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MURLIN MURLO

NIKOLAI KOLJADA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Peça em dois actos traduzida para português a partir da tradução
alemã, directa a partir do russo, de ANTJE LEETZ
 
Tradução ANTÓNIO Conde
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PERSONAGENS
 
OLGA “MURLIN MURLO” – 28 anos
 
INNA, a irmã dela – 35 anos
 
ALEXEI – 26 anos
 
MICHAIL – 25 anos
 
 
Uma cidadezinha de província nos nossos dias.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PRIMEIRO ACTO
 
Primeiro quadro
 
Na habitação de duas assoalhadas em que Olga vive com a
sua mãe, há muitas flores. Há vasos de flores no chão, sobre
a mesa, sobre a cómoda e no peitoril da janela.
Na assoalhada pequena, à direita, onde desde há pouco
tempo o hóspede Alexei se instalou, cresce, num caixote,
uma enorme tamareira, cujas folhas quase ocupam metade
do espaço disponível. Aqui vê-se também uma cama, uma
mesa, uma mesinha-de-cabeceira, sobre a mesa um
candeeiro de trabalho. Na parede, está pendurado um retrato
de Hemingway, sabe deus como ali terá ido parar.
Para a assoalhada grande dão, directamente do corredor,
duas portas. Uma à esquerda, outra à direita. Todo o acesso
se faz pela porta da esquerda. A da direita está pregada.
Nesta assoalhada, há um sofá vermelho, um armário amarelo
da roupa, uma mesa, duas cadeiras, uma arca, uma cama
alta com a cabeceira encimada por esferas, sobre ela há uma
coberta e um monte de almofadas. Frente à cama, uma
estante com pássaros do paraíso e borlas. Não há aparelho
de televisão.
Da assoalhada grande, uma porta dá para uma varanda. Na
varanda há cadeiras velhas, mesinhas-de-cabeceira com
espaço para o penico, uma cama e outras velharias. Na
assoalhada grande, ainda se pode ver uma outra porta, que
conduz à arrecadação. Este espaço serve como terceiro
quarto sem janelas.
Neste pequeno espaço há uma cama estreita. Nas paredes,
há prateleiras e, sobre elas, boiões de conservas, álbuns,
pedrinhas, flores secas. Na assoalhada sombria, a parede
está coberta, de alto a baixo, de posters de artistas de
cinema. Na porta está pregado, com punaises, um gigantesco
poster do cantor popular Alexander Serow.
Por todo o lado há tomates a amadurecer, no peitoril da
janela, debaixo da cama, debaixo do sofá, sobre a cómoda.
Na cozinha há uma mesa, cadeiras, um fogão a gás, um
armário com loiça. Uma grande quantidade de boiões de
conservas, caixas, sacos de pano. Tudo é colorido e
amalgamado, como numa estação de comboios. De pregos
estão dependuradas ervas a secar. Uma réstia com vagens
de paprika cruza junto ao tecto a cozinha.
Em todas as assoalhadas há tapetes feitos à mão.
Tarde, à noite. Por volta da 23 horas. Olga está sentada numa
cadeira e olha para o chão. Michail esticou-se sobre o sofá.
Tem um blusão com gorro e calças de fato de treino.
 
(Silêncio)
 
MICH – Sobre a catástrofe, o vosso hóspede não disse nada,
foi? Na capital parece que sabem de tudo. Ele não disse
nada?
 
OLGA – Não. As pessoas no hospital, hoje, na bicha, essa é
que disseram que A Banga teria afirmado que a água do mar
muito em breve há-de inundar tudo e que vamos todos morrer
afogados.
 
MICH – A Panker? Mas que Panker é essa? Queres tu dizer a
Professora.
 
OLGA – Banga! A Ban – ga. Aquela astróloga. Que vive no
estrangeiro. Estás a perceber? Bem, essa tal Banga disse
que ou hoje ou daqui a duas semanas era o fim do mundo.
Nos próximos dias, portanto...
 
(Ambos fazem silêncio durante muito tempo. Pela janela soa
um ensurdecedor e assustador grito. Nem Olga nem Michail
se incomodam com ele)
 
MICH – Só os aldrabões é que vão ao médico. Os que não
têm nada para fazer é que vão ao hospital e põem-se a dizer
os disparates todos. E tu ainda acreditas nisso. Um cagaço
desse tamanho. Isso é tudo maluquice. Percebido? E tu
acreditas nisso tudo, é?
 
OLGA – E por que não? (Pausa). Oxalá morramos todos o
mais depressa possível, entulhados e afogados. O mais
depressa possível!
 
MICH (cala-se) – Um cagaço desses. Tu deves é ser parva. A
vida é tão bonita, e tu... a vida corre tão bem às pessoas, que
até se pode ter inveja delas! Vivem, compram armários que
cobrem paredes inteiras, tapetes, enchem a casa de cristais -
um autêntico regalo para os olhos. E tu, nada. O mais
depressa possível! Parva é o que tu és. Ainda acreditas
mesmo no pai natal, é? Não lês um livro sequer, essa é que
essa. Eu sim. Percebes? (ri-se) É aos livros que tenho, aliás,
de agradecer tudo...neles se escondem todas as amantes dos
condes e príncipes. Isto foi o que aprendi nos livros!
(Espreguiça-se). Tu também és a minha – amada! (Ri-se).
(Olga cala-se)
Eh! Murlin Murlo! Tira lá a máscara de gás! Estás a ouvir? Ná,
quando falo da minha amante - ninguém me acredita, riem-se
à socapa! Dizem que fujo dela como o diabo da cruz! Mas tu
és tão macia... tens um corpo tão bonito... só que tem de se te
ensinar uma data de coisas... tu sabes o que uma amante faz
na cama? Estás a ver. E se não quiseres, tem de ser à força.
Por que não dizes nada? Então? Hem? (Pausa). Então,
calaste-te exactamente quando...
(Olga olha, sem se mexer, para o chão).
Por favor, ficaste mesmo ofendida! Só faltava era começares
a chorar! (Pausa). Diz lá, o terramoto vai mesmo acontecer?
Sim? A sério? É tudo maluquice... não vai acontecer nada...
nada de nada!... (Espreguiça-se de novo). Como eu adoro a
vida, nem tenho palavras. Traz-nos tanta alegria, felicidade e
divertimento! Gostas da vida ou não, hem? Diz lá, gostas
dela, ou não gostas dela? Então? Então?
 
OLGA  – Deixa-me em paz. É melhor ires para casa. Estou
farta de ti. Farta! Sentas-te para aí a dizer disparates e coisas
estúpidas, que tanto te divertem. Vai-te embora. A minha mãe
está a chegar do trabalho e vai ralhar porque estamos a
gastar electricidade.
 
MICH – E então, ela chega mesmo e depois? Estou-me a
cagar! (Ri-se) Não há maneiras para com os clientes?...
Murlinzinha, hum,  estás a ouvir?
 
OLGA (Dá aos ombros) –  Estou com dor de cabeça.
 
MICH – A cabeça não é o pipi, arranja uma compressa fria e
deita-te ao comprido. (Ri-se alto). Tu não fazes a mínima
ideia. Nem a mais ligeira ideia. Pata choca. Que grande
parvoíce. Eu para aqui a dizer-te como a vida é boa, e tu?
Depois do trabalho podes relaxar, bebes uns copos, ficas
cheio de pedalada, brincas com as mulheres. E depois voltas
ao trabalho e podes-te recordar, com os amigos, como foi
porreiro e como vai ser ainda melhor,
em breve, outra vez....Mulheres! Estas mulheres! Sabem lá o
que é viver a vida. Não fazem ideia do que é bom...As
mulheres são galinhas estúpidas, cabelo comprido, ideias
curtas. Se vêem um cogumelo, correm logo pela mata cerrada
adentro. (Ri-se) Um terramoto não passa pela cabeça de
ninguém. É tudo treta, e com isto acaba-se a conversa. Sei
que é assim, sinto que é assim.
 
OLGA – Oxalá vá tudo, o mais depressa possível, para o
inferno. O mais depressa possível....
 
(Silêncio)
 
MICH – Vou-te oferecer uma coisa. Queres? Tiro algum do
dinheiro do governo da casa à Irka e dou-te uma prenda.
Queres que te compre uns collants? Por que é que não dizes
nada? Não queres uns collants? Estás emburrada? Por minha
causa. (Pausa) De repente dás-me pena. Vá lá, não fiques
ofendida. Estás a ouvir? Não estejas ofendida, digo eu...
 
OLGA – Mischa...Mischa...ouve...
 
MICH – Hum? O quê?
 
OLGA – Mischenka....
 
MICH – O que foi?
 
OLGA - Deus Nosso Senhor aponta para mim com o dedo,
quando me aparece. Senta-se ali ao canto e aponta para mim
com o dedo. Olha para mim com uma cara tão zangada. Ah.
Mischa? Estás a ouvir?
 
MICH – Lá estás tu outra vez com as tuas maluquices? Pára
com essas merdas. Lá vens tu outra vez com as tuas
alucinações...
 
OLGA – Não, Mischenka. Um sujeito assim com uma barba
aparece-me. Um assim bem gordo. Um a sério. È Deus
Nosso Senhor. Ele aparece-me sempre a mim. Aponta para
mim com o dedo e pronto. Deixa-me em paz, Mischa! Sim?
 
MICH – Isso é tudo um disparate. Tu não tens prazer em
nada, é? Prendeste o burro. Durante dois meses, andaste
contente, divertiste-te, esperavas por mim e, de repente,
começas a fazer o papel de chouriça ofendida. Ou achas que
eu não sirvo? Que se passa contigo?
 
OLGA – Mischa, acho que o principal é que me deixes em
paz, para sempre. É melhor que nos separemos a bem. Isto
não vai acabar bem. Já não confio em mim para não dizer
umas quantas coisas na cara da tua Irka. E ela está grávida.
Tenho tanta vergonha, tenho tanta pena dela. Como foi
realmente que nós os dois começámos? Não nos amamos
coisa nenhuma. Seja como for, tu não deixas a Irka, além do
mais ainda tens mais dois filhos. Como foi então que isto
aconteceu? Por tédio. Não quero mais. Vê se desapareces. E
não deixes que te volte a pôr os olhos em cima. Chega!
Ontem mudou-se para cá o nosso novo hóspede. Tenho
vergonha por ele. Um jovem licenciado, acabou agora o
curso, veio de Leninegrado. Veio trabalhar para cá. Estás-me
a perceber, ou não? Acabou, Mischa, vai-te embora e não
voltes mais, estás a ouvir? Não te abro mais a porta. Acabou.
Vai-te embora.
 
(De novo um grito através da janela. Olga e Michail voltam a
não se incomodar com ele)
 
MICH - Um hóspede? Por que é que me vens agora com essa
conversa do teu hóspede? O que é que ele tem a ver com
isto? Ele traz mais algum dinheirito à tua mãe, tu não tens
nada a ver com isso, pois não? Desde que fique
sossegadinho no seu quarto, esse copinho de leite com
óculos...
 
OLGA (Levanta-se) – Chega, já te disse. Já tivemos as
nossas brincadeirinhas, mas agora acabou-se. Não me voltes
a aparecer. Acabou. Não me toques! Estou doente,
percebido? Ando a levar injecções, percebido? Não me
toques, percebido?
 
MICH – Podes gritar à vontade na morgue. Grita para aí à tua
vontade... Eu é que decido o que se faz, eu, eu, não tu, grita
para aí à tua vontade... ou vê lá se queres que te dê cabo do
canastro a ti e ao teu hóspede? Hem?
 
OLGA – Ai de ti! (Grita). Ai de ti se lhe tocas!
 
MICH – Muito bem...grita para aí à tua vontade... Foi isso que
te ensinei, a correres atrás dos homens, foi? Queres mudar-te
para o hóspede, começares um arranjinho com ele, é? Mas
que bela pêssega que eu havia de arranjar! Tu, minha puta da
estação dos comboios, tu...
 
OLGA (Atira-se a Michail com os punhos) – Cala a boca!
Cala-te já! Vê se desapareces, estás a ouvir?
 
MICH – Continua só a falar dessa maneira comigo, continua
só a gritar...e se eu contasse tudo à tua mãe? Vou-lhe contar
tudo, para ela ver a espécie de coelhinha doente que andou a
criar. Vou-lhe dizer: atormentas-te por causa da tua filhinha,
pensas que ela está doente, verdade? Passas as noites de pé
a cortar bilhetes de cinema, mas a tua filha está cá agora
doente. Anda tanto por aí a saltar em cima dos homens, que
até cheira a borracha!
 
OLGA – Cava daqui, meu porco. Fora daqui.
 
MICH – Minha lambisgóia. Mas que bela pêssega eu havia de
ter arranjado. Grita para aí à vontade. (Dirige-se à porta.)
Deves é dar-te por muito feliz que eu tenha posto os olhos em
ti, minha putéfia. Quem é que ainda te quer? Murlin Murlo!
Nem imaginas como as mulheres andam atrás de mim. É
assim mesmo. Mas eu logo havia de te ter escolhido a ti!
Porque tive
pena! E porque moro mesmo aqui ao lado, à distância de um
salto de gato, e ela... vinte e oito anos, parece-me, e ainda a
esgatanhar-se toda à procura de homem. Tive pena, peguei
nela, a infeliz da Murlin Murlo!
 
OLGA – Vê se te vais embora, fora daqui! Fora!
 
MICH (à porta) – Vou dizer à tua mãe que me arrastas-te até
à cama!
 
(Olga empurra Michail porta fora, este defende-se)
 
Há algo que não bate certo? Atiraste-te a mim, quase que me
ias asfixiando! Há algo que não bate certo, o quê?
 
OLGA (Agarrando a porta) – E eu...e eu...Vou contar tudo à
tua Irka! Percebido? É tudo?
 
(Ambos arquejam, agarram-se à porta)
 
MICH – Ai de ti...ai de ti, minha cadela. A Irka está grávida,
não se pode emocionar. Estás fresca, estás! Ai de ti, é o que
te digo. Pedaço de merda. Ai de ti se o fizeres!
 
OLGA – Ai faço, faço, faço mesmo!
 
MICH – És mesmo um belíssimo pedaço de merda...Por isso,
vais abrir o ferrolho....amanhã volto cá. E então dou-te uma
audiência... ai de ti se não abres...cago-te a porta toda de
merda...ai de ti!
 
(Olga bate a porta. Apoia as costas de encontro a ela. Respira
de forma pesada. Depois vai para o seu quarto. Limpa as
lágrimas. Olha-se ao espelho. Espreme um ponto negro do
nariz. Pinta os lábios. Michail fica de pé no patamar da
escada. Acende um cigarro. Alexei sobe as escadas
depressa. Traz uma pasta debaixo do braço. Alexei tem
cabelo louro claro, é um homem novo, elegante, com óculos.
Parece mais novo do que os 26 anos que tem. Está vestido
de forma confortável. Está escuro no patamar da escada.
Alexei esbarra com Michail.)
 
(Às escuras) Alto. Amigo ou inimigo?
 
ALEX - Amigo.
 
MICH – Está mais escuro aqui do que no cu de um preto...
(Liga a luz. Examina Alexei ao passar). Porreiro.
Cumprimentos, és o touro, eu sou a vaca. O touro tem
apetites e a vaca tem de se aguentar. Ah, ah!
 
ALEXEI – Boa noite.
 
MICH – És o novo hóspede?
 
ALEX – É possível. Posso passar?
 
MICH – Alto. Vamo-nos apresentar, fumamos um cigarro e
ficamos no paleio um bocadinho. Afinal somos vizinhos.
Então? (Pausa) De onde és? De Leninegrado. Trabalhas no
Complexo Industrial, é? No Complexo Industrial. Para o resto
da vida? Seja como for, depressa te pões a milhas. Por que é
que não dormes no dormitório? Não há vagas. Não alugas
uma casa? Tens muita massa. Daqui a pouco vem aí um
terramoto, já ouviste dizer?
 
ALEX – Deixa-me passar. Estou cansado.
 
MICH – Passámos o dia a escrever, temos os dedos em
ferida. Certo? (Ri-se). Digo – te já uma coisa, aqui não tens
hipótese. Na melhor das hipóteses, tens hipótese de que eu
te faça umas quantas carícias. Não lhe toques nem com um
dedo! Ela não quer nada contigo. Percebido?
 
ALEX- Não percebo nada de nada. Do que é que se trata
mesmo?
 
MICH – Ah, mas bem depressa vais perceber. Eu avisei-te.
Passa.
 
(Alexei abre a porta e entra em casa. Olga, que estava a
escutar encostada à porta, dá um salto para o lado. Michail
deixa-se ficar no patamar da escada, fuma e depois dirige-se
à porta em frente.)
 
OLGA (Alegre, para Alexei) – Boa noite!
 
ALEX – Boa noite. (Despe o casaco de Verão, vai enfiar os
chinelos de trazer por casa)
 
OLGA – Aqui tem os seus chinelos. Para que é que trouxe
esses, nós temos cá tantos. Não lhe dê ouvidos! Ele não é
normal. Ele não bate certo. Não regula bem.
 
ALEX – Quem é que não bate certo?
 
OLGA – Ora, aquele ali. Que esteve mesmo agora consigo na
escada... Sabe, ele só tem metade do cérebro e essa metade
também entra muitas vezes em curto-circuito...
 
ALEX - Estranho...
 
OLGA – O quê? Não estou a perceber.
 
ALEX – É estranho o que acabou de dizer. Tenho de tomar já
nota disso.
 
(Dirige-se ao seu quarto. Olga vai atrás dele. Pára na
ombreira e observa como Alexei despe a jaqueta e espalha os
seus papéis sobre a mesa).
 
OLGA – Pus-lhe aí uma maçã. Pode comê-la. É fresca.
Acabada de apanhar. É de borla, a minha mãe não sabe de
nada. Crescem na nossa horta.
 
ALEX – Mas eu não quero maçã nenhuma...não, não. Não
quero maçã nenhuma. Muito obrigado.
 
OLGA – Coma-a lá, ela não vai saber nada do caso. Digo-lhe
que fui eu que a comi. Não tem importância nenhuma, coma
lá, não tenha medo!
 
(Alexei escreve algo, pega na maçã e morde-a.)
 
ALEX – “... e essa metade também entra muitas vezes em
curto-circuito”. Tem uma quinta?
 
OLGA – Ih, ho, qual quinta! Uma hortazita bem pequenininha.
Nos arredores da
cidade. Fica perto. Três macieiras com maçãs, tomates, um
canteiro de pepinos, paprika, ginjas. Na nossa cidade as
coisas ficam todas perto umas das outras. A cidade é
minúscula. Já viu como é. Quer dizer, moram cá alguns
milhares de pessoas. Pelas minhas contas, aí trinta mil.
Quando vou na rua, encontro sempre as mesmas caras.
Quero eu dizer, temos poucos habitantes.
 
ALEX - Mas o Complexo Industrial é grande. Simplesmente
gigantesco. E nele trabalha muita gente.
 
OLGA – No Complexo Químico? É verdade. Trabalha lá a
cidade inteira. Todas as manhãs as pessoas rastejam como
as baratas das frinchas e marcham para o Complexo
Industrial. A nossa cidade é um cacifo para pessoas. Eu
própria também lá estive. Não há mais nada aqui. Mas eu sou
doente.
 
ALEX – Doente?
 
OLGA – (Ri-se) - Não é contagioso! Coma lá à vontade! Não
tenha medo, lavei-a com sabão! Sou doente, é verdade. Há já
dez anos que estou em casa. Quando acabei a escola, ainda
trabalhei um pouco, para aí uma semana – e ala para casa,
acabou, finito. Sim, sim, trabalhei no Complexo Químico.
Muitíssimo extenuante. Demasiado pesado para mim. Agora
faço a lida da casa. Mais do que isso não. Não tenho vontade
de fazer nada. Nem para trabalhar nem para ler. Era capaz de
passar a vida a dormir, de manhã à noite!
(Ri-se, espreguiça-se). É assim que eu sou!
 
ALEX – Mas isso é mesmo uma doença?
 
OLGA – Mas claro que sim! (Alegre) E que doença! Os
médicos dizem que é uma doença. Até levo injecções,
portanto deve ser uma doença. A princípio, não mas queriam
dar, mas então a minha mãe foi lá e armou um escarcéu e
desde esse dia levo injecções. A minha mãe é uma lutadora,
decerto já o compreendeu, não? Lá onde ela trabalha, há
sempre muita gente. Ela corta bilhetes de cinema. Todas as
mulheres a invejam, por ela ter um emprego tão bom. Para
uma mulher, é o melhor emprego que por aqui há. Ganha
muito bem e não tem de andar a arrastar sacas. É por isso
que ela tem tanta força. A ela não se lhe põe o dedo na boca,
que ela arranca-o logo com os dentes. Experimente – lá se
vai o dedo!
 
ALEX – Ná, é melhor não.
 
OLGA (ri-se) – Você é um fulano engraçado! Disse aquilo só
de brincadeira. A minha mãe conhece toda a gente, a cidade
inteira. È famosa como uma actriz. Sabe tudo. Sabe todas as
novidades. Ela diz que em breve vem aí uma catástrofe,
vamos todos ficar soterrados ou afogados. Certo?
 
ALEX - Disparate. Acredita nisso um pouquinho sequer?
 
OLGA – Claro que sim! Claro que sim! A nossa vida aqui é
tão ruim – que isto tem de ter, seja como for, um fim. Veja lá.
Isto não pode mesmo acabar bem. Não, não!
 
ALEX – Mas o que quer, então? Vive aqui de uma forma
muito agradável. Eu acho que é bastante normal. Até mesmo
bom. Como tudo o mais. Uma cidadezinha simpática, esta.
Realmente minúscula, mas muito simpática. Não?
 
OLGA – Simpática? O senhor está mas é a gozar. Pois sim,
bastante simpática.
Com certeza, simpática. Correcto. Se lhe parece, será
exactamente como diz. É mesmo um disparate a maneira
como acabei de a caracterizar. (Ri-se.) Vivemos realmente
que é uma maravilha. Nós cá temos estátuas no parque.
 
ALEX - Estátuas...
 
OLGA – Sim. Sabe, dantes sempre pensei que estava ali
alguém enterrado e por isso se tinha erguido uma estátua e
se a tinha pintado de dourado, que ali a tinham posto onde
estava o caixão...Há lá muitas estátuas, vá lá um dia dar uma
volta e veja bem. As que têm lemes ou livros. E eu pensava
que eram os mortos. E depois percebi que ali estavam
simplesmente para monumentalidade.
 
ALEX – Hei-de lá ir sem falta...
 
OLGA - Oh, e a quantidade de coisas que temos na nossa
terra para nosso deleite! Amanhã os Liliputianos estão na
Casa da Cultura, vão dar um espectáculo. Eu comprei dois
bilhetes. Vamos os dois, certo, quer?
 
ALEX – Brrrr. Ir ver aleijados. Não tem vergonha? Muito
obrigado. Nem dez cavalos me conseguiam arrastar até lá.
 
OLGA – Não estou a perceber. Vão dar um espectáculo,
certamente interessante...
 
ALEX – Tem de me desculpar, estou estoirado do trabalho.
Hoje tive de ficar até mais tarde, para rectificar uns quantos
assuntos. Eu agora tenho cá uma destas posições. Não é
assim tão fácil ser director. A confiança das pessoas tem de
ser... comprovada. Daqui a pouco vou-me deitar. Deixe-me
trabalhar ainda um pouco.
 
OLGA – Trabalhar? Mas acabou de chegar do trabalho...
 
ALEX - Exactamente, vou sentar-me um bocado e escrever.
Hoje ainda tenho de escrever quatro páginas. Percebe?
 
OLGA – Percebo! Escreva!
 
ALEX – Mas, para o fazer, tenho de estar sozinho.
 
OLGA – Eu não o incomodo. Vou só ficar aqui sentada.
Escreva! (Senta-se na cama e mexe as pernas) É tão
interessante conversar consigo! Sabe mesmo que vem aí um
terramoto?
 
ALEX – Isso foi coisa que eu nunca afirmei. Não sei nada
disso. Nada de nada.
 
OLGA – E eu cá pensei: se o nosso hóspede disser que vem
aí um terramoto, então é porque vem mesmo. Porque você é
muito, muito inteligente. Notei-o logo à primeira vista.
Portanto, vem aí um terramoto, é?
 
(Através da janela, ouve-se de novo um grito. Terrível, feroz e
arrepiante. O seu eco espalha-se por toda a cidade.)
 
ALEX (Estremece de alto a baixo, vai à janela e espreita para
a rua escura) – Por amor de deus, mas o que é isto? O que é
que acha disto? Ontem a mesma coisa... isto é muito
arrepiante...
 
OLGA – Ah! Não ligue. Isto acontece desde sempre – desde
que sou capaz de pensar. Todas as noites. Chama-se
“Música de Tschaikowski”. Ou é alguém a pregar uma partida,
ou então alguém a ser esfaqueado. Venha o diabo e escolha.
 
ALEX – Talvez devêssemos avisar a Milícia, telefonar, para
que viessem e investigassem o assunto?
 
OLGA – A Milícia? Não seja ridículo. Nem aqui nem nos
arredores existe milícia. E telefone também não temos. E não
serve de nada, em boa verdade. Que parvoíce incomodar as
pessoas só por causa de um disparate destes. Chamar a
Milícia. Eles estão de serviço neste momento, têm de apanhar
bandidos. Têm outras preocupações. (Ri-se) Eu acho – gritam
desta maneira por tédio.
 
ALEX - (Espreita pela janela) – Quer dizer que uma pessoa
pode gritar desta maneira por tédio? Como se estivesse a ser
esfaqueada, assassinada...
 
OLGA – Por tédio as pessoas são capazes de fazer muitas
outras coisas...muito piores. Sim, sim... (Pausa) Mas, de
resto, na nossa terra as coisas não entediam. Na nossa terra
as coisas até são muito divertidas. Vai gostar. Temos um
cinema. Uma casa da cultura. Com grandes colunas! E,
quando éramos crianças, até vimos um disco voador. Sim
senhor! O que lhe parece? Oh, sim, apanhámos cá um
cagaço. Aqui mesmo, por cima da casa do
vizinho, foi aí! Eu, a minha irmã e a minha mãe. Nós vimos!
Inna, a minha irmã, já se esqueceu disso, a minha mãe,
estranhamente, também já não se consegue lembrar disso,
mas eu ainda me lembro. O que é que lhe parece!
 
ALEX – A sério? Diz que viu um disco voador? Eu não
acredito. (Ordena os seus papéis sobre a secretária, escreve
algo.
 
OLGA  -  Que é que lhe parece! Claro que sim! Um disco
voador! Branco! Dum
tamanho descomunal! Sobre a casa ali! Eu acordei, são cinco
da manhã, já no Outono, a minha mãe está de combinação à
janela. E grita como se a trespassassem com um espeto: “Oh,
Jemine, o fim do mundo, aí está o fim do mundo, oh, Jemine,
chegou o fim do mundo!!!...
(Alexei observa Olga. Inclina-se sobre a secretária. Olga
levanta-se da cama, vai até à secretária e observa Alexei por
cima dos ombros)
Eu e a Inna corremos para a janela e espreitámos para fora –
ali estava um disco a pairar sobre a casa. Acordo, cinco da
manhã, Outono, a minha mãe grita como se a estivessem a
traspassar com um espeto. Corremos como doidas para a
janela. Ali estava o disco a pairar sobre a casa. Sim. (Pausa).
Desde essa altura também é que me aparece Deus Nosso
Senhor, desde essa altura tenho alucinações...
 
ALEX - O – o quêee?
 
OLGA (Ri-se, alegre) – E você não sabe nem a metade!
Tenho alucinações a toda a hora! (de forma precipitada). Mal
entro num lugar escuro, aparece-me logo o fulano de barbas,
sim senhor. Ali está ele, simplesmente… E olha para mim. Ele
não é assustador, não. E depois vejo imagens, ouço música,
vejo todas as imagens de fantasia possíveis, como se saídas
de livros, palmeiras – uma maravilha! Mas o principal é o tal
fulano à minha frente.
 
ALEX – No escuro?
 
OLGA – Sim.
 
ALEX - E como é que sabe que é Deus Nosso Senhor? Se
calhar não é?
 
OLGA - Não faço ideia. Chamo-lhe assim. Certo é que se
trata de um fulano com barbas, nada mais...
 
(Pausa longa. Alexei olha Olga)
 
ALEX – Bom, bom...bom, bom...seja como for, você é
realmente extraordinária, uma dessas... Deus Nosso Senhor,
diz você?
 
OLGA – Sim, Deus Nosso Senhor!
 
ALEX – Interessante. Bons, bom... As maçãs sabem bem...
(Tossica) Por que é que... Por que é que não vai então ver
televisão? (Pausa) Hoje vai dar, acho eu, um policial.
 
OLGA – Nós não temos televisor. A minha mãe tem medo das
radiações. Por isso é que não compramos um. Dantes
tínhamos um, mas vendemo-lo. Porque a minha mãe tinha
medo das radiações. No emprego disseram-lhe que o
televisor emite radiações.
 
ALEX – E que tipo de radiações são essas então?
 
OLGA – Também não sei. A minha mãe diz que não
conseguia dormir por apanhar com as radiações do televisor.
Por isso o vendemos.
 
ALEX – Nesse caso punham-no na cozinha ou no outro
quarto. Aqui mesmo. Experimentaram?
 
OLGA – Sim! Mas de nada serviu! Mesmo assim, continuava
a emitir radiações.
A minha mãe diz que passam pela parede!
 
ALEX - O que é que passa pela parede?
 
Olga – Não sei. Mas as radiações de certeza.
 
ALEX - Pela parede?
 
OLGA – Ora bem. E estas radiações – são malignas. Todas
as doenças vêem delas. Isto diz a minha mãe, contaram-lhe
no emprego. Até se pode ficar careca só de se pôr a ver.
 
ALEX - O televisor?
 
OLGA – Pois com certeza. Então não sabia? Ora essa! E diz
você que é uma pessoa com formação. Uma pessoa tem de
saber estas coisas! Por cá na nossa cidade toda a gente sabe
disso. Todos apanham com as radiações e, apesar disso,
querem ver televisão. E bumba, apanham com a murraça. E
tudo por se pôrem a olhar, por causa das radiações. Até
mesmo quando está desligado da tomada – mesmo assim
emite radiações muito ruins, sabe, o olhar não as detecta e
estas radiações metem-se pelas pessoas adentro. Sim
senhor. O que é que você pensa! Mas eu fui às escondidas à
casa da Irka, a nossa
vizinha, e vi a telenovela “A Escrava Isaura”. Grande filme!
Chorei. Do primeiro ao
último episódio. Deu-me tanta pena, a escrava. Uma mulher
tão correcta, tão perfeita. A infeliz. Ai sim! Mas não fui lá
muitas vezes e por isso não levei com muitas radiações,
portanto não foi assim tão perigoso...
 
ALEX – S - sim ...é bem interessante...muito interessante...
 
OLGA - Posso pedir-lhe um favor?
 
ALEX – É melhor tratarmo-nos por tu. Trate-me por tu. Temos
praticamente a mesma idade. Portanto, tu, está bem?
 
OLGA - Está bem, por tu. Vamos antes ali para o meu quarto.
Para o maior, sim? Aqui agora já começa a cheirar mal.
 
ALEX – Sim, na verdade, cheira assim de uma maneira
esquisita... (Admirado) – De onde vem este cheiro?
 
OLGA – Isto é a cruz da nossa cidade, uma verdadeira
desgraça. Se o vento sopra dali, cheira ao aviário, se vem do
outro lado cheira ao Complexo Químico. Na nossa casa
infelizmente uma janela dá para o aviário, esta aqui, e a do
outro quarto dá para o Complexo Químico. E agora já começa
a cheirar mal aqui dentro. Vamos lá para dentro, sim? A
minha mãe diz que, na verdade, este ar é saudável, mas a
mim faz-me sentir mal. Vamos lá para dentro, sim? Eu
mostro-lhe o meu álbum...
 
ALEX – Está bem então. Vamos. (Levanta-se da mesa). Mas
não me demoro, espero. Talvez devêssemos fechar esta
janela?
 
OLGA - Não é preciso. Deixe estar. Entra por todas as
frinchas. E depois ainda cheira pior. Assim, sai por si próprio
outra vez. Vamos.
 
ALEX – Mas não me demoro.
 
OLGA – Sim, sim, não se demora! Despachamo-nos. Sabe, o
que eu ainda lhe quero contar...
 
(Passam pelo corredor. Olga vai de recuas e mostra a Alexei
o caminho. Entram no quarto grande.)
 
Faça o favor de se sentar. Aqui neste sofá. Não tenha medo,
não suja, tem uma coberta em cima...a minha mãe faz ela
mesma as cobertas para os móveis...o que eu ainda lhe quero
contar – sobre Deus Nosso Senhor e a minha mãe...
 
ALEX – O quê?
 
OLGA (Ri-se) – Não, no que é que está a pensar outra vez!
Você é um tipo engraçado! Eu quero-lhe contar o que a Inna
me contou, quando nós ainda éramos crianças...
 
(Vai depressa ao quarto pequeno, aí apanha um álbum da
prateleira, volta para junto de Alexei, senta-se na cadeira e
folheia febrilmente o álbum. Olha para Alexei. Dá uma mirada
a Alexei, que está sentado no sofá e que olha à volta da sala)
 
ALEX – Tantas flores que vocês têm, tantos vasos... um
autêntico mar!
 
OLGA – Sim, um autêntico mar! Fui eu quem as plantou
todas. Cactos, todas as flores possíveis. A minha mãe
também planta flores. Nós somos fanáticas de misturadas!
(Ri-se) Bem. Ouça o que a Inna me contou. A minha mãe
estava sempre a bater na Inna e ela veio, a chorar, ter comigo
e disse: Olga, a nossa mãe é má. Muito má. Velha e má.
Sabes, disse ela, ela é tão velha que àquele fulano, o Jesus
Cristo, lhe pregou os braços na cruz...”
 
ALEX - Mas que disparate...
 
OLGA – Certo. Ela disse: Este dedinho mínimo aqui, pregou-o
ela à cruz com um prego... “
 
(Pega na mão de Alexei e mexe-lhe no seu dedo mínimo. Ele
retira horrorizado a mão)
 
A minha mãe contou-me muitas coisas sobre Deus Nosso
Senhor, queria ensinar-me a rezar, mas não conseguiu.
Depois da Irna me ter contado isto, pensei eu: Mas que
grande velhaca é a minha mãe, como é que ela pode
dissimular, como é que ela pode estar cara a cara com Deus!
Ela própria lhe pregou as mãos à cruz, e agora disfarça, reza-
lhe e até me quer ensinar a rezar a mim…Agora recordo-me
bem de novo, tudo o que a minha irmã Inna
me contou sobre a nossa mãe. Que a minha mãe passou a
vida inteira sem homem, pois o nosso pai há muito tempo que
morreu. Agora recordo-me bem de tudo. E de repente tenho
uma tal pena da minha mãe, também não sei porquê… (Ri-
se) E a Inna também me faz pena. É uma desgraçada. O
marido dela morreu afogado, filhos também não os teve. Bebe
muito. Por puro tédio. Toda a gente diz mal dela. Tudo isto me
dá pena, sabe. Nós somos todos uns desgraçados. Às vezes
penso: se ao menos houvesse um terramoto ou uma cheia e
se todos nos afogássemos como gatinhos. Para não termos
de nos atormentar mais.
Tantas vezes se me aperta o coração. Estou sempre a
queixar-me a Deus Nosso senhor.
Tudo me dá pena. Saberá por acaso por que é que as coisas
são assim?
 
(Longa pausa. Alexei permanece sentado no sofá, colocou as
mãos sobre os joelhos, sorri e olha a sala em volta)
 
 
ALEX – Você é uma rapariga extraordinária… bem fora do
vulgar…
 
OLGA – A sério?
 
ALEX – Ainda nunca tinha conhecido uma pessoa assim…
uma rapariga extraordinária…interessante… (Pausa). São
histórias verdadeiramente arrepiantes, as que me conta. Bem
arrepiantes… A dos Liliputianos, a do Cristo, depois ainda a
de Deus Nosso Senhor que lhe aparece e ali fica…Depois a
desse disco… É quase como um lenga-lenga infantil: era uma
vez uma sombria, sombria floresta… e nessa sombria,
sombria floresta havia uma sombria, sombria casa…
 
OLGA (Ri-se) – Sim. E na sombria, sombria casa, havia um
sombrio, sombrio caixão. E dentro do sombrio, sombrio caixão
jazia um sombrio, sombrio homem. E o sombrio, sombrio
homem disse com sombria, sombria voz: “Devolve-me o meu
coração!!!”
 
(Através da janela ouve-se um grito de arrancar o coração.
Alexei estremece dos pés à cabeça. Ambos se calam. Depois
riem-se)
 
Escreva qualquer coisa aqui. Para recordação.
 
ALEX - Que quer, então, que eu escreva?(Pega no álbum,
coloca-o sobre o joelho e folheia-o) Não sei, o quê?
 
OLGA – Mas claro que sabe o quê! Pense bem! “Isto não o
escreve um escritor, isto não o escrevem marçanos, isto
escreve uma rapariga de vinte anos.”Fui eu mesma que
inventei. Quando tinha vinte anos. E já tem tanta coisa escrita
nele dele. Aqui, está a ver esta página?
 
ALEX – Sim?
 
OLGA – Escreva aqui aquilo que for o mais importante de
tudo. O que está escrito aqui em cima?
 
ALEX - “Morra quem dite o tabu, escreve já: quem amas tu?”
Tabu escreve-se sem ‘h’ no final…
 
OLGA – (Ri-se) Escreva! Escreva! Não tenha medo! Isto é
uma página confidencial. Eu depois colo-a! Nunca tinha
mostrado este álbum a ninguém. Só a si! Ninguém vai lê-lo.
Não escreve qualquer coisa?
 
ALEX (Ajeita os óculos) – Eu não amo ninguém.
 
OLGA (Baixinho) – Não pode ser…Claro que você ama
alguém…Vejo-o nos seus olhos…E o seu amor é forte…Toda
a gente tem olhos vazios, mas você não…Você ama, ama,
ama…
 
ALEX – Por que é que esta sala tem duas portas?
 
OLGA – A minha mãe diz que é para que se possa fazer sair
daqui mais facilmente um cadáver, para se poder dar melhor
a volta no canto com o caixão…
 
ALEX – E para onde dá esta porta? Há ali outro quarto?
 
(Levanta-se, abre a porta que dá para um quarto às escuras.
Olga dá um salto e mostra-lhe o quarto)
 
OLGA – Sim. Este é o meu quarto. Quando à noite tenho as
minhas alucinações, falo durante o sono, chego até a gritar.
Por isso a minha mãe alojou-me aqui. Para que eu a não
incomode. Aqui está-se optimamente...Está a ver os actores a
cobrirem as paredes todas? Eu vi os filmes todos com a
minha mãe no cinema, do primeiro ao último… Às vezes,
acendo aqui uma vela. A minha mãe ralha, que ainda hei-de
pegar fogo à casa…
 
(Permanecem no quarto escuro lado a lado. Olga senta-se
sobre a sua cama de madeira e observa Alexei de alto a
baixo)
 
ALEX – Belo quarto. Você tem sorte. Pelo menos pode
esconder-se de tudo. É uma pessoa digna de inveja.
 
OLGA – Oh, não tenha inveja de mim! A minha vida é uma
porcaria… (Pausa). A minha mãe só aceita homens novos
como hóspedes. Ela quer-me casar o mais depressa possível.
Para que eu conheça alguém. (Ri-se) Ela teve de casar a Inna
e a mim tem de me casar também. E tenho de ter uma
criancinha…Gostava tanto de ter uma criancinha. Tanto!
Dava-lhe mimo, banho…A minha mãe não me deixa ter uma
gata cá em casa., diz que uma gata cheira mal…É assim…
Mas na nossa terra as pessoas não ficam muito tempo, todos
se vão embora da nossa cidade, não agrada a ninguém. E eu
penso sempre, se ao menos alguém me levasse daqui, eu
estava pronta, até lhe beijava os pés, fazia tudo na vida por
um homem assim. Até lhe dava filhos.
 
ALEX – Eu tenho de me ir embora.
 
OLGA – Espera, Aljoscha…Fica… Eu tenho de… (Corre
depressa pelo corredor em bicos de pés, fecha a porta de
entrada e corre de volta, depressa)
Espera, Aljoscha… Por favor, diz, eu sou horrível, é? Ou são
só as outras pessoas que pensam isso de mim? Eu sou
horrível, é? Diz a verdade!
 
(Ela respira na cara de Alexei. Alexei levanta-se da cama de
madeira)
 
ALEX - Mas como é que chegaste a uma conclusão dessas?
Tu tens um mundo
espiritual tão vasto… (Pausa) Não és nada horrível … És
completamente normal… Até mesmo bonita. Agora tenho de
ir. Boa noite.
 
OLGA – Estás a ver? Estás a ver? Disseste-o! Disseste-o! Eu
sabia que todos mentem, eu já sabia!
 
ALEX - Quem é que está a mentir?
 
(Procura sair do quarto escuro, Olga não o deixa passar)
 
OLGA – Os putos! E ele também! Toda a gente diz que o meu
nariz se parece com uma batata cozida. Chamam-me Murlin
Murlo! Esses idiotas, que alcunha mais estúpida! Não faço
ideia do que é que isso quer dizer. São todos malucos, certo,
Aljoscha? Pareço-me, nem que seja só um bocadinho com a
Murlin Murlo, hem? Acabaste mesmo agora de dizer que eu
tenho um vasto, ora, como é que se chama, um vasto…
 
ALEX – Eu disse…
 
OLGA – Bom! Sou bonita! Sou muito bonita! Ninguém faz a
mínima ideia! Todos doidos. Eu sou tão bem disposta, adoro
toda a gente, tenho pena de toda a gente! Sou muito bonita!
Já me vi nua ao espelho, quando a minha mãe não estava em
casa! Com a beleza não se consegue ganhar dinheiro, está a
minha mãe sempre a dizer, não senhor! Ela diz que eu sou
uma bonequinha! Sou uma beleza, diz ela! E tenho um corpo
bonito! Sim senhor, Aljoschenka, foi o que ela disse...
 
(Tocam à campainha durante muito tempo e de forma
ameaçadora)
 
(Chora) Meu Deus...
 
(Alexei, que estava enfiado a um canto, dá um grande salto,
para o alto, do catre, abre caminho até à sala grande, derruba
alguns vasos de flores, pisa flores, corre depressa para o seu
quarto e fecha a porta. Encosta-se à porta, corre depressa
para a mesa e começa a escrever qualquer coisa febrilmente.
Levanta-se, endireita o retrato de Hemingway, retira-o da
parede e procura colocá-lo noutro lugar. Volta a pendurá-lo no
mesmo sítio. Escreve qualquer coisa. Olga abana a cabeça,
as lágrimas soltam-se. Levanta-se, porque a campainha toca
ininterruptamente.)
 
Quem é? Já te disse que não venhas mais aqui! Que é que
queres, hem?
 
INNA (à porta) – Deixa-me entrar, meu pedaço de
merda...estás surda ou quê?
 
OLGA – Inna, és tu?
 
INNA – Quem é que havia de ser? Quem é que quer alguma
coisa de vocês, a não ser eu...Abre a porta imediatamente,
senão arrombo-a... Cadelas dum raio!
 
(Olga abre a porta. Sob a ombreira surge Inna. Tem 35 anos,
traz vestido um casaco de verão branco e sujo. Tem os lábios
pintados. Numa palavra, uma pessoa bastante relaxada.
Neste momento encontra-se bêbeda)
 
OLGA - O que é que queres? A que propósito vens a umas
horas destas? Fazes um
escarcéu, sobressaltas as pessoas...Eu já estava a dormir, a
mãe não está, que é que tu queres? Não tens a tua própria
casa, para andares a incomodar as outras pessoas a meio da
noite?
 
(Inna fica de pé no corredor, assume a pose de um
manequim, enrola o
cachecol cor-de-laranja à volta do pescoço)
 
INNA (Alto) – Inna Saizewa! União Soviética! Pela primeira
vez sem mordaça! (Alegre) Olja! Vim despedir-me de vocês.
Da minha irmãzinha. Da minha Mamã. As pessoas dizem que
esta noite vai haver estoiro. Vamos todos morrer soterrados.
Vá lá, vamo-nos despedir humanamente uma da outra,
embora vocês as duas sejam umas cadelas dum raio, uns
verdadeiros cães de fila! (Tira da mala uma garrafa de
aguardente barata) Para que é que estás a olhar dessa
maneira? Sim senhor, estou outra vez com a carga toda.
Como é que uma pessoa se não há-de embebedar, Olja?
Minha irmã do coração, como é que não? (Chora e abraça
Olga) Esta noite estamos todos feitos em merda, disseram.
Ná, estamos perdidos, percebes? Finito, Olja, é a última vez
que nos vemos. (Chora alto) Minha querida! Desculpa por te
ter feito mal! Mas tu foste sempre uma patifória velhaca! E a
tua mãe também! Quer dizer, a nossa mãe! Mas hoje temos
de desculpar todas as ofensas, sim? Vá lá, não?
 
OLGA – Onde é que soubeste disso?
 
INNA – Pela rádio. Mesmo agora. Finito. Dizem que Leviatan
disse: Preparem-se, camaradas. O nosso planeta vai esbarrar
com outro. Comportem-se com calma...”
 
OLGA - Que quer isso dizer, com calma? Mas que porra!
Onde é que foste arranjar essa?
 
INNA – Eu própria ouvi, Olja! Liguei o rádio e dizia o Leviatan:
Finita a comédia, disse ele! Ná, esta foi mesmo a última vez
na minha vida em que me embebedei. Seja como for, vamos
morrer, não é? Para que pareça tão horrível. Cravei dinheiro e
comprei uma garrafa de aguardente para mim. Eu não me
esqueci de vocês. Por isso é que aqui estou. Vocês, meus
amores! (Chora) O fim do mundo está próximo. Está tudo a
acontecer como diz na Bíblia. Sempre disseram todos:
prepararem-se, vocês, ó cães dum raio, preparem-se. E
nós, idiotas, não prestámos atenção, não cremos em Deus!
Merda do caraças! Finito, Olenka! A coisa acaba para nós
esta noite! Ponto final, Olga! (Séria) Talvez fosse melhor
irmos para o abrigo subterrâneo?
 
OLGA (distraída) - Qual abrigo subterrâneo?
 
INNA - (Cala-se) – Como é que é, vou ter de ficar para aqui
especada? Pareces um boi a tapar-me o caminho! Olé! Deixa
passar!
 
(Despe o casaco, empurra Olga para o lado, vai à cozinha,
espreita nos os vasos de flores, faz barulho com os tachos da
cozinha. Põe a garrafa em cima da mesa.)
 
Por que é que vocês nunca me dizem nada? Ou já nem
sequer me contam como família? Já não querem saber de
mim, é?
 
OLGA – Pára lá com as tuas lamentações sem fim...
 
INNA – Então, então. Onde está a mãe? No trabalho?
 
OLGA – Tu estás mas é outra vez bêbeda...
 
INNA – E tu estás mas é outra vez sonsa! Pára lá de me
deitares luz para cima, tu miserável estrela de cinema... põe-
te ali e brilha!
 
(Pega num cigarro e aproxima-se de Olga. Passa por ela e
dirige-se ao quarto de Alexei. Olga coloca-se sob a ombreira
e não a deixa passar)
 
Deixa-me passar. Então?
 
OLGA – Não entres. Ele está a trabalhar.
 
INNA – Oh, e com quem está ele a trabalhar, então?
 
(Empurra Olga para o lado e bate à porta)
 
ALEX (Com voz de falsete) – Quem é? (Tosse)
 
INNA – Um copo de Vodka. Posso entrar?
 
(Alexei dá um salto, amachuca o papel em que tinha acabado
de escrever, e olha Inna assustado)
 
Meu jovem. Ofereça a esta dama um fósforo. Procurei em
todo o lado – maré vazia. Não faço ideia do que isto queira
dizer. Agora até já há falta de fósforos? Por causa do fim do
mundo vir aí, é? Apenas uma normalização racional...mais
uma chatice, é o que é, com os fósforos. (Olha para Alexei e
ri-se). Mas que borrachinho é este? Tão novinho...
 
ALEX – Faça favor. (Acende um fósforo)
 
INNA – Por que é que está tão nervoso?
 
ALEX – Não estou nada.
 
INNA - As suas mãos tremem. (Pausa). Antes de si tivemos
cá um outro hóspede. A esse também lhe pedi um fósforo.
Mas esse talvez fosse desavergonhado. Dizia sempre: “Não
tenho fósforos. Tenho só um, mas está molhado” (Bate com a
mão na boca) Oh, caraças, perdão! Esse depressa se pôs a
andar. Fogem todos. Mas você, isso é que não, nunca mais.
Mesmo agora disseram na rádio, daqui a pouco a coisa dá
cabo de nós. Foi Leviatan
que o disse.
 
ALEX- O que disse ele? Mas que Leviatan é esse?
 
INNA – Ora, o verdadeiro. Aquele que anunciou a guerra...
 
ALEX – Esse já morreu há que eras...
 
INNA – Exactamente por estar morto há que eras! Como é
que é? Ele está vivo. Está vivo e mexido! Eu mesma o ouvi!
Finito. Fim do mundo. Não cremos em Deus, e agora aí temos
a salsada. Foi a própria rádio que o disse. Então? Conte-me
lá, quem é você, o que é você, jovem senhor, hem?
 
ALEX – E quem é você? Não estou a perceber patavina.
 
INNA – Ah, perdão! Medo e pânico! Não me apresentei. Eu
sou a Inna! A irmã daquela ali...da minha linda. Já morei aqui.
Depois casei-me. Não tive sorte nenhuma. O meu marido
desapareceu. Morreu afogado quando estava bêbedo. Tenho
um quarto. Do outro lado do rio. Trabalho na construção civil.
Como pintora. Aqui tem a minha biografia completa! (Ri-se) E
então? Por que é que estamos para aqui?
 
ALEX – Eu não s-s-s-sei...
 
INNA – Vem, vamos voar como os pássaros ou ir à vela com
o vento. Na cama fazemos um belo quarteto. (Bate com a
mão na boca). Perdão. Até ficou vermelho, o pequeno. A
inocência do campo, até tem óculos... (Ri-se) Anda daí,
vamos beber um copo! Para a despedida, pela última vez.
Daqui a pouco estoira a coisa e depois acabou-se. Finito.
Nessa altura é deixar-se encher. Não te ponhas é para aí a
assoprar. Vamo-nos conhecer melhor, sim? Vá, vamos?
 
ALEX (cala-se, suspira) – Bom, está bem.
 
INNA- Ora, óptimo. Perante uma garrafa, fica claro para
ambos quem, a quem com quem.
 
(Passam ao corredor. Olga ficou à porta  e esteve a escutar e
à espreita)
 
Então, que estás tu para aí a olhar com essa cara, Votzia
Iwanowna? (Bate com a mão na boca) Peço desculpa, é a
nossa conversa em família. Vamos lá beber qualquer coisa,
vá. Tu estás doente, maninha. Tens de te curar. Vamos.
Porque estás para aí feita balofa, porque é que estás para aí
a olhar como uma cobra venenosa? Temos um hóspede
novo, portanto temos de nos conhecer um pouco mais de
perto. Uma pessoa ainda pode conversar um bocado, não?
Com quem, então, é que posso cavaquear? Ele conta-me
coisas de terras
distantes, pois então; sim senhor! Põe a mesa. Daqui a nada
já te caem os olhos.
 
(Olga vai para a cozinha. Inna e Alexei vão atrás dela. Olga
põe copos e algo para comer sobre a mesa)
 
A minha irmãzinha é assim que ela é e vive. Para que é que
te abonecaste como um espantalho? Meu Deus, a moscaria
que vocês têm cá em casa! Raios, uma pessoa até se
envergonha de convidar gente inteligente. Ora uma merda
destas (Bate com a mão na boca) Perdão. Bom, siga,
almôndegas e moscas à borla. Senta-te, Aljoscha. “Alexei,
Aljo – ou oschenka, filhinho? Como se pudessem ouvir o
filho!... Sim, sim, eu sei como te chamas. Aqui na nossa
aldeia não se tem papas na língua. (Começa outra vez a
cantar) “Pelos
montes, pela estepe avança o nosso audaz exército! Sempre
a bulir como um preto, sempre em dívida! À noite
embebedamo-nos até mais não: Saúde! À vossa! Passem
bem, meus amigos”!
 
(Deita aguradente nos copos, bebe o dela de um golo. Pausa.
Inna olha para Alexei em desafio e sorri ironicamente)
 
Então, vá!
 
ALEX – Vá, o quê?
 
INNA – Vá, diz qualquer coisa?
 
ALEX – Digo o quê?
 
INNA – Vá, qualquer coisa bonita!
 
ALEX – Mas que coisa bonita?
 
INNA – Bom proveito! Sobre terras longínquas, tens de nos
contar qualquer coisa. Como as pessoas vivem lá, como as
pessoas se vestem, o que comem, que tipo de carros têm,
como é que elas por lá curtem a cena, etc..
 
OLGA – Inna! Inna!
 
INNA (Bate com a mão na boca) – Desculpa, camarada, saiu-
me. O hábito de estar com as minhas amigas das obras do
comunismo. Peço desculpa... Olha para aquela a olhar
pasmada, a minha irmãzinha não aprecia uma força de
expressão! Caraças! Entre nós fala-se com clareza. Diz-me lá
outra coisa, Alexei, existe mesmo ou não existe?
 
ALEX – O quê?
 
INNA – Ora o quê, a Central?
 
ALEX (Passa a língua pelos lábios) – Não estou a
compreender...
 
INNA – Não compreende! Ponho-me a ver, a televisão quero
eu dizer, e ponho-me a pensar: não pode mesmo ser, que no
mundo tudo seja tão centralizado. A mim parece-me como se
eles tivessem apenas feito um belo filme, como se tivessem
inventado e pintado tudo. E ainda fizeram música para lhe
juntar, um bocadinho de vapor, para ainda ser mais bonito.
Não acredito nisso! A mim parece-me como se, à excepção
da merda da nossa Schipilowski, o resto do mundo não
existisse. Percebes? Nada – simplesmente nada de nada.
Apenas as nossas quatro ruas aqui na cidade: a Rua Lenine,
a Rua Engel, a Rua do Exército Vermelho e a Rua da Draga -
e mais nada... e para além da cidade apenas floresta, floresta,
floresta, sem fim...e algures no céu estão as pessoas, que
inventaram tudo isto para nós, compreendes? Tudo para nos
dar alento, para que façamos a merda do nosso trabalho, de
manhã à noite e para não pensarmos em mais nada,
percebes? Só nós e mais ninguém depois! E como os
imigrantes correm de manhã para o trabalho, trabalham que
nem pretos, vão nas tamanquinhas para casa, comem,
dormem, e depois outra vez correm para o trabalho – todos os
santos dias que Deus nos deu. Eu até tenho medo de ir de
férias, sim senhor. Na televisão dizem: por todo o lado só há
beleza e felicidade! Mas as pessoas dizem que, por todo o
lado, só há é ladrões e assassinos, até canibais se diz que há
agora
também. Cozinham as pessoas e comem-nas. Fazem delas
almôndegas de carne, ganham
tanto dinheiro que até cheira mal, vendem-nas a dez
copeques cada no quiosque. E só se sobressaltam, quando
da almôndega, por mero acaso, sai uma unha, que não foi
moída, percebes? Simplesmente horrível, tudo isto que se
passa, dizem as pessoas. É por causa disso que eu tenho
tanto prazer na vida. Uma alegria de rebentar! Mesmo quando
a vida é uma grande merda, eu tenho na mesma prazer nela!
Percebes! Percebes-me ou não? O que acabei de te dizer,
percebeste ou não?
 
ALEX- Eu não percebo nada... Quer dizer, eu percebo, mas
não completamente...
 
INNA – Eu percebo, quando vejo. É assim. Tu não percebes
nada. E nunca vais perceber seja o que for. Mas que merda!
A minha língua quer dizer e não quer, aquilo que eu penso...
Diz-me lá outra coisa: Moscovo ainda está de pé ou já
rebentou, hem?
 
ALEX - Moscovo? Moscovo ainda está de pé. Leninegrado
também...
 
INNA – Aha. Moscovo está de pé, Leninegrado está de pé,
mas Schipilowski não está de pé. (Canta) “Em cima da mesa,
lá está uma garrafa, bebe-lhe um trago, antes que eu te gaste
em guloseimas!”
 
OLGA -Dizes sempre com cada disparate! À frente de uma
pessoa que não conheces! Que vai ele pensar de nós?
Alexei, não lhe dê ouvidos, não ouça o que diz, ela é
realmente uma rapariga desaparafusada, simplesmente
horrível!
 
INNA - Tu fazes-me perder a paciência... Murlin Murlo. Cala a
boca!
 
OLGA – Tu és mesmo um espantalho! Uma bela piada... Pára
de fumar! Alexei não lhe dê ouvidos!
 
INNA – Espera que já levas uma no Visage, mana... (Pausa,
bate com a mão na boca) Perdão, é a nossa conversa em
família. Às vezes vamos aos arames uma com a outra - Se
assim não fosse também era uma pasmaceira. E com a
minha mãe, quantas vezes andei às patadas com ela.
Atiramo-nos uma à outra aos murros. Primeiro enchíamo-nos
de murros, depois berrávamos -  ainda assim, uma pequena
uma troca de opiniões. Senão é tudo tão triste! Somos tão
naturais como um sabonete no fim, percebes? Não tenho
nada aesconder.
A Mamã trabalha na central de aquecimento da cidade e
apanha todas as coscuvilhices, que percorrem a cidade. Eu
bulo na construção civil, e a Olga conversa de manhã à noite
com Deus Nosso Senhor. Ela não é bem normal, plem-plem,
já reparaste? Não lhe ligues ponta...
 
OLGA – Cala-te, disse eu! Cala-te!
 
INNA – Que é que tu tens? Uma rica família, é o que eu
tenho. Um manicómio em ponto pequeno. Esquizi – ofrénica.
(Começa, de repente, a uivar e bate com a cabeça no tampo
da mesa). Ol-ga-a-a! Alexe-ei! Vá, bebamos. Vamo-nos
despedir uns dos outros, já me tinha esquecido de todo!
Querida irmã do coração. Perdoa-me! Tantas vezes que fui
má contigo! Daqui a pouco acaba-se, vamos todos ficar
soterrados como as baratas. Todos! E tu connosco, Alexei!
Quando chegar, não há nada a fazer!
(Observa Alexei, beija-o com prazer)
 
OLGA – Senta-te! Não lhe toques!
 
ALEX – Também vou fumar um cigarro, sim?
 
OLGA – Fume à vontade, fume, eu abro a janela. Não
apagues as beatas nos vasos de flores, que a mãe ralha!
 
INNA – Menina, não grite tanto. Dor de cabeça já eu tenho.
 
(Olga abre a janela, senta-se de novo)
 
Na cidade todos dizem, que eu sou uma jóia... até a minha
mãe não me deixa entrar em casa, está zangada comigo. E
no entanto, eu sou pura como uma virgem!
 
OLGA – Também não exageremos!
 
INNA – As estampas de homem que tive depois do meu
marido, posso contá-los pelos dedos. Eram todos casados,
tudo pessoas decentes. Eu sou viúva. O meu marido afogou-
se no rio. Até hoje nunca o encontraram. Mas cá a mim quer-
me parecer, que ele não se afogou coisa nenhuma. Nesse
dia, ele nem tinha bebido nada, aquele patife, isso ainda eu
sei. Cagou-se muito simplesmente para mim. Perante esta
vida, a penates até Moscovo, caladinho e às escondidas? E
então? Foi assim. À boca calada, toda a cidade sabe dos
meus homens. Que vou para a cama com eles. (Bate com a
mão na boca). Caraças! Uma
esposa até me quis escavacar os vidros da janela. Mas não
levou a dela avante, eu moro no terceiro andar...estes
homens de hoje em dia...Eu tenho de me queixar a ti, como
representante da Central... Que nojo me metem estes
homens! Um deles disse-me na cara: Inna, preciso de ti para
satisfazer as minhas necessidades mais baixas...”, percebes?
Filhos não os querem eles. Não bate certo com eles, fazer
filhos só vai com amor. Mas de amar não são eles capazes. E
tu para aí sentado sem mais. Diz-me lá, se fazes favor, quem
é que tu amas ou não amas! Também não amas ninguém,
certo? Igual a todos, é?
 
OLGA – Cala-te, disse eu!
 
ALEX (Alegre) - Qual o quê, eu amo! Apaixonadamente!
 
INNA - Oh, a sério? E quem?
 
ALEX – Eu amo...amo a literatura russa!
 
INNA (Ri-se) Ora aí está! Que é que eu disse? Quem é ela
ela, então? Por que é que eu a não conheço?
 
ALEX- Tem de se ler livros, cara Inna! Livros! Vamos beber!
Bebamos todos ao mesmo tempo! Hurra!
 
INNA – Vá, então ao teu amor...
 
(De um trago, bebem)
 
ALEX (Bate com estrondo o seu copo sobre a mesa, come
um tomate, o sumo escorre até às calças.) - Você está
mesmo a gozar comigo, não é?
 
INNA – Não, não, tenho exactamente a mesma opinião que
tu!
 
ALEX (Ri-se) – Não, você está mesmo a gozar comigo!
Certo? Mas é exactamente por isso que sou uma pessoa feliz.
Porque amo! Amo com tanta força, que até me dói o coração!
Que até emudeço! Bem terrível!
 
INNA – Isso na verdade é cá uma coisa... Quer dizer então
que se pode então amar de maneira terrível? Como é que
isso é então? Conta-nos lá acerca desse amor, sim? A Murlin
Murlo e eu temos, sem falta, de ficar a saber... Vá! Ouve bem,
Murlin!
 
ALEX – Que querem que eu vos conte, meninas? Não há
nada para contar! Pode
alguém descrever o que é ar, sol, céu azul, a erva depois da
chuva?! Não dá, minhas caras! É impossível. Impensável!
(Agita os braços)
 
(Olga olha Alexei, encantada, Inna horrorizada)
 
Meninas! Vou partilhar convosco o seguinte! É assim: há já
dois dias que moro na vossa cidade e devo dizer-vos, sem
preconceitos e a sério, com toda a franqueza: tenho de me
espantar quando vos vejo assim. Espanto-me com a vossa
vida, com as vossas tradições! Como é que vocês podem
viver desta maneira? É tudo tão triste... Vocês precisam de
uma Perestroika, tudo tem de ser virado do avesso. Nessa
altura, tudo entrará nos eixos. Claro que vou esforçar-me até
ao limite do imaginável, para virar tudo do avesso nesta
cidade, para que uma nova vida possa começar, para que as
pessoas possam meter outras ideias nas suas cabeças! Faço-
o mesmo, tenho força que chegue e também muito prazer
nisso! Força e prazer! Recuperem os sentidos, minhas
queridas! A cidade inteira embebeda-se! E nós também. Lá
no meu trabalho anda tudo tristonho! Ou então de ressaca.
Por que é que toda a gente bebe? Simplesmente, porquê?
Será que não conseguem imaginar as suas vidas de maneira
diferente, organizarem-na de forma a que não haja um minuto
sem sentido. Todos vocês, todos, todos, têm de se realizar
pessoalmente! Cada um deve ter uma meta bem à frente dos
olhos! E caminhar no sentido dessa meta, sem se desviar do
caminho! Mas a meta tem de ser grande, clara e com
substância. O homem não deve aspirar ao bem-estar...a uma
datscha(quinta), digamos, ou a um automóvel... Ou a tudo o
que de resto exista já. Não sei! Não importa! Portanto. O mais
importante não é isso, meninas! Não é isso! O mais
importante é a realização pessoal! E então estarão salvas –
pelo meu amor! Ele vai-vos salvar! O meu amor...
 
OLGA – Certo! Certo! Oh, como é verdade! O seu
amor...como é verdade!
 
INNA – Espera lá aí, deixa ouvir o que ele para ali está a
parabolar...
 
ALEX - Não, não, não me compreenderam bem! Não se trata
do meu amor em concreto, enquanto caso particular...O que
eu quero dizer é que o que vos salva é apenas aquilo que eu
amo! Isto é, a grande literatura russa!
 
(Silêncio)
 
Oh, minhas queridas meninas. Se a massa multifacetada aos
milhões, se todos os leitores lessem, com atenção e paixão,
página a página, o grande Tolstoi e o grande Dostojewski e
reflectissem sobre isso, se cada pessoa interiorizasse cada
uma das suas reflexões e cada uma das suas expressões
artísticas, nessa altura o nosso país, a nossa Rússia tornar-
se-ia,
simplesmente, sem dúvida, um caso sério de potência em
crescimento! Reflectir sobre Tolstoi e Dostojewski, isso,
queridas meninas, é exactamente o mesmo que uma pessoa
tornar-se um Sócrates, compreendem? Evidentemente que
adivinharam que estes raciocínios não são da minha autoria,
mas isso não tem importância nenhuma! É exactamente desta
maneira que eu penso. O que interessa é levar as pessoas a
que leiam de novo e reflictam de novo, que se tornem
capazes de reflectir, elas próprias, para que possam observar
a sua própria vida a certa distância. Sim senhor! Isto é tudo
muito simples,
vou fazer tudo o quer estiver ao meu alcance. Estão a
compreender, não é?
 
(Silêncio)
 
INNA (Bate com a palma da mão sobre a cobertura de
oleado) - Já percebi! Agora é que te entendi! Matem os
judeus, salvem a Rússia, certo?
 
(Pausa)
 
ALEX (desconcertado) – Não, não, por amor de deus...o que
eu queria dizer é completamente diferente. Quer dizer, então,
que não compreenderam nada do que eu disse? Quis dizer
uma coisa completamente diferente disso. Queria eu dizer
que todos vocês deveriam ler e reflectir, que devem reflectir
sobre a vossa vida...e amar, amar... compreendem?
 
OLGA – Eu cá percebi tudo.
 
INNA – Compreender, assobiar no vento, é igual... Conta lá é
algo sobre o amor, vá.
 
ALEX – Sim, o amor. Nada senão o amor! Existem as vossas
três virtudes – Fé,
Amor e Esperança, mas o Amor é a mais elevada de entre
elas! É assim que diz a Bíblia, lembram-se com certeza! O
Amor – é tudo! Está acima de tudo! Vou-lhes confiar um
segredo terrível, meninas...
 
INNA – Oh, não nos metas medo... Por acaso não serás tu
aquele, ora como é que ele se chama....
 
OLGA – Cala-te de uma vez, não estás a perceber!?
 
ALEX – Não, não, eu queria dizer uma coisa completamente
diferente! Tenho um
grande segredo. Tenho de o partilhar convosco, eu tenho um
objectivo na vida. Sim, sim. Estou a escrever um grande
romance! Grande em ideias, na filosofia e no seu significado
global! Gigantesco! Monstruosamente grande! Vai abalar tudo
e todos! Vai transformar as pessoas! Vai-nos transformar a
todos! Vai obrigar à reflexão! Vocês tornam-se outras pessoas
quando o lerem! Há já muitos anos que trabalho nele, desisti
da minha vida privada, para que se possa tornar um
verdadeiro, um significativo romance, compreendem? Volto já!
Vou-vos ler o último capítulo. Esperem só um bocadinho, só
um segundo! (Corre para o seu quarto, revolve os seus
papéis)
 
INNA -  Parece ser um rapazito inteligente...Parece um
passarinho. Um copinho de leite com óculos. Ainda nunca me
calhou um com óculos... Depressa se pôs a palrar com a
força toda, fala que não mais acaba. Tu compreendeste
mesmo alguma coisa do que disse?
 
OLGA (Pressurosa) – Eu cá compreendi tudo!
 
INNA – Estás a delirar, minha menina espertinha... Anda,
vamos cantar uma cantiga, irmã do coração! Ainda te lembras
como nós dantes costumavamos cantar à noite? Vamos
cantar uma cantiga? A minha alma anseia por uma canção!
(Começa a cantar e logo nos primeiros versos recomeça a
chorar)
 
(x)Lá ao longe, do outro lado do rio, as luzes já se acendem! A
Vermelho o sol em profundo céu azul! B
Cem cavaleiros e mais do exército de Budjonn C
Se precipitam, sangue novo jovem no tumulto da batalha! B
 
(x)Conhecida canção do tempo da guerra civil
 
(Alexei volta. Inna acena com a mão e quer continuar a
cantar, mas Alexei interrompe-a)
 
ALEX – Já, já... meninas, encontrei o passo!
 
INNA – Vamos cantar até ao fim!
 
ALEX – Não, não, é melhor ser já, antes que mude de ideias!
Na verdade, não costumo ler nada seja a quem for... (Folheia
febrilmente as páginas)
 
INNA (Olha zangada para Olga) – Se calhar preferes contar-
nos anedotas? O quê? Novas, da cidade? Por acaso não
sabes nenhumas? Vá, começo eu. Esta contou-ma uma velha
no autocarro. Três mulheres encontram-se e diz uma: “Como
é que é, que o meu Wasja tem sempre os tomates gelados?”
 
OLGA – Está calada, pára com isso, estás a atrapalhá-lo, mas
que disparate!
 
INNA – Bom. E diz a segunda: “O meu Petja também tem
sempre os tomates gelados”. A terceira não diz nada. No dia
seguinte, encontram-se outra vez, a terceira mulher tem
nódoas negras dos pés à cabeça. As outras duas perguntam-
lhe: “como é que foi isso que estás coberta de nódoas
negras?”. E diz ela: “Fui ter com o meu homem, agarrei-lhos e
disse-lhe: “É estranho, o Wasja e o Petja têm-nos sempre
gelados e tu tem-los sempre tão
quentes...”
 
ALEX – Não, não, espere lá. Que é que está para aí a dizer!
Espere lá. Por favor, mais tarde! Ouça! Portanto!....
 
(Levanta-se, acena com a mão, começa a ler. De repente, a
parede da cozinha estremece. Pancadas surdas e fortes,
gritos)
 
INNA (Intrigada, dá um salto) – Que foi que eu disse! Deram a
notícia na rádio!Exactamente, por há muito estar morto! Agora
é que são elas! Ò Senhor nos céus! Graças a Deus! Começou
o terramoto! A catástrofe! O fim do mundo! Hurra!
Conseguimos! Hurra! Conseguimos! Por fim! Hurra! Hurra!
Hurra!...
 
(Pausa. Na casa ao lado ouvem-se queixumes de dor.
Pancadaria. Faz estremecer a parede. Uma voz de mulher:
“Socorro! Socorro! Ai que ele mata-me! Ajudem-me! Salvem-
me! Ai! Oi! Ohie! Socorro!)
 
OLGA – Senta-te, senta-te ali. Por causa do terramoto...
 
(Escuta, suspira amargamente, senta-se) – Falso alarme...É a
música de Tschaikowsky, eu já pensava que a nossa última
horita tinha chegado...Que pena. Deus não ouviu as minhas
orações...
 
ALEX – Ouçam, o que é isto...? Que se passa? Não percebo.
De onde vem este barulho? Que se passa aqui?
 
INNA – Senta-te, miúdo. Tudo tem a sua explicação. O
Mischa e a Irka andam à
porrada um com o outro. Os nossos queridos vizinhos...Deixa-
os lá...Senta-te! Vá, vamos contar anedotas!
 
(Na escada e na casa ao lado uma pancadaria assustadora,
choro de crianças, gritos, queixumes. Uma voz de mulher:
“Deixa-me! Não toques nas crianças! Vai-te embora! Monstro!
Patife! Assassino! Dá-me cá isso! Socorro! Acudam-me! Ai
que ele mata-me!!!!...”)
 
ALEX (Olha em volta, desesperado) – Mas que é isto... Por
que é que não fazemos qualquer coisa? Temos de chamar a
Milícia. Ele mata-a Por que é que vocês não fazem nada?!
 
INNA – Fazemos o quê? Fazemos o pino e rimo-nos? É da
nossa conta? Deixá-los lá andarem à porrada! Entre marido e
mulher não metas a colher. Estes já há muito tempo que
zaragateiam, é para o resto da vida. E como eles se amavam,
estás a ouvir, Aljoscha? Estás sempre a falar de amor. E
estes amam-se a sério – de uma maneira terrível, como tu
dizes! Que lhes faz doer o coração, que ficam sem palavra.
Andaram de mão dada, beijaram-se nas escadas! Ah, são
todos iguais – Actores dum raio! Por amor, aqui não há amor
nenhum! Só o há no cinema...
 
OLGA (Olha assustada para Alexei) – Venha, é melhor
bebermos qualquer coisa.
 
INNA – Bebemos e cantamos! (Canta) “O sol brilha, o Fritz
dispara na estilha! Hitler atira-se para o tumulto... (x)
 
(x) A partir  da melodia “ Sonne erhellt unsere Welt...” ( Viva o Sol para
sempre)
 
 
ALEX – Por que é que vocês não fazem qualquer coisa?!
Temos de a socorrer! Ele está a bater numa mulher! Chamem
imediatamente a Milícia, estão a ouvir? Então?!
 
INNA – Tu aqui não estás em Chicago, meu querido. Aqui não
temos outro sistema. O sistema da chucha – sopras nela, mas
não sai som nenhum. (Boceja) Estamos tão bem aqui
sentados. A tua bata é muito prática, Olga, não se vê a
sujidade, gosto dela...
 
(Penetrantes gritos de dor através da parede)
 
ALEX – Espera, espera um segundo! Um minuto! Deixem-se
estar sentadas. Eu vou ver o que se passa! O ser humano
tem o dever moral de intervir! Senão a cadeia de elos da
casualidade acaba por estrangula-lo...
 
(Vai depressa à porta. Olga agarra-o)
 
OLGA (Grita) – Não vá, ele dá cabo de si! Não vá!
 
(Alexei liberta-se do abraço de Olga, abre a porta da casa e
bate precipitadamente na porta da casa vizinha)
 
INNA (Na cozinha, fuma) – Oh, meu Deus, como eu estou
farta desta merda toda... já não quero mesmo viver mais...
Oh, meu Deus!!! (Chora)
 
(Michail sai para as escadas)
 
ALEX – Ouça lá! O que é que está a fazer?! Não tem
vergonha?! A bater numa mulher! Pense bem. Não tem
vergonha!? Não se pode fazer uma coisa destas! Pense lá
bem!
 
MICH (Mede Alexei com os olhos, em voz baixa) – Põe-te a
mexer daqui!!!
 
OLGA (Grita da porta da sua casa) – Não lhe toques! Estás
outra vez de cabeça perdida. Não lhe toques, digo-te eu.
 
MICH (Em voz baixa) – Vocês os dois querem apanhar no
focinho, é? Belo parzinho! Ah, vocês, seus fedelhos
encardidos, seus..., ah, seus cães dum raio...
 
ALEX – Não pragueje na presença de uma senhora! Pare
com isso!
 
(Michael envolve Alexei com os dois braços, agarra-o pelos
cabelos, bate-lhe com a cabeça duas vezes no joelho – sem
piedade, sádico. Gritos; gemidos. Atira com Alexei para
dentro da casa de Olga. Fecha a porta com força, vai para a
sua casa. Alexei nem sequer mexe um músculo. Está deitado
no chão e não dá acordo de si. Olga grita, chora, tenta
levantá-lo)
 
OLGA – Eu bem lhe disse...Por que é que você lá tinha de ir
meter o nariz?
 
INNA (Sentada na cozinha) – Oh, meu Deus, se ao menos
alguém me levasse daqui! Se ao menos alguém viesse e me
levasse daqui! Seus cães de um raio, levem-me daqui! (Grita)
“Lá ao longe, do outro lado do rio, as luzes...”
 
OLGA – Ajuda-o, Inna! Ele matou-o! Matou-o!!! Está a
sangrar, vê! Ele matou
um desconhecido! Por favor, não morra! Ele está a morrer! O-
o-oh!
 
(Agarra Alexei, beija-o, sacode-o, suja-se de sangue. Alexei
liberta-se dela, empurra-a de si)
 
ALEX (Em voz baixa) – Vaca estúpida...Vaca estúpida...Sai
daqui!... Idiota! Fora! (Cambaleia até ao seu quarto, deixa-se
cair sobre a cama)
 
(Olga senta-se no chão e olha, como uma fera acossada, ora
para a porta do quarto de Alexei, ora para Inna, que na
cozinha continua a berrar a sua cantiga)
 
OLGA (Grita) – Oh, Senhor! Vem a mim! Ouve a minha prece.
Faz com que todos nós sejamos fulminados, que todos nós
desapareçamos, oh, Senhor! Leva-me para junto de ti,
Senhor! Faz com que eu morra!!!
 
INNA (Grita) – Levem-me daqui para fora! Levem-me daqui
para fora!!!
 
OLGA – A mim! Levem-me a mim daqui para fora! A mim! A
mim!
 
INNA – Não, a mim! A mim! Levem-me daqui para fora!!!
 
 
ESCURO
 
 
SEGUNDO ACTO
 
Segundo quadro
 
Duas semanas mais tarde. A mesma habitação, ao anoitecer.
Alexei está deitado em cima da cama no seu quarto. Geme,
bate com os punhos na almofada. Levanta-se, observa-se ao
espelho, toca na nódoa negra por baixo do olho. Volta a
deitar-se sobre a cama. De debaixo da cama retira uma
garrafa de vinho, bebe.
Olga sobe as escadas a correr, galga dois degraus de cada
vez, segura na mão um pedaço de papel, procura na mala a
chave. Toca à campainha.
 
OLGA – Alexei! Aljoschenka! Sou eu, a Olga! É a Olga!
Esqueci-me da chave, abre a porta, Aljoschenka! Não tenhas
medo! Aljoscha! Não tenhas medo!
 
(Assim que tocam à porta, Alexei esconde-se por um instante
debaixo da cama. Quando se apercebe de que é a Olga,
arrasta-se para fora e sacode o pó do fato, esbofeteia-se)
 
ALEX (Em voz baixa) – Cobarde! Cobarde! Cobarde! Patife!
Porco! Cobarde!
 
OLGA (Bate com os punhos na porta) – Aljoschenka! Abre a
porta! Sou eu! Não tenhas medo! Sou eu, a Olga! Não é ele,
Aljoschenka! Abre a porta!
 
ALEX (Dirige-se à porta, abre-a, Olga entra como um pé de
vento na habitação) – A gritares pelo prédio todo...não é ele,
não é ele...Já sabia...não é ele, não é ele...
 
OLGA (Não ouve o que Alexei lhe diz e corre para o quarto
dele, retira a mala de debaixo da cama, mete as coisa dele
dentro dela) – Acabou-se! Tem de ser ir embora, Aljoschenka!
Comprei-lhe um bilhete! Vá-se embora! Ainda hoje! Às duas
da madrugada passa um comboio! Pára três minutos! Vá-se
embora! Tirei-lhe bilhete até Leninegrado! Arrume as suas
coisas! Não ganha nada em cá ficar! Não pode ficar cá! Vá-se
embora! O Complexo safa-se bem sem você! Vou lá tratar de
tudo, está bem? È melhor ir-se embora! Quanto mais
depressa melhor! Arrume as suas coisas! Vamos, depressa!...
 
ALEX (Deita-se sobre a cama) Entras por aqui aos gritos,
passas o dia a gritar...e agora começas a dar ordens! Sei
muito bem o que tenho ou não tenho de fazer...
 
OLGA – Vá, levante-se! Tem de arrumar as suas coisas, já
lhe disse! Então? Não pode, de maneira nenhuma, ficar aqui,
Aljoschenka! Aqui ainda estupidifica completamente. Ele faz-
lhe saltar do crânio as últimas circunvoluções do seu cérebro.
Foi ele mesmo que o disse! Arrume as suas coisas,
Aljoschenka! Você é tão bom, você é tão bom! Mas aqui não
tem nada a ganhar! Deixe a nossa cidade o mais depressa
possível. Vá-se embora o mais depressa possível! (Chora) E
tudo por minha causa, sou uma estúpida, tudo por minha
causa....Mas por que é que eu me meti com ele, tudo por
minha causa....
 
ALEX – Mas o que é que tu tens a ver com o assunto?
Absolutamente nada, criatura...Eu sei bem por que é que ele
da outra vez e agora me... encheu de pancada. Porque eu
tive a coragem de defender uma mulher. E isso ele não me
pode perdoar. E em segundo lugar, ele é a incarnação da
vulgaridade e da estreiteza de vistas da vossa cidade. Ele não
me pode perdoar que eu tenha começado a luta contra o
pecado...
 
OLGA - Mas qual pecado qual o quê? Aljoschenka! Ele tem é
ciúmes, mais nada! Foi por causa disso que hoje te deu outra
tareia! É que eu durmo com ele, Aljoschenika! Quer dizer, eu
dantes dormia com ele! Estás a compreender?
 
ALEX – Não, não, ele é a corporização da vulgaridade, do
pecado e eu… e eu declarei-lhe guerra...
 
OLGA – Você é surdo ou o quê?!
 
ALEX (Depois de uma pausa) – Que quer dizer isso – dormi
com ele?
 
OLGA – Ora, quer dizer como os homens e as mulheres
dormem uns com os outros. Também não sei como é que isto
foi acontecer, até tenho vergonha de lhe estar a contar uma
coisa destas. Um dia aconteceu e depois foi-se repetindo. Eu
queria um filho, mas não bateu certo...só dá quando as
pessoas se amam, sem amor nada bate certo, compreende?
Oh sim, tenho tanta vergonha! Arrume as suas coisas, senão
ele ainda acaba consigo de vez. Vá-se embora, peço-lhe eu!
 
(Pausa longa)
 
ALEX – Tudo mentira...Mentes... Não pode ser...Tu és uma
pessoa espiritual...Não podes fazer uma coisa dessas...Isso
não pode ser...
 
OLGA – Sim, sim, sim, Aljoschenka! Também eu acreditei,
isto não pode ser, mas pode! Arrume as suas coisas, tem aqui
um bilhete de comboio, que eu lhe comprei, vá-se embora o
mais depressa possível!
 
ALEX (Cala-se, olha o tecto, ri-se) – Horrível...
Terrível...Sombrio... A terra dos tomates verdes... Onde é que
eu me vim meter...Um manicómio...Mas que coisa sombria...E
eu idiota a pensar – eu luto por ideais...Eu a pensar, ele não
me pode perdoar e por isso dá-me sovas em frente de toda a
gente.... E afinal vem-se a descobrir que... (Ri-se) Descobre-
se: tudo por causa desta beldade de aldeia...Oh, meu Deus,
oh, meu Deus, oh, meu Deus....Horrível!
Sombrio...Inacreditável...De morrer a rir, na verdade...
 
OLGA – Aqui tem o bilhete,  tome!
 
ALEX – Mas qual bilhete? Outra vez para os Liliputianos?
 
OLGA – Não, para Leninegrado...Oh, meu Deus! Se ao
menos nos levasses depressa! O mais depressa possível! Oh,
meu Deus! Arrume as suas coisas! Agora acabou, não se
ponha a olhar assim...
 
ALEX (Senta-se na cama e olha fixa e estupidamente um
determinado ponto) – Tens razão, querida amiga. Tens razão.
Tenho de me ir daqui embora o mais depressa possível. Pró
diabo com todos vocês. Merecem morrer todos, seus burros
velhos. Ponto final. Já chega. Não tenho jeito para
missionário. Não, graças a Deus, não. (Pega na garrafa,
bebe). Tudo um nojo...Um nojo o que acabas de me contar...
Simplesmente um nojo...Não toques nas minhas coisas! Não
te atrevas! Eu próprio faço a mala! Tira a mão daí! Não estás
a ouvir?!
 
OLGA – Por favor, não beba...Por que é que está a fazer isto?
Deite fora a
garrafa!
 
ALEX – Vai mas é pró diabo, avozinha...Andas práqui a
dançar-me debaixo do nariz... Bebo quando quiser! Mesmo
que não queiras. À tua frente!
 
OLGA - A culpa é minha! Eu! Não beba lá! Por que é que tem
de beber? Dantes você não bebia. Andava a escrever um
romance! Eu dei uma espreitadela, li algumas coisas. Na
verdade, não compreendi nada, mas era tão interessante...
Vá, arrume as suas coisas...
 
ALEX – O que é que tu leste?
 
OLGA – Ora, o seu romance...
 
ALEX – E quem é que te deu autorização?
 
OLGA - Estava ali em cima da mesa, dei uma espreitadela...
 
ALEX - Devias ter vergonha, a ler as coisas das outras
pessoas. (Olga senta-se no chão e arruma as coisas de
Alexei na mala) Isso é uma inconsciência. É revoltante. É o
mesmo que vasculhar na roupa suja das outras pessoas.
 
OLGA – Por que é que você põe as meias e as cuecas sujas
debaixo do colchão? Por que é que não mas deu, eu tinha-as
lavado. Não me fazia mossa nenhuma. Vá, faça a mala, vá,
aqui...
 
ALEX – Ouve lá...Ouve lá…Tu….Não te resta um pingo de
inteligência? Já não tens mais nada dentro dessa cabeça de
nabo?! Ficaste assim com o PC? Vaca estúpida! Tu não bates
lá muito bem, pois não? Vais ver os Liliputianos, é?
 
OLGA – Eles são tão cómicos...
 
ALEX – Olha para mim, eu é que sou cómico, eu, eu! Com a
tua mania de quereres fazer o bem, transformaste-me num
palhaço. Porque tu tens de satisfazer as tuas necessidades
mais baixas!!! Tudo por tua causa, como se veio a constatar.
Por causa desta vaca estúpida, por causa desta gata ronhosa
e eu a pensar... Débil mental! Nem sequer leu “Guerra e Paz”
com os seus trinta anos! Ou leste?!...
 
OLGA – Não...
 
ALEX - Mentiu-me, arrastou-me para a cama...Aparece-lhe
Deus Nosso Senhor! E eu tive pena dela, pensei, é uma
mulher espiritual, pensei, ninguém a compreende, todos a têm
por anormal e esta mulher espiritual vai logo para a cama com
o primeiro gajo que lhe aparece à frente! Horrível! Sombrio!
Um manicómio! Não fico aqui nem mais um segundo... Dá cá
o bilhete, tu, desgraçada!
 
(Percorre o quarto e apanha as suas coisas. Olga fica parada
com os braços caídos. De repente, atira-se ao chão, agarra
as pernas de Alexei e irrompe em choro)
 
OLGA – Oh, não se vá embora, meu querido, não me
abandone! Não me deixes! Eu amo-te tanto, tanto! Se te fores
embora, enforco-me! Não me deixes, Aljoschenka, meu
querido, meu amado, não me deixes!
 
ALEX – Larga-me a perna! Larga-me! Vai-te embora! Odeio-
te, mentirosa reles. Deixa-me! Não estás a ouvir?!
 
(De repente, as luzes da habitação e da escada apagam-se.
Pausa. Algo se agita)
 
(Num som estridente) Liga imediatamente a luz. Estás a
ouvir?! Pensas que me consegues deter? Liga a luz! Idiota,
liga a luz!
 
OLGA – Aljoschenka, está sempre a gritar comigo, e depois
arrepende-se... Não é culpa minha, Aljoschenka, que a
electricidade nos esteja sempre a faltar. Durante uma hora,
durante duas, durante três...às vezes um dia inteiro...
 
ALEX (Senta-se na cama e começa a rir) – Um verdadeiro
manicómio! Isto é mas é uma casa de doidos – Mas onde é
que eu havia de vir parar?! Não há luz! Se te queres enforcar
não há corda! Se te queres afogar – o rio cheira de tal
maneira a merda, que uma pessoa tem nojo de se meter
dentro de água! Se te queres ir embora – a electricidade é
cortada. Um verdadeiro manicómio! Oh, meu Deus! (Chora)
 
OLGA – Chore, vá, Aljoschenka... Ajuda...Quando a minha
mãe me bate, eu também choro sempre...Alivia... (Ergue-se,
de repente, levanta os braços no ar e olha fixamente) Oh,
shhh... Aljoscha... Shh...ele chegou...
 
ALEX – Quem?
 
OLGA – Ele chegou...Deus Nosso Senhor...Ali está ele
sentado, naquele canto, como num trono. Quer dizer que o
não está a ver...Ele chegou ...Ele chegou...
 
ALEX (Puxa as pernas para cima da cama, encolhe-se num
canto) – Então, então, não te ponhas para aí com coisas, não
te ponhas para aí com coisas...
 
OLGA (Permanece de pé, tensa como um arco, inspira o ar
em espasmos) – Shhh,
Aljoscha...Shhh...Ele está a chorar...Nunca antes tinha
chorado...Como se pingasse sangue, lágrimas
vermelhas...Deus Nosso Senhor, não chore mais, por favor
não chore, senão eu também choro...Isso não está bem! Não!
Deus Nosso Senhor! Tenho compaixão de vós! Isso não está
bem! Eu amo-o, nunca amei mais ninguém...Pare! Não se vá
embora, Deus Nosso senhor! Isso não está bem! Não! Não!
Não! Não!
 
(Olga cai no chão, dá murros e pontapés, histericamente, à
sua volta e chora alto. Pausa longa. Silêncio)
 
ALEX (Num murmúrio) – Então, então, pára imediatamente
com isso...Pára de fingires que és maluca...Que é que estás
para aí a fazer? Uma vaca estúpida assim não me assusta
nada.
 
(Pausa. Olga sentou-se no chão, aperta a cabeça com as
mãos, soluça, chora alto)
 
OLGA (Em voz baixa) – Ele disse-me, que nunca mais
volta...Nunca mais quer falar comigo...Insultou-me...Mas eu
não sou dessas como ele disse! Vou buscar...vou buscar uma
vela...Deve haver num lado qualquer um candeeiro a
petróleo...Tem de se desligar o frigorífico, para que não se
descongele tudo, para que não fique tudo pegajoso...tudo
pegajoso... (Levanta-se, cambaleia de um lado ao outro, entra
na cozinha)
 
ALEX (Sobre a cama, murmurando) Idiota! Vaca
estúpida...Para que não fique tudo pegajoso, tudo pegajoso...
tudo pegajoso...
 
(Na cozinha, Olga encontrou uma vela, acende-a. Batem à
porta. Alexei esconde-se debaixo da colcha. Olga vai, com
uma vela na mão, abrir a porta)
 
OLGA – Quem é?
 
INNA (Grita) – Abre a porta! Depressa, então?!
 
(Olga abre a porta. Inna irrompe como uma rabanada de
vento, corre daqui para ali, espalha as coisas de Alexei, pisa a
mala dele.)
 
INNA – Vamos! Vamos! Façam as malas! Depressa para o
abrigo antiaéreo. A electricidade já foi cortada! (Corre para a
sala grande) Olga! Levanta-te! Não durmas mais! O fim do
mundo já começou! Olga, onde é que tu estás?
 
OLGA (Espreitando de detrás da porta) – Aqui estou
eu...Deixa-te de maluquices, que é que aconteceu?
 
INNA (No quarto de Alexei) – Aljoscha, só levamos o mais
importante! Só coisas que valham a pena, Aljosscha!
Sobretudo, não te esqueças do teu romance! Vamos, em
passo de corrida! Já desligaram a electricidade, para que não
haja incêndios! Daqui a pouco, a terra começa a tremer,
começa daqui a pouco! E Deus Nosso Senhor vai-nos julgar a
todos nós, filhos de uma cadela!Oh, perdão! Levanta-te!
Vamos, depressa, então?!
 
ALEX (Senta-se sobre a cama) – O que é que se passa?
 
INNA – O terramoto!
 
ALEX – Não arranjaste outra desculpa melhor para
apareceres aqui?
 
INNA – Que está tu para aí a dizer, Aljoscha! Vamos, não
podemos perder  tempo! (Faz estalar os fechos da mala de
Alexei) Até já o disseram na televisão: o fim do mundo está a
começar! Foi o Juri Nikolajew que o disse. Desaparecemos
todos! Vamos, abrigamo-nos na cave, depressa, vamos! Por
que é que estão para aí sentados como se se tivessem
cagado nas cuecas, vocês, ó heróis! Vamos, já disse, então?!
 
ALEX – Quem é que disse o quê na televisão? (Cerra os
dentes) Outra vez o teu Leviatan?
 
INNA – Não. Da primeira vez foi o Leviatan. Mentiu-nos, o
parasita! Veio o Ryshkow e logo a seguir veio o Gorbatschow!
Em carne e osso! Tão triste que ele estava. Com um blusão
aos quadrados, sim senhor. Foi assim que ele se apresentou.
Ele andava sempre tão contente, enquanto andou ocupado
com a sua Perestroika. E agora tem uma cara tão triste! Foi o
que ele ganhou lá com a Perestroika dele, a merda do
homem! Aí está o fim do mundo! Ali estava ele assim,
pessoal, e por detrás dele a sua Rawilja Maksudowna. A
gravata dele tinha cá umas riscas! Os seus olhos – tão tristes
e infelizes. Os braços deram-me cá uma pena, que quase me
larguei a berrar, sei lá porquê...Então, que temos nós ainda a
perder, mas os braços, os braços dele! A Rawilja também
chorou, a pobrezinha! As mulheres lá do meu emprego
nenhuma delas a conseguia suportar! Chamavam-lhe
“Rawilja”, tinham-lhe cá uma raiva!
 
ALEX (Cerra os dentes) - Mas quem é afinal essa – Rawilja?
 
INNA – Porra! A Rawilja? A mulher dele, Raissa, a Raika! Ele
fez isto tudo por ela, todos os comités do partido têm o nome
dela: Rai-kom, Rai – ispolkom, Rai – sowjet! Não sabias? Na
nossa cidade só se fala disso, que ele a tem metido em todo o
lado, então? Não conheces a anedota: Ali estava a Rawilja a
chorar. E as pessoas perguntam-lhe: o que é que tu tens? E
ela diz: perdi as minhas senhas do açúcar? Vamos, vamos,
depressa para a cave, então?
 
(Volta a electricidade. Pausa. Ficam os três parados e
observam-se uns aos outros)
(Espantada) – Ora uma destas... Ligaram a luz...De certeza
um aviso...
 
ALEX (Depois de um silêncio) – Era só isto? O espectáculo
acabou?
(Senta-se no chão e mete as suas coisas na mala)
 
INNA (Pega na sua mala, olha para Alexei) – As pessoas
contaram-me... Por isso é que vim cá ter... Que estás tu a
fazer? Vais-te embora de vez, é?
 
ALEX – O que é que as pessoas te contaram?
 
INNA- Ora, que tu, ali mesmo no meio da praça, à frente dos
olhos de toda a gente, mesmo em frente do Monumento a
Lenine...que o Mischa te.. Esse Patife! A esse ainda lhe hei-
de polir o focinho! Ele aguenta-se, o patife!
 
ALEX (ri-se) – Já toda a gente sabe! A cidade inteira! Não,
não, tenho de me ir embora, o mais depressa possível! Antes
que a cidade ponha a minha roupa suja aos olhos de toda a
gente. Nada senão sair daqui!
 
INNA (Repentinamente) – Aljoscha! Meu querido! Leva-me
contigo, sim?
 
OLGA – Vai para casa, Inna...
 
INNA – Está mas é calada, ameixa seca! O assunto não te diz
respeito! Aljoscha! Leva-me contigo, sim? Não vou ser um
fardo para ti. Sozinha tenho medo de me ir embora,
acompanhada é mais divertido. Só precisas de indicar com o
nariz o caminho certo, sim? Não vou andar em cima de ti. Não
vou andar agarrada a ti como uma carraça, sim, Aljoscha?
Leva-me contigo, sim? Queres que me ponha de joelhos à tua
frente?! Vê, ajoelho-me à tua frente! Estás a ver? (Deixa-se
cair de joelhos, olha para cima para Alexei, suplicante).
 
ALEX- Que estás tu para aí a lamuriar, a encher-me os
ouvidos?! Mas que diabo queres tu de mim?! Que querem
vocês todos de mim? Queres que te enfie na mala ou o quê?
 
INNA (Lamentando-se) - Não deixo que te vás embora! Vou
contigo! És a minha última esperança! A última de todas!
Leva-me contigo! Senão apodreço aqui! Por dentro e por fora!
Alexei, leva-me contigo, sim? Aljoscha! Alexei! Leva-me
contigo!
 
OLGA - Pára de uma vez de fazeres de maluca, acalma-te,
deixaste-te
descontrolar outra vez, vaca estúpida, vê mas é se te vais
embora, e depressa!
 
INNA – Cala a boca! Se não me levas contigo, se tu me
não...Nesse caso faço uma asneira, estás a ouvir?! Se não
me levares daqui neste preciso momento, Alexei, então pego
numa faca e acabou-se, mesmo à frente dos teus olhos! Pego
numa faca e corto as goelas, percebido?! Espeto a faca de tal
maneira que tu até te vais envergonhar, percebido?! Não me
levas contigo? Não? Então eu vou...já te mostro...(Corre para
a cozinha)
 
OLGA - Senta-te! Senta-te! Tu já estás é com os copos, uma
pessoa passa com cada vergonha, senta-te...
 
INNA – Olga! Irmãzinha do meu coração! Olga! Onde é que
estão as nossas facas? Dá-me uma, depressa, sim? Corto-
me toda! Corto-me toda já de seguida, assim que a tiver!
Estás a ouvir, Olga?! (Encontra uma faca e corre para o
quarto de Alexei) Quer dizer que não me levas contigo? É?
Não podes fazer uma coisa dessas, Alexei, oh não! Vais-me
levar contigo, não é? Eu quero mesmo é viver, então?! Levas-
me contigo?
 
ALEX (Em voz baixa) - Larga a faca imediatamente!...Larga-a
já!!
 
INNA (Atira a faca para um canto) – Já a larguei...Que vá para
o diabo. Já a larguei, Aljoschenka! Levas-me contigo? Sim?
 
ALEX - Como todo este circo me sufoca! Arruma as tuas
coisas! Cá por mim, até pode vir a cidade toda em peso!
Venham todos daí, vá! Façam as malas! Levem também a
Olga! A tua Mamã! O teu Mischa! A Vossa Ira! Todos! Vá, de
que é que estão à espera? Vá! Eu salvo-vos a todos! Vá! Vá!
(Inna corre para Alexei, tenta beijar-lhe as mãos. Procura,
durante muito tempo, beijá-lo no peito, Alexei defende-se.
Vinda da janela, uma grande gritaria. Inna chora alto)
 
INNA – Oljetschka! Minha irmãzinha. Ele concordou! Leva-me
com ele! Ele concordou! Olja, Olja!...
(Corre para sala grande, descobre Olga, que está sentada no
sofá, e abana-a)
Minha querida irmãzinha! Olja! Vamo-nos embora! Anda,
Olga, acabou-se!
Vamos embora! Vamo-nos embora com o Aljoscha! Daqui
para fora! Maldito Lugar!
Pró diabo que o carregue com este buraco! Ao inferno com
ele! Vou para Leninegrado, até vou à Praça Vermelha. Vou
ver o mundo, Olja! Esta gente toda pode-me mas é lamber o
cu! Desculpa, Aljoscha, não volto a dizer, escapou-me,
desculpa! Sou capaz de ser uma mulher bem culta, sim
senhor!
 
(Alexei está sentado no seu quarto, cerra os dentes, bate com
o punho no joelho)
 
Olga, dá um beijo por mim à mãe! Não te esqueças! Olja!
Faz-nos qualquer coisa de comer para a viagem! O Aljoscha e
eu temos de voar para a estação! Sentamo-nos no comboio a
esfumaçar! Hurra! Vamos viver lá! Passa bem, Olja! Talvez
até venha a encontrar lá o meu antigo marido, agarro-lhe pela
asa! E digo-lhe: então aqui é que te vieste esconder, meu
patife, meu cadáver de afogado, deixaste-me encalhada, foi?
Vamos embora, Aljoschenka! (Corre pelas salas todas, atira
tudo ao ar)
 
OLGA (Em voz baixa) – Senta-te...Inna, tu já estás mesmo é
com os copos, senta-te... Tu não tens vergonha?
 
INNA (Não ouve Olga, agacha-se, mete-se debaixo da cama,
mete tomates na mala de mão) – Olja! Levamos estes
tomates para a viagem. Não tenhas medo, Olja! Também te
salvamos a ti! Nós somos os grandes salvadores. Levamos a
cidade inteira connosco. A merda da Schipilowski inteira! Até
ao último homem! Ainda têm de mandar vir Pretos para irem
bulir no complexo de merda lá deles! Desculpa, Aljoscha.
Escapou-me! Olga, não tenhas medo, é só chegarmos ao
novo lugar e mandamos buscar-te logo para o pé de nós.
Mandamos-te um telegrama. Um telegrama rápido como um
raio, Olja! Não te preocupes! Tiramos-te daqui para fora!
(Corre para o quarto de Alexei) Aljoscha! Mete tomates na
mala! Podemos comê-los na viagem! Aljoscha! Levo uma
garrafa comigo, quando estivermos sentados na carruagem,
tiramos os tomates, é o nosso petisco para acompanhar a
aguardente! Volto já, Aljoscha! Espera aqui um segundo!
Volto já! Vou só depressa buscar a minha caderneta de
poupanças! E o passaporte, Aljoscha! Volto num instantinho!
Não te mexas daí! Em caso algum, sim? Fica sentado e não
te mexas! Volto imediatamente!...
 
(Sai da habitação como um pé de vento e fecha a
porta.Calma. Silêncio. Um grito desesperado ouve-se através
da janela. Olga vai ter com Alexei.)
 
OLGA (Em voz baixa) – O que é que lhe disse? Por que é que
lhe mentiu?
 
ALEX- Está calada! Não menti a ninguém! As pessoas
mentem a si próprias! Foi ela própria que imaginou toda esta
situação, ela própria. Cá por mim, ela devia ir-se embora. Mas
tanto me faz.
 
OLGA – Você abandona-a mas é numa estação qualquer.
Depois para onde é que ela vai?
 
ALEX- Ela que se vá embora! Tanto se me dá. Em
Leninegrado tenho uma casa com três quartos. Chega para
todos... Compreendido?
 
OLGA - Uma vez você recebeu uma carta dos seus pais, vi o
remetente...
 
ALEX – Náaa, inacreditável! Ela bisbilhotou todos os meus
papéis. Ela mete-me o nariz na roupa suja! Lê as minhas
cartas!
 
OLGA -  Não li carta nenhuma de outra pessoa...Não é
verdade! Apenas o remetente! Cartas de outras pessoas
nunca li! Que é que eu podia fazer, se os seus pais
escreveram o remetente no envelope? Ao escrevê-lo, deviam
levar em linha de conta que as pessoas o podem ler! O
senhor não está em Leninegrado! E o seu romance li-o
porque você disse que o escreveu para toda a gente! Para
todas as pessoas! E eu também sou uma pessoa! Você disse,
que, com o romance, queria transformar todas as pessoas. E
eu quero ser transformada! (Grita) E a sua roupa suja estava
a aparecer por baixo do colchão, quando estava a lavar o
chão do seu quarto e tive pena de si! E foi só isso! Vá-se
embora daqui o mais depressa possível e não me chateie
mais. Toda a minha infelicidade é você que a causa! Vá-se
embora! Eu pensava que você era boa pessoa. Mas você é
mau! Está sempre a representar como um actor no cinema.
Engana-se a si próprio! Você não é o Louis de Funés e nós
não somos nenhuma comédia, está claro? Vá-se embora,
Aljoscha! Você dá pena! Vá-se embora e depressa!
 
ALEX- Cala-te! Cala-te! A fazer-se de boa samaritana! Agora
até tem pena de mim também! Tu, minha amiba, tu estás no
degrau mais baixo da evolução! Vai lá ter com o merdoso do
teu gajo, desaparece daqui, percebeste?
 
OLGA – Você dá-me tanta pena...
 
ALEX – Cala a boca, já te disse! Senão ainda te encho de
porrada! (Pausa) Espera lá. Mas que estou eu a fazer? Se
agora me for embora, todos vão pensar que é por tua causa,
é? A cidade inteira? Que ele me deu uma sova por tua causa,
é? (Bebe da garrafa) Levei na cara sem nenhuma razão
aparente, só isso?
 
OLGA (Escapa-se pela porta, vai para a sala grande): Não,
Aljoscha...Que vai fazer... Não...Você não é desses...Você
agora está é bêbedo...Vá de uma vez para a estação... Não,
Aljoscha...não, não Deus não lhe perdoará uma coisa
dessas...
 
ALEX – Bem gostava eu de saber o que me impede. Os
outros podem mas eu não, é? Alguma vez se há-de começar,
não? Vais-me mostrar tudo...Quanto tempo se pode manter a
inocência? Basta, chegou a hora. A sordidez do mundo
também acordou em mim – chegou o momento...anda cá,
então?
 
OLGA (Vai para a sala grande, não perde Alex de vista,
aterrorizada) – Não, não... Deus vai castigá-lo, Deus vê tudo,
tudo...
 
ALEX – Por que haveria de me castigar? Por que razão? Tu
mesma disseste, já não existe Deus, foi-se embora...Ora, ora!
Despe-te, exactamente como te despiste à frente dele. Que
fizeste? Dançaste à frente dele, foi? E à minha frente não
queres? Vá, dança, mostra que espécie de mulher és, então!
 
OLGA – Não, não, Aljoschenka, suplico-lhe, querido, não me
agarre, por favor, não, por favor, não...
 
ALEX – Muito bem! Queres gozar comigo! Ela mesma me
arrastou para a cama e agora? Vá, anda cá, deita-te aqui, tu,
minha mentirosa ordinária, Murlin Murlo, vá, anda...
 
(Agarra Olga, atira-a para o sofá no quarto escuro. Escurece.)
 
 
TERCEIRO QUADRO
 
Olga e Alexei estão sentados no sofá no quarto escuro.
Ambos em silêncio.
 
ALEX (tosse) Ora...Ora...Tenho de me ir embora...No escuro
aqui é terrível... No escuro aqui é terrível... uma frase forte...
tenho de tomar nota dela. Passa bem.
(Levanta-se, vai depressa ao seu quarto. Olga fica sentada no
quarto escuro, fixa, apática, o chão, balanceia de um lado
para o outro, aperta a cabeça entre as mãos. Alex fecha a
mala, olha furtivamente em volta, desgrenha os cabelos. Tira
da mala um pacote de bombons, pega no retrato de
Hemingway e procura metê-lo na mala. Não o consegue.
Leva a mala para o corredor. Vai ter com Olga.)
Bem, era...Era...Vou-me embora...Adeus...aqui tens o dinheiro
do bilhete, isto é para a tua mãe, pelo quarto – aqui...dá-
lho...Isto é para ti...Ainda os tinha de reserva... (Passa-os
apressadamente a Olga) Bem...E isto é para a Inna (Coloca o
retrato de Hemingway junto a Olga, esfrega as mãos uma na
outra). Ela tem muito sentido de humor, hem? Vai perceber
tudo...Ela percebe uma brincadeira, certo...Ela há-de
compreender, que tudo não passou de
uma brincadeira...Ela não queria realmente ir-se embora...
Por causa do tédio, mete-se-lhes cada uma na cabeça...Diz-
lhe que eu estava bêbedo, foi uma
brincadeira...Eu depois escrevo-te...
(O retrato de Hemingway fica de pernas para o ar. Olga
levanta o olhar para Alexei, observa-o longamente com
atenção).
Dá-lhe cumprimentos da minha parte, sim? Agora vou-me
embora...Não fico aqui a apodrecer...Tudo vai ficar bem, sim?
 
(Olga cala-se. Observa Alexei de olhos muito abertos. Alexei
apressa-se com a mala em direcção à porta, sai para as
escadas, choca com Michail, que havia já um bocado ali
estava a fumar. Ambos se observam longamente. Michail
cospe para a clarabóia em baixo.)
 
MICH – O que é que foi? Ainda achas que levaste poucas, é?
Ou já te chega? Se foram poucas, aqui o magistrado do
ministério público ainda te arranja mais qualquer coisa...(Ri-
se.) Levas a roupa toda, é? Ou vais deitar as garrafas ao lixo?
 
ALEX (Aperta a mala contra si, murmura) – Não me toque...
Está a ouvir?! Ai de si se me toca!!
 
MICH (Cala-se) – Não vou sujar as mãos em ti...Estou para
aqui feito parvo sem fazer nada, mas quando o tempo se
acabar, então tu estás feito...percebido? Ou queres levar mais
umas para a despedida, é?
 
ALEX – Não...Não...Não..Vou-me já embora! (Passa de lado,
encolhendo-se, por Michail precipita-se para as escadas e
desce-as depressa, até mais não poder. Desaparece.)
 
(Michail fuma e ri-se. Cospe para baixo. Entra na sua
casa.Olga permanece com o retrato de Hemingway e os
bombons no quarto escuro. Vai à cozinha, deita os bombons
no caixote do lixo. Volta atrás. Arranca das paredes do quarto
escuro os posters dos artistas e amarfanha-os. Mete as
pedrinhas, flores secas, conchas na aba do casaco – leva
tudo para a cozinha e deita tudo no caixote do lixo. Volta para
a sala grande, olha aterrorizada em volta. Senta-se. Olha em
silêncio o chão. Michail sai da sua casa para as escadas, na
mão segura uma garrafa de vinho. Toca a campainha de
Olga)
 
MICH (Sussurrando) - Olja! Olja! Abre a porta! Olja! Sou eu, o
teu Mischa! Olja, abre a porta!
 
(Olga abre a porta, olha Michail e cala-se)
Então...
 
(Entra para a sala, fecha a porta, aperta Olga a si e beija-a)
 
Então...Está tudo bem outra vez?...Abriste-me a porta...A tua
mãe não está? Trouxe uma garrafa...Podes-me dar os
parabéns...A minha miúda esperta, a minha espectacular
miúda...Como é que estás, Olja? Foi-se embora, foi? Estás a
ver como eu sou forte, como todos têm medo de mim! Só lhe
dei uns toques uma vez, e ele pôs-se logo a andar, hem? Fiz
eu muito bem, mesmo muito bem, minha Oljetschka...Quando
ele apareceu na fotografia, tu tornaste-te completamente
diferente... Como se já não fosses a minha
Oljetschka...Ouve lá, a minha ideia: vou tirar todos os meses
trinta rublos do governo da casa e dá-los à tua mãe, mas não
quero que aceitem mais hóspedes, sim? Não aceitam mais
ninguém, está bem? Então, Oljetschka, Olenka? Que tens tu?
Está tudo bem outra vez? Vamos fazer de conta que nada se
passou, sim? Anda, vamos, vamos ali para o teu quarto
escuro, então? Anda, Oljetschka, minha querida. Olja, Olja,
Olja...
 
(Beija Olga, abraça-a, ela permanece imóvel. Inna sobe as
escadas a correr. Dá pontapés na porta e grita. Michail abre a
porta)
 
INNA – (Entra a correr na sala, empurra Michail e Olga para o
lado) – Aljoscha! Meu Aljoschenka! Anda, vamo-nos embora!
Estou pronta! Tenho tudo o que precisamos! Já cá estou,
Aljoscha! Passa bem, Schipilpwski da merda! Finito! Passem
todos muito bem! Vamo-nos pôr a mexer! Ora bem! Hurra!
Aljoschenka!
 
(Percorre as salas todas, precipita-se para as escadas. Olga
põe-se à anela e olha a rua. Michail fica à porta)
 
INNA (Agarra Michail pelo peito) – Mischa! Mischa! Alguém
esteve cá à minha procura, foi? Alguém perguntou por mim,
não? E para onde é que foi? Alguém perguntou por mim,
esteve à minha procura, não?
 
MICH – Sim, estiveram à tua procura...Um gajo com um
machado, e dois com um
caixão... (Ri-se) Quem é que precisa de ti, quem é que
procura por ti...
 
INNA (Precipita-se para Olga) – A-a, ele já se foi embora há
muito tempo, sim, Olga? Certo! Já chegou à bilheteira. Eu
também preciso ainda de um bilhete! Vamos viajar em
primeira classe! Em segunda classe nunca mais! Tenho de ir
a correr, Olja! Passa bem, Olja. Depois escrevo-te de lá! Oh,
Mischa, despeço-me de ti! Quase não te via! Despeço-me de
ti! Adeus.
Passem bem, eu vou-me embora!
 
(Olga olha em silêncio pela janela. Inna olha transtornada, ora
para Olga, ora para Michail) – Oljetschka, o que é que foi,
irmãzinha? Por que é que te não despedes, então?
 
(Olga cala-se)
 
Tu és uma mentirosa reles, diz-lho, Mischa! Tu és um
monstro! Tu tens tudo, tudo! Ao menos tens este aborto aqui,
ele pelo menos vem ter contigo uma vez por semana, mas eu
não tenho ninguém! Tu pensas lá que eu não sei de nada?
Toda a cidade sabe! Ele contou-o, feito gabarola, a toda a
gente. Toda a gente o sabe! Tu, tu, Murlin Murlo! Vais ver o
que arranjas, se não me deixas ir embora ! Tu tens é inveja!
Ora esta! Não me querem deixar ir embora. Já estava tudo
combinado, íamos viajar, e ela não me deixa ir! És uma
mentirosa de um raio, Miss Capacho mil novecentos e oitenta,
é o que tu és! Deixa-me ir embora! Deixa-me ir embora.
Deixa-me ir já! Estás a ouvir!? (Senta-se no sofá e chora alto)
Olja! Olja! A quem tu tratas assim! Ao comandante! Às fileiras
da unidade a desfilar!
 
MICH – Então, então, não estejas para aí assim a gritar...
 
OLGA – Ainda o alcanças, vai...
 
INNA (Chora alto) – Como é que eu posso ir, se tu estás
assim tão zangada comigo, se tu não me deixas, se tu não
queres que eu vá. Como é que eu posso ir! Olja! Minha
querida irmãzinha. És uma mentirosa de um raio, é o que és!
Uma mentirosa de um raio.
 
(Olga apanha o retrato de Hemingway e dá-o a Inna)
 
O que é isto? É para mim ou quê? É mesmo uma prenda?
Para recordação, ou quê? Para que me lembre dele para
sempre, é? Ficaste com a incumbência de me dar isso, foi?
 
(Olga olha em silêncio pela janela. Inna beija o retrato a
chorar alto)
 
E este quem é? Mas o que é isto, por amor de Deus? Será
que é ele mesmo? Em mais velho ou o quê? Estou-me a
cagar para este caralho velho!! Preciso de um vivo, vivo, vivo,
não de um morto!
 
MICH – Agora já chega, meninas, sim? Vocês comeram
medronhos, ou quê? É mesmo a sério! Não percebo ponta
dum corno do que é que vos pôs para aqui aos gritos! É algo
a ver com aquele sujeitinho? Não encontraram coisa melhor,
suas idiotas? Vá, vamos para a cozinha, vá, trouxe uma
garrafinha. Tenho uma coisa a festejar! Vamos esquecer isto
tudo, sim? Vá, podem-me dar os parabéns, vamos para a
cozinha, vá. Nasceu-me um filho, hoje nasceu-me um filho,
estão a ouvir? Mas que alegria! Vá, vamos para a cozinha!
 
INNA (Sentada no sofá) – Vai para o inferno mais o teu filho!
Tu, idiota chapado! Nasceu-lhe um filho! E por isso temos de
nos alegrar! Dar pulos até ao tecto! Mijarmo-nos todas de
alegria! Os coelhos aumentam por aqui – ninhada atrás de
ninhada, e nós temos de regozijar! Criam crianças como se as
produzissem em cadeia...
 
MICH – Pronto, já chega, não grites dessa maneira, vamos
para a cozinha...
 
(Empurra a Inna para o corredor e ela reage)
 
INNA – Não me toques! Dá mas é para cá a garrafa! Eu
também tenho uma, se queres mesmo saber! (Tira uma
garrafa da mala, beija-a, arranca a tampa com os dentes.
Uiva.) Vocês não apanham nada, cães dum raio! Vou-me
embebedar sozinha! Vomito-me toda, enjavardo-me no chão.
Vou mamar até à morte, mas vocês não levam nada daqui,
seus porcos, seus burros, seus carneiros, seus filhos da puta.
Nada levam daqui! Nasceu-lhe um filho...E eu – eu não tenho
ninguém!!! E também não me vai nascer ninguém, estás a
ouvir, estás a ouvir?!!!
 
(Vai para o quarto de Alexei e senta-se na cama)
 
MICH (aproxima-se de Olga e acaricia-lhe os ombros) – Tu
não me vais estragar esta alegria, pois não? Vá lá, dá-me os
parabéns, é mesmo um grande acontecimento...
 
OLGA (Em voz baixa) – Se eu tiver um filho, estrangulo-o...
Com as minhas próprias mãos...Estrangulo-o com estes
dedos aqui...estrangulo-o, estrangulo-o...
 
MICH – Não, não tens nenhum, não tenhas medo... Eu tomo
cuidado, eu sei como se faz, os homens ensinaram-me... Não
tenhas medo, Olja, não tens nenhum...Então? Anda! Anda,
sentamo-nos na cozinha, sim? Olja, sim?
 
OLGA – Talvez se dê agora? Já é mais que tempo!
 
MICH – Se dê o quê?
 
OLGA – O terramoto!
 
MICH – Não se te pode dizer nada. Os meus colegas
disseram-me hoje que
isso é tudo uma maluquice pegada. Não se vai dar catástrofe
nenhuma. Mas que palermice: as estrelas caem do céu, o mar
galga as margens, chuva, dilúvio, granizo...tudo maluquice.
Não se dá nada. Do nada nada vem. (Ri-se) Desde o início
que não acreditei em nada disso, Olja...é tudo
maluquice...todos contaram essas palermices, até eu. Para se
ter algum disparate para dizer, senão é tudo tão
desengraçado...Olja, as coisas connosco estão como
dantes, é? Olja, a minha Oljetschka...
 
OLGA – Não...Daqui a pouco dá-se...daqui a pouco...daqui a
pouco...
 
MICH – Podes acreditar em mim: se prometi comprar-te
collants, então é porque os consigo arranjar. Sem falta! É
como se já os tivesse no bolso! Acredita em mim! Não
precisas de hesitar mais, estás ouvir, Olja? Já não precisas
de estar zangada...
 
OLGA – Daqui a pouco dá-se...tem de se dar daqui a
pouco...Daqui a pouco dá-se...
 
MICH – Dás-me os parabéns ou não, Olja? Nasceu-me um
filho, um filho, Olja!
Ele é bem forte! É parecido comigo, dizem! Então, Olja? Estás
contente por mim ou não? Um filho, Olja, um filho! Bom, se
não queres ir para a cozinha, então vamos para o teu quarto,
vá, Oljetschka...acendemos uma vela, pomo-nos à vontade,
que tal, Oljetschka?...
 
OLGA – Por que me abandonou Deus? Por que me virou as
costas? Que foi que eu fiz de mal? Que culpa é que eu
carrego sobre mim? Quem me poderá dizer, por que razão
ele me abandonou?
 
MICH – Está tudo bem, anda lá...Pões-te a falar, a falar...Está
tudo bem, não faças nenhuma tolice, anda, vá, anda.
 
OLGA – Por que razão me abandonou Deus? Por que razão?
 
(Michail cai de joelhos, beija os pés a Olga)
 
MICH – Oljenka, anda, vamos para o teu quarto...Vem, minha
querida, minha mais que tudo, vem depressa, vem, Oljenka...
amo-te, Olja...amo-te...ninguém te ama como eu... Vem
depressa...
 
(Inna está sentada sobre a cama de Alexei, bebe pela garrafa.
Beija as almofadas, chora alto, canta tristemente, a plenos
pulmões)
 
INNA – “Lá ao longe, do outro lado do rio, a luz já se
distingue! A              
Vermelho o sol no céu azul profundo! B
Cem cavaleiros vêem-se, do exército de Budjonny! C
Vindo para casa da sangrenta batalha!!!” B                      
(ver atrás)
 
MICH – (chora) – Anda, Oljenka, anda, peço-te por tudo,
anda...
 
OLGA – Meu Deus...Vem a mim, Meu De-e-us!!!...Vem a mim,
oh, Meu
Deus!!! Meu
Deus!!!...Vem a mim, Meu Deus!!!
 
(Um triste lamento expande-se por sobre a nocturna cidade
enevoada. Ela
chama, chama, como se tivesse perdido o juízo. Grita como
um animal
ferido...)
 
 
ESCURO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                                           

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