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MANUEL TEIXEIRA GOMES

fragmentos vários

[Viagens I]

… não sei se é melhor, para apurar toda a soma de felicidade que as viagens produzem ir, hora a hora,
apontando as impressões recebidas e os contornos mais salientes das coisas entrevistas no seu aspecto
de ocasião, ou nada escrever e entregar essas impressões livres ao carinho da memória que, se o
merecem, as detém intactas, invioláveis, e no-las restitui vivíssimas, só que um leve desejo ou lenta
saudade as bafeje.

Fixar impressões na carteira é como o trabalho ingrato de colecionar mariposas, reduzindo a uma forma
só, gelada, o que tem mil formas, no calor da vida, na extravagância do movimento. Pois não é
amortalhar as sensações escrevê-las? Eu penso que já me não pertencem aquelas que tento limitar e
trasladar ao papel e uma vez escritas nunca mais me volvem à lembrança. Mas essas notas de ocasião,
tomadas na origem, no calor da surpresa e da alegria, revestem-se de sugestivas palavras que, depois,
mais tarde, impossível é encontrar, e se para gozo próprio mais vale que tudo flutue à mercê do sonho,
para transmitir aos outros certas particularidades, certas aparências, o encadeamento de certas
emoções, nada substitui, talvez, as linhas irrefragáveis dessas mesmas muito breves notas, tiradas de
instante a instante.
Inventário de Junho, 1899 (Pedes-me impressões dessas cidades do Norte…)

[Viagens II]

Não foi em sonhos, como o profeta que um anjo transportou de Babilónia à terra dos seus desejos, mas a
bordo de um simples vapor holandês, de carga, que eu, ao soltar-me da Presidência, me lancei sobre as
almejadas plagas africanas, iniciando aí, mau grado a velhice, esta grande Primavera de liberdade e
felicidade, que ainda agora dura. Chamava-se Zeus esse navio, e, supersticioso como um livre-pensador,
augurei muito bem uma viagem começada sob a égide do Rei do Olimpo. Não me falhou até aqui o
prognóstico, e presumo que a própria Vénus foi industriada para acudir à minha caducidade, num ou
noutro lance de maior provação. — Após uma muito rápida excursão por Marrocos, e três meses
repartidos entre Argel e Tunes, trasladei-me a Nápoles, onde fiquei mês e meio; daí passei a Florença,
que me reteve mais de quatro meses, vindo depois para Pisa no fim de Setembro, na intenção de
regressar a África, para onde espero partir dentro de poucos dias.

Como vê, não busco novidades nesta viagem, e contento-me com revistar o que já conhecia. Mas trinta
anos, e nalguns casos, como Florença, quarenta anos de intervalo, se não transformam a vida e o cenário
das regiões por onde andámos, mudam-nos a nós mesmos de tal maneira, que é inteiramente diverso já,
o indivíduo que recomeçou a viagem, daquele que outrora a realizou; e toda a novidade, que é enorme,
não provém tanto das suas actuais impresõses, como da relação que ele lhes encontra com as
impressões experimentadas por esse outro indivíduo, em que encarnou num tão remoto passado. E este
como que desdobramento da personalidade tem a vantagem de nos trazer sempre acompanhados, — na
única companhia efectiva, suportável em viagem, que somos mesmos.

excerto de Carta a António Patrício (Pisa, 8 de Novembro de 1926)


[A imaginação]

Montaigne ressentia-se do excesso de imaginação, que, dizia ele, a toda a gente apoquenta e a alguns
abate ou destroça. Eu sou daqueles a quem a imaginação mais facilmente domina, mas na mais
consentida e amada escravidão. Devo-lhe o melhor da minha vida, essa faculdade de me evadir sem
esforço do círculo de abjecção e miséria moral que a sociedade, incessantemente, reforça e aperta em
volta dos nossos mais nobres sentimentos, com tal poder esterilizador, que a comezinha prática da
justiça, do bem, do belo, se converte em utopia inexequível e grotesca. a imaginação me suavizou e
aformoseou a existência, e se uma ou outra vez me extraviou pelos caminhos do absurdo, foi sempre
através desses arcos festivos, que a fantasia levanta e enrama de mil arabescos engenhosos,
tranformando-os por completo, até ao ponto de tornar plausível à arte o que a razão repele. Já não falo
no que foi o perpétuo sonho acordado da minha infância, nem da milagrosa exploração do pensamento
pelo infinito reino da quimera, durante as horas em que, na mocidade, eu contemplava os páramos
celestes, ou embalado pelas ondas do mar cheio de sol, ou imóvel, sob o recamo cintilante dos astros
nocturnos; refiro-me à época das responsabilidades indeclináveis, quando o contacto e a colaboração de
todos os elementos sociais nos é indispensável, obrigando-nos a afivelar a máscara sem a qual seríamos
considerados e tratados como réprobos. Nas crises mais agudas e aflitivas de náusea e descrença,
encontrava, no refúgio sempre acolhedor da imaginação, remédio para todos os males, conserto para
situações irreparáveis, restauração plena das forças perdidas e já declaradas insubstituíveis.

excerto de Carta ao Dr. F. Mira (Tunes, 7 de Janeiro de 1927)

[Desordenado viver e pensar]

Eu fui sempre um homem de desordenado viver e pensar (valeu-me o ter chegado a este mundo quando já estavam apagadas as
fogueiras da Santa Inquisição, sem o que há muito que uma delas me haveria purificado da mácula dos meus pecados) e não levo
jeito nenhum de tomar melhor caminho, começo a nutrir sérias apreensões acerca dos dias que me esperam; são capazes de me não
deixarem festejar o meu próprio centenário, no que eu punha certo empenho, pois era o mais bonito número do resto do meu
programa.

excerto de Carta a António Patrício (Tunes, 17 de Março de 1927)

[O amor]

(…) em vez de me entregar a austeras meditações, sobre a áspera figura de Santo Agostinho, eu levo o
tempo a discorrer acerca do amor, seja qual for a forma que ele revista. E tudo me parece bem! Eu não
sou daqueles que mofam da nobre e antiga empresa, em que os verdadeiros poetas sempre se
empenharam, de transformar a operação sexual, ou melhor, de a ornar e explicar por um jogo da paixão,
do sentimento, do ideal… Mas rio quando eles pretendem leccionar a mocidade, com os resultados da sua
experiência, precavendo-a contra os desastres que o amor lhes ocasionou. Em matéria de amor só se
aprende nas próprias experiências, e quando alguma coisa se sabe já não é tempo de amar de novo. O
amor não dá lições proveitosas; dá recordações, penas, saudades, cuja amargura ou cuja delícia
aumenta ou dimunui, com a certeza de que o mesmo caso nunca se repete. E a indecência do acto sexual
desaparece, com efeito, no tumulto da paixão, do sentimento, do ideal, que o envolveu na fase
amorosa…, ou redobra quando se consuma por obrigação, diariamente, no ritual da religião doméstica,
tal como o padre mercenário e cínico celebra a missa de alva…

excerto de Para um poeta pagão - paralelo sacrílego (Bône, 27 de Outubro de 1928)

[Acesso de rabugice]
Para o aborrecimento e melancolia que aí lavram, não há remédio nem lenitivo possíveis. Foi e será
sempre assim, por muito que a Fortuna e o Progresso nos favoreçam. Povo romântico (romantismo
gorado) não precisou de ouvir Goethe para procurar a felicidade na inquietação… invejosa. E roído de
semalhante lepra, só abre os olhos para as cróias e para os automóveis alheios, não encotrando gozo
algum na posse do pouco ou muito que lhe pertence, e ainda menos na contemplação da Natureza, que é
o inesgotável tesouro comum, de que não sabe nem pode fruir. Quanto às almas de eleição, a cuja
desamparada tristeza especialmente alude, na sua resposta ao inquérito Ameal, bem podiam procurar
conforto no espírito clássico (como quem se acolhe a um sanatório), cujo carácter essencial reside no
equilíbrio, "lucidus ordo", tão propício às composições artísticas, como à paz interior. O olímpico Goethe,
e o conchudo Chateaubriand, exloraram infinitamente (a vida inteira) e literariamente, alguns momentos
de inquietação e melancolia, que tiveram na mocidade. "Faz da tua dor um poema", é a divisa desses
dois adoráveis, ilustres e solertes cabotinos, que assim emnaíam o público, quando praticamente eles
próprios se encostavam à sólida quietação dos estabelecimentos bancários, dos privilégios sociais, e das
distinções nobilitárias. Há uma inquietação real, perpétua, e torturante, a do Miguel Ângelo, que desfecha
no lema trágico: "mil prazeres não valem um só tormento", mas essa não se imita, e propagada tornaria
este mundo numa arena de réprobos e feras. Foi a peçonha do cristianismo que desequilibrou a
humanidade redimida pelos Gregos. Houve depois um momento de esperança, quando o sangue quente,
exuberante, da Renascença, se transfundiu para os moldes quietos e perfeitos da antiguidade clássica.
Mas isso passou rápido, fugaz, como o reflexo de um relâmpago. Apesar de tudo, o que convém é repetir
sempre e sempre, soltando bem alto esse grito fecundo e salutar; como é belo viver e ser forte! E na
velhice experimentada e decente, o que se oferece aconselhar à mocidade como panaceia de equilíbrio
intelectual e felicidade espiritual, é que ponha na sua vida "sol e riso". Mas ponto neste leve acesso de
rabugice…

excerto de Carta a João de Barros (Tunes, 5 de Junho de 1929)

[A nudez]

Na raça portuguesa ainda o selo [do cristianismo marcou mais fundo, não se topando um grande mestre
da língua, mesmo entre os descrentes ou ateus, propenso à compreensão da beleza plástica da nudez
humana. Continua o nu a ser a última expressão da obscenidade. O Camilo nunca prevê uma coxa sem
pontinha de sadismo. O culto da forma nua é para ele uma variedade do fescenismo conspurcante, que
denota os piores instintos. Foi homem que nunca admirou um corpo de mulher despida, e se alguma vez
a amante tirou diante dele a camisa decerto que deitou a fugir.

Para aqueles a quem falta, na composição do sentido estético, a intuição da nudez pudica, não há
concepção possível da carne sem lubricidade. Um efebo nu é sempre, no seu entender, espectáculo só
apreciável a sodomitas. O corpo humano aparece-lhes compartido em zonas castas, impudicas e
escandalosas. Com excepção de Camões (e até nisso ele é único) a nossa literatura clássica não possui
um cantor da plástica humana; e nunca uma estátua grega transpôs as fronteiras lusitanas. Ainda
recentemente as figuras nuas do frontão da Câmara Municipal escandalizaram os poetas,q ue lhes
dedicaram sátiras indignadas. O João de Deus foi um deles…

Comigo sucedeu, vá lá saber porquê, ter congénito o sentimento da beleza do corpo humano. Deleitava-
me, em pequeno, ver as outras crianças nuas, e o exame do meu próprio corpo reproduzido no espelho,
depois do banho, enchia-me de admiração e emvecida surpresa. Mais tarde a nudez integrava-me na
harmonia cósmica. Esse orgulho de ser forte e moço, nas lutas com o mar revolto, com que intensidade
me não animava quando, erguido sobre um rochedo, na minha nudez de herói, eu me dispunha a novos
combates, mergulhando outra vez no tumulto das ondas. Dentro da água, os membros soltos no líquido
móvel e cristalino, pulsava-me o coração com tão seguro ritmo como se nele ecoasse a pulsação da vida
universal…

excerto de Carta a António Patrício (Versalhes, Setembro de 1930)

As Cartas citadas constam do livro Miscelânea, 3ª edição, Venda Nova, Bertrand Editora, 1991

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Dizer-lhe então, meu amigo, as noites sensuais de Sevilha, essas noites de cruciante deboche, de
bestialidade, de sadismo, algemado à embruxada carne de umas bailarinas desgorjadas e sovadas, mas
cujo suor e cujo sangue me eram suaves e deleitosos, como no abrasamento da sede o sumo de
sorvados frutos; de umas bailarinas que ressuscitavam da sufocação do meu corpo, do apolear mortal
dos meus braços, para os moventes frisos em que desdobravam as suas danças engendradas nos
mistérios infames de não sei que lascivos e olvidados ritos ou que infernais liturgias, e se faziam assim
cada vez mais desejadas, mais apetecidas, mis necessárias (…)

in Cartas sem Moral Nenhuma, V

Que mulher! que assombrosa mole! que roda de saia, que volume de ventre, que dimensões de
pousadeiro, forte, circular, pomposo como a popa de uma galeota holandesa! Um sinal pardo que lhe
crescia na face esquerda tinha traça de verruga férrea, desvio de blindagem, ou quando menos insígnia,
distintivo de petrecho guerreiro. Era mulher apropriada a exer´ccios ou manobras alpinas; de se
marinhar pela obras da frente e descer pelas traseiras com o auxílio de cordas de nós e escadas de
incêncio.

Para acudir a tudo isto, penso eu, exibem os chupados indígenas do sexo forte, no sítio próprio, como em
idóneo escaparate, volumes que, talvez, também artefactos de embusteiros, excedem o pão de trinta
réis, torcido em forma de arrocho, com o qual certo pintor parisiense de grande fama aumentava a
freguesia, enfeitando-se quando tinha de retratar, estando presente o modelo, alguma dama de alta
jerarquia.

in Cartas sem Moral Nenhuma, VII

Leio a miúdo nos jornais de ideias avançadas que a Igreja Católica é uma "força morta" e lembro-me, por
contraste, dos Holandeses a chamarem delicadamente aos quadros "de naturezas mortas" "vidas
mudas". Eu desvario de pavor perante a probabilidade de incorrer nas iras dessa "força morta" que nem
mesmo à custa de subtilezas bizantinas se poderia nunca dizer "força muda", pois berra e brame
diariamente pela boca de milhares de energúmenos desencabrestados, e creia que se não fosse a minha
ilimitada confiança na sua discrição já ia reler quanto escrevi para bifar qualquer irreverência puxada pela
retórica ao bico da pena.

in Cartas sem Moral Nenhuma, XVII

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