Você está na página 1de 88

Rei Lear

Porto, Setembro/Outubro 2022

1
1.1
Palácio do Rei Lear
Entram Kent, Gloucester e Edmundo

KENT Julgava que o rei tinha mais afeição pelo duque de


Albania do que pelo da Cornualha.
GLOUCESTER E sempre foi o que nos pareceu. Mas agora, na partilha
do reino, não se vê a qual dos dois ele mais dá valor,
porque as parcelas são tão equilibradas que, por muito
que se procure, não se encontra razão de preferência.
KENT Este não é o vosso filho, senhor?
GLOUCESTER A sua educação tem estado a meu cargo. Já corei tanto
de dá-lo por meu que agora não me envergonha.
KENT Não posso conceber o que dizeis.
GLOUCESTER A mãe dele pôde concebê-lo, e pôde, enfim, senhor,
meter um filho no berço antes de meter um marido na
cama. Não vos cheira a pecado?
KENT Pena seria não ter sido cometido, sendo o fruto tão
apessoado.
GLOUCESTER Mas tenho também um filho legítimo, senhor, mais ou
menos um ano mais velho, que ainda assim não é maior
na minha estima. Mas era formosa a mãe deste e
houve bom gozo em fazê-lo. Conheces este nobre
fidalgo, Edmundo?
EDMUNDO Não, meu senhor.
GLOUCESTER É o conde de Kent. Toma-o de ora em diante por um
honrado amigo meu.
EDMUNDO Às ordens de vossa senhoria. (Fanfarra)
GLOUCESTER Aí vem o rei.
(Entram Rei Lear, Duques de Cornualha e de Albania, Goneril, Regan,
Cordélia e Seguidores)
2
LEAR Gloucester, vai receber o rei de França e o duque da
Borgonha.
GLOUCESTER Eu vou, senhor. (saem Gloucester e Edmundo)
LEAR Entretanto, eis o nosso oculto propósito. Dai-me esse
mapa. Sabei que dividimos em três o reino. E é nosso
firme intento sacudir da velhice todos os cuidados e
cargos, entregando-os a forças jovens para então,
aliviados, rastejarmos até à cova. Cornualha, nosso
genro e Albania, não menos filho, desejamos, agora
mesmo, tornar públicos os dotes das nossas filhas,
evitando assim, no presente, discórdias futuras. O rei de
França e o duque da Borgonha, rivais no amor da mais
nova, receberão aqui hoje resposta. Dizei, minhas filhas:
qual das três diremos nos tem mais amor? Goneril, nossa
mais velha, fala tu primeiro.

GONERIL Senhor, tenho-vos mais amor do que palavras podem


exprimi-lo. Mais do que a vista, o espaço e a liberdade;
não menos que a vida, a felicidade, a saúde, a beleza, e
a honra. Um amor que faz fraca a fala, e a razão incapaz.
Mais do que tudo e tudo, assim vos amo, senhor.

LEAR De todos estes territórios, desta linha até esta, com


matas cerradas e ricas campinas, rios caudalosos e
extensos prados, de todos, te fazemos dona. Aos vossos
descendentes, teus e de Albania, pertencerão,
perpetuamente. Que diz a nossa segunda filha, nossa
querida Regan, esposa de Cornualha? Fala.

REGAN Sou feita do mesmo metal da minha irmã, mas ela não
leu o bastante. Ora eu declaro-me, a mim própria,
inimiga de todo o prazer que há no quadrado perfeito
dos sentidos e sei que só me sentirei feliz no amor de
vossa alteza adorada.

LEAR Para ti e para os teus, hereditário para sempre, fica este


bom terço do nosso belo reino, nada inferior em espaço,
valor e beleza ao da tua irmã.
Agora tu, alegria dos meus olhos, a última, mas não
menos querida, cujo amor as vinhas de França e o me
3
da Borgonha disputam para casar. O que tens tu a dizer
em troca de melhor parte que a delas? Fala.

CORDÉLIA Nada, meu senhor.

LEAR Nada?

CORDÉLIA Nada.

LEAR Do nada, nada se cria. Dá outra resposta.

CORDÉLIA Bem infeliz sou, por não conseguir trazer à boca o


coração. Amo vossa majestade como é meu dever. Nem
mais, nem menos.

LEAR Que é isso, Cordélia? Emenda a tua fala para não


comprometer a tua fortuna.

CORDÉLIA Meu bom senhor, deste-me a vida, criação e amor.


Retribuo esses dons como é meu dever, obedeço, amo-
vos e venero-vos. Para que têm maridos as minhas
irmãs, se dizem que vos amam só a vós? Um dia, quando
eu casar, o senhor dos meus votos levará consigo
metade do meu amor, metade dos meus cuidados e dos
meus deveres. Nunca hei-de casar como elas, para amar
apenas meu pai.

LEAR Sai isso do teu coração?

CORDÉLIA Sai, sim, meu bom senhor.

LEAR Tão jovem, e tão endurecida?

CORDÉLIA Tão jovem, senhor, mas tão verdadeira.

LEAR Assim o queres, assim o terás. A verdade será então o


teu dote. Pois em nome da sagrada luz do sol, dos
mistérios de Hécate e da noite, por toda a operação dos
astros que governa o nosso ser e o seu fim, aqui abdico
do meu poder paterno, dos laços de sangue e

4
parentesco, e te considero estranha a mim e ao meu
coração. Para sempre! O bárbaro da Cítia ou aquele que
devora os próprios filhos, serão mais chegados ao meu
peito, mais chorados e confortados do que tu, que foste
minha filha.

KENT Meu bom amo

LEAR Silêncio, Kent! Não separes o dragão da sua fúria. Amei-


a muito, e queria dar o meu descanso ao seu terno
cuidado. – vai, sai da minha vista! – Basta-me a cova,
agora que lhe nego o coração de pai! Chamem o rei de
França. Tragam-mo! E o duque da Borgonha. Cornualha
e Albania, aos dotes de duas filhas, juntai este terceiro.
Que o orgulho, a que ela chama verdade, case com ela.
Invisto-vos a ambos no meu poder. Quanto a nós, com
cem cavaleiros na minha reserva que custeareis, iremos
fazer morada convosco, alternadamente. As rédeas do
governo, as rendas, as decisões, tudo isso será vosso,
meus filhos, e a confirmá-lo, partilhai entre vós esta
coroa. (Lear entrega a coroa a Albania e Cornualha)

KENT Grande Lear, a quem sempre louvei como meu rei, amei
como pai e servi como um mestre…

LEAR O arco está curvo e tenso, cuidado com a flecha.

KENT Ela que venha e me crave o coração. Kent tem de ser cru,
quando Lear é louco. Que queres fazer, velho? Julgas que
o dever há-de ter medo de falar se o poder se verga à
lisonja? Revoga a tua sentença, e emenda esta horrível
leviandade. Pela minha vida, a tua filha mais nova não te
ama menos.

LEAR Pela tua vida, não fales.

KENT A minha vida não foi mais do que um peão contra os teus
inimigos, nem temo perdê-la, se a tua segurança o exige.

LEAR Sai da minha vista!

5
KENT Cuida do que vês, Lear, e deixa-me ficar.

LEAR Por Apolo…

KENT Por Apolo, ó rei, apelas em vão aos teus deuses.

LEAR Ó vassalo! Ó herege!

DUQUES Senhor, parai!

KENT Mata o teu médico, e entrega o dinheiro à cura da tua


doença vergonhosa. Revoga a tua sentença, Lear, ou,
enquanto tiver um sopro de voz dir-te-ei que fazes mal.

LEAR Ouve-me, impenitente, em nome da tua vassalagem,


ouve! Queres levar-nos a quebrar a nossa palavra e
queres separar a nossa decisão, do nosso poder. Tens
cinco dias para preparar a tua defesa contra os males do
mundo; ao sexto, livra o nosso reino da tua odiosa
presença. E se, a partir do sétimo, o teu tronco banido
for por cá achado, é a tua morte. Vai-te! Por Júpiter, esta
decisão é irrevogável..

KENT Adeus, rei. Se é esse o teu mandamento a liberdade é


além, e cá é o degredo. (para Cordélia)
Que os deuses te cuidem, donzela, é justo o que pensas
e certo o que dizes. Adeus! (sai)
Trombetas. Entram Gloucester, Rei Francês, Borgonha e Seguidores.

GLOUCESTER Eis os senhores da França e da Borgonha.

LEAR Meu senhor da Borgonha, falamos primeiro convosco,


que disputaste com este rei a mão de nossa filha. Dizei
que mínimo aceitais em dote, ou já não sois
pretendente?

BORGONHA Real majestade, nem eu peço mais do que haveis


oferecido, nem decerto vós daríeis agora menos.

LEAR Bom nobre da Borgonha quando ela nos foi querida, teve

6
bom preço; agora o preço baixou. Senhor, ela aí está. Se
há alguma coisa, nessa fraca aparência, que agrade a
vossa graça, aí a tendes: é vossa.

BORGONHA Não sei o que responder.

LEAR Pergunto-vos, com todos os males que ela tem, sem


amigos, perfilhada pelo nosso ódio, com a nossa
maldição por dote, deserdada: ireis levá-la ou largá-la?

BORGONHA Perdoai-me, senhor real, uma escolha não se faz em tais


condições.

LEAR Então largai-a, senhor. (ao rei de França)


A vós, grande rei, nunca, nem ao vosso amor, farei
ofensa indo juntar-vos ao que odeio. Assim, peço-vos
que desvieis o vosso olhar para melhores bandas.

REI FRANCÊS É estranho: que essa que era inda agora o vosso melhor
bem, objecto dos vossos louvores, bálsamo da vossa
idade, a melhor, a mais querida, tenha feito, neste nada,
algo tão monstruoso e capaz de arruinar tão grande lista
de favores. A ofensa, é certo, há-de ser dum tal grau
contra a natureza que gerou um monstro, ou o vosso
proclamado amor andava doente.

CORDÉLIA Inda assim, peço a vossa majestade: se é por me faltar


essa arte suave e untada do falar sem fazer, suplico que
mandeis dizer que não foi vício, nem morte, nem
maldade, o que me privou da vossa graça e favor; mas a
falta daquilo que me faz mais rica: um olhar que sempre
pede, e uma língua que me alegra não ter, ainda que essa
falta me tenha custado a vossa afeição.

LEAR Melhor seria nunca teres nascido, para me dares tanto


desagrado.

REI FRANCÊS E é só isto? Um modo de ser cuidadoso que tem por


costume deixar por dizer o que pretende fazer? Meu
senhor da Borgonha, o que dizeis à dama?

7
BORGONHA Grande Lear, dai apenas o que haveis proposto, e agora
mesmo tomarei Cordélia pela mão, como duquesa da
Borgonha.

LEAR Nada! Foi o que jurei; mantenho a jura.

BORGONHA Lamento, então, que perdendo assim um pai tenhais de


perder também um marido.

CORDÉLIA Que vá em paz o duque da Borgonha. Já que as contas


da fortuna são o seu amor, não serei sua esposa.

REI FRANCÊS Formosa Cordélia, que sois tão rica, sendo pobre.
Escolhida e abandonada. Amada e desprezada! A ti eu
tomo e às tuas virtudes. A tua filha deserdada, ó rei,
lançada à sorte, é rainha nossa, rainha dos nossos, e da
bela França. Apesar de cruéis, diz-lhes adeus, Cordélia.
Perdes este lugar, outro melhor acharás.

LEAR Já a tens, Rei de França, e seja tua, que nós não temos
tal filha, nem voltaremos a ver nunca mais o seu rosto.
Vai-te pois, sem o nosso amor, a nossa bênção, o nosso
afecto. Vinde, nobre duque da Borgonha!
(Trombetas. Saem todos, menos o rei francês e as irmãs)

REI FRANCÊS Diz adeus às tuas irmãs.

CORDÉLIA Tesouros do nosso pai, é com olhos rasos de água que


Cordélia vos deixa. Sei quem sois e, como irmã, muito
me custa dar nome às vossas faltas. Cuidai bem do nosso
pai. Confio-o ao cuidado das vossas juras. Mas, ai de
mim! Estivera eu nas suas boas graças, recomendar-lhe-
ia um lugar melhor. Adeus!

GONERIL Não nos ensines o nosso dever.

REGAN Preocupa-te em contentar o teu senhor, que te acolheu


por caridade. És digna pedinte da vida que mereces.

CORDÉLIA O tempo há-de despir as pregas do engano. A quem

8
cobra faltas, a vergonha destapa. Ide e prosperai, se
puderdes!

REI FRANCÊS Vamos, formosa Cordélia.


(Saem o Rei Francês e Cordélia)

GONERIL Irmã, viste bem como a idade de nosso pai é cheia de


inconstâncias. O que observámos não foi nada pequeno.
Ele sempre amou mais a nossa irmã, e a precipitação
com que a escorraçou salta demasiado à vista.

REGAN É o mal da idade. Mas ele nunca se conheceu muito bem


a si próprio.

GONERIL Foi sempre destemperado. Assim devemos contar


receber da sua idade a teima desorientada que as
doenças e iras da velhice trazem consigo.

REGAN Tais achaques inconstantes são o que podemos esperar


dele, como este desterro de Kent.

GONERIL Devemos agir de comum acordo. Se o nosso pai maneja


a sua autoridade com a disposição que tem mostrado,
aquilo que acabou de nos ceder ainda pode prejudicar-
nos..

REGAN Temos de pensar mais nisto.

GONERIL Temos de fazer alguma coisa, enquanto é tempo.


(Saem)

9
1.2
Castelo do Conde de Gloucester
Entra Edmundo, com uma carta

EDMUNDO Tu, natureza, és a minha deusa; só à tua lei obedeço.


Porque haveria eu de ceder à praga dos costumes, e
permitir que a mesquinhez das regras me privasse,
apenas por ter vindo treze ou catorze luas depois dum
irmão? Bastardo porquê? Porquê ilegítimo? Se a minha
mente é tão generosa, o corpo tão proporcionado, e tão
bem parecido como o filho duma mulher honesta? E
dão-nos o nome de ilegítimo? Ilegítimo, bastardo?
Bastardo? Eu, que no lascivo resguardo da natureza fui
feito num vigoroso acto, com maior acordo e fervor que
na moleza, no mofo, duma cama cansada? Onde se cria
toda uma tribo de incapazes, feitos entre o adormecer e
o acordar, o sono e a luz? Pois bem, Edgar, irmão, quero
a tua terra. O pai ama tanto o bastardo Edmundo como
te ama a ti, filho legítimo. Belo termo, legítimo! Se esta
carta tem efeito, e o que quero se cumpre, Edmundo, o
bastardo, tratará de Edgar, o legítimo. Ergo-me e
prospero. E vós, deuses, juntai-vos aos bastardos!
(Entra Gloucester)
GLOUCESTER Kent, desterrado! França, vira costas! E o rei vai-se
embora esta noite! Abdicou do poder e tudo isto feito
golpe atrás de golpe. Edmundo, e agora? Há novas?

EDMUNDO Nenhumas, senhor, nada sei.

GLOUCESTER Para quê a pressa de esconder essa carta?

EDMUNDO Não sei nenhumas novas, senhor.

GLOUCESTER Que papel estavas a ler?

EDMUINDO Nada, meu senhor.

GLOUCESTER Não? Para quê então o atabalhoado despacho com que


foi para o teu bolso? Deixa ver. Anda, se é nada, não vou
precisar de lunetas.

10
EDMUNDO Peço-vos que me perdoeis. É uma carta do meu irmão,
que não li inteira, mas que, pelo que já espreitei, não é
digna dos vossos olhos.

GLOUCESTER Dá-me a carta. Vá, dá-ma cá!

EDMUNDO Digo, em defesa do meu irmão, que ele escreveu isto


apenas como um desafio ou teste à minha virtude.

GLOUCESTER “Este costume de venerar a velhice torna bem amargo o


melhor dos nossos dias, e afasta-nos da nossa fortuna,
até que a idade avançada nos impede de gozá-la.
Começo a sentir que é vã e tola esta servidão, de ser
assim oprimido por um pai velho e tirano, que manda,
não por ter poder, mas por ter quem suporte essa
opressão. Vem ter comigo, para te falar mais nisto. Se o
nosso pai pudesse dormir até que eu o acordasse,
gozarias metade da sua renda para sempre, e viverias
como o bem-amado do teu irmão. Edgar” Hum?
Conspiração? “Dormir até que eu o acordasse, gozarias
metade da sua renda” – Meu filho Edgar! Como pôde a
sua mão escrever isto? O cérebro e o coração concebê-
lo? Como? Quando recebeste esta carta? Quem ta
trouxe?

EDMUNDO Ninguém ma trouxe, senhor. Achei a carta largada no


parapeito da minha janela.

GLOUCESTER Reconheces a escrita como a do teu irmão?

EDMUNDO Se a matéria fosse boa, atrevia-me a dizer que é dele.


Mas sendo o que é, preferia que não fosse.

GLOUCESTER É dele.

EDMUNDO Da sua mão, é, senhor. Mas espero que não do coração.

GLOUCESTER Ele já te tinha procurado com este assunto?

EDMUNDO Nunca, meu senhor. Mas ouvi-o muitas vezes defender

11
que quando os filhos chegam à idade adulta e os pais ao
declínio da velhice, os pais deveriam ser tutelados pelos
filhos e os filhos deveriam administrar os bens.

GLOUCESTER Oh, vilão, vilão! Vilão infame! Filho degenerado, odiado,


selvagem – pior que selvagem! Vai rapaz, e procura-o. É
preciso prendê-lo. Vilão indigno! Onde está ele?

EDMUNDO Não sei ao certo, senhor. Apostaria a minha vida em


como escreveu isto para testar a afeição que vos tenho,
sem qualquer intenção criminosa.

GLOUCESTER Pensas que sim?

EDMUNDO Vou pôr-vos num lugar onde possais ouvir-nos a falar


disto, e com saber de ouvido tereis a vossa
confirmação. Ainda esta noite.

GLOUCESTER Guia-me até ele, peço-te. Estes últimos eclipses do sol e


da lua nada auguram de bom. A própria natureza é
flagelada pelos seus efeitos. O amor arrefece, a amizade
deslaça-se, os irmãos apartam-se. Nas cidades há
motins, nos campos, discórdia, nos palácios, traição. Os
laços estalam, entre pais e filhos. Este vilão a quem dei
vida confirma o agoiro: eis um filho contra o pai. O rei
desvia-se do curso natural: eis um pai contra o filho.
Maquinações, falsidades, traições, e todo o tipo de
perturbações funestas seguem-nos, inquietantemente,
até à sepultura. Encontra o vilão, Edmundo. Sê
prudente! E o nobre e fiel Kent desterrado! O seu crime:
ser fiel! Estranho, estranho. (sai)

EDMUNDO Aí está a estupidez magnífica do mundo! Quando a


fortuna nos é contrária, fazemos culpados do nosso
desastre o Sol, a Lua e as estrelas; como se fôssemos
infames por necessidade; tolos por vocação celeste;
velhacos, ladrões e traidores por imposição dos astros; e
tudo, enfim, em que somos maus, por empurrão divino.
Admirável arte da fuga da besta humana, essa de
apontar a culpa do seu génio cabrão à primeira estrela

12
do céu! Meu pai combinou-se com a minha mãe sob o
signo da Cauda do Dragão, e eu nasci sob a Ursa Maior –
sou, por isso, bruto e lascivo. Eu! A verdade é que teria
sido sempre o que sou, mesmo que tivesse cintilado
sobre a fornicação que me fez a mais virgem das estrelas.
(entra Edgar) E cá está ele! Chega como catástrofe na
comédia antiga.. – Oh, os tais eclipses é que causam
estas discórdias! Fá, sol, lá, mi.

EDGAR Então, irmão, em que meditas tão profundamente ?

EDMUNDO Estou a pensar numa previsão que li outro dia, acerca do


que se seguirá a estes eclipses.

EDGAR E perdes tempo agora com isso?

EDMUNDO Infelizmente, os efeitos de que fala o escrito não são


felizes. Quando viste o pai pela última vez?

EDGAR Porquê? A noite passada.

EDMUDO E falaste com ele?

EDGAR Sim, duas horas seguidas.

EDMUNDO E despediram-se a bem? Notaste-lhe algum desagrado,


nas palavras ou nos gestos?

EDGAR Nada de nada.

EDMUNDO Pensa bem em que é que o podes ter ofendido; e segue


o meu conselho: evita a sua presença, até que o tempo
passe e abrande o calor da sua ira...

EDGAR Alguém intrigou contra mim.

EDMUNDO É esse o meu medo. Peço-te que sejas prudente até a


força da raiva dele abrandar. Retira-te para os meus
aposentos; vai, peço-te. Se saíres, leva uma arma.

13
EDGAR Uma arma, irmão?

EDMUNDO É o conselho que te dou. Não seja eu um homem


honesto, se não há por aí más intenções a teu respeito.
Só te dei uma pálida imagem do que vi, e ouvi. Nada que
se aproxime da terrível realidade. Vai, anda.

EDGAR Saberei de ti em breve?

EDMUNDO Farei tudo por ti neste momento. (Sai Edgar)


Tenho um pai crédulo e um irmão nobre, cuja natureza
é de tal modo alheia a maldades que não suspeita que
os outros as façam. Já vejo tudo. O que não tenho pelo
nascimento, tê-lo-ei pelo meu engenho. Para mim, é
justo tudo o que me serve. (Sai)

14
1.3
Palácio do Duque de Albania
Entra Goneril e o seu mordomo (Osvaldo)

GONERIL O meu pai bateu no meu escudeiro só por ter


repreendido o seu bobo?

OSVALDO Foi, senhora.

GONERIL Dia e noite, constantemente me ofende. A toda a hora,


se lança com mais alguma ofensa bruta, que nos põe uns
contra os outros. Não aturo mais isto. Os seus cavaleiros
armam tumultos, ele próprio nos ralha por tudo e por
nada. Se te descuidares nos serviços que lhe prestas só
farás bem. Por essa falta eu respondo.
(Trombetas de dentro)

OSVALDO Ele vem lá, senhora, já estou a ouvi-lo.

GONERIL Diz-lhe que estou doente e sirvam com o descuido que


vos apeteça. Se não lhe agradar, que vá para a minha
irmã. Velho desvairado, que ainda quer ter mão na
autoridade que ele próprio largou! Vou escrever à minha
irmã para fazer como eu. Prepara a ceia. (Saem)

15
1.4
Palácio do duque de Albania
Entra Kent, disfarçado

KENT Se disfarçar a voz, como disfarcei o resto, poderei


alcançar o resultado pelo qual me desfigurei.
(Trombetas de dentro. Entram Lear e seguidores)

LEAR Não me façam esperar pela ceia, vai tu ver se está


pronta. (sai um seguidor) E tu aí, quem és?

KENT Um homem, senhor.

LEAR Que queres de nós? Qual é a tua profissão?

KENT É minha profissão de fé não ser menos do que pareço;


servir fielmente quem em mim confia; estimar quem é
honesto; conversar com aquele que é sábio e fala pouco;
temer o castigo; lutar quando não tenho outra escolha;
e não comer peixe.

LEAR Quem és tu?

KENT Um homem honrado e tão pobre como o rei.

LEAR Se és tão pobre como o rei, então és bem pobre. Que


queres?

KENT Servir.

LEAR A quem?

KENT A vós.

LEAR Conheces-me?

KENT Não, senhor, mas tendes na vossa figura aquilo que me


leva a tratar-vos por meu amo.

LEAR E o que é isso?

16
KENT Autoridade.

LEAR Que sabes tu fazer?

KENT Sei guardar um segredo, montar a cavalo, correr,


estragar uma boa história se a contar; o que um homem
simples sabe fazer, eu também o faço; a minha melhor
qualidade é a diligência.

LEAR Que idade tens?

KENT Não sou tão jovem, senhor, que me enamore duma


mulher pelo seu canto, nem tão velho que me apaixone
sem razão. Quarenta e oito são os anos que carrego.

LEAR Segue-me; ficarás ao meu serviço. Cear – hou! – cear!


Onde está aquele safado? O meu bobo? Tu, vai chamar
o meu bobo. (Sai outro seguidor. Entra Osvaldo)
E tu, tu, rapaz, onde está a minha filha?

OSVALDO Com vossa licença… (sai)

LEAR O que disse o fulano? Tragam cá esse casca-grossa.


(Sai seguidor) Onde está o meu bobo, eh? O mundo parece que dorme.
(volta seguidor) E então? Onde está o rafeiro?

SEGUIDOR Senhor, ele diz que vossa filha está indisposta..

LEAR E porque não voltou quando o mandei chamar?

SEGUIDOR Senhor, disse-me que não lhe apetecia.

LEAR Não lhe apetecia?! Onde está o meu bobo?

SEGUIDOR Desde a ida da minha jovem senhora para França, o bobo


definha a olhos vistos.

LEAR Já tinha notado. Vai dizer à minha filha que quero falar
com ela. (Sai Seguidor) Tu, vai chamar o meu bobo. (Sai

17
outro Seguidor. Volta Osvaldo) Hou! Vós, senhor, vinde
cá. Quem sou eu?

OSVALDO O pai da minha senhora.

LEAR “O pai da minha senhora!” – E tu, lacaio do meu senhor,


filho duma cadela, sabujo!

OSVALDO Desculpai, mas não sou nada disso, senhor.

LEAR E trocas olhares comigo, rascão? (bate-lhe)


´
OSVALDO Não consinto que me batam, senhor.

KENT(rasteira-o) Nem que te rasteirem; vamos, cavalheiro, é levantar e ir.


Gira daqui, gira! Gira, vá!. E tem juizinho. (Osvaldo sai)

LEAR Obrigado, amigo, sabes servir-me, saberei estimar-te.


Aqui está a paga do teu serviço.(dá dinheiro a Kent)
(Entra o Bobo)
BOBO Deixa que eu lhe pague também. Aqui tens a minha
crista.

LEAR Então, meu belo malandro, como vais tu?

BOBO (para Kent) Moço, é melhor pores a minha crista.

KENT Porquê, Bobo?

BOBO Porquê? Por tomares o partido de quem caiu em


desgraça. De mais a mais, se não souberes sorrir para o
lado de onde sopra o vento, vais constipar-te. Olha, este
pândego baniu duas filhas, contra a própria vontade
dele. Se o vais servir, vais precisar da minha crista. Então,
tiozinho? Quem me dera ter duas cristas e duas filhas!

LEAR E para quê, meu menino?

BOBO Se lhes desse tudo o que possuía, ficava com as cristas


para mim.

18
LEAR Cuidado, velhaco – o chicote.

BOBO Ouve, moço; vou ensinar-te um discurso. Ouve bem,


tiozinho.
Se mais do que mostras tiveres,
E mais do que falas souberes
Fala menos do que o que sabes,
Fecha a boca mais do que abres,
Deixa o teu corpo e a rameira,
E tranca-te em casa à lareira,
E hás-de ter muito mais de teu
Do que a tua sorte prometeu.

LEAR Isso não é nada, bobo.

BOBO Ai não? E tu, és capaz de fazer alguma coisa com nada?

LEAR Ora, não, menino, não se pode fazer coisa nenhuma com
nada.

BOBO (para Kent) Peço-te, diz-lhe tu que a tanto sobe o rendimento das
suas terras. Ele não quer acreditar num bobo.

LEAR Um bobo amargo!

BOBO E sabes a diferença, meu rapaz, entre um bobo amargo


e um bobo doce?

LEAR Não, menino, ensina-me tu.

BOBO (canta) Quem o conselho te deu


De dares tudo o que era teu,
Dá-lhe lugar ao pé do meu
Ou toma aquele que é seu.
E ficam postos lado a lado
Um bobo doce e um amargo:
Um de barrete encristado,
O outro sem coroa nem cargo.

19
LEAR Chamas-me bobo, rapaz?

BOBO Dos outros títulos que tinhas, abdicaste. Este é teu, de


nascença.

KENT Ele não é bobo de todo, senhor.

BOBO Por minha fé que não. Dá-me um ovo, tiozinho, e eu dou-


te duas coroas.

LEAR E que duas coroas serão essas?

BOBO Depois de partir o ovo ao meio, e de comer tudo o que


se come, o que sobra são as coroas. Dou-tas. Quando
partiste a tua coroa ao meio, e deste as duas partes,
foste como o velho do conto, que, no meio do lamaçal,
carregou o burro às costas. Faltou-te juízo na coroa
rapada, quando deste a coroa dourada. (canta) Os
bobos estão sem trabalho e sem ganhar
Porque os sábios ocuparam o seu lugar.

LEAR Desde quando cantas assim tanto, rapaz?

BOBO Desde que das tuas duas filhas fizeste duas mães; e lhes
deste a palmatória, e arreaste as calças. Peço-te,
tiozinho, arranja um mestre-escola que ensine o teu
bobo a mentir. Queria muito aprender a mentir.

LEAR Uma mentira, rapaz, e mando açoitar-te.

BOBO Tu e as tuas filhas sois parecidos. Elas querem açoitar-


-me por dizer a verdade, tu queres açoitar-me por
mentir; e às vezes até vou ao chicote por ficar calado.
Queria ser tudo menos bobo, mas não queria ser tu,
tiozinho, isso é que não. Tu aparaste a tua inteligência
dos dois lados e não deixaste nada no meio. (entra
Goneril) Aí vem uma das aparas.

LEAR Então, filha? Para que enfaixaste de rugas a tua testa?


Desde há uns tempos que tens andado muito sisuda.

20
BOBO Eras um belo número, no tempo em que não reparavas
nas rugas dela. Agora és um zero e não contas para nada.
Sou mais do que tu, agora. Mas vou calar-me. (para
Goneril) A vossa expressão manda-me calar. Cala-te
boca! (canta)
Tolo, tolo,
Esse que não junta nem côdea nem miolo,
E um dia quando precisar de comer.
Nem consolo lhe há-de valer. (aponta Lear)
Olha, uma casca vazia.

GONERIL Senhor, não é somente este bobo que tudo pode. Há


outros da vossa insolente comitiva, que a toda hora
teimam e reclamam, e rompem em rudes motins que
não vou aturar, senhor. Pensava eu que, ao dar-vos
conhecimento disto, prontamente acharia segura
emenda, mas agora temo, que vós próprio encorajeis tal
conduta. E se assim é, a falta não foge à censura, nem
terá descanso a pena.

LEAR És tu nossa filha?

GONERIL Vamos lá, senhor, antes queria que vos libertásseis do


estado de espírito que vos tem desviado daquilo que
realmente sois.

BOBO Saberá um burro quando os bois vão à frente da


carroça?

LEAR Não haverá aqui ninguém que me conheça? Decerto eu


não sou Lear. Anda Lear assim? Fala assim? Onde estão
os seus olhos? Ou a sua razão enfraquece, ou está
embaciado o seu entendimento – Ah! Está acordado?
Não, não está. Alguém sabe dizer-me quem sou?

BOBO A sombra de Lear.

LEAR O vosso nome, bela dama?

GONERIL Peço-vos, senhor, que entendeis o meu propósito. Velho

21
e venerável como sois, deveríeis ser também sensato.
Tendes nesta casa cem cavaleiros e escudeiros, homens
tão devassos, tão desordeiros e tão dados à luxúria que
infectaram esta corte, transformando-a num bordel.
Esta vergonha clama remédio urgente. Ouvi esta que
pede, senhor, para não termos nós de tomar em mãos o
que pedimos. Reduzi o número dos que vos seguem e os
que sobrarem, sejam homens, senhores de si e
obedientes a vós.

LEAR Trevas e demónios! Selem os meus cavalos, reúnam o


meu séquito! Bastarda degenerada! Não te incomodo
mais. Ainda me resta uma filha.

GONERIL Agredis a minha gente e a vossa quadrilha rebelde trata


por criados os superiores. (Entra Duque de Albania)

LEAR Desgraçado de quem tarde de mais se arrepende! Oh,


senhor, vindes agora? É esta a vossa vontade? Falai,
senhor. Aprestem os cavalos! Ó ingratidão, demónio
com coração de pedra. Quando te mostras numa filha és
mais hediondo do que um monstro do mar.

ALBANIA Peço-vos, senhor, sede paciente.

LEAR (a Goneril) Gralha malvada! Mentes! Os homens da minha comitiva


são homens de escolha e de valor; conhecem todos os
particulares do dever e no mais precioso detalhe sabem
manter a decência do seu nome. Oh, como uma falta
mínima, me pareceu grave em Cordélia! Uma falta que
deslocou o meu ser do seu posto natural, arrancando
todo o amor do meu peito, para nele despejar apenas
fel. Ó Lear, Lear, Lear! Bate ao portão que deixou a
loucura entrar e sair o teu juízo! – Embora, embora,
gente minha. Embora!

ALBANIA Meu senhor, do que vos alarmou estou inocente e nada


conheço.

LEAR Ouve, Natureza, ouve deusa querida, ouve! Suspende o

22
teu propósito; e se o teu intento era tornar fértil esta
criatura; torna antes estéril o seu ventre! Seca nela os
órgãos que dão fruto e nunca brote do corpo
corrompido uma criança que a honre! Se ela há-de parir,
dá-lhe um filho de mau baço, que viva como um suplício
retorcido para ela! Que ela sinta – que ela sinta – que
mais doloroso que o dente da víbora é ter um filho
ingrato! Embora, embora!(Saem Lear, Kent, e Servidores)

ALBANIA Deuses que adoramos, qual a causa de tudo isto?

GONERIL Não te aflijas em saber a causa, deixa antes que a


disposição dele ganhe as asas que a sua demência lhe
pede.

ALBANIA O grande amor que vos tenho, Goneril, não me pode


fazer tão parcial que…

GONERIL Calma, por favor. Osvaldo! (ao Bobo) Tu, senhor, mais
servo que bobo, segue o teu dono.

BOBO Tiozinho, Lear, tiozinho, leva o teu bobo contigo. (canta)


Tanto a raposa que caiu na armadilha
Como a filha que é velhaca,
São ambas para ir à faca.
Se eu pudesse comprar
Uma corda prás enforcar.
Direitas iriam para a matança
Assim vai o bobo, e segue a dança. (sai)

GONERIL Cem cavaleiros? É prudente e seguro deixá-lo manter, de


espada pronta, cem cavaleiros? Para quê? Para que, em
cada sonho, cada murmuro, cada cisma, cada queixa,
desagrado, ele possa amparar a sua tropa com o poder
dele e ter as nossas vidas à mercê. – Osvaldo, já chamei
duas vezes!

ALBANIA Levais o vosso receio demasiado longe.

GONERIL Melhor do que confiar demasiado perto. Deixai-me

23
enfrentar os males que temo, em vez de ficar sempre
temendo. O que ele disse já eu escrevi para a minha
irmã. (Entra Osvaldo) Então, Osvaldo? Escreveste a carta
para a minha irmã?

OSVALDO Sim, minha senhora.

GONERIL Leva alguns contigo, e larguem a cavalo. Informa-a bem


do meu particular receio. Anda. Vai e volta depressa.
(Osvaldo sai) Não, não, meu senhor, esses modos pálidos
e doces que tendes, ainda que os tolere, deixai que vos
diga: é mais fácil condenar-lhes a falta de siso do que
louvar-lhes a mansidão perigosa.

ALBANIA O longe que esses olhos alcançam não sei dizer. Muitas
vezes por querer melhor, perdemos o que é bom.

GONERIL Entretanto…

ALBANIA Veremos… veremos…


(Saem)

24
1.5
Diante do palácio do duque de Albania
Entram Lear, Kent e Bobo

LEAR Vai tu adiante para Gloucester com esta carta. Não digas
nada do que sabes à minha filha antes que ela te
pergunte, ao ler a carta. Se a tua diligência não for veloz,
chego lá primeiro.

KENT Nem vou dormir, senhor, até ter entregado a vossa


carta. (sai)

BOBO Se os miolos de um homem estivessem nos calcanhares,


não corriam o perigo de gretarem?

LEAR Sim, menino.

BOBO Então, alegra-te: o teu juízo nem pede pantufas.

LEAR Ah, ah, ah!

BOBO Vais ver que a tua outra filha te vai tratar com igual
ternura; Sabes dizer porque é que o nariz de uma pessoa
está no meio da cara?

LEAR Não.

BOBO Ora, para que fique um olho de cada lado do nariz. O que
um homem não pode cheirar, pode ao menos ver.

LEAR Fui injusto com ela...

BOBO Sabes dizer como a ostra faz a concha?

LEAR Não.

BOBO Nem eu. Mas sei dizer porque é que o caracol tem uma
casa.

LEAR Porquê?

25
BOBO Para pôr a coroa lá dentro; não é para dar às filhas e ficar
com os cornos de fora..

LEAR Tenho de esquecer a minha inclinação natural.


Os meus cavalos estão prontos?

BOBO Os teus burros já foram ver.

LEAR Retomar tudo à força – monstruosa ingratidão!

BOBO Se fosses o meu bobo, tiozinho, mandava-te ao chicote


por teres ficado velho antes do tempo.

LEAR E como foi isso?

BOBO Não devias ter ficado velho antes de teres ficado sábio.

LEAR Oh, não fique eu louco, louco não, ó céu bondoso!


Louco é que não. Então, os cavalos estão prontos?

ESCUDEIRO Prontos, meu senhor.

LEAR Anda, rapaz. (saem Lear e Escudeiro)

BOBO Essa que é virgem, e ri, agora que me ausento,


Vai ver que nem tudo é curto como o tempo. (sai)

26
2.1
Castelo do Conde de Gloucester
Entram Edmundo e Curan, de lados opostos

EDMUNDO Deus te guarde, Curan.

CURAN E a vós, senhor. Acabo de comunicar a vosso pai que o


duque de Cornualha e a sua duquesa, chegarão
aqui esta noite.

EDMUNDO E ao que vem isso?

CURAN Não sei, não faço ideia. Já ouvistes as novas que correm
por aí? – Quero dizer, as que se sopram ao ouvido?

EDMUNDO Não ouvi nada.

CURAN Não ouvistes falar da guerra que se prepara, entre


os duques de Cornualha e de Albania?

EDMUNDO Nem uma palavra.

CURAN Então ireis ouvir, a seu tempo. Adeus, meu senhor. (sai)

EDMUNDO O duque está cá esta noite? Melhor – muito melhor. Isto


vem mesmo a calhar ao meu assunto. O meu pai montou
guarda para caçar o meu irmão e tenho à mão uma coisa,
bem delicada, para pôr em marcha. Rapidez e sorte, ao
trabalho! Irmão, uma palavra; (entra Edgar) O pai
procura-te. Foge deste lugar, a noite favorece-te. Não
falaste contra o duque da Cornualha? Ele vem aí, agora,
esta noite, a toda a pressa e Regan vem com ele. Não
disseste nada sobre a questão dele com o duque de
Albania? Pensa bem.

EDGAR Tenho a certeza, nem uma palavra.

EDMUNDO Aí vem o pai, já o ouço. Perdoa-me. Por disfarce, tenho


de apontar-te a espada. Saca. Finge que te defendes. Faz

27
o teu papel. - Rende-te! Tragam luz! Aqui! – Vai, irmão!
Tochas! Tochas! (para Edgar) Então adeus.(Sai Edgar)
Algum sangue que eu tire de mim fará prova da minha
maior entrega.
Pai! Pai! Alto! Alto! Quem me acode?
(Entram Gloucester e Servidores com tochas)

GLOUCESTER Então, Edmundo, onde está o vilão?

EDMUNDO Estava aqui no escuro, de espada em punho, a murmurar


maus feitiços, a conjurar a Lua para ser sua protectora.

GLOUCESTER Onde está ele?

EDMUNDO Olhai, senhor, estou a sangrar.

GLOUCESTER Onde está o vilão, Edmundo?

EDMUNDO Escapou por aqui, senhor. Quando sentiu que não


podia…

GLOUCESTER Cacem-no, vão atrás dele! Que não podia o quê?

EDMUNDO Convencer-me a assassinar vossa senhoria. Eu bem o


lembrei como os deuses vingativos apontam o seu
trovão contra os parricidas. E ele, num golpe cru, lançou
um ataque ao meu corpo desatento e marcou-me o
braço. Mas assim que viu o meu espírito animado, pela
justeza da minha causa, achou melhor fugir.

GLOUCESTER O nobre duque meu senhor, meu digno protector e amo,


chega esta noite. Em nome da sua autoridade, hei-de
proclamar: qualquer um que encontre o cobarde
assassino e o trouxer ao patíbulo terá o nosso favor;
quem o esconder, terá a morte.

EDMUNDO Quando desaprovei aquele seu intento e o vi disposto a


tudo, com palavras duras ameacei denunciá-lo. Ele
respondeu: “Tu, bastardo sem posto nem preço! Achas
tu, que se eu negar o que dizes, tens conta de confiança,

28
virtude, ou valor em ti que te dêem crédito? Fazes dos
outros parvos, se cuidas que eles não vêem, que os
benefícios para ti da minha morte são poderoso estímulo
para tu próprio a desejares e provocares.

GLOUCESTER Oh, estranho e comprovado vilão. Não, não fui eu que o


gerei. (Trombetas, de dentro) Ouve, as trombetas do
duque. Não sei porque vem. Vou fechar todos os portos.
O duque há-de concordar. E os sinais do vilão andarão
por todo o lado, para que todo o reino tome boa nota
dele. – E de toda a minha terra, meu filho dedicado e leal,
tentarei fazer-te dono. (Entram Cornualha, Regan e
Servidores)

CORNUALHA Então, meu nobre amigo? Mal cheguei, ouvi estranhas


notícias.

REGAN Se são verdadeiras, nenhum castigo será demasiado


para punir o culpado. Como estais, meu senhor?

GLOUCESTER Oh, senhora, a vergonha cora desse nome! O meu peito


velho estalou, senhora. Estalou!

REGAN Não era ele um dos cavaleiros brigões que faziam


companhia ao meu pai?

EDMUNDO Sim, senhora, ele andava nesse bando.

REGAN Não é para admirar, então, se foi levado para o mal.


Ainda esta noite, da parte da minha irmã, fui informada
sobre eles e com tais avisos que, caso eles vão
pernoitar a minha casa, não estarei lá.

CORNUALHA Nem eu, garanto-te, Regan. Foram atrás dele?

GLOUCESTER Foram, meu bom senhor.

CORNUALHA Se for preso, nunca mais será temido por fazer


mal. E vós, Edmundo, sereis um dos nossos.

29
EDMUNDO Hei-de servir-vos, senhor, com dedicação e lealdade.

CORNUALHA Não sabeis por que razão viemos em visita –

REGAN Assim sem razão, pelo olho escuro da noite? -


Ocorrências, nobre Gloucester, de alto preço, sobre as
quais precisamos do vosso conselho. O nosso pai
escreveu, e também a nossa irmã, sobre
desentendimentos, ao que achei melhor responder
longe de casa. Nosso velho amigo, consolai o vosso
coração, e prestai-nos o vosso conselho neste assunto,
que anseia por ele.

GLOUCESTER Às vossas ordens, senhora. (Salva de trombetas. Saem)

30
2.2
Diante do castelo de Gloucester
Entram Kent e o Mordomo (Osvaldo), de lados opostos

OSVALDO Bom dia, amigo. És desta casa?

KENT Sou.

OSVALDO Onde podemos pôr os cavalos?

KENT Na fossa.

OSVALDO Porque me falas assim? Não te conheço.

KENT Conheço-te eu, patife.

OSVALDO Por quem me tomas?

KENT Tomo-te por um velhaco, um rufia, um rapa-tachos, um


tipo reles, vaidoso, vazio, falido. Um tipo sem sangue no
fígado; esgrimista de boca, filho da puta, lambe-botas,
um sabujo, um pimpão; um que só para alcoviteiro tem
préstimo; mistura de velhaco, miserável, cobarde;
herdeiro e filho duma cadela vadia – que eu espancarei
até fugires com o rabo entre as pernas, a ganir, se te
atreveres a negar os títulos de nobreza com que fiz o teu
retrato.

OSVALDO Mas quê, que tipo monstruoso és tu, para desatares a


refilar contra alguém que nem sequer conheces nem te
conhece a ti?

KENT Que espécie de peão descarado és tu, para negares que


me conheces? Ou já não te lembras que há dois dias, te
rasteirei e esbofeteei diante do rei? Desembainha,
bandido, que apesar de ser noite, a lua brilha. Depois
ficarás tu a brilhar à lua. Vens com cartas contra o rei, e
tomas o partido de uma boneca vaidosa contra a realeza
do próprio pai. Desembainha, rufia. Anda, desembainha!

31
OSVALDO Socorro! Ai! Assassino! Socorro!

KENT Luta, miserável; defende-te, pulha, defende-te. Luta!

OSVALDO Socorro! Ai! Assassino! Assassino!,


(Entra Edmundo, com punhal na mão)

EDMUNDO O que é, o que se passa? Apartai-vos.

KENT Agora vós, fidalgo aprendiz, se fizerdes o favor. Vinde, eu


vos tiro o primeiro sangue, vamos, noviço.
(Entram Duque de Cornualha, Regan, Gloucester e Seguidores)

GLOUCESTER Armas! Duelos! Que se passa aqui?

REGAN São os mensageiros da nossa irmã e do rei.

CORNUALHA Qual é a vossa questão? Falai.

OSVALDO Mal tenho fôlego, senhor.

KENT Não admira, foi do esforço da tua valentia. Cobarde!

CORNUALHA E qual a razão da vossa luta?

OSVALDO Senhor, este velho rufião, cuja vida eu poupei em


atenção às suas barbas brancas…

KENT Filho da puta, és uma letra a mais no alfabeto! Senhor,


se me derdes licença, calco aos pés este grosseiro vilão
até fazer dele argamassa, e cobrir a parede duma
retrete. Poupas a minha barba branca, meu passaroco?

CORNUALHA Caluda! Não respeitas ninguém, malcriado?

KENT Respeito, senhor, mas a raiva tem precedência.

CORNUALHA E a razão da tua raiva?

KENT Tenho raiva de que tal patife possa usar uma espada,

32
sem que tenha honra alguma. Estes tipos sorridentes,
renegam, juram e, consoante sopra o vento, viram o bico
ao sabor dos caprichos do seu senhor. Estás a rir-te do
que digo? Se te catasse, ganso, à solta em campo aberto,
tocava-te a grasnar de volta, até à capoeira.

GOUCESTER Como foi que se zangaram?

KENT Não há contrários com mais antipatia do que eu e este


miserável.

GLOUCESTER Porque lhe chamas miserável?

KENT Não gosto da sua cara.

CORNUALHA Não há-de ser pior do que a minha, ou a dele, ou a dela.

KENT Senhor, é meu costume ser franco: já vi melhores caras


na minha vida do que as que vejo agora à minha frente.

CORNUALHA Este é um tipo raro, que mal é louvado leva o


comportamento para fora da sua natureza.

KENT Senhor, em boa e sincera verdade, sob a licença da vossa


alta esfera celeste, na fronte fulminante de Febo…

CORNUALHA Que queres tu com isso tudo?

KENT Quero mudar as minhas falas, que tanto censurais. Sei


que não sou adulador. E sei também que esse que vos
enganou com um tom de franqueza é um graxista puro
e simples; e isso eu não serei, senhor.

CORNUALHA (para Osvaldo) Que ofensa lhe fizeste?

OSVALDO Nenhuma, senhor.

KENT Para estes patifes e cobardes Ajax não passa de um tolo.

CORNUALHA Velho teimoso e fanfarrão, nós te ensinaremos. Vão

33
buscar o tronco!

KENT Senhor, deixai o vosso tronco sossegado. Eu sirvo o rei.


Mostrareis pouco respeito, e errada dureza contra a
graça e a pessoa do meu senhor, amarrando o seu
mensageiro.

CORNUALHA Tragam o tronco! (trazem um tronco)

GLOUCESTER Permiti que vos peça que não façais isto. O rei pode levar
a mal que, sendo assim maltratado o seu mensageiro, se
mostre bem pouco respeito por ele.

CORNUALHA Eu respondo por isso. (Kent é posto no tronco)

REGAN Prendam-lhe as pernas. Vinde, bom senhor, vamos


embora. (Saem todos menos Gloucester e Kent)

GLOUCESTER O duque assim quer e toda a gente sabe que as suas


ordens não se mudam, nem se travam. Pedirei por ti.

KENT Não o façais, senhor, peço-vos. Já vigiei e lutei muito.


Parte do tempo vou dormir, e depois assobio. Desejo-vos
boa manhã.

GLOUCESTER O duque esteve mal nisto. Não vai cair bem.


(Sai Gloucester)

KENT Bom rei, confirmas o dito popular: passaste da chuva


bendita dos céus para a brasa do sol. (puxa de uma carta)
Chega-te, farol deste mundo para que possa eu ler esta
carta. Sei que vem de Cordélia, que afortunadamente
ficou a saber do meu obscuro caminho e achará tempo
para dar aos males o seu remédio. Cansados da insónia,
aproveitai, olhos pesados, e não olheis esta infamante
morada. Boa noite, fortuna. (adormece)

34
2.3
Uma mata
Entra Edgar

EDGAR Ouvi a proclamação contra mim, e numa árvore


escavada achei uma toca e escapei à caça. Não há porto
seguro, ou lugar onde a guarda e vigia reforçada não
cuidem de minha prisão. Enquanto fugir mantenho a
vida, e já fiz a minha escolha de tomar o aspecto mais
baixo e pobre que alguma vez a miséria, por ódio ao
homem, o fez igualar a um bicho. Porei lama na face,
manta à cintura, cabelo sujo e eriçado, e nu, enfrentarei
os ventos e toda a perseguição do céu. Tomarei como
modelo os mendigos que, com gritos e uivos, cravam nos
braços nus e mortificados, alfinetes, farpas, pregos,
rebentos de alecrim. E nessa horrível figura vão às
pobres quintas, às aldeias humildes, cabanas e moinhos,
e obrigam à caridade. “Ai de mim, pobre Tom!” Ser isso
é ser alguma coisa; ser Edgar, é nada.
(Sai)

35
2.4
Diante do castelo de Gloucester
Entram Lear, Bobo e Fidalgo

LEAR É estranho que tenham assim deixado a casa, sem


mandarem voltar o meu mensageiro.

CAVALEIRO Tanto quanto sei, na noite anterior não tinham qualquer


propósito de saírem.

KENT Salve a vós, nobre senhor!

LEAR Oh! Fazes dessa vergonha um passatempo?

KENT Não, meu senhor.

LEAR Quem foi que te colocou aí?

KENT Foi ele e foi ela: vosso genro e vossa filha.

LEAR Não iriam atrever-se, não teriam poder, nem querer.


Fazer ao alto posto tal insulto violento é pior que matar.

KENT Meu senhor, quando, na casa deles, lhes entreguei,


ajoelhado, a vossa carta, mal me erguia do meu gesto de
respeito, chega um correio coberto de suor, arquejante,
a ferver de pressa, a ansiar, a soprar, com saudações de
Goneril, sua ama. Deu a carta dela, passando à minha
frente, e eles logo a leram, e pelo que leram juntaram
toda a corte, tomaram cavalos e, olhando-me de lado,
mandaram que esperasse pela resposta. Quando achei
aqui o outro mensageiro, cuja chegada tinha
envenenado a minha eu, mais homem que prudência,
puxei da espada; ele, com ais cobardes, alertou a casa.
Vosso genro e filha acharam esta falta digna do castigo
infame que agora sofro.

BOBO Pelo voar dos gansos, o Inverno ainda não acabou.


(canta) Os pais que andam com trapos
Tornam os filhos ingratos.

36
Mas os pais muito abastados
Fazem os seus bem prendados.
Fortuna é mulher da vida,
Nunca ama a quem mendiga.
Por tudo isso, as tuas filhas vão dar-te tantos desgostos
que nem os vais conseguir contar num ano inteiro.

LEAR Oh, esta amargura vem directa ao coração! Desce, dor


que sufocas, desce fel da paixão; para baixo! Onde está
essa filha?

KENT Com o conde, senhor, lá dentro.

LEAR Esperai aqui. (sai)

KENT Porque vem o rei com uma comitiva tão pequena?

BOBO Se te tivessem metido no tronco por causa dessa


pergunta, já era bem merecido.

KENT Porquê, bobo?

BOBO Temos de mandar-te à escola da formiga, para


aprenderes que não se trabalha no Inverno. Larga a roda
que vai monte abaixo, antes que quebres o pescoço. Mas
se a grande roda sobe o monte, deixa que ela te puxe.
Quando um sábio te der melhor conselho, devolve-me o
que eu te dei. (canta)
Fidalgos que só vêm o sustento,
E vos seguem pra cumprir o ritual,
Logo fogem, se há chuva se há vento,
E vos deixam, só, frente ao temporal.

KENT Onde aprendeste isso, bobo?

BOBO Não foi no tronco, tolo. (Entram Lear e Gloucester)

LEAR Recusam falar comigo! Estão doentes! Cansados!


Viajaram toda a noite! – São meras escusas, máscaras da
revolta e da desobediência.

37
GLOUCESTER Querido senhor, conheceis o temperamento colérico do
duque, e sabeis como ele é inabalável e fixo na sua
vontade.

LEAR Vingança, peste, morte, confusão! Colérico? Ora,


Gloucester, Gloucester; quero falar ao duque da
Cornualha e à mulher. O rei quer falar ao duque da
Cornualha, o pai extremoso quer falar à sua filha, e
manda que lhe obedeça. Colérico? Diz pois ao colérico
duque - não, ainda não; talvez ele não se sinta bem. Vou
acalmar-me. (olhando Kent) Por que razão está ele ali?
Libertai o meu súbdito. Vão dizer ao duque e à mulher
que lhes quero falar. Eles que venham, ou vou eu à porta
deles rufar o tambor até que alguém me diga que
dormem o sono da morte.

GLOUCESTER Só queria a paz entre vós. (sai)

LEAR Ó indignação que sobes e sufocas! Para baixo, para


baixo. (Entram Cornualha, Regan, Gloucester e Criados)

LEAR Bom dia a ambos.

CORNUALHA Salve, vossa graça. (Kent é libertado)

REGAN Muito me alegra ver vossa alteza.

LEAR Regan, penso que sim. Se não estivesses alegre, eu


divorciava-me do jazigo da tua mãe, porque sepultou
uma adúltera. – Ah, já estás livre? Depois tratamos disso.
Adorada Regan, a tua irmã é má. Como o bico agudo
dum abutre, cravou aqui a ingratidão, aqui! E mal te
posso contar. Tu não irias crer naquele carácter tão
perverso… Ó Regan!

REGAN Acalmai-vos, senhor. Só espero que sejais menos capaz


de ver o seu valor do que ela de faltar ao seu dever.

LEAR Como? Que dizes?

38
REGAN Se, por acaso, senhor, ela refreou o tumulto dos vossos
homens, foi com tal fundamento, e fim tão sadio, que a
absolvem de toda a culpa.

LEAR Maldita seja ela!

REGAN Ó senhor, estais velho. Estais mesmo à beira do fim


imposto pela natureza. Por isso vos peço que regresseis
à casa de minha irmã e lhe digais que foste injusto para
com ela.

LEAR Pedir-lhe perdão, eu? Chegar e dizer: “querida filha,


confesso que sou velho. A velhice de nada presta. De
joelhos te peço que me concedas roupa, cama e mesa
posta.”

REGAN Basta, senhor. Isso são maneiras impróprias. Regressai


para junto de minha irmã.

LEAR Nunca, Regan. Ela tirou-me metade da minha comitiva.


Como uma serpente, feriu-me no próprio coração. Todas
as vinganças do cofre do céu caiam na sua cabeça
ingrata! Os ossos pequenos que ela carrega no ventre,
um bafo os entorte! Vós, velozes raios, infectai-lhe a
beleza!

REGAN Ó deuses benditos! O mesmo direis de mim.

LEAR Não, Regan, nunca terás a minha maldição. Ela tem frios,
os olhos. Os teus dão paz, não queimam. Não está em ti
odiar o meu prazer, cortar-me a companhia, limitar os
meus gastos; conheces bem melhor os deveres da
natureza, o laço filial, as contas da gratidão. Não
esqueceste a metade do reino que te dei em dote.

REGAN Bom, senhor, voltando ao assunto.

LEAR Quem pôs o meu homem no tronco? (soa trombeta)

CORNUALHA Que trombetas são estas?

39
REGAN São da minha irmã, conheço-as. (entra Osvaldo) A tua
senhora chegou?

LEAR Este é o patife que vive na sombra inconstante da sua


dona. Sai, lacaio, fora da minha vista! Quem pôs o meu
homem no tronco? Regan, espero bem que não tenhas
tido parte nisso. (entra Goneril) Ó deuses! Se amais os
velhos, se vós próprios sois velhos, fazei vossa a minha
causa! Não tens vergonha diante desta barba? Ó
Regan!... como podes tu pegar-lhe na mão?

GONERIL E porque não lhe hei-de dar a mão? Que mal fiz eu? Nem
tudo o que a demência vê, ou o desvario acusa, são
ofensas.

LEAR Ó meu peito, como és forte! Como podes não estalar?


Quem pôs o meu homem no tronco?

CORNUALHA Eu, senhor. Pela sua própria desordem; teve mais


benevolência do que merecia.

REGAN Peço-vos, pai, se estais fraco, portai-vos como tal. E se,


reduzida a metade a vossa comitiva, quiserdes voltar
para estar com a minha irmã, até ao final do mês, vinde
depois procurar-me. Agora estou fora de casa, e sem a
preparação que faria falta ao vosso bom mantimento.

LEAR Voltar para ela? E despedir cinquenta homens? Não.


Prefiro abjurar de todos os tectos, ir fazer guerra à
inimizade dos ventos, ser camarada do lobo e do mocho,
sentir o aperto da necessidade. Voltar para ela? Antes
ajoelhar diante do rei de França e, de joelhos, mendigar
uma pensão, para viver. Voltar para ela?

GONERIL É vossa a escolha, senhor.

LEAR Peço-te, filha, não me faças enlouquecer. Não te hei-de


incomodar mais. Adeus. Não vamos encontrar-nos, nem
ver-nos mais. E és minha carne, meu sangue, minha filha
– ou antes, és uma ferida na minha carne, um tumor,

40
uma pústula, um carbúnculo inchado no meu sangue
podre. Mas não te censuro. Nem chamarei contra ti o
trovão que dispare, nem me queixo de ti ao supremo
Júpiter. Emenda-te enquanto podes, amadurece. Sei ser
paciente, posso ficar com Regan, eu e os meus cem
homens.

REGAN Não será bem assim, senhor; não contava convosco


ainda, nem estou preparada para vos receber
condignamente. Ouvi a minha irmã, ela sabe o que faz.

LEAR E isto é dito seriamente?

REGAN Atrevo-me a dizer que sim. Quantos, cinquenta homens?


Não vos chega? Para que precisais vós de mais? Para quê
tantos, se o custo e os perigos desaconselham tal
número? Numa só casa, como há-de tanta gente viver
em boa amizade?

GONERIL Porque não poderíeis vós, senhor, ser servido pelos que
ela tem como criados, ou pelos meus?

REGAN Porque não, senhor? Mas espera, avisto um perigo: se


quereis vir para minha casa, trazei apenas vinte e cinco.
Não receberei mais.

LEAR Dei-vos tudo. Fiz de vós minhas guardiãs, minhas


depositárias, mas deixei reserva, a ser respeitada,
quanto a esse número. E agora? Só poderei ir com vinte
e cinco? Foi o que disseste?

REGAN Disse e repito, senhor. Não quero mais.

LEAR Há criaturas aberrantes que chegam a parecer bonitas


ao pé de aberrações maiores. Não ser a pior vale algum
grau de louvor. (para Goneril) Vou contigo. Os teus
cinquenta dobram vinte e cinco e dás-me a dobrar o
amor dela.

GONERIL Ouvi, meu senhor. Para que vos servem vinte e cinco,

41
dez, ou cinco, tantos atrás de vós, numa casa que tem o
dobro com ordem de vos servir?

REGAN Para quê um só?

LEAR Ora, o querer não tem conta! Dai à natureza apenas o


que ela exige e um homem é um bicho. És uma senhora.
Se te vestes para andar agasalhada, porquê, então esse
luxo que trazes, que mal te aquece? Ó céus, dai-me a
paciência de que eu necessito. Aqui me vedes, ó deuses,
um pobre velho, carregado de dor e de idade, duplo
castigo! Se sois vós quem manda o coração destas filhas
contra o seu pai, não façais de mim tolo capaz de
suportá-lo. Não deixeis que as lágrimas manchem esta
face. Não, bruxas obscuras, hei-de fazer tais vinganças,
contra as duas que todo o mundo… hei-de fazer tais
coisas… que hão-de espalhar o terror por toda a parte.
Julgais que vou chorar? Não, não vou chorar.
(Tempestade) Este coração há-de estalar em cem mil
pedaços antes que eu chore. Enlouqueço, bobo,
enlouqueço! (Saem Lear, Gloucester, Kent, e Bobo)

CORNUALHA Entremos. Vai haver tempestade.

REGAN Esta casa não é grande. O velho e a sua gente não


ficariam bem abrigados.

GONERIL A culpa é só dele, que se negou ao repouso; agora tem


de provar da sua insensatez.

REGAN A ele pessoalmente receberei com agrado, mas nem um


dos seus cavaleiros.

GONERIL Tenho a mesma intenção. Onde está o meu senhor de


Gloucester? (Entra Gloucester)

GLOUCESTER O rei está numa grande fúria. Reclama os cavalos, mas


para onde vai, não sei.

CORNUALHA É melhor deixá-lo ir. Ele sabe guiar-se.

42
GLOUCESTER Ó sorte, a noite vem lá, e ventos gelados gemem e
rugem. Por milhas em redor mal se acha um arbusto.

REGAN Ó senhor, aos obstinados, os males que eles próprios


provocam é que os ensinam. Trancai todas as portas. Ele
é servido por uma quadrilha violenta.

CORNUALHA Está uma noite terrível. Abriguemo-nos da tempestade.


Regan aconselha bem. Trancai todas as portas!
(Saem)

43
3.1
Uma Charneca
Continua a tempestade. Entram Kent e Cavaleiro de lados opostos

KENT Quem está aí, além da tempestade?

CAVALEIRO Alguém tão inquieto como o tempo.

KENT Estou a reconhecer-vos. Onde está o rei?

CAVALEIRO Está em luta com a revolta dos elementos; ordena ao


vento que arraste a terra para o fundo dos mares, ou
levante as vagas até afundarem a terra.

KENT Senhor, eu conheço-vos e atrevo-me, no conforto da


minha certeza, a confiar-vos uma importante missão. Há
desinteligências graves entre os duques de Albania e de
Cornualha, que têm criados que são ouvidos e olhos do
rei de França, a quem informaram do que se passa entre
nós. Muito tem sido visto, seja em teimas ou intrigas dos
dois duques; ou na rédea dura que ambos têm usado
contra o nosso velho rei. A verdade é que chega de
França a este perturbado país um exército que já
desembarcou secretamente. Agora, vós: se confiais em
mim, parti imediatamente para Dover e fazei o relato fiel
de como são desumanas e de enlouquecer as mágoas de
que o rei se pode queixar.

CAVALEIRO Voltaremos a falar disso.

KENT Não, o assunto não admite esperas. Para confirmação de


que sou muito mais do que o meu aspecto, abri esta
bolsa, e tomai o que ela tem. Se vos calhar ver Cordélia
– como creio que vereis – mostrai-lhe este anel e ela
própria vos dirá quem é este vosso amigo que, de
momento, não conheceis. Maldita tempestade! Vou
procurar o rei. Vou procurar o rei.
(Saem por lados opostos)

44
3.2
Outra parte da Charneca
Continua a tempestade. Entram Lear e Bobo

LEAR Sopra vento, até que estoirem as tuas faces inchadas.


Sopra com fúria, ó vento! Vós, trombas e cataratas, jorrai
torrentes até submergir os galos do alto dos
campanários! Vós, fogos de enxofre, lestos como o
pensamento, torrai esta cabeça branca! E tu, trovão
abalador, aplaina de vez a redondeza do mundo!

BOBO Tiozinho, água-benta da corte vale mais do que esta


enxurrada ao ar livre. Ala para casa, pedir a bênção às
filhas.

LEAR Ribomba, trovão! Vomita chamas, ó fogo! Jorra, chuva!


Águas, ares, estrondos e fogos não são minhas filhas:
não vos acuso, ó elementos, de ingratidão. Nunca vos dei
um reino, nunca vos chamei filhos. Castigai-me então.
Sou vosso servo; pobre, enfermo, fraco, desprezado. E
vós vindes ao serviço de duas filhas pérfidas, com a vossa
armada celeste contra uma cabeça tão velha e tão
branca como esta. Oh, é cruel.

BOBO Quem tem uma casa para enfiar a cabeça, tem um belo
capacete. (canta)
Esse que deita a cabeça de baixo
Onde não dorme a cabeça de cima,
Ganha piolhos em cima e em baixo:
Assim o pobre é pobre na estima.
E esse que bate o pé ao amor,
Sem deixar bater o coração,
Só ganha grandes calos, e o ardor
Que lhe gasta as noites em vão. (Entra Kent)

KENT Quem está aí?

BOBO Quem? Uma alteza e uma baixeza; ou seja: um sábio


e um tolo.

45
KENT Ah, senhor, estais aqui? Desde que sou homem, não me
lembro de ver e ouvir tais lâminas de fogo, tão horríveis
estrondos, da chuva e do vento.

LEAR Deixai que os altos deuses, que lançam esta pólvora


sobre as nossas cabeças, descubram os seus inimigos. Eu
sou um homem mais vítima de pecados alheios, do que
pecador.

KENT E de cabeça nua, ó céus! Meu bom senhor, aqui perto há


uma choupana; repousai por lá, enquanto vou a essa
dura casa que ainda agora, quando lá perguntei por vós,
me negou a entrada.

LEAR Foge-me a razão. Vem cá, meu rapaz. Como vais? Tens
frio? Eu também. Estranha é a arte da necessidade, que
torna preciosas as coisas mais vis. Vamos à choupana.
Pobre bobo, pobre velhaco, uma parte do meu coração
ainda é capaz de sofrer por ti. (Saem Lear e Kent)

BOBO Vou fazer uma profecia antes de partir:


Quando os padres falarem menos e fizerem mais
Quando houver só justiça nos tribunais,
Quando o nobre der lições aos alfaiates
E só amantes arderem, nas boas partes;
Então neste reino de Albião
Há-de reinar a maior confusão. (sai)

46
3.3
Castelo de Gloucester
Entram Gloucester e Edmundo

GLOUCESTER Não, não, Edmundo, não me agradam estes actos contra


a natureza. Quando lhes pedi permissão para mostrar
um pouco de piedade, tiraram-me o uso da minha
própria casa, e deram-me ordem, de jamais falar com
ele, de pedir por ele ou sequer de o socorrer.

EDMUNDO Selvagens e cruéis.

GLOUCESTER Vai, mas não digas nada do que te vou dizer. Há discórdia
entre os duques. Recebi uma carta esta noite – é um
perigo falar dela – tranquei a carta no meu gabinete.
Estes maus-tratos que o rei tem sofrido serão
inteiramente vingados; parte dum exército já
desembarcou; Vou procurar o rei e ajudá-lo em segredo.
Tu vai e mantém conversa com o duque e, se ele
perguntar por mim, estou doente e fui para a cama.
Ainda que eu morra por isto, o rei meu senhor tem de
ser socorrido. Há acontecimentos estranhos, Edmundo.
Tem cuidado.(sai)

EDMUNDO Desta bondade que te foi negada, o duque irá saber


agora e da carta também. Isto me trará bom
merecimento, e me dará o que perde o meu pai: nada
menos que tudo. O novo é para o alto, o velho é para o
fundo. (Sai)

47
3.4
Charneca. Diante duma cabana
Entram Lear, Kent e Bobo

KENT Este é o sítio, senhor. Entrai. O relento é demasiado


severo para a natureza dum homem. (Continua a
tempestade)
LEAR Deixa-me estar.

KENT Meu bom senhor, entrai.

LEAR Queres despedaçar-me o coração?

KENT Antes despedaçaria o meu. Entrai, senhor.

LEAR Onde a dor maior é constante, as pequenas dores mal se


sentem. Foges ao urso, mas se a fuga te for cortada pelo
mar bravo, olharás o urso de frente. Esta tempestade na
alma rouba-me toda a sensibilidade. Mas saberei
castigar. Não, não choro mais. Pôr-me fora de casa numa
noite destas!? Oh, esta ideia conduz à loucura! Mais
disto não.

KENT Meu bom senhor, entrai aqui.

LEAR Entra tu; busca a tua paz. A tempestade nem me dá


pausa para pensar. Mas eu entro. Entra, velhaco. Vai à
frente. (bobo entra) Pobres desgraçados, nus e
indefesos, expostos à agressão deste temporal.

EDGAR (dentro) Braça e meia, braça e meia! Pobre Tom!

BOBO (fugindo) Não entres ali, tiozinho, está lá uma alma


penada. Socorro! Socorro!,

KENT Dá-me a tua mão. Quem és tu, que rosnas aí na palhota?

EDGAR Arreda! O mafarrico anda atrás de mim! Pelas silvas


secas sopra o vento frio. Brr…!

48
LEAR Deste tudo às tuas filhas e foi nisto que deste, não?

EDGAR Quem dá alguma coisa ao Pobre Tom? O mafarrico


levou-o pelo fogo, pelas brasas, sobre pântanos, e areias
movediças; pôs-lhe facas debaixo da almofada, e uma
corda com laço na janela; pôs-lhe orgulho no peito, e
acusou-o de traição. O Tom tem frio! Oh, de-de-de-de-
de-de! Deus te livre dos furacões, das más estrelas e dos
achaques. Dai uma esmolinha ao pobre Tom, a quem o
mafarrico atormenta. (continua a tempestade)

LEAR Que todas as pragas que há no pêndulo dos ares caia


sobre as tuas filhas!

KENT Ele não tem filhas, senhor.

LEAR Mentes, traidor! Nada poderia reduzir um corpo a tal


baixeza senão um par de filhas ingratas.

EDGAR O galo mais matreiro sobe ao poleiro! Có-coró, có-có!

BOBO Esta noite fria vai fazer de nós tolos e loucos

EDGAR Toma cuidado com o mafarrico, obedece aos teus pais,


sê fiel à palavra dada, não blasfemes e não te metas com
a mulher do próximo. O Tom tem frio.

LEAR Quem foste tu?

EDGAR Fui um servidor que satisfazia o temperamento da minha


amante, e praticava com ela o acto das trevas. Tinha o
coração falso, o ouvido crédulo, as mãos sanguinárias.
Preguiçoso como os porcos, raivoso como os cães,
sôfrego como os lobos, guloso como os leões. Mas o
vento frio sopra nas silvas secas, e diz vuuum, zuuum,
nó-ni-nó. Está quietinho! (Continua a tempestade)

LEAR Estavas melhor na cova do que a enfrentar com o corpo


nu estes rigores dos céus. Será o homem só isto? Ah!

49
Três de nós aqui somos sofisticados! Tu és a coisa
verdadeira! O homem sem confortos não passa dum
pobre bicho nu com duas patas como tu. Fora, fora,
coisas emprestadas! Ajuda, desabotoa aqui. (rasga a
roupa)

BOBO Peço-te, tiozinho, pára com isso; está uma noite má,
para ir nadar. Olha! Ali vem um fogo fátuo. (Entra
Gloucester com um archote)
KENT Quem está aí? Quem procurais?

GLOUCESTER Quem sois vós? Vossos nomes?

EDGAR Sou o Pobre Tom que se alimenta de rãs, sapos, osgas e


lagartixas. O que já teve três casacas e seis camisas,
E cavalo para montar, com espada a combinar
Mais ratos e ratinhos, e veados pequeninos,
Toda esta bicharada come ele e mais nada!

GLOUCESTER Como? Vossa graça não tem melhor companhia?

EDGAR O príncipe das trevas é um fidalgo.

GLOUCESTER A carne da nossa carne tornou-se tão vil, meu senhor,


que odeia quem lhe deu o ser. Vinde comigo. O meu
dever não suporta obedecer em tudo ao duro mando de
vossas filhas.

LEAR Primeiro, deixai-me falar com este filósofo. Tenho uma


pergunta para te fazer em privado.

KENT Insisti outra vez para ir, meu senhor. O juízo dele começa
a inquietar-se.

GLOUCESTER E sois capaz de culpá-lo? (continua a tempestade) As


filhas procuram a sua morte. Ah, esse bom Kent, esse é
que disse como ia ser, pobre homem banido! Dizes que
o rei enlouquece. E digo-te eu, amigo, que estou quase
louco também. Tinha um filho, quis matar-me há pouco,
muito pouco tempo. Eu amava-o, como pai algum amou

50
um filho. E em verdade te digo, a dor deu-me cabo do
juízo. Que noite esta! Peço a vossa alteza…

LEAR Oh, perdoe-me vossa mercê, senhor! Nobre filósofo, a


vossa companhia.

EDGAR O Tom tem frio.

GLOUCESTER Entra para essa palhota, amigo; lá estarás mais quente.

LEAR Vamos, todos lá para dentro.

KENT Por aqui, senhor.

LEAR Vou com ele! Quero ficar com o meu filósofo.

KENT Meu senhor, fazei-lhe a vontade, deixai-o levar o pobre.

GLOUCESTER Trazei-o vós.

KENT Vem, rapaz, vem daí connosco.

LEAR Vinde, bom ateniense.

EDGAR D. Roldão, o cavaleiro


Estava à torre a chegar,
Com seu brado “fora fora”
Começou logo a bradar:
“Do sangue dum inglês
O cheiro estou a cheirar”
(Saem)

51
3.5
Castelo de Gloucester
Entram Cornualha e Edmundo

CORNUALHA Antes de partir desta casa, tirarei vingança.

EDMUNDO Até receio, senhor, o que se possa pensar de mim por


sobrepor a lealdade à natureza.

CORNUALHA Percebo agora que, se teu irmão atentou contra a vida


de vosso pai, não foi inteiramente pelo seu mau
carácter.

EDMUNDO Infeliz da minha fortuna, que me faz arrepender de ser


justo! Aqui está a carta de que ele me falou e que o
denuncia como espião em nome da França. Ó céus!
Quem dera não ser certa esta traição, nem eu o delator!

CORNUALHA Verdade ou mentira, a carta já te fez conde de


Gloucester. Trata de saber onde está o teu pai, para o
prendermos.

EDMUNDO Vou persistir na minha lealdade, por muito doloroso que


seja o conflito entre ela e o meu sangue.

CORNUALHA Confio em ti. Encontrarás em mim um pai com mais


amor. (Saem)

52
3.6
Numa casa anexa ao castelo
Entram Kent e Gloucester

GLOUCESTER Sempre se está melhor aqui que a céu aberto; Vou


melhorar o conforto com o que possa arranjar.

KENT Que os deuses paguem a vossa bondade. (Sai Gloucester.


Entram Lear, Edgar e Bobo)
BOBO Por favor, tiozinho, um louco é um fidalgo ou é um vilão?

LEAR É um rei, é um rei!

BOBO Não, é um vilão que tem um filho fidalgo, pois só um


vilão permite que o filho seja fidalgo antes dele.

LEAR Está decidido. Vou julgá-las agora mesmo. (para Edgar)


Anda cá, senta-te aí, meretíssimo juiz. (ao Bobo) E tu,
sapientíssimo senhor, senta-te acolá. Agora vós,
raposas!

EDGAR Olhai o mafarrico sentado a olhar.(canta)


Salva-te do ribeiro, Bela, e dá-me os braços.

BOBO Não pode, não ousa, não consegue nadar


Mas ela não te diz porque diacho
É que ela não te pode ir abraçar!

KENT Como estais, senhor? Não quereis deitar-vos e repousar


nestas almofadas?

LEAR Primeiro trato do julgamento delas. Tragam as provas.


(a Edgar) Senhor juiz, com vossa digna toga, tomai o
vosso lugar. (ao Bobo) E vós, seu colega na equidade,
tomai o vosso. (a Kent) Vós também sois do tribunal,
sentai-vos então.

EDGAR Apreciemos com justeza.

53
LEAR Julgai esta primeiro: é Goneril. Juro solenemente
perante esta ilustre assembleia que ela mandou porta
fora o pobre rei, seu pai.

BOBO Vinde cá, senhora. O vosso nome é Goneril?

LEAR Isso ela não pode negar.

BOBO Peço desculpa, senhora. Tomei-vos por um banquinho.

LEAR Aqui está outra, cujo olhar perverso proclama a matéria


de que é feito o coração. Ponham-na aqui. Armas, armas,
espada, fogo! Há corrupção aqui! Falso juiz, porque foi
que a deixaste fugir?

KENT Vá, meu bom senhor, deitai-vos aqui e descansai um


pouco.

LEAR Não façam barulho, não façam barulho; puxa as cortinas.


Isso, isso, isso. De manhã fazemos a ceia.

BOBO E eu vou para a cama ao meio-dia. (entra Gloucester)

GLOUCESTER Vem cá, amigo. Toma o rei nos braços. Acabo de saber
que se trama a sua morte. Há uma liteira pronta. Vai para
Dover, onde receberás boas-vindas e protecção. Traz o
teu amo. Se esperas meia hora que seja, a vida dele,
como a tua, e de todos os que o defendem, estão por
certo perdidas. Trá-lo, trá-lo; Vem!
(Saem)
(PS: ver o solilóquio de Edgar que falta aqui)

54
3.7
Castelo de Gloucester
Entram Cornualha, Regan, Goneril, Edmundo e Servidores

CORNUALHA (para Goneril) Ide urgentemente ter com vosso marido e


mostrai-lhe esta carta. O exército de França
desembarcou. Procurai Gloucester, o traidor. (saem
servidores)

REGAN Enforquem-no imediatamente.

GONERIL Arranquem-lhe os olhos!

CORNUALHA Deixai-o a cargo da minha raiva. Edmundo, faz


companhia à nossa cunhada. A vingança que vamos
aplicar ao teu pérfido pai não é própria para os teus
olhos. Adeus, querida irmã. Adeus, senhor de
Gloucester. (Entra Osvaldo) Onde está o rei?

OSVALDO O conde de Gloucester mandou-o para longe. Largaram


a caminho de Dover, onde, dizem eles, têm amigos bem
armados.

CORNUALHA Prepara os cavalos para a tua senhora. (Osvaldo sai)

GONERIL Adeus, amável duque; adeus irmã.

CORNUALHA Adeus. (Saem Goneril e Edmundo) Vão buscar o velho


traidor. Amarrem-no como um ladrão, tragam-no diante
de nós. (Entram criados com Gloucester, preso)

REGAN Raposa ingrata!

CORNUALHA Amarrem-lhe os braços mirrados.

GLOUCESTER Que pretendem vossas altezas? Sois meus convidados.


Não me façais mal, amigos.

REGAN Amarrem-no com força, com força! Oh, traidor imundo!

55
GLOUCESTER Não sou nada disso, dama sem piedade. (Regan puxa-lhe
as barbas) Pela bondade dos deuses, é ignóbil arrepelar-me as
barbas.

REGAN Barba tão branca, num traidor assim!

CORNUALHA Vamos, senhor, que cartas vos chegaram de França? E


qual é o vosso acordo com os traidores?

REGAN Para as mãos de quem mandaste tu o rei demente? Fala.

GLOUCESTER Recebi uma carta cheia de incertezas.

CORNUALHA Habilidoso.

REGAN E falso.

CORNUALHA Para onde mandaste o rei?

GLOUCESTER Para Dover.

REGAN Porquê para Dover?

CORNUALHA Porquê para Dover?

GLOUCESTER Como o urso amarrado, tenho de suportar os cães.

REGAN Porquê para Dover?

GLOUCESTER Porque não queria ver as tuas unhas cruéis arrancar


aqueles pobres olhos; nem as garras porcas da tua feroz
irmã cravarem-se na carne ungida pelos santos óleos. Se
com tão medonho tempo os lobos tivessem vindo uivar
à tua porta terias dito: “bom porteiro, abre a tranca.” Os
mais cruéis o fariam. Mas eu hei-de ver a vingança cair
sobre tais filhas.

CORNUALHA Isso é que nunca verás. – Homens, segurai a cadeira.


Calcarei os teus olhos aos meus próprios pés.
(arranca-lhe um dos olhos e pisa-o)

56
GLOUCESTER Venha quem espera viver até ser velho, venha dar-me
ajuda! Ó cruel! Ó deuses!

CRIADO 1 Parai, senhor. Desde criança que vos sirvo, mas nunca
vos prestei melhor serviço que vos pedir agora que
baixeis as mãos.

REGAN Mas que é isto, cão!? (combatem. O duque é ferido)


(para Criado 2) Dá-me a tua espada. (Regan golpeia, pelas costas, o
Criado 1, que morre.)

CORNUALHA Fora, vil gelatina! (arranca outro olho a Gloucester)


Onde está a tua luz agora?

GLOUCESTER Tudo escuridão e desconsolo. Onde está o meu filho


Edmundo? Edmundo, junta todas as energias que a
natureza te deu para reparar este feito atroz.

REGAN Esquece, traidor! Chamas por aquele que te odeia. Foi


ele que nos desvendou as tuas traições.

GLOUCESTER Oh, minha tolice! Então Edgar foi difamado. Ó deuses


clementes, perdoai-me e protegei-o!

REGAN Ponham-no fora de portas, e ele que cheire o caminho


até Dover. Então, senhor, como vos sentis?

CORNUALHA Estou ferido. Vinde comigo, senhora. Ponham lá fora


esse vilão sem olhos. Atirai-o para a estrumeira. Regan,
estou a perder muito sangue. Esta ferida vem em má
hora. Dai-me o braço. (Saem)

57
4.1
Uma charneca
Entra Edgar

EDGAR Mais vale estar assim, e dado por perdido, do que


perdido e cheio de louvores. Quem desceu ao mais
baixo, ao mais desprezível degrau da sorte, conserva
ainda uma esperança e não vive no medo. Doloroso é
descer quando se está no alto. Quando se está em baixo,
qualquer mudança é feliz. Bem-vindo, então, ó ar
insubstancial que eu abraço! O desgraçado que
despojaste com o teu sopro não teme mais as tuas
rajadas. (Entra Gloucester, guiado por um Velho)
Quem vem lá? O meu pai guiado como um mendigo?
Mundo, mundo, ó mundo! Não fora a feia confusão que
nos faz odiar-te não valeria a pena viver muito.

GLOUCESTER Vai, vai-te embora, bom amigo, vai-te embora. Para mim
já não há caminho, portanto não peço olhos. Quando os
tinha, tropeçava. É sempre assim, os nossos recursos
tornam-nos descuidados; as nossas faltas, previdentes.
Ó querido filho Edgar, como serviste de pasto à ira do
teu pai enganado! Pudesse eu viver para ver-te com os
dedos e diria: “tenho de novo os meus olhos”.

EDGAR Ó deuses! Não há situação pior do que a minha!

GLOUCESTER Quem és? Um pedinte?

EDGAR Pedinte e louco.

GLOUCESTER É a praga deste tempo, serem os cegos guiados por


loucos. (Velho sai)

GLOUCESTER Eh, tu!

EDGAR O Pobre Tom tem frio. (aparte) Não consigo fingir mais.

GLOUCESTER Vem cá, amigo.

58
EDGAR Mas tenho de fingir. Abençoados esses teus olhos que
sangram.

GLOUCESTER Sabes o cainho para Dover?

EDGAR Sei todos os caminhos: a pé, a cavalo, por estradas e


veredas.

GLOUCESTER Toma, toma esta bolsa, tu a quem as pragas do céu


deixaram à mercê de todo o mal. Que a minha dor te dê
algum consolo. Conheces Dover?

EDGAR Sim, meu amo.

GLOUCESTER Há uma escarpa, cujo cabeço alto e tombado espreita


com perigo os fundos confinados. Conduz-me lá, até à
beira mais chegada e lá emendarei a miséria que
carregas. Além desse ponto não precisarei de guia.

EDGAR Dai-me o vosso braço. O Pobre Tom guiar-vos-á. (saem)

59
4.2
Diante do palácio do duque de Albania
Entram Goneril, e Edmundo

GONERIL Bem-vindo a esta casa, senhor. Espanta-me que o meu


manso esposo não tenha vindo ao nosso encontro.
(entra Osvaldo) Então, onde pára o teu amo?

OSVALDO Em casa, senhora, mas está muito mudado. Falei-lhe do


exército que desembarcou. Ele sorriu. Quanto à traição
de Gloucester, e ao leal serviço do filho dele, quando o
informei, chamou-me idiota.

GONERIL (para Edmundo) Não passeis então mais além. É o terror


cobarde do seu espírito que não se atreve a agir. O que
falámos no caminho há-de ser. Ide, Edmundo, para o
meu cunhado. Apressai o alistamento e comandai as
tropas. Tenho de trocar a ordem da casa, e pôr a roca
nas mãos do meu marido. Não tarda ireis receber ordens
de quem vos ama. Ponde isto. (dá-lhe um laço) Inclinai a
cabeça. Este beijo, se falasse, elevaria aos céus a tua
coragem.

EDMUNDO Vosso até à morte.

GONERIL Amado Gloucester. (Edmundo sai) Oh, a diferença dum


homem para o outro! Tu, sim, mereces os favores de
uma mulher: um palhaço usurpa a minha cama.

OSVALDO Senhora, vem lá o meu amo.(Sai. Entra Albania)

ALBANIA Oh, Goneril, nem sequer mereces o pó que o rude vento


te manda à cara. A natureza que renega quem lhe deu o
ser não pode ser contida nos seus próprios limites. O
ramo que se separa do tronco e da sua seiva, tem de
secar por força; e a si próprio condena a acabar na
fogueira.

GONERIL Chega. Essas frases são ocas.

60
ALBANIA O saber e a bondade, aos maus, parecem maus. A
porcaria só gosta de si própria. O que fizestes vós? Filhas
não, tigres, que fizestes? Se os céus não mandarem cá
abaixo a sua força para reprimir estes crimes abjectos, a
hora há-de vir, em que os homens de si próprios serão
caça.

GONERIL Corre-te leite nas veias, homem! Ofereces a cara às


bofetadas e a cabeça às injúrias; e falas, mas não tens
olhos que distingam o que podes e o que não deves
suportar. Porque não se ouvem os teus tambores? O rei
de França já pisa na nossa silenciosa terra e ameaça o
teu estado.

ALBANIA Olha para ti, demónio: a pior perversidade não a mostra


o diabo tão medonha como a mulher.

GONERIL Ó tolo inútil!

ALBANIA Coisa disfarçada e encoberta, não te atrevas a fingir que


tens rosto. Fosse minha a condição de ter mãos
comandadas pelo meu sangue e estavam prontas para
arrancar e rasgar-te a carne e os ossos.

GONERIL Até que enfim, pareces um homem! (Entra um


Mensageiro)
ALBANIA Que novas há?

MENSAGEIRO Ó meu senhor, o duque da Cornualha morreu. Foi morto


pelo seu criado, quando ia arrancar o segundo olho a
Gloucester.

ALBANIA Os olhos de Gloucester?

MENSAGEIRO Os dois, meu senhor, os dois. Esta carta, senhora, pede


resposta pronta. Vem de vossa irmã.

GONERIL (aparte) Por um lado, gosto bem disto, mas estando


viúva, e o meu Gloucester com ela, todos os projectos
da minha fantasia podem desabar e fico nesta ruína de

61
vida. Fora isso, a notícia não é má. (alto) Vou ler e
responder. (Sai, com Osvaldo)

ALBANIA Onde estava o filho dele, quando lhe arrancaram os


olhos? Ele sabe dessa malvadez?

MENSAGEIRO Sabe, senhor. Foi ele mesmo quem denunciou o pai e foi-
se de propósito, para o castigo deles poder ter mais livre
curso.

ALBANIA Gloucester, vivo eu para agradecer-te o amor que


mostraste pelo rei e para vingar os teus olhos. – Vem cá,
meu amigo e conta-me o que sabes mais. (saem)

62
4.3
O campo francês, perto de Dover. uma tenda
Entram, Cordélia, um Médico e Soldados

CORDÉLIA Ai de mim, é ele. Acharam-no ainda agora tão louco


como o mar agitado, a cantar alto, coroado de erva
fumária e espinheiro-branco, com bardanas, cicutas,
urtigas, agrião-do-prado, joio, e toda a erva daninha que
enxameia nas nossas searas de pão. Que pode o saber
humano fazer para restaurar a sua razão perdida? A
quem o curasse daria quanto possuo.

MÉDICO Há meios, senhora. A nossa ama de leite na natureza é o


sono, que é o que lhe falta. E para lho provocar há muitas
ervas potentes, cujo poder é capaz de fechar os olhos à
própria dor.

CORDÉLIA Vinde, segredos abençoados, vinde, ocultas virtudes da


terra, brotai com as minhas lágrimas, sede o bem e a
cura da mágoa deste bom homem! – Ide, procurai-o.
(Entra Mensageiro)
MENSAGEIRO Notícias, senhora. A força britânica, já marcha para cá.

CORDÉLIA Isso não é novo. A nossa preparação já conta com eles. –


Ó pai querido, é da tua missão que eu cuido agora. O que
nos incita é o amor, o precioso amor e os direitos dum
velho pai. Quero ouvi-lo e vê-lo. (Saem)

63
4.4
Castelo de Gloucester

Entram Regan e Osvaldo

REGAN A força do meu cunhado já avançou?

OSVALDO Sim, minha senhora.

REGAN E ele em pessoa, também?

OSVALDO Sim, mas depois de grande teima. Vossa irmã é muito


melhor soldado.

REGAN Edmundo não foi falar ao teu amo?

OSVALDO Não, minha senhora.

REGAN Que estará escrito na carta que minha irmã lhe mandou?

OSVALDO Não sei, senhora.

REGAN Certo é que saiu daqui com causa importante. Foi um


erro grave, depois de cegar Gloucester, deixá-lo viver.
Aonde quer que ele vá, converte todos contra nós.
Edmundo há-de ter ido, por piedade da sua desgraça,
pôr termo aquela vida escurecida.

OSVALDO Tenho de o procurar, senhora, para lhe entregar a carta.

REGAN Mas porque escreve ela a Edmundo? Não podias tu levar


de viva voz o que ela pretende? Deixa que eu abro essa
carta. Vou dar-te boa paga.

OSVALDO Senhora, eu preferia…

REGAN Sei que a tua senhora não gosta do marido. Tenho a


certeza. E da última vez que veio deitava olhadelas
estranhas, muito expressivas, ao nobre Edmundo. Sei
que és confidente dela.

64
OSVALDO Eu, senhora?

REGAN Sei do que falo. É o que és. Sei muito bem. O meu senhor
morreu. Edmundo e eu falámos e ele está mais virado
para a minha mão do que para a da tua senhora. Se o
encontrares, peço-te que lhe dês isto; e quando contares
à tua senhora o que te disse, peço-te que lhe digas que
tenha bom senso. Se por acaso souberes desse traidor
cego, há recompensa para quem o despachar. Adeus.
(Saem, por lados opostos)

65
4.5
Campos perto de Dover
Entram Edgar e Gloucester

GLOUCESTER Quando é que chegamos ao alto da tal escarpa?

EDGAR Já estais a subi-la. Vede como nos custa.

GLOUCESTER A mim parece-me que o chão é plano.

EDGAR Inclinação terrível. Escutai: não ouvis o mar?

GLOUCESTER Não, juro.

EDGAR Então é porque a dor dos olhos vos enfraqueceu os


outros sentidos.

GLOUCESTER Há-de ser por isso. Até me parece que a tua voz mudou,
e que falas melhor e com mais acerto.

EDGAR Estais muito enganado. Vinde, senhor. Este é o lugar.


Ficai. Mete medo e dá vertigens, pôr a vista lá para o
fundo! Os corvos e as gralhas que voam de roda não
parecem maiores que besouros. Mais abaixo alguém
apanha funcho-do-mar. Labor ingrato! O homem não
parece maior do que a cabeça. E longe, uma barca
ancorada parece um bote, o bote parece uma bóia e a
bóia mal se vê. O marulhar das ondas, que batem sem
parar contra os recifes, mal se ouve, daqui, tão alto
estamos. Não olho mais, antes que a cabeça me ande à
roda, a vista se turve e me faça cair de cabeça.

GLOUCESTER Põe-me onde estás.

EDGAR Dai-me a vossa mão. Estais a um passo do abismo. Por


nada deste mundo eu saltaria daqui.

GLOUCESTER Larga a minha mão. Toma, amigo, outra bolsa. Fadas e


deuses te façam próspero. Vai-te daqui; deixa-me ouvir-
te ir embora.

66
EDGAR Então adeus, bom senhor!

GLOUCESTER Ó deuses vigorosos! Renuncio a este mundo; e, na vossa


presença, expulsarei de mim tão grande aflição! Se Edgar
vive, abençoai-o! E agora adeus, amigo; adeus!.

EDGAR Estou a ir, senhor. Adeus. (Gloucester cai para diante)


Hou, vós, senhor, ouvi! Quem sois?

GLOUCESTER Vai-te, deixai-me morrer.

EDGAR Ou não és mais do que teia de aranha, penas ou ar, ou


precipitado de tantas braças de altura tinhas rebentado
como um ovo. Mas respiras, tens substância, não
sangras, falas, tens saúde. A tua vida é um milagre. Volta
a falar.

GLOUCESTER Mas eu caí ou não?

EDGAR Do alto deste medonho confim de pedra calcária. Olhai


para cima. Olhai para cima!

GLOUCESTER Ai de mim, não tenho olhos!

EDGAR Dai-me o vosso braço. Para cima, isso. Que tal? Sentis as
pernas? De pé.

GLOUCESTER Estou bem. Bem de mais.

EDGAR Isto ultrapassa tudo quanto há de mais extraordinário. E


lá no topo da falésia, que coisa era aquela que se
despediu de vós?

GLOUCESTER Era um pobre pedinte desafortunado.

EDGAR Conforme o vi daqui de baixo era algum demónio. Por


isso, ancião feliz, pensa que os deuses justos te salvaram.

GLOUCESTER De agora em diante suportarei o infortúnio até que eles


me gritem “Basta, basta”, e me deixem morrer.

67
EDGAR Armai-vos de ideias livres e firmes. Quem vem ali?
(Entra Lear,adornado com flores)
A mente sã nunca vestiria o seu dono desta maneira.

LEAR Não, não podem atacar-me por chorar. Eu sou o rei.

EDGAR Ó vista que dóis no corpo todo!

LEAR Nesta matéria a natureza está acima da arte. Olhai, olhai,


um rato! Calma, calma, este pedaço de queijo tostado já
o apanha. Tomai a minha luva. Posso desafiar um
gigante. Bom tiro, esse! Em cheio, em cheio no alvo…
vuuummm! Qual é a senha?

EDGAR Doce manjerona.

LEAR Passa.

GLOUCESTER Conheço esta voz.

LEAR Ah! Goneril com uma barba branca! Adularam-me que


nem cães, e disseram que tinha pelos brancos na barba,
antes de os ter pretos. Quando a chuva veio para me
encharcar e o vento me fez tremer; quando o trovão não
se calou às minhas ordens, foi então que soube quem
elas eram. Disseram-me que eu sou tudo. É mentira, não
sou imune às maleitas.

GLOUCESTER Lembro-me bem do tom desta voz. Não é o rei?

LEAR Sim, todo ele é rei. Qual foi o teu crime? Adultério? Não
hás-de morrer. Morrer por adultério! Não. Até a carriça
o comete. Soltai o coito! O filho bastardo de Gloucester
foi melhor para o pai do que as minhas filhas, concebidas
em lençóis legítimos. Anda, luxúria, não percas tempo!
Olhai a dama de sorriso afectado, que se faz virtuosa, e
abana muito a cabeça, só de ouvir o nome do prazer. Da
cintura para baixo elas são centauros, embora mulheres
da cintura para cima. Até à cintura são donos os deuses,
abaixo manda o demónio. É o inferno, é a escuridão, é o

68
poço de enxofre, é o fogo, a infecção, o fedor, a morte.
Fora, fora, fora! Pah, pah! Boticário, dá-me uma onça de
almíscar, para desinfetar a minha fantasia. Toma lá
dinheiro.

GLOUCESTER Oh, deixai-me beijar essa mão!

LEAR Deixa-me limpá-la antes, cheira a morte humana.

GLOUCESTER Oh, obra natural arruinada! Não me conheces?

LEAR Lembro-me bem dos teus olhos. Olhas-me de lado? Lê


esta carta, repara como está escrita..

GLOUCESTER Mesmo que as letras fossem do tamanho do sol, eu não


via uma.

EDGAR (aparte) Não acreditaria nisto se me fosse contado. E,


no entanto, é uma verdade de fazer estalar o coração.

LEAR Lê.

GLOUCESTER Como, com as órbitas?

LEAR Oh, oh, o que me dizes tu? Nem olhos na cabeça, nem
dinheiro na bolsa? E todavia sabes como vai o mundo.

GLOUCESTER Sei porque o sinto.

LEAR Estás louco? Não são precisos olhos para ver como vai o
mundo. Vê com as orelhas. Vê como o juiz além cai sobre
aquele simples ladrão. Chega-te cá, escuta: troca os
lugares, e, qual-é-a-coisa-qual-é-ela, quem é o juiz e
quem é o ladrão? Já viste o cão dum lavrador a ladrar a
um pedinte?

GLOUCESTER Já, senhor.

LEAR E o pobre a fugir do cão, aí tens a grandiosa imagem da

69
autoridade. Vejam isto: a roupa esfarrapada mostra os
pequenos defeitos; sedas e peles tudo encobrem. Cobre-
o de farrapos, e até uma palha o trespassa. Põe uns
óculos, e, tal como o político sabido faz que vês tudo o
que te escapa. Vá, vá, vá, vá! Tira-me as botas. Força,
mais força. Isso. Se queres chorar a minha sorte, toma os
meus olhos. Conheço-te muito bem, chamas-te
Gloucester. Tens de ser paciente. Viemos ao mundo a
chorar. Quando nascemos, choramos por ter chegado a
este grande palco de doidos. (Entra um Cavaleiro, com
Soldados)

CAVALEIRO Oh, aqui está ele. Agarrai-o!

LEAR Como, estou preso? Sou sempre o mesmo bobo da sorte.


Venham a mim médicos, tenho um corte nos miolos. E
ninguém me defende? Sou só eu? Ora, isto basta para
fazer dum homem uma fonte de lágrimas. Vou morrer
todo bonito, um belo noivo. Vou ser majestoso. Vamos,
vamos, sou um rei, meus caros, sabeis disso? Que sou
um rei?

CAVALEIRO Sois um senhor real, e vos obedecemos.

LEAR Então o rei está vivo. Vamos, agarrai-o então; se o


quereis tereis de correr. (Sai Lear, a correr)

EDGAR Salve, nobre senhor!

CAVALEIRO E a vós, senhor. Que desejais?

EDGAR Ouvistes falar, senhor, de uma batalha que vai haver?

CAVALEIRO É mais que certo e falado.

EDGAR Dizei-me, por favor; está muito perto, o outro exército?

CAVALEIRO Perto; e aproxima-se velozmente.

EDGAR Obrigado, senhor, é tudo. (Cavaleiro sai

70
GLOUCESTER E agora, bom senhor, quem sois vós?

EDGAR Um homem pobre, rendido aos golpes da fortuna, que,


na longa prática e saber de mágoas vividas, está pronto
para a piedade. Dai-me a vossa mão: vou levar-vos a
algum abrigo.

GLOUCESTER Dou-vos graças do coração. (Entra o Osvaldo)

OSVALDO Eis o prémio prometido! Velho e indigno traidor, dedica


um pensamento a ti próprio: O ferro que vai matar-te
está pronto.

GLOUCESTER Que a tua mão amiga ponha força bastante nesse gesto.
(Edgar interpõe-se)

OSVALDO Por que razão, camponês insolente, te atreves a ajudar


um traidor procurado?

EDGAR Bom fidalgo, segui o vosso caminho, senão iremos ver


qual é mais duro: se o meu cajado, se a tua cachola (tola,
cabeça). Fui claro, parece-me.

OSVALDO Sai, esterco!

EDGAR Vou ripar-vos os dentes, senhor. Chega-te cá.


(Lutam.Edgar abate-o)
OSVALDO Mataste-me, vilão! Leva a minha bolsa e entrega as
cartas que tenho comigo a Edmundo, conde de
Gloucester. (morre)

EDGAR Sei bem quem tu eras: um miserável serviçal, obediente


aos vícios da tua ama.

GLOUCESTER Como, está morto, ele?

EDGAR Sentai-vos, ancião. Descansai. Vejamos estas bolsas. As


cartas de que fala poderão ser um aliado. Vejamos. (Lê )
“Lembrai as nossas juras trocadas. Tendes muitas
oportunidades para dar cabo dele. Se não vos faltar

71
coragem, hora e lugar não faltarão. Nada feito, se ele
regressa vencedor. Então serei sua prisioneira, e a cama
dele a minha cela. Livrai-me da sua intimidade odiosa, e
ocupai o seu lugar. Vossa (gostaria de dizer esposa)
servidora afeiçoada, Goneril.”
Oh, um plano contra a vida virtuosa do marido e o
substituto é o meu irmão! No devido tempo porei este
papel maldoso diante dos olhos do duque, cuja morte se
trama.

GLOUCESTER O rei enlouqueceu. É rijo, o meu vil sentido e tenho


função da mente para todas as mágoas! Melhor seria
se eu tivesse também enlouquecido. (Tambores
distantes)

EDGAR Dai-me a vossa mão. Parece-me ouvir ao longe um


tambor. Vamos, meu velho, vou levar-vos a um amigo.
(saem)

72
4.6
Uma tenda no campo Francês
Lear dorme numa cama. Perto um médico, um fidalgo e outros. Entram
Cordélia, Kent

CORDÉLIA Ó abençoado Kent, como hei-de eu viver e fazer bastante


para pagar a tua bondade?

KENT A gratidão, senhora, é mais que bastante.

CORDÉLIA Como está o rei?

MÉDICO Ainda dorme.

CORDÉLIA Ó meu querido pai, pudesse a medicina pousar nos meus


lábios, e pudesse este beijo curar os golpes violentos que
minhas irmãs fizeram à tua alta figura! Mesmo que não
fosses pai delas, estas madeixas brancas deveriam tê-las
apiedado. Numa noite assim, até o cão do meu inimigo,
tinha passado a noite à minha lareira. E tu foste forçado,
pobre pai, a abrigar-te junto com porcos e vagabundos,
em palha podre? É de espantar que não tenhas também
perdido a vida, quando perdeste a razão. Ele acorda,
falai-lhe.

MÉDICO Falai vós, senhora, é melhor.

CORDÉLIA Como está o meu real senhor? Então, majestade?

LEAR Fazeis mal em tirar-me fora da sepultura. És uma alma


do céu, mas eu estou preso a uma roda de fogo, e até as
minhas lágrimas escaldam como chumbo derretido.

CORDÉLIA Senhor, sabeis quem sou?

LEAR És um espírito. Quando morreste?

CORDÉLIA Está longe, está tão longe.

LEAR Onde estive eu? Onde estou? Já é dia? Fui muito

73
enganado. Vejamos, sinto a picada deste alfinete.
Queria ter a certeza da minha condição.

CORDÉLIA Oh, olhai para mim, senhor. E ponde as mãos em bênção


sobre mim. Não, não senhor, não deveis ajoelhar.

LEAR Peço, não zombeis de mim: sou um pobre velho


insensato e confuso. E para dizer a verdade, tenho medo
de não estar de perfeito juízo. Creio que vos conheço, e
conheço este homem, mas tenho dúvidas. Ides rir-vos de
mim, mas, tão certo como ser um homem, julgo que esta
dama é a minha filha Cordélia.

CORDÉLIA E é quem sou: sou eu.

LEAR São de água, as tuas lágrimas? Sim, são. Peço, não


chores. Se tens veneno para mim, eu bebo. Sei que não
me tens amor. Tuas irmãs, tanto quanto me lembro,
fizeram-me mal. Tu tens algum motivo. Elas não.

CORDÉLIA Não, não tenho. Não tenho.

LEAR Estou em França?

KENT Estais no vosso reino, senhor.

LEAR Não me enganeis mais.

CORDÉLIA Não quereis retirar-vos um pouco, alteza?

LEAR Tende paciência comigo. Peço-vos muito, esquecei e


perdoai. Estou velho e tonto.
(Saem)

74
5.1
O Campo Britânico, perto de Dover
Entram, com tambores e estandartes, Edmundo, Regan, Fidalgos e
Soldados

EDMUNDO (A um oficial) Vai saber se o duque mantém a sua última


intenção, ou se alguma coisa o levou a mudar de atitude.
Ele é muito dado a incertezas e diálogos interiores. Traz-
nos a sua resolução definitiva .

REGAN Com certeza aconteceu alguma coisa ao enviado da


minha irmã.

EDMUNDO É de recear, senhora.

REGAN Agora, amado senhor, sabeis de todos os bens que tenho


só para vós. Dizei-me com verdade, nada mais que a
verdade, tendes amor pela minha irmã?

EDMUNDO Só respeitosa afeição.

REGAN Mas nunca substituístes o meu cunhado no lugar


proibido?

EDMUNDO Esse pensamento engana-vos, senhora.

REGAN Tenho receio de que andeis ligado e unido a ela…

EDMUNDO Não, senhora; por minha honra, não!

REGAN Nunca o poderia suportar. Meu querido senhor, não vos


façais íntimo com ela.

EDMUNDO Confiai em mim. Ela aí vem, mais o duque seu marido.


(Entram, com tambores e estandartes, Albania, Goneril e Soldados)

GONERIL(aparte) Antes queria perder a batalha a aceitar que minha


irmã me fizesse perder aquele homem.

ALBANIA Encantado com este encontro, bem amada irmã. Senhor,

75
ouvi dizer que o rei foi ter com a filha. Este assunto toca-
nos muito, se a França nos toma terra. Mas está certo o
rei, com outros a quem, eu sei, causas justas e sérias
levaram a revoltar-se.

REGAN Para quê trazer isso à conversa?

GONERIL Unamo-nos contra o inimigo; estas discórdias


particulares e domésticas não são para discutir agora.

ALBANIA Vamos então decidir com os veteranos de guerra como


seguir em frente.

EDMUNDO Vou já ter convosco à vossa tenda. (Sai com os seus)

REGAN Irmã, vindes connosco?

GONERIL Já vou. (Entra Edgar; para Albania)

EDGAR Se vossa graça se digna falar a um homem tão pobre


como eu, ouvi só uma palavra.

ALBANIA Já vos acompanho. (saem, para Edgar) Fala.

EDGAR Antes da batalha, abri esta carta. Se for vossa a vitória,


deixai que a trombeta chame quem a trouxe. Ainda que
eu pareça miserável, tenho em mim um lutador capaz de
provar o que aí se declara. Se a luta vos correr mal, o
vosso labor no mundo terá o seu fim, e cessam as
intrigas. Que vos ame a Fortuna.

ALBANIA Fica até eu ter lido a carta.

EDGAR Estou proibido de ficar.

ALBANIA Bom, vai em paz, vou ler o teu papel. (Edgar sai e entra
Edmundo)
EDMUNDO O inimigo está à vista, ordenai as tropas. Aqui está a
estimativa do seu número e força da parte dos
batedores.

76
ALBANIA Vamos enfrentar a hora. (sai)

EDMUNDO Às duas irmãs jurei o mesmo amor, agora desconfiam


uma da outra, como a cauda desconfia da víbora. A qual
deito a mão? Ficar com a viúva envenena, enlouquece, a
irmão Goneril e muito pouco farei da minha obra, com o
marido desta vivo. Para já, é usar o valor dele na batalha
e, feito isso, essa que deseja livrar-se dele que ache
maneira de o fazer. Quanto ao perdão que ele tem
guardado para Lear e Cordélia, feita a batalha, e com eles
à minha mercê, nunca o hão-de ver, porque o meu posto
é para defender, não é para ser discutido.
(Sai)

77
5.2
Entre os dois campos
Toques de combates. Entram, com tambores e estandartes, Lear, Cordélia,
e Soldados, que atravessam o palco e saem. Entram Edgar e Gloucester

EDGAR Vá, ancião, tomai a sombra desta árvore por vossa


hospedeira. Oxalá os justos ganhem. Se eu conseguir
voltar para vós, hei-de trazer-vos algum conforto.

GLOUCESTER A graça dos céus vos acompanhe, senhor.


(Edgar sai. Sons de combate e toque a retirar. volta Edgar)

EDGAR Vamos, bom velho. Dá-me a tua mão. Vamos! O rei Lear
foi vencido. Ele e a filha estão presos. Dá-me a tua mão.
Vamos.

GLOUCESTER Não vou mais, senhor. Mesmo aqui se pode apodrecer.

EDGAR Maus pensamentos outra vez? Temos de aceitar a nossa


ida deste mundo, como aceitámos a chegada. Estar
pronto é tudo. Vamos.

GLOUCESTER Sim, isso é bem verdade.


(Saem)

78
5.3
O campo britânico perto de Dover
Entram em triunfo, com tambores e estandartes, Edmundo; Lear e
Cordélia prisioneiros. Soldados; um Capitão.

EDMUNDO Alguns oficiais os levem; e bem guardados, até que seja


conhecida a alta decisão daqueles que os vão julgar.

CORDÉLIA Não somos nós os primeiros dos que com melhor


intenção tiveram pior sorte. Por ti, rei humilhado, é que
eu sofro. Não vamos então ver essas filhas e irmãs?

LEAR Não, não, não, não. Vamos já daqui para a prisão, nós
juntos vamos cantar como pássaros na gaiola. Quando
me pedires a bênção, hei-de pedir-te, de joelhos,
perdão. E assim havemos de viver e rezar, e cantar, e
contar histórias, e rir das borboletas doiradas, e ouvir os
pobres diabos falar das notícias da corte; e falaremos
também com eles de quem perde, de quem ganha. E,
como se fossemos espiões de Deus, explicaremos o
mistério das coisas. E veremos, do alto da prisão, subir e
descer partidos e seitas dos grandes da terra que serão
como as marés, à luz da Lua.

EDMUNDO Levem-nos daqui.

LEAR Enxuga os teus olhos, Cordélia, que os tempos hão-de


devorá-los a todos, carne e pele, antes que voltem a
fazer-nos chorar. Vamos. (Saem todos menos Edmundo
e Capitão)

EDMUNDO Vem cá, capitão, e ouve. Toma esta nota, e vai com eles
à prisão. Acabei de promover-te. Se cumprires conforme
isto te diz, abres o teu caminho a um nobre destino. Fixa
isto: os homens são o que o seu tempo é. A tua
importante missão não será questionada. Diz-me se a
cumpres, ou procura outra vida.

CAPITÃO Vou cumprir, meu senhor.

79
EDMUNDO Avança, então, e dá-te por feliz quando acabares.
(sai Capitão. Trombetas. Entram Albania, Goneril, Regan e Soldados)

ALBANIA Senhor, mostrastes hoje a vossa veia de combate e a


fortuna esteve convosco. Tendes os cativos que nos
foram opostos na contenda deste dia. Venho requerê-
los de vós, para os tratarmos consoante o exige o seu
merecimento e a nossa segurança.

EDMUNDO Senhor, achei por bem mandar o antigo e desgraçado rei


para um tempo de reclusão em boa guarda. Mandei a
rainha com ele. Amanhã, ou noutro dia qualquer estão
prontos, para irem onde fareis o vosso tribunal. Por
agora, suamos e sangramos. Amigos perderam amigos e
as melhores causas na guerra são malditas para os que
acabam por sofrer o ferro. Não é este o lugar apropriado
para decidir da sorte de Cordélia e de seu pai.

ALBANIA Senhor, devo dizer-vos que nesta guerra vos considero


meu vassalo, não meu igual.

REGAN Isso é consoante quisermos agraciá-lo. Deveríeis ter


perguntado a minha opinião antes de tais rigores. Ele
comandou as minhas tropas; tomou a comissão do meu
posto e pessoa e só essa ligação é mais que chegue para
fazer dele vosso par.

GONERIL Menos calor, irmã. Ter-se elevado deve-o menos aos


vossos favores que à sua boa estrela.

REGAN Investido por mim, nos meus direitos, iguala os mais


nobres.

GONERIL E mais completos seriam, casasse ele convosco.

REGAN Muitas vezes os bobos revelam-se profetas.

GONERIL Oh, lá-lá! Não há olho mau que esconda o brilho.

REGAN Senhora, não me sinto bem; ou vos respondia

80
tudo quanto vai cá dentro. (para Edmundo) General,
tomai conta dos meus soldados, dos meus prisioneiros,
do meu património; tomai posse deles, e de mim. O
castelo é vosso. O mundo testemunhe que aqui eu te
faço meu amo e senhor.

GONERIL E quereis tomar posse dele?

ALBANIA Não sois vós que o poderá impedir..

EDMUNDO Nem vós, senhor.

ALBANIA Ora, bastardo: posso fazê-lo.

REGAN (para Edmundo) Faz soar tambores e anuncia que o meu título
é o teu.
.
ALBANIA Esperai, e ouvi a razão. Edmundo, estás preso por alta
traição, e na tua denúncia incluo esta víbora dourada.
(para Regan) Quanto à vossa pretensão, boa cunhada,
cancelo-a em nome do interesse da minha mulher. Ela
tem um contrato novo com este senhor, e eu, seu
marido, impugno os vossos pregões. Se quereis casar,
casai antes comigo, a minha esposa está prometida a
este senhor.

GONERIL Temos farsa!

ALBANIA Estás armado, Gloucester. Toque a trombeta! Se


ninguém aparece para dar prova, em armas, contra
tantas cruas e manifestas traições, aqui tens o meu
penhor. (lança uma luva) É nesse coração que farei a
prova, de que não és nada além do nome que te dei.

REGAN Sinto-me mal, muito mal.

GONERIL (aparte) Se não te sentisses mal, nunca mais confiaria em


venenos.

EDMUNDO (lança luva) Eis o penhor contrário. Quem quer que no mundo

81
me chame traidor, mente como um vilão. Chamai a
trombeta; atreva-se quem quiser! Contra ele, contra vós,
ou quem vier, manterei a minha verdade e honra com
firmeza.

ALBANIA Confia apenas no teu próprio valor; já que os teus


soldados, que foram alistados em meu nome, em meu
nome também foram dispensados. Um arauto, hou!

REGAN Este mal toma conta de mim.

ALBANIA Ela não está bem, levai-a para a minha tenda.


(Sai Regan, amparada. Entra arauto)
Vem cá, arauto. Toca a trombeta E lê isto em voz alta.
(Soa trombeta)
ARAUTO (lê) “Se algum homem de grau ou posto nas listas deste
exército quiser manter contra Edmundo, presumido
conde de Gloucester, que ele é um traidor renitente, ele
que apareça ao terceiro toque da trombeta. Edmundo
está pronto para se defender.”
(Primeiro toque da trombeta)
(Segundo toque da trombeta)
(Terceiro toque da trombeta. Uma trombeta responde, de dentro. Entra
Edgar, armado)
ALBANIA Quem sois? Qual o vosso nome, e o vosso estado? E
porque respondeis à presente chamada?

EDGAR O meu nome morreu roído pela traição. Moído o nome,


e devorado, sou todavia tão nobre quanto o adversário
que vim encarar.

ALBANIA E quem é esse adversário?

EDGAR Quem se diz Edmundo, conde de Gloucester?

EDMUNDO Eu próprio.

EDGAR Puxa da tua espada; se o meu discurso ofende um peito


nobre, que o braço te faça justiça. O meu está pronto.
Olhai, aqui proclamo que és um traidor; falso para os

82
teus deuses, para o teu irmão e para o teu pai.
Conspirador contra este príncipe ilustríssimo e desde o
topo mais alto dessa tua cabeça à parte mais baixa, tens
as marcas venenosas dum traidor. Diz “não”, e esta
espada, este braço, o meu ser, estão prontos para
provarem ao teu coração, que mentes.

EDMUNDO Por regra eu deveria perguntar o teu nome, mas já que


essa postura é tão nobre e guerreira, das traições de que
me acusas, a ti acuso. E com a infernal mentira carrego-
te o coração, assediado e mal arranhado por tais vícios,
aos quais esta minha espada dará passagem, para lá
morarem para sempre. Trombetas, soai!
(Salvas de combate. Lutam. Edmundo é vencido)
ALBANIA Poupai-o, poupai-lhe a vida!

GONERIL Isto é uma trama, Gloucester. Pela lei das armas não
tinhas de responder a um rival desconhecido. Não foste
vencido, mas iludido e enganado.

ALBANIA Calai a boca, senhora, ou com este papel a calo eu. Tu,
criatura pior do que qualquer nome, lê o teu próprio
crime. Nada de rasgar, senhora! Já vejo que sabeis o que
é.

GONERIL E se souber, as leis são minhas, não tuas e quem me pode


acusar por isso? (sai)

ALBANIA Vão atrás dela. Está desesperada. Agarrem-na. (Sai um,


ou mais)
EDMUNDO Aquilo de que me acusaste, isso eu fiz, e mais, muito
mais. O tempo o mostrará. É passado, como eu sou. –
Mas quem és tu, que tens esta vantagem sobre mim? Se
és nobre eu te perdoo.

EDGAR À brandura respondo com brandura. Não sou menos em


sangue do que tu, Edmundo. O meu nome é Edgar, e sou
filho do teu pai. São justos os deuses, e transformam os
nossos vícios em instrumentos do nosso castigo: o lugar
escuro e malicioso onde ele te fez custou-lhe a vista

83
ALBANIA Bem me pareceu que o teu porte anunciava nobreza
real. Deixa-me abraçar-te. Rasgue a dor o meu coração,
se nalguma hora senti ódio contra ti ou o teu pai.

EDGAR Ilustre príncipe, sei o que sentis.

ALBANIA Por onde andaste escondido? Como soubestes das


mágoas do vosso pai?

EDGAR Cuidando delas, meu senhor. Faço o breve conto: para


fugir à sangrenta proclamação, que dava caça ao meu
nome, decidi-me a tomar os trapos rotos dum louco, e
assumir o aspecto que os próprios cães ignoram. E nesta
figura achei o meu pai com as órbitas em sangue. Fiz-me
seu guia, levei-o, pedi para ele, salvei-o do desespero, e
nunca – ó erro! Nunca lhe confessei quem era, até há
meia hora, quando peguei em armas. Pedi a sua bênção,
e de uma ponta à outra, contei-lhe a minha romagem.
Mas o débil peito, entre dois extremos de paixão, alegria
e dor, estalou; e, com um sorriso, ele morreu.
(Entra Cavaleiro, com faca ensanguentada)
CAVALEIRO Ajuda, ajuda, oh, ajuda!

EDGAR O que significa este punhal ensanguentado?

CAVALEIRO Ainda está quente, larga vapor; e saiu agora mesmo do


coração de – oh, ela está morta! A vossa senhora, a vossa
senhora. E a irmã foi envenenada por ela. Ela confessou.

EDMUNDO Fiz contrato com ambas, e os três juntos em curta


cerimónia nos unimos.

ALBANIA Tragam os corpos. (Entra Kent)

EDGAR Aí vem o nobre Kent.

ALBANIA Oh, é mesmo ele! Esta ocasião não permite cortesia que
os costumes exigem.

KENT Venho para dizer ao meu senhor adeus para sempre. Ele

84
não está aqui?

ALBANIA Fala, Edmundo, onde está o rei? Onde está Cordélia?


(Trazem os corpos) Vedes este espectáculo, nobre Kent?

KENT Oh, se vejo, e que foi isto?

ALBANIA Cobri-lhes as faces.

EDMUNDO Mandai buscar, e depressa, ao castelo, a minha ordem


escrita contra a vida de Lear e Cordélia.

ALBANIA Correi, correi! Oh, correi!

EDGAR A quem me dirigir? A quem deste essa ordem? Manda


um sinal teu para suspender a execução.

EDMUNDO Leva a minha espada. O capitão. Entrega-a ao capitão.

ALBANIA Apressa-te, pela tua vida! (Edgar sai)

EDMUNDO Recebeu de mim e de vossa mulher a missão para


enforcar Cordélia na prisão e pôr as culpas no seu
próprio desespero, fazendo crer que ela se matou.

ALBANIA Os deuses a protejam. – Levem-no daqui.


(Edmundo é carregado para fora. Entra Lear com Cordélia morta nos braços,
seguido pelo Fidalgo e Edgar)

LEAR Uivai! Uivai! Uivai! Uivai! Ó homens de pedra, tivesse eu


vossas vozes e vossos olhos, e faria rebentar o
firmamento. Ela foi-se para sempre. Está tão morta
como a terra. Dai-me um espelho. Se o sopro dela
enevoar ou embaciar o cristal, então é porque está viva.

KENT É este o anunciado fim?

EDGAR Ou é uma imagem desse horror?

ALBANIA Caia o céu, e finde a sua luz.

85
LEAR Esta pena treme. Ela vive, Se assim for, tal felicidade
redime as mágoas todas que alguma vez senti.

KENT Meu bom senhor!

LEAR Sai daqui.

EDGAR É o nobre Kent, vosso amigo.

LEAR Uma praga em vós todos, assassinos, traidores, todos. Eu


podia tê-la salvado, agora ela foi-se para sempre.
Cordélia, Cordélia! Espera um pouco. Hã? Que dizes? A
sua voz foi sempre suave, afável, e branda. Matei o
escravo que estava a pendurar-te. Matei! No meu bom
tempo, com a minha espada afiada, eu os tinha feito
saltar à minha frente. Agora estou velho e estes
tormentos dão cabo de mim. Quem sois vós? Estes olhos
não estão bons. Já vos digo quem sois.

KENT Se a Fortuna se gaba de amar uns e odiar outros, então


eu sou o outro.

LEAR Não tenho olhos para isto. Tu não és Kent?

KENT O próprio, o vosso servidor, Kent. Onde está o


vosso servidor, Caio?

LEAR Morreu e apodreceu.

KENT Não, meu bom senhor, sou eu esse homem…

LEAR Vou ver já isso.

KENT …que seguiu os vossos tristes passos desde o princípio…

LEAR Então sê bem-vindo.

KENT Não, ninguém pode ser bem-vindo. Tudo é triste, baço,


escuro e mortal. Vossas filhas mais velhas traíram a
própria vida e morreram de desespero.

86
LEAR Pois, é o que me parece.

ALBANIA Ele não sabe o que diz, e é em vão que nos pomos diante
dele.

EDGAR Completamente inútil. (Entra um oficial)

OFICIAL Edmundo morreu, meu senhor.

ALBANIA Isso não é nada, agora. Senhores e nobres amigos,


conhecei os nossos propósitos; todo o conforto que
houver a dar a este mal será dado. Quanto a nós, durante
a vida desta velha majestade, iremos abdicar, dando-lhe
o poder absoluto. Os amigos todos receberão a paga da
sua virtude, e os inimigos o cálice amargo que é devido.
– Oh, vede, vede!

LEAR Enforcaram a minha pobre menina! Não, não, já não tem


vida. Porque há-de um cão, um cavalo, um rato ter vida
e tu sopro nenhum na boca? Oh, não voltas mais, nunca
,nunca ,nunca, nunca, mais! Vedes? Olhai para ela. Olhai,
os seus lábios, ohai aqui, olhai aqui. (Morre)

EDGAR Fechou os olhos. Meu senhor, meu senhor!


KENT Estala, coração, por favor, estala!

EDGAR Abri os olhos, senhor.

KENT Não agiteis mais o seu espírito. Deixai-o ir. Só o ódio


poderia amarrá-lo mais tempo ao potro deste doloroso
mundo.

EDGAR Já se foi, partiu.

KENT Só me espanta ter aguentado tanto tempo. Negou à


própria morte o seu direito.

ALBANIA Levai-os daqui. A nossa missão, agora, é a dor geral.


Amigos da minha alma, vós ambos, governai este reino,
e erguei o Estado arruinado.

87
KENT Tenho uma jornada a fazer em breve, senhor: meu amo
chama-me. Não posso dizer que não.

EDGAR Ao peso desta hora triste temos de obedecer.


Dizer o que sentimos, não o que é certo dizer.

Saem, ao som de uma marcha fúnebre.

88

Você também pode gostar