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5. OUTROS POETAS
CONTEMPORÂNEOS
Segundo indicação do programa, deverão ser estudados 3 poetas
contemporâneos (4 poemas de cada) de uma lista de 12.
Para possibilitar escolhas diferentes das propostas no manual,
trabalhamos aqui os restantes 9 poetas, apresentando:
– 1 pequena biografia;
– 4 poemas de cada + questionários + respostas.
• Jorge de Sena
• Alexandre O’Neill
• António Ramos Rosa
• Herberto Helder
• Ruy Belo
• Luiza Neto Jorge
• Nuno Júdice
• Manuel Alegre
• Vasco Graça Moura
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JORGE DE SENA
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PROFESSOR
Uma pequenina luz
1 Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
5 just a little light
una picolla… em todas as línguas do mundo Este poema está gravado nos arquivos RTP
uma pequena luz bruxuleante por diversos atores (na rubrica «Um Poema
por Semana», da RTP 2).
brilhando incerta mas brilhando E ainda:
aqui no meio de nós por CARMEN DOLORES
http://ensina.rtp.pt/artigo/jorge-sena-poesia/
10 entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
15 que vacila exata
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exatidão como a firmeza
20 como a justiça.
Brilhando indefetível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
25 Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefetível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
30 Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
35 Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exatidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
40 Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha
1950
Jorge de Sena, Fidelidade, in Poesia II,
Lisboa, Moraes Editores, 1978.
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200
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PROFESSOR
«Carta a meus filhos sobre os Fuzilamentos
de Goya», no
Leitura do texto
1. a. versos 1 a 14
b. versos 15 a 35
c. versos 36 a 45
d. versos 46 a 61
e. versos 61 (Confesso) a 71
f. verso 72 até ao fim
2. Liberdade de religião (v. 22);
| Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, pintura de Francisco Goya, 1814 direito de opinião (v. 22);
direito à igualdade, sem discriminação
(v. 28)
3. Apesar do horror histórico retratado no
quadro de Goya – o fuzilamento de
Leitura do texto inocentes, que queriam defender a sua
pátria – ele é apenas um dos inúmeros
Neste magnífico poema-carta, motivado pelo quadro de Goya, Jorge de Sena envia uma episódios da imensa cadeia de crueldade
profunda mensagem aos seus filhos. e injustiça humana, de que os
destinatários da carta (os filhos do sujeito
poético) também fazem parte, porque são
1 Divide o texto em partes, de acordo com as ideias abaixo veiculadas. humanos, e não se podem alhear da sua
condição.
a. Caracterização do mundo que o pai deseja para os seus filhos.
b. Evocação daqueles que ao longo dos tempos se sacrificaram pela defesa dos Direitos NOTA 1
Humanos. Um acontecimento histórico trágico serviu de
motivo a este quadro. Em 1808, o povo de
c. Explicitação da ligação ao quadro de Goya. Madrid revoltou-se contra a ocupação do
exército napoleónico e, na sequência dessa
d. Apelo à crença no valor da vida. revolta, os franceses fuzilaram centenas de
patriotas espanhóis. Seis anos depois,
e. Interrogação sobre o valor do sacrifício e reafirmação do valor da vida. Francisco Goya pintou este quadro, para
denunciar a arbitrariedade do poder e da
f. Afirmação do dever de preservar os valores daqueles que sacrificaram a vida por esses guerra que escolhe as suas vítimas entre os
valores. menos poderosos – o povo inocente. É
ainda um grito silencioso de revolta contra
2 Especifica três Direitos Humanos pelos quais deram a vida homens cujo número «não tem os opressores, pela defesa do patriotismo e
da liberdade.
conta» (v. 16).
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ALEXANDRE O’NEILL
Canção
1 Que saia a última estrela
da avareza da noite
PROFESSOR
Sobre ALEXANDRE O’NEILL e a esperança venha arder
RTP ENSINA venha arder em nosso peito
http://ensina.rtp.pt/artigo/alexandre-
-oneill-o-poeta-que-jogava-com-as-palavras/ 5 E saiam também os rios
Leitura do texto
da paciência da terra
1. A «última estrela», «os rios», «os sóis» e os É no mar que a aventura
«gestos de pura transformação» têm um tem as margens que merece
valor conotativo e metafórico positivo, na
medida em que remetem para a luz, a E saiam todos os sóis
limpidez, o poder criador. Nesse sentido, 10 que apodreceram no céu
estes elementos metafóricos correspondem
ao desejo de esperança, aventura, vida,
dos que não quiseram ver
transformação. – mas que saiam de joelhos
2. A «avareza da noite» remete para uma E das mãos que saiam gestos
realidade fechada, sem abertura para a
liberdade; a «paciência da terra» remete de pura transformação
para o conformismo de quem já não espera 15 Entre o real e o sonho
nada; a expressão «que apodreceram no
céu / dos que não quiseram ver» enuncia,
seremos nós a vertigem
muito claramente, um tempo de Alexandre O’Neill, Tempo de Fantasmas (1951),
estagnação e podridão para aqueles que in Poesias Completas, INCM, Lisboa, 1990
fecharam os olhos à verdade.
3. O sujeito poético, na sequência dos seus
desejos / sonhos de transformação do
mundo e da vida, metaforicamente
expressos ao longo do poema, afirma Leitura do texto
agora que o espaço que vai da realidade
ao sonho de transformação dessa
realidade é o lugar de vertigem, de
O sujeito poético exprime, de forma metafórica, um desejo de mudança.
aceitação de todos os sonhos, todos os
desejos, mesmo os mais impossíveis. E é 1 Indica as quatro metáforas que, iniciando cada uma das estrofes, são utilizadas na expressão
em «nós» que reside a capacidade de os desse desejo, interpretando o seu valor semântico.
concretizar e viver.
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O beijo
1 Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.
5 Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?
É uma ave estranha: colorida,
10 Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.
E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...
Alexandre O’Neill,
No Reino da Dinamarca (1958),
in Poesias Completas, Lisboa, INCM, 1990.
Leitura do texto
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PROFESSOR
Leitura do texto
O poema pouco original do medo
1. A afirmação «O medo vai ter tudo» inicia o
poema e repete-se, com variações, ao
1 O medo vai ter tudo 35 escriturários
longo de todo o texto: com o sujeito pernas (muitos)
subentendido e / ou o complemento direto ambulâncias intelectuais
alterado («vai ter olhos», «Vai ter
capitais», «O medo vai ter heróis»,), e e o luxo blindado (o que se sabe)
também com gradação ascendente ou 5 de alguns automóveis a tua voz talvez
descendente, exprimindo o sentir do 40 talvez a minha
sujeito poético: «Ah o medo vai ter tudo / Vai ter olhos onde ninguém os veja
tudo»; «O medo vai ter tudo / quase com certeza a deles
mãozinhas cautelosas
tudo». Vai ter capitais
2. Além da já referida repetição, concorrem enredos quase inocentes
países
para transmitir uma ideia de medo ouvidos não só nas paredes
generalizado: a enumeração e a suspeitas como toda a gente
10 mas também no chão
acumulação, por vezes caóticas e quase 45 muitíssimos amigos
aleatórias, de elementos, e a no teto
beijos
personificação insinuada do medo (vai ter no murmúrio dos esgotos
pernas, olhos, mãozinhas, ouvidos…) namorados esverdeados
e talvez até (cautela!)
3. Depois de enumerar tudo aquilo que o amantes silenciosos
medo vai ter, ou seja, tudo o que vai ser ouvidos nos teus ouvidos
usado para dominar pelo medo, o sujeito
ardentes
poético toma consciência de que também
5 O medo vai ter tudo 40 e angustiados
ele tem medo, acrescentando que é isso fantasmas na ópera
«o que o medo quer». Ah o medo vai ter tudo
sessões contínuas de espiritismo
4. Quando o medo dominar tudo («quase tudo
tudo»), os homens já não serão homens, milagres
pois ficarão desprovidos da sua coragem cortejos (Penso no que o medo vai ter
e da sua dignidade, serão ratos 20 frases corajosas e tenho medo
acossados, à procura de um buraco para
escapar, com medo. meninas exemplares 55 que é justamente
O poema compreende-se, situando-o no seguras casas de penhor o que o medo quer)
contexto em que foi escrito: 1960, período
maliciosas casas de passe
da ditadura, que recorria, precisamente, O medo vai ter tudo
ao medo para dominar, através, conferências várias
quase tudo
sobretudo da PIDE e de uma rede 25 congressos muitos
extensíssima de informadores (os olhos e e cada um por seu caminho
os ouvidos – reler a estrofe 2). ótimos empregos 60 havemos todos de chegar
poemas originais
quase todos
e poemas como este
a ratos
projetos altamente porcos
30 heróis Sim
(o medo vai ter heróis!) a ratos
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado (1960), in Poesias Completas,
INCM, Lisboa, 1990.
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Leitura do texto
4 «havemos todos de chegar / quase todos / a ratos / Sim / a ratos» (vv. 61-64)
• Interpreta este final do poema, enquanto representação de um tempo histórico.
Um adeus português
1 Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
5 Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
10 e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
15 que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
20 à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
25 policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
Alexandre O’Neill e Nora Mitrani,
mas da miséria de uma noite gerada fotografias do surrealista Fernando Lemos,
por um dia igual Lisboa, 1949
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ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013) nasceu em Faro, foi empregado de escritório, professor e
tradutor. Em 1951, fundou a revista «Árvore» e publicou o primeiro livro em 1958.
Da sua vastíssima obra poderemos destacar Viagem Através de uma Nebulosa, Ciclo do Cavalo,
Gravitações. Recebeu, entre muitos outros, os prémios de Poesia da Bienal de Liège, o Prémio Jean
Malrieu para o melhor livro de poesia traduzido em França em 1992, o Grande Prémio Sophia de Mello
Breyner Andresen, e o Prémio Pessoa – 1988.
PROFESSOR
Sobre ANTÓNIO RAMOS ROSA Não posso adiar o amor
RTP ENSINA
http://ensina.rtp.pt/artigo/alexandre- 1 Não posso adiar o amor Não posso adiar
-oneill-o-poeta-que-jogava-com-as-palavras/
para outro século ainda que a noite pese
não posso 15 séculos sobre as costas
ainda que o grito sufoque e a aurora indecisa demore,
5 na garganta não posso adiar para
ainda que o ódio estale outro século minha
e crepite e arda vida
sob montanhas cinzentas 20 nem o meu amor
e montanhas cinzentas nem o meu grito de
libertação
10 Não, não posso adiar este abraço
Não posso adiar o coração
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958.
Leitura do texto
1. O sujeito poético arrisca-se a que «o grito
sufoque na garganta», «o ódio estale e
crepite e arda», «a noite pese / séculos
sobre as costas / e a aurora indecisa Leitura do texto
demore». Significa que está disposto a
exprimir-se perante todos e a sofrer as 1 «Não posso adiar o amor»
consequências do ódio dos demais.
2. O amor, inicialmente referenciado em • Identifica os riscos que está o sujeito poético está disposto a enfrentar com esta sua
termos genéricos, passa a ser determinação, apoiando a resposta em elementos textuais.
concretizado em «este abraço», à medida
que o sujeito poético solta o seu grito 2 «[...] este abraço/ […] é uma arma de dois gumes/amor e ódio.» (vv.10-12)
pessoal de libertação. Por outro lado, o
paradoxo presente neste verso mostra o
• Justifica a utilização do deítico este e interpreta a contradição presente no v. 12.
amor na sua plenitude libertadora de
todos os impulsos – amor, quando é 3 Na 3.ª estrofe, surge finalmente a expressão «meu amor».
amor, ódio, quando é ódio.
3. De acordo com o poema, o amor é
• Interpreta a equivalência entre «meu amor», «minha vida», «meu grito de libertação»,
entendido como um grito reprimido que é «coração».
urgente libertar, para viver. É, pois, vida,
expressão de liberdade («grito de
libertação ») sentimento, («coração»).
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PROFESSOR
O funcionário cansado
1 A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
5 as casas engolem-nos Sobre ANTÓNIO RAMOS ROSA
sumimo-nos RTP ENSINA
estou num quarto só num quarto só http://ensina.rtp.pt/artigo/o-funcionario-
cansado-de-antonio-ramos-rosa/
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só Leitura do texto
1. O sujeito poético autocaracteriza-se como
10 Sou um funcionário apagado um funcionário apagado, triste, solitário,
confuso, com uma frustrada alma de
um funcionário triste poeta e os sonhos aprisionados numa
a minha alma não acompanha a minha mão vida sem sabor. Ao traçar o seu retrato e
Débito e Crédito Débito e Crédito o da sua vida, ele utiliza, em algumas
passagens, uma ironia triste, patente
a minha alma não dança com os números sobretudo na 2.ª estrofe («A minha alma
15 tento escondê-la envergonhado não dança com os números», «o chefe
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente apanhou-me com o olho lírico»,
«debitou--me na minha conta de
e debitou-me na minha conta de empregado empregado»).
Sou um funcionário cansado de um dia exemplar 2. Há um claro desajuste entre a
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? sensibilidade de poeta e a condição de
funcionário. Ser funcionário obriga-o a
20 Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? uma vida compassada pelo ritmo dos
números e dos documentos com que
Soletro velhas palavras generosas trabalha, o «Débito e Crédito»
Flor rapariga amigo menino referenciado no poema. No entanto, em
irmão beijo namorada oposição a esta condição, a sua alma
insatisfeita «não dança com os números»
mãe estrela música. e arrasta o seu «olho lírico» de poeta
25 São as palavras cruzadas do meu sonho para lá da realidade, para a beleza de um
pássaro, para as «velhas palavras
palavras soterradas na prisão da minha vida generosas» do seu sonho aprisionado.
isso todas as noites do mundo uma noite só comprida Contribui para este desajuste o espaço
num quarto só físico e social asfixiante e devorador que
o sujeito habita, numa «rua estreita», de
António Ramos Rosa, casas que o engolem, num
Viagem Através de Uma Nebulosa, 1960 aprisionamento dos sonhos mais simples,
num universo de funcionários que só
podem ter olhos para os papéis. Por isso,
nesse aprisionamento, perde tudo o que
possa ter de mais íntimo, pessoal e
Leitura do texto criativo, e fica um «funcionário cansado»,
«irremediavelmente perdido no (seu)
1 Mostra a autocaracterizarão que o sujeito poético faz, referindo a auto-ironia que utiliza no cansaço».
retrato que traça de si mesmo. 3. Apesar da sua existência de funcionário
apagado, ele soletra «velhas palavras»,
que povoam o seu sonho abafado – flor,
2 Explicita o desajuste existente entre a sensibilidade de poeta e a condição de funcionário, rapariga, amigo, menino, irmão, beijo,
bem como o papel que o espaço físico e social asfixiante tem nesse desajuste. namorada, mãe, estrela, música. São
palavras de libertação, que podem encher
de calor a alma mais fria, de cor o lugar
3 Explica o papel libertador da palavra poética. mais cinzento, palavras carregadas da
poesia, que o funcionário não ousa,
apenas timidamente soletra e deixa
escapar do «olho lírico». São palavras
instauradoras de amor, afeto, beleza,
vida, inocência, alegria, luz, tudo o que a
vida tem de bom se soubermos vivê-la.
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HERBERTO HELDER
O poema
1 Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
PROFESSOR Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
Sobre HERBERTO HELDER
«A ILHA DE HERBERTO HELDER»
talvez como sangue
RTP ENSINA 5 ou sombra de sangue pelos canais do ser.
http://ensina.rtp.pt/artigo/a-ilha-de- Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
-herberto-helder/
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
10 do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
15 E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
E as luzes e as trevas em volta da mesa
20 e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
Herberto Helder A Colher na Boca,
in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, 2014.
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PROFESSOR
POEMAS DE
Tríptico – II
HERBERTO HELDER
1 Não sei como dizer-te que minha voz te procura
FERNANDO ALVES e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
https://www.youtube.com/ esplêndida e vasta.
watch?v=JYR4li2_mtc
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
RODRIGO LEÃO
5 se enchem de um brilho precioso
https://www.youtube.com/
watch?v=Fr2xFBlQ6eg e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
10 – eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
15
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu jovem silêncio.
20 Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
25 os trevos, a água sobrenatural, o leve e o abstrato
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
30 um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
35 o amor,
que te procuram.
Herberto Helder, A Colher na Boca,
in Poemas Completos, Porto, Porto Editora, 2014.
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RUY BELO
Ruy Belo (1933-1977) nasceu em Rio Maior e licenciou-se em Direito, Direito Canónico e Filologia
Românica. Foi professor de Literatura e Cultura Portuguesa em Madrid e, durante anos, professor do
Ensino Secundário.
A sua poesia é uma das mais ricas e profundamente inquietantes da literatura portuguesa do
século XX. Aquele Grande Rio Eufrates, Homem de Palavra(s), País Possível, Despeço-me da Terra
da Alegria são alguns dos seus títulos reunidos na coletânea Obra Poética.
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PROFESSOR
O portugal futuro Sobre RUY BELO
«O PORTUGAL FUTURO»,
1 O portugal futuro é um país dito por Lula Pena
https://www.youtube.com/
aonde o puro pássaro é possível watch?v=2W32ftLnH34
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz Leitura do texto
5 esse peixe da infância que vem na enxurrada 1. No «portugal futuro», é possível o voo do
e me parece que se chama sável pássaro, ou seja, a liberdade; é possível o
desenho das crianças sobre o asfalto, ou
Mas desenhem elas o que desenharem seja, a criatividade; é possível a dança
é essa a forma do meu país das crianças, ou seja, a alegria; é
e chamem elas o que lhe chamarem possível a felicidade.
1.1 O desenho tem a forma de um peixe e
10 portugal será e lá serei feliz representa a infância. Ao desenharem
Poderá ser pequeno como este esse peixe sobre o asfalto negro, como
ter a oeste o mar e a espanha a leste quem desenha numa lousa, as crianças
estão a transformar a estrada em rio,
tudo nele será novo desde os ramos à raiz caminho vivo e natural.
À sombra dos plátanos as crianças dançarão 2. O que mudará no «portugal futuro» não
15 e na avenida que houver à beira-mar serão as dimensões nem as fronteiras,
nem o nome, mas sim o seu interior, a
pode o tempo mudar será verão sua alma («tudo nele será novo desde os
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz ramos à raiz»), ou seja, o país é árvore
mas isso era o passado e podia ser duro que tem de renovar-se para dar frutos
novos.
edificar sobre ele o portugal futuro 3. O sujeito poético identifica as badaladas
Ruy Belo, Homem de Palavra(s), do relógio da matriz com o passado, por
Lisboa, Assírio & Alvim, 2016. isso receia que ouvi-las, no «portugal
futuro», seja ficar preso a esse passado e
que, assim, a renovação necessária não
aconteça.
Leitura do texto 4. Rima – a rima, muito livre, musical e
flexível, apresenta-se com o esquema:
abcacbdada|eeafgfahh ou seja, há uma
1 Atendendo ao valor simbólico dos elementos «pássaro» e «criança», explicita o que, rima que predomina ao longo de todo o
segundo o sujeito poético, é possível no «portugal futuro». poema – país, giz, país, feliz, raiz, matriz ;
verifica-se a existência de conjuntos que
1.1 Propõe uma interpretação para o desenho das crianças e para o asfalto negro que serve se apresentam de forma variada
de suporte ao desenho. (emparelhada: este / leste, duro / futuro;
cruzada: desenharem /país / chamarem /
feliz; interpolada: feliz / este / leste / raiz );
2 O «portugal futuro» terá a mesma dimensão e as mesmas fronteiras que «este». Mostra o o único verso solto, o 15.º, não o é
que será diferente. completamente, pois rima com o interior
do verso seguinte – beira-mar / mudar.
3 Nesse país futuro, o sujeito poético gostaria de ouvir as badaladas do relógio da igreja, mas Aliteração – «o puro pássaro é possível»;
«desde os ramos à raiz»; «na avenida
um receio assalta-o. Explica esse receio. que houver»; «o passado e podia».
Outras repetições – desenhem /
4 Esclarece como se constrói a musicalidade deste poema, tendo em conta a rima, a aliteração desenharem; chamem / chamarem; será /
serei; este / oeste / este.
e outras repetições.
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Leitura do texto
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Na morte de Marilyn
1 Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
5 o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
10 ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
15 ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher | Retrato de Marilyn de Andy Warhol, 1967
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Luiza Neto Jorge nasceu em Lisboa em 1939 e morreu em 1989. Frequentou a Faculdade
de Letras de Lisboa e viveu alguns anos em Paris, onde se dedicou à tradução. O seu nome
ficou ligado à chamada «Poesia 61», embora a sua obra, como a dos restantes
intervenientes, tenha ultrapassado largamente este episódio literário. Os seus vários livros de
poemas foram, em 1973, reunidos no volume Sítios Sitiados e mais tarde em Poesia. Em
1989 saiu, postumamente, o livro A Lume. Poesia 61 Nome pelo qual se designou a
publicação de cinco plaquetes da responsabilidade de cinco jovens poetas: Fiama Hasse
Pais Brandão, Gastão Cruz, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito.
As casas
1 As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir
5 Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios
As casas fluem de noite
sob a maré dos rios
10 São altamente mais dóceis
que as crianças PROFESSOR
Dentro do estuque se fecham Leitura do texto
pensativas 1. São várias as ações executadas pelas casas.
Algumas têm a ver com o movimento: «vieram
Tentam falar bem claro de noite», «vão partir», «percorrem grandes
distâncias», flutuam sobre os rios. Outras são
15 no silêncio gestos corporais: «estendem os braços»,
com sua voz de telhas inclinadas «fecham os olhos», «tentam falar bem claro /
no silêncio / com a sua voz». Finalmente,
Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993. ainda apresentam outros traços humanos,
como a docilidade e a introspeção (4.ª
estrofe).
Leitura do texto 2. É interessante verificar que, ao longo do
poema se sugere ser a noite o momento de
personificação das casas (1.ª, 3.ª estrofes). As
1 Neste poema de cariz claramente surrealista, a personificação das casas atribui-lhes a
casas vieram de noite, foi de noite que
execução de ações e de traços humanos. assumiram a sua dimensão simbolicamente
• Explicita e caracteriza umas e outros. humana. De dia são apenas e, literalmente,
casas.
2 «As casas vieram de noite / De manhã são casas» 3. Estas casas são as pessoas que as habitam.
O facto de a dimensão humana ser ganha de
• Interpreta estes versos, considerando a antítese presente. noite vem confirmar esta ideia, pois é de noite
que as pessoas, os seus gestos e os seus
3 Propõe uma interpretação para o valor simbólico destas casas. sonhos habitam as casas.
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PROFESSOR
1
Adormeci Leitura do texto
na verde margem 1. O poema é um relato breve de uma noite
à sombra da ponte de amor que mudou os protagonistas que
com o meu amigo a viveram. A experiência é, pois, a
vivência dessa noite de amor ao ar livre,
«na verde margem / à sombra da ponte».
5 Ao despertar Foi uma experiência transformadora, pois,
nem sombra nem rio eram ao despertar, ambos se sentiam outros,
os mesmos como sentiam ser outro o lugar que lhes
serviu de cenário.
nem eu nem meu amigo
2. Verde é a cor simbólica da Natureza, da
os mesmos primavera, da juventude. O
10 nem verde a inundada desaparecimento do verde simboliza a
passagem a um estádio de adulto
margem atingido pela experiência vivida.
Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993. 3. O poema convoca as cantigas de amigo
da lírica trovadoresca, mais precisa-
mente as albas, pela voz feminina que
relata, na madrugada, uma noite de amor
Leitura do texto com o seu «amigo».
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NUNO JÚDICE
PROFESSOR
Sobre NUNO JÚDICE A fonte das imagens
RTP ENSINA
http://ensina.rtp.pt/artigo/nuno-judice-1949/ 1 Quando o poeta fala na «água clara», quando
Leitura do texto se refere ao trinado dos pássaros que lembra
1. O sujeito poético alude a imagens que o(s) um murmúrio de amantes quando ouve o vento
poeta(s) utiliza(m) tradicionalmente: a
«água clara» (referência às «claras e
e nele todas as memórias do mundo, do
frescas águas de cristal» do soneto de 5 que fala? As coisas mais pessoais não
Camões), o «trinado dos pássaros que podem dizer-se; nem esse corpo que ele guarda
lembra um murmúrio de amantes», «o
vento e nele todas as memórias do num canto de si próprio, pertence ao
mundo». Estas são imagens recorrentes poema que a ele vai buscar a sua beleza,
na poesia, em particular na poesia de e sem ele não teria existido. A mulher
amor, contendo, também por isso, grande
riqueza de alusões e de sugestões. 10 amada, com o seu signo de luz e a sua
2. O sujeito poético conclui que «as coisas chave de sonho, vestem-na todas as imagens
mais pessoais não / podem dizer-se», não que o verso envolve como um nó; mas
é possível ao poeta exprimir o que habita
o seu universo mais íntimo e se encontra é a sua ausência que o poema preenche,
guardado nos seus afetos e sentidos, nos dias em que nos separam, até
«num canto de si próprio». Por exemplo, 15 esse encontro em que nos esvaziamos
a poesia pode cantar a mulher amada de
mil e uma formas, porém, é sempre a sua de saudade, nos desfazemos de palavras,
ausência que o poeta procura superar. e só a música do amor se ouve, no silêncio
«Esse corpo» não pertence ao poema, ao
contrário, é dele que o poema recebe
da casa, até ao mais fundo da noite.
toda a sua beleza e razão de ser. Nuno Júdice, Geometria Variável,
3. De acordo com a pergunta e a respetiva in Poesia Reunida 1967-2000, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2000.
resposta, a «fonte das imagens» é a
mulher amada que, nunca pertencendo
ao poema, nunca estando
verdadeiramente ou suficientemente
presente no poema, o inspira e, Leitura do texto
inesgotável como uma fonte, lhe dá a
beber as imagens com que se constrói. 1 O poema começa com uma interrogação envolvendo imagens comuns na poesia.
• Identifica as imagens aludidas justificando a sua escolha.
2 «Quando o poeta fala […] do que fala?» (vv. 1 e 5)
• Explicita a resposta que o sujeito poético dá à sua pergunta.
3 Explica o título «A fonte das imagens», relacionando-o com o conteúdo do poema.
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Contas
1 Uma noite, quando a noite não acabava,
contei cada estrela no céu dos teus olhos;
e nessa noite em que nenhum astro brilhava
deste-me sóis e planetas aos molhos.
5 Nessa noite, que nenhum cometa incendiou,
fizemos a mais longa viagem do amor;
no teu corpo, onde o meu encalhou,
fiz caminho de náufrago e navegador.
Tu és a ilha que todos desejaram,
10 a lagoa negra onde sonhei mergulhar,
e as lentas contas que os dedos contaram
por entre cabelos suspensos do ar –
nessa noite em que não houve madrugada,
desfiando um terço sem deus nem tabuada.
Nuno Júdice, Rimas e Contas, in Poesia Reunida 1967-2000, PROFESSOR
Pub. Dom Quixote, 2000. Leitura do texto
1. O sujeito poético vê nos olhos da amada
um céu, ideia que remete para
profundidade, beleza, mistério, infinito.
Leitura do texto Por isso, é neles que encontra a luz das
estrelas, é neles que encontra a luz que
De uma maneira muito metafórica, o poema conta uma história de amor. lhe falta naquela noite «em que nenhum
astro brilhava» e ela lhe deu «sóis e
planetas» em abundância. Naquela noite,
1 contei cada estrela no céu dos teus olhos o sujeito poético recebeu da amada, em
nessa noite em que nenhum astro brilhava abundância, a luz mais intensa,
deste-me sóis e planetas aos molhos. hiperbolicamente nomeada na expressão
«sóis e planetas aos molhos».
• Relaciona os versos transcritos, interpretando o valor metafórico das expressões
sublinhadas. 2. Predomina, na segunda quadra, o campo
lexical de viagem marítima: encalhou,
2 Na segunda quadra, predomina um campo lexical também usado metaforicamente. caminho, náufrago, navegador. Este
campo lexical é usado para referenciar o
Identifica-o, registando as palavras que o integram e indicando o sentimento a que se refere.
amor.
3. «Contas» é um título polissémico com
3 Propõe uma interpretação para o título do poema. várias possibilidades de interpretação, no
poema. Pode significar contas aritméticas
feitas pelo sujeito poético na contagem
dos fulgores dos olhos da amada (v. 2);
podem ainda ser as contas de «um terço»
(v. 14) desfiando o tempo «sem deus nem
tabuada», ou seja, um tempo suspenso,
sem regras. Pode também transportar a
ideia de pérolas, preciosidade que o
mergulhador (na «lagoa negra», no
corpo) conta quando vem à superfície.
Finalmente, pode ser a forma verbal do
verbo contar: a narrativa do que
aconteceu pela voz, não do sujeito, mas
do destinatário.
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Preparativos de viagem
1 Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
5 de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr do sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
10 cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
15 indecisa a meio da noite, a constelação
PROFESSOR dos teus olhos quando os abres, e algumas
Leitura do texto folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
1. De «Vou ao dicionário e tiro palavras» (vv. me vem ditar. E se me disserem que tenho
2-3) até «passageiro insistente » (v. 6), o
sujeito poético detém-se nos aspetos da
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
geografia da viagem. De «mas continuo / 20 e ficarei só com a tua imagem, a estrela
a encher a mala» (vv. 7-8), até «e canta de um sorriso triste, e o eco melancólico
sem saber porquê» (vv. 12-13), é o
universo íntimo do seu habitat e do seus de um adeus.
afetos que o sujeito quer levar consigo. Nuno Júdice, Navegação de Acaso,
De «E outras coisas» (v. 13) até «a tua Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2013.
ausência / me vem ditar» (vv. 17-18) é o
universo da escrita e tudo o que ele
comporta de ligação ao amor, que o poeta
quer transportar consigo.
2. O poeta foi elencando aquilo que
considerava imprescindível levar consigo
na viagem. Agora, colocado perante a Leitura do texto
possibilidade de tudo ter de deixar, elege
o que lhe é vital, inseparável de si: a 1 O sujeito poético organiza, mentalmente, a lista do que tem de meter na sua mala de viagem
imagem da pessoa amada.
e fá-lo em três etapas de possibilidades.
3. O poema corresponde a uma descrição,
aparentemente prosaica, de uma ação • Delimita cada uma das etapas, referindo, genericamente, o conteúdo pensado para a mala.
banal: fazer a mala para viajar,
selecionando aquilo que é necessário 2 «E se me disserem que tenho / excesso de peso» (vv. 18-19)
levar. Acontece que a lista que o sujeito
poético vai elaborando não é constituída • Interpreta a conclusão do poema iniciada com esta afirmação, relacionando-a com o
por objetos. Ironicamente, começa por conteúdo dos versos anteriores.
afirmar que tira as palavras do dicionário,
depois, liricamente, escolhe a
imaterialidade do pôr do sol, o canto do 3 Mostra como, no poema, de forma muito surpreendente e com alguma ironia, se cruzam o
pássaro, o toque dos cabelos e o olhar da lirismo e o prosaísmo do mundo contemporâneo.
amada. Finalmente, a ironia na afirmação
do excesso de peso conjugada com o
lirismo da escolha da imagem amada no
momento melancólico da despedida.
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MANUEL ALEGRE
As mãos
1 Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
5 Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpas
10 as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
PROFESSOR
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Leitura do texto
1. De acordo com o poema, as mais diversas Manuel Alegre, O Canto e as Armas,
ações são realizadas pelas mãos: o Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2017.
entendimento e o desentendimento entre
os povos, os barcos com que se navegam
os mares, as alfaias com que se lavra a
terra, os frutos que ela dá, as casas, as
cidades e os poemas, a palavra – «o canto
Leitura do texto
e as armas».
2.1 As «mãos» são a metonímia do ser 1 «Com mãos tudo se faz e se desfaz.» (v. 2)
humano, o obreiro de todas as ações Mostra como a afirmação é confirmada pela diversidade de exemplos enumerados no poema.
enumeradas.
2.2 As mãos transformam-se em coisas, isto
é, fazem coisas, que perduram, que deixam 2 Dos vários recursos expressivos utilizados, sobressaem a metonímia e a metáfora.
a marca humana, resistente ao tempo.
Fazem também coisas efémeras, como as 2.1 Indica, fundamentando, de que são metonímia «as mãos».
folhas que o vento leva, como a música.
2.2 Interpreta as metáforas empregues no primeiro terceto.
3. Após ter demonstrado o poder
inquestionável do ser humano, o sujeito
poético convoca o leitor, lembra-lhe a 3 A conclusão é um apelo.
responsabilidade que tem, na defesa da Esclarece o sentido deste apelo.
liberdade.
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Portugal em Paris
1 Solitário
por entre a gente eu vi o meu país.
Era um perfil
de sal
5 e abril.
Era um puro país azul e proletário.
Anónimo passava. E era Portugal
que passava por entre a gente e solitário
nas ruas de Paris.
10 Vi minha pátria derramada
na Gare de Austerlitz. Eram cestos PROFESSOR
e cestos pelo chão. Pedaços Leitura do texto
do meu país. Na década de 60 do século XX, muitos
milhares de portugueses tiveram de emigrar
Restos. para a Europa, para fugir à miséria. Manuel
15 Braços. Alegre, que era exilado político em Paris,
Minha pátria sem nada assistiu a esse fluxo migratório que
desembocava sobretudo na gare de
sem nada Austerlitz.
despejada nas ruas de Paris. 1. A realidade é a da emigração portuguesa
em França, observada através da visão
E o trigo? dos emigrantes na gare parisiense de
20 E o mar? Austerlitz.
Foi a terra que não te quis 2. O sujeito poético percepciona um país
marítimo, proletário e muito pobre. Duas
ou alguém que roubou as flores de abril? metáforas muito expressivas o
Solitário por entre a gente caminhei contigo caracterizam: «um perfil / de sal / e abril»
e «um puro país azul e proletário». A 1.ª
os olhos longe como o trigo e o mar. remete para a condição marítima de
25 Éramos cem duzentos mil? Portugal; a 2.ª remete para o mar e para
E caminhávamos. Braços e mãos para alugar a condição simples e proletária dos
emigrantes. Já a enumeração de Cestos,
meu Portugal nas ruas de Paris. Pedaços, Restos, Braços remete para a
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, descrição da pátria exilada, transmitindo
Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2017. uma ideia de pátria rural, partida em
pedaços, caída, perdida em terra alheia.
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Salgueiro Maia
1 Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.
5 Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.
Por isso ficarás como quem vem
10 dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.
Manuel Alegre, País de abril,
Lisboa, Pub. Dom Quixote, 2014. Salgueiro Maia no 25 de Abril de 1974,
fotografia de Alfredo Cunha
Leitura do texto
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as meninas
1 as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços boias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas: PROFESSOR
Sobre VASCO GRAÇA MOURA
5 entre risadas como serpentinas, ARQUIVOS RTP
vai como a formosinha numa trova, https://arquivos.rtp.pt/conteudos/vasco-graca-
salta a pés juntos, dedos nas narinas, moura/
e emerge ao sol que o seu cabelo escova. Leitura do texto
1. O sujeito poético observa as filhas que, felizes,
a água tem a pele azul-turquesa mergulham e nadam numa piscina. A ternura
10 e brilhos e salpicos, e mergulham e o encantamento são emoções evidentes,
podendo destacar-se, para o confirmar, o uso
feitas pura alegria incandescente. dos diminutivos («pequeninas», «ninfinhas»),
de alguns adjetivos («o corpo esguio, as
e ficam, de ternura e de surpresa, longas pernas esguias»), da metáfora («feitas
nas toalhas de cor em que se embrulham, pura alegria incandescente»), da palavra
ninfinhas sobre a relva, de repente. «ternura» (uma das causas apontadas pelo
sujeito poético para a fixação deste
Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos, momento).
Alfragide, Ed. Asa, 2002.
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Leitura do texto
PROFESSOR
1 Uma sucessão de pedidos compõe o «soneto do amor e da morte». Leitura do texto
1.1 «murmura esta canção», «fica junto de
1.1 Enumera-os, explicitando o desejo comum que os origina. mim», «não queiras ver», «segura a
minha mão» «põe os olhos nos meus
1.2 Assinala o recurso à antítese, enquanto meio de exprimir a união. […] e diz do nosso amor», «fique por nós
o teu inda a bater». O desejo comum
2 Confirma a classificação de «soneto», atribuída pelo sujeito poético. que origina os pedidos é o de
proximidade, pela voz, pelas palavras,
pelas mãos, pelo olhar, pelo coração.
3 Mostra que o poema é uma declaração de amor. 1.2 A antítese estabelece-se, ao longo do
poema, entre as ideias de «morrer»
(partir) e «ficar» (junto de mim); de
«morrer» e «segurar» (prender); de
«morrer», o (meu) coração «deixar de
bater» e o (teu) «fique por nós inda a
bater»; entre «escrever» e «murmurar»,
«dizer». Exprime, portanto, a
aproximação de contrários, a união.
2. Ainda que a estrutura estrófica não
corresponda à habitual – em duas
quadras e dois tercetos – o poema tem
catorze versos, rimados e decassílabos.
3. O poema, escrito para o ser amado,
exprime a certeza de que o seu amor,
que dói de tão perfeito, existirá enquanto
o seu coração bater, e pede-lhe que o
recorde, que o mantenha vivo no seu
coração.
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Nota: alusão ao poema de Camilo Pessanha começado pelos versos «Imagens que passais
pela retina / Dos meus olhos, porque não vos fixais?»
PROFESSOR
Leitura do texto
Leitura do texto
1.1 Ao campo lexical de visão pertencem as
palavras «retina», «ensombramento»,
1 «fugitivo passar pela retina»
«relâmpago», «desvendar-se». 1.1 Dos primeiros sete versos, transcreve as palavras do campo lexical de visão.
1.2 A ausência é a sombra, o silêncio, o
desligar da realidade, enquanto a 1.2 Expõe o que distingue as situações marcadas pela ausência do destinatário daquelas
presença traz a luz, o desvendamento em que este está presente.
das imagens do mundo.
2.1 O sujeito poético interroga-se sobre os
motivos da ausência, o que afasta de si 2 «e eu pergunto:…» (v. 8)
a poesia.
2.1 Interpreta a pergunta colocada pelo sujeito poético.
2.2 A tristeza é uma das razões possíveis,
outra, mais concreta e com a qual as 2.2 Interpreta, também, as três hipóteses de resposta subsequentes.
duas outras se prendem, a doença e a
«cama de um hospital», «o branco
desolado das paredes», a «mudez de 3 Explicita a conceção de poesia que o poema pressupõe.
estranhos aparelhos», a última, a
desesperança.
3. A poesia surge no poema como a forma
privilegiada de ligação à vida. Sem ela, o
que fica é um «ensombramento», um
desamparo do real.
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