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Capítulo I – Mariposa

U M inseto detestável voava em inúteis tentativas de


achar um caminho. Traçava círculos ao redor de um
desses lampiões que mal e mal iluminam um pedaço
de caminho. Terrível, obstinado. Eu, Juventino Amadeus,
odiava tanto a tal visão por reconhecer naquela mariposa um
reflexo, metáfora quase perfeita de meu espírito, coisa que mais
repugno agora, depois de tudo que tenho feito nos últimos
tempos de minha existência, apesar de belo o nome dado à mim
por meus pais na pia batismal, nada me resta como “amador de
Deus”.
Não saberia quando ou onde os desastres, acidentes,
tropeços de minha vida se iniciaram. Nem sei distinguir desde
quando tomei consciência de ser quem sou, mas ainda assim
arrisco dizer que o desmoronamento sucessivo de minha mente,
corpo, presente e futuro, começou nesse mesmo catastrófico
instante.
Relembrar a época em que era apenas um moleque
escondido nos aposentos de meu pai, sem mais preocupações
que não irritá-lo, atiçar a memória numa transição semelhante à
um piscar, desses momentos enérgicos, mas de certo modo
inertes, aos momentos quase sóbrios em que me aproximava do
corpo flácido de meu honrado pai, então estendido num caixão
de alvenaria rodeado de velas e repleto de flores, trajado em seu
terno preto, olhos fechados, mãos postas. Naquela antiga
expressão, era como se dormisse, apenas, e fosse, a qualquer
hora desavisada, acordar e perguntar-me por que tanto chorava
e tanto sorria… porque eu chorava e sorria, nas minhas crenças
infantis de vê-lo alegre entre as nuvens…
Relembrar, remexendo um doloroso espinho, o primeiro
e solitário momento em que, olhando ao redor do quarto vazio
de meu pai, observando, através da porta, mantida aberta,
aqueles que chegavam e lamentavam aos prantos a morte de seu
filho tão querido, pela primeira vez, tive noção de meus olhos,
de minhas mãos cobrindo-os, da ardência das lágrimas
correndo, excessivas, uma após outra, e, mais importante que
tudo, tive ciência plena, eu bem me lembro, de que apenas me
encontrava aos prantos, porque assim se encontravam todos em
meu redor.
Dali não via céu azul, nuvem branca, gramas verdes ou a
água um pouco suja da lagoa. Dali não via rostos indiferentes à
morte que batia, humilde e resignada, conhecedora de que não
era esperada, na porta de minha vida. Ali as paredes
descascando, a velha pintura, oprimiam-me. Era um quadro
desprovido de habilidade. Representava uma triste flor que me
fazia questionar por que cresciam flores. Ali o armário de
madeira antigo evocava-me questões insolúveis sobre meus
antepassados, também mortos, aos quais meu pai, ainda tão vivo
em minha memória, ajuntava-se… Ali eu não tinha controle
sobre mim, e a cada olhadela perdia-me ainda mais, afinal, por
que eu podia ver?
Eu podia ver, e via confusão, já meu pai agora e até o
dia do juízo final não mais pode utilizar do maravilhoso
conjunto de órgãos que o fizera ver minha mãe e se apaixonar.
Meu pai jamais tornaria a abrir seus olhos castanhos que muito
me repreenderam, muito me confortaram. Mas eu ainda podia
ver e sorrir, e viver como vivia antes, como se nada houvesse
passado. Embora soubesse do fatal ocorrido, podia apenas sair e
respirar, hauriria ainda de certa paz, sorriria, e até pularia
amarelinha! Imóveis os lábios de meu pai para repreender
minha ingenuidade. Enquanto calculava um modo de sair,
minha vó transmitia a leveza de um tiro de canhão, de alguém
que nunca mais largaria as lágrimas em todo tempo que lhe
pulsasse a vida no coração, marcado agora para sempre por tal
perda.
A morte, afinal, é perda incompreensível, e morte de
filho tão jovem, de pai tão bom à família, morte de homem tão
honrado, tão alegre, tão fiel, morte de cantor cuja voz nunca foi
gravada. Morte de varão cuja foto do riso faz rir, cuja foto da
seriedade traz gravidade. Morte repentina, numa manhã em que
todos esperavam vê-lo à tarde, em que eu esperava vê-lo contar
dinheiro à mesa.
Relembrar tantos borrões de lágrimas e sinapses falhas
ante o choque faz meu coração pressionar-se no peito,
reconhecer que a única coisa que possuo suprema, minha
impotência, sempre me acorrentou. Tirânica impotência. Faz
com que enxergue pobre a mariposa. Impotente pelas
detestáveis criações do homem de achar seu caminho, impotente
para guiar-se pela lua, embora com tal habilidade tenha nascido.
Detestável lampião que rouba à mariposa a pureza do luar.
Terrível lampião… Luz urbana que não me permite observar o
céu noturno em todo seu esplendor.
Capítulo II – Céu

D AQUI do brejo paraibano, em plena encosta do


planalto da Borborema é verdade que não raro meu
grande amigo vê-se afastado de mim por essa
luminosidade monstruosa, que refletida nas nuvens baixas de
minha terra se tornam um véu cor de lama terrível, mas vamos
lá afastarmo-nos da cidade, erguer um pouco a cabeça quando
bate a sagrada seis da tarde, hora bendita e santa, veja lá! Onde
Luís Gonzaga com todo povo nordestino se põe de joelhos
diante da mãe do Salvador, para clamar numa prece pura forças
para carregar cada qual sua cruz..., porém que nem todos
guardam tal pureza no coração.
Os que essa pureza não guardam, como eu, que
dispensam o movimento mais humilde que há, ajoelhar-se,
ergam-se pois, e não só as pernas, mas também a face, pois não
sei que fenômeno tantas vezes mantém o céu limpo, mesmo em
dias de tempo nublado, breves momentos após o ocaso do
grande astro, quando a Lua vem branda reinar, partilhando a
realeza desse céu físico com estrelas e planetas, cujas luzes se
tornam fracas após viajar largas distâncias, desde as bordas do
nosso pequeno sistema ou até desde os horizontes da própria
Via-Láctea, exuberantes distâncias! Para então finalmente
serem visíveis a nossos olhos terráqueos.
Agora nesse começo de setembro a Lua de fases passa
por sua fase crescente, e lá está, vejam se os apetecer,
Sagittarius que se mostra em parte, nas proximidades de nosso
querido satélite natural, e o rabo de escorpião sempre perfura
meu coração mole de admirador. Júpiter potente, belíssimo à
leste, brilhando hoje como farol de Maria fumaça. E haverá dia
em que aqueles providos com os instrumentos precisos serão
capazes de observar suas quatro luas galileias.
Ah... Que sim, agora me é permitido o respirar puro e
livre, agora diante da beleza de meu jamais odiado universo,
não me sinto mais amarrado pela dureza do olhar humano, pela
obrigação do trabalho, imposta pela luz solar. Agora, queridos
que se ajoelharam, gozo o mesmo que vós outros, face a face
com o Criador, gozo do conhecimento de minha pequenez, o
mais simples e puro prazer de saber. E sei que sou imagem do
universo, feito da mesma poeira criadora das estrelas! Olho, não
um vazio impalpável e opressor, vácuo que denota a falta de
sentido da vida, antes observo o próprio reflexo de minha alma
e sua mesma extensão!
Nem toda luz é visível, mas sou completo, e cada ponto
brilhante realça a beleza daquilo que não pode ser contemplado.
Como no espaço profundo, nas profundezas de minha alma
ainda existem coisas desconhecidas e de todo misteriosas
mesmo a mim que comigo convivo desde que me lembro de
viver. Coisas antigas que já borbulharam ferventes: paixões,
ódios, desesperações; mas que já esfriaram ou calmamente
percorrem esse processo rumo a se acalmar, e dessas aparentes
mortes de planetas e estrelas surgem novas vidas, novas ideias.
Quantos pulsares mais massivos que esses não formaram
estrelas de diversas magnitudes? Quem eu permito olhar, vê a
beleza de minhas luzes. E quantas dessas depois de tanto
queimarem já não cumpriram o que deviam e se transformam
em novo berço de poeira espacial, para que continue a
transformar-me através delas? E quantas não se tornaram
estranhas coisas... Sugando o que delas se aproxima, mas
também servindo de sólidos centros, para que todo resto se
organize firmemente em meu espírito?
Falo de planetas, estrelas, nebulosas, anãs brancas,
buracos negros e galáxias ou de minha alma? Quem sabe...

Capítulo III – Sou também, prazer, Zé rói céu

A
H, que lhe acho Teo! Teus sumiços ainda matam
Ludovico, e cada vez mais põem a ferver a tez do
Gavião com que devias estar mais preocupado. – O seu
tom era de reprimenda, mas ironizava um chiste e saudava
minha travessura espalmando sua mão em minhas costas.
- Ora Cão, que saí para resolver minhas necessidades
animais no mato e pense que não vi a hora passar.
- Não me invente essa, seu tribunal é lá na terra. E olhe
que penso que estavas era a estudar essas tuas estrelas e sabias
muito bem a hora em que apareciam. Pelo teu bem, Teo, deixe
disso ou pelo menos diminua a frequência, te pagam pra capinar
ou pra sonhar, Zé rói céu?
- Bem, bem! Não há problema, sou pago por quilometro,
não por hora, vou me levantar antes de aurora amanhã e tu vai
ver como não hei de parecer os vigias lá da bíblia.

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