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ISSN: 2525-7463

ANAIS
ELETRÔNICOS
8º SEMINÁRIO DO

GPLV e
50 anos
deTremor de Terra

18 e 19 de abril de 2017
Ituiutaba, MG – Brasil
Anais do 8º Seminário do GPLV e dos 50 anos de Tremor de Terra
© 2017 dos respectivos autores

PRODUÇÃO EDITORIAL

Coordenação Editorial
Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles
Doutoranda Pauliane Amaral
Mestranda Natália Tano Portela

Capa
The Artist's Wife (1883).Albert Bartholomé. Metropolitan Museum.
Imagem de domínio público.

Periodicidade
Semestral

Divulgação
Eletrônica

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL


GPLV - PPG/Letras/UFMS/Câmpus de Três Lagoas
Letras - UFMS/Câmpus de Aquidauana
Letras - UFMS/Câmpus de Corumbá

COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof.Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN)
Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)
Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPAQ/CPTL)
Mestranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL)

COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof.Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN)
Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL)
Prof. Doutorando Marcos Rogério Dorneles (UFMS/CAQ/CPTL)
Doutoranda Pauliane Amaral (UFMS/CPTL)
Mestranda Natália Tano Portela (UFMS/CPTL)

Contato Principal
E-mail: seminariogplv@gmail.com
Site: http://anaisgplv.blogspot.com.br/

SOUZA, Eunice Prudenciano; RODRIGUES, Rauer Ribeiro; DORNELES, Marcos Rogério


Heck; AMARAL, Pauliane; PORTELA, Natália Tano. (Orgs.). Anais Eletrônicos do 8º
Seminário do GPLV e dos 50 anos de Tremor de Terra, 18, 19 e 20 de abril de 2017 [recurso
eletrônico], Universidade Estadual de Minas Gerais, Ituiutaba-MG, 181p.
Sumário
Apresentação.................................................................................................. 5

Programação ................................................................................................. 12

Resumos das comunicações .......................................................................... 15

Resumos dos minicursos ............................................................................... 23

Resumos de palestras .................................................................................... 25

Texto de palestra completo ........................................................................... 26


GERALDO FRANÇA DE LIMA: O ESCRITOR, A OBRA E A CRÍTICA
Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha (UFU) .......................................................................... 26

Artigos completos
ENTRE O NADA E O TUDO, A MORTE HUMANA
Denise Moreira Santana (UnB) e Nathália Coelho da Silva (UnB) ..................................... 37

O MASCULINO E O FEMININO EM LUIZ VILELA


Eunice Prudenciano de Souza (UFMS/CPTL) e Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS/CPAN) ............. 48

UMA METAFÍSICA DO AMOR EM TREMOR DE TERRA


Herisson Cardoso Fernandes (UnB) .................................................................................... 60

ENTRE TRANSGRESSÕES: NARRATIVA HÍBRIDA EM LUIZ VILELA E MARIO


VARGAS LLOSA
Janara Laíza de Almeida Soares (UnB) ............................................................................... 69

ANÁLISE ENTRE OS CONTOS “NINGUÉM” DE LUIZ VILELA E “O HOMEM QUE


GRITOU EM PLENA TARDE” DE IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
Lígia Ribeiro de Souza Zotesso (UEM) ................................................................................ 78

O EXISTENCIALISMO NA OBRA DE LUIZ VILELA


Lucas Fernando Gonçalves (UnB) ........................................................................................ 89

LEITURAS E RELEITURAS DE CONTOS DE LUIZ VILELA EM ‘CURTAS’


Lúcia Helena Ferreira Lopes (FTM-EEGIP) ........................................................................ 99

DESEJAR SER: A METALINGUAGEM EM LIVRO SOBRE NADA, DE MANOEL


DE BARROS
Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (UFMS) e Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) ................. 107
DISSENSÃO CONTÍSTICA EM TREMOR DE TERRA, DE LUIZ VILELA
Marcos Rogério Heck Dorneles (UFMS/CPTL/PPGL) ........................................................ 122

DA SUBMISSÃO FEMININA AOS RESQUÍCIOS DE RESISTÊNCIA NO CONTO


"NOSSO DIA", DE LUIZ VILELA
Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo (UFMS/CPTL) ............................... 132

A TRINDADE DO CONTO NA ERA DA REPRESSÃO — UM OLHAR SOBRE A


PRODUÇÃO DE FONSECA, TREVISAN E VILELA NOS ANOS 60
Ronaldo Vinagre Franjotti (UFMS/CPTL) ........................................................................... 142

LITERATURA CONTEMPORÂNEA E FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO – ANÁLISE


DISCURSIVO-FENOMENOLÓGICA
Sonia Maria Pereira Maciel (UEMG/Ituiutaba) e Gabriela Cardoso Maciel
(UEMG/Ituiutaba) ................................................................................................................. 154

LUIZ VILELA: REGISTROS INTERMINÁVEIS DE PROPRIEDADE DO TREMOR


DE TERRA (1967) AO MAIS RECENTE LIVRO, A NOVELA, O FILHO DE
MACHADO DE ASSIS (2016)
Wania de Sousa Majadas (Unicamps - Goiânia) .................................................................. 167

A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao


teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor.
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DISSENSÃO CONTÍSTICA EM TREMOR DE TERRA, DE LUIZ VILELA.

Marcos Rogério Heck Dorneles (CPTL/ UFMS)

Resumo:Artigo acerca do volume de contos Tremor de terra (1977), de Luiz Vilela,


com ênfase para o exame da dissensão ficcional na atividade de criação literária.
Inicialmente, são realçadas algumas características composicionais do livro e suas
possíveis implicações semânticas decorrentes. Adiante são pontuados aspectos
temáticos e formais que sinalizam para a dissensão contística nos seguintes âmbitos:
cognitivo, cultural, filosófico e intertextual. Para realizar esse percurso de pesquisa, são
adotadas algumas proposições de teorias da narrativa (GENETTE, 1979; FRIEDMAN,
2002, BENJAMIN, 1980) e é realizado um diálogo dos estudos literários com alguns
tópicos dos estudos filosóficos, como as ruínas (BENJAMIN, 1984, 1985; KOHTE,
1976) – por meio do aniquilamento, dilaceramento e desengano – e o ceticismo
(KRAUSE, 2004)– por intermédio da suspensão temporária do arbítrio. Resulta da
pesquisa a avaliação da proporcionalidade e da reciprocidade entre o caráter dissentâneo
e a criação ficcional.

Palavras-chave: Contos. Dissensão. Luiz Vilela.

1Introdução:

“[...] que existe para condenar os homens ao céu ou ao inferno, e que


se desmantelaria se o inferno deixasse de existir [...]”

Luiz Vilela.

A criação da ficção literária se insere controversamente em diversos domínios de


conhecimentos e em várias esferas de execução. A sucessão de etapas de concepção da
ficção transita da percepção súbita ao esboço planejado; oscila entre a adequação ao
projeto artístico e a introjeção da cosmovisão do escritor, para chegar à concretização da
obra literária. Produto de uma aplicação dinâmica de forças, a ficção literária reordena
e/ou perturba a relação entre sujeito e objeto; embaralha as diretrizes de tentativa de
consolidação de verdades e de costumes; e, simultaneamente, em determinadas épocas,
pode negar e/ou afirmar a organização social circundante.
Em seu bojo, a ficção literária apresenta um caráter dissentâneo por meio da
apropriação de elementos que a cingem, por intermédio do seu considerável grau de
perspectivismo, e através da possibilidade de se postar diversamente diante dos
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acontecimentos. A posição de dissensão que pode ocorrer na literatura dialoga com o


caráter opositivo de alguns movimentos de ruptura em diversas áreas dos
conhecimentos, saberes e artes. Segundo Aurélio (2004), o vocábulo “dissensão” deriva
do termo latim dissensione, podendo significar: “Divergência de opiniões ou de
interesses.Discrepância, contraste, oposição”. O termo “dissensão” se conecta à palavra
grega diaphonía (διαφωνία), a qual possui suas raízes no universo musical (2004),
como: “Designação dada pelos gregos aos intervalos dissonantes, entre os quais
incluíam os de terça e de sexta.”. E, em tempos recentes, o vocábulo “diafonia” também
pode ser associado a tipos de interferência indesejada em transmissões radiofônicas e
raditelefônicas, próxima ao horizonte de sinal estanho. Assim, nessas três ocorrências de
acepção escolhidas, o caráter dissentâneo transita pelos contornos de cognitivo
(pensamento opositivo), artístico (variabilidade de procedimentos) e ético (interferência
“indevida”).
Na produção contística de Luiz Vilela o caráter dissentâneo da ficção se dá nos
âmbitos cognitivo (por meio da apreensão diferenciada dos objetos realizada pelas
personagens e pela figura do narrador); cultural (através da contraposição a alguns
valores e costumes arraigados); filosófico (por intermédio da ressignificação de
proposições filosóficas); intertextual e metalinguístico (pela releitura de obras de
contistas consagrados na série literária). Nesse horizonte, para realização deste artigo,
propomos o levantamento e o exame do caráter dissentâneo em menções e fragmentos
de alguns contos do livro Tremor de terra (1977).

2.Pórtico

Neste ano, a obra Tremor de terra, de Luiz Vilela, completa cinquenta anos de
existência. Este marco temporal propicia e permite sinalizar um delineamento das
mudanças composicionais que ocorreram na sua escrita contística desde as primeiras
narrativas curtas até a última obra de contos publicada. A produção realizada nos sete
livros de contos de Vilela projeta-o como uma das referências na técnica e na argúcia da
criação contística nos séculos XX e XXI, junto a escritores da envergadura de Dalton
Trevisan, Rubem Fonseca e Guimarães Rosa.
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Na obra Tremor de terra são dispostos alguns aspectos e procedimentos de


criação literária peculiares a esse primeiro livro e, por outro lado, são estabelecidas
algumas características e diligências que se mantêm no restante da produção artística de
Luiz Vilela. De maneira breve, destacamos:
– a constituição de vinte narrativas curtas com pequena quantidade de páginas, indo
desde a extensão de uma página (“Dois homens”, “Ninguém”, “Deus sabe o que faz”)
até narrativas um pouco mais dilatadas (“O violino”, “Velório”, “Meu amigo”);
– a elaboração do texto da narração construída de maneiras distintas, por exemplo, com
a predominância dos diálogos (“Confissão”) ou com a preponderância do papel do
narrador-protagonista (“Tremor de terra”);
– a apresentação de temáticas diversas, como a referência a diferentes âmbitos de
práticas da religiosidade cristã (“Espetáculo de fé”, “Deus sabe o que faz”); a alusão a
formas solitárias de convivência na vida urbana solitária (“Solidão”, “Chuva”,
“Ninguém”); a expressão de desenganos e dissimetrias da vida conjugal (“Por toda a
vida”; “Nosso dia”); a manifestação de situações configuradas pelo desatino de
costumes ou estados psicológicos próximos ao narcisismo e/ou solipsismo (“Imagem”).
Não obstante os itens apontados, salientamos como esteios principais da
elaboração desse livro a reiteração de uma espécie de desalento que recai sobre as
personagens diante das situações de perda, o contraste entre as pretensões das
personagens e o choque ordinário da mediocridade social circundante, e a utilização de
diferentes matizes de ironia na elaboração frásica das narrativas. Feito esse preâmbulo,
destacamos neste estudo as narrativas “Confissão”, “Imagem” e “Júri”.
Escrito sob a conformação do diálogo, o conto “Confissão” apresenta uma
conversa entre um adolescente e um padre. Para tal, constitui-se a tentativa de se igualar
a relação de duração das ações entre a situação diegética e a posição disposta no
discurso narrativo (GENETTE, 1979). Por intermédio da forma fundamental da cena,
essa tentativa de proporcionalidade se dá principalmente nas ocorrências de
manipulação da conversa pelo padre, direcionando a aquisição de informações sobre o
pecado pelo qual o rapaz transgredira os preceitos religiosos. No entanto, esse processo
de controle psicológico e de simetria narrativa está associado e submetido à exposição
de uma narrativa secundária em analepse, relatada pelo adolescente. Assim, o sacerdote,
além de personagem da cena, torna-se narratário, ou seja, um destinatário interno ao
discurso; e, de outra parte, o pendor isocrônico passa a se relativizar, posto que duas
narrativas se assentem.
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O rapaz relata ao padre a tentação ocorrida pela visão de parte dos “dotes” de
beleza da vizinha em duas circunstâncias diferentes. À medida que o adolescente expõe
aquilo que considerara um pecado, o sacerdote aumenta o seu conhecimento acerca das
condições em que vive a garota (hábitos e reações dela, presença e costumes dos pais
etc), transparecendo a semelhança do desejo veemente que emerge nele no momento
presente ou emergiu em situações passadas. Nesse caminho, o conto “Confissão”, o
caráter dissentâneo da ficção se dá em pelo menos dois âmbitos, o contorno cultural e o
campo de ação intertextual e metalinguístico, no entanto, para fins de comentário, nos
atemos ao primeiro âmbito mencionado. No âmbito cultural a narrativa apresenta
dissensão frente às expectativas da sociedade quanto aos papeis tradicionais
desempenhados pelas figuras do confessor (o padre), do penitente (o adolescente) e da
considerada pecante (a garota).
A maneira com que se dá a disposição dos acontecimentos no tecido narrativo e
a propositada insuficiência de informações exposta no discurso são procedimentos que
colaboram para a efetivação da dissensão. Por exemplo: a ordem de exposição dos
eventos, ao se dispor o início do conto já in media res; e as lacunas informativas,
referentes a um possível relacionamento passado entre o padre e a garota ou o desejo de
um contato futuro. Somados a esses procedimentos formais, o contraste entre a
configuração cultural e as relações de poder exercidas no conto transcende uma
homogeneidade de avaliações. Pois, a garota exerce uma forte atração em ambos sem o
artificialismo das ações do padre; o adolescente oscila entre arrefecer a culpa da sua
consciência e acentuar a dúvida existencial; e, por fim, a composição da personagem do
padre, apesar de evidenciar uma manipulação constante, expõe o modo de ser precário
do sacerdote, que também está sujeito aos influxos dos instintos. Assim, expõe-se a
possibilidade de ocorrer uma relativização de representações e doutrinas implicadas na
narrativa.
No conto “Imagem” vem à tona as atribulações do narrador-personagem frente
ao espelho, numa extensão de tempo que vai desde o final da infância até certos
momentos da idade adulta. A jornada do protagonista em busca de equacionar a relação
entre a avaliação que as pessoas têm sobre ele e a procura interna sobre uma possível
identidade individualizada expõe um conflito contínuo no conto. Para isso, o espelho
serve como uma espécie de termômetro imaginário para indicar uma aquiescência ou
um desacordo frente às avaliações feitas pelas pessoas no dia a dia dessa personagem.
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Diversos acontecimentos pontuam a aflição do protagonista: os conflitos


vivenciados pelo menino no final da infância, como as brigas com os colegas de sala de
aula (e os comentários e reprimendas feitas pelas professoras); as descobertas e
indagações da época em que se torna rapaz, ilustradas na autoadmiração diante do
espelho e na atração e desilusão perante a personagem Maria Silvia; mais tarde, diante
do espelho, a procura contínua para encontrar-se é seguida por estados de debilidade,
adoecimento e inanição (nesse período a personagem escuta, do quarto, os comentários
de parentes, amigos e conhecidos feitos na sala de sua casa); quando adulto, a
subserviência e a sujeição à opinião nos momentos em que realiza visitas às pessoas
para coletar impressões acerca de si (no reflexo do espelho, várias distorções), na
deterioração das relações sociais (ao perder amizades, emprego e namorada), e, por fim,
no caricato pedido de emprego junto ao diretor de um circo.
Conforme tipologia proposta por Norman Friedman (2002), a constituição do
conto “Imagem” apresenta o uso do denominado narrador-protagonista, em que
sobreleva o ponto de vista da personagem principal; somado a disso, adota-se a
preponderância da primeira pessoa do discurso narrativa e o predomínio da forma
fundamental do sumário. Esses procedimentos podem propiciar nesse conto um efeito
simultâneo de desajustamento, alheamento e deriva da personagem principal, posto que
conduzam a deterioração do seu convívio social. Nesse caminho, apontamos para o
caráter dissentâneo da ficção de Luiz Vilela nos âmbitos intertextual e metalinguístico,
ao propiciar uma releitura de alguns aspectos recorrentes da literatura universal. Por
meio de um redirecionamento de um tema consagrado, a autoadmiração, o conto realiza
um diálogo com diversos textos e reestabelece certas relações e estruturas internas à
obra literária.
Na literatura ocidental o tema da autoadmiração notabilizou-se num dos escritos
de Ovídio, no registro “Narciso, Eco”, inserida na obra As metamorfoses (1983). Escrita
em versos hexâmetros, a obra se caracteriza pelo seu caráter cosmogônico e pelo relato
da origem de diversas lendas alomórficas. O registro “Narciso, Eco” situa-se no “Livro
III”, e dispõe o relato do infortúnio de Narciso e de Eco, duas deidades, que, fruto de
maldições divinas, seguem caminhos opostos na busca amorosa. Eco, transformando-se
em pedra e Narciso, morrendo de inanição e impotência diante da atração pungente pelo
seu próprio reflexo nas águas de um sereno lago (OVÍDIO, 1983, p. 61): “‘Que me seja
permitido olhar o que não posso tocar e alimentar a minha triste loucura’. Enquanto se
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lamenta, abre as vestes, desde o alto, e esmurra o peito nu com as mãos esculturais.
Com as pancadas, o peito se tinge de vermelho (...)”.
Na tradição literária ocidental, muitas vezes, a variante do tema da
autoadmiração realizada por meio da personagem Narciso, em As metamorfoses, de
Ovídio, teve uma recepção corroborante, como em textos de John Keats e de Federico
García Lorca. No poema “Narciso”, de Lorca (1986, p.84), desdobra-se uma reflexão
metalinguística sobre o destino da personagem mitológica (“En lo hondo hay una rosa /
y en la rosa hay otro río.”), e, mais adiante, há uma espécie de aproximação da figura
do “eu-lírico” com o mau fado de Narciso (“Cuando se perdió en el água / comprendí.
Pero no explico”). Em Keats (1967), em fragmentos da composição “I stood tip-toe
upon a litle hill”, estabelece-se a possibilidade de uma conexão entre a construção do
texto do poeta londrino e as similaridades de circunstâncias de inspiração e criação que
levaram o vate a escrever a sua história. Na perspectiva de Keats, ambas estariam
hipoteticamente envoltas num ambiente campestre e silvestre de aprazibilidade poética.
Não obstante o realce dado à estima pela personagem Narciso em diferentes
gerações literárias, em Ovídio e em Vilela o tema da autoadmiração apresenta um dos
seus núcleos no caráter aflitivo da monomania despertada. O vocábulo “Narciso” tem
uma das suas origens no termo grego nárkissos, que, segundo Karl Kérenyi (1991),
procede da palavra grega nárke (estupor, torpor, entorpecimento). Nesse caminho, os
protagonistas de “Narciso, Eco” e “Imagem” estruturam-se pela irreversibilidade da
atração exercida pela imagem refletida. Assim, paradoxalmente, esses protagonistas são
retidos por uma força vetorial externa, porém, de feição interior.
Em “Narciso, Eco”, o protagonista possui ascendência divina (filho do deus-rio
Cefiso eda ninfaLiriope); realiza atividades peculiares à nobreza de sua estirpe; não
exibe pretensões iniciais em relação ao seu autoconhecimento; é direcionado a sua
autoadmiração por meio de um castigo da deusa Némesis; e, no término, seu corpo
extinto dá lugar a uma flor, narciso. Já, em “Imagem”, o narrador-protagonista procede
do cotidiano habitual de estratos médios da sociedade brasileira da segunda metade do
século XX; porta-se de maneiras diversas quanto à atração pelo espelho; é conduzido à
autoadmiração por conta do receio das opiniões alheias; e protela por anos algum tipo
de desenlace ou resolução para, ao final, receber do diretor de um circo um choque de
realidade (VILELA, 1978, p.36): “‘E você acreditou nos outros?’, ele perguntou. ‘Em
quem mais eu iria acreditar?’, eu respondi. Ele olhou para mim e disse: ‘É, você é
realmente um palhaço...’”.Destarte, no conto “Imagem”, retoma-se o tema do exagero
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da autoadmiração, porém, por meio da predominância do viés conflituoso das relações


sociais e por intermédio da retirada de camadas enobrecedoras do protagonista.
No conto o tópico recorrente das ruínas pode ser observado por meio do
contraste entre a progressão do processo de aprimoramento social e econômico dos
estratos populacionais em questão e o dilaceramento das tentativas de ação do
protagonista e o consequente aniquilamento de suas expectativas.

3. Juízo, antilogias.

Em parte das atividades em que o ser humano permaneça um determinado tempo


e se envolva em circunstâncias intempestivas são despertadas várias arestas decorrentes
de fatores diversos. Dentre tais episódios penosos, destaca-se o papel de arbitrar
situações que se dispõem distantes a qualquer possibilidade de se adotar uma propensão
natural de atuação. Além das operações de conjecturar, avaliar, decidir, reputar e
sentenciar, o arbítrio se insere numa sucessão de estados e de comprometimentos que
vão desde a sensibilidade e reação a um conjunto de condições físicas, culturais e
econômicas até a disposição de se aceitar certos vínculos notórios ou tácitos a instâncias
inimagináveis. Diante disso, não é raro o surgimento de uma série ininterrupta de
divergências e, também, da impossibilidade de se chegar a um concerto no decorrer
desse tipo de experiência.
A suspensão do juízo é um ato muito caro à condução dos estudos exercidos
pelas linhas filosóficas de extração cética, estabelecidas, inicialmente, na Grécia por
Pirro de Elis, Enesidemo, Carnéades e Sexto Empírico (KRAUSE, 2004). Nesse veio,
excetuando as afirmações ou negações ditas apodícticas, a suspensão do juízo (epoché,
Εποχή) se caracteriza por uma espécie de adiamento da aquiescência à possibilidade de
uma determinação de verdades definitivas. Esse tipo de percepção advindo dos filósofos
céticos perfaz uma disposição análoga à progressão de determinadas visões de mundo,
reunidas em torno de uma compreensão dubitativa acerca das relações sociais e dos
meandros de atuação da psique humana. Assim, certas cosmovisões, inerentes a
algumas produções ficcionais, apresentam lances narrativos em que se acentua o caráter
dissentâneo da criação literária, expresso num pendor incrédulo quanto às boas
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intenções do ser humano, ou, ao contrário, evidenciado numa diretriz desconfiante em


relação às muitas finalidades encobertas nos diversos tipos de convívio.
No conto “Júri” é exposta a realização de um julgamento acerca de um crime de
homicídio. Na narrativa são desenvolvidas algumas especificidades formais que podem
proporcionar uma sondagem peculiar da ação diegética expressa no discurso contístico.
Quanto à indicação da pontuação para ligação entre as unidades do texto e para variação
de ritmo de leitura, são utilizados os seguintes sinais: vírgula, ponto e vírgula, travessão,
parênteses, ponto de interrogação, aspas. Desse modo, não há abertura de parágrafos e o
ponto final ocorre apenas no término do conto. Por consequência, a adoção desse
regime especial de sinais de pontuação na construção frasal do conto confere à narrativa
a exploração de um direcionamento de necessidade de expansão do fôlego, mas,
inversamente, exige uma retenção maior da atenção aos detalhes dispostos no
decorrerda leitura.
Além dessa peculiaridade formal, no texto é adotada a combinação de alguns
procedimentos: o emprego da terceira pessoa do discurso, a alternância de focalizações,
a coexistência de segmentos narrativos e descritivos, a expressão de fragmentos de
sensações e de pensamentos. Esse artifício da junção de procedimentos permite o
deslocamento de uma disposição que retira a feição ilustre de alguns membros do
tribunal, como nos trechos a seguir em que a focalização se transfere doponto de
observação do narrador para o de uma personagem:

Nesse instante em que o promotor [...] esfrega [...] o lenço branco [...] já
um poço amarrotado de outras esfregadas, pois já não é a primeira vez
nem a segunda que ele o desliza pelo rosto gotejando de suor e em
seguida pelo pescoço e nuca, nesse instante há um tossir abafado e
cansado pela sala do júri [...] o juiz imóvel e numa estranha aparência
de quem de olhos abertos estivesse porém dormindo, [...] desfere um
tapa na própria cabeça [..] seguindo com o olhar alguma impertinente
mosca [...](VILELA, 1978, p.15)

Nesse veio, a alternância de focalizações também é ocasionada tanto pela


permuta entre a figura do narrador e as personagens quanto pela movimentação visual
nos espaços internos e externos do tribunal. Esse arrojo prossegue em direção a um
entendimento mais cáustico do espetáculo que se torna a composição e a realização
daquele julgamento. Assim, quando esse movimento é somado às percepções e
avaliações de uma personagem, as quais funcionam como canais de informação sobre o
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arcabouço comportamental e psicológico dos componentes dos jurados, das autoridades


judiciárias e do público, o caráter dissentâneo da ficção pode ocorrer também por meio
do prisma cognitivo:

[...] olhando em seguida com o mesmo nojo, para a assistência, a


mesma assistência (continua pensando) que viria para um circo, uma
briga de galos, um jogo de futebol, um filme de bangue-bangue [...] e só
seria mais emocionante se o réu ou alguém da assistência desmaiasse
[...] ou então, melhor ainda, alguém desse um tiro em alguém [...] seria
um espetáculo completo e com a vantagem de ser grátis, todos sairiam
correndo de medo e susto, o senhor meritíssimo perderia aquela cara de
juiz de Inquisição e sujaria a meritíssima cueca, e os galinhos de briga
da defesa e da acusação se arrepiariam, bem como a galinha choca do
promotor [...] (VILELA, 1978, p.17)

Nesse fragmento uma personagem membro do júri suspende o fluxo do arbítrio e


o inverte para realizar uma consideração corrosiva a propósito da circunstância risível
em que se desenvolve o julgamento. Não obstante a exposição do ponto de observação
dessa personagem e seu entendimento acerca daquela situação, a condução do discurso
narrativo retorna para o narrador, e deste para a personagem do promotor (VILELA,
1978, p.18): “[...] relanceando os olhos pela assistência, que num segundo cessa os
ruídos e o zunzum que ia nascendo das conversas à meia-voz, relanceando os olhos
agora com as duas mãos pousadas na tribuna, recomeça a falar”. Embora, em
escombros, permaneça a sensação desenganadora causada pela oposição entre a
possibilidade de um vislumbre crítico e a força gravitacional de uma perpetuação de um
modo de vida de hipocrisia e simulacro, o percurso narrativo se encerra voltando à
conformação exibida no início do conto. Pois, até mesmo a possibilidade da existência
consoladora de um lenitivo mordaz frente ao espetáculo escarnecedor se desvanece.

4. Considerações finais:

Neste trabalho buscou-se apontar uma proposta de entendimento acerca de uma


das principais potencialidades da criação literária, o caráter dissentâneo da ficção. Para
isso, este estudo sinalizou algumas especificidades do livro Tremor de terra (1967), de
Luiz Vilela, e propiciou o exame de alguns contos. Nesse caminho, a detecção da
energia potencial da dissensão distinguiu uma disposição transformadora dos âmbitos
sociais, culturais e da tradição literária. Não obstante, atravessado pelos liames dos
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parâmetros estéticos, o caráter dissentâneo, por sua vez, apresenta o risco de ser
conduzido pelos seus avessos, o de escrita polêmica ou o de maneirismo literário. Assim
que, para evitar a generalização e o fascínio instantâneo, a dissensão ficcional necessita
manter cautelosa a sua prática reflexiva e o seu pendor para redirecionar os caminhos da
narrativa.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio P. Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1984.

__________________ Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e


história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. São Paulo: Positivo, 2004.

FRIEDMAN, Norman.O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito


crítico. Revista USP, São Paulo, nº 53, p. 166-182, 2002.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979.

KOHTE, Flávio R. “A obra literária como ruína alegórica”. Revista tempo brasileiro,
45/46. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976. p.28-32.

KEATS, John. Complete Poetry and Selected Prose of Keats.Ed. Harold Edgar Briggs.
New York:The Modern Library, 1967.

KERÉNYI, Karl.Los dioses de los griegos.Trad. Jaime López-Sanz. Caracas,


Venezuela: Monte Ávila Editores, 1991.

KRAUSE, Gustavo Bernardo. A ficção cética. São Paulo: Annablume, 2004

LORCA, Federico Garcia. Canciones. Madrid: Espasa-Calpe, 1986.

OVIDIO. As metamorfoses. Trad. David Gomes Jardim Júnior. São Paulo: Ediouro,
1983.

VILELA, Luiz. Tremor de terra. São Paulo: Ática, 1978.

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