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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
MATO GROSSO DO SUL
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Revista de Estudos Literários da UEMS
Ano 5, Número 8
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Campo Grande, julho de 2014
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REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS

ANO 5, v.1, NÚMERO 8 - TEMÁTICO

“Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação”

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL


Unidade Universitária de Campo Grande

REITOR
Fábio Edir dos Santos Costa

VICE-REITORA
Eleuza Ferreira Lima

GERENTE DA UUCG
Kátia Figueira

COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM


LETRAS
Eliane Maria de Oliveira Giacon

COORDENADOR DA REVELL
Danglei de Castro Pereira

EDITORA DO NÚMERO
Lucilene Soares da Costa

GRUPOS DE PESQUISA
“Literatura, História e Sociedade”
“Historiografia, Cânone e Ensino” - HCEns

COMITÊ CIENTÍFICO - REVELL


Ana Aparecida Arguelho (UEMS)
André Rezende Benatti (UEMS)
Antonio Rodrigues Belon (UFMS)
Benjamin Abdala Junior (USP)
Cilaine Alves (USP)
Danglei de Castro Pereira (UEMS)
Daniel Abrão (UEMS)
Fabio Akcelrud Durão (UNICAMP)
Fábio Dobashi Furuzato (UEMS)
Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL)
Eliane Maria de Oliveira Giacon (UEMS)
Gisela M. Lima. B. Penha (UFAC)
Gregório Foganholi Dantas (UFGD)
José Batista Sales (UFMS)
Lucilene Soares da Costa (UEMS)
Lucilo Antonio Rodrigues (UEMS)
Milena Magalhães (UNIR)
Paulo Custódio de Oliveira (UFGD)
Rauer Rodrigues (UFMS)
Ravel Giordano Paz (UEMS)
Regina Zilberman (UFRGS)
Rogério da Silva Pereira (UFGD)
Rosana Nunes Alencar (UNIR)
Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)
Sandra A. F. Lopes Ferrari (IFRO)
Susanna Busato (UNESP)
Susylene Dias Araújo (UEMS)

DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO
Lucilene Soares da Costa

TÉCNICO RESPONSÁVEL
Joab Cavalcante da Silva

O conteúdo dos artigos e a revisão linguística e ortográfica dos textos são de responsabilidade dos
autores.

REVELL - Revista de Estudos Literários da


UEMS, ano 5, n. 8. Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul. Campo Grande: UEMS, 2014.

Semestral

ISSN: 2179-4456

1. Literatura. 2. Teoria literária.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .............................................................................................................................. 5

DOSSIÊ ................................................................................................................................................ 7

Profano, maldito e marginal: o conto fantástico na literatura brasileira ........................................................ 8

Tal mestre, qual aprendiz? - (des)constituição da experiência em Selva trágica ........................................ 23

Nove noites: a escuridão do outro................................................................................................................ 37

El árbol: um ensaio sobre a mulher e suas relações em família .................................................................. 46

A voz na peça radiofônica de Artaud e sua linguagem subversiva marginal .............................................. 55

O poeta e a cidade - da Paris de Charles Baudelaire ao Rio de Ramon Mello ............................................ 65

SEÇÃO DE TEMA LIVRE ............................................................................................................... 74

O narrador em Jorge Luis Borges: interfaces do leitor ................................................................................ 75

Duas mulheres sob o olhar de Hitchcock: Os filmes Notorious (1946) e Marnie (1964) e as mulheres
perigosas de uma época ............................................................................................................................... 86

A fuga da miséria e da fome no romance Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos ............................. 104
APRESENTAÇÃO

A REVELL - Revista de Estudos Literários da UEMS - dá a conhecer ao público aca-


dêmico e geral seu 8º número, o 5º temático. Ligada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e
aos grupos de pesquisa “Historiografia, Cânone e Ensino” e “Literatura, História e Sociedade”, da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a publicação resulta de pesquisas e discussões de-
correntes das atividades desses grupos no ano corrente. A fim de aprofundar o debate com pesqui-
sadores de outras instituições, esta 8ª edição traz colaborações de autores de várias IES do Brasil, o
que contribui para a consolidação da REVELL como espaço plural de reflexão dentro da área de
Letras.
A partir do Dossiê Temático “Questões em torno do marginal: entre a tradição e a ino-
vação”, a edição procura discutir de forma ampla o conceito de marginalidade na literatura e cultura
brasileira.
Abrindo o Dossiê e o número, Karla Niels em “Profano, maldito e marginal: o conto
fantástico na literatura brasileira” se propõe a esclarecer como e por que grande parte da produção
fantástica do Brasil ficou esquecida até a segunda metade do século XX, quando do surgimento das
primeiras antologias de contos fantásticos que resgataram essa vertente marginalizada da literatura
brasileira.
Na sequência, Elanir França Carvalho em “Tal mestre, qual aprendiz?” revisita o ro-
mance Selva trágica, de Hernâni Donato, abordando as apropriações que a obra utiliza de elementos
da epopeia grega e da literatura medieval e à luz das conceituações de W. Benjamim em “O narra-
dor”.
“Nove noites: a escuridão do outro”, de autoria de Victor Leandro da Silva, analisa o
romance de Bernardo de Carvalho sob o aporte da antropologia e da literatura comparada, estabele-
cendo um diálogo entre o romance brasileiro e Coração das trevas, de Joseph Conrad a partir da
representação do delírio dos respectivos protagonistas.
A temática da loucura reaparece em “El árbol: um ensaio sobre a mulher e suas relações
em família”, de Cristina Aparecida Rossi, que se debruça sobre o conto “El árbol”, da chilena Maria
Luisa Bombal (1910-1980), que problematiza a condição da mulher em uma sociedade de contornos
nitidamente patriarcais. Submetida às ordens do pai e do marido, o estigma da loucura é imposto à
protagonista a fim de mantê-la alienada de si.
Danielli Rodrigues, no artigo “A voz na peça radiofônica de Artaud e sua linguagem
subversiva marginal”, discute a experiência limite empreendida pelo escritor francês Antonin Ar-
taud, que buscava configurar uma linguagem genuinamente subversiva marginal a partir do trabalho
com a voz e, consequentemente, com a palavra.
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“Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação”
ISSN: 2179-4456
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Encerrando o Dossiê, Vagner Rangel, em “O Poeta e a cidade: da Paris de Charles de


Baudelaire ao Rio de Ramon Mello”, se lança à leitura de alguns poemas dos autores, procurando
captar a inter-relação entre o sujeito e a cidade, a partir de alguns conceitos do filósofo Giorgio A-
gamben.
Três artigos integram a Seção de Temas Livres. No primeiro, Genival Mota, em “O nar-
rador em Jorge Luis Borges: interfaces do leitor”, analisa a construção da metalinguagem no conto
“Biblioteca de Babel” a partir do diálogo entre as instâncias do narrador e do narratário, que explici-
ta a importância da leitura no texto borgiano.
Em seguida, Adriana Falqueto Lemos, em “Duas mulheres sob o olhar de Hitchcock: os
filmes Notorius (1946) e Marnie (1964) e as mulheres perigosas de uma época”, realiza uma leitura
de duas figuras femininas de dois longa metragens do diretor Alfred Hitchcock. O ensaio faz um
questionamento sobre os modos como homens e mulheres se relacionavam em sociedade e sobre os
comportamentos femininos esperados.
Finalizando a Seção de Temas Livres e o presente número, Gracineia dos Santos Araújo
e Marta Mendes Araújo, em “A Fuga da miséria e da fome no romance Vidas secas, de Graciliano
Ramos”, revisitam o clássico romance de 30, analisando-o a partir de leituras notáveis da obra como
a de Antonio Candido e Alfredo Bosi, como também de novas e insuspeitadas fontes teóricas como
a do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
A todos os leitores da REVELL, votos de uma excelente leitura.
Comissão editorial.

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DOSSIÊ

“Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação”


PROFANO, MALDITO E MARGINAL: O CONTO FANTÁSTICO NA
LITERATURA BRASILEIRA

PROFANE, DARN AND MARGINAL: THE SHORT STORIES FANTASTIC


BRAZILIAN LITERATURE

Karla Menezes Lopes Niels (PG - UERJ)

RESUMO: Os contos de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, têm sido considerados como
aqueles que inauguram uma produção de cunho fantástico no Brasil que se deu à margem do câno-
ne. A publicação dos contos, em 1855, ensejou uma série de narrativas que foram igualmente consi-
deradas como fantásticas e que na impossibilidade de se circunscrever em determinada escola ou
corrente literária foram deixadas de lado. É o caso, por exemplo, d’ A trindade maldita: contos de
botequim, de Franklin Távora e dos contos “As ruínas da Glória”, “A guarida de pedra” e “As bru-
xas”, de Fagundes Varela – obras que esteticamente se afastaram do projeto nacionalista iniciado
pelo Romantismo e levado a cabo pelas escolas posteriores. O artigo então se propõe a esclarecer
como e por que grande parte da produção fantástica do Brasil ficou esquecida até a segunda metade
do século XX, quando do surgimento das primeiras antologias de contos fantásticos que resgataram
essa vertente marginalizada da literatura brasileira.

Palavras-chave: fantástico, crítica, historiografia, literatura marginal.

ABSTRACT: The short stories of the Noite na taverna, of the Álvares de Azevedo, have been con-
sidered as those who inaugurate a production of fantastic nature in Brazil that gave the margins of
the canon. The publication of short stories, in 1855, gave rise to a number of narratives were also
considered as fantastic and unable to be limited in certain school or literary trend were ignored. This
is the case, for example, of the A trindade maldita: contos de botequim, Franklin Távora and he
short stories “As ruínas da Glória”, “A guarida de pedra” and “As bruxas”, Fagundes Varela -
works that are aesthetically away from the nationalist project initiated by Romanticism and carried
out by the later schools. The article then proposes to clarify how and why much of the fantastic pro-
duction of Brazil was forgotten until the second half of the twentieth century, when the emergence
of the first anthologies of fantastic short stories that have rescued the marginalized aspect of Brazil-
ian literature.

Keywords: fantastic, criticism, historiography, marginal literature.

Uma literatura marginal1

O jovem Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi sempre considerado como poeta ge-
nial. Sua prosa, no entanto, jamais gozou do mesmo espaço e prestígio dispensados a sua poesia.

1
O termo marginal surge na década de 1970 para designar uma literatura que afronta o cânone por romper com qual-
quer modelo estético e cultural vigente. Muitas vezes o termo é usado simplesmente para qualificar o trabalho de artis-
tas que, contrários às regras de produção e circulação da literatura, partem para uma produção e venda independente. No
cenário contemporâneo o termo tem sido utilizado para qualificar a literatura produzida por autores das periferias das
grandes cidades brasileiras e que abordam em seu discurso o universo do crime, da violência, das drogas e da miséria
urbana. Aqui, usamos o adjetivo marginal com um outro sentido, mais amplo, o de literatura que se faz à margem do
cânone. Assim retroagimos o uso do termo ao século XIX e ao início do século XX.
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“Questões em torno do marginal: entre a tradição e a inovação”
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Hoje, no entanto, sua prosa tem sido objeto de muitos artigos, ensaios, teses, dissertações e aprecia-
ções críticas diversas – um aumento considerável de estudos acadêmicos acerca dessa parte de sua
produção literária. Grande parte desses estudos consideram os contos de Noite na taverna como
aqueles que inauguram uma produção de cunho fantástico em nossas letras. Por exemplo, Maria
Cristina Batalha, em artigo de outubro de 2010, ao traçar um percurso de uma possível literatura
fantástica brasileira, aponta o escritor em questão como o primeiro e mais representativo autor desta
vertente literária nacional ainda pouco estudada pelos especialistas. Para a autora, os contos de Noi-
te na taverna e o drama Macário inaugurariam, na literatura brasileira, uma espécie de “estética da
incerteza”. (BATALHA, 2010, p. 4).
Homero Pires (1931) e Jefferson Donizete de Oliveira (2010) também vislumbraram
nos contos do jovem paulista o ponto de partida da produção do gênero fantástico no Brasil. Nesse
sentido, apontam uma série de emulações de Noite na taverna que, ao nosso ver, serviriam como
indicativo da produção do gênero fantástico nas letras brasileiras ainda no século XIX e início do
XX. Dentre elas estão A confissão de um moribundo (1856), de Lindorf Ernesto F. França; Cartas-
romance (1859), de Américo Brasílio de Campos; Conto Misterioso (1860?), de Antonio L. Ramos
Nogueira; Poverino (1861), de Américo Lobo; Ruínas da glória (1861), A guarida de pedra, cren-
ças populares (1861), Esther (1861), Inak (1861), de Fagundes Varela; Conto à mesa de chá
(1861), de Antônio Manuel dos Reis; Uma noite no cemitério (1861), de João Antônio de Barros
Júnior; Gennesco: vida acadêmica (1862), de Teodomiro Alves Pereira; A Trindade Maldita: con-
tos no botequim (1862), de Teodomiro Alves Pereira; Uma noite de vigília, romancete (1863), de
Félix Xavier da Cunha; Dalmo, ou Mistérios da noite (1863), de Luís Ramos Figueira; D. Juan ou
A prole de Saturno (1869), de Castro Alves; Favos e Travos (1872), de Rozendo Moniz Barreto;
Meia-noite (1873), de João de Brito; Um esqueleto (1875), de Machado de Assis; D’ A Noite na
taverna (1889) de Medeiros e Albuquerque; O esqueleto (1890), de Vítor Leal (pseudônimo de Par-
dal Mallet e Olavo Bilac); O medo (1890), de Vivaldo Coaracy; Meia-noite no cabaré (1901), de
Leandro Barros; Misérias, contos fantásticos (1910), de Altamirando Requião; Misérias (1931), de
Amadeu Nogueira e Os donos da caveira (1931), de Ernani Fornani.
A maior parte destas obras, assim como os contos de Noite na taverna, durante muitos
anos estiveram (e alguns ainda estão) à margem do cânone. Nossas historiografias omitem essa par-
te de nossa produção literária. Até mesmo os contos fantásticos de Machado de Assis permanece-
ram obscurecidos até a década de 1970 quando Raimundo Magalhães Júnior reuniu alguns desses
contos – “A vida eterna” (1870), “Óculos de Pedro Antão” (1874), “O Anjo Rafael” (1869), “A
decadência de dois grandes homens” (1873), “Um esqueleto” (1875), “O capitão Mendonça”

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(1870), “A mulher pálida” (1881), “A chinela turca” (1882), “Sem olhos” (1876), “O Imortal”
(1882) e “A segunda vida” (1884) – para publicação do título Contos Fantásticos de Machado de
Assis chamando assim atenção para essa vertente ficcional também praticada pelo Bruxo do Cosme
Velho.
Pouco se comentou sobre essa vertente literária machadiana até vir a lume a antologia
de Magalhães Jr, talvez porque, como argumenta o próprio antologista, sua produção de cunho fan-
tástico esteve diluída em diferentes títulos de sua obra publicada, sem contar os contos que só con-
taram com publicação em jornal como expõem Ricardo Gomes da Silva em estudo posterior (Cf.
SILVA, 2012). Além da omissão, ou desconhecimento, por parte da crítica dos contos fantásticos
machadianos até aquele momento, houve ainda um certo juízo negativo a sua verve fantástica que
teria condicionado o esquecimento destes contos. O antologista no prefácio do volume chama aten-
ção para o juízo nefasto de Sílvio Romero aos contos fantásticos de Machado:

[...] num livro injusto e tendencioso, o seu Machado de Assis (Estudo Comparativo de Lite-
ratura Brasileira), Sílvio Romero anotara, na página 133, que o grande escritor "hoje tem
veleidades de pensador, de filósofo, e entende que deve polvilhar os seus artefatos de hu-
mour e, às vezes, de cenas com pretensão ao horrível". A isto acrescentava: "Quanto ao
humour, prefiro o de Dickens e de Heine, que era natural e incoercível; quanto ao horrível,
agrada-me muito mais o de Edgar Allan Poe, que era realmente um ébrio e louco de gênio,
ou o de Baudelaire, que era de fato um devasso e epilético." Achava Sílvio Romero incrível
que um pacato diretor de Secretaria de Estado, no caso o Ministério da Viação e Obras Pú-
blicas, condecorado com a Ordem da Rosa, pudesse dar-se ao luxo de abordar o que cha-
mou de horrível, como se um verdadeiro escritor não fosse capaz de dissociar sua vida coti-
diana das criações de seu espírito. E disso ninguém foi mais capaz do que Machado de As-
sis, o cidadão perfeito, o burocrata exemplar, que era, no entanto, um escritor profundo, au-
dacioso, irónico e, não raro, satírico e corrosivo. Foi, também, um cultor do fantástico. Às
vezes, de um fantástico mitigado, que não ia além dos sonhos que temos não só adormeci-
dos como ainda acordados; outras vezes, de um macabro ostensivo e despejado. Excepcio-
nalmente, ia buscar na realidade, mais arrojada do que a ficção, os temas de alguns desses
contos macabros, como é o caso de Um Esqueleto (JÚNIOR, 1973, p. 8).

O crítico Romero é tão negativo ao juízo que faz ao introdutor do gênero no Brasil, Ál-
vares de Azevedo, quanto o foi com autor de Memórias de Brás Cubas. Reconhece que o jovem
paulista arrancou-nos de vez da influência portuguesa por buscar sua inspiração e influência em
outros países europeus (Cf. ROMERO, 1888, p. 903). Ele, que foi um produto da academia brasilei-
ra, como afirma o historiador, influiu, mais tarde, em Portugal, fazendo o fluxo inverso:

Há nele páginas de um objetivismo completo: “Pedro Ivo”, “Teresa”, “Cantiga de sertane-


jo”, “Na minha terra”, “Crepúsculo do mar”, “Crepúsculo nas montanhas”, e muitas outras.
Em “Glória moribunda”, “Cadáver de poeta”, “Sombra de D. Juan”, “Boêmias”, “Poema do
Frade”, e no Conde Lopo, recentemente publicado, há muito desse satanismo, desse despra-
zer da vida em que veio acabar o romantismo. Há apenas mais talento do que em Baudelai-
re; porque, de envolta com os desalentas e extravagâncias do gênero, em Azevedo apare-
cem manifestações de lirismo que não possuía tão eloquentes o poeta francês. Essa parte da
obra do poeta brasileiro. Neste sentido um dos precursores do desmantelo do romantismo

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veio a influir muito em Portugal, chegando até a Guerra Junqueiro, cuja “Morte de D. João”
tem muita coisa que possui a sua inspiração primitiva em poesias do autor da “Noite na ta-
verna” (ROMERO, 1888, p. 918).

Mas quando se trata de sua prosa, que como dissemos abriga características do gênero
fantástico, não vê um Álvares de Azevedo tão genial quanto o poeta porque, como afirma, “o dra-
ma, o romance e o conto exigem muita observação, muita análise, muita tensão no espírito, a par de
muita imaginação criadora. Não creio que aquelas qualidades predominassem no espírito do poeta”
(Ibid., p. 923). A produção em prosa, para Silvio Romero, devia ser o resultado da observação e do
registro documental de realidades naturais e sociais. A imaginação criadora não cabia ao drama, ao
conto e ao romance, por isso, o historiador não se estende em seus comentários sobre as extravagan-
tes histórias de Noite na taverna, opta apenas por afirmar que Azevedo não gozava das qualidades
necessárias à boa produção em prosa.
Os juízos negativos de Sílvio Romero aos contos fantásticos de Machado de Assis e Ál-
vares de Azevedo servem-nos de exemplo de como a crítica da época encarava esse tipo de literatu-
ra. Juízo que contaminaria outros historiadores como José Veríssimo (1900) que, se não julgaram
mal a produção fantásticas desses literatos, se abstiveram de quaisquer julgamentos. Na impossibi-
lidade de circunscrever tais narrativas em determinada escola ou corrente literária, a historiografia e
a crítica especializada puseram-nas de lado, como se não fossem dignas de sua apreciação crítica.
Outro exemplo desse movimento seria o dos contos fantásticos de Fagundes Varela que
quase desapareceram. “As ruínas da Glória”, cuja publicação data de 1861, teve sua republicação
em livro somente cem anos depois, em 1961, quando selecionado por Edgar Cavalheiro e Mário de
Silva Brito para compor o segundo volume do Panorama do conto Brasileiro, O conto romântico.
“As bruxas”, de autoria também de Varela só foi republicado em 2011, quando resgatado por Maria
Cristina Batalha para compor a antologia Fantástico Brasileiro: Contos Esquecidos. E que dizer
ainda, d’A Trindade Maldita, de Franklin Távora que contou apenas com a edição folhetinesca que
saiu pelo Correio Paulistano de 9 a 12 de abril de 1862, não gozando de publicação posterior em
livro. Obras de dois autores canônicos, mas cuja produção não erudita foi completamente deixada à
margem do cânone da literatura brasileira pela historiografia e pela crítica especializada de outrora.
Nas histórias da literatura Fagundes Varela é reverenciado pela sua poética e Franklin Távora por
sua obra naturalista. Suas investidas no fantástico foram obscurecidas. Mas não seria por muito
tempo.
O momento pós-modernista seria crucial para o redirecionamento dos estudos sobre a
produção de cunho fantástico no Brasil, momento que coincide com o amadurecimento da crítica

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brasileira. O pós-modernismo é caracteristicamente aberto, plural e dado à transgressão do real (ou


melhor das múltiplas realidades), fator que teria propiciado o resgate de uma literatura de questio-
namento do real como é o fantástico. Além do mais, é justamente entre as décadas de 1950 e 1970
que surgem os primeiros estudos de peso sobre o fantástico: Le conte fantastique (1951), de Castex;
o prólogo a Anthologie du fantastique (1958), “De la féerie à la sience-fiction” e A couer du fantas-
tique (1965), de Callois, além de L’art et La Littérature fantastiques, de Louis Vax (1960) cuja edi-
ção traduzida para o português seria publicada e editada pela editora Arcádia de Lisboa, em 1972,
que impulsionariam os estudos.
No Brasil, os estudos acerca do gênero são inflamados pelo lançamento de As estruturas
narrativas (1969) da tradução de Indroduction à la littérature fantastique (1970), de Tzvetan Todo-
rov – Introdução à literatura fantástica (1975) – pela Editora Perspectiva. A despeito das lacunas
e dos problemas conceituais da obra do estruturalista, seus estudos acerca do gênero propiciaram
uma grande efusão de outros estudos sobre o fantástico no Brasil. Foi graças principalmente a To-
dorov que a academia voltou-se para essa vertente que aqui andava um tanto esquecida. Após essas
décadas começam a surgir inúmeros estudos acadêmicos sobre o fantástico em nossas letras; arti-
gos, ensaios, dissertações e teses que paulatinamente redirecionaram a visão sobre essa produção
narrativa a priori renegada.
A partir dos anos 50 do século XX empreendeu-se, portanto, um grande esforço no res-
gate dessa parte da literatura brasileira que se manteve oculta por tanto tempo, literalmente à mar-
gem do cânone. Tal esforço resultou, além do resgate dos contos fantásticos de Machado de Assis
por Magalhães Jr, na década de 1970, na reunião de contos de natureza fantástica de autores de di-
versos momentos literários em coletâneas ou antologias como O conto fantástico, oitavo volume da
coleção Panorama do conto brasileiro, de 1959, organizada por Jerônimo Monteiro; Maravilhas do
conto fantástico – antologia de contos estrangeiros, que contém três narrativas brasileiras –, de
1960, organizado por Fernando Correia da Silva e José Paulo Paes; Obras primas do conto fantásti-
co – antologia de contos estrangeiros que traz cinco narrativas nacionais –, de 1961, organizado por
Jacob Penteado; Histórias fantásticas – antologia que abriga contos de Lima Barreto, Moacyr Scli-
ar, Murilo Rubião e Modesto Carone junto a nomes como Edgar Allan Poe e Franz Kafka –, de
1996, organizado por José Paulo Paes; Páginas de Sombras: contos fantásticos brasileiros, de
2003, organizado por Bráulio Tavares; Os melhores contos fantásticos – antologia de contos nacio-
nais e estrangeiros (alguns até então inéditos em português) que traz seis contos de brasileiros –, de
2006, organizada por Flávio Moreira da Costa e prefaciada por Flávio Carneiro; O fantástico brasi-
leiro: contos esquecidos, de 2011, organizado por Maria Cristina Batalha. Um esforço que certa-

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mente tem contribuído para o aumento do interesse dos pesquisadores brasileiros na literatura que
explora temas sobrenaturais.
É imperativo ainda ressaltar o pioneirismo de Jerônimo Monteiro ao organizar a primei-
ra antologia de contos fantásticos brasileiros, lançada apenas oito anos após a publicação do ensaio
de Castex e um ano após o prólogo de Callois na França. Ao organizar o volume Monteiro colocou-
se diante de uma complicada empresa pois, como comenta na introdução, deparou-se com grandes
dificuldades para encontrar e ter acesso a contos de autores brasileiros que praticaram o fantástico.
Diante da dificuldade encontrada na reunião dos contos que comporiam o volume, o an-
tologista arrazoa que o que se lê desse gênero no Brasil é, senão, literatura traduzida, especialmente
do inglês. Seu argumento é o de que a literatura inglesa e norte-americana forneceria aquilo que não
se tem na realidade. O homem precisa dos horrores ficcionais para ajudá-lo a suportar os horrores
da vida real. O imaginário humano se apodera de elementos sobrenaturais, polêmicos e destrutivos e
transforma-os em ferramentas que desmantelam estes mesmos elementos, provocando instabilidade
e incerteza quanto às realidades que o cercam. Para Monteiro, portanto, é interessante que numa
cultura como a nossa, em que as superstições, as lendas e as crendices são tão afloradas, a produção
de uma literatura de cunho fantástico tenha sido, até aquele momento tão improfícua. De acordo
com a sua lógica, deveríamos gozar de uma produção de literatura fantástica ainda maior que os
ingleses e os americanos, pois teríamos ainda mais material a explorar (Cf. MONTEIRO, 1959).
Na verdade não é que não tivéssemos a prática do fantástico aflorado em nossas letras
até então, mas que, como já comentamos aqui, a produção do gênero foi obscurecida pela crítica por
não se enquadrar perfeitamente no projeto nacionalista empreendido durante o romantismo e levado
a cabo pelas escolas posteriores. Seja como for, o organizador conseguiu reunir em seu livro um
bom número de contos de autores brasileiros do século XIX e da primeira metade do século XX,
vinte e seis ao todo; dentre eles constam contos de Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Afonso
Arinos, Gastão Cruls, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa e Viriato Corrêa.

O fantástico frente ao realismo


Mesmo com o atual aumento do interesse da academia na literatura que explora o oníri-
co e o sobrenatural, não há dúvidas de que falar em gênero fantástico numa literatura predominan-
temente realista como a literatura brasileira é caminhar por terreno movediço. Lucia Miguel-Pereira
(1973) argumenta que somos pouco imaginativos e pouco dados a abstrações, o que explicaria a
nossa predileção pelo realismo. Os poucos títulos fantásticos, de aventura, de horror ou mesmo no-
velas policiais seriam um sintoma, segundo a historiadora, de uma literatura marcada pelo desejo de

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trazer a realidade para dentro da ficção.


Ora, a nossa literatura, como sistema (Cf. CANDIDO, 2013), surge num momento em
que precisávamos nos afirmar como nação independente. Uma independência que não podia ser só
política, mas também cultural. Como adolescentes mimados que se rebelam contra os ensinos dos
pais, nos rebelamos contra Portugal, renegando a herança cultural herdada. O movimento de inde-
pendência política durante o século XIX firmaria, portanto, o compromisso de, por meio da literatu-
ra, afirmar-se essa nova identidade brasileira e, em consequência, inventariar nosso passado cultural
através da expressão de nossa “cor local”, a natureza, o índio, a sociedade.
A vontade de negar a tradição lusitana em nome da criação de uma identidade própria
resultou, portanto, no abandono inconsciente da tradição de uma literatura imaginativa, a que Carlos
Fuentes (2000) denominou “Tradição de La Mancha”. Essa, que se inicia com Cervantes, trabalha a
ficção com o fim de fundar uma realidade outra através da imaginação, da estruturação da lingua-
gem, da ironia e da mistura de gêneros. Nós, como toda a América Latina, seguimos uma outra tra-
dição, a de “Waterloo” – corrente realista cujas obras baseam-se sobretudo no relato da experiência
e na representação de realidades. Por causa dessa tendência, durante muitos anos a literatura que
não era pautada na realidade foi, de certo modo, marginalizada pela crítica e pela historiografia bra-
sileira, o que fez parecer que não tivemos a prática de outro tipo de literatura que não a realista. Por
isso, segundo Pereira (1973), temas fantásticos só teriam se refletido em um único título – Noite na
taverna, de Álvares de Azevedo. O que não é uma verdade, haja vista que após os contos do jovem
paulista tivemos um bom fluxo ininterrupto de contos fantásticos, alguns de altíssima qualidade
como “As ruínas da Glória” (1861), de Fagundes Varela, “O imortal” (1882), de Machado de Assis,
“A casa sem sono” (1923), de Coelho Neto, “Os olhos que comiam carne” (1932), de Humberto de
Campos, “Moça, flor, Telefone” (1951) de Carlos Drummond de Andrade, “A escuridão” (1963),
de André Carneiro, “O edifício” (1965) de Murilo Rubião, “As formigas” (1977) de Lygia Fagun-
des Telles, “Alguém dorme nas cavernas” (1994) e “Um certo tom de preto” (1994), de Rubens
Figueiredo, “O voo da madrugada” (2003), de Sérgio Santana; só para citar alguns.
A despeito dessa produção contínua, o gênero parece ter sido sufocado, ainda no século
XIX, pelo sucesso editorial dos primeiros romances de José de Alencar e pelo realismo emergente.
O fracasso, ou insucesso, de uma ficção fantástica nacional se deu principalmente por causa da con-
corrência esmagadora do projeto alencariano iniciado com a publicação dos primeiros romances do
autor, Cinco minutos, A viuvinha e O Guarani, somente dois anos após o surgimento da prosa do
jovem Azevedo (Cf. GABRIELLI, 2004).
O modelo proposto pelos romances de Alencar influenciaria até mesmo os movimentos

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literários posteriores ao romantismo – o realismo e o naturalismo –, bem como a crítica e a historio-


grafia que ganhavam forma naquele século, obstruindo qualquer possibilidade do surgimento de um
fantástico brasileiro profícuo. As duas vertentes da ficção alencariana – a regional e a urbana – de-
ram origem a duas linhas hegemônicas da nossa ficção – a regionalista e a psicológica. O caminho
que nos conduziria à tradição de um fantástico à brasileira foi obstruído, portanto, pelo sucesso do
modelo de uma mais pautada na realidade, conforme o promovido por Alencar e seus contemporâ-
neos, conduzindo nossa literatura a uma tradição mais realista que a dos demais países latino-
americanos, em especial nos séculos XX e XXI.
Em meio a tão forte predomínio de uma ficção em que se buscava a reduplicação de rea-
lidades naturais ou sociais, a estética proposta pelo jovem Azevedo enfrentou, desde o início, o des-
crédito da crítica, que interpretou tal projeto ora como manifestação de seu espírito melancólico e
de suas afecções, ora como afetação byroniana descompromissada com a literatura pátria. Assim, a
via apontada pela obra de Álvares de Azevedo teve reduzidas suas possibilidades de frutificar entre
nós, primeiro por sua prematura morte, segundo por causa da postura adotada pela crítica, que “es-
cusou-se de uma análise que situasse os procedimentos do escritor no âmbito de um fantástico que
teve em Hoffmann, Poe e Gautier alguns de seus mais destacados praticantes do período romântico”
(GABRIELLI, 2004, p. 80). Permitindo que a análise da sua prosa recaísse sobre a mítica persona-
lidade do jovem paulista, mas que não impediu que Noite na taverna servisse de inspiração para
seus predecessores.
Em nosso tempo, no entanto, a literatura que explora temas não realistas ganha cada vez
mais espaço entre a crítica especializada, bem como entre o público leitor. Quando se trata do fan-
tástico, não é incomum encontrar nas prateleiras das livrarias antologias de contos fantásticos brasi-
leiros, além das que mencionamos, algumas resgatando contos de autores consagrados que foram
esquecidos justamente por causa de sua temática fantástica, outras regatando contos de autores me-
nores. Quando comparamos, porém, a nossa produção de cunho fantástico à da literatura latino-
americana, em especial a do século XX, vemos que a nossa literatura “fantástica” ainda engatinha.
Segundo o antologista Bráulio Tavares (2003) apesar de nossos autores terem reinventado os temas
do fantástico, a prática desse tipo de literatura não foi suficiente para a consolidação do gênero no
Brasil, haja vista que ainda continuamos desenvolvendo tentativas de domesticar o realismo.
Ainda que pouco difundida e estudada nos séculos precedentes, é possível falar em uma
tradição não-realista oculta em nossa literatura, que fora marginalizada justamente por causa da
supervalorização das narrativas de “cor local”. Autores que não são reconhecidos por uma produção
maciça do gênero fantástico, como os que comentamos ao longo do artigo ensaiaram suas narrativas

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de cunho fantástico. Outros como Murilo Rubião e J. J. Veiga consagraram-se com uma literatura
que se distancia, programaticamente, de um modo ou de outro, do real; o que não consolida o gêne-
ro entre nós, mas permite vislumbrar o seu florescimento e crescimento contínuo e progressivo a
despeito do obscurecimento do gênero neonato no XIX.

O gênero fantástico
Para entendermos como o gênero fantástico tem se manifestado no Brasil é imperativo
entender como o termo fantástico foi aplicado durante o século XIX e início do século XX. Qual-
quer narrativa que não fosse realista poderia ser considerada como fantástica. Além do mais, o ter-
mo fantástico foi muitas vezes usado como sinônimo de excêntrico, mirabolante e exagerado (cf.
VOLOBUEF, 1999, p. 199) principalmente quando aplicado pela fortuna crítica de Álvares de Aze-
vedo.
Antes dos estudos de Todorov sobre o gênero, na década de 70, “a crítica designava
como fantástica toda narrativa de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a realidade
que nos cerca” (BATALHA, 2011, p.13), caracterização pois bastante abrangente, que englobava
desde o onírico ao sobrenatural, e assim o que não fosse realista era enquadrado na condição de
fantástico. Por isso, ter sido o termo em alguns autores, tomado como equivalente a fantasia e vice e
versa.
O termo foi usado, e ainda é, para designar as mais diferentes manifestações literárias,
às vezes de gêneros não afiliados entre si, dificuldade que remonta às “diferentes concepções filosó-
ficas do final do século XVIII” (ibid., p. 12) que atribuíram ao termo diversos sentidos. Sem contar
os problemas relacionados à tradução do termo de uma para outra língua europeia.
Cristina Batalha (2011) argumenta que os românticos franceses ao se apropriarem do
termo tentaram desvinculá-lo do gótico, gênero que dera à luz ao fantástico. O termo “fantástico”,
para os franceses, portanto, estaria associado, sobretudo, ao alemão E.T.A. Hoffmann, embora não
tenha sido ele o criador do gênero. Cabe lembrar que os franceses foram bastante influenciados por
Hoffmann em sua produção fantástica atrelada ao romantismo. Posteriormente a grande influência
entre os franceses teria sido Edgar Allan Poe. Ora, autores que também exerceram influência entre
nós! É perceptível, por exemplo, traços de E.T.A. Hoffmann em contos de Fagundes Varela, Ma-
chado de Assis e Lygia Fagundes Telles, assim como é possível encontrar traços de Edgar Allan
Poe em Álvares de Azevedo e Franklin Távora. Além do mais, se Machado traduziu O corvo, de
Poe, não teria ele tido contato com os Contos do grotesco e arabesco (1840), senão no original na
tradução para o francês por Baudelaire?

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Fortemente influenciados por Edgar Allan Poe, os escritores franceses do gênero do úl-
timo quarto do século XIX produziram narrativas cuja necessidade de resolver o fantástico e a evo-
cação psicológica do elemento fantástico por meio da sugestão são bastante evidentes – característi-
cas que os distanciam do fantástico clássico como considera Todorov. Essa racionalização do even-
to sobrenatural que configura o fantástico também parece ocorrer em grande parte dos contos na-
cionais considerados como de cunho fantástico, principalmente se considerarmos aqueles do mesmo
período. Em “Solfieire”, de Álvares de Azevedo, a questão da sobrevida é explicitada por uma ex-
plicação científica, uma catalepsia. Em “As ruínas da Glória”, de Fagundes Varela se permite uma
leitura pela via da alucinação; o narrador estaria louco e toda a sobrenaturalidade por ele presencia-
da seria fruto de sua fértil imaginação Em “Um esqueleto” de Machado de Assis, o elemento maca-
bro se desfaz quando o narrador diz que toda a história era só um passatempo.
Tudo isso mostra-nos que mesmo que quiséssemos renegar a Lusitânia e todo o além-
mar, deixamo-nos influenciar fortemente pela França tanto na literatura como na política, na moda e
nos costumes. A França foi a nossa via de acesso mais rápida às ideias do velho mundo. No que diz
respeito à literatura, é importante ressaltar que muitos romances ingleses e alemães chegavam atra-
vés de tradução francesa. Ora, até mesmo o feuilleton que tanto sucesso fizera entre nós durante o
período romântico é uma criação francesa (cf. MEYER, 1996)! Assim é de se esperar que nossos
escritores tivessem tido contato com a literatura de cunho fantástico que se produzia na Europa e
que se deixassem influenciar por ela.
Ainda é importante destacar que o introdutor do gênero fantástico no Brasil, Álvares de
Azevedo, sofreu alguma influência de Lord Byron, e também de E. T. A. Hoffmann, como é não só
atestado pela sua fortuna crítica, como também pelas cartas deixadas pelo jovem paulista. O próprio
Lord Byron teria sido influenciado pela mestre da literatura gótica inglesa Anne Ward Radcliffe. O
alemão, como é sabido, bebeu do romantismo gótico inglês e o superou dando origem à literatura
fantástica que chegaria até nós via traduções francesas. Se sofrera alguma influência de Poe não nos
é permitido afirmar. Não há indícios em sua fortuna crítica de sua influência. Os contos do america-
no só circulariam entre nós após a morte do paulista, mas as relações que são possíveis de traçar
entre os contos de um e outro (cf. NIELS, 2012) nos possibilitam entrever que Álvares de Azevedo
e outros literatos, como Fagundes Varela e Machado de Assis estavam a par da literatura de seu
tempo; aqui, nas américas e no além-mar.

Uma literatura maldita e profana


O gênero fantástico entre nós parece ter surgido como uma literatura de entretenimento

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maldita e profana. Maldita, por explorar temas sobrenaturais e tabus. Profana, por macular o sagra-
do altar do nacionalismo. Literatura de entretenimento é aquela que compõe uma cultura de massa.
Um tipo de literatura que para satisfazer o gosto do público que a consome se contrapõe à literatura
canônica porque

se abstêm de usar recursos de expressão que, por demasiado originais ou pessoais, se afas-
tem do gosto médio, frustrando-lhes as expectativas. Daí que ela se limite, na maioria dos
casos, ao uso de recursos de efeito já consagrados, mesmo arriscando-se a banalizá-los pela
repetição. [...] Se preocupa em poupar-lhes [aos leitores] no ato de consumo, maiores esfor-
ços de sensibilidade, inteligência e até mesmo atenção e memória. Para tanto reduz a repre-
sentação artística dos valores a termos facilmente compreensíveis ao comum das pessoas e
os conflitos entre esses valores à dinâmica de um faz-de-conta que não chega a perturbar a
cômoda digestão do pitoresco, do sentimental, do emocionante ou do divertido. (PAES,
1996, p. 26)

Talvez, a princípio, não seja esse o caso da literatura fantástica, haja vista que é uma li-
teratura que trabalha com recursos de efeitos bastante engendrados. Basta lembrarmo-nos dos con-
tos “A queda da casa de Usher”, de Edgar Alan Poe, “Aurélia” de Gerard de Nerval ou “O homem
de areia” de E. T. A. Hoffman, que são considerados ícones do gênero, para verificar que o fantásti-
co trabalha com recursos estéticos que visam desafiar o leitor.
O horror ficcional oriundo desse tipo literatura, no entanto, apresenta-nos uma resolução
momentânea, que ameniza, por um curto tempo, nossos horrores mais profundos. Podemos experi-
mentar o perigo sem que a fonte do medo represente um risco real; podemos sentir um frio na barri-
ga, ou um arrepio na espinha sem nos arriscar. Colocamo-nos na pele do personagem, compartilha-
mos as mais diversas sensações e, quando diante da ambiguidade dos acontecimentos, hesitamos
junto a ele. A mesma sensação sentida pelo leitor que acompanha as desventuras da mocinha do
romance sentimental, é sentida leitor que treme diante da possibilidade de um homem metamorfo-
sear-se em lobo e se auto exilar em uma caverna, como acontece ao narrador de “Alguém dorme nas
cavernas” (1994), de Rubens Figueiredo; Ou pela possibilidade de ter seu corpo ocupado por outra
pessoa como acontece a narradora de “Um certo tom de preto” (1994), também de Figueiredo.
Montaigne fala do medo como um sentimento que pode nos dar “asas” ou nos imobili-
zar, e, “principalmente quando sob a sua influência recobramos a coragem que ele nos tirara contra
o que o dever e a honra determinavam, que o medo revela sua ação mais intensa”
(MONTAIGNE,1991, p. 40). Ora, não nos sentimos aterrorizados pela simples ideia de presenciar
um evento sobrenatural? Se o personagem é imobilizado ou impulsionado pelo medo, o leitor pode
e, é até mesmo condicionado pelas estratégias narrativas a compartilhamos isso com o personagem.
A experiência advinda da experimentação dessas sensações impulsiona o processo ca-

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tártico no ato de leitura. O conceito aristotélico de catarse, como é sabido, está relacionado à produ-
ção e à expurgação das emoções através da ficção, o que é de suma importância para a consideração
dos efeitos de recepção. Para o ficcionista americano Stephen King o medo na literatura poderia ser
visto como um fator de educação sentimental em que o leitor entende a sua vulnerabilidade através
da vulnerabilidade do personagem (KING, 1978, 2007). A experimentação dessas sensações talvez
tenha propiciado que os contos de Álvares de Azevedo que não teriam sido bem recebidos pela crí-
tica dos séculos XIX e XX (Cf. NIELS, 2013a), tivessem grande receptividade entre o público lei-
tor, especialmente, entre os mais jovens. O que é corroborado por afirmações de José Veríssimo na
virada do século. Segundo o historiador os “meninos de colégio [...] saturavam-se dos horrores de
Bertram e Solfieiri”, mesmo que se tratasse de uma prosa “que certamente não merece o apreço e
sobretudo a estima, que [esses jovens] lhe deram.” (VERÍSSIMO,1977, p. 26-32).
Ao comentar a recepção de Noite na taverna, o mesmo Veríssimo dirá que na década de
1870, apenas quinze anos após a publicação do segundo volume das Obras Completas (1855), “fi-
zeram-se várias edições separadas [de Noite na taverna], muito mais do que da Lira dos vinte anos”
(VERÍSSIMO, 1977, p. 26-32). Para o historiador a obra teria influenciado, mesmo que indireta-
mente a literatura nacional, pois os horrores relatados pelos boêmios da taverna entretiveram os
estudantes “dados à poesia e às letras” (Ibid., p. 26-32) antes do surgimento da escola naturalista. O
que ele não podia saber é que o tipo de literatura proposta por Azevedo frutificaria à margem do
cânone mesmo após a escola naturalista, proporcionando o mesmo prazer estético peculiar aos leito-
res brasileiros dos séculos XX e XXI que os contos da taverna proporcionaram aos jovens do XIX.
Convém lembrar ainda que os temas relacionados com a morte e com a sobrevida têm
gerado uma infinidade de narrativas que produzem esse efeito receptivo muito particular: o medo.
Se a literatura de cunho fantástico é capaz de provocar medo e sentimentos semelhantes em seus
leitores, naquela que se dedica a temas relacionados à morte e à sobrevida, o efeito estético é ainda
mais intenso. Talvez por isso tão explorado nas letras brasileiras. Até o modernista Carlos Drum-
mond de Andrade trabalhou com maestria a temática da vida após a morte em “Flor, moça e telefo-
ne” (1951).
O mistério envolto em tudo que se refere à morte eleva a imaginação humana à sua má-
xima capacidade e permite ao leitor vivenciar a morte sem ter que carregar-lhe o fado. Fator que
permite vislumbrar a literatura fantástica no Brasil não só como uma literatura esteticamente distan-
te do projeto nacionalista, mas sobretudo, como uma literatura de entretenimento. Dois fatores que
conjugados contribuíram para a marginalização das narrativas de cunho fantástico em relação ao
cânone.

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Ao invés de discutir as belezas e as mazelas do país em construção – o Brasil –, o fan-


tástico preocupou-se com as inquietações da mente humana e da vida após a morte. Seus temas sur-
gem do embate entre o racional e irracional, entre o conhecido e o desconhecido, entre o real e o
irreal. Para Ana Luiza Camarani a exploração de tais temas na literatura fantástica tem razão de ser
no romantismo – momento literário em que surge o gênero –, pois as narrativas que procuraram
explorar temas relativos à percepção humana, e ao inconsciente, como as narrativas de caráter so-
brenatural, seriam somente um desdobramento “do pensamento romântico da totalidade do ser, da
unidade do eu”, ou seja, do individualismo romântico que se firmou entre os autores da 2ª geração
romântica, a geração de Álvares de Azevedo e Fagundes Varela. (CAMARANI, 1992, p. 54). Infe-
lizmente o individualismo romântico segundo os críticos da época cabia à poesia não à prosa. A
prosa devia ser documental. Por isso, o obscurecimento da prosa de cunho fantástico dos dois ultrar-
românticos e de toda produção fantástica subsequente.
Segundo os estudiosos contemporâneos do gênero, como David Roas (2014), o trabalho
com tais temas ainda tem razão de ser na contemporaneidade porque esse tipo de narrativa se confi-
gura como um lugar para relativizar a maneira como nossos sentidos percebem o mundo. O fantás-
tico dialoga, portanto, com uma questão que vai além do literário e por isso torna-se atemporal: há
ou não um universo sobrenatural paralelo ao mundo que concebemos como real?

Considerações finais

É justamente por manter-se entre o real e o imaginário que a literatura de cunho fantás-
tico brasileira foi, de certa forma, marginalizada pela crítica especializada de outrora. Por isso, nun-
ca chegaram até nós os contos fantásticos produzidos pelos autores menores do XIX, e nem mesmo
pelos canônicos. Esses têm sido resgatado aos poucos por pesquisadores como José Paulo Paes e
Maria Cristina Batalha. Nos séculos posteriores houve aqueles que em meio às obras realistas, natu-
ralistas e mesmo de vanguarda, ensaiaram seus contos fantásticos, mas cujas narrativas nem sempre
foram consideradas como narrativas pertencentes ao gênero, ficaram perdidas em meio a textos de
outras vertentes literárias. Seja como for, o que percebemos é que nossos autores têm conseguido
produzir um tipo de narrativa fantástica que, independente do enquadramento teórico, sabe manter-
se na tênue linha do real e do imaginário, do crido e do não crido.
Nossos autores, em especial os contemporâneos, têm reinventado os temas do fantásti-
co, às vezes explorando áreas específicas dele – o mítico, a fantasmagoria, o eixo do mal, o incons-
ciente, a existência de uma ordem oculta, a ciência gótica. Assim produzem um fluxo contínuo de

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literatura de cunho fantástico que segue seu curso à margem do caudaloso cânone literário brasileiro
construindo assim um “fantástico à brasileira” (Cf. NIELS, 2013b) profícuo e singular.

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OLIVEIRA, Jefferson Donizete de. Um sussurro nas trevas: uma revisão da recepção crítica e lite-
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VOLOBUEF, Karin. Frestas e Arestas: A Prosa de Ficção do Romantismo na Alemanha e no Bra-


sil. São Paulo, Editora da Unesp, 1999.

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TAL MESTRE, QUAL APRENDIZ? - (DES)CONSTITUIÇÃO DA
EXPERIÊNCIA EM SELVA TRÁGICA1

LIKE MASTER, LIKE APPRENTICE? - THE (DES) CONSTRUCTION OF


EXPERIENCE IN SELVA TRÁGICA (TRAGIC JUNGLE)

Elanir França Carvalho (DCR - UFMS)

RESUMO: Esta incursão por Selva Trágica (1959), romance do escritor paulista Hernâni Donato
(1922 – 2012), procura deslindar alguns aspectos temáticos e formais do enredo, que prima por par-
ticular arranjo literário evocando índices e elementos da tradição literária clássica e antiga e do res-
pectivo universo sócio-cultural, todos anteriores à forma do romance burguês. Como parte do jogo
analítico, acatam-se as explícitas e implícitas indicações que transcorrem pela obra. Ressalta-se,
entretanto, o caráter de deslocamento e de anacronia produzidos, bem como a impossibilidade da
realização da forma e da temática evocadas, no gênero moderno. Tal procedimento na ficção de
Donato deixa de ser sutil e insurge-se pleno de significação irônica. O mote do recorte parte de ter-
mos, como “épico”, “epopeia”, “gesta”, inscritos na abertura do livro, e segue por outros índices
relativos a trocas de experiências e constituição da sabedoria. Com isso, aponta-se para uma leitura
e interpretação da obra a partir da tomada desses indicadores. A base de fundamentação teórica é a
discussão suscitada por Walter Benjamin, em seu texto acerca do narrador, em que trata de questões
dessa ordem.

Palavras-chave: Selva Trágica - reificação - ironia - experiência - violência.

ABSTRACT: This study of Selva trágica (Tragic Jungle) (1959), a novel by the São Paulo writer
Hernâni Donato (1922-2012), investigates certain thematic and formal aspects of the plot that are
guided by a literary organization evoking references and elements of classic and ancient traditions
and their respective social and cultural universe, that is, characteristics from before the bourgeois
novel, including implicit and explicit references present in the text. It is also necessary to emphasize
the displacement, anachronism and impossibility of realization of the form and theme of the novel
theme in the modern genre. In Donato’s fiction this is deliberate and full of ironic meaning. The
choice of words such as “epic” “epopee”, “gest” can be seen at the beginning of the book and con-
tinues with other signs related to the changes in experience and growth of knowledge. This reading
will examine these elements using Walter Benjamin of the narrator as a theoretical basis.

Keywords: Selva Trágica - reification - irony - experience - violence.

1. Flora selvagem – o panorama humano-social de Selva Trágica


Nel mezzo del cammin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura,
………………………………………
esta selva selvaggia e aspra e forte
Che nel pensier rinova la paura
(Dante Alighieri, La divina commedia – Inferno)

O romance Selva Trágica “constitui um dos momentos mais altos da novelística de con-

1
Esta análise do romance, com algumas reformulações, compõe parte de capítulo da dissertação de mestrado, Do épico
ao trágico – uma leitura do romance Selva Trágica, defendida em 2003.
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teúdo social no Brasil”. A declaração é do crítico Fábio Lucas. O argumento do livro ficcionaliza,
articulando elementos romanescos e dados de cunho histórico, a exploração da erva-mate em região
do estado de Mato Grosso do Sul, então Mato Grosso, à época. A atividade, no período focalizado,
era realizada por determinada empresa detentora do monopólio da extração da matéria-prima e fa-
bricação do produto. Embora inominada ou presentificada em todo o enredo, os caminhos geográfi-
cos, as balizas temporais e os conteúdos humano-sociais da matéria tratada desvelam a atuação da
Companhia Mate-Laranjeira2.
Na ficção, as condições impostas pela empresa impelem pessoas a um sistema de traba-
lho aviltante, equiparado ao da escravidão. A homens e mulheres são impostas condições de vida
degradantes. O autor toma a atitude ética da denúncia. A propósito, em pequeno texto localizado na
abertura da obra, ele declara sua posição: “Nem ataque nem defesa do acontecido nas regiões erva-
teiras durante os anos áureos da extração da erva. Relato da vida e do trabalho sob o ângulo dos
que a suportaram mais rudemente: mineiros, changa-y, marginais, pequenos funcionários.”
(DONATO, 1959, p. 07. Em itálico no original)3 E o narrador toma o ponto de vista do contingente
humano explorado.
A resolução do autor para expressar a “complexa conjuntura de dados históri-
cos/literários/linguísticos/humanos” (COELHO, 2011) foi mesclar a língua portuguesa com sotaques
do linguajar guarani, falado na região. A miscigenação das falas reproduz, nela mesma, o embate do
contato humano-social nas regiões fronteiriças do Brasil. O expediente exigiu o acompanhamento
de um glossário dos termos utilizados na obra, que segue com um rol dos verbetes e respectivas
definições na parte final do romance, e na última edição, em notas de pé de página.
A cidade real de Ponta Porã, fronteiriça do Brasil com o Paraguai, é o local onde ho-
mens são aliciados por funcionários da empresa, encarregados dos “contratos” e de encaminhá-los
às “minas ervateiras”, conglomerados de selvas nativas da planta. O funcionário nessa função cha-
ma-se aconchavador, e é nas casas de prostituição (bailanta) que desempenha a tarefa. Neste recin-
to, os homens são levados a gastar e a beber o quanto podem, e ao amanhecer, endividados e bêba-
dos, o dono da casa ameaça chamar a polícia. Nesse momento, entra o aconchavador e aponta como
melhor possibilidade à prisão a assinatura de contrato de trabalho nos ervais – para aqueles que ain-
da restam em pé, pois muitos, desmaiados, são tombados na carreta e levados sem maiores explica-

2
A Companhia Mate-Laranjeira deteve o monopólio de extração da erva mate na região, num período que se denomi-
nou de “Ciclo da Erva-Mate em Mato Grosso do Sul”. Comandada por Thomaz Laranjeira, a Companhia obteve a con-
cessão para monopolizar a extração de erva-mate em 1882 e iniciou a exploração no Brasil em 1883, atuando por mais
de seis décadas e marcando profundamente a história do estado.
3
Deste ponto em diante, todas as notas do romance Selva trágica reportam à edição de 1959, sendo indicado apenas o
número da referida página.

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ções. A partir daí estão, indefinidamente, presos à Companhia e com a respectiva dívida transferida
a ela. A dívida muito dificilmente pode ser quitada, enquanto tiverem braços fortes para a ceifa da
erva. Além disso, nos limites do erval, a prática é a do “armazém do patrão”, esquema que os enre-
da ainda mais, num sistema de débito impagável, forma de segurá-los no local.
No contexto ficcional, surge um binômio antinômico: trabalho escravo e sistema capita-
lista – para falar nos termos em que Alfredo Bosi discute a questão, no período colonial brasileiro
(2003) – dois princípios organizadores da produção nos ervais. O trabalho escravo extemporâneo ao
da escravidão institucionalizada, do período colonial, assume gravidade mais extremada. Em Selva
Trágica, os trabalhadores não são de direito escravos, sendo-os de fato. A denúncia que a ficção
encerra é contundente: nossa época, na qual já não existe mais o amparo “legal” para a prática es-
cravista, oferece, entretanto, outros mecanismos que possibilitam sua existência. Na representação,
desvelam-se os meandros de má-fé e de aliciamento da Companhia e de seus funcionários. A situa-
ção agrava-se, sobretudo, pela conivência da sociedade (cidadãos e governantes) que faz, por assim
dizer, “vista grossa” para este tipo de prática, que, infelizmente, não se limita apenas ao universo
ficcional. Ou a um passado remoto.
Esse tipo de sujeição ganha agudeza se considerado o fato de que, uma vez nos domí-
nios dos ervais, o sistema se realiza às claras. A desumanização, de que o trabalhador escravo seria
o exemplo mais acabado, não mais precisa de mediações como a feita pelo aconchavador no ambi-
ente da cidade, em que, através da ilusão de uma dívida adquirida pelos homens, simulam-se regras
contratuais, ainda que forçadas, e somente mostra-se o engodo quando já estão aprisionados. Inter-
namente, o espaço do erval se regula com regras e leis próprias que permitem, inclusive, a compra e
a venda de pessoas (no caso mais explícito, o das mulheres) sem qualquer tipo de simulacro.
A elaboração narrativa engendra um ambiente opressor e esgotante, de ar rarefeito, onde
homens e mulheres perambulam extenuados e sob constante tensão. Nesse aspecto, o espaço ganha
importância na composição do enredo. O meio sufocante faz com que a imagem do inferno seja
constantemente atualizada, manifestando-se explicitamente: “(...) Afogamos em canha da boa, as
mágoas deste inferno” (p. 23), ou em subentendidos: “O calor, o dia inteiro andado no mato de sapé
e de caraguatá, não eram coisas de se pedir duas vezes a Deus.” (p. 14).
A narrativa, organizando-se precisamente em sete capítulos, reproduz no formato os se-
te dias da semana. Os sete dias de trabalho. No campo da simbologia deste número, as significações
se ampliam. O número tem relações com o mundo ínfero, com os seus sete círculos infernais. O sete
também se refere ao Satanás, “a besta infernal do Apocalipse tem sete cabeças” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 1989, 828). E vale acrescentar que é no sétimo círculo o dos violentos.

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O tempo infernal é um tempo sem tempo, como nos ervais em que o mineiro anda “can-
sado da véspera e das muitas vésperas trabalhadas”. Remete a uma temporalidade circular que em
tudo lembra o tempo infernal: repetição incessante que caracteriza o inferno e mitos como o de Sísi-
fo, “o trabalhador inútil dos infernos”. (CAMUS, 1989)
É também significativo que a Companhia esteja afastada, de certa forma, daquele espa-
ço, como numa esfera superior: ela nunca aparece de fato, é sempre referida e age através de seus
funcionários; as “ordens” são dadas através de notícias enviadas por mensageiros: “De Ponta Porã
mandaram recado. Querem mais produção.” (p. 38). Nessa perspectiva, a Companhia está distanci-
ada daquele mundo inferior, mas que ela o sustenta e é sustentada por ele.
No plano narrativo, o enredo estrutura-se em núcleos dramáticos, envolvendo persona-
gens ligadas sempre de alguma maneira à erva-mate. A ambientação geral são as selvas ervateiras
nativas; e o erval Bonança é o lugar principal dos eventos do enredo. A organização da produção se
realiza em agrupamentos humanos, compostos pelos mineiros, os que lidam diretamente apanhando
a planta, suas mulheres e crianças. Os funcionários são encarregados de gerenciar os trabalhos. Há
ainda aqueles que realizam o trabalho de exploração das regiões em busca de novas reservas da
planta. Fora do controle da empresa, atuam os apanhadores clandestinos, os changa-y, que extraem
a erva sem ter o direito de o fazer, ilegalmente; ao mesmo tempo trabalham e se escondem. O espa-
ço urbano também constitui um dos núcleos, e restringe-se às proximidades dos ervais, como a ci-
dade de Ponta Porã.
Cada núcleo dramático constitui um veio narrativo, arranjado em fragmentos, que justa-
postos, embaralhados, montam em mosaico a história. Os cortes no avanço dos acontecimentos cria
efeito de simultaneidade, ao passo que um quadro se interrompe dá abertura para que outro se inicie
e ou continue. As rupturas, por vezes ocorrendo em momentos de grande tensão e tragicidade, acar-
retam retardamento da ação. Por um lado, coloca em suspense o destino da personagem ou do even-
to, e de outro, as expectativas do leitor. Os núcleos espaciais parecem “ordenar” ou “organizar” os
núcleos dramáticos, fazendo com que o enredo se desenvolva em torno dos deslocamentos espaci-
ais. Os recursos estilísticos dão dinâmica à narrativa, que avança em compasso ágil e tenso, como
exige a perspectiva adotada pelo autor.
O trabalhador que chegou aos ervais, iludido com a promessa do aconchavador de vida
de fartura e da possibilidade de enriquecer, não pensa em outra coisa senão fugir ou, de alguma
forma, escapar ao “inferno” da jornada de trabalho, com o “dia começado na madrugada e decorrido
debaixo de duzentos quilos de erva” (p. 106). Não há no grupo qualquer organização coletiva de
reivindicação por melhores condições de trabalho; e nem há espaço para tal arranjo. O “velho Lui-

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são” faz as vezes de um líder sindical. Afastado dos ervais, ele vive em Ponta Porã. De extração e
interesses nebulosos, parece ter alguma influência política, que a usa para incitar, nos centros do
poder, as capitais Cuiabá e Rio de Janeiro, a discussão pelo fim do monopólio.
Enquanto isso, a fuga é o único meio de que dispõe o mineiro para se livrar do “contra-
to” de trabalho. Na trama, o evento é elaborado com precisão e fortes lances de tensão, pois, para os
que ousam tentar se desvencilhar das amarras da Companhia, o “mandamento” era captura e morte.
O cotidiano do trabalho é explorado no corte da luta que os homens travam com o fardo
de erva (raído) sobre os ombros, chegando a pesar até mais de duzentos quilos. A vida trágica e
irremediável no erval é examinada a expor cruamente a desumanização: “o dia do mineiro, peão
cortador de erva, começa no meio da noite (...). A mata, os bichos, os caminhos, as aves dormem
ainda e o mineiro estremunha. Cansado da véspera e das muitas vésperas trabalhadas” (p. 21).
O caminho (tapê-hacienda), ligando a mina de erva ao local onde o fardo é pesado e
depositado, e pelo qual o trabalhador atravessa, “bestializado”, carregando o raído, configura uma
espécie de calvário, de via crucis, por onde passa, dia após dia. No caminho, às vezes, acontece de o
mineiro não suportar o peso sobre seus ombros, neste caso o resultado é sempre a coluna partida.
Quando a morte não lhe é instantânea, a bala para o tiro de misericórdia é necessária e solicitada ao
administrador, que a cede, não sem regateá-la com avareza e cinismo: “É só aborrecimento! – res-
mungou o administrador (...). Me faltam mineiros e esse se deixa quebrar.” (p. 27).
Sistema tão aviltante não se sustentaria sem uma trégua, providencial, de tempos em
tempos. Quando o “mau humor” acirra-se, prepara-se um baile para aliviar o “ano comprido do er-
val” e acalmar o ódio: “As festanças desbragadas eram respiradouro que mantinha os mineiros vi-
vos e arejados.” (p. 142). Nas festas, embriagar-se era quase uma obrigação, do mesmo modo que
divertir-se com as mulheres. Nessas ocasiões, elas “empalidecem”, pois são “arrebanhadas” e obri-
gadas a festejar. Todas deviam comparecer, saudável, doente, velha, feia ou grávida. As filhas mais
novas dos mineiros são “promovidas a mulheres”. Para completar o quadro, contratam prostitutas
(quilomberas). O evento ganha feição orgiástica, ao som de muita música, bebida e sexo, em que,
ao fim, restam todos exauridos. O sexo, que é realizado às pressas nos arredores do galpão de festa,
compara-se a apenas mais uma “contradança”.
Como núcleo romanesco central, a história de amor entre Flora e Pablito constitui o fio
que conduz o desenvolvimento do enredo. Ele é obrigado a deixar a amada, pois é incumbido, pro-
positadamente, da tarefa de descobrir novas minas ervateiras para futuras extrações. Com isso, a
mulher fica vulnerável às investidas dos outros homens, principalmente de Izaque, um dos funcio-
nários da empresa, que a deseja e por isso arma a separação do casal. Ao lado dessa história de a-

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mor, outros casais pontuam o enredo, como Curãturã e Zola, Aguará e Anaí, Osório e Nakyrã.
No processo de produção da erva, a etapa mais importante é o preparo das folhas no
barbaquá. A torrefação delicada e precisa ao fogo, feita pelo uru, definem a qualidade do produto.
Do bom procedimento dessa fase resultam as melhores propriedades da folha para se saborear a
bebida. Consequentemente, a função de Curãturã, o uru do erval Bonança, ganha importância e dá-
lhe autoridade. Por essa tarefa de destaque, ele também é encarregado, como “mestre”, de formar
um aprendiz. Junto a ele, o rapaz Aguará aprende as técnicas de preparo. O aprendizado vai além do
trabalho, ele aprende também sobre coisas de outros âmbitos da vida.
Os descontentes, que arriscam à fuga, podem se juntar e receber ajuda de outros traba-
lhadores que vagam pelas redondezas e também se opõem à Companhia: são os clandestinos, em-
brenhados nas selvas. Há ainda os que desejam, ingenuamente, deixar a empresa por vias “legais”,
tentando saldar as dívidas e acreditando nessa possibilidade. É o caso de Pytã, que não quer fugir,
pois pensa acertar legalmente o que deve e partir. Para isso se resguarda de confusões e conta o
tempo: “Mais uma lua! Mais uma lua e me boto na estrada!” (p. 138). Por fim, será surpreendido
com a impossibilidade de se libertar por esta via, o que o colocará num impasse: continuar a se su-
jeitar ou enfrentar os riscos de uma fuga.
Num outro plano, com a responsabilidade de gerenciar e comandar os trabalhos e os
homens nos interiores das matas, há o grupo de funcionários da empresa, dispostos hierarquicamen-
te. No topo da hierarquia, figura o administrador, Curê; abaixo dele seguem-se os capatazes e os
comitiveros – estes últimos o braço armado da organização. O grupo é a sombra onipresente e as-
sustadora da Companhia no erval, que tem as prerrogativas do mando e do controle da violência. No
entanto, não estão resguardados de uma vida também degradante. Usufruem de poder para arbitrar
sobre tudo e todos ali, e cometem toda sorte de violência permitida pelas regras do erval e a bel pra-
zer. Eles dispõem de aparato para conter, e também praticar, a violência, trazendo os revoltosos
sempre “debaixo de pontaria” (p. 209). Muito embora as condições de vida sejam, em certa medida,
menos opressoras, o que lhes restam em termos humanos não é muito mais do que o dispensado ao
comum apanhador de erva. Além do mais, dissipam a rudeza, paradoxalmente, na embriaguez e
jogatinas.

2. A (des)constituição da experiência e as formas de intercambiá-las


No plano da construção do enredo de Selva Trágica destaca-se uma trama cuidadosa de
conexões e arranjos da matéria narrada. Do procedimento, depreende-se certo recurso de referência
em que se alude de maneira recorrente a um contexto diverso daquele representado. Da atualidade

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da situação dos ervais acena-se ao universo arcaico da antiguidade e da era medieval. A força obsti-
nada do recurso alusivo sobreleva-se na obra. Este traço é o motivo da análise que se segue.
As referências podem ser notadas desde o paratexto. Na capa do livro, na “orelha”, os
termos “épico” e “epopéia” são mencionados. Estas são as primeiras indicações remetendo a um
tempo anterior e a sua respectiva narrativa produzida em verso, o poema clássico épico. O subtítulo
do livro reforça essa tradição, na utilização sugestiva do termo “gesta”4, forma que, em seu tempo,
cantava os feitos guerreiros de um herói. São essas notificações, de certa forma incisivas, que propi-
ciam e dão abertura à identificação do arranjo de referências no cerne do enredo. Na prática, os di-
versos núcleos dramáticos guardam, cada um, certo grau de relação com a organização de mundo
bem anterior ao narrado. Distingue em cada núcleo um par de personagens emblemáticos dessa re-
lação, em torno do qual se configuram as referências.
Primeiramente, para exemplificar, destaca-se aqui o par central do enredo, Flora e Pabli-
to. O casal configura certo vínculo com o clássico par épico, Penélope e Ulisses, da Odisseia. Flora,
com a proeminência de ser a personagem principal no romance, perpassa-o de ponta a ponta, com
nome sugestivo, fundindo-se, na alusão vegetal de seu nome, à selva ervateira. É das figuras femi-
ninas mais marcantes de Donato. Ela e Pablito vivem um amor impossível de se realizar no mundo
do mate, lugar onde as mulheres pertencem à categoria mais baixa entre todos e entre todas as coi-
sas. Os dois, apaixonados, tentam, inutilmente, viver esse amor. Separada do amado, levado a luga-
res distantes à procura de novas minas de erva, sozinha, ela luta contra o assédio de Isaque. Ao re-
sistir às investidas de outro homem, recebeu de Artur Neves a definição de “triste Penélope cabo-
cla”.
Em outra vertente do romance, a referência avança no tempo e marca um contraponto
com período posterior, a Idade Média. Há certa conformação em parte do enredo de Selva Trágica
que se esforça na reconstituição de certa ambiência do medievo de trocas de experiências. A análise
ancora-se na discussão de Walter Benjamin (1994), que define duas figuras basilares constitutivas
desse meio como sendo seus tipos fundamentais: o “camponês sedentário” e o “marinheiro comer-
ciante”. E segue-se que “da interpenetração desses dois tipos arcaicos” (p. 199) derivam as figuras
do mestre e do aprendiz.
A forma da narrativa oral, depreendida da organização dessa sociedade, ligava-se orga-
nicamente à experiência e às formas de intercambiá-la. A narrativa oral floresce pelo entrelaçamen-
to das duas figuras balizadoras, o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro era
celeiro que guardava “o saber do passado”, da tradição, e o segundo arejava a atmosfera da comuni-

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Na última edição da obra, em 2011, o subtítulo foi suprimido.

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dade trazendo “o saber das terras distantes”. A Idade Média, através do sistema corporativo, uniu
essas duas figuras e engendrou o par mestre/aprendiz, que representa a forma mais acabada de pro-
dução da narrativa oral e de transmissão de experiência. No mundo moderno, a narrativa perdeu seu
ambiente propício, o que fez Benjamim observar a consequência dessa transformação: a dissolução
da arte de narrar, resultado da transformação da natureza da experiência: o que antes era sabedoria –
harmônica com o mito e, portanto, com o mundo – hoje, adquire especificidade dramática porque
está em conflito, tensão, com esse mundo.
Em Selva Trágica distinguem-se traços que reconstituem uma ambiência de trocas de
experiências equiparada ao que se pode encontrar na era medieval dos mestres artesãos e seus a-
prendizes. Diversos pares de personagens prefiguram esse arranjo. Para a análise desse modelo,
pinça-se aqui, dentre outros possíveis do enredo, o par Curãturã e Aguará. O ambiente e atividades
dos dois aludem à forma do sistema corporativo da Idade Média, que tinha como base o trabalho
artesanal. A função de Curãturã no barbaquá, além do preparo da erva, pressupõe a formação de
um aprendiz, que continuará na atividade. O mestre lhe deve ensinar as “coisas da erva, do fogo, e
de como deve remexer, precaver-se contra o tempo, a noite, a luz. Quais as lenhas (...) preferir e
quais as que valia a pena evitar.” (p. 40) Entretanto, a formação dada não se restringe apenas à ins-
tância prática da função de uru, indo além. O mestre deve revelar as coisas “a respeito dos homens e
das mulheres, (...) e do amor.” (p. 40). As cenas dispensadas ao par Curãturã e Aguará tratam dos
ensinamentos do mestre e as formas de apreensão de seu aprendiz a respeito de três balizas da expe-
riência humana: a do trabalho, a do amor e a da morte.
A atividade de Curãturã, como uru – torrar as folhas da planta da erva no barbaquá até
secarem –, é apresentada como um esforço árduo, realizado por turno de quarenta e oito horas se-
guidas e, depois, com um momento de descanso, para tudo se recomeçar. Ele fica exposto ao calor
médio de 100º C, e no período noturno, à proporção que recebe no peito o calor, é resfriado nas
costas, pela aragem fria da noite: “atenção, fogo, fumaça, calor no peito e friagem nas costas.” (p.
39). Acontece um duplo processo de secagem: da folha e do homem que a maneja. Desidratam-se
mutuamente: a vitalidade, a seiva da folha, evapora-se com o calor do fogo, à proporção que as
substâncias humanas vitais escorrem ao longo do corpo do homem.
Curãturã revela-se consciente do processo de destruição que a função lhe causa. Quando
é chamado de “rei do rancho” pelo rapaz, ele lhe explica o processo de aviltamento humano do seu
trabalho, numa gradação que acaba por findar na morte. É a forma de dizer que “(...) quer bem ao
menino a quem criou” e, assim, “(...) vai ensinando o que sabe”:

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Rei? Sei lá! Quando o patrão lhe põe nas mãos a forquilha e lhe dá o piso do barbaquá, diz
que ele é senhor. Então começa a respirar fumo e resina, a ser defumado em suor e fumaça.
Primeiro a gordura, depois as carnes, a saúde, escorrem pelo corpo, dia e noite, feito suor.
Nenhum pêlo lhe fica grudado no corpo, nem saliva na boca, nem dentes nas gengivas, nem
lágrimas nos olhos. Vai sendo cozido dia a dia; os intestinos acabam secos e mortos, enve-
nenando o corpo; o estômago ácido, os pulmões cavernados, as veias saltadas, os olhos a-
fundados. E dia e noite, com a forquilha nas mãos, revolvendo erva. No fim da primeira sa-
fra desce um fantasma do piso onde subiu um homem. Na segunda é um mecanismo. (...)
(p. 39-40).

Em seu desabafo, são os traços de uma caveira que se delineiam. Há uma escala do ho-
mem para o fantasma e, finalmente, para o mecanismo. O que estabelece também a relação com a
máquina: o trabalhador se diz mecanismo e apenas isso. É apenas mais uma peça na engrenagem da
Companhia e não vale mais do que o que possa produzir. E não sendo mais produtivo, ela o aban-
donará como abandona o erval quando este também não pode mais oferecer as árvores necessárias.
Continuando a descrição, Curãturã explica a Aguará o destino que o trabalho no barba-
quá reserva ao homem já reduzido a “mecanismo”: “Começa a sofrer uma sede tão grande que até
faz dor, queima, atordoa. O remédio é beber. Quanta bebida queira, tanta lhe dão. Também querem
que ele se engane devolvendo em álcool a umidade que o barbaquá rouba de seu corpo” (p. 40).
Desidratado como a erva, a bebida alcoólica, oferecida em abundância, é uma forma de
iludir o corpo e também o espírito. O engodo do álcool, que mais desidrata, só lhe agrava o estado
de aniquilamento. O tempo que pode suportar um homem nessas condições é de dez anos. O narra-
dor é categórico ao sentenciar o destino do mestre: “um uru jamais chega à idade madura.” (p. 39).
Depois das quarenta e oito horas seguidas no barbaquá ele ganha um período de des-
canso. Nesse intervalo de folga, o mestre, em companhia do pelo aprendiz, busca distensão do cor-
po, ao lado da mulher amada. E nesse momento que surge a oportunidade para outro ensinamento
ao rapaz: o do amor.
Ao perceber a casa de prostituição (bailanta), Aguará não contém a excitação e explode
de alegria: “Bailanta?! Pois você vem descansar numa bailanta?!” (p. 70) Mas quando vê o uru “en-
tregue às mãos da Zola”, sente repulsa daquilo. Para ele, o “rei do rancho” não poderia precisar de
alguém. A visão do mestre é filial e idealizada. O ensinamento de Curãturã, entretanto, é sobre ou-
tro valor para as mulheres, diferente daquele reificado do erval, em que elas são apenas objeto de
prazer sexual.
A cena em que mostra os três – Curãturã, Zola e Aguará – é emblemática da vicissitude
constituição/destituição de um grupo familiar tradicional. O quadro é construído com nuanças líri-
cas e idílicas: o casal deitado numa relva sob uma árvore frondosa, enquanto o menino resta um
pouco afastado, à margem do rio. Motivados pela presença do rapaz, os amantes passam suas vidas

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a limpo. Falam do filho que não tiveram, e do amor que poderiam ter vivido e não viveram. Contra-
pondo-se à atividade extenuante do trabalho, esse é um momento de introspecção reflexiva de re-
memorações e nostalgias.
O núcleo Curãturã, Zola e Aguará, por um lado, afirma a constituição de uma família,
pai, mãe e filho, mas, por outro, nega-a, pois, a mulher não é a mulher oficialmente, e mais, é de
todos, pois é prostituta, e Aguará, que constitui uma espécie de herdeiro, não é filho de fato do ca-
sal. E mais, se recusa a “imitar” o pai. Quebra, por assim dizer, a sentença “tal pai, tal filho”. Neste
instante em que Aguará está presente na fala de Curãturã e Zola, ao mesmo tempo ele se encontra
afastado espacialmente.
Destaca-se ainda, nesse sentido, o fato do movimento de certa forma nômade no erval –
quando uma mina ervateira se esgota, muda-se para outro local não explorado. Não há uma situação
propícia à agregação das pessoas e de constituição de um círculo de relações mais coeso. Os grupos
que se agregam, como os casais, o fazem na informalidade e sob as contingências e os percalços de
uma vida degradada.
O evento da festa da Semana Santa no erval é um momento carregado de significações,
com os sete dias de festa pontuados dia a dia. Na simbologia da festa cristã está a ideia da morte,
que é também mais um prenúncio do fim de Curãturã. A consciência premonitória o deixa com a
“angustiosa certeza de que vivia a sua última Semana Santa” (p. 143), e quer viver com a mulher
amada, Zola, o máximo da festa.
Ao deixar livre o menino, ele sugere mais um conselho “arrisque o seu dia”. Como indi-
cação de que ele já estaria formado, “Aguará sentiu que alguma coisa havia se acabado, para sem-
pre, entre ele e o seu velho uru.” (p. 145) A moça Anaí que surge na festa será para ele a possibili-
dade de compreender o aprendizado do amor e do sexo. Ele “sentia que ela poderia lhe mostrar o
que o Curãturã encontrara na Zola e os mineiros e capatazes encontravam nas outras mulheres.” (p.
146) assim, mistura-se o sentimento de amor que Curãturã sentia pela Zola e as formas de satisfação
sexual que muitos mineiros e os capatazes procuravam nas prostitutas do local. Aguará parece resis-
tir ao aprendizado do amor para além do prazer sexual que Curãturã quis lhe ensinar.
A implacável ideia da morte após a festa, e guardadas as devidas proporções, remete
Curãturã a um parentesco com outro personagem da literatura brasileira, criado por Guimarães Ro-
sa: Manuelzão, na novela “Uma estória de amor”. Com a mesma certeza de Curãturã, ele vive em
sua festa o pressentimento de seus últimos momentos.
O casal Zola e Curãturã vive o idílio amoroso afastados da festa e de Aguará. Nostalgi-
camente, sob a “copa do arvoredo que porém não ocultava as estrelas”, os “urros dos galistas”, “o

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sussurro dos casais”, e as “dezenas de canções descompassadamente cantadas por dezenas de bêba-
dos” ecoavam longe, não alcançando forças para quebrar o encanto dos dois. A festa não era mais
para Curãturã, nem “o baile, o jogo, as aventuras de amor. Trocara tudo isso pelo colo da Zola onde
descansava a cabeça (...)” (p. 154 ). Assim como não era para Manuelzão: “Festa de Manuelzão,
todos se divertem, ele não... não queria.” (ROSA, p. 213).
A festa pode carregar a ideia emblemática de exaustão das forças vitais. O êxtase total
que precede o fim. Assim, está anunciada a morte do uru. O fim da festa prenuncia também o seu
fim. A morte do uru coincide exatamente com o esgotamento (morte) do erval Bonança. Os dois
têm a morte, fim, anunciada desde a primeira cena da narrativa. Para Curãturã, o sinal definitivo de
seu declínio coincide com o fim do baile: ele gemera de dor nos rins, ao mesmo tempo em que já
“(...) a orquestra tocava lento e baixo.” Era “o baile que esfriava.” (p. 40). Era também o corpo que
esfriava.
O evento marca a mudança para o novo erval. É também os últimos momentos de Curã-
turã, que fica para trás, pois já não pode seguir com o grupo. A articulação entre espaço e persona-
gem é plena de significação: erval e uru, esgotados, são abandonados, pois não têm mais o que ofe-
recer à Companhia. O erval Bonança chegara ao fim: a mina de erva está consumida e é trocada por
outra. Também o uru está consumido e morrendo, assim como o erval. Ele é abandonado e trocado
por outro. O grupo segue para o novo erval e terá um novo uru – Aguará. A festa marca a passagem:
esgotamento e morte.
No ambiente desolado que se tornara o erval Bonança, duas únicas pessoas, Zola e A-
guará, restam junto a Curãturã, já quase morrendo. O menino que anteriormente já havia recusado a
lição do amor, agora resiste à lição que a experiência da morte pode lhe proporcionar. Ele se man-
tém afastado do leito de morte e “[e]sforçava-se por não admitir o que havia de aborrecido em per-
der tantas horas com um defunto.” (p. 204). Em outra ocasião, quando da morte de uma menina no
erval, Aguará “teve arrepios”. À visão da garota, “quieta e pálida”, incomoda-lhe a gélida sensação
da morte: “correu ao barbaquá. Havia calor de fogo e vida lá dentro (...)” (p. 107). Curãturã, que
vira “muitos e muitos” mortos, inquire Aguará para saber se este já vira algum. Nesse momento do
enredo, joga-se com imagens do calor e do frio remetendo, simbólica e respectivamente, à vida e à
morte. O fogo do barbaquá aceso que simboliza a vida nesta ocasião de morte, paradoxalmente, já
havia assumido feições infernais. Assim, o barbaquá alcança significado ambivalente.
Benjamim (1994) fala do caráter “público” e “altamente exemplar” que o episódio da
morte continha. E que a sociedade burguesa, com suas “instituições higiênicas e sociais” produziu o
distanciamento do “espetáculo da morte”. É tomado dessa repulsa que Aguará se afasta do mestre

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no momento em que este morre.


O paralelo entre personagens, distinguindo-se relações de mestre e aprendiz, ocorre em
outros pares do romance. Assim como Curãturã está para Aguará, como ficou visto, Bopi para Pa-
blito, Curê para Isaque e Luisão para o jornalista. Em cada um dos pares, os quais não serão desen-
volvidos aqui, esboça-se trocas de “experiências” diversas. O vínculo mestre/aprendiz se dá, supos-
tamente, na dimensão da experiência de vida dos que estão na primeira parte da clave e da inexperi-
ência dos da segunda parte. Os que estão antecedidos são homens mais velhos, “experientes”, vivi-
dos, que aprenderam com a vida (não raro, amargurados), e no segundo plano são homens apaixo-
nados, “inexperientes”, ingênuos e, portanto, que têm algo a aprender. Não por acaso, o termo “en-
sinar” aparece reiteradamente e pleno de significação, atualizando e reafirmando a relação mes-
tre/aprendiz e da “experiência que passa de pessoa a pessoa”..

3. Vidas trágicas
Os índices apontados nesta análise e que pontuam sugestivamente ao longo de Selva
Trágica conduziram à aproximação de contextos distintos. Muito embora os laços que estreitam
esses universos distantes, apresentados na contemporaneidade do enredo de Donato, revelam-se, por
fim, como realização às avessas dos elementos e das figuras arcaicos evocados. O traço central des-
tacado na obra para esta análise, o binômio mestre/aprendiz do autor paulista, delineia-se num am-
biente de degradação humana e social. O aviltamento humano no trabalho, a prostituição da mulher
amada, os vícios e a suspensão dos direitos marcam as trocas de experiências nessa comunidade. O
mundo representado, moderno, capitalista, já não pode mais engendrar o mesmo sentido de trabalho
artesanal de tempos antigos, produzindo mestres e aprendizes e trocas de experiência, absorvidas da
“sabedoria”, do período arcaico de que se reporta Walter Benjamin.
Se a gênese do conjunto mestre/aprendiz remonta à Idade Média, a sobrevivência do par
foi sendo dissolvida na medida em que o modo de produção secular foi se estabelecendo, até chegar
a sua forma mais definida, o alto capitalismo. A despeito dessa conformação histórica, o enredo de
Selva Trágica apresenta agregação de personagens que remetem, de algum modo, à configuração de
trocas de experiências entre pessoas, configurando relação mestre/aprendiz. O que em princípio
sugere um retorno aos elementos arcaicos, não se pode confirmar como tal na realidade atualizada,
opressora e dramática, do universo plasmado. Nem a própria forma do romance moderno pode en-
gendrar esses elementos. No contexto narrado por Donato, o sentido mestre/aprendiz na acepção da
discussão “benjaminiana” esvazia-se, realizando-se com sentido irônico.
Na Idade Média, o artífice artesão (mestre) detinha conhecimentos e autoridade (experi-

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ência) transformados em “sabedoria”. Portanto, era capaz de dar “conselhos”. O trabalho, amalga-
mado à vida, constituía-se de uma integralidade. Essa situação se altera ao longo da história, e os
moldes do trabalho artesanal medieval não são mais praticáveis. A modificação no modo de produ-
ção transforma também a relação com a experiência. Diante disso, Benjamim observa que tem ocor-
rido uma “baixa nas ações da experiência”.
A referência em Selva Trágica desse tipo de organização no trabalho e nas relações pes-
soais no contexto atual, e daquele mundo posto no romance, reforça a ideia de impossibilidade de
retorno e realização, na atualidade, de valores do passado antigo. O procedimento ganha no contex-
to do romance o poder de crítica ao universo retratado, na medida em que, revoltando a situação
original, pelo deslocamento, pela anacronia, transforma-se em ironia.
Veja-se o exemplo de Flora. Com sua resistência ao assédio de Isaque alcança o codi-
nome de “Penélope”. Entretanto, seu esforço, por três vezes, é frustrado. Isaque não a respeita e a
toma à força. E mais: ela já havia sido de outros homens antes de Pablito. Por fim, não resta outra
comparação que não seja por contraste, e daí Flora estaria mais para uma anti-Penélope.
Com isso Flora também não guardaria também certa identidade, afinidade, com Sísifo?
Como esse “trabalhador inútil dos infernos”, que simboliza o esforço repetido e ineficaz, ela não
luta em vão? A narrativa, finalizando-se com a voz de Flora, através do discurso indireto livre, pa-
rece fechar as perspectivas de um futuro diferente para si. É justamente com ela, que estava na fala
de Pablito na ponta inicial do enredo, num discurso indireto livre, resignada, que a história se fecha.
Flora se rende:

O futuro era o que era - não o que gostaria de fosse. E se o mundo rodava nesse rumo, asni-
ce era atestar no contra rumo. Poderia tropeçar e fazer-se mal. Melhor seria acertar o passo
com o passo do mundo. Vivia no país da erva e assim era a vida por ali. Sentiu o Isaque
deitar-se ao lado e procurar a sua mão. Não se esquivou. (p. 236)

Muito emblematicamente, a primeira nota de Selva Trágica é justamente uma pergunta.


“Hein, velho Bopi? Silencioso assim você quer dizer que eles abusaram da minha mulher, não é?!”
(p. 13). Do ponto de vista benjaminiano, bastante significativo, pois no universo arcaico “aconse-
lhar é menos responder uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história
(...)” (p. 200).

Referências
BENJAMIN, Walter. “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov)”. In: Magia e téc-
nica, arte e política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, vol. 01, p. 197 – 221.

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DONATO, Hernâni. Selva Trágica. São Paulo: Autores Reunidos, 1959.

______. Selva Trágica. Taubaté/SP: LetraSelvagem, 2011.

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LIMA, Luiz Costa. “A reificação de Paulo Honório”. In: Por que literatura?. Petrópolis: Vozes,
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SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”, in: Ao vencedor as batatas: forma literária nos iní-
cios do romance brasileiro. 5 ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

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NOVE NOITES: A ESCURIDÃO DO OUTRO

NINE NIGHTS: THE DARKNESS ON THE OTHER

Victor Leandro da Silva (PG-UFAM)

RESUMO: Em Nove noites, Bernardo Carvalho conta a história de um narrador e sua busca por
relatar os fatos da vida de Buell Quain, antropólogo estadunidense que realizou pesquisas entre os
índios brasileiros na primeira metade do século XX, vindo a suicidar-se no país, em 1939. O presen-
te estudo visa analisar de que modo o romance constitui-se numa tentativa de compreensão das ori-
gens da cultura brasileira, ao passo que procurará estabelecer as relações entre a trajetória do pes-
quisador e o diálogo com a alteridade.

Palavras-chave: Cultura brasileira, Antropologia, Literatura, diálogo, Povos Indígenas.

ABSTRACT: In Nine nights, Bernardo Carvalho tells the story of a narrator and his quest for re-
porting the facts of life Buell Quain, American anthropologist who conducted research among Bra-
zilian Indians in the first half of the twentieth century, come to commit suicide in the country, 1939.
This study aims to examine how the novel constitutes an attempt to understand the origins of Bra-
zilian culture while seek to establish relations between the researcher´s trajectory of the dialogue
with otherness.

Keywords: Brazilian Culture, Anthropology, Literature, dialogue, Indigenous Peoples.

A narrativa de Nove Noites (2009) traz consigo uma dupla investigação. De um lado,
temos a busca por refazer a aventura brasileira – e verídica – de Buel Quain e os acontecimentos
que o conduziram a seu fim prematuro. De outro, tem-se uma tentativa, ainda que um pouco implí-
cita, de compreender o Brasil a partir de suas origens.
Após ler um artigo no jornal, o narrador fica intrigado com uma passagem do texto, que
menciona o antropólogo Buel Quain e o suicídio cometido por este em terras brasileiras. A sonori-
dade do nome pareceu-lhe familiar, o que foi suficiente para instigar sua curiosidade em saber de
quem se tratava. Acima de tudo, interessava-lhe o motivo que o teria levado a tirar a própria vida.
Com isso, passou a refazer os passos do cientista, indo desde o local da morte de Quain, no Tocan-
tins, até os Estados Unidos, sua terra natal.
Nesse momento, a narrativa se bifurca temporalmente, apontando ora para a vivência de
Quain entre os índios, ora para a experiência investigativa do narrador. Contudo, ambas possuem o
mesmo objetivo: esclarecer as causas do suicídio de Quain.
De boa aparência e conduta discreta, Buel Quain não possuía qualquer traço ou conduta
em especial que o destacasse, afora o fato de esforçar-se muito para não parecer ser rico. Como
pesquisador, adquirira, apesar da pouca idade, um lugar de destaque, o que contribui ainda mais
para a perplexidade diante de sua morte voluntária: “ninguém podia esperar que um antropólogo
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americano da melhor escola, trabalhando no Brasil, fosse se suicidar aqui, moço e já consagrado”
(CARVALHO, 2009, p. 37)1. Sua imagem era a de um jovem promissor, um estudioso comprome-
tido com a missão de decifrar cientificamente o Brasil.
Contudo, para além dos relatórios apresentados oficialmente, há, à medida que avançam
as investigações do narrador sobre a vida pessoal do antropólogo, o desvelamento de uma série de
observações pessoais feitas por ele e que dão conta de uma relação nada objetiva com seu “objeto”
de pesquisa, expondo um olhar muito mais denso e significativo do país do que pretendem seus
textos científicos, ao passo que são também reveladores de seus próprios dilemas e inquietações.
Embora tenha desenvolvido estudos no Brasil, Quain não parecia nutrir nenhuma admi-
ração pelos que aqui habitavam em seu tempo. Suas cartas dão conta de uma relação costumeira-
mente conflituosa, marcada por relatos irônicos e provocadores, o que se evidencia mesmo antes de
sua chegada entre os índios:

Carolina é um lugar tedioso – analfabetos e intelectuais. Os intelectuais são os que usam


ternos brancos e gravatas e pertencem a uma sociedade literária. Me juntei a eles numa reu-
nião para homenagear Humberto de Campos, grande poeta do Maranhão. (...) Tudo isso
podia ser muito simpático se não fosse pela pompa ridícula. (p. 26)

Aqui, o que parecia incomodar Quain era o aspecto ridículo como os brasileiros se apre-
sentavam a ele. Os ditos intelectualizados enchiam-se de uma erudição completamente artificial e
frágil, do mesmo tipo observado por Lima Barreto e parodiado por ele em seu conto O homem que
sabia javanês, homens sérios e de pretensão culta, porém responsáveis pela formação de um país
“imbecil e burocrático” (2010, p. 71), e cuja leitura de meia dúzia de livros não os impedia de serem
enganados por qualquer um que se passasse por erudito ou poliglota.
Já com os índios, a sua relação era ainda mais hostil, e manifesta-se desde o primeiro
contato: “Encontrei um grupo de índios Krahô e eles parecem pavorosamente obtusos. Têm cortes
de cabelos engraçados, furam as orelhas e continuam sem usar roupas na cidade” (p.26), levando-o
a descrições de seus hábitos totalmente subjetivas e permeadas de juízos, como nas suas observa-
ções da tribo Trumai:

Dormem cerca de onze horas por noite (um sono atormentado pelo medo) e duas horas por
dia. Não têm nada mais importante a fazer além de me vigiar. Uma criança de oito ou nove
anos parece já saber tudo o que precisa na vida. Os adultos são irrefreáveis nos seus pedi-
dos. Não gosto deles. Não há nenhuma cerimônia em relação ao contato físico e, assim,
passo por desagradável ao evitar ser acariciado. Não gosto de ser besuntado com pintura
corporal. Se essas pessoas fossem bonitas, não me incomodaria tanto, mas são as mais feias
do Coliseu (p.48).

1
A partir desta nota as referências ao romance Nove noites serão feitas apenas pelo número da página.

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Tal ponto de vista contrasta com o que sugerem seus estudos sobre essas tribos, que, a
julgar pelos depoimentos registrados no romance, possuem características científicas, ou seja, obe-
decem às normas de objetividade e de observação isenta, sem indicar qualquer impressão pessoal
acerca do que quer que tenha visto: “Seus relatórios e anotações (...) não têm outra utilidade senão a
de propósito científico” (p. 32).
A exposição dessas contradições, feita em Nove noites, embora não possa ser considera-
da comum no meio antropológico, não chega a ser nova. Já em 1967, haviam sido publicados pos-
tumamente os diários pessoais do etnógrafo polonês Bronislaw Malinowski, que, quando cotejados
com as pesquisas publicadas por ele, evidenciam de forma contundente o conflito entre a posição do
cientista e sua experiência individual do encontro com outras culturas.
Se em Os Argonautas do pacífico Ocidental Malinowski faz uma defesa veemente da
necessidade de contato com os povos estudados, de conhecer seus costumes, seu cotidiano, sua lín-
gua, a fim de que se possa retratá-los não como seres exóticos e afastados, mas como pessoas co-
muns tais quais aqueles que os pesquisam, lançando os fundamentos de uma observação participan-
te, nos seus escritos íntimos, temos o reverso dessas orientações, evidenciando, conforme afirma o
professor Vagner Gonçalves da Silva (2013), “a face menos ‘nobre’ do trabalho antropológico”.
Do mesmo modo que Quain, mesmo ainda não estando junto aos povos autóctones que
pretendia estudar, Malinowski registra impressões nada elogiáveis dos lugares e pessoas por onde
passa, como em Cains, pequeno município da Austrália: “A cidade era pequena, desinteressante, o
povo marcado pela presunção típica dos trópicos” (MALINOWSKI, 1997, p. 44). Tais observações
conduziam-no a um estado depressivo que o acompanhava constantemente, além de muitas outras
sensações incômodas. Dores, febres, inquietação, melancolia, crises de fraqueza: era esse o repertó-
rio que seguia o etnógrafo ao longo de sua pesquisa.
Já com os povos primitivos, sua irritação se tornava ainda maior, a ponto de ter contra
eles desejos de violência: “De modo geral, meus sentimentos para com os nativos decididamente
tendem para ‘exterminar os brutos’” (p.103), o que fazia com que em muitos casos agisse, como ele
próprio reconhecia, de forma “injusta e grosseira” (p.103), numa postura muito distante tanto do
observador impassível quanto do cientista compreensivo e humanista que Malinowski idealizava
em seus estudos.
E, alternadas a essas considerações, figuram também relatos de acontecimentos de cu-
nho estritamente particular e muitas vezes íntimo: “à noite fui tomado de um desejo amoroso pela
Senhora N. Desci e procurei-a” (p. 127), os quais por vezes ocupam uma importância prioritária
dentro dos textos. Obviamente, é de se imaginar que um diário pessoal possa conter esse tipo de

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anotação. Porém, da forma como foram elaborados, os escritos de Malinowski não parecem ter uma
pretensão intimista, e sim a de constituírem-se num relatório informal de trabalho. Portanto, a ma-
neira como tais sensações ganham espaço e vão se entrelaçando com os registros ligados à pesquisa
é uma demonstração de que, além do autor não estar totalmente voltado para o trabalho, suas in-
quietações individuais colocavam-se muitas vezes à frente de qualquer interesse profissional.
Desse modo, os diários do antropólogo polonês, bem como as cartas de Buell Quain,
são documentos essenciais para a desmistificação da imagem do cientista neutro, incapaz de emitir
juízos sobre as sociedades que pesquisa, e que não permite a menor interferência pessoal em seu
trabalho. A Antropologia, assim como qualquer atividade que envolva relações entre humanos, está
sujeita às intervenções provocadas por preconceitos, empatias, confrontos étnicos, sociais, culturais,
morais ou ainda todo tipo de pathos ou impressão pessoal. Logo, o contato entre pesquisadores e
informantes é na verdade um encontro entre dois indivíduos de culturas em muitos casos absoluta-
mente distintas, e que costumeiramente se dá de modo conflituoso e chocante para ambos os lados.
Buel Quain detestava os índios brasileiros. Achava-os sujos, preguiçosos, “eles ignoram
a idéia de trabalhar ou se esforçar para receber alguma coisa” (p. 96) e demasiado expansivos, além
de sentir-se perturbado por sua licenciosidade erótica. “O sexo assombrava a solidão do meu ami-
go” (p. 49), escreveu Manoel Perna, que conviveu com o antropólogo no Xingu, e cujas cartas en-
trecortam a narrativa. Irritava-se costumeiramente com eles, muitas vezes demonstrando-o, e dizia
que só assim conseguia ser atendido: “É muito difícil treinar nativos por aqui. A única forma de me
impor a eles é ficando bravo, e então, por vinte e quatro horas, tenho todos os duzentos e dez deles
aos meus pés, tentando desajeitadamente me satisfazer” (p. 96). Eram tantos os aspectos negativos
observados nos indígenas, que ele desenvolvera um intenso repúdio a qualquer processo de identifi-
cação com as tribos: “nada podia lhe causar maior repulsa do que ter que viver como os índios, co-
mer sua comida, participar da vida cotidiana e dos rituais, fingindo ser um deles” (p. 49).
Além disso, Quain tinha dificuldade para compreender os aspectos próprios da cultura
dos índios, como no caso das relações de parentesco, que confundiam tanto a ele quanto o narrador
de Nove Noites:

Aos poucos, fui descobrindo que a aldeia Nova era praticamente uma única família, que e-
ram quase todos irmãos e irmãs, tios e sobrinhos, e que o parentesco simbólico, classifica-
tório, em grande parte maquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas.
Não consegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólico entre os mem-
bros da tribo. Era muito complicado, e meus objetivos não eram antropológicos. O próprio
Quain teve dificuldades em entender essas relações. (p. 87).

Em O povo brasileiro (2004), Darcy Ribeiro aborda essa imbrincada relação, em espe-

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cial a prática do cunhadismo, que consiste em estabelecer laços de parentesco com estranhos, inte-
grando-os ao grupo, por meio da união destes com uma das moças da tribo. Segundo ele, foi por
meio dessa instituição social que o Brasil se tornou possível, uma vez que permitiu a ligação entre
brancos e índios, que,

Se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório dos índios, uns com os outros,
todos os membros de um povo. Assim é que, aceitando a moça, o estranho passava a ter ne-
la sua temericó e, em todos os seus parentes da geração dos pais, outros tantos pais ou so-
gros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser irmãos ou cu-
nhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Nesse caso, esses termos de
consanguinidade ou de afinidade passavam a classificar todo o grupo como pessoas transá-
veis ou incestuosas. (RIBEIRO, 2004, p. 81).

Logo, a incompreensão perante esses traços tão importantes e significativos da cultura


dos índios, e, mais ainda, a recusa que tinha em aceitá-los ou ver neles aspectos favoráveis, faziam
com que se formasse um grande abismo entre Quain e os povos que estudava, tornando sua experi-
ência entre eles extremamente penosa e traumática, fato esse que não escondia em seus escritos não
oficiais.
As admoestações de Buel Quain encontram ressonância no narrador da trama. Ele, que
refaz os passos de seu investigado para tentar coletar informações sobre o mistério de sua morte,
passa algum tempo entre os índios, a fim de conseguir ali alguém que se lembrasse do estudioso
estadunidense e pudesse fornecer alguma informação relevante sobre ele. No entanto, a única coisa
que obteve em relação a Quain foi a ideia do quanto deve ter sido penosa para ele sua estada no
Xingu.
Sua passagem durou três dias, todos tomados por uma imensa apreensão. Estava acom-
panhado de um antropólogo e seu filho, mas isso não o impediu de ser ridicularizado por não querer
participar dos rituais promovidos, tampouco evitou que passasse fome por ser incapaz de tragar a
comida que lhe ofereciam. Irritou-se várias vezes com os nativos. Teve vontade de xingá-los, gritar
com eles. Sentiu dor de cabeça e febre. Mesmo quase no fim da visita, ainda experienciava o pior:
“a terceira noite foi um inferno” (p. 95). E quando achou que estava distante o suficiente deles, ain-
da o perseguiam, telefonando para pedir coisas, pois achavam que isto era algo devido a eles justa-
mente: “Assim como os índios o adotam quando o recebem na aldeia, eles esperam que você tam-
bém os adote quando vão à cidade. É uma relação aparentemente recíproca, mas no fundo estranha
e muitas vezes desagradável” (p.97). As ligações eram feitas a cobrar, e as solicitações realizadas de
maneira ininterrupta e aberta: “Não faziam a menor cerimônia. Os pedidos não tinham fim. Agora
eu era o eterno devedor” (p.97).
Assim, o depoimento do narrador nada mais é do que a confirmação das sensações vi-

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venciadas e descritas por Quain, as quais, mesmo após tanto tempo, continuam sendo possíveis de
serem vivenciadas por qualquer indivíduo advindo de uma matriz cultural e um ethos conflitantes
com os dos índios, pois, embora o narrador tenha sido criado no Brasil, tanto ele quanto Quain fo-
ram formados segundo os moldes da cultura europeia, centrada em valores bem diversos dos preco-
nizados pelos habitantes mais antigos do país.
Nesse ponto, é possível questionar, no caso de Buell Quain, se sua antipatia não era a-
penas um caso simples de elitismo cultural de um indivíduo que se vê como parte de uma cultura
superior, que se intitula civilizada, e que despreza todas as outras por serem animalescas e bárbaras.
Contudo, tal hipótese não se confirma, já que, ao falar de outros povos com os quais também traba-
lhou, o antropólogo assume uma postura totalmente diferenciada, exaltando-os como ícones de va-
lores morais: “uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras” (p.41) e de virilidade: “o
antropólogo comparava os mirrados Trumais aos homens musculosos de Fiji” (p. 48), rechaçando
qualquer influência de um olhar colonizador sobre a forma de observá-los.
Na verdade, o que Buell Quain detestava eram justamente os traços distintivos dos ín-
dios brasileiros, os quais ele via estenderem-se aos demais habitantes do país: “o Brasil, por sua
vez, sem dúvida absorveu muitas das marcas mais desagradáveis das culturas indígenas” (p.108).
Abominava a natureza “indisciplinada e invertebrada” (p.108) de sua cultura, sua preguiça, sua falta
de ímpeto, e a impressionante capacidade de confiar no destino, de achar que o acaso sempre estará
a seu favor. Também execrava a maneira despojada como estabeleciam contato com o outro, sua
intimidade forçada, e o modo como as relações de amizade se estabeleciam da parte deles, sempre
interesseiras, voltadas somente para a obtenção de favores.
A trajetória de Quain no Brasil finda por ir ao encontro das hipóteses de Darcy Ribeiro
sobre a influência indígena na formação da cultura brasileira. Contudo, isto é feito da maneira mais
drástica, desvelando todas as possíveis implicações negativas do processo.
Desse modo, o romance de Bernardo Carvalho acaba constituindo-se numa contundente
reflexão acerca do ethos nacional e também numa tentativa de interpretação do Brasil por meio da
investigação das raízes de sua cultura, que encontram-se nos valores e práticas dos povos originais
do país, os quais foram observados e registrados na fonte, estando, assim por dizer, em seu estado
mais selvagem e, talvez por esse motivo, menos aceitáveis aos olhares dos estrangeiros que os co-
nhecem.
Contudo, apesar da densidade das considerações feitas sobre esses problemas, a pergun-
ta fundamental da narrativa permanece: que motivos levaram à morte Buell Quain?
A primeira hipótese sugerida foi a de que Quain teria se suicidado por conta de alucina-

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ções ou miragens, possibilidade essa logo descartada pelo narrador. Também não lhe parecia corre-
to atribuir a causa a algum tipo de desencanto perante o mundo, pois, ainda que Quain tivesse uma
atitude melancólica, não parecia ser isso motivo suficiente para tal ato. Assim, as investigações pa-
reciam levar para algum acontecimento específico de sua vida pessoal. E foi nesse caminho que se
traçou a teoria mais consistente.
Quain tinha sífilis, e parecia estar bastante debilitado pela doença à época de sua morte.
E, segundo o que indicam os dados coletados pelo narrador em sua pesquisa, ele estava tentando
sair da aldeia para encontrar-se com o filho, de cujo nascimento acabara de saber. Percebendo que
não conseguiria chegar vivo ao seu destino, preferiu matar-se, a fim de que não houvesse maiores
questionamentos em torno da sua doença ou mesmo de qualquer evento de sua vida. Como disse
seu amigo Manoel Perna, ele se matou para tornar-se invisível até a si mesmo, “para deixar de se
ver” (p. 100).
Mas, se a investigação pôde conduzir até o desvelamento de uma causa plausível para o
suicídio, por outro lado, ela não é capaz de explicar por que motivo este se deu forma tão violenta, o
que leva a crer que, embora as razões gerais possam ser as explicitadas, deveria haver, além dessas,
uma motivação mais profunda que levasse o antropólogo a praticar um ato tão grotesco e desmedi-
do.
Nesse ponto, as anotações feitas pelo narrador sobre o cientista e si próprio são de pouca
valia. Também não ajudam as similaridades entre o seu relato e o de Malinowski, pois, ainda que
este tenha passado por situações parecidas, falta em seus cadernos a experiência da morte vivencia-
da. Somente quem experienciou a morte pode verdadeiramente depor sobre ela. Entretanto, para que
isso ocorra, o indivíduo terá que se tornar incomunicável, o que impede que encontremos tais tes-
temunhos na realidade concreta. Portanto, a interpretação da morte do antropólogo deve procurar o
paralelo que lhe permita a compreensão não no campo histórico, mas sim no ficcional, e mais estri-
tamente, no caso de Quain, em O coração das trevas (2004).
Nessa obra, escrita por Joseph Conrad, temos a história da viagem empreendida pelo
marinheiro Charles Marlow ao Congo para encontrar o Sr. Kurtz, chefe do posto interior e notável
fornecedor de marfim.
À medida que Marlow avança rio adentro, os relatos sobre Kurtz vão se adensando. To-
dos dão conta de uma figura admirável, única, capaz de arrastar uma legião de seguidores e também
de despertar a inveja de vários de seus companheiros.
De formação esmerada e amplamente eurocêntrica “a Europa inteira contribuíra para a
fabricação de Kurtz” (CONRAD, 2004, p. 94), Kurtz desenvolveu ideias contundentes acerca da

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superioridade branca em relação aos outros povos, a ponto de considerar que a supremacia de sua
cultura era tão grande que os próprios selvagens os veriam como seres superiores, de uma espécie
mais elevada, e passariam a obedecer-lhes naturalmente, o que representava um pleno domínio dos
brancos: “Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer para sempre um poder quase
ilimitado” (p. 94). Assim, Kurtz considerava que era sua missão, assim como dos demais membros
da comunidade civilizada, mover meios para que se tornasse possível a supressão da barbárie. “Ex-
terminem todos os bárbaros” (p. 96), era o que dizia em seus momentos de euforia, frase essa que
muito provavelmente inspirou Malinowski a expressar seu desejo de exterminar os brutos.
Em seu posto na floresta africana, Kurtz pôde comprovar suas teorias. Dominou os nati-
vos, persuadindo-os a segui-lo. Em pouco tempo, passou a enviar uma quantidade exorbitante de
marfim. Era um explorador incansável, estava sempre à procura de novas aldeias, não temia nada.
Contudo, os excessos cometidos em suas expedições, além de suas diversas crises psicológicas,
puseram-no enfermo. E, quando Marlow finalmente chegou a seu encontro – após um violento em-
bate com as tribos que habitavam o local e queriam impedi-lo de levar o líder embora e depois de
passar por entre imagens aterradoras de “cabeças de rebeldes” (p. 111) penduradas em estacas a
mando do próprio Sr. Kurtz – ele se encontrava bastante doente.
Em verdade, quando Marlow o viu pela primeira vez, Kurtz já havia enlouquecido, de-
vastado pela doença e pelos confrontos consigo mesmo, o que não impediu que o marinheiro cons-
tatasse a grandeza de seu caráter: “Vi o mistério inconcebível de uma alma que não conhecia limite,
nem fé, nem medo, embora lutasse cegamente contra si própria” (p. 127).
Embarcado para fazer o caminho de saída do coração das trevas, a fim de que pudesse
ser salvo, Kurtz sabia que não seria capaz de sobreviver ao trajeto. Entretanto, não se intranquilizou
com isso, apenas cuidou para que Marlow guardasse seus objetos pessoais. Ao deixar a vida, resu-
miu, nas últimas palavras, toda a sua experiência do mundo: “O horror, o horror” (p. 132).
Analisando de forma comparativa, a narrativa de Kurtz atua como um espelho onde é
possível ver refletida a tragédia de Buell Quain. Ambos eram indivíduos excepcionais, foram for-
mados no cerne da cultura do Ocidente, e o deixaram para frequentar florestas e povos distantes,
caindo enfermos e vindo a morrer quando percorriam o caminho de volta para casa. Ao final, eles
sucumbiram às trevas em que imergiram profundamente, sendo incapazes de regressar.
Em Kurtz, o conflito entre civilização e barbárie foi o que resultou em sua queda, uma
vez que, no interior do líder expedicionário, as linhas que separavam as duas tornaram-se invisíveis.
O extermínio dos índios e a busca desenfreada por marfim não eram menos selvagens do que os
hábitos dos nativos que se embrenhavam na floresta, os quais, mesmo violentos, deixaram-se con-

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vencer pelo discurso de Kurtz, tornando-se seguidores de sua lógica e racionalidade. Com isso,
Kurtz, sem saber mais de que lado estava, acabou consumido na exploração de ambos, até voltar-se
contra todos e contra si mesmo, numa luta que culminou em seu desaparecimento.
E quais foram as trevas de Buell Quain? Elas não se encontravam nem na civilização,
que ele parecia por vezes esquecer, nem na barbárie, que procurava estudar, mas sim no diálogo
com o outro. Sua consciência era incapaz de compreender os que estavam a sua volta, salvo os que
se assemelhavam a ele próprio. Por isso, admirava os outros povos – que tinham um ethos mais
próximo ao seu – e desprezava o brasileiro, cujos valores encontravam-se a uma distância intrans-
ponível dos dele. E, diante dessa incomunicabilidade, ficou aterrorizado. Porém, diferentemente do
Sr. Kurtz, Quain não falou sobre o horror: imprimiu-o em seu próprio corpo:

Ao voltar para o acampamento sem pá nem enxada, João Canuto o encontrou todo cortado
com navalha e ensanguentado (...) Assustado, João também fugiu. Voltou à fazenda Serri-
nha em busca de ajuda. Quando retornou na manhã seguinte, acompanhado pelo fazendeiro
Balduíno e por outros vaqueiros, encontrou o etnólogo pendurado numa árvore arqueada,
sobre uma poça de sangue. (p. 75).

Esse gesto, bem como as sete cartas escritas às vésperas de seu fim, dão conta da inten-
ção de Quain em deixar algum tipo de depoimento, de testemunho. Eram o seu testamento. Contu-
do, sua história foi ignorada, e seu nome relegado ao esquecimento, da mesma forma como foram
esquecidas as tribos que conheceu no país. Com isso, a porta do diálogo interétnico permaneceu
fechada, e o abismo que atormentava o antropólogo continua posto, provocando uma cisão profunda
entre o Brasil e suas origens, índios e não índios, o ser humano e sua compreensão.

Referências
BARRETO, Lima. “O homem que sabia javanês”. In: Contos completos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.

Carvalho, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Conrad, Joseph. O coração das trevas. Porto Alegre, L&PM Editores, 2004.

MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

SILVA, Vagner Gonçalves. “Nos bastidores da pesquisa de Campo”. http://www.n-a-


u.org/ResenhasUmdiariosentidoestrito.html (acesso feito em 06.08.2013)..

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EL ÁRBOL: UM ENSAIO SOBRE A MULHER E SUAS RELAÇÕES EM
FAMÍLIA

EL ÁRBOL: AN ESSAY ON WOMAN AND HER FAMILY RELATIONSHIPS

Cristiane Aparecida da Rosa Rossi (PG- UFSM)

RESUMO: O conto El árbol, da escritora chilena Maria Luisa Bombal (1910-1980), tem como
personagem principal a jovem Brígida, filha menor de um conjunto de seis filhas, cujo pai não lhe
dava atenção. A jovem casa-se com Luis, um homem mais velho, amigo de seu pai, que da mesma
forma segue tratando-a com descaso. No presente ensaio, pretendemos considerar mais detidamente
a mulher em relação ao pai e ao marido e a importância desta relação para a felicidade e a plenitude
feminina. Para tanto, tomaremos como referência o estudo da personagem Brígida em relação ao
seu pai e marido. A relevância desta pesquisa se justifica por haver sido o sexo feminino relegado
por muito tempo a uma posição inferior, na sociedade e na literatura, em relação ao sexo masculino.
Como resultado, concluiremos que Brígida se sentia feliz, mesmo diante de uma acomodação pe-
rante a vida e as definições do pai.

Palavras-chave: Literatura feminina, Maria Luisa Bombal, Mulher, Relações familiares.

ABSTRACT: The main character of the tale El Árbol, written by the Chilean Maria Luisa Bombal
(1910-1980), is the young Brígida, the youngest daughter between a set of six daughters, whose
father gave her no attention. The young girl marries Luis, an older man, a friend of his father, who
likewise follows treating her with negligence. In this essay we will consider more closely the wom-
an in relation to her father and husband and the importance of this relationship to the happiness and
fullness female. For this, we use as reference the study of the character Brígida about her father and
husband. The relevance of this research is justified by the relegation that females have lived for a
long time in an inferior position in society and literature in relation to males. As a result, we will
conclude that Brígida was happy, even she was complacent in relation to life and the standards of
the father.

Keywords: Women’s Literature, Maria Luisa Bombal, Woman, Family relationships.

1. Introdução
O estudo das personagens femininas e suas relações interpessoais é um tema importante,
que merece interesse por parte dos estudiosos pela relevância que possui. Sabemos que a mulher
permaneceu por muito tempo relegada a uma condição de inferioridade em relação ao homem. Se-
gundo nos informa a revista Gênero de onde vens, para onde vais? (1999, p. 12):

As mulheres ocupam cada vez mais o espaço público, no sindicato, no trabalho, na univer-
sidade, nas associações. No entanto, o espaço privado continua sendo sua responsabilidade.
Espaço este, onde os homens apenas “ajudam” as mulheres nestas tarefas domésticas, no
cuidado com as crianças. Ainda são poucos ou mesmo raros os companheiros que partilham
destas atividades.

A exclusão da mulher da vida pública, ou seja, o afastamento da mulher em relação ao


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trabalho externo fez com que o homem assumisse não só o domínio das atividades econômicas,
como também fez com que a supremacia masculina se estendesse sobre as atividades literárias e
acadêmicas, de maneira geral.
No presente trabalho, pretendemos estudar o comportamento feminino e suas relações
familiares, em especial com o pai e o marido. Para tanto, utilizaremos como referência a persona-
gem Brígida, do conto El árbol (Obras Completas), da escritora chilena Maria Luisa Bombal (1910-
1980). Partiremos, inicialmente, da sessão intitulada “A mulher e a Literatura”, em que faremos
algumas considerações sobre o reflexo da abertura do espaço destinado às mulheres na vida social
sobre a literatura. A seguir, analisaremos mais detidamente a personagem Brígida, suas característi-
cas e seu envolvimento com o marido Luís. Na terceira parte, falaremos sobre a mulher e suas rela-
ções familiares, destacando a importância da família para o estabelecimento dos papéis sociais: em
casa, na escola, associações etc. Na quarta e última sessão, será feita uma consideração sobre a per-
sonagem Brígida e a solidão, bem como refletiremos sobre a acomodação da personagem em rela-
ção à vida e às definições do pai.
Por fim, faremos as considerações finais, em que destacaremos alguns trechos do conto,
a fim de justificar nossa proposta, ou seja, demonstrar que Brígida se sentia feliz, em virtude da
acomodação perante a falta de entusiasmo pela vida, que seguia sempre igual: “Y así pasan las ho-
ras, los días y los años. ¡Siempre! ¡Nunca! ¡La vida, la vida!” (BOMBAL, 1997, p. 21).

2. A mulher e a literatura
Os estudos acerca da relação entre mulher e literatura são relativamente recentes. A par-
tir da segunda metade do século XX, a mulher começa a assumir novos papéis na sociedade, dei-
xando de restringir-se à vida privada, passando a ter acesso à escolaridade, assumindo também o
trabalho fora de casa. Conforme Carola Saavedra, no artigo intitulado O fantasma da literatura fe-
minina (2012):

Chegam os anos 1960, 1970, e com eles novas mudanças, talvez as mais radicais: as mulhe-
res saem da casa e passam a ocupar lugares antes exclusivos aos homens, surgem advoga-
das, executivas, engenheiras. É também a época em que adquire maior força a luta pelos di-
reitos da mulher. Como é muito comum em momentos de embate, há uma radicalização dos
papéis, e é também nessa busca por novos espaços que surgem conceitos totalizadores, en-
tre eles o de literatura feminina (p. 32).

A abertura do espaço destinado às mulheres na vida social provoca reflexos também na


literatura. As mulheres outrora afastadas da vida acadêmica e literária passam a superar obstáculos e
desafiar a “ordem patriarcal que as restringia à esfera privada, publicando textos ainda que anoni-

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mamente ou sob pseudônimos masculinos, como estratégia de contornar os preconceitos sexistas no


campo da recepção e da crítica literária” (GAZZOLA, 1990, p. 74).
Segundo Muraro (1992, p. 66 - 67), com o advento do patriarcado,

[...] foi fácil, no decorrer dos séculos e milênios, formar uma identidade masculina baseada
na maior capacidade intelectual dos machos em relação à mulher para controlar a natureza e
inventar novas tecnologias [...]. O domínio público, da história, foi alocado ao princípio
masculino, enquanto o princípio feminino, marginalizado, circunscreveu-se ao domínio da
casa, do privado, da reprodução.

Dessa forma, por muito tempo, o gênero feminino, bem como sua produção literária foi
considerada inferior à produção do gênero masculino. De acordo com Gazolla:

A ênfase do enfoque sobre a mulher nas diversas áreas de estudo é resultado direto do mo-
vimento feminista das décadas de 60 e 70, empreendeu/pretende, principalmente, destruir
os mitos da inferioridade natural, resgatar a história das mulheres, reivindicar a condição de
sujeito na investigação da própria história, além de rever, criticamente, o que os homens,
até então, tinham escrito a respeito (1990, p. 70).

O uso da linguagem, também, contribui para institucionalizar os discursos de gênero,


que representam linguisticamente as relações socioculturais de poder. Conforme a autora Vera Lú-
cia Pires escreve no artigo intitulado “A identidade do sujeito feminino e o resgate de sua resistên-
cia: um fator cultural”:

As relações hierárquicas entre os sexos são estratégias de poder que, articuladas a partir do
discurso, tentam encobrir as desigualdades, naturalizando-as. Produz-se um consenso e o
que foi construído culturalmente é atribuído à natureza. Os paradigmas culturais de gênero,
tanto quanto outros referenciais de diferenças – como raça e classe – estruturam toda a vida
dos indivíduos, sejam mulheres ou homens, determinando seus discursos e suas condutas.
(PIRES apud LUCENA, 2003, p. 207).

3) A personagem feminina no conto El Árbol


A protagonista Brígida, uma jovem de 18 anos, filha menor de um conjunto de seis ir-
mãs é tratada com pouco caso pelo pai. Seu marido, Luís, um homem mais velho, amigo íntimo de
seu pai, trata-a da mesma maneira, sem dar-lhe muita atenção, conforme demonstram os fragmentos
abaixo:

- No tienes corazón, no tienes corazón — solía decirle a Luis. Latía tan adentro el corazón
de su marido que no pudo oírlo sino rara vez y de modo inesperado—. Nunca estás conmi-
go cuando estás a mi lado — protestaba en la alcoba, cuando antes de dormirse él abría ri-
tualmente los periódicos de la tarde —. ¿Por qué te has casado conmigo? (BOMBAL, 1997,
p. 208)
- Estoy ocupado. No puedo acompañarte... Tengo mucho que hacer, no alcanzo a llegar pa-
ra el almuerzo... Hola, sí estoy en el club. Un compromiso. Come y acuéstate... No. No sé.
Más vale que no me esperes, Brígida. (Idem, p. 210)

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Sua relação com o marido baseia-se em uma relação de companhia, e não de amor, pois,
ao contrário de suas irmãs, que iam sendo pedidas em casamento uma a uma, Brígida não era pedi-
da por ninguém: “Una a una iban pidiendo en matrimonio a sus hermanas. A ella no la pedía nadie”
(BOMBAL, 1997, p. 207). Brígida não compreendia por que seu marido havia se casado com ela,
pois até mesmo sua juventude dava vergonha ao marido: “A sus hermanas, sin embargo, los mari-
dos las llevaban a todas partes, pero Luís —¿por qué no había de confesárselo a sí misma?— se
avergonzaba de ella, de su ignorancia, de su timidez y hasta de sus dieciocho años” (Idem, p. 210).
O descaso de Luís em direção à Brígida fazia com que ela o procurasse, sem que o marido demons-
trasse, no entanto, vontade de amá-la ou de ter filhos com ela:

Inconscientemente él se apartaba de ella para dormir, y ella inconscientemente, durante la


noche entera, perseguía el hombro de su marido, buscaba su aliento, trataba de vivir bajo su
aliento, como uma planta encerrada y sedienta que alarga sus ramas en busca de un clima
propicio (BOMBAL, 1997, p. 209).

Brígida se sentia ignorante, havia deixado as aulas de piano, ainda nas primeiras lições e
brincava de bonecas aos dezesseis anos de idade. Conforme declara o pai: “No voy a luchar más, es
inútil. Déjenla. Si no quiere estudiar, que no estudie. Si le gusta pasarse en la cocina, oyendo cuen-
tos de ánimas, allá ella. Si le gustan las muñecas a los dieciséis años, que juegue” (Idem, p. 206).
Seu envolvimento com Luís começou quando pequena, pois quando todos a abandona-
vam, corria em direção a ele:

Desde muy niña, cuando todos la abandonaban, corría hacia Luis. Él la alzaba y ella le ro-
deaba el cuello con los brazos, entre risas que eran como pequeños gorjeos y besos que le
disparaba aturdidamente sobre los ojos, la frente y el pelo ya entonces canoso (¿es que nun-
ca había sido joven?) como una lluvia desordenada (BOMBAL, 1997, p. 207).

De certa forma, Luís representava para ela proteção e amparo: “Por eso se había casado
con él. Porque al lado de aquel hombre solemne y taciturno no se sentía culpable de ser tal cual era:
tonta, juguetona y perezosa” (BOMBAL, 1997, p. 207). Ao procurá-lo durante a noite, o marido se
afastava, deixando-a como alguém que está só em busca de alguém para si. A vontade de acariciar o
marido era apaziguada quando Brígida se dirigia ao quarto de vestir:

Y noche a noche dormitaba junto a su marido, sufriendo por rachas. Pero cuando su dolor
se condensaba hasta herirla como um puntazo, cuando la asediaba un deseo demasiado im-
perioso de despertar a Luis para pegarle o acariciarlo, se escurría de puntillas hacia el cuar-
to de vestir y abría la ventana. El cuarto se llenaba instantáneamente de discretos ruidos y
discretas presencias, de pisadas misteriosas, de aleteos, de sutiles chasquidos vegetales, del
dulce gemido de un grillo escondido bajo la corteza del gomero sumido en las estrellas de
una calurosa noche estival (BOMBAL, 1997, p. 215).

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Ali, Brígida podia sentir de perto a presença da seringueira, a árvore que lhe produzia
uma sensação benfeitora.

4) A mulher e suas relações familiares


Desde os primórdios da humanidade, a família desempenha um papel fundamental para
o estabelecimento dos papéis sociais. A partir do nascimento, cada indivíduo recebe influências e
ensinamentos, que, de certa forma, foram transmitidos por outras pessoas, e que ajudarão a construir
o conjunto de regras e valores que constituem as formas de comportamentos dos grupos sociais:
família, escola, associações etc. Segundo Strey (1997, p. 10): “A família é a fonte fundamental de
transmissão de normas e valores da cultura, ensinando aos indivíduos o que significa ser masculino
ou feminino a partir do nascimento”.
Tradicionalmente, encontramos em nossa sociedade a presença da família patriarcal em
que a casa, ou seja, o âmbito privado pertence à mulher, enquanto que o trabalho ou o âmbito exter-
no representa o domínio masculino. Para Strey (1997, p. 11), nas famílias tradicionais:

Os papéis de gênero colocam os homens em uma posição dominante e as mulheres em uma


posição subordinada. As tarefas dos homens são, então, de maior status, maior reconheci-
mento. A mulher, na posição subordinada, desempenha tarefas de menor status e menor va-
lor.

Na família tradicional, normalmente ocorre a exclusão da igualdade entre os sexos. Ao


homem, cabe o poder e o controle sobre a mulher e, a esta, cabe a dependência em relação ao ho-
mem. Em Strey (1997, p. 11), encontramos: “A família tradicional ensina aos filhos-homens e às
filhas-mulheres esses valores culturais da sociedade e funciona como modelo onde o homem-pai é o
chefe da família, e a mulher-mãe é a educadora e guardiã do lar”.
Atualmente, em virtude das mudanças ocorridas na economia devido ao processo de in-
dustrialização e terceirização, as mulheres passaram a ocupar maior espaço na esfera profissional,
assumindo atribuições reservadas em outros tempos apenas aos homens. Em consequência disso, o
status da mulher, também, sofreu modificações:

Se para o homem a transformação profissional significou a passagem das atividades primá-


rias às secundárias e terciárias, para a mulher, além disso, foi a passagem do trabalho do-
méstico ao profissional. A mulher ainda transpôs rapidamente o setor secundário: o traba-
lho feminino concentrou-se, mais diretamente que o masculino, no setor terciário. Muito
mais profundamente que para o homem, o “desenvolvimento” para a mulher implica uma
mudança de status e de função na sociedade e na família, uma mudança, poder-se-ia quase
dizer, de “natureza” (BELTRÃO, 1970, p. 93).

A participação da mulher na vida profissional acarretou transformações nas relações

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familiares e matrimoniais, à medida que a mulher torna-se financeiramente independente e ingressa


na vida escolar:

Como quer que seja, o fato social da emancipação feminina, resultante tanto da frequência
escolar quanto do trabalho profissional, afeta profundamente a nova configuração das rela-
ções matrimoniais e familiares. A mudança do papel social da mulher acarreta também a
mudança de seu papel familiar (BELTRÃO, 1970, p. 107).

Em decorrência da inserção do sexo feminino na esfera acadêmica e profissional, temos


a modificação do “processo de escolha matrimonial” (BELTRÃO, 1970, p. 107), ao passo que a
mulher pode escolher o marido de acordo com seu gosto pessoal ou por amor e não apenas por con-
veniência, imposição social ou familiar.

5 ) Brígida: solidão e atitudes apassivadas ante pai e marido


No conto El árbol, encontramos Brígida, uma personagem tonta e ignorante, cujo pai,
um viúvo cansado de haver criado cinco filhas, prefere declará-la retardada a ter de preocupar-se
com a criação de mais uma filha: “Cuando el padre llegaba por fin a su sexta hija, lo hacía tan per-
plejo y agotado por las cinco primeras que prefería simplificarse el dia declarándola retardada”
(BOMBAL, 1997, p. 206). Sua atitude passiva, submissa em relação ao pai, reflete-se, da mesma
forma, em relação ao marido, um homem mais velho e desinteressado, cuja preocupação maior con-
sistia em preencher os minutos do dia com uma ocupação: “La vida de Luís, por lo tanto, consistía
en llenar con una ocupación cada minuto del día” (Idem, 1997, p. 210-211).
Para Brígida, o tempo transcorria de maneira linear, de forma monótona e sem grandes
variações, como se não houvesse nada mais a esperar, a não ser viver os dias da mesma maneira.
Não obstante, a indiferença perante os outros lhe dava satisfação: “Todo parecía detenerse, eterno y
muy noble. Eso era la vida. Y había cierta grandeza en aceptarla así, mediocre, como algo definiti-
vo, irremediable” (BOMBAL, 1997, p. 214).
A peça principal da casa, em que lhe dava gosto ficar era o quarto de vestir. Ali, Brígida
permanecia horas vazias, apenas desfrutando da sensação de bem-estar: “Una podía pasarse así las
horas muertas, vacía de todo pensamiento, atontada de bienestar” (BOMBAL, 1997, p. 215). Aque-
le ambiente, a seu modo, conferia-lhe proteção e resguardo. Ao desejar encontrar-se nos braços de
Luís, durante o sono, Brígida recorria àquele local e abria a janela. Desse modo, a jovem sentia seu
sofrimento atenuar-se no quarto: “No sabía por qué le era tan fácil sufrir en aquel cuarto” (Idem,
1997, p. 216).
No quarto de vestir, Brígida aguardava a chegada de Luis. O ambiente lhe dava a sensa-

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ção de plenitude e de felicidade: “Puede que la verdadera felicidad esté en la convicción de que se
ha perdido irremediablemente la felicidad (BOMBAL, 1997, p. 216).”
O contato dos galhos da árvore, na janela do quarto de vestir, davam à Brígida a sensa-
ção de que alguém a queria. Ao sentir-se rejeitada, a jovem encolhia-se entre os lençóis, confor-
mando-se com aquela presença, visto que a preocupação do marido consistia simplesmente em
dormir: “Durante toda la noche oiría crujir y gemir el viejo tronco del gomero contándole de la in-
temperie, mientras ella se acurrucaría, voluntariamente friolenta, entre las sábanas del amplio lecho,
muy cerca de Luis” (Idem, p. 213).
A copa da seringueira produzia efeitos luminosos sobre o quarto de vestir, variando
conforme as estações do ano:

Y vino el otoño. Las hojas secas revoloteaban un instante antes de rodar sobre el césped del
estrecho jardín, sobre la acera de la calle en pendiente. Las hojas se desprendían y caían...
La cima del gomero permanecía verde, pero por debajo el árbol enrojecía, se ensombrecía
como el forro gastado de una suntuosa capa de baile. Y el cuarto parecía ahora sumido en
una copa de oro triste (BOMBAL, 1997, p. 216).

Ao ser derrubada a árvore, o quarto de vestir ficou iluminado, dando ampla visão à Brí-
gida da vida que se descortinava afora:

Despavorida ha corrido hacia la ventana. La ventana abre ahora directamente sobre una ca-
lle estrecha, tan estrecha que su cuarto se estrella, casi contra la fachada de un rascacielos
deslumbrante. En la planta baja, vidrieras y más vidrieras llenas de frascos. En la esquina
de la calle, una hilera de automóviles alineados frente a una estación de servicio pintada de
rojo. Algunos muchachos, en mangas de camisa, patean una pelota en medio de la calzada
(Idem, p. 217).

A queda da árvore representou para Brígida a solidão, a perda de sua intimidade e pro-
teção. Podemos dizer, também, que a derrubada da seringueira fez com que Brígida refletisse acerca
de sua acomodação e passividade perante os acontecimentos de sua vida, pois partindo desse mo-
mento, Brígida se questiona por que havia suportado durante um ano o casamento com um homem
velho, que não lhe havia dado filhos:

Le habían quitado su intimidad, su secreto; se encontraba desnuda en medio de la calle,


desnuda junto a un marido viejo que le volvía la espalda para dormir, que no le había dado
hijos. No comprende cómo hasta entonces no había deseado tener hijos, cómo había llegado
a conformarse a la idea de que iba a vivir sin hijos toda su vida. No comprende cómo pudo
soportar durante un año esa risa de Luis, esa risa demasiado jovial, esa risa postiza de hom-
bre que se ha adiestrado en la risa porque es necesario reír en determinadas ocasiones
(BOMBAL, 1997, p. 217-218).

Esses questionamentos fizeram que Brígida se desse conta de que o que lhe faltava era

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amor: “¡Mentira! Eran mentiras su resignación y su serenidad; queria amor, sí, amor, y viajes y lo-
curas, y amor, amor. . .” (Idem, p. 218).

6) Considerações finais
Ao longo do estudo, podemos compreender que a relação da mulher tem sido uma rela-
ção de acomodação ante a situação de domínio e controle masculino. Mesmo tendo sido relegada
por muito tempo a uma situação de submissão, a mulher, muitas vezes, prefere acomodar-se a uma
situação de pouco caso e desinteresse por parte do homem (pai, marido) a encontrar-se como al-
guém inteligente e capaz.
Muitas vezes, a aceitação de uma alcunha ou uma designação qualquer por parte de ou-
trem acaba sendo acatada, sem ao menos ser questionada. Em El árbol, há uma passagem em que
Brígida se conforma em ser ignorante: “¡Qué agradable es ser ignorante!” (BOMBAL, 1997, p.
206).
Em outro momento, Brígida se lamenta por não ter nascido inteligente: “Para ser inteli-
gente hay que empezar desde chica, ¿no es verdad?” (Idem, p. 210). Mais adiante, Brígida concede
razão ao pai, quando a declarara retardada: “Su padre tenía razón al declararla retardada” (Idem, p.
211). Ante o desejo de insultar a Luís, Brígida se dá conta de que não conhece palavras que possam
magoá-lo: “Ella se había sentado en la cama, dispuesta a insultar. Pero en vano buscó palabras
hirientes que gritarle. No sabía nada, nada. Ni siquiera insultar” (Idem, p. 211)
O fragmento abaixo mostra o momento em que a personagem principal conforma-se em
aceitar a vida tal como ela é, mesmo que medíocre, como algo sublime e irremediável:

En ella los impulsos se abatieron tan bruscamente como se habían precipitado. ¡A qué exal-
tarse inútilmente! Luís la quería con ternura y medida; si alguna vez llegara a odiarla, la
odiaría con justicia y prudencia. Y eso era la vida. Se acercó a la ventana, apoyó la frente
contra el vidrio glacial, Allí estaba el gomero recibiendo serenamente la lluvia que lo gol-
peaba, tranquilo y regular. El cuarto se inmovilizaba en la penumbra, ordenado y silencioso.
Todo parecía detenerse, eterno y muy noble. Eso era la vida. Y había cierta grandeza en
aceptarla así, mediocre, como algo definitivo, irremediable. Mientras del fondo de las cosas
parecía brotar y subir una melodía de palabras graves y lentas que ella se quedó escuchan-
do: "Siempre". "Nunca"... (BOMBAL, 1997, p. 214).

Por fim, Brígida se dá conta de que sua vida não lhe dava entusiasmo, no entanto a feli-
cidade para ela se encontrava na convicção de que se havia perdido irremediavelmente a felicidade:

Echada sobre el diván, ella esperaba pacientemente la hora de la cena, la llegada improba-
ble de Luis. Había vuelto a hablarle, había vuelto a ser su mujer, sin entusiasmo y sin ira.
Ya no lo quería. Pero ya no sufría. Por el contrario, se había apoderado de ella una inespe-
rada sensación de plenitud, de placidez. Ya nadie ni nada podría herirla. Puede que la ver-

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dadera felicidad esté en la convicción de que se há perdido irremediablemente la felicidad


(Idem, p. 216).

Conforme vimos ao longo do ensaio, Brígida representa a resignação e o acomodamento


feminino. Mesmo tendo consciência de que não é feliz, a jovem prefere manter-se presa a uma situ-
ação de passividade e ausência de voz diante de seu pai e marido. A voz que cala permite à Brígida
que outras vozes falem por ela. Em outras palavras, o auto-aniquilamento da jovem significa o dei-
xar-se conduzir pelas considerações de terceiros, em lugar de refletir sobre seus próprios anseios em
busca de fatos ou pessoas que a façam verdadeiramente feliz.

Referências
BELTRÃO, Pedro Calderan S.J. Sociologia da família contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes,
1970.

BOMBAL, Maria Luisa. Obras Completas. Santiago de Chile: Editorial Andrés Bello, 1997.

GAZOLLA, Ana Lúcia Almeida (org.). A mulher na literatura. Belo Horizonte: Imprensa da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, 1990.

MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

PIRES, Vera Lúcia “A identidade do sujeito feminino e o resgate de sua resistência: um fator cultu-
ral”. In: LUCENA, Maria Inês Ghilardi (org.). Representações do feminino. Campinas, SP: Átomo,
2003.

REVISTA Gênero de onde vens, para onde vais? Florianópolis: Escola Sul CUT, 1999.

SAAVEDRA, Carola. O fantasma da literatura feminina. Jornal Rascunho, Curitiba, out., 2012.
Disponível em: <http://rascunho.gazetadopovo.com.br/o-fantasma-da-literatura-feminina/>. Acesso
em: 24 jun. 2014.

STREY, Marlene Neves (org.). Mulheres, estudos de gênero. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1997.

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A VOZ NA PEÇA RADIOFÔNICA DE ARTAUD E SUA LINGUAGEM
SUBVERSIVA MARGINAL

THE VOICE IN THE RADIOPHONIC PLAY OF ARTAUD AND HIS


SUBVERSIVE MARGINAL LANGUAGE

Danielli Rodrigues (PG - UEL)

RESUMO: A palavra tem um valor semântico inquestionável; porém, é na voz que há a exploração
dos sons produzindo os sentidos. Sabe-se que no fim do século XIX e início do século XX houve
uma decadência na representação somente do texto escrito, e a preocupação se torna alcançar o en-
volvimento público através das sonoridades; surgem diversos trabalhos como de Stanislavski, Bre-
cht, Artaud e Grotowski. Para este estudo, tem-se a peça radiofônica A procura da fecalidade de
Artaud, cuja proposta é de reconstrução do homem e do corpo, buscando o trabalho com a voz e,
consequentemente, com a palavra a partir de uma linguagem subversiva marginal da experiência-
limite e literária do escritor.

Palavras-chave: Artaud, linguagem subversiva marginal, rádio.

ABSTRACT: The word has a semantic value unquestionable, but it is in the voice which there is
the exploration of sounds by producing meanings. It is known that in the end of XIX century and in
the beginning of XX century there was a decadence in the representation of only written text, and
the concern becomes to achieve the public involvement through sonorities; Diverse works arise
from researchers such as Stanislavski, Brecht, Artaud and Grotowski. For this study, it has the
radiophonic play known as The Pursuit of Fecality by Artaud which purpose is the reconstruction of
man and its body, bringing the voice work and consequently with the word from a marginal subver-
sive language of the limit experience and literary of the writer.

Keywords: Artaud, marginal subversive language, radio.

A manifestação da insanidade, fator que coloca o personagem num lugar à parte, marginal,
é o meio que permite penetrar numa esfera interdita aos normais,
dando acesso a verdades esquecidas ou não reveladas.
(Cecília de Lara)

Os movimentos das vanguardas europeias no início do século XX contribuíram para que


a leitura somente do texto não tivesse apenas a palavra escrita como sendo o essencial; buscou-se
novos caminhos, a voz deixou de ser apenas para audição, declamação e começou a ter outras di-
mensões.
A voz é um elemento vivo e dinâmico, além de uma compreensão auditiva, desperta i-
deias e sensações. A voz se faz presente tanto em uma dimensão física, na questão acústica, articu-
lação dos sons ou na sua percepção; como também na dimensão psicológica, produzindo imagem a
partir da acústica e articulação da criação dos movimentos dos sons.
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Stanislavski proporcionou uma libertação da criação, aumentando as possibilidades de


encenação; as falas começaram a ser apresentadas de modo espontâneo, natural, orgânico. O méto-
do de ações físicas proposto por ele tinha por objetivo a junção das ações físicas e psíquicas através
de uma interpretação próxima à realidade cotidiana, a voz como parte do corpo em sua ação. A cor-
poreidade torna-se realizável na locução, entonação, pausas, enfim, nos elementos que estão presen-
tes na voz do ator. Partindo da ideia da voz como ação e da formação da ação física, e dando conti-
nuidade a essas ideias, surgiram outros estudiosos como Brecht, Artaud e Grotowski.
Dentre eles, é notável a importância de Artaud, dramaturgo francês, nascido em Marse-
lha em 1896 e que, em 1948, morreu em Paris, ligado à vanguarda surrealista, reinventou a lingua-
gem teatral, sendo considerado atualmente um renome dos artistas surrealistas. Sua linguagem radi-
cal trouxe polêmica e estranhamento ao público, tanto pela questão das novas técnicas de corporei-
dade como pelo conteúdo, ou por suas atitudes:

[...] Para Artaud, que viveu num século de guerra mundial, não era basicamente doente,
mas destrutiva; e, por sua vez, precisava ser destruída. Artaud incessantemente soltava seus
trovões em todas as direções possíveis contra tudo o que era convencional e tradicional, que
negava a vida, que estava morto. Como os dadaístas e surrealistas com os quais se associou,
Artaud, seguindo Nietzsche, exclui-se da sociedade num movimento duplo de rejeitar e ser
rejeitado, marginalizar e ser marginalizado. Ele seria um marginal rebelde [...] (PORTER,
1990, p. 181).

Foi rejeitado pelo público, devido as suas provocações morais e comportamentos estra-
nhos ao fazer uso do espaço, da vocalidade, tornando-se corporeidade; ao desligamento do texto à
defesa da linguagem de expressão de verdades secretas, em rituais, com gestos criando significados
na formação de discursos em suas peças. Somam-se a esses elementos os seus internamentos e tra-
tamentos com choques. Artaud parece demonstrar uma escrita automática, à maneira dos surrealis-
tas, em uma linguagem sintética e por vezes (in) consciente, como aponta Foucault (2009, p. 33), a
loucura de forma geral pode tornar-se uma das formas da razão.

Aquela integra-se nesta, constituindo seja uma de suas forças secretas, seja um dos momen-
tos de sua manifestação, seja uma forma paradoxal na qual pode tomar consciência de si
mesma. De todos os modos, a loucura só tem sentido e valor no próprio campo da razão
(FOUCAULT, 2009, p. 33).

Para tanto, o conceito de loucura abordado e desenvolvido por Foucault, em seu livro
História da Loucura, relata a historicidade do fenômeno da loucura desde o Renascimento até a
modernidade, apresentando as diversas formas que a humanidade caracterizava e tratava da loucura
ao longo dos séculos. Entretanto, é perceptível que com o aparecimento da Psiquiatria ocorreram
mudanças significativas tanto nessa caracterização quanto no tratamento da loucura. Vale salientar

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que o louco não era digno de ter cidadania e pensamento, tampouco ter garantida a própria identi-
dade e comportamento, assim surgiam e ressurgiam diversas manifestações da loucura, ora consci-
entes, ora inconscientes, tendo somente sentido e valor no campo da razão. Desse modo, originavam
variadas personagens com as manifestações da loucura, dentre elas, Foucault destaca as atitudes e
obras de Artaud.
Na obra Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus, de Artaud, é possível identificar a
sua ambição na essência de seu trabalho, seja como ator, feiticeiro, relator do retorno das terras dos
tarahumaras ou ritualista. Nela, a peça Procura da Fecalidade, apresenta a reconstrução da lingua-
gem, do homem e do próprio corpo:

Là ou ça sent la merde
ça sent l’être.
L’homme aurait très bien pu ne pas chier,
ne pas ouvrir la poche anale,
mais il a choisi de chier
comme il aurait choisi de vivre
au lieu de consentir à vivre mort.
C’est que pour ne pas faire caca,
il lui aurait fallu consentir
à ne pas être,
mais il n’a pas pu se résoudre à perdre
l’être,
c’est-à-dire à mourir vivant.
(ARTAUD, 1947).

Nota-se que a reflexão sobre viver, morrer e ser partem das fezes. Loucura? Artaud é
apontado pela sociedade como um louco, um desvio social. O autor propõe a destruição, a consci-
ência da crueldade para a busca da liberdade, a desnaturalização das normas sociais e que a intera-
ção social não seja acometida apenas pela garantia da ordem:

[...] No entanto, a crítica de Nietzsche, todos os grandes valores investidos na partilha dos
asilos e a grande procura que Artaud, após Nerval, efetuou implacavelmente em si mesmo,
são suficientes testemunhos de que todas as outras formas de consciência de loucura ainda
vivem no âmago de nossa cultura [...] (FOUCAULT, 2009, p. 171).

De acordo com Foucault, a experiência da loucura nasce e ameaça atenuar-se, implican-


do com a razão. Houve a criação de hospitais e clínicas, por conseguinte, o internamento dos consi-
derados loucos pela sociedade. Mais tarde, com os estudos de Sigmund Freud, a loucura permane-
ceu como interdito da linguagem:

Na história ocidental, a experiência da loucura deslocou-se ao longo dessa escala. Para di-
zer a verdade, ela ocupou por muito tempo uma região indecisa, difícil de precisar, entre o
interdito da ação e o da linguagem [...] segundo os registros do gesto e da palavra, o mundo
da loucura até o final do Renascimento [...] (FOUCAULT, 2010, p. 215).

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A loucura como interdito da linguagem apresenta diversas representações, sejam em o-


bras plásticas e/ou literárias. Dentro de seu desprendimento, a experiência desse autor, aqui tratada
como experiência-limite, coloca-se em um movimento de continuidade ao retomar a atividade da
experiência literária, esta retomada é uma experiência consumada em seu puro êxtase:

[...] “Que importa quem fala?” Nessa indiferença se afirma o princípio ético, talvez o mais
fundamental, da escrita contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde então, para
a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial não é constatar uma vez mais seu desapareci-
mento; é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório –,
os locais onde sua função é exercida [...] (FOUCAULT, 2009, p. 264).

O exercício da experiência literária é tido por meio de seu silêncio, a sua escrita tem
uma parte de si que não lhe pertence, pertence somente à escrita, à própria obra. A linguagem per-
tence ao próprio texto e não ao autor, há um apagamento, uma eliminação do “eu” autor, uma expe-
riência-limite. Afinal, tem-se a loucura propriamente dita e da performance de loucura que surgem
nas obras de Artaud, isto é, há diversas manifestações do fenômeno da loucura imbuídas no escritor.
Para Foucault, o conceito dessa eliminação e ausência seria uma experiência trágica da
própria loucura que, por meio de uma experiência crítica, entra em uma transgressão. Então, nessa
experiência trágica, não há questionamento relativo à razão propriamente dita; já a experiência críti-
ca está pautada pela racionalidade.
A experiência de Artaud envolve o limite da escrita, da linguagem. O escritor explora
tal limite como uma ausência da obra. Em momentos de privação, é o mesmo que escreve e dese-
nha, tudo é possibilidade de representação. Sua obra apresenta mudança da ordem social estabeleci-
da de acordo com a sua ideia de liberdade. A proposta de revolução na linguagem, persistência da
corporeidade, a vocalidade com a crueldade, a busca de novas técnicas, que vai de um sopro, signi-
ficando a ausência, a um suspiro, significando o passado. Assim, faz uso da ausência de escrita, da
perda, da falha de pensamento e da própria escrita com palavras ilegíveis, tudo conduzindo à corpo-
reidade.
Artaud apresenta uma experiência da linguagem como experiência-limite, sendo uma
experiência através do espaço literário do teatro que ocorre lado a lado com sua expressão na lin-
guagem subversiva marginal. O tempo e espaço dessa linguagem criada por Artaud extrapolam a
semântica das palavras e vão muito além da metafísica, a voz como corporeidade traz o interior e o
exterior amalgamados no contato do sujeito com o mundo. A peça trata de uma construção estética
com sentidos que permanecem pontos de tensão com códigos linguísticos baseados na própria ação
dramática, tendo como proposta uma escrita processual performática e desconstrutivista, ainda com

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a valorização da voz, da imagem dialética negativa, do anacronismo exacerbado. Além disso, de


acordo com Foucault, podemos considerar o conceito de ausência de obra, isto é, a retomada da
experiência trágica da loucura sendo silenciada pela experiência crítica, consequentemente com um
contraste da linguagem subversiva e marginal de Artaud, ausente e silenciosa, modificando a forma
de escrever e até mesmo de compreender a estética, então “Antonin Artaud passa internado no asi-
lo, ‘deportado na França’, como ele próprio se descreve, submetido ao poder da psiquiatria, em
sua forma mais violenta: o eletrochoque que provoca o ‘coma’” (REY, 2002, p. 39) arraigado da
própria experiência-limite da escrita e da experiência trágica da loucura.
Para Blanchot, a experiência limite retira radicalmente o sujeito de si, visto que ele está
em crise existencial até mesmo de sua própria experiência, há a perda do sujeito. Desse modo, para
verificar a possibilidade da experiência da linguagem se fizeram necessários esses conceitos de
Foucault e Blanchot. O autor possui obras escritas dentro e fora do internamento psiquiátrico com
diversas experimentações de linguagem com a voz.
De acordo com Aleixo (2002), ao se tratar de voz como corpo, tem-se um processo da
ação de diversos campos orgânicos, seja pela afetividade, memória, sentidos, musculatura, como até
pela ossatura, oportunizando uma complexidade e astúcia particulares na criação. O autor reflete
sobre tais possibilidades vocais somadas à sua técnica durante o processo criativo. Sendo assim, na
técnica vocal para o teatro é utilizada a vocalidade, momento em que há a aplicação dos recursos
vocais baseados nos aspectos fisiológicos, culturais, nas técnicas e linguagens. Além disso, executa
o código vocal, sendo o concentrador do conteúdo expresso e de toda a comunicação oral.
Para tanto, é necessário que o autor conheça e domine as técnicas não só instrumentais,
mas também a vocal e a criação; por isso, na preparação vocal, o ator deve adotar metodologias
específicas tanto no físico como no vocal, com uma aplicação técnica adequada em seu conteúdo
levando à potencialização dos recursos expressivos. Dessa forma, é preciso respeitar suas potencia-
lidades psicofísicas para a obtenção de expressões corporais e produtividade da voz; visto que a
voz, assim como o corpo, tem em sua dimensão orgânica grande potencialidade de representação no
teatro, conforme a citação de Aleixo das diretrizes apontadas por Grotowski sobre o trabalho vocal
do ator:

[...] Para cada situação, e para a sua interpretação pela voz, pode-se tentar encontrar a res-
sonância apropriada. Isto se aplica ao treinamento, mas não ao preparo do papel. Os exercí-
cios e o trabalho criativo não devem se misturar [...]. Meu princípio básico é o seguinte: não
pense no instrumento vocal, não pense nas palavras, mas reaja - reaja com o corpo. O corpo
é o primeiro vibrador, a primeira caixa de ressonância. (GROTOWSKI, 1971, p. 138 apud
ALEIXO, 2002).

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Aleixo (2002) cita também que o corpo, segundo a definição de Klaus Vianna, tem uma
variedade de movimentos que são originados de impulsos interiores que se exteriorizam por meio
do gesto, relacionando-se com o ritmo, espaço, emoções, sentimentos e intenções; o que justifica a
comparação com ressonâncias, pois esses impulsos corporais geram as ações vocais (de entonação,
de pausa, de ritmo e de gesto). Igualmente:

Uma palavra não começa sendo uma palavra - é o produto final iniciado com um impulso,
estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados pela necessidade de expres-
são. Este processo acontece dentro do dramaturgo. É repetido dentro do ator. Ambos talvez
estejam apenas conscientes das palavras. Mas tanto para autor, como depois para ator, a pa-
lavra é a pequena porção visível de um conjunto gigante de invisível (ALEIXO, 2002).

A procura da fecalidade, criada em 1948, foi proferida por Artaud e alguns amigos em
uma rádio. Na referida obra encontram-se vários elementos sonoros, como a voz com a palavra, os
gritos, os murmúrios, as pausas, os ruídos, a expressão vocal primitiva, linguagem vulgar e voz gra-
ve. Nessa peça há uma proposta de reconstrução do homem e do corpo. Artaud utiliza a voz como
componente principal, mudando entonações juntamente com outros elementos por meio do som, do
ruído e da palavra.
Artaud, apesar de não seguir as concepções de Stanislavki, mantém o desejo intenso de
alcançar o envolvimento com o público através dos sentidos. Para isto, ao utilizar as palavras, tanto
as defendia como as destruía. O uso da voz é essencial à sensibilização do público, trabalhando a
partir da voz possíveis criações de imagens. Embora ele não estabeleça técnicas de domínio do ator,
é perceptível que o ator deve buscar a voz como processo de criação mesmo que, para isso, seja
necessária a destruição da sintaxe, buscando não a linguagem articulada, mas a profundidade do
pensamento:

o reche modo
to edire
di za
tau dari
do padera coco (ARTAUD, 1947).

Há uma busca de exploração dos sons produzindo os sentidos, atingindo um ponto alto
com relação aos significantes e não apenas com o significado. Para Artaud, não era uma pregação
da extinção ou rejeição da palavra, mas um questionamento e reivindicação de livre criação, mais
possibilidades para se trabalhar com a palavra, privilegiando a expressão das sonoridades no públi-
co.
Segundo Gayotto (1997), cabe ao ator inventar a construção da voz para o personagem

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e, ao ouvir a criação da voz, o ouvinte é um ser afetado pela ação vocal construída pelos recursos
vocais e forças vitais. Os recursos vocais abrangem os recursos primários da voz, como respiração,
intensidade, frequência, ressonância, articulação; e os recursos resultantes, como as dinâmicas da
voz compreendidas em projeção, volume, ritmo, velocidade, entonação, fluência, duração, pausas
interpretativas e ênfase. Tais recursos, em sua combinação, demonstram as intenções vocais. Já as
forças vitais, que Gayotto afirma serem empregadas por Nietzsche, permitem os vários planos da
imaginação, estimulando as sensações.
Artaud faz um uso de marcação invejável em suas partituras, aqui não será feita a análi-
se dessas partituras com as marcações; porém, há uma breve apresentação delas com o intuito de
demonstrar os recursos vocais e as forças vitais da ação vocal. No entanto, é necessário que ouça
essa peça radiofônica para uma melhor compreensão dos apontamentos realizados.
No início da peça, a velocidade das ênfases e do movimento da voz é lenta, a ação é
prolongada com a tendência de frequência grave, buscando os sentidos:

Là ou ça sent la merde
ça sent l’être.
L’homme aurait très bien pu ne pas chier,
ne pas ouvrir la poche anale,
mais il a choisi de chier
comme il aurait choisi de vivre
au lieu de consentir à vivre mort

[...]

LE CACA.
(Ici rugissements) (ARTAUD, 1947).

A linguagem utilizada é marcante, o ouvinte é levado à reflexão de sua própria lingua-


gem. Há vários elementos sonoros como a voz com a palavra, os gritos, os murmúrios, as pausas
interpretativas, os ruídos, conforme também é possível verificar no primeiro exemplo citado. O
autor, por vezes, utiliza uma cadência silabada com duração no alongamento, ora com velocidade
rápida, intensidade forte e articulação com força, ora com velocidade lenta, intensidade fraca e arti-
culação com abrandamento como em:

o reche modo
to edire
di za
tau dari
do padera coco
[...]

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LE CACA

[...]
Alors les bêtes l’ont mangé (ARTAUD, 1947).

Na peça, há uma proposta de reconstrução do homem e do corpo. Artaud utiliza a voz


como componente principal, mudando entonações juntamente com outros elementos como sons,
ruídos ou palavras. A voz desperta no ouvinte diversas ideias, como sensações. Há combinações de
ideias, palavras e ruídos. A voz se torna corporeidade em um determinado ritmo que é mudado a
partir do primeiro exemplo dado, usando uma expressão vocal primitiva. A voz do ator busca a efi-
cácia, explorando as potencialidades do corpo para a criação, não apenas como representação, mas
sim com vivacidade:

[...]
où dieu croyait l’avoir depuis longtemps clouée,
s’est révoltée,
et, bardée de fer,
de sang,
de feu, et d’ossements,
avance, invectivant l’Invisible
afin d’y finir le JUGEMENT DE DIEU (ARTAUD, 1947).

Artaud, com certeza, abandona as utilizações formais da palavra para dar espaço à lin-
guagem de teatro nas vibrações e condições da voz, ritmos alucinados como sons martelando, bus-
cando exaltar, paralisar, encantar, estagnar a sensibilidade. Tais vibrações e condições de voz não
comuns se comunicam com a sensibilidade, a cena em seu espaço físico se completa com a sua lin-
guagem concreta. A linguagem representa o todo da cena e toda possível manifestação expressiva
pertinente. Tal representação se dá pela materialização física da voz, adquirindo em sua interpreta-
ção outros significados de acordo com o som e o movimento da voz e expressando uma ideia, en-
quanto corporeidade. Tais intensidades corporais dependem do ator.
Na escuta dessas partituras vocais, a voz de frequência é grave, certamente a voz grave
compõe a natureza própria do ator, o personagem traz fortemente o homem/masculino da peça. A
articulação precisa, por vezes sobre articulada, com duração maior pelos alongamentos, com algu-
mas cadências silabadas, algumas sílabas reforçadas e palavras enfatizadas no percurso da narrativa;
as variações de intensidade são realizadas com facilidade, sendo que há uma diversidade de intensi-
dades, nível mais fraco em suas primeiras ações, depois crescente, alcançando o forte e o muito
forte com algumas intensidades suaves, no final um nível de intensidade forte. No percurso da peça,
a intensidade e frequência de voz aumentam sob uma forma mista de voz cantada e falada, princi-
palmente quando há desconstrução da sintaxe; a ressonância é mista, de cabeça, mediana e peito,

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muitas vezes, alta, com curvas melódicas variadas, alongadas, intensidade forte, articulação exage-
rada, às vezes, também um pouco de nasalidade.
Artaud, em sua estética, utiliza um ideal destrutivo para a construção de significados,
um descontrole da expressão que traz reflexão em torno do consciente e do subconsciente, lembran-
do-se das tendências do surrealismo. Essa peça versa sobre a transformação do homem e da socie-
dade, o teatro vai se criando, progredindo durante a peça. O ouvinte reflete a todo o momento a voz
e o seu uso durante o teatro, a voz não é apenas uma mera audição, somente para a compreensão do
público, mas sim para obter sensações e envolvimento dele:

Cela vient de ce que l’homme,


un beau jour,
a arrêté
l’idée du monde.

[…]

Et il a choisi l’infime dedans.


Là où il n’y a qu’à presser
le rat,
la langue,
l’anus
ou le gland (ARTAUD, 1947).

Sem dúvida, mesmo que as palavras tenham sentido semântico, é no significante, ou se-
ja, a forma como foram exploradas as sonoridades, que se têm os sentidos em toda cena orgânica e
sensibilização do público. É perceptível o quanto a voz envolve o público e permite sensações por
meio das sonoridades produzidas durante a criação, tanto pelas palavras como por meio de sons não
verbais. Artaud eleva a voz em relação à expressividade, à forma e a sonoridades enquanto sensibi-
lização sonora do público ouvinte, com a exploração máxima da corporeidade para que haja vida no
personagem, não somente a representação.
Desse modo, a linguagem apresentada expressa um grande impacto, além da agressivi-
dade imposta, tendo como consequência no público o desconforto, que possibilita a promoção da
mudança. Essa estética de desconforto não é gratuita, trata-se de um efeito proposital da recepção
literária de sua obra que nos eleva ao caminho da reflexão consciente de nossa realidade marginal,
marcando, assim, um processo de transformação do ser e do pensamento. Seja de forma implícita ou
explicitamente, os personagens malditos de Artaud são mais do que autênticos, são produtos da so-
ciedade, bem como a linguagem subversiva marginal advinda da expressão corporal no teatro sendo
intensa, agressiva, polêmica por vezes trazendo a calamidade do nosso próprio (in) consciente.
Fica, como adendo, a reflexão da voz no envolvimento do público, de acordo com a

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produção de sons, tanto das palavras ou de outros recursos não verbais, em um espaço e tempo em
que Artaud reúne a linguagem subversiva de sua experiência-limite e literária da linguagem na ex-
pressão corporal do teatro pelos personagens malditos com um viés marginal da sociedade, a fim de
que possamos contribuir para uma conscientização humanizadora.

Referências
ALEIXO, Fernando. Corporeidade da Voz: aspectos do trabalho vocal do ator - Cadernos da Pós-
Graduação IA / UNICAMP - Ano 6, Volume 6 - Nº. 1, 2002. Disponível em:
<http://www.republicacenica.com.br/dowloads/textos/corporeidadedavoz.pdf>. Acesso em: 15 set.
2013.

ARTAUD, Antonin. À procura da fecalidade: Para acabar de vez com o juízo de Deus. Trad. Luiza
Neto Jorge e Manuel João Gomes. Lisboa: Gallimard, 1975. pp. 27- 33.

______. La recherche de la fécalité (performed by Roger Blin). Pour finir avec le jugement de dieu.
Faixa 5. Radiodiffusion française: Paris, 1947. CD (4min34seg). In: ______. UBUWEB SOUND.
Disponível em: http://www.ubu.com/sound/artaud.html. Acesso: 15 set. 2013.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

______. A conversa infinita 2: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007.

GAYOTTO, Lucia Helena. Voz-Partitura da ação. São Paulo: Summus, 1997.

FOUCAULT, Michel. A História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2009.

______. “A Loucura, a Ausência da obra”. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e


Psicanálise. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. pp. 210 – 219.

______. O que é um Autor? Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009. p. 264 – 298.

POTER, Roy. De bobos a marginais. Uma história social da loucura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990. p. 181-186.

REY, Jean-Michel. O Nascimento da Poesia. Antonin Artaud. Tradução de Ruth Silviano Brandão.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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O POETA E A CIDADE - DA PARIS DE CHARLES BAUDELAIRE AO RIO
DE RAMON MELLO

THE POET AND THE CITY - FROM CHARLES BAUDELAIRE’S PARIS TO


RAMON MELLO’S RIO

Vagner Rangel (PG – UERJ)

RESUMO: Este texto propõe a leitura de alguns poemas de As flores de Mal, de Charles Baudelai-
re, da seção Quadros Parisienses, e alguns poemas de Vinis Mofados de Ramon Mello, a partir das
considerações de Giorgio Agamben sobre o que seria um dispositivo e a sua influência sobre o indi-
víduo na sociedade moderna. Baseando-se nisto, o texto pretende captar o momento de interseção
entre a cidade e os seus elementos enquanto dispositivos e o indivíduo, aqui representado pela figu-
ra do poeta em si e de outras figuras que aparecem nos poemas.

Palavras-chave: Poesia, cidade, dispositivo, modernidade.

ABSTRACT: This text suggests reading some poems from Flowers of evil, by Charles Baudelaire,
in the section Parisian scenes, and some others from Vinis Mofados by Ramon Mello, taking into
consideration what Giorgio Agamben says about the notion of device and its influence over the
modern society and the self. Based on that, this work aims to focus on the woven moment, in which
the modern city and its components as devices and the self, which is presented here by the poet’s
figure.

Keywords: Poetry, city, device, modernity.

1. Introdução
De uma perspectiva comparativista, O poeta e a cidade trabalha com alguns poemas de
As flores de Mal, de Charles Baudelaire (2012), e alguns poemas extraídos ao longo de Vinis Mofa-
dos, de Ramon Mello (2009), a fim de mostrar o quanto a cidade – símbolo da idade moderna –,
enquanto um dispositivo (AGAMBEM, 2009, p. 25-51), vem à tona por intermédio da voz poética
na obra destes autores. No entanto, da obra de Charles Baudelaire até a de Ramon Mello, percebe-
mos uma gradação às avessas que, segundo pretende-se mostrar ao longo deste trabalho, relaciona-
se a dois momentos distintos da sociedade como a conhecemos.
Primeiro ela aparecerá de forma bem profusa, o que corresponderia à emergência deste
dispositivo novo ao sujeito. Uma vez consolidada e, seguindo o raciocínio de Agambem (2009, p.
25-51), tendo influenciado a formação do sujeito moderno, ela aparece através de fragmentos do
real, configurando uma economia poética sobre a cidade.

2. A cidade, o dispositivo e o sujeito


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A partir da Revolução Industrial, há uma reorganização da cidade em torno de suas fá-


bricas, estandartes da modernidade. Daí, a cidade torna-se um espaço de intenso trânsito entre seus
habitantes, independente de suas classes sociais. Diferentemente da vida em feudos, o espaço urba-
no é recortado por vias e atravessado por elas, o que permite circulação dos transeuntes (BERMAN,
2007; GIDDENS, 1991). Essa disposição da cidade será aqui entendida como um dispositivo, na
acepção de Giorgio Agamben: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e
os discursos dos seres viventes” (2009, p. 40-41). Por conseguinte, esse trabalho também adota as
considerações do autor sobre uma possível definição de sujeito: “(...) o que resulta da relação e, por
assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (Ibid., p. 41), para então perceber
a ruptura originada pela obra As flores do mal, de Charles Baudelaire (2012), isto é, compreender o
lugar de destaque que Baudelaire dá a cidade e aos seus residentes em sua obra.
Em Mímesis e Modernidade, Luiz Costa Lima (2003) trata da distância vertical entre a
figura do poeta romântico em relação ao leitor do século XIX – é como se o poeta se dirigisse ao
leitor do alto de um púlpito – e o apagamento da mesma em Charles Baudelaire. Este se aproxima
do leitor e já não há mais uma enunciação de cima para baixo. “Hipócrita leitor, - meu igual, meu
irmão!” (BAUDELAIRE, 2012, p.124).

(...) não é uma flor de retórica, mas resulta de uma situação específica: no centro financeiro
que é Paris, as ascensões e quedas são iminentes; nestes anos de ‘restauração’ dos bons cos-
tumes, é preciso fingir que o amor ao dinheiro não prejudica a devoção à realeza e à religi-
ão (LIMA, 2003, p. 127).

Assim, a voz poética baudelairiana articula as contradições e paradoxos dos tempos


modernos:

[o] conflito ideológico, usando a palavra aqui no sentido de ‘conjunto de idéias’, que marca
o século XIX: de um lado o ‘modelo consciente’ (Lévi-Strauss) – a orientação de fundo
cristão – de outro, a estrutura das relações capitalistas. Como esta no entanto se pretende
justificada pelo cristianismo, não cabe aos contemporâneos, em geral, senão a farsa da ho-
nestidade (2003, p. 129).

Daí alguns poemas da seção Quadros Parisienses, em As flores do Mal (2012), tornam-
se o corpus deste trabalho, que tem o propósito de observar a cidade em Baudelaire – pois, ao flanar
pela Paris, palco da dissimulação abordada por Baudelaire, a cidade emerge nos poemas: Paisagem;
Os sete velhos; Os cegos; A uma passante e Sonho parisiense (BAUDELAIRE, 2012, p. 305-57) e
(b) tem como objetivo final contrastá-la com a imagem da cidade em alguns poemas de Vinis Mofa-
dos: Sebo (p. 38); Bairro Peixoto (p. 39); Música urbana (p.88) e Trânsito (p.89), de Ramon Mello

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(2009).

3. A Paris em “Quadros Parisienses”

Em a Paisagem (BAUDELAIRE, 2012, p. 305), ao descrever o cenário urbano, a voz


poética nos permite fitar a Paris de então: a quietude das igrejas e a suavidade dos campanários con-
trastam com a correria dos operários absortos no trabalho braçal na fábrica:

Quero, para compor os meus castos monólogos, / Deitar-me ao pé do céu, assim como os
astrólogos, / E, junto aos campanários, escutar sonhando / Solenes cânticos que o vento vai
levando. / As mãos sob meu queixo, só, na água-furtada, / Verei a fábrica em azáfama en-
golfada.

Na cidade, calmaria e tranquilidade convergem com agitação e rumor de vozes a traba-


lhar. Por outro lado, se o mar fora o símbolo de bravura épica e o navio instrumento de descobri-
mento, o poeta, que não é nenhum pássaro – seja de sorte ou de agouro – parece perceber a cidade
como o mar de outrora e a fábrica como o navio: “Torres e chaminés, os mastros da cidade”. Assim
temos a imagem da cidade-mar e a fábrica-navio, que podem estar rumo ao descobrimento de even-
tos que ele, o poeta, “(...), em meio à bruma que nos vela” parece intuir, no entanto esse conheci-
mento será comum a todos quando

Com seu lençol de neve, o inverno for chegando,


Cada postigo fecharei com férreos elos
Para noite erguer meus mágicos castelos.
Hei de sonhar então com azulados astros,
Jardins onde a água chora em meio aos alabastros,
Beijos, aves que cantam de manhã e à tarde,
E tudo o que no Idílio de infantil se guarde.
O Tumulto, golpeando em vão minha vidraça,
Não me fará mover a fronte ao que se passa,
Pois que estarei entregue ao voluptuoso alento
De relembrar a Primavera em pensamento
Em um sol na lama colher, tal como quem, absorto,
Entre as ideias goza um tépido conforto

Por ora, o poeta se deleita no contraste entre as luzes naturais e artificiais: “É doce ver
(...) / Surgir no azul a estrela e a lâmpada à janela”.
Sendo a cidade-mar e a fábrica-navio os dispositivos enquanto espaços novos de con-
quista e aventura humana, o poeta, em O Sol (p. 307), se compara com o astro, que, no período das
grandes navegações, era a luz que orientava as embarcações sobre o desconhecido mar: “Quando às
cidades ele vai, tal como um poeta, / Eis que redime até a coisa mais abjeta, / E adentra como rei,

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sem bulha ou serviçais, / Quer os palácios, quer os tristes hospitais.” Daí, ao flanar pela cidade, o
poeta, bem como o sol, “sem bulha”, remoça a trivialidade da vida moderna nos campos, nos subúr-
bios e nos hospitais.
Estendendo a comparação entre o sol e o poeta feita a outros poemas, como A uma
mendiga ruiva (p. 309-13), percebemos o quanto, ainda que destituída de posses, ela, a mendiga,
tem mais graça e requinte, para o poeta, do que as moças que se vestem de acordo com a moda:
Moça de ruivo cabelo,
Cuja roupa em desmazelo
Deixa ver tanto a pobreza
Quanto a beleza,

Para mim, poeta sem viço,


Teu jovem corpo enfermiço,
Cheio de sardas e agruras,
Tem só doçuras.

Calças com pés mais ligeiros


Os teus tamancos grosseiros
Do que essas damas tão finas
Suas botinhas
(...)

Já em Os sete velhos (2012, p. 319), a cidade aparece como uma fábrica de sonhos a
pleno vapor e ruas estreitas são ocupadas por operários tocando grandes carroças que são puxadas
por bois num contraste com senhores em farrapos que parecem ser mendigos, mas que, para o estu-
por da voz poética, não pedem esmolas. Porém só o poeta parece estranhar o quanto essas figuras
são comuns nas esquinas da cidade:

Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde


O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!
Flui o mistério em cada esquina, cada fronde
Cada estreito canal do colosso possante.

Certa manhã, quando na rua triste e alheia,


(...)

Uma névoa encardida enchia todo o espaço,


Eu ia, qual herói de nervos retesados,
(...)

Súbito, um velho, cujos trapos pareciam


Reproduzir a cor do tempestuoso céu
E a cujo pobre aspecto esmolas choveria,
Não fosse o mal que lhe brilhava no olho incréu,

Me apareceu. Dir-se-ia que, em fel banhada,


Sua pupila o ardor dos gelos aguçava,
E a barba, em longos pelos, qual aguda espada,
Análoga à de Judas, no ar se projetava.

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(...)

Outro o seguia: barba, dorso, olhos, molambos


- Enfim, tudo era igual, do mesmo inferno oriundo,
Neste gêmeo senil, e caminhavam ambos
Com mesmo passo não se sabe a que outro mundo.

(...)
Sete vezes contei, minuto após minuto,
Este sinistro ancião que se multiplicava!

Aquele que ri de tamanha inquietude,


E que jamais sentiu um frêmito fraterno,
Cuide bem que, apesar de tal descrepitude,
Os sete hediondos monstros tinham o ar eterno!

Furioso como um ébrio que vê dois em tudo,


Entrei, fechei a porta, trêmulo e perplexo,
Transido e enfermo, o espírito confuso e mudo,
Fendido por mistérios e visões sem nexo!

Sendo a artéria da cidade, a rua é o lugar por excelência do ato de transitar, gerando
uma circulação de pessoas e provocando o encontro – mesmo que efêmero – de estranhos. Nesse
tráfego característico dos tempos modernos, o poeta, em meio ao turbilhão da cidade, presta tributo
a uma mulher desconhecida em luto mas bela, em A uma passante (p. 331-33).

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.


Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que a assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!


Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

Talvez a grande movimentação de pessoas pelas ruas da cidade e a casualidade de tais


encontros efêmeros façam com que a voz poética não tenha esperança em vê-la de novo, por outro
lado, a fé cristã põe em jogo a possibilidade de encontrá-la na eternidade, ou seria ironia em relação
à restauração dos bons costumes?
A partir desses exemplos, temos acesso à Paris dos poemas de Baudelaire: o contraste
de homens trabalhando sem cessar junto à imagem bucólica da igreja, sugerindo a serenidade do

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mundo e promessas cristãs e as aspirações do capitalismo e de suas fábricas, além do encontro com
possíveis não integrantes da marcha do progresso, como no poema Os sete velhos. E o poeta, que,
assim como aqueles sete senhores, parece intuir o esforço vão do homem moderno em construir,
conquistar e dominar, parece deleitar-se por não crer na ideologia capitalista, mas também parece
reconhecer que a sua condição já não é a mesma dos poetas românticos. Daí, o poeta desce as ruas e
flana pela cidade, assim como o sol que com seus raios de luz toca, sem exceção, todos os cantos do
mundo. E, assim, fitamos os becos bem como os bulevares de Paris.

4. O Rio de Janeiro em Vinis Mofados


Em Vinis Mofados, o Rio de Janeiro aparece de formas diversas. Com Araruama (p.
25), poema dístico, o poeta retrata o litoral do estado do Rio como um “bebedouro de araras” em
contraste com “(alguns) políticos corruptos”. A beleza natural da cidade se mescla a corrupção dos
governantes. Já em Sebo (p. 38) e Bairro Peixoto (p. 39), a zona sul do estado vem à tona. No pri-
meiro, percebe-se uma certa brincadeira com o advérbio “barato” e o substantivo “barata”, que é o
nome da rua: “baratos da ribeiro / promoção do dia: elis regina richard / strauss (zaratustra) / Bea-
tles gal fa – tal / tudo por cinco real”. Afinal, Copacabana é um bairro oneroso. Ainda no mesmo
bairro, o poeta descreve a movimentação noturna dos pedestres, do comércio, dos moradores, dos
viciados e casais que se encontram:

BAIRRO PEIXOTO
à noite na praça edmundo
bittencourt caminhão
caçamba lotada de
frutas anuncia quarta
dia de feira

porteiros jogam buraco


na calçada nos brinquedos
do parque vizinhos
maconheiros conversam
baixinho

casais gemem enconstados


num táxi uma velhinha
acompanha silenciosa
canção no terceiro andar
do hotel santa clara

Através dessa descrição, temos acesso ao cotidiano do bairro e, conhecendo-o, sabemos


que “uma velinha” não é por acaso, pois Copacabana é o bairro com maior concentração de idosos
por metro quadrado, segundo dados do IBGE.

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Já em Música urbana (p. 88) e Trânsito (p. 89), o tráfego é tematizado. No primeiro, no
caminho de Saens Peña em direção ao centro da cidade, o poeta se ajeita para cochilar na condução,
mas, como de costume, o intenso trânsito da Rua Conde de Bonfim o impede de dormir. Portanto,
“(...) o canto dos pneus de carros” se revela o título do poema. Daí a trilha sonora do centro ser o
cantar de pneus dos carros indo e vindo. É interessante notar o quanto o poeta não apenas descreve
uma observação nesse poema, mas é também incomodado por esse fator externo:

MÚSICA URBANA
depois pra praça
saens peña
próximo à uruguai
descanso ensaio
um cochilo

mas a conde
de bonfim insiste
me acorda com
o canto dos pneus
de carros

Isso também acontece no segundo poema da obra, que se chama Trânsito, ele trata de
uma excitação sexual que aconteceu no trânsito. A voz poética sente-se excitada ao notar o gesto de
virilidade do taxista: “o taxista / aperta a pica”. E, mais uma vez ela não apenas observa e descreve
esta observação, mas está também inserida numa situação cotidiana e, no poema, a voz poética dis-
farça a atração, para o taxista não notar, ao passo que a confidencia ao leitor:

TRÂNSITO
o taxista
aperta a pica
excitado

disfarço
trânsito congestionado
via de mão única

5. Conclusão
Nos exemplos citados por este trabalho, a cidade, símbolo e lócus da vida moderna, tem
lugar de destaque, ainda que através de abordagens distintas.
A voz poética, em Baudelaire, se autodenomina o sol em relação à Paris moderna e nos
parece querer atravessá-la em todas as suas nuances desde a fábrica, simbolizando a materialidade
da ideologia moderna, seja capitalista e/ou cristão, e os becos escuros e sujos, simbolizando o off-
stage deste sonho moderno. A cidade e os seus componentes são os dispositivos que contribuem

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para o processo de subjetivação de indivíduos que são retirados da vida em feudos e convidados a
fazerem parte dela, a cidade, que vem à tona nos exemplos da obra de Baudelaire.
Se, nos exemplos de As flores do Mal (2012), há uma voz poética que, até certo ponto,
assim como o sol, pode-se dizer que se distancia daquilo que descreve (ou no caso do sol, toca com
os seus raios de luz numa aproximação paradoxal); nos exemplos de Vinis Mofados (2009), há uma
maior aproximação da voz poética em relação às descrições, que beira às vezes ao quase contato da
voz com aquilo que é descrito. Ademais, nota-se também o quanto os poemas escolhidos de Vinis
Mofados são breves e enxutos e, assim, a cidade aparece nos detalhes, nos pormenores do poema,
enquanto, nos exemplos escolhidos de Baudelaire, ela emerge com veemência. Os poemas do pre-
cursor se assemelham aos raios de sol ao tocar diferentes personagens citadinos, enquanto os do
sucessor são mais capciosos e sucintos. Entre distanciamentos e aproximações, percebe-se que o
primeiro, ao romper com a tradição, faz da banalidade do cotidiano urbano a motivação de sua poe-
sia, e, assim, inicia a poesia moderna; o segundo, seguindo tal tradição, imprime-lhe a concisão,
sendo ela uma de suas marcas. Afinal, seguindo o raciocínio de Agamben (2009), o dispositivo cen-
tral em Baudelaire é recente, ao passo que em Ramon (2012), séculos depois, ele encontra-se conso-
lidado, o que pode nos ajudar a compreender a profusão do mesmo dispositivo no primeiro e a eco-
nomia do mesmo no outro.
A partir da obra de Charles Baudelaire (2012), a cidade, vista a partir do conceito de
dispositivo descrito acima, e o sujeito, compreendido como o resultado do contato direto com tal
dispositivo, nos possibilita compreender como a cidade moderna e a ideologia capitalista como dis-
positivos modernos afetam a vida de indivíduos e o quanto este dispositivo, por outro lado, se en-
contra estabelecido em Ramon (2009) através de uma concisão que denominamos de economia poé-
tica. Outros elementos, tidos aqui como dispositivos, que também constituem a cidade e a subjetivi-
dade do indivíduo, aparecem no início deste século XXI, quando é publicada a obra de Ramon Mel-
lo (2009). Da Paris de Baudelaire ao Rio de Janeiro de Ramon Mello, a cidade e a ideologia capita-
lista não estão mais na mira do olhar poético, talvez porque encontram-se mais do que estabeleci-
das; o olhar, por outro lado, capta a relação intrapessoal e interpessoal do sujeito com a cidade e os
dispositivos que formam a sua subjetividade moderno-contemporâneo. De lá para cá, podemos no-
tar, nestes exemplos, o corpo a corpo (AGAMBEM, 2009, p. 40-41) do indivíduo moderno com a
cidade, seja na sua formação ou na sua consolidação, e os seus elementos constitutivos captados
pela presença poética na paisagem urbana.

Referências

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AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo?”. In: O que é contemporâneo? E outros ensaios.


Chapecó, SC: Argos, 2009.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

LIMA, Luiz Costa. “O Questionamento das Sombras: Mímesis na Modernidade”. In: Mímesis e
Modernidade: formas das sombras. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

MELLO, Ramon. Vinis Mofados. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

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SEÇÃO DE TEMA LIVRE
O NARRADOR EM JORGE LUIS BORGES: INTERFACES DO LEITOR

THE NARRATOR IN JORGE LUÍS BORGES: INTERFACES OF THE


READER

Genival MOTA (PG - UEMS)


Danglei de Castro PEREIRA (UEMS)

RESUMO: O artigo discute o conto “A Biblioteca de Babel”, de autoria de Jorge Luis Borges,
compreendendo a metalinguagem, enquanto marca linguística da figura do narratário na obra do
autor argentino. Valoriza os mecanismos diegéticos constitutivos da linguagem em Borges e verifi-
ca em que medida o texto borgiano discute a relação entre narrador, narratário e formação de leito-
res por meio da literatura. A ideia central é verificar o papel do livro na ficcção borgiana em um
processo de criação literária, fato que conduz a importância da metalinguagem como fio condutor
da obra de Jorge Luís Borges. O trabalho procura identificar, também, a relação que o narrador es-
tabelece com o narratário no interior do conto em discussão e, de que maneira este diálogo contribui
para a importância dada à leitura no texto borgiano.

Palavras-chave: Borges, leitor, leitura, narrativa, narrador.

ABSTRACT: The article discusses the story "The Library of Babel", of responsibility of Jorge Luís
Borges in the search of the metalinguístict, while it marks linguistics of the illustration in the argen-
tinean author's work. It values the mechanisms constituent diegéticos of the language in Borges and
it verifies in that measured the text borgiano the relationship discusses among narrator, “narratário”
and readers' formation by means of the literature. The central idea is to verify the paper of the book
in the ficcção borgiana in a process of literary creation, fact that drives the importance of the
metalinguagem as conductive thread of Jorge Luís Borges work. The work tries to identify, also, the
relationship that the narrator establishes with the “narratário” inside the story in discussion and, that
way this dialogue contributes to the importance given to the reading in the text borgiano.

Keywords: Borges, reader, reading, narrative, narrator.

1. Introdução
Nosso estudo tem por corpus o conto “A biblioteca de Babel” e discute a relação entre
narrador e narratário na ficção de Jorge Luís Borges. O artigo aborda a relação que o narrador do
conto estabelece com o narratário e como esta mediação implica em metalinguagem na obra do au-
tor argentino. O conto “A Biblioteca de Babel” descreve uma realidade em que o mundo é constitu-
ído por uma biblioteca infinita em uma espécie de acervo inumerável e infinito. O narrador é um de
seus bibliotecários e acredita que os volumes da biblioteca abarcam todas as possibilidades da reali-
dade possível e por meio de imagens e mensagens ocultas nas obras da biblioteca busca compreen-
der a natureza contraditória de sua constituição humana.
Existem vários enigmas apresentados ao longo do conto como, por exemplo, a existên-
cia de Livros escritos em línguas extintas; de volumes que não justificam sua existência; de obras
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constituídas pela repetição de uma única palavra ou cifradas em dialetos irreconhecíveis, entre ou-
tros enigmas. Destas ambiguidades o conto apresenta a metáfora da Babel e a partir dela a reflexão
de que todas as informações contidas nas obras da biblioteca caberiam em um único volume, indica
uma das principais inquietações do narrador do conto: identificar ou compreender as mensagens
cifradas nos muitos livros da biblioteca como espaço de formação ontológica.
Ao abordar a relação entre narrador e narratário como uma possibilidade de leitura para
o conto de Borges; acreditamos refletir sobre a construção de sua produção ficcional, entendida, por
isso, como metalinguística. Antes de focalizarmos este aspecto, faremos comentários sobre os con-
ceitos da teoria da narrativa para, posteriormente, aplica-los ao conto em estudo.

2. Conceitos sobre a narrativa


Reis e Lopes (1988 p.66) compreendem que as narrativas literárias são “de índole fic-
cional, estruturadas pela ativação de códigos e signos predominantes, realizados em diversos gêne-
ros narrativos e procurando cumprir as variadas funções socioculturais atribuídas em diferentes é-
pocas às práticas artísticas”. Para os autores (1988):

o tempo da história constitui um domínio de análise em princípio menos problemático do


que o tempo do discurso. Ele refere-se, em primeira instância, ao tempo matemático propri-
amente dito, sucessão cronológica de eventos suscetíveis de serem datados com maior ou
menor rigor. Por vezes, o narrador explicita os marcos temporais que enquadram a sua his-
tória. (REIS E LOPES, 1988, p.220)

No tempo do discurso, no entanto, encontramos movimentos anacrônicos com alteração


da ordem dos eventos da história por meio da intervenção do narrador no momento de representa-
ção pelo discurso. O recurso da anacronia constitui um dos domínios da organização temporal da
narrativa e ressalta a capacidade e habilidade do narrador em conduzir o tempo diegético na organi-
zação de seu discurso, modulando, com isso, aspectos significativos veiculados na narrativa. Outro
elemento essencial da diegese é o espaço. Fictício ou não, o espaço onde a narrativa se desenvolve é
sempre concebido como se fosse real – plausível e verossímel - na perspectiva narrativa.
Jorge Luis Borges, objeto desta pesquisa, cria no conto “A biblioteca de Babel” um es-
paço diegético que desafia tempo e espaço por meio de procedimentos narrativos que em muito
dialogam tensivamente com o espaço real/plausível e o tempo cronológico. Reis e Lopes (1988)
esclarecem que

uma das categorias da narrativa que mais decisivamente interferem na representação do es-
paço é a perspectiva narrativa. Quer quando o narrador onisciente prefere uma visão pano-
râmica, quer quando se limita a uma descrição exterior e rigorosamente objetual, quer so-
bretudo quando ativa a focalização interna de uma personagem, é obvio que o espaço des-

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crito se encontra fortemente condicionado, na imagem que dele é facultada, por esse critério
de representação adotado... Outra característica da narrativa com a qual o espaço estreita-
mente se articula é o tempo. Submetido à dinâmica temporal que caracteriza a narrativa, o
espaço é duplamente afetado... A partir daqui, aprofundam-se consideravelmente as rela-
ções espaço/tempo na narrativa. (REIS E LOPES, 1988, PP.206 e 207)

Entendido, na aresta das colocações de Reis e Lopes (1988), como ser fictício que toma
a palavra e narra acontecimentos circunscritos em uma diegese; o narrador dá vida a personagens,
ainda seguindo o raciocínio dos críticos, seres ficcionais que vivenciam de forma verossímel ou não
a diegese. As personagens resultam, então, de intervenções narrativas que permeiam a realidade
pragmática apresentada como contraponto ao mundo diegético plausível e verossímel ao se consti-
tuem como elementos de ficção, de invenção.
Portanto a construção de personagens implica apreensão de aspectos da diegese, organi-
zada em um enredo ou universo de relato, situado em um determinado tempo e lugar. Este percurso,
mediado por um ponto de enunciação, exige a presença de um narrador. É o narrador o agente die-
gético responsável pela organização formal da diegese. Entendemos como narrativa, pensando no-
vamente nas colocações de Reis e Lopes (1988), um discurso que nos leva a imaginar um mundo
ficcionalizado – verossímil ou não –, no qual se percebe o dialogo profundo com elementos cultu-
rais em um dado recorte temporal, situado em um espaço, vivido por personagens e organizado em
uma estrutura preestabelecida.
A narrativa, por isso, se constitui como fenômeno dinâmico e articulado pelo discurso
em uma interação direta com o tempo histórico E o enredo1 dá a dimensão do universo representa-
do. Reis e Lopes (1988) comentam que a intriga ou conflito pode ser gerado por personagens, acon-
tecimentos, ambiente, emoções ou ideias que provocam oposição e acabam organizando os fatos da
narrativa de forma a prender a atenção dos leitores.
Os teóricos (1988) afirmam que com a história presente na narrativa, acontece uma evo-
cação da realidade, de acontecimentos e de personagens, e que pode ser relatada de diferentes ma-
neiras. O discurso é a forma pela qual o narrador nos faz conhecer esses acontecimentos e que, por-
tanto, se relaciona com o processo de enunciação, entendida como ponto de partida para o foco nar-
rativo em uma perspectiva individual e ideológica. As vivências diegéticas de personagens na intri-

1
Conceito elaborado pelos formalistas russos e definido por oposição entre a fábula e a trama: a intriga corresponde a
um plano de organização macroestrutural do texto narrativo e se caracteriza pela apresentação dos eventos segundo
determinadas estratégias discursivas já especificamente literárias. Nesta acepção, pode-se dizer que a intriga comporta
motivos livres que traduzem digressões subsidiárias relativamente à progressão ordenada da história, e derroga frequen-
temente a ordem lógico-temporal, operando desvios intencionais que apelam para a cooperação interpretativa do leitor.
Ao elaborar esteticamente os elementos da fábula, a intriga provoca a “desfamiliarização”, o estranhamento, chamando
a atenção do leitor para a percepção de uma forma. (REIS E LOPES, 1988, p. 211-212).

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ga só chegam ao leitor por intermédio do discurso narrativo que, por sua vez, é organizado linguis-
ticamente em uma trama materializada em discurso.
Reis e Lopes (1988, p.29), destacam que “de fato, o discurso narrativo é um produto do
ato de enunciação de um narrador e dirige-se, explicita ou implicitamente, a um narratário, termo
necessário de recepção da mensagem narrativa”. No texto literário o narrador assume o papel de
locutor, responsável pelo processo de enunciação, e o narratário, ainda na concepção dos críticos
(1988) como uma imagem diegética do destinatário da mensagem proferida pelo narrador. É, por-
tanto, na enunciação que os agentes do discurso da narrativa, narrador e narratário se situam e esta-
belecem um diálogo através do qual se desenvolve o percurso narrativo, entendido como resultante
das vivências diegéticas dos personagens em uma intriga.
Com seu estilo fragmentado, Borges no conto “A Biblioteca de Babel” aponta um labi-
rinto de palavras e imagens cifradas pelo discurso da narrativa. Como que pintando um mosaico em
que funde e distancia ficção e realidade, os narradores de Borges estabelecem um diálogo com os
valores da cultura, tendo como epicentro a imagem do livro.
Wellek e Waren (1971) abordam a dinâmica do material da narrativa como resultado de
uma materialidade linguística uma vez que

a linguagem é o material da literatura, tal como a pedra ou o bronze são da escultura, as tin-
tas da pintura, os sons da música. Mas a linguagem não é uma matéria inerte como a pedra,
e sim uma criação do homem, cheia de herança cultural de um grupo lingüístico [...] As
principais distinções a estabelecer devem destacar o uso literário, o uso diário e o uso cien-
tifico da linguagem. (WELLEK E WAREN, 1971, P.22)

A narrativa, neste contexto, transmite informações através de uma estrutura específica,


tendo como veículo a linguagem oral ou escrita. O narrador é seletivo em relação a fatos e palavras;
ferramentas que utiliza ao levar o leitor a pensar a ficção como projeção de uma realidade plausível,
porém ficcionalizada.
O narrador é a voz que enuncia o texto, “é quem conta a história”. Entidade fictícia, cri-
ada pelo autor com o papel de ser o emissor do discurso e que não deve ser confundido com o autor
da obra. Realidade e mundo empírico constituem o universo do autor; narrador, narratário e as per-
sonagens são seres virtuais, restritos ao texto.
De acordo com Reis e Lopes (1988)

A definição do conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente ao


conceito de autor, entidade não raro suscetível de ser confundida com aquele, mas realmen-
te dotada de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor corresponde a uma entida-
de real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entida-
de fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como prota-
gonista da comunicação narrativa. (REIS E LOPES, 1988, P.61)

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No ensaio “O narrador”, Walter Benjamim (1987) fala da tradição narrativa fundada na


oralidade; em que a presença física do narrador provocava sempre uma expectativa de novas histó-
rias ou de repetições das narrativas que marcavam várias gerações. O crítico afirma que os melhores
narradores são aqueles que se aproximam das histórias que eram contadas oralmente.

A experiência que passou de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narrado-
res. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias
orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que
se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangí-
vel se temos presentes estes dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo,
e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos
com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e conhece su-
as histórias e tradições. (BENJAMIM, 1987, P.198)

Com o advento do romance através da invenção da imprensa, Benjamim diz que aconte-
ceu uma mudança radical na arte de narrar. Não há mais a figura física do narrador, mas sim a voz
solitária que surge do livro.
Há variedades de narradores. O narrador testemunha, que narra os fatos como estando
na periferia da trama. O narrador protagonista, narra sua própria diegese. Tecnicamente Reis e Lo-
pes (1988), apresentam três tipos de narradores:

A expressão narrador autodiegético, introduzida nos estudos narratológicos por Genette


(1972), designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: a-
quela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem
central dessa história... o narrador autodiegético aparece então como entidade colocada num
tempo ulterior em relação à história que relata, entendida como conjunto de eventos conclu-
ídos e inteiramente conhecidos... A opção por uma focalização interna ou por uma focaliza-
ção onisciente relaciona-se, pois, com uma certa imagem privilegiada pelo narrador. (REIS
e LOPES, 1988, p. 118-119)

Os autores do Dicionário de Teoria Narrativa definem narrador heterodiegético como


aquele que

relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como persona-
gem, o universo diegético em questão... Na tradição ocidental, o narrador heterodiegético
constitui uma entidade largamente privilegiada, nos planos quantitativos e qualitativos, co-
incidindo o recurso a semelhante tipo de narrador com alguns dos mais salientes momentos
da história do romance... Em certa medida, por força das características descritas, reforça-
das pelo fato de muitas vezes o narrador heterodiegético se situar num nível extradiégético
e pelo anonimato que quase sempre o atinge, esta situação narrativa favorece a confusão do
narrador com o autor. (REIS E LOPES, 1988, p. 121 e 122).

já o narrador homodiegético é definido por Reis e Lopes (1988) nos seguintes termos:

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entidade que veicula informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto
dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações
de que carece para construir o seu relato, assim se distinguindo no narrador heterodiegético,
na medida em que este último não se dispõe de um conhecimento direto. Por outro lado,
embora funcionalmente se assemelhe ao narrador autodiegético, o narrador homodiegético
difere dele por ter participado na história não como protagonista, mas como figura cujo des-
taque pode ir da posição de simples testemunha imparcial a personagem secundária estrei-
tamente solidária com a central. (REIS E LOPES, 1988, p. 124).

A voz narrativa dá um forte indicativo do tipo de narrador na história. Quando o narra-


dor utiliza a primeira pessoa do discurso pode fica caracterizado como narrador que participa da
diegese; o narrador que faz uso da terceira pessoa do discurso pode ser classificado como narrador
observador, porque fica evidente o seu distanciamento da história que esta narrando.
Feitas as considerações preliminares, passamos a discussão de nosso objeto de análise: o
conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luís Borges.

3. Narrador e narratário: duas faces em diálogo


No conto de Borges o enunciador do discurso é autodiegético, uma vez que o narrador é
personagem central da trama. Caracterizado como um dos muitos bibliotecários o narrador acredita
que os volumes da biblioteca abarcam todas as possibilidades da realidade: “como todos os homens
da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de
catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer;
a poucas léguas do hexágono em que nasci” (BORGES, 2000, p.516).
Borges, na construção deste conto, indica um labirinto de palavras e imagens cifradas
pelo discurso como resultado das inúmeras obras que compõe a biblioteca. A imagem especular que
aparece no interior do conto é ilustrativa para os processos inventivos apresentados como elementos
de construção da trama do conto. No conto em estudo, a linguagem é erudita que flerta com o irô-
nico:

No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam in-


ferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para quê essa du-
plicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o in-
finito. (BORGES, 2000, p.516)

O conto sugere a ideia de uma biblioteca infinita contraposta a uma possibilidade de li-
mitação, de finitude por meio da imagem especular apresentada no conto. A presença do “espelho”
e do “sonho” pressupõe a indicação de que se trata de uma “biblioteca infinita” em uma perspectiva
ficcional o que denuncia a ambiguidade dos limites físicos da biblioteca.
Entendida como metáfora do infinito a “Biblioteca de Babel” requer do leitor a capaci-

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dade de identificar signos implícitos nos muitos livros que constituem esta biblioteca. Diferente-
mente da narrativa oral em que os valores significativos são mediados pelo narrador de maneira
imediata, provocando, em alguns casos, a intervenção direta ao discurso proferido; o texto escrito
possibilita ao leitor um horizonte novo, agora marcado pelo silencio enunciativo e pelo dialogo com
inferências ou marcas discursivas deixadas como pistas pelos narradores. Independente do tema
abordado ou pela linguagem utilizada, todo texto procura um tipo de leitor estabelecido pela dinâ-
mica interna do discurso proferido. Este leitor projetado no ato da escrita indica um espaço dialético
inicial ao discurso literário e, nesse espaço, o texto confere ao leitor a imagem do narratário, proje-
ção individual do leitor projetado pelo narrador no ato da escrita.
Para Jouve (2002), “o receptor é ao mesmo tempo o leitor real, cujos traços psicológi-
cos, sociológicos e culturais podem variar infinitamente, e uma figura abstrata postulada pelo narra-
dor pelo simples fato de todo texto dirige-se necessariamente a alguém”. Esta imagem “postulada” é
compreendida como “narratário”, entidade de linguagem que dialoga com o narrador no ato de e-
nunciação. É preciso, então, não confundir leitor real – homem que lê o texto – e narratário – ima-
gem enunciativa projetada para este leitor – em uma dualidade semelhante àquela estabelecida entre
narrador e autor.
Jouve (2002) entende que “o que diz e do modo como diz, um texto supõe sempre um
tipo de leitor – um “narratário” – relativamente definido”. Reis e Lopes (1988) são enfáticos ao
tratar do narratário.

O sentido primeiro em que aqui se define o conceito de leitor é correlativo e distintivo. Cor-
relativo, porque o leitor real coloca-se no mesmo plano funcional e ontológico que o autor
empírico; distintivo, porque o leitor real se reveste de contornos bem definidos relativamen-
te ao narratário, ao leitor virtual ou ao leitor ideal. Deste modo, “o leitor empírico, ou real,
identifica-se, em termos semióticos, com o receptor; o destinatário, enquanto leitor ideal,
não funciona, em termos semióticos, como receptor do texto, mas antes como um elemento
com relevância na estruturação do próprio texto. Todavia, o leitor ideal nunca pode ser con-
figurado ou construído pelo emissor com autonomia absoluta em relação aos virtuais leito-
res empíricos contemporâneos, mesmo quando sua construção se projeta um desígnio de
ruptura radical com a maioria desses mesmos presumíveis leitores contemporâneos. (REIS
E LOPES, 1988, p.51)

O que se conclui é que o narratário, mencionado ou não, existe e sempre esta presente.
O leitor virtual seria a idéia de leitor que o autor tem em mente ao criar a obra; imagina qualidades,
capacidades, preferências e opiniões específicas desse possível leitor dem uma relação direta com o
homem que objetivamente lê o texto. O narratário existe de fato na estrutura do texto e é com ele
que o narrador dialoga em seu percurso diegético.
Infere-se que o leitor ideal seria aquele que o autor imagina como capaz de compreender

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todos os detalhes das mensagens que pretende passar no seu texto. Poderíamos dizer que todo autor
sonha com um leitor cúmplice e conivente com todos seus objetivos e devaneios ao passo que o
narratário pode ser uma imagem conflituosa face ao leitor ideal, por isso, pressupõe um percurso
dialético à construção dos enunciados na diegese, fato que dá ao narratário uma função significativa
e, por vezes, oportuniza uma aproximação ao leitor ideal ou uma contradição a este perfil.
No Prólogo do livro História universal da infâmia Borges (2000, p.313) trata a relação
entre escritor e leitor de forma a comentar que tanto o leitor quanto o autor tem papel importante na
produção de sentido em um determinado texto literário, uma vez que estas entidades são próximas e
“às vezes creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons auto-
res (...) Ler, entretanto, é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais civil, mais
intelectual”.
Pensar a leitura em uma perspectiva dialética – narrador e narratário – como possível
proporciona a compreensão da ficção de Borges como espaço de reflexão metalinguística, na qual
leitor e autor encontram pontos de contato na construção do literário, projetados no narrador e no
narratário. Neste espaço dialético a mensagem artística encontra ressonância por meio da mediação
reflexiva provocada pela leitura.

4. Metalinguagem: caminho ficcional em Jorge Luís Borges


No estudo sobre as funções da linguagem, Jakobson (1982, p.127) considera função me-
talinguística quando a linguagem fala da linguagem, voltando-se para si mesma: “Sempre que o
remetente e/ou o destinatário tem necessidade de verificar se estão usando o mesmo código, o dis-
curso focaliza o código; desempenha uma função metalinguística”.
Quando a literatura toma a si mesma como objeto, acontece a metalinguagem literária.
No ato da leitura, o texto promove uma interação entre narrador e leitor (narratário). Esta relação
constrói no universo diegético o que podemos chamar de possibilidades de leitura. Nesta relação
dialética o conhecimento prévio de quem lê é imprescindível na interação com a construção de sen-
tido produzido pela diegese. O leitor, projetado na figura contraditória do narratário, é capaz de in-
ferir informações que não foram ditas de forma imediata na diegese, antes sugeridas pelo encadea-
mento discursivo do texto e, por meio de interferências, colaborar na compreensão mais ampla do
texto que lê.
Conforme Samira Chalub (1988, p.15), o que um emissor ou receptor for capaz de or-
ganizar, relacionar, criar ou perceber enquanto novas formas de combinação, diz respeito à baga-
gem teórica ou cultural não só do leitor, mas da estrutura diegética mobiliada em um determinado

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texto, por isso, sempre em dialogo como outros textos.

A viabilidade ou relatividade do repertório – que, grosso modo, podemos conceituar como


sendo o “arquivo cultural” de cada um de nós – implica uma relação dialética entre repertó-
rio e informação. Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de
conceitos e formas já adquiridas pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cul-
tura, o público se amplia, na medida em que este conhecido repele o novo e traz à tona o
velho (CHALUB, 1988, p.15).

Nosso corpus desse trabalho, o conto a “Biblioteca de Babel”, de Borges constitui um


espaço específico da reflexão dialética entre texto e sentido auferido no ato de leitura. O escritor
argentino recupera na metáfora da “torre de Babel” o espaço dialético para a construção de sua Bi-
blioteca. A nominação do conto já é um processo de metalinguagem ao perpassar a ideia de uma
narrativa circular que se coloca como infinita na alusão a heterogeneidade de obras que a compõe e,
sbretudo, pela indicação de uma obra circular e sintética que iconiza o conhecimento humano acu-
mulado por meio da materialidade discursivo: ironicamente os inúmeros livros incompreendidos de
sua biblioteca.
Retomando a questão teórica da metalinguagem no processo narrativo, o texto estabele-
ce uma interação entre narrador e leitor, e requer deste um papel ativo. Nessa relação podemos falar
em possibilidades de leitura, já que o conhecimento prévio de quem lê é que vai determinar a pro-
dução de sentido a partir do texto e das relações intertextuais por ele reclamadas. As possibilidades
de leitura acontecem em consequência de um contínuo preenchimento de brechas que aparecem
dentro do texto em sua relação com a tradição, oportunizadas por sua organização interna. Uma
leitura proficiente é capaz de inferir informações do texto e relacioná-las a outros discursos silenci-
ados pelo texto lido. Cada livro da “Babel” de Borges contribui, por isso, para o entendimento da
complexidade do ato de leitura, entendido como dialético na construção do texto em discussão.
Uma das manifestações deste percurso dialético e a presença dos diálogos entre textos.
A metalinguagem é a referência direta ou indireta a outros textos em um percurso diegético. Sobre
isso Savioli e Fiorin (1995) afirmam:

num texto literário, a citação de outros textos é implícita, ou seja, um poeta ou romancista
não indica o autor e a obra donde retira as passagens citadas, pois pressupõe que o leitor
compartilhe com ele um mesmo conjunto de informações a respeito das obras que com-
põem um determinado universo cultural. Os dados a respeito dos textos literários, mitológi-
cos, históricos são necessários, muitas vezes, para compreensão global de um texto. A essa
citação de um texto por outro, a esse diálogo entre textos dá-se o nome de intertextualidade.
(PLATÃO E FIORIN, 1995, p.19).

E é a partir de um estilo fragmentado e sintético, quase como um mosaico, que os narra-


dores de Borges constroem o dialogo com os valores culturais, sempre centrados na imagem do

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livro. Concluímos, mesmo que preliminarmente, que para este autor escrever é apropriar-se indivi-
dualmente de leituras realizadas anteriormente pelo leitor. Dialogar com a tradição na busca por
intromissões significativas nesta tradição é um dos papeis da “Babel”, Borges que, por isso, reúne
diferntes tomos em seu universo “infinito”.
Reunir e organizar textos alheios numa nova combinação, reordenando a tradição, para
apresentá-la em uma nova roupagem, em novos sentidos parece ser o objeto temático do conto “A
biblioteca de Babel”, de Jorge Luís Borges.

5. Considerações finais
Procuramos mostrar ao longo das discussões deste artigo que a presença a relação entre
narrador e narratário é aspecto importante na construção do conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge
Luís Borges. Chegamos a ideia de que a “Babel” de Borges dialoga tensivamente com a necessida-
de de participação ativa do leitor no processo de construção de sentidos no literário e, por isso, que
um dos caminhos deste processo é a presença dos diálogos intertextuais e da metalinguagem.
O objetivo desse artigo foi discutir como a figura do narratário é importante na constru-
ção da metáfora da “A Biblioteca de Babel” em Borges e, apontar, mesmo que sucintamente, que
esta biblioteca é uma imagem das relações dialéticas entre narrador e narratário, a metalinguagem e
a intertextualidade no interior do conto de Borges. Fica evidente, no entanto, que as relações diegé-
ticas entre o narrador e o narratário é importante na construção ficcional do autor argentino, objeto
temático a ser ampliado em nossa dissertação de mestrado, trabalho do qual este estudo é um recor-
te.

Referências
BENJAMIM,Walter. Magia e técnica, arte e política (obras escolhidas I). Trad. Sérgio Paulo Rou-
anet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BORGES, Jorge Luís. Ficções. In Obras Completas (vol. I). São Paulo: Globo, 1999, p. 516-523.

CHALHUB, Samira. A meta-linguagem. São Paulo. Ática, 1988.

JAKBSON, Roman. Linguística e Poética. São Paulo: Cultrix, 1982.

JOUVE, Vicent. A leitura. Trad. Brigitte hervot. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

PLATÃO SAVIOLI, Francisco; FIORIN, José Luiz. Para Entender o Texto: Leitura e Redação.
São Paulo: Ática, 1995.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

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WELLEK, René; WAREN, Austin. Teoria da Literatura. Lisboa: Publicações Europa-América,


1971.

85
DUAS MULHERES SOB O OLHAR DE HITCHCOCK: OS FILMES
NOTORIOUS (1946) E MARNIE (1964) E AS MULHERES PERIGOSAS DE
UMA ÉPOCA

TWO WOMEN UNDER THE EYES OF HITCHCOCK THE MOVIES


NOTORIOUS (1946) AND MARNIE (1964) AND THE DANGEROUS WOMEN
OF A TIME

Adriana Falqueto Lemos (PG - UFES)

RESUMO: Traçando uma leitura embasada em correntes teóricas que justificam o olhar analítico
sobre o filme, dado que este é uma mídia que articula linguagem, sons e imagens sendo, portanto,
passível de ampliação dos sentidos, pode ser feita uma leitura tanto numa perspectiva metodológica
quanto interpretativa. Intenta-se, neste estudo, ler duas mulheres sob a ótica do diretor Alfred Hit-
chcock em dois longas-metragens: Notorious (1946) e Marnie (1964), objetivando a tessitura de
questionamentos sobre os modos como os homens e as mulheres se relacionavam e os comporta-
mentos femininos visados pela sociedade. Encerra-se aqui a noção de que os padrões comportamen-
tais femininos, assim como os masculinos, são construções sócio-históricas e que estes são modela-
dos, desde a infância, pelas instituições sociais; assim como a noção do diretor enquanto autor ins-
crito numa sociedade, que faz parte e que cria dentro de um sistema de representações e práticas
vigentes.

Palavras-chave: Hitchcock, Marnie, Notorious, Feminino.

ABSTRACT: By tracing a reading based upon theoretical currents that justify an analytical think-
ing on movies, since they these media articulate language, sounds and images, and therefore, by
watching it one can amplify his or her senses; movies can be read in a methodological perspective
that can be interpretative. The intention of this study is to read two women by the spectacles of the
director Alfred Hitchcock in two of his movies: Notorious (1946) e Marnie (1964); the objective is
to question about the way men and women relate to each other and how women behavior was seen
by society. The text presented here works with the notions that the feminine behavioral pattern, as
well the masculine, are socio-historical constructs and that, because of that, are modeled since
childhood by social institutions; as well as the notion of the director as the author that is subject of a
society, so, being part and creating inside of a system of representations and practices.

Keywords: Hitchcock, Marnie, Notorious, Feminine.

1. O diretor e o filme
Quando se trata de conhecer um diretor, e de analisar um ponto de vista em sua obra, é
importante que se assista sua filmografia por inteiro. Melhor, se possível, que se assista desde as
primeiras produções até as últimas, nessa ordem, e existe uma razão para tal.
A função de um diretor ao dirigir um filme, segundo as pesquisas de André Reis Mar-
tins e Osório Lucio Schaeffer, é a de coordenar todos os profissionais que atuam nos diversos seto-
res abrangidos pela obra cinematográfica (por exemplo, na direção de iluminação e fotografia) a fim
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de obter, como resultado, o que se deseja imprimir ao expectador (MARTINS, 2004, p. 56;
SCHAEFFER, 2009, p. 67). O diretor de cinema é o profissional que recebe o roteiro, ou que até
mesmo o escreve e, a partir de sua leitura, conduz uma contação de história para o expectador do
filme. Todos os profissionais do filme atuam de acordo com a batuta do diretor, e ele vai coorde-
nando seu corpo de profissionais de modo que o resultado lhe seja satisfatório. O filme é contado
numa estrutura narrativa e obedece às intenções do diretor (SCHAEFFER, 2009, p. 67). Os filmes
produzidos por um diretor vão, ao longo do tempo, ganhando contornos estilísticos que podem ser
percebidos pelo expectador. Hitchcock tem uma filmografia extensa: são 67 títulos ao todo e a mai-
oria deles contém elementos de suspense. Esse estilo do diretor, porém, foi se consolidando ao lon-
go dos anos, fato que pode ser percebido pelo seu interesse recorrente pelas histórias de suspense a
partir da década de 1920, com filmes como Blackmail (1929). Essa escolha estilística pode ser a-
pontada também pelo uso do diretor dos mesmos atores (como por exemplo, Tippi Hedren em The
Birds (1963) e Marnie (1964); Grace Kelly em Rear Window (1954), Dial M for Murder (1954) e
To Catch a Thief (1955); Cary Grant em North by Northwest (1959), Notorious (1946) e Suspicion
(1941); Ingrid Bergman em Spellbound (1945), Notorious (1946) e Under Capricorn (1949); James
Stewart em Vertigo (1958), The Man Who Knew Too Much (1956), Rear Window (1954) e Rope
(1948); e Gregory Peck em The Paradine Case (1947) e Spellbound (1945)), por suas aparições
cameo, sempre esperadas pelo público, e pelo interesse pela tensão. Por isso, quando se assiste a
uma filmografia, compreende-se um estilo de dirigir, um estilo de conduzir uma narrativa, um estilo
estético de luzes, de cores e de escolha do material humano que dará vida aos personagens.
Segundo Regina Lucia Gomes Souza e Silva (2005), a relação retórica que se estabelece
na ordem da comunicação entre o produtor de um diálogo e seu receptor, pode ser uma das manei-
ras com as quais analisamos os filmes, dado que o diretor utiliza o filme para se comunicar com o
expectador (GOMES, 2005, p. 317). Se visto por essa ótica, um diretor se comunica com seu expec-
tador através de um longa-metragem e, nesse sentido, ele pode ser comparado a outros criadores
discursivos, como os autores de obras literárias. Por analogia e, comparando esse processo criativo
com o processo pelo qual um escritor tece uma narrativa, poder-se-ia elencar alguns pontos em co-
mum. Em contra partida, o processo de leitura de um livro se distancia do processo o qual o expec-
tador passa ao assistir a um filme. Depois da leitura de Roger Chartier (1999, 2002), compreende-
mos que o significado do texto é produto não somente através da interação leitor x texto, mas da
interação texto x suporte. Sendo assim, a materialidade produzirá leituras que serão apropriadas de
maneira diferente, por novas comunidades e, por isso, produzirão outros significados. Se pensarmos
que o texto do filme está numa materialidade diferente do texto do livro, então o suporte é a chave

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da diferença entre a leitura do livro e a leitura do filme. Mais do que a recepção, a diferenciação e a
aproximação da leitura do livro e da leitura do filme se dá na apropriação dessa materialidade.
O processo de criação de uma narrativa é permeado por uma confluência de pensamen-
tos e desejos que se explicitam nas ideias imprimidas no papel e essas impressões projetadas pelo
escritor são oriundas de sua vivência, de sua própria história e de sua vida cultural e social. Essa
imagem é explicitada por, por exemplo, Antônio Candido em Literatura e Sociedade (2006). Nessa
medida, a produção da arte, em geral, tem em sua matéria a vida que lhe é contemporânea e, é por
meio da arte, que o homem encontra um meio de expressar essa subjetividade, vivenciando as sen-
sações e as angústias que fazem parte do seu tempo e de sua sociedade.
A obra literária carrega em seu cerne, dentre outros sentidos, o senso da subjetividade
do autor e o modo como ele se relaciona com seu tempo. A literatura dá voz a um ser social e, se-
gundo Antonio Candido,

Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência,
um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma “expressão”. A litera-
tura, porém, é coletiva no momento em que requer uma certa comunhão de meios expressi-
vos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de
um lugar e de um momento, para chegar a uma “comunicação” (CANDIDO, 2006, p. 147).

A obra, diante deste ponto de vista, configura-se como criação tanto individual como
comunitária, na medida em que dialoga com a vida social, política e histórica na qual o autor se
insere. Percebemos o papel do autor atrelado à sua vida social e é a partir desse diálogo – entre au-
tor e mundo – que começamos a traçar os parâmetros para a nossa análise. Através de sua expres-
são, o autor reorganiza seu mundo e suas concepções:

A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do


escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimen-
tos, representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situa-
ção literária dada, que mantém a estrutura da obra (CANDIDO, 2006, p. 187).

Em relação a esta perspectiva, Wanderlan da Silva Alves trata, em seu artigo “Limites e
intersecções do estético com o político no filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, e no conto
‘Sessão das quatro’, de Roberto Drummond”, da linguagem cinematográfica, explicando que essa,

[...] por sua condição híbrida, haja vista que se constitui por meio de imagens, de sons arti-
culados, de ruídos e de sons puros e, enfim, do próprio movimento dinâmico que os põe em
relação no processo de significação que a legitima como sendo uma linguagem, se justifica
como possibilidade de ampliação da percepção humana (ALVES, 2012, p. 151).

Para o pesquisador, enquanto assiste a um filme, o expectador vive um processo de li-

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bertação das próprias convenções, porque lê outras combinações, em planos espaciais e cores dife-
rentes. O processo também, segundo Alves, pode ser o inverso: o cinema se esforça na busca de
uma verossimilhança em relação ao plano real, uma representação de mundo. Essa representação,
ao passo que mimética, refere-se, porém, a uma visão de mundo própria do universo do cinema
(ALVES, 2012, p. 151). Alves, busca no escritor e cineasta Alain Robbe-Grillet e sua obra Por um
novo romance (1963), aprofundamento para este tratamento da mídia fílmica. Para Robbe-Grillet,
“o aspecto um pouco fora do habitual deste mundo reproduzido revela-nos, ao mesmo tempo, o
caráter inabitual do mundo que nos rodeia: ainda inabitual na medida em que recusa rejeitar–se aos
nossos hábitos de percepção e à nossa ordem” (ROBBE-GRILLET, 1963, p. 23 Apud ALVES,
2012, p. 151, grifos do autor). Segundo Alves, este choque entre o que seja o mundo pouco habitual
transmitido por um filme e o mundo do expectador pode fazer com que haja comparações entre os
engendramentos sociais de sua realidade sócio-histórica e aquela inviabilizada pelo filme. Diante
dessa perspectiva, enxerga-se o diretor como fio condutor de uma realidade que, paradoxalmente,
faz parte tanto da vida social, histórica e política que lhe é concernente, quanto de uma realidade
própria do filme, do universo do cinema e, portanto, fictícia.
Mesmo que tomemos como contraponto o fato de que a produção de um objeto cultural
como o filme se faz por meio da participação de diversos sujeitos, como no caso de vários diretores
em funções variadas que tal processo, por ser vinculado a múltiplos autores, estaria desprovido de
uma unidade que pudesse configurar sua autoria e estabelecê-la por trás da narrativa, relembramo-
nos da leitura de Roger Chartier como historiador cultural da leitura e do livro. É possível que um
autor não detenha para si o completo domínio autoral sobre uma obra, visto que ela é concebida
através de um processo:

Os livros, manuscritos ou impressos, são sempre resultado de múltiplas operações que pres-
supõem decisões, técnicas e competências bem diversas. (...) O que está em jogo aqui não é
somente a produção do livro, mas a do próprio texto, em suas formas materiais e gráficas.
(CHARTIER, 2012, p. 8).

É complexo compreender o livro como uma obra artística fruto de um pensamento úni-
co, que foi escrita por apenas um autor num momento de inspiração, sem qualquer intervenção que
possa fazer com que seu mais refinado senso de unidade seja desmantelado. O livro não é um ma-
nuscrito amarrado pela caligrafia do autor; a materialidade do livro é composta por seu suporte, seu
texto, suas ideias, e elas não são fruto único do trabalho do escritor. Esse produto cultural sofre in-
fluência no momento em que é escrito, porque o autor faz parte da sociedade e recebe influência da
mesma; além do que é modificado no momento da edição, quando os profissionais gráficos corri-

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gem, alteram, escolhem o material de impressão e tamanho de letra.


Ao passo que um livro não é uma ideia acabada e que se encerra nos significados que
lhe foram imputados apenas e unicamente pelo próprio autor, compreendemos que – de acordo com
os conceitos de Roger Chartier em, por exemplo, A História Cultural entre práticas e representa-
ções, enquanto historiador cultural sobre os modos e representações de uma cultura – através de um
sistema de identidades, de rejeição e aceitação de certas práticas, que as representações surgem e se
estabilizam (2002, p. 34). “É neste sentido que as representações do mundo social produzem a reali-
dade deste mundo.”.
Para o autor, em A aventura do livro: do leitor ao navegador,

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros,
por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 1999, p. 17)

Roger Chartier nos explica a força das representações, pelas quais a sociedade se hierar-
quiza e se organiza, porque,

(...) em primeiro lugar, as operações de classificação e designação, mediante as quais um


poder, um grupo ou um indivíduo percebe, se representa e representa o mundo social; em
continuação, as práticas e os signos que levam a reconhecer uma identidade social, a exibir
uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um status, uma catego-
ria, uma condição; e, por último, as formas institucionalizadas pelas quais alguns “represen-
tantes” (indivíduos singulares ou instâncias coletivas) encarnam, de maneira visível e durá-
vel – “presentificam” – a coerência de uma comunidade. (CHARTIER, 2002, p. 33-34).

Isto posto, recapitula-se o que se tem dito até aqui sobre o autor de um objeto cultural
com o filme ou uma obra literária. Ele consegue transmitir seus valores sócio, histórico e políticos e
sua leitura de mundo através de sua subjetividade, na medida em que tais informações fazem parte
de um conjunto de representações hierarquicamente organizadas pela sociedade e que, em contra
partida, organizam-na. As representações e práticas sociais que compreendem a vida são inscritas
em indivíduos e coletivamente, são parte da história da vida social – como elas se apresentam e cor-
roboram, de maneira coerente, com o signo de práticas, modos e representações sob o qual as pes-
soas enxergam e produzem o mundo e a cultura. Portanto, é importante que se assista aos filmes de
um diretor de maneira progressiva e como um todo, a fim de que seja possível formular uma ideia
da sua maneira de enxergar o mundo e de transmiti-lo. Ao mesmo tempo, compreendemos que essa
visão de mundo é legítima porque carrega em seu cerne um conjunto de representações sociais, his-
tóricas e políticas, parte de uma época e inseridas em um regime de coerência – e, às vezes, de ve-
rossimilhança. É importante assistir à filmografia de diretores como Alfred Hitchcock, pois é esse

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conjunto de informações que possibilitará o traçar de um panorama estilístico, imagético e narrati-


vo, tributado a ele e lido pelo expectador. Escolhemos, portanto, uma perspectiva interpretativa que,
segundo Carsten Strathausen (2009), foge do que ele diz ser a visão limitada da crítica ao cinema,
quando ela tange suas especificidades enquanto tecnologia midiática.
Neste estudo específico, é importante conhecer sua filmografia para traçar parâmetros a
respeito da figura feminina, especificamente em dois filmes: Notorious (1946) e Marnie (1964).
Podemos afirmar que, em todas as produções – desde The Pleasure Garden (1925) até Family Plot
(1976) – Hitchcock retrata mulheres vivendo as mais diversas situações, sendo, na maioria delas,
protagonistas. Em Family Plot (1976), a atrapalhada vidente Blanche Tyler tenta e consegue encon-
trar um herdeiro perdido de uma família rica, ao mesmo tempo em que conduz seu relacionamento
com George Lumley com muita propriedade, reivindicando tempo, atenção e comprometimento
para si. Em Torn Curtain (1966), Sarah Sherman começa o filme como a noiva deixada pra trás
quando o Professor Michael Armstrong vai para a Alemanha em uma missão espiã em nome do
governo americano. Sarah insiste em ficar com seu noivo e se torna imprescindível para o sucesso
dele. Em The Man Who Knew Too Much (1956), Josephine Conway McKenna – ou simplesmente
Jô – acompanha o marido Dr. Benjamin McKenna numa viagem ao Marrocos. Quando o filho deles
é sequestrado e o casal é envolvido numa intriga espiã, a ex-cantora consegue, com sua habilidade e
inteligência, ser o pivô na dissolução de vários momentos de tensão nos quais o casal poderia ser
assassinado ou perder o filho pra sempre. Em Rear Window (1954), Lisa Carol Fremont auxilia o
namorado L.B. 'Jeff' Jefferies, quando ele desconfia que o vizinho, morador do prédio em frente ao
seu, assassinou a própria esposa. Como Jeff está preso a uma cadeira de rodas graças a uma perna
engessada, é Lisa quem protagoniza a maioria das cenas de ação e quem toma decisões ousadas
(como quando ela vai até a casa do suspeito para espionar suas coisas). Stage Fright (1950) tem
uma protagonista apaixonada, a jovem Eve Gill, que empreende uma corrida contra o tempo, no
intuito de provar que o homem pelo qual está apaixonada não é um assassino. Também em nome do
amor, a jovem médica Dra. Constance Petersen se aventura para provar que seu namorado, John
Ballantyne, não cometeu um assassinato, em Spellbound (1945). Em Lifeboat (1944), é a repórter
Constance 'Connie' Porter quem conduz a maioria das decisões dos nove sobreviventes que esperam
por socorro num barco salva-vidas. Em Shadow of a Doubt (1943), uma moça chamada Charlie
descobre que seu tio recém-chegado para visitar a família é na verdade um assassino procurado. É
ela quem consegue ameaçá-lo e fazer com que vá embora da cidade. Existem ainda outros exemplos
da participação feminina de maneira efetiva nas narrativas dos filmes de Alfred Hitchcock e isso
pode representar que o diretor tem uma percepção da mulher bem à frente do seu tempo, como

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Constance 'Connie' Porter, uma personagem que protagoniza sua história e luta pelos seus ideais,
como Lisa Carol Fremont, que defende o homem que ama, em detrimento dos seus valores ou do
seu país, como Sarah Sherman. Essas mulheres, protagonistas decisivas e modelos de virtude, po-
rém, não vivem de maneira unânime nas obras do diretor; podemos perceber isso com mais intensi-
dade em dois filmes, dos quais falaremos a seguir, Notorious (1946) e Marnie (1964).

2. Alicia e Marnie, as mulheres perigosas


Notorious (1946) e Marnie (1964) são dois dos filmes nos quais a figura feminina surge
de maneira dúbia diante do expectador, trazidas à tona graças ao olhar de Hitchcock. Antes de falar
de Alicia e Marnie, falaremos de outras obras nas quais as mulheres não são figuras heroicas. Em
Topaz (1969), duas mulheres têm destaque na trama de espionagem. Nicole Devereaux é a esposa
do agente secreto Andre Devereaux, protagonista do filme. A princípio, a esposa tenta a todo custo
evitar que o marido troque o tempo com a família pelo trabalho. O casal tem uma crise quando An-
dre vai (em missão) para Cuba e encontra com Juanita de Cordoba, uma agente local com quem tem
um relacionamento há muitos anos e essa relação é tanto amorosa quanto profissional, já que ela usa
sua influência para auxiliá-lo a conseguir informações secretas. Juanita consegue ajudar Andre a
sair do país, mas acaba sendo morta antes de contar-lhe um segredo importante. Posteriormente,
Andre descobre que sua esposa Nicole tem um amante, um dos homens que trabalham com ele. Em
The Birds (1963), a socialite Melanie Daniels tem um interesse amoroso pelo advogado Mitch
Brenner e viaja até uma cidade chamada Bodega Bay para passar o fim de semana com ele e sua
família – a mãe Lydia e a irmã mais nova, Cathy. Com a sua chegada, pássaros selvagens começam
a atacar a população. Em Psycho (1960), a jovem Lila Crane espera se casar com seu namorado
Sam Loomis. Pobres, eles não têm dinheiro para se casar, mas, um dia, confiam-lhe uma quantia de
$40,000 e ela foge com esse dinheiro, esperando encontrar Sam. No caminho, porém, Lila decide
dormir no The Bates Motel, onde um assassino psicopata a mata. Em Vertigo (1958), o policial apo-
sentado John 'Scottie' Ferguson é convidado por um amigo, Gavin Elster, que não via há muito
tempo, para vigiar sua esposa, Madeleine Elster. Depois de se apaixonar por ela e vê-la se jogar de
uma torre, Scottie entra em depressão. Ao sair da clínica, Scottie conhece Judy Barton, extrema-
mente parecida com a falecida. Scottie e Judy começam a namorar e o conflito surge quando ele vê
um colar que era de Madeleine no pescoço da namorada. A verdade vem à tona: tudo não passava
de um embuste para que a verdadeira esposa de Gavin Elster fosse morta e jogada da catedral, como
se tivesse se suicidado. O filme termina com Judy morta depois de, sem querer, tropeçar e cair da
mesma torre onde havia fingido se suicidar anteriormente. Em Dial M for Murder (1954), Tony

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Wendice é casado com Margot Mary Wendice, mas tudo o que deseja é sua herança. Margot tem
um romance com Mark Halliday, um escritor, entretanto, evita se encontrar com ele porque acha
que o marido merece sua fidelidade. Margot quase é assassinada por um homem enviado por Tony,
mas consegue se desvencilhar. No fim do filme, ela é quase executada legalmente, sob a acusação
de ter assassinado o homem que entrou em sua casa. O marido mesmo simulou essa possibilidade,
usando uma carta dela ao amante como prova de que ela, pela chantagem, decidiu matar o homem.
Existem ainda os casos dos filmes I Confess (1953) e The Paradine Case (1957), envolvendo um
julgamento que revela o passado de mulheres infiéis aos seus maridos.
Percebemos, nos filmes citados acima, que a mulher não é uma heroína e nem pode mu-
dar o próprio destino caso sua moral seja posta em questão. Essa mulher, com uma moral incomum,
pode ser morta (como Juanita, Judy, Lila e Mrs. Paradine de The Paradine Case), ou correr risco de
vida (como Margot e Melanie).

3. Alicia
Em Notorious (1946), logo após a condenação do pai alemão por traição ao governo dos
Estados Unidos, Alicia Huberman bebe com amigos. Ela é abordada pelo agente T.R. Devlin, o qual
deseja que ela espione um grupo de amigos nazistas do pai, no Rio de Janeiro. Alicia e Devlin co-
meçam um romance, mas, ao mesmo tempo, o trabalho que ela deve desempenhar consiste em se-
duzir um dos nazistas para obter informações dele. O problema de Alicia na narrativa não é seu tra-
balho como espiã, mas o fato de ela ter que seduzir um homem pra cumprir seu papel. Percebe-se
no filme, porém, que Alicia é mal vista pelos homens: a segunda cena do filme, na qual ela é retra-
tada bebendo e flertando com homens em uma festa dentro de casa, conduz a maneira com a qual os
personagens masculinos do filme a enxergam e se relacionam com ela até os últimos minutos. O
agente Devlin não consegue resistir ao charme da moça, contudo, também não consegue confiar
nela, pelo fato de ela já ter conquistado muitos homens e beber abusivamente. Logo que chega ao
Rio, Alicia para de beber e tenta conquistá-lo: “Porque você não acredita em mim, Dev? Só um
pouco.” (NOTORIOUS, 1946, tradução nossa1). Alicia passa o filme como alvo de críticas por ter
se relacionado sexualmente com homens sem ter sido casada com eles. Os chefes de Devlin dizem
que ela não deve ter nenhum problema em aceitar uma missão:

- O que foi, Devlin? Qual o problema?


- Eu não sei se ela vai fazer isso.

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Todas as traduções são de nossa autoria salvo explicitação.

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- O que você quer dizer, você não acha que ela... Você não falou sobre isso com ela, falou?
- Eu não sabia qual era o trabalho.
- Bem, o que você quer dizer, ela não faria?
- Bem, eu não sei se ela é o tipo de mulher. Ela me parece…
- Eu não entendo sua atitude. Por que você acha que ela não faria?
- Bem, ela nunca teve essa experiência.
- Oh, francamente. Que experiência falta a ela, você acha? (NOTORIOUS, 1946)

Ou mesmo quando Alicia vai visitá-los sem avisar, para informar novas descobertas so-
bre sua missão. O chefe de Devlin discute o caráter de Alicia com ele:

- Eu não gosto disso. Eu não gosto que ela venha aqui. Ela está me deixando preocupado já
tem algum tempo. Uma mulher desse tipo.
- E que tipo é esse, Sr. Beardsley?
- Oh, eu não acho que nenhum de nós tenha ilusões sobre o caráter dela, temos, Devlin?
- Nenhuma, nem a mínima ilusão.
- A Srta. Huberman não é de forma alguma uma dama. (NOTORIOUS, 1946)

Alicia está a serviço de homens que não lhe respeitam e tampouco a consideram digna
de ser uma dama. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer a forma como ela foi abordada, no co-
meço da história, para realizar a missão: ao saber que Devlin era um policial, Alicia ficou histérica e
começou a agredi-lo; a fim de contê-la, Devlin lhe nocauteou com um soco e Alicia acordou na ca-
ma, abalada, enquanto ele a observava. Inscreve-se aqui uma situação na qual a mulher não conse-
gue se desvencilhar: mesmo que tente ser livre para viver da maneira que lhe convém, ela acaba
sendo cooptada pela força masculina e subjugada. Ao se apaixonar por este homem, modelo de vir-
tude, não encontra nele apoio para livrá-la de ter que se sujeitar a esta situação, que é praticamente a
de prostituição, sob o signo do patriotismo. Mesmo fazendo seu dever, cumprindo o que Devlin
pediu, ou seja, sendo patriota e ajudando o país a descobrir informações sobre seus inimigos, Alicia
é vista como uma mulher sem classe e sem direitos. Devlin não tem coragem de assumir seu rela-
cionamento com ela e nem de dizer que a ama, por receio de ser apenas “mais um homem na vida
de Alicia”. Percebe-se ainda que, em relação a si mesmo, Devlin é tido com uma vítima, como um
homem idôneo que se apaixona pela mulher errada e que é obrigado a abandonar tudo que acredita
para ficar ao seu lado. Alicia, inicialmente, fica magoada ao descobrir que Devlin não conseguiu
evitar que ela fosse colocada nessa situação, finalmente, ela se conforma e aceita o fato de não po-
der manter um relacionamento com Devlin, o qual a evita. Alicia não tem um fim trágico, mas qua-

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se morre, porque, ao saber que está sendo enganado, o nazista Alexander Sebastian a envenena.
Devlin consegue ajudá-la a sair da mansão.
De acordo com Tania Modleski em The Women Who Knew Too Much: Hitchcock and
Feminist Theory, Alicia começa a viver sua sexualidade ao descobrir que o pai é um traidor do go-
verno americano, quando ela diz “Quando ele me disse, há alguns anos atrás, o que ele era, tudo
ruiu. Eu não me importava com o que aconteceria comigo.” (NOTORIOUS, 1946) E toda a relação
de Alicia com os homens e o governo, Segundo Modleski, ilustra bem a questão feminina e o patri-
arcado americano (MODLESKI, 1988, p. 58). Para a autora, o filme retrata questões políticas em
relação ao feminismo e como os homens se relacionam com as mulheres, quase que as testando para
saber se realmente os amam, vendo-as com outros homens para entender se gostam deles mesmo, se
estão lhes dizendo a verdade. Percebe-se, na leitura deste capítulo de Modleski, que a postura de
Alicia e Devlin notadamente se instaura na questão da conquista, mas que isso fica em segundo
plano quando percebemos a demonização da mulher devido à sua sexualidade e à maneira como
Alicia é cooptada para servir aos propósitos políticos. Ou seja, quando ela vive de maneira social-
mente desregrada, é mal vista; quando preciso, sob o signo da violência, essa mulher é agregada à
corporação e sua notoriedade é usada. Mesmo fazendo o que lhe é pedido, ela continua à margem
da sociedade.
Modleski afirma que Hitchcock conseguiu fazer Alicia trilhar um caminho de maneira
que ela purgasse todo seu passado e que quase falecesse da mesma maneira que seu pai, envenena-
da; discute-se aqui o porquê de essa mulher ter que ser purgada e ter que se retratar. Certamente, a
América da década de 1950 não via com bons olhos uma mulher que se relacionasse com homens
com os quais não estivesse casada. Porém, percebe-se que, na tentativa de purgá-la, Hitchcock se
inscreve como um diretor que modela uma visão de mundo na qual mulheres como Alicia devem
redimir-se, sofrer e quase morrer antes de se casarem. Modleski também ressalta o fato do protago-
nismo feminino, já que é Alicia quem consegue viabilizar todo o desmantelamento da operação
nazista no Rio; esse protagonismo, porém, fica em segundo plano, ao passo que ela não consegue se
desvencilhar do homem que espiona e precisa da ajuda de Devlin para fazê-lo. Caso ela não tivesse
purgado seus pecados e se arrependido completamente, como é vista no último encontro com De-
vlin, ela teria morrido.
Existem, assim como Alicia, outros espiões nos filmes de Hitchcock. Podemos lembrar
de, especificamente, de Andre Devereaux, de Topaz (1969). O agente francês, mesmo casado, tinha
um romance com a espiã cubana Juanita de Cordoba. Fica claro que o romance tanto traz prazer
quanto sucesso profissional para Andre, já que Juanita o auxilia a conseguir informações secretas e

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a salvar sua vida em momentos de perigo, graças à sua reputação e renome no país. O importante,
nessa questão, é que Juanita também é uma agente e, no país em que vive, é obrigada a manter um
romance com um cubano da base governista chamado Rico Parra, para se assegurar e conseguir
informações importantes. Quando o romance de Andre e Juanita vem à tona, além do seu trabalho
de espionagem, é Juanita quem morre. Andre consegue fugir para a França, lamentando com brevi-
dade a morte da amante. Aqui, podemos relacionar a função de Juanita com a de Alicia: as mulheres
voluptuosas devem tomar vantagem de sua aparência para seduzir homens em posições estratégicas
e conseguir informações que serão importantes para outros homens que estão no poder. Andre e
Devlin não são pormenorizados por usarem mulheres para conseguir o que querem. Em contraparti-
da, as mulheres são marginalizadas quando fazem o que os homens que amam lhes pedem.

4. Marnie
Marnie foi um dos últimos filmes feitos por Alfred Hitchcock e trata da história da pro-
tagonista homônima Marnie Edgar, uma mulher que mente e rouba como parte de sua rotina. Mar-
nie consegue emprego de secretária em empresas e, depois de alguns meses, rouba o local de traba-
lho, conseguindo alguns milhares de dólares. Quando procura emprego na Rutland, ela também
atrai os olhares do dono da empresa, Mark Rutland. Mas Mark consegue perceber que já conhece
Marnie de outra ocasião, ele já a viu em outro escritório e se mantém alerta para saber o que aconte-
cerá. Ele poderia não contratá-la, já sabendo que ela era uma ameaça, mas fica atraído por ela e de-
cide entrar no jogo. Mark não é um homem comum: ele tem atração por animais selvagens. É im-
portante que isso fique claro porque, notadamente, é o que justifica e conduz a ação do personagem
ao longo da trama. Marnie consegue roubar a Rutland, mas é, posteriormente, interceptada por
Mark, que a chantageia: ou ela se casa com ele, ou ele a denuncia por esse e pelos outros roubos que
cometeu. Marnie tenta fugir e evitar a situação a todo custo, mas Mark é insistente e consegue se
casar com ela numa cerimônia íntima. O casal logo parte para a lua de mel, ao mesmo tempo em
que ele devolve o dinheiro que ela havia roubado das empresas nas quais trabalhara, por meio de
depósitos anônimos.
Mark poderia ser um herói, porque salva a protagonista, uma ladra, de seu destino cruel,
que poderia incluir ser presa ou mesmo ser morta. O fato é que Marnie, apesar de no início da histó-
ria, enquanto ainda era secretária da Rutland, ter desenvolvido um romance rápido com Mark, não
está disposta a se casar com aquele homem. Mark acredita que está domando um animal selvagem,

Marnie Edgar: Você não me ama. Eu sou apenas algo que você capturou! Você acha que eu
sou um tipo de animal que você pegou!

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Mark Rutland: É verdade – você é. E eu peguei algo realmente selvagem dessa vez, não
foi? Eu segui seu rastro e peguei você e, por Deus, eu vou manter você comigo. (MARNIE,
1964)

A princípio, quando ainda eram apenas patrão e empregada, Mark e Marnie se relacio-
naram normalmente. Sentindo-se atraído pela secretária, Mark Rutland a convida para fazer hora
extra no fim de semana para escrever um relatório. Uma forte tempestade começa, e ela se assusta
com os raios. Mark a acalma e a beija: começa assim o envolvimento amoroso entre os dois. Depois
disso, Mark a convida para ver algumas corridas de cavalo. No carro, no caminho de volta, eles se
beijam. Ainda na mesma ocasião, ele a leva para conhecer o pai e a cunhada na mansão onde mo-
ram. Na estribaria, eles voltam a se beijar.
Marnie então o rouba e, como solução para o problema, Mark a investiga e a chantageia
para que se case com ele, em troca do seu silêncio. A relação entre os dois termina, porque Marnie
se sente obrigada a fazer algo que não quer. Ao mesmo tempo, Mark acredita que ela fingiu estar
apaixonada, anteriormente, apenas para facilitar o roubo. Isso é o que Mark diz para Marnie quando
ela cede à chantagem para se casar com ele,

Mark Rutland: Quando chegarmos em casa, eu vou explicar que tivemos uma discussão
amorosa... E que você fugiu… E que eu corri atrás de você e te trouxe de volta. Isso vai sa-
tisfazer papai. Ele admira ação. Então eu vou explicar que vamos nos casar antes do final
de semana... Que eu não consigo ter você longe de mim. Ele também admira um desejo a-
nimal. (MARNIE, 1964)

O que pode, a princípio, parecer uma história sobre um ato de bondade e de caridade de
Mark Rutland, um homem milionário que decide ajudar uma ladra incorrigível a mudar de vida,
torna-se, com o desenrolar da história, um estudo de personagem. Marnie tem, na verdade, proble-
mas psicológicos que a impedem de se aproximar amorosamente de homens devido a memórias que
a traumatizaram quando ainda era criança. Mark se interessa por “comportamento animal” e, por
isso, com a ajuda de livros de psicanálise, tenta ajudar Marnie a reconstruir seu passado e se livrar
da dor. Ao fim da narrativa, Mark afirma: “Marnie, é hora de ter um pouco de compaixão consigo
própria. Quando uma criança, de qualquer idade Marnie, não tem amor, ela vai tomar qualquer coi-
sa que lhe sirva, de qualquer jeito que puder. Não é difícil de entender.” (MARNIE, 1964).
Antes do desfecho, porém, o expectador fica diante de uma das cenas mais controversas
do filme. Até irem para a lua de mel, logo após o casamento, Mark parece um homem razoável.
Mesmo com a chantagem, o personagem parece ter boas intenções, haja vista que, antes de saber

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que ela era uma ladra, já estava apaixonado. Isso pode fazer com que seu comportamento inadequa-
do possa ser explicado, e mesmo sua paixão pelo comportamento dos animais selvagens pode aju-
dar a entender o interesse pela jovem, que se recusa a se casar com ele. Na lua de mel, Marnie está
agressiva e deseja ficar sozinha durante todo o tempo e Mark concorda que nada acontecerá se ela
assim o desejar. Dias se passam, já que Mark a levou para um cruzeiro longo – do qual eles não
podem desembarcar – e a relação entre os dois fica cada vez mais atribulada. Marnie e Mark discu-
tem casualmente e dormem em quartos separados. Um dia, quando ela pede que ele desligue a luz,
porque está atrapalhando-a dormir, Mark perde a paciência e a estupra. Quando acorda, Mark per-
cebe que Marnie não está no quarto e, depois de procurar por todo o navio, encontra-a boiando na
piscina. Ele consegue salvá-la.
Em “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, Laura Mulvey explica que os filmes de
Hitchcock estão cheios de homens que detêm o poder, seja da lei ou através do dinheiro. Em Marni-
e, Mark Rutland fica atraído por Marnie, quase que hipnoticamente e, por isso, espera que ela come-
ta o crime para depois livrá-la e aprisioná-la com chantagens:

Ele, também, está do lado da lei, até que, dragado em uma obsessão pela culpa dela, pelo
segredo dela, ele deseja vê-la cometer o crime, faze-la confessor para então salvá-la. Então,
ele, também, se torna cúmplice enquanto toma vantagem de seu poder. Ele controle o di-
nheiro e as palavras, ele pode ter seu bolo e comê-lo. (MULVEY, 1975, p. 843).

Mark tem o interesse de domesticar Marnie como se ela fosse um animal selvagem, por
ser ladra e por mentir. Por ter poder sobre ela, ele se esquece do acordo que eles fizeram e viola as
regras, obrigando-a a ter relações sexuais com ele. Pode-se imaginar que essa seja a obrigação de
uma mulher ao concordar em se casar com um homem e que, por ser uma ladra, Mark pode imagi-
nar que esse seja um castigo leve quando comparado com o que ela poderia sofrer estando presa.

5. Algumas considerações sobre o feminino


De acordo com Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo (1967, p. 9), “Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher”. É evidente que as pessoas nascem com órgãos femininos e masculinos, o
que classifica o gênero. Mas Beauvoir se refere aos “ensinamentos” dados às meninas, para que elas
se apropriem de certas representações sobre o que é, de fato, ser mulher.
Quando estamos diante de narrativas fílmicas como as de Notorious e Marnie, não pre-
senciamos situações, posturas e fatos naturais: assistindo a um conjunto de práticas e de representa-
ções sobre o feminino, sobre o masculino e sobre como os dois se relacionam em um contexto só-

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cio-histórico-político. Quando assistimos à Alicia sendo achincalhada, pormenorizada e dada a uma


prostituição velada porque viveu fora das regras da sociedade, ou quando assistimos a cena em que
Marnie é estuprada sem que seu perpetrador (Mark) sofra quaisquer punições durante o filme, per-
cebemos que tais práticas são permitidas dentro de uma sociedade de determinada época, que são
práticas e representações de identidades masculinas e femininas verossímeis e que, mesmo que fa-
çam parte do universo particular abordado pelo filme, mantêm relação com a realidade.
A relação dessas histórias com a realidade se configura por meio da própria construção
do filme que, feito por várias mãos, carrega em seu cerne um conjunto das práticas e das represen-
tações sociais que eram próprios do imaginário da sociedade cultural vigente. De acordo com o que
é possível perceber ao assistirmos os filmes, essas mulheres socialmente perigosas podem ser puni-
das por homens numa relação amorosa. Seja subjugando-as através da lei, do poder, do dinheiro ou
da palavra, os homens norte-americanos exibidos nesses filmes têm autorização para julgar e punir
mulheres que fogem ao padrão esperado pela comunidade: mulheres que se apaixonam por apenas
um homem e que se casam com ele; que são honestas, têm um emprego fixo e que não mentem.
Essa mentalidade nos remete ao pensamento de Beauvoir em duas passagens. Primei-
ramente, a que fala da superioridade do menino,

Em suas recordações, Maurras conta que tinha ciúmes de um caçula que a mãe e a avó tra-
tavam com mais carinho: o pai pegou-o pela mão e levou-o para fora do quarto; "Nós so-
mos homens; deixemos aí essas mulheres", disse-lhe. Persuadem a criança de que é por
causa da superioridade dos meninos que exigem mais dela; para encorajá-la no caminho di-
fícil que é o seu, insuflam-lhe o orgulho da virilidade; essa noção abstrata reveste para êle
um aspecto concreto: encarna-se no pênis; não é espontaneamente que sente orgulho de seu
pequeno sexo indolente; sente-o através da atitude dos que o cercam (BEAUVOIR, 1967, p.
13).

E segundo, da passividade esperada da conduta da menina:

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher "feminina" é um traço que


se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um
dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela so-
ciedade (BEAUVOIR, 1967, p. 21).

Depois da análise das personagens femininas Alicia e Marnie nos filmes de Hitchcock –
Notorious e Marnie, percebe-se que existe, no trabalho do diretor, uma quebra na imagem da mu-
lher feminina esperada pela sociedade. Nos outros filmes do diretor, como apontado anteriormente,
as mulheres passivas correspondem às expectativas sociais, ou seja, fazem-se mulheres conforme os
desejos da sociedade, são bem quistas e têm finais felizes. Elas obedecem aos seus parceiros e sua
passividade só é desafiada quando o homem pelo qual estão apaixonadas está em perigo, diferente-

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mente de Alicia e Marnie, que vivem suas vidas do jeito que desejam e não se importam se o que
fizeram estava certo ou errado. Alicia e Marnie não são mulheres comuns, não são passivas e não
fazem o que foi imposto por seus pais e sociedade. As outras protagonistas precisam do aval mascu-
lino para agirem; Alicia e Marnie desafiam os homens com esperteza e audácia. É como se espio-
nar, mentir, trair, ter relações sexuais sem contração de laços matrimoniais, se embriagar ou roubar,
sem que isso os tornasse malvistos – como o Professor Michael Armstrong em Torn Curtain
(1966), Andre Deveraux em Topaz (1969), John 'Scottie' Ferguson em Vertigo (1958), e John Robie
em To Catch a Thief (1955) – fosse somente papel dos personagens masculinos. Quando Alicia e
Marnie fazem o mesmo que outros homens fazem em filmes de Hitchcock, elas sofrem um tipo de
violência quase consentido socialmente.
Recapitulando a apreensão filmográfica de Alfred Hitchcock feita neste artigo e recor-
dando o que foi dito a princípio sobre a importância que acreditamos que haja em conhecer o traba-
lho de um produtor de objetos culturais como o diretor em questão, fica claro que a proposta de
compreender a figura da mulher como vista por Hitchcock foi atingida neste breve estudo. O que se
quer dizer é que não é possível estabelecer uma visão de mundo do diretor com análise de dois fil-
mes apenas. Pelo contrário, é necessário que possamos assistir aos seus filmes e só através desse
exercício é que podemos constituir um estudo comparativo. Caso não houver apreensão de seus
trabalhos, em quase sua integralidade, não é possível fazer comparações ou que os dois filmes em
foco nesta análise, Marnie e Notorious, fossem destacados. Quando colocamos sua extensa produ-
ção filmográfica lado a lado, conseguimos comparar a visão de um diretor sobre diversos assuntos
e, em questão neste artigo, sobre os papéis sociais que homens e mulheres devem desempenhar.
Quando se compara os desfechos de suas narrativas, compreende-se que certos atos trazem conse-
quências positivas e outros, negativas. Por isso, entende-se que certos comportamentos são aceitos e
outros não. Mas isto não significa que seja Hitchcock o único responsável pelo destino cruel das
mulheres marginalizadas em suas narrativas; afinal, o diretor não é o produtor dessa visão de mun-
do: ele está inserido nessa cultura patriarcalista norteamericana que viabiliza comportamentos, ati-
tudes e punições.
Terminamos este texto retomando mais um trecho de Beauvoir, ao tratar do sentimento
da menina em relação aos meninos, que nos auxilia a compreender essas mulheres perigosas que
não seguiram os padrões de comportamento femininos esperados pela sociedade e pagaram um pre-
ço por isso, já que a mulher “Sempre esteve convencida da superioridade viril; esse prestígio dos
homens não é uma miragem pueril. Tem bases econômicas e sociais; são indiscutivelmente os se-
nhores do mundo, tudo persuade a adolescente de que é de seu interesse tornar-se vassala [...]”

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(BEAUVOIR, 1967, p. 66). Resta saber se as representações sociais vigentes ainda mantêm a mu-
lher nas mesmas condições que Alicia e Marnie, e se a ficção ainda as faz pagar por serem diferen-
tes.

Referências
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fred Hitchcock, e no conto 'Sessão das quatro', de Roberto Drummond”. Estudos de Literatura Bra-
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: A experiência vivida (vol. II). São Paulo: Difusão Euro-
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março de 2013.

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Portugal: Difel, 2002.

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Artes Visuais - Universidade Federal de Minas Gerais.

MODLESKI, Tania. The Women Who Knew Too Much: Hitchcock and Feminist Theory. New
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MULVEY, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema.” In: Film Theory and Criticism: Intro-
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ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. Lisboa: Europa-América, 1963.

SCHAEFFER, Osório Lucio. Cinematografia no Brasil: Um Estudo de Caso do Diretor de Fotogra-


fia Walter Carvalho no Filme Lavoura Arcaica. 2009. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação
em Comunicação Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Miriam de
Souza Rossini.

STRATHAUSEN, Carsten. Patrick Süskind’s Perfume: The Relationship Between Literature and
Film. Gegenwartsliteratur, n. 7, 2009, pp. 1-29.

Filmes:

BLACKMAIL. Direção: Alfred Hitchcock. British International Pictures (BIP), 1924. 1 DVD (85
min).

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DIAL M FOR MURDER. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros, 1954. 1 DVD (105 min).

FAMILY PLOT. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1976. 1 DVD (120 min).

I CONFESS. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., 1953. 1 DVD (95 min).

LIFEBOAT. Direção: Alfred Hitchcock. Twentieth Century Fox Film Corporation, 1944. 1 DVD
(97 min).

MARNIE. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1964. 1 DVD (130 min).

NORTH BY NORTHWEST. Direção: Alfred Hitchcock. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), 1959. 1


DVD (136 min).

NOTORIOUS. Direção: Alfred Hitchcock. Vanguard Films, RKO Radio Pictures, 1946. 1 DVD
(101 min).

PSYCHO. Direção: Alfred Hitchcock. Shamley Productions, 1960. 1 DVD (109 min).

REAR WINDOW. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1954. 1 DVD (112 min).

ROPE. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., Transatlantic Pictures, 1948. 1 DVD (80 min).

SHADOW OF A DOUBT. Direção: Alfred Hitchcock. Skirball Productions, Universal Pictures,


1943. 1 DVD (108 min).

SPELLBOUND. Direção: Alfred Hitchcock. Selznick International Pictures, 1945. 1 DVD (111
min).

STAGE FRIGHT. Direção: Alfred Hitchcock. Warner Bros., 1950. 1 DVD (110 min).

SUSPICION. Direção: Alfred Hitchcock. RKO Radio Pictures, 1941. 1 DVD (99 min).

THE BIRDS. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1963. 1 DVD (119 min).

THE MAN WHO KNEW TOO MUCH. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1956. 1
DVD (120 min).

THE PARADINE CASE. Direção: Alfred Hitchcock. Vanguard Films, Selznick Studio,

THE PLEASURE GARDEN. Direção: Alfred Hitchcock. Bavaria Film, Gainsborough Pictures,
Münchner Lichtspielkunst AG, 1925. 1 DVD (92 min).

TO CATCH A THIEF. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1955. 1 DVD (106 min).

TOPAZ. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1969. 1 DVD (143 min).

TORN CURTAIN. Direção: Alfred Hitchcock. Universal Pictures, 1966. 1 DVD (128 min).

UNDER CAPRICORN. Direção: Alfred Hitchcock. Transatlantic Pictures, 1949. 1 DVD (117
min).

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VERTIGO. Direção: Alfred Hitchcock. Paramount Pictures, 1958. 1 DVD (128 min).

1947. 1 DVD (125 min).

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A FUGA DA MISÉRIA E DA FOME NO ROMANCE VIDAS SECAS, DO
ESCRITOR GRACILIANO RAMOS

MISERY AND HUNGRY RUN AWAY IN THE ROMANCE VIDAS SECAS,


BY GRACILIANO RAMOS

Gracineia dos Santos Araújo (PG - Universidade de Valladolid/Espanha)


Marta Mendes de Araújo (UNEB)

RESUMO: O nordeste brasileiro, cenário onde ocorrem os mais longos e árduos períodos de estia-
gem, é vítima dos problemas que mais afligem o mundo rural: a miséria e a fome. A partir da obra
de Graciliano Ramos, Vidas Secas (1937-1938), este trabalho trata de refletir sobre a vida de famí-
lias sertanejas que, ao serem vítimas das adversidades do tempo e da falta de políticas públicas, são
condenadas a abandonar seus lares em busca de melhores condições de vida. Os personagens da
obra estudada têm uma dimensão testemunhal-simbólica muito significativa, são vítimas do atraso e
da ignorância; condenados à indigência e à fuga; pessoas prescindíveis para o mundo urbano, “civi-
lizado”; invisíveis diante do desenvolvimento tecnológico do consumo. O escritor alagoano mostra
a grande problemática existente no campo, utilizando a sua literatura para chamar atenção das cir-
cunstâncias de abandono, opressão e injustiça social em que vive grande parte das populações ru-
rais.

Palavras-chave: Graciliano Ramos, literatura brasileira, miséria e fome.

ABSTRACT: Brazilian northeast, stage in which the longest and hardest drought, is a victim of the
problems which cause pain to the rural world: the misery and hungry. Starting from Graciliano Ra-
mos work, Vidas Secas (1937-1938), this work tries to think about the live of the “sertanejas” fami-
lies which, victims of the weather adversities and lack of public politics, are condemned to abandon
their homes searching betther live conditions. The characters of the studied work have a testimoni-
al-simbolic dimension very significant, are victims of the backwardness and ignorance; condemned
to poverty and escape; dispensable people for urban world, “civilised”; invisibles in front of the
consumming technological development. The “alagoano” writer shows the big difficulties existing
in the land, using the literature to attract attention to the abandon circumstances, oppression and
social injustice in which most part of the rural populations live.

Keywords: Graciliano Ramos, brazilian literatura, misery and hungry.

1. Introdução
Este trabalho tem por objetivo fazer uma reflexão sobre a vida de muitas famílias serta-
nejas, que devido à problemática da seca, e afligidos pela miséria e fome, são obrigadas a fugir em
busca de dias melhores. Tudo isso, a partir da realidade dos protagonistas Fabiano e Sinhá Vitória,
no romance Vidas Secas, do escritor Graciliano Ramos.
O cenário no qual se ambienta a narrativa é marcado pelo pessimismo, pela angústia e
pela falta de perspectiva; um universo rural, eminentemente austero, que anula todas as possibilida-
des de uma vida digna. Em meio a esta realidade, o autor mostra a seus leitores o cotidiano de uma
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família sofrida, oprimida pela seca, e pisoteada pela indiferença dos poderes públicos, ou seja, retra-
ta uma realidade determinada pelas adversidades do tempo e do espaço, pela divisão de dois mun-
dos, cultural e economicamente antagônicos (rural e urbano), que se chocam constantemente, man-
tendo seus valores e seu status inalterados.
Na sua aspereza, como se caracteriza o sertão nordestino, o mundo rural sertanejo ocupa
um lugar destacado na literatura brasileira em diversos momentos da formação e produção literária
do país, especialmente na estética modernista. Muitos escritores da segunda fase do modernismo
brasileiro, como Euclides da Cunha, João Cabral de Melo Neto e Raquel de Queiroz, são alguns dos
autores mais relevantes que, em sua consolidada trajetória, e desde perspectivas variadas, dão pro-
tagonismo às realidades da geografia rural do Nordeste. Além da literatura dos referidos escritores,
destaca Bosi (1979) que considerável parte das obras narrativas que fazem parte do cânone literário
da literatura nacional está ambientada no âmbito rural.
Em Vidas Secas, é evidente que a intenção de Graciliano Ramos não é que haja uma so-
ciedade perfeita, nem de “salvar” o mundo rural das mazelas que este padece, senão que autor pre-
tende despertar a consciência dos leitores em relação à problemática do universo campesino, diante
da necessidade de promover a justiça social e posicionar-se a favor da igualdade e dignidade huma-
na. Com uma forma comprometida e humanística de construir literatura, fica evidente na narrativa
do escritor alagoano a certeza da necessidade de expressar por meio de suas palavras o contexto
sociopolítico do país, estando bem próximo à complexidade de sua época. Através de seus persona-
gens, Ramos reflete o seu compromisso social diante dos dilemas humanos, com uma sensibilidade
veemente em relação à problemática do campo. Assim, faz de sua literatura um verdadeiro veículo
de denúncia e transformação social.
Na sua dinâmica de denúncia social, Graciliano Ramos elabora uma obra sumamente
representativa na reconstrução das realidades rurais do sertão nordestino, valendo-se de uma prosa
singela, clara, acessível, marcada por vocábulos tipicamente do universo campesino, talvez desco-
nhecido para a maioria dos leitores; formada por uma sintaxe simples, através da qual demonstra
que é grande conhecedor da realidade que aborda. A secura da linguagem e a aspereza da crítica
social com as quais o autor desenvolve o romance, situado na segunda fase do modernismo brasilei-
ro, encontram na aridez do sertão e nos problemas sociais do mundo rural, o seu terreno fértil.

2. O autor e a obra
Graciliano Ramos de Oliveira nasceu no sertão de Alagoas, no ano de 1892. Considera-
do um dos maiores romancistas brasileiros, o autor publica em 1938 o romance Vidas Secas, através

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do qual reivindica valores do mundo rural, tão ignorados pelo mundo “civilizado” do consumo.
Ramos trata da problemática do homem do campo, denunciando as circunstâncias de opressão, ex-
clusão e abandono, as quais os privam das mais básicas condições de sobrevivência.
O escritor constrói a narrativa em um cenário de tempos modernos; leva em considera-
ção não apenas os fatores histórico ou político-social do Brasil dos anos 1930, cuja lógica, ainda
herdeira da cultura de séculos anteriores, mantém o campo brasileiro longe dos avanços tecnológi-
cos e do possível “progresso” que os mesmos aportam (sistema de represas e canalização de água,
rodovias, luz elétrica, entre outros). Ao referir-se às populações rurais do sertão nordestino, Gracili-
ano Ramos observa que as mesmas encontram-se, pouco a pouco, expostas ao turbilhão da moder-
nização, que transformam as suas vidas e lhes imprime novas necessidades.
Em Vidas Secas, Graciliano Ramos antecipa em sua análise o estranhamento do indiví-
duo excluído da sociedade, fazendo uma reflexão elucidativa a respeito dos seres estranhos que
povoam a narrativa. Nesta perspectiva, de acordo com as contribuições do sociólogo Sygmunt
Bauman (1998), evidencia-se que estranhos são aqueles que não se encaixam no mapa cognitivo,
moral e social, previamente estabelecido. Fabiano, no seu isolamento e embrutecimento, representa
uma magnífica imagem dos “estranhos”, seres marginalizados pelas circunstâncias do contexto no
qual vivem carentes de expectativas de vida melhor junto à sua família. O estranhamento do prota-
gonista se estende à linguagem, pois não dominava a palavra para reivindicar seus direitos como ser
humano. Por essa razão, está obrigado a viver à sombra do “outro”, sempre tendo como referência,
até em seus pensamentos, o Seu Tomás da Bolandeira, pois este se expressava com autonomia, para
projetar seus desejos e seus anseios, fator que cativava Fabiano.
É importante destacar que, de acordo com uma perspectiva baudelairiana, o mundo mo-
derno - neste caso: rural versus urbano – exige que as suas populações se adaptem às transforma-
ções que ocorrem de caos ou ruínas, convivendo com as novas necessidades imprimidas pela nova
realidade. Em seu artigo “El pintor de la vida moderna”, publicado em 1863, destaca Baudelaire
(1995, p.92) que “la modernidad es lo transitorio, lo contingente, la mitad del arte, cuya otra mitad
es lo eterno y lo inmutable”. O autor acredita nas consequências catastróficas da “nova lógica”, mas
também crê na possibilidade de novas formas de sensibilidade e liberdade. Nesta perspectiva, po-
demos situar os personagens de Graciliano Ramos estreitamente vinculados à “nova realidade” des-
tacada por Baudelaire, uma vez que padecem as consequências das transformações da sociedade e,
por conseguinte, da necessidade de progresso.
Por meio de uma eminente engenhosidade literária, em Vidas Secas Graciliano Ramos é
capaz de ficcionalizar a realidade sertaneja em todas as suas particularidades, partindo das questões

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locais para alcançar dimensões universais. Para o escritor, nada passa despercebido no universo
campesino e isso se reflete em cada um de seus personagens, em cada uma das anedotas que com-
põem a narrativa.
Não é difícil entender as razões da universalidade do escritor alagoano o qual, diferen-
temente de muitos dos seus contemporâneos, coloca sua narrativa a favor dos problemas que afli-
gem o sertanejo, problemas estes que são universais, possíveis de acontecer em qualquer parte do
mundo, seja na aridez das terras do oriente, nas terras rochosas de países como o Chile ou a Bolívia,
ou nos desertos de países africanos que padecem da seca não apenas pela falta de chuva, mas tam-
bém secos os sonhos e as esperanças, a justiça e a dignidade, estando condenados a viver eterna-
mente à mercê do próprio destino e da sorte.
De acordo com Umberto Eco (1996, p.94), “los mundos de la ficción son, sí, parásitos
del mundo real, pero ponen entre paréntesis la mayor parte de las cosas sobre éste, y nos permite
concentrarnos en un mundo finito y cerrado, muy parecido al nuestro, pero más pobre”. É neste
mundo mais pobre, fruto da imaginação do autor e da sua liberdade de criação, que Graciliano Ra-
mos elabora a sua narrativa, encontrando na realidade os elementos fundamentais para a sua produ-
ção literária. Por outro lado, e desde a perspectiva da estética marxista, também a partir do pensa-
mento de George Luckás no seu livro Sociología de la Literatura, o acontecimento literário está
subordinado à representação autêntica do real.
Em Vidas Secas, é possível observar que o autor oferece uma realidade reconhecível,
mas se trata de uma realidade entre aspas, verossímil, considerada real, embora não o seja; trata-se
de um mundo entrelaçado por elementos históricos e sociais, resultado de um passado problemático,
de injustiças sociais, que se mantém em relação estreita com o presente. Desde uma perspectiva
baudelairiana, podemos entender que a modernidade, em um sentido muito amplo, estreita a arte de
criar (a arte literária) e a história (a realidade). Além disso, permite entender que a modernidade está
associada à linguagem, exteriorizada através da arte de narrar, posto que é através desse conjunto de
elementos que podemos intercambiar informações, experiências, etc, sendo indivíduos interpesso-
ais, intersubjetivos. Em meio a essa realidade, Graciliano Ramos encontra nas palavras a única ma-
neira de representação, desenvolvendo a partir de circunstâncias concretas, abastecendo-se de uma
realidade dotada de significado, através de um acúmulo de matérias ou ideias.
Assim, ambientando a narrativa no coração do sertão nordestino, Graciliano Ramos dá
protagonismo à história de uma família pobre que, obrigados pela circunstância da seca, fogem, sem
destino, da miséria e da fome e vão à busca da sobrevivência, já que “a fome apertara demais os
retirantes e por ali não existia sinal de comida” (RAMOS, 1998, p. 09). Obrigados pelas circunstân-

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cias, a família empreende a grande viagem para, talvez, lugar nenhum:

Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto
e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada
numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho
e a cachorra Baleia iam atrás.

De acordo com Candido (1992, p.104), “Graciliano Ramos conseguiu em Vidas Secas
ressaltar a humanidade dos que estão nos níveis sociais e culturais mais humildes”. Deste modo,
levando em consideração as principais preocupações do escritor sertanejo, direcionaremos o nosso
olhar em ângulos multidimensionais, uma vez que nos são importantes os fatos em seu conjunto.
Além disso, estaremos atentos à forma como o autor desperta as consciências para os problemas
existentes no marco rural, uma peça mais do quebra-cabeça de um mundo considerado prescindível,
diante do mundo “civilizado”, uma vez que o autor nos apresenta o universo rural em uma dimen-
são muito ampla, descobrindo-o, reinventando-o, mas também reinterpretando-o.
Ao mesmo tempo em que exterioriza a sua preocupação com os problemas existentes no
meio rural, o escritor Graciliano Ramos se desloca pelo sertão nordestino, através dos seus protago-
nistas, com uma grande e eloquente liberdade imaginária, capaz de expressar a mais sórdida reali-
dade, de uma maneira esplendorosa, cheia de luzes e cores, embora sejam abundantes as sombras e
as dores. Bem distante de mostrar uma visão idílica do mundo rural, Ramos aborda as desigualda-
des sociais que afligem o homem do campo e o faz com uma linguagem clara, precisa, que não dei-
xa sombras de dúvida; ressalta, denuncia; se apropria do mundo rural e o torna seu, com o único
propósito de fomentar o debate e a denúncia social a respeito da problemática existente no universo
rural.
Ao longo dos treze capítulos que compõem o romance, Graciliano Ramos mostra, atra-
vés de exemplos impactantes, a necessidade de tomar partido diante de tão sórdidas circunstâncias
que marginalizam as populações rurais. A exemplo do fenômeno das secas, que deixa “... fazenda
sem vida, o curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro
fechada...” (RAMOS, 1998, p.12) e, por conseguinte, a escassez de água e alimentos para a sobre-
vivência, o autor provoca no leitor uma indignação e o chama a ser partícipe do debate, convidando-
o a lutar em defesa da dignidade da pessoa humana, agindo contra as circunstâncias que obrigam o
sertanejo a viver sob um céu inclemente e sobre um terreno pedregoso.
Para Bosi (2003, p.23), “o sertanejo crê no Destino, na sorte e no azar, e a sua crença é
tanto mais sólida e justificada quanto menor é o seu raio de ação consciente sobre o que lhe há de
suceder.” Assim, ademais de mostra os dramas vividos pelas populações rurais, Graciliano Ramos

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sublinha a falta de perspectiva, a incerteza do futuro e a dureza do presente das populações rurais.
Tudo isso, sempre com o propósito de modificar o rumo da história, dando protagonismo às pessoas
mais sofridas e excluídas da sociedade, através de uma narrativa feita em terceira pessoa, que
transmite as expressões rústicas dos protagonistas, que pouco se expressam verbalmente, mas que
transmitem, através dos gestos, a mais perfeita reflexão da vida rural sertaneja: “Ordinariamente a
família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras
curtas” (RAMOS, 1998, p.11).
O sertanejo migra, mas a fuga que empreende está sempre acompanhada da certeza de
encontrar dias melhores, embora isso esteja atrelado à “vontade” da natureza, representada, majori-
tariamente, pela “grandeza dos céus”, transmitida através das chuvas torrenciais que devolvem a
vida e a abundância ao mundo rural: “Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu
grande e branca. Certamente ia chover” (RAMOS, 1998, p. 15). Com base nesta realidade, “Gracili-
ano Ramos vê o migrante nordestino sob as espécies da necessidade. É a narração, que se quer obje-
tiva, da modéstia dos meios de vida registrada na modéstia da vida simbólica” (BOSI, 2003, p.10).
Isso significa que, com um fazer literário, preocupado com o bem estar do ser humano, o escritor
alagoano direciona seus textos em favor da humanização do homem do campo, uma vez que é
consciente da sua “missão” de lutar pela inclusão social do homem rural.
O romance Vidas Secas é motivado, entre outros fatores, pela consciência que tem o au-
tor da existência de uma linha divisória latifundiária, que divide os sertanejos em ricos e pobres.
Ainda de acordo com Bosi (2003, p. 20), “A chave do realismo crítico de Graciliano encontra-se
analisando seu distanciamento: o narrador conhece por dentro as restrições e os entraves da vida
rústica nordestina, tanto que sabe dar às folgas simbólicas dos retirantes o seu verdadeiro nome de
ilusórias consolações”. Esse componente ideológico do intelectual Graciliano, como um cidadão
comprometido com a justiça social, deixa claro a sua condição de sertanejo que, embora seja oriun-
do de uma família de classe média, é conhecedor e defensor do universo rural que o rodeia, deste
universo cujos habitantes, em muitos casos, são seres verdadeiramente deplorados, deformados pela
miséria e pela fome; privados de todas as benesses que a vida pode oferecer.
Em um mundo distanciado e privado do progresso, a busca do sustento se converte em
uma verdadeira arte e os sonhos são os principais aliados do homem sertanejo. Com a chegada das
chuvas, o solo do sertão se enche de vida e o coração do sertanejo de esperança, como bem deva-
neia Fabiano no trecho abaixo:

a caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro
daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos
gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saia de rama-

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gens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a caatinga ficaria toda verde (RAMOS, 1998,
p.15).

O drama da pobreza no mundo rural começa cedo; a luta pela sobrevivência é transmiti-
da de pai para filho. É preciso saber defender-se de todo tipo de adversidades, e a infância nasce
com a certeza de que é preciso basear-se na experiência dos adultos, a favor da sobrevivência: “... o
vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a per-
correr veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto here-
ditário.” (RAMOS, 1998, p.17).
Em Vidas secas, podemos observar que o bem-estar social não é um privilégio de todos,
mas de uma minoria insignificante, como se a própria natureza necessitasse de excludentes e exclu-
ídos. Esta lógica estendida e enraizada parece não ter um final diáfano, posto que não existe um
compromisso com a igualdade entre os povos. Por isso, de acordo com Bosi (2003, p.13), “Gracili-
ano Ramos olha atentamente para o homem explorado, simpatiza com ele, mas não parece entender
na sua fala e nos seus devaneios algo mais do que a voz da inconsciência.”
Toda uma realidade desoladora é vislumbrada através de um cotidiano cicatrizado por
um destino impregnado de incertezas e desafios, onde o problema da desigualdade social é visto em
plena luz do dia, em que a vida e a morte andam juntas, em uma mesma direção, gozando do mes-
mo grau de intensidade; na qual as pessoas são obrigadas a abandonar o seu lar em busca de um
prato de comida assegurado.
Apesar de tudo, de todos os problemas de caráter socioeconômicos existentes no meio
rural, Graciliano Ramos mostra como o homem sertanejo mantém uma relação estreita e harmonio-
sa com a natureza e com o próximo; aprende a se relacionar com o meio e com todo tipo de adver-
sidades, desenvolvendo uns mecanismos de defesa e/o participação que os ajudam a driblar os fe-
nômenos naturais ou de fenômenos externos que, porventura, venham modificar a rotina do dia a
dia. Tudo isso, através da observação de sinais emitidos pela natureza: as cores das nuvens, a força
e a voz do vento, etc. esses sinais servem não apenas de orientação, mas, também, trazem a espe-
rança e fortalecem crença em dias melhores.
Graciliano Ramos também observa e denuncia o sofrimento das populações rurais do
sertão nordestino, que dependem dos “céus” para a sobrevivência. A falta de chuva e, consequen-
temente os longos períodos de seca, levam o sertanejo a tornar-se impotente diante dos obstáculos
naturais. Além disso, outro agravante consiste em não ser hábil o suficiente como para exigirem dos
poderes públicos que as devidas providências sejam tomadas, sendo paradoxal a convivência “har-
moniosa” entre a miséria e a abundância, como se a riqueza de uns e a miséria da maioria fosse uma

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lei da vida.
Em um mundo marcado pela dor e pelo sofrimento, a luta pela sobrevivência se torna o
único objetivo. Os impactos sociais, distantes de ser causados simplesmente pelas adversidades da
natureza, transmitida através de catástrofes constantes, obrigam as populações empreenderam uma
viagem, muitas vezes sem destino ou sem regresso, trazendo consequências sumamente negativas
para a vida no meio rural, comprometendo o futuro de muitas gerações que dependem da terra para
obter o seu sustento.
Em Vidas Secas, o autor não pretende “civilizar” o mundo rural, senão, mostrar as con-
sequências do abandono e degradação do meio rural, como vítima da indiferença social e da inope-
rância dos poderes públicos. Sem direitos e deveres respeitados, o sertanejo, na sua grande maioria,
é marginalizado, excluído, considerado prescindíveis diante do mundo “civilizado” do capitalista.
Através dos protagonistas da obra, Ramos dá visibilidade ao sertanejo, tirando-o do isolamento que
por muito tempo fora relegado, sempre à margem da sociedade. E, ao tirá-lo do anonimato, atribui-
lhe vez e voz, mostrando que, mesmo vivendo privações e estando a mercê do seu próprio destino e
da sorte, o sertanejo traz na sua mente o desejo de prosperidade, com pouso fixo e uma vida digna
como de qualquer ser humano, uma vez que, é consciente de que outro mundo existe.
Apesar de todo sofrimento e do pessimismo que caracterizam a obra, observamos que a
esperança é um lugar que ocupa uma posição de destaque na vida do sertanejo. Por isso, Graciliano
Ramos lança um olhar esperançoso para a vida e o futuro do sertanejo, anunciando um futuro pro-
missor, embora este, lastimosamente, tenha que migrar para as grandes cidades. Tudo isso, motiva-
do pelos sonhos... a caminho do sul, com um destino “certo”:

Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas di-
fíceis e necessárias. Eles dois velhinhos... chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabia-
no, sinhá Vitória e os dois meninos (RAMOS,1998, p. 126).

Por fim, ressaltamos que, embora os personagens vivessem abaixo da linha da pobreza,
tendo como certeza somente o presente, isso, porém, não privou Fabiano e sua família de sonhar
com uma vida melhor. Reforçando as imortais palavras de Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes
de tudo, um forte”..

Referências
BAUDELAIRE, Charles. El pintor de la vida moderna. Trad. Alcira Saavedra. Murcia, Colegio de
Aparejadores y Arquitectos Técnicos. Librería Yerba: Cajamurcia, 1995.

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BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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___________. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaio sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34,
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___________. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia
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LUCKÁS, Georg. Sociología de la literatura. Barcelona: Ediciones Península, 1996.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.

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