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coro dos maus alunos

prólogo

PLACO
está tudo no you tube
podem ver
toda a gente pode ver

FISA
nós entrámos pela sala
éramos seis
rapazes e raparigas

CRINA
entrámos pela sala e partimos tudo
partimos cadeiras

LUGA
partimos mesas

GARO
partimos o quadro preto

SÍBIA
partimos braços

CRINA
partimos a cara aos professores

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
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FISA
no you tube a imagem não é muito boa
mas dá para ver que sou eu a dar com a cadeira
nas costas de um professor

GARO
eu filmei tudo com o telemóvel

SÍBIA
a gente a empurrar os professores
à estalada neles

LEMA
eu não estava lá
não vi nada

PLACO
eu não sabia que alguém tinha uma arma

CRINA
eu levei a arma só para assustar
é do meu pai

LEMA
eles queriam que eu fosse com eles
eu disse que não
eu tentei convencê-los

FISA
deitámos as estantes ao chão

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CRINA
eu não ia disparar
eu só puxei da arma para lhes mostrar
quem é que mandava

LEMA
fecharam-me numa despensa
porque sabiam que eu ia contar
passei aquele tempo todo na despensa

PLACO
quando vi a arma não disse nada
nunca pensei que estivesse carregada

GARO
só estando lá é que dá para perceber
os professores todos em pânico

SÍBIA
os professores de joelhos a chorar

GARO
e eu a filmar tudo com o telemóvel

FISA
e eu ao pontapé à professora de matemática

SÍBIA
eu com uma lata de spray a pintar a parede

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LUGA
e então eu peguei na arma
fiquei cego, percebem
eu só conseguia pensar no professor
no que eles tinham feito ao professor

PLACO
a gente chama-lhe professor
porque era o único que nos ensinava
aos outros não chamávamos professores

LUGA
filhos da puta

CRINA
aos outros chamávamos filhos da puta

FISA
o professor não gostava que a gente lhes chamasse isso

LUGA
o professor era bom demais

LEMA
eu disse-lhes que se o professor estivesse ali
ia dizer o mesmo que eu
o professor não ia querer que eles fizessem aquilo

LUGA
filhos da puta

LEMA

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mas eles fecharam-me na despensa

CRINA
quando reparei estava uma data de gente nas janelas a espreitar

FISA
uns gritavam, outros aplaudiam

SÍBIA
eu até pensei que fosse um relâmpago

PLACO
um relâmpago seguido logo de um trovão

LUGA
eu disparei

SÍBIA
como se tivesse caído um relâmpago ali na sala

CRINA
os que estavam na janela começaram a gritar

GARO
e eu nunca parei de filmar
era como se estivesse a ver um filme
como se não estivesse lá

LEMA
eu juro que não estava lá
eu estava na despensa quando ouvi o tiro

PLACO
não tínhamos outra opção

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eles não nos quiseram ouvir
nós tentámos falar

LUGA
nós tínhamos que fazer alguma coisa

FISA
porquê?

SÍBIA
eles querem saber porquê

PLACO
ainda bem
foi por isso

CRINA
para nos ouvirem

LUGA
foi por isso que eu disparei

GARO
foi por isso que eu filmei

FISA
eles não queriam ouvir-nos

PLACO
eles escolheram não ouvir

LUGA
mas toda a gente ouve um tiro

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GARO
não se pode escolher
não ouvir um tiro

SÍBIA
agora toda a gente quer saber porquê

FISA
agora querem ouvir

PLACO
nós contamos

LUGA
estamos aqui para contar porquê

LEMA
se calhar não vão perceber

PLACO
se calhar nem nós percebemos

CRINA
mas vamos contar à mesma

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primeiro acto

FISA / SÍBIA / CRINA


no primeiro dia
ele entrou na sala
estávamos todos a falar
era um velho a andar devagar

LEMA
viste o filme ontem à noite?
incrível, não era?

PLACO
adormeci
aquilo parecia uma telenovela

LEMA
eu gostei
eu chorei no fim

PLACO
eu acordei no fim

FISA / SÍBIA / CRINA


e o velho a sentar-se
e de repente, ele diz:

LUGA
alguém é capaz de me insultar?

PLACO / LEMA
e aí nós paramos de falar sobre o filme

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PLACO
o filme que era mau, pelo menos a parte que eu vi

LEMA
o filme era bom

PLACO / LEMA
mas nós paramos de falar nisso

LUGA
e ele repete, muito devagarinho:

SÍBIA
alguém

CRINA
é

FISA
capaz

LEMA
de

PLACO
me

LUGA
insultar?

GARO
insultar?
disse eu

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LUGA
insultar
disse o professor

FISA
chamar nomes

SÍBIA
humilhar

CRINA
ridicularizar

LUGA
procurem no dicionário
disse o professor
tem vários nomes
mas resume-se a isto:
um de vocês levanta-se
vem aqui à minha frente
e trata-me mal

CRINA
mas porque é que havíamos de fazer isso?

LEMA
e ele responde, porque quero ver se são capazes

PLACO
é uma espécie de avaliação da matéria dada, diz ele

LEMA
qual matéria?, pergunto eu

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PLACO
filosofia

GARO
nós já tínhamos ouvido falar deste velho
tínhamos ouvido dizer que era estranho

CRINA
tínhamos ouvido dizer
que havia um escândalo há muito tempo
um escândalo, mas que tipo de escândalo não sei

FISA
que ele tinha ficado maluco

CRINA
um esgotamento nervoso

PLACO
foi um escândalo
isso do esgotamento nervoso foi invenção
inventaram isso para que todos pensassem
que o velho estava maluco

FISA
e qual foi o escândalo?

PLACO
isso não sei
mas acho que foi um escândalo

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SÍBIA
esteve sete anos sem ensinar
voltou agora

CRINA
eu não sei, mas ouvi dizer que era um problema psiquiátrico

SÍBIA
a minha mãe andou nesta escola
e lembra-se dele
diz que era um professor diferente
estranho e divertido
mas mesmo muito estranho
isto foi a minha mãe que disse
não sei se é verdade

CRINA
havia histórias sobre ele
mas ninguém tinha mesmo a certeza
se eram mesmo sobre ele

FISA
e agora tinha voltado a dar aulas
talvez estivesse curado

CRINA
embora ninguém saiba de quê
ninguém sabia ao certo o que ele tinha tido

SÍBIA
e olhando para ele
percebia-se que ele tinha tido alguma coisa
mas era impossível dizer o quê

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FISA / SÍBIA / CRINA
e o velho sentado a olhar para nós
e nós a imaginar qual seria a história dele
a história verdadeira deste velho estranho
que nos pedia que o insultássemos
e ninguém era capaz de perguntar
o que toda a gente estava a pensar

CRINA
o que é que os insultos tinham a ver com filosofia?

PLACO
e o professor diz
vocês são livres

CRINA
e eu penso que, se calhar, a aula já começou

PLACO
vocês têm a oportunidade de escolher
entre isto e aquilo
mas esquecem-se que o mais importante
é defender isto ou ser contra aquilo

CRINA
sim, a aula já começou

PLACO
vocês comem comida japonesa
bebem refrigerantes americanos
ouvem música finlandesa
vestem roupa espanhola
misturam tudo
estão abertos a tudo

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SÍBIA
e isso é mau?

GARO
resta saber se é bom, responde o professor

SÍBIA
porque é que não havia de ser bom?

FISA
e o professor responde
(lembro-me bem porque tive que pensar na frase muitas vezes para a entender)
porque é que eu não havia de poder julgar que é mau?

CRINA
foi isso mesmo, também me lembro
porque é que eu não havia de poder julgar que é mau?

SÍBIA
apesar de já não perceber bem o que ele queria dizer
resolvi tentar continuar a conversa e disse:
mas o professor acha mal a comida japonesa
ou acha mal que eu coma comida japonesa?

LEMA
e qual é a diferença?, pergunta o professor

FISA
nesta altura eu já me estou a rir
porque acho piada que o tema
da nossa primeira aula de filosofia
seja sushi

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LUGA
e eu começo-me a passar porque nunca comi
comida japonesa
como é que se chama isso?

FISA
sushi

LUGA
nunca comi disso

SÍBIA
e eu respondo:
o professor é livre de não gostar de comida japonesa
e eu sou livre de gostar

PLACO
só isso?
diz o professor

CRINA
ninguém responde

LUGA
só isso, o quê?
digo eu
começo a ficar irritado
e irrita-me também que ninguém responda

PLACO
ele começa a ficar irritado
o professor sorri

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LUGA
parece que está a gozar connosco

PLACO
estou a pensar convosco
se é ridículo ou não, depende da qualidade do vosso pensamento
diz o professor

LUGA
não sei porquê, tenho a sensação
que vou desatinar com o velho

SÍBIA
o professor pode não gostar de comida japonesa
mas não pode impedir-me de gostar
porque eu sou livre de gostar e de escolher o que quiser

PLACO
quer dizer
(isto é o professor a falar)
quer dizer que nunca serias capaz
de ser contra alguém comer isto ou aquilo?

SÍBIA
as pessoas não são livres?
cada um gosta do que quiser
e desde que não nos chateie
não temos nada com isso

PLACO
quer dizer, diz o professor
que eu não tenho o direito
de ser contra tu gostares disto ou daquilo?

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SÍBIA
acho que não
o professor não tem o direito
eu escolho o que quiser

PLACO
e se tu escolheres ter um escravo
se fores a favor da escravatura
não posso interferir com essa escolha?

SÍBIA
a escravatura não tem nada a ver com comida japonesa

FISA
insultos, filosofia, comida japonesa e escravatura
esta já é a melhor aula da minha vida

LUGA
nesta altura eu ainda não sei
que o professor vai ser a pessoa mais importante da minha vida
e penso que o velho é maluco, está senil
mandaram-nos um professor avariado
e estou mesmo a passar-me com ele

PLACO
porquê?, diz o professor

SÍBIA
e eu respondo
porque a escravatura é contra os direitos humanos
e comer sushi não é

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PLACO
mas há pouco menos de duzentos anos
a escravatura não era proibida
sempre houve escravos
e até há pouco tempo
era perfeitamente normal
até os escravos achavam normal ser escravos
o que é que te garante que daqui a duzentos anos
comer comida japonesa não será visto como uma coisa abominável?
não haverá já hoje quem pense isso?
não haverá quem pense que os peixes que morrem
para tu comeres o teu sushi são assassinados para o teu prazer?
não haverá já quem pense que é hediondo
os humanos matarem outros animais para os comerem?
será que aqueles que são hoje contra tu comeres essa comida
não serão vistos como heróis
da mesma forma que hoje achamos heróis
aqueles que lutaram contra a escravatura?
se esses homens e mulheres que lutaram contra a escravatura
não achassem que era possível interferir com as escolhas dos outros
nunca teria sido abolida a escravatura
nunca teria sido feita uma lei
que agora todos devem cumprir

FISA / LEMA / CRINA


tudo isto disse o professor
mais ou menos tudo isto

PLACO
tudo isto
palavra por palavra
lembro-me perfeitamente
e escrevi tudo num caderno
palavra por palavra

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SÍBIA
e eu murmuro
mas agora vivemos em democracia
cada um faz o que quiser

FISA / LEMA / CRINA


e aí o professor fica sério
parece zangado
avança uns passos

PLACO
democracia?

FISA / LEMA / CRINA


é o que ele diz
e de repente parece maior e mais jovem
passa as mãos pelo cabelo branco
como se estivesse a preparar-se para qualquer coisa
como se só agora a aula fosse começar

PLACO
mas em democracia
pelo menos essa de que falas
mesmo que eu vote em alguém
a maioria pode escolher outro
isso não é interferir na minha escolha?
não é isso a tua democracia?

SÍBIA
e eu penso:
porque é que eu me pus a discutir com o velho?
porque é que não me calei, como os outros?
porque é que eu tenho a mania que sou inteligente?
e agora o que é que eu digo?

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FISA / LEMA / CRINA
o velho parece que se acalma

PLACO
não te preocupes, estavas a ir bem
foi só uma palavra
às vezes as palavras são maiores que nós
para a próxima, pensa duas vezes antes de dizeres “democracia”
há palavras perigosas, há palavras que são quase palavrões
se é para te pores a dizer palavras dessas
mais valia teres-me insultado quando eu te pedi

FISA / LEMA / CRINA


nós rimos
o velho sorri

LUGA
se calhar o velho não está senil

GARO
tu

LEMA
e aponta para mim

GARO
tu viste um filme ontem, não foi?
diz o professor
e tu?

PLACO
e aponta para mim

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GARO
tu viste o mesmo filme
tu gostaste e tu adormeceste, não foi?
mas não é um problema um gostar e outro não, certo?
temos que ser tolerantes e as pessoas gostam de coisas diferentes
e essas tretas do costume, é isso?

PLACO
acho que sim

GARO
mas se um de vocês não tiver a vontade
de convencer o outro de que o filme é bom ou mau
não há nada para discutir
e se não há nada para discutir, não se avança
e podem pensar que é arrogante convencer os outros das nossas opiniões
mas se ninguém fosse assim arrogante ainda tínhamos escravos
percebem?

FISA
não se fazia filosofia
não se tentava seduzir alguém que não gosta de nós
e se bem que eu me estou nas tintas para os vossos namoros
pelo contrário estou muito interessado nesta aula
diz o professor

LUGA
e nesta aula
quero que defendam coisas que parecem absurdas

CRINA
como pareceu absurdo aos escravos um dia serem livres

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SÍBIA
como parece absurdo que eu seja contra alguém comer comida japonesa

FISA
mesmo que pareça impossível

PLACO
mesmo que pareça mau

LEMA
mesmo que vos custe

SÍBIA
mesmo que vos pareça proibido e insultuoso e arrogante

GARO
por isso é que quero que me insultem

SÍBIA
quero que me insultem agora, diz o professor

PLACO
e segue-se um longo silêncio

LUGA
estúpido

LEMA
isso é pouco

LUGA
estúpido

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LEMA
foi mais alto
mas continua a ser pouco

LUGA
palhaço

LEMA
não me sinto insultado
isso não atravessa nenhum limite

PLACO
mas...

CRINA
não tenham medo, isto faz parte da aula
não é pessoal, não vou levar a mal o que me disserem

LUGA
cabrão

CRINA
isso mesmo

PLACO
filho da puta

CRINA
muito bem

LEMA
camelo

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CRINA
pode ser melhor

LEMA
grande camelo

CRINA
vai pensando nisso
já volto a ti

GARO
merdoso

LEMA
ok

CRINA
não consigo

LEMA
não te vou obrigar

CRINA
desculpe

LEMA
tenta só uma vez
e se não conseguires não há problema

LUGA
não é assim tão difícil
queres que te diga um insulto ao ouvido
posso, professor?

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LEMA
podes

CRINA
não sou capaz de dizer isso

LUGA
diz lá

LEMA
estás à vontade, diz o professor

CRINA
picha mole

LEMA
o quê?, pergunta o professor

CRINA
picha mole, monte de merda

LEMA
muito bem, diz o professor

CRINA
cara de cu

LUGA
isto já não fui eu que disse

CRINA
boca de esgoto

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PLACO
acho que já chega, diz o professor

CRINA
desculpe
entusiasmei-me

PLACO
e o professor volta atrás
já pensaste?

LEMA
eu não posso

PLACO
não queres

LEMA
eu não quero dizer mais coisas dessas
o professor não me pode obrigar
eu não quero

PLACO
tudo bem, diz o professor
não há problema
mas aos próximos, pedia-lhes que fossem mais criativos

FISA
melancia podre

PLACO
boa imagem, mas pouco ofensiva

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FISA
és uma variz no cu dum elefante tão inchada que parece uma melancia podre

PLACO
excepcional
e tu?

SÍBIA
és um vómito de sushi enrolado numa alga de merda

PLACO
notável
usar o tema da comida japonesa foi de mestre
uma última ronda, diz o professor
e aponta para nós

LUGA
cona mole, cona de andorinha

FISA
cagalhoto agarrado à parede da sanita

GARO
cérebro de hemorroidal

PLACO
és tão velho que se fosses uma vaca davas leite azedo

CRINA
és uma minhoca no sovaco dum javali

SÍBIA
és um temaki de peixe podre regado com mijo de soja

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PLACO
acho que por hoje já chega, diz o professor
há um limite para a quantidade de comida japonesa
que me podem chamar no mesmo dia

GARO / FISA
e nós rimos

CRINA
e ele diz:
agora vou para casa curar o meu amor próprio
estão todos de parabéns, todos
acho que vamos ter um grande ano lectivo
acabou a aula

GARO / FISA
e nós saímos da sala
não sabíamos bem o que tinha acontecido
mas tinha acontecido alguma coisa
que nunca nos tinha acontecido antes

FISA
estávamos diferentes

GARO
não era diferentes, diferentes

FISA
era mais juntos

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GARO
olhávamos uns para os outros
como se tivéssemos passado por qualquer coisa juntos

PLACO
qualquer coisa que só nós é que sabíamos o que era
apesar de não sabermos como se chamava

GARO
como se tivéssemos passado um dia
presos num elevador

FISA
como se fôssemos os únicos sobreviventes
de um desastre de avião

PLACO
e no intervalo
quisemos contar a toda a gente

GARO
contámos assim por alto
as partes mais engraçadas

FISA
a parte dos insultos

GARO
estávamos tão excitados com aquilo

PLACO
a escola toda não falava de outra coisa

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FISA
todos queriam saber como ele era
porque tinham ouvido as histórias
e nós contamos a aula

GARO
e toda a gente concordou
que as histórias deviam ser verdade

CRINA
ou então mentira

FISA
mas toda a gente concordou que ele era mesmo estranho

GARO
ninguém falava noutra coisa

PLACO
os alunos, os professores

GARO
os contínuos, a senhora da pastelaria

FISA
o novo director e a nova directora adjunta

PLACO
e foi neste dia que começou o inquérito

FISA
se soubéssemos, não tínhamos dito nada no intervalo
nunca nos passou pela cabeça que desse no que deu

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GARO
mas o professor imaginava que isto podia acontecer

FISA
claro que imaginava

GARO
ele queria que isto acontecesse

PLACO
seja como for, foi por causa de nós que o inquérito começou

GARO
foi por causa de nós que o novo director

PLACO
e a nova directora adjunta

FISA
foi por causa de nós que eles começaram o inquérito

PLACO
porque nós estávamos entusiasmados

FISA
porque espalhámos o entusiasmo pela escola

GARO
porque ninguém falava noutra coisa

PLACO
porque alguma coisa tinha mudado
não sabíamos o quê, alguma coisa

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segundo acto

TODOS
um a um fomos sendo chamados

LEMA
não demorou muito, umas semanas
o director já tinha mudado as regras de uso dos balneários

CRINA
vamos ser uma escola modelo, dizia o novo director

LEMA
tinha mudado as regras de empréstimo de livros na biblioteca

CRINA
haverá novas normas, adequadas a um novo ensino, dizia o director
mais liberdade e mais responsabilidade, para um escola de todos

LEMA
as regras disciplinares nas aulas e nos intervalos

CRINA
juntos, faremos uma escola melhor, diz o novo director

PLACO
não demorou muito, umas semanas

TODOS
um a um fomos sendo chamados

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FISA
e na aula de filosofia todos trazíamos comida
sentávamo-nos em cima das mesas
e o professor dizia

LUGA
não acreditem em mim

PLACO
e na semana seguinte o director anunciava

CRINA
eu só quero que sintam que a escola é vossa
confiem no meu projecto

TODOS
um a um fomos sendo chamados

LUGA
ouçam-me, dizia o professor
as escola já é vossa

CRINA
quero uma escola onde todos podemos estar juntos
e onde todos podemos ser melhores

LUGA
a questão é o que vocês fazem com a escola

CRINA
eu tenho um plano para esta escola

LUGA
a questão é vocês terem o vosso próprio plano

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CRINA
as coisas não podem continuar como dantes

LUGA
as coisas não podem continuar como dantes

PLACO
quem é que disse isso?

SÍBIA
o professor

FISA
não, foi o director

PLACO
não foi isso que ele disse

SÍBIA
quem?

PLACO
o professor

FISA
mas foi o director que disse isso

SÍBIA
como é que sabes?

FISA
lembro-me

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SÍBIA
de tudo?

PLACO
o professor disse
as coisas nunca continuam como dantes
porque estava a falar de mudança perpétua

GARO
não, o professor estava a falar de liberdade individual

PLACO
isso foi noutra aula, muito mais tarde

TODOS
nós nem sempre concordamos
já recordámos tudo o que se passou muitas vezes
e nem sempre concordamos
às vezes mudam as datas
outras vezes as frases
nem tudo o que vos vamos contar
aconteceu exactamente assim

PLACO
mas concordámos que é mais importante
contar esta história do que saber quem disse o quê

SÍBIA
ou quando aconteceu isto ou aquilo
porque, no fundo, fizemos o que fizemos
para poder contar a história do professor

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GARO
com erros, com partes inventadas
não concordando com tudo o que dizemos
mas mesmo assim
é a história do professor

PLACO
portanto já sabem
nós nem sempre concordamos

LUGA
mas é impossível concordar
porque esta é a história do professor
vocês também não vão concordar

TODOS
e naquela altura
as histórias sobre o professor corriam pela escola e pelas casas
dizia-se que ele nos confundia

GARO
os alunos do professor vestem-se de forma diferente

CRINA
respondem torto, estão sempre a ler

SÍBIA
querem mudar as regras, não cumprem as regras

PLACO
ele está senil e eles vão na conversa

FISA
e o director, o novo director

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CRINA
eu tenho um plano para esta escola

TODOS
o novo director disse que era preciso fazer qualquer coisa
que aquele professor não encaixava no plano
que aquele velho era um empecilho
que era do contra, antigo, estranho, perigoso
não sabemos o que terá dito
nem concordamos sobre o que não sabemos que disse
mas sabemos e concordamos que disse qualquer coisa
disse qualquer coisa antes
porque o que ele disse a seguir foi
vamos abrir um inquérito
e um a um fomos sendo chamados
e quando foi chamado o primeiro
o professor disse

GARO
se vos perguntarem sobre as minhas aulas
não mintam

TODOS
e por isso é que sabemos que ele sabia
ele sabia como é que a coisa ia acabar
ele queria que acabasse assim
porque ele queria que nós contássemos tudo
todas as coisas
todas as aulas
tudo o que sabíamos que era bom para nós
e tudo o que não tínhamos a certeza se era bom ou mau

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LEMA
e tudo o que era mau

SÍBIA
tudo o que eram as nossas aulas

TODOS
e um a um fomos sendo chamados

LEMA
e eu fui o primeiro a ser chamado
logo em outubro
porque na reunião de pais de início do ano
os meus pais tinham dito
que eu tinha sido obrigado por um professor a dizer asneiras
logo no primeiro dia de aulas
que eu estava muito perturbado, que tinha pesadelos
que a escola não podia permitir uma coisa destas
e o director, sentado à minha frente
a gravata de seda amarela
o director esconde um sorriso por trás da cara séria
diz que os meus pais foram uma grande ajuda
porque queria fazer qualquer coisa em relação àquele professor
e esperava que eu também fosse uma ajuda
que seguisse o exemplo dos meus pais
e que contasse tudo como tinha acontecido
e eu contei
só não disse as asneiras
e o director disse

LUGA
escreva as asneiras neste papel

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LEMA
e eu escrevi
e ele leu, a cara dele ficou vermelha
desapareceu o sorriso que estava escondido por trás da cara séria
o vermelho das bochechas fazia contraste com o amarelo da gravata
e eu comecei a chorar: o que é que me vai acontecer?

LUGA
a si, nada
desde que continue a contar-me
tudo o que se passa nessa aula

LEMA
eu não me ri, como os outros
eu não disse nenhuma asneira, como os outros

LUGA
eu sei
você é um bom aluno

LEMA
sou
e o director mandou-me não falar sobre isto com ninguém
e que lhe fosse contar como tinham sido as aulas
todas as semanas

LUGA
percebeu?

LEMA
sim

TODOS
e um a um fomos sendo chamados

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PLACO
e em novembro, logo no início
o director chamou-me
e mostrou-me um papel com asneiras
e eu disse que conhecia aquela letra
e o director guardou logo o papel

CRINA
você assistiu a esta fantochada?

PLACO
a quê?
digo eu, a fazer-me de parvo

CRINA
não se faça de parvo
você confirma que na aula de filosofia
os alunos forma obrigados a dizer asneiras?
e que vêem jogos de futebol e fazem apostas a dinheiro
em qual é o jogador que vai marcar golo?

PLACO
eu não presto muita atenção à aula de filosofia
estou sempre a jogar jogos no meu telemóvel

CRINA
e é verdade que chamou incompetente
à sua professora de matemática?
é isso que anda a aprender na aula de filosofia,
a ser insolente com os professores?

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
40
PLACO
incompetente?
está a ver, senhor director
é que isso não faz sentido
eu nunca chamaria incompetente à professora de matemática
porque a competência dela é coisa que não me incomoda
porque eu passo as aulas de matemática
a jogar no telemóvel

CRINA
as suas notas estão a baixar
esta conduta não o ajuda nada
não percebe que este professor o está a prejudicar?

PLACO
não é o professor, é o telemóvel

CRINA
ponha-se na rua
e fique avisado que, à primeira oportunidade
vou arranjar maneira de o suspender

PLACO
desde que não me tire o telemóvel

TODOS
e ele saiu da sala do director
e na aula, contou ao professor como tinha sido a conversa
mas o professor disse

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
41
FISA
se vos fizerem perguntas sobre esta aula
já vos disse
contem tudo exactamente como se passa
porque se contarem outras coisas não me poderei defender
só posso defender-me da verdade

PLACO
só queria ajudar

FISA
mas eu não pedi ajuda
responde o professor

PLACO
e então eu volto à sala 501
a sala do director
e digo-lhe:
aquilo dos insultos e do futebol
é verdade

CRINA
bem me parecia que você não queria ser suspenso

PLACO
e venho-me embora

TODOS
e um a um fomos sendo chamados

SÍBIA
não sei se foi em novembro ou dezembro
estava a chover granizo
as pedras batiam na janela da sala do director

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
42
e a mim custava-me ouvir a voz dele
e quando ele terminou de falar
percebi que a ideia, de forma geral
era eu vomitar tudo o que sabia
e contar-lhe a minha história e foi o que fiz
é verdade que ando a fazer graffittis na escola
sou eu que assino k
e fiz os desenhos nos balneários
e no laboratório e na parede ao pé do portão
quando ele me pergunta se o professor sabe dos meus desenhos
eu respondo que sim
quando ele me pergunta se o professor me encoraja
eu digo que o professor me dá conselhos estéticos
e que os meus graffittis têm melhorado muito por causa dele
também digo que já decidi que vou continuar a pintar
por causa dele
o que eu queria dizer é que quero ser artista
mas o que o director quis perceber
é que eu pinto as paredes da escola
por causa do professor
o que também é verdade
o director ainda disse mais qualquer coisa
mas o granizo estava a bater com muita força
já não ouvi nada
quando cheguei a casa
percebi que estava suspensa
durante duas semanas
tinham telefonado da escola
já tinha parado de chover granizo

TODOS
e um a um fomos sendo chamados

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
43
LUGA
e em janeiro, quando tínhamos feito o jejum
chamaram-me a mim
o director tinha uma gravata de seda azul

PLACO
afinal o que é isto de não comerem?

LUGA
é filosofia, respondo eu ao director

PLACO
explique-se

LUGA
o professor diz que é uma experiência

PLACO
ele mandou-vos não comerem?

LUGA
o professor disse que era opcional

PLACO
não comerem?

LUGA
sim

PLACO
a experiência é não comerem?

LUGA
sim

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
44
PLACO
e de onde é que lhe veio essa ideia?

LUGA
não é dele
é do aristóteles

PLACO
do aristóteles?

LUGA
é um filósofo

PLACO
é claro que é um filósofo

LUGA
podia não saber

PLACO
o que eu não sei é como é que
o aristóteles teve a ideia de vocês não comerem

LUGA
é que o aristóteles diz que só somos capazes
de sentir verdadeira compaixão por uma tragédia
que possa um dia acontecer-nos a nós

PLACO
então vocês não comem para saber o que sente alguém que morre à fome?

LUGA
acho que é isso

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
45
PLACO
e você acha isso normal?

LUGA
normal não
mas também não acho mal
tenho é um bocado de fome

PLACO
há quanto tempo é que não come?

LUGA
desde ontem de manhã

PLACO
quanto tempo demora essa experiência?

LUGA
o limite é o de cada um

PLACO
o velho está maluco

LUGA
eu preferia que lhe chamasse professor

PLACO
está maluco
isto tem que parar
há colegas seus que já desmaiaram

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
46
LUGA
tiveram sorte
agora já podem comer

PLACO
mas se estão preocupados com a fome no mundo
porque é que não enviam arroz para áfrica?
organizam uma campanha de solidariedade na escola

LUGA
acho que a ideia não é essa
acho que a ideia é filosofar

PLACO
chama filosofia a passar fome?

LUGA
há quem diga que é liberdade
que o nosso corpo é o único lugar onde somos livres

PLACO
ele disse-vos isso?

LUGA
há quem diga que o jejum abre os olhos
que vemos coisas diferentes
que ganhamos outro olhar
que nos tornamos mais puros

PLACO
ele disse-vos isso?

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
47
LUGA
acho que vinha nos livros
mas isso terá que perguntar ao professor
eu só estou a aprender

PLACO
ele também vos ensina a serem assim sarcásticos?

LUGA
isso eu aprendi sozinho

PLACO
vá-se embora
e coma qualquer coisa

LUGA
e eu fui
e comi três sandes de panado e ainda hoje não sei
se sinto verdadeira compaixão por quem passa fome

TODOS
depois da história de jejum
começou a marcação cerrada
a directora adjunta foi à nossa sala
com o seu lenço de seda azul e amarelo
e disse ao professor
que o director tinha mandado dizer
que a partir de agora
devia restringir-se ao ensino da matéria que está no programa

LEMA
que é o que eu tenho feito, diz o professor

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
48
CRINA
mas deve fazê-lo de forma normal, diz a directora adjunta
caso contrário o director vai fazer uma denúncia ao ministério
e suspendê-lo das suas funções
há demasiadas queixas de alunos e pais
você está no fim da carreira
tenho a certeza que não quer complicar a sua reforma
e que não voltou ao ensino ao fim destes anos
apenas para criar ainda mais problemas
do que aqueles que se diz que já teve na sua carreira
porte-se bem
dê o exemplo

LEMA
com certeza, disse o professor

TODOS
e ela sai, género cleópatra em roma
com os saltos altos a fazer barulho no chão da sala
e nós chegamos à conclusão
que o professor afinal não é o rebelde que pensávamos
que o professor não responde torto quando é preciso
que ele é só garganta, que está preocupado com a reforma
e com essas coisas dos velhos

FISA
e depois eu sou chamada à sala 501
e estão lá o director

GARO
boa tarde

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
49
FISA
está de gravata laranja
e está também a directora adjunta

SÍBIA
boa tarde

FISA
a gravata dele e o lenço dela não condizem
é o que eu penso quando entro na sala
e eles perguntam-me como foi a aula de hoje

GARO
como foi depois da senhora directora adjunta ter saído da sala?

FISA
e eu penso que o professor insistiu para nunca ocultarmos nada
para nunca escondermos o que se passa na sala
e embora me custe, conto o que se passou
e até me divirto enquanto me lembro

SÍBIA
conta ou não?

FISA
quando a directora saiu

GARO
directora adjunta

FISA
quando a directora adjunta saiu

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
50
SÍBIA
senhora directora adjunta

FISA
ficámos todos a pensar que o professor
era manso que nem um cordeirinho
que afinal tinha sido tudo garganta
e quando digo isto
o director e a directora
adjunta
olham um para o outro
como se fossem amantes ou assim

SÍBIA / GARO
continue, continue

FISA
então nesta altura
perguntamos ao professor se vai mesmo obedecer
e ele diz que tem uma história para nos contar

LUGA
quando comecei a dar aulas

FISA
diz o professor

LUGA
conheci um velho professor química
que estava já meio senil
pelo menos é o que todos pensávamos
era um homem mole e distraído
os alunos faziam dele gato sapato
passavam a aula a gozar com ele

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
51
cada dia me custava mais assistir àquilo
este professor
não sei se por estar velho ou por ter sido sempre assim
não conseguia que os alunos o respeitassem

SÍBIA
e então?

FISA
então o professor continuou

LUGA
então um dia fui ter com ele
e perguntei-lhe como é que era possível
deixar que os alunos o tratassem assim
como é que conseguia suportar a humilhação
e ele respondeu: é simples, vingo-me deles
como assim?, perguntei eu
ensino tudo mal, responde ele
ensino tudo ao contrário
passo as aulas inteiras a ensinar coisas que estão erradas
todos os cálculos, todas as reacções químicas
até os nomes científicos, tudo errado
e como sei que nenhum deles alguma vez
irá confirmar o que um professor lhe diz
estou a fazer-lhes um mal
incomparavelmente maior do que aquele
que eles me fazem a mim

FISA
e então o professor
começou a fazer o mesmo connosco

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
52
SÍBIA
o mesmo?
a ensinar ao contrário?

FISA
disse que era a única forma de seguir o programa
e o que está escrito nos manuais
como o senhor director e a senhora directora adjunta queriam
então agora ensina-nos tudo ao contrário
passa a aula a dizer-nos mentiras
e o trabalho de casa de todos
é descobrirmos onde é que ele mentiu

TODOS
e as semanas passavam
e as aulas sucediam-se
e o inquérito continuava

PLACO
como um ruído que quase não se dava conta
como um mosquito numa festa
um mosquito que ninguém ouve
porque a música está demasiado alta
porque toda a gente está a falar e a dançar
um mosquito que só se vai ouvir
quando todos se forem embora
quando os donos da casa se deitarem
quando se apagarem as luzes
e então, esse ruído que ninguém ouvia
vai tornar-se audível, cada vez mais forte
até ser insuportável

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
53
TODOS
e assim continuava o inquérito
como qualquer coisa que pode ser ignorada
até ao momento em que se torne insuportável
como um mosquito numa festa
e um a um continuávamos a ser chamados

GARO
eu fui chamado logo a seguir às férias da páscoa

SÍBIA
e você sabe alguma coisa deste vídeo obsceno
que foi colocado na internet?

GARO
foi logo a seguir às férias da páscoa
lembro-me porque li o banquete
três vezes na páscoa e foi nessa altura
que nós fizemos o vídeo

SÍBIA
a única coisa que eu preciso de saber
é se ele tem conhecimento deste vídeo
se ele o aprova
se foi ele que vos deu a ideia

GARO
eu estranho estar só a directora adjunta
a dirigir o interrogatório
onde é que está o director?

SÍBIA
o director não quer envolver-se neste assunto

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
54
GARO
ela ajeita o lenço de seda

SÍBIA
está muito preocupado
mas acha que não se deve envolver pessoalmente
nesta parte do inquérito porque quando toca à sexualidade
dos estudantes entramos num terreno muito delicado

GARO
então mandou-a a si?

SÍBIA
achamos que seria melhor ser uma mulher
a tratar do assunto

GARO
eu também acho
se é uma questão sexual
prefiro que seja a senhora directora adjunta
a tratar do assunto

SÍBIA
foi você?

GARO
fui

SÍBIA
e a rapariga sabia que estava a ser filmada?

GARO
sabia

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
55
SÍBIA
e é você que está com ela no filme?

GARO
sou

SÍBIA
e o vosso professor de filosofia
tem alguma coisa a ver com isto?

GARO
tem

SÍBIA
foi ele que vos deu a ideia absurda
de fazerem aquele filme?

GARO
a ideia foi nossa

SÍBIA
foi ele que filmou?

GARO
não. é uma webcam
uma câmara ligada ao computador
serve para as pessoas se verem pela internet

SÍBIA
eu sei o que é
o meu filho tem uma

GARO
ah

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
56
SÍBIA
e quem é a rapariga?

GARO
percebe que é um bocadinho deselegante
estar agora a dizer quem é

SÍBIA
deselegante?
você põe um vídeo na internet
com dois adolescentes a ter sexo
e vem falar-me de elegância?

GARO
o sexo é elegante, dependendo dos praticantes, claro

SÍBIA
estou farta desta impertinência

GARO
além disso tivemos tanto trabalho
para encontrar posições que não revelassem
a nossa identidade

SÍBIA
você vai ser expulso

GARO
isso é que acho muito deselegante

TODOS
um a um todos fomos chamados

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
57
SÍBIA
ele vai ser expulso

CRINA
mas

SÍBIA
já está decidido
e se não quer que lhe aconteça o mesmo a si
vai explicar-me o que é que o vosso professor
teve a ver com esta história

CRINA
eu tinha ido à sala 501
quando soube da expulsão
e disse-lhes que era eu que estava no vídeo
e até lhes mostrei o sinal que tenho na barriga, este
para eles poderem comparar e ver que sou mesmo eu
mas a directora adjunta disse que tinha visto o vídeo uma vez
e que se recusava a vê-lo outra vez
e disse-lhes que não podiam expulsá-lo
porque não tinha feito nada de mal
e que se o expulsassem
tinham que me expulsar a mim também
porque eu tinha tanta responsabilidade como ele
e que era descriminação se o expulsassem por ser rapaz
e eles responderam que eu era uma boa aluna
e eu respondi-lhes que se ser boa aluna
era ele ser expulso e eu ficar, então queria ser má aluna
porque tinha passado meses, anos
à espera que me acontecesse alguma coisa
à espera de não me sentir mal quando olhavam para mim
à espera de me sentir em casa na minha casa

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
58
à espera de alguém que chegasse ao pé de mim
e me prendesse os cabelos atrás da orelha
à espera de alguém que me explicasse o que era melhor para mim
como é que havia de viver a minha vida
se havia de tomar chá ou café
se havia de esperar ou não
se havia de falar ou ficar calada
e um dia o professor passou a aula
a falar de livre arbítrio
a falar do indivíduo
e de como é difícil, como é quase impossível
fazer qualquer coisa que nos enche de alegria
que é o que queremos fazer e dizer
e de como é preciso ser radical
para conquistar essa liberdade
acho que foi isso que ele disse
mas lembro-me perfeitamente de ele dizer
mesmo no final da aula
mesmo antes do toque parar irmos para o intervalo
lembro-me de ele dizer
vocês são as pessoas por quem vocês têm estado à espera
tu és a pessoa por quem tens estado à espera
e aquilo parecia publicidade, parecia um político a falar
parecia um refrão de uma canção
mas eu acreditei
tu és a pessoa por quem tens estado à espera

CRINA / GARO
e então olhámos um para o outro
e então decidimos ir para a cama
e decidimos filmar
e decidimos pôr o nome do professor
no título do vídeo
e decidimos pôr o vídeo no you tube

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
59
CRINA
e agora estou feliz

GARO
foi bom, não foi?

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
60
terceiro acto

PLACO
acusado de incitar menores à prática de pornografia

FISA
de abuso de poder obrigando os alunos
ao uso de linguagem obscena nas aulas

SÍBIA
de promover valores anti-democráticos e anti-sociais

LUGA
de defender práticas que levam à anorexia

GARO
jogo ilegal

SÍBIA
vandalismo

CRINA
instabilidade emocional

LEMA
e delinquência

PLACO
em maio o professor foi chamado à sala 501

LUGA
mandaram vir os outros professores da escola

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
61
GARO
mandaram vir os nossos pais

FISA
mandaram vir gente do ministério

SÍBIA
da delegação regional, do governo

CRINA
da câmara municipal

PLACO
da associação de pais

LEMA
disseram que, para já, não envolviam a polícia

CRINA
mas a notícia saiu nalguns jornais

SÍBIA
não estava na primeira página
mas já falava da pornografia

GARO
um dos jornais falava de suspeitas de pedofilia

FISA
e a polícia anunciou que ia iniciar uma investigação

LEMA
assim que o inquérito interno terminasse iam investigar

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
62
CRINA
e o director prometeu toda a ajuda na investigação

PLACO
e nesse dia, em maio
leram as acusações ao professor

FISA
leram excertos do que tínhamos dito ao director
e à senhora directora adjunta

PLACO
e nós não pudemos entrar

GARO
e o tempo começou a passar muito depressa

SÍBIA
como uma paisagem vista de dentro dum comboio

CRINA
e dentro da sala 501
mandaram o professor falar

LEMA
que se explicasse agora

GARO
e eu estava encostado à janela
e ouvia o professor

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
63
PLACO
vejo aqui pais, professores, governantes e alegro-me
porque embora saiba que estão aqui para resolver um problema
e acreditem que seja eu esse problema
as minhas aulas conseguiram ao menos que estivessem aqui
e é sempre motivo de alegria ver uma sociedade
tão interessada na educação dos seus filhos
estou alegre portanto

GARO
e eu repetia o que o professor dizia
para os outros à minha volta
“estou alegre portanto”
e o professor continuava

PLACO
também não estou triste com as acusações que me fazem
porque com a minha idade já há pouco que me entristeça
e porque aquilo de que me acusam é suficiente para provar
como é injusto eu ser aqui acusado
como é injusto o boato, o rumor
a ignorância que não aceita ficar muda
e que tantas vezes discursou sobre mim
e me fez até desistir do ensino durante anos
mas se alguma coisa aprendi nestes sete anos sem ensinar
é que as injustiças não devem entristecer-nos
antes devem encher-nos com a alegria de as combater
por isso voltei a ensinar e daí tirei muito prazer
estou alegre portanto

GARO
“estou alegre portanto”

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
64
CRINA
e nesta altura eu vou a casa

FISA
eu penso que temos que fazer qualquer coisa

PLACO
eu decido dar a volta e abrir a porta

LUGA
eu penduro-me na janela
para ver lá para dentro

GARO
e o professor continua a falar

LEMA
quanto à linguagem obscena
é certo que a praticaram na minha aula
embora tenha que dar o mérito
às famílias destes alunos e aos seus anteriores professores
alguns daqueles aqui presentes
uma vez que estes jovens se mostraram exímios nesta matéria

PLACO
e eu entro na sala
e vejo os meus pais
e vejo o director
e vejo o professor
e quero falar

LUGA
e eu vejo como o professor sorri para ele
e depois olha para a janela e sorri para mim

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
65
PLACO
e depois o director grita que tenho que sair

SÍBIA
e eu penso que temos que fazer qualquer coisa

GARO
e o professor sorri, muito calmo

PLATO
e os meus pais que também estão lá
gritam que eu tenho que sair

CRINA
e eu estou em casa a remexer nas gavetas da cómoda
no quarto dos meus pais

PLATO
e eu saio da sala 501 sem dizer uma palavra
arrependido de não ter coragem para falar
mudo, furioso

GARO
e o professor ainda sorri
e depois continua a discursar

FISA
quanto ao jejum como experiência filosófica
acerca das vítimas da fome no mundo
fi-lo porque achei excessivo
pedir-lhes que desatassem aos tiros uns aos outros
para aprenderem a compaixão pelas vítimas da guerra
estou certo que apreciam a minha sensatez neste caso

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
66
SÍBIA
e eu tiro a lata de spray vermelho que tenho na mochila

LUGA
e eu pendurado na janela a ver o professor
que anda de um lado para o outro enquanto fala
como nas aulas
e vejo que ele olha para mim quando diz

GARO
reparo que não me acusam de nenhum acto reprovável
mas de promover e incitar comportamentos nos meus alunos
que os aqui presentes consideram reprováveis
dizem que confundi os meus alunos
esquecendo-se que a confusão faz parte da natureza do aluno
e é condição da sua idade
é verdade que me aproveito disso
faço-o como qualquer professor o deveria fazer
porque sem a confusão não se ensina, não se aprende, não se pensa
e se são confusos os meus alunos e fazem actos
que os presentes consideram reprováveis e por isso me culpam
não deveriam então ser culpados os professores
de todos os jovens que alguma vez agiram
fora do que é considerado legal, normal ou aceitável
gostaria de ver esses professores aceitar a sua quota
de responsabilidade nas acções dos seus alunos
da mesma forma que eu o faço, aqui e com orgulho
embora os presentes as considerem reprováveis

SÍBIA
e eu escrevo FILHOS DA PUTA
do lado de fora da sala 501

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
67
CRINA
e eu encontro a pistola do meu pai
meto-a na mochila e corro para a escola

GARO
enquanto o professor continua a dizer

LEMA
sei que discutem internamente
qual seria a sanção mais razoável para a minha conduta
reforma compulsiva
expulsão, passar o caso à polícia
ou um simples pedido de desculpas público
peço, humildemente, o direito de fazer uma sugestão
parece-me que a punição mais adequada
seria um aumento salarial

PLACO
e estamos todos cá fora

LUGA
e eu digo que é preciso entrarmos lá dentro
fazer alguma coisa, seja o que for

PLACO
tenho as pernas a tremer

SÍBIA
tenho as mãos sujas de tinta vermelha

FISA
tenho vontade de ir à casa de banho

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
68
CRINA
tenho a pistola do meu pai

LUGA
tenho vontade de lhes partir a boca

LEMA
tenho medo

GARO
e o professor diz

CRINA
finalmente
sei que não vou dar a próxima aula aos meus alunos
e sei que lhes terá custado serem parte deste processo
e obedecerem à verdade como lhes pedi
gostaria, na medida do possível
que lhes transmitissem aquilo que aqui disse
acrescentando que esta é a minha última aula
que a matéria está dada
e que façam o exame de avaliação
que entenderem necessário

PLACO
e nesta altura nós dizemos

LUGA
vamos entrar

LEMA
e eu digo que não

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
69
CRINA
e por isso a gente fecha-o na despensa

LEMA
e eu bato na porta
e grito

PLACO
e nós entramos na sala

FISA
toda a gente está em silêncio

GARO
o professor acabou agora de falar

SÍBIA
e nós entramos

CRINA
o professor de pé, no meio da sala

PLACO
nem um som

CRINA
entrámos pela sala e partimos tudo
partimos cadeiras

LUGA
partimos mesas

GARO
partimos o quadro preto

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
70
SÍBIA
partimos braços

CRINA
partimos a cara aos professores, aos pais, a toda a gente

GARO
eu filmei tudo com o telemóvel

SÍBIA
a gente a empurrar os professores
à estalada neles

FISA
deitámos as estantes ao chão

CRINA
eu puxei da arma

PLACO
eu vi a arma

SÍBIA
os professores de joelhos a chorar
os pais de joelhos a chorar
as pessoas do ministério, da câmara
todos de joelhos a chorar

GARO
e eu a filmar tudo com o telemóvel

FISA
e eu ao pontapé à professora de matemática

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
71
SÍBIA
eu com uma lata de spray a pintar a parede

LUGA
e então eu peguei na arma
fiquei cego, percebem

CRINA
uma data de gente nas janelas a espreitar

FISA
uns gritavam, outros aplaudiam

LUGA
e os que estavam dentro da sala
levantavam-se e corriam
outros escondiam-se debaixo das cadeiras

CRINA
professores, pais
a directora adjunta a guinchar

SÍBIA
e o professor de filosofia junto do director

LUGA
o director junto ao professor
mesmo no meio da sala

CRINA
o director parecia que ia fazer qualquer coisa

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
72
e o professor tinha um ar calmo

SÍBIA
eu até pensei que fosse um relâmpago

PLACO
um relâmpago seguido logo de um trovão

LUGA
eu disparei

SÍBIA
como se tivesse caído um relâmpago ali na sala

CRINA
os que estavam na janela começaram a gritar

GARO
e eu nunca parei de filmar

CRINA
o professor tinha um ar calmo

LUGA
não percebi em quem é que tinha acertado

PLACO
não vi quem é que tinha caído depois do tiro

CRINA
se era o director ou o professor

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
73
SÍBIA
alguém caiu

LUGA
eu tinha apontado na direcção deles
eles estavam junto um do outro

FISA
no meio da confusão não conseguíamos ver

LUGA
mas no vídeo vê-se bem

GARO
eu filmei tudo com o telemóvel

FISA
a imagem não é muito boa

GARO
mas no vídeo vê-se bem que somos nós

PLACO
está tudo no you tube

LUGA
e vê-se bem quem levou o tiro

PLACO
toda a gente pode ver

CRINA
o professor tinha um ar calmo

“coro dos maus alunos” – tiago rodrigues – versão final – dezembro 2008
74

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