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1807: invasão francesa (Bloqueio Continental, Napoleão) e fuga da

família real para o Brasil


1810: Tratado de Cooperação e Amizade: abertura dos portos
brasileiros  desvantagem econômica para Portugal
1815: corte no Rio de Janeiro  capital do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves
1820: Revolução do Porto: liberais pedem a volta de D. João VI e uma
constituição liberal, com o fim do absolutismo
07/09/1822: independência do Brasil
23/09/1822: 1ª Constituição Portuguesa
1826: morte de D. João VI  disputa entre D. Pedro IV e D. Miguel
D. Pedro IV (D. Pedro I do Brasil) abdica do trono pela sua filha Maria
da Glória, então com 7 anos. Prometida a D. Miguel, que ficaria no
trono até a sua maioridade
1828: golpe de D. Miguel: cortes aclamam D. Miguel rei absolutista,
e anulam a constituição; volta do Antigo Regime (sociedade de
estamentos, privilégios da nobreza e do clero)
1831: D. Pedro abdica da coroa brasileira pelo filho e volta para
Portugal para lutar contra D. Miguel
Guerras Liberais/Guerra Civil Portuguesa (1832-1834)
Liberais x Absolutistas
D. Pedro IV D. Miguel
burguesia nobreza + clero
classe média camponeses (igreja)

Herculano e Garrett
1834: liberais vencem. D. Maria II, então com 15 anos, é coroada
1842-1846: Cabralismo: governo tirano e corrupto de Costa Cabral,
época em que a alta burguesia enriqueceu e tomou o poder
Alexandre Herculano (1810-1877)

Túmulo no Mosteiro dos Jerônimos


O Bobo

- 1843: O Panorama
- 1866 (edição não autorizada, no
RJ)
- 1878 (edição póstuma)

- 1851: Lendas e Narrativas -


contos publicados em O Panorama
- Opúsculos: “impressões
momentâneas”
“[...] seria este livro, então, mais imperfeito que as novelas
publicadas em Lendas e Narrativas, tão imperfeito que fez seu
autor recusá-lo a posteriori, e deixá-lo esquecido [...] nas páginas
de um periódico?” (Paulo Motta Oliveira, 2000, p. 133).

“consideramos [O Bobo], concordando com [João] Gaspar Simões


[in Perspectiva Histórica da Ficção Portuguesa], como o melhor
romance de Herculano.” (Oliveira, 2000, p. 149)

“[...] perturbador para um autor que dedicou boa parte de sua vida
a escrever a história de Portugal [...]. Teria Herculano percebido
que, neste romance, punha em questão todo o seu trabalho de
historiador?” (Oliveira, 2000, p. 148).
Romance histórico português : Walter Scott e Victor Hugo
- Walter Scott: produção poética começa a ser traduzida em Portugal
em 1819; romances se tornam moda literária em meados da década
de 1830 (Ivanhoe - traduções anuais de 1837 a 1843)
- Victor Hugo: Notre Dame de Paris é publicado em 1831
(portugueses liam francês); traduzido para o português em 1841

“Dizem pessoas entendidas que mais se conhecem as cousas


escocesas lendo as Crônicas de Canongate de Walter Scott do que a
sua História d’Escócia. Também há quem diga que no mais grado
quarteirão de histórias de França, escritas até o ano de 1800, não
tinha aparecido ainda a época de Luís 11º como apareceu depois na
Notre-Dame de Victor Hugo. [...] Não poderemos por certo dizer
outro tanto das nossas, em tudo pequenas e pobres tentativas (as
primeiras, todavia, que neste gênero se fazem em Portugal)”
(Herculano, O Cronista, in O Panorama, 1839, p. 306).
ROMANCE HISTÓRICO:
- retrata as grandes crises da História (György Lukács, O Romance
Histórico)
- produto do nacionalismo romântico (Perry Anderson, “Trajetos de
uma forma literária”. Novos Estudos, n. 77, 2007)
- modelo de Scott (Ivanhoe) é associado ao drama de costumes,
“uma forma melodramática que pressupõe o vilão, ou seja, que se
organiza em torno do dualismo ético do bem e do mal” (Fredric
Jameson, “O romance histórico ainda é possível?”. Novos Estudos,
2007, p. 186)

O Bobo: formação da nação portuguesa

Data de escrita/publicação do romance: 1843 (séc. XIX)


Tempo do enredo: 1128 (Idade Média)
- muçulmanos ocupavam a
Península Ibérica
- Guerras de Reconquista
- Conde D. Henrique de Borgonha
lidera uma expedição para
expulsar os muçulmanos, e ganha
de D. Afonso VI, rei de Leão e
Castela, a mão de sua filha
ilegítima, D. Teresa, e o território
do Condado Portucalense.
- 1112: morte de D. Henrique;
D. Teresa assume como regente
- 1128: Batalha de São Mamede:
D. Afonso Henriques x sua mãe
Guimarães
(hoje, fica no distrito de Braga)
Construído no século IX, posteriormente doado a D. Henrique de Borgonha
pelo rei de Castela e Leão
D. Afonso Henriques
(1º rei português)
1128: Batalha de São Mamede: D. Afonso Henriques vence sua mãe
e assume o trono do Condado Portucalense

Continuam as Guerras de Reconquista


1139: Batalha de Ourique  lenda do Milagre de Ourique
- cristãos vencem, apesar da inferioridade numérica
- é aclamado pelas tropas como rei de Portugal
- independência de Portugal é reconhecida em 1143

“a aparição de Cristo a Afonso Henriques constitui a pedra angular


da monarquia portuguesa. E, mais do que isso, representa a
explicitação modelar da intervenção divina no destino dos homens,
o reconhecimento de um vínculo inexorável entre Deus e a história.”
(Ana Isabel Buescu, “Alexandre Herculano e a polêmica de Ourique:
anticlericalismo e iconoclastia”. In M. F. Marinho, L. C. Amaral, & P. V. B. Tavares
(Coords.), Revisitando Herculano no Bicentenário do seu Nascimento, 2013, p. 54).
- Portugal seria uma nação protegida por Deus, com o destino de
espalhar a fé cristã pelo mundo

- lenda surgiu no séc. XV  imperialismo português 


Os Lusíadas (1572) “[cantarei] as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império [...]” (Canto I)

- Polêmica de Herculano depois da História de Portugal (1846): nas


notas, caracteriza o milagre de Ourique como fábula:

“A [fábula] da aparição de Cristo ao príncipe [Afonso Henriques]


antes da batalha [de Ourique] estriba-se em um documento, tão
mal forjado, que o menos instruído aluno de diplomática o rejeitará
como falso ao primeiro aspecto” (Herculano, 1846, p. 486).
Discurso nacionalista do narrador
* Contrastar depois com o enredo

“[Portugal] veio por milagres de prudência e de energia a


constituir, não a nação mais forte, mas decerto a mais audaz da
Europa nos fins do XV século. Dir-se-ia um povo predestinado.
Quais seriam hoje, de feito, as relações do Oriente e do Novo
Mundo com o Ocidente, se Portugal houvesse perecido no
berço? Quem ousará afirmar que, sem Portugal, a civilização
atual do gênero humano seria a mesma que é?” (p. 15)
“Se na batalha do campo de S. Mamede, em que Afonso Henriques
arrancou definitivamente o poder das mãos de sua mãe, ou, antes,
das do conde de Trava, a sorte das armas lhe houvera sido adversa,
constituiríamos provavelmente hoje uma província de Espanha.
Mas no progresso da civilização humana tínhamos uma missão a
cumprir. Era necessário que no último ocidente da Europa surgisse
um povo, cheio de atividade e vigor, para cuja ação fosse
insuficiente o âmbito da terra pátria, um povo de homens de
imaginação ardente, apaixonados do incógnito, do misterioso,
amando balouçar-se no dorso das vagas [ondas]ou correr por cima
delas envoltos no temporal, e cujos destinos eram conquistar para
o cristianismo e para a civilização [fé + império] três partes do
mundo, devendo ter em recompensa unicamente a glória. E a
glória dele é tanto maior quanto, encerrado na estreiteza de breves
limites, sumido no meio dos grandes impérios da terra, o seu nome
retumbou por todo o globo” (p. 17)
-Decadência (tema típico do séc. XIX)
“Pobres, fracos, humilhados, depois dos tão formosos dias de
poderio e de renome, que nos resta senão o passado? Lá temos os
tesouros dos nossos afetos e contentamentos. Sejam as memórias
da pátria, que tivemos, o anjo de Deus que nos revoque à energia
social e aos santos afetos da Nacionalidade. Que todos aqueles a
quem o engenho e o estudo habilitam para os graves e profundos
trabalhos da história se dediquem a ela. No meio de uma nação
decadente, mas rica de tradições, o mister de recordar o passado é
uma espécie de magistratura moral, é uma espécie de sacerdócio.
Exercitem-no os que podem e sabem; porque não o fazer é um
crime.
E a arte? Que a arte em todas as suas formas externas represente
este nobre pensamento; que o drama, o poema, o romance sejam
sempre um eco das eras poéticas da nossa terra. Que o povo
encontre em tudo e por toda a parte o grande vulto dos seus
antepassados. Ser-lhe-á amarga a comparação.” (p. 17)
“As províncias já então libertadas do jugo ismaelita [muçulmano] não
tinham ainda, digamos assim, senão os rudimentos de uma
nacionalidade. Faltavam-lhes, ou eram débeis grande parte dos
vínculos morais e jurídicos que constituem uma nação, uma
sociedade. [...] A ideia de nação e de pátria não existia para os
homens de então do mesmo modo que existe para nós.” (p. 11-12)

- mas há um sentimento de identidade nacional: nós x estrangeiros


- conflito D. Afonso Henriques x D. Teresa é sobretudo devido à
influência do Conde de Trava (galego e dedicado ao rei de Castela)

“Durante quinze anos [D. Teresa] lutou por conservar intacta a


independência da terra que lhe chamava rainha, e, quando o filho [D.
Afonso Henriques] lhe arrancou das mãos a herança paterna, só
havia um ano que a altiva dona curvara a cerviz ante a fortuna de seu
sobrinho Afonso Raimundes, o jovem imperador de Leão e Castela.”
(p. 16)
“Se D. Teresa se mostrava na viuvez digna politicamente do
marido, o filho [Afonso Henriques] era digno de ambos. O
tempo provou que os excedia em perseverança e audácia. A
natureza dera-lhe as formas atléticas e o valor indomável de
um desses heróis dos antigos romances de cavalaria, cujos
dotes extraordinários os trovadores exageravam mais ou
menos nas lendas e poemas, mas que eram copiados da
existência real.” (p. 16)

- D. Afonso Henriques: personagem idealizado, praticamente


não fala nem age no enredo
“E [D. Bibas] não era lá nenhum grande homem: era um vulto de
pouco mais de quatro pés de altura; feio como um judeu
[preconceito contra os judeus, típico de romances históricos do séc.
XIX (associados ao materialismo)]; barrigudo como um cônego de
Toledo; imundo como a consciência do célebre Arcebispo Gelmires
[ridicularização dos padres (crítica anticlerical)], e insolente como um
vilão de beetria [povoação que elege os seus próprios
administradores]. [...]
A miséria, porém, criou-lhe uma indústria: Dom Bibas começou a
sentir em si as inspirações de trovista e os garbos de folião. [...] Foi
então que Dom Bibas se viu elevado, sem proteção nem empenhos, a
uma situação a que nos seus mais ambiciosos e agradáveis sonhos de
felicidade nunca tinham imaginado a trepar. O próprio mérito e glória
lhe puseram nas mãos a palheta do seu antecessor [bobo ].” (p. 23-
24) Ascensão social pelo mérito (valor do séc. XIX, contra a
estratificação do Antigo Regime)
“[...] até o tempo em que sucederam os acontecimentos extraordiná-
rios que começamos a narrar, ele foi sempre generoso, nem nos
consta abusasse jamais do seu valimento e da sua importância políti-
ca em dano dos pequenos e humildes. [...]
Numa sociedade em que as torpezas humanas assim apareciam sem
véu [exemplo de um rei que mata o filho e de outro que arranca os
olhos de clérigos], o julgá-las era fácil. O dificultoso era condená-las.
Na extensa escala do privilégio, quando um feito ignóbil ou criminoso
se praticava, a sua ação recaía, por via de regra, sobre aqueles que se
achavam colocados nos degraus inferiores ao perpetrador do
atentado. [...] Mas no meio do silêncio tremendo de padecer incrível
e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria
cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e
longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz
de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga e
patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem
o saber, males e opressões de humildes.” (p. 25-26)
Bobo da corte como um “vingador” do povo oprimido

- Mas será retratado por


Herculano como um herói?

- herói é um exemplo de
conduta: valores morais
(Ivanhoe, de Walter Scott)
e/ou sentimentos nobres
(Quasímodo, de Notre Dame
de Paris, é movido pelo amor
a Esmeralda)
“Passadas estas horas de convivência ou de deleite, que eram como
uns oásis na vida triste, dura, trabalhosa e arriscada da Meia Idade, o
bobo perdia o seu valor momentâneo, e voltava à obscuridade, não à
obscuridade de um homem, mas à de um animal doméstico . Então os
desprezos, as ignomínias, os maus tratos daqueles que em público
haviam sido alvo dos ditos agudos do chocarreiro, caíam sobre a sua
cabeça humilhada cerrados como granizo, sem piedade [...]. Se
naqueles olhos então assomassem lágrimas, essas lágrimas seriam
ridículas, e cumpria-lhe tragá-las em silêncio; se um gemido se lhe
alevantasse da alma, fora necessário recalcá-lo, porque lhe
responderia uma risada; se a vergonha lhe tingisse as faces, deveria
esconder o rosto, porque essa vermelhidão seria bafejada pelo hálito
de um dito de torpeza; se uma grande cólera lhe carregasse o gesto,
tornar-lhe-iam como remédio um insolente escárnio. Assim no largo
tirocínio de um dificultoso mister, o seu primeiro e capital estudo era
varrer da alma todos os afetos, todos os sentimentos nobres, todos os
vestígios da dignidade moral; esquecer-se de que havia no mundo
justiça, pudor, brio, virtude.” (p. 28).
[nota de rodapé, explicando o que eram os cavalariços]
“Dizemos o que eram porque deles não se faz menção alguma
no Elucidário, e levíssima em Ducange, verbo: Caballarius. Vê-
se, porém, em que consistia este cargo servil de um
instrumento de ingenuidade de 1033 (Colec. de var. privileg., T.
5º, Doc. 3º). Fique dito por uma vez que todos os nomes que
empregamos, cenas que descrevemos, costumes que pintamos,
são rigorosamente históricos. Fácil nos fora sumir em um
pélago [abismo] de citações; mas falece-nos a fúria da
erudição. E não seria ela ridícula no humilde historiador de um
humilíssimo truão [bobo da corte]?” (p. 32)
“Devemos crer, ao menos piamente, que o Conde Henrique, na
época em que alevantou o castelo de Guimarães, não lançou nos
fundamentos do seu edifício soberbo um cárcere seguro e vasto
com os intuitos de rapina que guiavam o comum dos senhores
nestas tristes edificações [no parágrafo anterior, o narrador
explica que os senhores feudais costumavam raptar judeus ou
outros inimigos com o intuito de extorquir-lhes dinheiro]. Ainda
que algum documentinho de má morte provasse o contrário
cumpria-nos pô-lo no escuro, ou contestar-lhe francamente a
autenticidade, porque o conde foi o fundador da monarquia, e a
monarquia desfunda-se uma vez que tal coisa se admita. Assim é
que se há de escrever a história, e quem não a fizer por este
gosto, evidente é que pode tratar de outro ofício.” (p. 152)
Contraste com discurso nacionalista do narrador

“Sejam as memórias da pátria, que tivemos, o anjo de Deus que


nos revoque à energia social e aos santos afetos da
Nacionalidade.
[...] que o drama, o poema, o romance sejam sempre um eco
das eras poéticas da nossa terra. Que o povo encontre em tudo
e por toda a parte o grande vulto dos seus antepassados. Ser-
lhe-á amarga a comparação.” (p. 17)
2 planos:
1) conflito político/nível coletivo: D. Afonso Henriques x D. Teresa
(Conde de Trava)
2) conflito amoroso/nível individual: Egas Moniz x Garcia Bermudes

Egas Moniz x Garcia Bermudes

Dulce

↓ ↓
D. Afonso Henriques Conde de Trava
de uma família tradicional do espanhol/estrangeiro
Condado Portucalense (inimigo)
Herói? Vilão?
[sobre Egas Moniz ter partido para as Cruzadas]
“Nascido com espírito ardente, trovador e guerreiro, Egas precisava de
obter glória, porque as almas poéticas daquele tempo não compreen-
diam o amor sem renome, nem talvez sem este o encontrariam no seio
de nobre donzela, digna de sua afeição. A Terra Santa era naquela
época o campo mais fértil para os ceifadores de glória: as reputações
adquiridas na Palestina retumbavam por todo o orbe cristão. Era o
amor quem arrastava Egas para essa vida de riscos, privações e
combates? Quem poderia dizê-lo? Ninguém sequer o pensou.” (p. 36)

“Garcia Bermudes, cavaleiro aragonês, valido [protegido] do conde de


Trava, e uma das melhores lanças de Espanha, que com ele viera a
Portugal. Dotado de generoso ânimo, mas sobradamente altivo e
confiado no próprio mérito, Garcia Bermudes amava a donzela querida
de D. Teresa, e esperava ser correspondido; porém no coração de
Dulce achara um afeto que lá não quisera encontrar: amor sim mas
amor de irmã.” (p.36)
Egas finge ser movido pelo nacionalismo/lealdade a Afonso
Henriques (face externa: interesse coletivo), mas é movido pela
paixão/ciúme de Dulce (verdade revelada pelo narrador: interesse
individual)

“Que [Egas] pretendia? A que vinha ali [no Castelo de Guimarães]


como um salteador noturno? Ele mesmo não o sabia ao certo. Era
apenas uma vaga esperança de ainda ver Dulce, de lhe exprobrar a
sua leviandade, de lhe dizer tudo quanto o ciúme e a desesperação
lhe ensinassem. Desde que a fama dos amores da donzela com
Garcia Bermudes chegara aos seus ouvidos, não houvera para ele
repousar um instante. Buscando qualquer pretexto plausível para se
dirigir a Guimarães, logo que chegara ao arraial do infante [Afonso
Henriques] se oferecera para indagar da própria boca de Gonçalo
Mendes [no Castelo de Guimarães] qual seria a sua resolução final
na luta que se ia travar.” (p. 81)
Dulce: fragilidade feminina romântica + altivez
“O caráter de Dulce era um misto inexplicável de candura e de
energia, em que a fraqueza própria do seu sexo era muitas vezes
subjugada pelo sangue nobre e generoso que lhe girava nas veias
[...].” (p. 86)

[Fernando Peres deseja casar Dulce com Garcia, como forma de


garantir o apoio do cavaleiro e manter sua influência sobre a rainha,
e ao mesmo tempo se vingar de Egas Moniz, que apoiava Afonso
Henriques]
“O leitor conhece já o caráter de Dulce: o primeiro instante de uma
situação arriscada era para ela o da fraqueza mulheril, mas era só
um instante. Mediu o abismo que se lhe abria debaixo dos pés...
[...] Era necessário resistir: era necessário coligir todas as forças da
sua alma. Trêmula, mas com energia, atalhou Fernando Peres:
 - Não, senhor de Trava! [...] a rainha de Portugal tem direito a
dispor da sua mão [...]. Mas vós, senhor conde, qual é o vosso
título para constranger minha vontade? [...]
A rainha olhava atônita para Dulce, cuja palidez e voz trêmula
desmentia a resolução das suas palavras. [...] Dolorosa era a
situação de D. Teresa. Amava sinceramente Dulce; mas entre ela e
o conde havia laços que não podia, que não quisera quebrar. [...]
Abaixou o rosto, e duas lágrimas lhe escorreram pelas faces.
O alferes-mor [Garcia], porém, a fez sair daquele estado violento.
- Não – disse ele aproximando-se de Dulce –, não serás minha
vítima! Garcia Bermudes nunca se esquecerá do dever de
cavaleiro. Seria acaso a minha vida mais risonha possuindo-te,
quando o teu coração... me rejeita? – Sê livre!” (p. 105-107)
“[após cantar uma trova ridicularizando Garcia e o conde de Trava] O
bobo leu no aspecto de Fernando Peres que se achava num daqueles
transes arriscados, em que as suas injúrias, em vez de aplausos, só
lhe acarretavam maus tratos. Todavia o dito estava dito. [...] Fez
rapidamente o seguinte dilema: ou a extrema ousadia me salva ou o
que já disse me perde. [...]
- Dizia esta humilde criatura que vós, mui nobre D. Garcia, sois parvo
em perseguir com vossos ridículos amores a minha boa Dulce; e que
vós, senhor conde de Galiza, nos faríeis especial mercê em irdes
visitar as corujas do vosso castelo de Faro... [...] Deixando, com os
vossos galegos brutais e com os vossos aragoneses estúpidos, os
nobres paços de Guimarães àquele que os herdou de seu pai, o tio D.
Henrique, antigo truão de minha corte...” (p. 68)

- D. Bibas é chicoteado, assim como Quasímodo


- Quasímodo recebe a compaixão de Esmeralda, que lhe dá água 
experiência negativa lhe desperta o amor, ao contrário de D. Bibas
“Todo o fel, que o rir forçado de tanto tempo lhe fizera, por assim
dizer, absorver e calcar no coração, achou enfim um resfolegadouro
no ódio implacável que a dolorosa e terrível afronta recebida lhe
gerara lá dentro. O pensamento da vingança alcançara o que não
haviam obtido as lágrimas: Dom Bibas sentia agora que ainda havia
para ele consolação e esperança. Mas como vingar-se? Ignorava-o.
Juraria contudo que Belzebu lhe dizia ao ouvido: ‘Pensa bem; que
hás de atinar com o caminho que buscas.’ Quem deixou de achar
meios neste mundo para satisfazer paixões más?” (p. 118)

- Conde de Trava manda fechar as portas do Castelo, para evitar


que cavaleiros saíssem para se juntar às tropas de Afonso
Henriques, acampadas do lado de fora.
- Gonçalo Mendes da Maia (o Lidador) e Frei Hilarião desejam ir ao
encontro de Afonso Henriques, e D. Bibas os ajuda a sair do castelo
(conhecia os subterrâneos, pois era onde dormia)
“– Fr. Hilarião – interrompeu o bobo –, entre a vida que foi, e a
que é e há de ser, há para mim um abismo. Cavaram-no os
estrangeiros; mas eu os despenharei aí! E depois Dom Bibas, o
folião, o bobo, assentar-se-á na borda dele [do abismo] para lhes
alegrar a queda: para rir e zombar. À pergunta que fizeste se
haveria meio de sair de Guimarães este nobre cavaleiro [...] e os
homens de armas da Maia, respondi eu que havia. Juro que não
menti. Tenho para isso meio fácil. Podeis aproveitar-vos dele, se é
que o benefício de um bufão [bobo da corte] não desonra um
rico-homem de ilustre linhagem. [...]
- Fico tranquilo! – disse por fim Gonçalo Mendes. – A injúria cruel
que recebeste [o açoite] e essa sede de vingança são os teus
fiadores.” (p. 116)
“D. Bibas não era bobo: era o diabo.” (p. 41)
“[...] mas é certo que essa voz [de D. Bibas] despertava na sua alma
[de Garcia] lembranças de morte e uma indizível tristeza. Revoou-
lhe então lá dentro o pensamento de que no cantar do truão havia
o que quer que fosse fatídico, e no seu olhar brilhante o que quer
que fosse diabólico.” (p. 49)
“- Está bom! Ninguém se compadece de mim! [quando foi
açoitado] [...] O bobo receberá essa afrontosa pena; mas ele se
converterá num demônio...” (p. 70)

“Ali, ora escutando, ora coando pela memória um a um os açoutes


que recebera e as chufas e apupos dos cavalariços e servos, ele
despertava na própria fantasia um tropel de vinganças imaginárias,
a qual delas mais absurda e exequível. O louco por arte desde que
deixara de rir tocava quase as raias da verdadeira loucura.” (p. 119)
“Fernando Peres receava-se de uma traição de senhores e
cavaleiros ilustres, e era ele vilão humilde, ele jogral, ele verme
desprezível que o mui nobre conde crera esmagar num
momento de cólera, quem podia entregar Guimarães ao
infante, e despedaçar nas mãos do ambicioso e altivo barão não
só o poder mas a vida.” (p. 119-120)
O responsável pela vitória de Afonso Henriques foi um “reles”
bobo da corte
“Deus ou o demônio lhe trouxera ali os instrumentos da
vingança. Dando saída ao Lidador e aos seus cavaleiros, o
esforçado senhor da Maia ficaria sabendo o meio de saltear este
vasto e sólido castelo, que aliás parecia inconquistável.” (p. 121)
Egas Moniz x Garcia Bermudes
[Gonçalo Mendes da Maia propõe que alguém vá a Guimarães
tentar um último acordo de paz ]
“O coração [de Egas] palpitava-lhe ao lembrar-se da promessa
que fizera a Dulce [...]. A proposição do Lidador lhe reanimou [...]”
(p. 130)
“- Depois de três anos de ausência [...], voltei a Portugal para
servir na paz ou defender na guerra o filho de meu senhor.” (p.
131)  face externa
“Qual seria o tumulto de afetos que passavam pela alma do
mancebo, facilmente suporá o leitor. Todos eles se resumiam num
só: o de tornar a ver Dulce.” (p. 132)  motivação verdadeira
Conde de Trava manda prender Egas Moniz

“[Garcia] tinha ficado imóvel enquanto durou aquela luta desonrosa


para Fernando Peres e para os seus cavaleiros [que prenderam Egas].
No gesto do generoso Garcia pintavam-se ao mesmo tempo a
vergonha, o ódio e a piedade. Ele quisera vingança; mas repugnava
ao seu coração uma vingança atroz e covarde.” (p. 141)  Garcia
segue os valores morais da cavalaria

“A ideia de prender a si [o Conde] o esforçado aragonês [Garcia],


fazendo-lhe obter a mão de Dulce, já não era o principal motivo que
obrigava Fernando Peres a ocupar-se de alheios amores no meio dos
sérios cuidados que o cercavam. [...] Cumpria-lhe vencer a
resistência de uma herdeira ilustre, e fazer calar a repugnância da
rainha diante de sua forte vontade. [...] A estas considerações se
ajuntava um prazer mesquinhamente ferino; e por isso no rosto do
conde deslizara sorriso atroz. Se Egas amava Dulce, ele podia 
acrescentar-lhe na morte mais um martírio; se Dulce amava o
mancebo, ela própria seria o instrumento desse martírio, crendo
salvar o seu amante. Era um desígnio bárbaro o que o senhor de
Trava formara; mas por isso mesmo deleitoso para aquela alma
repassada de maldade e de fel.” (p. 143)

- Conde de Trava engana Dulce, prometendo a ela que, se aceitasse


casar com Garcia (e o convencesse que o amava, já que Garcia não
se casaria com ela forçada), Egas não receberia a pena de morte.
- Dulce tenta salvar Egas e se sacrifica, enganando Garcia e se
casando com ele, mas Egas é condenado mesmo assim.
- Dulce convence a rainha a lhe arranjar a chave da cela de Egas,
para tentar libertá-lo, mas ele se recusa a sair (por se julgar traído
por ela)
- D. Bibas se disfarça de padre (finge que vai dar a extrema-unção) e
propõe trocar de lugar com Egas (mesma cena de Ivanhoe, de Scott,
em que um servo troca de lugar com seu amo, por lealdade a ele)
- D. Bibas ajuda Gonçalo Mendes da Maia e Egas para que sirvam
como instrumentos de sua vingança contra o Conde de Trava

“– Cavaleiro namorado [Egas], bem sei que tua dama é já de outrem!


– insistiu o bobo. – Mas não achas uma ideia grande de que te
alimentes ainda? Um destino a satisfazer? Um nobre feito a
prosseguir? Também para mim, nesta vida risonha e folgada de
bufão, houve uma hora de agonia e desesperação como a tua, e vivi!
Vivi para vingar-me: para a vingança deves tu viver, se és um
homem. Mal sabes que prazer é o responder com a injúria à injúria,
com o martírio ao martírio! [...]
– Não digas mais! Tens razão, o vingar-se é o prazer supremo de um
réprobo! Não aceitei dela a liberdade: aceitá-la-ei de ti.” (p. 163-164)
- Se Egas era antes movido pela paixão e pelo ciúme, agora passará
a ser movido pela vingança, tal como D. Bibas
- não há a defesa dos valores morais da cavalaria; o nacionalismo
(lutar por Afonso Henriques) é só um pretexto

“- Não há tempo a perder – prosseguiu o bobo, começando a


despir a cogula [túnica] que trazia vestida. – Toma este hábito e sai,
curvado e escondendo o rosto [...]
- Mas qual será a tua sorte quando na hora fatal os algozes,
buscando a sua vítima, só te encontrarem a ti? – disse o cavaleiro,
hesitando.
- Pensas tu que, se a cabeça me corresse algum risco, eu a exporia
para te salvar? Oh que não! Também tenho a minha vingança e
quero folgar depois de a ver satisfeita. Deixar-me-ão aqui; porque
o conde de Trava não voltará esta noite: e amanhã... oh, amanhã...
Gonçalo Mendes da Maia virá soltar-me... Sei certo que há de vir.”
(p. 164)  Não há sacrifício heroico, como o servo de Ivanhoe
“A sorte das armas e a vingança de Dom Bibas tinham resolvido os
futuros destinos de Portugal. Não foi esta a primeira vez, nem será a
última, em que uma batalha ou um caturra [teimoso] influam na
existência ou não-existência, no modo de ser ou não-ser destes
corpos morais chamados nações” (p. 167)

“Mas por que não procuraram os vencidos amparar-se dentro dos


fortes muros e torres do castelo de Guimarães? É o que não nos diz a
história. Pouco importa: di-lo-emos nós. A história não conheceu
Dom Bibas, e Dom Bibas, muito em segredo o revelamos aqui aos
leitores, nos oferece a chave deste mistério. O bobo tornara
impossível semelhante arbítrio [os inimigos se protegerem dentro
dos muros do castelo], e porventura ajudara a descer do céu a
benção que cobriu as armas de Afonso Henriques.  ironia (Ourique)
Este não se esquecera do modo por que e do caminho [túneis
subterrâneos] por onde o esforçado senhor da Maia escapara às
garras do nobre tigre de Galiza.” (p. 167)
- as tropas de Afonso Henriques atacam o castelo não só fora, mas
também por dentro, usando os túneis subterrâneos ensinados por D.
Bibas na fuga de Gonçalo Mendes da Maia
- em O Bobo Herculano inverte as posições: “[...] em vez de colocar
Afonso Henriques dentro do castelo — como parece que terá sido —,
instala lá D. Teresa e Fernão Peres de Trava, pondo o príncipe do lado
de fora, a cair sobre Guimarães com as suas tropas” (Diogo Freitas do
Amaral, D. Afonso Henriques, Biografia, 2001, p. 45).
- Herculano menciona a versão oficial da Batalha de São Mamede no
primeiro tomo de sua História de Portugal (Cf. Herculano, 1846),
escrita apenas três anos depois de O Bobo, baseada em pesquisas
que desenvolvera desde o final da década de 1830 (ou seja, conhecia
o que realmente acontecera)
- o romance não deve ser um retrato exato da História, e sim uma
interpretação dessa História: “[...] humilde historiador de um
humilíssimo truão” (p. 32).
“Terrível momento foi para a bela infanta [D. Teresa] aquele em que
as lanças de Fernando Peres [amante] e de Afonso Henriques [filho]
se enristaram frente a frente [mas a multidão os dispersa].” (p. 171)
 romance não mostra Afonso Henriques como um herói

“Nesta mesma ocasião dois guerreiros também rivais [Egas e


Garcia] , mas rivais por um afeto mais violento ainda que a
ambição, haviam visto enfim satisfeito o seu ódio encontrando-se.
[...]
Por fim o cavaleiro de Riba de Douro [Egas] começou a levar
visivelmente a melhoria ao generoso alferes-mor [Garcia]. Este não
previra o recontro que o aguardava: o ódio de Egas havia, porém,
calculado placidamente tudo. Assim, pela primeira vez ele deixara
de combater ao lado do infante [Afonso Henriques], vendo-o
cercado de inimigos. [abandona o futuro rei na batalha] 
Como a luz do astro da noite se desvanece ao subir no oriente o
Sol, do mesmo modo o ardente fogo da amizade amortece e se
apaga quando se acende ou fulge o facho das duas mais ardentes
paixões humanas: a vingança e o amor.” (p. 171-172)
- o individual (paixão/vingança) se sobrepõe ao coletivo
(nacionalismo/lealdade)
- Egas: trajetória de decadência moral
- posteriormente, Egas diz que assassinou Garcia; não foi uma
morte honrosa em batalha
“Digo-to eu que o matei [...] ajoelhei então sobre o peito dele que
arquejava... Foi para o assassinar!” (p. 177)
- leva o corpo de Garcia ao mosteiro, e procura Dulce, para
humilhá-la (sempre a trata como “esposa de Garcia”). Nunca
reconhece que ela não o traiu, mas que se sacrificou para salvá-lo.
“- Dizei à ilustre prestameira [dona]de Bravais, à nobre esposa do
alferes-mor de Portugal, que seu marido e senhor lhe ordena se
dirija ao mosteiro de Guimarães [...].
Pareceu-lhe [a Dulce] conhecer a voz que bradava; mas logo refletiu
que era ilusão. Essa voz não podia chegar até aquele lugar, porque a
abóbada de um cárcere a abafava, e porque semelhante mensagem
repetida por tal boca seria monstruosidade impossível.” (p.174-175)

“[Egas] – Eterno que fosse o teu esperar seria inútil – respondeu o


cavaleiro. – Ele te precedeu aqui. Fui eu que o guiei; eu que em
nome dele chamei sua mulher; eu que os quero ver unidos. Eis quem
eu sou: eis onde ele está.
E puxando com força o pano negro da tumba, o cadáver de Garcia
Bermudes com a sobreveste ainda ensanguentada, e com os olhos
baços ferozmente abertos, apareceu diante de Dulce.
A desgraçada contemplou-o por alguns instantes; depois fitou a vista
no cavaleiro: duas lágrimas caíam-lhe em fio pelas faces.”(p. 177)
“- Egas, por que não rezais também por Garcia Bermudes? Era um
nobre e generoso cavaleiro aquele que o destino quis fosse meu
senhor e marido. Morreu defendendo sua rainha: Deus há de
amercear-se dele, se vós lhe perdoardes como eu lhe perdoo o mal
que involuntariamente nos fez, a desventura de que teceu os dias da
nossa vida.
- Nem eu lhe perdoo, nem Deus se amerceará dele – atalhou o
cavaleiro com um sorriso atroz. – Não! para ele não há céu nem
esperança. Morreu impenitente e maldito. Digo-to eu que o matei.
Ouves, mulher de Garcia? Fui eu que o matei! [...] ajoelhei então
sobre o peito dele que arquejava... Foi para o assassinar! [...] Viúva
do aragonês, amaldiçoa o assassino de teu marido, e não rezes pelo
condenado: as portas do inferno não se abrem com orações. Trocou
o leito do noivado pelo dos tormentos eternos aquele a quem te
prostituíste: deixa-o lá repousar, e não mistures um pensamento do
céu na abominação da nossa existência.” (p. 177-178)
“- Deus te recompense, Egas, pelo bem que me fizeste com essas
palavras! A tua imagem estava gravada na minha alma pura, santa,
formosa: era um laço indissolúvel, o último laço que a prendia ao
meu negro viver. [...] Turbaste essa imagem com o lodo de um
assassínio: com a tua primeira covardia. Posso agora morrer. Só te
peço que te afastes para te eu não ouvir nem ver... Deixa-me
expirar abraçada com a memória do passado, com a lembrança do
nosso amor inocente; deixa-me até o fim amar o meu Egas; deixa-
me esquecer de ti, que não és já ele Egas, meu querido Egas...
afasta daqui este homem vil e perverso, que ousa dar à tua Dulce o
nome de mulher perdida!...” (p. 178)

- Egas decide se tornar monge.


- Ao perceber que não havia mais esperanças para ficarem juntos,
Dulce morre  depois veremos o mesmo tema em Amor de
Perdição
“No outro dia sepultavam-se em duas sepulturas diversas, na galilé
do mosteiro de D. Muma, o alferes-mor da rainha D. Teresa
[Garcia] e sua nobre esposa e herdeira dos Bravais [Dulce], que
expirara de dor, segundo se dizia, ao pé do féretro [caixão] do seu
ilustre e valente marido, morto na batalha do campo de S.
Mamede.
Gonçalo Mendes da Maia, tenente por Afonso Henriques do
castelo de Guimarães, e o abade de S. Salvador [Fr. Hilarião] assim
o haviam ordenado [porque eram amigos de Egas e sabiam da
verdade], separando na morte aqueles que a benção do sacerdote
tinha unido para sempre na vida.
Foi um pequeno escândalo em que as beatas do burgo falaram
muito, com variados comentários.”(p. 180)
 Ridicularização da hipocrisia religiosa
“Um noviço do mosteiro, que ninguém conhecia [Egas Moniz],
apareceu morto ao romper de alva do terceiro dia sobre a lousa
da sepultura de Dulce. Na face da pedra tinha escrito duas
compridas trovas, que um monge curioso copiou num
pergaminho que guardou no cartulário do mosteiro, onde ainda
no décimo sexto século se conservava. Quem as quiser ler
procure-as na ‘Miscelânea’ de Miguel Leitão de Andrade...
Foi caso em que todos cismaram.” (p. 180)

 história de Egas e Dulce não está relatada pela História oficial


 tópica do manuscrito encontrado: não é ficção, essa história
pode ser encontrada num livro (jogo com o leitor)
“Provavelmente o leitor deseja saber o que foi feito de Dom
Bibas, e das mais personagens desta importantíssima e mui
verdadeira história. Dir-lho-emos em breves palavras.
[...] Dom Bibas reconquistou a paz de espírito com o gosto da
vingança; e ainda por muitos anos alegrou os saraus do seu
senhor D. Afonso. Morreu velho, deixando o importante cargo
que exercitava aos dois célebres truões de Sancho I, Bonamis e
Acompaniado.” (p. 181)

 Ao citar os nomes de dois bobos da corte registrados pela


História oficial, Herculano confere status de veracidade a D. Bibas
 estratégia narrativa: a ficção às vezes conta o que a História
não diz
- A Batalha de Ourique (1139) é “a pedra angular da monarquia
portuguesa” (Ana Isabel Buescu), mas a Batalha de São Mamede
(1128) a precedeu. É nela que Afonso Henriques derrota a sua mãe e
assume o trono do Condado Portucalense, portanto, desencadeará,
posteriormente, a aclamação de Afonso Henriques como o primeiro
rei português, após a Batalha de Ourique.
- ao retratar a Batalha de São Mamede, Herculano retrata o início da
formação da nação portuguesa
- o responsável pela vitória de Afonso Henriques na Batalha de São
Mamede é D. Bibas, um “reles” bobo da corte  a História é
construída não por Deus, mas pelos homens. E, sobretudo, pelo
homem mediano (Lukács)
- D. Bibas não é movido pelos valores morais da cavalaria, nem por
sentimentos nobres, como o amor ou a lealdade: é movido pela
vingança  associação de D. Bibas ao diabo/Belzebu ironiza o mito
da origem divina da nação
- Egas Moniz, o personagem que deveria se aproximar da imagem
de herói do romance, é movido pelos seus interesses pessoais
(paixão/ciúme/vingança), e não pelo coletivo (nacionalismo ou
lealdade a Afonso Henriques)
- Garcia Bermudes, ao contrário, age segundo os valores da
cavalaria. Deveria ocupar o papel de vilão (dicotomia não é tão
clara)
- ausência de um olhar idealizado sobre o passado nacional
- 1ª versão do romance traz um parágrafo final na Introdução, que
foi publicado na revista O Panorama e posteriormente retirado 
não traz somente um olhar negativo do presente, mas também um
olhar desencantado sobre o passado:
“Contar-vos-emos, pois, uma história do tempo antigo, áspera e mal
limada como ele; uma história da infância da monarquia. Tenebrosa
e má foi essa infância; porém não tão tenebrosa e má como a sua
velhice” (Herculano, 1843, p. 12).
- desencanto com o presente também se reflete no desencanto
com o passado  não foi possível construir uma nação melhor
- Herculano lutou nas Guerras Liberais, mas, após a vitória do
liberalismo, Portugal piorou (Costa Cabral)
- Herculano era um nacionalista: empreitada monumental ao
escrever a História de Portugal
- mas O Bobo mostra que a ficção traz um olhar mais “completo”
sobre a História
- romance que possui muitas contradições: discurso nacionalista
do narrador x olhar desencantado sobre a formação da nação por
meio do enredo
- será por isso que não conseguiu publicá-lo em livro durante a
vida, e supostamente passou três décadas tentando reescrever o
romance?

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