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Razão poética e laço social1

Angela Cavalcanti Bernardes2


Departamento de Psicologia – UFF

Resumo: O poema em prosa de Arthur Rimbaud intitulado À une raison foi comentado por
Lacan em diferentes ocasiões de seu seminário. A poesia de Rimbaud, para sempre
associada à ruptura e à reinvenção, inspira-nos a reflexão sobre a emergência de um novo
laço social como acontecimento de discurso.

Palavras-chave: Literatura e psicanálise; Rimbaud; razão poética; amor novo; discurso


analítico

Um curto poema em prosa das Iluminações de Arthur Rimbaud foi citado por
Jacques Lacan em mais de uma ocasião em suas aulas. Seus breves comentários
confirmam-nos aquilo que Freud dizia ao afirmar que fosse lá o caminho que tomasse, um
poeta já o teria feito antes.
Longe de inventariar o alcance desse pequeno texto intitulado À une Raison,
queremos, assim mesmo, lembrá-lo aqui e interrogar o sentido de uma mudança radical
louvada e operada pelo poeta. A poesia de Rimbaud, para sempre associada à ruptura e à
reinvenção, nos guiará numa breve reflexão sobre a emergência de um novo laço social.

À une raison
Un coup de ton doigt sur le tambour décharge tous les sons et commence la nouvelle harmonie.
Un pas de toi, c´est la levée des nouveaux hommes et leur en-marche.

1
Esse texto, fruto das reflexões de Pós-doutorado em Estudos literários na UFMG, retoma as principais
idéias expostas no Colóquio Internacional “Psicanálise e arte: saber fazer com o real” organizado pelo PPGP
da UERJ no Rio de Janeiro em outubro de 2007.
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Professora associada do Departamento de Psicologia da UFF; doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ; e-
mail: angelabernardes@terra.com.br.

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Ta tête se détourne: le nouvel amour! Ta tête se retourne, – le nouvel amour!
“Change nos lots, crible les fléaux, à commencer par le temps”, te chatent ces enfants. “Élève
n´importe où la substance de nos fortunes et de nos voeux” on t´en prie.
Arrivée de toujours, qui t´en iras partout.

A uma Razão
Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.
Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha.
Tua cabeça se vira: o novo amor! Tua cabeça se volta, – o novo amor!
“Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças,
diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te.
Chegada de sempre, que irás por toda parte (RIMBAUD, 2004).

O poema se dirige a uma Razão que, como o artigo indefinido indica, não é A razão.
O poeta não louva a racionalidade. Pelo contrário, antes mesmo de Nietzsche, Rimbaud
questiona as bases do racionalismo cartesiano. Como assinala Pierre Brunel, em seu
minucioso comentário sobre a razão na obra de Rimbaud, este “não se contenta em
constatar a impotência do saber racional; ele empreende uma verdadeira subversão da
razão” (BRUNEL, 2004, p. 218). Em carta a Izambard de 13 de maio de 1871, o jovem
poeta escreve: “É errado dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: Pensam-me”. Nessa carta,
assim como naquela dirigida a Paul Démeny dois dias depois, Rimbaud denuncia a
impostura do cogito cartesiano ao afirmar: “Eu é um outro”, colocando assim em questão o
pilar racionalista do pensamento francês.
Nessas duas cartas, que entraram para a história da literatura referidas como as
“Cartas do vidente”3, o jovem expõe seu projeto: “Quero ser poeta e trabalho para me
tornar vidente. Trata-se de chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os
sentidos”. Nessa ascese, que parece seguir os versos baudelairianos “Plonger (...) au fond
de l´inconnu pour trouver du nouveau”, o poeta aspira “encontrar uma língua” para “fazer
com que se sintam, apalpem, ouçam suas invenções; se o que ele traz de longe tem forma,
ele dá forma; se é informe, ele dá informe,...”. É possível reconhecer aí dois traços
antinômicos destacados por seus comentadores. Por um lado, o desregramento, a ruptura
com as velhas formas, a “anarquia destrutiva” (BERNARD, 1959, p. 153) que parece se

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Essas cartas podem ser lidas em português graças à tradução de Marcelo Jacques de Moraes publicada na
Revista Alea de estudos Neolatinos, vol. 8, n.1, jan-jul 2006, p. 154-166.

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alinhar com uma crítica feroz, na correspondência mencionada, aos “velhos imbecis [que
acreditando no Eu como senhor de seus atos] proclamam-se autores”. Por outro lado, esse
desregramento dos sentidos é feito com “um longo, imenso e estudado (raisonné)” cuidado
e o seu trabalho com a língua ao mesmo tempo em que rompe com as regras clássicas da
poesia versificada, é um trabalho cujo virtuosismo é insistentemente observado pelos
comentaristas de sua poética, com o que queremos indicar que suas “novas formas” não
dispensam a lógica e a sintaxe, mas as subvertem para abrir caminho para um pensar novo,
um dizer novo.
A questão da razão na obra de Rimbaud é co-extensiva à sua reflexão sobre a
criação poética que, como vimos, suspende o sujeito do pensamento: “Eu não penso (...)
assisto à eclosão do meu pensamento, contemplo-o” e do ato de criação: “se o cobre
desperta clarim, não é por sua causa” ou ainda, é “a madeira que se descobre violino”,
como escreve nas referidas cartas. A razão poética, como, aliás, o saber em ato em qualquer
criação artística, não é o saber do Eu. De onde advém então a poesia?
Para os surrealistas, assinala Étiemble, a poesia de Rimbaud é assimilada a um “ato
de conhecimento irracional” (ÉTIEMBLE, 1952, p. 133). O Rimbaud dos surrealistas, seria
o poeta da (ir-)razão inconsciente. Ora, há de fato, todo interesse em aproximar a poesia,
qualquer uma que mereça esse nome, e o saber do inconsciente no sentido lacaniano de
“um saber-fazer com lalíngua” (LACAN, 1972-1973/1985, p. 127). Lalíngua é um termo
forjado por Jacques Lacan para dar conta de uma infiltração de gozo na língua, uma
cifração na língua “de um gozo próprio ao sujeito, e que [na poesia] se dá a ler, se transmite
no oco do sentido alterado” (GUÉGUEN, 2000). Podemos aproximar a teoria da lalíngua
de que é feito o inconsciente da teoria da vidência, sobretudo se levarmos em conta a
ambição do poeta de “encontrar uma língua [que seria] da alma para a alma”, nas palavras
das “Cartas...”. Sim, há um sentido nessa aproximação e um trabalho epistemológico pode
ser feito entre nós, analistas, nesse sentido. Porém, ainda que Rimbaud possa ser
considerado precursor do surrealismo por ter suspendido o Eu no ato da criação, situo-me
entre os que acreditam que é um erro celebrá-lo como poeta da irrazão, ou acreditar que sua
poesia visa, como a dos surrealistas, dar curso à livre associação de idéias. A razão cantada
por Rimbaud nesse texto não é aquela descoberta por Freud na estrutura sub-jacente ao

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discurso da histérica. A razão poética não é nem o senso cartesiano nem o inconsciente
freudiano.
Suzanne Bernard, apresentadora e comentadora da edição Garnier de suas Obras,
sugere que a Razão cantada por Rimbaud em tal poema é a que dará à humanidade novas
leis e engendrará o progresso. As expressões “Nova harmonia”, “levante dos novos homens
e sua marcha”, lembram a literatura do iluminismo social que Rimbaud lia em sua idade
escolar e aludem também às idéias dos progressistas que aderiram à Comuna de Paris.
Segundo ela, estes versos devem ter sido escritos em 1872-73, época em que Rimbaud
ainda acreditava na transformação da sociedade e na renovação dos costumes (BERNARD,
1960, p. 492-93). Seu entusiasmo com a Comuna é atestado por diferentes autores. Ele
admirava a insurreição em nome da liberdade e lastimou, com o fracasso da Comuna, “a
esperança abortada de uma grande mudança” (FORESTIER, 2004). Nessa perspectiva, “os
novos homens” da segunda frase são os revolucionários, e a marcha deles é a marcha para a
nova humanidade. Ora, ainda que não se possa negar a influência desse anseio por uma
nova ordem social nas linhas desse poema, é sobretudo uma modificação que toca no
singular de cada um o que esse poema parece anunciar. Como o príncipe no poema Conte,
“antevia surpreendentes revoluções no amor”.
Mais do que uma nova humanidade ou uma nova sociedade, o novo amor indica um
novo laço social, isto é, um novo discurso, no sentido de Lacan. Um discurso que semeie a
substância do nosso desejo, pede o poeta.
O novo amor é, para Lacan no Seminário Mais, ainda, signo da emergência de um
novo discurso:

o amor, nesse texto, é o signo, apontado como tal, de que se troca de razão, e é por isso que o poeta
se dirige a essa razão. Mudamos de razão, quer dizer – mudamos de discurso” (LACAN, 1972-
1973/1985, p. 26).

Entre 1969 e 1972, Lacan trabalha com a categoria de discurso, como dito acima,
como laço social. Ele define quatro discursos que são quatro modos de apreensão dos
efeitos da linguagem, quatro maneiras de tratar, pelo simbólico, o real inapreensível pelo
significante. No seminário Mais, ainda, ele afirma que há sempre alguma emergência do
discurso psicanalítico a cada passagem de um discurso a outro. Uma experiência da

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mudança de discurso é a isso a quê a descoberta freudiana conduz. Mais ainda do que a
descoberta do inconsciente como discurso, a mudança operada por Freud, e que se opera
em cada análise, é a instauração de um laço social inédito. Laço transferencial entre
analisante e analista, sim. Mas, sobretudo, e é nisso que a aproximação com a razão do
poeta nos interessa aqui, uma estrutura de discurso “regida” pela causa do desejo, para
além, ou para aquém, dos ideais identificatórios do eu. Um discurso cuja emergência
decorre de uma virada de discurso, de “um passo...”.
Um passo, um toque, um átomo, um movimento e é o novo amor. O amor, do qual
Rimbaud diz em Gênio: “medida perfeita e reinventada, razão maravilhosa e imprevista, e a
eternidade”. Imprevisto e eternidade: com esse oxímoro o poeta une dois pólos da
anacronia. O tempo na sua poesia é um inimigo, uma das “calamidades” a serem
exterminadas por uma outra razão. A razão imprevista, o novo amor, é “chegada de
sempre” e é um começo. Mas o que é eternidade senão, como resume Badiou: a “presença
do presente” (BADIOU, 1993, p. 142)? A mudança anunciada não é uma mudança no
sentido de um progresso, mas no de uma inauguração: a determinação de um começo.
Invenção de desconhecido.
No seminário sobre O ato analítico, Lacan lê as primeiras linhas desse poema e
observa: “esta é a fórmula do ato” (LACAN, [1968-1969]) A referência a esse poema, onde
o significante “novo” aparece quatro vezes, serviu-lhe, nessa ocasião, para evocar uma
dimensão do ato que é a de suscitar o novo. “Suscitar um novo desejo” (LACAN, idem).
A estrutura do discurso do analista tem por agente a função de suscitar o desejo. De
um resto que funcionava como gozo opaco, o analista emerge na sua função de causa de
desejo, na contingência de um encontro, no acontecimento de um amor. Um amor, como
profetizou Rimbaud, reinventado. Pois caberia a questão de saber se o amor como signo da
emergência de um novo discurso seria ainda um sentimento, com todas as tapeações
marcadas pelo semantema ment de um sentimento. Existirá um amor que ultrapasse os
limites narcísicos de todo amor? Um amor, capaz de reduzir os fenômenos imaginários de
massa no laço social? O amor, como contingência, é o que “pára de não escrever” o
impossível da relação entre os sexos. Se a enganação do amor é tomar a contingência como
necessário, substituindo o “pára de não se escrever”, pelo “não pára de se escrever”, como
depreendemos da leitura do Seminário Mais, Ainda, tenderíamos a propor que o Novo

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amor, razão imprevista, é o que do amor é a pura contingência. Algo da ordem de um
acontecimento. Um acontecimento é algo que determina um novo começo ou, como define
Alain Badiou, é “o que nos constrange (contraint) a decidir uma nova maneira de ser”
(BADIOU, 1993b, p. 38).
Assim sendo, a emergência de um amor novo no laço psicanalítico é o que permite
um encontro com o real. Um amor que, por tocar no impossível, poderá fazer emergir o
possível, mudando nosso destino, semeando a substância do desejo e se transmitindo “por
toda parte”.

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Referências Bibliográficas

Edições das obras completas de Arthur Rimbaud

BERNARD, S. (1960) Oeuvres. Paris: Garnier.

FORESTIER, L. (2004) Oeuvres complètes/correspondance. Paris: Robert Lafont.

Outras referências bibliográficas

BADIOU, A. (1993) “L´interruption”, in Le millénaire Rimbaud. Paris: Belin.

BADIOU, A. (1993b) L´étique; essai sur la conscience du Mal. Paris: Hatier.

BERNARD, S. (1959) “Rimbaud et la création d´une nouvelle langue poétique”, in Le


poème em prose de Baudelaire à nos jours. Paris: Nizet.

BRUNEL, P. (2004) Éclats de violence; pour une lecture comparatiste des Illuminations
d´Arthur Rimbaud. Paris : José Corti.

ETIEMBLE. (1953) Le mythe de Rimbaud. Paris: Gallimard.

GUÉGUEN, P.-G. (2000) “Pouètes de pouasie”, in Quarto, n. 70, p. 24-26.

LACAN, J. (1968-69) O ato analítico. (Seminário inédito)

LACAN, J. (1972-1973/1985) O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.

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Poetic reason and social bond

Abstract: Arthur Rimbaud’s prose-poem entitled À une raison was commented by Lacan
in different occasions of his Seminar. Rimbaud’s poetry, forever associated with rupture
and reinvention, inspires our reflection on the manifestation of a new social bond as a
discourse happening.

Key words: Literature and psychoanalysis; Rimbaud; poetic reason; new love; analytic
discourse

Recebido em 05/05/08
Aprovado em 04/06/08

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