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a partir da sua segunda edição, vem inicialmente a público em 1975, após nove anos do
surgimento da sua hipótese central, já bastante conhecida. De acordo com o autor,
durante uma aula ministrada por ele sobre as Invasões Holandesas ao nordeste
brasileiro, no período colonial, aparece-lhe a seguinte intuição inicial: “e se Descartes
tivesse vindo para o Brasil com Nassau, (...) ele, Descartes, fundador e patrono do
pensamento analítico, apoplético nas entrópicas exuberâncias cipoais do trópico?”
(LEMINSKI, 1989, p. 207).
Os críticos e historiadores literários costumam identificar em Oswald de Andrade, mais
especificamente em “Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924), o marco inicial
da prosa de invenção no Brasil. De fato, Haroldo de Campos (1992, p. 106), um dos
mais argutos estudiosos de sua obra, reconhece que com este romance e, mais tarde, em
1933, com “Serafim Ponte Grande”, Oswald tenha plantado “o marco definitivo de
nossa prosa nova”.
Do primeiro, nos diz o crítico (1975, p. 104), “a grande inovação se punha sobretudo no
nível da sintaxe da escritura, no nível microestético do encadeamento estilístico das
unidades do texto (palavras e frases)”. Utilizando-se da expressão “cubo-futurismo
plástico-estilístico” para caracterizar o perfil dessa prosa, ele assim a explica:
No Miramar, pudemos reconhecer um estilo cubista ou metonímico,
na maneira pela qual Oswald recombinava os elementos frásicos à sua
disposição, arranjando-os em novas e inusitadas relações de
vizinhança, afetando-os em seu nexo de contigüidade, como se fosse
um pintor cubista a desarticular e rearticular, por uma ótica nova, os
objetos fragmentados em sua tela. (1975, p. 104)
Tal prática não só aponta para o frutífero diálogo estabelecido por Oswald com as
vanguardas europeias do início do século XX, especialmente com o Cubismo e o
Futurismo, como também para a moderna sintaxe analógica e ideogramática, no sentido
eisensteiniano, do cinema. A técnica da montagem, a partir da justaposição de
fragmentos e planos diversos, rompe com o discurso lógico-linear e instaura uma prosa
mais afeita ao espírito moderno.
Do segundo romance, Haroldo de Campos destaca a ampliação dessa prática cubo-
futurista e cinematográfica, de modo a abranger a estrutura sintagmática da narrativa,
sua macroarquitetura, estabelecendo, de modo paródico, uma revisão do próprio gênero
romance. “O Serafim”, nos diz ele,
Catatau é considerado ainda hoje um dos grandes livros da literatura brasileira embora
em realidade tenha sido muito pouco lido. Trata-se de um livro que tem quatro edições
(1975, 1989, 2004 e 2010), e a crítica hesita sempre em como classificá- -lo, já que há
dificuldade em inseri-lo num gênero estabelecido. O “romance- ideia”, como definido
por seu autor, é também chamado por vezes de ‘prosa experimental’, assemelhando-se a
um certo estilo joyciano. Entretanto, reconhece-se que:
quaisquer que sejam as extravagâncias, anomalias ou disrupções do
projeto leminskiano, trata-se, fundamentalmente de um projeto de
prosa. Um projeto ambicioso, levado minuciosamente à consecução,
no qual a poesia (para falar como Walter Benjamin) é apenas o método
(não-cartesiano) da prosa. (CAMPOS, 1989).
Todo experimentalismo colocado nessa obra se converte em algo de fundamental
importância para a teoria semiótica. Trata-se de um texto em que a narratividade não é
central e, pode-se dizer, é mesmo quase inexistente. Suas mais de duzentas páginas se
desenvolvem em um único parágrafo de frases curtas e sem uma linearidade própria.
Nesses manifestos, Oswald expõe idéias e princípios fundamentais ao projeto do
“Catatau”. Do “Pau-Brasil”, destaca-se imediatamente o conceito do primitivismo, já
decantado, inclusive, pelas vanguardas europeias. Se lá representava a busca dos
aspectos primordiais da arte, em Oswald ele correspondeu também à busca de um novo
pensar, de uma reeducação da sensibilidade – “Nenhuma fórmula para a contemporânea
expressão do mundo. Ver com olhos livres.” (ANDRADE, 1978, p. 9) –, contrapostos
ao pensamento tradicional, informado por uma lógica utilitarista e redutora. É imediata
a associação desta perspectiva aos desígnios do “Catatau”, ou seja, o de questionar a
validade do velho pensamento europeu, marcado por um racionalismo de cunho
idealista, formalista e exclusivista, frente à originalidade dos trópicos, diante dos
elementos surpreendentes da miscigenada realidade brasileira.
Do “Manifesto Antropófago” temos a própria orientação do seu método construtivo. Benedito
Nunes (1978, p. xxv), ao comentar o conceito de antropofagia, reconhecia que este era, a um só
tempo, uma metáfora, um diagnóstico e uma terapêutica. Metáfora do que “deveríamos
repudiar, assimilar e superar”, diagnóstico da “repressão colonizadora”, e terapêutica, no sentido
de servir como um “tônico reconstituinte para a convalescença intelectual do país e de vitamina
ativadora de seu desenvolvimento futuro”. Fica claro, portanto, o débito do “Catatau” não só
com os propósitos éticos, sociais, políticos e culturais desse pensamento, mas também com os
procedimentos artísticos dele decorrentes. Na seguinte passagem localizada logo em seu início,
por exemplo, seu narrador, Cartesius, já enuncia: “Índio pensa? Índio come quem pensa – isso
sim. Índio me chupando, pensará esses meus pensares, ou pesará de todo este meu peso,
instantâneo parado momento, comendo sem comentário” (CAT, p. 38).
O outro lado dessa modalidade inusitada de articulação dos signos, fruto do seu
laconismo e alto poder de sugestão, é a abertura que proporciona para novos horizontes
de significação. Semanticamente, a montagem aponta para o ainda não verbalizável, o
não-dito, ampliando, assim, as relações entre linguagem e mundo e permitindo a
sondagem de realidades imprevisíveis.
No “Catatau”, a montagem está presente tanto no plano macro do texto, no seu
encadeamento narrativo, quanto no plano micro, em seu âmbito lexical, nas formações
neológicas. A elaboração de novas palavras montadas a partir de outras é um dos seus
recursos mais produtivos, destacando-se o caso das palavras-valise. Podemos falar,
assim, de uma montagem textual e de uma montagem lexical. Neste item, discorreremos
de modo geral sobre a primeira, deixando a segunda para um tratamento minucioso e
destacado mais à frente, considerando sua importância central na elaboração do
“Catatau”.