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narciso pinto

palpites
para má-língua e sevícias
(vol. 2)

2022
-a-leitura-deste-livro-irá-ser-gravada-para-efeitos-de-
monitorização-da-qualidade-dos-serviços.-se-autoriza-a-
gravação-folheie-a-página;-se-não-autoriza-feche-o-livro-
espécie de incipit, vulgo prefácio

ei-lo: o vade-mécum que visa (s/ comissão de abertura) a origem do


que me faz espécie. compêndio fundamental à compreensão da natureza
humana, sob o ponto de vista instruído, ante um cheirinho a vitimização,
de um malogrado de gema.
sabendo-me privado do estofo necessário para intelectual e a milhas
da finesse-padrão com vista a embuçar-me em tal meio, resta-me em de-
sespero de causa enfarruscar a vulgaridade do ramerrame, e assim como
assim, aputalhar sem pudores a literatura e o resto: estratégia decerto
mesquinha, não o nego.
lição a reter: todos somos falíveis! e nunca se está suficientemente
prevenido para lidar, sem paliativo à escolha, com as agruras da existên-
cia. por certo expectável e nada que verdadeiramente nos faça pasmar.
posto isto, o vaticínio é simples: todos nós derrocamos, indiscrimina-
damente, com grau variável de frequência e estrondo ─ convoque-se
a Lei de Murphy para atestar o que infiro. todavia, há que ter brio na
desdita: ornar o vexame, forrar os estragos, jogar à bravata com o enxo-
valho íntimo e sair-se ileso da imagem que de nós espelham. o sucesso,
convém esclarecer, é um mero ponto-de-vista.
premissa essencial: é opcional ser-se quem se é ─ questão de treino
e postura. é um feeling quiçá arrojado, meio sedento d‘ovações. há que
seduzir o ego, lerpar expectativas, aviar lérias d’azeitona e palito (opcio-
nal), e esplanadar que se farta, à sombra da ociosidade merecida a fim
de angariar tais palpites. isto, claro está, sempre cientes da inutilidade de
um tamanho empreendimento. e tal ideia não ocorreria a ninguém, por
certo, pelo que adiante.!
o meu desígnio literário, salvo o intelectual vandalismo, é mester de
toupeira: ao passo que a humanidade se vai devorando à superfície, aqui
o bicho vai escarafunchando a sua obra por debaixo da barbárie. volta
e meia fareja-se à tona e resgatam-se congéneres ─ quaisquer criatu-
ras que se identifiquem ou sensibilizem, acomodemo-nos: somos, aliás,
barra em matéria de conformismo. e dominar o mundo é fazer nada ─
assim debaixo da terra como no céu.

«existe esperança, esperança infinita ─ mas não para nós»

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─ lendas do meu bairro ─
palpites para má-língua e sevícias

1.

as águas rebentaram na noite de S. João. eram três da manhã: o


apogeu da estúrdia e da violenta refinaria que é habitual nestas raias de
pândega. o teu pai feito num oito, imediatamente a seguir ao desbrago
de uma rixa de proporções bélicas, e ali no meio do pânico e caos ins-
talados, as águas rebentaram, atraindo desde logo aquele cardume de
mitras prestáveis, de súbito sensibilizados, melosos, transfigurados de
compaixão. o teu pai vertendo sangue, eu vertendo as benzidas águas da
tua guarida em mim, e alguns dos mitras, não fosse quase irreal tama-
nha imagem, vertendo lágrimas de comoção, apontando o céu com os
dedos ensanguentados ‘olhe os balões, menina, olhe que lindo os balões’
e no alto daquela enseada devoluta de negro cintilava um enxame de
constelações ardendo e movendo-se celestiais, contrastando em onírica
beleza do cenário de horror em meu redor. o cheiro a cerveja, a vómito,
a ganza, alho-porro, a sardinha e a querosene mesclavam-se num intenso
eflúvio que me desnorteava em delírio ao ser conduzida para uma ambu-
lância pela mão gangrenada de um dos grogues ungidos, confiando-me
em êxtase a um dos paramédicos e alvitrando ‘cuide bem do seu balão
menina, que os que pairam no céu apagar-se-ão ao longo da noite, mas
esse brilhará para sempre aos seus olhos’ embora claro eu já estivesse
tão fora de mim que não poderia jamais asseverar tal guião, ainda que a
bem-dizer nenhum testemunho em contrário alguma vez se fizera ouvir.
nem mesmo o do teu pai, deus o tenha.

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─ o que faria compadecer-me de um grunho? sabê-lo eunuco, talvez.

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2.

acordas de supetão com o bafo ronronado de um gato e o cheiro a


terra molhada ─ o sol filtrado por algumas brechas da persiana. dói-te o
pescoço, tosses ─ o motor meio gripado ─ junto com alguma dificuldade
em descerrar os olhos. verificas as horas: passa pouco do meio-dia. a
custo, tentas erguer-te da cama. há vestígios de esperma vertida no
lençol. vês-te rodeado de gatos por todos os lados. ao adquirires a luci-
dez de quem está efectivamente desperto, recuas na memória até à noite
em que entraste em casa altamente alcoolizado, tropeçando no aspirador
e embatendo de testa na quina do móvel. desde essa noite que um coma
te subtraiu oito anos de vida. pese embora os especialistas afirmarem
ser possível ouvir-se e registar-se tudo, não te recordas de nada. doem-
-te um pouco os músculos, certamente entorpecidos. o teu peso parece
manter-se. o teu metabolismo permanece inalterado. há recados num
quadro-de-cortiça, escritos pela tua agora ex-mulher, que durante anos
a fio encarregou-se do teu bem-estar, administrando as devidas cautelas,
cuidando da tua alimentação por sondas, lavando-te, barbeando-te e
atendendo sempre à mais parca das diligências, com a proeza ainda de
suportar os custos e a casa com a sageza de uma guerreira. tudo isto
até ao dia em que a ideia de te abandonar deixara de suscitar remorsos,
e auspiciosa de uma vida melhor, partira com o amante para uma pe-
quena comuna num cantão suíço, deixando-te ao cuidado de uma auxi-
liar em part-time. tão bem que ia agora uma imperial, pensas. procuras
um cigarro, algures na gaveta da cabeceira. fuma-lo e pensas no coalho
existencial em que vieste à tona. que nóia. lês outro recado deslocado,
escrito em letras minúsculas, informando-te que durante estes oito anos
havias sido pai duas vezes, e desatas a rir-te, à medida que uma erecção
desponta de dentro dos boxers.
─ fosga-se, nem a dormir lhe dei descanso.

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─ mas não acha que perdeu um pouco o gás?


─ experimente acender um fósforo.

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palpites para má-língua e sevícias

3.

cedo me especializei na arte do retrato e embora não seja um ar-


tista reputado nem seja a pintura o meu mester, considero-me não só
um vanguardista no que respeita ao meu repertório como estou certo
de ser inigualável no meio. foram precisos anos e anos para me encon-
trar. é certo que desde sempre um inato talento para o grafismo se evi-
denciou em mim. obtive sempre os mais diversos encómios, e nunca
sem cabimento, segundo a opinião generalizada. a facilidade de traço,
a precisão, a rápida absorção do objecto contemplado ─ sem qualquer
esforço, e com um lápis apenas, fotografava as pessoas. era-me tão fácil
e célere a reprodução visual que não tardaria a enfadar-me e a negli-
genciar por completo semelhante dom, tendo prosseguido estudos numa
área em nada condizente com as artes, ou seja: medicina-legal. o que
de início me havia atraído era a completa dispensabilidade de lidar com
pacientes vivos. não é que fosse introvertido ou manifestasse tendências
anti-sociais ─ pura e simplesmente a ideia de lidar diariamente com la-
múrias, queixumes e choradeiras espaventava-me. quão bem mais zen
e pacato não era ter ao meu cuidado um belo naipe de corpos já expira-
dos de sua validade. e o certo é que não desgostava da lida. os corpos,
sobretudo, maravilhavam-me, absolutamente vazados de dores, memó-
rias, cinismos, augúrios ou falsas expectativas. eram-me entregues para
dissecar sem qualquer resíduo de alma ou humanidade – autênticas na-
turezas-mortas – e esse estado de tabula rasa despertava em mim um
qualquer fascínio, aliado ainda à estética resultante dos incidentes que
ali os traziam rematados de golpes, escoriações, chagas, hematomas e
demais lesões. não foi desde logo que o impulso de os reproduzir no
papel se me abarcou. contudo, mal me dispus pela primeira vez a fazê-
-lo, a energia que me impelia ao estímulo era incrível: pintava-os quase
desbragadamente, independentemente da técnica a que recorria, movido
por um extraordinário instinto, e não tardou para compilar dezenas de
retratos a esmo. obcequei-me com aquele fenómeno: passava os fins-de-
-semana sequioso de regressar ao necrotério e flipava acaso algum corpo
tardasse em chegar. não tinha quaisquer pretensões de polémica ou de
sensacionalismo. na verdade, nem me passava pela cabeça exibir a quem
quer que fosse as obras dali criadas: o meu único fito era o prazer que em

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narciso pinto

mim geravam aqueles retratos. ao longo de vários anos, reuni milhares


de retratos nos mais variados estilos, tamanhos e formatos, que guardo
num armazém para o efeito, e embora me saiba pioneiro incógnito de um
acervo votado ao oblívio e cujo relevo qualificar-se-ia de prodigioso se
trazido a público, o meu maior e supremo desgosto será sempre um e um
só ─ a manifesta impossibilidade de um dia forjar um meu auto-retrato.

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─ o mundo revela-se àqueles de génio frágil e talento errado.

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acerca do autor:

nasceu enfezado e por lá se mantém. cursou 1 semestre em ciências políticas e a


filosofia oriental dita o grosso da sua génese. é um admirador confesso do dantas.
pouco ou nada de relevante se pode aditar aditar no entanto a crítica especializada
dirá de sua justiça.
trabalhou alguns meses num call-center.

__________________________________________________________

filmes que inspiraram este guião: vale abrãao / prometheus / u omãi qe dava pulus/
holocausto canibal / kilas / o arco-íris da gravidade

__________________________________________________________

moral da história: não é útil doar sangue em público.


acerca do autor:

nasceu enfezado e por lá se mantém. cursou 1 semestre em ciências políticas e a


filosofia oriental dita o grosso da sua génese. é um admirador confesso do dantas.
pouco ou nada de relevante se pode aditar aditar no entanto a crítica especializada
dirá de sua justiça.
trabalhou alguns meses num call-center.

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filmes que inspiraram este guião: vale abrãao / prometheus / u omãi qe dava pulus/
holocausto canibal / kilas / o arco-íris da gravidade

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moral da história: não é útil doar sangue em público.

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