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Conversas com Cézanne

Michael Doran

O Louvre

“O ideal da felicidade terrestre?... Ter uma bela fórmula.”58

Saíamos da Galeria das Máquinas, do Salão. Tínhamos ido rever o Balzac de


Rodin.59 Cézanne comprara uma fotografia para me dar de presente... Eram onze
horas, almoçamos rapidamente e fomos ao Louvre, pela imperial de Passy-Hôtel-
de-Ville, ao longo dos cais.
Era um dia claro de primavera cerebral, uma tarde parisiense. Verdes suaves
despontavam nas árvores. O Sena se ensolarava. Toda a velha história, para além
das pontes, reluzia em direção à Cité. As moças flanavam. Nós as víamos, nos
bancos das Tulherias, terminar suas batatas fritas. Crianças corriam ao lado dos
carros para oferecer aos jovens casais braçadas de violetas. Os passantes
apressavam-se em direção ao rumor dos bulevares. Mas, ao longo das margens,
tudo era delicado, primaveril e calmo. O Instituto, o Louvre, Notre-Dame envolviam-
se de uma glória sutil. Depois de um bom café, Cézanne, expansivo, sorria.
CÉZANNE — Hein?... Nossa velha França se aquece ao sol e põe a cara na
janela. Veja... A tradição! Sou mais tradicional do que se pensa. É como Rodin. No
fundo, não entendemos em absoluto o que o caracteriza. É um homem da Idade
Média que faz peças admiráveis, mas que não vê o conjunto. Seria preciso
enquadrá-lo, como as velhas imagens de santos, no pórtico de uma catedral. Rodin
é um prodigioso entalhador de pedras, com todos os tremeliques modernos, que
terá êxito em todas as estátuas que quiserem, mas que não tem uma ideia. Falta-lhe
um culto, um sistema, uma fé. Sua porta do inferno, seu monumento ao trabalho,
foram-lhe soprados por alguém, e o senhor verá que ele jamais os construirá.
Mirbeau, acredito, está por trás de seu Balzac. Por exemplo, ele o capturou,
escorou, com uma inteligência prodigiosa, com seus olhos que absorvem o mundo e
se fecham apaixonadamente sobre ele, olhos que parecem ter enegrecido em todo
o café de que se fartava continuamente Balzac. E as mãos, que sob a capa
dominam toda a vida desse casto. É espantoso!... E esse bloco, o senhor sabe, foi
feito para ser visto à noite, iluminado por baixo, violentamente, na saída do
Français* ou da Opéra, nessa febre noturna de Paris em que imaginamos o
romancista e seus romances, hein!.... Escute, eu não queria diminuir Rodin dizendo
o disse antes. Gosto dele, admiro-o muito, mas ele pertence a seu tempo, como
todos nós. Nós fazemos a peça. Não sabemos mais compor.60
EU — Mas o senhor não acha que em um retrato como o da mãe de
Rembrandt, em uma natureza-morta como a Arraia de Chardin, em suas maçãs, se
me permite dizê-lo, existe frequentemente tanta arte e tanto pensamento quanto em
uma cena histórica, uma alegoria pagã ou católica?
CÉZANNE — Depende, depende... O senhor entende, se compararmos um
Chardin a um Lesueur, um retrato de Velázquez ou de Rembrandt a um festim de
Jordaens, minhas maçãs a uma paisagem de Troyon, é incontestável. Mas espere.
Prefiro chegar ao Louvre antes de lhe responder. Só se fala bem de pintura diante
da pintura. Nada é mais perigoso para um pintor, o senhor sabe, do que se entregar
à literatura. Se ele cair nessa esparrela, está lascado. Eu bem sei. O mal que
Proudhon fez a Courbet, Zola teria feito a mim. Baudelaire foi o único a falar
apropriadamente de Delacroix e de Constantin Guys.61 Gosto muito do fato de que
Flaubert, o senhor sabe, em suas cartas, proíbe-se rigorosamente de falar de uma
arte cuja técnica ignora. Ele é assim... Não é que eu deseje que um pintor seja
ignorante. Ao contrário. Nas grandes épocas eles sabiam tudo. Os artistas, nos
velhos tempos, eram os mestres do ensino do povo. Olhe, o senhor está vendo
Notre-Dame lá adiante. A criação e a história do mundo, os dogmas, as virtudes, a
vida dos santos, as artes e os ofícios, tudo o que se sabia então era ensinado em
seu pórtico e seus vitrais. Como aliás em todas as catedrais da França. A Idade
Média ensinava a sua fé pelos olhos, como a mãe de Villon…
— “O paraíso onde estão harpas e alaúdes...”
— Era a verdadeira ciência, e é toda a arte religiosa. Aquilo que o abade
Tardif, seu amigo, diz que encontramos em São Tomás, o povo o buscava nas
estátuas do portal de sua igreja. Essa ordem, essa hierarquia, essa filosofia,
digamos, valia bem a Suma, e para nós isso é mais verdadeiro, porque é mais belo
a compreendemos sem esforços. Todo esse simbolismo de que se fala, pois
pretende-se que até mesmo a cabala tenha seu lugar entre as rosáceas, todo o
misticismo intelectual adormeceu sob a ferrugem gótica das pedras: não sei nada a
respeito disso, nem quero saber. Mas a vida continua ali… O que o senhor queria?
Quando as formas da Renascença sobreviveram com o paganismo dos tempos
inflamados,62 o povo tentou desviar os olhos do realismo descarnado de suas
capelas, mas continuou a lembrar-se dele. Isso trouxe um amargor tônico a sua
vida. A retórica das grandes máquinas jamais poderá se instaurar inteiramente. Não
mais que eu, ele, o povo, não gosta da pintura oratória. Claro que temos a galeria
das batalhas em Versalhes, mas não é pintura o que ele vê ali. Ele lê uma espécie
de jornal mural, imagens de Épinal, como no Panteão a Sainte Geneviève.63 Mas
no castelo, no parque em Versalhes, ele jamais se comove como numa igreja ou
numa arena. Ele tem o senso de grandeza cavilhado no corpo. Em nossa terra, na
Provença, isso vem dos Romanos; aqui, no Norte, das catedrais... É espantoso, não
obstante. Escute só, pronto, eu sou clássico; digo a mim mesmo, eu gostaria de ser
clássico, mas isso me entedia. Versalhes me aborrece, o pátio quadrado me
aborrece.64 Só existe a Place de la Concorde, aquilo é belo. A vida!... A vida!...
Entretanto, veja como isso tudo é complicado, a vida, o realismo, estão bem mais
nos séculos XV e XVI do que nos alongamentos dos primitivos. Não gosto dos
primitivos. Conheço mal Giotto. Precisaria vê-lo. Só gosto de Rubens, Poussin e os
venezianos... É mais fácil escute-me bem, significar Deus por uma cruz do que pela
expressão de um rosto.
Tínhamos chegado; descemos do bonde.
EU — Se o senhor visse os Duccio de Siena... Há de tudo naquelas
cenazinhas. Algumas são dramáticas como um Tintoretto, com verdes, vermelhos
lívidos, as outras, como Jesus diante de Pilatos, têm o trágico simples, são
compostas com a pureza de um ato de Racine; e as mulheres na tumba, diante do
grande Anjo, nenhum baixo-relevo antigo tem a mesma nobreza e o mesmo
desespero triunfante. É belo como a Vitória amarrando sua sandália. Se o senhor
visse!...
CÉZANNE — Agora estou velho demais para correr a Itália. E depois,
parece-me que há tudo no Louvre, que podemos amar e compreender tudo através
dele.
EU — Tudo... Salvo talvez os afrescos, o movimento franciscano da pintura
da Úmbria, e aquilo que dele nasceu, Masaccio, Gozzoli... Mas o que a Itália e essa
arte poderiam acrescentar-lhe? Seria possível dizer que o senhor saiu dela e que
meditou a respeito a vida inteira.65
CÉZANNE — Eu talvez o surpreenda. Não entro quase nunca na salinha dos
primitivos. Não é pintura para mim. Estou errado, talvez esteja errado, admito; mas
o que o senhor esperava, quando fiquei uma hora em contemplação diante do
Concerto campestre ou do Júpiter e Antíope de Ticiano , quando tenho nos olhos
toda a multidão movimentada das Bodas de Canaã, o que o senhor quer que eu
pense das imperícias de Cimabue, das ingenuidades do Angelico e mesmo das
perspectivas de Uccello... Não há carne nessas ideias. Deixo isso para Puvis.
Aprecio os músculos, os belos tons, o sangue. Sou como Taine, e além disso sou
Sou um sensual.
Subíamos a grande escadaria Daru.
– Veja. Olhe aquilo... a Vitória de Samotrácia. É uma ideia é todo um povo,
um momento heroico na vida de um povo, mas os tecidos colam, as asas batem, os
seios se entumescem. Não preciso ver a cabeça para imaginar o olhar, porque todo
o sangue que se agita, circula, canta nas pernas, nas ancas, em todo o corpo,
passou em torrente pelo cérebro, subiu ao coração. Ele está em movimento, ele é o
movimento da mulher inteira, da estátua inteira, da Grécia inteira. Quando a cabeça
se desprendeu, vamos dizer, o mármore sangrou... Enquanto lá em cima, nós
podemos, com o sabre do carrasco, cortar o pescoço de todos os martirezinhos. Um
pouco de vermelhão, gotas de sangue, tudo isso... eles já se dissiparam em Deus,
exangues. Não se pintam almas. E olhe, as asas da Vitória, nós não as vemos, eu
não as vejo mais. Não pensamos mais nelas, de tanto que parecem naturais. O
corpo não precisa delas para alçar voo ao triunfar.66 Ele tem seu elã... Ao passo
que as auréolas, em torno do Cristo, das Virgens e dos Santos, são a única coisa
que percebemos. Elas se impõem. Elas me incomodam. O que o senhor queria?
Não se pintam almas. Pintam-se corpos; e quando os corpos são bem pintados, ora,
a alma, se eles tinham uma, a alma por todos os lados irradia e transparece.
Entrávamos no pequeno salão da Fonte.
— Ingres também, ora, também não tem sangue. Ele desenha. Os primitivos
desenhavam. Eles coloriam, eles faziam, em tamanho grande, colorações de missal.
A pintura, aquilo que se chama pintura, só nasceu com os venezianos. Em Florença,
Taine conta que todos os pintores haviam sido primeiro ourives. Eles desenhavam.
Como Ingres... Oh! É muito bonito, Ingres, Rafael e toda essa gente. Não sou
nenhum bronco. Tenho o prazer da linha, quando quero. Mas aqui há um escolho.
Holbein, Clouet ou Ingres não têm mais que a linha. Pois bem, isso não basta.67 É
muito bonito, mas não basta. Observe esta Fonte... É pura, é comovente, mas é
platônica. E uma imagem, ela não gira no ar. O rochedo de papelão não permuta
nada de sua umidade pedregosa com o mármore desta carne molhada... ou que
deveria ser. Onde existe interpenetração ambiente? E se é a fonte, ela deveria sair
da água do rochedo, das folhas; ela está colada neles. À força de querer pintar a
virgem ideal, ele deixou de pintar um corpo. E não que isso lhe fosse impossível.
Lembre-se de seus retratos e da Idade de Ouro, que eu amo. É por espírito de
sistema. Sistema e espírito falsos. David matou a pintura.68 Eles introduziram o
banal. Quiseram pintar o pé ideal, a mão ideal, o rosto, o ventre perfeitos, o ser
supremo. Baniram o caráter. O que faz o grande pintor é o caráter que ele empresta
a tudo o que toca, o ressalto, o movimento, a paixão, pois existem serenidades
apaixonadas. Eles têm medo dela, ou antes nem chegaram a pensar nisso. Por
reação, talvez, contra toda a paixão, as tempestades, a brutalidade social de sua
época.
EU — Mas David estava mergulhado nelas até o pescoço
CÉZANNE — Sim, mas não conheço nada de mais frio que seu Marat! Que
herói estreito! Um homem que fora seu amigo, que acabara de ser assassinado, que
ele deveria glorificar aos olhos de Paris, da França inteira, de toda a posteridade.
Ele não se cansou de remendá-lo com seu lençol e de embebê-lo em sua banheira?
Ele pensava no que diriam sobre o pintor e não no que pensariam de Marat. Mau
pintor. E teve o cadáver diante dos olhos... Ainda assim, gosto de alguns pedaços
da Coroação (de Napoleão), o coroinha, a cabeça entre os candelabros, diríamos
um Renoir... Ele ficava mais à vontade entre esses arrivistas do que com o sagrado
coração do outro arrastado pelas ruas de Paris. Por exemplo, uma coisa bem
imunda são suas caricaturas. Elas me revelaram, num instante, toda a mecânica
rangente desse espírito. Mas isto aqui é pintura.
Entrávamos no salão quadrado. Ele se plantou diante das Bodas de Canaã.
O chapéu-coco na nuca, o sobretudo, desleixadamente sob o braço, se arrastava no
chão. Parecia estar em êxtase.
— Isso é pintura. Os pormenores, o conjunto, os volumes, os valores, a
composição, a palpitação, tudo está presente... Escute só, é espantoso!... O que
nós somos?... Feche os olhos, espere, não pense em mais nada. Abra-os... Não é
mesmo?... Não percebemos mais que uma grande ondulação colorida, hein? Uma
irisação, muitas cores, uma profusão de cores. É isso que deve nos dar de imediato
o quadro, um calor harmonioso, um abismo em que o olho afunda, uma surda
germinação. Um estado de graça colorida. Todos esses tons são infundidos em
nosso sangue, não é mesmo? Nos sentimos revigorados. Nascemos para o mundo
verdadeiro. Tornamo-nos nós mesmos, tornamo-nos pintura... Para amar um
quadro, é preciso antes tê-lo bebido desta forma, a longos goles. Perder a
consciência. Descer com o pintor às raízes sombrias, emaranhadas, das coisas,
subir de lá com as cores, desabrochar à luz junto com elas. Saber ver. Sentir...
sobretudo diante de uma grande máquina como as que construía Veronese. Esse
sim era feliz. E todos que o compreendem, ele os torna felizes. Ele é um fonômeno
único. Pintava como nós olhamos. Sem mais esforços. Dançando. Essas torrentes
de nuances lhe escorriam do cérebro, como o que estou dizendo me escorre da
boca. Ele falava em cores. É espantoso, não conheço quase nada sobre sua vida!
Parece-me tê-lo sempre conhecido. Eu o vejo caminhar, ir, voltar, amar em Veneza,
diante de suas telas, com seus amigos. Um belo sorriso. Um olhar cálido. Um corpo
franco. As coisas, os seres entravam-lhe na alma com o sol, sem nada que os
separasse da luz, sem desenho, sem abstrações, tudo em cores. De lá, eles saíam
um dia, os mesmos, mas, não se sabe por quê, revestidos de uma doce glória.
Radiantes, como se houvessem respirado uma música misteriosa. Aquela que, veja,
se irradia deste grupo ao centro, que as mulheres e os cães escutam, que os
homens sustentam com suas mãos fortes. A plenitude do pensamento no prazer e
do prazer na saúde, escute só, acredito que aconteça com Veronese, a plenitude da
ideia nas cores. Ele cobria suas telas com uma vasta grisalha, sim, como todos
faziam naquela época, e era sua primeira possessão, como um pedaço da terra
antes que o dia, o espírito, despontem…
EU — Como o senhor, quando medita sobre a geologia de suas paisagens,
quando as esboça em si…
CÉZANNE — Oh! Eu, eu... Diante disto, fique sabendo, eu sou uma
criancinha... O que eu vejo, o senhor entende, é este ofício formidável, e tão natural,
tão desenvolto para eles. Eles tinham isso na mão e nos olhos, de ateliê em ateliê.
A base, as bases. É o que eu dizia. Ele preparava, com uma vasta grisalha...69 A
ideia descarnada, anatômica, esquelética de seu universo, o delicado vigamento
que o amalgamava e que ele revestiria de nuances, com suas cores e esmaltes,
amontoando as sombras. Um grande mundo pálido, esboçado, ainda nos limbos.
Parece-me vê-lo, agora, entre o tecido da tela e o calor prismático do sol... Hoje em
dia já saímos empastando, iniciamos grosseiramente como um pedreiro, e
acreditamos ser muito bons, muito sinceros... Vá se danar. Perdemos essa ciência
das preparações, esse vigor fluido que dão as bases. Modelar, não, modular. É
preciso modular...70 Hoje em dia! Voltamos atrás, raspamos, raspamos de novo,
espessamos. É um almofariz. Ou ainda, os mais sumários, os japoneses, o senhor
sabe, eles limitam brutalmente seus homenzinhos, seus objetos, com um traço
bruto, esquemático, calcado, e com tons uniformes os preenchem até as bordas. É
chamativo como um cartaz, pintado como estêncil, sem nuance.71 Nada vive. Ao
passo que o senhor vê este vestido, esta mulher, esta criatura, diante desta toalha,
onde em seu sorriso começa a sombra, onde a luz acaricia, bebe, embebe esta
sombra, não sabemos. Todos os tons se penetram, todos os volumes giram e se
encaixam. Há uma continuidade... Não nego que às vezes, na natureza, existam
efeitos bruscos de sombra e de luz, em faixas violentas, mas isso não é
interessante. Principalmente se isso se torna um procedimento. O magnífico está
em banhar toda uma composição infinita como esta aqui, imensa, com a mesma
claridade atenuada e quente, e em dar ao olho a impressão viva de que todos estes
peitos respiram verdadeiramente, como o senhor e eu, o ar dourado que os inunda.
No fundo, tenho certeza, são as bases, a alma secreta das bases, que, mantendo o
todo coeso, dão essa força e essa leveza ao conjunto. É preciso começar neutro.72
Depois, ele podia se entregar totalmente, compreende?
Caramba! O chique perfeito, o chique apurado, o audacioso de todas as ramagens,
dos estofos que se respondem, dos arabescos que se entrelaçam, dos gestos que
se continuam. Isso basta? Não, será que isso basta? Podemos entrar em mais
detalhes Todo o resto do quadro sempre nos seguirá, sempre estará presente.
Sentiremos seu rumor rondar a nossa cabeça, o pormenor que estivermos
estudando. Não podemos arrancar nada do conjunto… não eram pintores de
pormenores, estes aqui, como nós... O senhor sempre me pergunta o que nos
impede, afinal, de gostar até mesmo de um Courbet ou de um Manet como de um
Rubens ou um Rembrandt, o que há de mais na velha pintura... é preciso dissipar
essas dúvidas, e encontrar uma resposta hoje. Evidentemente, Um funeral em
Ornans é uma senhora página, assim como a Entrada dos cruzados e o Teto de
Apolo,* mas diante disso ou diante do Paraíso de Tintoretto, há algo de manquitola
nos modernos. O quê?... Me diga, o quê?... Vamos ver. Vamos ver... Olhe só,
comece naquela coluna, ela é de mármore, não é, Deus do céu! E lentamente, com
os olhos, vá dando a volta na mesa... Não é belo? Não é vivo?... E ao mesmo
tempo, não é transfigurado, triunfante, miraculoso, em um mundo à parte e todavia
inteiramente real? O milagre está aí, a água transformada em vinho, o mundo
transformado em pintura. Nadamos na verdade da pintura.73 Nos embriagamos.
Ficamos felizes. Para mim, é como um vento de cores que me carrega, uma música
que recebo no rosto, todo meu ofício que me corre no sangue… Ah! Eles tinham um
ofício e tanto, esses sujeitos. Nós não somos nada, escute bem, umas bestas
velhas, nada. Não somos mesmo mais capazes de compreender... E dizer que eu
queria queimar essas coisas, noutros tempos. Por mania de originalidade, de
inventar... Quando não sabemos, acreditamos que são os que sabem que nos
obstruem... enquanto, ao contrário, se os frequentamos, em vez de nos atrapalhar,
eles nos tomam pela mão e nos fazem gentilmente, a seu lado, balbuciar nossa
pequena história. Ah! Fazer estudos a partir dos grandes mestres decorativos
Veronese e Rubens, mas como os faríamos diante da natureza...74 A pintura, o
senhor sabe, perdeu-se quando quis ser comportada, muito acabadinha, com David.
É o meu grande horror. Ele talvez seja o último a ter conhecido seu ofício, mas o
que fez dele, bom Deus? Os botões dos calções na sua Distribuição das águias,
quando, com grande pompa, ele deveria ter nos dado, como Ticiano, a psicologia de
todos aqueles palafreneiros e todos os ordenanças em torno de seu crápula
coroado. Imundo jacobino, imundo clássico... O senhor sabe, nas Origines,* o que
diz Taine sobre o espírito clássico! Ah! David é mesmo o terrível exemplo desse
espírito. Esse virtuoso!... Ele conseguiu castrar, em sua arte, até mesmo o libertino
do Ingres, que entretanto adorava a mulher... É preciso aprender nosso ofício.
Porém, temos de aprendê-lo aqui, sozinhos, na frequentação dos mestres. Não falo
das receitas, do aprendizado infelizmente perdido, de tudo o que é material e que
nada tem a ver aqui, a boa camaradagem morta por esse revolucionário e que
ajudava a ganhar tanto tempo. Isso, os bons ateliês ofereciam. É preciso voltar a
fazê-lo... Mas estou falando dos mestres. Qualquer que seja aquele que você
prefere, ele não deve ser mais do que orientação. Sem isso, você não seria mais
que um imitador.
Com um sentimento da natureza, qualquer que seja ele, e alguns dons afortunados,
você deve conseguir se distinguir; o método de um outro não devem fazê-lo mudar
sua maneira de sentir. Mesmo que você sinta momentaneamente a influência de um
outros mais antigo, acredite que, a partir do momento em que você sente, sua
própria emoção acabará sempre por emergir e conquistar seu lugar ao sol, tomando
a dianteira. Confiança. É um bom método de construção que é preciso lograr. O
desenho não é mais do que a configuração daquilo que você vê. Michelangelo é um
construtor e Rafael um artista que, por maior que seja, é sempre refreado pelo
modelo. Quando deseja refletir fielmente, ele se coloca abaixo de seu grande
rival.75 É este que é preciso ser, à sua maneira, e é dele que nos afastam os
professores. Nada é pior que o arbítrio dos professores que nos enfiam à força na
cachola sua ignorância, sua própria visão. Ah, é preciso escolher muito bem seus
mestres, ou antes não escolhê-los, tê-los todos, compará-los! Como o homem de
um só livro, eu temeria o aluno de um só pintor. Jean-Dominique é hábil, muito hábil!
76 Pois bem! Ele é perigosíssimo. Veja Flandrin, veja todos eles, até Degas…
EU — Degas?
CÉZANNE — Degas não é pintor o bastante, ele não tem muito disso!...77
Com um parco temperamento é possível ser muito pintor. Basta ter um sentido de
arte, e, sem dúvida, esse sentido e o horror pelo burguês. Eis por que os institutos,
as pensões, as honras só podem ser feitos para os cretinos, os farsantes e os
galhofeiros.78 Mas não é dessa gente que eu falo. Eles que vão à Escola, que
tenham professores aos borbotões. Não me importo. que deploro é que todos esses
jovens em que o senhor acredita, de que me fala, não percorrem a Itália, não
passam seus dias aqui ainda que depois se lancem em plena natureza. Tudo é,
sobretudo em arte, teoria desenvolvida e aplicada ao contato da natureza. 79 Não
gostaria que lhes acontecesse o que aconteceu a mim. Eu sei, eu sei, se os salões
oficiais continuam a ser tão inferiores, a razão é clara, eles só lançam mão de
procedimentos mais ou menos abrangentes. A sensação está na base de tudo, para
um pintor. Vou repeti-lo sem cessar. Não são os procedimentos que eu preconizo.
Mais vale insuflar emoção pessoal, observação e caráter.81 Mas eis o busílis! As
teorias são sempre fáceis. A demonstração daquilo que pensamos é que apresenta
sérios obstáculos.81 Aqui, no fundo, acredito que o pintor aprenda a pensar. Na
natureza, ele aprende a ver. É grotesco imaginar que crescemos como cogumelos
quando temos todas as gerações por trás de nós. Por que não aproveitar todo esse
trabalho, desprezar esta contribuição formidável? Sim, o Louvre é o livro em que
aprendemos a ler. Não devemos, entretanto, nos contentar em conservar as belas
fórmulas de nossos ilustres predecessores. Vimos um dicionário, como dizia
Delacroix, no qual encontraremos todas as nossas palavras. Saiamos. Estudemos a
bela natureza, empenhemo-nos em resgatar seu espírito, busquemos nos expressar
segundo nosso temperamento pessoal. O tempo e a reflexão, aliás, modificam
pouco a pouco a visão, e, enfim, a compreensão nos vem.82 Nós seremos, se Deus
quiser, seus amigos serão capazes de pôr em pé uma máquina como esta aqui... e
a este arco-íris contrapor a harmonia prateada daquela lá.
Diante das Bodas de Canaã, ele me mostrava o Jesus em casa do fariseu.
- Esta, na verdade, talvez seja ainda mais espantosa... esta gama de
prateados... Todo o prisma que se funde neste branco... e o que eu gosto, o senhor
sabe, em todos esses quadros de Veronese, é que não é preciso tagarelar a
respeito. Gostamos deles, se gostamos de pintura. Não gostamos se procuramos a
literatura ao lado, se nos empolgamos com a historinha, o tema... Um quadro não
representa nada, não tem de representar nada de início, além das cores…83 Eu
detesto isso, todas essas histórias, essa essa psicologia, essa “péladaneria” em
torno. É evidente, tudo está na tela, os pintores não são imbecis, mas é preciso vê-
lo com os olhos, estou deixando bem claro. O pintor não quis outra coisa. Sua
psicologia é o encontro de seus dois tons. Sua emoção está aqui. Essa é a história,
a verdade, a profundidade dele. Porque ele é pintor, puxa vida! E não poeta, nem
filósofo. Michelangelo não punha seus sonetos na Sistina nem Giotto suas canzoni
na Vida de São Francisco. Dá para ver daqui a cara dos monges. E quando
Delacroix quis à força enfiar seu Shakespeare nas telas, ele estava errado e
quebrou a cara. E é por isso que eu opus, na vinda, toda a arte, por mais comovente
que ela seja, da Idade Média, à minha arte, à arte da Renascença. O senhor
entende, essa espécie de simbolismo litúrgico da Idade Média é totalmente abstrato.
É preciso pensar naquilo. O simbolismo pagão da Renascença é todo natural. O
primeiro desvia a natureza de seu sentido para significar sabe-se lá qual verdade
teológica, o outro, pode-se bem sentir, traz a abstração de volta à realidade, e a
realidade sempre é natural, tem uma significação sensorial, universal, ouso dizer...
Adoro o fato de que a maçã, simbólica nas mãos da Virgem dos primitivos, se torna
um brinquedo para o menino na Virgem da Renascença. O senhor, que escreveu
Dionysos, deve se lembrar daquilo que conta Jacques de Voragine (Jacopo de
Varazze) — de que na noite do nascimento do Salvador as vinhas floriram em toda
a Palestina. Ah, isso já é a Renascença! Nós, pintores, devemos antes pintar a
floração dessas vinhas que os turbilhões de anjos que trombeteavam Messias.
Pintemos somente aquilo que vimos, ou o que poderíamos ver... Como Giorgione,
por exemplo…
Estávamos diante do Concerto campestre.
— Embelezemos, enobreçamos com um grande sonho carnal as nossas
imaginações... mas banhemo-las na natureza. Não retiremos a natureza delas.
Paciência, se não pudermos. O senhor entende, teria sido preciso que, no Almoço
na relva, Manet acrescentasse, sei lá eu, uma emoção dessa nobreza, esse não sei
quê que, aqui, transporta ao paraíso todos os nossos sentidos. Observe a cabeleira
de ouro da mulher, as costas da outra... Elas são vivas e elas são divinas. Toda a
paisagem em seu rubor é como uma écloga sobrenatural, um momento equilibrado
do universo em sua eternidade percebida, em sua alegria mais humana. E nós
participamos dela, não desprezamos nada de sua vida. É como ali, siga-me, vou lhe
mostrar a Cozinha dos anjos... ali há uma natureza-morta prodigiosa.
Chegamos diante do quadro.
— Murillo teve de pintar anjos, mas que efebos, veja como os pés vigorosos
se apoiam sobre a laje. De fato, estes belos legumes, estas cenouras e repolhos
são dignos de descascar, de mirar-se nestes caldeirões... O quadro fora-lhe
encomendado, não é mesmo?... Ele se soltou, desta vez. Ele viu a cena... Viu seres
radiantes entrarem nesta cozinha de convento, jovens carreteiros celestes, a beleza
da juventude, a saúde resplandecente, entre todos estes místicos exauridos, estes
atormentados. Veja como ele opõe a magreza amarelenta, o êxtase histérico do
santo em oração aos gestos calmos, à certeza radiante destes belos trabalhadores.
E o monte de legumes! Podemos passar dos nabos e pratos às asas sem mudar de
ar. Tudo é real… E em frente, este esboço do Paraíso…
Ele me arrasta para lá.
— Eu não vi o grande Paraíso de Veneza. Vi muito pouco de Tintoretto mas,
como El Greco, inclusive mais poderosamente por ser mais são —, ele me atrai.
Esse El Greco, sempre me falam dele, e não o conheço.84 Gostaria de vê-lo... Sim.
Tintoretto, Rubens, eis o pintor. Como Beethoven é o músico, como Platão é o
filósofo.
EU — O senhor sabe o que disse Ruskin, que, do ponto de vista da pintura, o
Adão e Eva desse pintor é a primeira obra do mundo?
CÉZANNE — Só a vi em fotografia... Consultei tudo o que pude encontrar
sobre sua obra.85 Ela é gigantesca. Tudo está ali, da natureza-morta a Deus. É o
arco imenso. Todas as formas de existência, e com um patético, uma paixão, uma
invenção inacreditáveis. Se eu tivesse ido a Veneza, teria sido por causa dele. Ao
que parece, só é possível conhecê-lo ali... Lembro-me, em uma Tentação de Cristo,
que está em San Rocco, acredito, de um anjo com seios túrgidos, braceletes, um
demônio pederasta que, com uma concupiscência lésbica, isso mesmo, oferece
pedras a Jesus; nunca se pintou nada mais perverso. Eu não sei, mas em sua casa,
quando o senhor me passou a foto, ela me produziu o efeito de um Verlaine
gigantesco, de um Aretino que tivesse tido o gênio de Rabelais. Casto e sensual,
brutal e cerebral, tão voluntário quanto inspirado, tirante o sentimentalismo, acredito
que esse Tintoretto tenha conhecido tudo o que constitui a alegria e o tormento dos
homens... Escute só, não consigo falar disso sem estremecer... Seus retratos,
terríveis, tornaram-no familiar a mim... Aquele que Manet copiou nos Uffizi e que
está no museu de Dijon... 86
EU — Diríamos um Cézanne.
CÉZANNE — Ah! Bem que eu gostaria... O senhor sabe, parece-me tê-lo
conhecido. Eu o vejo, alquebrado de trabalho, extenuado de cores, naquele cômodo
forrado em púrpura de seu palacete, como eu no meu reduto do Jas de Bouffan,
mas ele, sempre, mesmo em pleno dia, iluminado por uma lâmpada fumarenta,
espécie de teatro de marionetes em que preparava suas grandes composições...
Hein... aquele teatrinho de fantoches épico!... Quando se afastava de seus
cavaletes, ao que parece, ele ia até lá, caía esgotado, sempre ferino, era um
ranzinza, devorado por desejos sacrílegos... sim, sim... existe um drama terrível em
sua vida... Não ouso dizê-lo... Suando em grossas gotas, ele se deixava adormecer
por sua filha, fazia com que ela tocasse violoncelo para ele durante horas. Sozinho
com ela, entre todos esses reflexos rubros... Ele se enterrava nesse mundo
inflamado, no qual desvanece a fumaça do nosso... Eu o vejo... Eu o vejo... A luz se
despojava do mal... E no final da vida, ele, cuja paleta rivalizava com o arco-íris,
dizia não apreciar nada além do preto e do branco... Sua filha estava morta... O
preto e o branco!... Porque as cores são más, torturam, o senhor entende...
Conheço essa nostalgia... Será que sabemos? Buscamos uma paz definitiva... Este
paraíso. Veja, para pintar esta rosa de alegria, turbilhonante, é preciso ter sofrido
muito... Sofrido muito, aposto o que o senhor quiser. Estamos no outro polo, aqui.
Ali, o belo príncipe Veronese. Aqui, o grilheta Tintoretto. Esta espécie de miserável
que amou tudo, mas cujos desejos eram consumidos por um fogo, uma febre, assim
que nasciam. Observe seu céu... Seus bons deuses giram, giram. O paraíso deles
não é calmo. É uma tempestade, esse repouso. Eles continuam o impulso que,
como a ele, os devorou, por toda a sua vida. Regozijam-se nele agora depois de
tanto ter sofrido. Eu adoro isso...
Ele se aproxima da tela.
— E veja o pé branco, aqui à esquerda. Ainda as bases... ele preparava as
carnações em branco. Daí, com um esmalte vermelho, bum, veja aqui do lado, ele
lhes dava vida. Branco e preto, só quero pintar em branco e preto, gritava ele no fim.
Como faria? Como se absteria de seu suplício? Podemos esperar tudo de um
indivíduo assim. Na juventude, ele tivera o topete de afirmar: a cor do Ticiano no
desenho de Michelangelo. E ele conseguiu. Ticiano o enxotara…
EU — Ele é maior que Ticiano.
CÉZANNE — Sim, aprovo sua admiração pelo mais valente dos venezianos.
Celebremos Tintoretto. Traga seus amigos para esta pintura. A necessidade de
encontrar um ponto de apoio moral, intelectual, em obras que com certeza não
serão superadas, vai deixá-los num perpétuo estado de alerta, numa busca
incessante pelos meios de interpretação. Diga isso a eles. Esses meios de
interpretação os conduzirão certamente a sentir na natureza seus meios de
expressão e, no dia em que eles os obtiverem, podem estar convencidos de que
encontrarão sem esforço e na natureza os meios empregados pelos quatro ou cinco
grandes de Veneza...87
Dá alguns passos, sem nada ver.
— Ah! Ter alunos! Transmitir toda a minha experiência a alguém. Eu não sou
nada; nada fiz, mas aprendi. Transmitir isso a alguém. Reatar com todos esses
grandes sujeitos sem passar pelos dois últimos séculos. Em meio aos solavancos
modernos, o ponto fixo reencontrado... Em vão. Em vão, talvez.
Cerra os punhos. Lança olhares furiosos a seu redor.
— E todos esses cretinos!... Uma tradição. Uma tradição poderia recomeçar
comigo, que não sou nada. Trabalhar com alunos, mas alunos que nós ensinamos,
entenda bem, que não pretendem nos ensinar. Eu conheci isso…
Ele se volta. Leva-me, penso, em direção à sala dos Estados que chama de
salão quadrado dos modernos.
— Não quero ter razão teoricamente, mas diante da natureza malgrado seu
estyle, como dizemos em Aix, e seus admiradores, não passam de um pintor
minúsculo. Os maiores, o senhor os conhece: os venezianos e os espanhóis. 88
Vai até uma janela, observa a cidade ensolarada.
— Isso não é uma má ideia... No fundo, aquele que reprentasse isto,
simplesmente, o Sena, Paris, um dia de Paris, poderia entrar aqui com a cabeça
erguida… É preciso ser um bom trabalhador. Não ser nada mais que um pintor. Ter
uma fórmula. Realizar.
Olha para mim, triste e sublime.
— O ideal da felicidade terrestre... ter uma bela fórmula.89
E. brusco, leva-me a passos largos para o salão quadrado dos modernos.
Para diante do Triunfo de Homero.* Faz um muxoxo.
— Sim... O alaranjado para indicar a cólera de Aquiles e as chamas de Tróia,
o verde para indicar as viagens de Ulisses e os turbilhões do Oceano... Mas não é
nada disso, a fórmula!... Sim, sim, a fórmula que restringe... ao passo que eu!
Mesmo assim, ele tenta nos nausear com sua pintura viscosa, Jean-Dominique! Eu
dizia isso a Vollard para deixá-lo pasmo, ele é muito hábil! É um sujeito e tanto... É o
mais moderno dos modernos. O senhor sabe por que eu lhe tiro o chapéu? É
porque ele fez engolir à força seu desenho dos diabos aos idiotas que hoje creem
compreendê-lo. Mas aqui, eles são só dois: Delacroix e Courbet. O resto é uma
gentalha... E falta alguém... Manet. Ele virá, com Monet e Renoir.
EU — E o senhor.
CÉZANNE — Oh! eu... Eu talvez seja um mau exemplo, sabe?
Nossas contribuições, quando temos a glória de contribuir com algo, deformam o
que aprendemos. E é terrível. Ainda não fiz nada que se sustente ao lado dos outros
ali, pode acreditar…
EU — Mas a Velha com rosário, as grandes Sainte-Victoire…
CÉZANNE — Tá, tá, tá... Restará talvez a lembrança de um homenzinho que
libertou a pintura de uma falsa tradição, tanto independente quanto acadêmica, e
que teve o vago sonho de uma renascença de sua arte... E olhe lá!...
Aproxima-se das Mulheres de Argel.
— Estamos todos neste Delacroix. Quando lhe falo da alegria das cores
pelas cores, veja, é isso o que quero dizer... Estes rosas pálidos, estas almofadas
ásperas, esta babucha, toda essa limpidez não sei, entra em nosso olho como um
copo de vinho e na goela na hora ficamos inebriados. Não sabemos como, mas nos
sentimos mais leves. Estas nuances aliviam e purificam. Se eu tivesse cometido
uma má ação, penso que viria para diante deste quadro para me endireitar... E é
estofado. Os tons entram uns nos outros, como sedas.90 Tudo é costurado,
trabalhado em conjunto. E é por isso que há movimento. É a primeira vez que se
pintou um volume, desde os grandes. E em Delacroix, não há como negar, existe
alguma coisa, uma febre, que não existe nos antigos. É a febre bem-aventurada da
convalescência, creio eu. Com ele, a pintura sai do marasmo, da enfermidade dos
bolonheses. Ele sacode David. Pinta por irisação. Basta-lhe ver um Constable para
adivinhar tudo o que é possível extrair da paisagem, e ele também vai plantar seu
cavalete diante do mar. Suas aquarelas são maravilhas do trágico ou do
encantamento. Só podemos compará-las às de Barye, o senhor sabe, os leões do
museu de Montpellier. E as naturezas-mortas, como aquela do caçador, do
embornal e da caça, em pleno campo; toda a província está ali. Não vou falar das
grandes posições, daqui a pouco iremos ver seu teto... Além do mais, ele está
convencido de que o sol existe e de que podemos molhar nele nossos pincéis, lavar
as roupas. Ele sabe diferenciar. Não é mais como ali em Ingres e em todos os que
estão aqui... Uma seda é um tecido e um rosto é carne. O mesmo sol, a mesma
emoção acaricia, mas se diversifica. Ele sabe, nos flancos desta figura negra,
suspender um estofo que não tem o mesmo odor que o calção perfumado desta
georgiana, e é em seus tons que ele sabe disso e o representa. Ele contrasta.
Todas essas nuances apimentadas, observe, com toda sua violência, a clara
harmonia que produzem. E existe um senso do ser humano, da vida em movimento,
da tepidez. Tudo se move, tudo reluz. A luz!... Em seu interior há mais luz cálida que
em todas essas paisagens de Corot91 e essas batalhas que estão ao lado.
Observe... Sua sombra é colorida. Ele nacara seus degradês, o que suaviza tudo...
E quando pinta o ar livre! Sua Entrada dos cruzados, é terrível... basta dizer que o
senhor não pode vê-la. Não podemos mais vê-la. Eu vi, com estes meus olhos, esse
quadro morrer, empalidecer, ir embora. É de chorar. De dez em dez anos, ele se
vai... Um dia, não restará mais nada... Se o senhor tivesse visto o mar verde, o céu
verde. Intensos. E como as fumaças eram mais dramáticas então, os navios que
ardem, e como todo o grupo de cavaleiros se apresentava. Quando ele o expôs,
alguém espalhou que o cavalo, este cavalo, era rosa. Era magnífico. Uma rutilância.
Mas esses infames românticos, com seu desdém, usavam materiais atrozes. Os
droguistas os roubavam até as calças. É como o Naufrágio de Géricault, uma
página soberba, mas não vemos mais nada. Aqui, resta ainda a melancolia
carcomida dos rostos, a tristeza destes cavaleiros, mas isso tudo, nós nos
lembramos, estava nos coloridos de Delacroix, e como os fundos se apagaram, seu
efeito, sua alma não mais está presente. Eu ainda os vi, outrora, esses coroados
lívidos. Eles não mais avançam no esplendor, naquela atmosfera do Oriente,
naquela terra de lendas. Constantinopla é como uma Paris, como as fachadas da
cidade, observe, ali atrás da barricada. Eu a vi, aqui, como Delacroix, como Gautier,
como Flaubert a viam, e unicamente pela magia das cores. Eis, o que prova melhor
do que tudo que Delacroix é um verdadeiro pintor, um grande pintor de todos os
diabos. Não é a historinha dos cruzados, que eram antropófagos, dizem, não é a
sua suposta humanidade, mas o trágico de seus tons que descrevia e expressava
toda a alma apodrecida destes lânguidos vencedores. Na época, a bela grega
moribunda, a mulher abandonada em seus ricos adornos, a barba do velho, os
cavalos xeirelados e os mastros lúgubres, nas fusões cantantes, ganhavam todo
seu sentido. Tudo morria, chorava e resfolegava. Nas cores. Agora não resta mais
do que uma imagem. As cores são a única verdade de um pintor... É como se
traduzíssemos uma tragédia de Racine em prosa... As Mulheres de Argel não se
alteraram. A Entrada fora pintada com o mesmo esplendor. O senhor viu, em
Rouen, a Justiça de Trajano — ela também se vai, descamando, se corroendo -- e,
em Lyon, a Morte de Marco Aurélio? Que verde há ali... O manto verde! Isso é
Delacroix. E o teto de Apolo, e Saint-Sulpice!... Podem dizer e fazer o que quiserem,
ele pertence à grande linhagem. Podemos falar dele sem que ele tenha do que se
envergonhar, mesmo diante de Tintoretto e Rubens... Delacroix talvez seja o
Romantismo. Ele se empanzinou de Shakespeare e de Dante, folheou demasiado o
Fausto. Mas continua sendo a mais bela paleta da França, e ninguém, sob nosso
céu, escute bem, não teve, mais do que ele, o charme e o patético ao mesmo
tempo, a vibração da cor. Todos nós pintamos nele, assim como vocês todos
escrevem em Hugo.
EU — E Courbet?
CÉZANNE — Um pedreiro. Um rude esbanjador de gesso. Um moedor de
tons. Ele construía como um romano. E também ele um verdadeiro pintor. Não
houve outro neste século que o suplante. E mesmo que ele arregace as mangas,
puxe o chapelão sobre as orelhas, desmantele a coluna,* sua fatura é tão clássica!
Sob seus ares de fanfarrão... Ele é profundo, sereno, aveludado. Ele criou nus
dourados como uma seara, que eu venero. Sua paleta cheira a trigo... Sim, sim,
Proudhon lhe virou a cabeça com seu realismo, mas, no fundo, esse tal realismo é
como o romantismo de Delacroix, bem ou mal ele só o deixava entrar em grandes
pinceladas e em umas poucas telas, as mais espalhafatosas, certamente as menos
belas. E ainda, ele estava mais no tema, esse realismo, do que no ofício. Ele vê
sempre composto. Sua visão permaneceu como a dos velhos. É como a espátula,
ele só a utilizava na paisagem. Ele é refinado, é esmerado. O senhor conhece a
opinião de Decamps. Courbet é um espertalhão. Ele faz uma pintura grosseira, mas
aplica o fino por cima dela. Já eu digo que é a força, o gênio, que ele aplicava por
baixo. Aliás, vá perguntar a Monet o que Whistler deve a Courbet, quando eles
estavam juntos em Deauville, quando este pintou sua amante... Embora tenha um
gesto largo, ele é sutil. Está em seu lugar nos museus. Suas Mulheres peneirando
trigo do museu de Nantes, de um loiro tão denso, com a grande manta
avermelhada, a poeira do trigo, o coque puxado para a nuca como nos mais belos
Veronese, e o braço, esse braço de leite ao sol, o braço estendido de camponesa,
polido como uma pedra de lavadouro... No entanto foi sua irmã quem posou para
ele... Podemos colocá-la ao lado de Velázquez, ela se sustentará, eu lhe dou minha
palavra... Não é carnuda, espessa, granulosa? Não é viva? Ela se impõe. Nós a
vemos.
EU — Sim, eu me lembro dela... Courbet é o grande pintor do povo.
CÉZANNE — E da natureza. Sua grande contribuição foi a entrada, na
pintura do século XIX, da lírica da natureza, do cheiro das folhas molhadas, das
paredes musguentas da floresta, o murmúrio das chuvas, a sombra dos bosques, o
curso do sol sob as árvores. E a neve, ele pintou a neve como ninguém! Eu vi, na
casa de seu amigo Mariéton, a diligência nas neves, uma grande paisagem branca,
plana, sob o crepúsculo cinzento, sem nenhuma aspereza, toda acolchoada... Era
formidável, um silêncio de inverno. Como o Halali do museu de Besançon, no qual
os personagens talvez sejam um tanto teatrais, mas que me lembra, sem estarem
esmagados, com seus jaquetões de caça, os cães, a neve, o valete, que me
lembram a maneira pomposa, o heroísmo, o fazer dos mestres, ora essa. E o
poente do Cervo em Marselha, a faixa sanguinolenta, o charco, a árvore que foge
com o animal, nos olhos do animal... Todos esses lagos da Savoia com o marulho
da água, a bruma que sobe das margens, envolve as montanhas… as grandes
Vagas, a de Berlim, prodigiosa, um dos achados do século bem mais palpitante,
mais túrgida, de um verde mais baboso, de um laranja mais sujo, que está aqui,
com suas espumas desenfreadas, sua maré que vem do fundo das eras, todo o céu
andrajoso e sua acridade lívida. Nós a recebemos em pleno peito. Recuamos. Toda
a sala cheira a maresia... -
Ele olha, acima do Triunfo de Homero, a grande vegetação rasteira do
Combate dos cervos.
— Não dá para ver nada... Como está mal posicionado... Quando é que vão
pôr um pintor, um de verdade, na direção do Louvre? E quando é que vão trazer as
Moças à margem do Sena para cá? Onde elas estão?92
Semicerra os olhos. Ele as vê.
— Ali, escute só, diríamos um Ticiano... Não. Não... É Courbet... Não vamos
misturar... Essas moças! Um ardor, uma largue cansaco feliz, uma espojadura que
Manet não conseguiu em seu Almoço…As luvinhas, as rendas, a seda vincada da
saia, e os rubores... O entumescimento das nucas, o roliço das carnes A. natureza
fez-se cortesã em torno delas. E o céu baixo, cortado, a paisagem suada, toda a
perspectiva inclinada, que nos obriga a revistá-las... A umidade, as pérolas cálidas...
E é arrojado! Tão carnudo quanto a Olympia é magra, grácil, cerebral... Os dois
quadros do século talvez...93 Baudelaire e Banville. O ofício opulento, a fatura
agucada... Na Olympia, sim, há algo a mais, um ar, uma inteligência... Mas Courbet
é espesso, sadio, vivo. Enchemos a boca de cores. Nós as babamos…
— Escute bem, é uma infâmia que essa tela não esteja aqui, e que o Funeral
tenha sido sacrificado, sepultado ali naquela espécie de corredor... Não dá para vê-
lo... Ele deveria luzir aqui, na cimalha, diante dos Cruzados, no lugar desse borrão
do Homero... Sim, sim, é muito bonito, esses pés, essa calma, esse triunfo, mas não
passa de uma reconstituição! Enquanto o Funeral... Venha cá.
Ele me toma pelo braço. Arrasta-me com uma paixão de juventude. Continua
a falar enquanto caminha.
— Dizem que ele pintou este quadro após a morte de sua mãe. Ele se isolara
por um ano em Ornans. Eram os habitantes da aldeia que posavam para ele, sem
posar. Ele os tinha no olho... Em uma espécie de celeiro... Eles vinham se
reconhecer... Ele misturava esses grotescos a sua dor... Flaubert... Mas é o que
dizem. A renda é mais forte que a história. A mãe dele não tinha morrido. Ela posou,
está em um canto... Mas é para lhe dizer o quanto a obra é comovente. Ela recria,
ela reimagina a vida.
Passamos sob o teto pintado por Delacroix.
— Vamos voltar para vê-lo... Uma olhadela! Observe. É a tempestade lírica, o
arrebatamento, a aurora de nossa renascença... Michelangelo em pedrarias. O
senhor sabe, o Michelangelo dos cantos da Sistina, da Judite... E os jogos! Uma ode
de Píndaro…O tigre e a mulher deitada, com os cabelos tragados pela areia... O
mar inteiro lançado sobre uma praia... Dá para sentir o movimento… A maré
enchente, o arrojo do mundo no sol, a queda da inveja em todo seu peso, estes
monstros. E que fantasia! Posso ouvir o som do clarim... Com golpes de martelo,
veja, estes braços forjam a luz... Com golpes de pincel Delacroix pintou nosso
porvir... E ele é sublime!... Voltaremos depois.
Ele me arrasta.
— Sim, como Flaubert sorveu o romance de Balzac, Courbet talvez, do
arroubo romântico, da veracidade expressiva de Delacroix, tenha sorvido... O
senhor se lembra, na viagem que ele fez o velho Flaubert, em Pelos campos e
pelas praias,* do enterro que ele descreve e da velha que chora como a chuva... A
cada vez que o releio, penso em Courbet... A mesma emoção, na mesma arte...
Observe.
Chegamos. Ele está afogueado e irradia alegria. O sobretudo, que arrasta
pela manga atrás de si, varre o piso. Ele endireita o porte. Exulta. Nunca o vi desse
jeito. Ele, habitualmente tão tímido, lança olhares de triunfo à direita e à esquerda. O
Louvre lhe pertence... A um canto, avista uma escadinha de copista. Dá um salto.
— Enfim!... Nós vamos vê-lo. Puxa a escada. Sobe.
— Venha. Venha. Deus do céu!... Como é belo... Os guardas acorrem,
interpelando-o.
— Deixem-me em paz... Estou olhando Courbet... Coloquem-no na luz e
ninguém mais vai aborrecê-los…
Ele sapateia sobre a pequeåna plataforma.
— Mas não, vejam este cão... Velázquez! Velázquez! O cão de Felipe é
menos cão, mesmo sendo cão de rei…O senhor o viu... E o coroinha, este vermelho
bochechudo... Renoir nem chega perto…
Ele se exalta, embriaga-se.
— Gasquet... Courbet é o único que sabe aplicar um preto sem esburacar a
tela... Ele é o único... Aqui, como em seus troncos e rochedos, ali. Ele podia, com
um só movimento, imprimir um trecho de vida, a existência lamentável de um
desses mendigos, veja, e em seguida voltava, com piedade, por bondade de gigante
doce que tudo compreende... A caricatura se encharca de lágrimas... Ah! Deixem-
me tranquilo, vocês aí. Vão procurar o diretor... Eu quero lhe dizer umas boas
verdades…
Começa um ajuntamento. Ele faz um verdadeiro sermão.
–- É uma infâmia, com mil raios!... Estou farto, mas é verdade... Sempre
baixamos a cabeça... É um roubo... O Estado somos nós... A pintura... sou eu...
Quem é que compreende Courbet?... Aprisionaram-no neste buraco... Eu protesto...
Vou procurar os jornais, Vallès…
Grita cada vez mais alto.
–- Gasquet, o senhor ainda será alguém... Prometa-me que fará com que
ponham esta tela em seu lugar merecido, no salão quadrado... Por Deus, no salão
dos modernos... Na luz... Para a gente poder vê-la…
Os guardas recolhem seu sobretudo e o chapéu-coco.
–- Deixem-me em paz, vocês... Vou descer... Temos na França uma obra
como esta e a escondemos... Que ponham fogo no Louvre então... Agora mesmo...
Se temos medo do que é belo...No salão dos modernos, Gasquet, no salão dos
modernos... Prometa-me.
Ele cai da escada. Desfila um olhar dominante sobre o grupo que nos
rodeia…
–- Eu sou Cézanne! Fica ainda mais vermelho... Remexe nos bolsos. Põe
alguns luíses na mão dos guardas... E foge de lá, levando-me consigo...
Chora.
___________________________________________________________________
58 Esta epígrafe é citada a partir de Mes confidences (supra, p. 173).
59 O Monumento a Balzac de Rodin foi inicialmente exposto em gesso no Salão da
Sociedade Nacional dos Artistas em 1898, tendo sido fundido em bronze apenas após a morte do
escultor. Por outro lado, Rodin organizou uma retrospectiva de sua obra em um pavilhão temporário
vizinho à exposição Universal de 1900 e talvez Gasquet se refira aqui à Galeria das Máquinas da
Exposição.
Na parte biográfica de seu livro (p. 75), Gasquet escreve que Rodin e Cézanne jantavam
ocasionalmente juntos em Paris: "Gosto muito do que ele faz. É um intenso... [...]. Ele tem sorte. Ele
realiza".
* O Théâtre-Français, também conhecido como Comédie-Française. (N. da T.)
60 Ver Rivière e Schnerb (supra, p. 149): “[...] não pinto o conjunto: se uma cabeça me
interessa, eu a faço grande demais”.
61 O pintor da vida moderna de Baudelaire (escrito em 1859-1860 e publicado em 1863) é
dedicado a Guys.
62 Essas opiniões sobre a natureza das artes pagã e cristã são de Gasquet e não,
certamente, de Cézanne. Em L’Art vainqueur (1919, pp. 82-3), Gasquet, depois de falar de “uma arte
cristã da morte”, afirma que “alguma coisa de pagão permanecera sempre na poesia”. Ver também,
nos primeiros diálogos (supra, p. 193), o comentário sobre os artistas da Renascença: “São
verdadeiros pagãos”.
63 Trata-se das pinturas murais de Puvis de Chavannes, cujas decorações para a Sorbonne
teriam, segundo Gasquet, suscitado este comentário de Cézanne (1926, p. 75): “Que má literatura!”.
64 Podemos avaliar a subjetividade, a inconstância e, consequentemente, a pouca fiabilidade
de Gasquet comparando este trecho com uma passagem de L’Art vainqueur (1919, pp. 139-40):
“Desde o final do último século, um Maurras, um Cézanne, um Debussy, só tinham de ir passar uma
tarde no parque de Versalhes [...] para se pôr novamente de acordo com o gênio ponderado de
nossa raça e sentir com plenitude até que ponto de perfeição o gosto pela ordem pode trazer as
forças da natureza”.
65 Ao que parece, em vida, Cézanne foi várias vezes comparado a Masaccio. Maurice Denis
cita dois exemplos disso (Journal, 1957, tomo II, p. 84): "Fabbri [...] me disse que Masaccio lhe evoca
algo de tão nobre quanto a Antiguidade e que Cézanne é o único pintor um pouco nobre destes
tempos" — o Fabbri em questão é provavelmente Egisto Fabbri, um importante e precoce
colecionador de obras de Cézanne que possuía dezesseis de suas telas em 1899; e “Havia em 1900
em Settignano, na Gamberaia, miss Blood que punha uma ao lado da outra fotos de Cézanne e do
Carmine [...]”(Journal, 1959, tomo III, p. 140). Notemos porém que o Cézanne de Gasquet rejeita a
pintura do Quattrocento (ver trechos a seguir).
66 O trecho inteiro sobre a Vitória de Samotrácia é típico do estilo de Gasquet e pode ser
comparado à passagem de L'Art vainqueur (1919) sobre “a serenidade patética dos gregos” (pp. 105
ss.).
67 A distinção feita neste parágrafo entre “aquilo que se chama pintura”, de um lado, e
“Ingres, Rafael e toda essa gente”, de outro, é autenticamente cézanniana; podemos compará-la ao
discurso sobre as “duas plásticas” em Bernard, L'Occident (supra, p. 71), embora nada aqui indique
que Gasquet tenha se baseado em Bernard.
A frase “Tenho o prazer da linha, quando quero” deve ser associada comentário de Denis
(em Théories, infra, p. 267) sobre a distinção, sugerida durante a visita de janeiro de 1906 (ver o
fragmento do Journal reproduzido neste volume), entre, por um lado, o desenho livre e expressivo
dos caricaturistas do século XIX e também de Puget e dos bolonheses, e, por outro, o traçado
extremamente contido de Degas e Ingres. Holbein faz parte, neste diálogo de Gasquet, de “toda essa
gente”, o que contradiz os louvrores de que foi objeto por ocasião da visita de Osthaus (Osthaus,
supra, p. 166)
68 Ver Gasquet, 1926, p. 107: "Esse David!´, dizia ele, irônico” Cézanne professava, porém,
uma grande admiração (talvez irônica) por Gros, aluno de David (Geffroy, supra, p. 24).
69 Sobre a atitude de Cézanne quanto a "essa ciência das preparações”, ver Denis, Journal,
a respeito das Bodas de Canaã de Veronese: ”Produziu um esquema deles” (supra, p. 162); e a
exposição de Bernard sobre a técnica pictórica de Cézanne (Souvenirs, supra, p. 129):
“Recomendou-se que começasse levemente, com tons quase neutros.
70 Reencontramos essa noção em Denis, Théories (infra, p. 279), embora a primeira fonte
seja Bernard, L'Occident (supra, p. 73).
71 Nos Souvenirs (supra, p. 113) Bernard cita Cézanne: “Gauguin não era pintor, ele só fez
imagens chinesas”. É provável que Cézanne tivesse em mente (entre outras coisas) a questão dos
contornos, e já se sugeriu que a Carta 8 a Bernard (ver p. 89, nota 11) exprimia a mesma crítica a
Gauguin.
Sobre o conhecimento que Cézanne tinha das estampas japonesas, Gasquet (1926, p. 70)
afirma que o pintor lera os volumes dos irmãos Goncourt sobre Utamaro e Hokusai.
72 Ver Bernard, Souvenirs (supra, p. 129). Citado na p. 218, nota 69, supra. Esse trecho
inteiro, embora comporte certos fragmentos evidentemente derivados de Cézanne, consiste
essencialmente em uma interpretação de Gasquet.
* A tela Um funeral em Ornans, pintada por Courbet em 1849-1850 assinala um ponto de
virada na arte francesa do século XIX e encontra-se hoje no Musée d’Orsay, em Paris. A entrada dos
cruzados em Constantinopla, de Delacroix, pintada em 1840, pertence à coleção do Louvre. A
remissão ao Teto de Apolo refere-se às pinturas que cobrem o teto da Galeria de Apolo, um dos
pontos altos do Louvre, obra de vários pintores, sendo que a imagem central, Apolo vencendo a
serpente Píton, de aproximadamente 8 x 7,5m foi pintada por Delacroix em 1850-1851. (N. da T.)
73 Ver a Carta 8 a Bernard: “Devo-lhe a verdade em pintura e a direi” (supra, p. 89).
74 Fonte: carta a Charles Camoin, 3 de fevereiro de 1902. Os trechos dão continuidade ao
tema anti-David anteriormente mencionado (ver supra, p. 216, nota 68).
* Hipollyte Taine, Les Origines de la France contemporaine, 5 tomos, 1875-1893. (N. da T.)
75 Fonte: carta a Camoin, 9 de dezembro de 1904.
76 Ver Vollard, supra, p. 27.
77 Fonte: Denis, Théories (infra, p. 276) e o Journal (supra, p. 160).
78 As três frases precedentes vêm da Carta 5 a Émile Bernard (supra, pp. 83-5).
79 Fonte: carta a Camoin, 22 de fevereiro de 1903.
80 Fonte: Carta 7 a Bernard (supra, p. 87).
81 Fonte: Carta 9 a Bernard (supra, p. 91).
82. Algumas das frases precedentes provêm da Carta 7 a Bernard (supra, p. 87).
83 É pouco provável que estas ideias sejam de Cézanne. Gasquet talvez as tenha tirado da
famosa declaração de Denis em Art et Critique, de 23 de agosto de 1890: "Lembrar-se de que um
quadro — antes de um cavalo de batalha, uma mulher nua ou uma historinha qualquer — é
essencialmente uma superfície plana recoberta de cores reunidas em uma certa ordem” (reproduzido
em Théories, 1913 e 1920).
A opinião de Cézanne sobre os efeitos negativos das associações literárias era nuançada, e
seria falso acreditar que ele desejasse abolir qualquer tema.
inte, ver a p. 201, nota 43.
Sobre as "péladanerias” na frase seguinte, ver a p. 201, nota 43.
84 Ver Gasquet (1926, p. 70): “Ele não falava de El Greco"; e a Carta 5 a Bernard: “Os
maiores, o senhor os conhece melhor que eu, os venezianos e os espanhóis” (supra, p. 83).
85 Ou seja, a de Tintoretto. Ver a Carta 6 a Bernard: “[...] pelo mais valentes [sic] dos
venezianos, nós celebramos Tintoretto” (supra, p. 85).
86 O autorretrato de Tintoretto, cuja cópia realizada por MAnet está em Dijon desde 1898,
encontra-se no Louvre e não na Galeria dos Uffizi. Cézanne certamente conhecia bem o original, e é
possível que a inscrição apócrifa em letras capitais IACOBUS TENTORETUS PICTOR
VEN(E)TI(AN)US, que se estendia em linha reta na parte de cima do quadro (e apagada por casião
da restauração), tenha influenciado a inscrição com estêncil ACHILLE EMPERAIRE PEINTRE sobre
o retrato de Emperaire do Musée d'Orsay. A Carta 3 a Bernard está assinada por Pictor P. Cézanne
(supra, p. 60).
87 Este parágrafo é uma versão ligeiramente deformada de um trecho da Carta 6 a Bernard
(supra, p. 85).
88 Trata-se de uma variante de um fragmento da Carta 5 a Bernard (supra, p. 83).
89 Extraído de Mes confidences (questão e resposta 10, supra, p. 173).
* Tela também conhecida como A apoteose de Homero (1827), de Ingres. (N. da T.)
em conhecida
90 Sobre a analogia com o têxtil, ver supra, p. 108, nota 17.
91 Segundo Vollard (1914, p. 22), Cézanne teria dito a Guillemet, admirador de Corot: "Esse
teu Corrot [sic], você não acha que lhe falta temmperammennto [sic]?”.
* Gíria adotada a partir de 1871, "déboulonner la colonne” faz referência à peticão dirigida
por Courbet ao Governo de Defesa Nacional durante a Comuna de Paris solicitando o
desmantelamento da coluna Vendôme, símbolo da vitória de Napoleão em Austerlitz. (N. da 1.)
92 Sobre Courbet, como sobre Delacroix, Gasquet expressa certamente, em seus diálogos, a
direção dos entusiasmos de Cézanne; mas parece pouco provável que haja transcrito sua verdadeira
substância. Não há dúvida de que, em sua juventude, Cézanne, como relembra Bernard (Souvenirs,
supra, p. 121), “se procurava [...) em Courbet e Manet”. Seus comentários sobre Courbet são poucos:
“[...] uma expressão um tanto pesada” (Vollard, 1914, p. 77; Vollard conta entretanto que Cézanne
era um grande entusia); É um objetivo. Ele tem a imagem prontinha em seu olho...” (Gasquet, 1926,
p. 40. onde se afirma que Cézanne era assombrado pelo nome e pela lenda de Courbet). Denis,
baseado nas palavras de Vollard, menciona o amor de Cézanne por Courbet, que considerava
aparentemente o melhor no que dizia respeito à realização (Journal, 1957, tomo I, p. 157). Quanto a
Rivière e Schnerb (supra, p. 156), eles relatam as declarações feitas pelo pintor diante do grande
quadro das Banhistas no ateliê de Lauves, em janeiro de 1905: “Eu queria pintar em plena pasta,
como Courbet”. Mas sua admiração foi declinando, e ele trataria Courbet de "belo selvagem”.
93 Gasquet (1926, p. 48) descreve o momento em que Cézanne lhe entregou uma fotografia
da Olympia de Manet: “É um estado novo da pintura.
Nossa Renascença começou aqui”.
* No original, Par les champs et par les grèves, relato de viagem escrito a quatro mãos, por
Gustave Flaubert e Maxime Du Camp, em 1847 e publicado entre 1852 e 1881. (N. da T.)

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