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Capa
Folha de rosto
Sumário
Rosenfield
Notas
Ricardo III, Otelo, Rei Lear, entre outras. Suas peças investigam,
Exausto, retornou à sua cidade natal por volta do ano de 1613, onde
da consciência do pós-guerra.1
Edmund Spenser, no qual aparece uma filha mais nova, Cordélia, que
aos genros que ele declara como “forças mais jovens” e mais aptas a
A DIVISÃO DO REINO
unificado, a seu filho Isaac, e não dera aos restantes apenas possessões
com essa ilha, pela divisão e transferência aos três filhos de Bruto,
patriarca.
Aquilo que Deus ligou, que homem algum o separe. Eu sou o esposo e toda a ilha é
minha esposa legítima. Eu sou a cabeça e ela é meu corpo. Eu sou o pastor e ela, meu
rebanho. Espero assim que nenhum homem seja tão insensato de pensar que eu, que sou
esposas.14
de 1608.
É fascinante imaginar Rei Lear, esse espetáculo de rebaixamento do
Essa questão está esboçada na primeira cena de Rei Lear, que nos
real.
King Leir, que foi encenada em 1594, única peça que, antes de Rei
precedida por uma cena em que Leir discute com seu seguidor
e evidente nas fontes que o autor de King Leir deve ter consultado
isso inventou essa cena de “portas fechadas” em que Leir consulta seu
uma reunião. Por certo há sinais da ansiedade de Leir, que diz que
“não pode descansar” até que saiba o tamanho do amor de suas filhas
por ele. A colocação é breve, mas tudo parece sob controle. É também
filhas, e filho que deve ser cuidado — inversão que leva Goneril e
(I.I.69-72)
Lear ditou esse jogo patético às filhas. Logo depois da declaração de
personagens:
LEAR Nada ?
CORDÉLIA Nada.
(I.I.87-93)
ser humano. Assim, quando afirma que não consegue “trazer aos
Lear não parece ter a sabedoria do bom monarca, que não se deixa
a virgem que ainda não concluiu seu noivado e que mostra com certa
régios têm preço e que Cordélia está sendo convocada a comprar sua
conto de fadas, por mais que a cena traga sugestões românticas dessa
monarca.
O grave intento de Lear parece estar embutido na sua sorrateira
reinar sobre as filhas, mantendo seu status nas casas para onde elas
fusional com o corpo materno implica que todo desejo será atendido
com a infertilidade.
que se perfilam aos poucos como fraqueza moral e política: afinal, ele
suas filhas, anuncia que vai se “despir” (divest) do manto real, dos
percebe que de fato perdeu tudo. Fazem parte desse mesmo jogo
Inglaterra.
Um segundo exemplo desse uso microscópico de palavras
Iago.
BOBO Então é igual o fôlego de um advogado que não ganhou honorários — não me
pagaram nada … (a Lear) E tu, titio, não sabes do nada fazer nada?
LEAR Claro que não, rapaz: não há nada que saia do nada.
(I.IV.129-33)
Quando Lear completa o diálogo repetindo a fórmula usada com
Cordélia, dizendo que “nada virá de nada”, o termo não é mais que
da tempestade. O Bobo ainda dirá que ele é “um bobo e tu, o zero do
com Pobre Tom, quando Lear constata com crueza que teria sido
num ato de humildade ele pede para beijar sua mão, ao que Lear
responde:
Shakespeare explora as oscilações entre ser e não ser, entre existir para
estar nu no mundo.
A DESTRUIÇÃO DA ORDEM
desejos que para Freud têm um papel tão importante na vida das
próprio Bobo, amargo, dirá a Lear que ele transformou “tuas filhas
quase censurando-o pela sua insensatez. Mas o rei já selou seu destino
ao investir Cornwall e Albany tanto do território antes destinado a
(I.I.131-40)
um outro que é fatal: como uma criança, ele acredita poder abdicar
claramente que Lear deve “conservar seu Estado” (seu governo e suas
“reserve thy state” (mantenha seu Estado), Kent diz “reverse thy
adúltera de Desdêmona.
fato já não existe mais); ainda não percebeu a nova realidade que
coisa diferente de um bobo, mas não gostaria de ser Lear: “O teu juízo
tu podaste dos dois lados e não ficou nada no meio”. E mais: “Valho
exigia dos filhos. Assim que assume o poder e o território que lhe foi
palavras, ela o faz entender da maneira mais hostil que ele não é nada
uma e outra filha, Lear não descobre seu erro, mas busca uma
contar nem mesmo com Regan, que o recebe com frieza. O que ele vê
agora é que Goneril e Regan são feitas de metal duro, frio e cortante.
entanto, Lear demora para se desfazer das ilusões e dos caprichos que
os que Lear esperava de sua filha Cordélia. As filhas mais velhas que,
são supérfluos para quem não tem mais força física e poder real.
criança rebelde:
(II.IV.143-6)
que Lear não quer ouvir. O longo discurso do rei destituído elabora o
humano, seja ele o mais pobre e miserável, que não recorra a alguns
(II.IV.54-6)
Tom. Essa fuga inicia com o troar de uma tempestade — Lear parece
ângulo: pelo ângulo da força pura e material, que pouco tem a ver
(I.II.1-22)
visão “das nações”, tem ao seu lado a deusa Natura, que presidiu ao
ato seminal. Ele rejeita a convenção preguiçosa das nações, que atrela
iniciativa e audácia.
hábito exerce.26
a condição que lhe foi imputada pelo mundo. Seu mundo é um jardim
shakespearianos.
Gloucester sente pelo seu filho Edmund e a relação com sua mãe. São
na corte.
sente que mais nada está garantido depois de o rei aniquilar seu poder
Essa política de reverência à idade só traz amargor aos melhores anos de nossa vida, veda
o acesso às posses que são nossas, até que, já envelhecidos, não podemos mais desfrutá-las.
Começo a ver uma servidão tola e vazia na opressão da vetusta tirania, que governa, não
pela força que tem, mas pelo que lhe toleram. Vem até mim, para que possa te falar mais
do assunto. Se nosso pai dormisse até que eu o acordasse, gozarias metade de suas rendas
famílias.
mundo”, que culpa os astros pelos próprios erros, e ele se alegra com
EDMUND Estou pensando, irmão, em uma predição que li um dia, dessas sobre o que
aberrações entre o filho e o pai, morte, fome, dissoluções de antigas amizades, divisões
banimento de amigos, dispersão das tropas, rupturas nupciais e sei lá o que mais!
primeira cena evidencia que ele mesmo fica muito aquém de sua
lhe responde “Por Juno”. Lear invoca deidades cruéis que brincam
seu filho — o filho bom que usa o ardil da imaginação para fingir um
Com certeza, as pessoas que tornam a sensualidade um hábito são muitas vezes difíceis de
influenciar e nunca são dirigidas pela eloquência da história. Portanto, relatarei exemplos
daquilo que Deus ou (para falar na linguagem deles) a Fortuna pode ensinar a eles sobre
Portanto, dentre os poderosos selecionarei os mais famosos, para que, quando os nossos
príncipes virem esses regentes, velhos e desgastados, prostrados pelo julgamento de Deus,
Aprendam os limites de sua alegre loucura, e, por meio do infortúnio alheio, possam
modelos doutrinários até seu limite, até seu lugar instável. Embora
como também ele volta a lembrar o filho injustiçado, tal como Lear
NATUREZA E ALTERIDADE
tanto por sua inteligência quanto pelo seu mérito moral: sua
(II.III.1-21)
pois tudo o que faz como Pobre Tom nos parecerá loucamente
no século XV. Ele não é apenas um louco, mas um ser fabuloso, uma
criatura misteriosa, que traz algo dos demônios (bons ou maus) que
sorte, e ele intervém na sorte dos outros com uma enigmática força
benéfica, quase diríamos eudaimônica, que traça limites ao domínio
Lear pergunta se o pobre coitado não foi também, como ele próprio,
certa razão e decoro: “Ele não tem filhas, senhor”. Pobre Tom aparece
“os mendigos mais baixos nas coisas mais pobres têm supérfluos”,
diante de si.
Um homem sem comodidades é apenas um mísero animal desnudo, um bicho bípede como
tu. Fora, fora com esses trapos emprestados. Vem, desabotoa aqui. (rasgando suas roupas
[…]).
(III.IV.111-4)
intempéries. Ele é uma coisa, uma presa inerte, talvez um verme, nu,
consequências.
Pobre Tom […] Tom tá com frio”. Mas em tudo o que diz cintilam
Um servidor, de mente e coração ufano, que cacheava os cabelos, prendia luvas na boina,
servia à lascívia do coração de minha dama, e com ela cometi aquilo que se faz na
escuridão. Fiz tantas juras quanto proferi palavras, e as quebrei todas perante a doce face
do céu. Era aquele que dormia excogitando luxúrias e acordava para executá-las. Grande
amante do vinho, terno amigo dos dados. E, no tocante às mulheres, de longe superei o
turco: coração falso, ouvido leviano, mão sanguinária. Um porco na indolência, raposa na
astúcia, lobo na cobiça, na fúria um cão, na rapina um leão. Não deixes que o rangido dos
sapatos nem o frufru das sedas entreguem teu pobre coração a uma mulher. Mantém os
pés longe dos bordéis, as mãos fora dos saiotes, tua pena longe dos livros do usurário, e
vai e afronta o malino imundo. O vento frio ainda tá soprando por entre o pirliteiro. […]
(III.IV.86-102)
traiçoeiros em carrascos.
transgressão. Tal como Pobre Tom, ele está fora e dentro do mundo,
Mas o que é loucura (tolo) no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é
fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil
humana.
paradoxal.
social.37
cortes do rei francês, o rex fabarum, o rei das favas era entronado
“carnavalização”.
que, num dado momento, serão transpostas para o teatro, numa série
inversões estonteantes. O juízo está com o Bobo, e Lear cada vez mais
delírio, certa agudeza viva o faz ver que a dureza dos agentes dos reis
novos métodos, não deixa ele próprio de descobrir nas suas virtudes
(IV.VI.163-81)
elege seus juízes: o pobre e insano Pobre Tom, que é descrito como um
justiça deve ser feita, ela não passa de um arremedo entre três
CINISMO E FEROCIDADE
valores invertidos. Gloucester fala com seu filho Edmund, dizendo que
nefanda de seu irmão que fez com que ele buscasse a morte do seu pai,
reprovável do pai”.
Goneril.
CORNWALL (a Goneril) Dirija-se com diligência ao lorde seu marido. Mostre-lhe esta
(III.VII.1-5)
que Lear foi levado a Dover para se unir a um exército aliado, a fúria
exato instante em que seu senhor está pronto para arrancar o segundo
(III.VII.72-3)
Um ato humano, sem dúvida, mas o apelo aos deuses que antecede
algo, porém não nos dá a prova. Mas o evento se impõe pelo menos
crimes.
acesso algum a uma aparição divina indubitável que surja à clara luz.
SUICÍDIO E SALVAÇÃO
salvo dessa impiedade por seu filho Edgar. Não é mera coincidência
(IV.I.1-4)
como um milagre.
imaginação e da ficção.
de ficções eficazes.
GLOUCESTER Quando chegarei ao topo do penhasco ?
EDGAR Nós já estamos subindo. Não sente o esforço ?
GLOUCESTER A mim me parece plano.
EDGAR Terrivelmente
íngreme.
[...]
E me sugar no abismo.
(IV.VI.1-25)
frisson irônico que talvez, de fato, seja para nós similar ao efeito do
aparentemente contraditórias.
o amor de Edgar prepara para seu pai (e para o público), não deixam
(IV.VI.53-9)
da sua elevação. O pescador lhe diz para olhar para cima. A expressão
tragédia.
Tomando o cego pela mão, levou-o para fora do povoado e, cuspindo-lhe nos olhos e
disse: “Vejo pessoas como se fossem árvores andando”. Em seguida, ele colocou
novamente as mãos sobre os olhos do cego, que viu distintamente e ficou restabelecido e
para além do mundo físico, e assim seu gesto coincide com a visão
Gloucester sente por Pobre Tom e pelas percepções que Edgar tem de
A descrição de Edgar do penhasco de Dover possui uma densidade visual que não é
aparente em mais nenhum outro lugar da peça: uma densidade criada em grande parte pela
serem vistas”. E, na verdade, a nossa visão não nos serve aqui de guia. Confrontados com
o palco plano e habituados a acreditar em Shakespeare quando ele nos diz onde estamos,
vemos o penhasco como o faz Gloucester, com os nossos ouvidos; mas a suspeita de
Gloucester de que o terreno é plano, combinada à nossa relutância em crer que Edgar
permitiria ao seu pai se suicidar, irá simultaneamente fazer-nos suspeitar dos nossos modos
normais de visão de palco. Enquanto Gloucester se prepara para pular, o status incerto do
também é invisível para nós, mas ainda assim vividamente presente para ambos. A
realidade do penhasco se torna mais suspeita quando Edgar nos diz, pouco antes da
despedida, que ele está brincando com o desespero de seu pai para curá-lo; mas não
quando Edgar nos permite ver claramente com ele, pela primeira vez na cena. O penhasco
é fictício; o palco plano é realmente plano; podemos confiar em nossos olhos e ter certeza
de que Gloucester não está morto. Mas somos imediatamente roubados dessa certeza da
percepção à medida que Edgar percebe com crescente medo o perigo de brincar com o
desespero.41
retorno do amor filial depois da dupla traição. Não com uma guinada
de Edgar.
RETORNO E RESGATE
uma carta que informa sobre Lear. A cena, aliás, prepara a próxima,
Ele afirma que sua reação não foi de ira, mas de extrema piedade. O
[…] O senhor
(IV.III.18-25)
decidida a reverter a sorte de seu pai, que, segundo a notícia que lhe
Santos segredos,
(IV.IV.16-9)
segui-la no resgate de seu pai. São as lágrimas que permitem aos olhos
tudo isso está ali para evocar algo que é da ordem da santidade. Essa
lágrimas.
teatral da cena dos penhascos de Dover, mas dessa vez sem qualquer
(IV.VII.47-50)
(IV.VII.51-73)
nem abole a inversão das posições entre pai e filho, nem o traz de
(V.III.3-21)
Cordélia encapsula numa frase seu destino: “Por ti, rei oprimido, eu
alguma obscura torre, onde ela sabe ser mais vulnerável. Lear,
de Lear:
Não podemos ao final nos distanciar [das consequências do ato “masculino” de Lear]
muros da prisão — derivam dos primeiros momentos da formação do eu, mesmo antes de
recusa de Cordélia de ser tudo para seu pai, eu compartilho com Lear — e com
Shakespeare — o estrato de desejo que a traz de volta só para ele; e na medida em que
compartilho do desejo de ambos, não posso me abrigar na raiva que me permitiria fazer da
sua necessidade algo alheio, isolando-a no masculino. Pois eu também habito o terror da
dor da separação; eu também anseio pelo retorno dela. E, se é assim, então eu participo
com eles na destruição do eu livre de Cordélia; filha, assim como filhos requerem esse
seja cobrada pela própria peça, de forma que o peso do desastre final
teu pai”.
(V.III.258-61)
perverso. Ele sabe bem demais que não haverá tempo para salvar
Cordélia e assim apenas anuncia sua morte — ao que parece, para ter
de fazer ver aqui seu último e mais sarcástico artifício. Ele não mudou.
Ele se felicita de ter sido amado por Goneril e Regan, e ainda mais se
E depois se matou.
(V.III.254-6)
entrada de Lear com Cordélia em seus braços, cena que foi chamada
trágica do final.
Tragam um espelho.
(V.III.277-9)
ironia trágica.
(V.III.281-3)
(V.III.286-91)
E mesmo quando percebe que sua filha está morta, ele busca refúgio
na negação:
(V.III.237-8)
(V.III.329-30)
justos? O que interessa aqui é que nada disso de fato acontece. Como
dizer o contrário.
Shakespeare por ter permitido que sua Cordélia sofresse esse tipo
cândida Cordélia numa luz mais sóbria, ainda que nossa admiração
Lear.
Nota sobre o texto
Rei Lear possui três versões publicadas no século XVII que são
que estão ausentes em F1, ao passo que F1 possui 115 linhas que estão
nos dois textos, assim como passagens, nem sempre longas, que foram
é diferente.
A atual tradução baseia-se da edição Arden, estabelecida por
Wells.
textos. Nosso método nessa consulta tinha por objetivo muito mais
interessam ao editor de língua inglesa. Isso não quer dizer que tais
cada vez mais austeras. Essas mudanças, muitas vezes bruscas, são
controlado para mostrar alguma regularidade, mas ao mesmo tempo ele é seguido de
modo não tão servil a ponto de se reduzir a uma batida monótona. De algum modo, as
falas são como uma conversação cuidadosa; cada palavra é escolhida para dar o efeito
mais pleno, mas mesmo assim o ritmo das linhas mantém o movimento das palavras
Os discursos do primeiro Otelo carregam esse senso elegante de crescendo retórico que, na
na seguinte passagem:
(I.III.135-43)
4, 7) certa regularidade, mas às vezes caindo na irregularidade com acentos na 5a, 9a e 12a
sílabas (verso 1), na 7a e na 12a (verso 5), e na 4a e 12a sílabas (verso 6). Essa
irregular em seu pentâmetro iâmbico. Por outro lado, ela atenua o potencial automatismo
andamento solene e preparam o caminho para o zênite enfático sobre as “agras penhas,
pedras, cumes que arranham os céus”. Vale observar os jogos aliterativos, assonantes e
súbito, substituída por “cume”. A sinonímia ecoa como uma continuação da lógica
repetitiva que se fazia por meio de sinonímias e aliterações, mas agora se manifesta apenas
de Otelo e também sua tendência hiperbólica, muito bem assinalada por Iago.
Ao mesmo tempo, esses elementos estão encaixados no tempo de cada verso. Cada qual
traz uma unidade semântica enquadrada no verso (end-stropped verse), mas que, na
totalidade do discurso, é rompida por uma ou outra expansão sobre o verso seguinte
lexemas específicos do original, assim como das suas peculiaridades sintáticas, diminuindo
Edgar:
a 7a sílabas:
|
Sua tétrica labu (ta) colhendo o perrexil!
Colhendo o perrexil!
12a sílabas:
dos dodecassílabos:
cenas desta peça. Lear ele próprio fala várias línguas: a linguagem
semelhante é usado por Edgar como Pobre Tom, que fala, contudo,
majoritariamente em prosa, num discurso iterativo, louco, uma
também rápidos retornos a ele. Não são rupturas gratuitas, mas ali
estão para sugerir o registro em prosa poética que não deve estar
tradução.
um understatement:
Be thou desired,
A personagem usa a passiva para dizer que ela própria vai diminuir
será ela mesma. Embora sua intenção já esteja clara, por meio da
discursos das duas irmãs. Quando Regan, por sua vez, profere sua
eulogia, nota-se que sua fala está igualmente marcada pela intensidade
retórica e métrica.
VERSOS E CANÇÕES
Rei Lear possui também uma variedade de versos populares, baladas,
pelo Bobo como por Pobre Tom, que são um desafio à tradução. A
O reino de Albion
Esse caso, por exemplo, imita o sabor sonoro dos enigmas da poesia
esse procedimento:
EDGAR Ouvi o meu nome denunciado, e no oco
com nós,
decassílabo.
PROSA
louco de Bedlam, ele alterna para o verso. Essa mudança coloca sua
caráter: ele passa de nobre caído que relembra sua lascívia pecaminosa
pecados e a possesso que fala dos demônios que o possuem; ele ainda
expressivo.
dramática.
mais miserável dos seres, sendo, além disso, louco e possuído pelo
nesta passagem:
errambula até o primeiro cocoricó. Ele traz a catarata, dá vesgueira no olho e acarreta o
“Obidicut”.
o termo será usado por Samuel Harsnett, não para definir uma
também Tricafutrica, das mogigandas e dos esgares, que ultimamente tem possuído as
AGRADECIMENTOS
Rei da FRANÇA
Duque de BORGONHA
Duque de CORNWALL
Duque de ALBANY
Conde de GLOUCESTER
Conde de KENT
O BOBO de Lear
MENSAGEIRO
CENA I
a cada um.
o pejo.
tão perfeito.
FSaem.F
De Vossa Majestade.
FLEAR Nada?
CORDÉLIA Nada.F
CORDÉLIA O senhor
BORGONHA Majestade,
Levá-la ou deixá-la?
235 Que me alegra não ter — inda que por não tê-los
Perdi sua estima.
Sozinha já é um dote.
De Borgonha.
terá
Edmund e seguidores.
Então, adeus.
280
Vosso mestre que vos acolheu como esmola
em se conhecer.
rompantes.
Saem.
Ato I
CENA II
Entra Gloucester.
50 governa, não pela força que tem, mas pelo que lhe
a jurar que sim; mas, com o que tem aí, ficaria contente
devida convicção.
FSai.F
Entra Edgar.
135 gemendo que nem o Tom Louco. — Oh, sim, esses eclipses
desses eclipses.
150 último?
Sai Edgar.
Sai.
Ato I
CENA III
seu bobo?
Saem.
Ato I
CENA IV
Te encontre bem-disposto.
acompanhantes.
Sai Cavaleiro 1.
KENT Meu ofício é ser nada menos que pareço; servir com
lealdade
quanto o rei.
KENT Serviço.
KENT Ao senhor.
LEAR E o que é?
KENT A autoridade.
KENT Senhor, nem tão jovem para amar uma mulher por
seu canto, nem tão velho que me apegue a ela por uma
Sai Cavaleiro 2.
Entra Oswald.
FSai.F
LEAR Que foi que esse sujeito disse? Chamem o imbecil de volta.
Sai Cavaleiro 3.
está dormindo?
Entra Cavaleiro 3.
CAVAL. 3 Ele diz, senhor, que sua filha não está passando bem.
maneira
55
bem desenvolta.
onde está meu bobo? Faz dois dias que não o vejo!
LEAR Basta disso, já havia notado. Vai e diz à minha filha que
Sai Cavaleiro 3.
Sai Cavaleiro 4.
FEntra Oswald.F
perdão.
(batendo nele)
(dá-lhe dinheiro)
Entra o Bobo.
terceira — se vais segui-lo, então vais ter sim que vestir esse
105 chapelão. (a Lear) Titio, como é que vai a vida? Ah, bem
LEAR Sim…
LEAR Claro que não, rapaz: não há nada que saia do nada.
BOBO (a Kent) Faz favor? Diz a ele que isso é tudo que vai
135 ganhar arrendando as terras: ele não vai acreditar num bobo.
um bobo meigo?
Um aqui, já fantasiado,
150 nascença.
KENT Isso não é de todo bobo, senhor.
E macaqueios de simão.
(canta)
queria ser tu, titio. O teu juízo tu podaste dos dois lados
Entra Goneril.
LEAR Que foi, minha filha? Por que essa cara sisuda?
GONERIL Senhor,
200
Nessas balbúrdias toscas e intoleráveis.
Entra Albany.
QAh, senhor,
Preparem os cavalos!
Cavaleiro sai.
Oh, ingratidão,
Típico da caducidade.
FSai.F
(ao Bobo) E tu, mais canalha que bobo, segue teu amo!
FSai.F
FEntra Oswald.F
Sai Oswald.
Saem.
Ato I
CENA V
Sai.
10 BOBO Então te alegra: teu juízo não vai nunca calçar chinelos.
BOBO Tu vais ver que tua filha te tratará de um jeito bem filial,
BOBO Que ela vai ter sabor tão parecido quanto a brava é
meio da cara?
20 LEAR Não.
25 LEAR Não.
BOBO Eu também não. Mas sei por que é que o caracol tem
uma casa.
estojo.
sete
Entra um cavalheiro.
Sai.
Ato II
CENA I
meu senhor.
FSai.F
Entra Edgar.
Pensa bem.
FSai Edgar.F
Já vi bêbados
disparam)
Te fazer buscá-los?”.
FFloreio do interior.F
Eu não estarei.
Um serviço de filho.
disso,
Te queremos conosco.
Saem. Clarinada.
Ato II
CENA II
KENT Sim.
(bate nele)
Gloucester e séquito.
40
EDMUND Mas o que está acontecendo aqui? Solta!
Pavão pachola!
nenhuma reverência?
KENT Tenho, senhor, mas a raiva tem seus privilégios.
Na minha frente.
que o fosse.
Me atacou novamente.
Vamos te ensinar.
Em seu mensageiro.
160 GLOUCESTER O duque tem culpa aqui. Isso vai ser malvisto.
Sai.
KENT Bom rei, tens de aprovar o comum ditado:
Acobertado curso:
Dorme.
Ato II
CENA III
Entra Edgar.
Sai.
Ato II
CENA IV
Nenhuma de partir.
BOBO Ha, ha, olha só, ele tá com a braga nos coturnos! Cavalo
LEAR (a Kent) Mas quem foi que ignorou assim tua posição
E te prendeu aqui?
LEAR Não.
KENT Sim.
15
LEAR Eu digo não.
Sai.
poucos?
65
BOBO Vamos te mandar pra escola da formiga, pra que
aprendas
E dá os ares de leal
Te larga ao temporal;
Um homem são.
Sai.
De deformidades.
Entra Oswald.
Fora, lacaio!
Entra Goneril.
barbas?
E tampouco acolher.
Entra Gloucester.
300 GLOUCESTER Mandou vir os cavalos. Não sei pra onde vai.
lo.
305 Se vê um arbusto.
CENA I
Saem.
Ato III
CENA II
25 BOBO Quem tem casa pra meter a cuca, tem uma boa
carapuça.
35 no espelho.
40
um bobo.
KENT (a Lear) Inda aqui, senhor? Nem seres que amam a noite
(ao Bobo) Vem cá, meu menino. Estás bem? Estás com frio?
LEAR É verdade, menino. (a Kent) Vem, nos leva até essa choça.
90 O reino de Albion
Sai.F
Ato III
CENA III
Sai.
Sai.
Ato III
CENA IV
FAinda a tempestade.F
Chega, chega.
Sai Bobo.
Socorro!
Tom.
Aparece!
FAinda a tempestade.F
avergonhado.
Pousou o periquito
80 e loucos.
FAinda a tempestade.F
105 LEARQ Quê!Q Estarias bem melhor num túmulo que expondo
115 BOBO Por favor, titio, sossega. É uma noite terrível para fazer
130
KENT Como está Vossa Graça?
quieto, capeta!
de Modo e de Mahu.
(FAinda a tempestade.F)
180
(a Edgar) Nobre filósofo, sua companhia.
KENT Vem,
Saem.
Ato III
CENA V
seu irmão que fez com que ele buscasse a morte do seu
confirmação
tivesse detectado.
Gloucester.
Saem.
Ato III
CENA VI
Sai Gloucester.
diabo-imundo!
10 ou um plebeu?
antes dele.
Dorme.
Entra Gloucester.
Esconda-se, esconda.Q
Sai.
Ato III
CENA VII
Gloucester.
Entra Oswald.
Sai Oswald.
Saem servidores.
Nada acintoso.
De coração neutro.
REGAN E impostura!
Suportar o ataque!
Fere Cornwall.
escravo!
Morre.
CORNWALL Deixe, vou cuidar pra que não veja mais. Saia,
fareje
100 Na esterqueira.
importar
Tom
É capaz de tudo.
Saem.Q
Ato IV
CENA I
Te ferir.
VELHO É, senhor.
FSai.F
divas
FSaem.F
Ato IV
CENA II
Ousares te arriscar.
(Dá-lhe um presente.)
FSai.F
QSai.Q
FEntra Albany.F
Entra um mensageiro.
viúva
Q Sai.Q
MENSAGEIRO Sim,
100
ALBANY Gloucester, eu vivo pra te agradecer o amor
Saem.
Ato IV
CENA III
do motivo?
urgente e necessário.
10 de dor?
15 Tentava dominá-la.
FIDALGO Não.
Saem.Q
Ato IV
CENA IV
soldados.
Sai oficial.
Entra mensageiro.
E o ouvirei.
Saem.
Ato IV
CENA V
castelo?
O caminho é perigoso.
Saem.
Ato IV
CENA VI
EDGARTerrivelmente íngreme.
25 E me sugar no abismo.
É para curá-lo.
Amigo, adeus.
QEle cai.Q
O seu pensar.
Quem é o senhor?
100 a senha!
LEAR Passa…
olhando
LEAR Lê.
LEAR Oh, oh, será que você está aqui comigo? Nem olhos
Razão na loucura!
Vai ter que ser correndo. FAqui.. qui, qui, qui, aqui!F
Sai fidalgo.
230
GLOUCESTER Ó deuses sempre bons, roubai-me o ar da vida,
Entra Oswald.
Oswald cai.
QMorre.Q
FLê a carta.F
Consciência de si mesma.
Tambor ao longe.
Entra Edgar.
Saem.
Ato IV
CENA VII
À tua reverência!
Majestade?
De minha condição.
FIDALGO Ouvi dizer que Edgar, o filho que ele baniu, está
bem, senhor.
Sai.
Sai.Q
Ato V
CENA I
soldados.
último
Sai o fidalgo.
Sai.
GONERIL Não.
E eu ressurgirei.
Sai.
Entra Edmund.
Sai.
Sai.
Ato V
CENA II
Sai Edgar.
FGLOUCESTER É, é verdade.
Saem.F
Ato V
CENA III
LEAR Não, não. Vem, vamos pra prisão. Nós dois sozinhos
Ou te avenhas sozinho.
feliz!
Como descrevi.
Saem.
corneteiro.
E nossa segurança.
De tua promoção.
teu!
FGONERIL Um interlúdio!
FEntra um mensageiro.F
Já foram dispensados.
FTrombeta soa.F
E lê o seguinte:
FArauto lê.F
sua defesa.”
FPrimeiro toque.F
FSegundo toque.F
Mais um!
FTerceiro toque.F
Ao apelo da trombeta.
ALBANY Monstro!
Controle-a.
Eu te perdoo!
Ouvindo isso.
ALBANY Quem?
Entra Kent.
E depois se matou.
Entregue-a ao capitão.
Sai o fidalgo.
LEAR És bem-vindo.
Morreram em desespero.
Apresentarmos a ele.
Entra um mensageiro.
EDGAR Sim, totalmente.
325 LEAR E meu bobo, enforcado! Não, não, não — sem vida!
Ele morre.F
335
KENT Não perturbe sua alma. Oh, deixe-o ir embora.
(a Edgar e Kent)
FINIS
Notas
INTRODUÇÃO
1 Ver Jan Kott, 2003; Maynard Mack, 2013; Marjorie Garber, 2008.
2 É conhecida a associação de Jan Kott entre o teatro do absurdo e Rei Lear e, apesar dos
anacronismos, ela é estimulante para entender as técnicas usadas por Shakespeare nesta
6 Shakespeare muito possivelmente leu uma história que é narrada em primeira pessoa pelo
W. Brownlow, 1993.
introdução.
13 James Shapiro, 2015. Apoio-me aqui nos comentários de Shapiro. James, coroado rei da
Inglaterra, era também rei da Escócia. Deveria agora, sob sua cabeça duplamente coroada,
buscar a unificação dos dois em um único reino. Mas logo descobre que a ratificação da
união entre os dois reinos dependeria de longas e cansativas negociações. Quatro dias
depois de sua recepção festiva em Londres, diante do primeiro Parlamento, o rei evocou
Henrique VII. Tratava-se do rei pacificador da dinastia Tudor, que, matando Ricardo III, o
último rei yorkista, em Bosworth Field, deu fim às guerras entre as casas de Lancaster e de
York. Ele era o “unificador” a alertar os seus súditos sobre os perigos da fragmentação.
15 Ver Thomas Norton, 1565; Thomas Norton e Thomas Sackville Dorset, 2018.
16 Não há uma palavra final sobre a autoria de Rei Leir, que foi atribuída diversamente a
Robert Greene, Thomas Kyd, George Peele, Thomas Lodge, Anthony Munday e ao próprio
Shakespeare.
18 Estamos cientes de que darker purpose também pode significar “propósito oculto” e não
revelado ainda, mas a escolha da palavra, bem como sua combinação com outras ironias
trágicas, como “rastejar rumo à morte”, permite uma compreensão mais ampla do uso do
termo.
22 Sobre os problemas políticos relativos à concepção política dupla do poder entre corpo
físico e corpo divino, ver Ernst H. Kantorowicz, 1997; sobre a concepção do direito divino
23 O estudo das variações textuais de Q1 e F1 é longo, mas aconselho a leitura de duas obras
que trazem visões diversas sobre o assunto, sublinhando a importância do livro de Erne,
que se afasta da visão desintegracionista dos textos da peça: Gary Taylor e Michael
Chris Laoutaris, 2008. A doença foi objeto do livro contemporâneo de Edward Jorden, A
Brief Discourse of a Disease Called the Mother, considerado o primeiro livro inglês sobre a
histeria, de 1603.
27 Para uma interpretação da cena de deposição de Ricardo II, ver Kantorowicz, op. cit., p.
24.
28 As concepções sobre os traços bíblicos e providenciais em Rei Lear trazem visões opostas.
Elton, com erudição, mostra os elementos pagãos (William R. Elton, 2015). A questão final
está em qualquer lugar entre essas duas visões e deve ser imaginada como um recurso
29 Exemplo disso é o comentário de Leir de que suas filhas são “the kindest Gyrles in
Christen dome” [as mais gentis meninas da cristandade]. Cordila também diz ao rei que às
vezes “eu vou ajudar-te em tuas sagradas orações,/ E pensar que eu estou contigo no
Paraíso”. Os exemplos dessa cristianização da antiga lenda estão em toda a peça e revelam
alguns desses elementos, ele o faz com parcimônia, mantendo em Cordélia algum elemento
de fortaleza e coragem que não são tão ostensivamente cristãos. É importante assinalar aqui
que era uma tendência das adaptações dramáticas do período santificar e cristianizar todos
(1580).
30 Ver Paul Budra, 2000; Régis Augustus Bars Closel, 2013. Interessante no livro de Paul
séculos até chegar à muito lida obra A Mirror for Magistrates. Budra está ciente de que o
gênero sofre transformações de uma literatura sem fins estéticos de caráter admoestativo
para uma literatura que nitidamente flerta com a identificação trágica entre o leitor e os
compreensível, portanto, que tanto a empatia como a crítica possam se conjugar nas obras
Bedlam” com a loucura. Para as relações entre o manicômio de Bethlem e o teatro, ver
33 O primeiro bobo a atuar em Rei Lear foi Robert Armin. Ele não era só um bobo
profissional, mas também o autor de A Nest of Ninnies, livro em que se encontram várias
anedotas sobre seus ancestrais na profissão histriônica de bobo cortesão (Robert Armin,
1842). No livro, ele conta a história do renomado jester de Henrique VIII, Will Sommers,
que, certa vez, na corte, recebeu seu tio, um homem simples, aldeão, que é descrito com
seus sapatos empoeirados e vestes carcomidas chegando à corte para fazer visita ao
sobrinho, o próprio Summers. Depois de um diálogo pitoresco entre os dois, o bobo decide
levá-lo à presença do rei, não sem antes vestir o rústico tio com sua fatiota de bobo. Ao
chegar diante do rei, ele diz a Henrique VIII: “Oh, Harry! […] este é meu tio: dá boas-
vindas a ele. Muito bem, disse o rei, ele é bem-vindo. Harry, (Summers) diz, escuta uma
história que vou te contar e eu te farei rico e o meu tio ficará rico graças a ti. Will
(Summers) diz ao rei que Terrils Frith tinha sido cercada. Tirrels Frith, retruca o rei, mas o
que é isso? Ora, é a charneca onde nasci, chamada de Terrils Frith: agora um cavalheiro
com esse nome fez o cercamento do lugar inteiro, fazendo o povo achar que tudo é dele,
pois o lugar tirou o nome dele. E, Harry, os pobres estão num grande lamento e todo o
rebanho do povo foi desfeito, sem que tu socorras essa gente. E o que devo fazer?, diz o rei.
Ora, disse Will, chama o bispo de Hereford; ele é um grande homem com (nome de) Terril:
diz para ele colocar o Frith (a paz) em liberdade novamente, que está preso por causa dele.
E como vou ficar rico com isso?, diz o rei. Os pobres vão rezar por ti, diz Will; e tu serás
rico no céu, pois aqui na terra tu já estás muito rico. Tudo isso foi feito, e o tio de Will foi
para casa, o qual, enquanto viveu, graças a essa ação, foi investido do título de bailio do
comum, o que trazia vinte pounds por ano”. A relação íntima entre o rei e o seu bobo já
está aqui, seu direito à licença, à familiaridade com o rei, bem como o gosto pelo jogo de
palavras. A linguagem que Armin dá aos seus bobos, em seu anedotário, traz semelhanças
estilísticas com as falas do Bobo em Rei Lear. Não é difícil suspeitar de que houve uma
“colaboração” intensa entre Shakespeare e o histrião teatral, ainda que, sem dúvida, Shake-
speare, esse imitador-mor, não teria dificuldade de arremedá-lo; afinal, a lista de bobos,
que serviram de fonte à peça —, Shakespeare tempera o trágico com o cômico e o grotesco.
francês), mas o sentido está mais próximo de “tolo”, “tolice”, “o que é tolo”, o que é
insensato e assim por diante, não havendo sentido “médico” imediato em grego. O
complexo semântico riquíssimo na Primeira Modernidade e no Renascimento relaciona
palavra madness para a loucura mental verídica. No entanto, a tradição medieval legou o
termo fol, que varia entre “tolice”, “loucura” e “folia” (carnavalesca) e que permitiu o
36 Ver Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, 1987; Erich Auerbach, 1971; Bakhtin, 1984.
39 Id., ibid., p. 123. Algumas dessas práticas continentais arribaram na Inglaterra e ganharam
espaço na corte inglesa, e já em 1277 havia um king of the minstrels na corte de Edward I.
Unreason [abade da desrazão] e um Prince des Sots [príncipe dos tolos] na França — mas
natalino para presidir a Festa dos Bobos. Estas foram eternizadas por Pieter Bruegel no
quadro Festa dos bobos e pertenciam a esse fenômeno mais geral descrito por Bakhtin. Tais
narrativas “arquetípicas”, tal como assinala Maynard Mack, que evoca a tradição do
42 Para retomar o mote “Shakespeare, pai da psicanálise”, cabe assinalar como essas
antecipam o refinamento psicológico e analítico que o século XIX leva ao auge. Ver as
novelas de Tolstói e Dostoiévski, além do agudo ensaio de Coetzee (J. M. Coetzee, 1992).
ATO I • CENA I
1-32 Diálogo entre Gloucester, Kent e Edmund Na peça anônima da década de 1590
intitulada The True Chronicle History of King Leir, and His Three Daughters, Gonorill,
Ragan and Cordella, inexistia o enredo paralelo que traz a história de Gloucester e seus
Philip Sidney (1590), para escrever o segundo enredo da sua peça. A narrativa conta a
história do rei da Paflagônia, que tem dois filhos, um legítimo e outro ilegítimo. Shake-
speare adotou esse segundo enredo por suas semelhanças (evidentes) e diferenças em
relação à história de Lear. É uma história de devoção e traição ao pai, como é o caso da
história do próprio Lear. Mas, diferentemente das antigas versões do velho rei britânico, a
filho”. Edmund está ao lado e escuta as brincadeiras apimentadas do pai, que ostenta seus
13-6 Senhor … falta aqui ? Ainda que que o termo “falta” (fault) seja dito de modo jocoso,
esse é o primeiro aparecimento de uma noção de falta, pecado e erro que domina a peça.
Essa noção não raro vem associada, como no caso dos discursos de imprecação de Lear
contra suas duas filhas, Goneril e Regan, à sexualidade e a declarações chulas e misóginas.
simplesmente bastard, ou seja, “bastardo”. Esse uso revela a interligação que o público
Fontes do primeiro enredo A história do velho rei britânico era antiga e se origina de
antigas histórias folclóricas que não necessariamente traziam o nome do velho rei. Dentre
as histórias folclóricas correntes, havia uma lenda chamada de sugar and salt (“sal e
açúcar”), uma história com diversas variantes na Europa. Conta como um dia um pai
perguntou às suas duas filhas o que é a coisa mais doce do mundo. A primeira filha
responde que é o açúcar, mas, quando a segunda responde que é o sal, o pai a expulsa de
sua casa. A filha então vaga pela floresta até que encontra um príncipe que se apaixona por
ela. Os dois decidem se casar. Sem que ela saiba, seu pai é convidado para o casamento, ela
pede que todos os pratos sejam preparados sem sal. Quando o banquete está pronto, um
dos convivas diz que não há sal na carne… e o pai então exclama: “Realmente, o sal é a
coisa mais doce do mundo, embora, por ter dito isso, eu tenha expulsado minha filha por
nada, e nunca mais a verei”. Então a noiva se apresenta para o seu pai e o abraça e beija.
No entanto, é a história mítica de Lear, o velho rei em declínio que divide seu reino entre
suas filhas, que pode ter impactado a obra de Shakespeare possivelmente por meio do
corpus da história britânica na Historia Regum Britanniae [História dos reis da Bretanha],
outra fonte de Rei Lear, e também no Mirror for Magistrates, que traz uma versão da
Monmouth (c. 1135) e a de Holinshed (1587), surpreendem por sua brevidade. Não
ocupam mais que duas páginas. É difícil pensar como uma narrativa lendária tão breve e
formulaica, de cunho folclórico, possa ter impactado o teor de uma peça teatral complexa
como Rei Lear. A narrativa de Holinshed, na prática, reformula com variações sutis a
lugar para essa velha lenda em sua obra. Lear ali é um rei primitivo, pré-cristão e pré-
veterotestamentários.
O caráter lendário dessas narrativas salta aos olhos quando as comparamos às partes
mais obviamente “históricas” de Holinshed. Não há nada na história de Leir que lembre os
complexos complôs que aparecem nas proezas e conflitos dos plantagenetas, dos reis
yorkinos e lancasterianos, reinantes em tempos menos obscuros que Lear. Essas histórias
sem que falte até o colorido descritivo das figuras reais. Já na lenda de Lear, tal como a
nada dessa extensão e detalhismo, sendo apenas lenda a reivindicar o prestígio da crônica.
Em linhas gerais, a narrativa de Geoffrey de Monmouth não discrepa de tantas outras que
se seguirão. Centra-se no dilema de um soberano que não teve filhos herdeiros, mas apenas
três filhas, Gonorilla, Regau e Cordeilla. Já velho, Lear decide dividir o reino entre elas,
conferindo um pedaço do seu reino ao governo de seus maridos. O patriarca também pensa
em submetê-las a um teste que consiste em lhes perguntar qual é o tamanho do amor que
nutrem por ele, para que assim, na divisão solene, ele possa entregar a parte mais rica do
reino àquela filha que declarar um amor maior. As duas primeiras filhas pronunciam com
ênfase seu amor, mas Cordeilla diz, enigmática, que seu amor possui o tamanho daquilo
que Lear possui e também do seu valor, equiparando seu amor ao valor do outro, em vez
afeto prometendo que não encontrará para ela um par ideal e honroso. A sorte de Cordeilla
mudará, tempos depois, quando Aganippus, “rei dos francos”, solicita a Lear o direito de
se casar com Cordeilla, ao que Lear responde que ele o confere, porém sem conceder
nenhum dote.
Gonorilla pede a Lear que reduza sua escolta a trinta homens, os restantes devendo ser
dispensados. Lear foge da companhia do duque e de Gonorilla, buscando a ajuda da
segunda filha, Regau, e de seu esposo Henuinus, duque da Cornualha. Apesar de ter uma
boa recepção, a discórdia se instala entre as duas famílias. Regan assim ordena ao pai
dispensar seus acompanhantes e ficar apenas com cinco homens. Desta forma, Lear retorna
à casa de sua filha Gonerilla, mas, uma vez lá, mesmo ela o critica, afirmando que o desejo
dele de vanglória não combina com sua idade e pobreza. Ela o força a se adaptar à nova
condição, ordenando-lhe diminuir seu séquito para apenas um homem. No estilo dos
perda da antiga grandeza e finalmente caindo em um estado miserável. É essa reflexão que
o leva a procurar na Gália sua filha mais nova, Cordeilla. Ele viaja para a Gália num
veleiro. Ao entrar no veleiro, descobre que recebeu um terceiro lugar no barco entre os
príncipes que também faziam a viagem e, humilhado pelo rebaixamento, lança um longo
lamento de sua perda de admiração e poder. “Ó irreversíveis decretos das moiras, que
nunca desviam de seu curso definido! Por que me levaram à inconstante felicidade, já que a
punição de uma alegria perdida é maior que a sensação da miséria presente?” (Monmouth,
1842, p. 35.) Ao chegar a Karitia, onde está sua filha, Lear é um miserável, esfomeado e nu,
reinvestido de seu séquito. Finalmente recebe o apoio da filha e de Aganippus, que envia
oficiais por toda a Gália para juntar um exército para restaurar “o poder de seu sogro no
reino da Bretanha” (p. 37). A restauração de fato se dá, ele alcança a vitória e morre três
anos depois de sua restauração. A história continuará com Cordeilla assumindo o poder
depois da morte de Aganippus. Ao modo das grandes sagas, contudo, o ciclo de vinganças e
divisões continuará. Cordeilla é levada ao suicídio muitos anos depois, após ser aprisionada
Lear é coetâneo do reino de Joás em Judá. A cena da divisão do reino é também precedida
pelo teste de amor, a doação de partes do reino para Gonorilla e Regan e a recusa de dar o
mesmo para Cordeilla. Em Holinshed, o teste de amor de Lear precede à divisão do reino e
não resulta ali numa mensuração das dimensões das terras divididas. Ao contrário, o
objetivo é de fato encontrar aquela filha que o substituiria no trono. No entanto, com a
resposta das filhas, ele procede com a divisão, mantendo seu séquito. Os duques, maridos
de suas duas filhas, se insurgirão somente mais tarde contra o antigo rei, tomando-lhe as
veleiro para a Gália à procura do conforto de sua filha Cordeilla. Ao saber do estado do
onde é recebido honrosamente por seu “filho” Aganippus e por sua filha (p. 447). Quando
estes descobrem as injúrias cometidas por seus outros filhos, Aganippus prepara um
de sua vida dignificado. Há sem dúvida interessantes diferenças no modo como a ação de
Cordélia ocorre, quando da fuga de Lear para a Gália. Geoffrey de Monmouth apresenta a
amorosa Cordélia que será resgatada por Shakespeare e pelo autor anônimo da peça The
True Chronicle History of King Leir, publicada em 1605 e que também será uma fonte
importante para Rei Lear. O detalhe do banho, das roupas e da alimentação que são
possível que a versão de Geoffrey de Monmouth tenha deixado mais marcas, mas
possivelmente por vias indiretas. Nenhum aspecto, contudo, chama mais atenção, nessas
versões, do que a restauração do poder de Lear, promovida por Cordélia e seu marido, rei
(aparentemente) redentor em tragédia. Seria, por outro lado, errôneo pensar que tais
e em Holinshed termina com uma aparente conciliação. O nexo histórico dessas histórias só
pode ser compreendido na duração mais longa. Se o reinado de Leir ali é restaurado de
fato, a história dos conflitos de sangue, das rivalidades, vinganças, não cessa nem em
da própria Cordeilla, que, mais tarde, será vítima ela própria dos herdeiros de suas duas
[…] e então, perto do fim daqueles cinco anos, seus dois sobrinhos Margan e Cunedag,
filhos de suas sobreditas irmãs, desdenhando ficar sob o governo de uma mulher,
capturaram, e a enclausuraram, onde ficou tão aflita, sendo uma mulher de coragem
máscula, e desesperada por rever sua liberdade, que lá se matou, quando já havia
A ordem dada por Edmund para que Cordélia seja morta, na peça de Shakespeare,
portanto, subverte o plano original das duas principais narrativas pseudo-históricas. Mais
de 1590, é o suicídio de Cordélia, que é evitado, numa adaptação aos princípios da piedade
cristã. O fato de Shakespeare ter evitado o tema do suicídio em sua peça se deve à
consideráveis entre a versão do in-Quarto (Q) e a do in-Folio (F) (Cf. nota sobre o texto, p.
73). A atual versão está baseada na edição de Foakes, que funde Q e F, tendo por base,
contudo, o texto do in-Folio (F). A tese revisionista acerca das duas versões de Rei Lear
postula que teria havido uma revisão do texto entre a publicação de Q e F, alguns
defendendo em particular uma revisão autoral pelo próprio Shakespeare. Com relação à
passagem, contudo, há sinais e cortes de verso na versão Q que fazem pensar de fato que há
um texto anterior a Q que trazia as partes omitidas ou suprimidas nele. Como se trata do
primeiro discurso de Lear, é possível que algumas das diferenças e (supostos) cortes sejam
do frontispício da edição Q, que seu texto foi encenado “diante de Sua Majestade o rei em
Whitehall na noite de Santo Estêvão nos dias sacros natalinos”, é possível explicar o
numa situação em que há a presença do rei. O período da publicação de Rei Lear coincidiu,
inadequado para o início de uma cena. Mesmo assim, essa hipótese interpretativa é frágil,
visto que na peça inteira reverbera o fracasso de Lear como rei. De modo geral, as
relação entre o ato de Lear e sua renúncia ao poder. Ele diz no Q que quer “sacudir todos
os cuidados e negócios de nosso Estado”, ao passo que no F ele diz “sacudir todos os
faltante que inicia com “enquanto, Sem fardos” (while we) e termina com “Se previnam
agora” (prevented now), pois, ali, novamente Lear se refere à sua condição nova, de
homem velho e impotente, que “rasteja rumo à morte”. Pelo menos nesse primeiro
discurso, na edição Q, não fica evidente que a divisão do reino será feita de fato. Nessa
mesma edição, ele diz que vai “confirmar” os cuidados do Estado aos “anos mais jovens”
(àqueles que são jovens, e não velhos e fracos), ao passo que no F ele diz que vai “conferir”
os mesmos cuidados e negócios “às forças mais jovens”. Em outros termos, se no F Lear
parece de fato prometer entregar o poder para os mais fortes, liberando um velho de um
trabalho árduo de governança, em Q ele o entrega apenas para os mais jovens: a ênfase
36 grave intento Literalmente, “mais escura” (darker). A expressão aqui tem acentos graves e
até ominosos, mas pode ser compreendido também como “obscuro”, aquilo que ainda não
foi revelado.
40-5 enquanto … previnam agora Passagem presente apenas na edição F e ausente em Q.
Foakes assinala a ironia trágica implícita na ideia de Lear de que a publicação dos dotes das
filhas e de seus consortes, em vez de prevenir futuras divisões e embates, acabará por
precipitá-los. A ação de Lear de dividir o reino, nas concepções políticas do período, era
vista como perigosa. Podia semear o grão da discórdia e da divisão e trazia, para as eras
elisabetana e jacobina, a lembrança recente das lutas fratricidas entre as casas de York e de
Lancaster, período que veio a ser chamado de Guerras das Rosas. Por outro lado, a própria
distribuição de terras que Lear fará, por mais que não seja contestada em sua legalidade
durante a cena, deve ter sido percebida como imprudente. No entanto, durante o reinado
Tudor (e Stuart), ela era tida por ilegal. “A rainha Elizabeth buscou o orientação de seu
conselho sobre se ela poderia transmitir propriedades, e seu conselho lhe recomendou que
qualquer propriedade, quer viesse por transmissão de herança de ancestrais régios ou ainda
de outras fontes, deveria ser vista como parte do régio Estado, e não como pertencente ao
“propriedade” monárquica era defendida com base na doutrina dos dois corpos do rei, o
físico e o político, uma distinção que, segundo Ernst H. Kantorowicz (1997), preparava o
49 nos despir do mando “Despir” aqui traduz divest (etimologicamente, desvestir). O uso
mais insistentes da peça. No seu processo de queda e declínio, Lear se identificará cada vez
55-76 As declarações de amor de Goneril e Regan Embora Kent sugira que os discursos de
Goneril e Regan sejam vazios de sentido, e nisso está certo, tanto formalismo não
etiqueta e formalidade. Ainda que Lear as predisponha à adulação com sua pergunta sobre
sua estima (amor) para com o pai, os discursos delas poderiam soar como um
e Regan não precisam ser apresentadas como meras aduladoras, mas mais como mulheres
casadas que, com seus maridos aristocráticos, adaptaram-se à corte e a suas convenções”
sutileza, uma aparência que poderia ser (e às vezes tinha de ser) calculada com cuidado. A
modos indiretos de tratamento que evitam a verdade e que são próprios do agir cortesão.
Na cena II.II, Cornwall descreve Kent criticando os que na sua sinceridade (plainness)
acabam carregando mais astúcia e mais fins corruptos do que aqueles que seguem as regras
Shakespeare, mas não há dúvida de que ele sugere certa hipocrisia na atitude
93 meus laços O termo sugere o “elo” contratual entre pai e filha, a obrigação filial e a
ligação de afeição “natural”. Cordélia, ao contrário das irmãs, coloca limites no termo
“amor” (love), que agora se desvencilha de suas conotações mais amorosas e afetuosas para
96-104 O senhor …o meu pai Se, por um lado, a passagem se assemelha à de Desdêmona nas
primeiras cenas de Otelo, há diferenças importantes, pois Cordélia ainda não se casou e,
longe de estar diante de uma decisão crucial, deve apenas mostrar sua “estima” ao pai,
fazer o jogo de aparências que se espera na corte. Cordélia lê a palavra “amor” (love) de
modo literal: ela entende como o elo de fidelidade e obediência — relação entre o patriarca
e sua filha que é necessariamente hierárquica —, e não no sentido “cortesão” que Regan e
talvez o nobre a obter meus votos levará consigo parte do meu amor, de meu zelo e dever”.
111 Hécate Os ritos secretos da deusa que esteve associada às regiões infernais, mas também
à feitiçaria e à noite.
112 operação … celestes Primeira aparição do tema “astrológico” e a relação entre destino
humano e operação celeste, aqui na forma de repúdio e rejeição de uma filha. O tema
menção de Gloucester, dentro do seu modus escatológico, aos “últimos eclipses do Sol e da
Lua” que trazem a destruição da estabilidade hierárquica e dos elos naturais de fidelidade
entre as partes. Aparecerá também na ironia que Edmund, um cético cínico, reserva à
“escapada” de seu pai na linguagem fatalista da astrologia, com a qual, segundo Edmund,
118 aquele que … repasto Referência aos canibais que devoram seus próprios filhos.
130 Que o orgulho … espose! Visto que Cordélia não aceita o ritual que Lear propõe e
responde com uma franqueza pouco vantajosa, Lear vê na sua “franqueza” (plainness)
muito mais um sinal de orgulho. Há recorrências em Rei Lear dessa oposição entre
franqueza rude (bluntness) e um outro comportamento mais cordial que se esquiva de falar
tende a nos atrair a um sentimento de simpatia tanto por Cordélia quanto por Kent (como
personagens justos, leais e constantes), há na peça tanto a falta de tato cortesão de Cordélia
como certa superfetação de sinceridade de Kent em II.II (aliás, comentada com cínica
131 Eu vos invisto Dois termos são usados por Lear: “investir” (invest) e “desvestir” (divest).
Ele vai, em 1.1.49, “desvestir-se” (divest) do poder, e agora ele vai “investir” (invest) seus
genros com o seu poder e com todos os efeitos que acompanham a majestade (de um rei). A
do poder é em geral uma perda de poder de fato, que normalmente se traduz na possessão
da terra, como é o caso aqui de Lear, que entrega a governança régia aos genros. Em
Ricardo ii, com o retorno do rei à Inglaterra, Ricardo II beija a terra inglesa e espera que,
como uma mãe benfazeja, ela se vingue de Bolingbroke e seus aliados que, a cada instante,
abocanham, em seu avanço, partes das terras do reino. A ironia daquela peça é que, desde
política, à noção de direito divino dos reis — para ele, não apenas uma ficção jurídica, mas
uma potência atuante que, a despeito da ação do monarca, irá agir em seu favor, varrendo
Shakespeare: um rei sem terra é um rei a perigo, e iludiu-se aquele príncipe que se amparou
na miragem do direito para sustentar seu mando e subjugar seus súditos. Ora, malgrado as
diferenças notáveis entre Rei Lear e Ricardo ii, em ambos os casos a terra é o centro do
133-9 Quanto a nós … São vossos Lear utiliza o plural majestático. Geralmente considerada
como, no mínimo, uma imprudência, a promulgação de Lear de que terá direitos reservados
agora, novos monarcas — pode muito bem ser um sinal de falta de prudência e mesmo de
incompreensão do modus operandi do poder. Nas eras Tudor e Stuart, os nobres se faziam
acompanhar de séquitos, sendo uma comitiva de servos e guardas com funções diversas
para servirem às necessidades do mestre: de cozinheiros e camareiros a mensageiros, ao
“noivo do banquinho” (groom of the stool), ao guarda-mor do rei. No caso de Lear, é uma
comitiva de cem cavaleiros para servir tanto de guarda pessoal quanto de companhia. O
pedido de Lear de manter o nome e o título de rei, renunciando ao poder e à sua execução,
146 Se Lear estiver louco Kent não quer dizer que vê Lear em um simples estado de loucura
ou insanidade, como de fato será o de Lear mais tarde, mas que ele está agindo como um
néscio.
162 Apolo A menção a deuses pagãos como Apolo, em Rei Lear, responde à pretensa
incongruência de usar nomes gregos ou latinos para os deuses da Bretanha pré-romana não
historicidade da história/ lenda de Lear, com seus contornos que foram inseridos na
historiografia da época medieval, era tão distante que, no imaginário do período, pertencia
a uma variação do mundo pagão. Por outro lado, os vocativos aos diversos deuses às vezes
trazem acentos parecidos com os vocativos do deus cristão, trazendo acentos teológicos
importantes. Em 1606, o Parlamento aprovou um Ato de Restrição aos Abusos dos atores,
que determinava que “nenhuma pessoa […] em qualquer peça encenada, interlúdio,
exibição, nas folganças de março (Maygames) ou em desfiles aparatosos deve dizer ou usar
lei.
frequência no delírio ciumento de Otelo, por exemplo. O rei da França, assim, com
nobreza, vê desproporção na rejeição de Lear a Cordélia, na qual ele não detecta nenhum
crime “monstruoso” que mereceria tamanha condenação. O termo surge aqui para ser
negado em relação a Cordélia, mas, ao longo da peça, um dos grandes temas de Lear, na
sua loucura e delírio, será associar a traição das duas filhas mais velhas à sua animalidade
253 tão rica sendo pobre O rei da França recorre ao paradoxo bíblico relacionado a Cristo
(2Cor 6:10): “como nada tendo, embora tudo possuamos!”. A riqueza da pobreza é um
tema cristão comum nessas peças, mas o modo retórico e poético da formulação reforça
aqui uma tópica comum na peça, a da “pobre riqueza” e da “rica pobreza” e que associa a
ser lançado no ermo junto com Pobre Tom (um vagrant, andarilho), encontrará a
transfiguração que o levará também a se lembrar dos (pobres) que ele, durante seu reinado,
deixou de cuidar.
291-302 Já viste … cólera trazem consigo Os comentários de Regan sobre o caráter de Lear,
ditos agora em prosa, embora não se lhes possa dar total confiança, revelam seu
ressentimento com Lear e com seu caráter e conduta ríspida no passado, além da
caso, revela um vício de conduta que se enxertou no seu caráter e não pode ser facilmente
corrigido. Por outro lado, o diálogo sugere uma justificativa (parca, é verdade) para parte
ATO I • CENA II
Segunda cena e a segunda “trama” da peça Com a entrada agora de Edmund em cena e,
logo depois, de Gloucester e Edgar, inicia-se a segunda trama da peça, centrada na família
de Gloucester.
Fontes principais da segunda trama Não há nada mais impressionante do que a decisão de
de seus dois filhos, Edgar e Edmund. Shakespeare foi buscar este segundo enredo na
segundo livro da Arcadia, de Philip Sidney (1590). A presença de nomes diversos não
esconde a similaridade dos enredos. Na história de Sidney, o rei da Paflagônia possui dois
filhos, um legítimo e outro ilegítimo, cujos traços gerais são similares aos da peça de
de seu nascimento. Ele consegue convencer seu pai de que Leonatus o traiu, e o rei, num
típico erro, dá ordens a servidores de levar seu filho até a floresta e matá-lo. No entanto, os
dois servidores do rei da Paflagônia sentem piedade do jovem e o libertam para aprender a
viver como pobre. Um dos relatos vem do próprio rei, que, em atitude de contrição e
filho bastardo, que, uma vez investido de poder, logo o depõe do trono e arranca seus olhos
(put out my eies). É curioso como vários aspectos dessa narrativa trazem já as faltas que
responsabilidades, ele “deixou a si mesmo nada além do nome de rei” (left my self nothing
but the name of a king). Seu infortúnio o leva dos píncaros do poder real à miséria extrema,
provação e sua sofrida iniciação na “floresta”, retorna, como príncipe armado, para
reparar o dano cometido pelo irmão e ganhar das mãos de seu próprio pai, agora libertado,
a coroa do reino. No mesmo momento o pai morre, o coração partido (hart broken). A
história de reparação terminará, contudo, com Leonatus levando a guerra ao seu irmão,
o mata. A história sugere uma interrupção do processo de vingança por meio da ação sábia
de Leonatus. Há um perdão do irmão, mas claramente não uma desculpa para as faltas
que acredita em rumores, que o leva a ser injustiçado. No entanto, aquele que o castiga, seu
filho bastardo, torna-se não um rei, mas, segundo o próprio rei desposto, um tirano que
jamais poderá descansar. É nessa lógica que o sistema de reparação passa a atuar. O filho
bom voltará para “chacoalhar o assento da tirania que jamais está seguro”. Os elementos
1-22 Discurso de Edmund Edmund aparece na primeira cena quando Gloucester fala a Kent
extraconjugal. Ali também se refere à necessidade de reconhecer seu filho ilegítimo. Sozinho
no palco como Ricardo III no início da peça homônima, Edmund evoca a deusa Natura ou
refletindo muitas concepções coetâneas. Embora com frequência tenha acepção de elos
naturais do sentimento humano (amor filial, por exemplo), aqui relaciona-se com “estado
fundação de uma sociedade organizada” (Wells, 2008, p. 116). Essa concepção está em
franco contraste com outras definições de natureza, como a chamada “natureza benigna”,
presente em particular no pensamento de Bacon e Hooker. Ela ali é a expressão espelhada
de Deus no mundo, submetida a Deus, algo benévolo, ordenado por Deus, e traz consigo
uma sabedoria que está além da arte. A rebelião contra a natureza e suas leis seria assim
uma rebelião contra o próprio sujeito particular, uma falta na natureza (loss in nature). A
oposição entre natureza e costume, tão comum no pensamento romântico, não o era na
natureza e costume, de modo que o homem descobriria o modelo da natureza também pela
observação dos costumes, dos antepassados — da tradição. Assim, por exemplo, quando
Lear diz a Regan que ela possui uma “terna natureza” que jamais a deixaria “ser cruel” e
que ela conhece o “dever natural”, está dizendo, na sua suposição temporária e enganada
de quem Regan de fato é, que ela segue o modelo “natural”, que ela não é “contra o
nascimento”, contra o sangue, e assim respeita a ordem natural de uma filha. No entanto,
mesmo nessa noção otimista da natureza e na sua ligação com o costume havia desacordos.
Hooker, por exemplo, ciente de que nem tudo nos costumes parece bom, diz que há uma
espalhar pelas multidões, e assim “pode ter poder, até nas coisas simples, para sufocar a luz
da compreensão natural” (may be of force even in plain things to smother the light of
natural understanding) (Danby, 1961, p. 30). Uma segunda visão da natureza que se esboça
natureza, para Edmund, é uma deusa pagã, não um princípio ligado à natureza como
espelhamento de Deus e, portanto, dos costumes e de outros padrões. Ela seria, neste caso,
a deusa guardiã dos poderes que ele próprio possui: “o brilhantismo mental, o vigor
animal, a aparência bela, o apetite, o instinto” (Danby, 1961, p. 32). Sua deusa natureza é
diferente da que é invocada por Lear, a natureza-lei, emanação de Deus que conecta
tradição ao presente, filhos aos pais e assim por diante, uma lei do sangue e também das
incorporado na qualidade individual de cada um, dele próprio, e que de algum modo o
emancipa do costume que ele associa à falta de penetração humana sobre si mesma. Ela é a
força constitutiva individual que age na ambição. Pelo que entendemos de Edmund, não
podemos aplicar a ele o dualismo da razão versus paixão, porque Edmund, como todo
Entretanto, essa forma de pensamento não era hegemônica na época. Ela encontrará
Espanhola. Sua concepção de que o homem é o lobo do homem, em contínuo temor, perigo
de morte violenta, o faz postular que ele precisa fazer um contrato de delegação de poder
em que um monarca ou um Estado assume, sozinho, pelo bem da paz, o direito único e
exclusivo de violência. Sua filosofia desce até o chão da realidade do homem, dominado
glória. Edmund crê na natureza como potência favorável à sua ambição, mas o relato
inteiro da peça não deixa dúvida de que Shakespeare (refletindo seu tempo) faz de Edmund
um catalisador do caos. A crítica das últimas décadas associou Edmund ao desafio do statu
quo, mas modulado com uma linguagem “de energética e empreendedora prosperidade”
(Garber, 2008, p. 663). Ela anuncia o homem automodelado que usa de sua capacidade
pessoal para prosperar. O questionamento de Edgar dos costumes, por outro lado, possui
inúmeros precedentes no pensamento humanista que por vezes viu no costume uma das
razões da degeneração, e não um acesso à natureza: “É bem verdade que nada é tão vil nem
origem do costume, segundo Erasmo de Rotterdam, é sua relação com os rituais morais
Assim, se o costume se origina de um vício que se legitima, então não pode de modo algum
se originar da natureza. Montaigne, em seu ensaio Do costume, assinalou que “As leis da
Livro I, cap. 12). No mesmo ensaio, Montaigne elenca, a título de exemplo, inúmeros casos
definitivamente a natureza de seu elo dos costumes. Assim, quando Edmund coloca frente a
frente natureza e costume, ele: a) restringe a noção de natureza e a faz convergir para o
costume (o que tornaria o costume legítimo). Cumpre acrescentar, contudo, que, no caso de
Edmund, Shakespeare não dá aval à rebelião aberta contra os costumes e, nesse sentido,
parece contemplar a mesma visão moderada de Montaigne, que dá no seu ensaio o exemplo
dos resultados nefastos que se originaram da decisão dos proponentes de novas ideias
las efetivas, e que resultaram nas guerras civis religiosas na França. O relativismo complexo
nessas concepções difusas, um elemento estranho que não cabia na ordem social, cuja
identidade, assim como sua progenitura, não possuía um vínculo material/ moral com a
nomeador de fala aparece simplesmente Bastard, “bastardo”. Apenas no Folio seu nome de
fato aparece, ganhando assim alguma identidade pessoal e se descolando em parte de sua
identidade estereotipada como bastardo. Edmund insiste sobre os termos “baixo” (abjeto,
sociedade aristocrática por seu nascimento “ilegítimo”. Na sequência, ele repisa tais
termos, como se para tentar compreender seu significado — claramente lançando como
7-9 Se minhas … dona casta ? A pergunta sobre a baixeza de seu nascimento leva Edmund
e não há diferença entre o filho legítimo e o ilegítimo, e assim a associação entre o bastardo
e baixo não deveria existir para Edmund. Edmund reclama para si um direito perante o
certa medida, a empatia pública (contemporânea e atual). Mas é importante observar que
“contestatário”.
11 nasce do viço … natura Ou seja, aquele que procria com toda a potência da natureza.
“Viço furtivo” (lusty stealth) se refere ao poder sexual furtivo da natureza, que irrompe na
própria disposição. Ele contrapõe sua geração com “quem vem de uma cama insípida e
arriada”, ou seja, a cama matrimonial que, na opinião de Edmund, foi abandonada pela
dos enredos refletindo, com diferenças, o outro. Lear entrega suas terras e, portanto,
perderá seu poder, ao passo que Edmund trama para roubar a herança em terras de Edgar.
“dentar” e “para o”. Nenhuma das variações, tanto no Q como no F, faz bom sentido para
a frase. Capell emendou o termo para top (superar), e nisso foi seguido por outros,
23 partindo em cólera A cólera era um dos principais fluidos dos corpos animais, segundo
fluido (humor) da cólera tornaria uma pessoa mais inclinada aos acessos de fúria. Embora
45 Essa política de reverência A reverência da idade (velhice) que possui o poder de decisão e
sobre os (patri)mônios. A carta forjada por Edmund faz supor em Edgar as próprias
intenções de Edmund de tomar posse das terras de seu pai e de Edgar, seu herdeiro
legítimo. A segunda trama em grande parte espelha o conflito entre pais e filho(a)s da
entra em cena totalmente alarmado por saber que o rei pessoalmente se deixou
“proscrever” de seu próprio poder, ficando assim “confinado à exibição”, “restrito a uma
pensão”, ou seja, tornado uma figura decorativa, mas sem poder real. A ansiedade de
Gloucester com o fato vai se potencializar quando ele toma contato com o conteúdo da
carta forjada por Edmund, e ele cai no mesmo tipo de decepção que acaba de testemunhar
na cena de corte.
‘muitos grandes Eclipses […] pelos quais […] eventos terríveis são pressagiados […] toda a
mais há de ser esperado, mas a sociedade comum será destruída e arruinada’” (Foakes,
inversão de valores, com a destruição daquilo que é a base maior da sociedade, sua
hierarquia, sua estruturação, mas sobretudo com a quebra do contrato “natural” entre pais
e filhos. Esse longo discurso de Gloucester, com suas menções à astronomia, continua as
sugestões astrológicas que estão no solilóquio inicial de Edmund. Ele está submetido à
“praga” do costume, sendo a praga um dos efeitos dos grandes desastres celestiais
astrológicos; ele lembra que é “doze ou quatorze luas mais novo que o irmão”, justamente
106-9 amor … pais e filhos Wells (2008) assinala que essa passagem expressa um tema comum
a outras peças, em particular Gorboduc, de T. Norton e T. Sackville (encenada em 1561).
seus pais”. A obsessiva reaparição desse discurso está explícita também nos diversos
127 putaria! Edmund, com seu olhar agudo, cético e, sem dúvida, cínico, ironiza o escapismo
astrológico de seu pai, que culpa os astros por seus próprios vícios. Na ironia de Edmund, a
evasão de Gloucester apenas recobre sua vergonha de ser “homem putanheiro” (goatish
disposition, literalmente: “disposição de bode”), seu apego à luxúria e a própria geração de
Edmund, feito sob a Ursa Maior, o que Edmund relembra com zombaria.
135-50… Diálogo entre Edmund e Edgar Típico do vilão shakespeariano é se apropriar das
crendices daqueles que pretende enganar, suposições que ele considera, com razão,
ele praticamente replica, imitativo, o discurso cataclísmico de seu pai sobre a inversão do
mundo e de sua hierarquia sob o influxo maléfico astral, provocando certa ironia de Edgar:
ATO I • CENA IV
1-7 Se … bem-disposto Eis uma das muitas transformações e disfarces da peça. Kent, que foi
banido, deve agora mudar sua voz e alterar sua aparência para conseguir ofertar seus
serviços junto ao séquito de Lear. Seu objetivo é o mesmo que o levou, na primeira cena da
peça, a contestar as decisões intempestivas de Lear que deserdam Cordélia, lhe negam um
dote e dividem o reino: quer servir a Lear e ser uma voz de moderação. Tanto Kent como o
8-85 Não me façam … chegando Nesta cena, enquanto Lear estiver em companhia do seu
séquito “ruidoso”, com Lear e o Bobo — enfim, com seus súditos mais próximos e
inferiores —, sua fala é em prosa, contrastando com as formas metrificadas de sua fala na
primeira cena, numa situação de corte. Contudo, assim que ele encontra Goneril, as falas
15-6 temer julgamentos Embora o discurso de Kent seja jocoso, o público pode muito bem
entender que o “julgamento”, no caso, é o Juízo Final. É uma das muitas sugestões oblíquas
85-6 jogador de futebol Era um esporte das classes baixas, desaconselhável para um nobre, ao
contrário do tênis, que era considerado um esporte apropriado para jovens de estirpe.
105 Titio No original, nuncle, que era uma variante para uncle (“tio”), mas, no conjunto
semântico e simbólico da peça, o nun em nuncle traz uma sugestão de non e, portanto, de
129-35 Isso é nada … num bobo A sequência de “nada” aqui retoma a resposta de Cordélia e
reforça o jogo de palavras que domina a peça e que tem caráter existencial. Cf. Introdução,
p. 19.
136 Um bobo mordaz! Em outros termos, dentro das categorias da época, a diferença entre o
“bobo meigo” e o “bobo mordaz” é que aquele é um simplório, inocente, um bobo natural,
153 monopólio Direito monopolista de comerciar, que era dado pelo rei como um privilégio.
prêmios pelos seus serviços, mas o abuso desse tipo de concessão levou a uma campanha do
regente frente ao pai, tratando a escolta dele como um bando de arruaceiros insolentes.
Interessante, contudo, que já agora ela assume a posição (duvidosa) de quem zela pela boa
ordem, pelo bem comum e pelos bons modos, tratando o pai como uma criança que precisa
Goneril, que pela primeira vez mostra sua férula, avança, contudo, com significativos
subterfúgios linguísticos. Ela evita falar de castigo em termos duros — como o próprio Lear
faz quando, por exemplo, ameaça o Bobo com o chicote —, mas sempre se reclama de
220-1 E o asno … te amo! Ou seja, as coisas estão invertidas, aquele que era rei virou súdito
que pode ser punido. Ele já antecipa o que Lear descobrirá apenas aos poucos.
222-6 Quem aqui … eu sou ? Lear está representando, mas o que diz, satiricamente, é a mais
pura verdade. Ele não é mais rei, e por isso sua substância divina como monarca inexiste.
ATO II • CENA I
1 Curan Presente apenas nesta cena, parece ser um membro da casa de Gloucester. Curan e
iniciativa de Lear no início da peça fora justamente dividir o reino para evitar conflitos
com termos aglutinados que ridicularizam Oswald, sublinhando sua posição de classe
inferior e denunciando sua natureza artificial de cortesão. Trata-se aqui do contraste entre
o nobre e o emergente social que leva Kent a ironizar as suas vestes, a sua vaidade florida
1-21 Ouvi … já não sou Edgar, sob perseguição, jurado de morte pelo seu próprio pai, é
obrigado a assumir uma nova identidade, que é na verdade uma não identidade. O disfarce
de Edgar possui uma profundidade convincente que nos leva a esquecer sua natureza de
transformação de Edgar é total e fantástica, possui na sua forma lúdica uma profunda
veracidade — como se não fosse mero disfarce, mas uma verdadeira provação ou um ritual
melhor agir, lança no interior da peça os princípios das fábulas, das lendas e das
carvalho, árvore sabidamente mágica, onde Edgar se esconde por algum tempo, por fim
escapando à caçada. Na longa tradição folclórica das ilhas britânicas, os elfos habitavam os
ocos das árvores. Cf. Introdução, p. 42. A invenção de Pobre Tom como uma segunda
Egregious Popish Impostures, de Samuel Harsnett (1603), uma longa sátira da prática de
algumas das quais eram pessoas supostamente possuídas pelo demônio. Em um segundo
nível, não descritivo, traz os comentários, o estilo e a sátira de Harsnett, que, como homem
tanto entre católicos como entre alguns reformados. O livro tinha por alvo muito mais o
público protestante (Brownlow, 1993, p. 110). F. W. Brownlow relembra que, ao contrário
de boa parte das fontes utilizadas por Shakespeare, que contavam histórias antigas,
reescrituras lendárias mais ou menos distantes, o livro de Harsnett tinha um apelo político
imediato. Alguns dos personagens do livro eram homens da região natal de Shakespeare, o
que tornava seu interesse candente para o dramaturgo e sua leitura, muito mais pontual.
de Harsnett no vocabulário de Rei Lear, pois, de fato, os nomes dos muitos diabos
mencionados por Harsnett ressurgem na boca de Edgar/ Pobre Tom. À primeira vista, a
impressão é que nada além desse aspecto tenha impactado Shakespeare. Nomes como
caracterização de Edgar como Pobre Tom no ato III e também em outras partes da peça.
Pobre Tom é uma persona de Edgar, o que nos faz ver certa metateatralidade na ação
identificam nos momentos mais extremos de seu sofrimento. A relação de Pobre Tom com
Shakespeare and the Exorcists (Greenblatt, 1988, p. 94), estuda as relações entre o livro de
ilegalidade na Inglaterra elisabetana, testemunhos do poder religioso da fé, bem como sua
relação próxima com a comunidade crente, usada pelos religiosos para mobilizar a fé e a
ultrarreformista. Assim, tal como a nova Igreja buscava extinguir as imagens, o milenar
culto dos santos, as festividades tradicionais religiosas com suas datas, seus lugares e suas
protoiluminismo racionalista.
sofrimento humano. Como Caroline Spurgeon assinalou acerca de Lear, a peça está
assombrada “por um corpo humano em movimento, angustiado, arrastado, torcido,
um diálogo com ele, apropriando-se do seu livro, apresentando uma resposta condensada
Estado e para a sociedade para a qual Harsnett escreveu” (Brownlow, 1993, p. 118). Sua
poder real; a publicação do livro era um ato de Estado (Brownlow, 1993, p. 118). Como
assinalamos, Harsnett usava um antigo artifício retórico para criticar os padres exorcistas,
“Argumento” do livro de Harsnett: “Foi sempre a má fortuna dessa ordem sagrada dos
impostores, sim, às vezes de grandes protetores de sua própria religião” (Brownlow, 1993,
interesse dessa sátira, a “teatralização” das práticas de exorcismo incluía não apenas os
exorcistas, mestres regentes desse grande “teatro”, mas também os exorcizados. Afinal, a
história dos “possuídos” que Harsnett buscou satirizar em seu livro e tornar parte de um
grande teatro de imposturas foi real, comovente e repleta de violência. Trazia a lamentável
história de pessoas, sobretudo mulheres, em estado de alienação, pessoas que estão no reino
possessão e a loucura são figuras supremas para esse estado de ser, tanto que, quando Lear
vê a si mesmo no Tom Louco (Mad Tom), ele vê a figura de uma vida inteira vivida na
negação de sua verdadeira natureza e, agora, numa crise de identidade, humana e pessoal”
ATO II • CENA IV
26-44 Senhor … sofro agora Kent descreve um acontecimento que não é objeto de
Corwall, Oswald chegou trazendo a carta que havia sido enviada por Goneril. Quando
mensageiro de Lear. Embora não sejam claras as instruções, sabemos que Goneril havia se
precavido de responder. A carta de Oswald é um alerta de que Lear se dirige para o seu
palácio, e por essa razão Cornwall e Regan retiram-se imediatamente do castelo rumo a
Gloucester, para não receber Lear. Sabemos, como foi noticiado por Curan a Edmund, que
as rivalidades entre os ducados já iniciaram, o que também explica a longa viagem até a
55 Histerica passio Uma condição, ou doença, que a medicina do período acreditava ter
origem no baixo-ventre e que tendia a subir pelo corpo, até trancar a garganta, geralmente
associada ao sexo feminino, como se o útero se movesse pelo corpo em direção à garganta,
causando asfixia. Em inglês, era conhecida como a “Mãe” (Mother), ou “asfixia da mãe”
128 tumba de tua mãe Essa é a única menção em toda a peça da mãe das filhas de Lear.
220-4 és minha carne … pestífera Mesmo amaldiçoando a filha, Lear reconhece que nelas há
algo de seu. Como se sua filha amaldiçoada fosse fruto do que há de pior em seu sangue.
Diálogo entre Kent e o cavaleiro Menções mais consistentes sobre a tempestade iniciam
nessa cena com o diálogo entre Kent e o cavaleiro em plena noite. Entre outras coisas, eles
comentam o estado de Lear. O cavaleiro descreve Lear como alguém que está lutando com
os elementos naturais da tempestade, sugerindo-se assim uma fusão caótica entre o homem
e a natureza. Lear, segundo ele, está fora de si e vocifera para que a terra adentre o mar.
São imagens da loucura plena de Lear que precedem sua aparição na cena seguinte em
primeiro plano, quando o veremos vociferando para os elementos naturais. Kent traz
Segundo ele, há divisão entre os dois nobres, apesar de todas as expressões do contrário. A
conjunto numa fusão que segue a versão de Kenneth Muir, em vez da conflation proposta
por Foakes. Assim, no anúncio de Kent figura também a informação de que os exércitos da
França já estão espionando o país à procura de informações sobre o estado do rei, ou ainda
por outras razões. Finalmente, Kent pede ao cavaleiro que ele se dirija a Dover e que
1-24 Sopra … A cena inicia com Lear vociferando, agora no primeiro plano, exatamente como
aparece na descrição do cavaleiro na cena anterior. São imprecações com estilo e temática
escatológica, rogando que os elementos celestiais destruam definitivamente a face da terra,
humanidade. A razão para esse furor é a ingratidão que ele reconhece como endêmica à
humanidade. Essa generalização repercute as várias maldições que Lear lança contra a
procriação, como, por exemplo, quando roga pela infertilidade de Goneril em (I.IV.280-5).
A cena está marcada por menções aos animais selvagens que, na noite, mantêm-se em suas
furnas e seus abrigos. Lear está aquém do humano e aquém dos animais, e é justamente
nessa cena que Kent vai atraí-lo para uma cabana onde o rei poderá se proteger. “A cabeça
nua! Meu bom senhor, aqui perto há uma choça que vai lhe dar abrigo” (III.II.57).
44 os confinam em seus covis Novamente na peça a menção à vida dos animais, aqui para
enfatizar o quanto Lear está exposto aos elementos naturais de um modo que seria
Constituída de uma rápida troca de palavras entre Gloucester e Edmund, essa cena
fortalece nossa percepção do senso de lealdade de Gloucester. Por sua lealdade, será
adicional que dá a Edmund, de que possui uma carta com inteligência sobre um exército
que acaba de desembarcar no país, e de que a casa de Gloucester tem o dever de apoiar o
rei por honra e caridade, é fatal para seu destino, pois Edmund transmitirá a informação
aos inimigos, traindo a confiança do pai para ascender através de sua “lealdade” a
Cornwall.
6-22 Tu crês … chega Lear argumenta para Kent que o sofrimento físico de estar exposto à
ao ver a habitação dos miseráveis do seu reino e se descobre em falta com eles.
37 Braça e meia, … Tom! Edgar fala como se estivesse medindo a profundidade da água na
choupana.
44 Entra Edgar, disfarçado de Pobre Tom “Um pobre coitado desnudo subitamente aparece,
e Lear projeta sobre ele suas próprias queixas; Pobre Tom em parte substitui o Bobo e
Egregious Popish Impostures (1603) para a criação de Pobre Tom, em particular na sua
fala desta cena. Assim, quando Pobre Tom afeta estar tomado pelo diabo malino (foul
49-62 Quem é que … lá! Já na primeira fala como Pobre Tom, há frases, ideias e palavras
entre louco e mágico, às vezes com elementos cultos, às vezes com tonalidades populares:
“Tom tá com frio” (Tom’s a-cold). Seu fraseado é iterativo, o vocabulário, raro, reflete
“Tom tá com frio” funcionam como refrãos obsessivos que revelam aquilo que o angustia,
sua possessão e o frio. Sua fala não possui nenhum elemento abstrato, está constituída
apenas de arranjos de orações paratáticas com rara subordinação. Em tudo o que fala há
caso, não um simples decalque dessa linguagem, mas o resultado de uma reestilização que a
poesia dramática e outros textos da época faziam dessa linguagem. No seio dessas
enumerações paralelas, loucas e às vezes enigmáticas (sem deixar de soar jocosas), ele
vez, esse fluxo verborrágico saboroso e louco é interrompido por visões obscuras e
visionárias. Sobre nossa tradução das palavras, cf. Nota sobre a tradução, p. 77.
52-3 facas … mata-rato Foakes assinala que facas e nó de forca aparecem em Harsnett. O
demônio era geralmente concebido como que oferecendo ajuda àqueles em desespero,
inspirando-os ao suicídio, o que os levaria à danação (p. 275). O suicídio era considerado
um ato diabólico. É também um dos maiores perigos ao longo da peça: Gloucester buscará
58 O do, dudi … Obscuro: Foakes sugere o som de ranger dentes (p. 275).
60-1 Eu podia … lá! Possivelmente, em seu delírio, Edgar-Pobre Tom ataca um demônio
imaginário.
67-8 Que as pragas … filhas As pragas, na forma de miasmas, podiam ser consideradas
75 filhas pelicanas Alusão a lendas e crenças antigas segundo as quais a mãe Pelicano nutria
86-103 Um servidor, … cessez! Diante da pergunta de Lear, Pobre Tom responde conforme o
94 superei o turco: Ou seja, tinha mais amantes do que o grande sultão turco, célebre pelo seu
harém.
112 Tricafutrica (Flibbertigibbet) Um dos nomes dos demônios que supostamente estão
possuindo Pobre Tom. Os nomes de demônios de Pobre Tom são vários, e Shakespeare
tirou-os de uma passagem do livro de Harsnett (1603, “Os nomes dos demônios”). Outros
nomes são Hobbididance, Obidicut, Mahu, Modu, Smulkin, Frateretto, Purr. O termo,
perseverança, uma morality play [peça de moralidade] medieval escrita por volta de 1425,
mais tarde em Flibbertigibbet. Ver Nota sobre a tradução, o comentário sobre a tradução
150 Modo … Mahu Novamente, os mesmos nomes dos demônios constantes no livro de
161 filósofo Mágico, filósofo, sábio ou cientista, como Lear visse nas palavras de Pobre Tom
cômico.
ATO III • CENA VI
A localização não é clara, mas é possível que Lear e seus companheiros não estejam mais na
freeholders, proprietários livres de terras não pertencentes à casta nobre. É possível que, na
alusão feita pelo Bobo, o fidalgo é Lear e o yeoman seja Edgar, mas ambos podem ser
Bobo que diz que o louco é o yeoman que tem um nobre por filho, por ter deixado que seu
filho fosse nobre antes dele. A questão parece se referir também à inversão que Lear
célebre pseudojulgamento (mock trial) que é proposto por Lear (“vou acioná-las [Goneril e
presença de suas duas filhas e as submete a um inquérito. Edgar, que não fala coisa com
peça. Quanto a Kent, ele se senta no julgamento como um “juiz comissionado”, rebaixado,
portanto, em sua classe. Na ausência de Goneril e Regan, é possível que Lear, quando se
dirige às duas, esteja falando com um objeto inanimado qualquer no palco, talvez uma
banqueta (stool). “Pensei que você fosse uma banqueta”, diz o Bobo, ironizando o delírio
de Lear (III.VI.51). Em uma peça marcada pela injustiça, crueldade e, em particular, pela
traição no interior da família, a retribuição ou ainda a vingança contra os crimes não passa
39 juiz comissionado Menção às cortes de equity que buscavam lidar com casos conforme a
80 roupas persas Menção ao luxo “oriental” dos persas, em particular em contraste com os
106-11 Ao ver … esconda Com a saída do grupo, Edgar permanece no palco. Depois de sua
diante do sofrimento alheio. Esse trecho está presente apenas em Q, mas possui
destino dos outros personagens. O contraste estilístico dessas divagações, que subitamente
erguem o tom da peça em relação ao conjunto grotesco da cena, é fundamental para trazer
trazendo à peça uma espécie de síntese abstrata. Ele pronunciará sua reflexão seguinte em
IV.I.1-9, um pouco antes de seu encontro com Gloucester, e finalmente serão suas as
5 Arranquem-lhe os olhos! Foakes assinala que essa punição, o cegamento por extração do
globo ocular, era aplicada a estupradores na Idade média, mas o que está implícito aqui é
que é pela visão que os homens cometem adultério (Foakes, 1997, p. 295).
32 hóspedes Não é em vão que Gloucester os lembra de que são seus convidados em sua casa.
A violência contra o anfitrião na sua própria casa era considerada uma violação grave da
hospitalidade.
60 carne ungida Ou seja, uma menção à natureza divina dos monarcas na doutrina do direito
divino dos reis. Em sua coroação, eles recebiam a “unção” que firmava o elo entre o poder
monárquico e a vontade divina. Esse é mais um dos muitos signos conceituais na peça
chamados dois corpos do rei (Kantorowicz, 1997). Essa concepção é uma ficção jurídica
erigida, de um lado, para justificar e legitimar o poder monárquico com a unção devida, e,
por outro, pela necessidade de conciliar a natureza “corporal” e humana dos reis com sua
outra natureza, de caráter divino. Essa noção dos dois corpos se desenvolveu a partir da
visão paradoxal e dupla da teologia da dupla natureza humana e divina de Cristo, tendo
Entra Edgar, disfarçado como Pobre Tom Edgar se separa do grupo de Lear, que segue em
direção a Dover, talvez até deliberadamente, pois ele é ignorado no final de III.VI. A cena se
passa em algum lugar distante da casa de Gloucester, pois Edgar ainda é um fugitivo.
1-9 Sim … borrascas Edgar afirma que é melhor se saber desdenhado do que sofrer esse
desprezo e ainda ser bajulado (como acontece na corte). Quando alguém está na pior das
situações, ou seja, na posição inferior da roda da fortuna, vive-se ainda na esperança, não
no medo (de cair mais). Ele está disfarçado de Pobre Tom, mas no início da cena, enquanto
não topa com seu pai, medita sobre o infortúnio, a esperança e o destino. As palavras de
Edgar são genéricas, mas o leitor ou espectador, depois de assistir à primeira cena e à
indigente (como Edgar está disfarçado) sofre ainda podem ser considerados algo: se não se
tem nada, mesmo assim a “esperança” subsiste como o próprio signo da remissão (dos
pacientes e dos pobres). Aquele que desceu à condição mais abjeta tampouco vive no medo,
pois já perdeu tudo o que poderia temer perder e, sobretudo, perdeu aquela condição de
sentimento Edgar encontrará em seu pai, que pede a Pobre Tom para levá-lo aos penhascos
trazem uma cena do Juízo Final, trazem também figurações específicas das virtudes e dos
setes vícios, entre os quais está o Desespero, representado como uma mulher que se
enforcou numa barra dentro de seu nicho, apresentada no momento de seu suicídio. Ao se
matar, ela perdeu o direito à salvação. Um pouco acima da figura há um demônio que
desce para levá-la ao inferno. Finalmente, é preciso lembrar aqui, aproximando-nos mais da
peça atual, que na história How Queene Cordila in Dispaire Slew her Selfe, The Yeare
before Christ, escrita por John Higgins para a edição de 1578 do Mirror of Magistrates,
Cordila é no final capturada pelos filhos de Gonorell e Ragan, que a atiram numa prisão
onde é visitada por Despair (desespero). Desespero a incita ao autocídio. Cordila narra
como um fantasma sua existência e seu desespero. No entanto, depois de sua morte, um
narrador moralizante entra em cena para, numa glosa explicativa, lamentar seu suicídio,
lembrando que aqueles que caíram vítimas do desespero e tiraram a própria vida não
poderão assistir ao momento em que Deus trará seus inimigos à destruição. O desespero,
assim, está associado à perda da fé e à autodestruição, e é isso que Pobre Tom tentará
dissolver na mente de seu pai desesperado. A passagem final em que Pobre Tom (Edgar)
“abraça” o ar insubstancial ou incorpóreo revela, por outro lado, que Edgar assume por
inteiro o sofrimento do seu infortúnio. Nisso ele vê uma ação não apenas da natureza, mas
de uma divindade superior a cuja provação imposta deve se submeter com eufórica alegria.
9 Entra Gloucester, conduzido por um velho O velho é talvez o único personagem na peça
que não pertence à vida cortesã, e sim à vida comum. Sua idade avançada o faz ter uma
1997, p. 304) e, nesse sentido, é um dos muitos descendentes literários de Eumeu, o feitor
de Odisseu na Odisseia.
10 conduzido por um pobre! No in-Quarto (Q) não corrigido (Qn), está poorlie leed; no in-
Quarto corrigido (Qc), está parti-eyd, significando parti-eyed, ou seja, com várias
colorações, o efeito visual dos olhos perfurados e com sangue. F apresenta uma versão
diferente: poorely led (poorly led), ou seja, “conduzido por alguém de extração baixa”, que
possibilidades são igualmente válidas. Uma segunda possibilidade: “com olhos perfurados”,
que reforça as oposições entre cegueira/ visão que aparecerão logo adiante.
20 Quando enxergava Um dos leitmotivs mais insistentes na peça é a oposição entre visão e
cegueira, tratada não raro por meio de paradoxos. Há um eco bíblico nessas referências,
como em Isaías 59, 9-10: “Por isso o julgamento reto está longe de nós; a justiça não está a
nosso alcance. Esperávamos a luz, e o que veio foram trevas; a claridade, e, no entanto,
caminhamos na escuridão. Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como os que
crepúsculo; somos como os mortos entre pessoas sadias”. Essa base bíblica, no entanto, não
é a única e encontra precedentes notáveis na tragédia grega, entre as quais Édipo rei, de
Sófocles. O cego que carrega o cego era, por outro lado, um tema renascentista importante,
como é o caso de A parábola dos cegos, do neerlandês Pieter Bruegel, o Velho, de 1568.
20-2 Quantas vezes … proveito Gloucester tem o mesmo tipo de revelação lenta que Lear ao
observar que os nossos meios nos trazem segurança e que nossos defeitos geram confiança.
do passado. Mas, de modo comovente, os termos são os de um cego… Ele quer “ver” o seu
21-2 O fausto … proveito A riqueza traz excesso de confiança ao homem, ao passo que a
carência de algo é uma vantagem, pois permite melhor visão. Gloucester ecoa Lear no
encontro com Pobre Tom, ele também reconhece o “homem não acomodado”.
35 Me fez … um verme Salmos 22,7: “Quanto a mim, sou verme, não homem”.
46 Dover Arcadia, de Sidney (1590), também inclui a vontade de um príncipe de se atirar de
uma rocha alta, tentando persuadir seu filho a guiá-lo, mas aqui Gloucester não sabe que
50 se o louco guia o cego Traz ressonâncias de Mateus 15,14: “Deixai-os. São cegos
conduzindo cegos. Ora, se um cego conduz outro cego, ambos acabarão caindo num
buraco”.
64-70 Cinco mofinos … vos tenha! Pobre Tom retoma os demônios de Harsnett (1603).
71-9 Aqui, … o suficiente Gloucester ecoa a fala de Lear, “pobres coitados, nus” (poor naked
ATO IV • CENA II
A última aparição de Albany no palco foi em 1.IV, quando se mostrava em dúvida sobre as
atitudes de Goneril com Lear; agora, com os novos conflitos em curso, ele demonstra uma
1-2 manso Marido Goneril, que agora se aproxima de Edmund, trata seu marido como um
homem sem resolução, um covarde. Segundo ela, ele “não vê a ofensa, se ela o força a
lutar” e, numa atitude agressivamente irônica, diz, nas linhas 18-9, que ela vai lhe “dar a
roca”, instrumento de trabalho reservado às mulheres. Fica implícito, naturalmente, que ela
da passagem são importantes, pois Goneril agora se aproxima cada vez mais de Edmund e
diz que um “imbecil me usurpa a cama”. Toda a conversa seguinte entre Goneril e Albany
será dominada por claros contrastes: Goneril acusando-o de covardia, efeminação e excesso
88-92 ela estando … amarga Goneril quer possuir Edmund (agora, “Gloucester”), mas a
morte de Cornwall torna Regan candidata a uma hipotética união com ele. Por outro lado,
ela admite que a morte de Cornwall pode trazer alguma vantagem, já que enfraquece Regan
sobre as razões por que o rei da França retornou ao continente, após arribar na Inglaterra;
apresentar uma imagem sagrada de Cordélia, que agora retornará para liderar os exércitos
da França e, finalmente, para fazer saber que chegou a Dover. A cena não tem efeito sobre
pelo cavaleiro, prepara o encontro do público com a “redentora” de Lear. Embora haja
grandes dúvidas sobre a exclusão “dramática” dessa cena, não é a primeira vez na peça que
descrição geral em segundo plano. Por outro lado, Cordélia esteve ausente da peça desde a
ATO IV • CENA IV
A reaparição de Cordélia no Folio (F) está em forte contraste com a versão do in-Quarto
(Q), em que esta cena é precedida pela cena do cavaleiro e de Kent. Lá, Cordélia era
apresentada como encarnando a piedade extrema e o pesar. Na atual cena, contudo, ela
aparece sob uma luz muito mais ativa e eficaz, liderando os exércitos da França, sem que
haja qualquer menção ao seu marido. No entanto, a descrição piedosa de Cordélia não está
ausente da cena. Ela descreve o estado de seu pai, que acaba de ser reencontrado, coroado
que as forças britânicas já estão avançando. Cordélia relembra o próprio público de que
aquilo que a trouxe de volta à sua terra natal não foi a sua ambição, mas sua vontade de
ATO IV • CENA V
11 Foi ignorância … vivesse A perfídia aqui chega ao seu ponto máximo. Regan não apenas
constata que foi um erro grave não ter matado de vez Gloucester, em vez de deixá-lo solto,
caminhando a esmo e despertando a comoção pública contra o seu partido, como também
parece satisfeita com que Edmund tenha saído para “despachar” a “vida escurecida” do
acréscimo cínico e a ironia. Ela diz que Edmund, “apiedado co’a miséria do pai”, foi dar
cabo da vida dele: uma ironia que revela que ela se rejubila no ato e na sua menção, mas de
fato a perfídia, em Shakespeare, não se satisfaz em fazer, precisa glosar com ironia.
24 Terás minha gratidão Ao contrário de muitas interpretações que veem na declaração de
mais provável que ela esteja dizendo que “o estimará”, lhe trará um favor verdadeiro. Ela
também dirá mais adiante que “quem o aniquilar [Gloucester] será favorecido”. Ou seja,
estamos tratando aqui da típica cultura do favor e do privilégio concedido por aristocratas
ATO IV • CENA VI
Entram Gloucester e Edgar vestido de camponês Vestido agora como camponês, usando as
roupas que recebeu do Velho, Edgar alterará sua fala, distanciando-se da identidade de
Pobre Tom, marcada por uma linguagem desarticulada, assombrada e demoníaca. Essa
1-10 Quando … fala está melhor Foakes aponta que Shakespeare “parece preocupado em
assinalar a ilusão criada por Edgar, não só para Gloucester, mas também para o público do
teatro” (Foakes, 1997, p. 326), daí essa lenta escalada rumo ao topo que, de fato, não está
ocorrendo. Embora Halio (2005) comente que as ações de Edgar parecem cruéis,
sentidos remanescentes, sua intenção final é justamente mostrar como, pela representação
do que não existe, podemos ter a impressão daquilo que existe. Ora, esse truque resultará
na salvação de Gloucester, que está desesperado e só pode ser arrancado desse estado por
meio de um ato patético definitivo, como o de sua queda (fictícia), sua sobrevivência e o
pensamento da intervenção divina por meio de um milagre (Halio, 2005, pp. 217-8).
11-5 Eis o lugar … no abismo O efeito causado por essa descrição é o que Harry Levin chama
precedentes para a cena, como, por exemplo, a comédia Plutão, de Aristófanes, em que um
ele revela seu nome. A cena é, segundo Garber, um dispositivo cômico a serviço da
tragédia, que não a torna ridícula, mas a intensifica (Garber, 2008, p. 685).
44 Ele cai Apenas presente em Q, a rubrica da queda de Gloucester pode ter sido omitida no
F por descuido (Foakes, 1997, p. 329). Alguns editores acrescentam que Gloucester se atira
e cai, ou indicam que Gloucester pula, a qualidade dessa queda podendo ser encenada de
produções (Wells, 2008, p. 232). Cf. Introdução para crítica da passagem, p. 55.
49 Está vivo ? morto?… Fale Edgar novamente troca de voz, cada vez mais se distanciando do
disfarce de Pobre Tom, agora usando “amigo” para se dirigir a Gloucester, expressão
59 Tua vida é um milagre Edgar criou uma ficção e agora tenta convencer Gloucester de que
a queda de fato aconteceu, como se tivesse sido de tão alto, e a salvação, tão miraculosa,
82-4 Daqui em diante … e morra Gloucester agora aceita pacientemente sua aflição, até que
87 ter pensamentos sãos e pacientes Paciência parece ser a característica mais necessária dos
87 Entra Lear enfurecido, coroado com flores silvestres Uma rubrica simples no F, mas com a
adição de mad (“louco, furioso”) no Q. A coroa falsa de Lear se relaciona com a coroa real
que usa no início da peça, transformando-o agora em um rei imerso no meio natural.
101 Manjerona doce De acordo com o herbalista do período, John Gerard (1597), a
manjerona doce é um remédio contra doenças frias do cérebro e da cabeça, o que relaciona
reconhecer sua condição humana. Também pode ser relacionado a fétido (stench) da linha
136 (Foakes, 1997, pp. 336-7; Adelman, 1992, p. 113). Lembrando que a “humanidade”
de Lear — o seu corpo físico — está isolado, e não mais reunido ao corpo divino que ele,
163-5 Quando o miserável … é obedecido A autoridade não se forma pelo valor, mas pelo
espírito do posto, que pode atribuí-la até a um cão. Foakes comenta que esse trecho marca
a grande mudança por que passou Lear desde o início da peça, em que ele era a imagem de
autoridade. No entanto, talvez Lear não se refira a si mesmo, mas muito mais à autoridade
(Foakes, p. 338).
180 Olhos de vidro Refere-se a óculos, pois ainda não existiam olhos postiços de vidro.
213-4 Se querem … aqui! A provocação de Lear se assemelha à de uma criança que brinca de
pegar.
256-7 Lutam Provavelmente, Edgar luta com um cajado e Oswald, com uma espada.
250-8 Vós, senhor … tuas estocadas Outro disfarce verbal de Edgar. Halio comenta que o
dialeto usado por Edgar é principalmente de Somersetshire. É mais possível que seja um
misto dialetal que deve soar rústico e cômico (Halio, p. 232). Buscamos recriar uma forma
Entram Cordélia, Kent, disfarçado, e fidalgo No F, essa cena deveria ser numerada IV.VI,
devido à omissão de IV.III. Cordélia talvez carregue cores e bandeiras da França para fazer
Lear pensar que está nesse país. Ela não está acompanhada de soldados, apenas de um
16 as cordas estrídulas, dissonantes Cordélia usa a linguagem da música, que era considerada
à música divina, eu me limitarei ao meu assunto: afora o poder excelente que possui para
ATO V • CENA I
Nesta cena, o conflito entre as duas casas (de Goneril e Regan) se intensifica. Ao mesmo
tempo que se instala mais claramente a rivalidade entre as irmãs, aproxima-se o momento
da batalha que definirá a fortuna de todos. O exército francês está já pronto para o
cena, Albany, indignado com o tratamento dispensado a Lear pelas filhas, deixa claro que
sua participação na batalha somente se justifica devido ao fato de o país estar sendo
invadido. Seu argumento revela a mesma ponderação que Goneril define como um aspecto
crítica à conduta das duas irmãs. Seu argumento parece impertinente para Regan, que
pergunta: “Por que essa discussão?” (V.1.29), como se não entendesse a sutileza da dupla
exército invasor. É Goneril, com sua virt ù viril, que imediatamente intervém para que o
grupo não caia em discussões e querelas “domésticas” e que se ponha logo em ação contra
interno do grupo — que prepara os crimes futuros que levarão à morte as duas irmãs — e o
conflito armado. No meio-tempo, Edgar, ainda disfarçado de mendigo, traz uma mensagem
para Albany, instruindo-o sobre como proceder caso saia vitorioso no embate. É uma
qualquer situação, com a derrota ou a vitória de Cordélia, poderá agir sozinho. Ele próprio
diz que pode apresentar “um campeão que provará o que está escrito aí [na carta]”. A cena
dramatizando sua situação de predileto das duas irmãs. Ele pensa não apenas em sua
escolha, mas também no modo mais hábil de dar cabo de Albany, usando, contudo, a
autoridade dele até o final da batalha. É importante relembrar que a autoridade está com
Albany e que Edmund, qualquer que seja o seu prestígio, é ainda o bastardo e apenas um
conde, inferior ao duque de Albany. Essa diferença estará no centro de várias discussões à
frente.
1-3 Que os oficiais … julgá-los Por ora, Edmund dá a impressão de seguir a lógica processual
por aqueles que o sentenciarão, em particular o próprio Albany, que, presentemente, detém
a autoridade maior.
3-7 Não somos … filhas? Cordélia, em contraste com Lear (como veremos adiante), tem plena
pior” por “desgraça”, “infortúnio” e similares, pois aqui o termo faz jogo com as
declarações de Edgar nos solilóquios, em que articula as variações worse, worst (“pior”, “o
pior”), que permitem a comparação entre os destinos. Por outro lado, incur (incorrer) de
fato aqui tem o sentido de “cair”, “ser vítima de”, mas com alguma ênfase recaindo sobre a
decisão moral da própria Cordélia. Ela diz, afinal, que sozinha afrontaria a fronte da
fortuna — do seu destino — com cabeça erguida. Mas ela não está sozinha, sua aflição está
toda voltada ao destino de seu pai. A abnegação de Cordélia, combinada com sua fortaleza,
assim como sua impressionante visão aguda do perigo em que se encontram, não será
compreendida pelo pai, que recai, agora sim, de novo em seu sonho fusional e escapista.
8-19 Não, não … da lua “Nessa fala comovente, que é profundamente irônica em relação ao
banimento de Lear de sua filha, Cordélia sozinha parece existir para Lear. Ele se isola
contra a realidade numa visão que é, ao mesmo tempo, autocentrada, absurda, patética e
uma renúncia ao poder. Como o final se aproxima, ele parece se isolar em si mesmo, não
mais consciente dos outros sofredores, ou preocupado com a justiça ou capaz de sentir o
que os desgraçados sentem” (Foakes, 1997, p. 365). Em outros termos, toda a experiência
de Lear no ermo, quando ocasionalmente toma consciência do sofrimento alheio, parece ter
sido desaprendida.
23 Por sobre estes sacrifícios A menção a sacrifícios é uma ironia trágica que se confirmará na
vitimação de Cordélia. Por ora, Lear se refere apenas à perda da liberdade dos dois e, em
particular, dela própria, que fez um esforço (sacrifício) real para salvar seu pai.
26 feito raposas A ideia provém da técnica utilizada para caçar raposas, usando fumaça para
30-8 Vem aqui, … avenhas sozinho Aqui, Edmund leva a efeito seu plano de eliminar Cordélia
(e Lear), contrariando sua fala anterior sobre a “intenção maior dos que irão julgá-los”
(V.III.2-3).
44-65 O senhor … um irmão Albany inicialmente louva Edmund por seu “valoroso esforço”
que levou à vitória dos exércitos da Bretanha. No entanto, seguindo a sua fina e bem
contra um inimigo invasor, agora, após a batalha, ele se esforça em fazer justiça até mesmo
aos “nossos antagonistas”. O direito da guerra previa o julgamento justo e equânime dos
vencidos. Albany passa a representar a legalidade que se opõe ao modo tirânico de tratar o
antagonista. Cumpre assinalar que Albany não utiliza, para se referir a Cordélia e Lear, o
seu pedido é evasiva e, como é comum em toda ação ilegítima e de caráter tirânico, ele traz
boas razões: seu medo de que o carisma e o prestígio da antiga figura monárquica
voltar contra seus líderes (um temor tipicamente tirânico). Por fim, ele argumenta que não
julgamento dos antagonistas. A resposta adequada de Edmund seria a imediata entrega dos
prisioneiros a Albany, visto que seu título de conde (Earl) está abaixo do de Albany
mais como um súdito, não como um irmão”, sublinhando com o termo “súdito” (subject,
“súdito”, mas também “submetido”) que não há igualdade entre os dois e que cabe a
Edmund (Gloucester) obedecer, não construir argumentos diante de um nobre que agora,
com a morte de Cornwall e a situação de Lear, tem em suas mãos uma autoridade
equiparável à da realeza. Mais uma vez na peça, a hierarquia está sob ameaça, as posições
66-89 Mas é … título é teu! Nem bem Albany diz a Edmund que ele está violando as regras de
Regan proclama que o nome de “irmão” será dado por ela mesma ao bastardo Edmund,
por meio de uma graça. Ela ainda desafia Albany dizendo-lhe que ela deveria ter sido
consultada antes de ele dar um tratamento tão desprezível a Edmund. O que Regan propõe
Afinal, ele liderou as forças (o que é diverso de possuir a autoridade das forças) e foi
delegação provisória, não algo que emana de sua posição. Aqui, algo interessante acontece:
já que Regan afirma que o poder e a “promoção” de Edmund provêm de sua “graça”,
Goneril imediatamente reage, dizendo-lhe para ir mais devagar em suas afirmações (“Não
vai com tanto fogo”): ela diz que Edmund, “com a própria graça”, ou seja, com suas
em quem louva melhor Edmund, lutando por sua posse, com o mesmo uso de palavras de
quando competiram na primeira cena para adquirir o favor do pai. Regan reforça sua
postulação em réplica ao desafio de Goneril: “Com os meus direitos, empossado por mim,
iguala-se aos melhores!”. No inglês, compeers é algo como “coparear”, “ser par de”,
pertencer ao mesmo estamento e à mesma classe. Ora, Regan se põe como a fonte da graça
de Edmund, mas Albany de imediato intervém dizendo, com ironia, concluindo logicamente
o que Regan propõe, que, para que ele se iguale a todos, ele teria de se tornar marido dela.
Ele completará que ela não tem em suas mãos essa permissão, chamando a autoridade para
si mesmo, pois ele tem grau mais alto de duque, sendo o único que pode de fato conceder
tais graças. Regan, já sentindo os primeiros efeitos do veneno ministrado por Goneril, ainda
numa última tentativa tenta proclamar Edmund seu igual no título: “Soa os tambores e
situação, o qual parece ter uma perspicácia (wit) que até então não se podia detectar com
clareza. Segundo ele, as pretensões de união de Regan com Edmund não são possíveis,
porque Goneril, sua esposa, já foi “subcontratada” para Edmund e, portanto, ele não pode
recair em contradição com esse fato, devendo contradizer o anúncio conubial de Regan. É
claro que Goneril, sempre aguda, vai dar um nome para essa cintilante encenação esperta
100-5 Estás armado, … proclamei Albany propõe um “duelo judicial” (trial by combat,
judicial duel), que tradicionalmente se inicia com as devidas liturgias, como o toque de uma
trombeta. Quando Albany pergunta se ninguém ali “surge pra provar na tua frente […]
tuas fartas traições”, está a seguir, obviamente, a legislação tácita de tais julgamentos.
Antes de tudo, acreditava-se que o duelo judicial tinha o beneplácito de Deus, que, em sua
suprema onisciência, na falta de provas no âmbito sublunar humano, faria ele próprio o
julgamento através do punho do vencedor (Janin, 2009, p. 17). Esse costume dificilmente
poderia ter a aprovação da teologia e não era mais do que um agregado de tradições pré-
cristãs que sobreviviam no âmbito do Medievo, inclusive às vezes praticado para acertar
diferenças entre monges nas ordens religiosas. Tais duelos, por óbvio, não eram usança nos
tempos de Shakespeare e eram vistos então como uma prática em desuso. O último desses
duelos ocorreu em 1446. O julgamento por meio de combate singular era usado no
qualquer uma das partes, e em que as duas partes do contencioso trocavam acusações
mútuas sem que uma solução se apresentasse para o julgador. O mais notável duelo dessa
qualidade na obra de Shakespeare está nas primeiras cenas de Ricardo ii, peça
toda a sua liturgia, entre Mowbray e Bolingbroke, um embate que Ricardo II interrompe
Edmund de que todos os soldados dele, “recrutados todos em meu nome”, foram
dispensados, ou seja, ele chama para si mesmo a autoridade com impressionante segurança.
permite ao leitor sua identificação, graças à notação do nome da página, dificilmente sua
identificação é possível no teatro, pelo menos de modo imediato. Ele entra com capacete,
armado cavaleiro, e aproveita a impossibilidade de sua identificação para, mais uma vez,
usar do artifício do disfarce a seu favor. Ele diz que “seu nome está perdido”, mas enfatiza
que é nobre como seu adversário. Essa menção à perda do nome — o nome de aristocrata,
em Pobre Tom, dizia que “Edgar já não sou”, ciente da perda de sua essência, que não
pode ser distinguida do reconhecimento paterno e da sua posição. Agora, contudo, ele
aparece como a figura mítica lancelotiana que retorna, armado cavaleiro, para colocar o
mundo de volta em seu lugar. É impressionante, numa peça tão destrutiva e talvez mesmo
cética como Rei Lear, que o final esteja tão marcado pelo ideal medieval do cavaleiro que,
após sua longa jornada no mundo selvático, retorna para vingar os tortos e pôr de volta o
mundo em seu bom eixo. No entanto, trata-se mais uma vez do truque de Shakespeare de
morte, e mesmo uma visão caótica e pessimista do cosmo, e, de outro, cenas que seduzem o
público com suas promessas de correção da desordem cósmica, de redenções que são
abortadas e de milagres que não são de facto milagres verídicos. Mesmo assim, não
deixamos de aceitar neles certa veracidade! O clichê do cavaleiro medieval que retorna é
sem dúvida inconsistente com o pessimismo dessa tragédia, mas logo, com movimentos
bruscos, essas belas ilusões de reparação são frustradas pela morte de Cordélia.
150-4 O mais sábio … da cavalaria Goneril dirá mais adiante que Edmund não precisaria
enfrentar um adversário que não se identificasse, cuja identidade ficasse velada. Sua
mortalmente.
164-5 Fecha essa … papel O papel, no caso, é a carta que Edgar havia tirado de Oswald
177 Façamos mútua caridade Como é sugerido por Foakes, há pouca caridade na fala
subsequente de Edgar. Ele acrescenta que “a alteração nele […] em relação à falta de seu
pai e sua compaixão por ele como um sofredor podem ser vistas como uma tentativa de
encontrar coerência moral naquilo que aconteceu com Gloucester” (Foakes, 1997, pp. 377-
Edmund, numa clara mudança de tom em relação à figura piedosa que havíamos visto em
boa parte de sua atuação como Pobre Tom. Agora, retornando como nobre armado
cavaleiro, vingador, seu discurso súbito assume uma lógica retribucionista: se ele fala de
caridade, é para responder à máxima cristã do perdão, sobretudo diante de seu próprio
irmão, e para aparecer, diante dos outros e do próprio público, não como simples vingador,
mas vingador investido de princípios devotos para quem o ato supostamente vingativo deve
ser atenuado por demonstrações de piedade cristã. No entanto, ao lado da caridade ele não
esquece da lógica retribucionista que se reflete agora nas linhas 181-4, nas quais claramente
relaciona uma relação causal e divinamente construída com a justiça divina, que usa de
“nossos vícios prazerosos” para nos castigar. É, sem dúvida, cruel e chocante que ele, até
agora tão piedoso, diga que “o fosso negro e impuro onde ele te gerou custou-lhe os
próprios olhos”, uma associação direta entre o ato sexual “ilegítimo” — fosso negro (que
desgraça. Entretanto, o espetáculo que Edgar oferece aos presentes em cena, e que
Shakespeare oferece ao seu público, é o do justo vingador cristão, que retorna para
restabelecer a ordem no mundo e que, agora, na sua fala, parece dar também uma
peça. Na verdade, toda essa encenação de legitimação da vingança e do ato sangrento, com
sua fala “justa” que endossa concepções teológicas primitivas, é apenas mais uma das
muitas iscas “cristãs” usadas por Shakespeare, que mobilizam os sentimentos de seu
público, a essa altura sequioso de um ato definitivo que traga a ordem pela vingança,
reverberando o desígnio divino. No entanto, notaremos que mesmo aqui, como na cena de
junto aos imaginários penhascos de Dover, é um chamariz que por um instante (logo
frustrado) flerta com concepções simples de retribuição. Mas sua lógica não se limita à
vingador, justo, caridoso, mas mesmo assim fechado com a ideia retribucionista de um
Deus que usa nossos vícios para nos castigar, dá especial legitimidade cristã ao seu ato e,
nesse sentido, longe de ver uma inverossimilhança em sua virada, podemos atribuí-la de
fato à necessidade de alocar sua ação na esfera do divino, recorrendo a uma interpretação
que Albany prontamente reconhece como justa, verdadeira e boa. O último Edgar ainda
encena, portanto, a “boa encenação” necessária quando o ato violento deve ser justificado
como se não fosse apenas um ato “individual”, mas submetido a uma vontade maior diante
da qual todos se curvam. Não raro, de fato, Shakespeare faz com que seus personagens
“encenem” sua posição de legitimidade diante de seus pares. Em Ricardo ii, na cena III.III
diante do castelo, onde um Ricardo derrotado e sitiado espera sua desgraça final, Boling-
broke, já com a vitória nas mãos, assume a persona provisória do súdito que se curva ao
rei, ainda que factualmente o rei esteja derrotado e o próprio Bolingbroke tenha o apoio
total da aristocracia rebelada. Essa encenação é fundamental, porque derrubar um rei não é
torno do poder divino dos reis. Diante de seus pares, ele sabe muito bem que deve evitar
qualquer erro nesse momento gradativo de derrubada de um rei legítimo, e que é preciso se
colocar ao lado da piedade para legitimar um ato que poderia ser interpretado como pura
usurpação.
193-211 Porque as cuidei, … explodiu sorrindo Diante da pergunta de Albany sobre como
Edgar ficou sabendo das misérias de seu pai, Edgar continua sua narrativa piedosa,
claramente construída para produzir comoção, ainda que a declaração de Edmund, logo
após a fala de Edgar (“Sua fala me comoveu”), não mereça grande crédito. Edgar fala como
filho piedoso e usa de toda a retórica possível para envolver os presentes e o próprio
público. Que ele tenha sido aquele que cuidou (“Porque as cuidei”) de seu pai e suas
misérias, ele não pode deixar de relembrar, pois sua autoapresentação é a da caritas: ele
livrou seu pai de um dos pecados mais perigosos, o desespero. Em outros termos, ele é um
agente da graça divina, ou pelo menos assim se figura, alguém que salva. Todos os detalhes
de sua piedade se apresentam através de exemplos comoventes. Ele o guiou, pediu esmolas
orgulho que pode advir da profissão dos bons atos, e por isso ele diz, numa declaração
patética — “oh, falta” — que foi um erro não ter se revelado ao seu pai, ter escondido sua
identidade. Agora, em sua mais nova encenação benéfica de vingador divino, braço da
justiça e de Deus, Edgar cuida de mostrar também suas faltas — que são, contudo, faltas
eficazes no âmbito do divino: mas ele deve cuidar de não se apresentar apenas como braço
guerreiro, militar, como força vingativa pessoal. A piedade deve estar envolvida em toda a
sua atuação como divinamente inspirada. No final de seu discurso, por fim descreve a
morte de seu pai, cujo coração explode sorridentemente, usando, portanto, uma imagem
típica da “morte venturosa”. Essa morte venturosa de Gloucester contrasta claramente com
212-4 Sua fala … mais a dizer É pouco provável que Edmund de fato deva ser representado
supostamente, mais adiante, ele tome a iniciativa de dizer do perigo em que Cordélia se
encontra.
218-31 Para aqueles … em transe Esse discurso de Edgar está ausente na edição Folio. Foakes
anticlímax que se segue à narração de Edgar da morte de seu pai” (Foakes, 1997, p. 200). É
possível que sim, mesmo assim há grandiosidade em um discurso que nos informa também
da comoção do próprio Kent, que, súbito, identifica Edgar como a força que retorna para
anagnórise (reconhecimento) que produz uma emoção que quase mata Kent. Se
dramaticamente a descrição não é de grande valia, ela reforça com clareza a figura
justiceira e benéfica que Edgar quer apresentar nesse momento, agora narrando não apenas
aquilo que percebeu de si mesmo, mas o que outro personagem percebeu ao identificá-lo. O
seja, o retorno piedoso, honesto, divinamente investido, de Edgar, ou que Edgar quer
transmitir. O testemunho da emoção de Kent, a história contada sobre Lear, reforça esse
entrelaçamento — e mais uma vez estamos diante da maestria retórica e política de Edgar.
251-3 Oh, vultosa … espetáculo ? Quando Kent chega para dar “boa-noite” ao rei, Albany se
lembra de que essa “vultosa coisa”, a situação do rei e de Cordélia, foi esquecida por todos
ali. Foakes assinala que, por ocasião de uma encenação, ouviu o público rir nervosamente
ao escutar essa fala (Foakes, 1997, p. 383). Albany até aqui estava absorvido nas mortes,
assassinatos e teria esquecido o que era mais importante. A exclamação de Albany pode ter
duas explicações: uma intradramática, e nesse caso a explicamos como uma reação
“natural” à distração com o monarca e sua filha, e outra extradramática, e nesse caso
Shakespeare propositalmente faz Albany dizer algo que, mais uma vez, mistura o trágico
com o farsesco (ou similares), como faz diversas vezes na peça. É muito possível que essa
segunda alternativa deva ser considerada pelo menos em parte, pois a sequência de ações e
falas nessa cena é extremamente volátil. Basta lembrar a ironia de Albany com o
vingador, braço de Deus) para entender que, de chofre, o desfecho final sugerido pela
aparição lancelotiana, justiceira e piedosa, não dá a palavra definitiva para a peça, e aqui a
transição de novo flerta com o risível. E justamente é a parte mais trágica, mais comovente
e também a mais repelente da peça, a da morte de Cordélia, que inicia aqui — com uma
318-22 Quanto a nós, … que merecida Albany ensaia uma devolução de poder a Lear antes de
sua morte. Como foi muito bem assinalado, contudo, a distribuição de distinções, nesse
último momento, para Kent e Edgar, soa absurda numa cena em que Cordélia jaz morta.
325 meu bobo enforcado! A crítica tende a interpretar essa expressão como se referindo a
Cordélia, a quem Lear se dirige com um termo carinhoso. Ao mesmo tempo, ao dizê-lo, ele
evoca o Bobo que desapareceu de cena, suscitando a imaginação de que também ele está
morto, produzindo assim um elo simbólico entre a sua filha predileta e seu companheiro de
andanças. Ainda em estado transtornado, de volta ao seu delírio, Lear pode estar
325-31 E meu bobo … Ele morre. Os sobrescritos, usados na atual edição, pontuando as
Impressões diversas são produzidas por cada uma das edições, se lidas separadamente. Em
Q, o discurso de Lear termina com “Oooooo! Ooooo!”, ao passo que F possui ainda mais
dois versos (“Estão vendo isto? Olhem, olhem, é ela, os lábios, olhem: lá, lá.”). Se Q dá um
fim mais sinistro a Lear, no F a sua morte parece precedida por uma única visão, o que
levou Bradley a defender que Lear morre feliz, com a impressão de que Cordélia ainda está
viva. No entanto, toda e qualquer interpretação que se possa dar a esses dois versos não
será nada além de especulação. Nem se pode saber se ele passa da infelicidade para a
alegria antes de sua morte, nem se pode pensar o seu contrário — ou se ainda ele tem uma
espécie de visão divina da elevação de Cordélia. As notações teatrais nos faltam, e somos
vislumbra algo no último momento, ainda que ilusório, é importante, porque revela a
ilusão de Lear e sua insistência em reencontrar um estado fusional com a filha, mesmo
perante a mudez da morte. Em tese, sua reação não é substancialmente diferente daquela
que teve quando os dois são presos e ele celebra o encontro irresponsavelmente, como se
houvesse alguma felicidade em estar preso, mesmo que com sua filha mais amada. Por fim,
numa peça de espiritualidade volátil em que Shakespeare está constantemente atraindo seu
público para imagens de resgate — para depois frustrá-las, e assim continuamente —, esse
último engano de Lear ganha significação especial: é o último ato de ilusão de um homem
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Tradução e notas de
Prefácio de
HAROLD BLOOM
Otelo
Tradução, introdução e notas de
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W. H. AUDEN
Hamlet
Tradução, introdução e notas de
Ensaio de
T.S. ELIOT
Um jovem príncipe se reúne com o fantasma de seu pai, que alega que
forjando uma brutal loucura para traçar sua vingança. Mas sua
inocentes.
Romeu e Julieta
Tradução e notas de
Introdução de
ADRIAN POOLE
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
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Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (USA) Inc.
TÍTULO ORIGINAL
King Lear
PREPARAÇÃO
Mariana Delfini
REVISÃO
Fernando Nuno
ISBN 978-85-5451-793-9
www.penguincompanhia.com.br
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
Otelo
Shakespeare, William
9788543808512
368 páginas