Você está na página 1de 10

Cartas

Carta de Julio Cortázar a seu cunhado, Eduardo

Meu caro Eduardo:

É noite de domingo, e estou descansando um pouco, sozinho em meu


quarto, depois de uma semana cheia de coisas, idas e vindas, experiências
curiosas, “quebradas de cara” e grandes maravilhas. Há um silêncio imenso
na Cité porque é meia-noite, os últimos grupos de estudantes se
dispersaram, e os rádios – um ou dois – do meu andar emudeceram. Tenho
aqui comigo um gatinho, que preciso alimentar e abrigar esta noite, pois é o
filho coletivo dos moradores do 3º andar. (Há uma semana eu o salvei de
morrer gelado na neve, e em reconhecimento o dito-cujo lambeu de tal
maneira um pulôver meu que estava ao pé da cama que o estropiou para
sempre.) Acho que há exatos dois anos eu estava em Veneza, prestes a vir
para a misteriosa Paris.
Já estou aqui há quatro meses e, ontem à noite, ao fazer um balanço
mental desse período, percebi a familiaridade incrível com que me movo
neste mundo. É aí que está o perigo. É agora que devo vigiar minha visão, a
forma de me colocar diante de coisas que venho conhecendo cada vez melhor;
é agora que devo impedir que os conceitos escamoteiem minhas vivências.
Seria terrível (não me aconteceu, por sorte) eu ter um dia que passar às
pressas diante de Notre-Dame e só dar aquela olhada distraída que se
dedica a bancos ou a casas para alugar. Quero que a maravilha da primeira
vez seja sempre a recompensa para o meu olhar. Posso me dar ao luxo de
passar perto do Museu Cluny e pensar comigo: “Vou entrar outro dia.” Mas
entrar ali tem de continuar sendo uma coisa séria, última, o motivo
verdadeiro de minha presença em Paris. Nós rimos dos turistas, mas juro
que eu quero ser turista em Paris até o fim, ser o homem que anota na
agenda: quinta-feira, ir ver o São Sebastião, de Mantegna…
É horrível perceber a cada minuto como as faculdades
intelectuais transbordam sobre as intuições puras, tentando esquematizar o
mundo… O cruel de Buenos Aires é que ela é muito mais matéria intelectual
do que estética, e apressa esse processo horroroso de cristalização de um
homem. Por isso os argentinos são gente de tanto “caráter” (!), de tanta
“personalidade” – repertórios de ideias definitivamente fixas, congeladas,
sem movimento possível. Todo mundo lá tem sua opinião sobre as coisas,
mas você há de concordar comigo em que basta opinar sobre uma coisa para,
ato contínuo, deixar de vê-la. A ideia de Wilde em seu Retrato do Sr. W. H. é
realmente profunda: se no ato de provar que uma coisa é A ou B irrompe de
repente uma angústia terrível e uma sensação de descrença total no que se
afirmou, isso se deve ao fato de que todo homem inteligente e sensível sabe
que uma prova é sempre outra coisa, que absolutamente não afeta a
realidade essencial daquilo de que se fala.
Eu gostaria que Paris se entregasse a mim sempre como a cidade do
primeiro dia. Estou aqui há quatro meses: mas cheguei ontem de noite,
chegarei outra vez esta noite. Amanhã será meu primeiro dia em Paris.
Comecei a ir ao Louvre, depois de um repentino ataque de raiva por
meu condenável mandarinismo. Fui com uma alegria de criança, entrei por
aquela porta do Carrousel e me dei ao luxo de passar um bom tempo no hall
de entrada, olhando livros e cópias… depois atravessei a Galerie Daru, e lá
de baixo vi a Vitória de Samotrácia com toda a sua túnica ao vento. Levava
grandes mapas exploratórios (em 1950 estive só dez vezes, de maneira que
só conheço algumas seções), mas quando desci pela escadinha da esquerda e
me vi diante da Hera de Samos e dos Apolos arcaicos… pronto. Já estive lá
três vezes, e não saio das salas gregas. Ontem de tarde o sol iluminava os
mármores, vi uma cabeça de atleta com o nariz e os lábios transparentes,
como se fossem de mel. E o Apolo Sauróctono brilhava como se a luz brotasse
de dentro dele. (Ah, mas antes de ir embora fiz uma travessura: desci
correndo até as salas egípcias e fui olhar a deusa dentro do nicho, aquela
que iluminam com “luz negra” e que gela meu sangue.)

Cortázar, Paris, anos 50.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/misteriosa-entrega-e-mudanca-de-si-
mesmo/
Cartas a um jovem poeta - Rilke

Prezado Senhor,

Sua carta só me alcançou há poucos dias. Quero lhe agradecer por sua
grande e amável confiança. Mas é só isso o que posso fazer. Não posso entrar
em considerações sobre a forma dos seus versos; pois me afasto de qualquer
intenção crítica. Não há nada que toque menos uma obra de arte do que
palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos
afortunados. As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como
normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é
indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais
indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências
misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.

Feita essa observação prévia, posso lhe dizer ainda que seus versos
não possuem uma forma própria, mas apenas indicações silenciosas e
veladas de personalidade. Sinto esse tipo de indicação de modo mais claro no
último poema, "Minha alma". Ali, algo de próprio quer ganhar expressão. E
no belo poema "A Leopardi" talvez se desenvolva uma espécie de afinidade
com aquele grande solitário. Apesar disso, os poemas ainda não são
independentes, não têm autonomia, mesmo o último e o dedicado a
Leopardi. Sua carta amável que os acompanha não deixou de me esclarecer
alguma insuficiência que senti ao ler seus versos, sem no entanto ser capaz
de designá-la pelo nome.

O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a


mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus
versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se
inquieta quando um ou outro redator recusa suas tentativas de publicação.
Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo
isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora.
Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-
se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se
ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si
mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto:
pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso
escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for
afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um
forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal
necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e
irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso. Então se aproxime da
natureza. Procure, como o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama
e perde. Não escreva poemas de amor; evite a princípio aquelas formas que
são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária
uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há
uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes.

Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu
próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os
pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza - descreva tudo isso
com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as
coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua
lembrança. Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame
de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar
suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum
ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos
muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus
ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa,
régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer
à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade
ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a
meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros. E se, desse ato de se
voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo,
resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons
versos. Também não tentará despertar o interesse de revistas por tais
trabalhos, pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e uma
voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade.
É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum
outro critério.

Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão
este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua
vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta para a questão de saber se
precisa criar. Aceite-a como ela for, sem interpretá-la. Talvez ela revele que
o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a
suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela
recompensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo
para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se
aproximou. Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua
solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito,
sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de
fazê-lo). Mesmo assim não terá sido em vão o exame de consciência que lhe
peço. Seja como for, sua vida encontrará a partir dele caminhos próprios, e
que eles sejam bons, ricos e vastos é o que lhe desejo mais do que posso
manifestar. O que ainda devo dizer ao senhor? Parece-me que tudo foi
enfatizado da maneira apropriada; por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo
a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento.
Não há meio pior de atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora
e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu
sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranquila.

Devolvo também os versos que o senhor me confiou amigavelmente. E lhe


agradeço mais uma vez pela grandeza e pela cordialidade de sua confiança,
de que procurei me tornar um pouco mais digno do que realmente sou, como
um estranho, por meio desta resposta sincera, feita da melhor maneira que
pude.

Com toda devoção e toda simpatia,

Rainer Maria Rilke

Itália, 1903

https://rathziel.files.wordpress.com/2011/11/rainer-maria-rilke-cartas-a-um-jovem-poeta.pdf
Cartas a um jovem escritor e suas respostas – Fernando Sabino e Mario de
Andrade

Fernando Sabino, 30-12-1942


“O Abgar Renault esteve aqui e fez uma conferência sobre Tagore. Gostei
muito dele pessoalmente e o admiro muito. Você se dá com ele? É pena um
sujeito como ele, podendo ser um grande artista e se perdendo assim, não é?
É o mal de todos os mineiros, mal de que pretendo de qualquer maneira
fugir: se perder em outras atividades, se deixar vencer pela vida social,
política, burguesa. Ser muito passivo, não ter coragem suficiente para
passar o pé em tudo. Todos aqui são assim. Cyro dos Anjos, por exemplo,
confessa que procura esconder o mais possível a sua condição de escritor,
quer passar apenas por um bom burguês, para evitar amolações. O diabo é
que o sujeito acaba ficando burguês mesmo... Guilhermino, Alphonsus, esses
da velha guarda vão todos ficando assim, camaradas que podiam ter feito
grandes coisas. Essa terra aqui é desgraçada, Mário. Ou o sujeito foge daqui
(...), ou se perde mesmo. É o caminho de todos nós se aqui ficamos: casar, ter
filhos, criar galinhas, um bom emprego, condição social – e literatura
mesmo... horas vagas! É o cúmulo. E lá vou eu, Mário, lá vou eu. Nem queira
saber que drama tem sido isso para mim. Estarei indo pelo
mesmo caminho? Será que conseguirei reagir a tempo, ou me aguentar a-
pesar de tudo? Estarei sujeito a ser artista nas horas vagas, por
diletantismo? Isso para mim será pior do que a morte. Mas então é preciso
mesmo mandar tudo à merda e tocar pra frente, romper com tudo e todos,
abandonar tudo e todos, fugir daqui para poder se aguentar? Sinto
perfeitamente que se continuar com o corpo mole acabarei pior do que eles,
Mário. E isso não pode, não pode acontecer de maneira nenhuma. Coragem
eu tenho, se for necessário. Mas é necessário? E até que ponto é preciso
reagir? Será preciso sacrificar tudo? Tenho atravessado uma crise tremenda,
nem queira saber. Cheguei a um ponto em que sinto que é preciso tomar
alguma decisão, quanto antes! Porque se eu caso para depois resolver a
questão (e a questão é quase toda essa, como você deve compreender), depois
é que não resolvo mesmo. Porque isso de sacrificar amor, facilidade, tudo
enfim, eu topo mesmo, estou disposto. Mas sacrificar os outros... Nada pior
para um indivíduo do que o dia em que percebe que não há compreensão
possível, que isso é quimera, e que ele será sempre como uma região
amaldiçoada onde ninguém consegue penetrar (...)”
Mário de Andrade, 23-1-1943

“Em 1843 os Álvares-de-Azevedo do tempo escreviam essas mesmas frases.


E você sabe como elas saíram vívidas, verdadeiras de dentro de você. É você.
Mas eu sei como elas saíram igualmente vívidas e sofridas dos Álvares-de-
Azevedo maiores e menores de todos os tempos. Mas você me interromperá
com todíssima razão: ‘Mas eu não tenho nada com Álvares de Azevedo e si
coincido com ele, ele que se fornique! É o meu sofrimento, é o meu caso que
eu tenho que resolver’. E você tem razão, Fernando. O que eu quis foi apenas
dar mais humanidade ao seu egoísmo. Digo mesmo: dar mais egoísmo, dar
mais profundidade ao seu sofrimento e ao seu egoísmo. Porque você ainda
não é o “egoísta” no sentido em que Milton, Goethe, Dante, Camões o foram,
no sentido em que o artista, o homem tem de ser egoísta. Pra se realizar.
Você pensa ‘nos outros’, hesita em ‘sacrificar os outros’, e esta aparência de
humanidade é que me parece deshumana. Mesquinhamente humana.
Apoucadamente humana, como si a sua humanidade (...) se resumisse às
quatro ou cinco pessoas que você toca com a mão!

Eu não sei, Fernando, eu não estou aconselhando nada, V. tem de resolver


sozinho. Mas haverá mesmo o que resolver? Tudo não estará indo certo? E
neste caso o seu sofrimento e as suas dúvidas não derivam nem das
circunstâncias da sua vida, nem da sua mocidade ávida do sofrer, mas das
próprias realidades tão confusas da vida atual do homem. Não será talvez
preferível e mais profundamente egoísta você não sacrificar nada, nem
facilidades, nem amor, nem gozo, nem inimigos, nem incompreensões, mas
viver tudo isso junto, em tudo procurando apurar o que é você e buscando se
superar em você? Praque imaginar si do outro lado do túnel faz dia ou faz
noite? Só tem um jeito de saber: é ir até lá. O perigo não é encontrar noite lá,
mas encontrar a noite e imaginar que é o dia. Talvez o milhor segredo da
dignidade de ser homem é ter a força de dizer: ‘perdi’. Porque, Fernando, nós
perdemos. Nós perdemos sempre... O indivíduo humano será sempre essa
‘região amaldiçoada’ em que não é exatamente que ninguém consiga
penetrar, mas em que toda exploração é imperfeita, incompleta. E por isso
deformadora. Até para o indivíduo mesmo. É o signo da maldição.”
Clarice Lispector – Correspondências
Cartas a Fernando Sabino

Berna, 13 de outubro de 1946


Fernando, Que bom receber carta sua. Eu não sabia que você tinha
amígdalas... Minha amizade por você teve presença por tão pouco tempo.
Acho que deveríamos apagar tudo e principiar pelo princípio. Começo um
pouco timidamente dizendo que fiz operação de apendicite. Quem sabe a
sinusite não era amígdalas?
Seu sonho, Fernando, nem quero psicanalisá-lo, e nem lamento que
tenhamos esquecido o nome da fera, se bem que por dentro eu diga
decepcionada: pronto, nunca mais. Mas se nos lembrássemos o nome dela
estaríamos no mesmo: certamente ele não seria uma palavra clara mas uma
ignorada, uma que de novo a gente teria que dizer: é um símbolo. Se bem
que dessa vez essa palavra fosse o último símbolo, o mais perto do nome
real, e não o símbolo do símbolo do símbolo, como são as outras palavras.
Mas acho que já estou desvairando e continuando o sonho do sonho do
sonho.
E outra coisa, meu caro confrade: seu sonho está muito bem escrito. Não
estou falando em “descrito”, porque por mais bem descrito que fosse não
seria o original que é o sonho, seria mesmo descrito. Uma noite dessas
também sonhei uma coisa. Não foi terrível como o seu sonho (a ideia de uma
unha partida em dois é o mesmo para mim que apagar o quadro-negro com
folha de papel... até nisso sua “técnica de horror” foi bem-sucedida). Meu
sonho não foi tão terrível como o seu mas também me deu uma angústia de
símbolo. Sonhei que estava num lugar de cores apagadas, tudo meio
dormente, e que eu ia subir uma escadaria imensa, alta, alta. Eu me
aproximava para subir, e com horror via que a escadaria era apenas pintada
– nem pintada, desenhada a lápis com perspectivas certas em claro e escuro,
parece que em cima de papel móvel porque havia vento. Nem lhe posso
descrever de como comecei a subir e que dificuldade sentia: era uma imagem
de escada e eu pisava em degraus desenhados e sem profundidade. Peço-lhe
que não faça psicanálises... Acho que a explicação é de que me falta
“realidade”.
Aliás o Lauro, numa carta que recebi dele, fala em relação ao Lustre em
“escritor a ficar pedalando indefinidamente no vácuo”, o que está bem dito,
em relação a quem é. Não é truísmo o seu – o problema para quem escreve é
antes de tudo um problema literário – mas pergunto-lhe agora: é ainda um
problema literário a falta de pés no chão ou é anterior a ele? Acho que estou
divagando e nem responda.
Meu livro há meses está parado por falta de movimento íntimo e “êxtimo”.
Espero em Deus acordar deste mau sonho que está se prolongando mais do
que posso às vezes suportar. Mas às vezes nem é difícil suportar. Às vezes
estou num estado de graça tão suave que não quero quebrá-la para exprimi-
la, nem poderia. Esse estado de graça é apenas uma alegria que não devo a
ninguém, nem a mim, uma coisa que sucede como se me tivessem mostrado
a outra face. Se eu pudesse olhar mais tempo essa face e se pudesse
descrevê-la, você veria como é esse o nome da fera que você esqueceu no
sonho. Talvez seja orgulho querer escrever, você às vezes não sente que é? A
gente deveria se contentar em ver, às vezes. Felizmente tantas outras vezes
não é orgulho, é desejo humilde.
Enquanto isso, estou me divertindo tanto quanto você não pode imaginar:
comecei a fazer uma “cena” (não sei dar o nome verdadeiro ou técnico); uma
cena antiga, tipo tragédia idade média, com... coro, sacerdote, povo, esposo,
amante... Em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade
de fazer que fiz contra mim. Não está pronto e está tão ruim que até fico
encabulada. Mas você não imagina o prazer... Trabalhando nesta cena, estou
descobrindo uma espécie de estilo empoeirado – uma espécie de estilo que
está sempre sob nosso estilo é que é uma mistura de leituras meio
ordinárias da adolescência (não a sua, por Deus, talvez de sua infância...),
uma mistura de grandiloquência que é na verdade como a gente já quis
escrever (mas o bom gosto achou com razão ridículo), uma mistura disso –
está ruim como o quê, mas com que prazer descubro as tiradas – parece que
não há sequer invenção. É tão engraçado... Talvez, se chegar a um ponto em
que a grandiloquência pelo menos tenha o pudor da gramática, eu lhe
mande. O verdadeiro título dessa grande tragédia em um ato seria para
mim “divertimento”, no sentido mais velhinho dessa palavra

Washington, 5 de outubro de 1953, segunda-feira


Fernando,
Não tenho feito muitos amigos (salvo uma enfermeira da maternidade que
gostou de mim e depois de quase oito meses de Paulinho nascido vem me
visitar na folga – hoje toma chá comigo), e não tenho influenciado nenhuma
pessoa. Tomo menos milk-shake e levo uma vida diária vazia e agitada.
Passo o tempo todo pensando – não raciocinando, não meditando mas
pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas
aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente certa).
Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto
está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais
profundamente, com ameaças maiores.
Com tudo isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que
não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito
minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que
não vejo mais com tanta frequência. Disso tudo, restam nervos muito
sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas aceito tanto
agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é de aceitar. Para quem se
“sente” calada, estou falando um bocado, não é? Você vê, Fernando, é assim
que às vezes a gente escreve carta: pretendendo apresentar o trabalho da
Manchete e falando de outras coisas que não têm nada a ver com o assunto.
Mande o conto, sim? Quero ver se é cinismo como homem ou dignidade como
escritor. Não seja cínico, Fernando, quer? Você pode muito melhor que isso.
Me diga se está escrevendo para outro jornal, além da Manchete.
Diga como estão as crianças. Estão no Rio? Você as vê sempre? Queria saber
se já nasceu o segundo filho de Joan e Paulo. E também não sei até hoje se a
Helena e Otto tiveram outro menino ou menina e quando. Os meus dois vão
bem. Pedrinho passou grande crise de ciúme do irmão, mas já está aceitando
a nova situação de partilha. Paulo (Gurgel Valente) está engatinhando e, de
um modo geral, radiante. Maury está tirando um curso de economia na
universidade. Larguei de lado o carro, até ganhar novo ânimo: nenhum carro
me atrai, é horrível. Quanto às leituras, variadas, provavelmente erradas, a
mais certa é a Imitação de Cristo, mas é muito difícil imitá-Lo, e isso é
menos óbvio do que parece. Millôr Fernandes mandou cartão prometendo
visita e em seguida outro des-prometendo, o que foi uma pena mesmo. No
semestre de primavera, pretendo tirar um curso de publicidade (é isso
mesmo) na universidade.
Fernando, aí vai a primeira semana de Manchete. Só vocês podem saber se
está certo, continuarei mandando (até receber resposta) para não haver
“solução de continuidade” (por que solução? E por que quer dizer o que quer
dizer?). Mandarei todas as terças-feiras – está bem? Na próxima terça já
mandarei para Hélio Fernandes, para não lhe dar mais trabalho – mas me
diga depressa se o “bilhete americano” está bem assim. Mesmo mandando
diretamente para Manchete, vou ter muitos motivos “técnicos”, sempre, para
receber respostas suas. Vou até perguntar que horas são no Rio, e você me
avisa depressa. Fernando, veja se pode arranjar um modo de ficar assinando
“C.L.”, sim? Por que não? E me escreva. Estou esperando carta sua.
E não é a horrível C.L. que está esperando, é Clarice
Desculpe, saiu à máquina, mas repito: Clarice

http://lelivros.love/book/baixar-livro-correspondencias-clarice-lispector-em-pdf-epub-e-mobi-
ou-ler-online/

Você também pode gostar