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1.1
Palácio do Rei Lear
Entram Kent, Gloucester e Edmundo
REGAN Sou feita do mesmo metal da minha irmã, mas ela não
leu o bastante. Ora eu declaro-me, a mim própria,
inimiga de todo o prazer que há no quadrado perfeito
dos sentidos e sei que só me sentirei feliz no amor de
vossa alteza adorada.
LEAR Nada?
CORDÉLIA Nada.
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parentesco, e te considero estranha a mim e ao meu
coração. Para sempre! O bárbaro da Cítia ou aquele que
devora os próprios filhos, serão mais chegados ao meu
peito, mais chorados e confortados do que tu, que foste
minha filha.
KENT Grande Lear, a quem sempre louvei como meu rei, amei
como pai e servi como um mestre…
KENT Ela que venha e me crave o coração. Kent tem de ser cru,
quando Lear é louco. Que queres fazer, velho? Julgas que
o dever há-de ter medo de falar se o poder se verga à
lisonja? Revoga a tua sentença, e emenda esta horrível
leviandade. Pela minha vida, a tua filha mais nova não te
ama menos.
KENT A minha vida não foi mais do que um peão contra os teus
inimigos, nem temo perdê-la, se a tua segurança o exige.
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KENT Cuida do que vês, Lear, e deixa-me ficar.
LEAR Bom nobre da Borgonha quando ela nos foi querida, teve
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bom preço; agora o preço baixou. Senhor, ela aí está. Se
há alguma coisa, nessa fraca aparência, que agrade a
vossa graça, aí a tendes: é vossa.
REI FRANCÊS É estranho: que essa que era inda agora o vosso melhor
bem, objecto dos vossos louvores, bálsamo da vossa
idade, a melhor, a mais querida, tenha feito, neste nada,
algo tão monstruoso e capaz de arruinar tão grande lista
de favores. A ofensa, é certo, há-de ser dum tal grau
contra a natureza que gerou um monstro, ou o vosso
proclamado amor andava doente.
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BORGONHA Grande Lear, dai apenas o que haveis proposto, e agora
mesmo tomarei Cordélia pela mão, como duquesa da
Borgonha.
REI FRANCÊS Formosa Cordélia, que sois tão rica, sendo pobre.
Escolhida e abandonada. Amada e desprezada! A ti eu
tomo e às tuas virtudes. A tua filha deserdada, ó rei,
lançada à sorte, é rainha nossa, rainha dos nossos, e da
bela França. Apesar de cruéis, diz-lhes adeus, Cordélia.
Perdes este lugar, outro melhor acharás.
LEAR Já a tens, Rei de França, e seja tua, que nós não temos
tal filha, nem voltaremos a ver nunca mais o seu rosto.
Vai-te pois, sem o nosso amor, a nossa bênção, o nosso
afecto. Vinde, nobre duque da Borgonha!
(Trombetas. Saem todos, menos o rei francês e as irmãs)
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cobra faltas, a vergonha destapa. Ide e prosperai, se
puderdes!
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1.2
Castelo do Conde de Gloucester
Entra Edmundo, com uma carta
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EDMUNDO Peço-vos que me perdoeis. É uma carta do meu irmão,
que não li inteira, mas que, pelo que já espreitei, não é
digna dos vossos olhos.
GLOUCESTER É dele.
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que quando os filhos chegam à idade adulta e os pais ao
declínio da velhice, os pais deveriam ser tutelados pelos
filhos e os filhos deveriam administrar os bens.
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do céu! Meu pai combinou-se com a minha mãe sob o
signo da Cauda do Dragão, e eu nasci sob a Ursa Maior –
sou, por isso, bruto e lascivo. Eu! A verdade é que teria
sido sempre o que sou, mesmo que tivesse cintilado
sobre a fornicação que me fez a mais virgem das estrelas.
(entra Edgar) E cá está ele! Chega como catástrofe na
comédia antiga.. – Oh, os tais eclipses é que causam
estas discórdias! Fá, sol, lá, mi.
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EDGAR Uma arma, irmão?
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1.3
Palácio do Duque de Albania
Entra Goneril e o seu mordomo (Osvaldo)
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1.4
Palácio do duque de Albania
Entra Kent, disfarçado
KENT Servir.
LEAR A quem?
KENT A vós.
LEAR Conheces-me?
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KENT Autoridade.
LEAR Já tinha notado. Vai dizer à minha filha que quero falar
com ela. (Sai Seguidor) Tu, vai chamar o meu bobo. (Sai
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outro Seguidor. Volta Osvaldo) Hou! Vós, senhor, vinde
cá. Quem sou eu?
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LEAR Cuidado, velhaco – o chicote.
LEAR Ora, não, menino, não se pode fazer coisa nenhuma com
nada.
BOBO (para Kent) Peço-te, diz-lhe tu que a tanto sobe o rendimento das
suas terras. Ele não quer acreditar num bobo.
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LEAR Chamas-me bobo, rapaz?
BOBO Desde que das tuas duas filhas fizeste duas mães; e lhes
deste a palmatória, e arreaste as calças. Peço-te,
tiozinho, arranja um mestre-escola que ensine o teu
bobo a mentir. Queria muito aprender a mentir.
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BOBO Eras um belo número, no tempo em que não reparavas
nas rugas dela. Agora és um zero e não contas para nada.
Sou mais do que tu, agora. Mas vou calar-me. (para
Goneril) A vossa expressão manda-me calar. Cala-te
boca! (canta)
Tolo, tolo,
Esse que não junta nem côdea nem miolo,
E um dia quando precisar de comer.
Nem consolo lhe há-de valer. (aponta Lear)
Olha, uma casca vazia.
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e venerável como sois, deveríeis ser também sensato.
Tendes nesta casa cem cavaleiros e escudeiros, homens
tão devassos, tão desordeiros e tão dados à luxúria que
infectaram esta corte, transformando-a num bordel.
Esta vergonha clama remédio urgente. Ouvi esta que
pede, senhor, para não termos nós de tomar em mãos o
que pedimos. Reduzi o número dos que vos seguem e os
que sobrarem, sejam homens, senhores de si e
obedientes a vós.
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teu propósito; e se o teu intento era tornar fértil esta
criatura; torna antes estéril o seu ventre! Seca nela os
órgãos que dão fruto e nunca brote do corpo
corrompido uma criança que a honre! Se ela há-de parir,
dá-lhe um filho de mau baço, que viva como um suplício
retorcido para ela! Que ela sinta – que ela sinta – que
mais doloroso que o dente da víbora é ter um filho
ingrato! Embora, embora!(Saem Lear, Kent, e Servidores)
GONERIL Calma, por favor. Osvaldo! (ao Bobo) Tu, senhor, mais
servo que bobo, segue o teu dono.
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enfrentar os males que temo, em vez de ficar sempre
temendo. O que ele disse já eu escrevi para a minha
irmã. (Entra Osvaldo) Então, Osvaldo? Escreveste a carta
para a minha irmã?
ALBANIA O longe que esses olhos alcançam não sei dizer. Muitas
vezes por querer melhor, perdemos o que é bom.
GONERIL Entretanto…
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1.5
Diante do palácio do duque de Albania
Entram Lear, Kent e Bobo
LEAR Vai tu adiante para Gloucester com esta carta. Não digas
nada do que sabes à minha filha antes que ela te
pergunte, ao ler a carta. Se a tua diligência não for veloz,
chego lá primeiro.
BOBO Vais ver que a tua outra filha te vai tratar com igual
ternura; Sabes dizer porque é que o nariz de uma pessoa
está no meio da cara?
LEAR Não.
BOBO Ora, para que fique um olho de cada lado do nariz. O que
um homem não pode cheirar, pode ao menos ver.
LEAR Não.
BOBO Nem eu. Mas sei dizer porque é que o caracol tem uma
casa.
LEAR Porquê?
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BOBO Para pôr a coroa lá dentro; não é para dar às filhas e ficar
com os cornos de fora..
BOBO Não devias ter ficado velho antes de teres ficado sábio.
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2.1
Castelo do Conde de Gloucester
Entram Edmundo e Curan, de lados opostos
CURAN Não sei, não faço ideia. Já ouvistes as novas que correm
por aí? – Quero dizer, as que se sopram ao ouvido?
CURAN Então ireis ouvir, a seu tempo. Adeus, meu senhor. (sai)
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o teu papel. - Rende-te! Tragam luz! Aqui! – Vai, irmão!
Tochas! Tochas! (para Edgar) Então adeus.(Sai Edgar)
Algum sangue que eu tire de mim fará prova da minha
maior entrega.
Pai! Pai! Alto! Alto! Quem me acode?
(Entram Gloucester e Servidores com tochas)
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virtude, ou valor em ti que te dêem crédito? Fazes dos
outros parvos, se cuidas que eles não vêem, que os
benefícios para ti da minha morte são poderoso estímulo
para tu próprio a desejares e provocares.
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EDMUNDO Hei-de servir-vos, senhor, com dedicação e lealdade.
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2.2
Diante do castelo de Gloucester
Entram Kent e o Mordomo (Osvaldo), de lados opostos
KENT Sou.
KENT Na fossa.
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OSVALDO Socorro! Ai! Assassino! Socorro!
KENT Tenho raiva de que tal patife possa usar uma espada,
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sem que tenha honra alguma. Estes tipos sorridentes,
renegam, juram e, consoante sopra o vento, viram o bico
ao sabor dos caprichos do seu senhor. Estás a rir-te do
que digo? Se te catasse, ganso, à solta em campo aberto,
tocava-te a grasnar de volta, até à capoeira.
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buscar o tronco!
GLOUCESTER Permiti que vos peça que não façais isto. O rei pode levar
a mal que, sendo assim maltratado o seu mensageiro, se
mostre bem pouco respeito por ele.
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2.3
Uma mata
Entra Edgar
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2.4
Diante do castelo de Gloucester
Entram Lear, Bobo e Fidalgo
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Mas os pais muito abastados
Fazem os seus bem prendados.
Fortuna é mulher da vida,
Nunca ama a quem mendiga.
Por tudo isso, as tuas filhas vão dar-te tantos desgostos
que nem os vais conseguir contar num ano inteiro.
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GLOUCESTER Querido senhor, conheceis o temperamento colérico do
duque, e sabeis como ele é inabalável e fixo na sua
vontade.
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REGAN Se, por acaso, senhor, ela refreou o tumulto dos vossos
homens, foi com tal fundamento, e fim tão sadio, que a
absolvem de toda a culpa.
LEAR Não, Regan, nunca terás a minha maldição. Ela tem frios,
os olhos. Os teus dão paz, não queimam. Não está em ti
odiar o meu prazer, cortar-me a companhia, limitar os
meus gastos; conheces bem melhor os deveres da
natureza, o laço filial, as contas da gratidão. Não
esqueceste a metade do reino que te dei em dote.
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REGAN São da minha irmã, conheço-as. (entra Osvaldo) A tua
senhora chegou?
GONERIL E porque não lhe hei-de dar a mão? Que mal fiz eu? Nem
tudo o que a demência vê, ou o desvario acusa, são
ofensas.
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uma pústula, um carbúnculo inchado no meu sangue
podre. Mas não te censuro. Nem chamarei contra ti o
trovão que dispare, nem me queixo de ti ao supremo
Júpiter. Emenda-te enquanto podes, amadurece. Sei ser
paciente, posso ficar com Regan, eu e os meus cem
homens.
GONERIL Porque não poderíeis vós, senhor, ser servido pelos que
ela tem como criados, ou pelos meus?
GONERIL Ouvi, meu senhor. Para que vos servem vinte e cinco,
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dez, ou cinco, tantos atrás de vós, numa casa que tem o
dobro com ordem de vos servir?
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GLOUCESTER Ó sorte, a noite vem lá, e ventos gelados gemem e
rugem. Por milhas em redor mal se acha um arbusto.
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3.1
Uma Charneca
Continua a tempestade. Entram Kent e Cavaleiro de lados opostos
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3.2
Outra parte da Charneca
Continua a tempestade. Entram Lear e Bobo
BOBO Quem tem uma casa para enfiar a cabeça, tem um belo
capacete. (canta)
Esse que deita a cabeça de baixo
Onde não dorme a cabeça de cima,
Ganha piolhos em cima e em baixo:
Assim o pobre é pobre na estima.
E esse que bate o pé ao amor,
Sem deixar bater o coração,
Só ganha grandes calos, e o ardor
Que lhe gasta as noites em vão. (Entra Kent)
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KENT Ah, senhor, estais aqui? Desde que sou homem, não me
lembro de ver e ouvir tais lâminas de fogo, tão horríveis
estrondos, da chuva e do vento.
LEAR Foge-me a razão. Vem cá, meu rapaz. Como vais? Tens
frio? Eu também. Estranha é a arte da necessidade, que
torna preciosas as coisas mais vis. Vamos à choupana.
Pobre bobo, pobre velhaco, uma parte do meu coração
ainda é capaz de sofrer por ti. (Saem Lear e Kent)
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3.3
Castelo de Gloucester
Entram Gloucester e Edmundo
GLOUCESTER Vai, mas não digas nada do que te vou dizer. Há discórdia
entre os duques. Recebi uma carta esta noite – é um
perigo falar dela – tranquei a carta no meu gabinete.
Estes maus-tratos que o rei tem sofrido serão
inteiramente vingados; parte dum exército já
desembarcou; Vou procurar o rei e ajudá-lo em segredo.
Tu vai e mantém conversa com o duque e, se ele
perguntar por mim, estou doente e fui para a cama.
Ainda que eu morra por isto, o rei meu senhor tem de
ser socorrido. Há acontecimentos estranhos, Edmundo.
Tem cuidado.(sai)
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3.4
Charneca. Diante duma cabana
Entram Lear, Kent e Bobo
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LEAR Deste tudo às tuas filhas e foi nisto que deste, não?
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Três de nós aqui somos sofisticados! Tu és a coisa
verdadeira! O homem sem confortos não passa dum
pobre bicho nu com duas patas como tu. Fora, fora,
coisas emprestadas! Ajuda, desabotoa aqui. (rasga a
roupa)
BOBO Peço-te, tiozinho, pára com isso; está uma noite má,
para ir nadar. Olha! Ali vem um fogo fátuo. (Entra
Gloucester com um archote)
KENT Quem está aí? Quem procurais?
KENT Insisti outra vez para ir, meu senhor. O juízo dele começa
a inquietar-se.
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um filho. E em verdade te digo, a dor deu-me cabo do
juízo. Que noite esta! Peço a vossa alteza…
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3.5
Castelo de Gloucester
Entram Cornualha e Edmundo
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3.6
Numa casa anexa ao castelo
Entram Kent e Gloucester
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LEAR Julgai esta primeiro: é Goneril. Juro solenemente
perante esta ilustre assembleia que ela mandou porta
fora o pobre rei, seu pai.
GLOUCESTER Vem cá, amigo. Toma o rei nos braços. Acabo de saber
que se trama a sua morte. Há uma liteira pronta. Vai para
Dover, onde receberás boas-vindas e protecção. Traz o
teu amo. Se esperas meia hora que seja, a vida dele,
como a tua, e de todos os que o defendem, estão por
certo perdidas. Trá-lo, trá-lo; Vem!
(Saem)
(PS: ver o solilóquio de Edgar que falta aqui)
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3.7
Castelo de Gloucester
Entram Cornualha, Regan, Goneril, Edmundo e Servidores
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GLOUCESTER Não sou nada disso, dama sem piedade. (Regan puxa-lhe
as barbas) Pela bondade dos deuses, é ignóbil arrepelar-me as
barbas.
CORNUALHA Habilidoso.
REGAN E falso.
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GLOUCESTER Venha quem espera viver até ser velho, venha dar-me
ajuda! Ó cruel! Ó deuses!
CRIADO 1 Parai, senhor. Desde criança que vos sirvo, mas nunca
vos prestei melhor serviço que vos pedir agora que
baixeis as mãos.
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4.1
Uma charneca
Entra Edgar
GLOUCESTER Vai, vai-te embora, bom amigo, vai-te embora. Para mim
já não há caminho, portanto não peço olhos. Quando os
tinha, tropeçava. É sempre assim, os nossos recursos
tornam-nos descuidados; as nossas faltas, previdentes.
Ó querido filho Edgar, como serviste de pasto à ira do
teu pai enganado! Pudesse eu viver para ver-te com os
dedos e diria: “tenho de novo os meus olhos”.
EDGAR O Pobre Tom tem frio. (aparte) Não consigo fingir mais.
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EDGAR Mas tenho de fingir. Abençoados esses teus olhos que
sangram.
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4.2
Diante do palácio do duque de Albania
Entram Goneril, e Edmundo
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ALBANIA O saber e a bondade, aos maus, parecem maus. A
porcaria só gosta de si própria. O que fizestes vós? Filhas
não, tigres, que fizestes? Se os céus não mandarem cá
abaixo a sua força para reprimir estes crimes abjectos, a
hora há-de vir, em que os homens de si próprios serão
caça.
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vida. Fora isso, a notícia não é má. (alto) Vou ler e
responder. (Sai, com Osvaldo)
MENSAGEIRO Sabe, senhor. Foi ele mesmo quem denunciou o pai e foi-
se de propósito, para o castigo deles poder ter mais livre
curso.
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4.3
O campo francês, perto de Dover. uma tenda
Entram, Cordélia, um Médico e Soldados
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4.4
Castelo de Gloucester
REGAN Que estará escrito na carta que minha irmã lhe mandou?
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OSVALDO Eu, senhora?
REGAN Sei do que falo. É o que és. Sei muito bem. O meu senhor
morreu. Edmundo e eu falámos e ele está mais virado
para a minha mão do que para a da tua senhora. Se o
encontrares, peço-te que lhe dês isto; e quando contares
à tua senhora o que te disse, peço-te que lhe digas que
tenha bom senso. Se por acaso souberes desse traidor
cego, há recompensa para quem o despachar. Adeus.
(Saem, por lados opostos)
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4.5
Campos perto de Dover
Entram Edgar e Gloucester
GLOUCESTER Há-de ser por isso. Até me parece que a tua voz mudou,
e que falas melhor e com mais acerto.
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EDGAR Então adeus, bom senhor!
EDGAR Dai-me o vosso braço. Para cima, isso. Que tal? Sentis as
pernas? De pé.
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EDGAR Armai-vos de ideias livres e firmes. Quem vem ali?
(Entra Lear,adornado com flores)
A mente sã nunca vestiria o seu dono desta maneira.
LEAR Passa.
LEAR Sim, todo ele é rei. Qual foi o teu crime? Adultério? Não
hás-de morrer. Morrer por adultério! Não. Até a carriça
o comete. Soltai o coito! O filho bastardo de Gloucester
foi melhor para o pai do que as minhas filhas, concebidas
em lençóis legítimos. Anda, luxúria, não percas tempo!
Olhai a dama de sorriso afectado, que se faz virtuosa, e
abana muito a cabeça, só de ouvir o nome do prazer. Da
cintura para baixo elas são centauros, embora mulheres
da cintura para cima. Até à cintura são donos os deuses,
abaixo manda o demónio. É o inferno, é a escuridão, é o
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poço de enxofre, é o fogo, a infecção, o fedor, a morte.
Fora, fora, fora! Pah, pah! Boticário, dá-me uma onça de
almíscar, para desinfetar a minha fantasia. Toma lá
dinheiro.
LEAR Lê.
LEAR Oh, oh, o que me dizes tu? Nem olhos na cabeça, nem
dinheiro na bolsa? E todavia sabes como vai o mundo.
LEAR Estás louco? Não são precisos olhos para ver como vai o
mundo. Vê com as orelhas. Vê como o juiz além cai sobre
aquele simples ladrão. Chega-te cá, escuta: troca os
lugares, e, qual-é-a-coisa-qual-é-ela, quem é o juiz e
quem é o ladrão? Já viste o cão dum lavrador a ladrar a
um pedinte?
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autoridade. Vejam isto: a roupa esfarrapada mostra os
pequenos defeitos; sedas e peles tudo encobrem. Cobre-
o de farrapos, e até uma palha o trespassa. Põe uns
óculos, e, tal como o político sabido faz que vês tudo o
que te escapa. Vá, vá, vá, vá! Tira-me as botas. Força,
mais força. Isso. Se queres chorar a minha sorte, toma os
meus olhos. Conheço-te muito bem, chamas-te
Gloucester. Tens de ser paciente. Viemos ao mundo a
chorar. Quando nascemos, choramos por ter chegado a
este grande palco de doidos. (Entra um Cavaleiro, com
Soldados)
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GLOUCESTER E agora, bom senhor, quem sois vós?
GLOUCESTER Que a tua mão amiga ponha força bastante nesse gesto.
(Edgar interpõe-se)
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coragem, hora e lugar não faltarão. Nada feito, se ele
regressa vencedor. Então serei sua prisioneira, e a cama
dele a minha cela. Livrai-me da sua intimidade odiosa, e
ocupai o seu lugar. Vossa (gostaria de dizer esposa)
servidora afeiçoada, Goneril.”
Oh, um plano contra a vida virtuosa do marido e o
substituto é o meu irmão! No devido tempo porei este
papel maldoso diante dos olhos do duque, cuja morte se
trama.
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4.6
Uma tenda no campo Francês
Lear dorme numa cama. Perto um médico, um fidalgo e outros. Entram
Cordélia, Kent
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enganado. Vejamos, sinto a picada deste alfinete.
Queria ter a certeza da minha condição.
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5.1
O Campo Britânico, perto de Dover
Entram, com tambores e estandartes, Edmundo, Regan, Fidalgos e
Soldados
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ouvi dizer que o rei foi ter com a filha. Este assunto toca-
nos muito, se a França nos toma terra. Mas está certo o
rei, com outros a quem, eu sei, causas justas e sérias
levaram a revoltar-se.
ALBANIA Bom, vai em paz, vou ler o teu papel. (Edgar sai e entra
Edmundo)
EDMUNDO O inimigo está à vista, ordenai as tropas. Aqui está a
estimativa do seu número e força da parte dos
batedores.
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ALBANIA Vamos enfrentar a hora. (sai)
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5.2
Entre os dois campos
Toques de combates. Entram, com tambores e estandartes, Lear, Cordélia,
e Soldados, que atravessam o palco e saem. Entram Edgar e Gloucester
EDGAR Vamos, bom velho. Dá-me a tua mão. Vamos! O rei Lear
foi vencido. Ele e a filha estão presos. Dá-me a tua mão.
Vamos.
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5.3
O campo britânico perto de Dover
Entram em triunfo, com tambores e estandartes, Edmundo; Lear e
Cordélia prisioneiros. Soldados; um Capitão.
LEAR Não, não, não, não. Vamos já daqui para a prisão, nós
juntos vamos cantar como pássaros na gaiola. Quando
me pedires a bênção, hei-de pedir-te, de joelhos,
perdão. E assim havemos de viver e rezar, e cantar, e
contar histórias, e rir das borboletas doiradas, e ouvir os
pobres diabos falar das notícias da corte; e falaremos
também com eles de quem perde, de quem ganha. E,
como se fossemos espiões de Deus, explicaremos o
mistério das coisas. E veremos, do alto da prisão, subir e
descer partidos e seitas dos grandes da terra que serão
como as marés, à luz da Lua.
EDMUNDO Vem cá, capitão, e ouve. Toma esta nota, e vai com eles
à prisão. Acabei de promover-te. Se cumprires conforme
isto te diz, abres o teu caminho a um nobre destino. Fixa
isto: os homens são o que o seu tempo é. A tua
importante missão não será questionada. Diz-me se a
cumpres, ou procura outra vida.
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EDMUNDO Avança, então, e dá-te por feliz quando acabares.
(sai Capitão. Trombetas. Entram Albania, Goneril, Regan e Soldados)
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tudo quanto vai cá dentro. (para Edmundo) General,
tomai conta dos meus soldados, dos meus prisioneiros,
do meu património; tomai posse deles, e de mim. O
castelo é vosso. O mundo testemunhe que aqui eu te
faço meu amo e senhor.
REGAN (para Edmundo) Faz soar tambores e anuncia que o meu título
é o teu.
.
ALBANIA Esperai, e ouvi a razão. Edmundo, estás preso por alta
traição, e na tua denúncia incluo esta víbora dourada.
(para Regan) Quanto à vossa pretensão, boa cunhada,
cancelo-a em nome do interesse da minha mulher. Ela
tem um contrato novo com este senhor, e eu, seu
marido, impugno os vossos pregões. Se quereis casar,
casai antes comigo, a minha esposa está prometida a
este senhor.
EDMUNDO (lança luva) Eis o penhor contrário. Quem quer que no mundo
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me chame traidor, mente como um vilão. Chamai a
trombeta; atreva-se quem quiser! Contra ele, contra vós,
ou quem vier, manterei a minha verdade e honra com
firmeza.
EDMUNDO Eu próprio.
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teus deuses, para o teu irmão e para o teu pai.
Conspirador contra este príncipe ilustríssimo e desde o
topo mais alto dessa tua cabeça à parte mais baixa, tens
as marcas venenosas dum traidor. Diz “não”, e esta
espada, este braço, o meu ser, estão prontos para
provarem ao teu coração, que mentes.
GONERIL Isto é uma trama, Gloucester. Pela lei das armas não
tinhas de responder a um rival desconhecido. Não foste
vencido, mas iludido e enganado.
ALBANIA Calai a boca, senhora, ou com este papel a calo eu. Tu,
criatura pior do que qualquer nome, lê o teu próprio
crime. Nada de rasgar, senhora! Já vejo que sabeis o que
é.
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ALBANIA Bem me pareceu que o teu porte anunciava nobreza
real. Deixa-me abraçar-te. Rasgue a dor o meu coração,
se nalguma hora senti ódio contra ti ou o teu pai.
ALBANIA Oh, é mesmo ele! Esta ocasião não permite cortesia que
os costumes exigem.
KENT Venho para dizer ao meu senhor adeus para sempre. Ele
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não está aqui?
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LEAR Esta pena treme. Ela vive, Se assim for, tal felicidade
redime as mágoas todas que alguma vez senti.
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LEAR Pois, é o que me parece.
ALBANIA Ele não sabe o que diz, e é em vão que nos pomos diante
dele.
87
KENT Tenho uma jornada a fazer em breve, senhor: meu amo
chama-me. Não posso dizer que não.
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