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Sumário

Capa

Folha de rosto

Sumário

Introdução — Lawrence Flores Pereira e Kathrin Holzermayr

Rosenfield

Nota sobre o texto

Nota sobre a tradução

A TRAGÉDIA DE REI LEAR

Notas

Abreviações e referências bibliográficas


REI LEAR

WILLIAM SHAKESPEARE nasceu em Stratford-upon-Avon, em 1564, filho

de um comerciante bem-sucedido. Casou-se aos dezoito anos com

Anne Hathaway, com quem teve três filhos. Estabelecido em Londres

durante o reinado de Elizabeth I, produziria o grosso de sua obra —

tragédias e comédias, além de um conjunto de sonetos — entre os

anos 1590 e 1613. É universalmente reconhecido como o maior

dramaturgo de todos os tempos graças a peças como Macbeth,

Ricardo III, Otelo, Rei Lear, entre outras. Suas peças investigam,

expõem e aprofundam as motivações, os desejos, as ambições políticas

e as mentiras que contamos para os outros e para nós mesmos — sem

esquecer muitas vezes o lado cômico e patético da existência humana.

Exausto, retornou à sua cidade natal por volta do ano de 1613, onde

morreria, aos 51 anos, em 1616.

LAWRENCE FLORES PEREIRA é professor da Universidade Federal de Santa

Maria (RS). É pós-doutor e professor pesquisador do Massachusetts

Center for Renaissance Studies, na Universidade de Massachusetts,

Amherst. Suas publicações incluem um livro de poemas, Engano

especular (sob o pseudônimo Lawrence Salaberry), e inúmeras


traduções poéticas: Antígona, de Sófocles, poesia barroca francesa,

Charles Baudelaire, T.S. Eliot, e Hamlet e Otelo, de Shakespeare. É

organizador de uma série de volumes sobre a literatura dos séculos XVI

e XVII e editor da revista acadêmica Philia &Filia (em parceria com

Kathrin Holzermayr Rosenfield).

KATHRIN HOLZERMAYR ROSENFIELD é professora titular de filosofia e

literatura na UFRGS, autora de vários livros sobre literatura, filosofia e

arte. Aborda com perspectivas filosóficas, antropológicas e

psicanalíticas autores de diversas literaturas: Machado de Assis e João

Guimarães Rosa, Simões Lopes Neto e Clarice Lispector, Shakespeare,

Goethe e J. M. Coetzee, T.S. Eliot, Charles Baudelaire e Sófocles. Seu

ensaio Desenveredando Rosa: A obra de J. G. Rosa recebeu em 2005 o

prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional.


Introdução

LAWRENCE FLORES PEREIRA E KATHRIN HOLZERMAYR ROSENFIELD

Considerado muitas vezes o ápice da criação dramática de

Shakespeare, Rei Lear foi para os românticos um exemplo maior do

sublime na literatura. Bradley viu nessa tragédia uma figura

monumental como as esculturas de Michelangelo, mas duvidou que o

excesso de efeitos dramáticos da loucura e do sofrimento pudessem ser

representados de fato no palco. O tratamento do lado sombrio da

natureza humana, da traição e da crueldade, da miséria e da abjeção, e

a ausência de uma redenção consistente, levaram muitos críticos

modernos a associar seu espetáculo a criações similares do pessimismo

e do absurdo no teatro e na literatura modernos. Marjorie Garber nos

lembra que Jan Kott e Maynard Mack vislumbraram ali os horrores

da consciência do pós-guerra.1

Nenhuma peça de Shakespeare foi tão longe na combinatória de

traços grotescos, fantásticos e violentos, nos contrastes gritantes do

humano, do desumano e do inumano evocados em cenas absurdas de

efeito estrondoso e de ardis improváveis, que envolvem a mente do

leitor numa névoa poderosa. Lido em ritmo rápido, o drama se parece

com um emaranhado caótico e terrível. As comparações entre Rei

Lear e peças do modernismo tardio, como Esperando Godot ou ainda


Fim de partida, de Beckett, fizeram com que muitos a vissem como um

precedente para o pessimismo existencialista, contudo é mais provável

que Beckett tenha sido um bom leitor de Shakespeare.2 Esses elos

anacrônicos tecidos pela crítica, interessantes e válidos como novas

perspectivas sobre os problemas existenciais de Shakespeare, não raro

desviaram a atenção e obscureceram o universo simbólico próprio da

peça, as referências religiosas e políticas sobre as quais ela se assenta.

Misto único de conflito familiar e história política de divisão de reino,

de conto sobre o amor e o ódio entre pais e filhos, talvez mesmo o

desenvolvimento de um fragmento contextual problemático das

concepções políticas vigentes no início do século XVII inglês, Rei Lear,

ainda que evoque o niilismo da modernidade, opera com as noções do

século XVI e das primeiras décadas do XVII.

Shakespeare não foi o primeiro a tratar da temática do rei lendário

Leir, que data do século XII, da Historia regum Britanniae [História

dos reis da Bretanha], do monge Geoffrey de Monmouth,3 uma

história que foi retomada inúmeras vezes, em particular pelos

coetâneos de Shakespeare. Raphael Holinshed, na sua obra Chronicle

of England, Scotland and Ireland [Crônica da Inglaterra, Escócia e

Irlanda] (1577-);4 contou também a história de Lear, em grande parte

baseado em Monmouth. Foi possivelmente uma fonte de Shakespeare

para a escrita de Rei Lear. De modo geral, essas narrativas,

pretensamente históricas, se originaram de contos e lendas antigas de

sabor folclórico, e Lear não pode ser considerado uma figura

histórica. Outro texto que impactou Shakespeare foi um livro célebre

em sua época, o Mirror for Magistrates [Espelho para os

magistrados],5 no qual se encontra também uma história de Cordélia,

que aparece ali como um fantasma que conta a sua vida e


infortúnios.6 Shakespeare também se inspirou no livro II, canto X, do

poema épico The Faerie Queene [A rainha das fadas] (1590), de

Edmund Spenser, no qual aparece uma filha mais nova, Cordélia, que

se suicida por enforcamento.7

A história de Lear e suas filhas constitui o centro da peça de

Shakespeare. No entanto, quando retomamos a história dessa criação,

não há nada mais impressionante do que a decisão de Shakespeare de

introduzir em sua peça o segundo enredo sobre o destino de

Gloucester e de seus dois filhos, Edgar e Edmund, para o qual buscou

como fonte a Arcadia de Philip Sidney.8 Embora tenha seguido de

perto a narrativa constante na Arcadia sobre o rei da Paflagônia e seus

dois filhos, na caracterização do louco Pobre Tom ele se apropriou da

linguagem do panfleto satírico, A Declaration of Egregious Popish

Impostures [Uma apresentação de notórias imposturas papais] (1603),

de Samuel Harsnett, que descreve satiricamente os exorcismos

católicos na Inglaterra.9 Finalmente, por certo conheceu a peça The

True Chronicle History of King Leir and His Three Daughters,

Gonorill, Ragan and Cordella [A verdadeira crônica histórica do rei

Leir e suas três filhas, Gonorill, Ragan e Cordella], de autoria

desconhecida hoje e que teve impacto em muitas cenas de Rei Lear.10

O que Shakespeare desenvolve das lendas e crônicas históricas em

Rei Lear é sobretudo a abertura da divisão do reino com nítido sabor

folclórico: o velho rei anuncia diante da corte e de suas filhas que

pretende dividir seu reino em três, confiando as partes às suas filhas e

aos genros que ele declara como “forças mais jovens” e mais aptas a

governar, enquanto ele mesmo pretende “rastejar rumo à morte”,

renunciando às responsabilidades de sua realeza. No ambivalente

ritual de suposta abdicação, pede provas de afeição amorosa às suas


filhas como condição para o prêmio da formidável herança. Ainda que

para um público moderno essa retirada e renúncia ao poder se

pareçam com decisões típicas de um rei ancião, no mundo de

Shakespeare o “grave intento” de Lear (1.1.36) de dividir o seu reino

representava um escândalo, e toda a formalidade cerimoniosa do

início da peça, uma paródia da noção unitária da realeza medieval,

elisabetana e jacobina. Para entender melhor a tensão dramática que

Shakespeare conferiu à sua versão, propomos um pequeno desvio por

algumas das versões anteriores e pelo contexto histórico.

A DIVISÃO DO REINO

A divisão do reino que dá início à peça é uma alusão velada a um

momento político de transformação da Inglaterra. O período entre

1604 e 1607 foi marcado pelas tentativas de James VI e I, rei da Escócia e

da Inglaterra, de “convencer o Parlamento a aprovar a união da

Escócia e da Inglaterra em uma única nação”.11 É apenas natural que

nesse período apareça uma insistente exaltação das virtudes da união e

uma idealização de todas as noções e imagens da integridade herdadas

do feudalismo centralizador dos Plantagenetas e dos Tudor.

Nesse contexto, a decisão de Lear de fatiar o reino seria uma

anomalia inquietante, aventura e aposta no acaso que um monarca

prudente deveria evitar. A peça tem, portanto, valor de

contraexemplo, encenando ações que um rei não deve fazer. James

publicara, em 1599, o Basilikon Doron,12 endereçado ao seu filho,

príncipe Henry, com conselhos sobre as práticas e os princípios do

bem reinar: o maior perigo é a “semente da divisão e da discórdia”, a

fragmentação, a desunião e a ruptura, que devem ser evitadas a todo


custo. Aconselhava o filho a nunca dividir o reino, mas unificá-lo em

torno de si ou de seu herdeiro eleito. Aos outros filhos se entregariam

apenas propriedades. Ao expor sua concepção, James recorria à

própria tradição bíblica. Abraão não entregara o reino inteiro,

unificado, a seu filho Isaac, e não dera aos restantes apenas possessões

privadas? Quando James ascende ao trono da Inglaterra, uma edição

da obra é publicada com adições que lembravam os leitores ingleses

“da divisão dos reinos na história da Bretanha, divisão que levou a

séculos de derramamento de sangue e discórdia: tal como aconteceu

com essa ilha, pela divisão e transferência aos três filhos de Bruto,

Locrine, Albanact e Camber”.13

James estava conjurando a concepção oficial de ordem, que, numa

rede complexa de associações, refletia a visão hierárquica de mundo

na doutrinação dos Tudor e dos Stuart. Ao evocar a desunião e as

lutas “fratricidas” entre as casas de York e Lancaster, lembrava as

virtudes da unidade centrada na coroa. Pensava também em termos

analógicos. A história presente deveria espelhar a história bíblica e

divina. Em Da união dos reinos da Escócia e Inglaterra, enfatiza a

continuidade ao vincular Estado e família, sobretudo entre rei e

patriarca.

Aquilo que Deus ligou, que homem algum o separe. Eu sou o esposo e toda a ilha é

minha esposa legítima. Eu sou a cabeça e ela é meu corpo. Eu sou o pastor e ela, meu

rebanho. Espero assim que nenhum homem seja tão insensato de pensar que eu, que sou

um rei cristão submetido ao Evangelho, poderia ser um polígamo e o marido de duas

esposas.14

A peça de Shakespeare Rei Lear foi encenada diante da corte e do

rei, tal como nos informa o frontispício da primeira edição in-Quarto,

de 1608.
É fascinante imaginar Rei Lear, esse espetáculo de rebaixamento do

poder monárquico, encenado diante de um rei tão sequioso de suas

prerrogativas: o entrelaçamento do papel paterno e patriarcal com

conceitos de governança e poder, bem como a convergência

inescapável entre noções de gens e noções políticas. O contrário estava

também implicado: o espetáculo da divisão ou fragmentação do reino

que resultava da queda das prerrogativas. Encenações de quedas

monárquicas diante de monarcas eram comuns e, pelo menos

nominalmente, justificavam-se como exposição de contraexemplos

lastimáveis, como alertas ao monarca e guias sobre as faltas potenciais

cujas causas deviam ser mostradas para melhor preveni-las. O tema da

divisão apareceu em encenações na corte elisabetana já desde a década

de 1560. Gorboduc, or Ferrex and Porrex, peça composta por Thomas

Sackville e Thomas Norton, encenada diante da rainha Elizabeth em

1561, explorava a política real da divisão do reino e suas consequências

nefastas em guerras fratricidas. Na peça, a decisão feita pelo rei

Gorboduc de dividir o reino entre seus dois filhos, Ferrex e Porrex, é

criticada pelos seus conselheiros, do mesmo modo que Kent critica

Lear por dividir o reino.15

Essa questão está esboçada na primeira cena de Rei Lear, que nos

coloca frente a frente com a liturgia de uma corte aparentemente

estável, mas que de chofre cairá na precariedade, ameaçando a paz,

sempre frágil na tragédia shakespeariana. A entrada em cena de Lear

segue o parâmetro monárquico da cerimonia litúrgica, em que se

esperam os discursos previsíveis. Lear, entretanto, entrelaça nesse

protocolo público seus afetos pessoais e pouco régios, e sua reação

desproporcional à sinceridade de Cordélia transforma o ato litúrgico


em uma altercação reveladora do desequilíbrio do chefe da família

real.

KING LEIR: A LENDA RACIONALIZADA

Boa parte desses elementos já se encontravam, ainda que de modo

sintético e lendário, em antigas versões da história de Lear.

Shakespeare resgatou em parte os traços concisos da lenda de Lear

constante em Monmouth e em Holinshed, na qual momentos similares

ao da primeira cena aparecem. Mais importante, contudo, para a

primeira cena foi a peça já mencionada The True Chronicle History of

King Leir, que foi encenada em 1594, única peça que, antes de Rei

Lear, adaptava para o teatro londrino a antiga lenda. O autor daquela

obra, ainda hoje indefinido,16 buscou dar à cena da divisão e do teste

de amor uma verossimilhança que Shakespeare dispensou com

deliberação, talvez para intensificar o caráter enigmático da peça e da

natureza humana. Em King Leir, a cena do teste e da divisão é

precedida por uma cena em que Leir discute com seu seguidor

Skalliger um truque para a divisão do reino que convenceria Cordella

a escolher o pretendente predileto do rei. O autor de King Leir não

apresentava, de início, um Leir descontrolado, mas alguém

relativamente racional e dotado de senso de oportunidade política.

Leir elabora um plano para dirigir as escolhas de suas filhas.

LEIR Estou decidido, e agora mesmo a minha mente

Está meditando um súbito estratagema,

Para, num teste, saber qual de minhas filhas me ama mais:

O que, até que eu saiba, não vou descansar.

Isso admitido, quando elas juntas rivalizarem entre elas,

Cada qual tentando exceder-se no amor,

Aí, no momento, eu tomarei Cordella,


E mesmo que ela proteste que me ama mais,

Eu direi, então, filha, satisfaça apenas um pedido meu,

Mostrando que me ama do mesmo modo que suas irmãs,

E aceite um marido que eu mesmo vou cortejar.

Dito isso, ela não poderá negar minha proposta,

Embora (pobre alma) seus sentidos ficarão mudos:

E então eu vou triunfar em minha ação política,

E a unirei a um rei da Bretanha.17

O plano faz da divisão uma questão sobretudo política, e o

arrazoado desajeitado, mas sutil, não estava de modo algum presente

e evidente nas fontes que o autor de King Leir deve ter consultado

(fontes também de Rei Lear), nas quais o elemento arcaico e lendário

se deixava ver à clara luz. Tanto a versão medieval de Monmouth

como a versão quinhentista de Holinshed da história de Lear são

curtas se comparadas aos longos e mais detalhados relatos sobre a

vida de reis medievais, cuja historicidade é indubitável e documentada.

Sua brevidade é típica da lenda, e não da história.

Ao adaptar história tão simples para o teatro, o autor de King Leir

percebeu que tinha de dar alguma consistência psicológica à decisão

de Leir de submeter Cordella ao teste de amor (love-trial). Era

necessário tirar seu sabor folclórico ou lendário, ou pelo menos

atenuá-lo e dar-lhe certo senso estratégico de planejamento político,

mais de acordo com as manhas e artimanhas das novas cortes. Por

isso inventou essa cena de “portas fechadas” em que Leir consulta seu

conselheiro sobre seus planos, em uma espécie de ensaio prévio para

uma reunião. Por certo há sinais da ansiedade de Leir, que diz que

“não pode descansar” até que saiba o tamanho do amor de suas filhas

por ele. A colocação é breve, mas tudo parece sob controle. É também

um acréscimo sobre o material lendário-historiográfico que não dava

explicação para o teste de amor.


O que distingue a abertura de Shakespeare é a menção explícita no

discurso oficial de um “grave intento” — alusão dramática que tem

algo do lapso freudiano, pois a menção de um segredo sombrio

inominável é mais que imprópria para um discurso régio.18 Funciona

no drama como um enigma que a peça deve responder — e

Shakespeare atende esse dever com figuras extremamente sinuosas que

resistem à interpretação simples e revelam seu sentido com dificuldade

até mesmo para a análise erudita. Isso é um traço da peça de modo

geral. Nela, os personagens e os dilemas, claros à primeira vista,

deslizam não raro do compreensível ao ininteligível. A deploração de

Lear que dominará o centro da peça é lamentável, mas é impossível

não ver sua dimensão ridícula. E, finalmente, a seriedade é sempre

quebrada pelas interferências sábio-jocosas do fabuloso bobo da corte,

ou ainda por cenas cheias de ardil risonho e comovente, como a do

episódio tragicômico de Pobre Tom e Gloucester nos fictícios

penhascos de Dover. Shakespeare semeia na peça situações anômalas

com grande eficácia teatral, porém mesmo assim inverossímeis,

desacelerando o avanço da ação principal.

Shakespeare evitou racionalizar demais as razões e estratégias do

seu Lear. A autoconsciência de Leir é inexistente em Lear, que desde o

início traz sinais de perturbação — por exemplo, quando usa a

fórmula exagerada de “rastejar rumo à morte”. Shakespeare

intensifica a irracionalidade de Lear — em particular o seu sentimento

de ingratidão e vulnerabilidade, sua fraqueza moral e política: afinal,

ele busca se livrar dos fardos da governança, que é o dever do

patriarca e do rei, ele inverte os papéis e se tornará o filho de suas

filhas, e filho que deve ser cuidado — inversão que leva Goneril e

Regan a corrigi-lo como a uma criança malcriada.


O teste de amor de Lear levará a um impasse. Catherine Bates

postulou que toda a razão do conflito que se instala na primeira cena

se originaria da quebra do protocolo formal pela filha caçula,

Cordélia, que Lear pretendia privilegiar em troca de amor e carinho.19

A ela, sublinha Bates, faltaria o savoir-faire. Goneril e Regan

respondem, com efeito, em conformidade com o ritual de corte,

usando de toda a poesia e decoro possíveis, demonstrando seu

treinamento cortesão através de sua anuência ao pedido de Lear.

Apenas Cordélia se recusa a atender o ritual — talvez por inabilidade.

A leitura de Bates, contudo, calcada demais em contextos, traz

problemas, pois um evento dessa qualidade exigiria que Cordélia

jogasse o jogo da corte, o jogo das aparências cortesãs; faltaria a ela

justamente aquilo que a define: a sinceridade, a justeza e o decoro. No

contexto da peça é claro que as expressões de amor de Goneril e

Regan equivalem à eulogia e à adulação do príncipe. Ambas

respondem com fórmulas comparativas retóricas. O amor de Goneril é

mais terno do que o espaço, a liberdade, está além daquilo que é

possível validar, não é menor que a vida. Em prêmio pela sua

hiperbólica declaração, Lear lhe reserva o “tanto proporcional” à sua

confissão de amor. Goneril não precisa comparar seu apreço senão às

mais admiráveis virtudes morais, já que ela é a primeira a falar. A

declaração de Regan, por outro lado, apenas faz uma amplificação

comparativa àquilo que sua irmã declarara ao seu pai.

REGAN Do mesmo metal sou feita que a minha irmã,

Tenho o mesmo valor. Na minha pura essência,

Eu a vejo nomear, porém com parcimônia,

O meu veraz amor

(I.I.69-72)
Lear ditou esse jogo patético às filhas. Logo depois da declaração de

Goneril, Cordélia diz num aparte, inaudível para os outros

personagens:

Tenho o mesmo valor. Na minha pura essência …


(I.I.70-1)

Agora Lear se volta à sua filha predileta, repetindo a pergunta:

LEAR […] Agora o nosso júbilo,

A mais jovem, mas não menor no nosso amor,

Que as vinhas de França e o leite de Borgonha

Disputam com ardor, o que vais dizer pra ter

Um terço mais opulento que tuas irmãs ?


(I.I.82-6)

Mas a resposta traz apenas o nothing, o no thing, nada e coisa

alguma. Único termo que Cordélia parece conseguir pronunciar.

CORDÉLIA Nada, meu senhor.

LEAR Nada ?
CORDÉLIA Nada.

LEAR Mas nada virá de nada. Fala outra vez.

CORDÉLIA Infeliz que estou, não consigo trazer aos lábios

O que é do coração. Amo Vossa Majestade

De acordo com meus laços, e nem mais nem menos.

(I.I.87-93)

O nome de Cordélia sugere sua raiz latina, cor, cordis, coração, o

cerne não apenas do sentimento, mas do que há de mais essencial no

ser humano. Assim, quando afirma que não consegue “trazer aos

lábios o que é do coração”, externa o abismo entre o sentimento

autêntico, inexprimível, e as frases buriladas dos cortesãos.

Lear não parece ter a sabedoria do bom monarca, que não se deixa

ludibriar pelas lisonjas e tampouco se ofende com uma franqueza


singela. O velho Lear não reconhece a sutil ponderação de Cordélia —

a virgem que ainda não concluiu seu noivado e que mostra com certa

graça sua juventude pura e inexperiente, além da decência e franqueza

que sustentam sua honra e valor. Ela se envergonha com as hipérboles

vazias e as aparências ocas dos discursos das irmãs e emudece,

dizendo que não tem nada a dizer. Se é compreensível para os

cortesãos e para o leitor a razão de sua mudez, Lear se irrita

sobremaneira e a censura com palavras extremamente rudes: “Mas

nada virá de nada”. A réplica não assinala apenas que os privilégios

régios têm preço e que Cordélia está sendo convocada a comprar sua

opulenta parte com adulação. Na linguagem chula dos homens

lascivos da época elisabetana, nada, no thing, era também uma

referência ao sexo feminino, e irá reaparecer nesse sentido quando

Lear amaldiçoa Goneril e lhe deseja a esterilidade.

A resposta seca e sincera de Cordélia — de que ama o pai segundo o

seu dever e na proporção adequada que exige seu iminente noivado (o

casamento colocará Cordélia sob a tutela do marido, reservando assim

ao pai apenas metade de seu amor e seus cuidados) — poderia ser

compreendida como ingenuidade, mas também como ágil

demonstração de pureza e propriedade, pois essas palavras apontam à

assembleia que ela possui todas as qualidades da esposa dócil e

virtuosa. O fato de o rei da França a acolher como esposa, mesmo

depois de ter sido rejeitada por Lear, não é só um desfecho no estilo

conto de fadas, por mais que a cena traga sugestões românticas dessa

ordem. Apenas Lear é incapaz de ver o amor, a retidão e a pureza de

Cordélia, e, além disso, ele se deixa cair paroxística e flagrantemente

em contradição com o bom-tom equânime que se espera de um

monarca.
O grave intento de Lear parece estar embutido na sua sorrateira

tentativa não menos de abdicar de seu poder, mas de se livrar de suas

responsabilidades e deveres. Pois a peça evidencia que ele pretende

reinar sobre as filhas, mantendo seu status nas casas para onde elas

forem. Em outras palavras, ele apenas desloca seu poder para o

âmbito privado, e sua ira contra Cordélia deixa entrever as conotações

eróticas dessa estratégia. Em vocabulário freudiano, assume a fantasia

megalomaníaca do narcisismo infantil — a miragem da relação

fusional com o corpo materno implica que todo desejo será atendido

de imediato pelo outro. São essas conotações que expõem Lear em um

lugar altamente ambíguo: pelo desejo de afirmação, ele aparece como

um rei armado; pelo ângulo do desvario delirante desse desejo, é

também um ser desamparado.

Nesse sentido, é importante notar também que, na boca de Lear,

simples palavras tendem a se converter em armas e fatos, como

veremos mais adiante quando castiga suas filhas com imprecações,

acusando-as de serem feiticeiras, ou quando conjura seu despojamento

humano e moral, físico e político — comparando-se ao mais miserável

dos miseráveis, a Pobre Tom. Nesse sentido, a rude interpelação de

Cordélia também traz as conotações de ameaça, como se Lear

estivesse disposto a ameaçar todo o universo (feminino e cósmico)

com a infertilidade.

Shakespeare não explicitou as razões e estratégias de seu Lear,

deixando o leitor desarmado para entender seus enigmáticos sinais de

perturbação inscritos na sua linguagem desde o início. A incomum

crueza de seu linguajar contrasta com a sobriedade franca e sincera de

Kent, com a cerimônia de Gloucester — e não apenas nas cenas da

tempestade, quando a alienação toma conta da sua mente.20 O


desequilíbrio se anuncia cedo, por exemplo quando usa a fórmula

exagerada de “rastejar rumo à morte”, quando lhe escapa o “grave

intento” ou quando censura Cordélia com palavras entre chulas e

ameaçadoras. Shakespeare intensificou a irracionalidade de Lear —

em particular, o misto de suscetibilidade, ingratidão e vulnerabilidade,

que se perfilam aos poucos como fraqueza moral e política: afinal, ele

busca se livrar dos fardos da governança, que é o dever do patriarca e

do rei, ele inverte os papéis.

Outro aspecto curioso é quão premonitórias dos fatos futuros são

algumas palavras no início da peça. Quando Lear publica os dotes de

suas filhas, anuncia que vai se “despir” (divest) do manto real, dos

territórios sob seu mando e dos negócios de Estado e governo.

Embora a ideia de se “despir do reino” se pareça com uma simples

metáfora, a ideia de desvestimento já tem uma história trágica na obra

de Shakespeare (Ricardo ii) e na história da realeza britânica. Mas a

metáfora se transforma facilmente em um fato. Mais tarde na peça, ele

parodiará seu próprio gesto e se despirá de suas roupas numa atitude

de humilitas cada vez mais extrema, que imita a pobreza e a

necessidade dos miseráveis, num primeiro momento com intenções

sarcásticas, mas mais tarde com a gravidade assombrosa de quem

percebe que de fato perdeu tudo. Fazem parte desse mesmo jogo

metafórico sutil as falas de Lear sobre as diferenças, inscritas nos

códigos vestimentários, entre o supérfluo e as necessidades humanas

mais básicas. Com efeito, ele vai se des-vestir de suas roupas,

equiparando-se, no ermo, em meio à vasta tempestade, aos mais

depauperados seres que palmilham, esquecidos, os campos da

Inglaterra.
Um segundo exemplo desse uso microscópico de palavras

premonitórias é a verdadeira disseminação de termos e

acontecimentos associados ao nada existencial. Para além das

conotações sexuais e da rápida resposta de Cordélia ao seu pai

(“nothing”), Shakespeare transforma nothing, “nada”, num termo

com considerável volume contemplativo, religioso e filosófico, que

retorna de modo insistente na peça. Gloucester retruca ao “nada” de

Edmund (que finge esconder uma carta que provaria a traição de

Edgar) dizendo que “A qualidade do nada não precisa se esconder.

Mostre. Vamos, se não é nada, não vou precisar de óculos”. O

“nada” aqui evidencia a desconfiança e o destempero de Gloucester,

que suspeita e imagina a traição de seu filho legítimo, possivelmente

porque ama mais o bastardo Edmund. E o próprio Edmund estimula

esse desvario como ágil intrigante, forjando o quase nada de uma

carta de Edgar que comprovaria a traição. Manipulado por ele, esse

quase nada engendra o desdobramento do ódio em caos e injustiça.

Lear e Gloucester, pais sequiosos de lealdade irrestrita, têm ambos

pavor do nada, e os signos precursores desse desamparo os lançam em

surtos incontroláveis de obsessão investigativa. É uma obsessão

semelhante à de Otelo, que também renuncia às provas oculares mais

robustas da infidelidade de Desdêmona e abraça, ávido, as ilações de

Iago.

Outro exemplo dessa recorrência do “nada” é uma conversa rápida

de Kent com o bobo da corte e Lear:

KENT Isso é nada, Bobo.

BOBO Então é igual o fôlego de um advogado que não ganhou honorários — não me

pagaram nada … (a Lear) E tu, titio, não sabes do nada fazer nada?
LEAR Claro que não, rapaz: não há nada que saia do nada.

(I.IV.129-33)
Quando Lear completa o diálogo repetindo a fórmula usada com

Cordélia, dizendo que “nada virá de nada”, o termo não é mais que

um jogo de palavras que ainda mantém ocultas suas irônicas

premonições trágicas. Mas, no fundo, todas essas brincadeiras e

sarcasmos já antecipam o “nada” concreto e físico de Lear nas cenas

da tempestade. O Bobo ainda dirá que ele é “um bobo e tu, o zero do

nada”. O jogo semântico com o termo nothing está também no modo

como o Bobo se dirige a Lear, chamando-o de nuncle, mistura de non

com uncle (“tio-nenhum”), de sonoridade jocosa.

O “nada” de Lear é em primeiro lugar seu medo da morte, e a fuga

desse medo traz à tona várias camadas de variantes: a perda da

identidade real e patriarcal e a queda no estado de natureza

desumano. O termo se metamorfoseará mais claramente nos diálogos

com Pobre Tom, quando Lear constata com crueza que teria sido

melhor para o jovem que estivesse em um túmulo a viver com seu

corpo “descoberto” e ao relento — aqui, religando o tema do

desvestimento, do nada e da necessidade humana. Lear se reflete na

nudez extrema de Edgar, no seu nada, e busca ele próprio a nudez. A

cena se torna um espetáculo de delírio grotesco. Num átimo, Lear

associa Edgar-Pobre Tom a um filósofo a quem ele convida para uma

promenade filosófica, numa alegoria invertida da miséria de Diógenes.

Finalmente, quando Gloucester, já cego, reencontrar o seu rei caído,

num ato de humildade ele pede para beijar sua mão, ao que Lear

responde:

Vou limpá-la primeiro. Ela cheira à mortalidade.


(IV.VI.138)

O termo nothing, que no início parecia ser anódino, mera palavra

sarcástica, assume as mais diversas modulações: surge o sentido


bíblico e existencial da vanitas, que assinala tanto a vaidade como a

vacuidade da existência humana; o sentido filosófico e niilista da

negação de todos os valores e sentidos; e também a realidade factual

do nada: o estar despojado e nu, ameaçado em sua sobrevivência

física. Para além da crítica dos vícios da monarquia de seu tempo,

Shakespeare explora as oscilações entre ser e não ser, entre existir para

o mundo e desaparecer dele, entre uma existência na superfluidade e o

estar nu no mundo.

AMOR, ÓDIO E AS FILHAS-MÃES:

A DESTRUIÇÃO DA ORDEM

Exímio psicólogo avant la lettre, Shakespeare foi diversas vezes

evocado como um precursor da teoria psicanalítica. Há sinais dessa

perspicácia psicológica já na primeira cena, que sugerem um elo entre

o desamparo (ainda velado) de Lear e seu retorno à infância — e aos

desejos que para Freud têm um papel tão importante na vida das

crianças e que ressurgem tão frequentemente na senilidade como uma

revolta aos sinais precursores da morte. Tornando ambíguo seu lugar

na hierarquia das gerações, ele apela a Cordélia, para que seus

cuidados de filha-mãe amorteçam esse pavor com o obrigatório amor

incondicional e a assiduidade incessante, deveres femininos. Nessa

peça sem mães, a divisão do reino e a abdicação do velho rei

coincidem com a tentativa de Lear de se colocar no lugar de filho de

Cordélia — uma espécie de retorno do recalcado, isto é, do desejo de

ganhar de volta a “mãe ostensivamente ocluída na peça”.21

Lear espera de suas filhas (e em particular de Cordélia) a mesma

atenção e retribuição que um filho espera de sua mãe. É o pai que


quer ser tratado como filho. As filhas deverão cuidar do pai senil

como as mulheres devem cuidar dos brotos preciosos da prole. O

próprio Bobo, amargo, dirá a Lear que ele transformou “tuas filhas

em mães”, reversão que põe o mais poderoso dos homens na postura

vulnerável de uma criança que deseja o amor fusional, mas ao mesmo

tempo se expõe aos avessos dessa forma de amar: aos pavores da

dependência absoluta, à possibilidade de aniquilação pela mãe toda-

poderosa. Em outras palavras, Shakespeare introduz seu Lear no

riquíssimo mundo fantasmático da época elisabetana, nas fantasias

paranoicas dos homens desconfiados com os poderes secretos do

ventre feminino, torturados pela ideia de estrangulamento e

aniquilação nas entranhas da mãe, mas ao mesmo tempo condenados

a cobiçar esse poder e desejar a união procriadora com a mulher. A

reação descompensada de Lear ao nothing de Cordélia é um primeiro

surto primitivo que evidencia o trauma e a frustração masculinos que

formam o forro de sua fantasia de fusão final com a filha desejada —

e com a mãe oclusa e temida.

Ainda na primeira cena, Lear, enfurecido com a resposta de

Cordélia, evoca os “arcanos de Hécate” (I.I.111) e a operação das

órbitas celestiais, tornando sua própria filha uma estranha, alienando-

a, recusando-lhe seus deveres paternos. Com seu impulso de

enjeitamento, ele recua a um imaginário primitivo que supostamente

legitima sua abjuração da paternidade, como se buscasse punir e

compensar o que lhe parece ser perverso e “inatural” em Cordélia. A

função de Kent na cena, similar à do estoico Horácio em Hamlet, é a

de facultar a visão da prudência sóbria, chamando Lear à razão e

quase censurando-o pela sua insensatez. Mas o rei já selou seu destino
ao investir Cornwall e Albany tanto do território antes destinado a

Cordélia como do exercício de poder.

Eu vos invisto a ambos com o meu poder,

Com a preeminência e todos os grãos efeitos

Próprios da majestade. Quanto a nós, traremos

Junto cem cavaleiros que sustentareis ;


E a cada mês, por turnos, vamos residir

Com um de cada vez. Somente guardaremos

O nome e as honras que cabem a um rei. O mando,

Filhos amados, a renda, a execução do resto,

São vossos. E para confirmá-lo partilhai

Entre vós essa coroa.

(I.I.131-40)

Além do erro, já grave, da divisão do reino (aos olhos dos

contemporâneos de Shakespeare) e da entrega do mando, Lear comete

um outro que é fatal: como uma criança, ele acredita poder abdicar

das responsabilidades do poder, mantendo todo o simbolismo do

poder régio — o “nome” (título) e as “adições” (privilégios reais) de

um séquito de cem homens a ser sustentado pelas filhas e seus

maridos. Para Kent, a insensatez é óbvia. Na versão Folio, ele diz

claramente que Lear deve “conservar seu Estado” (seu governo e suas

terras) e reconsiderar seu impulso. Defende Cordélia, assegurando que

a estima da filha não é menor. Desde o Medievo a terra e a

propriedade — e isso é o que Lear esquece — são o poder factual,

embora muitos textos jurídicos acrescentem a justificativa do poder

divinamente instituído.22 No texto do in-Quarto, em vez de dizer

“reserve thy state” (mantenha seu Estado), Kent diz “reverse thy

doom” (reverta sua sentença/ desgraça).23 Com o realismo de um

homem experiente, Kent repara o que há de delirante e infantil na

decisão de Lear, censurando a cegueira de um pai possuído por


obscuras paixões. O homem sensato busca em vão corrigir um

desvario fantasmático do homem demasiadamente humano — defeito

passional esse que reencontramos também no segundo enredo da peça,

quando Gloucester se deixa levar pelas suas preferências emocionais (e

vagamente determinadas pelas suas lembranças eróticas), dando

prioridade ao filho bastardo e traidor e banindo seu filho legítimo.

Nesse momento, toda a ordem ritual é destroçada, abrindo espaço

para um desvario caótico e primitivo que em breve contaminará os

novos governantes — as filhas e seus maridos. Essa queda no

primitivismo simbólico é sinalizada pelas imagens que evocam a

monstruosidade: Lear invoca o canibalismo mítico de Saturno, que

aparece na figura do “bárbaro Cita”, devorando sua própria progênie,

muito semelhante às imprecações que aparecem na fala de Otelo,

levado à loucura pelas calúnias de Iago sobre a suposta lascívia

adúltera de Desdêmona.

No entanto, Lear não entende as consequências de sua atitude.

Tendo previamente proclamado que viveria itinerante entre as casas

de suas duas filhas, acompanhado de cem homens, ele logo esbarra na

recusa de Goneril em aceitar seu séquito de cavaleiros, constituído,

segundo ela, de gente “devassa e atrevida”. Lear reage com ironia:

Quem aqui me conhece ? Este aqui não é Lear.


[…] Quem é que pode aqui me dizer quem eu sou ?
(I.IV.234)

Lear procura ser sarcástico, negando sua identidade real (que de

fato já não existe mais); ainda não percebeu a nova realidade que

criou, ao contrário do Bobo, que responde: “A sombra de Lear”,

sublinhando que o rei se despojou de todos os seus poderes simbólicos

e físicos porque não soube julgar e antecipar o natural ressentimento


das filhas menos amadas. Goneril e Regan vão às últimas

consequências da nova lógica perversa: começam a ignorar a

identidade régia e a autoridade do pai e tratam Lear e seu séquito

“amotinado” como criaturas selvagens que o governante tem o dever

de restringir. Esse processo de transformação é surpreendentemente

rápido e violento, recusando ao velho soberano o tempo de se

habituar à sua nova condição, e lança Lear na revolta e na negação

louca de sua impotência. Resta ao Bobo lembrá-lo de sua natureza

humana. Ele diz, em certo momento, que gostaria de ser qualquer

coisa diferente de um bobo, mas não gostaria de ser Lear: “O teu juízo

tu podaste dos dois lados e não ficou nada no meio”. E mais: “Valho

mais que tu agora. Sou um bobo e tu, o zero do nada”.

Goneril chega a ponto de lhe pedir, numa frase cheia de contornos

irônicos, que “se desquantifique um pouco o vosso séquito”. A mesma

Goneril que usava de toda a retórica para adular o rei esquecerá o

laço natural que a vincula à autoridade paterna — ou seja, o dever

filial de respeito, obediência e amor infalível que a sociedade jacobina

exigia dos filhos. Assim que assume o poder e o território que lhe foi

concedido, ela faz ouvidos moucos às demandas de Lear, autoriza (ou

encoraja) seus servidores a negligenciar o velho rei que, ela sabe, é

sequioso de cuidados. Ela o censura pelas suas “piadas”. Em outras

palavras, ela o faz entender da maneira mais hostil que ele não é nada

além de um velho frívolo que deveria aprender a renunciar aos

esforços de exercer a antiga autoridade “que entregou”.

Lear se revolta com a mesma fúria da primeira cena e lança uma

maldição, pedindo a esterilidade de sua filha. Nas suas corridas entre

uma e outra filha, Lear não descobre seu erro, mas busca uma

substituição fácil, quando na verdade as duas irmãs já estão em mútuo


acordo, prontas para rejeitar as demandas do velho. Ele não pode

contar nem mesmo com Regan, que o recebe com frieza. O que ele vê

agora é que Goneril e Regan são feitas de metal duro, frio e cortante.

Longe de consolar o pai, atendendo suas justas demandas de respeito

à sua dignidade monárquica ou cumprindo o dever filial de lhe

mostrar os afetos e cuidados, Regan assume a mesma postura

soberana que Goneril já mostrara, tratando Lear como o súdito

impotente que ele se tornou num mundo de forças selvagens. No

entanto, Lear demora para se desfazer das ilusões e dos caprichos que

seu status régio (perdido) lhe garantia no passado. Ainda não

compreende que a antiga ordem simbólica sucumbe rapidamente no

novo mundo da divisão, dos desejos e ressentimentos caóticos que ele

mesmo criou ao dividir o reino. Mas Regan, junto com Goneril, se

encarrega de fazer penetrar os novos ensinamentos na mente e no

corpo recalcitrante do velho rei. Primeiro ato de sua cruel pedagogia é

o drástico questionamento de seu séquito de cem homens — um dos

mais importantes símbolos visíveis da relevância de um homem do

reino. Com raciocínio displicente, Regan e Goneril, agora reunidas,

perguntam se não é possível passar de cem a cinquenta os homens no

seu séquito. E, assim, num rápido diálogo, vão diminuindo esses

números para vinte e cinco, dez, e depois cinco.

É claro que os “cuidados” de Goneril e Regan não são exatamente

os que Lear esperava de sua filha Cordélia. As filhas mais velhas que,

num surto sem reflexão, Lear chamará de unnatural hags, “feiticeiras

perversas” (2.2.279), fazem esforços para que os maridos e súditos

mantenham o velho pai sob controle humilhante, diminuindo ao

máximo o aparato régio. Todas essas honrarias, esses rituais e


prestígios que proclamam as filhas através de seus gestos e palavras

são supérfluos para quem não tem mais força física e poder real.

No início da cena, Regan e Cornwall negam-se a tratar dos apelos

de Lear e, quando falam, é apenas para censurá-lo como a uma

criança rebelde:

Ora, o senhor já está velho: a natureza

Em seu corpo está a um passo do extremo marco

De seu confim final. O senhor deveria

Se reger e guiar […]

(II.IV.143-6)

Exatamente como uma criança, Lear cai na mais louca encenação do

desespero: “Eu suplico de joelhos/ Que me conceda roupa, cama e o

de comer”, culminando na constatação: “A velhice é um estorvo”. O

mote da necessidade da humanidade nua e reduzida ao desamparo é

deveras bizarra na boca de um rei. Regan, no entanto, totalmente

insensível, continua sua paródia da antiga simbologia da ordem e do

poder perguntando cinicamente se é realmente necessário que Lear

tenha mais de um homem no seu séquito — “E por que um?”. A

resposta orgulhosa de Lear apenas sublinha sua impotência, por mais

que comova no leitor os sentimentos morais:

LEAR Oh, não julguem a necessidade! Os mendigos

Mais baixos nas coisas mais pobres têm supérfluos.

Não dê à natureza além do necessário,


E eis que a vida humana se iguala à de um bicho;

Tu és uma dama. Se bastasse estar quente

Pra estar deslumbrante …Mas quê? A natureza


Não necessita dessa tua roupa estonteante

Que nem te aquece. Mas quanto à necessidade…


Céus, dai-me paciência, necessito paciência!

Deuses, olhai pra mim, um pobre velho, cheio

De anos, de aflições, em tudo desgraçado:


Se sois vós que atiçais a alma dessas filhas

Contra um pai, não deixeis que eu o sofra mansamente ;


Dai-me uma fúria nobre e jamais aceiteis

Que as armas das lágrimas femininas manchem

Meu rosto viril. Não, feiticeiras perversas,

Minha vingança contra vocês será tal

Que o mundo inteiro vai … vou fazer tais coisas —


O que serão, não sei, mas hão de ser

O terror do mundo. Acham que vou chorar,

Mas não vou, não vou!

Eis a reação à lição cínica de Goneril e Regan, materialistas duras,

que Lear não quer ouvir. O longo discurso do rei destituído elabora o

mote do poder simbólico dos sinais “supérfluos” sobre os quais se

apoiava sua realeza, enquanto detinha o poder também físico. São os

sinais “supérfluos” que traçam a linha divisória entre o meramente

natural e a natureza humana mais elevada, a ponto de que não há ser

humano, seja ele o mais pobre e miserável, que não recorra a alguns

desses símbolos artificiais: rituais, encenações, objetos emblemáticos e

ficções que criam a ordem social e o cosmo da humanidade.

Esse discurso marca a imensa desilusão que Lear foi obrigado a

registrar. Ao mesmo tempo, Shakespeare deixa claro que Lear ainda

não percebe o grau de sua cegueira: acostumado com a adulação, ele é

incapaz de fazer a distinção entre mera lisonja e sinceridade, entre

hipocrisia interesseira e afeto cândido, e assim Lear considera-se agora

traído por todas as suas filhas.

Reduzido a nada, Lear assume as feições míticas dos fantasmas e

numes — aqueles espíritos poderosos das crenças pagãs que exercem

um obscuro poder natural do “além”, e sua imitação desses espíritos

parece antecipar a própria morte. Amaldiçoa a filha e pede às forças

cósmicas que esterilizem Goneril: “Esparge-lhe no útero a árida


secura”. Mas o mimetismo de um daimon maligno é apenas uma

máscara da impotência. No fundo, Lear se fecha no invólucro protetor

do delírio com nítidos traços de uma doença feminina por excelência:

a histerica passio, que na época era também chamada de

“sufocamento pelo ventre materno” (suffocation of the mother).24

Informado da humilhante prisão de Kent no tronco no castelo de

Regan e Cornwall, Lear exclama

Ah, o meu ventre está subindo e apertando o peito!

Histerica passio, desce, mágoa montante,

Teu lugar é embaixo. […]

(II.IV.54-6)

Mergulhando nos fantasmas da misoginia renascentista, o rei teme

que os aspectos femininos de sua própria persona possam vir à tona,

traindo-o e tornando-o prisioneiro do ventre e dos desprezíveis ardis

femininos — a sedução, as lágrimas e outras armas do “sexo fraco”.

É desses espectros fantasmáticos que ele foge, buscando, num ato de

auto-humilhação enlouquecido, a nudez dos mais baixos mendigos,

dos andarilhos desvalidos semelhantes a Edgar, disfarçado de Pobre

Tom. Essa fuga inicia com o troar de uma tempestade — Lear parece

ouvir as trombetas do Dia Final, do apocalipse do mundo e da

procriação. É um dos momentos cruciais da peça, que leva ao caos e

aos avessos da ordem. As cenas da tempestade trazem à tona as

ambiguidades e misérias humanas que aparecem, por exemplo, nos

diferentes tipos de andarilhos — alter egos de Lear. As feições desses

desajustados oscilam entre dois tipos de vagantes. Esses são ora

malandros rebeldes, ladrões e assassinos, que se colocaram com

deliberação e rebeldia criminosa fora da ordem e do seu lugar na

sociedade, ora loucos e possuídos pelos demônios, ou, caso


excepcional, o andarilho também pode ser um eremita santo, o

piedoso humilde, que abraça a dureza e o infortúnio do mundo inteiro

e imita a trajetória sofrida de Cristo.

A procela se desencadeia no exato tempo em que Lear fala de suas

lágrimas. O tormento de Lear derrama-se em palavras e lágrimas —

aquelas “armas das lágrimas femininas” que Lear procurava reprimir

na segunda cena do segundo ato — enquanto chuvas, ventos, raios e

trovões desdobram sua agonia num símbolo cósmico. Para marcar a

clivagem entre os amparados e os desamparados, Regan, Cornwall e

os outros retornam ao abrigo dos aposentos, sem piedade por Lear,

que está à mercê da intempérie pessoal e climática. Apenas o fiel

Gloucester intercede, em vão, pelo seu antigo senhor.

NATURA NATURANS, ABASTEÇA OS BASTARDOS!

A monstruosidade em Shakespeare está associada à ruptura do

“natural” (daquela natureza simbólica que aproxima a humanidade

da ordem transcendente de Deus) e traz à tona a perversão “anti ou

desnatural”, daquilo que é contrário à natureza. O termo “natureza”,

aliás, é o primeiro a surgir na segunda cena de Rei Lear. Edmund, o

filho bastardo de Gloucester, pronuncia seu solilóquio, cheio de

indagações sobre a natureza, o costume, os hábitos da moralidade do

mundo, o nascimento, a legitimidade e a baixeza. A natureza, Edmund

declara, é sua verdadeira deusa intercessora. Os termos “natural” e

“desnatural” aparecem na peça designando ou a conformidade ou o

desvio das emanações da natureza, que reverbera a bondade divina; a

natura naturata segue a necessidade da ordem divina, ao passo que a

natura naturans se autoconcebe, de modo independente e até amoral,


monstruoso. A fala de Edmund, se seguirmos essa lógica, é antinatural

— contra a hierarquia da ordem patriarcal, que nega ao bastardo o

direito de herança e sucessão.

Mas Edmund, o realista cínico, olha a ordem natural por um outro

ângulo: pelo ângulo da força pura e material, que pouco tem a ver

com o simbolismo instituído e a ideia do divino: ela é, sim, uma

ordem própria. Edmund é um personagem que se assemelha em seus

traços a Philip Faulconbridge em King John e a Ricardo III, portanto

um personagem que recorre à retórica para combater o status quo,

que concebe a natureza não como a emanação benéfica inscrita nos

costumes e legitimada através da unção divina. É um novo tipo de

natureza, que diz sim ao egoísmo, à deusa promotora da

“prosperidade” individual daqueles homens que possuem força e

intelecto suficientes para agir e vencer, em contraposição aos

privilégios dos filhos legítimos como Edgar, favorecido pelo

nascimento como primogênito.

Tu, Natureza, tu és minha deusa ; à tua lei


Meu ofício está preso. Então por que é que eu tenho

Que arcar co’a praga do costume, permitindo

Que os zelos e desvelos das nações me privem ?


Porque sou doze ou quatorze luas mais novo

Que meu irmão ? Por que bastardo? Por que abjeto?


Se minhas proporções são também compactas,

Mi’a mente, tão gentil, meu talhe, tão real

Quanto o fruto de uma dona casta ? Por que nos


Tacham de bastardos, de abjetos ? Será que
Quem nasce do viço furtivo da natura

Não tem têmpera mais ardente e consistência

Do que quem vem de uma cama arriada e insípida

Que gera só tribos inteiras de paspalhos,

Forjados entre o sono e a vigília ? Pois bem,


Edgar — legítimo! —, vou ficar com tuas terras.
Nosso pai ama Edmund, o bastardo, tanto

Quanto o filho legítimo. Lindo termo, “legítimo”!


Bom, meu legítimo, se eu apressar esta carta

E meu plano grassar, Edmund, o abjeto, vai

Desbancar o legítimo. Eu cresço, eu propago:

Agora, deuses meus, abasteçam os bastardos!

(I.II.1-22)

A diatribe de Edmund insurge-se contra o “costume”, que o rejeita

na condição de bastardo “ilegítimo”, de filho “inatural”. Ele altera a

definição idealista de Hooker e de Bacon segundo os quais a natureza

é benéfica e partícipe das disposições hierárquicas do mundo,

continuidade da razão divina, inspiradora da lealdade, dos costumes e

também da ordem.25 Para Edgar, agora, o costume não passa de uma

duvidosa convenção humana que é, no entanto, “naturalizada” pela

opinião. Aos seus olhos, o bastardo, apesar do nascimento espúrio na

visão “das nações”, tem ao seu lado a deusa Natura, que presidiu ao

ato seminal. Ele rejeita a convenção preguiçosa das nações, que atrela

a (sua) bastardia à baixeza, privando-o das “terras” e da herança que

deverão ser entregues apenas ao rebento “natural”, e não ao bastardo

inatural. A deusa Natura é favorável à virtu, força e valor daqueles

concebidos nos fogos da lubricidade criativa. Já o filho legítimo

aparece debilitado pela cópula insípida do casamento — uma traição à

natureza viçosa. Natura tem seu bem-amado: promove o físico

poderoso, brotado da virilidade ativa e prazerosa, e mesmo o vigor

intelectual dessa criatura será o da individualidade triunfante, plena de

iniciativa e audácia.

A visão de Edmund do costume replica as indagações influentes

acerca do valor intrínseco do “costume” que, por vezes, surgiram em

reflexões de escritores do Quinhentos e do Seiscentos. Encontram-se já

em Erasmo e desaguam no ensaio antropológico de Montaigne, De la


Coutume et de ne changer aisément une loi reçue. Montaigne postula

que “As leis da consciência, que afirmamos nascer da natureza,

nascem do costume” e ele elencará uma plêiade de casos de hábitos

incomuns que evidenciam outras formas éticas nos povos de países

afastados. A reflexão de Montaigne não traz um ataque simples aos

costumes, mas uma sutil reflexão sobre a complexidade humana. Seu

ensaio distingue o entendimento culto e intelectual da mecânica que o

hábito exerce.26

A tática de Shakespeare, ao apresentar Edmund como personagem

bem mais complexo que sua aparência de vilão típico, é explorar as

incoerências de seu público, seduzindo-o a se identificar e a mostrar

empatia pela autonomia audaciosa desse vilão interessante. Edmund

vê o costume com desprezo, preferindo forjar a si mesmo, um novo

homem que crê na própria argúcia e força e que está pronto a

ludibriar o status quo, sonegando sua intenção, ludibriando e

desafiando os valores e hierarquias estabelecidas. É o homem que,

como Iago, Ricardo III e tantos outros heróis de Shakespeare, repudia

a condição que lhe foi imputada pelo mundo. Seu mundo é um jardim

que deve ser administrado segundo as leis do saber empírico, alterado

ao sabor das circunstâncias. Personagem assim não poderia senão

açular a curiosidade e os desejos secretos do público estratificado dos

teatros londrinos. Contra as concepções naturalistas do estamento

defendidas nas homilias religiosas, ergue-se a paródia dos anti-heróis

shakespearianos.

VILANIAS, ASTROLOGIA E UM VELHO LÚBRICO


Sublinhando essas ambivalências, Shakespeare dá peso e importância

ao drama-espelho de Gloucester e seus filhos desde o início da peça.

Esse subenredo cumpre a função de realçar, de modo torcido, os

mesmos erros afetivos e morais da autoridade paterna. Como já

vimos, nem Lear, nem Gloucester conseguem controlar seus afetos

naturais — as emoções e preferências do coração e do corpo — como

demandariam a razão e o dever moral. Portanto desfiguram também

seus afetos; como mostram o misto de vergonha, amor e orgulho que

Gloucester sente pelo seu filho Edmund e a relação com sua mãe. São

esses pendores oblíquos que introduzem notável cegueira na percepção

da realidade, turvando a visão e atrapalhando as escolhas e decisões.

A ambivalência ocasiona uma rápida deterioração de toda a rede de

relações regradas e leva a um dramático fracasso da ordem patriarcal

e monárquica. Quem entra nesse vazio de autoridade são as forças

obscuras do ressentimento e da ira — aqueles “graves intentos” que

todos os personagens possuem, mas que no caso dos preteridos pela

sorte tomam as formas venenosas e vis da inveja, do ciúme e da ira

vingativa: Edmund, Goneril e Regan são os desdobramentos

shakespearianos do vício e da vilania.

Na cena que se segue ao solilóquio, Edmund logo põe em ação seu

plano de conquistar a herança e as terras, aproveitando a chegada de

Gloucester, alarmado com os descalabros que acaba de testemunhar

na corte.

Kent, banido ? E França partindo em cólera?


E o rei saindo à noite? Privado do mando,

Restrito a uma pensão? E tudo isso feito

Na picada da espora! Edmund, quais são as novas ?


Gloucester percebe melhor as falhas alheias do que as próprias:

sente que mais nada está garantido depois de o rei aniquilar seu poder

e fragmentar seu reino, despojando-se de todo poder real e

entregando-o nas mãos de jovens ambiciosos e pouco confiáveis. Nos

ouvidos desse pai assolado pelo pavor, Edmund derrama as sementes

da desconfiança, criando a ficção do complô de Edgar. Finge estar

escondendo uma carta para atrair a atenção e revela — aparentemente

a contragosto — uma suposta traição do irmão, como se o fizesse

apenas por obrigação e dever filial, quando na verdade arma tudo

para se beneficiar com a herança. A carta forjada, ao contrário, põe

em questão todo o sistema do poder patriarcal, atribuindo a Edgar o

ressentimento e a cobiça que fermentam no coração de Edmund:

Essa política de reverência à idade só traz amargor aos melhores anos de nossa vida, veda

o acesso às posses que são nossas, até que, já envelhecidos, não podemos mais desfrutá-las.
Começo a ver uma servidão tola e vazia na opressão da vetusta tirania, que governa, não

pela força que tem, mas pelo que lhe toleram. Vem até mim, para que possa te falar mais

do assunto. Se nosso pai dormisse até que eu o acordasse, gozarias metade de suas rendas

para sempre e viverias bem-amado pelo teu irmão. Edgar.

Edmund é o suprassumo do cinismo, que não hesita em escarnecer

das crendices das “nações” — e ao mesmo tempo manipulá-las e

imitá-las a seu favor. Com a habilidade de um prestidigitador, ele

consegue instilar o pânico e a ira de seu pai contra o filho legítimo. A

desordem causada pelos pais insensatos recebe dimensões cósmicas e

devastadoras no discurso grandiloquente de Gloucester sobre a

influência dos astros nos cataclismas que assolam a sociedade e as

famílias.

Edmund prontamente zomba da “suprema imbecilidade do

mundo”, que culpa os astros pelos próprios erros, e ele se alegra com

o sucesso dos próprios feitos ardilosos: “Que escapada notável de um


homem putanheiro imputar aos astros sua própria putaria!”. Vilões

como Iago, Ricardo III e Edmund brilham pela sua habilidade de

adentrar fundo nas fraquezas das figuras aparentemente mais fortes e

de manipulá-las segundo os seus interesses.

O ardil continua também em outra cena com Edgar, na qual

Edmund se diverte (e diverte o seu público) com um discurso que

parodia as crendices dos astrólogos amadores típicos da época,

fingindo-se diante de Edgar mais ingênuo e convencional do que é:

EDMUND Estou pensando, irmão, em uma predição que li um dia, dessas sobre o que

poderia ocorrer depois desses eclipses.

EDGAR Tu te ocupas com essas coisas ?


EDMUND Eu garanto, os efeitos descritos infelizmente estão acontecendo, como

aberrações entre o filho e o pai, morte, fome, dissoluções de antigas amizades, divisões

no Estado, ameaças e maldições contra o rei e nobres, difidências infundadas,

banimento de amigos, dispersão das tropas, rupturas nupciais e sei lá o que mais!

EDGAR Desde quando te tornaste um discípulo da astrologia ?

Shakespeare torna os vilões personagens complexos e interessantes,

mas sem perder de vista as dicotomias cristãs e as gradações que

levam do bem ao mal. O conjunto dos personagens não é dividido em

apenas dois tipos — não há uma divisão clara de monstros e anjos ou

de natureza selvagem e divina. Figuras como Goneril, Regan e em

particular Edmund — os preteridos, ora em afeto, ora em status —

invocam a natureza como força selvagem, mas na sua selvageria

aparecem também todos os elos com as falhas alheias que cintilam

como possíveis causas e detonadores da maldade. Com isso,

Shakespeare evidencia as reflexões de seus contemporâneos, o

realismo de pensadores como Maquiavel, cuja teoria política começa a

sustentar na observação empírica e realista (sem idealizações

metafísicas e escolásticas) as reivindicações de autonomia dos


indivíduos impetuosos, que se impõem através da força e da

inteligência (muitas vezes maligna, mas, mesmo assim, interessante).

Contra essas forças naturais, os representantes da ordem tradicional

parecem ser impotentes. Kent, França, Cordélia, Lear e mesmo

Gloucester (os dois últimos, transgressores da ordem que invocam) se

reclamam constantemente da outra natureza moral e divina,

invocando a fidelidade aos valores tradicionais baseados na ideia de

transcendência celestial (a natureza superior e divina) que repudia a

infidelidade de Edmund, Goneril e Regan, cujos ímpetos raivosos

contradizem a segunda natureza ideal. Lear, em seu primeiro discurso,

diz que estenderá sua generosidade “onde a natureza com mérito o

pleitear”, a natureza dos bons sentimentos naturais (filiais) que se

confirmarem pelo mérito. Mas a fúria tão repentina de Lear na

primeira cena evidencia que ele mesmo fica muito aquém de sua

função simbólica como representante da ordem divina.27 Seu pecado

são as faltas da criatura mais que natural — a falta de agudeza,

paciência e retidão moral que o impede não só de ler os fatos, mas

também de ouvir bons conselheiros. Em vez de aceitar a secura de

Cordélia como judiciosa (embora inábil) decência, sua raiva o leva a

declará-la como antinatureza.

REI LEAR, OS DEUSES,

O SUBSTRATO BÍBLICO E A REDENÇÃO

Em Rei Lear, assistimos a uma visão matizada e sutil da maldade e

das razões da violência ora física, ora na forma da inteligência

ardilosa. Mas essa visão evidentemente não anula a tradicional

dicotomia cristã que opõe o bem e o mal, colocando como valores


supremos o Deus misericordioso e as virtudes do sofrimento redentor

de Cristo. Esses vetores se afirmam inclusive contra os elementos

míticos e pagãos que sobressaem no desenho da alienação de Lear ou

das maldades dos vilãos, que introduzem ideias e invocam figuras

muito além do âmbito cristão e da esperança de redenção.28

Merece aqui um parêntese o fato de serem pagãos os deuses que os

personagens da peça invocam, ao contrário do que acontece em King

Leir, ambientada num mundo claramente cristão.29 No entanto, a

paganização tem uma função dramática superficial — a de enfatizar as

dimensões do humano e do subumano —, deixando intactas as

concepções cristãs, o imaginário bíblico e os filosofemas teológicos

dos séculos XVI e XVII — ao contrário do que acontece nas peças

romanas como Antônio e Cleópatra, Coriolano e Júlio César, cujas

fontes originais da Antiguidade tiveram um impacto real na sua visão

histórica. “Por Júpiter”, diz Lear a Kent em certo momento, e Kent

lhe responde “Por Juno”. Lear invoca deidades cruéis que brincam

com os humanos, na esperança de que essas forças cósmicas venham a

reparar os erros do mundo e vingar as humilhações que Lear sofreu.

Com efeito, Shakespeare projeta o sofrimento de Lear também

sobre os modelos bíblicos — em particular, as provações de Jó e de

Cristo, figuras emblemáticas da esperança e da redenção, e assim

reforça o imaginário bíblico no meio da peça. Por muito que o

desfecho frustre as expectativas de reconciliação definitiva no caso de

Lear, essa ideia cristã é confirmada pela salvação de Gloucester pelo

seu filho — o filho bom que usa o ardil da imaginação para fingir um

“milagre” que produz, mesmo assim, o efeito da graça divina

suficiente e eficaz. O subenredo equilibra e compensa a construção

mais exigente do enredo principal, no qual o feliz reencontro entre


Lear e Cordélia — que promete um desfecho benéfico de acordo com

as narrativas históricas — se transforma em mais uma catástrofe, o

assassinato de Cordélia ordenado por Edmund.

Shakespeare, em outras palavras, modula de um modo inovador a

imitação dos modelos bíblicos e introduz as formas narrativas

redencionistas, quer para confirmá-las, quer talvez para subvertê-las.

Ele aproveita e reforça imagens que aparecem também na pictografia

renascentista de figuras que desdobram as provações de Jó — os

“vagantes”, cuja imagem, de um lado, é calcada em santos ou figuras

bíblicas que carregam o sofrimento com paciência, e de outro se

confunde com os vagrants (pessoas “errantes” e sem lugar fixo) da

realidade histórica e da imaginação. Lear aproxima-se do Jó bíblico

pelo uso abundante de imprecações e lamentos patéticos e pela

imitação da glosa dos velhos patriarcas que tradicionalmente refletem

sobre o sentido de seu sofrimento e sobre a insondável vontade divina.

Ambos terminam por reconhecer o caráter fugaz da felicidade

humana, mas também encontram algum tipo de arrependimento que

se traduz, em Jó, no reconhecimento da pobreza, da fugacidade

humana, quando é retratado ao final fazendo “penitência no pó e na

cinza”. Lear, em gesto de humilitas cristão, vê pela primeira vez os

sofrimentos dos “pobres coitados, nus”, identificando-se mais tarde

com Pobre Tom, esse esfarrapado semelhante aos andarilhos

medievais e renascentistas, criaturas vivendo entre a transgressão e a

imitatio Cristi (emulação do sofrimento redentor de Cristo), prontos a

se expor às humilhações do mundo.

No entanto, existe uma diferença fundamental entre Jó e Lear. Jó é

totalmente inocente, ao passo que Lear é um homem que cometeu

graves erros e transgressões: deserdou Cordélia, confiou nas palavras


de suas outras duas filhas, dividiu o reino provocando a desordem e o

caos, numa trajetória de queda.

O elo bíblico e religioso circunda a peça como uma nebulosa. Mas

outra tradição compete com a bíblica e teve igualmente, na sua

incepção, teor religioso e admoestativo: os Espelhos dos príncipes —

obras voltadas à pedagogia de príncipes e homens de Estado. A queda

desafortunada de Lear conecta a peça com a longa tradição de escritos

que remontam a livros como De casibus virorum illustrium [Sobre os

destinos dos homens famosos], de Boccaccio, e Fall of Princes [A

queda dos príncipes], de Lydgate (final do século XIV e início do XV),

que descrevem os infortúnios de grandes homens no intuito de

advertir os príncipes dos perigos de seu orgulho.30 No entanto,

Shakespeare, é claro, não escreveu simplesmente uma peça exemplar

para ilustrar o destino de homens célebres que caíram no infortúnio,

tal como as encontramos na introdução de Boccaccio ao De casibus:

Com certeza, as pessoas que tornam a sensualidade um hábito são muitas vezes difíceis de

influenciar e nunca são dirigidas pela eloquência da história. Portanto, relatarei exemplos

daquilo que Deus ou (para falar na linguagem deles) a Fortuna pode ensinar a eles sobre

aqueles que ela eleva…

Portanto, dentre os poderosos selecionarei os mais famosos, para que, quando os nossos

príncipes virem esses regentes, velhos e desgastados, prostrados pelo julgamento de Deus,

eles reconheçam o poder de Deus, a mutabilidade da fortuna e a própria insegurança deles.

Aprendam os limites de sua alegre loucura, e, por meio do infortúnio alheio, possam

encontrar conselhos para o seu próprio bem.31

O Deus-Fortuna é invocado como contraexemplo, nada cristão, da

arbitrariedade do poder monárquico abusado por regentes que se

comportam como caçadores de fortuna. A tradição De casibus é,

portanto, instrutiva e não busca o espelhamento estético do público.

Shakespeare, ao seu modo, flerta com todos esses exemplos da história


(pagã, cristã, realista, doutrinária) para lançar uma luminosidade

fosca sobre a instabilidade da existência humana, explorando os

modelos doutrinários até seu limite, até seu lugar instável. Embora

permaneça intacta a esperança depositada no esquema cristão da

Providência divina, que insere a humanidade no campo de tensão

entre queda e redenção, vemos uma série ininterrupta de acasos,

cascatas de infortúnio, e a felicidade do retorno de Cordélia, da qual

se espera o resgate, apenas aguça, após um momento de reconciliação,

o pavor da sua morte e lança no desespero o velho Lear, sem que

Shakespeare ofereça ao espectador elementos que possam atenuar o

amargor do triste fim que espera o rei decaído.

Se houver nessa peça algum movimento rumo à penitência, ao

arrependimento e à redenção, ele se desenha de modo mais nítido no

enredo secundário, que confronta Gloucester com seus dois filhos e

com seus próprios erros e transgressões. Veremos no final deste ensaio

como também ele volta a lembrar o filho injustiçado, tal como Lear

relembra Cordélia, reencontrando nele o princípio da esperança que o

salva do desespero de Lear, lamentando a morte da filha.

NATUREZA E ALTERIDADE

Seguindo as linhas secretas que estruturam essa complexa peça de

Shakespeare, encontramos vários duplos de Lear que representam

contrapesos à posição privilegiada da realeza, além de balizas à

loucura do rei. A função deles é ser sementes hibernantes que

asseguram um possível retorno da ordem divina — de uma ordem

diversa das intenções humanas (e às vezes misteriosa). Um desses

duplos (ao lado de Gloucester e do Bobo) é Edgar como Pobre Tom —


o nobre herdeiro injustiçado, expulso e perseguido, que sobrevive

graças ao seu disfarce de criatura aparentemente louca e desvalida.

Sua transformação em mendigo é a estratégia de uma mente superior,

tanto por sua inteligência quanto pelo seu mérito moral: sua

paciência, humildade e misericórdia. As razões de Edgar parecem

estratégicas — sua salvação depende do disfarce. Seu disfarce de Pobre

Tom é descrito por ele mesmo na cena II.III:

EDGAR Ouvi o meu nome denunciado, e no oco

Propício de uma árvore, escapei à caçada.


Não há porto aberto, não há posto que não

Esteja pleno de guardas e de espias, prontos

Para me aprisionar. Se continuar em fuga

Eu sobrevivo, e estou resolvido a vestir

A aparência mais baixa e abjeta que jamais,

Em seu desprezo ao homem, a penúria abeirou

Do bestial. Meu rosto vou manchar de esterco,

Os quadris, cobrir com trapos, as crinas, elfear com nós,

E, ostentando meu corpo nu, afrontarei

Os ventos e as duras perseguições dos céus.

O país me oferece o exemplo e o precedente

Dos mendigos de Bedlam que, aos gritos, uivando,

Fincam nos braços dormentes, amortecidos,

Pregos, espinhos, lascas, fiapos de alecrim

E, co’a carranca horrenda, vão, cheios de pragas

Lunáticas, rezas, forçar a caridade

Aos humildes roçados, aos redis e moinhos,

E aos pobres rotos arraiais. Pobre bronco-tonto,

Pobre Tom. Isso é algo. Edgar já não sou.

(II.III.1-21)

A nova des-identidade de Edgar não será mero disfarce estratégico,

pois tudo o que faz como Pobre Tom nos parecerá loucamente

autêntico, e muitas vezes esquecemos sua “verdadeira” identidade.

Nu, exposto aos elementos (presented nakedness), ele afrontará as


mesmas intempéries que abatem Lear. Sua penúria é extrema, atrai o

desprezo alheio e transforma o ser humano em simples animal, em

“naturalidade” pré-humana. Nele estão fundidos a insanidade dos

loucos mendigos de Bedlam32 e a possessão dos demonizados cuja

perseguição é descrita em tom satírico por Harsnett em seu livro A

Declaration of Egregious Popish Impostures, de 1605, uma longa sátira

sobre os exorcismos praticados por religiosos católicos em Denham,

Buckinghamshire. Ele nos dá a imagem de criaturas uivando como

cães nas estradas, buscando a esmola dos mais miseráveis, os pobres

rendeiros dos campos.

Edgar se dá o nome de Turlygod, palavra sem sentido com as

ressonâncias de “turlupin”, o nome da fraternidade dos mendigos nus

no século XV. Ele não é apenas um louco, mas um ser fabuloso, uma

criatura misteriosa, que traz algo dos demônios (bons ou maus) que

percorrem os campos e os bosques. Ele diz que irá “elfear” seus

cabelos, torná-los desgrenhados como os dos elfos. A sugestão deixa

entrever a intenção de Shakespeare de apresentá-lo não apenas como

uma figura da destituição, mas também o seu inverso, um gênio

agrário capaz de agir sobre as coisas e os homens e que aponta algum

poder e conhecimento sobrenaturais.

Num primeiro momento, porém, os outros personagens veem Pobre

Tom apenas como a encarnação da alienação. Para o leitor e o

espectador, sua função é a de uma caixa de ressonância da desgraça de

Rei Lear. É ele que tudo vê e tudo delicadamente manipula: seu

coração avança passo a passo, sua fortaleza se revela gradativamente

como o bastião que garante o reganho do reino que parecia em ruínas.

Seus solilóquios intimam o espectador a refletir sobre o destino e a

sorte, e ele intervém na sorte dos outros com uma enigmática força
benéfica, quase diríamos eudaimônica, que traça limites ao domínio

da natureza hostil. Seu ardil e sua sabedoria nascem da necessidade e

da aceitação do mundo das aparências, o qual, ao mesmo tempo, se

apresenta como um imenso teatro dos sentimentos. Edgar-Pobre Tom

nos introduz no avesso do avesso, nos faz ver os efeitos de seu

fingimento e das encenações alheias — como Prospero, ele tem a

capacidade de transformar a alienação e o desvario louco do

desespero em mágica, fantasia, em milagre.

Para escrever o segundo enredo de sua peça, Shakespeare se

inspirou na Arcadia, de Sidney. Ao fundir elementos da história do rei

da Paflagônia de Sidney (uma história similar à de Gloucester e seus

dois filhos) e a caracterização da possessão e do fingimento tirada do

livro de Harsnett, Shakespeare potencializou ao máximo Edgar-Pobre

Tom, esse protagonista misterioso na peça.

Quando aparece pela primeira vez, Edgar-Pobre Tom fala uma

língua desarticulada, automática, repetitiva e insana — como uma

fantasmagoria — de dentro da choupana. Ao ver a figura esquálida,

Lear pergunta se o pobre coitado não foi também, como ele próprio,

atraiçoado por suas filhas. “Então deste tudo às tuas filhas? E

acabaste deste jeito?” Ele se compadece, por identificação. Kent logo

intervém, retificando a fala de seu amo com delicadeza, sugerindo-lhe

certa razão e decoro: “Ele não tem filhas, senhor”. Pobre Tom aparece

para Lear como o reflexo de sua própria condição. Se, antes de

encontrá-lo, Lear falava de chacoalhar “o supérfluo” e postulava que

“os mendigos mais baixos nas coisas mais pobres têm supérfluos”,

agora, diante do espetáculo da miséria, da desarticulação e da loucura,

ele se identifica com a “coisa”, o “animal desnudo” (forked) que tem

diante de si.
Um homem sem comodidades é apenas um mísero animal desnudo, um bicho bípede como

tu. Fora, fora com esses trapos emprestados. Vem, desabotoa aqui. (rasgando suas roupas

[…]).

(III.IV.111-4)

Imitando Pobre Tom, Lear começa a se desvestir, buscando livrar-se

do “supérfluo”, e abraça a miséria numa atitude de humildade plena

de teatralidade. O homem agora desvestido, sem roupas, deve sentir

que os nervos e os músculos são uma defesa frágil contra as

intempéries. Ele é uma coisa, uma presa inerte, talvez um verme, nu,

vagaroso, ignóbil e rastejante, um ser que pode ser trucidado a

qualquer momento. A figura da imitatio Christi é levada às últimas

consequências.

Edgar é um mestre da ficção do despojamento encenado também na

sua linguagem aparentemente desarticulada: “Quem é que dá algo pro

Pobre Tom […] Tom tá com frio”. Mas em tudo o que diz cintilam

verdades inesperadas. Entre o delírio do possuído e a necessidade do

homem desnudo, a conversa entre Lear e Edgar é um bizarro diálogo

pontuado por lúcidas observações do irônico Bobo: “Esta noite fria

vai nos transformar a todos em bobos e loucos”. Junto se ouvem os

refrãos insistentes de Edgar, que admoesta os seres humanos a

respeitar os pais, repetindo seus adágios como um pregoeiro religioso

alucinado. A paródia dos pecados paternos no autorretrato que Pobre

Tom faz de si ao falar de seu passado como o de um homem lascivo e

um cortesão depravado denuncia, é claro, os pecados de Gloucester,

mas talvez também os de Lear:

Um servidor, de mente e coração ufano, que cacheava os cabelos, prendia luvas na boina,

servia à lascívia do coração de minha dama, e com ela cometi aquilo que se faz na

escuridão. Fiz tantas juras quanto proferi palavras, e as quebrei todas perante a doce face

do céu. Era aquele que dormia excogitando luxúrias e acordava para executá-las. Grande
amante do vinho, terno amigo dos dados. E, no tocante às mulheres, de longe superei o

turco: coração falso, ouvido leviano, mão sanguinária. Um porco na indolência, raposa na

astúcia, lobo na cobiça, na fúria um cão, na rapina um leão. Não deixes que o rangido dos

sapatos nem o frufru das sedas entreguem teu pobre coração a uma mulher. Mantém os

pés longe dos bordéis, as mãos fora dos saiotes, tua pena longe dos livros do usurário, e

vai e afronta o malino imundo. O vento frio ainda tá soprando por entre o pirliteiro. […]

(III.IV.86-102)

A moral desse discurso é confusa apenas em aparência. Ela articula

no registro do grotesco e do cômico a crítica dos atos paternos que

reduziram os filhos leais a vítimas e transformaram os desleais e

traiçoeiros em carrascos.

Já as intervenções do Bobo não são simples válvula de escape

cômico no seio da tragédia. Espelho invertido para Lear, sua voz

busca trazer Lear de volta à realidade com facécias, ironias e enigmas.

Ele, contudo, esbarra na incapacidade de escuta do monarca. As

colocações do Bobo, com suas canções alusivas, são sempre

extravagantes e enviesadas, indiretas e obscuras, contrastando, em sua

jocosidade e seus motes e adágios populares, com a desolada cena. Ele

não é um natural fool, termo que conotava os bobos de nascença, os

“simplórios” (simpletons). É um bobo artificioso, conhecedor e

penetrante, nada simplório, servindo de espelho reverso à insensatez

(folly), à estultícia (foolishness) e à loucura (madness) de Lear.33 É o

bobo oficial ao qual são permitidos a paródia crítica e os labirintos da

imaginação: pertence à longa tradição dos bobos que não podem

faltar nos festejos e cortejos, e cuja arte dá sentido à loucura e à

transgressão. Tal como Pobre Tom, ele está fora e dentro do mundo,

ambos conhecem, dominam e respeitam as convenções e reproduzem

suas figuras no registro do maravilhamento “louco”.

Cabe lembrar aqui a referência bíblica a respeito da função

paradoxal dos tolos e dos sábios. Em São Paulo, em 1 Coríntios (1,27-


8), há um suposto paradoxo da sabença dos tolos.

Mas o que é loucura (tolo) no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é

fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil

e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é.

“Tolo”34 traduz môra, do grego, mas nos diálogos entre Lear,

Pobre Tom e o Bobo ficam claros a sabedoria e o espírito de agudeza

(wit), talvez da simplicidade (incultamente culta) em contraposição à

sabedoria do erudito hipercultivado (sophous) ou da inteligência

utilitária do homem “forte”. Os derivados etimológicos do termo

môra são complexos, serão entrelaçados e confundidos no medievo

com a palavra fol, originada do francês medieval, significando

“louco”, uma pessoa insana, um idiota ou ainda um bufão. O termo

se relaciona com follus, do latim medieval, “saco”, “saco de sopro”,

gaita-fole. A estultice, a loucura, assim como o histrionismo, como em

um conjunto complexo de associações, estavam no centro das

discussões filosóficas sobre a natureza complexa da vanitas (vaidade e

vacuidade da existência humana) desde o final do Medievo. Na crítica

moral e filosófica, esse complexo de termos se configura como

princípio negativo da ilusão humana; mas pensadores mais

sofisticados, como Erasmo de Rotterdam,35 insinuaram o lado

paradoxal — a função eficaz que a ilusão desempenha na vida

humana. De um conceito moral, conotado muitas vezes dentro da

dogmática sobre o pecado, passava-se para uma noção que, sem

perder seu sentido negativo, ancora a humanidade na ilusão.

A obra medieval A nau dos insensatos (Narrenschiff, no original

alemão), de Sebastian Brant, conjugava os atos humanos e os atos dos

bobos, obviamente com intenção condenatória e corretiva. As

ilustrações de Nau dos insensatos, com homens que portam o capuz


orelhudo dos bobos, sugerem a continuidade entre a razão do bobo

estulto e a desrazão da humanidade. Os bobos não são os bobos

carnavalescos apenas, mas todos os homens, até mesmo os mais sábios

e eruditos, e aqueles com reptos de santidade. A loucura e a insensatez

estão disseminadas no tecido humano e é inútil tentar escapar ao seu

domínio: o velho, o jovem, o rico e o pobre, o ignorante e o erudito,

todos são vítimas do canto de ilusão da humanidade, todos são bobos-

tolos levados pela fantasia potencialmente pecaminosa, pela vanidade.

Erasmo de Roterdam, em Elogio à loucura, transforma a “estultice”

no estado de inconsciência do homem — esquecido de

responsabilidade e racionalidade: seu livro se aproxima de uma

descrição antropológica, em vez de um ensaio sobre a moralidade

humana.

Observa-se, nesse complexo de pensamentos, uma constante

alternância entre o bobo-tolo como condição humana culpável e como

condição humana irreprimível e eterna. Ao tornar o desvario algo

próprio do homem, Erasmo chegará, numa sugestão de síntese irônica

e paradoxal, a quase postulá-lo como o princípio motor da realidade

humana. Embora faça a “loucura-estultice” elogiar a si mesma e falar,

condescendente, ao modo de um folião sofista das festas dos pândegos

no Renascimento, a sugestão é que a loucura-estultice é indissociável

da vida, ainda que de modo algum dissociável dos males do mundo.

Em Erasmo, a posição da loucura é intermediária, ambígua e

paradoxal.

Shakespeare conjurou também a ideia do bobo como inocente,

como criatura, e as ideias de inversão social e carnavalização que

possuíam uma longa tradição na Europa. Aqui é preciso evocar a bem

conhecida tradição das festas dos bobos — do fenômeno para o qual


Bakhtin (e Auerbach) chamaram atenção.36 No caso de Rei Lear, a

questão tópica é particularmente relevante, pois Rei Lear teve sua

primeira performance na corte, na noite de Santo Estevão (26 de

dezembro) de 1606, data que coincide, no calendário popular,

acadêmico e das confrarias medievais, com os tradicionais espetáculos

de Natal que encenavam, entre outros gêneros, histórias de inversão

social.37

Um exemplo desses antecedentes ou paralelos comunais de

inversões hierárquicas e de gênero era, no mundo francês medieval, o

dos reis festivos que eram elevados carnavalescamente por meio de

eleição ou da fortuna. As confrarias literárias e dramáticas do

continente elegiam reis pândegos para participar das sotties, debates

satíricos. Na Igreja, no Ano-Novo, um bobo era eleito como rei, o

chamado rex stultorum, rei dos estultos, e na Festa da Epifania, nas

cortes do rei francês, o rex fabarum, o rei das favas era entronado

solenemente.38 Evocado por Bakhtin, por outro lado, o “realismo

grotesco” não é uma simples criação literária, mas um macrocosmo

paralelo e complementar à alta cultura hierárquica do período,

constituindo uma cultura da “praça pública”, das festas dos bobos,

das inversões de papéis ou ainda, para usar o termo de Bakhtin, da

“carnavalização”.

Entretanto, a cultura das folias carnavalescas com suas inversões da

ordem não eram apenas práticas populares. No contexto inglês havia

uma absorção dessas práticas celebratórias por parte também das

elites. A inversão cósmica estava nas facécias populares bem como na

comédia e no teatro universitário, que apresentava peças jocosas com

reis cômicos. Sandra Billington reuniu em seu livro Mock Kings in

Medieval Society and Renaissance Drama [Reis cômicos na sociedade


medieval e no teatro renascentista] o retrato dos chamados reis de

inverno, dos reis e rainhas do verão e dos reis da fortuna, mostrando-

os tanto nas festividades de camponeses como nos entretenimentos na

universidade e nos Inns of Court. A autora descreve essas celebrações

que, num dado momento, serão transpostas para o teatro, numa série

de peças mais elaboradas, como The Troublesome Reign of King John

[O reinado turbulento do rei John] e The Misfortunes of Arthur [As

desventuras de Arthur], interligando as formas mais festivas do mock

king com a apresentação, em peças contemporâneas, de reis ineptos.39

Ainda que seja tênue a associação entre essas manifestações e a peça

de Shakespeare, é palpável em Rei Lear certa permanência, submersa e

latente, da figura do mock king. São traços mais estruturais do que

óbvios enfatizando sua tragicidade. Mesmo cenas sérias, como a

sequência em que Lear é rejeitado por Goneril e Regan, suscitam algo

de patético pelo efeito das repetições quase grotescas. Na cena dos

penhascos de Dover, a reintegração de Gloucester ao mundo da

esperança, o milagre que sua queda (imaginada) opera é fruto da

interferência “sábia” de uma criatura louca que, bizarramente, aceita

escoltá-lo para o suicídio, mas apenas para evitá-lo. A cena é

comovente, porém o sorriso se dá simultaneamente à emoção de ver o

filho salvando o pai.

A relação entre Lear e o Bobo também segue essa figuração de

inversões estonteantes. O juízo está com o Bobo, e Lear cada vez mais

é associado à foolishness. Lear responde a Gloucester em certo

momento, e essa transmudação de posições se reflete na consciência

da inversão dos valores mundanos: “Põe um no lugar do outro, cara

ou coroa, quem é o juiz, quem é o ladrão?”(IV.VI.160-1), diz Lear, agora

sugerindo esse mundo invertido da autoridade, da tradição das


inversões e, no caso mais tópico, da posição do juiz e do acusado. Ao

final, aqui o bobo é sábio e o mestre é tolo.

Por outro lado, se Lear se transforma em tolo, também se

transforma em louco, e na loucura, ocasionalmente, laivos de

sabedoria se sobressaem. Ele passa a perceber os erros e cegueiras de

sua vida na realeza e começa a duvidar da justiça e da autoridade que

punem mais o miserável, porém raramente o rico. Sempre em meio ao

delírio, certa agudeza viva o faz ver que a dureza dos agentes dos reis

com as prostitutas está no fundo a punir apenas a própria lascívia dos

justiceiros — e que não há nenhuma garantia de que não estejam

abusando de seu poder. São comparados a cães de guarda que

castigam apenas os miseráveis sem poder. Sua comparação entre o

agiota e o caloteiro comum é notável: o novo corrupto, com seus

novos métodos, não deixa ele próprio de descobrir nas suas virtudes

punitivas sua ambição e lascívia.

LEAR Quando o miserável foge do vira-lata,

Tu tens a soberba imagem da autoridade:

Até um cão, se tem um cargo, é obedecido.

Oficial canalha, detém tua mão sangrenta ;


Por que razão açoitas essa prostituta ?
Esfola teu próprio dorso! A mão que flagela

É a mesma que cobiça o corpo que fustiga.

O agiota para a forca expede o caloteiro.

Por trás da roupa rota o vicioso aparece,

Mas mantos, peles, joias dissimulam tudo!

Cobre de ouro os pecados, e a forte lança

Da justiça se espedaça e os deixa intactos.

Mas se forem trapos, a vara do pigmeu

Basta para perfurá-los. Não há culpados,

Não, não, nenhum culpado. Eu absolvo: todos!

Ouve o que digo, amigo, pois tenho o poder

De calar a voz do acusador. Vai e arranja


Olhos de vidro, e aí, feito reles político,

Finge estar vendo aquilo que não vês. Agora,

Vamos. Tira minhas botas, força, mais! Isso!

(IV.VI.163-81)

A mesma loucura que inunda Lear e o faz ver a efemeridade

humana leva-o, em cenas anteriores, a inverter jocosamente as

instituições. No auge do encontro enfurecido, ele orquestra um

pseudojulgamento jocoso, sátira grotesca do sistema de justiça. Lear

elege seus juízes: o pobre e insano Pobre Tom, que é descrito como um

“juiz togado”, e o próprio Bobo como juiz “colega”, ao passo que

Kent, um nobre, se torna um simples “juiz comissionado”. É um

julgamento com as formalidades normais, mas a acusada (imaginária),

Goneril, não se encontra no lugar, e é substituída por uma banqueta.

A justiça, por enquanto, só sabe se afirmar na forma carnavalesca de

um julgamento-arremedo que condena as filhas de Lear que gozam, na

realidade, de todas as benesses do poder régio. Justamente quando a

justiça deve ser feita, ela não passa de um arremedo entre três

criaturas pertencentes ao cômico da folatria.

CINISMO E FEROCIDADE

Ao longo do ato III, uma loucura de outra ordem se instala nos

espaços supostamente civilizados da corte, em cenas que estão

intercaladas com aquelas ambientadas no ermo. É um mundo de

valores invertidos. Gloucester fala com seu filho Edmund, dizendo que

ele não gosta da “conduta desnaturada” nos últimos eventos

(unnatural), referindo-se à proibição que lhe foi imposta pelas filhas,

vedando qualquer socorro a Lear, ao passo que Gloucester se sente

ainda na obrigação de prestar obediência e lealdade a seu monarca.


Esse sinal da lealdade e da bondade — ainda que vinda de um pai que

cometeu um erro com seu filho legítimo — está ausente no novo

mundo fundado por Regan, Goneril, Edmund e Cornwall.

Gloucester ainda não percebeu que Edmund é uma encarnação

paródica das facetas paternas mais sombrias, em particular das suas

pulsões eróticas e dos desejos demasiadamente “naturais” (no sentido

da natura naturans, da força biológica). Lembremos que na primeira

cena Gloucester admitira diante de Kent, em tom jocoso, sua

preferência pelos prazeres do leito adúltero com a mãe de Edmund e

pelo rebento vindo de uma “festa” (erótica) com a mãe ilegítima. Do

mesmo modo, Edmund tampouco faz segredo de suas opções cruas e

naturais. Bem se vê na sua cínica constatação: “Quando os jovens se

erguem, tombam os velhos pais”.

No novo mundo endemoniado de Goneril e Regan, a força dita as

regras; em III.V.5-8 Cornwall dirá a Edmund, estimulando sua

deslealdade em relação ao pai: “Noto que não foi apenas a índole

nefanda de seu irmão que fez com que ele buscasse a morte do seu pai,

mas o estímulo de um mérito posto em marcha por alguma maldade

reprovável do pai”.

Chegaremos ao paroxismo dessas violências na cena do cegamento

de Gloucester — que merece, de fato, o nome de “antinatural”. Seu

cegamento, perpetrado nos seus próprios aposentos, é um espetáculo

de violência repugnante que atenta contra as regras de hospitalidade.

Gloucester lembra a Cornwall, Regan e Goneril que eles são seus

hóspedes. Mas a própria cena, marcada pela urgência militar, avança

com trocas impressionantemente delirantes entre Cornwall, Regan e

Goneril.
CORNWALL (a Goneril) Dirija-se com diligência ao lorde seu marido. Mostre-lhe esta

carta: o exército da França aportou. (aos servidores) Procurem Gloucester, o traidor.

REGAN Enforquem-no imediatamente.

Saem alguns servidores.

GONERIL Arranquem-lhe os olhos!

(III.VII.1-5)

Quando enfim Oswald, entrando em cena, informa Cornwall de

que Lear foi levado a Dover para se unir a um exército aliado, a fúria

do grupo se incendeia, convertendo o que era uma sugestão em ato:

Cornwall arranca o primeiro olho de Gloucester em cena aberta. O

que se segue, porém, é mais surpreendente. Um dos servidores de

Cornwall se ergue e mostra sua arma para defender Gloucester no

exato instante em que seu senhor está pronto para arrancar o segundo

olho do velho. É uma evidente quebra da hierarquia entre servo e

senhor. Ele termina por ferir mortalmente Cornwall. É também um

momento de contraste absurdo. Quando o caos se instaurou na casa,

parece que ainda um homem, um subalterno, reconhece que sua

lealdade ao seu mestre tem limites e, mesmo relembrando sua ligação

desde a infância com Cornwall, o fere mortalmente. O que ele faz é

responder ao apelo desesperado de Gloucester:

Quem ainda quer viver até a velhice,

Me ajude! Oh, crueldade, oh, deuses!

(III.VII.72-3)

Um ato humano, sem dúvida, mas o apelo aos deuses que antecede

o gesto corajoso do servidor poderia sugerir uma vingança divina — a

força da ira divina agindo pelo punho de um subalterno. É uma das

muitas passagens em Rei Lear em que Shakespeare insinua, sem que

possamos verificar sua veracidade, que por trás da ação do subalterno


há uma força segunda a atuar no destino dos homens. É uma

passagem sugestiva, um desses momentos em que Shakespeare insinua

algo, porém não nos dá a prova. Mas o evento se impõe pelo menos

como uma atitude humana excepcional, uma exceção no mundo de

crimes.

Gloucester, já com os olhos arrancados, clama pela vingança de

Edmund, ao que Regan responde, aumentando o horror e a

consternação do velho: “Apelas por alguém que te detesta”.

Gloucester, horrorizado, retruca: “Meu delírio! Edgar então foi

caluniado! Bons deuses, perdoai-me, fazei-o prosperar!”. Palavras

proféticas, arrependidas, mas que, ditas por um pai no instante

climático de sofrimento, soam como uma maldição que poderá minar

o futuro do filho nefasto. Essas sugestões, de qualquer modo, revelam

o quanto a peça é capaz de estimular e afagar os desejos comuns de

uma reversão retributiva — talvez divina. Ainda que estimulado

apenas por essa alusão fugidia, o espectador ou o leitor não tem

acesso algum a uma aparição divina indubitável que surja à clara luz.

NOS IMAGINÁRIOS PENHASCOS DE DOVER:

SUICÍDIO E SALVAÇÃO

Na cena sublime da chegada de Gloucester e de Edgar-Pobre Tom aos

imaginários penhascos de Dover, assistimos a uma encenação

tipicamente shakespeariana do tema cristão da redenção: ele é

refratado em diversas perspectivas e imagens construídas que

introduzem efeitos estranhos nos acontecimentos representados e na

nossa percepção daquilo que ocorre na cena.


Shakespeare sugere que o remorso de Gloucester foi tão amargo que

ele decide pôr fim à vida. O desejo de Gloucester de se suicidar não

era, para o século XVII, um ato simples: no mundo cristão e jurídico do

século XVII, o suicídio era considerado um pecado mortal e tinha

consequências jurídicas e teológicas. O (suposto) suicídio de Ofélia,

em Hamlet, com suas ambiguidades, leva o padre a negar algumas das

liturgias apropriadas a um enterro cristão. Além de ser um pecado em

si mesmo, o suicídio era a consequência de um sentimento

considerado igualmente pecaminoso, o desespero, sinal da falta de fé.

É o desespero que acossa os anjos caídos de Milton, é o desespero que

rouba de Cordila, personagem de Mirror for Magistrates, a vontade de

viver, arrastando-a ao autocídio, um desfecho que Shakespeare evitou

para a sua Cordélia. No Mirror, Cordila perde o direito à redenção

final ao tirar sua vida e ouvir o canto sinistro da personificação do

desespero. Logo após seu suicídio, narrado pelo próprio fantasma de

Cordila, subitamente o autor assume a voz da narração para

moralizar, instruir seu leitor sobre o sentido dessa decisão terrível. É

uma interferência edificante que explica o caso. Segundo ele, Cordila

perdeu a chance de esperar a eternidade, de entender a história divina

que, ignota, mesmo assim guarda uma promessa. O desespero é

sobretudo signo da descrença.

Eis a razão pela qual a Cordélia de Shakespeare é vítima de

assassinato, não de um ato blasfemo; Gloucester, por sua vez, será

salvo dessa impiedade por seu filho Edgar. Não é mera coincidência

que Edgar seja circunspecto a ponto de conseguir transformar o

sofrimento extremo em esperança.

Sim, é melhor saber-me desdenhado a ser

Desprezado e adulado. A pior, a mais baixa,


Mais aviltada coisa da fortuna, ainda

Perdura na esperança, não vive no medo.

(IV.I.1-4)

Ele salvará seu pai por meio da encenação de uma queda no

abismo, que na verdade não passa de um pequeno pulo do “alto” de

uma pedra baixa, o que permite a Gloucester sobreviver. Edgar se

finge depois de pescador que, no fundo do abismo, chega para

socorrer Gloucester após a fictícia queda. Ele lhe descreve o que

supostamente viu — a descrição evoca todas as sensações que o velho

teria tido, tivesse ele se jogado do penhasco, a vertigem do voo livre

do corpo caindo no penhasco, o impacto do corpo nas pedras à beira-

mar, o “ressuscitar” depois de impacto tão violento. Evocando na

mente e na imaginação um acontecimento fictício que deveria

terminar na morte, ele proclama a incrível sobrevivência de Gloucester

como um milagre.

Não falta um traço paródico e quase cínico nessa encenação; mas

ao mesmo tempo ela opera como um ritual de passagem que arranca o

desesperado velho à melancolia e sinaliza que, agora, depois desse

trauma descomunal, ele pode começar uma nova etapa. E, nesse

sentido, a paródia um tanto sarcástica é também comovente, um

teatro dentro do teatro: metaencenação do funcionamento da

imaginação e da ficção.

Pois o espectador não vê nada além de Gloucester e Edgar-Pobre

Tom parados em um palco limpo, sem nenhum penhasco

representado. A realidade do precipício emerge com a descrição e a

arte das palavras — assinalando que todos os bens da humanidade,

seus valores e crenças, suas hierarquias sociais e políticas, não passam

de ficções eficazes.
GLOUCESTER Quando chegarei ao topo do penhasco ?
EDGAR Nós já estamos subindo. Não sente o esforço ?
GLOUCESTER A mim me parece plano.

EDGAR Terrivelmente

íngreme.

Não está ouvindo o mar ?


GLOUCESTER Sinceramente, não!

[...]

EDGAR Eis o lugar, senhor. Não se mova. É horrível,

Vertiginoso olhar um penhasco tão fundo!

Os corvos e as gralhas que roçam o ar abissal

Parecem ao longe minúsculos besouros.

No meio da penha, pendurado, um homem cumpre

Sua tétrica labuta colhendo o perrexil!

Não parece maior que sua própria cabeça.

Os pescadores na praia parecem ratos

E lá, aquela nave ancorada, altaneira

Mirrou, parece um bote, e o bote, uma boia

Que quase não se vê. Aqui destas alturas

Mal se ouve o estrépito das ondas que castigam

O pedregal inerte. Não vou mais olhar,

A vertigem pode me sorver a visão

E me sugar no abismo.

(IV.VI.1-25)

Ele descreve as coisas e os seres à distância, como seres microscópicos,

diminutos: salta aos olhos o contraste entre o grande e o pequeno, o

longe e o perto, o baixo e o alto, todos envolvidos na imensidão

inesgotável do espetáculo sublime e nítido que diz ao homem de sua

fugaz pequeneza e sua necessária humilitas. No entanto, outro

contraste, não evidenciado, é percebido somente pelo espectador:

entre realidade e fantasia, a ficção revivificadora e a verdade trivial.

Visualizamos o conjunto e sabemos que o que está sendo conjurado é

aquilo que o pensamento do século XVIII chamou de sublime. Mais do

que isso: a profundidade do retrato e o fato de estarmos vendo apenas


a cena patética de um velho cego ao lado de um mendigo produz certo

frisson irônico que talvez, de fato, seja para nós similar ao efeito do

sublime, essa incapacidade de compor duas grandezas que são

aparentemente contraditórias.

Séculos após Shakespeare, escritores familiarizados com as teorias

psicológicas e psicanalíticas do século XX tomaram consciência de que

qualquer sentimento chamado “profundo” — capaz de nos emocionar

e comover, de suscitar admiração e convidar à contemplação — já

deixou de ser um mero sentimento, revelando-se no fundo uma

construção do entendimento e da imaginação, uma invenção

desdobrada com os infinitos artifícios estéticos e intelectuais.

Shakespeare, entretanto, antecipa de modo implícito esse

conhecimento da natureza ficcional dos grandes sentimentos, suas

figuras poéticas nos falam dessas complexas realidades imaginárias,

embora não existam ainda formulações discursivas, teorias e conceitos

que as nomeassem e classificassem.

Assim, o penhasco e o espetáculo profundo, vivo na descrição, que

o amor de Edgar prepara para seu pai (e para o público), não deixam

de ser reais, embora sejam induzidos pelo artifício imaginativo de

Edgar, que contamina e altera o que se passa na alma do velho

Gloucester e do espectador: ambos podem enxergar apenas o que se

constrói na imaginação, a encenação do espetáculo abissal. A salvação

de Gloucester, portanto, virá da ficção, e essa por sua vez é possível

somente porque Edgar, consciente de sua estratégia, não diz quem é,

interfere evitando a revelação de sua própria identidade — uma recusa

que alguns críticos interpretaram como frieza cruel e falta de

misericórdia, e como causa do desespero e do suicídio planejado.40


Veremos que a construção da cena é mais complexa, embora não

exclua a faceta de certa crueldade e ressentimento filial. Gloucester

cai. O espectador nada vê com os olhos, mas somente com os olhos da

mente. Mas, com os olhos, só há um velho, joelhos no chão —

estatelado, vivo, sobrevivido. A encenação de Edgar, porém, não

termina com o gesto desalmado do filho permitindo a queda de seu

pai. No fundo do penhasco, junto às vagas que batem nas pedras

calcárias, o filho se transforma em figura acolhedora, quase crística:

encontra o pai iludido de ter caído de tão alto — altitude transposta

ao abismo que é por si só uma metáfora da peça. Transformado em

humilde pescador, Edgar, esse grande ator, agora transforma a

desolada e tétrica cena em “milagre”. Ele próprio descreve a queda:

EDGAR Ainda que tu fosses teia, pluma ou ar,

Despencando várias braças penha abaixo,

Te espatifarias feito um ovo. Mas tu

Respiras, falas, e teu corpo está intacto,

Não estás sangrando. Dez mastros sobrepostos

Não dão a altura de tua queda vertical.

Tua vida é um milagre.

(IV.VI.53-9)

Ele pronuncia a palavra final que desperta a transformação: foi um

milagre! A bela mentira teatral, entre séria e cômica, forjada por

Edgar, leva à ressurreição espiritual de Gloucester, numa reviravolta

da sua fortuna, ou seja, em um afortunado infortúnio. O abismo, na

sua verticalidade, torna-se emblema tanto da queda (identitária) como

da sua elevação. O pescador lhe diz para olhar para cima. A expressão

é anódina, uma variante para o olhar humano que se volta para as

alturas: o traço sugestivo evita a menção direta, mas é clara a sua

pertença ao imaginário cristão. Esse é o momento do reconhecimento


de Gloucester de si mesmo: seu erro vem-lhe à mente. É sublime em

Pobre Tom sua capacidade de produzir a cena dentro da cena, que,

sendo um procedimento cômico, algo jocoso, está a serviço da

tragédia.

Como boa parte da peça segue a metáfora da cegueira e da visão,

esse momento da queda se torna também, em contraposição, um

momento de elevação que coincide com a recuperação da visão

espiritual, mais elevada que a visão física. A cena emerge do

imaginário cristão, por exemplo do relato de resgate da visão que

encontramos em Marcos 8, 22-26.

E chegaram a Betsaida. Trouxeram-lhe então um cego, rogando que ele o tocasse.

Tomando o cego pela mão, levou-o para fora do povoado e, cuspindo-lhe nos olhos e

impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe: “Percebes alguma coisa?”. E ele, começando a ver,

disse: “Vejo pessoas como se fossem árvores andando”. Em seguida, ele colocou

novamente as mãos sobre os olhos do cego, que viu distintamente e ficou restabelecido e

podia ver tudo nitidamente e de longe.

Esse é o pedido do Edgar pescador: Gloucester deve olhar para cima e

para além do mundo físico, e assim seu gesto coincide com a visão

sublime (espiritual) do divino.

A arte de Shakespeare multiplica as perspectivas de nossa

percepção. Enxergamos o mundo com os olhos de Pobre Tom, de

Edgar e do próprio Gloucester, somos afetados pelos sentimentos que

Gloucester sente por Pobre Tom e pelas percepções que Edgar tem de

Gloucester. Janet Adelman descreve da seguinte maneira os efeitos

caleidoscópicos dessa cena:

A descrição de Edgar do penhasco de Dover possui uma densidade visual que não é

aparente em mais nenhum outro lugar da peça: uma densidade criada em grande parte pela

insistência de Edgar nas limitações da visão, em coisas “quase demasiado pequenas de

serem vistas”. E, na verdade, a nossa visão não nos serve aqui de guia. Confrontados com
o palco plano e habituados a acreditar em Shakespeare quando ele nos diz onde estamos,

vemos o penhasco como o faz Gloucester, com os nossos ouvidos; mas a suspeita de

Gloucester de que o terreno é plano, combinada à nossa relutância em crer que Edgar

permitiria ao seu pai se suicidar, irá simultaneamente fazer-nos suspeitar dos nossos modos

normais de visão de palco. Enquanto Gloucester se prepara para pular, o status incerto do

penhasco, no nosso olhar mental, permite-nos participar simpaticamente da despedida de

Gloucester, mesmo quando reservamos o julgamento: o penhasco, invisível para ele,

também é invisível para nós, mas ainda assim vividamente presente para ambos. A

realidade do penhasco se torna mais suspeita quando Edgar nos diz, pouco antes da

despedida, que ele está brincando com o desespero de seu pai para curá-lo; mas não

entendemos a natureza de reação dessa trivialidade senão depois da queda de Gloucester,

quando Edgar nos permite ver claramente com ele, pela primeira vez na cena. O penhasco

é fictício; o palco plano é realmente plano; podemos confiar em nossos olhos e ter certeza

de que Gloucester não está morto. Mas somos imediatamente roubados dessa certeza da

percepção à medida que Edgar percebe com crescente medo o perigo de brincar com o

desespero.41

No mar de violência e loucura, a ação de Edgar-Pobre Tom se destaca

aos poucos como uma ilha de simpatia e ponderação, mas também

como presença pedagógica camuflada pela distância irônica.

Shakespeare recorre a um sutil jogo metateatral para tornar verossímil

pelo menos uma reviravolta redentora nessa peça: o perdão e o

retorno do amor filial depois da dupla traição. Não com uma guinada

melodramática da lenda, mas com um esboço estético interessante,

que mostra uma metamorfose lenta e verossímil do profundo trauma

de Edgar.

RETORNO E RESGATE

Na cena 4.3, presente apenas na edição in-Quarto, Kent se encontra

com um fidalgo que lhe descreve as reações de Cordélia ao receber

uma carta que informa sobre Lear. A cena, aliás, prepara a próxima,

em que veremos Cordélia já na Bretanha, inteirando-se dos


acontecimentos e do estado lamentável de seu pai. Sua réplica à leitura

da carta é descrita com vagar pelo cavalheiro que conta como, ao

receber a carta de Kent, Cordélia expressou sua profunda comoção.

Ele afirma que sua reação não foi de ira, mas de extrema piedade. O

relato indireto do fidalgo revela um retrato de seus sentimentos

genuínos, que ele descreve com adornos poéticos expressivos.

[…] O senhor

Já viu sol e chuva ao mesmo tempo. Assim

Eram seus sorrisos e prantos, mas mais belos ;


O lépido sorriso nos seus lábios tenros

Parecia insciente dos hóspedes que havia

Nas suas vistas, os quais logo verteram como

Pérolas a gotejar dos vivos diamantes.

Sim, o pesar seria joia muito amada

Se a todos fosse dado adorná-lo assim.

(IV.III.18-25)

Ela não se expressa com palavras, é na realidade do seu rosto e em

seus gestos que seus verdadeiros sentimentos aparecem. Shakespeare

escolheu como destaque para essa figura da pureza e da candura uma

forma de expressão neoplatônica, o modelo das narrativas medievais

que põem em cena, na beleza visível e física, os signos da verdade

divina oculta. Na cena seguinte encontraremos a própria Cordélia no

primeiro plano, agora transformada em rainha e mulher de ação,

decidida a reverter a sorte de seu pai, que, segundo a notícia que lhe

chega, está “Louco como o mar convulso, cantando alto, coroado de

fumárias bravas, macegas”. Ela lembra que se retirou da França não

por nenhuma ambição, mas para recuperar o direito de seu pai.

Cordélia aparece poucas vezes na peça, porém parece sempre presente

de algum modo, cobrindo a peça com um arco de soberana piedade.

Ela, a filha exilada, expulsa do reino pelo pai transtornado e cego,


agora retorna encarnando a piedade, a caritas e a verdade, tal como

havia sido monumentalizada no adorno hiperpoético do fidalgo. O

signo da purificação dominará o reencontro entre o pai e a filha, as

lágrimas que são o emblema cristão da Pietá lamentosa. São também

lágrimas de comoção e alívio pelo reencontro.

Santos segredos,

Ó bens ocultos no seio da terra, jorrais

Com minhas lágrimas. Ajudai, remediai

A aflição desse homem bom.

(IV.IV.16-9)

Suas lágrimas são remédios, sinais da reparação. São elas também

que, no rosto de Cordélia, convenceram o rei da França a escutá-la e

segui-la no resgate de seu pai. São as lágrimas que permitem aos olhos

de Lear derramar-se no alívio do choro: o reencontro entre pai e filha

transforma o sofrimento petrificado, o coração endurecido de Lear se

derrete e expande de novo. A somatória das descrições indiretas dela,

como a que nos havia proporcionado o fidalgo, e a sua própria

aparição física em cena, sempre preservando certo silêncio enigmático,

tudo isso está ali para evocar algo que é da ordem da santidade. Essa

natureza de Cordélia já estava esboçada de modo ingênuo e muito

mais verbal em The True Chronicle History of King Leir, a peça

elisabetana anônima publicada em 1605. Na peça de Shakespeare tudo

parte de gestos, de imagens metonímicas: mãos que se tocam, gestos,

lágrimas.

Todas essas cenas preparam o despertar e o arrependimento

(sempre precário) de Lear, seguindo em parte o modelo do milagre

teatral da cena dos penhascos de Dover, mas dessa vez sem qualquer

mescla do cômico e do irônico. A cena está estruturada, de novo,


sobre a dicotomia da visão e da cegueira que permeia o conjunto da

peça. É pela retomada da visão (agora, visão como metáfora da

sanidade) que a “revelação” surge para Lear, na pessoa materna e

filial de Cordélia. Seu carinho e delicadeza conseguem pôr fim à

confusão mental de Lear, que se acredita morto.

Tu me fazes mal de me tirar da tumba.

A graça está em tua alma, mas eu estou preso

A uma roda de fogo que meu pranto escalda

Como chumbo fundido.

(IV.VII.47-50)

Despertando, Lear se pergunta se ela não seria um “espírito”.

Tu és um espírito. Quando foi que morreste ?


[...]

CORDÉLIA (ajoelhando-se) Olhe para mim, senhor,

E, com suas mãos sobre mim, dê-me sua bênção.

Não, não se ajoelhe, senhor.

LEAR Não vá zombar de mim,

Por favor! Sou um velho muito tolo, bobo

Com oitenta e tantos anos, nem mais nem menos,

E, pra ser bem franco, temo que não estou

Em meu juízo perfeito. Creio que deveria

Saber quem é você e quem é esse homem,

Mas eu estou confuso, ignoro por inteiro

Onde estou e, por muito agora que eu me esforce,

Eu não lembro estas roupas nem onde dormi

Nesta última noite. Não riam de mim,

Pois, assim como sou um homem, eu acredito

Que esta dama aqui é a minha filha, Cordélia.

CORDÉLIA Sou eu, sou eu mesma.

(IV.VII.51-73)

A ênfase emocional quase romântica no reencontro sugere uma

reparação frente às crueldades da primeira grande cena. Lear fala de


sua dor, de sua dúvida e ignorância, observa que está vestido

(portanto, já não mais nu, como um ser abjeto) e se mostra

angustiado, temendo que a filha possa lhe negar o amor. A resposta de

Cordélia reafirma a ligação natural entre os dois. Lear, encarnando

sua fragilidade, se curva no ato humilde de se ajoelhar diante da filha,

mas dessa vez com sinceridade profunda.

Embora o gesto revele grandeza piedosa, o vício constitucional de

Lear persiste, e seu gesto, expressão de sua transformação parcial,

nem abole a inversão das posições entre pai e filho, nem o traz de

volta à esfera patriarcal benéfica. Se o perdão chega, chega tarde; se o

consolo chega e dá a Lear a oportunidade de uma nova visão, sua

visão é ainda ineficaz, não o leva a uma transformação de volta para o

poder paterno. Seu “despertar” pode ser um momento legítimo e

emocionante, mas sua contrição será sempre um gesto insuficiente,

isto é, impotente como os gestos de uma criança vulnerável.

Após o encontro reparador entre Lear e Cordélia, saturado de

promessas de salvação, a realidade retorna, mostrando as catastróficas

consequências da loucura de Lear. Pois no tempo dramático dessa

cena aconteceu a batalha entre os exércitos da França e da Bretanha:

em 5.2 esse confronto termina com a derrota do exército dos fiéis a

Cordélia e Lear. Edgar foge do campo de batalha, vai ao socorro de

Gloucester, oferecendo-lhe sua mão e anunciando que “o rei Lear foi

vencido. Ele e sua filha, presos!”.

Na cena 5.3, vemos Cordélia e Lear num diálogo que revela, de um

lado, a agudeza impressionante de Cordélia (consciente do perigo que

ela e seu pai correm), de outro, a leviandade incurável de Lear, que

parece sempre disposto a fugir das ponderações que a dura realidade

exige, enclausurando-se num mundo de fantasia:


CORDÉLIA Não somos os primeiros

Que, co’a melhor intenção, caímos no pior.

Por ti, rei oprimido, eu me aflijo. Pois, por mim,

Afrontaria a falsa fronte da fortuna.

Não vamos então ver essas irmãs e filhas ?


LEAR Não, não. Vem, vamos pra prisão. Nós dois sozinhos

Vamos cantar como pássaros na gaiola.

Se me pedires bênção, eu me porei de joelhos,

Rogarei teu perdão. E assim vamos viver,

E rezar, e cantar, e contar velhos contos,

Vamos rir das libélulas louras e ouvir

Os pobres diabos co’as notícias da corte,

E com eles vamos também falar de quem

Ganhou, quem perdeu, de quem entrou, quem saiu,

E vislumbraremos o mistério das coisas

Como se fôssemos os espiões dos deuses ;


E, na prisão murada, então escaparemos

Às cabalas e facções dos grandes que fluem


E refluem aos influxos da lua.

(V.III.3-21)

Cordélia encapsula numa frase seu destino: “Por ti, rei oprimido, eu

me aflijo”, palavras francas que não trazem ilusão sobre a situação.

Num modesto understatement, ela aceita o sacrifício pelo pai, mas

também se comporta como a rainha da França que é — levantando a

possibilidade de exigir, através de embaixadas diplomáticas, um

confronto direto com as rainhas irmãs, o que evitaria a prisão em

alguma obscura torre, onde ela sabe ser mais vulnerável. Lear,

entretanto, só pensa em recolher-se com a filha preferida,

prolongando a felicidade ilusória do acolhimento amoroso da filha:

recusa pensar os perigos aos quais ambos se expõem dessa maneira. A

prisão é para ele a redoma de uma beatitude utópica, o sonho de

união fusional com Cordélia, mesmo que numa prisão.


Janet Adelman comenta essa fantasia alienada como uma das

engrenagens ancoradas nas camadas mais profundas do eu. Em um

capítulo de seu livro seminal Suffocating Mothers [Mães sufocantes],

que trata justamente das fantasias masculinas relacionadas com a mãe

nas peças de Shakespeare, ela escreve sobre esse sentimento de fundo

de Lear:

Não podemos ao final nos distanciar [das consequências do ato “masculino” de Lear]

disso limitando tudo ao masculino. Pois as fantasias encenadas na perda e no retorno de

Cordélia — na terrível insaciedade e isolamento de Lear — na beatífica fusão dentro dos

muros da prisão — derivam dos primeiros momentos da formação do eu, mesmo antes de

se firmar a consciência da divisão de gênero. Mesmo quando compreendo a urgência da

recusa de Cordélia de ser tudo para seu pai, eu compartilho com Lear — e com

Shakespeare — o estrato de desejo que a traz de volta só para ele; e na medida em que

compartilho do desejo de ambos, não posso me abrigar na raiva que me permitiria fazer da

sua necessidade algo alheio, isolando-a no masculino. Pois eu também habito o terror da

finitude e o desejo de me fundir no cuidado infinitamente carinhoso que pode desfazer a

dor da separação; eu também anseio pelo retorno dela. E, se é assim, então eu participo

com eles na destruição do eu livre de Cordélia; filha, assim como filhos requerem esse

sacrifício daqueles que transformamos em nossas mães.

Adelman se abstém de julgar Lear, ainda que sua responsabilidade

seja cobrada pela própria peça, de forma que o peso do desastre final

recai sobre ele. Nas cenas seguintes, Cordélia é assassinada com a

anuência de Edmund, que triunfou na vitória do exército bretão: seu

pedido é entendido por seus seguidores como uma ordem de execução.

O final evidencia as dissensões caóticas que o cinismo sangrento das

irmãs e de seu aliado Edmund semearam. Como na última cena de

Hamlet, a maldade começa a se erradicar numa espécie de autofagia

do mal: o ciúme por Edmund torna as irmãs inimigas mortais. Regan

termina envenenada pela mão hábil de Goneril, Edgar ressurge como

um nobre cavaleiro anônimo, oculto sob uma armadura. Declara que


Edmund é um traidor e, sem se identificar, o desafia a um duelo.

Depois da vitória, ele se identifica: “Meu nome é Edgar, e sou filho do

teu pai”.

Agora, ferido à morte, o bastardo mostra-se arrependido — a não

ser que simule arrependimento: oscilação ambígua dos sentidos, típica

da maestria de Shakespeare, que entendeu bem as ambivalências

infinitas da alma humana, que mergulham o indivíduo na névoa de

um irremediável desconhecimento de si.42

A peça termina com um longo discurso de Edgar contando a

história de sua escapada, de sua transformação em um ser que até os

cães desdenham e da morte de seu pai — um relato de sofrimentos que

chega a comover o vilão Edmund, despertando arrependimento e

equívocos sinais de bondade.

É um dos momentos mais curiosos da peça, que segue de perto a

lenda do rei da Paflagônia, na qual de fato há uma reconciliação entre

os dois filhos e o arrependimento do filho ruim. Esse final de Edmund

é pouco convincente, quando pensamos nos retratos sutis que

Shakespeare criou para seus vilões (Ricardo III, Iago).

Meu sopro já se esvai. Mas eu quero fazer

Algum bem, apesar da minha natureza.

Vai, rápido, envia alguém até o castelo,

Pois minha ordem escrita paira sobre a vida

De Lear e de Cordélia. Vamos, depressa!

(V.III.258-61)

A passagem coloca Edmund na dúbia luz do caráter ambivalente,

cuja bondade deixa entrever algo potencialmente assombroso e

perverso. Ele sabe bem demais que não haverá tempo para salvar

Cordélia e assim apenas anuncia sua morte — ao que parece, para ter

o prazer nefasto de ver como seu crime impacta os presentes,


lançando-os no desespero. Assim, sua declaração de que quer fazer um

bem poderia ser invertida: “Algum bem/mal pretendo fazer, Porque

assim é minha natureza!”. Última representação de um vilão convicto

que se dá o luxo sofisticado de fingir ares piedosos! Esse derradeiro

triunfo da perfídia sob a máscara do arrependimento é também a

última ironia de Shakespeare. Não pode haver nenhum

arrependimento no bastardo — o arrependimento nessa peça sempre

exige um longo e sofrido processo, travessia do deserto bem diferente

dessa meia-volta brutal de Edmund. O ator que o encarna talvez tenha

de fazer ver aqui seu último e mais sarcástico artifício. Ele não mudou.

Ele se felicita de ter sido amado por Goneril e Regan, e ainda mais se

orgulha do registro maléfico do ciúme assassino que esse amor

suscitou nas irmãs:

Mas Edmund foi amado:

Uma envenenou a outra por mim

E depois se matou.

(V.III.254-6)

Uma das grandes ironias da tragédia é que até o final Shakespeare

flerta com refinamentos psicológicos dos mais perversos que andam de

mãos dadas com concepções religiosas da mais alta piedade. A última

entrada de Lear com Cordélia em seus braços, cena que foi chamada

de piet à invertida, é uma cena avassaladora e terrível. Produz terror,

piedade, comoção, indignação e frustração. Lear, após entrar em cena

carregando o cadáver da filha, denuncia os homens de pedra que

causaram sua morte:

[…] Ela partiu pra sempre.

Eu sei quando alguém está morto e quando alguém vive.

Ela está morta como a terra.


(V.III.276-8)

Mas ao mesmo tempo fica apegado à ilusão de um reencontro em

vida ou de um ressuscitar, fechando os olhos à visão desoladora e

trágica do final.

Tragam um espelho.

Se seu sopro embaçar ou enfumar a pedra,

Ela está viva.

(V.III.277-9)

Lear, incorrigível, mais uma vez se agarra à fantasia de sua união

fusional com Cordélia, que parece prometer felicidade e redenção: mas

Shakespeare não deixa dúvida de que essa esperança ilusória é mera

ironia trágica.

LEAR A pluma se mexe. Ela vive. Se é assim,

É um acaso que redime todo sofrimento

Que até hoje senti.

(V.III.281-3)

Para os outros, contudo, a morte de Cordélia é fato certo, e eles

entendem a obstinação de Lear como desesperada, quase louca

tentativa de escapar ao luto:

LEAR Que a peste vos apanhe, assassinos, traidores.

Eu a teria salvo. Agora se foi pra sempre.

Cordélia, Cordélia, espere um pouco! Ahn ?


O que foi que disseste ? Sua voz foi sempre suave
Tão gentil, algo excelente numa mulher.

Eu matei o escravo que a enforcava.

FIDALGO Senhores, é verdade.

(V.III.286-91)
E mesmo quando percebe que sua filha está morta, ele busca refúgio

na negação:

Tu não vais voltar,

Nunca mais, nunca mais, nunca, nunca, nunca mais.

(V.III.237-8)

É na versão do Folio que encontramos mais claramente essa

negação da crua realidade:

Estão vendo isto ?


Olhem, olhem, é ela, os lábios, olhem: lá, lá.

(V.III.329-30)

A morte da filha é insuportável, e Lear só pode negá-la e… morrer.

Em ambas as versões de Shakespeare, Lear morre, mas na versão Folio

ele imagina ver algum movimento transcendente do corpo inerte de

Cordélia: sua alma? Seu movimento ascendente rumo ao paraíso dos

justos? O que interessa aqui é que nada disso de fato acontece. Como

em outras partes da peça, Lear é capaz de dizer uma coisa e depois

dizer o contrário.

Cordélia morre, assassinada, enforcada. Não há nada mais

anticlimático do que essa morte, e Samuel Johnson criticou

Shakespeare por ter permitido que sua Cordélia sofresse esse tipo

horrível de destino. Afinal, a lenda e a crônica histórica não

mostraram uma solução melhor? Lá Cordélia retornava para salvar o

pai e erguê-lo de volta ao trono. Em Shakespeare, sua morte é a

consequência inevitável de ações que iniciam na primeira cena com os

grandes erros de Lear e que desencadeiam a máquina da destruição e

do caos de suas outras duas filhas. Na perspectiva já bastante realista,

analítica e moderna de Shakespeare, esse movimento trágico não pode


ser esvaziado com uma reconciliação simples. O crime perpetrado pela

perfídia contra o inocente, no cristianismo, é carregado do sentido

cristão do martírio, exemplo mais nobre de resistência. Tanto a cena

com o fidalgo cavalheiro como a do retorno piedoso de Cordélia

reforçam essa caracterização, numa peça em que foram intensificados

ao máximo os contrastes entre personagens bons e maus. Mas

Shakespeare confronta seu público com aspectos do acaso, da

contingência e da ambiguidade do humano, que colocam até mesmo a

cândida Cordélia numa luz mais sóbria, ainda que nossa admiração

esteja sempre com ela.

Shakespeare talvez tenha sido o primeiro dramaturgo a introduzir e

manter seu público na mais radical indeterminação, apesar das

categorias religiosas e das formas narrativas tradicionais com as quais

constrói seus dramas. Deixa em suspenso a extensão permitida de

nossas esperanças e traça limites para a narrativa redentora. Edgar e

ainda mais Cordélia suscitam as esperanças de redenção e final feliz,

mas ao mesmo tempo a economia simbólica da peça não permite que

se subscreva a essa solução ingênua e redentora. A peça oferece apenas

cenas ocasionais de remissão iluminando a trajetória sofrida de Rei

Lear.
Nota sobre o texto

Rei Lear possui três versões publicadas no século XVII que são

relevantes para as edições modernas: o primeiro in-Quarto, de 1608

(Q1); o segundo in-Quarto, de 1619 (Q2); e o primeiro in-Folio, de 1623

(F1). O Q2 é essencialmente uma reedição de Q1, com algumas poucas

modificações. Entre a versão Q1 e o F1 há diferenças relevantes que

levaram, nas últimas décadas, a discussões importantes sobre a

possível autonomia desses dois textos.

Vale lembrar em termos gerais suas variações. F1 tem ao todo 2899

linhas, ao passo que o Q1 possui ao todo 3098 linhas, havendo assim

uma diferença de aproximadamente 199 linhas. Q1 possui 285 linhas

que estão ausentes em F1, ao passo que F1 possui 115 linhas que estão

ausentes em Q. A ortografia das duas edições é substancialmente

diferente e há diferenças significativas na pontuação, algumas delas

relevantes. Interessantes para o trabalho do tradutor, por outro lado,

são aproximadamente mil palavras isoladas que aparecem diferentes

nos dois textos, assim como passagens, nem sempre longas, que foram

ou reescritas ou ainda revisadas. Finalmente, o lineamento comparado

é diferente.
A atual tradução baseia-se da edição Arden, estabelecida por

Foakes, que funde Q1 e F1, ou seja, as partes presentes somente no Q1

estão fundidas no F1, sendo F1 a base textual da edição conflacionada.

Em algumas poucas partes nos afastamos da fusão proposta por

Foakes e buscamos alternativas na edição de Kenneth Muir, Halio e

Wells.

De fato, embora tenhamos seguido o texto estabelecido por Foakes,

consultamos diversas outras edições e os próprios fac-símiles de Q1 e

F1, ou ainda as transcrições em ortografia de época desses mesmos

textos. Nosso método nessa consulta tinha por objetivo muito mais

observar a complexidade do processo de revisão e alteração, com o

fito de entender a própria mecânica dessas diferenças e dessas

(supostas) alterações, e buscar com isso certo apuro na utilização do

campo das sinonímias em português. Em outros termos, essa fusão

textual tem a vantagem de deixar a critério de diretores e leitores a

reflexão sobre a variabilidade textual e de evitar a dogmática quer da

existência de um texto único, quer de dois textos independentes,

aceitando, contudo, que há muito mais semelhanças entre as duas

versões do que diferenças e que há uma unidade estética em Rei Lear

capaz de incorporar as duas versões em textos conflacionados. Ao

público e ao diretor de teatro ficam o direito e a oportunidade,

portanto, de editar o seu próprio texto, a exemplo do que certamente

foi feito por Shakespeare e seus contemporâneos, que adaptavam suas

peças a cada encenação e situação com liberdade.

SOBRESCRITOS Q E F NESTA EDIÇÃO


Buscando conciliar as duas demandas editoriais, de oferecer ao

público ou um texto fundido ou versões individuais de Q1 e F1, segui

na presente edição o procedimento que Foakes emprega em sua edição

de Rei Lear de enquadrar aquelas passagens que estão presentes

exclusivamente no Q1 com a indicação sobrescrita Q, e as passagens

presentes apenas no F1 com a indicação sobrescrita F, o que permitirá

ao leitor identificá-las ao sabor da leitura. Ao contrário de Foakes,

contudo, não utilizei os sobrescritos para assinalar divergências

menores de palavras ou ainda reestilizações ou variações menores de

Q1 e F1, e assim acabei assinalando sobretudo os trechos mais longos.

Embora considere muitas dessas divergências menores fascinantes, em

um texto traduzido — por si só, um produto novo — elas o são bem

menos, uma vez que a tradução é, queiramos ou não, um terceiro

momento de edição e interpretação. O plano do léxico sofre

transformações consideráveis em virtude da inevitável reestilização

artística e da própria distorção dos campos semânticos das diversas

línguas, e assim elas tornam inexpressivas algumas minudências que

interessam ao editor de língua inglesa. Isso não quer dizer que tais

detalhes e diferenças não tenham influenciado a atual tradução, ao

contrário: a abertura semântica e a multiplicidade lexical que

produzem abrem também o campo de possibilidades interpretativas

do tradutor e revelam o livro secreto das sinonímias shakespearianas.


Nota sobre a tradução

A concepção e a prática que subjazem à atual tradução se definem

pela percepção dos contrastes formais, estilísticos e de registro

característicos da escrita dramática de Shakespeare. Há uma opulência

linguística no drama shakespeariano que se reflete não apenas no

vocabulário, mas também na sintaxe complexa e inusitada, na

definição dos registros, nas situações que se alteram abruptamente em

seu estilo e forma. Esse traço, em particular no registro da tragédia,

era menos visível mesmo entre os autores coetâneos de Shakespeare,

como Marlowe e Kyd. O contraste aqui significa também a

alternância entre o sério e o cômico, o poético e o coloquial, entre

prosa e verso, entre diferentes “caracteres” cujas falas refletem sua

tipologia e situação. Na cena III.VI de Rei Lear, a loucura do velho rei

o leva a fazer um mock trial de Goneril e Regan; há ali, no espaço de

poucas páginas, de tudo um pouco: pentâmetro iâmbico, canções de

versos curtos, prosa e, ao final, o solilóquio de Edgar, de grande

solenidade e sabedoria. Nesse caso, Shakespeare dirige gradativamente

uma cena grotesca, louca — tudo se encaminhando para passagens

cada vez mais austeras. Essas mudanças, muitas vezes bruscas, são

marcantes nesta peça.


No que se refere ao verso, o contraste está inscrito em diversos

elementos formais: no uso alternado do verso com pausa final (end-

stopped verse), do enjambement, da pausa no interior do verso, das

formas irregulares de ritmação que, de ora em vez, se afastam do

pentâmetro iâmbico clássico. Um dos aspectos do verso de

Shakespeare, em particular a partir das grandes tragédias, é a

alternância entre os versos prosaicos que se aproximam da fala e os

versos hiperpoéticos em que notamos imediatamente o aporte do

ritmo, da retórica e da acentuação fixa. O iambo shakespeariano,

sempre presente, sofre um tratamento tal que muitas vezes se torna

quase inaudível, e assim ganham destaque muito mais o fôlego

retórico, o andante, o fluxo livre que escorre verso a verso.

O desafio do tradutor é desenvolver um verso que se adapte a essas

modulações. Versos convencionais, quer estejamos falando do

decassílabo heroico ou do alexandrino clássico, tendem a apresentar

um batimento rítmico repetitivo. Na tradução de Shakespeare é

necessário simultaneamente usá-lo e evitá-lo, distribuir momentos de

ritmação batida e de ritmação prosaica. Para algumas partes, é

importante evitar a batida excessiva, repetitiva, facilmente audível que

o verso regular tende a suscitar em leituras longas, deixando que a

tradução poética e o próprio português encontrem o fluxo e os

acentos fora das acentuações convencionais — a própria língua e a

tradição poética acabam sugerindo essa nova musicalidade que deve

trazer certa arritmia ou ainda insinuando o ritmo por meio de uma

aparente arritmia. E, claro, ao lado disso, é possível usar a batida

repetitiva quando o original o sugerir ou exigir. Eis a peculiaridade de

Shakespeare mesmo em segmentos iâmbicos predominantes: ele utiliza

as duas formas, o ritmo batido e o ritmo prosaico, e por haver tanto


contraste entre esses dois modos logra produzir efeitos especiais.

Bernard Lott, em relação ao verso shakespeariano, afirmou que

o movimento rítmico [do pentâmetro iâmbico shakespeariano] é suficientemente

controlado para mostrar alguma regularidade, mas ao mesmo tempo ele é seguido de

modo não tão servil a ponto de se reduzir a uma batida monótona. De algum modo, as

falas são como uma conversação cuidadosa; cada palavra é escolhida para dar o efeito

mais pleno, mas mesmo assim o ritmo das linhas mantém o movimento das palavras

quando faladas, evitando que se tornem pesadas.

De modo geral, o dodecassílabo presta-se às formas mais ritmadas

assim como às formas conversacionais, reflexivas e disruptivas, desde

que adaptado às particularidades da língua portuguesa, e não como

mero tributário da tradição francesa do alexandrino. Referimo-nos a

um dodecassílabo de acentuação móvel que convém ao estilo

conversacional, e não apenas a um alexandrino clássico, embora este

deva ser o molde, a armação fundamental do ritmo, a recordação de

uma estrutura rítmica. Nesse sentido, o procedimento se assemelha às

fugas ocasionais de Shakespeare do padrão estrito do pentâmetro

iâmbico e a seus experimentos com acentuações variáveis.

No leito mais largo de um verso de doze sílabas, o português acaba

sugerindo soluções inexploradas. O uso desse verso também permite

evitar dois procedimentos que podem levar, pelo menos na tradução

de Shakespeare, a resultados que atrapalham às vezes a

compreensibilidade oral e teatral: a pechincha de palavras, o uso

exagerado da sinérese — que não raro transforma o texto

conversacional em texto de difícil pronúncia e que perturba a

compreensão das falas no timing demandado pelo teatro. O

dodecassílabo permite um uso mais generoso do nosso vernáculo e

uma modalização mais de acordo com as formas do período; além

disso, evita o “transbordamento”, o artifício de continuar o verso


incompleto na sílaba seguinte, o que tem não poucas consequências na

leitura. O comentário feito sobre o ritmo do dodecassílabo utilizado

na tradução de Otelo é válido também para a atual tradução:

Os discursos do primeiro Otelo carregam esse senso elegante de crescendo retórico que, na

tradução, buscamos reproduzir também através de contrastes estilísticos e rítmicos, como

na seguinte passagem:

1 E nisso eu falei das mais funestas venturas,

2 De eventos oscilantes no campo e no mar,

3 De fugas por um fio por brechas despencando,

4 De como me prendeu o insolente inimigo

5 E vendeu-me como escravo; de meu resgate

6 De minha faina na jornada atribulada

7 E de cavernas vastas e desertos vagos,

8 De agras penhas, pedras, cumes que arranham os céus

9 Disso tudo falei. Eis a história.

(I.III.135-43)

O ritmo e a estrutura do dodecassílabo são variáveis, mantendo em vários versos (2, 3,

4, 7) certa regularidade, mas às vezes caindo na irregularidade com acentos na 5a, 9a e 12a

sílabas (verso 1), na 7a e na 12a (verso 5), e na 4a e 12a sílabas (verso 6). Essa

irregularidade, acreditei desde o início, é importante, pois Shakespeare também era

irregular em seu pentâmetro iâmbico. Por outro lado, ela atenua o potencial automatismo

do alexandrino com acento da 6a e 12a e dois hemistíquios claramente delimitados. De

qualquer modo, a sequência, com suas repetições sonoras estratégicas, permitem um

andamento solene e preparam o caminho para o zênite enfático sobre as “agras penhas,

pedras, cumes que arranham os céus”. Vale observar os jogos aliterativos, assonantes e

dissonantes: o cimento que segura o verso branco. No verso 8, a aliteração em “pe” é, de

súbito, substituída por “cume”. A sinonímia ecoa como uma continuação da lógica

repetitiva que se fazia por meio de sinonímias e aliterações, mas agora se manifesta apenas

através de sinonímias. Tal recurso sonoro traz, sobretudo, um contraste marcante.

Finalmente, o verso termina com “céus”, reproduzindo o crescendo retórico imaginativo

de Otelo e também sua tendência hiperbólica, muito bem assinalada por Iago.

Ao mesmo tempo, esses elementos estão encaixados no tempo de cada verso. Cada qual

traz uma unidade semântica enquadrada no verso (end-stropped verse), mas que, na

totalidade do discurso, é rompida por uma ou outra expansão sobre o verso seguinte

(enjambement), desejável para evitar o tom excessivamente poético e honrar os direitos da


prosa dentro do verso. […] O uso do dodecassílabo permite […] uma reprodução dos

lexemas específicos do original, assim como das suas peculiaridades sintáticas, diminuindo

assim o procedimento invasivo e agressivo de reconfiguração genérica do sentido.

Uma descrição exaustiva da variabilidade acentual utilizada nessa

tradução não seria produtiva neste espaço. No entanto, observando o

resultado desse abandono controlado à variabilidade, é possível

apontar algumas constantes acentuais na atual tradução. Muitas

passagens são típicos alexandrinos clássicos, como no discurso de

Edgar:

Mirrou, parece um bote, e o bote, uma boia …

Há versos acentuados na 6a e na 12a sem cesura ou elisão entre a 6a e

a 7a sílabas:

O pedregal inerte. Não vou mais olhar,

Outros casos apresentam acento na 6a e na 12a, com a 7a sílaba

átona não contada que permite criar dois hemistíquios separados:

|
Sua tétrica labu (ta) colhendo o perrexil!

Ou seja, dividindo em dois versos de seis…

Sua tétrica labuta

Colhendo o perrexil!

São também frequentes os versos com acentuação na 5a, na 8a e na

12a sílabas:

Parecem ao longe minúsculos besouros.

Se aceitam, perfeito! Se não, ele foi franco!


O verso acentuado na 5a, na 9a e na 12a talvez seja o mais prosaico

dos dodecassílabos:

A vertigem pode me sorver a visão

Aparecem também versos com acentuação na 4a, na 7a, na 9a e na

12a, como no caso a seguir, repleto de tensão preparatória:

Os corvos e as gralhas que roçam o ar abissal

Há ainda a eventual aparição de versos mais longos. O verso

bárbaro desponta ocasionalmente na tradução, assim como nas peças

de Shakespeare ocasionalmente despontam versos de onze e doze ou

até mais sílabas. O verso seguinte é bárbaro, acentuado na 7a e na 12a:

Há muito na corte fazem sua galante estada

Em Rei Lear, Shakespeare levou sua arte de variação e contraste à

máxima potência. Boa parte dessa variabilidade de estilos e formas

acompanha as bem conhecidas alterações bruscas no interior das

cenas desta peça. Lear ele próprio fala várias línguas: a linguagem

majestática do rei em presença da corte, a linguagem da revolta e do

ressentimento, a linguagem da comoção extrema e da reconciliação.

Quando é solene, fala em verso; na loucura, sua fala modulará verso e

prosa, a depender da situação. Edmund possui a linguagem do vilão.

Seu solilóquio inicial é uma construção irônica repleta de explosivas

que marcam seu ressentimento de bastardo: “Por que bastardo? Por

que abjeto”. O Bobo domina as canções, os trocadilhos da tradição

inglesa que se perdem na memória dessa cultura. Um registro

semelhante é usado por Edgar como Pobre Tom, que fala, contudo,
majoritariamente em prosa, num discurso iterativo, louco, uma

espécie de reestilização literária da fala desarticulada da loucura.

Um dos mais solenes discursos de Lear é seu anúncio à corte, na

primeira cena da peça, de que vai se desfazer do mando e dividir o

reino entre seus herdeiros. As frases são longas, tendem a extrapolar

os versos, imitando discursos formais em prosa. Há pausas no meio

dos versos, frases complexas com subordinadas, versos mais longos do

que o pentâmetro iâmbico, de onze e doze sílabas ou, a depender da

leitura interpretação, até mais. Shakespeare sustenta, digamos, a

solenidade do discurso e sua cadência dando a ele variabilidade

cuidadosa ao evitar pontualmente o batimento do pentâmetro iâmbico

tradicional, retornando a ele logo depois. Seria um claro afastamento

do pentâmetro iâmbico? Sim e não, porque todos os fatores que

desviam da receita do verso podem deixar de ser usados para dar

lugar a passagens iâmbicas ou mesmo versos inteiros que são legítimos

pentâmetros iâmbicos. Assim:

Since now we divest us both of rule

That we our largest bounty may extend

Observam-se, portanto, fugas do pentâmetro iâmbico perfeito, mas

também rápidos retornos a ele. Não são rupturas gratuitas, mas ali

estão para sugerir o registro em prosa poética que não deve estar

submetido demais aos rigores do iambo. Uma vez identificadas essas

fugas e recuos do pentâmetro iâmbico, para tratar aqui de apenas um

dos procedimentos usados para a “proseificação” do verso, será

possível refazer a mesma lógica no âmbito do verso escolhido para a

tradução.

Mas o discurso solene de corte é um exemplo apenas. O uso de um

verso um pouco mais longo — no caso aqui, o dodecassílabo — ajuda


a evitar o estilo “telegráfico” e contribui para a reconstituição

também de boa parte dos aspectos sintáticos do original. Estes são

importantes para o sentido e sobretudo para o understatement, os

“ditos pela metade”, tão comuns na tragédia. O verso ajuda a

reconstruir intenções semiocultas dos personagens.

Goneril é uma das personagens mais impressionantes pelo modo

como utiliza a sintaxe e como esconde e revela suas intenções ao

utilizar as passivas. Quando, por exemplo, ela pede a Lear para

diminuir o seu séquito, sua formulação é notável em inglês, trazendo

um understatement:

Be thou desired,

By her that else will take the thing she begs,

A little to disquantity your train ;

A personagem usa a passiva para dizer que ela própria vai diminuir

o séquito de Lear, como se escondesse que o agente da ação futura

será ela mesma. Embora sua intenção já esteja clara, por meio da

passiva ela se esconde, revelando-se ainda mais em seu desejo de agir

contra o pai. Em português, essa sugestão da passiva e do

subentendido foi mantida:

[…] Seja então requerido,

Por quem de qualquer modo há de ter o que pede,

Que se desquantifique um pouco o vosso séquito,

No caso de discursos abertamente retóricos — ou seja, os discursos

que Shakespeare forja de modo a parecerem algo artificiosos (ou

convencionais) —, o verso alexandrino clássico pode entrar para dar à

passagem a solenidade necessária. Um exemplo está na primeira cena,


quando Goneril e Regan declaram poeticamente seu amor ao pai

numa eulogia adulatória típica da corte:

GONERIL Ao senhor amo mais que um verbo há de moldar,

Mais que a visão do olhar, o espaço e a liberdade ;


Mais que qualquer valor, seja opulento ou raro,

Mais que a vida, com graça, honor, saúde e encanto,

Como nunca um filho amou ou um pai encontrou ;


Amor maior que o sopro e que frustra a palavra,

Para além destas marcas é o quanto eu te amo.

Os versos 1, 2, 3 e 4 são alexandrinos clássicos e com clara cesura

semântica, repartindo o verso em dois claros hemistíquios. Há

também claro paralelismo rítmico:

Mais que a visão do olhar, o espaço e a liberdade ; -uu-u-/u-u-u-


Mais que qualquer valor, seja opulento ou raro, -uu-u-/-uu-u-

Trata-se de um paralelismo rítmico e lexical que se revela na

repetição rítmica dos primeiros hemistíquios, mas com variabilidade

nos segundos hemistíquios. Mas o convencionalismo da fórmula

reflete também a retoricidade exacerbada da fala de Goneril, que é

feita para adular. A primeira cena de Lear é litúrgica e teatral nesse

sentido, replica a solenidade. A cada afirmação há uma resposta

igualmente adornada e melíflua. Há também paralelismo entre os

discursos das duas irmãs. Quando Regan, por sua vez, profere sua

eulogia, nota-se que sua fala está igualmente marcada pela intensidade

retórica e métrica.

VERSOS E CANÇÕES
Rei Lear possui também uma variedade de versos populares, baladas,

canções chulas e cançonetas cômicas, cantadas ou declamadas tanto

pelo Bobo como por Pobre Tom, que são um desafio à tradução. A

técnica de tradução utilizada, nesse caso, foi fortemente influenciada

pelas tradições populares de língua portuguesa. As formas escolhidas

foram variações entre o heptassílabo e o hexassílabo, sempre

buscando o sequenciamento apropriado da rima original:

BOBO Titio, escuta bem:

Porta mais do que afloras,

Fala, não bota pra fora,

O que tens, não empenhores,

Não caminha, pica a espora,

Escuta, não professora,

Não percas na aposta a tola,

Larga o vinho e as senhoras

E fecha logo o trinco,

Terás sem mais afinco

De três mais do que cinco.

Ou ainda, mais inusitado, o célebre verso hendecassilábico no ritmo

de “Beira-mar”, muito utilizado pela cantoria nordestina:

Se um dia a palavra do padre contar,

Com água o leite o leiteiro gorar,

E o nobre der aula ao seu costureiro,

Hereges poupados, jamais putanheiros ;


Se um dia a justiça perder seu descrédito,

O nobre, a pobreza, o pajem, o débito ;


E nas bocas morrer a vil detração,

E o bate-carteira evitar multidão,

E putas e caftens erguerem igrejas,

O reino de Albion

Vai ver confusão:

E o tempo virá, e quem viver verá

Que pra andar no mundo, os pés há de usar.


Embora o octossílabo seja pouco utilizado na poesia popular

brasileira, foi aqui experimentada uma fusão das formas de

enumeração da poesia popular com o octossílabo francês medieval:

Seja a bocarra branca ou preta,

Traga peçonha da valeta,

Mastim ou galgo ou cusco sujo,

Fila ou lebrel, bassê, sabujo,

Rabo cotó, cauda rosqueada,

Se Tom ataca é só uivada,

Que assim jogando mia cachola,

Dispara cão, salta, cabriola.

Os influxos de várias tradições estão presentes na tradução:

O pardal deu de comer tanto tempo ao cuco

Que acabou o cachopo lhe papando a cuca.

Esse caso, por exemplo, imita o sabor sonoro dos enigmas da poesia

popular — e aqui basta lembrar do célebre “Quem a paca cara

compra, cara paca pagará”, que termina a peleja de Cego Aderaldo

com Zé Pretinho, citada por Câmara Cascudo em Vaqueiros e

cantadores. No caso em questão, contudo, o impacto não é pelo verso,

mas pela qualidade dos fonemas e seus atributos tímbricos, já que a

tradução utiliza o dodecassílabo.

Justamente porque a acentuação da estrutura dodecassilábica

empregada é flutuante e variável, a presente tradução necessitou

também conjugar ritmo com timbre, com o sequenciamento ocasional

de fonemas semelhantes ou contrários — sobretudo através de

assonâncias e dissonâncias internas que se sequenciam em rendilhados

que se respondem ao longo de segmentos. O exemplo a seguir ilustra

esse procedimento:
EDGAR Ouvi o meu nome denunciado, e no oco

Propício de uma árvore, escapei à caçada.


Não há porto aberto, não há posto que não

Esteja pleno de guardas e de espias, prontos

Para me aprisionar. Se continuar em fuga,

Eu sobrevivo, e estou resolvido a vestir

A aparência mais baixa e abjeta que jamais,

Em seu desprezo ao homem, a penúria abeirou

Do bestial. Meu rosto vou manchar de esterco,

Os quadris, cobrir com trapos, as crinas, elfear

com nós,

Esse é um caso altamente aliterativo; de modo geral, entretanto,

esses encadeamentos são mais sutis, mas operando ainda com

contrastes sonoros, assonâncias e dissonâncias, tanto no campo das

vogais como no das consoantes. Na mesma passagem em que vigoram

as aliterações é possível ver uma outra nota musical sugerida, iniciada

pela palavra “oco” e continuada logo adiante por “porto”, “prontos”

etc. O entrelaçado continuará logo adiante com outros jogos

tímbricos. Casos mais sutis estão em passagens como esta:

[...] até que tenham

Lavado os campanários e os galos nos pináculos!

Há verdadeiras rimas internas, mas que também apresentam certa

dissonância. Neste outro exemplo, as sílabas longas em “rompe”,

“moldes”, “mundo”, “enjeita”, “engendram” jogam com seu

contrário em “vez”, “grãos”, “ingrato”:

[...] E tu, túrbido trovão,

Desmantela da terra a compacta rotunda,

Rompe os moldes do mundo, enjeita de uma vez

Os grãos que engendram o homem ingrato!


Há uma costura tímbrica que alicerça o verso branco e lhe dá

consistência, evitando sua pulverização e corrigindo os excessos do

verso de acentuação variável. Esse procedimento é necessário numa

tradução poética em que se escolhe como procedimento a

variabilidade acentual livre, utilizada, por sua vez, para evitar a

excessiva regularidade rítmica tanto do alexandrino clássico como do

decassílabo.

PROSA

Numa poética de contrastes estilísticos, como a de Shakespeare, a

contraposição entre segmentos em verso e segmentos em prosa tem

papel fundamental. Shakespeare alterna as duas formas mesmo que

com intenções diferentes: a prosa pode ser um desvio para o

semifarsesco, como na longa segunda cena da peça, que apresenta

Gloucester em seu momento algo patético de inquietação astral, ou

ainda quando a dramatização inflete para o grotesco ou para o

cômico. Mas pode também ser um registro da miséria, da suposta

desarticulação linguística, como em quase todos os discursos de Pobre

Tom. De fato, os exemplos mais marcantes dessas alterações estão nos

diversos estilos utilizados por Edgar ao longo da peça. Vítima da

encenação de seu irmão bastardo na segunda cena, ele fala, como o

irmão, em prosa, mas quando anuncia sua transformação em mendigo

louco de Bedlam, ele alterna para o verso. Essa mudança coloca sua

transformação no âmbito do trágico, do estranho e do misterioso,

afastando-o, portanto, da esfera simples do humano. Quando ele

enfim se encontra nas cenas da tempestade, sua linguagem é quase

toda em prosa (exceção feita aos versos de teor popular), e em uma


prosa que varia bastante, já que Pobre Tom não é uma unidade de

caráter: ele passa de nobre caído que relembra sua lascívia pecaminosa

do passado a pregoeiro público cheio de imprecações contra os

pecados e a possesso que fala dos demônios que o possuem; ele ainda

se transforma num simples pecador e num pobre coitado, um rústico.

Sua linguagem é a da alucinação. Finalmente, de pecador ele vira

pescador, para depois retornar como cavaleiro armado, seguro de si,

solene, com a mão vingativa mas piedosa de Deus. Nada mais

inverossímil para quem espera algum realismo da cena — a potência

dela está em seu jogo poético.

Já na cena dos penhascos de Dover é o próprio Gloucester que

detecta a transformação da linguagem de Pobre Tom. “Tua fala está

melhor”, ele diz, constatando que o mendigo que o conduz parece

falar com clareza. Nisso o próprio Edgar-Pobre Tom alternará para o

verso, em uma das passagens mais notáveis da peça, ao descrever as

alturas verticais imaginárias dos penhascos de Dover.

Além disso, Edgar tem função de coro, que, ocasionalmente, com

solenidade, relaciona os eventos da peça com os conceitos maiores do

sofrimento e da esperança: nesses casos, ele não apenas retorna de

forma clara ao pentâmetro iâmbico, como utiliza ocasionalmente a

rima. É um momento de suspensão reflexiva do pensamento no

interior da peça, com o jovem mendigo proferindo um artigo para o

pensamento do público, em um solilóquio hiperpoético. Essas

alterações, se traduzidas em prosa, perdem parte de seu potencial

expressivo.

Esse é o primeiro nível de variação formal. Mas dentro dele, como

no próprio pentâmetro iâmbico de Shakespeare, as variações das

passagens em prosa são muitas, pois de fato, aqui, a prosa reflete o


sujeito que fala, o registro retórico específico e a própria situação

dramática.

Entre as questões tradutórias das passagens em prosa, destaca-se o

caso dos discursos loucos de Pobre Tom. Neles, a tradução lançou

mão de processos recriativos e recreativos que fazem uma triangulação

entre o texto de Shakespeare, a etimologia interpretativa e aspectos

relacionados à linguagem “popular” na própria cultura popular

brasileira. Talvez a particularidade de Pobre Tom na peça seja seu

efeito peculiar. A simultânea consciência que o texto gera do disfarce e

da veracidade de sua estratégia recomenda que, ao lado do grotesco e

até mesmo de certa comicidade de sua loucura, a tradução encontre

uma alternativa à tendência de colocá-lo no registro estereotipado do

caipira e de outras fórmulas similares, soluções tradutórias usadas,

por exemplo, por Millôr Fernandes. A presente tradução optou por,

dentro do possível, utilizar sinonímias estranhas e bizarras que dessem

à sua fala a qualidade tanto do comovente como do risível. O

procedimento utilizado pode indicar certa ressonância da escrita de

Guimarães Rosa. Essa técnica permite evocar a familiaridade com algo

que é da ordem do registro popular — até mesmo disso que se

costuma chamar de folclórico — sem situá-lo em nenhuma localidade

específica do imaginário brasileiro, evitando assim, dentro do possível,

o anacronismo. De fato, o personagem que Edgar inventa para si é o

mais miserável dos seres, sendo, além disso, louco e possuído pelo

demônio — sua linguagem pertence ao lendário, ao folclórico, àquilo

que interessou a Simões Lopes Neto, a Guimarães Rosa, a Ariano

Suassuna e a Manoel de Barros. De maneira um pouco inconsciente,

no processo tradutório, parece ter havido uma triangulação


linguístico-imaginária entre o discurso e Riobaldo e Pobre Tom, como

nesta passagem:

EDGAR É o malino encardido, o Tricafutrica: ele exsurge no toque de recolher e

errambula até o primeiro cocoricó. Ele traz a catarata, dá vesgueira no olho e acarreta o

lábio de lebre, embolora o trigo branco e atormenta as pobres criançuras da terra.

Há mistura de termos cultos e raros, porém apropriados por um

miserável louco. Em “criançuras” estão encapsuladas a “criatura” e a

“criança”, ambas parte do “criado”, relacionando Pobre Tom não

apenas a uma criança como a uma criatura — o ser que está, no

paradigma hierárquico dominante na peça, abaixo ou além do

humano. A linguagem misteriosa de Pobre Tom, entre popular e

fantástica, também incorpora termos bizarros que Shakespeare

reutilizou a partir de sua leitura de Harsnett; são termos regionais ou

locais que obrigam a uma leitura a um tempo morfológica e

etimológica. Tradicionalmente, as palavras “Flibbertigibett”,

“Hobbididance”, “Obidicut” não têm sido traduzidas, porque

nomeiam entes fantásticos inexistentes em outras culturas, pequenos

demônios agrários, prováveis sobrevivências pagãs típicas e regionais e

originárias do Medievo. “Flibbertigibett” é uma onomatopeia com

fortes tonalidades cômicas, assim como “Hobbididance” e

“Obidicut”.

“Flibbertigibett” aparecia já na peça The Castle of Perseverance [O

castelo da perseverança], uma moralidade escrita por volta de 1425 e

que traz as palavras “Flepergebet”, “flypygebet” e “flepyrgebet”. O

dicionário Oxford registra seu significado móvel como “uma

representação onomatopaica da tagarelagem vazia”. Somente em 1603

o termo será usado por Samuel Harsnett, não para definir uma

fofoqueira, mas um demônio. Tanto em Harsnett como em Shake-


speare, trata-se de um demônio que possui as pessoas, e tal é o caso de

Pobre Tom. A presente tradução em português optou por

“Tricafutrica”, um equivalente que resgata a onomatopeia, mas

acrescenta a ela os semantemas “Trica” (chicana, enredo, trapaça,

intriga) e “futrica” (fofocar), que repõe a sugestão de sentido de

tagarelagem, futricagem e criação de rumores. Na passagem dos

nomes dos demônios, os nomes de “Hobbididance” e de “Obidicut”

foram traduzidos no entendimento de que “Hobbi” e “(H)obi”

significam, como sugerem alguns comentaristas e o próprio dicionário

Oxford, demônios. “Hob” teria o mesmo sentido que “Robert”, ou

Rob, como em “Robin Good-Fellow”, demônio brincalhão que se

associa à cultura e às práticas populares que sobreviveram, no

imaginário, à higienização do protestantismo inglês. Assim,

“Hobbididance” traz encapsulado “Rob da dança” e “Obidicut”,

“Rob do corte”, ou ainda “do rasgo” (vagina). O genitivo “didance”

e “dicut” se originam do aporte normando, interligando as expressões

às crenças continentais em criaturas agrárias fantásticas.

Hob + di + dance = Rob + da + dança


Ob + di + cut = Rob + da + fenda/ corte

A única palavra genérica o bastante em português para demônios

que pregam partidas e maldades é “trasgo”, nome dado no folclore de

Trás-os-Montes para esse tipo de demônio. Daí “trasgo-baileiro” e

“trasgo-do-rasgo” como traduções para esses demônios:

Cinco mofinos se aboletaram juntos dentro no Pobre Tom, o Trasgo-do-rasgo, da luxúria,

o Trasgo-baileiro, príncipe das mudezas ; Mahu, da roubalheia ; Modu, do assassinato ; e

também Tricafutrica, das mogigandas e dos esgares, que ultimamente tem possuído as

criadas e as camareiras. Então, meu patrão, que Deus vos tenha!


O objetivo dessas traduções etimológicas que aglutinam termos em

uma palavra não é simplesmente semântico, mas cunhar termos novos

que, no entanto, são capazes de mobilizar a memória cultural em

português. Nesse sentido, é um procedimento que evita a identificação

do demônio dentro de um panteão folclórico estereotipado,

preexistente, mas que permite a identificação, pela sonoridade e pelo

sentido, de sua potencial existência remota, ligada não a tradições que

existem, mas ao arcabouço linguístico dessas tradições — folclóricas

etc. Assim, o efeito mais comum não será de estranhamento, mas de

familiaridade com algo de que nunca se ouviu falar.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, antes de tudo, a duas instituições sem as quais

esta tradução não teria sido possível: à Universidade Federal de Santa

Maria e ao CNPq, pelo apoio essencial a minhas pesquisas sobre

tradução. Quero expressar minha gratidão a algumas pessoas que

participaram diretamente deste projeto. À Kathrin Holzermayr

Rosenfield, que também assina comigo a introdução e que foi sempre

uma influência intensa desde as primeiras representações teatrais de

Antígona e Hamlet em Porto Alegre e Montevidéu. À Liana Leão, que

com entusiasmo leu comigo a tradução e sugeriu alterações

importantes. Ao Régis Augustus Bars Closel, pela camaradagem e

colaboração. À Juliana Steil, amiga cuja tradução enérgica de William

Blake virá à luz em breve. Aos meus orientandos na Universidade

Federal de Santa Maria, pelo trabalho de revisão das notas: Wladimir

Uszacki, Fernando Azevedo Neckel Junior e Larissa Neves. Não

poderia deixar também de agradecer aos amigos do Commonwealth


of Amherst, onde este projeto se iniciou há oito anos: ao professor

Arthur Kinney, que me acolheu no Centro que agora ganha o seu

nome, e à Daphne Patai, amiga admirada e também acolhedora.

Finalmente, sou grato àqueles que emprestaram o seu ouvido às

minhas traduções de Shakespeare quando este projeto era ainda

incipiente: Leandro Sarmatz, Maurício Santana Dias, João Cezar de

Castro Rocha, Lucia Ricotta Vilela Pinto, Mário Hélio Gomes,

Márcio Seligmann-Silva, Luciano Alabarse e Walter Costa. Meus

agradecimentos também à equipe da Companhia das Letras, em

particular à Luara França, que teve a paciência de esperar.


A tragédia de Rei Lear
Personagens

LEAR, rei da Bretanha

Rei da FRANÇA

Duque de BORGONHA

Duque de CORNWALL

Duque de ALBANY

Conde de GLOUCESTER

Conde de KENT

EDGAR, filho mais velho de Gloucester

EDMUND, filho bastardo de Gloucester

CURAN, um servidor de Gloucester

Um VELHO, rendeiro de Gloucester

O BOBO de Lear

OSWALD, mordomo de Goneril

MENSAGEIRO

GONERIL, filha de Lear

REGAN, filha de Lear

CORDÉLIA, filha de Lear

Um capitão, um oficial, cavaleiros, fidalgos,

seguidores e mensageiros, um arauto


Ato I

CENA I

Entram Kent, Gloucester e Edmund.

KENT Achava que o rei estimasse mais o duque de Albany

do que o duque de Cornwall.

GLOUCESTER Assim também nos pareceu; mas agora, na

divisão do reino, não é claro qual dos duques ele

5 estima mais, pois as qualidades estão tão balanceadas

que nenhuma das partes pode estimar quanto caberá

a cada um.

KENT Esse é o seu filho, senhor?

GLOUCESTER Senhor, sua criação esteve ao meu encargo.

10 Eu já corei tanto por ter de reconhecê-lo que até perdi

o pejo.

KENT Não consigo conceber…

GLOUCESTER Senhor, a mãe do rapaz conseguiu. E logo

embarrigou e, realmente, já estava com um filho no berço

15 antes de ter um marido na cama. O senhor farejou

alguma falta aqui?


KENT Não posso querer que se desfaça a falta, sendo o fruto

tão perfeito.

GLOUCESTER Mas eu tenho, senhor, um filho gerado no

20 rigor da lei, um ano e tanto mais velho que este, e que

nem por isso é mais querido. Embora esse patife tenha

entrado no mundo, meio atrevido, antes de ser chamado,

sua mãe era uma beleza e foi uma festa fazê-lo, e

o filho da puta terá que ser reconhecido. Você conhece

25 esse nobre cavalheiro, Edmund?

EDMUND Não, senhor.

GLOUCESTER O lorde de Kent. Lembre-se dele doravante

como meu honrado amigo.

EDMUND Meus serviços estão ao dispor de Vossa Senhoria.

30 KENT Meu desejo é ser seu amigo e conhecê-lo melhor.

EDMUND Eu farei tudo, meu lorde, para merecê-lo.

GLOUCESTER Ele esteve fora nove anos e logo partirá de

novo. O rei está chegando.

Clarim. Entra alguém carregando um diadema, e então Lear,

Cornwall, Albany, Goneril, Regan, Cordélia e seguidores.

LEAR Gloucester, assista aos lordes de França e de Borgonha.

35 GLOUCESTER Sim, meu senhor.

FSaem.F

LEAR Por ora expressaremos nosso mais grave intento.

Tragam aqui o mapa. Saibam que dividimos


Nosso reino em três e que é nosso firme propósito

Aliviar nossa idade dos zelos e encargos,

40 Conferindo-os às forças mais jovens, Fenquanto,

Sem fardos, rastejamos rumo à morte. Cornwall,

Nosso filho, e Albany, filho também amado,

Hoje é nosso forte intuito anunciar os dotes

De nossas filhas, pra que as disputas futuras

45 Se previnam agora.F Os príncipes França e Borgonha,

Rivais no amor de nossa mais nova filha,

Há muito na corte fazem sua galante estada

E terão agora a resposta. Digam, filhas —

FPorquanto agora vamos nos despir do mando,

50 E da posse de terras, de encargos de Estado —F

Qual das três podemos dizer que nos ama mais?

Pra que possamos alargar nosso favor

Onde a natureza com mérito o pleitear.

Que Goneril, nossa filha mais velha, inicie.

55 GONERIL Ao senhor amo mais que um verbo há de moldar,

Mais que a visão do olhar, o espaço e a liberdade;

Mais que qualquer valor, seja opulento ou raro,

Mais que a vida, com graça, honor, saúde e encanto,

Como nunca um filho amou ou um pai encontrou;

60 Amor maior que o sopro e que frustra a palavra,

Para além destas marcas é o quanto eu te amo.

CORDÉLIA (aparte) O que dizer, Cordélia? Ama, e silencia.

LEAR Destas fronteiras todas, desta linha a essa,

Com florestas sombrosas Fe suntuosos campos,


65 Com rios de água profusaF e pradarias vastas,

Torno-te senhora. À tua prole e à de Albany

Que pertença pra sempre. E o que diz nossa filha,

Nossa querida Regan, esposa de Cornwall?

REGAN Do mesmo metal sou feita que a minha irmã,

70 Tenho o mesmo valor. Na minha pura essência,

Eu a vejo nomear, porém com parcimônia,

O meu veraz amor, porquanto eu me declaro

Blindada a todos os prazeres que residem

No mais precioso enquadramento dos sentidos,

75 E me creio a única brindada no amor

De Vossa Majestade.

CORDÉLIA (aparte) E então pobre Cordélia,

Mas que pobre não é, pois certa estou que em meu

Amor mais consistência há que em minha fala.

LEAR Que a ti sempre pertença e aos descendentes teus

80 Este amplo terço de nosso belo reino,

Não menor em tamanho, valor e regalos

Que aquele dado a Goneril. Agora o nosso júbilo,

A mais jovem, mas não menor no nosso amor,

FQue as vinhas de França e o leite de Borgonha

85 Disputam com ardor,F o que vais dizer pra ter

Um terço mais opulento que tuas irmãs?

CORDÉLIA Nada, meu senhor.

FLEAR Nada?

CORDÉLIA Nada.F

90 LEAR Mas nada virá de nada. Fala outra vez.


CORDÉLIA Infeliz que estou, não consigo trazer aos lábios

O que é do coração. Amo Vossa Majestade

De acordo com meus laços, e nem mais nem menos.

LEAR Vamos, Cordélia: corrige um pouco a tua fala,

95 Pra não afetar tua fortuna.

CORDÉLIA O senhor

Me gerou, me nutriu, criou e me amou.

Eu devolvo os deveres como bem convém,

Obedecendo, estimando, honrando o senhor.

Por que minhas irmãs têm maridos, se dizem

100 Que o amam tanto? Quando eu me casar, talvez

O nobre a obter meus votos levará consigo

Parte do meu amor, de meu zelo e dever.

Eu jamais casarei como minhas irmãs,

QPara amar tão somente o meu pai.Q

105 LEAR Estás falando com teu coração?

CORDÉLIA Sim, meu senhor.

LEAR Tão jovem e tão sem ternura.

CORDÉLIA Tão jovem, meu senhor, e verdadeira.

LEAR Pois seja. Adota a tua verdade como dote,

110 Pois, pela sagrada fulguração do sol,

Pelos arcanos de Hécate e da tétrica Nyx,

Por toda operação das órbitas celestes,

De onde vem nosso ser e cessamos de ser,

Descarto aqui todo o meu zelo paternal,

115 Propinquidades e propriedades de sangue,

E, como se estranha fosses à minha essência,


Disso te privo pra sempre. O bárbaro cita,

Ou aquele que transforma sua prole em repasto

Fartando o apetite, terá de meu peito

120 Tanta acolhida, piedade e consolo quanto

Tu, que foste minha filha.

KENT Mas senhor —

LEAR Cala, Kent,

Não te metas entre o dragão e sua fúria!

Era ela que eu mais amava; eu quis repousar

125 Nos seus ternos cuidados. Sai da minha frente!

A paz só vou ter na tumba, pois dela agora

Retiro meu coração de pai. Chamem França,

Corram. Chamem aqui Borgonha. Cornwall, Albany,

Juntai aos outros dois dotes este terceiro:

130 Que o orgulho, que ela chama de franqueza, a espose!

Eu vos invisto a ambos com o meu poder,

Com a preeminência e todos os grãos efeitos

Próprios da majestade. Quanto a nós, traremos

Junto cem cavaleiros que sustentareis;

135 E a cada mês, por turnos, vamos residir

Com um de cada vez. Somente guardaremos

O nome e as honras que cabem a um rei. O mando,

Filhos amados, a renda, a execução do resto,

São vossos. E para confirmá-lo partilhai

140 Entre vós essa coroa.

KENT Ó régio Lear,

A quem eu sempre honrei como meu soberano,


Estimei como um pai, como um mestre segui,

Um grão protetor que lembrei nas minhas preces —

LEAR O arco está vergado, cuidado co’a flecha!

145 KENT Vai, dispara, mesmo que a ponta adentre o vão

Do coração. Se Lear estiver louco, Kent

Vai ser descortês. Velho, o que queres fazer?

Crês que o dever deve calar quando o poder

Se curva à adulação? Se um rei cai na loucura,

150 É uma honra ser franco. Guarda as tuas terras

E, trabalhando melhor teu tino, refreia

Esse horrendo furor. Que eu pague com a vida

Esse juízo: mas tua filha mais jovem não

Te ama menos. E um coração não é vazio

155 Só porque fala baixo e não ecoa o vento.

LEAR Pela tua vida, Kent, para.

KENT Minha vida

Eu sempre a vi como um penhor para arriscar

Contra teus inimigos. Não temo perdê-la

Se for em tua defesa.

LEAR Some da minha vista!

160 KENT Olha melhor, Lear, permite que eu seja ainda

O genuíno alvo de teus olhos.

LEAR Ah, por Apolo!

KENT Sim, por Apolo, meu rei,

Invocas teus deuses em vão.

LEAR Vassalo! Incrédulo!

FALBANY, CORNWALL Contenha-se, senhor.F


165 KENT Trucida teu médico e paga os honorários

À tua imunda moléstia. Revoga as tuas dádivas,

Pois enquanto eu puder clamar com minha boca,

Direi que ages mal.

LEAR Escuta, ó renegado,

Lembra a tua jura: já que queres que façamos

170 Algo que nunca antes ousamos, romper

Nossos votos, e te pões, co’essa tua empáfia

Inflada, entre nosso arbítrio e nosso mando,

Numa afronta à nossa essência e posição,

Levando a efeito o poder, nós te reservamos

175 Esta recompensa: cinco dias tu tens

Pra fazer provisões que te sirvam de abrigo

Aos desastres do mundo, e seis pra virar

Teu detestável dorso pra fora do reino.

Se no dia seguinte teu tronco proscrito

180 For visto no país, isso vai ser tua morte.

Fora! Por Júpiter, e isso é irrevogável.

KENT Meu senhor, passa bem, se segues nesse erro,

A liberdade é lá, e aqui só há desterro;

(a Cordélia) Os deuses, jovem, te guardem sob seu teto,

185 Pois justa foi tua voz, teu pensamento, reto;

(a Goneril e Regan) E que vire ações tanta sublime prosa

E nasçam frutos bons dessa fala amorosa;

Príncipes, Kent dá adeus, seu tempo aqui se encerra,

Seguirá o velho curso em uma nova terra.


Fanfarras. Entram Gloucester com França, e Borgonha, e comitiva.

190 CORNWALL Aqui estão França e Borgonha, nobre senhor.

LEAR Meu senhor de Borgonha, nós nos dirigimos

Primeiramente ao senhor, que rivalizou

Com esse rei por nossa filha. Que valor

Mínimo espera como dote, para não

195 Sustar sua busca amorosa?

BORGONHA Majestade,

Não peço mais do que Vossa Alteza ofertou —

Ou pensa em ofertar menos?

LEAR Nobre Borgonha,

Esse era seu valor quando ela era amada,

Mas o preço caiu. Ei-la, senhor, se algo

200 Agradar a Vossa Graça nessa substância

De tão pouca aparência ou mesmo em seu conjunto,

Que traz o nosso dissabor e nada mais,

Aí está ela — e é sua.

BORGONHA Eu fico sem resposta.

LEAR O senhor vai, com os males todos que ela traz,

205 Hostilizada, adotada em nosso ódio,

Com nossa praga por dote, já deserdada,

Levá-la ou deixá-la?

BORGONHA O senhor me perdoe,

Não há como escolher sob essas condições.

LEAR Deixe-a então, pois, pelo poder que me criou,

210 Já expus quais são suas posses.


(a França) Mas, grande rei,

Eu não quero pôr a perder a sua estima,

Casando-o com o que detesto, e assim lhe peço

Que desvie sua afeição a algo mais digno

Que uma mísera que a natureza tem pejo

215 De declará-la sua.

FRANÇA É muito estranho que ela

Que até bem pouco era seu melhor objeto,

Solaz de sua velhice e tema em suas loas,

A mais querida, a melhor, pudesse, num átimo,

Fazer algo tão monstruoso, desmantelando

220 Todo o seu favor? Ou o crime que cometeu

Violentou a natureza a ponto de expor

Um monstro, ou o amor que o senhor afiançou

Se degradou, e não vai ser a razão sozinha,

Sem um milagre, que vai me implantar a crença

225 De que ela agiu assim.

CORDÉLIA Mesmo assim eu suplico a Vossa Majestade,

Já que me falta a arte untuosa e melíflua

De falar sem propósito — pois se tenho intenção,

Ajo antes de falar —, que deixe claro que

230 Não foi um labéu, um assassínio, uma imundice,

Uma ação incasta ou um ato degradante,

Que me privaram de sua graça e favor,

Mas algo que me falta e me faz bem mais rica,

O olhar bajulador e certo tom de fala

235 Que me alegra não ter — inda que por não tê-los
Perdi sua estima.

LEAR Melhor que não tivesses

Nascido que ter deixado de me agradar.

FRANÇA Mas então é isso? Um natural reticente

Que com frequência deixa de dizer aquilo

240 Que deseja fazer? Meu senhor de Borgonha,

O que vais dizer à dama? O amor não é amor

Quando se mescla a coisas que se encontram longe

Da sua vera essência. Vais desposá-la? Ela

Sozinha já é um dote.

BORGONHA Régio senhor,

245 Dê apenas a porção que havia prometido,

Que tomo aqui Cordélia pela mão, duquesa

De Borgonha.

LEAR Nada. Eu já jurei, Fé definitivo.F

BORGONHA (a Cordélia) Eu lamento então que ao perder seu pai

terá

250 De perder o marido.

CORDÉLIA Que Borgonha esteja em paz.

Se seu amor não passa de honras e riquezas

Sua esposa não serei.

FRANÇA Belíssima Cordélia,

Que és tão rica sendo pobre, tão valiosa,

Mas desdenhada, amada, mas desprezada,

255 Eu me apodero aqui de ti e tuas virtudes!

Permita a lei que eu colha o que foi descartado.

Deuses, é estranho que ante o frio descaso deles


Meu amor se inflamasse num respeito ardente.

Essa filha sem dote, rei, lançada à minha sorte

260 É rainha nossa, dos nossos, da bela França.

Nem todos os duques juntos da Borgonha aquosa

Podem comprar de mim essa preciosa moça.

Cordélia, dê adeus a quem não foi gentil;

Se perdeu algo hoje, bem mais conseguiu.

265 LEAR França, tu a tens, que seja tua, pois nem

Ela é nossa filha nem nunca mais veremos

Seu rosto novamente. Deixe estas terras,

Sem nossa graça, amor, sem nossa bendição.

Venha, nobre Borgonha.

Trombetas. Saem Lear e Borgonha, Cornwall, Albany, Gloucester,

Edmund e seguidores.

170 FRANÇA Dê adeus às suas irmãs.

CORDÉLIA Joias de nosso pai, é com olhos em lágrimas

Que Cordélia as deixa. Eu sei quem vocês são,

E, sendo irmã, reluto em chamar suas faltas

Pelo nome usual. Cuidem de nosso pai.

275 Eu o confio aos seus corações professos,

Mas se eu tivesse do meu pai a bendição

Reservaria a ele outra situação.

Então, adeus.

REGAN Não diteis nosso dever.

GONERIL Cuidai de agradar

280
Vosso mestre que vos acolheu como esmola

Da fortuna. Da boa obediência esquecestes,

É merecida a carência que carecestes.

CORDÉLIA O tempo exibirá as evasivas obras,

Soprará a vergonha em suas astutas dobras.

285 Que prosperem.

FRANÇA Venha, minha bela Cordélia.

Saem França e Cordélia.

GONERIL Irmã, não é pouco o que tenho a falar acerca de

algo que nos concerne às duas. Creio que nosso pai

partirá esta noite.

REGAN Isso está bem claro, e ele vai contigo. No próximo

290 mês ele fica conosco.

GONERIL Já viste que a velhice dele está plena de transformações.

O que observamos hoje não foi pouco. Ele

sempre gostou mais de nossa irmã. E, agora, isso de

ele a descartar assim com esse juízo mal-ajambrado me

295 parece disparatado demais.

REGAN É a debilidade da idade; aliás, ele foi sempre escasso

em se conhecer.

GONERIL Nele o melhor e o mais saudável foram sempre

rompantes.

Assim da sua velhice vamos ter de esperar não só

300 as imperfeições de uma condição há muito enxertada,

mas também os caprichos desenfreados que os anos de


enfermidade e cólera trazem consigo.

REGAN Temos que esperar dele as mesmas explosões ríspidas

que baniram Kent.

305 GONERIL Há ainda outras cerimônias de despedida entre

ele e o rei da França. Eu te peço: vamos agir juntas.

Se nosso pai usar da sua autoridade com a disposição

que está mostrando, essa última renúncia de seu poder

pode nos lesar.

310 REGAN Vamos pensar nisso à frente.

GONERIL E agir agora que está quente.

Saem.
Ato I

CENA II

Entra Edmund, o bastardo, com uma carta na mão.

EDMUND Tu, Natureza, tu és minha deusa; à tua lei

Meu ofício está preso. Então por que é que eu tenho

Que arcar co’a praga do costume, permitindo

Que os zelos e desvelos das nações me privem?

5 Porque sou doze ou quatorze luas mais novo

Que meu irmão? Por que bastardo? Por que abjeto?

Se minhas proporções são também compactas,

Mi’a mente, tão gentil, meu talhe, tão real

Quanto o fruto de uma dona casta? Por que nos

10 Tacham de bastardos, de abjetos? Será que

Quem nasce do viço furtivo da natura

Não tem têmpera mais ardente e consistência

Do que quem vem de uma cama arriada e insípida

Que gera só tribos inteiras de paspalhos,

15 Forjados entre o sono e a vigília? Pois bem,

Edgar — legítimo! —, vou ficar com tuas terras.


Nosso pai ama Edmund, o bastardo, tanto

Quanto o filho legítimo. FLindo termo, “legítimo”!F

Bom, meu legítimo, se eu apressar esta carta

20 E meu plano grassar, Edmund, o abjeto, vai

Desbancar o legítimo. Eu cresço, eu propago:

Agora, deuses meus, abasteçam os bastardos!

Entra Gloucester.

GLOUCESTER Kent, banido? E França partindo em cólera?

E o rei saindo à noite? Privado do mando,

25 Restrito a uma pensão? E tudo isso feito

Na picada da espora! Edmund, quais são as novas?

EDMUND (põe a carta no bolso) Senhor, nenhuma notícia.

GLOUCESTER Por que tanta pressa em esconder essa carta?

EDMUND Não tenho novidades, senhor.

30 GLOUCESTER Que folha era essa que estava lendo?

EDMUND Nada, senhor.

GLOUCESTER Não? Então por que jogá-la tão rápido no bolso?

A qualidade do nada não precisa se esconder. Mostre.

Vamos, se não é nada, não vou precisar de óculos.

35 EDMUND Senhor, peço perdão. É uma carta de meu irmão

que ainda não li inteira, mas, até onde escrutinei, não a

creio apropriada para seus olhos.

GLOUCESTER Dê-me essa carta.

EDMUND Retendo ou entregando a carta, ofenderei igual. O

40 conteúdo, pelo tanto que pude entrever, é repreensível.


GLOUCESTER Me deixe ver, deixe ver!

EDMUND Espero, como justificativa para meu irmão, que

tenha escrito isso apenas à guisa de exercício, ou ainda

para testar minha probidade.

45 GLOUCESTER (FlêF) “Essa política de FreverênciaF à idade só

traz amargor aos melhores anos de nossa vida, veda o

acesso às posses que são nossas, até que, já envelhecidos,

não podemos mais desfrutá-las. Começo a ver uma

servidão tola e vazia na opressão da vetusta tirania, que

50 governa, não pela força que tem, mas pelo que lhe

toleram. Vem até mim, para que possa te falar mais do

assunto. Se nosso pai dormisse até que eu o acordasse,

gozarias metade de suas rendas para sempre e viverias

bem-amado pelo teu irmão. Edgar.”

55 Hum! Conspiração! “Dormisse até que eu o acordasse,

gozarias da metade de suas rendas” — Meu filho

Edgar, então ele tem mão para escrever tais coisas? Um

coração, um cérebro para germiná-las? Quando foi que

isso chegou a você? Quem trouxe?

60 EDMUND Ninguém trouxe, senhor, e aí é que está o artifício.

Encontrei-a jogada pela janela do meu quarto.

GLOUCESTER Acha que essa é a letra de seu irmão?

EDMUND Se o conteúdo fosse bom, senhor, eu me atreveria

a jurar que sim; mas, com o que tem aí, ficaria contente

65 de achar que não.

GLOUCESTER É dele então, não?

EDMUND É o punho dele, senhor. Mas minha esperança é


que o seu coração não se encontre nestes conteúdos.

GLOUCESTER Ele nunca o sondou a respeito?

70 EDMUND Nunca, senhor. Mas várias vezes o ouvi defender

que, com os filhos em perfeita idade e os pais já

declinantes, conviria que os pais ficassem sob a tutela do

filho e os filhos gerissem suas rendas.

GLOUCESTER Oh, canalha, canalha! É a mesma opinião da

75 carta! Canalha abominável! Desnaturado, odioso, vilão

bestial — pior que bestial! Vá, rapaz, atrás dele. Eu vou

prendê-lo. Vilão execrável! Onde é que ele está?

EDMUND Não sei bem, meu senhor. Se lhe aprouver sustar

sua indignação contra o meu irmão até que possa

80 obter dele o testemunho de sua intenção, estaria seguindo

uma senda mais segura, ao passo que, se o senhor,

enganado sobre o seu propósito, proceder de modo

violento, isso abriria um vão na honra do senhor e

despedaçaria o âmago de obediência do meu irmão. Eu ouso

85 apostar por ele minha vida e que escreveu isto para

testar minha afeição para com o senhor, sem qualquer

outro intuito nefasto.

GLOUCESTER Acha mesmo?

EDMUND Se o senhor achar conveniente, eu o levarei até um

90 lugar onde poderá nos ouvir conferenciar sobre o

assunto, e, por convicção auricular, terá, ainda esta noite,

suas dúvidas satisfeitas, e sem delongas.

GLOUCESTER Ele não pode ser um monstro…

QEDMUND Não, com certeza não.


95 GLOUCESTER … com o seu pai, que o ama tanto e com tanta

ternura. Céu, terra!Q Edmund, vá procurá-lo. Vá lá

sondá-lo por mim, e faça isso seguindo sua própria

intuição. Largaria meu estado, meus bens, para ter a

devida convicção.

100 EDMUND Vou procurá-lo imediatamente, senhor, conduzirei

o negócio com os meios que tiver e logo o informarei.

GLOUCESTER Esses últimos eclipses do Sol e da Lua não nos

pressagiam nada de bom. Embora a sabedoria da

natureza os possa explicar deste ou doutro modo, a própria

105 natureza é flagelada pelos seus efeitos. O amor esfria, a

amizade se quebra, irmãos se dividem: nas cidades,

motins; nos campos, discórdia; nos palácios, traição; e os

laços se arrebentam entre pais e filhos. FEsse vilão que

eu gerei confirma o vaticínio — é o filho contra o pai.

110 O rei se aparta da natural inclinação — é pai contra

a filha. Do nosso tempo já vimos tudo: maquinações,

fraudes, deslealdades, e os distúrbios destruidores nos

perseguem, agitando-nos até o túmulo.F Encontra esse

vilão, Edmund; você não perderá nada com isso. Faça

115 com cuidado. — E o nobre e leal Kent, banido; seu crime,

a honestidade! É estranho, FestranhoF!

FSai.F

EDMUND Eis a suprema imbecilidade do mundo; que, sempre

que nossa boa sorte contrai algum achaque — não


raro pela gula de nossa conduta —, culpamos pelos

120 nossos desastres o Sol, a Lua e as estrelas, como se

fôssemos vilões por necessidade, parvos por compulsão

celeste, patifes, larápios e traidores por predominância

astral; beberrões, embusteiros e adúlteros por uma

forçada obediência aos influxos planetários, e, pior,

125 pérfidos por alguma imposição divina. Que escapada

notável de um homem putanheiro imputar aos astros

sua própria putaria! Meu pai compôs com minha mãe

sob a Cauda do Dragão e minha natividade foi sob a

Ursa Maior, ao que se segue que sou bruto e lascivo.

130 QPuf!Q Eu teria sido o que sou, mesmo que a estrela

mais adonzelada no firmamento desse uma piscada

quando fui bastardizado.

Entra Edgar.

E eis que ele chega na hora, como a catástrofe da antiga

comédia. Minha parte é a da melancolia traiçoeira,

135 gemendo que nem o Tom Louco. — Oh, sim, esses eclipses

pressagiam estas divisões. FFá, sol, lá, mi…F

EDGAR Que foi, irmão, em que grave meditação estás imerso?

EDMUND Estou pensando, irmão, em uma predição que li

140 um dia, dessas sobre o que poderia ocorrer depois

desses eclipses.

EDGAR Tu te ocupas com essas coisas?

EDMUND Eu garanto, os efeitos descritos infelizmente estão


acontecendo, Qcomo aberrações entre o filho e o pai,

morte, fome, dissoluções de antigas amizades, divisões

145 no Estado, ameaças e maldições contra o rei e nobres,

difidências infundadas, banimento de amigos, dispersão

das tropas, rupturas nupciais e sei lá o que mais!

EDGAR Desde quando te tornaste um discípulo da astrologia?

EDMUND Vamos...Q Quando foi que viste o meu pai por

150 último?

EDGAR Na noite passada.

EDMUND Falaste com ele?

EDGAR Sim, duas horas seguidas.

EDMUND E se despediram em bons termos? Não notaste nele

155 nenhum sinal de desagrado, nas feições, nas palavras?

EDGAR Realmente nenhum.

EDMUND Pondera bem onde podes tê-lo ofendido e, acolhendo

meu apelo, evita-lhe a presença até que o tempo abata

um pouco o calor de sua fúria, que, por ora, está tão

160 candente que não se aplacaria nem com o teu castigo.

EDGAR Algum patife me difamou.

EDMUND Esse é o meu medo. FEu te peço, mantém o controle

e a paciência até que o ímpeto da sua raiva se dilua;

e acrescento, vem comigo aos meus aposentos, de onde,

165 no momento propício, farei com que possas ouvir nosso

pai falar. Eu te imploro: vai! Aqui está a chave. Caso tu

saias, vai armado.

EDGAR Armado, irmão?F

EDMUND Irmão, é pelo teu bem que te aconselho: Qvai


170 armado.Q Se houver alguma boa intenção ali contigo,

então não estou sendo honesto. Eu te disse o que vi e ouvi

— se bem que por alto, nada que se compare à imagem

e ao horror da coisa. Vai, por favor!

EDGAR Vais me enviar notícias logo?

175 EDMUND Estou a teu serviço em todo esse negócio.

Sai Edgar.

Um pai crédulo e um irmão nobre, cuja

Índole está tão longe de operar perfídias

Que nem suspeita e em cuja parva honestidade

Eu fio e teço ao bel-prazer. Já vejo tudo:

180 As terras hei de ter, e vai ser por ardil.

Se não for pelo berço, será tramando um fio.

Sai.
Ato I

CENA III

Entram Goneril e Oswald, seu mordomo.

GONERIL Meu pai espancou meu cavalheiro porque repreendeu

seu bobo?

OSWALD Sim, senhora.

GONERIL Ele me afronta dia e noite, e a cada hora

5 Prorrompe em insultos grosseiros que lançam

Todos na discórdia. Eu não vou tolerar.

Seus cavaleiros estão ficando turbulentos,

Ele nos esbraveja por qualquer besteira.

Quando voltar da caça, não vou falar com ele.

10 Diz que estou doente. Quanto aos normais serviços,

Farás muito bem se mostrar certo desleixo.

E deixa que eu respondo pela falta.

OSWALD Senhora, ele está chegando. Consigo ouvi-lo.

GONERIL Ponham o ar de desleixo lerdo que quiserem,

15 Tu e teus parceiros. Quero que venha a réplica.

Se ele não se agradar, que busque minha irmã,


Cuja mente e a minha estão concertadas

QEm não se deixar sujeitar. Velho mais frívolo,

Quer agora exercer para sempre os poderes

20 Que entregou. Juro por mim, todo velho parvo

É de novo um bebê, e tem que ser tratado

Com freios e afagos quando é abusado.Q

E lembra bem o que disse.

OSWALD Pois não, senhora.

GONERIL E lancem olhares frios aos cavaleiros dele.

25 O efeito não importa. Instrui os teus parceiros.

QQuero — e vou — provocar situações pra falar.Q

Vou logo escrever uma carta à minha irmã

Para que siga o plano. Aprontem o jantar.

Saem.
Ato I

CENA IV

Entra Kent, disfarçado.

KENT Se eu tomar emprestado algum outro timbre

Que encubra minha voz, minha boa intenção

Talvez encontre a trilha até o desfecho pleno

Em prol do qual raspei meus traços. Kent, banido,

5 Se puderes servir onde estás condenado,

Então que o teu senhor, que tu estimas tanto,

Te encontre bem-disposto.

Trompas dentro. Entram Lear e quatro ou mais paladinos como

acompanhantes.

LEAR Não me façam esperar o jantar mais que um segundo;

mandem aprontar logo!

Sai Cavaleiro 1.

10 (a Kent) E tu aí, quem és?

KENT Um homem, senhor.


LEAR Qual o teu ofício? O que queres conosco?

KENT Meu ofício é ser nada menos que pareço; servir com

lealdade

a quem me tem em confiança; amar o que é honesto,

15 ligar-me a quem é sábio e falar pouco, temer julgamentos,

lutar quando não há escolha — e não comer peixe.

LEAR E quem és tu?

KENT Um homem de bom coração, senhor, e tão pobre

quanto o rei.

20 LEAR Se, como súdito, és tão pobre quanto ele é como um

rei, então tu és pobre mesmo. O que desejas?

KENT Serviço.

LEAR E a quem queres servir?

KENT Ao senhor.

25 LEAR Sabes quem sou, companheiro?

KENT Não, senhor; mas há algo em seu porte que me leva de

bom grado a chamá-lo de amo.

LEAR E o que é?

KENT A autoridade.

30 LEAR Que serviços sabes prestar?

KENT Sei guardar segredos reservados, correr, montar,

estragar uma história rica só de contá-la e transmitir uma

mensagem clara de modo curto e seco. Sou apto para

tudo de que um homem comum é capaz, e a diligência é

35 o que tenho de melhor.

LEAR Que idade tens?

KENT Senhor, nem tão jovem para amar uma mulher por
seu canto, nem tão velho que me apegue a ela por uma

ninharia. Carrego quarenta e oito anos nas costas.

40 LEAR Vem comigo, serás de boa serventia; se depois do jantar

não gostar menos de ti, não te dispensarei. O jantar,

eia, o jantar! Onde está aquele gaiato do meu bobo?

Vai lá, chama o meu bobo.

Sai Cavaleiro 2.

Entra Oswald.

Tu, tu aí, onde é que anda minha filha?

45 OSWALD Com licença —

FSai.F

LEAR Que foi que esse sujeito disse? Chamem o imbecil de volta.

Sai Cavaleiro 3.

Onde está o meu bobo? Ho, será que o mundo inteiro

está dormindo?

Entra Cavaleiro 3.

50 E então, onde está aquele vira-lata?

CAVAL. 3 Ele diz, senhor, que sua filha não está passando bem.

LEAR Por que esse escravo não veio quando eu o chamei?

CAVAL. 3 Ele respondeu, senhor, que não viria, e de uma

maneira
55
bem desenvolta.

LEAR Que não viria?

CAVAL. 3 Senhor, não sei o que está acontecendo, mas, no meu

entender, Vossa Majestade não está sendo tratado com

a cerimoniosa afeição que lhe é devida de costume. Ao

60 que parece, as amabilidades sofreram grande abatimento,

por parte tanto dos dependentes quanto do próprio

duque e de sua filha.

LEAR Ah, achas mesmo?

CAVAL. 3 Imploro seu perdão, meu senhor, caso eu esteja

65 enganado, pois meu dever não pode silenciar quando creio

Vossa Majestade destratado.

LEAR Apenas renovas minhas próprias impressões. Notei

ultimamente certa negligência frouxa, mas a imputei mais

aos meus zelos ciumentos do que a um propósito ou uma

70 intenção deles de serem descorteses. Ficarei vigilante. Mas

onde está meu bobo? Faz dois dias que não o vejo!

CAVAL. 3 Desde a partida de nossa jovem senhora para a

França, senhor, o bobo ficou desgostoso.

LEAR Basta disso, já havia notado. Vai e diz à minha filha que

75 desejo falar com ela.

Sai Cavaleiro 3.

Tu, vai lá chamar meu bobo.

Sai Cavaleiro 4.
FEntra Oswald.F

E o senhor venha aqui: sabe quem eu sou?

OSWALD O pai de minha senhora.

LEAR O pai de minha senhora? O lacaio do seu lorde: seu

80 cachorro, canalha, escravo, escória!

OSWALD Eu não sou nada disso, senhor, eu peço seu

perdão.

LEAR Cafajeste, como ousa levantar os olhos para mim?

(batendo nele)

OSWALD Senhor, não aceito que me batam.

85 KENT (dá-lhe uma rasteira) E chutar, dar coice, pode?

Jogador de futebol desprezível!

LEAR Eu te agradeço, amigo. Tu sabes me servir — gosto de ti.

KENT Vamos, levanta, anda! Vou te ensinar o que são

diferenças: anda, anda. Se queres testar esse teu desengonço

90 grosseiro, fica aqui então! Corre daqui, será que não

tens juízo? FIsso!F (empurra-o para fora)

LEAR Quero te agradecer, rapaz: isto é pelo teu serviço.

(dá-lhe dinheiro)

Entra o Bobo.

BOBO E eu, posso contratá-lo também? (a Kent, entregando-lhe

o barrete de bobo) Pega aí meu topetão.

95 LEAR Opa, meu pirralho, como vão as coisas?

BOBO (a Kent) Olha, rapaz, pega aí o topete, vai te servir


também!

KENT E por quê, Bobo?

BOBO Por quê? Porque tomas o partido de quem já está

100 desgraciado. Se não sabes sorrir para onde o vento sopra,

não demora vais pegar uma gripe. Vai, põe o topete na

cuca. Tá vendo? O compadre aqui baniu duas de suas

filhas e depois deu, e sem querer, sua bênção pra

terceira — se vais segui-lo, então vais ter sim que vestir esse

105 chapelão. (a Lear) Titio, como é que vai a vida? Ah, bem

que queria ter dois topetes e duas filhas.

LEAR Por quê, rapaz?

BOBO Se desse a elas todas as minhas rendas, pelo menos

guardaria meu topete. Este aqui é meu. Pede outro às

130 tuas filhas.

LEAR Cautela, fedelho. Cuidado com o chicote!

BOBO A verdade é um cão que a gente prende no canil. Corre

o bicho a relho pra fora de casa, enquanto a madama

cadela pode ficar junto à lareira e feder.

115 LEAR Fel fétida para mim!

BOBO Meu fedelho, vou te ensinar um provérbio.

LEAR Sim…

BOBO Titio, escuta bem:

Porta mais do que afloras,

120 Fala, não bota pra fora,

O que tens, não empenhores,

Não caminha, pica a espora,

Escuta, não professora,


Não percas na aposta a tola,

125 Larga o vinho e as senhoras

E fecha logo o trinco,

Terás sem mais afinco

De três mais do que cinco.

KENT Isso é nada, Bobo.

130 BOBO Então é igual o fôlego de um advogado que não

ganhou honorários — não me pagaram nada… (a Lear) E

tu, titio, não sabes do nada fazer nada?

LEAR Claro que não, rapaz: não há nada que saia do nada.

BOBO (a Kent) Faz favor? Diz a ele que isso é tudo que vai

135 ganhar arrendando as terras: ele não vai acreditar num bobo.

LEAR Um bobo mordaz!

BOBO Sabes a diferença, meu guri, entre um bobo mordaz e

um bobo meigo?

LEAR Não, rapaz, me ensina.

140 QBOBO Quem te há dado o vão conselho

De distribuir tua terra,

Traz e põe na minha frente,

Tua cara seu rosto encerra.

O bobo meigo e o mordaz

145 Num instante tu o verás,

Um aqui, já fantasiado,

O outro aí onde estás.

LEAR Estás me chamando de bobo, rapaz?

BOBO Entregaste todos teus outros títulos. Este, tu tens de

150 nascença.
KENT Isso não é de todo bobo, senhor.

BOBO Pela minha fé, não: o senhorio e a gente graúda nunca

que me permitiriam. Se houvesse um monopólio, logo

pediriam uma parte; e as damas também jamais

155 aceitariam que eu monopolizasse as bobices e as bobagens:

iam logo me surrupiar.Q Titio, me dá um ovo que te

darei três coroas.

LEAR E que coroas são essas?

BOBO Ora, é eu cortar o ovo no meio, engolir o miolo, sobram

160 as duas coroas do ovo. Quando partiste ao meio tua

coroa e entregaste as duas partes, arrastaste o jumento no

lombo através do lodaçal. Faltou juízo nessa tua coroa

careca quando entregaste a tua coroa de ouro. E relho em

quem achar que estou falando aqui de bobeira.

165 (canta) Nunca ganharam os bobos tão pouco

Pois o sábio virou bufão,

Está com juízo um tanto bronco

E macaqueios de simão.

LEAR Desde quando andas com essas cantorias, rapaz?

170 BOBO Desde que transformaste tuas filhas em mães; quando

entregaste a vara a elas e arriaste a calça curta!

(canta)

Choraram então pela nova alegria

E eu por tristeza cantei

Por ver um rei no esconde-esconde

175 Disparando co’os bobos sem lei.

Eu te rogo, titio, arranja um mestre-escola que ensine o


teu bobo a mentir; queria tanto aprender a mentir!

LEAR Se mentires, fedelho, te mando para o açoite.

BOBO É um assombro esse parentesco que há entre ti e tuas

180 filhas. Elas me mandam açoitar por dizer a verdade; tu

me mandas pra chibata por mentir, e, às vezes, me fazem

lamber o chicote até por ficar quieto. Queria ser qualquer

outra coisa, menos um bobo. Mas também não

queria ser tu, titio. O teu juízo tu podaste dos dois lados

185 e não ficou nada no meio. Olha um dos lados chegando.

Entra Goneril.

LEAR Que foi, minha filha? Por que essa cara sisuda?

Andas com essa carranca ultimamente.

BOBO Tu eras um tipo contentão quando não tinhas de te

ocupar co’a carranca dela. Agora és só o buraco oco

190 do zero. Valho mais que tu agora. Sou um bobo e tu, o

zero do nada. (a Goneril) Ah, sim, pois não, já vou me

aquietar. É o que o teu rosto ordena, e sem dizer uma

palavra. Quieto, quietinho, quietinho!

Quem joga fora a crosta e o bojo

195 Um dia, exausto, os quer de novo.

(aponta para Lear) Essa casca aí tá oca!

GONERIL Senhor,

Não só esse palhaço cheio de licenças,

Mas outros também de sua insolente escolta

O tempo todo berram, brigam, descambando

200
Nessas balbúrdias toscas e intoleráveis.

Achei que ao lhe fazer ciente de tais coisas

Teria achado um bom reparo, mas já temo —

Pelo que o senhor disse e fez ultimamente —

Que dá guarida a essa conduta, estimulando-a

205 Com sua aprovação. Uma falta assim não

Escaparia à censura, nem tardaria

O seu remédio que, em prol do bem comum,

Pode em sua ação lhe cominar uma ofensa

Que, imprópria em outros casos, na necessidade

210 Há de se mostrar um expediente prudente.

BOBO Pois tu sabes, titio,

O pardal deu de comer tanto tempo ao cuco

Que acabou o cachopo lhe papando a cuca.

E a vela se apagou e ficamos no escuro.

215 LEAR És nossa filha?

GONERIL Gostaria que o senhor

Fizesse uso do bom senso, de que o senhor,

Eu sei, é bastante profuso, e assim dispensasse

Esses pendores todos que o estão afastando

De sua vera natureza.

220 BOBO E o asno não sabe quando a carroça puxa o boi?

Opa, ai! Joana, mas eu te amo!

LEAR Quem aqui me conhece? Este aqui não é Lear.

Lear anda assim, fala assim? Onde estão seus olhos?

Talvez perdeu o juízo, ou seu discernimento

225 Está letárgico… Ah, acordando? Não?


Quem é que pode aqui me dizer quem eu sou?

FBOBOF A sombra de Lear.

QLEAR Gostaria de entender isso, pois segundo os sinais da

soberania, do conhecimento e da razão, eu seria

230 falsamente persuadido de que tive filhas.

BOBO As quais vão te tornar um pai obediente.Q

LEAR O seu nome, formosa fidalga?

GONERIL Esses deslumbres, senhor, têm bem o sabor

De outras de vossas mais novas chacotas. Eu peço

235 Que compreendais com precisão os meus propósitos.

Sois velho e venerável, sede então sensato.

Tendes aqui cem cavaleiros e escudeiros,

Gente tão desleixada, devassa e atrevida

Que essa corte, infecta co’ esses modos, mais parece

240 Um albergue amotinado. O gozo, a lascívia

Fazem que pareça mais uma tasca, um bordel,

Que um palácio casto. A própria desonra pede

Um remédio imediato. Seja então requerido,

Por quem de qualquer modo há de ter o que pede,

245 Que se desquantifique um pouco o vosso séquito,

E quanto aos dependentes que restarem, sejam

Homens mais em consonância com vossa idade

Que conheçam a si, e ao senhor.

LEAR Trevas, demônios!

Selem os meus cavalos! Reúnam o meu séquito!

250 Bastarda depravada, não vou te importunar:

Eu ainda tenho uma filha.


GONERIL O senhor agride

A minha gente, e essa sua corja ruidosa

Transforma em lacaios os superiores.

Entra Albany.

LEAR Ai de quem se arrepende tarde! (a Albany)

QAh, senhor,

255 Cá está, senhor!Q Diga-me: é essa a sua vontade?

Preparem os cavalos!

Cavaleiro sai.

Oh, ingratidão,

Tu, demônio de coração marmóreo, quando

Tu te ergues na forma de uma filha, mais hórrido

Te tornas que um monstro marinho!

260 FALBANY Paciência, senhor, por favor!

LEARF (a Goneril) Tu mentes, milhafre repulsiva!

Minha escolta é de gente de escol, bem escolhida,

Que sabe das instâncias todas do dever,

Gente que, com escrúpulo cuidadoso, zela

265 Pela honra de seus nomes. Oh, falta tão mínima,

Tão hedionda pareceste vinda de Cordélia,

Pois, como uma máquina, arrancaste num soco

O pilar do meu ser de sua base fixa,

Drenando o amor do meu peito, afogando-o em fel!

270 Oh, Lear, Lear!

(batendo a cabeça) Esmurra essa porta que se abriu


À tua insânia e se fechou ao teu juízo.

Vamos, vamos embora.

Saem Kent, cavaleiros e seguidores.

ALBANY Senhor, não só não tenho culpa como ignoro

FO que o está perturbando.F

LEAR Talvez, meu senhor.

275 Escuta, natureza, cara deusa, escuta!

Suspende teu desígnio, se estava em teu intento

Tornar fértil e fecunda aquela criatura.

Esparge-lhe no útero a árida secura,

Resseca-lhe os órgãos da propagação,

280 Para que nunca abrolhe de seu corpo espúrio

Um neném para honrá-la. Se ela um dia parir,

Gere um rebento acerbo, um fruto que viva

E lhe seja um rude e cruel suplício. Que ele

Obre gretas e frinchas em suas faces lisas,

285 E com lágrimas escave valas no seu rosto,

Que trate as aflições e benesses maternas

Com riso e com escárnio, para que ela sinta

Que as presas de uma víbora não doem mais

Que a ingratidão de um filho. Vamos então, vamos!

Saem Lear, Kent, o Bobo e outros.

290 ALBANY Pelos deuses que adoramos, de onde isso vem?

GONERIL Não se aflija querendo saber mais coisas,


Deixe que os humores dele ganhem o escopo

Típico da caducidade.

Entra Lear, seguido pelo Bobo.

LEAR Já vou te dizer. (a Goneril) Vida e morte! Eu me envergonho

LEAR Como? Cinquenta dos meus homens num só golpe?

295 Em quinze dias?

ALBANY Qual o problema, senhor?

Que tenhas poder de me abalar a hombridade,

Que possas merecer essas lágrimas cálidas

Que à força me escapam. Raios contra ti, névoas!

300 Que as chagas expostas da maldição paterna

Trespassem teus sentidos. Oh, olhos velhos tontos,

Continuai chorando, e eu vos extirparei

E vos lançarei nas torrentes que chorastes

Pra temperar o barro. Ah? Que seja assim!

305 Tenho outra filha que, estou certo, é solícita

E gentil. Quando souber disso, com as unhas,

Ela há de lacerar o teu rosto lupino, e

Tu me verás reaver a forma que tu crês

Dispensei para sempre.

FSai.F

GONERIL Estás ouvindo isso?

310 ALBANY Não posso me tornar tão parcial, Goneril,

A despeito do grande amor que te reservo.


GONERIL QPor favor! Chega — basta!Q FOswald, aqui.F

(ao Bobo) E tu, mais canalha que bobo, segue teu amo!

BOBO Ai, titio Lear, tio, leva o Bobo contigo!

315 Se um alguém prende a raposa

E uma filha tão mandona,

Faz bem de pô-los na forca,

Mas meu gorro não é corda,

Vai-se o bobo ou se borra.

FSai.F

320 GONERIL FEsse homem foi bem aconselhado — cem

Cavaleiros! Não é prudente nem sensato

Que mantenha cem homens armados. A cada

Sonho, rumor, capricho, queixa e dissabor

Terá uma tropa pra escudar sua sandice

325 E botar nossas vidas à sua mercê. Oswald!

ALBANY Talvez temas demais.

GONERIL Mais seguro que confiar demais.

Deixa-me abatê-los aos males que temo

Em vez de ser abatida pelo temor.

330 Eu conheço a sua alma. Tudo o que ele disse

Escrevi a minha irmã. Se ela der abrigo

A ele e aos seus cem cavaleiros, já sabendo

Desses desmandos todos...F

FEntra Oswald.F

QMas então, Oswald?Q


Já escreveste a carta para minha irmã?

335 OSWALD Sim, senhora.

GONERIL Monta a escolta, aos cavalos, parte de imediato!

Dá-lhe a saber inteiro do meu temor pessoal,

E agrega também os teus próprios argumentos

Pra reforçar o preito. Vamos, parte agora

340 E volta sem detença.

Sai Oswald.

Não, não, meu senhor,

Essa vossa branda gentileza e conduta,

Eu não a condeno, porém eu peço vênia,

Mas sois mais censurado por falta de argúcia

Que elogiado por vossa danosa indulgência.

345 ALBANY Não sei a que distância o teu olhar perscruta,

Amiúde o bom se perde onde o melhor se busca.

GONERIL Mas então…

ALBANY Bem, bem veremos…

Saem.
Ato I

CENA V

Entram Lear, Kent, disfarçado, e o Bobo.

LEAR (a Kent) Siga na frente até Gloucester, leve essas cartas.

Instrua a minha filha, sem falar de qualquer coisa

a mais que você saiba, respondendo somente perguntas

concernentes à carta. Se não for com toda a rapidez,

5 chegarei lá antes de você.

KENT Não dormirei, senhor, antes de entregar a carta.

Sai.

BOBO Se os miolos de um homem estivessem nos pés, não

haveria risco de pegar frieiras?

LEAR Haveria, sim, rapaz.

10 BOBO Então te alegra: teu juízo não vai nunca calçar chinelos.

LEAR Ha, ha, ha.

BOBO Tu vais ver que tua filha te tratará de um jeito bem filial,

pois, embora ela se pareça com essa aí tanto quanto a

maçã brava se parece com a maçã pomareira, tô dizendo


15
o que digo.

LEAR E o que é que me dizes, rapaz?

BOBO Que ela vai ter sabor tão parecido quanto a brava é

igual à brava. Tu podes me dizer por que o nariz fica no

meio da cara?

20 LEAR Não.

BOBO Ora, pra cada olho ficar de um lado do nariz, de modo

que aquilo que o sujeito não fareja ele espia.

LEAR Eu fui injusto com ela.

BOBO Sabes como a ostra edifica sua concha?

25 LEAR Não.

BOBO Eu também não. Mas sei por que é que o caracol tem

uma casa.

LEAR Por quê?

BOBO Ora, pra enfiar a cabeça na casca, é um jeito de não

30 entregá-la às filhas e também não deixar os chifres sem

estojo.

LEAR Vou esquecer minha natureza: um pai afetuoso! Os

cavalos estão prontos?

BOBO Teus asnos já foram lá buscá-los. A razão por que as

sete

35 estrelas não são mais que sete é uma razão lindíssima.

LEAR É porque não são oito?

BOBO É isso mesmo, tu darias um excelente bobo.

LEAR Tomar de volta à força. Monstra ingratidão!

BOBO Se tu fosses o meu bobo, titio, eu te botaria no relho por

40 ter ficado velho antes da hora.


LEAR Como assim?

BOBO Não devias ter ficado velho antes de ficar sábio.

LEAR Não me deixem enlouquecer — louco não, benditos

céus! Não quero ficar louco. Conservem o meu juízo,

45 não quero enlouquecer!

Entra um cavalheiro.

E então, os cavalos estão prontos?

CAVALHEIRO Prontos, meu lorde.

LEAR Vem, garoto.

Saem Lear e cavalheiro.

BOBO Para aquela que agora é moça,

50 E que ri na mi’a saída,

Pouco tempo vai ser moça,

Se a coisa aqui for cumprida.

Sai.
Ato II

CENA I

Entram Edmund e Curan separadamente.

EDMUND Deus te guarde, Curan.

CURAN E ao senhor também. Estive com seu pai e notifiquei

a ele que o duque de Cornwall e a duquesa Regan

estarão em sua companhia aqui esta noite.

5 EDMUND Mas por que isso?

CURAN Não sei. O senhor ouviu as últimas notícias? — Quero

dizer, os boatos, pois por agora não passam de

cochichos de ouvido em ouvido.

EDMUND Não. Por favor, diga-me do que se trata.

10 CURAN O senhor não ouviu nada de uma provável guerra

iminente entre os duques de Cornwall e de Albany?

EDMUND Nada, nem uma palavra.

CURAN O senhor em breve ouvirá algo a respeito. Passe bem,

meu senhor.

FSai.F

15 EDMUND O duque aqui — à noite? Já ficou melhor!


É mais um fio que a sorte trança em minha trama.

O meu pai pôs a guarda atrás do meu irmão,

E eu tenho à frente uma questão intrincada

Para encenar. Avante, fortuna e presteza!

20 Irmão, só uma palavra. Vem cá, desce aqui.

Entra Edgar.

Meu pai está vigiando. Vai, foge daqui!

Já corre informação do teu esconderijo.

Tu tens ainda a boa proteção da noite.

Não falaste nada contra o duque de Cornwall? —

25 Está vindo aqui, em plena meia-noite, às pressas,

E Regan vem com ele. Então, disseste algo

Sobre o litígio dele com o duque de Albany?

Pensa bem.

EDGAR Eu com certeza não disse nada.

EDMUND Ouço meu pai chegando. Me perdoa. Vou

30 Sacar a espada contra ti, por puro ardil.

Saca! Finge agora defesa. Foge — agora!

Rende-te! Entrega-te ao meu pai. Luzes, aqui!

Foge, irmão, foge. Tochas, tochas! — Adeus.

FSai Edgar.F

Um pouco do meu sangue vai fazê-lo crer

35 Que o embate foi feroz. (corta o braço)

Já vi bêbados

Fazerem bem mais que isso só de troça. Pai!


Pega, pega, ajudem!

Entram Gloucester e criados, com tochas.

GLOUCESTER Onde está o canalha, Edmund?

EDMUND Estava aqui, co’a espada empunhada, no escuro,

Rosnando uns feitiços tétricos, conjurando

40 A lua para que o sirva de dama propícia.

GLOUCESTER Pra onde foi?

EDMUND Estou sangrando.

GLOUCESTER Onde está o canalha?

EDMUND Fugiu ali, senhor, quando entendeu que nunca…

GLOUCESTER (a criados) Atrás dele, agora, vamos! (criados

disparam)

“Que nunca” o quê?

45 EDMUND … me convenceria de matar o senhor.

Mas eu lhe disse que as deidades da vingança

Lançam todos os trovões contra os parricidas;

Falei-lhe com que laços múltiplos, robustos

Os filhos se ligam ao pai. Senhor, em resumo,

50 Quando ele notou com quanto asco eu me opunha

À monstruosa intenção, ele, num brusco impulso,

Sacando a espada, me ataca num só golpe

O meu corpo indefeso, atingindo meu braço.

Mas quando viu meus brios súbito insuflados,

55 Bravos na luta justa, ávidos de embate —

Ou talvez cheio de pavor co’os meus alardes —,


Fugiu de repente…

GLOUCESTER Que fuja pra bem longe:

Ele não vai andar sem peias nesta terra.

Preso? despachado… O nobre duque, senhor,

60 Meu grão primaz e patrono, chega esta noite;

Sob sua autoridade proclamarei isto:

Que aquele que o encontrar terá a nossa graça,

Se levar o covarde assassino pra estaca!

Porém, pra aquele que o ocultar, será a morte!

65 EDMUND Eu tentei demovê-lo da ideia, mas vi

Que estava decidido. E então, eu falei ríspido,

Ameacei denunciá-lo, e ele retrucou:

“Tu, bastardo sem terras, será que acreditas

Que, se eu te contestasse, o abono de qualquer

70 Confiança, virtude ou valor que possuas

Daria fé à tua fala?… Eu negaria:

Eu negaria mesmo que tu apresentasses

Algo escrito por mim… Eu imputaria tudo

Aos teus maus influxos, arranjos, planos pérfidos.

75 Será que achas que o mundo é assim tão bronco

Que não vá notar que os ganhos com minha morte

São estímulos fortes, possantes, que podem

Te fazer buscá-los?”.

FFloreio do interior.F

GLOUCESTER Monstro vil, inflexível!


Então quis renegar a carta? Estás ouvindo?

80 São os clarins do duque… Mas por que ele veio?

Eu vou bloquear os portos. O biltre jamais

Escapará. O duque tem que me apoiar.

Afora isso, vou espalhar seu retrato

De ponta a ponta, para que o reino inteiro

85 O reconheça. Agora, quanto às minhas terras,

Meu filho bom e leal, eu encontrarei

Os meios para que sejas tu o meu herdeiro.

Entram Cornwall, Regan e séquito.

CORNWALL Então, nobre amigo? Dês que cheguei aqui,

E isso foi agora, só ouço notícia estranha.

90 REGAN Se for verdade mesmo, toda vingança é pouca

Contra esse criminoso. Como está o senhor?

GLOUCESTER Meu velho coração, senhora, está em ruínas!

REGAN Quê? O afilhado de meu pai quis tua vida?

O mesmo que o meu pai nomeou — o teu Edgar?

95 GLOUCESTER Oh, senhora, a vergonha o teria ocultado!

REGAN Ele não andava com aqueles cavaleiros,

Vis, arruaceiros que servem meu pai?

GLOUCESTER Não sei, minha senhora. É triste, triste, triste.

EDMUND Senhora, sim, ele era membro Fda escolta.F

100 REGAN Não surpreende que esteja com más intenções.

Foram eles que o incitaram a matar o velho,

Pra esbaldir e malbaratar seus rendimentos.


Minha irmã me mandou esta tarde instruções

A respeito deles, e com tantas cautelas

105 Que, se vierem se instalar em minha casa,

Eu não estarei.

CORNWALL Nem eu, Regan, eu garanto.

Edmund, ouvi dizer que prestaste ao seu pai

Um serviço de filho.

EDMUND É meu dever, senhor.

GLOUCESTER (a Cornwall) Ele expôs o conluio do outro e, além

disso,

110 Recebeu ferimento ao tentar detê-lo.

CORNWALL Já foram atrás dele?

GLOUCESTER Sim, meu lorde.

CORNWALL É ele ser preso, e ninguém mais vai temer

Que cometa crimes. Pra atingir teu propósito

115 Disponha de minha força. Quanto a ti, Edmund,

Cuja virtude e obediência, neste momento,

Te recomendam, serás um dos nossos. Almas

Assim tão dignas e leais nos faltam e, por isso,

Te queremos conosco.

120 EDMUND Servirei ao senhor em toda circunstância.

GLOUCESTER Em nome dele, agradeço a Vossa Graça.

CORNWALL O senhor sabe por que viemos aqui?…

REGAN Nesta hora imprópria, trilhando o breu noturno?

Assuntos, caro Gloucester, de não pouca monta,

125 Nos quais temos premência de teu bom conselho.

Nosso pai escreveu, e também nossa irmã,


Sobre dissensões, e achei por bem responder

Já distante de casa. Há vários mensageiros

Aguardando o despacho. Meu velho e bom amigo,

150 Busca apaziguar teu coração e concede

Teu conselho imprescindível sobre esse caso

Que exige rápida ação.

GLOUCESTER Senhora, eu estou

Ao seu dispor. As vossas graças são bem-vindas.

Saem. Clarinada.
Ato II

CENA II

Entram Kent, disfarçado, e Oswald separadamente.

OSWALD Bom dia, amigo. És aqui desta casa?

KENT Sim.

OSWALD Onde podemos abrigar os cavalos?

KENT Ali mesmo, no lodaçal.

5 OSWALD Por favor, sê gentil: onde?

KENT Eu não sou gentil.

OSWALD Então eu também não vou ser.

KENT Aprenderias a ser, se eu te metesse numa pocilga.

OSWALD Por que estás me tratando assim? Nem te conheço.

10 KENT Mas eu te conheço, comparsa.

OSWALD E quem tu achas que sou?

KENT Um patife, um cafajeste, lambedor de carne abocada;

um canalha ordinário, arrebicado, raso, amendigado,

com três libras e três librés fedidos e meias

15 de casca-grossa! Um calça-frouxa, um choraminga

de tribunal; um embusteiro filho da mãe, pimpão de


espelho, puxa-saco leva e traz, um amaneirado; um

escravo que herdou uma bruaca e que teria feito um

bem se virasse um cafetão, mas que é só mistura de

20 patife com mendigo, poltrão e o alcoviteiro, e filho e

herdeiro de uma cadela vira-lata. Um tipo em que vou

bater até cair em clamorosos berros se negar a menor

sílaba desses títulos.

OSWALD Mas que espécie de monstro tu és para insultar

25 alguém que não te conhece e que tu não conheces.

KENT Mas que cara de pau tu és pra negar que me conheces.

Não te dei uma rasteira três dias atrás e te espanquei na

frente do rei? Saca a arma, canalha. Está escuro ainda,

mas basta a luz da lua. (desembainha a espada) Vou te

30 cozinhar à luz da lua até que vires papa. Saca, filho da

puta chulo, janota abonecado. Mostra o ferro!

OSWALD Vai-te embora, não tenho nada a tratar contigo.

KENT Saca, canalha! Trouxeste cartas contra o rei e estás ao

lado da boneca vanitosa contra a realeza do pai dela.

35 Saca, ó salafrário, ou vou te atorar os cambitos! —

Saca, cafajeste, em guarda!

OSWALD Socorro! Assassino! Socorro!

KENT Reage, escravo. Levanta, escroto, em guarda, ataca!

(bate nele)

OSWALD Socorro! Assassino! Assassino!

Entram Edmund, com espada desembainhada, Cornwall, Regan,

Gloucester e séquito.
40
EDMUND Mas o que está acontecendo aqui? Solta!

KENT (a Edmund) Se quiseres também, vem, fedelho! Vem,

que eu te ensino. Vem logo, mocinho.

GLOUCESTER Espadas? Armas? O que está acontecendo aqui?

CORNWALL Parem, se ainda estimam a vida: quem golpear

45 de novo, está morto! O que aconteceu?

REGAN São os mensageiros de nossa irmã e do rei.

CORNWALL (a Kent) Que divergência é essa de vocês? Falem.

OSWALD Estou sem fôlego, senhor.

KENT Canalha covarde! Isso não me espanta, depois de tanto

50 exercitar tua valentia. Até a natureza te renega. Por

acaso foste feito por um alfaiate?

CORNWALL Tu és um sujeito muito estranho. Será que um

alfaiate sabe fabricar um homem?

KENT Senhor, sim, um alfaiate pode. Um escultor ou um pintor

55 nunca o teriam feito assim tão torto, mesmo que

tenham só dois anos no ramo.

CORNWALL (a Oswald) Mas, diz: como começou essa disputa?

OSWALD Esse velho brutal, senhor, cuja vida poupei em

respeito à sua barba esbranquiçada…

60 KENT Zê filho da mãe, letra sem serventia. Se o senhor me

permite, posso passar esse sujeito na peneira, pra depois

meter no pilão e rebocar as paredes da latrina com ele.

(a Oswald) Então, tu poupaste minha barba grisalha?

Pavão pachola!

65 CORNWALL Silêncio, palhaço. Besta salafrária, não tens

nenhuma reverência?
KENT Tenho, senhor, mas a raiva tem seus privilégios.

CORNWALL E por que toda essa raiva?

KENT É por ver um escravo que não possui honra

70 Usando a espada. Esses pulhas sorridentes,

Feito ratos, roem e rompem os fios sagrados

Que são coesos demais pra se desatar.

Louvam os fogos podres que em seus amos fervem.

No quente, jogam óleo e na frieza, neve.

75 Negam, afirmam e viram o bico alciônico

Conforme as virações e variações do amo.

Feito cães, não sabem nada, mas vão atrás.

(a Oswald) Para peste com essa tua cara de epilético.

Rindo do que digo como se eu fosse um lorpa?

80 Pato, se eu te pego no vale de Sarum,

Te atiro berrando de volta a Camelot!

CORNWALL Mas quê? Velho, tu estás louco?

GLOUCESTER Diz: por que estavam brigando?

KENT Não há contrários que sejam tão divergentes

85 Quanto eu e esse canalha.

CORNWALL Por que o chamas de canalha? Que erro ele fez?

KENT É a cara dele que não me agrada.

CORNWALL E a minha te agrada? E a dele e a dela?

KENT Senhor, é minha função falar com franqueza:

90 Já vi na minha vida rostos bem melhores

Do que esses aí montados sobre ombros

Na minha frente.

CORNWALL Esse aí é um sujeito que,


Tendo sido elogiado por sua franqueza,

Descamba em grosseria, excedendo de longe

95 O estilo inicial. É incapaz de elogios.

É honesto, franco… Tem que falar a verdade!

Se aceitam, perfeito! Se não, ele foi franco!

Conheço essa canalha que, com essa franqueza,

Camufla mais subterfúgios e fins corruptos

100 Que vinte sabujos cheios de blandícias

Que acorrem, graciosos, para os seus deveres.

KENT Senhor, em minha mais sincera fé e honestidade,

Tendo de vossa magna figura a anuência,

Cuja ascendência, fúlgida guirlanda na fronte

105 De Febo flamejante…

CORNWALL O que pretendes com isso?

KENT Mudar meu estilo que o senhor tanto desaprova. Eu

sei, senhor, que não sou nenhum adulador. Aquele que

o iludiu usando de um tom franco era um franco

110 trapaceiro, o que, de minha parte, eu jamais serei, por muito

que ganhasse seu desprazer ao suplicar a mim mesmo

que o fosse.

CORNWALL (a Oswald) Em que o ofendeste?

OSWALD Nunca o ofendi.

Não faz muito tempo que o seu senhor, o rei,

115 Calcado em enredos falseados, ordenou

Que me surrassem. Ele se juntou ao rei,

Ele o adulou, insuflou nele o rancor,

E me chutou por trás. Quando caio no chão,


Ele vem e me insulta, humilha e toma ares

120 Valorosos que arrancam o louvor do rei,

Tudo por atacar um homem já rendido.

E assim, no fogo da sua façanha atroz,

Me atacou novamente.

KENT Esses biltres, poltrões, covardes

125 Fazem Ajax de paspalho.

CORNWALL Tragam o tronco!

Sai um ou dois servidores.

Velho pulha, turrão, venerável fanfarrão!

Vamos te ensinar.

KENT Estou velho pra aprender.

Não me ponham no tronco. Estou servindo ao rei,

Em cujo proveito fui mandado até ti.

130 Ao pôr no tronco o seu arauto, mostrarão

Imenso desrespeito e malícia insolente

Para com a pessoa e a graça do meu amo.

CORNWALL Vamos, o tronco! Pela minha vida e honra,

Vai penar, sim, no cepo até o sol a pino.

135 REGAN É pouco, senhor: até de noite, a noite toda!

KENT Senhora: mesmo que eu fosse o cão de seu pai,

Não poderia me tratar assim.

REGAN Mas já que és o lacaio, eu posso.

CORNWALL Esse aí é da mesma laia que sua irmã

140 Descreveu. Vamos! Vamos! Tragam logo o tronco.


GLOUCESTER Eu suplico a Vossa Graça que não o faça.

QSua falta foi grave, mas deixe que o seu amo,

O rei, o repreenda. A pena aventada é vil,

Reservada a larápios baixos, desprezíveis,

145 A furtos e a outros delitos mais comuns.Q

O rei, se descobrir essa humilhação,

Não vai gostar de se ver assim aviltado

Em seu mensageiro.

CORNWALL Eu respondo por isso.

REGAN Minha irmã talvez também fique ofendida

150 De ver seu cavalheiro abusado, assaltado,

Ao cumprir suas ordens. Prendam as pernas dele!

Kent é colocado no tronco.

CORNWALL Vamos embora, meu lorde.

Saem todos, menos Gloucester e Kent.

GLOUCESTER Sinto por ti, amigo. São os brios do duque

Cujo gênio, todos sabem, jamais se deixa

155 Dobrar ou deter. Intercederei por ti.

KENT Senhor, evite. Viajei muito e velei.

Um pouco eu vou dormir, no resto assobiar.

Talvez a fortuna de um homem suba

Pelos calcanhares. Um bom dia.

160 GLOUCESTER O duque tem culpa aqui. Isso vai ser malvisto.

Sai.
KENT Bom rei, tens de aprovar o comum ditado:

“Tu, apartado da celeste graça, ficas

Ao fogo do escaldante sol”.

Vinde, ó lume-farol desse globo inferior,

165 Para que, à luz dos vossos raios, eu possa ler

Esta carta. Os milagres não se veem

Salvo na miséria. Eu sei que veio de Cordélia,

Que foi informada felizmente de meu

Acobertado curso:

(lê a carta) “e há de achar a trilha

170 Para além desse estado, buscando um remédio

Para as perdas”. Tão cansados, tão esgotados,

Ó exaustos olhos meus, aproveitem, não mirem

Esse aposento sórdido. Boa noite, fortuna,

Sorri: e que gire tua roda outra vez.

Dorme.
Ato II

CENA III

Entra Edgar.

EDGAR Ouvi o meu nome denunciado, e no oco

Propício de uma árvore, escapei à caçada.

Não há porto aberto, não há posto que não

Esteja pleno de guardas e de espias, prontos

5 Para me aprisionar. Se continuar em fuga

Eu sobrevivo, e estou resolvido a vestir

A aparência mais baixa e abjeta que jamais,

Em seu desprezo ao homem, a penúria abeirou

Do bestial. Meu rosto vou manchar de esterco,

10 Os quadris, cobrir com trapos, as crinas, elfear com nós,

E, ostentando meu corpo nu, afrontarei

Os ventos e as duras perseguições dos céus.

O país me oferece o exemplo e o precedente

Dos mendigos de Bedlam que, aos gritos, uivando,

15 Fincam nos braços dormentes, amortecidos,

Pregos, espinhos, lascas, fiapos de alecrim

E, co’a carranca horrenda, vão, cheios de pragas


Lunáticas, rezas, forçar a caridade

Aos humildes roçados, aos redis e moinhos,

20 E aos pobres rotos arraiais. Pobre bronco-tonto,

Pobre Tom. Isso é algo. Edgar já não sou.

Sai.
Ato II

CENA IV

Entram Lear, o Bobo e um cavaleiro.

LEAR É muito estranho que tenham partido assim,

Sem mandar de volta o mensageiro.

CAVALEIRO O que sei

É que até ontem à noite não tinham intenção

Nenhuma de partir.

KENT (desperta) Salve, meu nobre amo!

5 LEAR Ha? Transformaste essa vergonha em passatempo?

KENT Não, meu senhor.

BOBO Ha, ha, olha só, ele tá com a braga nos coturnos! Cavalo

se prende na fuça, pela gola, o urso e o cão, o macaco,

na cintura, o homem, pelo talão. Ganha meias de pau

10 quem é quente nos pés, mas não pé-quente.

LEAR (a Kent) Mas quem foi que ignorou assim tua posição

E te prendeu aqui?

KENT Ele e ela, teu filho e tua filha.

LEAR Não.

KENT Sim.
15
LEAR Eu digo não.

KENT E eu digo — sim.

QLEAR Não, não, eles não o fariam.

KENT Sim, fariam e fizeram.Q

LEAR Por Júpiter, juro que não.

20 FKENT Por Juno, juro que sim.

LEARF Não, não ousariam, não poderiam,

Não fariam. Isso é pior que assassinato,

É um violento ultraje à deferência. Vai, diz

Logo, com cuidado, por que tu mereceste,

25 Por que te infligiram um tratamento assim,

Tu, que foste mandado por nós?

KENT Senhor, quando

Cheguei na casa deles, entreguei-lhes suas cartas.

Nem havia me erguido de onde, ajoelhado,

Prestava meu dever, quando chega um correio

30 Suado na pressa, ofegante, esbaforindo

Saudações de Goneril, sua ama. Malgrado

A intromissão, entregou as cartas que leram

De imediato; diante do seu conteúdo,

Chamaram sua gente, montaram os cavalos,

35 Mandando que eu os seguisse e aguardasse

O lazer da resposta. Me olhavam com frieza;

E assim topando aqui com o outro mensageiro,

Cuja boa acolhida, notei, envenenou a minha,

Sendo o mesmo sujeito que anteriormente

40 Mostrara tanta insolência com Vossa Alteza,


Eu, com mais sangue que senso, saquei da espada,

E esse poltrão, aos berros, acordou a casa,

E o seu filho e sua filha viram nessa falta

Motivo para essa vergonha que sofro agora.

45 FBOBO Pelo voo do ganso, o inverno não terminou.

A filha foge e fica cega

Se o pai só veste trapo;

Mas é doce e toda meiga

Se o pai carrega um saco;

50 A puta fortuna incurável,

Tranca a porta ao miserável.

Ainda assim, terás de tuas filhas, este ano, tudo o que

doura — e o que doa.F

LEAR Ah, o meu ventre está subindo e apertando o peito!

55 Histerica passio, desce, mágoa montante,

Teu lugar é embaixo. Onde está esta filha?

KENT Com o conde, senhor, aqui dentro.

LEAR Ninguém me siga, fiquem aqui.

Sai.

CAVALEIRO Cometeste alguma ofensa além da que declaraste?

KENT Nenhuma. Por que o rei veio acompanhado de tão

poucos?

BOBO Se foi por uma pergunta assim que te botaram no

tronco, foi merecido.

KENT Por quê, Bobo?

65
BOBO Vamos te mandar pra escola da formiga, pra que

aprendas

que não se trabalha no inverno. Os que seguem o nariz

são guiados pelos olhos, a não ser os cegos. E não há

sequer um nariz entre vinte que não fareje que um sujeito

está fedendo de podre. Quando a roda grande despenca

70 no morro, solta pra não quebrar tua nuca agarrado nela.

Agora se tá subindo, agarra, que ela te arrasta junto pra

cima. Se um sábio te der um conselho melhor, vai e dá-lhe

o meu em troca. Gostaria que só canalhas o seguissem,

já que foi um bobo que deu.

75 Quem serve e busca o pé de meia

E dá os ares de leal

Se escapa ao ver o aguaceiro

Te larga ao temporal;

Mas eu insisto, o bobo fica,

80 E deixa o sábio dar no pé.

É biltre o bobo que se esquiva

Não é biltre o bobo, pela fé!

KENT Onde você aprendeu isso, Bobo?

BOBO No tronco é que não foi, seu bobo.

Entram Lear e Gloucester.

85 LEAR Negam-se a falar comigo? Estão doentes, exaustos?

Viajaram toda a noite? Evasivas moles,

São só sinais de rebelião e deserção.

Traga-me uma resposta melhor.


GLOUCESTER O senhor

Conhece bem a têmpera árdega do duque,

90 E de como ele é inflexível e inamovível

Nos seus atos.

LEAR Vingança, peste, morte, caos!

Árdega? Que têmpera é essa? Gloucester, Gloucester,

Quero falar com o duque — e com sua esposa.

FGLOUCESTER Meu senhor, eu já informei a eles.

95 LEAR “Informou”? Mas será que não me entendes, homem?F

GLOUCESTER Entendo, meu lorde.

LEAR O rei quer falar com Cornwall; um pai amado

Quer falar com a filha. Ele ordena e espera.

FEstão informados? Ah, meu fôlego e meu sangue!

100 “O árdego duque!”F Diz a ele que Lear…

Não, não, ainda não, talvez isso não caiba.

Na doença é comum o descuido do ofício

Que honramos na saúde. Não somos nós mesmos

Quando a natureza, oprimida, ordena a mente

105 A padecer com o corpo. Eu vou me conter,

Vou me apartar do meu impulso mais ferrenho

De ver num homem que está doente e indisposto

Um homem são.

(observa Kent) Morte ao meu estado. Por que

Ele está preso ali? Esse ato me convence

110 Que essa ausência dela e do duque não é mais

Que manobra. Soltem agora meu servidor.

Diz ao duque e à esposa que quero agora mesmo


Falar com eles: que venham aqui e me ouçam,

Ou vou até a porta deles bater tambor

115 Até que o sono durma nos confins da morte.

GLOUCESTER Gostaria que houvesse paz entre vocês.

Sai.

LEAR Ah, ah, meu coração — está subindo. Desce.

BOBO Ralha com ele, titio, faz o mesmo que a moçoila

doidivanas fez com as enguias quando as meteu ainda vivas

120 dentro do pastel. Ela lhes deu umas porretadas no

topete, e gritou: “Pra baixo, bicho danado, mais embaixo”.

Foi o irmão dela que, por pura gentileza com seu

cavalo, amanteigou o feno.

Entram Cornwall, Regan, Gloucester e servidores.

LEAR Bom dia para ambos.

CORNWALL Salve Vossa Graça.

Kent é posto em liberdade.

125 REGAN Fico contente de ver Vossa Majestade.

LEAR Eu acredito, Regan. E sei por que razão

Eu acredito. Se não estivesses contente,

Me divorciaria da tumba de tua mãe,

Sepultando uma adúltera. (a Kent) Ah, estás livre?

130 Logo tratamos disso. — Minha amada Regan,

A tua irmã é nada…. Ela cravou aqui —


(põe a mão no coração)

A ingrata! — garras excruciantes de abutre!

Mal consigo falar. Não vais acreditar

De quanta perversidade ela usou. Oh, Regan!

135 REGAN Senhor, tenha paciência. Eu espero que o senhor

Seja menos hábil em lhe avaliar os méritos

Do que ela em escassear seu dever.

FLEAR Mesmo? Como?

REGAN É que a mim me custa crer que minha irmã tenha

Faltado ao seu dever. Senhor, caso ela tenha

140 Refreado os distúrbios de sua comitiva

Fez com tal fundamento e com fins tão benéficos

Que a isentam de toda a culpa.F

LEAR Maldita seja!

REGAN Ora, o senhor já está velho: a natureza

Em seu corpo está a um passo do extremo marco

145 Do seu confim final. O senhor deveria

Se reger e guiar por um juízo que entenda

Seu estado melhor que o senhor a si mesmo.

Por isso lhe rogo: retorne à nossa irmã

E lhe diga que errou.

LEAR Pedir perdão?

150 Acha que isso condiz com nossa casa?

(ajoelha-se) Minha filha querida, eu confesso, estou velho;

A velhice é um estorvo. Eu suplico de joelhos

Que me conceda roupa, cama e o de comer.

REGAN Basta, meu bom senhor, dessa comédia insípida.


155 Vá, retorne à minha irmã.

LEAR (levanta-se) Isso nunca, Regan.

Ela me espoliou de metade de meu séquito,

Mirou-me com desdém e mergulhou sua língua

Viperina no meu peito. Que as vinganças

Todas do céu golpeiem sua fronte ingrata!

160 Ventos fétidos, infectem seus ossos jovens

De deformidades.

CORNWALL Pare, senhor, basta!

LEAR Relâmpagos, lancem suas flechas, perfurem

Seus olhos cheios de escárnio. Poluam, pântanos,

Sua beleza co’os miasmas que o sol subleva —

165 Abram-lhe pústulas!

REGAN Deuses! É isso então

Que vais me desejar no teu próximo surto?

LEAR Não, Regan, nunca terás minha maldição.

Tua terna natureza não te deixará

Ser cruel. O olhar dela é feroz, já o teu

170 Reanima e não queima. Não és tu que queres

Me cercear o lazer e me extirpar o séquito,

Me insultar e ultrajar, cortar as minhas cotas,

Ou ainda fechar a porta à minha entrada.

Conheces muito bem o dever natural,

175 O vínculo filial, a boa cortesia

E o débito da gratidão. Não esqueceste

A parte do reino que te dei como dote.

REGAN Meu senhor, ao assunto.


Trombeta ao fundo.

LEAR Quem pôs meu homem no tronco?

Entra Oswald.

CORNWALL De quem é esse toque?

180 REGAN É o da minha irmã. Isso confirma a mensagem

De que ela viria aqui.

(a Oswald) Sua senhora chegou?

LEAR Este é um escravo cuja arrogância de empréstimo

Vive das frágeis graças de quem ele segue.

Fora, lacaio!

185 CORNWALL O que quer dizer Vossa Graça?

Entra Goneril.

LEAR Quem pôs meu homem no tronco? Quero crer, Regan,

Que não estavas ciente. Quem vem lá? Oh, céu!

Se amas os velhos, se tua terna propensão

Se inclina à obediência, se tu mesmo és velho

190 Faz essa causa tua! Desce e me defende!

(a Goneril) Não sentes vergonha de olhar para estas

barbas?

Ó, Regan, tu vais lhe dar a mão?

GONERIL Meu senhor,

E por que não daria? Em que ofensa incorri?

Nem tudo o que a caduquice e o indiscernimento

195 Proclamam é ofensa.


LEAR Tu és forte, meu peito!

Será que suportas? Por que foi posto no tronco?

CORNWALL Eu que o pus ali, senhor, mas as farras dele

Não merecem tantas honras.

LEAR Quê? Tu?

REGAN Peço, pai, que, sendo fraco, se mostre fraco.

200 Se até o vencimento de seu mês o senhor

Retornar para residir com minha irmã,

Depois de dispensar metade de seu séquito,

Venha até mim. Agora estou longe de casa

E sem as provisões que serão necessárias

205 Para o seu devido acolhimento.

LEAR Voltar a ela? Dispensar cinquenta homens?

Não, eu prefiro abdicar a um teto e enfrentar

A inclemência dos céus, e, presa da pobreza,

Virar companheiro do lobo e da coruja.

210 Voltar a ela? Ah! O ardente rei da França

Que, sem dote, esposou nossa filha mais jovem,

Eu me poria de joelhos aos pés do seu trono,

Suplicando por uma pensão de escudeiro

Que suprisse uma vida servil. Retornar?

215 Melhor me pedir que eu seja o escravo, o jumento

Desse lacaio abjeto. (aponta para Oswald)

GONERIL Como quiser, senhor.

LEAR Eu peço, minha filha,

Não me enlouqueças. Não vou mais te importunar.

Adeus: não vamos mais nos encontrar nem ver,


220 Mas és minha carne, meu sangue, minha filha,

Ou ainda um distúrbio que está no meu corpo,

Que tenho de aceitar como meu: uma pústula,

Um túmido tumor no meu sangue corrupto,

Uma chaga pestífera. Mas não te censuro:

225 Que o pejo venha, não sou eu que vou chamá-lo!

Nem ordeno que o deus do trovão te golpeie,

Nem conto tua história ao justo e excelso Júpiter.

Te corrige, melhora ao teu tempo e vontade:

Sei ser paciente e posso ficar com Regan,

230 Eu e meus cem cavaleiros.

REGAN De modo algum,

Senhor. Eu não estava ainda à sua espera,

Nem estou munida pra acolhê-lo dignamente.

Escuta minha irmã, pois quem derrama um pouco

235 De razão nessa sua paixão ficará

Contente de pensar que estás velho e portanto…

Mas ela sabe o que faz.

LEAR Isso é falar bem?

REGAN Creio que é, senhor. Quê? Cinquenta homens não

Bastam? Por que precisa mais? Ou mesmo tantos,

240 Quando os custos e os riscos depõem contra

Uma soma tão vasta. Como manter a paz

Numa casa com tanta gente sob dois

Comandos? É difícil. É quase impossível!

GONERIL Meu senhor, por que não aceitar os serviços

245 Daqueles que ela chama de criados?


Ou ainda dos meus?

REGAN Por que não, meu senhor?

Se tentarem qualquer incúria com o senhor,

Nós os controlaremos. Se vier comigo —

Pois já estou vendo um risco — peço que traga apenas

250 Vinte e cinco homens. Mais não vou aceitar

E tampouco acolher.

LEAR Dei-lhes tudo o que tinha…

REGAN E deu em boa hora.

LEAR Tornei-as guardiãs

Minhas, curadoras, mas mantive o direito

De um séquito co’esse número. Para ir contigo

255 Devo levar só vinte e cinco? Como? É isso?

REGAN Eu repito, senhor: nem um homem a mais.

LEAR A criatura vil parece ser mais bela

Quando há outra mais vil. Pois não ser a pior

Sustém certo grau de louvor.

(a Goneril) Eu vou contigo.

260 Teus cinquenta são vinte e cinco ao dobro, e assim

O teu amor são dois do dela.

GONERIL Senhor, ouça.

Por que precisa vinte e cinco, ou dez, ou cinco

Seguidores, numa casa onde há o dobro

Disso de gente ao seu dispor?

REGAN E por que um?

265 LEAR Oh, não julguem a necessidade! Os mendigos

Mais baixos nas coisas mais pobres têm supérfluos.


Não dê à natureza além do necessário,

E eis que a vida humana se iguala à de um bicho;

Tu és uma dama. Se bastasse estar quente

270 Pra estar deslumbrante… Mas quê? A natureza

Não necessita dessa tua roupa estonteante

Que nem te aquece. Mas quanto à necessidade…

Céus, dai-me paciência, necessito paciência!…

Deuses, olhai pra mim, um pobre velho, cheio

275 De anos, de aflições, em tudo desgraçado:

Se sois vós que atiçais a alma dessas filhas

Contra um pai, não deixeis que eu o sofra mansamente;

Dai-me uma fúria nobre e jamais aceiteis

Que as armas das lágrimas femininas manchem

280 Meu rosto viril. Não, feiticeiras perversas,

Minha vingança contra vocês será tal

Que o mundo inteiro vai… vou fazer tais coisas —

O que serão, não sei, mas hão de ser

O terror do mundo. Acham que vou chorar,

285 Mas não vou, não vou! (Ftrovão e tempestade.)F

Tenho razões pra chorar — muitas —, mas meu peito

Há de explodir em mil detritos, antes mesmo

Que me venha o pranto. Eu vou ficar louco, bobo!

Saem Lear, Gloucester, Kent, o Bobo e cavaleiro.

CORWALL Vamos entrar. Há uma tempestade chegando.

290 REGAN Essa casa é pequena. O velho e a sua gente


Não vão ficar bem alojados.

GONERIL A culpa é dele. Ele não quis descansar,

Vai ter que desgustar sua sandice.

REGAN Ele eu receberia com prazer,

295 Mas nenhum dos seus homens.

GONERIL Penso do mesmo modo.

Onde está o meu senhor de Gloucester?

Entra Gloucester.

CORNWALL Foi seguir o velho — já está de volta.

GLOUCESTER O rei está enfurecido.

FCORNWALL E para onde ele vai?

300 GLOUCESTER Mandou vir os cavalos. Não sei pra onde vai.

CORNWALL Deixem o caminho livre, ele vai se guiar.

GONERIL (a Gloucester) Senhor, não tente de forma alguma detê-

lo.

GLOUCESTER Deuses! A noite já está aí e um vento gélido

Sopra enfurecido. Por milhas e milhas não

305 Se vê um arbusto.

REGAN Oh, senhor, para o renitente

O melhor mestre são os danos que ele próprio

Engendrou. Trancai as portas. Pois ele veio

Co’essa comitiva de gente celerada,

E do jeito que está, o ouvido aberto ao abuso,

310 É prudente temer ao que podem incitá-lo.

CORNWALL Tranque as portas, meu lorde. É uma noite terrível.

Regan aconselhou bem. Saiam da tempestade.


Saem.
Ato III

CENA I

Tempestade continua. Entra Kent, disfarçado, e um cavaleiro.

KENT Quem vem lá, além do tempo inclemente?

CAVALEIRO Alguém que está como a tormenta, atormentado.

KENT Eu conheço você. Onde está o rei?

CAVALEIRO Batendo-se com a fúria dos elementos;

5 Rogando ao vento que arremesse a terra ao mar,

Ou inunde o continente com suas vastas vagas,

Pra que tudo se altere e cesse. QE arranca as cãs

Que o impetuoso vento colérico e cego

Em sua fúria agarra e converte em nada;

10 E ri no seu mundinho humano do ir e vir

Hostil do vento e da chuva. Numa noite

Em que, sugada pela cria, a ursa busca

A toca, e o lobo esquálido e o leão resguardam

A pelagem da umidade, ele corre, exposto,

15 Berrando que o primeiro lance leva tudo.Q

KENT Mas quem está com ele?


CAVALEIRO Tão somente o Bobo,

Que tenta lhe abafar a dor no coração

Com troças e gracejos.

KENT Senhor, eu o conheço,

E assim ouso, com base em meu bom escrutínio,

20 Passar-lhe algo precioso. Há uma discórdia em curso,

Embora a mútua astúcia disfarce seu rosto,

Entre Cornwall e Albany, Fque, como todos

De estrela forte que se alçaram a um trono, têm

Serviçais — e com aparência de serviçais! —,

25 Que são na verdade espias e olheiros

Do rei da França nesse nosso Estado. Agora,

Se acharam algo? Talvez as rusgas dos duques,

Talvez as rédeas que impuseram ao velho rei,

Ou algo mais profundo, meros acessórios —F

30 QMas é fato: há uma força francesa avançando

No nosso fraturado reino, a qual, a par

De nossa negligência, já meteu os pés

Furtivamente nos nossos melhores portos

E está prestes a içar às claras sua bandeira.

35 Ao ponto: se confias em mim, toma logo

A estrada para Dover. Lá tu encontrarás

Quem vai te agradecer pelo justo relato

Do desgosto perverso e enlouquecedor

Que o nosso rei tem razão de lamentar.

40 Eu sou cavalheiro de cepa e criação,

E com algum conhecimento e segurança,


Confio a ti essa missão.Q

CAVALEIRO Falo mais tarde co’o senhor.

KENT Não faças isso.

Pra que tenhas a prova de que valho mais

45 Que minhas vestes, abre essa bolsa e leva

Tudo o que ela contém. Caso encontres Cordélia —

E com certeza vais — mostra-lhe este anel,

E ela te dirá quem é essa pessoa

Que ainda não conheces. Arre, tempestade!

50 Vou procurar o rei.

CAVALEIRO Dê-me sua mão, senhor,

Tem mais algo a dizer?

KENT Há bem pouco a dizer,

Mas a fazer bem mais que tudo o que foi feito.

Vai por aqui, eu vou por lá. Quem encontrar

O rei primeiro avisa o outro com um grito.

Saem.
Ato III

CENA II

Tempestade continua. Entram Lear e o Bobo.

LEAR Sopra, vento, explode as faces. Bufa e bafeja!

Furacões e cascatas, jorrai até que tenham

Lavado os campanários e os galos nos pináculos!

Vós, fogos sulfúricos, prestos como a mente,

5 Arautos dos clarões que estraçalham carvalhos,

Queimai minhas cãs! E tu, túrbido trovão,

Desmantela da terra a compacta rotunda,

Rompe os moldes do mundo, enjeita de uma vez

Os grãos que engendram o homem ingrato!

10 BOBO Ai, titio, água-benta cortesã em casa seca vale mais

que aguentar essa água toda. Tinho, querido, entra,

pede a bênção pra tuas filhas. Uma noite dessas não

perdoa nem sábio nem bobo.

LEAR Ruje teu ventre! Cospe fogo, jorra tuas bátegas!

15 O vento, a chuva o raio não são minhas filhas!

Não vos culpo, elementos, dessa ingratidão!


A vós não dei um reino e nem chamei de filhas.

Não me deveis apoio. Caia então sobre mim

Vosso sinistro gozo. Aqui estou, vosso escravo,

20 Um homem pobre, fraco, enfermo e desprezado!

Porém, eu já vos vejo, ó ministros servis,

Aliados a duas infestas filhas, lançando

Vossa batalha altiva contra uma cabeça

Tão branca e envelhecida! Oh, oh, oh, é sórdido.

25 BOBO Quem tem casa pra meter a cuca, tem uma boa

carapuça.

Quem quer casa pra bragueta

Antes de ter para o quengo

Vai ter piolho na coqueta.

É o vadio que vai co’as quengas:

30 Se aquilo que cabe ao peito

Um homem faz junto à sola,

No dedão vai ter defeito,

Dói o calo, berra, rola.

Pois nunca houve mulher bonita que não fizesse poses

35 no espelho.

Entra Kent, disfarçado.

LEAR Não! Eu serei o modelo de toda a paciência,

Não direi mais nada.

KENT Quem está aí?

BOBO Estão aqui vossa graça e uma braguilha — um sábio e

40
um bobo.

KENT (a Lear) Inda aqui, senhor? Nem seres que amam a noite

Amam uma noite assim. Os céus enraivecidos

Espantam até mesmo os andantes das trevas

E os confinam em seus covis. Desde que sou homem,

45 Nunca ouvi falar desses tétricos estrondos,

Do vento que ruge e uiva, dessa borrasca,

Dos rios de fogo! Nossa essência não suporta

Tanta aflição, tanto medo.

LEAR Que os grandes deuses,

Que esse tumulto atroz lançam em nossas faces

50 Flagrem seus inimigos. Treme, miserável,

Que trazes em teu peito crimes encobertos

Que a lei não flagelou. Te esconde, mão mortífera,

E tu, perjuro, e tu, fingidor de virtude,

Que vives no incesto. Biltre, trinca em detritos,

55 Tu, que, oculto em ares persuasivos, tramaste

Contra a vida humana. E vós, culpas trancadas,

Expeli vosso bojo e rogai pela graça

De quem vos intima. Pecaram contra mim

Bem mais do que pequei.

KENT Quê? A cabeça nua!

60 Meu bom senhor, aqui perto há uma choça

Que vai lhe dar abrigo contra o temporal.

Repouse ali, que eu vou a essa dura casa —

Mais dura do que as pedras co’as quais foi erguida,

A qual agora mesmo, quando eu o procurava,


65 Recusou meu ingresso — eu tentarei forçar

Sua avara cortesia.

LEAR Meu juízo está alterado,

(ao Bobo) Vem cá, meu menino. Estás bem? Estás com frio?

Eu estou com frio.

(a Kent) Meu amigo, onde é essa choça?

Nossas necessidades têm artes estranhas

70 Que tornam rico o que é vil. Vamos, pra choça!

Pobre bobo, há uma parte de meu coração

Que tem pena de ti.

BOBO Quem tem ainda um leve tino,

Na chuva — o-ho! — na ventania

75 Que fique alegre co’o destino

Por mais que chova a cada dia.

LEAR É verdade, menino. (a Kent) Vem, nos leva até essa choça.

Saem Lear e Kent.

FBOBO Noite perfeita pra refrescar uma cortesã. Vou dizer

80 uma profecia antes de ir embora:

Se um dia a palavra do padre contar,

Com água o leite o leiteiro gorar,

E o nobre der aula ao seu costureiro,

Hereges poupados, jamais putanheiros;

85 Se um dia a justiça perder seu descrédito,

O nobre, a pobreza, o pajem, o débito;

E nas bocas morrer a vil detração,


E o bate-carteira evitar multidão,

E putas e caftens erguerem igrejas,

90 O reino de Albion

Vai ver confusão:

E o tempo virá, e quem viver verá

Que pra andar no mundo, os pés há de usar.

Essa profecia Merlim a fará, pois vivo antes de seu tempo.

Sai.F
Ato III

CENA III

Entram Gloucester e Edmund, com luzes.

GLOUCESTER Edmund, não gosto dessa conduta desnaturada.

Quando lhes pedi permissão para lhe assistir, tiraram-me

o uso de minha própria casa, obrigando-me,

sob pena de desfavor perpétuo, a jamais falar com ele,

5 interceder por ele ou ajudá-lo.

EDMUND É muita selvageria, é contra a natureza!

GLOUCESTER Cuidado. Não diga nada. Há divisão entre os

duques, e coisa ainda pior. Recebi esta noite uma carta…

é perigoso falar disso… Escondi a carta em meu

10 gabinete. Esses insultos que o rei recebe agora serão

plenamente vingados. Parte de um exército já pôs os

pés no país. Temos de nos colocar ao lado do rei. Vou

procurá-lo e socorrê-lo em segredo. Vai, encete uma

conversa com o duque, para que ele não perceba a minha

15 caridade. Se ele perguntar por mim, estou doente e

acamado. Caso eu morra nessa ação — e essa é a ameaça


que me fizeram —, o rei, que é o meu senhor antigo,

tem que ser socorrido. Há coisas estranhas pela frente,

Edmund. Por favor, seja cauteloso.

Sai.

20 EDMUND Logo essas tuas cortesias interditas

E essa carta, o duque as conhecerá…

Parece um prêmio justo, e me trará aquilo

Que meu pai perderá, o que é dele e bem mais.

Quando os jovens se erguem, tombam os velhos pais.

Sai.
Ato III

CENA IV

Entram Lear, Kent, disfarçado, e o Bobo.

KENT Este é o lugar, senhor. Entre, meu bom senhor.

O flagelo da noite erma é ríspido demais

Para um humano suportar.

FAinda a tempestade.F

LEAR Deixem-me sozinho.

KENT Senhor, entre.

LEAR Queres partir meu coração?

5 KENT Quebraria o meu antes. Meu bom senhor, entre.

LEAR Tu crês que é grande coisa essa feroz tormenta

Entrando em nossa pele? Sim, é assim que sentes,

Mas lá onde a mais grave moléstia penetra,

A branda mal se sente. Tu escapas de um urso,

10 Mas se ao fugir esbarras co’o mar estrondoso,

Preferes topar co’a fera. Se a mente é livre,

O corpo é frágil: essa tormenta em minha mente


Apaga em meus sentidos os outros sentimentos,

Salvo o que pulsa aqui. Ingratidão filial!

15 Não serás como a boca que estraçalha a mão

Que te entrega a comida? Eu punirei por certo.

Não, não vou mais chorar. FDeixaram-me pra fora

Numa noite assim? Que chova, eu suportarei.F

Numa noite destas? Oh, Regan, oh, Goneril,

20 Um pai velho, bom, cuja alma lhes deu tudo!

Oh, a insânia está logo ali. Vou me desviar.

Chega, chega.

KENT Meu bom senhor, entre aqui.

LEAR Eu peço, entra tu, procura te abrigar.

Esse temporal me impedirá de pensar

25 Naquilo que me fere mais. Mas vou entrar.

(ao Bobo) FVai, menino, entra… Miseráveis sem teto…

Não! Vai, entra…Vou rezar e depois dormir.

Sai Bobo.

Pobres coitados, nus, onde quer que estejais

A sofrer os jorros desse temporal cruel,

30 Como é que essas cabeças sem teto, as ancas magras

E vossos farrapos rotos vão vos abrigar

Contra um tempo assim? Oh, eu cuidei muito pouco

Dessas coisas todas. Pompa, toma um remédio,

Busca sentir o que sentem os desgraçados,

35 Que assim tu poderás lhes dar o teu supérfluo


E revelar enfim que os céus são justos.

Entra o Bobo, como se de dentro da choupana.

FEDGAR (dentro) Braça e meia, braça e meia, Pobre Tom!F

BOBO Não entre não, titio! Tem um espírito ali. Socorro!

Socorro!

40 KENT Me dá tua mão. Quem está ali?

BOBO Um espírito, Fum espírito!F E diz que se chama Pobre

Tom.

KENT Quem és tu, aí, ruminando na palha?

Aparece!

Entra Edgar, disfarçado de Pobre Tom.

45 EDGAR Fujam, que o diabo malino tá atrás de mim. O vento

QfrioQ tá soprando por entre o pirliteiro seco. Huuuh…

Vai pra tua cama QfriaQ e te aquece.

LEAR Então deste tudo às tuas filhas? E acabaste deste jeito?

EDGAR Quem é que dá algo pro Pobre Tom, aquele que o

50 capeta encardido arrastou por fogos e Fpor flamas,F pelas

vaus e redemunhos, por cima dos charcos e dos brejos;

o demo depôs facas debaixo do seu travesseiro e nó de

forca no seu assento rezeiro; esparramou mata-rato perto

do seu mingau e esbafejou orgulhos-brios no seu peito,

55 para que, montado num cavalo baio troteiro, cruze pontes

mofinas de quatro dedos e pra que, modo farejando

um traidor, rastreie o vulto respectivo de si… Salva tuas

cinco faculdades, ai, Tom tá com frio.F O do, dudi, didu,


dadu:F Bendito seja, e bem longe dos redemunhos, dos

60 assopros astrais, dos contágios! Façam uma caridade pro

Pobre Tom, que o bicho malino está atormentando. Eu

podia pegá-lo agora — aqui, ali, agora, lá!

FAinda a tempestade.F

LEAR Foram as filhas dele que o deixaram assim?

Não salvaste nada? Deste tudo a elas?

65 BOBO Nã-não, ele guardou um cobertor, senão a gente ia ficar

avergonhado.

LEAR (a Edgar) Que as pragas todas que pairam no ar, fatais

Às faltas humanas, caiam sobre tuas filhas.

KENT Ele não tem filhas, senhor.

70 LEAR Morre, traidor! Que outra coisa o teria posto

Neste estado abjeto, a não ser filhas ingratas?

Será moda que pais rejeitados recebam

Tão pouca piedade de sua própria carne?

Pena judiciosa! Foi esta mesma carne

75 Que pariu aquelas filhas pelicanas.

EDGAR No monte Pubicão

Pousou o periquito

Alou, alou alou lo lo!

BOBO Esta noite fria vai nos transformar a todos em bobos

80 e loucos.

EDGAR Cuidado com o malino imundo. Obedece a teus pais,

cumpre a palavra, não jures, não forniques com a legítima


mulher do teu próximo, não te enchas de pompa e

aparatos. O Tom tá com frio.

85 LEAR Tu eras o que antes?

EDGAR Um servidor, de mente e coração ufano, que cacheava

os cabelos, prendia luvas na boina, servia à lascívia

do coração de minha dama, e com ela cometi aquilo

que se faz na escuridão. Fiz tantas juras quanto

90 proferi palavras, e as quebrei todas perante a doce face

do céu. Era aquele que dormia excogitando luxúrias e

acordava para executá-las. Grande amante do vinho,

terno amigo dos dados. E, no tocante às mulheres, de

longe superei o turco: coração falso, ouvido leviano,

95 mão sanguinária. Um porco na indolência, raposa na

astúcia, lobo na cobiça, na fúria um cão, na rapina um

leão. Não deixes que o rangido dos sapatos nem o frufru

das sedas entreguem teu pobre coração a uma mulher.

Mantém os pés longe dos bordéis, as mãos fora

100 dos saiotes, tua pena longe dos livros do usurário, e

vai e afronta o malino imundo. O vento frio ainda tá

soprando por entre o pirliteiro, e faz zoum zoum mum,

nuny, nunum, Delfim, meu menino, cessez! Deixa que

trote à vontade, deixa.

FAinda a tempestade.F

105 LEARQ Quê!Q Estarias bem melhor num túmulo que expondo

teu corpo desnudo às inclemências dos céus. Será


que o homem é apenas isto? Observem-no bem: tu não

deves a seda ao bicho-da-seda, à fera, nenhuma pele,

nem deves a lã à ovelha, nem perfume nenhum ao gato.

110 Ah! Só entre nós aqui há três cheios de sofisticação.

Mas tu, tu és a própria coisa. Um homem sem comodidades

é apenas um mísero animal desnudo, um bicho

bípede como tu. Fora, fora com esses trapos postiços.

Vem, desabotoa Faqui.F (rasgando suas roupas, contido

por Kent e pelo Bobo)

FEntra Gloucester, com uma tocha.F

115 BOBO Por favor, titio, sossega. É uma noite terrível para fazer

natação. Só tem agora esse lumizinho no descampado,

parece o coração de um velho lascivo, só uma fagulhazinha,

o resto todo do corpo, gelado. Olha ali! A chama tá

andando, é um fogo-fátuo, o João Galafoice!

120 EDGAR É o malino encardido, o Tricafutrica: ele exsurge no

toque de recolher e errambula até o primeiro cocoricó.

Ele traz a catarata, dá vesgueira no olho e acarreta o

lábio de lebre, embolora o trigo branco e atormenta as

pobres criançuras da terra.

125 Três vezes São Vital pisou nas campinas,

Topou co’a Mula e as nove crias,

Gritou que apeasse,

Seu empenho jurasse,

Fora, bruxa, arreda daqui!

130
KENT Como está Vossa Graça?

LEAR Quem é ele?

KENT (a Gloucester) Quem está aí? O que procura?

GLOUCESTER Quem são vocês? Quais os seus nomes?

EDGAR Pobre Tom, que come a rã do charco, o sapo, o

135 girino, e a lagartixa e a salamandra — que, na fúria do

seu coração, quando o diabo-malino acomete, deglute

estrume de vaca em vez de salada; engole o rato podre

ou o cachorro morto na sarjeta; bebe a gosma esverdeada

das poças paradas; que é chicoteado de paróquia

140 em paróquia e posto no tronco, punido e encarcerado —

que já teve três fardas no lombo e seis camisas no corpo.

Tem cavalo e armadura,

Mas só comeu por sete anos

145 Cria de corça, rato e calungo.

Cuidado com quem tá me seguindo. Quieto, cão-miúdo,

quieto, capeta!

GLOUCESTER Quê? Vossa Graça não tem companhia melhor?

150 EDGAR O príncipe das trevas é um cavaleiro. É chamado

de Modo e de Mahu.

GLOUCESTER Nossa carne e nosso sangue, senhor, tornaram-se

Tão ignóbeis que detestam quem os gerou.

EDGAR O Pobre Tom tá com frio.

155 GLOUCESTER (a Lear) Entre comigo. Meu dever se recusa

A acatar as duras injunções de suas filhas.

Embora eu tenha ordens de cerrar as portas,

Pondo o senhor à mercê desta noite atroz,


Arrisquei-me até aqui para levá-lo a um lugar

160 Onde terá o fogo aceso e a ceia pronta.

LEAR Mas antes quero falar com este filósofo:

(a Edgar) Qual é a causa do trovão?

KENT Aceite essa oferta,

Meu bom senhor, entre na casa.

LEAR Só uma palavra mais co’esse sábio tebano:

165 O que o senhor estuda?

EDGAR Como aturdir o demo e matar piolho.

LEAR Permita-me uma pergunta mais privada.

KENT (a Gloucester) Insista com ele, senhor, para que parta.

Seu juízo está se desfazendo.

GLOUCESTER Como culpá-lo?

(FAinda a tempestade.F)

170 As filhas querem sua morte. Ah, meu bom Kent,

Ele anteviu tudo, o pobre homem banido!

Dizes que o rei está enlouquecendo, mas

Eu te digo, amigo, eu mesmo estou quase louco.

Tive um filho, agora proscrito de meu sangue;

175 Não faz muito ele atentou contra a minha vida.

Amigo, eu o amava, nunca um pai amou tanto

Um filho. Digo-te a verdade pura, a mágoa

Transtornou meu juízo. Mas que noite é esta?

(a Lear) Eu rogo a Vossa Graça.

LEAR Oh, clame por perdão!

180
(a Edgar) Nobre filósofo, sua companhia.

EDGAR Tom tá com frio.

GLOUCESTER Entra na choupana, rapaz, te aquece.

LEAR Vamos entrar — todos.

KENT Por aqui, meu senhor.

LEAR Eu fico com ele… sempre com meu filósofo.

185 KENT Meu bom senhor, ceda à vontade dele. Deixe

Que leve o rapaz.

GLOUCESTER Pode conduzi-lo.

KENT Vem,

Meu jovem, vem aqui conosco.

LEAR Venha conosco, meu bom ateniense.

GLOUCESTER Agora, todos quietos, psiu…

190 EDGAR E à torre escura veio Rolão

E disse a senha, fa, fi, fu, fão,

Sinto o cheiro de sangue bretão.

Saem.
Ato III

CENA V

Entram Cornwall e Edmund.

CORNWALL Terei minha vingança antes de deixar esta casa.

EDMUND Mas, meu senhor, tremo só de pensar quanto me

censurarão por dispensar a natureza em favor da lealdade.

5 CORNWALL Noto que não foi apenas a índole nefanda de

seu irmão que fez com que ele buscasse a morte do seu

pai, mas o estímulo de um mérito posto em marcha por

alguma maldade reprovável do pai.

EDMUND Que ironia do meu destino ter que me arrepender

10 por ser justo! Esta é a carta de que ele falou. Traz

confirmação

de que ele é um espião a serviço do rei da França.

Ah, céus, quem dera essa traição não existisse e eu não a

tivesse detectado.

CORNWALL Venha comigo até a duquesa.

15 EDMUND Se é verdade o que está neste papel, o senhor tem

em mãos um assunto extremo.


CORNWALL Verdade ou não, isso já fez de ti conde de

Gloucester.

Deslinda o paradeiro do teu pai que estaremos

prontos para a apreensão.

20 EDMUND (aparte) Se eu o encontrar consolando o rei, isso

vai rechear ainda mais as suspeitas dele. (a Cornwall)

Continuarei no caminho da lealdade, ainda que seja

doloroso esse conflito entre ela e o meu sangue.

CORNWALL Minha confiança eu deposito em ti e na minha

25 estima encontrarás um pai amável.

Saem.
Ato III

CENA VI

Entram Kent, disfarçado, e Gloucester.

GLOUCESTER Aqui está melhor do que lá fora a céu aberto.

Aceite graciosamente. Tentarei tornar o lugar mais

confortável com os acréscimos que puder. Não demorarei.

KENT Toda a força de razão dele se entregou ao desespero.

5 Que os deuses premiem a bondade do senhor!

Sai Gloucester.

Entram Lear, Edgar, disfarçado como Pobre Tom, e o Bobo.

EDGAR Frateretto me conclama e me diz que Nero é

pescador no lago da escuridão. Reza, inocente, cuidado co’o

diabo-imundo!

BOBO Por favor, titio, diz lá o que é um louco, se é um fidalgo

10 ou um plebeu?

LEAR Um rei, um rei.

FBOBO Que nada. É um plebeu que tem um filho fidalgo;


pois só um plebeu louco pra ver o filho virar fidalgo

antes dele.

15 LEARFAh, se mil deles se abatessem sobre elas

Com espetos incandescentes!

QEDGAR O demo-encardido tá me mordendo atrás.

BOBO É louco quem confia na mansidão do lobo, na saúde

do cavalo, no amor do moço e na jura da rameira.

20 LEAR Está decidido: vou acioná-las na lei.

(a Edgar) Vem, douto e versado juiz, senta-te aqui.

(ao Bobo) Senta, sábio senhor. Não, vocês não, raposas!

EDGAR Olhem ele ali, os olhos faiscando… Tá te faltando

olho pra jogar bola no buraco?

25 Cruza, Bete, a corrente,

Vem, ó linda, até mim.

BOBO O seu bote furou,

Para sempre calou,

Não mais irá ‘té ti.

30 EDGAR O diabo-encardido assombra o Pobre Tom na voz de

um rouxinol. O Trasgo-baileiro tá berrando na pança

do Pobre Tom, pedindo dois arenques frescos. Para de

rosnar, anjo das trevas, não tenho comida pra ti.

KENT Como está, senhor? Não fique assim tão desnorteado.

Não quer deitar, repousar nestas almofadas?

35 LEAR Primeiro o julgamento. Tragam as testemunhas.

(a Edgar) Tu, juiz togado, vai, toma o teu lugar.

(ao Bobo) E tu, seu colega em equidade, toma

Assento ao lado dele. (a Kent) E tu, que és juiz comissionado,


40 Toma teu assento também.

EDGAR Procedamos com justiça.

Dormes ou velas, belo pastor?

O teu redil tá no trigal

E é só um toque de tua flauta

Pra ele estar livre do mal.

45 Rrroon! O gato é pardo!

LEAR Processe-a primeiro. É Goneril — faço aqui juramento

perante a honrada assembleia —, ela chutou o pobre

rei, seu pai.

BOBO Aproxime-se, senhora: o seu nome é Goneril?

50 LEAR Isso ela não pode negar.

BOBO Ah, perdão, eu pensei que você fosse uma banqueta.

LEAR E eis a outra, cujo olhar oblíquo proclama

De que matéria sua alma é feita. Detenham-na!

Armas, espadas, corrupção no tribunal!

55 Juiz falso, por que a deixaste escapar?Q

EDGAR Benditos sejam teus cinco sentidos!

KENT Oh, piedade! Senhor! Onde está a paciência

De que tantas vezes o senhor se gabou?

EDGAR (aparte) As lágrimas me vêm ao tomar seu partido,

60 E quase desfiguram o meu disfarce.

LEAR A cachorrada, o bando todo, Traíra,

Branquinha e Namorada, latem pra mim.

EDGAR Tom vai de cabeça pra cima delas. Fora, vira-latas!

Seja a bocarra branca ou preta,

65 Traga peçonha da valeta,


Mastim ou galgo ou cusco sujo,

Fila ou lebrel, bassê, sabujo,

Rabo cotó, cauda rosqueada,

Se Tom ataca é só uivada,

70 Que assim jogando mia cachola,

Dispara cão, salta, cabriola.

Do, di, di, di, Fcessez!F Venham, vamos marchando até

as quermesses, os folguedos e até os feirões. Pobre Tom,

teu corno tá vazio.

75 LEAR Que Regan seja anatomizada. Estudem a coisa que

procria dentro do seu coração. Há alguma razão para

que a natureza engendre corações assim tão duros?

(a Edgar) Senhor, eu te incluo entre meus cem

cavaleiros. Agora, essas tuas vestimentas não me agradam em

80 nada. Vais me dizer que são roupas persas, mas mesmo

assim deves trocá-las.

KENT Agora, senhor, deite-se, descanse um pouco.

LEAR Sem barulho, sem ruído — fechem as cortinas. Isso.

Isso. Isso. E amanhã de manhã vamos para a ceia…

85 isso, isso, isso.

Dorme.

FBOBO E eu irei para a cama ao meio-dia.F

Entra Gloucester.

GLOUCESTER Amigo, venha aqui. Onde está o rei, meu senhor?

KENT Aqui, senhor, mas não o perturbe.


90
Ele perdeu o juízo.

GLOUCESTER Amigo, eu peço que tu o pegues com teus braços.

Ouvi dizer que há um complô para matá-lo.

Há uma liteira pronta. Coloca-o lá dentro,

E segue para Dover, amigo, que lá

95 Terás acolhimento e proteção. Segura

O teu amo. Se demorares meia hora,

A vida dele, a tua e a de todos os outros

Que lhe ofertam guarida estará a perigo.

Segura-o e me segue que te mostrarei

100 Onde há provisões para a tua viagem.

QKENT Dorme a natureza opressa. Talvez o sono

Tenha aliviado a dor de teus frágeis tendões,

Cuja cura só virá com boas congruências.

(ao Bobo) Vamos, me ajuda agora a carregar teu mestre.

105 Não deves ficar aqui pra trás.Q

GLOUCESTER Vamos, partamos!

Saem todos, menos Edgar ; Kent e o Bobo carregam Lear.

QEDGAR Ao ver nossos maiores com nossas agruras,

Misérias nossas não nos parecem tão duras.

Quem sozinho sofre mais sofre em pensamento,

Esquecendo a franquia, o regalo e o contento.

110 Mas eis que a mente evita os diversos agrores,

Quando o auxílio do amigo nos palia as dores.

Quão leve e suportável parece o penar,


Se o que me faz curvar, ao rei faz se dobrar.

Filho ele virou, eu virei pai. Tom, fuja.

115 Escute os ruídos altos e somente surja

Quando a falsa opinião cuja voz o deslustra

O revoque e congrace pela prova justa.

Traga a noite o que for, que ileso escape o rei.

Esconda-se, esconda.Q

Sai.
Ato III

CENA VII

Entram Cornwall, Regan, Goneril, Edmund e servidores.

CORNWALL (a Goneril) Dirija-se com diligência ao lorde seu

marido. Mostre-lhe esta carta: o exército da França aportou.

(aos servidores) Procurem Gloucester, o traidor.

REGAN Enforquem-no imediatamente.

Saem alguns servidores.

5 GONERIL Arranquem-lhe os olhos!

CORNWALL Deixem-no para o meu desagrado. Edmund,

acompanhe nossa irmã. A vingança que vamos

consumar contra seu traiçoeiro pai não é propícia para o

seu olhar. Aconselhe o duque, a quem você se dirige, de

10 acelerar os preparativos. Faremos o mesmo. O correio

entre nós vai ser rápido e preciso. Adeus, meu lorde de

Gloucester.

Entra Oswald.

Então, onde está o rei?

OSWALD O meu lorde de Gloucester o levou daqui.


15
Trinta e cinco ou trinta e seis de seus cavaleiros,

Febris em sua procura, o alcançaram nas portas,

E assim, com outros dos dependentes do conde,

Partiram rumo a Dover, onde eles se gabam

De ter amigos bem armados.

20 CORNWALL Tragam cavalos para vossa senhora.

Sai Oswald.

GONERIL Meu bom senhor, adeus, adeus, minha irmã.

CORNWALL Edmund, adeus.

Saem QGoneril e EdmundQ.

(aos servidores)Busquem já o traidor Gloucester.

Atem-no como um ladrão e tragam-no aqui.

Saem servidores.

Embora não nos caiba, sem ritos legais,

25 Dispor de sua vida, o nosso poder fará

Um regalo à nossa cólera, a qual se pode

Muito bem culpar, mas jamais controlar.

Quem vem lá? É o traidor?

Entra Gloucester, trazido por dois ou três servidores.

REGAN Raposa ingrata! É ele!

30 CORNWALL Prendam bem esses braços casquentos!

GLOUCESTER Que é isso?


O que querem Vossas Graças? Pensem, amigos:

Vocês são meus hóspedes. Não façam comigo

Nada acintoso.

CORNWALL Prendam-no, é uma ordem —

Servidores amarram-lhe os braços.

REGAN Ate, mais firme! Traidor imundo!

35 GLOUCESTER Mulher desapiedada: não sou traidor.

CORNWALL No banco, prendam-no. Vilão, vais compreender…

(Regan arranca sua barba)

GLOUCESTER Ah, deuses benévolos, que ato mais ignóbil,

Me puxar pela barba!

REGAN Uma barba bem branca. No entanto um traidor!

40 GLOUCESTER Mulher traiçoeira,

Esses fios que arrancaste do meu queixo vão

Rebrotar, te acusar. Franqueei-te minha casa,

Não deverias nunca, com tuas mãos bandidas,

Aviltar minha acolhida. O que querem de mim?

45 CORNWALL Vamos, que cartas recebeu do rei da França?

REGAN Resposta simples — a verdade já temos.

CORNWALL E que conspiração manténs co’os traidores

Que acabam de pisar no reino?

REGAN Em cujas mãos

Jogaste o rei ensandecido. Vamos, fala.

50 GLOUCESTER Tenho uma carta aqui que é pura conjectura,


Que não veio de um inimigo, mas de alguém

De coração neutro.

CORNWALL Quanta astúcia.

REGAN E impostura!

CORNWALL Pra onde enviaste o rei?

GLOUCESTER Pra Dover.

REGAN Pra Dover?

Por quê? Não estavas incumbido, sob pena…

55 CORNWALL Mas por que para Dover? Deixe-o responder.

GLOUCESTER Estou atado numa estaca, eu vou ter de

Suportar o ataque!

REGAN Senhor, por que pra Dover?

GLOUCESTER Porque eu não queria ver tuas unhas pérfidas

Furar-lhe os pobres olhos — nem tua irmã atroz

60 Cravar as presas porcas na sua carne ungida.

O mar, com todo o estrondo que ele suportou

Na sua cabeça nua, em plena noite hórrida,

Se ergueria, extinguindo os fogos estelares.

Mas, pobre coração de velho, com suas lágrimas

65 Ele ajudou os céus a chover. Se à tua porta,

Naquele austero clima, os lobos uivassem,

Tu dirias, “oh, bom porteiro, abra a porta,

Suspenda as crueldades”. Mas ainda verei

A alígera vingança abatendo estas filhas.

70 CORNWALL Nunca verás! Homens, segurem a cadeira.

Eu vou escorar o pé nos teus dois olhos!

GLOUCESTER Quem ainda quer viver até a velhice,


Me ajude! Oh, crueldade, oh, deuses!

REGAN Um olho zomba do outro — agora o outro!

75 CORNWALL Se vês vingança…

1o SERVIDOR Meu senhor, sustenha a mão,

Estive ao seu serviço desde minha infância,

Mas nunca prestei um serviço tão bom quanto

Lhe ordenar que pare!

REGAN Cachorro, como assim?

1o SERVIDOR Se tivesses barba no rosto, eu a agarraria

80 Agora na contenda. O que é que pretendes!

CORNWALL O meu escravo!…

QSacam as espadas e lutam.Q

1o SERVIDOR Avança, corre o risco da minha cólera!

Fere Cornwall.

REGAN (a outro servidor) Passa tua espada. Quanto descaro, um

escravo!

QEla toma a espada e o ataca por trás.Q FMata-o.F

1o SERVIDOR Ah, fui morto. Senhor, resta-lhe ainda um olho

85 Pra que veja o revés que impus a ele! Oh!

Morre.

CORNWALL Deixe, vou cuidar pra que não veja mais. Saia,

Geleia abjeta! E, agora, onde é que está tua luz?

GLOUCESTER Está tudo escuro, soturno! Onde está meu filho,


Edmund, ateie as centelhas da natureza,

90 Filho, e vingue esse crime horrendo.

REGAN Fora, biltre

Canalha! Apelas por alguém que te detesta.

Foi ele que nos trouxe à luz tua traição,

Um jovem bom demais pra ter pena de ti.

CORNWALL Meu delírio! Edgar então foi caluniado!

95 Bons deuses, perdoai-me, fazei-o prosperar!

REGAN (aos servidores) Joguem-no pra fora na porta, que vá e

fareje

A trilha para Dover. Como está, senhor?

CORNWALL Fui ferido. Siga-me, senhora.

(aos servidores) Enxotem

Já esse biltre cego. Joguem o escravo

100 Na esterqueira.

Saem servidores com Gloucester e com o cadáver.

Regan, estou sangrando muito.

E na pior das horas! Dê-me o seu braço.

Saem Cornwall e Regan.

Q2o SERVIDOR Se esse homem se safar, não vou mais me

importar

Com as minhas perfídias.

3o SERVIDOR Se ela viver muito,

E encontrar só no fim sua morte natural,

105 Então todas as mulheres virarão monstros.


2o SERVIDOR Levemos o conde, façamos com que o doido

Tom

O leve aonde ele quiser. É louco e vagamundo,

É capaz de tudo.

3o SERVIDOR Vai tu: eu vou buscar

Linho e clara de ovo pra aplicar em seu rosto

110 Ensanguentado. E agora que os céus o protejam!

Saem.Q
Ato IV

CENA I

Entra Edgar, disfarçado como Pobre Tom.

EDGAR Sim, é melhor saber-me desdenhado a ser

Desprezado e adulado. A pior, a mais baixa,

Mais aviltada coisa da fortuna, ainda

Perdura na esperança, não vive no medo.

5 Mudanças deploráveis vêm do que é melhor;

E o revés vira razão de riso. FQue sejas

Então bem-vindo, vento incorpóreo que abraço;

O miserável que engolfaste no pior

Não deve nada às tuas borrascas.F

Entra Gloucester, conduzido por um velho.

10 Quem vem lá? Meu pai: conduzido por um pobre!

Oh, mundo, mundo, mundo! Sem tuas estranhas

Mutações que nos fazem te odiar, nunca

Que a vida cederia ao peso da velhice.

VELHO Ó bom senhor, tenho sido o seu rendeiro

15 E do senhor vosso pai por oitenta anos.


GLOUCESTER Vai, meu bom amigo, me deixa. Nenhum bem

Pode vir de teus consolos. Eles podem mesmo

Te ferir.

VELHO Mas o senhor não enxerga o caminho.

GLOUCESTER Não tenho caminho: não preciso de olhos.

20 Quando enxergava, tropeçava. Quantas vezes

O fausto nos protege e nossas próprias falhas

Nos trazem proveito. Oh, Edgar, amado filho,

Repasto da fúria de um pai ludibriado,

Que eu possa viver pra vê-lo com minhas mãos.

25 E aí direi que resgatei meus olhos!

VELHO O que é? Quem vem lá?

EDGAR (aparte) Oh, deuses! Quem afinal

Pode dizer: “Cheguei ao máximo pior?”.

O meu pior agora é ainda pior.

VELHO (a Gloucester)É o Pobre Tom, o louco

EDGAR (aparte) E pior posso ficar. O pior não é o pior

30 Se ainda podemos dizer: “Eis o pior!”.

VELHO (a Edgar) Companheiro, aonde vais?

GLOUCESTER Quem é, é um mendigo?

VELHO É um demente, e também um mendigo.

GLOUCESTER Deve ter

Algum juízo, senão não mendigaria.

Eu o vi ontem à noite em meio ao temporal,

35 Me fez pensar que o homem é um verme. Na hora

Veio-me à mente o meu filho, mas eu ainda

Lhe nutria hostilidade. Desde então ouvi,


Escutei muito — é, nós somos para os deuses

Como moscas nas mãos de garotos arteiros.

40 Nos esmagam por diversão.

EDGAR (aparte) O que houve aqui…

Triste ofício encenar loucura perante a dor,

Enraivecendo a si e aos outros. (a Gloucester) Bênção, senhô!

GLOUCESTER É o rapaz desnudo?

VELHO É, senhor.

GLOUCESTER Então vai.

Se, em meu benefício, puderes te juntar

45 A nós daqui a uma ou duas milhas na estrada

De Dover, estarás selando tua estima,

E traz um manto pra essa pobre alma nua,

A quem vou pedir que me conduza.

VELHO Ah, senhor, mas ele é louco demente.

30 GLOUCESTER É flagelo do tempo se o louco guia o cego!

Faz o que te peço, ou segue o teu anelo,

Mas sobretudo vai.

VELHO Eu trarei a ele a melhor roupa que tiver,

Custe o que custar.

FSai.F

55 GLOUCESTER Rapaz, tu aí que estás nu!

EDGAR Pobre Tom tá com frio. (aparte) Nem consigo fingir.

GLOUCESTER Vem cá, amigo.

EDGAR (aparte) FMas sou obrigado.F (a Gloucester) Benditos


os teus bons olhos. Estão sangrando!

60 GLOUCESTER Conheces o caminho para Dover?

EDGAR Cada escadote e porteira, trilha para petiço e estradão

de gente. Pobre Tom foi espaventado dos seus sãos

juízos. Eu vos benzo contra diacho-tinhoso, ó Filho de

homem de bem. QCinco mofinos se aboletaram juntos

dentro no Pobre Tom, o Trasgo-do-rasgo, da luxúria; o

65 Trasgo-baileiro, príncipe das mudezas; Mahu, da roubalheia;

Modu, do assassinato; e também Tricafutrica, das

mogigandas e dos esgares, que ultimamente tem possuído

as criadas e as camareiras. Então, meu patrão, que

Deus vos tenha!Q

70 GLOUCESTER Aqui, toma essa bolsa, tu que aprendeste co’as

divas

Pragas a te amoldar a todos os reveses.

Que eu esteja na desgraça te faz mais feliz!

Que o céu atue assim! Que o homem opulento,

75 Lúbrico-glutão que escraviza as tuas leis

Que se recusa a ver porque não sente nada

Sinta a tua força. E assim a distribuição

Dará fim aos excessos, e todos os homens

Terão o suficiente. Tu conheces Dover?

80 EDGAR Sim, senhor.

GLOUCESTER Há um penhasco cuja testa saliente e alta

Afronta inquebrantável o patamar do abismo:

Me guia até o lugar, me leva até a borda,

Que irei reparar o teu fardo de miséria


85
Com um valor que trago aqui. Dali em diante,

Não precisarei de guia.

EDGAR Dá-me o teu braço,

Pobre Tom te mostra o caminho.

FSaem.F
Ato IV

CENA II

Entram Goneril e Edmund, seguidos de Oswald.

GONERIL Bem-vindo, meu senhor. Pasma-me que meu manso

Marido não nos tenha encontrado no caminho.

(a Oswald) Onde está o seu senhor?

OSWALD Senhora, está lá dentro,

Mas nunca homem tão mudado. Eu lhe falei

5 Do exército que acaba de desembarcar;

Ele riu. Falei-lhe também da sua chegada;

E respondeu: pior! Da traição de Gloucester

E do leal serviço do seu filho, quando

Passei-lhe a informação, chamou-me de imbecil,

10 E disse que eu estava vendo tudo às avessas.

Parece gostar do que deveria odiar,

E odiar o que deveria amar.

GONERIL (a Edmund ) É o bastante.

É só o pavor poltrão de sua constituição

Incapaz de arriscar. Ele não vê a ofensa,

15 Se ela o força a lutar. Talvez nossos desejos


Encontrem seus fins. Edmund, volta ao meu irmão,

Faz com que apresse as levas e conduz suas tropas;

Eu vou mudar os nomes lá em casa e dar

A roca ao meu marido. Esse servo fiel

20 Fará o elo entre nós. Em breve ouvirás

As ordens de uma dama, se, em teu favor,

Ousares te arriscar.

(Dá-lhe um presente.)

Veste isto aqui. Poupe tua fala.

Baixa o rosto. Esse beijo, se ousasse falar,

Ergueria nos ares tuas forças vitais.

25 Compreenda e boa sorte.

EDMUND Vosso sempre nas fileiras da morte!

FSai.F

GONERIL Oh, meu amado Gloucester!

FQuanto contraste entre um homem e outro…F

Tu vales os préstimos de uma mulher.

30 Um imbecil me usurpa a cama!

OSWALD Senhora, meu senhor está vindo.

QSai.Q

FEntra Albany.F

GONERIL Ah, então eu mereço um assobio!


ALBANY Oh, Goneril,

Você não vale o pó que a ventania ríspida

Sopra na sua cara. QEu temo o seu caráter;

35 A natureza que despreza a própria origem

Jamais saberá se conter com segurança.

O galho que a si mesmo despega e desprende

Da seiva natural, por força secará

Servindo a fins funestos.

40 GONERIL Basta, esse sermão ridículo!

ALBANY A bondade e a prudência aos vis parecem vis;

O sujo adora o imundo. O que afinal fizeram?

São filhas? Não! Tigres! Que coisas perpetraram?

Um pai, um velho bom, cuja reverência

45 Até mesmo um urso no cabresto lamberia!

Bestas, depravadas, vocês o enlouqueceram!

Se o céu não lançar rápido seus gênios visíveis

Na terra pra que aplaquem esses crimes vis,

O dia há de vir em que

50 O homem viverá de rapinar o homem,

Como monstros do abismo profundo.Q

GONERIL Homem frouxo, sem fibra, que só sabe dar

O rosto a bofetadas e a cabeça a insultos,

Que não tem na cara olho pra distinguir

55 Sua honra do seu sofrimento; Qque não nota

Que só um trouxa tem dó do biltre que é punido

Antes de delinquir! Onde está teu tambor?

O rei de França já desfralda suas bandeiras


Nesta plácida terra e, com elmo emplumado,

60 Já põe teu reino em risco. E tu, otário probo,

Fica resmungando: “Por que ele fez isto?”.Q

ALBANY Monstro, olha bem para ti! Nem no demônio

A deformidade é tão horrenda

Como numa mulher.

GONERIL Frívolo, imbecil!

65 QALBANY Mulher perversa, escusa! Pelo pejo, não

Abrutalhes teus traços. Se coubesse a mim

Deixar que minhas mãos obedecessem ao sangue,

Elas pronto deslocariam, rasgariam

Tua carne, teus ossos. Mas tu és um demônio,

70 E a feição feminina te serve de escudo.

GONERIL É isso? Quanta virilidade… Miau!Q

Entra um mensageiro.

QALBANY Quais são as novas?Q

MENSAGEIRO Oh, meu bom senhor,

O duque de Cornwall está morto, imolado

Pelo seu próprio servo, quando ia arrancar

75 O outro olho de Gloucester.

ALBANY Os olhos de Gloucester?

MENSAGEIRO Um de seus criados, pulsando de remorso,

Se opôs àquele ato, apontando a espada

Ao seu grande senhor, que, irado com a insolência

Da ameaça, investiu contra ele. O servo

80 Caiu morto ali no meio, não sem deixar


O corte fatal que logo ceifou o duque.

ALBANY (a Goneril) Isso mostra que estais mais altos, ó juízes

Que com tanta rapidez vingais esses nossos

Crimes terrenais. Mas o pobre Gloucester

85 Perdeu o outro olho?

MENSAGEIRO Os dois, senhor, os dois.

Esta carta, senhora, que sua irmã mandou,

Requer rápida resposta.

GONERIL (aparte) Isso em parte me agrada. Mas ela estando

viúva

E o meu Gloucester ao seu lado, o edifício todo

90 De minha fantasia pode despencar,

Soterrar minha vida odiosa. A notícia

Não é lá tão amarga.

(ao mensageiro) Vou ler e responder.

Q Sai.Q

ALBANY E o filho estava onde, quando o cegaram?

MENSAGEIRO Veio aqui com minha senhora.

ALBANY Não está aqui.

95 MENSAGEIRO Não, meu bom lorde, encontrei-o de retorno.

ALBANY Ele sabe dessa perversidade?

MENSAGEIRO Sim,

Meu senhor: foi ele que denunciou o pai

E foi de propósito que saiu de casa

Para que a punição ganhasse livre curso.

100
ALBANY Gloucester, eu vivo pra te agradecer o amor

Que demonstraste ao rei e pra vingar teus olhos.

Vem, meu amigo, me conta o que mais souberes.

Saem.
Ato IV

CENA III

QEntram Kent, disfarçado, e um fidalgo.

KENT Por que o rei da França retornou tão de repente, sabes

do motivo?

FIDALGO Algo que ele deixou sem resolver no país, que o

preocupava desde sua chegada aqui e que traz tanto

5 medo e perigo ao reino que o seu retorno tornou-se

urgente e necessário.

KENT E quem ele deixou como general?

FIDALGO O marechal da França, Monsieur Lafare.

KENT As cartas arrancaram da rainha alguma demonstração

10 de dor?

FIDALGO Digo que ela as tomou e leu na minha presença.

De ora em vez uma longa lágrima escorria

Na sua terna face. Parecia tão régia

Vencendo sua paixão que, ali, como um rebelde,

15 Tentava dominá-la.

KENT Ficou comovida?


FIDALGO Mas não com furor. Mágoa e paciência pleitearam

Quem a expressaria com primor. O senhor

Já viu sol e chuva ao mesmo tempo. Assim

Eram seus sorrisos e prantos, mas mais belos;

20 O lépido sorriso nos seus lábios tenros

Parecia insciente dos hóspedes que havia

Em seus olhos, os quais logo verteram como

Pérolas a gotejar dos vivos diamantes.

Sim, o pesar seria joia muito amada

25 Se a todos fosse dado adorná-lo assim.

KENT Mas ela pronunciou alguma palavra?

FIDALGO Suspirou, uma ou duas vezes, o nome pai,

Como se isso estivesse oprimindo o seu peito,

E gritou “Irmãs, irmãs, oh, mulheres sem pejo,

30 Kent, pai, irmãs! Como? No temporal, à noite?

Não há mais piedade?”. E aí deixou cair

O sagrado licor de seus cerúleos olhos,

Que a ungiu num clamor. Depois partiu dali

Pra sozinha lidar com sua dor.

KENT São os astros,

35 Os astros excelsos que regem nossa essência

Ou nunca um casal numa casa pariria

Prole tão desigual. Falou depois com ela?

FIDALGO Não.

KENT Isso foi antes de o rei retornar?

40 FIDALGO Não, foi depois.

KENT Pois bem, está na cidade o pobre e aflito Lear


Que, às vezes recobrando alguma luz, relembra

Por que estamos aqui, mas de maneira alguma

Ele aceita ver a filha.

FIDALGO Por quê, senhor?

45 KENT A suprema vergonha o detém. Sua dureza

Que a despiu de sua bênção, que a jogou no exílio

Ao acaso e entregou seus direitos mais caros

Àquelas filhas ferinas, injeta tanta

Peçonha em sua mente que, ardendo de vergonha,

50 Mantém distância de Cordélia.

FIDALGO Pobre homem.

KENT Sabes algo sobre as forças de Cornwall e Albany?

FIDALGO Sei. Já estão em marcha.

KENT Bom, senhor, vou levá-lo ao rei meu soberano.

Ficará lá pra cuidá-lo. Algo de importância

55 Vai me manter ainda algum tempo disfarçado.

Quando souber quem sou, não há de lamentar

Por ter me concedido a sua atenção.

Por favor, venha comigo.

Saem.Q
Ato IV

CENA IV

Entram, com tambor e estandarte, Cordélia, fidalgo, oficial e

soldados.

CORDÉLIA Ah, é ele. Foi encontrado agora mesmo,

Louco como o mar convulso, cantando alto,

Coroado de fumárias bravas, macegas,

Bardanas, cicutas, urtigas, cardaminas,

5 Co’o joio e todos os inços vãos que grassam

Nos nossos almos trigais. Envie uma centúria.

Revistem cada acre da lavoura esguia e

Tragam-no até mim.

Sai oficial.

O que houver na ciência humana

Capaz de restaurar seu enlutado juízo,

10 Aquele que puder ajudá-lo terá

Pra si todas as minhas riquezas visíveis.

Sai oficial, com soldados.


FIDALGO Há meios, minha senhora. O repouso

É a ama zelosa de nossa natureza,

E ele a perdeu. Para que ele o resgate há muitas

15 Essências operantes cuja força ativa

Calará o olhar da angústia.

CORDÉLIA Santos segredos,

Ó bens ocultos no seio da terra, jorrai

Com minhas lágrimas. Ajudai, remediai

A aflição desse homem bom. Vão, vão, busquem-no,

20 Antes que o tumulto da fúria extinga a vida

Que não possui os meios para se guiar.

Entra mensageiro.

MENSAGEIRO Há notícias, senhora: as forças britânicas

Marcham em nossa direção.

CORDÉLIA Nós já sabíamos.

E já estamos prontos, aguardando a chegada.

25 Oh, querido pai, é com tuas coisas que eu

Me ocupo. Por isso o grande França apiedou-se

Do meu luto e do meu pranto suplicante.

Não é a vã ambição que nos incita às armas,

Mas o amor, o amado amor, junto com o direito

30 Do meu idoso pai: eu em breve o verei

E o ouvirei.

Saem.
Ato IV

CENA V

Entram Regan e Oswald.

REGAN Mas as forças do meu irmão já estão em marcha?

OSWALD Estão, senhora.

REGAN Ele está lá em pessoa?

OSWALD Sim, minha senhora, mas com muito escarcéu. Sua

5 irmã é um soldado melhor.

REGAN Lorde Edmund não conversou com seu senhor no

castelo?

OSWALD Não, senhora.

REGAN De que trata a carta que minha irmã lhe enviou?

OSWALD Não sei, senhora.

10 REGAN Ele partiu às pressas por motivo grave.

Foi ignorância deixar que Gloucester vivesse,

Estando amputado dos olhos. Onde chega,

Move o coração de todos contra nós. Acho

Que Edmund, apiedado co’a miséria do pai

15 Partiu pra despachar-lhe a vida escurecida.

E também pra sondar a força do inimigo.


OSWALD Senhora, tenho que segui-lo e entregar a carta.

REGAN Amanhã nossas tropas partem. Fique conosco.

O caminho é perigoso.

OSWALD Não posso, senhora;

20 Recebi essa incumbência de minha senhora.

REGAN Mas por que razão ela escreveu a Edmund?

Será que pode me transmitir com palavras?

Quais são suas intenções? Há algo aqui… não sei.

Terás minha gratidão. Deixe-me abri-la…

25 OSWALD Senhora, é melhor —

REGAN Sei bem que sua senhora

Não estima o marido. Disso eu estou certa.

Ela esteve aqui há pouco tempo e lançou

Uns olhares bizarros, loquazes ao nobre

Edmund. Eu sei que você é seu confidente…

30 OSWALD Eu, senhora?

REGAN Eu digo porque sei — eu sei que você é.

Ouça esse bom conselho e anote o que digo:

Meu marido morreu. Edmund e eu conversamos.

E a ele mais convém tomar minha mão

35 Que a mão de sua ama. O resto se supõe.

Caso o encontre peço que lhe passe isso.

E assim que sua senhora ouvir essas coisas,

Peço que a instigue a ouvir a voz da razão.

Adeus. Se ouvir alguma coisa por acaso,

40 Por onde é que anda aquele cego traidor,

Quem o aniquilar será favorecido.


OSWALD Quem me dera encontrá-lo, senhora, que assim

Poderei mostrar a que partido pertenço.

REGAN Boa viagem.

Saem.
Ato IV

CENA VI

Entram Gloucester e Edgar, vestido de camponês.

GLOUCESTER Quando chegarei ao topo do penhasco?

EDGAR Nós já estamos subindo. Não sente o esforço?

GLOUCESTER A mim me parece plano.

EDGARTerrivelmente íngreme.

Não está ouvindo o mar?

GLOUCESTER Sinceramente, não!

5 EDGAR Talvez a dor nos seus olhos esteja ofuscando

Os seus outros sentidos.

GLOUCESTER É possível. Agora,

A tua voz parece mudada, e tu te expressas

Com frase, conteúdo, bem melhor que antes.

EDGAR O senhor está enganado. Eu não mudei nada

10 A não ser minhas vestes.

GLOUCESTER Tua fala está melhor.

EDGAR Eis o lugar, senhor. Não se mova. É horrível,

Vertiginoso olhar um penhasco tão fundo!

Os corvos e as gralhas que roçam o ar abissal


Parecem ao longe minúsculos besouros.

15 No meio da penha, pendurado, um homem cumpre

Sua tétrica labuta colhendo o perrexil!

Não parece maior que sua própria cabeça.

Os pescadores na praia parecem ratos

E lá, aquela nave ancorada, altaneira

10 Mirrou, parece um bote, e o bote, uma boia

Que quase não se vê. Aqui destas alturas

Mal se ouve o estrépito das ondas que castigam

O pedregal inerte. Não vou mais olhar,

A vertigem pode me sorver a visão

25 E me sugar no abismo.

GLOUCESTER Põe-me aí onde estás.

EDGAR Dê-me sua mão. Pronto. Já está a um pé apenas

Da borda extrema. Eu não daria um passo à frente

Por nada sob a lua.

GLOUCESTER Solta minha mão.

Toma essa bolsa. Tem uma joia aí capaz

30 De contentar um pobre. Que as fadas e os deuses

A façam prosperar em tuas mãos. Agora,

Sai, vai para mais longe e me dá adeus,

E me deixa ouvir teus passos se afastando.

EDGAR Vá em paz, meu senhor.

GLOUCESTER Com todo o coração.

35 EDGAR (aparte) Se eu brinco assim com o desespero dele

É para curá-lo.

GLOUCESTER (Qajoelha-seQ) Ó deuses poderosos,


Renuncio a esse mundo e, diante os olhos vossos,

Pacientemente aparto minha vasta aflição.

Se a pudesse suportar por mais tempo, sem

40 Afrontar a vontade vossa inelutável,

O lume sórdido da minha natureza,

Queimando, cessaria! Se Edgar ainda vive,

Oh, deuses, dai-lhe todo o amparo! Mas agora,

Amigo, adeus.

QEle cai.Q

EDGAR Senhor, adeus!

(aparte) Mas eu não sei

45 Como a imagem ideada é capaz de roubar

O tesouro da vida, quando a própria vida

Capitula ao furto. Se ele estivesse mesmo

Onde pensou estar, já partido teria

O seu pensar.

(a Gloucester) Está vivo? Morto? Amigo,

50 Senhor! Está me ouvindo? Fale! Já deve

Ter partido… Não, está revivendo! Fale,

Quem é o senhor?

GLOUCESTER Sai — me deixa morrer.

EDGAR Ainda que tu fosses teia, pluma ou ar,

Despencando várias braças penha abaixo,

55 Te espatifarias feito um ovo. Mas tu

Respiras, falas, e teu corpo está intacto,


Não estás sangrando. Dez mastros sobrepostos

Não dão a altura de tua queda vertical.

Tua vida é um milagre. Fala de novo.

60 GLOUCESTER Mas eu caí — ou não?

EDGAR Caíste do tétrico

Píncaro dessas rochas de calcário. Olha,

Lá em cima. A cotovia de garganta estrídula

Está tão longe que não pode nem ser vista

Nem ouvida. Olha para o alto, vamos!

65 GLOUCESTER Mas eu não tenho olhos! Por acaso

Privaram da desgraça o bem de se extinguir

Na morte? Ainda havia um consolo quando

A miséria iludia a fúria do tirano,

Frustrando-lhe o gozo inflado.

EDGAR Me dê seu braço,

70 Levante… Está sentindo as pernas? Está em pé!

GLOUCESTER Estou, estou, sim!

EDGAR É muito — pra além de estranho!

E que ser era aquele, no alto do penhasco,

Que se afastou de ti?

GLOUCESTER Um pobre miserável.

75 EDGAR Eu estava aqui embaixo, e a mim me pareceu

Que tinha olhos que eram duas luas cheias,

Mil narizes, cornos crespos e encapelados

Como o mar irado. Era um demônio. Mas tu,

Pai venturoso, sabe que os deuses puros,

80 Cuja glória é fazer o que é impossível ao homem,


Te salvaram.

GLOUCESTER Agora me lembrei. Daqui em diante vou

Suportar a aflição até que eu grite basta,

Basta e morra. O ser de que falaste pensei

85 Que fosse humano. Dizia toda a hora, o demo,

O demo. Foi quem me trouxe até o lugar.

EDGAR Procure ter pensamentos sãos e pacientes.

Entra Lear enfurecido, coroado com flores silvestres.

Quem vem lá? Um juízo são jamais vestiria

Seu senhor co’esses trajes.

90 LEAR Não, ninguém vai me repreender por cunhar dinheiro.

Pois sou eu o rei.

EDGAR Oh, visão excruciante.

LEAR Nisso a natureza supera a arte. Aqui está teu soldo

cunhado. Esse rapaz maneja o arco feito um espantalho:

95 vai, distende o arco, bem puxado! Olha, ali, ali,

um rato! Quieto… uma pontinha de queijo torrado

resolve. Aqui está minha manopla, vou arremessá-la

contra o gigante. Alabardeiros, venham! Voo perfeito,

gavião! Na mosca, na mosca. Chummk… Agora, grita

100 a senha!

EDGAR Manjerona doce.

LEAR Passa…

GLOUCESTER Eu conheço essa voz.

LEAR Há! Goneril Fcom barba brancaF? Me adularam como

105 cães e diziam que eu tinha fios brancos na barba antes


mesmo dos fios pretos. Dizer “sim” e “não” para tudo

o que eu dizia “sim” e “não” não era uma boa devoção.

Quando a chuva veio para me encharcar e o vento me

fez ranger de frio; quando o trovão não quis se calar ao

110 meu pedido, foi aí que as encontrei, foi aí que as farejei.

Fora daqui, vocês não têm palavra. Me disseram que eu

era tudo. Pura mentira, não sou imune às febres.

GLOUCESTER Eu lembro esse timbre de voz. Não é o rei?

LEAR Sim, da cabeça aos pés! Se eu lanço o meu olhar,

115 Não vês meus súditos tremendo? Perdoo a vida

Deste homem. Qual o teu crime? Adultério?

Não morrerás! Morrer por adultério? Não!

Até a carriça o comete, e a mosca dourada

Fornica na minha frente. Deixa o coito livre!

120 O bastardo de Gloucester foi mais gentil com o pai

Que mi’as filhas geradas em lençóis legítimos!

Vai, lascívia, mixórdia, pois me faltam soldados!

Olhem essa dama com seu sorriso pudico,

Cujo rosto anuncia a neve entre as coxas,

125 Que requebra a virtude e meneia a cabeça

Só de ouvir a palavra “prazer”!

Nem o furão nem a égua fogosa

Se jogam com apetite tão desabalado.

Embaixo são centauros, em cima, mulheres.

130 São dos deuses só da cintura para cima,

Embaixo é o capeta que manda. Ali é o inferno,

Escuridão, um fogo sulfúrico ardendo,


Escaldando, fétido, consumindo! Arg!

Me traz, apotecário, um pouco de almíscar

135 Para adoçar um pouco a imaginação.

Aqui está o dinheiro.

GLOUCESTER Oh, me deixe beijar essa mão!

LEAR Vou limpá-la primeiro. Ela cheira à mortalidade.

GLOUCESTER Oh, resto arruinado da natureza!

140 O mundo vasto vai soçobrar

E se esvair em nada. Tu me conheces?

LEAR Lembro-me muito bem dos teus olhos. Tu estás me

olhando

de esguela? Não faças o teu malefício, cupido cego, não

quero amar. Lê este desafio, olha só como está escrito.

145 GLOUCESTER Ainda que cada palavra fosse um sol,

Jamais conseguiria vê-las.

EDGAR (aparte) Se alguém me relatasse isso, eu não creria,

Mas só de presenciar meu coração se parte.

LEAR Lê.

150 GLOUCESTER Como? Com o quê? Com o buraco das órbitas?

LEAR Oh, oh, será que você está aqui comigo? Nem olhos

na cara nem dinheiro na bolsa? Teus olhos da cara

estão pesados, teu bolso está vazado, e ainda assim tu vês

como anda este nosso mundo.

155 GLOUCESTER Sim, eu vejo… tateando.

LEAR Mas tu estás louco? Um homem consegue ver como

anda o mundo mesmo não tendo olhos. Olha com os

ouvidos. Não vês como aquele juiz injuria aquele pobre


destituído que furtou? Escuta com o ouvido: põe um no

160 lugar do outro, cara ou coroa, quem é o juiz, quem é o

ladrão? Já viste cão de chácara ladrar pra um mendigo?

GLOUCESTER Já vi, senhor.

LEAR Quando o miserável foge do vira-lata,

Tu tens a soberba imagem da autoridade:

165 Até um cão, se tem um cargo, é obedecido.

Oficial canalha, detém tua mão sangrenta;

Por que razão açoitas essa prostituta?

Esfola teu próprio dorso! A mão que flagela

É a mesma que cobiça o corpo que fustiga.

170 O agiota para a forca expede o caloteiro.

Por trás da roupa rota o vicioso aparece,

Mas mantos, peles, joias dissimulam tudo!

FCobre de ouro os pecados, e a forte lança

Da justiça se espedaça e os deixa intactos.

175 Mas se forem trapos, a vara do pigmeu

Basta para perfurá-los. Não há culpados,

Não, não, nenhum culpado. Eu absolvo: todos!

Ouve o que digo, amigo, pois tenho o poder

De calar a voz do acusador.F Vai e arranja

180 Olhos de vidro, e aí, feito reles político,

Finge estar vendo aquilo que não vês. FAgora,

Vamos.F Tira minhas botas, força, mais! Isso!

EDGAR (aparte) Ó senso e contrassenso combinados,

Razão na loucura!

185 LEAR Se quiseres


Chorar meu infortúnio, então toma meus olhos.

Eu te conheço. Teu nome é Gloucester. Tu tens

Que ter paciência. Chegamos aqui pranteando;

E sabes bem que ao primeiro respiro nosso

190 Gememos, soluçamos. Escuta esse sermão!

GLOUCESTER Ah, oh, dia funesto!

LEAR Quando nascemos, choramos por aportar

A esse vasto palco de loucos — lindo chapéu!

Hum. Que estratégia fina seria forrar

195 Com feltro uma tropilha inteira. FVou testar issoF,

E assim que eu me infiltrar nas hostes dos meus genros,

Vai ser matar, matar, matar, matar, matar!

Entram um fidalgo e dois acompanhantes.

FIDALGO Ah, aqui está ele. Segurem-no. Senhor,

Vossa estimada FfilhaF —

LEAR Ninguém me socorre?

200 O quê? Vão me prender? Sou mesmo um parvo nato

À mercê da fortuna. Não me tratem mal,

Vão ter um bom resgate. Tragam um cirurgião;

Fui ferido no cérebro.

FIDALGO Terá tudo e o que quiser.

205 LEAR Nenhum apoio, ninguém comigo? Só isso

Já faria que um homem, um homem de sal,

Usasse os olhos como baldes nos jardins,

QPara baixar a poeira outonal.Q


Q2FIDALGO Senhor.Q2

QLEARQ Quero morrer com garbo, como um noivo alinhado.

210 Mas o quê, quero estar jovial. Venham, venham.

Sou um rei, mestres meus, ou será que não sabem?

FIDALGOS A majestade é vossa e a obediência, nossa.

LEAR Então ainda há vida! Se querem agarrá-la

Vai ter que ser correndo. FAqui.. qui, qui, qui, aqui!F

Sai QcorrendoQ, acudido por seguidores.

215 FIDALGO Oh, visão lamentável num pobre coitado;

Num rei, é indescritível! Tu tens uma filha

Que exime a natureza da maldição geral

Que as outras sobre ela lançaram.

EDGAR Salve, gentil senhor.

FIDALGO Rápido. O que deseja?

220 EDGAR Ouviu falar, senhor, da batalha iminente?

FIDALGO A coisa é sabida e certa. Todos os que têm

Ouvidos já distinguiram os sons.

EDGAR Mas, diga-me, o outro exército está perto?

FIDALGO Sim: e avança a passos largos. A tropa estará

225 À vista a qualquer hora.

EDGAR Obrigado, senhor. É só isso.

FIDALGO A rainha, por motivo especial, se encontra

Ainda aqui, mas seu exército avança.

EDGAR Obrigado, senhor.

Sai fidalgo.

230
GLOUCESTER Ó deuses sempre bons, roubai-me o ar da vida,

Não deixeis que o meu gênio nefasto me tente

A uma morte anterior ao vosso bom desígnio.

EDGAR Linda prece, pai!

GLOUCESTER Mas então quem é o senhor?

EDGAR Um homem pobre, dócil aos golpes da fortuna,

235 Que, por mágoas sabidas e sentidas, está

Pleno de boa piedade. Dê-me a mão;

Vou conduzi-lo a um abrigo.

GLOUCESTER Tens minha gratidão.

Que as bênçãos e as graças do céu te retribuam!

Entra Oswald.

OSWALD Mas quanta sorte! É o proscrito posto a prêmio!

240 Essa tua cabeça, sem olhos, foi primeiro

Tornada carne pra erguer minha sorte! Velho

Miserável, traidor! Faz logo tuas preces,

Já está aqui a espada que vai te extinguir!

GLOUCESTER Use o teu braço amigo a força necessária!

Edgar se entrepõe entre os dois.

245 OSWALD O quê! Camponês insolente, como ousas

Defender um traidor proscrito? Te afasta,

Antes que o infecto infortúnio do velho

Se alastre em ti também. Vamos, larga esse braço!

EDGAR Mas não largo, não, senhor, se não me der motivo.

250 OSWALD Larga, escravo, ou morrerás.


EDGAR Vós, senhor cavalheiro, bandeia da minha frente e

deixa o pobre passá. Se gabolice me capiangasse a vida, eu

já tava finado pra mais de quinze dias. Vai, desagarra do

velho; arreda, tô te intimando! Tenta sabê o que é mais

255 duro, tua cachimônia ou meu porrete. Tô falando claro?

OSWALD Fora, amontoado de merda.

Oswald tira a espada. QLutam.Q

EDGAR Vou te espalitá os dente, sinhô. Vem, eu não me

acanho co’as tuas estocadas.

Oswald cai.

OSWALD Tu me mataste, escravo. Biltre, pega esta bolsa.

260 Se queres prosperar, vai, enterra meu corpo,

E entrega a Edmund, conde de Gloucester, as cartas

Que estão comigo. Vai atrás dele, ele está

Com as forças bretãs. Oh, morte prematura!

QMorre.Q

EDGAR Eu te conheço. És um canalha serviçal,

265 Dedicado, conforme à mais suja perfídia,

Aos vícios de tua patroa.

GLOUCESTER Quê? Está morto?

EDGAR Sente-se, pai, descanse. Vamos ver os bolsos.

As cartas de que ele fala talvez ajudem.

‘Stá morto. Só lamento que não tenha tido

270 Outro carrasco. Vamos… Abra, lacre macio!


Escrúpulos, não nos culpem. Pra entender

A mente do inimigo temos de lhe abrir

O coração. Abrir suas cartas é mais legítimo.

FLê a carta.F

“Sejam lembrados nossos votos recíprocos. Vários ensejos

275 terás para aniquilá-lo. Se o intuito não te faltar, ofertas

terás fecundas de tempo e lugar. Tudo há de estar baldado

se ele voltar triunfante; e aí serei eu a prisioneira, e o

leito dele, meu calabouço, de cujo bafio abominável deves

me alforriar e prover o lugar para a tua própria lida.

280 Tua (esposa, quisera assim me chamar) afeiçoada servidora

Qque por ti tudo arrisca.Q Goneril.”

Oh, indistinta amplidão do desejo feminino,

Um complô contra a vida de seu probo esposo,

E, em troca, ela desposa meu irmão! Aqui

285 Nestas areias, eu te darei sepultura,

Nefando postilhão de assassinos devassos!

E no tempo propício, co’esse papel nefando,

Assombrarei o olhar do duque, sobre quem

Paira um complô de morte. E eu terei o tento

290 De dizer de tua morte e teu empreendimento.

Sai arrastando o corpo.

GLOUCESTER O rei está louco: meu juízo vil é tão rígido

Que estou desperto e co’o claro sentimento

Do meu vasto pesar. Se eu estivesse louco,


A dor se apartaria do meu pensamento

295 E a aflição, em meio ao desvario, perderia a

Consciência de si mesma.

Tambor ao longe.

Entra Edgar.

EDGAR Me dê a sua mão.

Creio ouvir à distância o toque de um tambor.

Venha, meu pai, eu vou confiá-lo a um amigo.

Saem.
Ato IV

CENA VII

Entram Cordélia, Kent, disfarçado, e fidalgo.

CORDÉLIA Ah, nobre Kent, como devo viver e agir

Para estar à altura da tua devoção?

Minha vida será curta demais e estou

Bem longe da tua medida!

5 KENT Sua gratidão, senhora, já é um grande prêmio.

O meu relato vai com a modesta verdade,

Sem omissão ou sobras.

CORDÉLIA Vista algo melhor,

Essas roupas relembram as piores horas.

Eu peço que as dispense.

KENT Perdoe-me, senhora,

10 Revelar agora quem sou frustra meu plano.

Peço que não dê a saber que me conhece

Até que o tempo e eu mesmo o julguem adequado.

CORDÉLIA Muito bem, meu senhor.

(ao fidalgo) E como está o rei?

FIDALGO Senhora, ele ainda dorme.


CORDÉLIA Ó deuses propícios!

15 Curai a chaga hiante em seu corpo violado.

E as cordas estrídulas, dissonantes, alinhai,

Desse pai tornado filho.

FIDALGO Vossa Majestade

Quer que acordemos o rei? Já dormiu bastante.

CORDÉLIA Oriente-se por seu conhecimento e siga

20 A sua intuição. Já trocaram suas roupas?

FEntra Lear, numa cadeira carregada por servidores.F

FIDALGO Sim, senhora. Ele estava em sono profundo

Quando o vestimos com roupas limpas e novas.

Fique perto, senhora, enquanto o acordamos.

Tenho fé de que estará sóbrio.

QCORDÉLIA Muito bem.

25 FIDALGO Mais perto, por favor; a música, mais alto!Q

CORDÉLIA Meu pai querido, no remédio dos meus lábios

Está tua restauração. Deixa que este beijo

Cure o mal cruel que minhas irmãs fizeram

À tua reverência!

KENT Nobre e afável princesa!

30 CORDÉLIA Ainda que o senhor não fosse pai das duas,

Esses flocos vindicavam a piedade delas.

QSerá esse um rosto pra expor aos ventos trépidos?

Pra afrontar o estrondo do raio horripilante?

Numa noite daquelas, co’esse elmo frágil,

35 Vigiando o hórrido estrondo do relâmpago


Rápido e excruciante?Q Pobre perdu.

O cão do inimigo, mesmo tendo me atacado,

Junto ao meu fogo teria tido acolhida.

E te abrigaste, pobre pai, numa choupana

40 Junto com porcos e mendigos desvalidos

Na palha bolorenta. Ah, ah, é um assombro

Que tua vida e teu tino não tenham se desfeito

De uma vez. Está acordando. Fale com ele.

FIDALGO Fale a senhora, é o mais indicado.

45 CORDÉLIA Como está meu régio senhor? Como passou Vossa

Majestade?

LEAR Tu me fazes mal de me tirar da tumba.

A graça está em tua alma, mas eu estou preso

A uma roda de fogo que meu pranto escalda

50 Como chumbo fundido.

CORDÉLIA Senhor, sabes quem sou?

LEAR … Tu és um espírito. Quando foi que morreste?

CORDÉLIA Ainda, ainda desnorteado.

FIDALGO Não acordou ainda. Deixe-o um pouco sozinho.

LEAR Onde estive? Onde estou? Isso é a luz do dia?

55 Fui muito maltratado. Morreria de pena

De ver um outro assim. Não sei o que dizer,

Nem juro que estas mãos são minhas. Vamos ver:

Senti a picada. Ah, se eu estivesse certo

De minha condição.

CORDÉLIA (ajoelhando-se) Olhe para mim, senhor,

60 E, com suas mãos sobre mim, dê-me sua bênção.


Não, não se ajoelhe, senhor.

LEAR Não vá zombar de mim,

Por favor! Sou um velho muito tolo, bobo

Com oitenta e tantos anos, Fnem mais nem menos,F

E, pra ser bem franco, temo que não estou

65 Em meu juízo perfeito. Creio que deveria

Saber quem é você e quem é esse homem,

Mas eu estou confuso, ignoro por inteiro

Onde estou e, por muito agora que eu me esforce,

Eu não lembro estas roupas nem onde dormi

70 Nesta última noite. Não riam de mim,

Pois, assim como sou um homem, eu acredito

Que esta dama aqui é a minha filha, Cordélia.

CORDÉLIA Sou eu, sou eu mesma.

LEAR Tuas lágrimas estão úmidas?

Estão! Eu rogo que não chores! Se tiveres

75 Veneno para mim, me dá que eu beberei.

Eu sei que não me amas, pois tuas irmãs,

Lembro-me disso bem, me maltrataram muito.

Tens um motivo, elas não.

CORDÉLIA Nenhum, nenhum.

LEAR Estou na França?

KENT Em seu próprio reino, senhor.

80 LEAR Não me enganem.

FIDALGO Fique tranquila, senhora. O acesso de fúria

Que vê já está recuando, Qmas inda há risco

De pô-lo a par do período que ele perdeu.Q


Tente fazê-lo entrar. Por enquanto é melhor

85 Não agitá-lo enquanto ele se recupera.

CORDÉLIA Vossa Majestade deseja caminhar?

LEAR Tens de ter paciência comigo. Eu só peço: esquece,

perdoa. Sou velho e bobo.

Saem. Kent e o fidalgo permanecem.

Q FIDALGO É verdade mesmo, senhor, que o duque de

90 Cornwall foi morto desse jeito?

KENT Com certeza, senhor.

FIDALGO Quem agora está liderando sua gente?

KENT Dizem que é o filho bastardo de Gloucester.

FIDALGO Ouvi dizer que Edgar, o filho que ele baniu, está

95 com o conde de Kent na Alemanha.

KENT As informações são incertas. A hora é de vigiar. As

tropas do reino já se aproximam a passo presto.

FIDALGO O arbítrio do embate promete ser sangrento. Passe

bem, senhor.

Sai.

KENT Meu desfecho e meu ponto estarão decididos

Para mal ou pra bem, já os embates cumpridos.

Sai.Q
Ato V

CENA I

Entram com tambor e estandartes Edmund, Regan, fidalgos e

soldados.

EDMUND (ao fidalgo) Sonde se o duque está firme em seu alvo

último

Ou se, por arte de algum conselho qualquer,

Mudou de plano. Está cheio de hesitações,

E autorrepreensões. Traga sua intenção final.

Sai o fidalgo.

5 REGAN Algo aconteceu co’o arauto de nossa irmã.

EDMUND É bem possível, senhora.

REGAN Agora, amável lorde,

O senhor sabe da bondade que eu lhe reservo;

Fale franco e diga a verdade: o senhor

Ama minha irmã?

EDMUND Com o mais honroso afeto.

10 REGAN Mas já trilhou o caminho do meu irmão

Rumo ao lugar interdito?


QEDMUND Esse pensamento a desonra, senhora.

REGAN Minha dúvida é que o senhor possa ter se ligado a

ela de um modo mais íntimo e profundo.Q

15 EDMUND Pela minha honra, senhora: não.

REGAN E eu jamais toleraria. Caro senhor,

Evite intimidades com ela.

EDMUND Não tema —

Entram Fcom tambor e estandartesF Albany, Goneril e soldados.

É ela e o duque, seu marido.

QGONERIL (aparte) Eu prefiro perder a batalha a ver minha

20 Irmã romper o nó que há entre ele e mim.Q

ALBANY (a Regan) Nossa querida irmã, excelente encontrá-la!

Senhor, o que ouvi: o rei se juntou à filha

Junto com outros que o rigor de nosso Estado

Forçou à rebelião.Q Eu jamais fui valente

25 Onde a honra me faltasse. Mas esse caso

Nos atinge, pois França invade nossas terras;

Não porque incite o rei e os outros que, receio,

Têm razões sérias, justas pra se opor a nós.

EDMUND Um nobre argumento.Q

REGAN Por que essa discussão?

30 GONERIL Juntemos nossas forças contra o inimigo.

Esses litígios domésticos e privados

Não estão agora em questão.

ALBANY Acertemos então, com os veteranos,


Nossa estratégia.

35 QEDMUND Estarei logo com o senhor em sua tenda.Q

Sai.

REGAN Irmã, vem conosco?

GONERIL Não.

REGAN Seria conveniente. Venha conosco.

GONERIL (aparte) Ah, entendi: reconheço a charada. Eu vou.

Saem Edmund, Regan, Goneril e Fambos os exércitos.F

Enquanto Albany se retira, entra Edgar, disfarçado.

40 EDGAR Se Vossa Graça jamais se dignou a falar

Com homem tão pobre, ouça uma só palavra.

ALBANY (aos soldados) Vão, eu logo estarei com vocês.

(a Edgar) Vamos, fala.

EDGAR Antes de ir para batalha, leia esta carta.

Caso saia triunfante, que soe a trombeta

45 Pra quem a trouxe. Embora eu pareça um coitado,

Posso gerar um campeão que provará

O que está escrito aí. Se sair malogrado

Seus negócios no mundo findam e junto cessa

QToda a maquinação.Q A fortuna o estima.

50 ALBANY Espere eu ler a carta.

EDGAR Isso me foi vedado.

Quando for o tempo, que o arauto se anuncie

E eu ressurgirei.
Sai.

ALBANY Muito bem, vai em paz. Lerei a sua carta.

Entra Edmund.

EDMUND O inimigo está à vista. Prepare as tropas.

55 (passa-lhe um bilhete) Eis aqui um cálculo das forças rivais

Que nos chega de uma atenta apuração. Rápido,

A pressa clama pelo seu avanço!

ALBANY Faremos honra à situação!

Sai.

EDMUND Eu jurei meu amor a essas duas irmãs

60 Que nutrem suspeita mútua do mesmo modo

Que o mordido teme a cobra. Com qual eu fico?

Co’as duas? Uma? Com nenhuma? Se as duas

Sobrevivem, não vou desfrutar de nenhuma.

Se tomo a viúva, exaspero e enfureço Goneril;

65 E não vai ser fácil promover o meu lado

Estando o marido vivo. Bom, usaremos

Seu porte na batalha. E uma vez terminada,

Que aquela que não quer enxergá-lo na frente

O despache. Agora quanto à misericórdia

70 Que ele pretende estender a Lear e a Cordélia,

Terminada a refrega, e os dois em nossas mãos,

Não haverá perdão. A minha posição

Pede mais afinco que minha discussão.

Sai.
Ato V

CENA II

Alarido de guerra FdentroF. Entram, Fcom tambores e estandartes,F

Lear, Cordélia e soldados, atravessam o palco e saem.

Entram Edgar, com roupas de camponês, e Gloucester.

EDGAR Aqui, pai, aproveite a sombra desta árvore

Hospitaleira. Reze pra que o bem prospere.

Se eu voltar aqui co’o senhor, trarei conforto.

GLOUCESTER Que a boa graça o acompanhe, senhor.

Sai Edgar.

Alarido bélico e toque de recolher Fdentro. Entra Edgar.F

5 EDGAR Vamos, ancião, rápido, me dá tua mão!

O rei Lear foi vencido. Ele e sua filha, presos!

Me dá tua mão. Vem!

GLOUCESTER Nem mais um passo, senhor,

Um homem pode até nesse chão apodrecer…

EDGAR Quê? De novo ideias mórbidas? Cabe ao homem


10
Sua partida sofrer como o fez em sua vinda.

Maturidade é tudo. Vem.

FGLOUCESTER É, é verdade.

Saem.F
Ato V

CENA III

Entram Ftriunfalmente, com tambores e estandartes,F Edmund, com

Lear e Cordélia como prisioneiros ; Fsoldados e um capitão.F


EDMUND Que os oficiais os conduzam. Vigiem-nos bem,

Até que se conheça a intenção maior

Dos que irão julgá-los.

CORDÉLIA Não somos os primeiros

Que, co’a melhor intenção, caímos no pior.

5 Por ti, rei oprimido, eu me aflijo. Pois, por mim,

Afrontaria a falsa fronte da fortuna.

Não vamos ver então essas irmãs e filhas?

LEAR Não, não. Vem, vamos pra prisão. Nós dois sozinhos

Vamos cantar como pássaros na gaiola.

10 Se me pedires bênção, eu me porei de joelhos,

Rogarei teu perdão. E assim vamos viver,

E rezar, e cantar, e contar velhos contos,

Vamos rir das libélulas louras e ouvir

Os pobres diabos co’as notícias da corte,

15 E com eles vamos também falar de quem


Ganhou, quem perdeu, de quem entrou, quem saiu,

E vislumbraremos o mistério das coisas

Como se fôssemos os espiões dos deuses;

E, na prisão murada, então escaparemos

20 Às cabalas e facções dos grandes que fluem

E refluem aos influxos da lua.

EDMUND (aos soldados) Levem-nos daqui.

LEAR Por sobre esses sacrifícios, minha Cordélia,

Os deuses lançam incenso. Então eu te alcancei?

25 Se querem nos separar tragam fogos dos céus

E nos escorracem daqui feito raposas.

Vai, seca os olhos. Os anos bons vão, corpo e carne,

Devorá-los antes que nos façam chorar.

Nós os veremos definhar antes. Vem.

FSaemF Lear e Cordélia, sob guarda.

30 EDMUND Vem aqui, capitão — ouve: pega esta nota.

Leva os dois à prisão. Eu já te promovi

Um grau no posto. Se cumprires a instrução

Que está aí, teu caminho estará aberto

A ínclitas fortunas. Compreende que o homem

35 É aquilo que o tempo dita. E um ânimo ameno

Co’a espada não combina. À tua grande missão

Não caberá debate. Ou diz que vais cumprir

Ou te avenhas sozinho.

CAPITÃO Cumprirei, senhor.


EDMUND Mãos à obra! E quando terminado, tenha-te por

feliz!

40 Nota: eu disse “agora”! E cumpre do exato modo

Como descrevi.

QCAPITÃO Eu nem carroça puxo, nem palha seca pasto;

Se for ofício humano eu não me afasto.Q

Saem.

FFanfarra.F Entram Albany, Goneril, Regan e soldados com um

corneteiro.

ALBANY O senhor mostrou hoje um valoroso esforço,

45 E a fortuna o guiou. Tem em mãos os cativos,

Nossos antagonistas no embate de hoje:

Eu os requisito, pra que sejam tratados

Com equanimidade, segundo os seus atos

E nossa segurança.

EDMUND Achei por bem, senhor,

30 Mandar o velho e miserável rei a alguma

Forma de custódia, Qsob vigilância estrita;Q

Há charme em sua velhice e bem mais em seu título,

Que impele o coração do povo para o seu campo

E as espadas de nossas tropas contra os olhos

55 De quem as comanda. À vista disso mandei

A rainha com ele. Amanhã, ou mais tarde,

Estarão prontos pra aparecer onde queiras

Instaurar a sessão. QMas, por ora, estamos


Suando e sangrando. O amigo perdeu o amigo,

60 E o archote do mais justo embate é odiado

Por aqueles que sentem seu gume cortante.

O caso de Cordélia e de seu pai requer

Lugar mais adequado.Q

ALBANY Co’a devida vênia: nessa guerra eu o tenho

65 Mais como um súdito, não como um irmão.

REGAN Mas é assim que queremos agraciá-lo.

Eu creio que os nossos desejos poderiam

Ter sido indagados antes que falasse tanto.

Ele liderou as tropas, levou consigo

70 O mandato de minha pessoa e posição,

Nisso havendo proximidade suficiente

Pra chamá-lo de irmão.

GONERIL Não vai com tanto fogo,

Ele, com a própria graça, se exalta acima

De tua promoção.

REGAN Com os meus direitos,

75 Empossado por mim, iguala-se aos melhores!

ALBANY Isso pensando alto — se ele a desposasse.

REGAN Não raro o tolo faz papel de profeta.

GONERIL Calma aí, calma!

Isso aí quem te disse foi um vate cego.

80 REGAN Senhora, não estou bem, senão responderia

Com toda a minha ira.

(a Edmund) General, fica com

Meus soldados, meus prisioneiros, meu patrimônio.


FDispõe deles, de mim, estes muros são teus!F

Que o mundo testemunhe que te faço aqui

85 Meu amo e meu senhor!

GONERIL Então vais desfrutá-lo?

ALBANY Essa permissão não está nas tuas mãos.

EDMUND Nem nas tuas, senhor!

ALBANY Está sim, rapaz amestiçado!

REGAN (a Edmund) Soa os tambores e prova que meu título é

teu!

90 ALBANY Espera, ouve a razão. Edmund, eu te detenho

Por alta traição, e incluo na desgraça

Essa áurea serpente. (aponta para Goneril)

Quanto ao teu arranjo,

Bela irmã, eu o barro em tutela aos interesses

De minha esposa, que já está subcontratada

95 A esse senhor, de modo que eu, seu marido,

Devo objetar ao teu anúncio conubial…

Se queres casar, dirige a mim teu amor —

Minha esposa já tem um segundo contrato.

FGONERIL Um interlúdio!

100 ALBANYF Estás armado, Gloucester. FQue soem as trombetas!F

Se ninguém surge pra provar na tua frente

Tuas hórridas, notórias, fartas traições,

Aqui vai meu desafio. (joga no chão a luva)

Provarei em teu peito,

Antes mesmo de comer, que és exatamente

105 Tudo isso que ao teu respeito proclamei.


REGAN Não estou bem, nada bem!

GONERIL (aparte) Se estivesse, eu perderia a fé nas drogas.

EDMUND Eis minha resposta. (joga a luva no chão)

Mente como um vilão

Quem quer que no mundo me acuse de traição.

110 Toque a trombeta. Quem ousar se aproximar

Sustentarei firmemente — contra ti, ele,

Contra todos — minha honra e lealdade.

ALBANY Um mensageiro, ho!

FEntra um mensageiro.F

(a Edmund) Confia em ti somente, pois que teus soldados,

115 Recrutados todos em meu nome, em meu nome

Já foram dispensados.

REGAN Eu estou piorando.

ALBANY Ela não está bem. Levem-na pra minha tenda.

Sai Regan, carregada.

Vem aqui, mensageiro. Soem a trombeta!

FTrombeta soa.F

E lê o seguinte:

FArauto lê.F

120 ARAUTO “Se algum homem de estirpe e qualidade nas fileiras

do exército está disposto a sustentar que Edmund,

suposto conde de Gloucester, é um múltiplo traidor, que se


apresente ao terceiro toque da trombeta. Ele está resoluto em

sua defesa.”

FPrimeiro toque.F

125 Outra vez!

FSegundo toque.F

Mais um!

FTerceiro toque.F

FTrombeta responde do fundo do teatro.F

Entra Edgar, Fem armadura.F

ALBANY Pergunte o que ele quer. E por que respondeu

Ao apelo da trombeta.

ARAUTO Quem é você?

Seu nome, sua estirpe e por que responde ao apelo?

130 EDGAR Saibam que meu nome está perdido, roído

Pelos dentes e pelos cancros da traição;

Mas em nobreza me equiparo ao oponente

Que vim confrontar.

ALBANY E quem é esse oponente?

EDGAR Quem aqui fala por Edmund, conde de Gloucester?

135 EDMUND Eu mesmo, o próprio. O que tens a dizer a ele?

EDGAR Saca tua espada, pois se minha fala ultraja

Um coração que é nobre, tu tens tua mão

Pra te fazer justiça. Aqui está a minha. (mostra a espada)


Vê? Ela é meu privilégio, das minhas honras,

140 Dos votos que fiz e da minha profissão.

Eu proclamo — por mais que tu tenhas

Força, juventude, eminência e posição,

Triunfos na espada, lampejos da fortuna,

Virtude e bravura — que és um traidor!

145 Mentiste aos teus deuses, ao teu irmão, teu pai,

Tramaste contra esse ínclito e ilustre príncipe!

Vai e diz que não, e essa espada, esse braço

E o meu mais veemente ânimo estão prontos

Pra falar fundo em teu coração que tu mentes.

150 EDMUND O mais sábio seria interrogar teu nome,

Mas como teu porte é tão belo e marcial,

Como tua fala exala certa fidalguia,

Rechaço e desprezo o que poderia adiar,

Sem risco algum, pela lei da cavalaria.

155 E co’a odiosa fraude estrangulo o teu peito

E devolvo em teu rosto essas tais traições.

Elas ainda espreitam, raramente ferem,

E esta minha espada lhes abrirá um sulco

Rumo ao perpétuo repouso. Trombetas, falem!

FRuído. Luta.F Edmund cai.

160 ALBANY (a Edgar) Poupe-o, poupe-o!

GONERIL Foi um truque, Gloucester! Nas leis da guerra, nada

Te obriga a dar revide a um oponente incógnito.


Não foste vencido, mas fraudado, logrado!

ALBANY Fecha essa tua boca, mulher, ou vou tampá-la

165 Com esse papel.

(a Edmund) E tu, espera! Tu, mais vil

Que todos os nomes, lê tuas próprias perfídias!

(a Goneril) Não, não rasgue, senhora. Ah, já sabe tudo…!

GONERIL Mesmo? E então? As leis são minhas, não tuas.

Quem tem o poder para me processar?

ALBANY Monstro!

170 (a Edmund) E tu, já a leste?

EDMUND Não me pergunte o que sei…

ALBANY (a um seguidor) Vá atrás dela. Está desesperada.

Controle-a.

EDMUND Tudo de que me acusas, tudo eu fiz — e fiz

Mais, muito mais. O tempo há de revelá-lo!

175 E já passou — e eu também!

(a Edgar) Mas quem és tu

Que me furtaste a fortuna? Se tua cepa é nobre,

Eu te perdoo!

EDGAR Façamos mútua caridade:

O meu sangue, Edmund, não é inferior ao teu;

E se for superior, maior foi tua ofensa.

180 Meu nome é Edgar, e sou filho do teu pai.

Os deuses são justos: de nossos doces vícios

Engendram engenhos para nos flagelar:

O fosso negro e impuro onde ele te gerou

Custou-lhe os próprios olhos.


EDMUND É verdade,

185 Falaste muito bem. A roda completou

Seu círculo. E aqui estou eu!

ALBANY (a Edgar) Eu notei que teu próprio porte pressagiava

Uma régia nobreza. Eu devo te abraçar.

Que a mágoa parta meu coração, se jamais

190 Odiei a ti e a teu pai.

EDGAR Eu sei, nobre príncipe.

ALBANY Onde te escondeste?

Como soubeste das misérias de teu pai?

EDGAR Porque as cuidei, senhor. Ouça essa breve história,

E quando a terminar, oh, que meu peito exploda!

195 A infame caçada que me acossou de perto —

Oh, doçura da vida, que dia após dia

Adia a dor da morte, ao invés de nos lançar

De vez no bom mortiço — ela me ensinou a

Vestir os andrajos de um mendicante insano,

200 Ganhando a aparência que até os cães desdenham;

E foi com esses trapos que encontrei meu pai,

As órbitas sangrando sem as ricas gemas.

Eu me tornei seu guia, esmolei para ele,

Remi seu desespero, mas jamais, oh, falta,

205 Mostrei quem era, mas só meia hora atrás

Quando já estava armado. Incerto, mas confiante

Em meu benigno êxito, pedi-lhe a bênção;

Contei do início ao fim nossa peregrinagem.

Mas então seu coração enfermo, tão frágil


210 Pra suportar o embate entre tantos extremos

De paixão, júbilo e dor, explodiu sorrindo.

EDMUND Sua fala me comoveu e talvez produza

Algum bem. Mas continue,

Pois parece que tem algo mais a dizer.

215 ALBANY Se há algo mais, e mais penoso, não diga,

Porquanto já estou pronto pra me dissolver

Ouvindo isso.

QEDGAR Para aqueles que evitam a dor, isso teria

Soado como epílogo, mas pôr mais dor na dor

220 Levaria ao limiar da dor. Eu estava ainda

Clamando alto, quando apareceu um homem

Que, ao me ver em meu pior estado, evitou

Minha horrenda presença; mas logo ele viu

Quem era o apenado e, com seus braços fortes,

225 Me abraçou no pescoço, soltando um clamor

De estremecer o céu, se jogou no meu pai,

E contou a história mais triste dele e de Lear

Que jamais se escutou. E enquanto a recontava

Sua dor se exacerbou, e as fibras da sua vida

230 Começaram a estalar. Duas vezes então

Soaram as trombetas, e ali o deixei em transe.

ALBANY Mas quem era ele?

EDGAR Kent, o degredado, senhor, que, disfarçado,

Seguiu o rei que o baniu, prestando-lhe serviços

235 Indignos de um escravo.Q


Entra um fidalgo Qcom uma faca ensanguentada.Q

FIDALGO Socorro, socorro!

EDGAR Que espécie de socorro?

FALBANY Vamos, fale, homem!

EDGARF Por que essa faca ensanguentada?

FIDALGO Ela está quente,

Está fumegando! Saiu agora mesmo

Do coração de… Oh, ela está morta!

ALBANY Quem?

240 Quem? Fala, homem.

FIDALGO Sua esposa, senhor, sua esposa;

E também a irmã dela, envenenada pela…

Pela própria irmã. Ela confessou.

EDMUND O meu contrato era co’as as duas. Agora, num único

Instante, os três estão unidos.

EDGAR Aí vem Kent!

Entra Kent.

ALBANY Tragam os corpos, estejam vivos ou mortos.

Os corpos de Goneril e de Regan são trazidos.

Esse arbítrio do céu que tanto nos espanta,

Não nos inspira pena. Oh, esse então é ele?

O tempo não permitirá os cumprimentos

Que a cortesia exige.

KENT Eu vim dar ao meu rei

250 E senhor eterna boa-noite. Ele não está?


ALBANY Oh, vultosa coisa esquecida por nós! Edmund,

Fale: onde está o rei, onde está Cordélia? Kent,

Vês este espetáculo?

KENT Tétrico, por quê?

EDMUND Mas Edmund foi amado:

255 Uma envenenou a outra por mim

E depois se matou.

ALBANY É verdade. Cubram seus rostos!

EDMUND Meu sopro já se esvai. Mas eu quero fazer

Algum bem, apesar da minha natureza.

260 Vai, rápido, envia alguém até o castelo,

Pois minha ordem escrita paira sobre a vida

De Lear e de Cordélia. Vamos, depressa!

ALBANY Corram! Corram! Oh, corram!

EDGAR Atrás de quem, senhor? É de quem a incumbência?

265 (a Edmund) Manda teu sinal de contraordem.

EDMUND Exatamente. Leve minha espada.

Entregue-a ao capitão.

EDGAR Pela tua vida, rápido!

Sai o fidalgo.

EDMUND Ele tem ordem minha e de tua mulher

De enforcar Cordélia na prisão

270 E de acusar o próprio desespero dela

Por arrastá-la ao suicídio.

ALBANY Que os deuses a protejam! Levem-no daqui.


Edmund é levado.

Entra Lear com Cordélia em seus braços, seguido pelo fidalgo.

LEAR Uivai, uivai, uivai! Oh, vós, homens de pedra!

Se vossos olhos eu tivesse e vossa língua,

275 Eu os usaria de tal modo que arrombasse

O excelso firmamento! Ela partiu pra sempre.

Eu sei quando alguém está morto e quando alguém vive.

Ela está morta como a terra.

(ele a deita) Tragam um espelho.

Se seu sopro embaçar ou enfumar a pedra,

280 Ela está viva.

KENT É esse o final prometido?

EDGAR Ou a imagem daquele horror?

ALBANY Que caia e acabe!

LEAR A pluma se mexe. Ela vive. Se é assim,

É um acaso que redime todo sofrimento

Que até hoje senti.

KENT Oh, meu bom senhor!

285 LEAR Pra trás, por favor!

EDGAR É o nobre Kent, vosso amigo.

LEAR Que a peste vos apanhe, assassinos, traidores.

Eu a teria salvo. Agora se foi pra sempre.

Cordélia, Cordélia, espere um pouco! Ahn?

O que foi que disseste? Sua voz foi sempre suave

290 Tão gentil, algo excelente numa mulher.


Eu matei o escravo que a enforcava.

FIDALGO Senhores, é verdade.

LEAR Não foi isso, amigo?

Já houve um dia em que, com meu sabre afiado,

Eu o faria saltar. Mas agora estou velho,

295 Os reveses me avariaram. (a Kent) Quem és tu?

Meus olhos não estão bem. Já vou logo dizer.

KENT Se existem dois que a fortuna se vangloria

De ter amado, ter odiado, aqui está um deles.

LEAR FO que vejo está turvo:F tu não és Kent?

300 KENT Ele, Kent, teu servidor.

Onde está Caio, teu servidor?

LEAR Era um bravo comparsa. Posso garantir.

Forte no ataque, rápido! Está morto, está podre!

KENT Não, meu senhor, sou eu aquele homem…

305 LEAR Isso eu vou ver…

KENT … que já no início de vosso revés e declínio

Seguiu vossos tristes passos —

LEAR És bem-vindo.

KENT Sou eu. Tudo está escuro, amortiçado e lúgubre.

310 Vossas filhas mais velhas se mataram,

Morreram em desespero.

LEAR Sim, creio que sim.

ALBANY Ele não sabe o que diz. E é inútil nos

Apresentarmos a ele.

Entra um mensageiro.
EDGAR Sim, totalmente.

MENSAGEIRO (a Albany) Edmund está morto, senhor.

ALBANY Detalhe fútil.

315 Meus senhores e nobres amigos, conheçam

A nossa intenção: qualquer conforto que haja

Para essa grande ruína há de ser aplicado.

Quanto a nós, queremos devolver a essa anciã

Majestade, por quanto perdurar sua vida,

320 Nosso poder absoluto.

(a Edgar e Kent) A vós vossos direitos,

Co’os ganhos e as honras vindas de vossa glória

Mais que merecida. Os amigos hão de ter

Os prêmios do valor, e os inimigos tão só

Sua taça condigna! Oh, vede! Oh, vede!

325 LEAR E meu bobo, enforcado! Não, não, não — sem vida!

Por que um cão, um rato, um cavalo têm vida

E tu não respiras mais? Tu não vais voltar

Nunca mais, nunca mais, nunca, nunca, nunca mais.

Me ajude, desprenda esse botão. Obrigado.

330 QOooooo! Ooooo!Q FEstão vendo isto?

Olhem, olhem, é ela, os lábios, olhem: lá, lá.

Ele morre.F

EDGAR Desmaiou: senhor, senhor!

KENT Rompa, coração, eu rogo, rompa!

EDGAR Abra os olhos, senhor!

335
KENT Não perturbe sua alma. Oh, deixe-o ir embora.

Pra ele é destestável aquele que deseja

Tardar sua tortura nesse mundo atroz.

EDGAR Oh, ele está mesmo morto.

KENT O assombro é ele ter suportado tanto;

340 Exorbitando seu tempo.

ALBANY Levem-nos daqui.

Para nós fica o encargo do luto geral.

(a Edgar e Kent)

Amigos de minha alma, vós dois, governai

Este reino, e o Estado abatido sustentai.

KENT Senhor, eu tenho uma jornada pela frente;

345 O meu amo me chama, e serei obediente.

EDGAR Cumpre assentir ao peso deste instante extremo;

Falar o que sentimos, não o que devemos;

Para os velhos foi duro, e nós, que somos jovens,

Jamais veremos mais nem viveremos tanto.

FSaem em marcha fúnebre,F carregando os corpos.

FINIS
Notas

INTRODUÇÃO

1 Ver Jan Kott, 2003; Maynard Mack, 2013; Marjorie Garber, 2008.

2 É conhecida a associação de Jan Kott entre o teatro do absurdo e Rei Lear e, apesar dos

anacronismos, ela é estimulante para entender as técnicas usadas por Shakespeare nesta

peça. Ver Beckett, 2005 e 2010.

3 Ver Geoffrey of Monmouth, 1977.

4 Ver Holinshed, 1807.

5 Ver Mirror for Magistrates: In Five Parts, 1815.

6 Shakespeare muito possivelmente leu uma história que é narrada em primeira pessoa pelo

fantasma trágico de Cordila, na edição de 1574 de Mirror for Magistrates.

7 Ver Edmund Spenser, 2003.

8 Sir Philip Sidney, 1868, p. 160.

9 O texto completo do livro de Harsnett, com introdução e comentários, encontra-se em F.

W. Brownlow, 1993.

10 Donald M. Michie, 1991. Os comentários sobre essa peça encontram-se no corpo da

introdução.

11 Garber, op. cit., p. 650.


12 Ver James I (King of England) e Victoria University (Toronto Studies Ont) Centre for

Reformation and Renaissance, 1996; “Basilikon Doron”.

13 James Shapiro, 2015. Apoio-me aqui nos comentários de Shapiro. James, coroado rei da

Inglaterra, era também rei da Escócia. Deveria agora, sob sua cabeça duplamente coroada,

buscar a unificação dos dois em um único reino. Mas logo descobre que a ratificação da

união entre os dois reinos dependeria de longas e cansativas negociações. Quatro dias

depois de sua recepção festiva em Londres, diante do primeiro Parlamento, o rei evocou

Henrique VII. Tratava-se do rei pacificador da dinastia Tudor, que, matando Ricardo III, o

último rei yorkista, em Bosworth Field, deu fim às guerras entre as casas de Lancaster e de

York. Ele era o “unificador” a alertar os seus súditos sobre os perigos da fragmentação.

14 Apud Shapiro, ibid., pp. 36-7.

15 Ver Thomas Norton, 1565; Thomas Norton e Thomas Sackville Dorset, 2018.

16 Não há uma palavra final sobre a autoria de Rei Leir, que foi atribuída diversamente a

Robert Greene, Thomas Kyd, George Peele, Thomas Lodge, Anthony Munday e ao próprio

Shakespeare.

17 Michie, op. cit., p. 67.

18 Estamos cientes de que darker purpose também pode significar “propósito oculto” e não

revelado ainda, mas a escolha da palavra, bem como sua combinação com outras ironias

trágicas, como “rastejar rumo à morte”, permite uma compreensão mais ampla do uso do

termo.

19 Catherine Bates, 1992, p. 173.

20 Garber, op. cit., p. 656.

21 Janet Adelman, 2012, p. 104.

22 Sobre os problemas políticos relativos à concepção política dupla do poder entre corpo

físico e corpo divino, ver Ernst H. Kantorowicz, 1997; sobre a concepção do direito divino

dos reis, um interessante estudo é ainda John Neville Figgis, 1934.

23 O estudo das variações textuais de Q1 e F1 é longo, mas aconselho a leitura de duas obras

que trazem visões diversas sobre o assunto, sublinhando a importância do livro de Erne,

que se afasta da visão desintegracionista dos textos da peça: Gary Taylor e Michael

Warren, 1986, e Lukas Erne, 2003.


24 Ver G. S. Rousseau, 1993; Kaara L. Peterson, 2006; Katharine Eisaman Maus, 1995;

Chris Laoutaris, 2008. A doença foi objeto do livro contemporâneo de Edward Jorden, A

Brief Discourse of a Disease Called the Mother, considerado o primeiro livro inglês sobre a

histeria, de 1603.

25 Para um estudo sobre as concepções de natureza em Rei Lear, em particular tratando de

autores como Hooker e Bacon, ver John F. Danby, 1961.

26 Michel de Montaigne, 1876, p. 131.

27 Para uma interpretação da cena de deposição de Ricardo II, ver Kantorowicz, op. cit., p.

24.

28 As concepções sobre os traços bíblicos e providenciais em Rei Lear trazem visões opostas.

Uma visão claramente providencial encontra-se em David N. Beauregard, 2008; no entanto,

Elton, com erudição, mostra os elementos pagãos (William R. Elton, 2015). A questão final

está em qualquer lugar entre essas duas visões e deve ser imaginada como um recurso

artístico de Shakespeare de usar a promessa providencial como signo de esperança e ao

mesmo tempo frustrá-la de algum modo.

29 Exemplo disso é o comentário de Leir de que suas filhas são “the kindest Gyrles in

Christen dome” [as mais gentis meninas da cristandade]. Cordila também diz ao rei que às

vezes “eu vou ajudar-te em tuas sagradas orações,/ E pensar que eu estou contigo no

Paraíso”. Os exemplos dessa cristianização da antiga lenda estão em toda a peça e revelam

a tendência de associar Cordila com a piedade e a bondade cristãs. Se Shakespeare assimila

alguns desses elementos, ele o faz com parcimônia, mantendo em Cordélia algum elemento

de fortaleza e coragem que não são tão ostensivamente cristãos. É importante assinalar aqui

que era uma tendência das adaptações dramáticas do período santificar e cristianizar todos

os atos de piedade: é o caso certamente de Robert Garnier em sua Antigone ou la Piété

(1580).

30 Ver Paul Budra, 2000; Régis Augustus Bars Closel, 2013. Interessante no livro de Paul

Budra é como ele acompanha as diversas ocorrências do gênero De casibus ao longo de

séculos até chegar à muito lida obra A Mirror for Magistrates. Budra está ciente de que o

gênero sofre transformações de uma literatura sem fins estéticos de caráter admoestativo

para uma literatura que nitidamente flerta com a identificação trágica entre o leitor e os

heróis desafortunados, que se encontra mais claramente no Mirror for Magistrates. É

compreensível, portanto, que tanto a empatia como a crítica possam se conjugar nas obras

mais tardias, seu caráter estético-trágico se transferindo sutilmente para o empreendimento

artisticamente mais ousado da tragédia.


31 Ver Paul Budra, 2000.

32 Bethlem foi um dos primeiros manicômios do Ocidente, daí a associação de “Tom of

Bedlam” com a loucura. Para as relações entre o manicômio de Bethlem e o teatro, ver

Kenneth S. Jackson, 2005.

33 O primeiro bobo a atuar em Rei Lear foi Robert Armin. Ele não era só um bobo

profissional, mas também o autor de A Nest of Ninnies, livro em que se encontram várias

anedotas sobre seus ancestrais na profissão histriônica de bobo cortesão (Robert Armin,

1842). No livro, ele conta a história do renomado jester de Henrique VIII, Will Sommers,

que, certa vez, na corte, recebeu seu tio, um homem simples, aldeão, que é descrito com

seus sapatos empoeirados e vestes carcomidas chegando à corte para fazer visita ao

sobrinho, o próprio Summers. Depois de um diálogo pitoresco entre os dois, o bobo decide

levá-lo à presença do rei, não sem antes vestir o rústico tio com sua fatiota de bobo. Ao

chegar diante do rei, ele diz a Henrique VIII: “Oh, Harry! […] este é meu tio: dá boas-

vindas a ele. Muito bem, disse o rei, ele é bem-vindo. Harry, (Summers) diz, escuta uma

história que vou te contar e eu te farei rico e o meu tio ficará rico graças a ti. Will

(Summers) diz ao rei que Terrils Frith tinha sido cercada. Tirrels Frith, retruca o rei, mas o

que é isso? Ora, é a charneca onde nasci, chamada de Terrils Frith: agora um cavalheiro

com esse nome fez o cercamento do lugar inteiro, fazendo o povo achar que tudo é dele,

pois o lugar tirou o nome dele. E, Harry, os pobres estão num grande lamento e todo o

rebanho do povo foi desfeito, sem que tu socorras essa gente. E o que devo fazer?, diz o rei.

Ora, disse Will, chama o bispo de Hereford; ele é um grande homem com (nome de) Terril:

diz para ele colocar o Frith (a paz) em liberdade novamente, que está preso por causa dele.

E como vou ficar rico com isso?, diz o rei. Os pobres vão rezar por ti, diz Will; e tu serás

rico no céu, pois aqui na terra tu já estás muito rico. Tudo isso foi feito, e o tio de Will foi

para casa, o qual, enquanto viveu, graças a essa ação, foi investido do título de bailio do

comum, o que trazia vinte pounds por ano”. A relação íntima entre o rei e o seu bobo já

está aqui, seu direito à licença, à familiaridade com o rei, bem como o gosto pelo jogo de

palavras. A linguagem que Armin dá aos seus bobos, em seu anedotário, traz semelhanças

estilísticas com as falas do Bobo em Rei Lear. Não é difícil suspeitar de que houve uma

“colaboração” intensa entre Shakespeare e o histrião teatral, ainda que, sem dúvida, Shake-

speare, esse imitador-mor, não teria dificuldade de arremedá-lo; afinal, a lista de bobos,

palhaços ou ainda de personagens com características “clownescas” em Shakespeare é

numerosa. Ao incluir o Bobo na peça — ausente em todas as versões da história de Lear

que serviram de fonte à peça —, Shakespeare tempera o trágico com o cômico e o grotesco.

34 μωρὰ (môra) é traduzido na Bíblia de Jerusalém como “loucura” (a partir de folie, do

francês), mas o sentido está mais próximo de “tolo”, “tolice”, “o que é tolo”, o que é

insensato e assim por diante, não havendo sentido “médico” imediato em grego. O
complexo semântico riquíssimo na Primeira Modernidade e no Renascimento relaciona

etimologicamente folly (insensatez maluca), foolishness (estultícia, burrice), mas reserva a

palavra madness para a loucura mental verídica. No entanto, a tradição medieval legou o

termo fol, que varia entre “tolice”, “loucura” e “folia” (carnavalesca) e que permitiu o

entremeado de associações, em Rei Lear e na cultura em geral da Primeira Modernidade,

desses vários níveis de sentido.

35 Erasmo de Rotterdam, 2013.

36 Ver Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, 1987; Erich Auerbach, 1971; Bakhtin, 1984.

37 Sandra Billington, 1991, p. 46.

38 Id., ibid., p. 30.

39 Id., ibid., p. 123. Algumas dessas práticas continentais arribaram na Inglaterra e ganharam

espaço na corte inglesa, e já em 1277 havia um king of the minstrels na corte de Edward I.

Eram em particular interessantes os festejos que elegiam um Lord of misrule [senhor do

desregramento], na Inglaterra, que tinha por correspondente na Escócia o Abbot of

Unreason [abade da desrazão] e um Prince des Sots [príncipe dos tolos] na França — mas

em todos os casos o costume se mantinha: um oficial funcionário era escolhido no período

natalino para presidir a Festa dos Bobos. Estas foram eternizadas por Pieter Bruegel no

quadro Festa dos bobos e pertenciam a esse fenômeno mais geral descrito por Bakhtin. Tais

tradições de autoridades caídas remontam à Antiguidade e encontram-se também em

narrativas “arquetípicas”, tal como assinala Maynard Mack, que evoca a tradição do

Rebaixamento do Rei Orgulhoso (Mack, op. cit., pp. 49-53).

40 Stanley Cavell, 2015, p. 28.

41 Janet Adelman, 1978, p. 1.

42 Para retomar o mote “Shakespeare, pai da psicanálise”, cabe assinalar como essas

construções ambíguas abrindo múltiplas perspectivas sobre a mesma cena de fato

antecipam o refinamento psicológico e analítico que o século XIX leva ao auge. Ver as

novelas de Tolstói e Dostoiévski, além do agudo ensaio de Coetzee (J. M. Coetzee, 1992).

ATO I • CENA I

1-32 Diálogo entre Gloucester, Kent e Edmund Na peça anônima da década de 1590

intitulada The True Chronicle History of King Leir, and His Three Daughters, Gonorill,
Ragan and Cordella, inexistia o enredo paralelo que traz a história de Gloucester e seus

dois filhos, Edgar e Edmund. Shakespeare se inspirou no livro 2, capítulo 10 de Arcadia, de

Philip Sidney (1590), para escrever o segundo enredo da sua peça. A narrativa conta a

história do rei da Paflagônia, que tem dois filhos, um legítimo e outro ilegítimo. Shake-

speare adotou esse segundo enredo por suas semelhanças (evidentes) e diferenças em

relação à história de Lear. É uma história de devoção e traição ao pai, como é o caso da

história do próprio Lear. Mas, diferentemente das antigas versões do velho rei britânico, a

história do rei da Paflagônia claramente sublima o arrependimento do pai que havia

enjeitado o seu filho legítimo para privilegiar o filho bastardo.

12 Não consigo conceber … Kent usa o termo “conceber” (conceive) no sentido de

“entender”, mas Gloucester toma imediatamente o seu segundo sentido, o de “conceber um

filho”. Edmund está ao lado e escuta as brincadeiras apimentadas do pai, que ostenta seus

feitos eróticos diante do filho, lembrando-o de sua condição de bastardo.

13-6 Senhor … falta aqui ? Ainda que que o termo “falta” (fault) seja dito de modo jocoso,

esse é o primeiro aparecimento de uma noção de falta, pecado e erro que domina a peça.

Essa noção não raro vem associada, como no caso dos discursos de imprecação de Lear

contra suas duas filhas, Goneril e Regan, à sexualidade e a declarações chulas e misóginas.

25 Edmund (nomeador de fala) Na edição in-Quarto (Q), consta no nomeador de fala

simplesmente bastard, ou seja, “bastardo”. Esse uso revela a interligação que o público

contemporâneo e o próprio autor faziam entre Edmund e os antecedentes no teatro

medieval de personagens tipificados e identificados com o vício.

33-4 Clarim O termo original em inglês é sennet, um conjunto de notas tocadas em

instrumentos de sopro que anunciam uma entrada cerimonial.

Fontes do primeiro enredo A história do velho rei britânico era antiga e se origina de

antigas histórias folclóricas que não necessariamente traziam o nome do velho rei. Dentre

as histórias folclóricas correntes, havia uma lenda chamada de sugar and salt (“sal e

açúcar”), uma história com diversas variantes na Europa. Conta como um dia um pai

perguntou às suas duas filhas o que é a coisa mais doce do mundo. A primeira filha

responde que é o açúcar, mas, quando a segunda responde que é o sal, o pai a expulsa de

sua casa. A filha então vaga pela floresta até que encontra um príncipe que se apaixona por

ela. Os dois decidem se casar. Sem que ela saiba, seu pai é convidado para o casamento, ela

pede que todos os pratos sejam preparados sem sal. Quando o banquete está pronto, um

dos convivas diz que não há sal na carne… e o pai então exclama: “Realmente, o sal é a

coisa mais doce do mundo, embora, por ter dito isso, eu tenha expulsado minha filha por

nada, e nunca mais a verei”. Então a noiva se apresenta para o seu pai e o abraça e beija.

No entanto, é a história mítica de Lear, o velho rei em declínio que divide seu reino entre
suas filhas, que pode ter impactado a obra de Shakespeare possivelmente por meio do

corpus da história britânica na Historia Regum Britanniae [História dos reis da Bretanha],

de Geoffrey de Monmouth, fonte de boa parte das versões posteriores da história da

Inglaterra, em particular aquela que se encontra nas Chronicles, de Raphael Holinshed,

outra fonte de Rei Lear, e também no Mirror for Magistrates, que traz uma versão da

história de Cordélia em primeira pessoa. As duas principais versões, a de Geoffrey de

Monmouth (c. 1135) e a de Holinshed (1587), surpreendem por sua brevidade. Não

ocupam mais que duas páginas. É difícil pensar como uma narrativa lendária tão breve e

formulaica, de cunho folclórico, possa ter impactado o teor de uma peça teatral complexa

como Rei Lear. A narrativa de Holinshed, na prática, reformula com variações sutis a

versão de Geoffrey de Monmouth, sem alterá-la substancialmente. Monmouth encontra um

lugar para essa velha lenda em sua obra. Lear ali é um rei primitivo, pré-cristão e pré-

romano, daquele tempo mítico, saudoso, de Albion, vivendo em tempos

veterotestamentários.

O caráter lendário dessas narrativas salta aos olhos quando as comparamos às partes

mais obviamente “históricas” de Holinshed. Não há nada na história de Leir que lembre os

complexos complôs que aparecem nas proezas e conflitos dos plantagenetas, dos reis

yorkinos e lancasterianos, reinantes em tempos menos obscuros que Lear. Essas histórias

preenchem páginas e páginas, atestando que estamos na história pós-lendária e documental,

sem que falte até o colorido descritivo das figuras reais. Já na lenda de Lear, tal como a

encontramos nas duas principais fontes de Geoffrey de Monmouth e de Holinshed, não há

nada dessa extensão e detalhismo, sendo apenas lenda a reivindicar o prestígio da crônica.

Em linhas gerais, a narrativa de Geoffrey de Monmouth não discrepa de tantas outras que

se seguirão. Centra-se no dilema de um soberano que não teve filhos herdeiros, mas apenas

três filhas, Gonorilla, Regau e Cordeilla. Já velho, Lear decide dividir o reino entre elas,

conferindo um pedaço do seu reino ao governo de seus maridos. O patriarca também pensa

em submetê-las a um teste que consiste em lhes perguntar qual é o tamanho do amor que

nutrem por ele, para que assim, na divisão solene, ele possa entregar a parte mais rica do

reino àquela filha que declarar um amor maior. As duas primeiras filhas pronunciam com

ênfase seu amor, mas Cordeilla diz, enigmática, que seu amor possui o tamanho daquilo

que Lear possui e também do seu valor, equiparando seu amor ao valor do outro, em vez

de declarar a incondicionalidade de seu afeto. Lear reagirá a essa dispensa da confissão de

afeto prometendo que não encontrará para ela um par ideal e honroso. A sorte de Cordeilla

mudará, tempos depois, quando Aganippus, “rei dos francos”, solicita a Lear o direito de

se casar com Cordeilla, ao que Lear responde que ele o confere, porém sem conceder

nenhum dote.

Outro elemento que estava presente nessas narrativas histórico-lendárias é a da escolta

real explorada em Rei Lear. A escolta já aparece na narrativa de Geoffrey de Monmouth.

Gonorilla pede a Lear que reduza sua escolta a trinta homens, os restantes devendo ser
dispensados. Lear foge da companhia do duque e de Gonorilla, buscando a ajuda da

segunda filha, Regau, e de seu esposo Henuinus, duque da Cornualha. Apesar de ter uma

boa recepção, a discórdia se instala entre as duas famílias. Regan assim ordena ao pai

dispensar seus acompanhantes e ficar apenas com cinco homens. Desta forma, Lear retorna

à casa de sua filha Gonerilla, mas, uma vez lá, mesmo ela o critica, afirmando que o desejo

dele de vanglória não combina com sua idade e pobreza. Ela o força a se adaptar à nova

condição, ordenando-lhe diminuir seu séquito para apenas um homem. No estilo dos

exempla medievais, a história de Geoffrey de Monmouth apresenta Lear lamentando a

perda da antiga grandeza e finalmente caindo em um estado miserável. É essa reflexão que

o leva a procurar na Gália sua filha mais nova, Cordeilla. Ele viaja para a Gália num

veleiro. Ao entrar no veleiro, descobre que recebeu um terceiro lugar no barco entre os

príncipes que também faziam a viagem e, humilhado pelo rebaixamento, lança um longo

lamento de sua perda de admiração e poder. “Ó irreversíveis decretos das moiras, que

nunca desviam de seu curso definido! Por que me levaram à inconstante felicidade, já que a

punição de uma alegria perdida é maior que a sensação da miséria presente?” (Monmouth,

1842, p. 35.) Ao chegar a Karitia, onde está sua filha, Lear é um miserável, esfomeado e nu,

mas na corte de Aganippus ele resgata o tratamento apropriado à sua posição e é

reinvestido de seu séquito. Finalmente recebe o apoio da filha e de Aganippus, que envia

oficiais por toda a Gália para juntar um exército para restaurar “o poder de seu sogro no

reino da Bretanha” (p. 37). A restauração de fato se dá, ele alcança a vitória e morre três

anos depois de sua restauração. A história continuará com Cordeilla assumindo o poder

depois da morte de Aganippus. Ao modo das grandes sagas, contudo, o ciclo de vinganças e

divisões continuará. Cordeilla é levada ao suicídio muitos anos depois, após ser aprisionada

pelos herdeiros das suas irmãs.

A versão de Holinshed aloca a narrativa no tempo histórico. Estipula que o reinado de

Lear é coetâneo do reino de Joás em Judá. A cena da divisão do reino é também precedida

pelo teste de amor, a doação de partes do reino para Gonorilla e Regan e a recusa de dar o

mesmo para Cordeilla. Em Holinshed, o teste de amor de Lear precede à divisão do reino e

não resulta ali numa mensuração das dimensões das terras divididas. Ao contrário, o

objetivo é de fato encontrar aquela filha que o substituiria no trono. No entanto, com a

resposta das filhas, ele procede com a divisão, mantendo seu séquito. Os duques, maridos

de suas duas filhas, se insurgirão somente mais tarde contra o antigo rei, tomando-lhe as

terras, diminuindo-lhe a escolta e finalmente levando-o ao ressentimento. Ele foge num

veleiro para a Gália à procura do conforto de sua filha Cordeilla. Ao saber do estado do

pai, Cordeilla providencia o restabelecimento de sua dignidade, trazendo-o para a corte,

onde é recebido honrosamente por seu “filho” Aganippus e por sua filha (p. 447). Quando

estes descobrem as injúrias cometidas por seus outros filhos, Aganippus prepara um

exército e invade a Bretanha com Lear, restaurando-lhe o poder da terra no campo de

batalha e matando os dois outros genros, Maglanus e Henninus.


Em ambas as versões “históricas”, Lear é restaurado em seu poder e vive os últimos anos

de sua vida dignificado. Há sem dúvida interessantes diferenças no modo como a ação de

Cordélia ocorre, quando da fuga de Lear para a Gália. Geoffrey de Monmouth apresenta a

cena com certo dramatismo, acentuando os traços leais e sensíveis de Cordélia.

Em muitos sentidos, a versão de Geoffrey de Monmouth traz já o modelo da “piedosa” e

amorosa Cordélia que será resgatada por Shakespeare e pelo autor anônimo da peça The

True Chronicle History of King Leir, publicada em 1605 e que também será uma fonte

importante para Rei Lear. O detalhe do banho, das roupas e da alimentação que são

providenciadas por Cordélia para o alquebrado monarca está ausente na versão de

Holinshed. Se as duas narrativas históricas influíram na composição de Shakespeare, é

possível que a versão de Geoffrey de Monmouth tenha deixado mais marcas, mas

possivelmente por vias indiretas. Nenhum aspecto, contudo, chama mais atenção, nessas

versões, do que a restauração do poder de Lear, promovida por Cordélia e seu marido, rei

da Gália, e nesse sentido o desfecho trágico na peça de Shakespeare é profundamente

diverso da tradição histórica e lendária, convertendo uma história com final

(aparentemente) redentor em tragédia. Seria, por outro lado, errôneo pensar que tais

narrativas sejam meras fantasias redentoras. A história de Leir em Geoffrey de Monmouth

e em Holinshed termina com uma aparente conciliação. O nexo histórico dessas histórias só

pode ser compreendido na duração mais longa. Se o reinado de Leir ali é restaurado de

fato, a história dos conflitos de sangue, das rivalidades, vinganças, não cessa nem em

Geoffrey de Monmouth, nem em Holinshed. Ao contrário, ela continua na história trágica

da própria Cordeilla, que, mais tarde, será vítima ela própria dos herdeiros de suas duas

irmãs e aprisionada. No capítulo XV de Geoffrey de Monmouth, Cordeilla é aprisionada.

[…] e então, perto do fim daqueles cinco anos, seus dois sobrinhos Margan e Cunedag,

filhos de suas sobreditas irmãs, desdenhando ficar sob o governo de uma mulher,

levantaram em armas contra ela, e destruíram grande parte da terra, e finalmente a

capturaram, e a enclausuraram, onde ficou tão aflita, sendo uma mulher de coragem

máscula, e desesperada por rever sua liberdade, que lá se matou, quando já havia

reinado (como antes mencionado) o termo de cinco anos. (p. 443)

A ordem dada por Edmund para que Cordélia seja morta, na peça de Shakespeare,

portanto, subverte o plano original das duas principais narrativas pseudo-históricas. Mais

interessante, contudo, tanto na versão de Shakespeare como na versão anônima da década

de 1590, é o suicídio de Cordélia, que é evitado, numa adaptação aos princípios da piedade

cristã. O fato de Shakespeare ter evitado o tema do suicídio em sua peça se deve à

necessidade de não edulcorar as várias sugestões de santidade associadas à filha de Lear.


36-54 Por ora … inicie No primeiro discurso solene de Lear, há diferenças textuais

consideráveis entre a versão do in-Quarto (Q) e a do in-Folio (F) (Cf. nota sobre o texto, p.

73). A atual versão está baseada na edição de Foakes, que funde Q e F, tendo por base,

contudo, o texto do in-Folio (F). A tese revisionista acerca das duas versões de Rei Lear

postula que teria havido uma revisão do texto entre a publicação de Q e F, alguns

defendendo em particular uma revisão autoral pelo próprio Shakespeare. Com relação à

passagem, contudo, há sinais e cortes de verso na versão Q que fazem pensar de fato que há

um texto anterior a Q que trazia as partes omitidas ou suprimidas nele. Como se trata do

primeiro discurso de Lear, é possível que algumas das diferenças e (supostos) cortes sejam

adaptações temporárias para representação. Se considerarmos também, seguindo a sugestão

do frontispício da edição Q, que seu texto foi encenado “diante de Sua Majestade o rei em

Whitehall na noite de Santo Estêvão nos dias sacros natalinos”, é possível explicar o

cuidado de cortar passagens que são exclusivas do F, devido possivelmente à impropriedade

numa situação em que há a presença do rei. O período da publicação de Rei Lear coincidiu,

na Inglaterra, com as tentativas de James I de unificar de facto os dois reinos da Inglaterra e

da Escócia e, possivelmente, a apresentação de uma cena em que um rei declara sua

intenção de se “despir do mando, e da posse de terras, de encargos de Estado” poderia ser

inadequado para o início de uma cena. Mesmo assim, essa hipótese interpretativa é frágil,

visto que na peça inteira reverbera o fracasso de Lear como rei. De modo geral, as

diferenças nesta passagem entre Q e F são significativas: Q tende a ocultar parcialmente a

relação entre o ato de Lear e sua renúncia ao poder. Ele diz no Q que quer “sacudir todos

os cuidados e negócios de nosso Estado”, ao passo que no F ele diz “sacudir todos os

cuidados e negócios de nossa idade”. Este segundo sentido, do F, é reforçado na parcela

faltante que inicia com “enquanto, Sem fardos” (while we) e termina com “Se previnam

agora” (prevented now), pois, ali, novamente Lear se refere à sua condição nova, de

homem velho e impotente, que “rasteja rumo à morte”. Pelo menos nesse primeiro

discurso, na edição Q, não fica evidente que a divisão do reino será feita de fato. Nessa

mesma edição, ele diz que vai “confirmar” os cuidados do Estado aos “anos mais jovens”

(àqueles que são jovens, e não velhos e fracos), ao passo que no F ele diz que vai “conferir”

os mesmos cuidados e negócios “às forças mais jovens”. Em outros termos, se no F Lear

parece de fato prometer entregar o poder para os mais fortes, liberando um velho de um

trabalho árduo de governança, em Q ele o entrega apenas para os mais jovens: a ênfase

sobre a fortaleza dos novos revela a fraqueza do rei.

36 grave intento Literalmente, “mais escura” (darker). A expressão aqui tem acentos graves e

até ominosos, mas pode ser compreendido também como “obscuro”, aquilo que ainda não

foi revelado.
40-5 enquanto … previnam agora Passagem presente apenas na edição F e ausente em Q.

Foakes assinala a ironia trágica implícita na ideia de Lear de que a publicação dos dotes das

filhas e de seus consortes, em vez de prevenir futuras divisões e embates, acabará por

precipitá-los. A ação de Lear de dividir o reino, nas concepções políticas do período, era

vista como perigosa. Podia semear o grão da discórdia e da divisão e trazia, para as eras

elisabetana e jacobina, a lembrança recente das lutas fratricidas entre as casas de York e de

Lancaster, período que veio a ser chamado de Guerras das Rosas. Por outro lado, a própria

distribuição de terras que Lear fará, por mais que não seja contestada em sua legalidade

durante a cena, deve ter sido percebida como imprudente. No entanto, durante o reinado

Tudor (e Stuart), ela era tida por ilegal. “A rainha Elizabeth buscou o orientação de seu

conselho sobre se ela poderia transmitir propriedades, e seu conselho lhe recomendou que

qualquer propriedade, quer viesse por transmissão de herança de ancestrais régios ou ainda

de outras fontes, deveria ser vista como parte do régio Estado, e não como pertencente ao

monarca como um indivíduo” (Foakes, 1997, p. 17). Essa sutil compreensão da

“propriedade” monárquica era defendida com base na doutrina dos dois corpos do rei, o

físico e o político, uma distinção que, segundo Ernst H. Kantorowicz (1997), preparava o

terreno para a divisão moderna entre o monarca e o Estado enquanto tal.

49 nos despir do mando “Despir” aqui traduz divest (etimologicamente, desvestir). O uso

aparentemente singelo do verbo conotando o ato de se desvestir se tornará um dos temas

mais insistentes da peça. No seu processo de queda e declínio, Lear se identificará cada vez

mais com os miseráveis que andam nus.

55-76 As declarações de amor de Goneril e Regan Embora Kent sugira que os discursos de

Goneril e Regan sejam vazios de sentido, e nisso está certo, tanto formalismo não

obrigatoriamente seria sinal de adulação no mundo da protomodernidade. A fala poética,

formal e amplificada de Goneril e Regan pertence às práticas do mundo cortesão e à sua

etiqueta e formalidade. Ainda que Lear as predisponha à adulação com sua pergunta sobre

sua estima (amor) para com o pai, os discursos delas poderiam soar como um

pronunciamento apropriado à situação e a uma cerimônia previamente planejada. “Goneril

e Regan não precisam ser apresentadas como meras aduladoras, mas mais como mulheres

casadas que, com seus maridos aristocráticos, adaptaram-se à corte e a suas convenções”

(Foakes, 1997, p. 37). A retórica cortesã adotada na Inglaterra e grandemente influenciada

por Il libro del cortegiano, de Castiglione, trazia noções como a de sprezzatura. “A

cortesania é um procedimento delicado, arriscado, que requer constante prudência, tato e

sutileza, uma aparência que poderia ser (e às vezes tinha de ser) calculada com cuidado. A

cortesania é consequentemente um modo que põe a sinceridade e o enganar (engodo) em

uma justaposição lúdico-brincalhona e muitas vezes inexplicável” (Bates, 1992, p. 2).


87-90 Nada … outra vez Há aqui uma passagem presente unicamente no F entre as linhas 88 e
90. A resposta de Cordélia, seguindo um modelo lendário típico, foi vista tradicionalmente

em contraposição à “insinceridade” de Regan e Goneril, com seus discursos inflados,

formais. Shakespeare está interessado em pôr em contraste a genuinidade (essencial) e os

modos indiretos de tratamento que evitam a verdade e que são próprios do agir cortesão.

Na cena II.II, Cornwall descreve Kent criticando os que na sua sinceridade (plainness)

acabam carregando mais astúcia e mais fins corruptos do que aqueles que seguem as regras

e etiquetas normais. Obviamente, o discurso da insinceridade não é esposado por

Shakespeare, mas não há dúvida de que ele sugere certa hipocrisia na atitude

eloquentemente honesta e autocomplacente de Kent.

93 meus laços O termo sugere o “elo” contratual entre pai e filha, a obrigação filial e a

ligação de afeição “natural”. Cordélia, ao contrário das irmãs, coloca limites no termo

“amor” (love), que agora se desvencilha de suas conotações mais amorosas e afetuosas para

expressar apenas o amor como débito e dever “natural”.

96-104 O senhor …o meu pai Se, por um lado, a passagem se assemelha à de Desdêmona nas

primeiras cenas de Otelo, há diferenças importantes, pois Cordélia ainda não se casou e,

longe de estar diante de uma decisão crucial, deve apenas mostrar sua “estima” ao pai,

fazer o jogo de aparências que se espera na corte. Cordélia lê a palavra “amor” (love) de

modo literal: ela entende como o elo de fidelidade e obediência — relação entre o patriarca

e sua filha que é necessariamente hierárquica —, e não no sentido “cortesão” que Regan e

Goneril entendem. Sua resposta é numérica e potencialmente provocativa no contexto

específico; seu silêncio é transformado em uma divisão numérica: “Quando eu me casar,

talvez o nobre a obter meus votos levará consigo parte do meu amor, de meu zelo e dever”.

111 Hécate Os ritos secretos da deusa que esteve associada às regiões infernais, mas também

à feitiçaria e à noite.

112 operação … celestes Primeira aparição do tema “astrológico” e a relação entre destino

humano e operação celeste, aqui na forma de repúdio e rejeição de uma filha. O tema

“astrológico”, que associa a operacionalidade celeste ao destino humano (em particular do

poder, do Estado e das hierarquias), reaparecerá na cena 1.2 de modo constante, na

menção de Gloucester, dentro do seu modus escatológico, aos “últimos eclipses do Sol e da

Lua” que trazem a destruição da estabilidade hierárquica e dos elos naturais de fidelidade

entre as partes. Aparecerá também na ironia que Edmund, um cético cínico, reserva à

“escapada” de seu pai na linguagem fatalista da astrologia, com a qual, segundo Edmund,

ele explica suas próprias faltas.


117 O bárbaro cita Povo legendário do mar Negro e da Ásia Menor que aparece como

“selvagem” no imaginário no período.

118 aquele que … repasto Referência aos canibais que devoram seus próprios filhos.

130 Que o orgulho … espose! Visto que Cordélia não aceita o ritual que Lear propõe e

responde com uma franqueza pouco vantajosa, Lear vê na sua “franqueza” (plainness)

muito mais um sinal de orgulho. Há recorrências em Rei Lear dessa oposição entre

franqueza rude (bluntness) e um outro comportamento mais cordial que se esquiva de falar

diretamente. Kent é identificado respectivamente por Lear e Cornwall como orgulhoso e/

ou um hipócrita (santarronice). Curiosamente, se de modo geral a polarização da peça

tende a nos atrair a um sentimento de simpatia tanto por Cordélia quanto por Kent (como

personagens justos, leais e constantes), há na peça tanto a falta de tato cortesão de Cordélia

como certa superfetação de sinceridade de Kent em II.II (aliás, comentada com cínica

penetração por Cornwall.

131 Eu vos invisto Dois termos são usados por Lear: “investir” (invest) e “desvestir” (divest).

Ele vai, em 1.1.49, “desvestir-se” (divest) do poder, e agora ele vai “investir” (invest) seus

genros com o seu poder e com todos os efeitos que acompanham a majestade (de um rei). A

tópica do desvestir-se vai se intensificar de vários modos na peça. Em Shakespeare, a perda

do poder é em geral uma perda de poder de fato, que normalmente se traduz na possessão

da terra, como é o caso aqui de Lear, que entrega a governança régia aos genros. Em

Ricardo ii, com o retorno do rei à Inglaterra, Ricardo II beija a terra inglesa e espera que,

como uma mãe benfazeja, ela se vingue de Bolingbroke e seus aliados que, a cada instante,

abocanham, em seu avanço, partes das terras do reino. A ironia daquela peça é que, desde

os primeiros sinais de seu enfraquecimento, Ricardo recorre, num delírio de irrealidade

política, à noção de direito divino dos reis — para ele, não apenas uma ficção jurídica, mas

uma potência atuante que, a despeito da ação do monarca, irá agir em seu favor, varrendo

da Inglaterra os rebelados. Essa ilusão constituiu um dos momentos culminantes da obra de

Shakespeare: um rei sem terra é um rei a perigo, e iludiu-se aquele príncipe que se amparou

na miragem do direito para sustentar seu mando e subjugar seus súditos. Ora, malgrado as

diferenças notáveis entre Rei Lear e Ricardo ii, em ambos os casos a terra é o centro do

poder. Entretanto, se Ricardo a perde, Lear a entrega e divide.

133-9 Quanto a nós … São vossos Lear utiliza o plural majestático. Geralmente considerada

como, no mínimo, uma imprudência, a promulgação de Lear de que terá direitos reservados

— o de manter um séquito de cem cavaleiros a serem sustentados pelos seus herdeiros e,

agora, novos monarcas — pode muito bem ser um sinal de falta de prudência e mesmo de

incompreensão do modus operandi do poder. Nas eras Tudor e Stuart, os nobres se faziam

acompanhar de séquitos, sendo uma comitiva de servos e guardas com funções diversas
para servirem às necessidades do mestre: de cozinheiros e camareiros a mensageiros, ao

“noivo do banquinho” (groom of the stool), ao guarda-mor do rei. No caso de Lear, é uma

comitiva de cem cavaleiros para servir tanto de guarda pessoal quanto de companhia. O

pedido de Lear de manter o nome e o título de rei, renunciando ao poder e à sua execução,

é uma contradição óbvia que terá consequências trágicas na peça.

146 Se Lear estiver louco Kent não quer dizer que vê Lear em um simples estado de loucura

ou insanidade, como de fato será o de Lear mais tarde, mas que ele está agindo como um

néscio.

162 Apolo A menção a deuses pagãos como Apolo, em Rei Lear, responde à pretensa

temporalidade histórica da peça, que a historiografia do período Tudor situava na história

anterior à “boa-nova cristã” e mesmo anterior à conquista da Inglaterra pelos romanos. A

incongruência de usar nomes gregos ou latinos para os deuses da Bretanha pré-romana não

deve ter produzido estranhamento ao público de Londres. De qualquer modo, a

historicidade da história/ lenda de Lear, com seus contornos que foram inseridos na

historiografia da época medieval, era tão distante que, no imaginário do período, pertencia

a uma variação do mundo pagão. Por outro lado, os vocativos aos diversos deuses às vezes

trazem acentos parecidos com os vocativos do deus cristão, trazendo acentos teológicos

consideráveis que atravessam a peça como subcorrentes simbólicas e conceituais

importantes. Em 1606, o Parlamento aprovou um Ato de Restrição aos Abusos dos atores,

que determinava que “nenhuma pessoa […] em qualquer peça encenada, interlúdio,

exibição, nas folganças de março (Maygames) ou em desfiles aparatosos deve dizer ou usar

o nome sagrado de Deus ou de Jesus Cristo ou do Espírito Santo ou da Trindade de modo

zombeteiro ou profanatório”. Em outros termos, a blasfêmia no palco estava proibida por

lei.

163 Incrédulo! Herético, obviamente com anacronismo histórico.

222 Um monstro Há uma recorrência contínua dos termos “monstro”, “monstruoso” e

similares nas tragédias de Shakespeare, que se relacionam constantemente com o termo

antinatural (unnatural). O termo se referia às coisas ou situações que ultrapassavam a

humanidade, como nascimentos estranhos de criaturas híbridas (aberrações, corrupções),

ou como as descobertas no “novo mundo”, como os anthropophagi. Em vários sentidos, a

monstruosidade está associada também ao crime incomensurável, a uma deformação

antinatural. A monstruosidade está igualmente associada ao pensamento sexual

fantasmático masculino, à sexualidade feminina, indesejável, aparecendo o termo com

frequência no delírio ciumento de Otelo, por exemplo. O rei da França, assim, com

nobreza, vê desproporção na rejeição de Lear a Cordélia, na qual ele não detecta nenhum

crime “monstruoso” que mereceria tamanha condenação. O termo surge aqui para ser
negado em relação a Cordélia, mas, ao longo da peça, um dos grandes temas de Lear, na

sua loucura e delírio, será associar a traição das duas filhas mais velhas à sua animalidade

monstruosa, que ele evoca através de inúmeras metáforas.

253 tão rica sendo pobre O rei da França recorre ao paradoxo bíblico relacionado a Cristo

(2Cor 6:10): “como nada tendo, embora tudo possuamos!”. A riqueza da pobreza é um

tema cristão comum nessas peças, mas o modo retórico e poético da formulação reforça

aqui uma tópica comum na peça, a da “pobre riqueza” e da “rica pobreza” e que associa a

pobreza a um caminho rumo ao conhecimento e à visão. Assim Lear, ao perder o poder e

ser lançado no ermo junto com Pobre Tom (um vagrant, andarilho), encontrará a

transfiguração que o levará também a se lembrar dos (pobres) que ele, durante seu reinado,

deixou de cuidar.

291-302 Já viste … cólera trazem consigo Os comentários de Regan sobre o caráter de Lear,

ditos agora em prosa, embora não se lhes possa dar total confiança, revelam seu

ressentimento com Lear e com seu caráter e conduta ríspida no passado, além da

compreensão de que a idade apenas intensificará suas tendências coléricas. A “condição há

muito enxertada” (long-engrafted condition) traz a linguagem botânica do período, que, no

caso, revela um vício de conduta que se enxertou no seu caráter e não pode ser facilmente

corrigido. Por outro lado, o diálogo sugere uma justificativa (parca, é verdade) para parte

da conduta subsequente, tanto de Goneril como de Regan.

ATO I • CENA II

Segunda cena e a segunda “trama” da peça Com a entrada agora de Edmund em cena e,

logo depois, de Gloucester e Edgar, inicia-se a segunda trama da peça, centrada na família

de Gloucester.

Fontes principais da segunda trama Não há nada mais impressionante do que a decisão de

Shakespeare de introduzir em sua peça um segundo enredo sobre o destino de Gloucester e

de seus dois filhos, Edgar e Edmund. Shakespeare foi buscar este segundo enredo na

história do rei da Paflagônia e seus dois filhos, Leonatus (correspondente a Edgar) e

Plexirtus (correspondente a Edmund). A história se encontra no décimo capítulo do

segundo livro da Arcadia, de Philip Sidney (1590). A presença de nomes diversos não

esconde a similaridade dos enredos. Na história de Sidney, o rei da Paflagônia possui dois

filhos, um legítimo e outro ilegítimo, cujos traços gerais são similares aos da peça de

Shakespeare. O filho ilegítimo é pérfido, manipulador, encarnação da ideia do “bastardo”,

cujo nascimento, na concepção da Primeira Modernidade, carregava o grão da perversidade

de seu nascimento. Ele consegue convencer seu pai de que Leonatus o traiu, e o rei, num
típico erro, dá ordens a servidores de levar seu filho até a floresta e matá-lo. No entanto, os

dois servidores do rei da Paflagônia sentem piedade do jovem e o libertam para aprender a

viver como pobre. Um dos relatos vem do próprio rei, que, em atitude de contrição e

arrependimento, após os acontecimentos, relembra suas faltas e seus infortúnios. Como

Lear na peça de Shakespeare, ele entrega todas as responsabilidades próprias de um rei ao

filho bastardo, que, uma vez investido de poder, logo o depõe do trono e arranca seus olhos

(put out my eies). É curioso como vários aspectos dessa narrativa trazem já as faltas que

interessarão a Shakespeare. O rei da Paflagônia confessa que, ao transferir ao bastardo as

responsabilidades, ele “deixou a si mesmo nada além do nome de rei” (left my self nothing

but the name of a king). Seu infortúnio o leva dos píncaros do poder real à miséria extrema,

recaindo na dejeção. Eles o deixam ir e ele se torna um rei-mendigo. A história continua

narrando a transformação de Leonatus em príncipe vingador que, após seu momento de

provação e sua sofrida iniciação na “floresta”, retorna, como príncipe armado, para

reparar o dano cometido pelo irmão e ganhar das mãos de seu próprio pai, agora libertado,

a coroa do reino. No mesmo momento o pai morre, o coração partido (hart broken). A

história de reparação terminará, contudo, com Leonatus levando a guerra ao seu irmão,

isolando-o e forçando-o a se entregar. Surpreendentemente, Leonatus, saindo vencedor, não

o mata. A história sugere uma interrupção do processo de vingança por meio da ação sábia

de Leonatus. Há um perdão do irmão, mas claramente não uma desculpa para as faltas

passadas. Renuncia-se à vingança, mas não à necessidade de contrição de Plexirtus. Na

história de Sidney, o elemento lendário da história é patente, observando-se ali o decalque

de lendas cristãs de arrependimento e reversão do destino: é a falta de julgamento do rei,

que acredita em rumores, que o leva a ser injustiçado. No entanto, aquele que o castiga, seu

filho bastardo, torna-se não um rei, mas, segundo o próprio rei desposto, um tirano que

jamais poderá descansar. É nessa lógica que o sistema de reparação passa a atuar. O filho

bom voltará para “chacoalhar o assento da tirania que jamais está seguro”. Os elementos

simbólicos da narrativa permitiram a Shakespeare interligar sua história às tradições mais

antigas formativas da tragédia (Sidney, 1868, p. 160).

1-22 Discurso de Edmund Edmund aparece na primeira cena quando Gloucester fala a Kent

da inseminação “ilegítima” de seu filho, com detalhes picantes da sua relação

extraconjugal. Ali também se refere à necessidade de reconhecer seu filho ilegítimo. Sozinho

no palco como Ricardo III no início da peça homônima, Edmund evoca a deusa Natura ou

Natureza. O termo “natureza”, em Rei Lear, é utilizado de modo complexo e ambíguo,

refletindo muitas concepções coetâneas. Embora com frequência tenha acepção de elos

naturais do sentimento humano (amor filial, por exemplo), aqui relaciona-se com “estado

de natureza”, definido pelo dicionário Oxford como a “condição do homem antes da

fundação de uma sociedade organizada” (Wells, 2008, p. 116). Essa concepção está em

franco contraste com outras definições de natureza, como a chamada “natureza benigna”,
presente em particular no pensamento de Bacon e Hooker. Ela ali é a expressão espelhada

de Deus no mundo, submetida a Deus, algo benévolo, ordenado por Deus, e traz consigo

uma sabedoria que está além da arte. A rebelião contra a natureza e suas leis seria assim

uma rebelião contra o próprio sujeito particular, uma falta na natureza (loss in nature). A

oposição entre natureza e costume, tão comum no pensamento romântico, não o era na

Protomodernidade dominante. Parte do pensamento da era elisabetana conectava Deus,

natureza e costume, de modo que o homem descobriria o modelo da natureza também pela

observação dos costumes, dos antepassados — da tradição. Assim, por exemplo, quando

Lear diz a Regan que ela possui uma “terna natureza” que jamais a deixaria “ser cruel” e

que ela conhece o “dever natural”, está dizendo, na sua suposição temporária e enganada

de quem Regan de fato é, que ela segue o modelo “natural”, que ela não é “contra o

nascimento”, contra o sangue, e assim respeita a ordem natural de uma filha. No entanto,

mesmo nessa noção otimista da natureza e na sua ligação com o costume havia desacordos.

Hooker, por exemplo, ciente de que nem tudo nos costumes parece bom, diz que há uma

segunda possibilidade. O costume pode se originar do vício de um único indivíduo e se

espalhar pelas multidões, e assim “pode ter poder, até nas coisas simples, para sufocar a luz

da compreensão natural” (may be of force even in plain things to smother the light of

natural understanding) (Danby, 1961, p. 30). Uma segunda visão da natureza que se esboça

no pensamento de Edmund assemelha-se à do pensador político e filósofo Hobbes. A

natureza, para Edmund, é uma deusa pagã, não um princípio ligado à natureza como

espelhamento de Deus e, portanto, dos costumes e de outros padrões. Ela seria, neste caso,

a deusa guardiã dos poderes que ele próprio possui: “o brilhantismo mental, o vigor

animal, a aparência bela, o apetite, o instinto” (Danby, 1961, p. 32). Sua deusa natureza é

diferente da que é invocada por Lear, a natureza-lei, emanação de Deus que conecta

tradição ao presente, filhos aos pais e assim por diante, uma lei do sangue e também das

concepções hierárquicas Tudor. Edmund, contudo, um racionalista cético, a vê como algo

incorporado na qualidade individual de cada um, dele próprio, e que de algum modo o

emancipa do costume que ele associa à falta de penetração humana sobre si mesma. Ela é a

força constitutiva individual que age na ambição. Pelo que entendemos de Edmund, não

podemos aplicar a ele o dualismo da razão versus paixão, porque Edmund, como todo

vilão shakespeariano, é um racionalista radical, uma espécie de libertino avant la lettre.

Entretanto, essa forma de pensamento não era hegemônica na época. Ela encontrará

expressão no pensamento de Thomas Hobbes, nascido no ano da destruição da Armada

Espanhola. Sua concepção de que o homem é o lobo do homem, em contínuo temor, perigo

de morte violenta, o faz postular que ele precisa fazer um contrato de delegação de poder

em que um monarca ou um Estado assume, sozinho, pelo bem da paz, o direito único e

exclusivo de violência. Sua filosofia desce até o chão da realidade do homem, dominado

pelo desejo, o medo… E as causas de suas querelas são a competição, a desconfiança e a

glória. Edmund crê na natureza como potência favorável à sua ambição, mas o relato
inteiro da peça não deixa dúvida de que Shakespeare (refletindo seu tempo) faz de Edmund

um catalisador do caos. A crítica das últimas décadas associou Edmund ao desafio do statu

quo, mas modulado com uma linguagem “de energética e empreendedora prosperidade”

(Garber, 2008, p. 663). Ela anuncia o homem automodelado que usa de sua capacidade

pessoal para prosperar. O questionamento de Edgar dos costumes, por outro lado, possui

inúmeros precedentes no pensamento humanista que por vezes viu no costume uma das

razões da degeneração, e não um acesso à natureza: “É bem verdade que nada é tão vil nem

tão cruel para ganhar aprovação se o costume o recomendar”. A questão do vício de

origem do costume, segundo Erasmo de Rotterdam, é sua relação com os rituais morais

professados no interior da família e pela adoção de valores estabelecidos. Ganhavam assim

legalidade e legitimidade nas leis e na sociedade. Em Hyperaspistes, Erasmo contradiz a tese

de Lutero de que “o pecado é endêmico à natureza humana”, dando mais ênfase à

educação corrupta, à má companhia e ao hábito do pecado (Baker-Smith, 2011, p. 145).

Assim, se o costume se origina de um vício que se legitima, então não pode de modo algum

se originar da natureza. Montaigne, em seu ensaio Do costume, assinalou que “As leis da

consciência que afirmamos nascer da natureza nascem do costume” (Montaigne, 1876,

Livro I, cap. 12). No mesmo ensaio, Montaigne elenca, a título de exemplo, inúmeros casos

de costumes aparentemente chocantes, com uma visão antropológica da variação cultural

de diferentes povos, para mostrar o peso do costume sobre as instituições, afastando

definitivamente a natureza de seu elo dos costumes. Assim, quando Edmund coloca frente a

frente natureza e costume, ele: a) restringe a noção de natureza e a faz convergir para o

caso específico (do corpo, da saúde, da capacidade pessoal e da autonomia); e b)

desconecta, neste caso como o próprio Montaigne, a natureza como propiciadora do

costume (o que tornaria o costume legítimo). Cumpre acrescentar, contudo, que, no caso de

Edmund, Shakespeare não dá aval à rebelião aberta contra os costumes e, nesse sentido,

parece contemplar a mesma visão moderada de Montaigne, que dá no seu ensaio o exemplo

dos resultados nefastos que se originaram da decisão dos proponentes de novas ideias

(muitas das quais críticas às “crendices” e superstições arraigadas na sociedade) de torná-

las efetivas, e que resultaram nas guerras civis religiosas na França. O relativismo complexo

de Montaigne, assim, não descarta certo conservadorismo.

6 bastardo No contexto da época, o bastardo representava algo fora da normalidade, um

outro que se encontrava no exterior do padrão ordenado. Sua identidade estava

indelevelmente associada ao nascimento e à sexualidade de uma mulher não legalmente

associada à paternidade legal e, portanto, natural. Assim, potencialmente, o bastardo era,

nessas concepções difusas, um elemento estranho que não cabia na ordem social, cuja

identidade, assim como sua progenitura, não possuía um vínculo material/ moral com a

autoridade paterna (Findlay, 1994, pp. 1-2). Na versão Q, em vez de “Edmund” no

nomeador de fala aparece simplesmente Bastard, “bastardo”. Apenas no Folio seu nome de
fato aparece, ganhando assim alguma identidade pessoal e se descolando em parte de sua

identidade estereotipada como bastardo. Edmund insiste sobre os termos “baixo” (abjeto,

nesta tradução), “baixeza”, “bastardo” e “bastardia”, numa clara rejeição do desprezo da

sociedade aristocrática por seu nascimento “ilegítimo”. Na sequência, ele repisa tais

termos, como se para tentar compreender seu significado — claramente lançando como

argumento contrário a sua filiação na “natureza” — na força sexual.

7-9 Se minhas … dona casta ? A pergunta sobre a baixeza de seu nascimento leva Edmund

imediatamente a evocar a “natureza” física, corporal, como um princípio melhor que os do

hábito, da cultura e da ideologia aristocrática impõem: a natureza o fez bem-proporcionado

e não há diferença entre o filho legítimo e o ilegítimo, e assim a associação entre o bastardo

e baixo não deveria existir para Edmund. Edmund reclama para si um direito perante o

costume e as concepções de legitimidade de nascimento e, nesse sentido, pode despertar, em

certa medida, a empatia pública (contemporânea e atual). Mas é importante observar que

sua reivindicação teórica não se transforma em nenhuma ação pública de caráter

“contestatário”.

11 nasce do viço … natura Ou seja, aquele que procria com toda a potência da natureza.

“Viço furtivo” (lusty stealth) se refere ao poder sexual furtivo da natureza, que irrompe na

própria disposição. Ele contrapõe sua geração com “quem vem de uma cama insípida e

arriada”, ou seja, a cama matrimonial que, na opinião de Edmund, foi abandonada pela

furtividade viçosa/ luxuriosa da natureza. Edmund, pelo que ouvimos já de Gloucester na

primeira cena, não está mentindo.

16 terras As terras no período são, a despeito do enriquecimento mercantil e da nova classe

burguesa emergente, o que consolida a herança e a autonomia. A mecânica sutil de

espelhamento do “enredo duplo” se revela aqui também no paralelismo temático, cada um

dos enredos refletindo, com diferenças, o outro. Lear entrega suas terras e, portanto,

perderá seu poder, ao passo que Edmund trama para roubar a herança em terras de Edgar.

21 Desbancar Em inglês top, na edição de Foakes. No Q, tooth; no F, to’th, respectivamente

“dentar” e “para o”. Nenhuma das variações, tanto no Q como no F, faz bom sentido para

a frase. Capell emendou o termo para top (superar), e nisso foi seguido por outros,

inclusive Foakes, cuja edição usamos como base em nossa tradução.

23 partindo em cólera A cólera era um dos principais fluidos dos corpos animais, segundo

concepções médicas do período. Nas diversas teorias humorais, acreditava-se que a

disposição de uma pessoa dependia do equilíbrio desses fluidos. Assim, um excesso do

fluido (humor) da cólera tornaria uma pessoa mais inclinada aos acessos de fúria. Embora

o termo “cólera” se origine da tradição de escritos médicos que reincorporaram


formulações gregas na divisão das disposições humanas, no século XVII esses termos já

estão plenamente vinculados às descrições de personagens.

45 Essa política de reverência A reverência da idade (velhice) que possui o poder de decisão e

sobre os (patri)mônios. A carta forjada por Edmund faz supor em Edgar as próprias

intenções de Edmund de tomar posse das terras de seu pai e de Edgar, seu herdeiro

legítimo. A segunda trama em grande parte espelha o conflito entre pais e filho(a)s da

primeira cena, conjugado com o interesse sobre o patrimônio e as propriedades. Gloucester

entra em cena totalmente alarmado por saber que o rei pessoalmente se deixou

“proscrever” de seu próprio poder, ficando assim “confinado à exibição”, “restrito a uma

pensão”, ou seja, tornado uma figura decorativa, mas sem poder real. A ansiedade de

Gloucester com o fato vai se potencializar quando ele toma contato com o conteúdo da

carta forjada por Edmund, e ele cai no mesmo tipo de decepção que acaba de testemunhar

na cena de corte.

103 Esses últimos eclipses Tradicionalmente, os eclipses sinalizavam catástrofes sociais e

naturais. “Assim Himbert de Billy, em Certaine Wonderful Predictions (1604), trata de

‘muitos grandes Eclipses […] pelos quais […] eventos terríveis são pressagiados […] toda a

piedade e caridade se esfriarão, a verdade e a justiça serão oprimidas e finalmente nada

mais há de ser esperado, mas a sociedade comum será destruída e arruinada’” (Foakes,

1997, p. 185). Os eclipses pressagiam, assim, a própria inquietação de Gloucester com a

inversão de valores, com a destruição daquilo que é a base maior da sociedade, sua

hierarquia, sua estruturação, mas sobretudo com a quebra do contrato “natural” entre pais

e filhos. Esse longo discurso de Gloucester, com suas menções à astronomia, continua as

sugestões astrológicas que estão no solilóquio inicial de Edmund. Ele está submetido à

“praga” do costume, sendo a praga um dos efeitos dos grandes desastres celestiais

astrológicos; ele lembra que é “doze ou quatorze luas mais novo que o irmão”, justamente

questionando a validade do tempo astrológico para definir o destino dos homens.

106-9 amor … pais e filhos Wells (2008) assinala que essa passagem expressa um tema comum
a outras peças, em particular Gorboduc, de T. Norton e T. Sackville (encenada em 1561).

No entanto, o repúdio institucional à inversão de valores era massivo na cultura escrita e

está presente em particular na homilia “Contra a desobediência e a voluntária rebelião”:

“O irmão há de trair o irmão e matá-lo e o pai o filho, e as crianças se levantarão contra

seus pais”. A obsessiva reaparição desse discurso está explícita também nos diversos

discursos de amaldiçoamento de Lear.

127 putaria! Edmund, com seu olhar agudo, cético e, sem dúvida, cínico, ironiza o escapismo

astrológico de seu pai, que culpa os astros por seus próprios vícios. Na ironia de Edmund, a

evasão de Gloucester apenas recobre sua vergonha de ser “homem putanheiro” (goatish
disposition, literalmente: “disposição de bode”), seu apego à luxúria e a própria geração de

Edmund, feito sob a Ursa Maior, o que Edmund relembra com zombaria.

135-50… Diálogo entre Edmund e Edgar Típico do vilão shakespeariano é se apropriar das

crendices daqueles que pretende enganar, suposições que ele considera, com razão,

inconsistentes. Edmund ironicamente fala, murmurando, dos últimos eclipses. No quarto,

ele praticamente replica, imitativo, o discurso cataclísmico de seu pai sobre a inversão do

mundo e de sua hierarquia sob o influxo maléfico astral, provocando certa ironia de Edgar:

“Desde quando te tornaste um discípulo da astrologia?”.

ATO I • CENA IV

1-7 Se … bem-disposto Eis uma das muitas transformações e disfarces da peça. Kent, que foi

banido, deve agora mudar sua voz e alterar sua aparência para conseguir ofertar seus

serviços junto ao séquito de Lear. Seu objetivo é o mesmo que o levou, na primeira cena da

peça, a contestar as decisões intempestivas de Lear que deserdam Cordélia, lhe negam um

dote e dividem o reino: quer servir a Lear e ser uma voz de moderação. Tanto Kent como o

Bobo cumprem funções de acompanhamento de Lear na sua caminhada rumo à loucura.

8-85 Não me façam … chegando Nesta cena, enquanto Lear estiver em companhia do seu

séquito “ruidoso”, com Lear e o Bobo — enfim, com seus súditos mais próximos e

inferiores —, sua fala é em prosa, contrastando com as formas metrificadas de sua fala na

primeira cena, numa situação de corte. Contudo, assim que ele encontra Goneril, as falas

passam novamente para a poesia.

15-6 temer julgamentos Embora o discurso de Kent seja jocoso, o público pode muito bem

entender que o “julgamento”, no caso, é o Juízo Final. É uma das muitas sugestões oblíquas

a concepções cristãs em Rei Lear.

85-6 jogador de futebol Era um esporte das classes baixas, desaconselhável para um nobre, ao

contrário do tênis, que era considerado um esporte apropriado para jovens de estirpe.

105 Titio No original, nuncle, que era uma variante para uncle (“tio”), mas, no conjunto

semântico e simbólico da peça, o nun em nuncle traz uma sugestão de non e, portanto, de

“nada” (nothing), palavra recorrente na peça. Cf. Introdução, p. 19.

129-35 Isso é nada … num bobo A sequência de “nada” aqui retoma a resposta de Cordélia e

reforça o jogo de palavras que domina a peça e que tem caráter existencial. Cf. Introdução,

p. 19.
136 Um bobo mordaz! Em outros termos, dentro das categorias da época, a diferença entre o

“bobo meigo” e o “bobo mordaz” é que aquele é um simplório, inocente, um bobo natural,

ao passo que este pertence ao satírico e faz de sua “folatria” um artifício.

153 monopólio Direito monopolista de comerciar, que era dado pelo rei como um privilégio.

James I, como a própria rainha Elizabeth I, concedeu monopólios a cortesãos na forma de

prêmios pelos seus serviços, mas o abuso desse tipo de concessão levou a uma campanha do

Parlamento contra os monopólios entre 1620 e 1621.

197-211 Senhor … prudente Com a aparição de Goneril, abandona-se a prosa e Lear

paulatinamente passa a falar em verso também. Goneril assume a posição de proprietária e

regente frente ao pai, tratando a escolta dele como um bando de arruaceiros insolentes.

Interessante, contudo, que já agora ela assume a posição (duvidosa) de quem zela pela boa

ordem, pelo bem comum e pelos bons modos, tratando o pai como uma criança que precisa

de um remédio, subentendido aqui um castigo (expediente prudente). A linguagem de

Goneril, que pela primeira vez mostra sua férula, avança, contudo, com significativos

subterfúgios linguísticos. Ela evita falar de castigo em termos duros — como o próprio Lear

faz quando, por exemplo, ameaça o Bobo com o chicote —, mas sempre se reclama de

razões profundissimamente sensatas.

220-1 E o asno … te amo! Ou seja, as coisas estão invertidas, aquele que era rei virou súdito

que pode ser punido. Ele já antecipa o que Lear descobrirá apenas aos poucos.

222-6 Quem aqui … eu sou ? Lear está representando, mas o que diz, satiricamente, é a mais

pura verdade. Ele não é mais rei, e por isso sua substância divina como monarca inexiste.

275-89 Escuta, natureza, … vamos! Cf. Introdução, p. 30.

ATO II • CENA I

1 Curan Presente apenas nesta cena, parece ser um membro da casa de Gloucester. Curan e

Edmund se encontram como se viessem de lugares diferentes nas propriedades de

Gloucester, onde Edgar está escondido, nos aposentos de Edmund.

10-1 guerra iminente O primeiro momento na peça em que se sugere a emergência de um

conflito entre os dois duques, de Cornwall e de Albany. Importante observar que a

iniciativa de Lear no início da peça fora justamente dividir o reino para evitar conflitos

fratricidas. No entanto, as consequências são exatamente contrárias a essa iniciativa.


ATO II • CENA II

A cena ocorre no exterior do castelo de Gloucester.

12-23 Um patife, … títulos O insulto de Kent é um apanhado semicômico de palavras raras

com termos aglutinados que ridicularizam Oswald, sublinhando sua posição de classe

inferior e denunciando sua natureza artificial de cortesão. Trata-se aqui do contraste entre

o nobre e o emergente social que leva Kent a ironizar as suas vestes, a sua vaidade florida

(“pimpão de espelho”) e a sua necessidade de recorrer aos tribunais (“choraminga de

tribunal”), em vez de, como um nobre, enfrentar o adversário com armas.

ATO II • CENA III

1-21 Ouvi … já não sou Edgar, sob perseguição, jurado de morte pelo seu próprio pai, é

obrigado a assumir uma nova identidade, que é na verdade uma não identidade. O disfarce

de Edgar possui uma profundidade convincente que nos leva a esquecer sua natureza de

disfarce. Alterações de humor, de identidade, são comuns no teatro de Shakespeare. A

transformação de Edgar é total e fantástica, possui na sua forma lúdica uma profunda

veracidade — como se não fosse mero disfarce, mas uma verdadeira provação ou um ritual

de passagem. O discurso de Edgar, a despeito do cálculo estratégico de se disfarçar a fim de

melhor agir, lança no interior da peça os princípios das fábulas, das lendas e das

metamorfoses. As ressonâncias mágicas são notáveis, como a do esconderijo no oco de um

carvalho, árvore sabidamente mágica, onde Edgar se esconde por algum tempo, por fim

escapando à caçada. Na longa tradição folclórica das ilhas britânicas, os elfos habitavam os

ocos das árvores. Cf. Introdução, p. 42. A invenção de Pobre Tom como uma segunda

identidade de Edgar não se origina da leitura de Shakespeare da Arcadia. Seus traços

principais, incorporados ao segundo enredo, provêm da leitura de A Declaration of

Egregious Popish Impostures, de Samuel Harsnett (1603), uma longa sátira da prática de

exorcismos feita por religiosos católicos recusants e padres jesuítas na Inglaterra, em

Denham, Buckinghamshire. O livro traz relatos de exorcismos, declarações de testemunhas,

algumas das quais eram pessoas supostamente possuídas pelo demônio. Em um segundo

nível, não descritivo, traz os comentários, o estilo e a sátira de Harsnett, que, como homem

político a serviço dos interesses da Coroa, considerava tanto os exorcizados como os

exorcistas falsificadores “teatrais”. O livro tinha teor propagandístico. Declaration estava

especificamente voltado contra o que chama de “imposturas papistas” e, nesse sentido,

seguia uma política de Estado, sob o reinado de Elizabeth, em particular as recomendações

reformistas da nova Igreja, favoráveis à supressão da prática do exorcismo, que se fazia

tanto entre católicos como entre alguns reformados. O livro tinha por alvo muito mais o
público protestante (Brownlow, 1993, p. 110). F. W. Brownlow relembra que, ao contrário

de boa parte das fontes utilizadas por Shakespeare, que contavam histórias antigas,

reescrituras lendárias mais ou menos distantes, o livro de Harsnett tinha um apelo político

imediato. Alguns dos personagens do livro eram homens da região natal de Shakespeare, o

que tornava seu interesse candente para o dramaturgo e sua leitura, muito mais pontual.

Desde Lewis Theobald (1688-1744) a crítica restringiu-se a mostrar o impacto da obra

de Harsnett no vocabulário de Rei Lear, pois, de fato, os nomes dos muitos diabos

mencionados por Harsnett ressurgem na boca de Edgar/ Pobre Tom. À primeira vista, a

impressão é que nada além desse aspecto tenha impactado Shakespeare. Nomes como

Flibbertigibbet, Smulkin, Modo, Mahu, Frateretto, Purr, Hobbididence, Obidicut e tantos

outros se encontram em um capítulo da Declaration sobre os nomes dos diabos. De fato, a

verve formidável e o vocabulário bizarro de Harsnett foram usados claramente para a

caracterização de Edgar como Pobre Tom no ato III e também em outras partes da peça.

Isso transforma inteiramente o personagem. Na narrativa da Arcadia, de Sydney, Leonatus

(correspondente a Edgar) não tinha nenhuma marca de possessão ou mesmo de miséria e

alienação que, na peça de Shakespeare, produzem o efeito do grotesco e do maravilhoso.

Pobre Tom é uma persona de Edgar, o que nos faz ver certa metateatralidade na ação

desse personagem. No seu disfarce, contudo, há uma eficácia. Esquecemos de sua

verdadeira identidade, como se ele não se disfarçasse, mas se transformasse de fato em

Pobre Tom, emblema da miséria e da insanidade, com o qual Lear e Gloucester se

identificam nos momentos mais extremos de seu sofrimento. A relação de Pobre Tom com

os loucos possuídos de Harsnett é indireta, mas poderosa. Stephen Greenblatt, em

Shakespeare and the Exorcists (Greenblatt, 1988, p. 94), estuda as relações entre o livro de

Harsnett e a peça de Shakespeare, inserindo-os na questão candente dos embates

ideológicos e doutrinares do período. A nova Igreja reformada da Inglaterra buscava

eliminar os seus competidores católicos, em particular naquela sua característica principal,

a do núcleo carismático. Entre os vários modos estavam os exorcismos, praticados na

ilegalidade na Inglaterra elisabetana, testemunhos do poder religioso da fé, bem como sua

relação próxima com a comunidade crente, usada pelos religiosos para mobilizar a fé e a

simpatia pública. A Igreja reformada buscava combater as tendências devocionais que,

originárias da grande tradição medieval, ainda estavam vivas no espírito popular na

Inglaterra, bem como as práticas sensacionais utilizadas por setores do puritanismo

ultrarreformista. Assim, tal como a nova Igreja buscava extinguir as imagens, o milenar

culto dos santos, as festividades tradicionais religiosas com suas datas, seus lugares e suas

tradições intrinsecamente entremeadas aos costumes públicos paroquiais, também as

práticas exorcistas deveriam ser interrompidas. Greenblatt chega a falar de um

protoiluminismo racionalista.

Ao que parece, o livro adentrou a imaginação de Shakespeare, sobretudo suas imagens de

sofrimento humano. Como Caroline Spurgeon assinalou acerca de Lear, a peça está
assombrada “por um corpo humano em movimento, angustiado, arrastado, torcido,

batido, perfurado, ferroado, flagelado, deslocado, esfolado, escaldado, torturado e

finalmente quebrado sobre a roda de tortura” (Spurgeon, 2004, p. 339). O livro de

Harsnett não é uma fonte de Shakespeare no sentido que em geral se dá a fonte.

Shakespeare, o poeta, parece, em parte, responder ao clérigo Harsnett, ou ainda entrar em

um diálogo com ele, apropriando-se do seu livro, apresentando uma resposta condensada

ao livro de Harsnett e “entregando-o de volta transformado na forma de uma peça, para o

Estado e para a sociedade para a qual Harsnett escreveu” (Brownlow, 1993, p. 118). Sua

resposta não era a um documento insignificante. O texto de Harsnett era um capítulo

importante de uma campanha política feita por um porta-voz da monarquia, ligado ao

poder real; a publicação do livro era um ato de Estado (Brownlow, 1993, p. 118). Como

assinalamos, Harsnett usava um antigo artifício retórico para criticar os padres exorcistas,

que consistia em associar essas práticas à teatralidade. É o que se vê, já de início, no

“Argumento” do livro de Harsnett: “Foi sempre a má fortuna dessa ordem sagrada dos

exorcistas que aqueles que a professam ganharam a reputação de escamoteadores e

impostores, sim, às vezes de grandes protetores de sua própria religião” (Brownlow, 1993,

p. 209). Relacionar qualquer atividade ao teatro podia significar, na época elisabetana,

desqualificá-la e transformá-la em uma impostura. Entretanto, qualquer que tenha sido o

interesse dessa sátira, a “teatralização” das práticas de exorcismo incluía não apenas os

exorcistas, mestres regentes desse grande “teatro”, mas também os exorcizados. Afinal, a

história dos “possuídos” que Harsnett buscou satirizar em seu livro e tornar parte de um

grande teatro de imposturas foi real, comovente e repleta de violência. Trazia a lamentável

história de pessoas, sobretudo mulheres, em estado de alienação, pessoas que estão no reino

da dissimilitude. Agora, no centro da peça de Shakespeare, como Brownlow sublinhou, “a

possessão e a loucura são figuras supremas para esse estado de ser, tanto que, quando Lear

vê a si mesmo no Tom Louco (Mad Tom), ele vê a figura de uma vida inteira vivida na

negação de sua verdadeira natureza e, agora, numa crise de identidade, humana e pessoal”

(Brownlow, 1993, p. 120).

ATO II • CENA IV

26-44 Senhor … sofro agora Kent descreve um acontecimento que não é objeto de

dramatização na peça. Narra a Lear como chegou ao castelo de Regan e como, no

momento mesmo em que cerimoniosamente se ajoelhava em respeito aos senhores de

Corwall, Oswald chegou trazendo a carta que havia sido enviada por Goneril. Quando

chega, Oswald acaba atraindo a atenção de Cornwall e Regan em prejuízo de Kent,

mensageiro de Lear. Embora não sejam claras as instruções, sabemos que Goneril havia se

precavido de responder. A carta de Oswald é um alerta de que Lear se dirige para o seu
palácio, e por essa razão Cornwall e Regan retiram-se imediatamente do castelo rumo a

Gloucester, para não receber Lear. Sabemos, como foi noticiado por Curan a Edmund, que

as rivalidades entre os ducados já iniciaram, o que também explica a longa viagem até a

casa de Gloucester “atravessando a noite”, como um modo de obter apoio.

55 Histerica passio Uma condição, ou doença, que a medicina do período acreditava ter

origem no baixo-ventre e que tendia a subir pelo corpo, até trancar a garganta, geralmente

associada ao sexo feminino, como se o útero se movesse pelo corpo em direção à garganta,

causando asfixia. Em inglês, era conhecida como a “Mãe” (Mother), ou “asfixia da mãe”

(Foakes, 1997, p. 242).

128 tumba de tua mãe Essa é a única menção em toda a peça da mãe das filhas de Lear.

220-4 és minha carne … pestífera Mesmo amaldiçoando a filha, Lear reconhece que nelas há

algo de seu. Como se sua filha amaldiçoada fosse fruto do que há de pior em seu sangue.

ATO III • CENA I

Diálogo entre Kent e o cavaleiro Menções mais consistentes sobre a tempestade iniciam

nessa cena com o diálogo entre Kent e o cavaleiro em plena noite. Entre outras coisas, eles

comentam o estado de Lear. O cavaleiro descreve Lear como alguém que está lutando com

os elementos naturais da tempestade, sugerindo-se assim uma fusão caótica entre o homem

e a natureza. Lear, segundo ele, está fora de si e vocifera para que a terra adentre o mar.

São imagens da loucura plena de Lear que precedem sua aparição na cena seguinte em

primeiro plano, quando o veremos vociferando para os elementos naturais. Kent traz

informações mais consistentes sobre a rivalidade em curso entre Cornwall e Albany.

Segundo ele, há divisão entre os dois nobres, apesar de todas as expressões do contrário. A

passagem possui diferenças consideráveis entre a versão Folio e a Quarto. Incorporamos o

conjunto numa fusão que segue a versão de Kenneth Muir, em vez da conflation proposta

por Foakes. Assim, no anúncio de Kent figura também a informação de que os exércitos da

França já estão espionando o país à procura de informações sobre o estado do rei, ou ainda

por outras razões. Finalmente, Kent pede ao cavaleiro que ele se dirija a Dover e que

reporte todas as coisas “inaturais” que aconteceram, em particular os sofrimentos do rei.

ATO III • CENA II

1-24 Sopra … A cena inicia com Lear vociferando, agora no primeiro plano, exatamente como
aparece na descrição do cavaleiro na cena anterior. São imprecações com estilo e temática
escatológica, rogando que os elementos celestiais destruam definitivamente a face da terra,

de modo que todos os “moldes” da natureza se desfaçam — o mundo em si mesmo, em

seus germens, suas sementes, tudo o que se associa à procriação e à continuação da

humanidade. A razão para esse furor é a ingratidão que ele reconhece como endêmica à

humanidade. Essa generalização repercute as várias maldições que Lear lança contra a

procriação, como, por exemplo, quando roga pela infertilidade de Goneril em (I.IV.280-5).

A cena está marcada por menções aos animais selvagens que, na noite, mantêm-se em suas

furnas e seus abrigos. Lear está aquém do humano e aquém dos animais, e é justamente

nessa cena que Kent vai atraí-lo para uma cabana onde o rei poderá se proteger. “A cabeça

nua! Meu bom senhor, aqui perto há uma choça que vai lhe dar abrigo” (III.II.57).

44 os confinam em seus covis Novamente na peça a menção à vida dos animais, aqui para

enfatizar o quanto Lear está exposto aos elementos naturais de um modo que seria

insuportável até mesmo para os animais “andantes das trevas”.

81-94 Se um dia … há de usar Ausente em Q. A profecia cômica do Bobo apresenta um

mundo invertido em relação ao mundo corrupto. O poema é uma adaptação de outras

formas populares e folclóricas utópicas.

ATO III • CENA III

Constituída de uma rápida troca de palavras entre Gloucester e Edmund, essa cena

fortalece nossa percepção do senso de lealdade de Gloucester. Por sua lealdade, será

considerado um traidor por Cornwall, Regan e Goneril. Ele chama o tratamento

dispensado a Lear de “conduta desnaturada” (unnatural dealing) e assim enfatiza sua

anormalidade no interior das noções de hierarquia do período. No entanto, a informação

adicional que dá a Edmund, de que possui uma carta com inteligência sobre um exército

que acaba de desembarcar no país, e de que a casa de Gloucester tem o dever de apoiar o

rei por honra e caridade, é fatal para seu destino, pois Edmund transmitirá a informação

aos inimigos, traindo a confiança do pai para ascender através de sua “lealdade” a

Cornwall.

ATO III • CENA IV

6-22 Tu crês … chega Lear argumenta para Kent que o sofrimento físico de estar exposto à

tempestade não se compara ao sofrimento interior pela ingratidão filial.


28-33 Pobres coitados, … coisas todas Ver comentário na Introdução, p. 38. Lear emociona-se

ao ver a habitação dos miseráveis do seu reino e se descobre em falta com eles.

Gradativamente, Lear passa da preocupação com seu próprio sofrimento para os

sentimentos ocasionais de compaixão pelos miseráveis.

37 Braça e meia, … Tom! Edgar fala como se estivesse medindo a profundidade da água na

choupana.

44 Entra Edgar, disfarçado de Pobre Tom “Um pobre coitado desnudo subitamente aparece,

e Lear projeta sobre ele suas próprias queixas; Pobre Tom em parte substitui o Bobo e

torna-se o centro de atenção de Lear” (Foakes, 1997, p. 274).

45 Fujam, … atrás de mim Shakespeare se inspirou no livro de Harsnett Declaration of

Egregious Popish Impostures (1603) para a criação de Pobre Tom, em particular na sua

fala desta cena. Assim, quando Pobre Tom afeta estar tomado pelo diabo malino (foul

fiend), o vocabulário replica os mesmos utilizados por Harsnett.

49-62 Quem é que … lá! Já na primeira fala como Pobre Tom, há frases, ideias e palavras

encontradas na Declaration de Harsnett. Não é simples, contudo, explicar a particularidade

sonora, vocabular e lexical de sua fala. Trata-se de um discurso em parte encantatório,

entre louco e mágico, às vezes com elementos cultos, às vezes com tonalidades populares:

“Tom tá com frio” (Tom’s a-cold). Seu fraseado é iterativo, o vocabulário, raro, reflete

superstições populares. A repetição de fórmulas como “diabo malino” (foul fiend), ou

“Tom tá com frio” funcionam como refrãos obsessivos que revelam aquilo que o angustia,

sua possessão e o frio. Sua fala não possui nenhum elemento abstrato, está constituída

apenas de arranjos de orações paratáticas com rara subordinação. Em tudo o que fala há

certa concretude pitoresca camponesa, plena de termos de gosto medieval ou folclórico. No

caso, não um simples decalque dessa linguagem, mas o resultado de uma reestilização que a

poesia dramática e outros textos da época faziam dessa linguagem. No seio dessas

enumerações paralelas, loucas e às vezes enigmáticas (sem deixar de soar jocosas), ele

assume a fala de um pregador de mercado, saturada de imperativos e ameaças. De ora em

vez, esse fluxo verborrágico saboroso e louco é interrompido por visões obscuras e

visionárias. Sobre nossa tradução das palavras, cf. Nota sobre a tradução, p. 77.

52-3 facas … mata-rato Foakes assinala que facas e nó de forca aparecem em Harsnett. O

demônio era geralmente concebido como que oferecendo ajuda àqueles em desespero,

inspirando-os ao suicídio, o que os levaria à danação (p. 275). O suicídio era considerado

um ato diabólico. É também um dos maiores perigos ao longo da peça: Gloucester buscará

o suicídio e será salvo por Pobre Tom.


55-6 pontes mofinas Atravessar pontes tão estreitas exigiria o auxílio de forças sobrenaturais,

no caso, de forças demoníacas.

58 O do, dudi … Obscuro: Foakes sugere o som de ranger dentes (p. 275).

60-1 Eu podia … lá! Possivelmente, em seu delírio, Edgar-Pobre Tom ataca um demônio

imaginário.

67-8 Que as pragas … filhas As pragas, na forma de miasmas, podiam ser consideradas

agentes da vingança divina.

75 filhas pelicanas Alusão a lendas e crenças antigas segundo as quais a mãe Pelicano nutria

os filhos com seu próprio sangue.

86-103 Um servidor, … cessez! Diante da pergunta de Lear, Pobre Tom responde conforme o

gênero contemporâneo de ataques satíricos à luxúria, à farra e à corrupção das cortes,

possivelmente refletindo, em parte, “o sentimento popular a respeito da extravagância e

corrupção na corte de James I” (Foakes, 1997, p. 277).

94 superei o turco: Ou seja, tinha mais amantes do que o grande sultão turco, célebre pelo seu

harém.

112 Tricafutrica (Flibbertigibbet) Um dos nomes dos demônios que supostamente estão

possuindo Pobre Tom. Os nomes de demônios de Pobre Tom são vários, e Shakespeare

tirou-os de uma passagem do livro de Harsnett (1603, “Os nomes dos demônios”). Outros

nomes são Hobbididance, Obidicut, Mahu, Modu, Smulkin, Frateretto, Purr. O termo,

contudo, é mais antigo do que sua aparição do livro de Harsnett. Em Castelo da

perseverança, uma morality play [peça de moralidade] medieval escrita por volta de 1425,

aparecem variações do termo: flepergebet, flypyrgebet e flepyrgebet, que se transformam

mais tarde em Flibbertigibbet. Ver Nota sobre a tradução, o comentário sobre a tradução

onomatopaica-morfológica também dos outros nomes de demônios, p. 92.

146-7 cão-miúdo (Smulkin ou Smolkin) É um demônio pequeno que em Harsnett (Brownlow,

1993, p. 240) toma a forma de um camundongo.

150 Modo … Mahu Novamente, os mesmos nomes dos demônios constantes no livro de

Harsnett. Mahu e Modu são duas fúrias infernais.

161 filósofo Mágico, filósofo, sábio ou cientista, como Lear visse nas palavras de Pobre Tom

o conhecimento de alguma ciência oculta. Importa, contudo, o efeito ridículo, comovente e

cômico.
ATO III • CENA VI

A localização não é clara, mas é possível que Lear e seus companheiros não estejam mais na

cabana, e sim em um quarto ou aposento nas propriedades de Gloucester (Foakes, p. 286).

6 Frateretto Em Harsnett, Frateretto é um dos demônios imaginários que acossam os

possuídos (Brownlow, 1993, p. 243).

12-3 fidalgo, … plebeu ? Yeoman (“plebeu”) é de difícil tradução. Significava a classe de

freeholders, proprietários livres de terras não pertencentes à casta nobre. É possível que, na

alusão feita pelo Bobo, o fidalgo é Lear e o yeoman seja Edgar, mas ambos podem ser

considerados loucos (madman). Contudo, a alusão mais significativa está na resposta do

Bobo que diz que o louco é o yeoman que tem um nobre por filho, por ter deixado que seu

filho fosse nobre antes dele. A questão parece se referir também à inversão que Lear

promoveu ao tornar suas próprias filhas as proprietárias de seu reino.

17-55 O demo-encardido … escapar As linhas 17-55, presentes apenas na edição Q, trazem o

célebre pseudojulgamento (mock trial) que é proposto por Lear (“vou acioná-las [Goneril e

Regan] na lei”). Obviamente é um julgamento imaginário, em que Lear delira com a

presença de suas duas filhas e as submete a um inquérito. Edgar, que não fala coisa com

coisa durante o julgamento, é promovido a “douto e versado juiz”, e o Bobo, a “sábio

senhor”, numa espécie de jogo de inversões cômicas e carnavalescas em pleno núcleo da

peça. Quanto a Kent, ele se senta no julgamento como um “juiz comissionado”, rebaixado,

portanto, em sua classe. Na ausência de Goneril e Regan, é possível que Lear, quando se

dirige às duas, esteja falando com um objeto inanimado qualquer no palco, talvez uma

banqueta (stool). “Pensei que você fosse uma banqueta”, diz o Bobo, ironizando o delírio

de Lear (III.VI.51). Em uma peça marcada pela injustiça, crueldade e, em particular, pela

traição no interior da família, a retribuição ou ainda a vingança contra os crimes não passa

de um “julgamento simulado” hilário, sublinhando a ironia de Shakespeare com as

expectativas de justiça de seu público.

30 diabo-encardido Cf. Nota sobre a tradução.

39 juiz comissionado Menção às cortes de equity que buscavam lidar com casos conforme a

“justiça natural” (Foakes, 1997, p. 289).

80 roupas persas Menção ao luxo “oriental” dos persas, em particular em contraste com os

farrapos vestidos por Edgar.

106-11 Ao ver … esconda Com a saída do grupo, Edgar permanece no palco. Depois de sua

imitação de mendigo louco, ele retoma momentaneamente sua identidade pessoal,


abandonando a linguagem desvairada de Pobre Tom, e assume um tom mais abstrato e

meditativo ao falar do sofrimento e da relatividade da nossa mensuração do sofrimento

diante do sofrimento alheio. Esse trecho está presente apenas em Q, mas possui

importância estrutural na peça: dá início ao conjunto de solilóquios-reflexões similares que

Edgar profere, afastando-se ocasionalmente de seu disfarce, especulando sobre a ação e o

destino dos outros personagens. O contraste estilístico dessas divagações, que subitamente

erguem o tom da peça em relação ao conjunto grotesco da cena, é fundamental para trazer

de volta a peça a uma apreciação geral do destino. A ponderação acompanha os fatos,

trazendo à peça uma espécie de síntese abstrata. Ele pronunciará sua reflexão seguinte em

IV.I.1-9, um pouco antes de seu encontro com Gloucester, e finalmente serão suas as

últimas palavras da peça.

ATO III • CENA VII

2 carta A carta encontrada por Edmund no quarto de Gloucester.

5 Arranquem-lhe os olhos! Foakes assinala que essa punição, o cegamento por extração do

globo ocular, era aplicada a estupradores na Idade média, mas o que está implícito aqui é

que é pela visão que os homens cometem adultério (Foakes, 1997, p. 295).

23 Atem-no como um ladrão Um tratamento impróprio quando aplicado a um aristocrata.

32 hóspedes Não é em vão que Gloucester os lembra de que são seus convidados em sua casa.

A violência contra o anfitrião na sua própria casa era considerada uma violação grave da

hospitalidade.

60 carne ungida Ou seja, uma menção à natureza divina dos monarcas na doutrina do direito

divino dos reis. Em sua coroação, eles recebiam a “unção” que firmava o elo entre o poder

monárquico e a vontade divina. Esse é mais um dos muitos signos conceituais na peça

originários de concepções monárquicas típicas do pensamento político e jurídico do

Medievo, e que na Inglaterra tiveram um desdobramento peculiar na concepção dos assim

chamados dois corpos do rei (Kantorowicz, 1997). Essa concepção é uma ficção jurídica

erigida, de um lado, para justificar e legitimar o poder monárquico com a unção devida, e,

por outro, pela necessidade de conciliar a natureza “corporal” e humana dos reis com sua

outra natureza, de caráter divino. Essa noção dos dois corpos se desenvolveu a partir da

visão paradoxal e dupla da teologia da dupla natureza humana e divina de Cristo, tendo

migrado para o interior das concepções de realeza divina.


ATO IV • CENA I

Entra Edgar, disfarçado como Pobre Tom Edgar se separa do grupo de Lear, que segue em

direção a Dover, talvez até deliberadamente, pois ele é ignorado no final de III.VI. A cena se

passa em algum lugar distante da casa de Gloucester, pois Edgar ainda é um fugitivo.

Trata-se, agora, da manhã seguinte à tempestade.

1-9 Sim … borrascas Edgar afirma que é melhor se saber desdenhado do que sofrer esse

desprezo e ainda ser bajulado (como acontece na corte). Quando alguém está na pior das

situações, ou seja, na posição inferior da roda da fortuna, vive-se ainda na esperança, não

no medo (de cair mais). Ele está disfarçado de Pobre Tom, mas no início da cena, enquanto

não topa com seu pai, medita sobre o infortúnio, a esperança e o destino. As palavras de

Edgar são genéricas, mas o leitor ou espectador, depois de assistir à primeira cena e à

“confissão” de amor de Goneril e Regan, assim como ao autoengano vergonhoso de Lear,

observa aqui o contrário da lógica das aparências. O desamor e a indiferença de que um

indigente (como Edgar está disfarçado) sofre ainda podem ser considerados algo: se não se

tem nada, mesmo assim a “esperança” subsiste como o próprio signo da remissão (dos

pacientes e dos pobres). Aquele que desceu à condição mais abjeta tampouco vive no medo,

pois já perdeu tudo o que poderia temer perder e, sobretudo, perdeu aquela condição de

superfluidade que produz o medo da privação. A esperança é o contrário do desespero na

cultura medieval e protomoderna, ao passo que o desespero é considerado um pecado. Esse

sentimento Edgar encontrará em seu pai, que pede a Pobre Tom para levá-lo aos penhascos

de Dover, onde pretende cometer suicídio. Os afrescos de Giotto na capela Scrovegni

trazem uma cena do Juízo Final, trazem também figurações específicas das virtudes e dos

setes vícios, entre os quais está o Desespero, representado como uma mulher que se

enforcou numa barra dentro de seu nicho, apresentada no momento de seu suicídio. Ao se

matar, ela perdeu o direito à salvação. Um pouco acima da figura há um demônio que

desce para levá-la ao inferno. Finalmente, é preciso lembrar aqui, aproximando-nos mais da

peça atual, que na história How Queene Cordila in Dispaire Slew her Selfe, The Yeare

before Christ, escrita por John Higgins para a edição de 1578 do Mirror of Magistrates,

Cordila é no final capturada pelos filhos de Gonorell e Ragan, que a atiram numa prisão

onde é visitada por Despair (desespero). Desespero a incita ao autocídio. Cordila narra

como um fantasma sua existência e seu desespero. No entanto, depois de sua morte, um

narrador moralizante entra em cena para, numa glosa explicativa, lamentar seu suicídio,

lembrando que aqueles que caíram vítimas do desespero e tiraram a própria vida não

poderão assistir ao momento em que Deus trará seus inimigos à destruição. O desespero,

assim, está associado à perda da fé e à autodestruição, e é isso que Pobre Tom tentará

dissolver na mente de seu pai desesperado. A passagem final em que Pobre Tom (Edgar)

“abraça” o ar insubstancial ou incorpóreo revela, por outro lado, que Edgar assume por
inteiro o sofrimento do seu infortúnio. Nisso ele vê uma ação não apenas da natureza, mas

de uma divindade superior a cuja provação imposta deve se submeter com eufórica alegria.

9 Entra Gloucester, conduzido por um velho O velho é talvez o único personagem na peça

que não pertence à vida cortesã, e sim à vida comum. Sua idade avançada o faz ter uma

compreensão maior do passado. Ele encarna o serviço, a caridade e a lealdade (Foakes,

1997, p. 304) e, nesse sentido, é um dos muitos descendentes literários de Eumeu, o feitor

de Odisseu na Odisseia.

10 conduzido por um pobre! No in-Quarto (Q) não corrigido (Qn), está poorlie leed; no in-

Quarto corrigido (Qc), está parti-eyd, significando parti-eyed, ou seja, com várias

colorações, o efeito visual dos olhos perfurados e com sangue. F apresenta uma versão

diferente: poorely led (poorly led), ou seja, “conduzido por alguém de extração baixa”, que

sublinha o rebaixamento de Gloucester de nobre a miserável. As duas principais

possibilidades são igualmente válidas. Uma segunda possibilidade: “com olhos perfurados”,

que reforça as oposições entre cegueira/ visão que aparecerão logo adiante.

20 Quando enxergava Um dos leitmotivs mais insistentes na peça é a oposição entre visão e

cegueira, tratada não raro por meio de paradoxos. Há um eco bíblico nessas referências,

como em Isaías 59, 9-10: “Por isso o julgamento reto está longe de nós; a justiça não está a

nosso alcance. Esperávamos a luz, e o que veio foram trevas; a claridade, e, no entanto,

caminhamos na escuridão. Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como os que

não têm olhos, andamos às apalpadelas. Tropeçamos ao meio-dia como se fosse no

crepúsculo; somos como os mortos entre pessoas sadias”. Essa base bíblica, no entanto, não

é a única e encontra precedentes notáveis na tragédia grega, entre as quais Édipo rei, de

Sófocles. O cego que carrega o cego era, por outro lado, um tema renascentista importante,

como é o caso de A parábola dos cegos, do neerlandês Pieter Bruegel, o Velho, de 1568.

20-2 Quantas vezes … proveito Gloucester tem o mesmo tipo de revelação lenta que Lear ao

observar que os nossos meios nos trazem segurança e que nossos defeitos geram confiança.

Obviamente, é o extremo sofrimento que o leva a uma posição de contrição e reavaliação

do passado. Mas, de modo comovente, os termos são os de um cego… Ele quer “ver” o seu

filho “com seu toque”.

21-2 O fausto … proveito A riqueza traz excesso de confiança ao homem, ao passo que a

carência de algo é uma vantagem, pois permite melhor visão. Gloucester ecoa Lear no

encontro com Pobre Tom, ele também reconhece o “homem não acomodado”.

35 Me fez … um verme Salmos 22,7: “Quanto a mim, sou verme, não homem”.
46 Dover Arcadia, de Sidney (1590), também inclui a vontade de um príncipe de se atirar de

uma rocha alta, tentando persuadir seu filho a guiá-lo, mas aqui Gloucester não sabe que

está sendo guiado por Edgar.

50 se o louco guia o cego Traz ressonâncias de Mateus 15,14: “Deixai-os. São cegos

conduzindo cegos. Ora, se um cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num

buraco”.

64-70 Cinco mofinos … vos tenha! Pobre Tom retoma os demônios de Harsnett (1603).

Trecho presente apenas em Q.

71-9 Aqui, … o suficiente Gloucester ecoa a fala de Lear, “pobres coitados, nus” (poor naked

wretches), e a noção de empatia pelos coitados miseráveis.

ATO IV • CENA II

A última aparição de Albany no palco foi em 1.IV, quando se mostrava em dúvida sobre as

atitudes de Goneril com Lear; agora, com os novos conflitos em curso, ele demonstra uma

clara rejeição moral a Goneril.

1-2 manso Marido Goneril, que agora se aproxima de Edmund, trata seu marido como um

homem sem resolução, um covarde. Segundo ela, ele “não vê a ofensa, se ela o força a

lutar” e, numa atitude agressivamente irônica, diz, nas linhas 18-9, que ela vai lhe “dar a

roca”, instrumento de trabalho reservado às mulheres. Fica implícito, naturalmente, que ela

própria se apossará da espada, signo por excelência da masculinidade. Os acentos eróticos

da passagem são importantes, pois Goneril agora se aproxima cada vez mais de Edmund e

diz que um “imbecil me usurpa a cama”. Toda a conversa seguinte entre Goneril e Albany

será dominada por claros contrastes: Goneril acusando-o de covardia, efeminação e excesso

de escrúpulos, e Albany acusando-a de perfídia, em particular no tratamento que ela

dispensou ao próprio pai.

88-92 ela estando … amarga Goneril quer possuir Edmund (agora, “Gloucester”), mas a

morte de Cornwall torna Regan candidata a uma hipotética união com ele. Por outro lado,

ela admite que a morte de Cornwall pode trazer alguma vantagem, já que enfraquece Regan

na posse de suas propriedades.

ATO IV • CENA III


A cena IV.III está presente apenas na edição in-Quarto da peça. Sua função é informar

sobre as razões por que o rei da França retornou ao continente, após arribar na Inglaterra;

apresentar uma imagem sagrada de Cordélia, que agora retornará para liderar os exércitos

da França e, finalmente, para fazer saber que chegou a Dover. A cena não tem efeito sobre

a ação geral da peça. No entanto, a figura idealizada de Cordélia, poeticamente construída

pelo cavaleiro, prepara o encontro do público com a “redentora” de Lear. Embora haja

grandes dúvidas sobre a exclusão “dramática” dessa cena, não é a primeira vez na peça que

Shakespeare antecede uma aparição em primeiro plano de um personagem por uma

descrição geral em segundo plano. Por outro lado, Cordélia esteve ausente da peça desde a

primeira cena e, possivelmente, Shakespeare terá sentido a necessidade de anunciar

poeticamente seu retorno, assim como a sugestão de sua “santidade” benéfica.

ATO IV • CENA IV

A reaparição de Cordélia no Folio (F) está em forte contraste com a versão do in-Quarto

(Q), em que esta cena é precedida pela cena do cavaleiro e de Kent. Lá, Cordélia era

apresentada como encarnando a piedade extrema e o pesar. Na atual cena, contudo, ela

aparece sob uma luz muito mais ativa e eficaz, liderando os exércitos da França, sem que

haja qualquer menção ao seu marido. No entanto, a descrição piedosa de Cordélia não está

ausente da cena. Ela descreve o estado de seu pai, que acaba de ser reencontrado, coroado

com “fumárias bravas, macegas, bardanas, cicutas, urtigas e cardaminas”, a própria

imagem do delírio e da vulnerabilidade. Finalmente, é nessa cena que o mensageiro noticia

que as forças britânicas já estão avançando. Cordélia relembra o próprio público de que

aquilo que a trouxe de volta à sua terra natal não foi a sua ambição, mas sua vontade de

restabelecer o direito paterno.

ATO IV • CENA V

11 Foi ignorância … vivesse A perfídia aqui chega ao seu ponto máximo. Regan não apenas

constata que foi um erro grave não ter matado de vez Gloucester, em vez de deixá-lo solto,

caminhando a esmo e despertando a comoção pública contra o seu partido, como também

parece satisfeita com que Edmund tenha saído para “despachar” a “vida escurecida” do

velho Gloucester. Como sempre, na linguagem tanto de Regan como de Goneril, há o

acréscimo cínico e a ironia. Ela diz que Edmund, “apiedado co’a miséria do pai”, foi dar

cabo da vida dele: uma ironia que revela que ela se rejubila no ato e na sua menção, mas de

fato a perfídia, em Shakespeare, não se satisfaz em fazer, precisa glosar com ironia.
24 Terás minha gratidão Ao contrário de muitas interpretações que veem na declaração de

Regan um sinal de sua lascívia, agora dirigida a Oswald, definitivamente um subalterno, é

mais provável que ela esteja dizendo que “o estimará”, lhe trará um favor verdadeiro. Ela

também dirá mais adiante que “quem o aniquilar [Gloucester] será favorecido”. Ou seja,

estamos tratando aqui da típica cultura do favor e do privilégio concedido por aristocratas

aos seus inferiores, em especial em um ambiente de corte.

ATO IV • CENA VI

Entram Gloucester e Edgar vestido de camponês Vestido agora como camponês, usando as

roupas que recebeu do Velho, Edgar alterará sua fala, distanciando-se da identidade de

Pobre Tom, marcada por uma linguagem desarticulada, assombrada e demoníaca. Essa

mudança é percebida imediatamente por Gloucester. As falas iniciais acontecem enquanto

caminham (Foakes, 1997, p. 326).

1-10 Quando … fala está melhor Foakes aponta que Shakespeare “parece preocupado em

assinalar a ilusão criada por Edgar, não só para Gloucester, mas também para o público do

teatro” (Foakes, 1997, p. 326), daí essa lenta escalada rumo ao topo que, de fato, não está

ocorrendo. Embora Halio (2005) comente que as ações de Edgar parecem cruéis,

argumentando que Edgar estaria fragilizando a confiança de Gloucester em seus próprios

sentidos remanescentes, sua intenção final é justamente mostrar como, pela representação

do que não existe, podemos ter a impressão daquilo que existe. Ora, esse truque resultará

na salvação de Gloucester, que está desesperado e só pode ser arrancado desse estado por

meio de um ato patético definitivo, como o de sua queda (fictícia), sua sobrevivência e o

pensamento da intervenção divina por meio de um milagre (Halio, 2005, pp. 217-8).

11-5 Eis o lugar … no abismo O efeito causado por essa descrição é o que Harry Levin chama

de “vertigo trágico”. O penhasco não é real, só existe na descrição de Edgar. Há

precedentes para a cena, como, por exemplo, a comédia Plutão, de Aristófanes, em que um

deus cego é ameaçado de ser lançado em um precipício, e a situação só se reverte quando

ele revela seu nome. A cena é, segundo Garber, um dispositivo cômico a serviço da

tragédia, que não a torna ridícula, mas a intensifica (Garber, 2008, p. 685).

16 perrexil! Erva-de-são-pedro ou herbe de Saint Pierre, perrixil, ou perrexil, uma planta

aromática que cresce ao longo de falésias e é normalmente consumida em saladas (Foakes,

1997, p. 327), colhidas por homens suspensos em cordas.

44 Ele cai Apenas presente em Q, a rubrica da queda de Gloucester pode ter sido omitida no

F por descuido (Foakes, 1997, p. 329). Alguns editores acrescentam que Gloucester se atira
e cai, ou indicam que Gloucester pula, a qualidade dessa queda podendo ser encenada de

modos diversos. Na perspectiva de Gloucester, a ação é desesperadamente séria, mas a

ausência do penhasco suscita um absurdo que muitas vezes é diminuído em algumas

produções (Wells, 2008, p. 232). Cf. Introdução para crítica da passagem, p. 55.

49 Está vivo ? morto?… Fale Edgar novamente troca de voz, cada vez mais se distanciando do
disfarce de Pobre Tom, agora usando “amigo” para se dirigir a Gloucester, expressão

presente apenas no F. No Q, a fala é em prosa (Halio, 2005, p. 220).

59 Tua vida é um milagre Edgar criou uma ficção e agora tenta convencer Gloucester de que

a queda de fato aconteceu, como se tivesse sido de tão alto, e a salvação, tão miraculosa,

que ele mesmo não percebeu.

82-4 Daqui em diante … e morra Gloucester agora aceita pacientemente sua aflição, até que

ela se gaste e acabe, uma mudança do desespero para a esperança.

87 ter pensamentos sãos e pacientes Paciência parece ser a característica mais necessária dos

personagens “bons” da peça e é uma virtude cristã.

87 Entra Lear enfurecido, coroado com flores silvestres Uma rubrica simples no F, mas com a

adição de mad (“louco, furioso”) no Q. A coroa falsa de Lear se relaciona com a coroa real

que usa no início da peça, transformando-o agora em um rei imerso no meio natural.

99 Chummk Assovio representando o som de uma flecha no ar.

101 Manjerona doce De acordo com o herbalista do período, John Gerard (1597), a

manjerona doce é um remédio contra doenças frias do cérebro e da cabeça, o que relaciona

a senha de Edgar à loucura de Lear (Foakes, 1997, p. 334).

138 cheira à mortalidade Cheiro de morte, da efemeridade ou da humanidade. Lear parece

reconhecer sua condição humana. Também pode ser relacionado a fétido (stench) da linha

136 (Foakes, 1997, pp. 336-7; Adelman, 1992, p. 113). Lembrando que a “humanidade”

de Lear — o seu corpo físico — está isolado, e não mais reunido ao corpo divino que ele,

como rei, deveria ter.

163-5 Quando o miserável … é obedecido A autoridade não se forma pelo valor, mas pelo

espírito do posto, que pode atribuí-la até a um cão. Foakes comenta que esse trecho marca

a grande mudança por que passou Lear desde o início da peça, em que ele era a imagem de

autoridade. No entanto, talvez Lear não se refira a si mesmo, mas muito mais à autoridade

do subalterno, do funcionário que se arroga um poder do qual ele é mero representante

(Foakes, p. 338).
180 Olhos de vidro Refere-se a óculos, pois ainda não existiam olhos postiços de vidro.

213-4 Se querem … aqui! A provocação de Lear se assemelha à de uma criança que brinca de

pegar.

256-7 Lutam Provavelmente, Edgar luta com um cajado e Oswald, com uma espada.

250-8 Vós, senhor … tuas estocadas Outro disfarce verbal de Edgar. Halio comenta que o

dialeto usado por Edgar é principalmente de Somersetshire. É mais possível que seja um

misto dialetal que deve soar rústico e cômico (Halio, p. 232). Buscamos recriar uma forma

dialetal imaginária na nossa tradução sem usar nenhum modelo específico.

ATO IV • CENA VII

Entram Cordélia, Kent, disfarçado, e fidalgo No F, essa cena deveria ser numerada IV.VI,

devido à omissão de IV.III. Cordélia talvez carregue cores e bandeiras da França para fazer

Lear pensar que está nesse país. Ela não está acompanhada de soldados, apenas de um

cavalheiro, que pode ser o mesmo da cena anterior.

16 as cordas estrídulas, dissonantes Cordélia usa a linguagem da música, que era considerada

medicamentosa para a melancolia e outros tormentos da alma, “afinando” as cordas da

mente. No capítulo “Music a Remedy” de Anatomy of Melancholy, Burton aceita o efeito

medicamentoso da música: “Mas, para deixar todos os discursos declamatórios em louvor

à música divina, eu me limitarei ao meu assunto: afora o poder excelente que possui para

expelir muitas outras doenças, é um remédio soberano contra o desespero e a melancolia e

é capaz de afastar o próprio demônio” (Burton, 1857, p. 334).

ATO V • CENA I

Nesta cena, o conflito entre as duas casas (de Goneril e Regan) se intensifica. Ao mesmo

tempo que se instala mais claramente a rivalidade entre as irmãs, aproxima-se o momento

da batalha que definirá a fortuna de todos. O exército francês está já pronto para o

combate, enquanto, no núcleo britânico, é clara a divisão interna. Regan questiona a

proximidade de Edmund e Goneril, que Edmund nega peremptoriamente. Ao entrar em

cena, Albany, indignado com o tratamento dispensado a Lear pelas filhas, deixa claro que

sua participação na batalha somente se justifica devido ao fato de o país estar sendo

invadido. Seu argumento revela a mesma ponderação que Goneril define como um aspecto

da pretensa covardia do marido. Em outras palavras, apesar de ele assumir a autoridade do


campo de batalha, está fazendo uma defesa de Lear e seu direito e, portanto, renovando sua

crítica à conduta das duas irmãs. Seu argumento parece impertinente para Regan, que

pergunta: “Por que essa discussão?” (V.1.29), como se não entendesse a sutileza da dupla

intenção de Albany de, ao mesmo tempo, reconhecer o direito de Lear e combater um

exército invasor. É Goneril, com sua virt ù viril, que imediatamente intervém para que o

grupo não caia em discussões e querelas “domésticas” e que se ponha logo em ação contra

um exército inimigo que se aproxima. Shakespeare faz coincidir o momento de conflito

interno do grupo — que prepara os crimes futuros que levarão à morte as duas irmãs — e o

conflito armado. No meio-tempo, Edgar, ainda disfarçado de mendigo, traz uma mensagem

para Albany, instruindo-o sobre como proceder caso saia vitorioso no embate. É uma

passagem particularmente interessante, pois traz alguma garantia a Edgar de que, em

qualquer situação, com a derrota ou a vitória de Cordélia, poderá agir sozinho. Ele próprio

diz que pode apresentar “um campeão que provará o que está escrito aí [na carta]”. A cena

terminará com a partida de Albany para a batalha e com o solilóquio de Edmund,

dramatizando sua situação de predileto das duas irmãs. Ele pensa não apenas em sua

escolha, mas também no modo mais hábil de dar cabo de Albany, usando, contudo, a

autoridade dele até o final da batalha. É importante relembrar que a autoridade está com

Albany e que Edmund, qualquer que seja o seu prestígio, é ainda o bastardo e apenas um

conde, inferior ao duque de Albany. Essa diferença estará no centro de várias discussões à

frente.

ATO V • CENA III

1-3 Que os oficiais … julgá-los Por ora, Edmund dá a impressão de seguir a lógica processual

reservada a prisioneiros nobres, sugerindo um julgamento equânime que será ministrado

por aqueles que o sentenciarão, em particular o próprio Albany, que, presentemente, detém

a autoridade maior.

3-7 Não somos … filhas? Cordélia, em contraste com Lear (como veremos adiante), tem plena

consciência da situação perigosa em que se encontram, demonstrando uma rigorosa e breve

compreensão de que de fato ambos “caíram no pior”. Evitamos na tradução traduzir “o

pior” por “desgraça”, “infortúnio” e similares, pois aqui o termo faz jogo com as

declarações de Edgar nos solilóquios, em que articula as variações worse, worst (“pior”, “o

pior”), que permitem a comparação entre os destinos. Por outro lado, incur (incorrer) de

fato aqui tem o sentido de “cair”, “ser vítima de”, mas com alguma ênfase recaindo sobre a

decisão moral da própria Cordélia. Ela diz, afinal, que sozinha afrontaria a fronte da

fortuna — do seu destino — com cabeça erguida. Mas ela não está sozinha, sua aflição está

toda voltada ao destino de seu pai. A abnegação de Cordélia, combinada com sua fortaleza,
assim como sua impressionante visão aguda do perigo em que se encontram, não será

compreendida pelo pai, que recai, agora sim, de novo em seu sonho fusional e escapista.

8-19 Não, não … da lua “Nessa fala comovente, que é profundamente irônica em relação ao

banimento de Lear de sua filha, Cordélia sozinha parece existir para Lear. Ele se isola

contra a realidade numa visão que é, ao mesmo tempo, autocentrada, absurda, patética e

uma renúncia ao poder. Como o final se aproxima, ele parece se isolar em si mesmo, não

mais consciente dos outros sofredores, ou preocupado com a justiça ou capaz de sentir o

que os desgraçados sentem” (Foakes, 1997, p. 365). Em outros termos, toda a experiência

de Lear no ermo, quando ocasionalmente toma consciência do sofrimento alheio, parece ter

sido desaprendida.

23 Por sobre estes sacrifícios A menção a sacrifícios é uma ironia trágica que se confirmará na

vitimação de Cordélia. Por ora, Lear se refere apenas à perda da liberdade dos dois e, em

particular, dela própria, que fez um esforço (sacrifício) real para salvar seu pai.

26 feito raposas A ideia provém da técnica utilizada para caçar raposas, usando fumaça para

expulsá-las de suas tocas.

30-8 Vem aqui, … avenhas sozinho Aqui, Edmund leva a efeito seu plano de eliminar Cordélia

(e Lear), contrariando sua fala anterior sobre a “intenção maior dos que irão julgá-los”

(V.III.2-3).

44-65 O senhor … um irmão Albany inicialmente louva Edmund por seu “valoroso esforço”

que levou à vitória dos exércitos da Bretanha. No entanto, seguindo a sua fina e bem

articulada distinção em V.I.21-8, que diferenciava o tratamento a Lear de uma guerra

contra um inimigo invasor, agora, após a batalha, ele se esforça em fazer justiça até mesmo

aos “nossos antagonistas”. O direito da guerra previa o julgamento justo e equânime dos

vencidos. Albany passa a representar a legalidade que se opõe ao modo tirânico de tratar o

antagonista. Cumpre assinalar que Albany não utiliza, para se referir a Cordélia e Lear, o

termo “inimigo” (enemy), mas “antagonistas” (opposites). A resposta de Edmund para o

seu pedido é evasiva e, como é comum em toda ação ilegítima e de caráter tirânico, ele traz

boas razões: seu medo de que o carisma e o prestígio da antiga figura monárquica

provoquem uma reviravolta nos sentimentos do exército britânico, levando os homens a se

voltar contra seus líderes (um temor tipicamente tirânico). Por fim, ele argumenta que não

há urgência e que, naquele momento, há homens feridos, pesarosos da perda dos

companheiros de combate, e que é mais aconselhável um lugar apropriado para a sessão de

julgamento dos antagonistas. A resposta adequada de Edmund seria a imediata entrega dos

prisioneiros a Albany, visto que seu título de conde (Earl) está abaixo do de Albany

(duque), e também porque, sendo um bastardo, ocupa simbolicamente um lugar sempre


frágil e vulnerável. Por isso Albany responde: “Co’a devida vênia: nessa guerra eu o tenho

mais como um súdito, não como um irmão”, sublinhando com o termo “súdito” (subject,

“súdito”, mas também “submetido”) que não há igualdade entre os dois e que cabe a

Edmund (Gloucester) obedecer, não construir argumentos diante de um nobre que agora,

com a morte de Cornwall e a situação de Lear, tem em suas mãos uma autoridade

equiparável à da realeza. Mais uma vez na peça, a hierarquia está sob ameaça, as posições

sociais e de casta oscilando consideravelmente. A tentativa inicial de Edmund de tentar um

caminho de dominância discursiva é, portanto, frustrada de imediato — e o que veremos

daqui em diante, na figura de Albany, é o contrário do “Manso marido” fantasiado por

Goneril algumas cenas antes.

66-89 Mas é … título é teu! Nem bem Albany diz a Edmund que ele está violando as regras de

obediência e da hierarquia, “mostrando-lhe o seu legítimo lugar” no plano hierárquico,

Regan proclama que o nome de “irmão” será dado por ela mesma ao bastardo Edmund,

por meio de uma graça. Ela ainda desafia Albany dizendo-lhe que ela deveria ter sido

consultada antes de ele dar um tratamento tão desprezível a Edmund. O que Regan propõe

é uma “promoção” (addition) a Edmund e, como veremos adiante, por proclamação.

Afinal, ele liderou as forças (o que é diverso de possuir a autoridade das forças) e foi

“empossado” por Regan, carregou a “comissão” ou a incumbência “provinda de minha

pessoa e posição”. Obviamente, o poder de Edmund na batalha é por procuração e

delegação provisória, não algo que emana de sua posição. Aqui, algo interessante acontece:

já que Regan afirma que o poder e a “promoção” de Edmund provêm de sua “graça”,

Goneril imediatamente reage, dizendo-lhe para ir mais devagar em suas afirmações (“Não

vai com tanto fogo”): ela diz que Edmund, “com a própria graça”, ou seja, com suas

próprias qualidades, se exalta e portanto dispensa a promoção de Regan. Elas competem

em quem louva melhor Edmund, lutando por sua posse, com o mesmo uso de palavras de

quando competiram na primeira cena para adquirir o favor do pai. Regan reforça sua

postulação em réplica ao desafio de Goneril: “Com os meus direitos, empossado por mim,

iguala-se aos melhores!”. No inglês, compeers é algo como “coparear”, “ser par de”,

pertencer ao mesmo estamento e à mesma classe. Ora, Regan se põe como a fonte da graça

de Edmund, mas Albany de imediato intervém dizendo, com ironia, concluindo logicamente

o que Regan propõe, que, para que ele se iguale a todos, ele teria de se tornar marido dela.

Ele completará que ela não tem em suas mãos essa permissão, chamando a autoridade para

si mesmo, pois ele tem grau mais alto de duque, sendo o único que pode de fato conceder

tais graças. Regan, já sentindo os primeiros efeitos do veneno ministrado por Goneril, ainda

numa última tentativa tenta proclamar Edmund seu igual no título: “Soa os tambores e

prova que meu título é teu”.


90-9 Espera, … contrato O que mais chama atenção na passagem é o domínio de Albany da

situação, o qual parece ter uma perspicácia (wit) que até então não se podia detectar com

clareza. Segundo ele, as pretensões de união de Regan com Edmund não são possíveis,

porque Goneril, sua esposa, já foi “subcontratada” para Edmund e, portanto, ele não pode

recair em contradição com esse fato, devendo contradizer o anúncio conubial de Regan. É

claro que Goneril, sempre aguda, vai dar um nome para essa cintilante encenação esperta

de Albany, dizendo: “Um interlúdio!” (Uma farsa!). “Um interlúdio ou farsa é

originalmente um entretenimento cômico encenado para preencher um intervalo de uma

peça mais longa” (Foakes, 1997, p. 371).

100-5 Estás armado, … proclamei Albany propõe um “duelo judicial” (trial by combat,

judicial duel), que tradicionalmente se inicia com as devidas liturgias, como o toque de uma

trombeta. Quando Albany pergunta se ninguém ali “surge pra provar na tua frente […]

tuas fartas traições”, está a seguir, obviamente, a legislação tácita de tais julgamentos.

Antes de tudo, acreditava-se que o duelo judicial tinha o beneplácito de Deus, que, em sua

suprema onisciência, na falta de provas no âmbito sublunar humano, faria ele próprio o

julgamento através do punho do vencedor (Janin, 2009, p. 17). Esse costume dificilmente

poderia ter a aprovação da teologia e não era mais do que um agregado de tradições pré-

cristãs que sobreviviam no âmbito do Medievo, inclusive às vezes praticado para acertar

diferenças entre monges nas ordens religiosas. Tais duelos, por óbvio, não eram usança nos

tempos de Shakespeare e eram vistos então como uma prática em desuso. O último desses

duelos ocorreu em 1446. O julgamento por meio de combate singular era usado no

Medievo em situações em que não se encontravam provas nem se tinha a confissão de

qualquer uma das partes, e em que as duas partes do contencioso trocavam acusações

mútuas sem que uma solução se apresentasse para o julgador. O mais notável duelo dessa

qualidade na obra de Shakespeare está nas primeiras cenas de Ricardo ii, peça

conscientemente medievalizante de Shakespeare. Apresenta-se ali o combate judicial, com

toda a sua liturgia, entre Mowbray e Bolingbroke, um embate que Ricardo II interrompe

misteriosamente quando ainda em andamento. O ato de jogar a luva ou a manopla no chão

constituía um sinal de desafio e vinha acompanhado da matéria de acusação, como é o caso

aqui, com Albany acusando Edmund de atos hediondos e traição. Surpreendentemente,

Albany está em pleno domínio da situação. Chama o mensageiro e finalmente informa

Edmund de que todos os soldados dele, “recrutados todos em meu nome”, foram

dispensados, ou seja, ele chama para si mesmo a autoridade com impressionante segurança.

Pede ao arauto que faça soar a trombeta e leia a nota.

126-7 Entra Edgar, em armadura Se a entrada de Edgar — como a catástrofe da comédia —

permite ao leitor sua identificação, graças à notação do nome da página, dificilmente sua

identificação é possível no teatro, pelo menos de modo imediato. Ele entra com capacete,
armado cavaleiro, e aproveita a impossibilidade de sua identificação para, mais uma vez,

usar do artifício do disfarce a seu favor. Ele diz que “seu nome está perdido”, mas enfatiza

que é nobre como seu adversário. Essa menção à perda do nome — o nome de aristocrata,

da linhagem — nos reporta ao processo transformacional de Edgar, que, ao se transfigurar

em Pobre Tom, dizia que “Edgar já não sou”, ciente da perda de sua essência, que não

pode ser distinguida do reconhecimento paterno e da sua posição. Agora, contudo, ele

aparece como a figura mítica lancelotiana que retorna, armado cavaleiro, para colocar o

mundo de volta em seu lugar. É impressionante, numa peça tão destrutiva e talvez mesmo

cética como Rei Lear, que o final esteja tão marcado pelo ideal medieval do cavaleiro que,

após sua longa jornada no mundo selvático, retorna para vingar os tortos e pôr de volta o

mundo em seu bom eixo. No entanto, trata-se mais uma vez do truque de Shakespeare de

operar em movimentos de ida e volta, oferecendo, de um lado, a desgraça, o infortúnio e a

morte, e mesmo uma visão caótica e pessimista do cosmo, e, de outro, cenas que seduzem o

público com suas promessas de correção da desordem cósmica, de redenções que são

abortadas e de milagres que não são de facto milagres verídicos. Mesmo assim, não

deixamos de aceitar neles certa veracidade! O clichê do cavaleiro medieval que retorna é

sem dúvida inconsistente com o pessimismo dessa tragédia, mas logo, com movimentos

bruscos, essas belas ilusões de reparação são frustradas pela morte de Cordélia.

Shakespeare dá saltos, nos faz experimentar os sentimentos mais diversos antes de

administrar o mais amargo de todos.

150-4 O mais sábio … da cavalaria Goneril dirá mais adiante que Edmund não precisaria

enfrentar um adversário que não se identificasse, cuja identidade ficasse velada. Sua

confiança e mesmo a sua audácia incomedida, contudo, o fazem se lançar irrefletidamente

no embate. O embate terminará em poucos segundos, quando Edmund é ferido

mortalmente.

164-5 Fecha essa … papel O papel, no caso, é a carta que Edgar havia tirado de Oswald

(morto), entregando-o depois a Albany. Naquela carta, escrita de modo relativamente

cifrado, endereçada a Edmund, Goneril sugere a possibilidade de assassinar Albany. Em

V.1.41, Edgar entrega a carta a Albany. Há diferenças consideráveis aqui entre Q e F

(Foakes, 1997, p. 376) com relação à atribuição de falas.

177 Façamos mútua caridade Como é sugerido por Foakes, há pouca caridade na fala

subsequente de Edgar. Ele acrescenta que “a alteração nele […] em relação à falta de seu

pai e sua compaixão por ele como um sofredor podem ser vistas como uma tentativa de

encontrar coerência moral naquilo que aconteceu com Gloucester” (Foakes, 1997, pp. 377-

8). Comentaremos isso na próxima nota.


181-4 Os deuses … próprios olhos Em V.III.177 Edgar propõe “trocar caridade” com

Edmund, numa clara mudança de tom em relação à figura piedosa que havíamos visto em

boa parte de sua atuação como Pobre Tom. Agora, retornando como nobre armado

cavaleiro, vingador, seu discurso súbito assume uma lógica retribucionista: se ele fala de

caridade, é para responder à máxima cristã do perdão, sobretudo diante de seu próprio

irmão, e para aparecer, diante dos outros e do próprio público, não como simples vingador,

mas vingador investido de princípios devotos para quem o ato supostamente vingativo deve

ser atenuado por demonstrações de piedade cristã. No entanto, ao lado da caridade ele não

esquece da lógica retribucionista que se reflete agora nas linhas 181-4, nas quais claramente

relaciona uma relação causal e divinamente construída com a justiça divina, que usa de

“nossos vícios prazerosos” para nos castigar. É, sem dúvida, cruel e chocante que ele, até

agora tão piedoso, diga que “o fosso negro e impuro onde ele te gerou custou-lhe os

próprios olhos”, uma associação direta entre o ato sexual “ilegítimo” — fosso negro (que

traduz sugestivamente “dark place”) — e o nascimento de Edmund, que levará o pai à

desgraça. Entretanto, o espetáculo que Edgar oferece aos presentes em cena, e que

Shakespeare oferece ao seu público, é o do justo vingador cristão, que retorna para

restabelecer a ordem no mundo e que, agora, na sua fala, parece dar também uma

explicação simples e atraente para a desgraça e os movimentos da desgraça que assolam a

peça. Na verdade, toda essa encenação de legitimação da vingança e do ato sangrento, com

sua fala “justa” que endossa concepções teológicas primitivas, é apenas mais uma das

muitas iscas “cristãs” usadas por Shakespeare, que mobilizam os sentimentos de seu

público, a essa altura sequioso de um ato definitivo que traga a ordem pela vingança,

reverberando o desígnio divino. No entanto, notaremos que mesmo aqui, como na cena de

reconciliação de Lear com Cordélia, e na cena do milagre da pretensa queda de Gloucester

junto aos imaginários penhascos de Dover, é um chamariz que por um instante (logo

frustrado) flerta com concepções simples de retribuição. Mas sua lógica não se limita à

estratégia estética de Shakespeare, que controla com ardil a recepção de um público

desejoso de uma restauração nesses termos fáceis e reconfortantes. A figura do cavaleiro

vingador, justo, caridoso, mas mesmo assim fechado com a ideia retribucionista de um

Deus que usa nossos vícios para nos castigar, dá especial legitimidade cristã ao seu ato e,

nesse sentido, longe de ver uma inverossimilhança em sua virada, podemos atribuí-la de

fato à necessidade de alocar sua ação na esfera do divino, recorrendo a uma interpretação

que Albany prontamente reconhece como justa, verdadeira e boa. O último Edgar ainda

encena, portanto, a “boa encenação” necessária quando o ato violento deve ser justificado

como se não fosse apenas um ato “individual”, mas submetido a uma vontade maior diante

da qual todos se curvam. Não raro, de fato, Shakespeare faz com que seus personagens

“encenem” sua posição de legitimidade diante de seus pares. Em Ricardo ii, na cena III.III

diante do castelo, onde um Ricardo derrotado e sitiado espera sua desgraça final, Boling-

broke, já com a vitória nas mãos, assume a persona provisória do súdito que se curva ao
rei, ainda que factualmente o rei esteja derrotado e o próprio Bolingbroke tenha o apoio

total da aristocracia rebelada. Essa encenação é fundamental, porque derrubar um rei não é

algo simples, e Bolingbroke opera cuidadosamente a “economia simbólica” que gira em

torno do poder divino dos reis. Diante de seus pares, ele sabe muito bem que deve evitar

qualquer erro nesse momento gradativo de derrubada de um rei legítimo, e que é preciso se

colocar ao lado da piedade para legitimar um ato que poderia ser interpretado como pura

usurpação.

193-211 Porque as cuidei, … explodiu sorrindo Diante da pergunta de Albany sobre como

Edgar ficou sabendo das misérias de seu pai, Edgar continua sua narrativa piedosa,

claramente construída para produzir comoção, ainda que a declaração de Edmund, logo

após a fala de Edgar (“Sua fala me comoveu”), não mereça grande crédito. Edgar fala como

filho piedoso e usa de toda a retórica possível para envolver os presentes e o próprio

público. Que ele tenha sido aquele que cuidou (“Porque as cuidei”) de seu pai e suas

misérias, ele não pode deixar de relembrar, pois sua autoapresentação é a da caritas: ele

livrou seu pai de um dos pecados mais perigosos, o desespero. Em outros termos, ele é um

agente da graça divina, ou pelo menos assim se figura, alguém que salva. Todos os detalhes

de sua piedade se apresentam através de exemplos comoventes. Ele o guiou, pediu esmolas

para ele, o salvou do desespero. No entanto, é de bom-tom, em discursos assim, evitar o

orgulho que pode advir da profissão dos bons atos, e por isso ele diz, numa declaração

patética — “oh, falta” — que foi um erro não ter se revelado ao seu pai, ter escondido sua

identidade. Agora, em sua mais nova encenação benéfica de vingador divino, braço da

justiça e de Deus, Edgar cuida de mostrar também suas faltas — que são, contudo, faltas

eficazes no âmbito do divino: mas ele deve cuidar de não se apresentar apenas como braço

guerreiro, militar, como força vingativa pessoal. A piedade deve estar envolvida em toda a

sua atuação como divinamente inspirada. No final de seu discurso, por fim descreve a

morte de seu pai, cujo coração explode sorridentemente, usando, portanto, uma imagem

típica da “morte venturosa”. Essa morte venturosa de Gloucester contrasta claramente com

a morte de Lear — mais ambivalente, problemática e menos ungida pelas colorações

benéficas que Edgar dá ao instante final de seu pai.

212-4 Sua fala … mais a dizer É pouco provável que Edmund de fato deva ser representado

como comovido e, portanto, “reformado” de seu estado anterior, mesmo que,

supostamente, mais adiante, ele tome a iniciativa de dizer do perigo em que Cordélia se

encontra.

218-31 Para aqueles … em transe Esse discurso de Edgar está ausente na edição Folio. Foakes

e outros críticos postulam que o discurso é dramaticamente desnecessário e “uma espécie de

anticlímax que se segue à narração de Edgar da morte de seu pai” (Foakes, 1997, p. 200). É

possível que sim, mesmo assim há grandiosidade em um discurso que nos informa também
da comoção do próprio Kent, que, súbito, identifica Edgar como a força que retorna para

reestruturar e corrigir o caos. A cena é de encontro, e Edgar sublinha perfeitamente a

anagnórise (reconhecimento) que produz uma emoção que quase mata Kent. Se

dramaticamente a descrição não é de grande valia, ela reforça com clareza a figura

justiceira e benéfica que Edgar quer apresentar nesse momento, agora narrando não apenas

aquilo que percebeu de si mesmo, mas o que outro personagem percebeu ao identificá-lo. O

testemunho da emoção de Kent ao encontrá-lo dá veracidade a tudo o que agora ocorre, ou

seja, o retorno piedoso, honesto, divinamente investido, de Edgar, ou que Edgar quer

transmitir. O testemunho da emoção de Kent, a história contada sobre Lear, reforça esse

entrelaçamento — e mais uma vez estamos diante da maestria retórica e política de Edgar.

243-4 O meu contrato … estão unidos Ou seja, no encontro nupcial da morte.

251-3 Oh, vultosa … espetáculo ? Quando Kent chega para dar “boa-noite” ao rei, Albany se

lembra de que essa “vultosa coisa”, a situação do rei e de Cordélia, foi esquecida por todos

ali. Foakes assinala que, por ocasião de uma encenação, ouviu o público rir nervosamente

ao escutar essa fala (Foakes, 1997, p. 383). Albany até aqui estava absorvido nas mortes,

assassinatos e teria esquecido o que era mais importante. A exclamação de Albany pode ter

duas explicações: uma intradramática, e nesse caso a explicamos como uma reação

“natural” à distração com o monarca e sua filha, e outra extradramática, e nesse caso

Shakespeare propositalmente faz Albany dizer algo que, mais uma vez, mistura o trágico

com o farsesco (ou similares), como faz diversas vezes na peça. É muito possível que essa

segunda alternativa deva ser considerada pelo menos em parte, pois a sequência de ações e

falas nessa cena é extremamente volátil. Basta lembrar a ironia de Albany com o

“subcontrato” de casamento de Goneril, o modo como a autoridade vira um centro tenso

de discussões (e, finalmente, a magistral encenação de Edgar como cavaleiro andante

vingador, braço de Deus) para entender que, de chofre, o desfecho final sugerido pela

aparição lancelotiana, justiceira e piedosa, não dá a palavra definitiva para a peça, e aqui a

transição de novo flerta com o risível. E justamente é a parte mais trágica, mais comovente

e também a mais repelente da peça, a da morte de Cordélia, que inicia aqui — com uma

frase que provoca algo como um riso nervoso.

258-62 Meu sopro … depressa! Cf. Introdução, p. 67.

273-343 Uivai, uivai, uivai Cf. Introdução, pp. 68-70.

318-22 Quanto a nós, … que merecida Albany ensaia uma devolução de poder a Lear antes de

sua morte. Como foi muito bem assinalado, contudo, a distribuição de distinções, nesse

último momento, para Kent e Edgar, soa absurda numa cena em que Cordélia jaz morta.
325 meu bobo enforcado! A crítica tende a interpretar essa expressão como se referindo a

Cordélia, a quem Lear se dirige com um termo carinhoso. Ao mesmo tempo, ao dizê-lo, ele

evoca o Bobo que desapareceu de cena, suscitando a imaginação de que também ele está

morto, produzindo assim um elo simbólico entre a sua filha predileta e seu companheiro de

andanças. Ainda em estado transtornado, de volta ao seu delírio, Lear pode estar

confundindo as duas criaturas mais amadas e fundindo-as em uma única perda.

325-31 E meu bobo … Ele morre. Os sobrescritos, usados na atual edição, pontuando as

últimas palavras de Lear, permitem ver as partes que são unicamente de Q ou de F.

Impressões diversas são produzidas por cada uma das edições, se lidas separadamente. Em

Q, o discurso de Lear termina com “Oooooo! Ooooo!”, ao passo que F possui ainda mais

dois versos (“Estão vendo isto? Olhem, olhem, é ela, os lábios, olhem: lá, lá.”). Se Q dá um

fim mais sinistro a Lear, no F a sua morte parece precedida por uma única visão, o que

levou Bradley a defender que Lear morre feliz, com a impressão de que Cordélia ainda está

viva. No entanto, toda e qualquer interpretação que se possa dar a esses dois versos não

será nada além de especulação. Nem se pode saber se ele passa da infelicidade para a

alegria antes de sua morte, nem se pode pensar o seu contrário — ou se ainda ele tem uma

espécie de visão divina da elevação de Cordélia. As notações teatrais nos faltam, e somos

obrigados a aceitar certa ambiguidade e polissemia, que, aliás, apenas dá continuidade a

um traço dramático do conjunto da peça. Mesmo assim, a sugestão no F de que ele

vislumbra algo no último momento, ainda que ilusório, é importante, porque revela a

ilusão de Lear e sua insistência em reencontrar um estado fusional com a filha, mesmo

perante a mudez da morte. Em tese, sua reação não é substancialmente diferente daquela

que teve quando os dois são presos e ele celebra o encontro irresponsavelmente, como se

houvesse alguma felicidade em estar preso, mesmo que com sua filha mais amada. Por fim,

numa peça de espiritualidade volátil em que Shakespeare está constantemente atraindo seu

público para imagens de resgate — para depois frustrá-las, e assim continuamente —, esse

último engano de Lear ganha significação especial: é o último ato de ilusão de um homem

cujo autoconhecimento não pode se realizar de todo.


Abreviações e referências

bibliográficas

EDIÇÕES ORIGINAIS DE REI LEAR REFERIDAS OU CONSULTADAS

Q1 Primeiro in-Quarto de Rei Lear: His True Chronicle Historie of the Life and

Death of King Lear and His Three Daughters. With the Unfortunate Life of

Edgar, Sonne and Heire to the Earle of Gloster, and His Sullen and Assumed

Humor of Tom of Bedlam. (1608)

Q2 Segundo in-Quarto de Rei Lear: M. William Shak-speare: His True Chronicle

Historie of the Life and Death of King Lear and His Three Daughters. With the

Unfortunate Life of Edgar, Sonne and Heire to the Earle of Gloster, and His

Sullen and Assumed Humor of Tom of Bedlam. (1619)

F1 Primeiro in-Folio de Rei Lear: The Tragedie of King Lear. In: Mr. William

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Charles Dickens

Grandes esperanças

Tradução de

PAULO HENRIQUES BRITTO

Introdução de

DAVID TROTTER

Notas de

CHARLOTTE MITCHELL

Se Charles John Huffman Dickens (1812-70) foi um escritor irônico e

contundente, com seu último romance provou ser capaz também de

ser contido e reflexivo. O livro mostra Dickens no auge da forma,

produzindo uma história de desilusão que mais tarde seria saudada

por autores como George Bernard Shaw e G. K. Chesterton pela

perfeição narrativa.

Grandes esperanças é uma história de redenção moral do

protagonista, Pip, um órfão criado rigidamente pela irmã num lar

humilde e disfuncional, que, após herdar inesperadamente uma

fortuna, rejeita a família e os amigos por se envergonhar da própria

origem.
Dividido em três partes, discutindo a bondade, a culpa e o desejo, o

romance originalmente foi escrito como um folhetim e tornou-se um

grande sucesso. Dickens toma o cuidado de não buscar a empatia fácil

com o leitor, fazendo de Pip um personagem sincero em sua

imoralidade e, quando se arrepende, na busca pela redenção. Mas

muitos detalhes da história simplesmente não se revelam totalmente,

deixando a impressão de que, assim como na vida, alguns mistérios

não podem ser resolvidos.


William Shakespeare

Júlio César
Tradução e notas de

JOSÉ FRANCISCO BOTELHO

Prefácio de

HAROLD BLOOM

Escrita e encenada pela primeira vez em 1599, Júlio César é a mais

famosa das tragédias romanas de Shakespeare e uma das obras que

tiveram melhor acolhida durante a vida do dramaturgo.

Ao recriar a morte do grande ditador no Senado, a peça oferece

algumas das melhores cenas da literatura, como o ardiloso discurso de

Antônio incitando a plebe à revolta e a briga e reconciliação de Cássio

e Bruto diante da notícia da morte de Pórcia, esposa do traidor.

Cuidadosamente traduzida e anotada pelo premiado José Francisco

Botelho, esta edição conta ainda com um prefácio de Harold Bloom

em que o crítico americano joga luz sobre a personagem de Bruto,

considerada por ele o primeiro intelectual shakespeariano.


William Shakespeare

Otelo
Tradução, introdução e notas de

LAWRENCE FLORES PEREIRA

Ensaio de

W. H. AUDEN

Em Veneza, Otelo, um general mouro a serviço do Estado, conquista

Desdêmona, uma jovem, filha de um nobre local. Após enfrentar a ira

do pai e defender-se com sucesso contra a acusação de tê-la

“enfeitiçado”, ele parte a Chipre em companhia da esposa para

combater o inimigo turco-otomano. Lá, seu alferes, o manipulador

Iago, consegue paulatinamente instilar na mente do mouro a suspeita

de que Desdêmona o traiu. Otelo é a tragédia em que Shakespeare

estudou os mecanismos da imaginação, da paixão e do ciúme.

Em nova tradução de Lawrence Flores Pereira, que recria a

linguagem grandiosa de Otelo e a prosa nefasta de Iago, esta nova

edição é acompanhada de uma longa introdução e notas contextuais

do tradutor, bem como de um ensaio de W. H. Auden.


William Shakespeare

Hamlet
Tradução, introdução e notas de

LAWRENCE FLORES PEREIRA

Ensaio de

T.S. ELIOT

Um jovem príncipe se reúne com o fantasma de seu pai, que alega que

seu próprio irmão, agora casado com sua viúva, o assassinou. O

príncipe cria um plano para testar a veracidade de tal acusação,

forjando uma brutal loucura para traçar sua vingança. Mas sua

aparente insanidade logo começa a causar estragos — para culpados e

inocentes.

Esta é a sinopse da tragédia de Shakespeare, agora em nova e

fluente tradução de Lawrence Flores Pereira. Mas a trama inventada

pelo dramaturgo inglês vai muito além disso: Hamlet é um dos

momentos mais altos da criação artística mundial, um retrato —

eletrizante e sempre contemporâneo — da vida emocional de um

Homo sapiens adulto.


William Shakespeare

Romeu e Julieta
Tradução e notas de

JOSÉ FRANCISCO BOTELHO

Introdução de

ADRIAN POOLE

Há muito tempo duas famílias banham em sangue as ruas de Verona.

Enquanto isso, na penumbra das madrugadas, ardem as brasas de um

amor secreto. Romeu, filho dos Montéquio, e Julieta, herdeira dos

Capuleto, desafiam a rixa familiar e sonham com um impossível

futuro, longe da violência e da loucura.

Romeu e Julieta é a primeira das grandes tragédias de William

Shakespeare, e essa nova tradução de José Francisco Botelho recria

com maestria o ritmo ao mesmo tempo frenético e melancólico do

texto shakespeariano. Contando também com um excelente ensaio

introdutório do especialista Adrian Poole, essa edição traz nova vida a

uma das mais emocionantes histórias de amor já contadas.


Copyright © 2020 by Penguin-Companhia das Letras

Copyright da introdução © 2020 by Lawrence Flores Pereira e Kathrin Holzermayr Rosenfield

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou

em vigor no Brasil em 2009.

Penguin and the associated logo and trade dress are registered and/or unregistered trademarks

of Penguin Books Limited and/or Penguin Group (USA) Inc. Used with permission.

Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (USA) Inc.

TÍTULO ORIGINAL

King Lear

PREPARAÇÃO

Mariana Delfini

REVISÃO

Fernando Nuno

Ana Maria Barbosa

ISBN 978-85-5451-793-9

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ S.A.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

04532-002 — São Paulo — SP

Telefone: (11) 3707-3500

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Otelo
Shakespeare, William
9788543808512
368 páginas

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A nova tradução de uma das obras mais populares do teatro.


Leitura imprescindível do maior dramaturgo de língua inglesa.
Em Veneza, Otelo, um general mouro a serviço do Estado,
conquista Desdêmona, uma jovem, filha de um nobre local. Após
enfrentar a ira do pai e defender-se com sucesso contra a acusação
de tê-la "enfeitiçado", ele parte a Chipre em companhia da esposa
para combater o inimigo turco-otomano. Lá, seu alferes, o
manipulador Iago, consegue paulatinamente instilar na mente do
mouro a suspeita de que Desdêmona o traiu.
Otelo é a tragédia em que Shakespeare estudou os mecanismos da
imaginação, da paixão e do ciúme. Em nova tradução de Lawrence
Flores Pereira, que recria a linguagem grandiosa de Otelo e a prosa
nefasta de Iago, esta nova edição é acompanhada de uma longa
introdução e notas contextuais do tradutor, bem como de um ensaio
de W. H. Auden.

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O jardim secreto
Burnett, Frances Hodgson
9788580865905
344 páginas

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Na célebre obra da inglesa Frances Hodgson Burnett, uma


garota solitária e seu primo tornam-se amigos ao descobrirem
um jardim cercado de mistérios.
Clássico da literatura inglesa, O jardim secreto conta a história de
duas crianças solitárias que decidem restaurar um jardim proibido,
cujo mistério remete a um acidente ocorrido anos atrás.
A amizade improvável entre os dois personagens funciona como
uma metáfora para a descoberta do mundo e para o
autoconhecimento.
Escrito em 1911, o livro já inspirou diversas montagens no teatro e
três filmes - entre eles, o longa americano homônimo de 1993,
dirigido pela polonesa Agnieszka Holland, vencedor do prêmio
Bafta.
Esta edição traz introdução e notas da romancista e crítica literária
Alison Lurie e um posfácio de Marise Soares Hansen, mestre em
literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Em seu texto,
ela traça paralelos do romance com autores importantes de
literatura de língua portuguesa, como Eça de Queiroz e Clarice
Lispector.
Durante a maior parte de sua vida profissional, Frances Hodgson
Burnett foi uma escritora de sucesso. Desde cedo sustentou a si
mesma (e a várias outras pessoas) com seus escritos. Suas peças
de teatro, contos para revistas e romances ajudaram a tirar a mãe e
as irmãs da pobreza. Sua carreira também pagou pela pós-
graduação em medicina do primeiro marido e garantiu ao segundo a
oportunidade de estrelar uma peça em Londres.

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Orlando
Woolf, Virginia
9788580869248
344 páginas

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Neste que é seu romance mais celebrado e popular, Virginia Woolf


concebeu um personagem emblemático, cuja complexidade marcou
para sempre a literatura universal. Nascido no seio de uma família
de boa posição em plena Inglaterra elisabetana, Orlando acorda
com um corpo feminino durante uma viagem à Turquia. Como é
dotado de imortalidade, sua trajetória então atravessa mais de três
séculos, ultrapassando as fronteiras físicas e emocionais entre os
gêneros masculino e feminino. Suas ambiguidades, temores,
esperanças, reflexões - tudo é observado com inteligência e
sensibilidade nesta narrativa que, publicada originalmente em 1928,
permanece como uma das mais fecundas discussões sobre a
sexualidade humana.
A um só tempo cômico e lírico, Orlando mostra o trajeto do
personagem entre embates com armas brancas, acalorados
debates filosóficos no século XVIII, a maternidade e até mesmo num
volante a bordo de um automóvel. Tudo isso vem costurado pela
prosa luminosa de Woolf nesta que é uma das grandes declarações
de amor da literatura ocidental. Esta edição inclui introdução e notas
de Sandra Gilbert, especialista em estudos de gênero e literatura
inglesa, e uma brilhante crônica-ensaio de Paulo Mendes Campos,
um dos grandes leitores brasileiros da obra de Virginia Woolf.

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Memórias póstumas de Brás Cubas
Assis, Machado de
9788543801636
368 páginas

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Em 1881, Machado de Assis lançou aquele que seria um divisor de


águas não só em sua obra, mas na literatura brasileira: Memórias
póstumas de Brás Cubas. Ao mesmo tempo em que marca a fase
mais madura do autor, o livro é considerado a transição do
romantismo para o realismo.
Num primeiro momento, a prosa fragmentária e livre de Memórias
póstumas, misturando elegância e abuso, refinamento e humor
negro, causou estranheza, inclusive entre a crítica. Com o tempo, no
entanto, o defunto autor que dedica sua obra ao verme que primeiro
roeu as frias carnes de seu cadáver tornou-se um dos personagens
mais populares da nossa literatura. Sua história, uma celebração do
nada que foi sua vida, foi transformada em filmes, peças e HQs, e
teve incontáveis edições no Brasil e no mundo, conquistando
admiradores que vão de Susan Sontag a Woody Allen.
Esta edição reproduz o prólogo do próprio autor à terceira edição do
livro, em que ele responde às dúvidas dos primeiros leitores. Traz
ainda prefácio de Hélio de Seixas Guimarães, professor livre-
docente na USP e pesquisador do CNPq, e estabelecimento de
texto e notas de Marta de Senna, cocriadora e editora da revista
eletrônica Machado de Assis em Linha, e Marcelo Diego,
pesquisador da obra de Machado na Universidade Princeton.

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Úrsula
Reis, Maria Firmina dos
9788554513139
224 páginas

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Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula é um dos


primeiros romances de autoria feminina escritos no Brasil.
Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida no Maranhão,
constrói uma narrativa ultrarromântica para falar das mazelas
sociais decorrentes da escravidão.

Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida


marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão
logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho
para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico
com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis
compõe Úrsula, um dos primeiros romances brasileiros de autoria
feminina, em 1859. Por dar voz e agência a personagens
escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-
brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos
inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema que
não lhes impõe limites. Com rica introdução e contextualização
histórica, esta edição de Úrsula celebra uma das autoras mais
importantes da literatura nacional e conta com estabelecimento de
texto e introdução de Maria Helena Pereira Toledo Machado e
cronologia de Flávio Gomes.
Leitura obrigatória do vestibular da UFRGS.

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