o rei isenta as jóias do pagamento de direitos, permite o uso das sedas, manda uma caravela a
comprar nas ricas cidades italianas as rendas, os brocados e os objectos de luxo; a cada fidalgo o rei oferece 200
cruzados para sedas e mais adornos.
Mas a fatalidade não quis que a alegria do rei e do reino fosse muito duradoura; um ano depois, a 12 de Julho,
estando a corte em Santarém, o príncipe morre da queda de um cavalo nas margens do Tejo. O desespero do rei só
encontrou remédio, se é que o encontrou, na ideia de que o pobre príncipe não fora fadado para o duro acto de
governar, pois as suas qualidades quase femininas, a sua indiferença pelo viril jogo das armas, mais de uma vez
tinham causado apreensões a seu pai. Como a do rei, foi profunda a mágoa da nação: “Não ficou senhor, nem pessoa
principal, nem homem conhecido que se não tosquiasse”; os que não puderam comprar o burel do luto enrolaram-se
na serapilheira dos sacos ou vestiram os trajes do avesso.
Restava ao rei um outro filho bastardo que tivera, em 1481, de Ana de Mendonça, donzela da soberana. Mas a
rainha, que até então o tratara como filho, nunca mais consente em recebê-lo a partir do dia em que a morte
implacável lhe rouba o seu, nas margens do Tejo, e a sua repulsa vai-se acentuando à medida que o rei começa a
mostrar o seu plano de legar o trono a D. Jorge, e não ao irmão dela, D. Manuel, duque de Beja.
Após a morte do infante D. Henrique e embora os assuntos de África fossem a preocupação dominante de D.
Afonso V, a metódica exploração da costa africana não se interrompe; logo entre 1461 e 1462 Pedro de Sintra
explora com mais cuidado, para além do Rio Grande, a costa dos negros, onde as caravelas do infante já tinham
chegado.
Nesse mesmo ano de 1462 Diogo Afonso descobre mais sete ilhas do arquipélago de Cabo Verde. Nos anos que
se seguem a 1469 as caravelas vão explorando a costa do golfo e descobrindo as ilhas nele situadas; em 1469 D.
Afonso V arrendara a Fernão Gomes, por cinco anos, o comércio da Guiné, com a condição de ele explorar
anualmente 100 léguas da costa; João de Santarém e Pêro Escobar chegam em Janeiro de 1471 à costa de Mina e
pela mesma época descobrem-se as ilhas do golfo.
As lutas entre Portugal e Castela, que se arrastam de 1475 a 1480, tiveram seu reflexo em África, onde as frotas
portuguesas mais de uma vez tiveram de combater navios castelhanos de contrabando; mas pela paz que em 1480
pôs termo a essas lutas, os Reis Católicos não só reconheceram a Portugal o monopólio do comércio da Guiné e da
Mina, como tomam o compromisso de proibir aos seus vassalos o comércio em todas as terras descobertas ou por
descobrir para o Sul das Canárias.
Logo após a sua aclamação, D. João II envia Diogo de Azambuja a ocupar permanentemente, pela construção de
um castelo (S. Jorge), a costa da Mina; no ano seguinte, 1482, Diogo Cão, na sua primeira viagem em demanda da
passagem do Sudeste, chega além do Zaire; na sua segunda viagem, em 1485, o mesmo navegador avança a
extensão da costa explorada até ao Cabo Padrão, a 20º50º de latitude Sul.
O grande sonho que a ânsia dos portugueses vinha perseguindo estava prestes a realizar-se: em Agosto de 1487
partem do Tejo duas caravelas e um navio de transporte sob o comando de Bartolomeu Dias, levando entre os
pilotos Pêro de Alenquer, com a missão de continuar mais para o Sul ainda a exploração da costa. Para além do
último padrão que Diogo Cão tinha levantado, depois de terem avistado a Serra dos Reis, perdem de vista a terra e
continuam o rumo Sul; assim navegam durante alguns dias até que, para de novo alcançarem a costa, mudam a leste
e depois a norte, tendo chegado por fim a uma baía que “chamaram dos Vaqueiros por as muitas vacas que viram
andar na terra guardadas por seus pastores”.
Sem o saberem, tinham dobrado a ponta de África e navegavam já em águas do Índico. Rumo ao Norte
navegam ainda alguns dias, mas a tripulação, cansada, impõe o regresso; avistam à vinda o Cabo das Tormentas que
tinham dobrado, sem o verem, e em Dezembro de 1488 entram no Tejo com a boa nova de que a passagem de
Sudeste, problemática até então, era uma realidade.
Não foi com públicas manifestações de regozijo que D. João II acolheu quem assim lhe trazia a chave do Índico;
convinha-lhe não chamar a atenção dos Reis Católicos e mais príncipes europeus para um acontecimento que viria
transformar toda a estrutura da civilização europeia.
No mesmo ano em que Bartolomeu Dias partira do Tejo, dois emissários, Afonso Paiva e Pêro da Covilhã,
tinham partido por terra com a missão de estabelecerem mais íntimas relações com o négus da Abissínia, o lendário
Prestes João, e de colherem nessas paragens longínquas todas as informações que pudessem sobre a Índia. Numa
hora em que o caminho para a Índia pelo périplo de África estava prestes a desenhar-se, convinha ter no Oriente um
aliado na luta que não deixaria de travar-se contra os árabes, senhores de toda a navegação no Oriente distante;
chegados a Áden, os dois viajantes separam-se, indo Afonso Paiva para a Etiópia e Pêro da Covilhã para a Índia.
Entre as preciosas informações que Pêro da Covilhã envia a D. João II, após a sua longa peregrinação por
Cananor, Calecut e Goa, na Índia, Ormuz no Golfo Pérsico, e Sofala na costa africana, avultava a certeza de que,
atingida pelas naus, ao longo da África, a costa de Sofala, seria fácil, através da Índia, a chegada a Calecut e a Goa.
Ao receber as informações de Pêro da Covilhã, já o rei sabia, por Bartolomeu Dias, que as naus podiam, dobrado o
Cabo e feito rumo ao Norte, atingir a costa de Sofala.
Essas prometedoras certezas não impedem que pelo mesmo tempo D. João Ii vá dedicando a sua atenção ao que
se passava no Atlântico ocidental; absorvido com a empresa da passagem do Sudeste, o rei não aceitara em 1484 a
oferta de Cristóvão Colombo para ir, pelo Ocidente, em demanda das Índias Orientais; mas quando, em 1492,
Colombo, ao serviço de Castela, chega às Antilhas, D. João II imediatamente reivindica para si o direito sobre as
novas terras descobertas e manda aprontar uma armada, para de facto firmar esse direito.
Os Reis Católicos propõem que o litígio seja resolvido com um acordo e de facto em 7 de Junho de 1494 era
assinado o Tratado de Tordesilhas, pelo qual ficariam pertencendo a Castela as terras situadas para ocidente de um
meridiano traçado a 570 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, e a Portugal as situadas no hemisfério oriental.
Ciente já da existência de um continente sul-americano, D. João II salvava para o reino, com esse tratado, a posse do
Brasil.
Para o sustento das empresas marítimas que assim iam seguindo o seu curso de epopeia, encontrou D. João II
nos últimos anos do seu reinado, um rico manancial na tributação lançada sobre os judeus que, expulsos de Castela,
desejaram refugiar-se no reino. Contra a opinião quase unânime de seu conselho, o rei permite essa entrada,
mediante o pagamento de oito cruzados por cabeça, pagos em quatro prestações, comprometendo-se, ao cabo dos
oito meses de demora permitida, a fornecer os meios de transporte para a saída do reino.
Passado o prazo muitos judeus, sem dinheiro para a passagem, ficaram no reino considerados como cativos e
separados dos seus filhos menores que barbaramente lhes foram arrancados e enviados, depois do baptismo, para a
ilha de S. Tomé, cuja capitania, criada em 1495, o rei confiara a Álvaro de Caminha.
Logo após a morte do filho, em 1490, o rei começara a sentir sua saúde abalada, “ou por a sobeja tristeza e
mortal dor que nele padeceu (como é mais de crer) ou por peçonha que lhe deram, como alguns sem muita certeza
suspeitaram, nunca foi em disposição de perfeita saúde. Em 1492 sofre vários “acidentes e desmaios”, e dois anos
depois o mal redobra; em 1495 resolve experimentar as Caldas de Monchique, mas o seu mal agrava-se e regressa a
Alvor donde, sentindo a morte aproximar-se, manda chamar D. Manuel, a fim de lhe dar a boa nova de que o
escolhera para herdeiro. No caminho, o duque de Beja é informado de que o monarca morrera. Estávamos a 25 de
Outubro de 1495.
1. Casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre. Começou como uma aliança estratégica entre Portugal e
Inglaterra, mas rapidamente se transformou na primeira história de amor real acompanhada de perto pelo País.
2. D. Filipa de Lencastre. Camões celebrou-a nos “Lusíadas” como a mãe da “Ínclita Geração” que deu origem
aos Descobrimentos.
3. Nuno Álvares Pereira. O “Santo Condestável” modernizou a arte da guerra, e com poucos recursos conseguiu
derrotar Castela em Aljubarrota
4. João das Regras, o responsável pela legitimação de João de Avis como rei de Portugal. Selo de 1949 da
autoria de Alfredo de Morais
5. Juan I de Castela levanta o cerco a Lisboa (1384). A Peste dizimou as tropas castelhanas. Foi uma ajuda
inesperada para a Lisboa cercada.
6. Batalha de Aljubarrota. Contra todas as expectativas, a táctica de Nuno Álvares derrotou a supremacia militar
castelhana. Pintura de Jean de Wavrin (Museu Britânico, Londres)
7. Loudel de D. João I. Museu Alberto Sampaio, Guimarães
8. Mosteiro da Batalha. A promessa de construir um mosteiro em honra de Nossa Senhora caso vencesse a
batalha foi cumprida por D. João I
9. Painéis de São Vicente. A autoria é atribuída a Nuno Gonçalves, mas as dúvidas persistem. Nela é
representada a nova sociedade portuguesa, na qual a burguesia destronou a nobreza no papel principal.
10. O Infante D. Henrique (ao centro). Painel de Azulejos da Igreja do Corpo Santo, Massarelos
11 O Infante D. Henrique na Conquista de Ceuta. Pintura em Azulejo de Jorge Colaço (1916)
12. D. Duarte. O seu reinado fica manchado pelo episódio da prisão e morte do irmão D. Fernando ás mãos dos
Muçulmanos
13. Tríptico do Infante Santo D. Fernando. Feito cativo dos Muçulmanos em Fez, a inacção do irmão acelerou a
sua morte. Museu Nacional de Arte Antiga
14. Afonso V. Vingativo, visionário, líder, calculista. A ele se deve o início da exploração da costa africana e a
descoberta do ouro, mas também uma terrível perseguição ao tio D. Pedro.
15. A Conquista de Arzila. Tapeçarias de Pastrana
16. João II. Na gravura, o momento em que o cronista Rui de Pina, autor das “Crónicas de D. João II”, entrega a
sua obra ao monarca.
17. Diogo Cão à chegada à Guiné. Painel do Salão Nobre da Assembleia da República
18. Bartolomeu Dias conseguiu dobrar o Cabo Bojador e abrir caminho para a Índia. Painel do Salão Nobre da
Assembleia da República, autoria de Domingos Rebelo
NO PRÓXIMO VOLUME:
VOLUME 4: DA ÍNDIA AO BRASIL
As viagens de Diogo Cão e Bartolomeu Dias, mais do que ultrapassarem obstáculos antigos frutos da
imaginação do homem, conseguiram abrir caminho à descoberta de uma passagem marítima entre a Europa e a
Índia. O sonho de D. João II ficou entregue nas mãos do sucessor, D. Manuel I, a quem o país entregou a difícil
missão de ligar o Ocidente ao Oriente mítico.
O feito do navegador Vasco da Gama provocou autêntico terramoto na Europa do Renascimento. Mas abriu
espaço a novas empreitadas, agora que o ser humano estava realmente desejoso de saber o que existia para além das
suas fronteiras e do pouco que conhecia. Por mera obra do acaso ou real conhecimento de outras paragens, a armada
liderada por Pedro Álvares Cabral iniciou a exploração a sul do Equador, com a descoberta do Brasil em 1500. Com
ele teve início um trágico comércio de escravos, que apenas terminaria no final do século XIX.
Destas duas viagens centrais para a História de Portugal e a própria História da Humanidade falaremos
demoradamente no quarto volume desta colecção, mais uma vez elaborado por Newton de Macedo. Prestaremos
especial atenção ao reinado de um dos mais sortudos reis da Monarquia portuguesa - Manuel I. Mas vamos também
abordar o início da queda do Império e da perda da independência de Portugal. As desgraças ocorridas durante o
curto e misterioso reinado de D. Sebastião conduziram à perda da soberania nacional para as mãos dos Filipes de
Espanha. Com eles iniciou-se um ciclo de 60 anos ainda hoje maldito na História Portuguesa.
VOLUMES PUBLICADOS DA COLECÇÃO “HISTÓRIA DE PORTUGAL”

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