Você está na página 1de 2

"CRÓNICA DE D.

JOÃO I"

UM SÓ CORAÇÃO EM DIREÇÃO AO FUTURO, de FERNÃO LOPES

Análise de Miguel Real

(https://www.e-cultura.pt/artigo/20045, acedido em 30/12/20)

Na Crónica de D. João I (primeira e segunda partes) concentram-se os dois temas que


elevam Fernão Lopes (c.1380 – c.1459) a singular cronista dos finais da nossa Idade
Média: o lugar privilegiado concedido à História e ao Povo. As narrativas de Fernão
Lopes, mormente a referida, alteram radicalmente a conceção então praticada de
história, abandonando a narração das linhagens míticas e das aventuras fabulosas e
sobrenaturais próprias da Crónica Geral de Espanha, de 1344, e do Livro de Linhagens
do Conde D. Pedro, bem como a história das gestas relatadas ao modo da “matéria da
Bretanha, como o Livro de José de Arimateia ou a Demanda do Santo Graal, para
introduzirem um novo conceito de História enquanto relato empírico e vivencial de
situações sociais conflituosas, uma narrativa preocupada tanto com o rigor
documental quanto com o confronto de versões, trazendo para a construção da
história a escrupulosa minúcia verificante do tabelião-mor, que Fernão Lopes também
foi.
Com este o escrúpulo do rigor na história, e dando-lhe sangue, carne e nervos, Fernão
Lopes introduz igualmente na literatura portuguesa o horizonte popular ou as
aspirações coletivas e os movimentos sociais vinculados ao crescimento urbano que
Portugal sofrera desde D. Diniz.

De origem burguesa, de não elevados rendimentos, fazendo um com a mentalidade


simultaneamente europeísta e africanista da nova corte de Aviz, que a batalha de
Alfarrobeira inclinará para o prosseguimento desta última vertente, escrivão de D.
João I, de D. Duarte e do infante D. Fernando (o “Infante Santo”), Fernão Lopes é
elevado ao cargo de guarda-mor da Torre do Tombo a partir de 1418. Neste sentido, A
Crónica de D. João I constitui-se simultaneamente, enquanto bloco narrativo, como a
nossa certidão de óbito do final da medievalidade e a explosão de força anímica
coletiva que conduzirá diretamente à empresa dos Descobrimento. Neste sentido, a
Crónica de D. João I estatui-se como um livro charneira da nossa historiografia,
evidenciando a passagem entre o fim da dinastia borgonhesa, a primeira dinastia, de
espírito cruzadístico e templário, caldeada nas lutas da Reconquista, e a nova nobreza
nascida à sombra da dinastia de Aviz, não menos intrépida e aventureira, como os
subsequentes Descobrimentos o provarão, mas cuja visão assenta na racionalização
fria dos domínios da Coroa, sentido da ação régia de D. João II e D. Manuel I.

Do mesmo modo, a Crónica de D. João I espelha narrativamente uma das imagens


míticas da nossa história: o momento da plena fusão entre as pulsões populares e a
elite cavaleiresca vitoriosa de Aljubarrota, refundando o Estado e consolidando a
independência face a Castela. Neste sentido, a descrição dos movimentos da arraia
miúda aquando da morte de D. Fernando concorrem com a defesa das teses jurídicas
de João das Regras nas Cortes de Coimbra sobre a legitimidade do mestre de Aviz para
ascender ao trono, como se, com exceção da antiga nobreza em que a I Dinastia se
cristalizara, Portugal pulsasse a um só coração em direção a um só futuro. O que nos
atrai hoje nesta crónica de Fernão Lopes é menos a história real e mais a chama e o
resplendor desta tão bem sucedida união nacional entre mesteirais (artífices),
burgueses e nobres sob a direção de um só chefe político (D. João) e um só chefe
militar (D. Nuno Álvares Pereira).

Comprometido com a nova corte, não causa espanto, assim, que Fernão Lopes confira
aos seus relatos históricos um empenhado vigor nacionalista, de que ressalta a
imagem de Aljubarrota como uma nova carta de nascimento do país e a nova situação
política como a realização da “sétima idade do mundo”, nacionalismo igualmente
patente nas condições materiais da escrita da Crónica de D. João I, redigida pelo
“guarda-mor” da Torre do Tombo, que aufere uma “tença” para se dedicar
integralmente à escrita da história de Portugal, desde D. Afonso Henriques a D. João I.
Dito de outro modo, em momento de criação de uma nova dinastia régia, as crónicas
de Fernão Lopes, e mormente as duas primeiras partes da Crónica de D. João I revelam
a necessidade de uma legitimação histórica do novo poder saído de uma insurreição
popular e de um corte radical com a tradição dinástica.

Você também pode gostar