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J

ovem e promissor artista visita um mestre da pintura de


quem espera orientação e ajuda. Um inesperado encontro
com um pintor ainda mais famoso coloca-o diante de sério
dilema. envolvendo a mulher amada. Seu futuro na arte e na
vida depende da opção que fizer.
Este poderia ser um enredo comum na literatura. Por uma
série de circunstâncias especiais, .4 ol)ra-prima ignorada
tornou-se, porém, emblemática das opções e tormentos do
artista obcecadopor sua obra - e da atmosferaem que surge
a arte moderna. alterando as concepções estéticas e lançando
as bases de uma arte contemporânea ainda mais inovadora.
Emposfácio inédito,Teixeira Coelho explora o universo de
idéias e sensibilidades desta novela do criador de /4 comédia
humana.Trazendo a discussão para o cenário atual da arte
e da cultura, o autor destaca o papel do Romantismocomo
recorrente ideário estético e princípio ainda ativo de um
programa de vida.

ISBN 85-89496-02-3

,llllB!!H! .comunique
c ç Ào
S
aber se o que fez é inovador e bom ou
pelo contrário, um desastre irreparável
constitui um dramaconstante na vida do
artista que tem na arte a razãode viver.
Em.4 ol)ra-prima Ignorada, Honoré de
llllhl'ldas representações
1)1UIUHUuma
Balzac oferece lll:klHllHIHI centrais
llHlllhEIde nascimento da arte moderna
do drama
1111:Rll=
aquela que l Turner e
por exemplo, a arte de
'l ]H ]]i] l:n: aEilq
3pois, Lqli
de Monet iEariliiin
e tantos outros. Seus temas
l
são o que fazer em arte e como saber se alt l
Í ue se está fazer l
i que ilill(i fez, é
um outro
bom ou não, é arte ou
l não. Mas é também
l l uma
i ria sobre o amorl
e o choque entre paixões
l
por coisas distintas, se nê ;tas.
llil:lhH'l
Esta novela,que ao1] redor
(Hi]i] «ida lenda
l

de PigmaleÊ Ihl }:(lllhllll]


artista apaixona ili r sua

i[[t i] ir:nn]
criaçãoe que lnlnHIdar
ouses para
l
he vida), l
foi escrita por Balzacatendendo
l
à encomenda l
de uma revista literária que
11hll:«lque um entretenimen l
buscavapouco1] mais
l
para seus leitores. IR no
Seu texto, lllZHllhlll(l
entanl
transformou-se num dos mais marcantes do
l l

gênero,sendolidoe relidoem lllnl lnlll:RllHll


arte pe
i] i i i] i rRI
co geral e ; artistas. Misturando
niiii rihni
3rsonagensreais da história l i(u rn]
da arte, cora iin
l a alguns fictíc :lH lllllUlll
Poussin e Porbus, ém [lde
111111 lvl:lll
verossímeis nesse universo, Balzac criou
umtexto
l inten :lnlhll
habite IhRvlll
elas forças da vida
l
sensível tanto quanto pela especulação teórica
!
conflito
illllll(i] entre ]i»:]]'i]i
[Hlll(:] o amor e a
'issão,a escolha
i a esfera da vida a sacrificar oara
l aue a outra 1.

se afirme e a possibilidade
ll 1111 l dois
de ser feliz nos
campos são temas tãol centrais nesta novela
l

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como as idéias
l sobre arte que nela expõem
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seus personagens. 0 resultado é um texto1] ri(
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e ambígt ecadaum qili 3 ver, quase,
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BALZAC
A obra-prima ignorada
NOVELA

ENTRE A VIDA E A ARTE


Teixeira Coelho
POSFÁCIO

.comunique
F l C ç Á O
Copyright © zoo3by peixeira Coelho
Copyright da tradução © zoo3by peixeira Coelho

DadosInternacionais de Catalogaçãona Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP,Brasil)

Balzac, Honoré de, i799-i85o


A obra-prima ignorada / Honoré de Balzac. -- São Paulo
Comunique, zo03

Título original: l,e caem-d'oet4vre {nconríu.


Entre a vida e a arte / posfácio ]de] Teixeira Coelho
Bibliografia
ISBN 85-89496-0z-3

Arte -- Filosofia 2. Balzac,Honoré de, i799-i85o. A obra


prima ignorada -- Crítica e interpretação 3. Ficção francesa 4. A OBRA PRIMA iGNORAOA, 9
Pintura 1.Coelho,Teixeira. 11.Título.
Reáerê?leias, 59
03-2514 CDD-843

Índices para catálogo sistemático:


i. Novelas : Literatura francesa 843
ENTREA VIDA E A ARTE, 65

Direitos desta edição reservados à


COM UNIQUK EDITORIAL
Rua Mário de .Nencar, zo7
o5436-0go -- Vila Madalena
São Paulo--SP
Tel. (u) 3o97-g6z6

Printed in Brazil zoo3


Foifeito depósitolegal
H O N O RE

BALZAC
A obra-prima ignorada
A um lorde

i845
GIL L

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P

N
uma fria manhã de dezembro de 1612,

um jovem cujas roupas eram de ral! apa-


rência andava de um lado para outro
dianteda porta de uma casana Ruedes Grands-
Augustins, em Paras.Após ter longamente peram-
bulado pela rua com a indecisão de quem não se
atreve a bater à porta de sua primeira amante, por
mais fácil que ela seja, o jovem acabou por atraves-
sar a soleira daquela porta e perguntou se Mestre
François Porbus estava em casa. Com a resposta
afirmativa da velha que varria a entrada, o jovem
subiu vagarosamentea escada,parando em cada
degrau como um novo cortesão incerto da acolhi-
da que Ihe dará o rei. Chegando ao alto, deteve-se
por um instante, hesitando em usar a aldrava gro-

l 3
\

HONORÉ DE BALZAC * .) {''' A OB RA- PRIMA IGNORADA


\bl''
tesca que ornamentava a porta do ateliê onde sem primeira, por esse pudor indefinido que as pessoas
dúvida trabalhavao pintor de Henrique IV. ago destinadas à fama sabem perder no exercício da
ra abandonado
por Mana de Médias em favor arte assim como as belas mulheres o perdem tam-
de Rubens. O jovem experimentava essa sensacão bém no manejo da coqueteria. O hábito do triunfo
rotunda que deveter feito vibrar o coraçãodos apequena a dúvida, e o pudor talvez seja ulD..U11)©o
grandes artistas quando, no auge da juventude e dadúvida.
do amor 12çl3a!!ç, aproximaram-sepela primeira Acossado 3..
pela miséria e atónito com su3.pi=épria.
-.-....-'' ----'

vez de um gênio ou de uma obra-prima. Em todos presunqqp, sem o auxílio extraordinário do acaso
os sentimentos humanos existe uma flor primitiva, o pobre neóf!!g não teria entrado no ateliê do pin
engendradapor um nobre entusiasmo, que vai çle. tor ao qual devemos o admirável retrato çlç.Henri-
, Q/
finhando até que a felicidade setransforma apenas que IV Um velho subiu a escada. Pela estranheza l
numa lembrança e a glória, em mentira. Dentre da indumentária, magnificência da golilha de ren- l
nossas frágeis emoções, nada se assemelha tanto da e imponente segurança do andar, o jovem per-,/
ao amor como a jovem paixã(4de um artista quç se cebeunessepersonagem um protetor ou amigo do
inicia no delicioso stl11$çiode seu destino de gló- pintor. Recuou para deixa-lo passar e examinou-o
ria e desgraça,paixão plena de audácia e timidez, com curiosidade,esperandonele encontrar a boa
vagas crenças e frustrações inevitáveis. Àquele que, natureza.d:q.um artista ou o caráter prestativo dos

/
curto
;
dç.Sljl1llSim porém dotado com adolescen- q!!ç.êDln.!!g!;çÊ$ Mas havia algo de diabólico na- \
.re te genialidade, não tremer ao apresentar-sediante quele rosto, sobretudo um-......=....................--.-----=-'-'---n'l
je /zesais quoí que atrai /
U
r de um mestre, faltará sempre uma corda no cora- os artistas. Imagine uma testa alta, volumosa, proe- {
ção e, em sua obra, alguma pincelada, um deter- minente, terminando num nariz pequeno, acha- 'l t,.çq'
tado e rebitado como o de Rabelais ou Sócrates; l ' :lr/

minado sentimento, uma certa expressãopoética.


Apenasos pobres de espírito têm em alta estima lábios sorridentes e enrugados, um queixo breve, '
os fanfarrões cheios de si que cedo demais acredi- orgulhosamente empinado, envolto numa barba
tam em seufuturo. Sob esseaspecto,aquelejovem grisalha e pontiaguda; olhos de um verde marinho,
desconhecidoparecia ter um verdadeiro mérito, se aparentemente esmaecidos pela idade mas que, em
é que o talento deve ser medido por essatimidez contraste com o branco perolado no qual flutuava t.,P..42-.
} .,,,«.,-:;-
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NONO RÉ DE BALZAC A OB RA- P RIMA IGNORADA

a pupila, quando no augeda cólera ou do entusias- tela presa a um cavalete,e que ainda não mostrava
mo deviam por vezes lançar faíscas magnéticas. O mais do que três ou quatro pinceladas brancas, a
rosto, aliás, mostrava-se singularmente carcomido luz do dia não alcançava as sombrias profundezas
dos cantos daquele vasto aposento; mas alguns re-
pelas fadigas da idade e mais ainda por essespen'
samentosque sulcam tanto a alma quanto o corpo [ flexos perdidos acendiam por entre aquela sombra
Osolhos não mais tinham cílios e mal seviam tra ruça uma paleta prateada no ventre de uma coura
ços de supercílios acima das arcadassalientes. Po- ça suspensa na parede, riscavam num brusco sulco
nha essacabeçanum corpo delgado e débil, envol- de luz a cornija esculpida e enceradade uma anti-
va-o num rendado de brancura reluzente e traba- ga cristaleira cheia de vasilhames curiosos ou res-
lhada em arabescos,jogue sobre o gibão negro usa- pingavamcom pontos brilhantes a trama granulo-
do pelo homem uma pesada corrente de ouro e terá sa de algumas velhas cortinas com brocado doura-
uma imagem imperfeita dessepersonagem ao qual do, com grandes pregas quebradas, atiradas por ali
a luz fraca vinda da escada emprestava uma cor como modelos. Bonecos em gessopara estudo do
fantástica,como se uma lçl3..geRembrandt cami- corpo humano com músculos e carnes à mostra,
nhassesilenciosamente e sem moldura na sombria membros e torsos de deusas antigas, amorosamen-
atmosfera criada por essegrande pintor. Ele dirigiu te polidos pelas carícias dos séculos, acumulavam-
se nas mesinhas e consoles. Inúmeros esboços, es
ao jovem um olhar sagaz,bateu três vezes na porta e
disseao homem de aparência doentia, uns quaren- tudos a três lápis, em sanguina ou bico de pena,
ta anos de idade, que ve o abri;l:'aijt;;n dia, mestre'l cobriam as paredes até o teto. Caixas de pigmen-
Porbus inclinou-se respeitosamente, deixou en tos de tinta, garrafas de óleo e terebentina, escabe-
trar o jovem que pensou estar com o velho e ocu- los caídos pelo chão deixavam apenas um estrei-

pou-se ainda menos dele na medida em que o neó- to caminho até a auréola projetada pela clarabóia,
fito mostrava-se sob o encanto que devem expe- cujos raios caíam em cheio sobre o rosto pálido de
rimentar os pintores natos ao verem o pnmetro Porbus e o crânio de marfim do singular homem.
ateliê no qual se revelam algemas das operações A atençãodo jovem logo foi exclusivamenteatraí-
' materiais da arte. Uma clarabóia no teto ilumina- da por um quadro que, nesses tempos dfl comoção
va o ateliiãe mestre Porbus. Concentrada numa e.!çl:ç2115ão,
já se tornara célebre e era visitado por
l&"4"'
/l,J' t' l 7
HONORÉ DE BALZAC A OB RA-PRIMA IGNORADA

alguns dessesteimosos aosquais se deve a conser- tela e que não seria possível a alguém dar a volta
vação do fogo sagrado durante a tempestade. Essa ao corpo dela.É uma silhueta que tem um lado só,
belapáginarepresentava
uma M!!j!.gg.Egjlo dis uma figui:a recortada que não conseguiria virar-se
pondo-se a pagar a passagem do barco. Esta obra- nem mudar de posição. Não sinto que existaar en-
prima, destinadaa Mana de Médias, foi por ela tre este braço e o campo da tela; !q!!i.811g..çlplçg.ç
vendida quando se viu na miséria. Brofündiglde. No entanto, tud(2..Ê!!g.l;lWbgg.p.ers-
"Sua santa me agrada': disse o velho a Porbus, pectiva
. .....--- e o deXradédas cores do céu está correta-
"e por ela eu Ihe pagaria dez escudos de ouro além /' mente representado. Mas, apesar desseslouváveis
da soma que a rainha oferece. Mas que o diabo me ].. f esforços,eu nunca diria que essebelo corpo mos-
>
carregue se eu for competir com ela...' ' f tra-se animado pelo sopro tépido da .y.içja.. Parece
"Gosta?" que se eu puser a mão nesse pescoço tão redondo
"Hum': fez o velho. "Bem, sim e não. Sua santa e tão firme, eu o sentiria âio como mármores Não,
9' meu amigo, nêgSgrre sangue sob.q?!.qpele de maç

não estámal feita, iUgâ.11õg.!çlB


vida. Vocês acham
que já fizeram tudo quando desenham corrçta- fim,
.,.....,:- alyjd3..não
-.,R....--'-+ preenche
l com seu rosado purpú-
''' '

mente um rosto e colocam cada coisa em seu lu reo as veias âbrilas que se entrelaçam em teia sob o
gar conforme as leis da anatomial Preenchem com âmbar transparente das têmporas e do peito. Esta
cor aslinhas do rosto num tom de carne preparado parte palpita mas esta outra está imóvel; a vida e a
na paleta, tendo o cuidado de deixar um lado mais morte se enúentam por toda parte: aqui há uma
escuro que o outro, e pelo fato de observarem de mulher, ali uma estátua e lá, um cadáver. Sua cria-
vez em quando uma mulher nua em pé sobre uma > 1 São .ç$tá..inçgqpjeta. Você conseguiu insuflar apel:
mesa acreditam que estêg c(!p!!gdo a natureza, \
nas uma porção de alma nesta sua amada obra. A
imaginam-se pintores e estão crentes que rouba- tocha de Prometeu apagou-sevárias vezesem suas
ram o segredo de Deus!... Brrrl Para tornar-se um mãos e diferentes regiões de sua tela não foram to-
«$ bom poeta não basta"Eõnhecera fundo a sintaxe e cadas pela chama celestial."
observar as regras da linguageml Observe sua san- "Mas, por que, caro mestre?': respeitosamente
ta, Porbus! À primeira vista parece admirável, mas perguntou Porbus ao velho, enquanto o jovem mal
em seguida percebe-se que está colada no fundo da continha o desejo de agredi-lo.

i8 i9
HONO RÉ DE BALZAC A OB RA- PRI MA l GNORADA

"Hãl Ê simples'l, disse o velho. "Você pairou in- do o ponto onde, na tela, terminava o ombro. "Mas
deciso entre os dois sistemas, entre o desenho e aqui': disse,voltando para o centro do peito, "tudo
a cor, entre a fleuma minuciosa, a rigidez preci- é falso. Não analisemos mais, só aumentaria seu
sa dos mestres alemães e o ardor resplandecente, desespero-'
a alegre abundância dos pintores italianos.. Você O velho sentou-se numa banqueta, a cabeça en-
\ quis imitar ao mesmotempo Hans Holbein e Ti- tre as mãos, e ficou em silêncio.
l dano, Albrecht Dürer e Veronese.Magnífica ambi- "No entanto, Mestre': disse Porbus, "estudei mui-

\. ção, sem dúvida! Mas, o que aconteceu? Você não to esteçolg,nê mQdçb..pp4. O problema é que, pa- \
conseguiu nem o encanto severo da secura,nem a ra nossa desgraça, há efeitos verdadeiros na nature- l . ..,
magia ilusória do claro-escuro. Aqui, como bronze za que não se mostram yçlg!!Ímejs na tela..." 1 " i.«.
em fusão que estilhaça seu frágil molde, a cor rica. "A missão da arte não é copiar a natureza porém /''''
e quente de Ticiano explodiu o contorno delgado expressa-lalVocê não é um vil copista, mas um
de Albrecht Dürer ali onde você o aplicou. Aqui, a peS!!11: exclamou o velho interrompendo Porbus
linha resistiu e conteve os mêgníâcos transboçda- com um gesto despótico. "Se fosse assim, para um
mentos da paleta vêneta. Este rosto não está nem escultor fazer um bom trabalho bastaria que tiras-
perfeitamente desenhado,nem perfeitamente pin- se o molde de uma mulherl Muito bem, tente en-
tado e mostra por toda parte os traços dessainfeliz tão moldar a mão dEsua amada e veja o que acon ..3

indecisão. Se você não tivesse se sentido poderoso tece.Tudo que conseguiráé um horrível.gdáver
(11:;:'' o bastante para fundir na fornalha de sua geniali- sem nenhuma semelhança com a çgi$3.](iva e você
J'" *,'f/ dade essesdois modos rivais, poderia ter optado se verá forçado a ir buscar o cinzel daquele que,
.,d'"r,,' decididamente por um ou outro a fim de obter a sem copia-la com exatidão, represçDlq.{éo movi- \
unidade qpe simula uma.das.Signdiçõesd? vida. SÓ. mento e a .vida dessa.!n4o. O que temos de captar
aqui no meio da figura, sua pintura é verdadeira: » é o espírito, a alma, a âsigg!!g!!!B das coisase dos
os contornos são falsos, não se deixam envolver e seres.Os efeitosl Os efeitosl Os efeitos são os aci-
'? não sugeremque exista algo por trás deles.Aqui dentesda vida, não a vida em sil A mão, já que dei
sim, há algo de verdadeiro'\ disse o velho mostran- esseexemplo, a mão não está apenas ligada ao cor-
\ do o peito da santa."E aqui': continuou, indican- po, ela expressae continua um pensamento que é

20 21
HONORÉ DE BALZAC A OBRA- PRIMA IGNORADA

preciso captar eexprimir. Nem o pintor, nem o poe' Iho tirando o gorro de veludo negro para manifes-
ta, nem o escultor devem separar g.S$!to da cau- tar o respeito que Ihe inspirava o monarca da arte.
sa, que estão inelutavelpente.mçlçlêdosl O verda- /' "A superioridade dele': continuou, "vem do senti-
mbate está aí. Muitos pintores triunfam l mento interior que, nele, parece querer romper a
instintivamente sem conhecer .esse.t!!i?l ..da arte. \ foi.BP. Em seusrostos,a forma é aquilo que ela
Você desenhou uma mulher, ip!!.!ão a está en- ll é pala..Bos,um meio pê{4 :comuRjçlr.i1lÉ.iê.s,sen
......=;AüHp-+BB+""#aap'+"p+ÇC»m.ü-ne#ia=--en+JSz:ç+'+'

xergandol Não é assim que se penetra nos arcanos l sações,toga uma.yg$B...]29eljg,


Todo rosto é um
da natureza. Sem que você perceba, sua mão re mundo, um retrato cujo modelo revelou-senuma
produz o modelo que você copiou na aula de seu visão sublime, banhado em luz, !gygcaçb.Eor uma
professor. Você não 111f?!Bulha o sy$Sbnte.g!.!nti- voz nterbr, desnudadopor um dedocelestialque
midade da forma, vice não a persegue com suâ- revelou, no passadode toda uma vida, as fontes da
ciente amor e perseverança em seus desvios e em expressão. Vocês fazem, para essas suas mulheres,
suas fugas. O belo é uma coisa austera e difícil que belos vestidos de carne, belos drapeados de cabe
não se deixa apreenderassim; é preciso respeitar los, mas onde está o sangue que engendra a calma
seu tempo, ol21çly4 lo. estreita-lo e abraçiá-lo,for- ou a paixão e provoca efeitos singulares? Sua san-

temente pala força:lf) 1.entregar:se. 4..b!!ilU é um ta é na realidade uma morena mas esta, meu po-
Proteu bem mais inalcançável e cheio de artima- bre Porbus, é uma loiras Essesrostos são pálidos
nhas do que o Proteu da lenda. SÓapós demora- fantasmas coloridos que você nos faz desfilar dian-
dos combates é possível obriga-la a mostrar-se em te dos olhos, e chama a isso de pintura e arte. Por
seu verdadeiro aspecto. Vocês, vocês se contentam terem feito algo que se parece mais com uma mu-
com a primeira aparênciaque ela oferece,no má- lher do que com uma casa,vocês acreditam ter al-
ximo com a segunda ou a terceira; não ê assimque cançado o alvo e, orgulhosos por não terem sido
agem os combatentes vitoriosos! Os pintores ven- obrigados a escreverao lado de suasfiguras curros
cedoresnão se deixam enganar por essessubterfú- venusfusou pu/crer homo, como os primeiros pin-
. gios; pe!!Sl:S11êl11:.111É.quS.!.natureza
seja reduzida l tores, acreditam ser artistas maravilhososl Hãl Hãl
ao estado de mgglEêr-se inteiramente nua e em se! l Não o são ainda, meus bravos companheiros, terão
verdadçjro.âDIElg.Foi o que fez Rafael': disseo ve- l de gastar muito lápis, cobrir muitas telas antes de

22 z3
H ONO RÉ DE BALZAC A OB RA- P RIMA l GNORADA

chegarlá. É verdade,uma mulher inclina a cabeça res italianos. Não conheço nenhum que inventasse
)
desse modo, segura a saia assim, seus olhos mos- a indecisão que se vê no barqueiro.
tram-se lânguidos e se esfumam com essear de su- "Esse moleque bobo é seu?': perguntou Porbus
avidade resignada,a sombra palpitante dos cílios ao velho.

flutua desse jeito sobre sua face! .F..!ssim. e. não .é "Sinto muito, Mestre, perdoe meu atrevimento'\
assim.Que falta? Um nada, mas essenada é tudo. respondeu o neóâto, corando. "Sou um desconhe-
b. Vocês dominam a aparência da vida mas não ex- cido, mas um borrador de tela nato que acaba de
chegar a esta cidade, fonte de todo conhecimento."
. i pressam a transbordante abundância de vida, esse
je ne saísWÍ que talvez seja a alma e que paira ne- "Provei': diz-lhe Porbus entregando-lhe um lá-
bulosamente sobre o envelope de carne; numa pa' pis vermelho e uma folha de papel.
lavra, essaflor da vida que 'ticiano e Rafael surpre' Lestamente,o desconhecidocopiou o rosto de
Mana.
} enderam.Partindo do ponto extremo a que vocês
"Hum, hum!': exclamou o velho. "Seu nome?"
chegaram, talvez se possa fazer uma excelente pin-
tura; masvocêssecansamdepressademais.O vul- O jovem escreveu Mica/as P(Wssin sob o desenho.

go admira mas o verdadeiro conhecedor sorri. Oh, "Nada mal para um principiante': disseo singu-
<' Mabusel Oh, meu mestres': acrescentouo singular lar personagem que falava geneticamente. "Vejo
W
'ü personagem, "és um ladrão, levaste a vida conti- que é possívelfalar de pintura à sua frente. Não
gol" E continuou: "À parte isso,estatela vale mais o censuropor admirar a pintura de Porbus.Para
que as pinturas desseimpostor que é Rubens,com todo mundo, é uma obra-prima, apenasos:l!!!aa=
À
suas montanhas de carnes flamengas polvilhadas dgg.llQ$-maisíntimos arcanos da arte podem des
u' cobrir o que há de errado nela. Mas, como você é
de vermelhão, suas marés de cabeleiras ruças e seu
furor de cores. Pelo menos aqui há cor, sentimento digno de uma lição, e capaz de compreender, vou
4 )
e desenho, as três partes essenciaisda arte.' mostrar-lhe quão pouco seria preciso para com-
"Mas esta santa é sublima!': bradou o jovem pletar esta obra. Abra os olhos e preste atenção,
numa voz forte, saindo de um profundo devaneio. uma ocasião como esta talvez não se apresente
"Estes dois rostos, da santa e do barqueiro, têm nunca mais. Sua paleta, Porbus?"

uma dçljçgdeza..de..i!!!çgçãpignorada pelos pinto- Porbus foi buscar paleta e pincéis. O velhote arre-

z4 z5
H ONORÉ DE BALZAC A OBRA- PRIMA IGNORADA

caçou as mangascom um brusco e convu uivo mo- Reparecomo o acetinado reluzente que coloco no
vimento e enfiou o polegar na paleta multicolorida peito dela evidencia a olasticidade uptuos? da.p.ele
e carregada de tons que Porbus Ihe estendia. Qua- de uma mulher jovem e como estetom de mar-
searrancou-lhe das mãos um punhado de pincéis rom avermelhado e ocre calcinado esquentaa õie-
de todas as dimensões e sua barba em ponta estre- za cinzenta desta grande sombra na qual o sangue
meceu de repente sob os esforços ameaçadores que l se imobilizava em vez de correr. Rapaz,meu rapaz,
exprimiam os pruridos de uma fértil imaginação. o que Ihe estou mostrando agora nenhum mestre
Enquanto embebia o pincel com uma cor, resmun- poderia ensinar-lhe. SÓMabuse detinha o mistério
de dar vida aos rostos. Mabuse só teve um aluno,
gavaentre dentes: "Estas çgrç.ssó servem para Jo'
eu. Eu não tive nenhum e estou velhos Você é inte
gar fora junto com quem as preparou, são de uma
crueza e uma falsidade rçyQltaW. Como é possível vigente o bastante para adivinhar o resto a partir do
pintar com isso?';Emseguida,com uma vivacidade que deixo entrever.'
Enquanto falava, o estranho homem tocava em
febril:.!!!Ê1lgl!++lou
o pincel em diferentes manchas
de cores cuja inteira gama ele percorria mais rapi- todas as partes do quadro: aqui, duas pinceladas;
damente do que um organista de igreja percorre ali, apenasuma, mas sempre tão pertinentes que
toda a extensão de seu teclado no O FiZii de Páscoa. pareciauma nova pintura, porém uma pintura em-
Porbus e Poussin estavam parados, cada um de bebida em luz. Trabalhava com um ardor tão apai-
um lado da tela, imóveis, mergulhados na mais ve- XQP.qlbque o suor formava-seem pérolassobre
emente contemplação. sua testa despojada; ele avançava tão rapidamente,

"Olhe aqui, rapaz'\ disse o velho sem se virar, com pequenos movimentos curtos tão impacientes
"estávendo como por meio de três ou quatro to- e abruptos, que o jovem Poussin tinha a impressão

ques e um pequeno esfumado azul é possível fazer de que existia no corpo daquele bizarro persona
o ar circular..g(!-rççlQ1.43:.çgllÊçg
destapobre santa gem um demónio aue agia p.glmeio de suas mãos
controlando-as fantasticamente contra a vontade
que devia estar sufocando, envolta nessaatmosfe
ra pesada? Veja como este drapeado agora !231g:nU
do homem: o brilho sobrenatula!. de seus olhos,

ça e como percebemosque a brisa o levantai Antes suascon'1114199,que pareciam o resultado de uma


ele parecia um pano engomado preso por alfinetes. resistência enfrentada emprestavam àquela idéia

z6 z7
A OB RA- P RI MA IGNO RADA
H O NO RÉ DE BALZAC

mando, tirou do cinto uma bolsa de couro, reme-


um ar de verdade que devia pesar sobre uma ima-
xeu seu conteúdo, pegou duas moedas de ouro e,
ginação ainda fresca.Enquanto pintava, o homem
mostrando-as, disse: "Compro seu desenho't
dizia: "Paf. paf. paf! É assim que se massamanteiga,
"Aceite'\ disse Porbus a Poussin ao vê-lo tremer
rapaz! Venham, minhas cala!.pjpceladas, ponham
e corar de vergonha,pois tinha o orgulho dos po-
um pouco de cor nestetom glacial! Vamosl Pá! pá!
bres. "Vamos, aceite, ele tem o resgate de dois reis
pál'l, ele dizia, aquecendo as partes onde percebia
uma ausência de vida, fazendo desaparecer sob al- em seus cofres!
Desceram os três do ateliê e caminharam, dis-
gumas placas de cor as diferenças de temperatura e
restabelecendoa unidade de tom exigida por uma correndo sobre as artes, até uma bela casade ma-

ardente egípcia. deira, situada perto da ponte Saint-Michel e cujos


ornamentos, aldrava e batentes trabalhados dasja-
"Veja, garoto, é a última.Bigçg114g quS .conta.
Porbus deu cem e eu, apenas uma. Ningugg.!g!?- nelas deslumbraram Poussin. O pintor em projeto
?
viu-se de repente numa sala baixa, diante de uma
decerá pelo qulil.ÊNIK..por .baixo desta. Lembre-se
bem dito!" ' ' lareira acesa,ao lado de uma mesa cheia de pra-
O demo!!ip por ãm parou e, virando-se para tos deliciosos e, por um inédito golpe de sorte, na
\ Porbus e Poussin mudos de admiração, disse:"IAin- companhia de dois grandes e cordiais artistas.
l da não chega aos pés de minha Catherine .Lescaz4it,
"Meu rapaz'l disse-lhe Porbus vendo-o boquia-
l mas daria para colocar meu nome embaixo desta berto diante de um quadro, "não olhe muito para
obra. Sim, vou assina-la'; acrescentou enquanto se essatela, ou vai acabar angustiada'l
levantava para apanhar um espelho no qual a ob- Era o Ádão illãêmãbuse havia pintado para sair
servou. "Agora, vamos comer'l disse. "Venham os da cadeia na qual seus credores o mantiveram por
dois à minha casa.Tenho presunto defumado, um longo tempo. Seu rosto era de fato tãg.]ErQ$siJl:il
. l bom vinho! Ah, ahl.:Apesar !jÊ$!es.!Slppg!!Ê!!11y9b. IhqlKe que Nicolas Poussin começou nesseinstante
-'4 vamos fala de pinturas Nosso grupo é forte. Te- a entender o verdadeiro sentido das confusas pala-

ma;=ãi;il;;ia't5émo'j;<lÉlin, bravo e talentoso': acres- vras ditas pouco antes pelo velho, que observava o
centou, batendo nos ombros de Nicolas Poussin. quadro com um ar satisfeito porém sem entusias-
Reparando então no arruinado casaco do nor- mo e que parecia dizer: "Fiz melhor."

z8 z9
A OB RA- PRIMA IGNORADA
HONORÉ DE BALZAC

"NossasEstou então diante do deus da pintura'l


"Há vida nele'\ disse, "meu pobre mestre supe'
disse Poussin, num tom ingênuo.
rou-.seness;i-obra.Mas ainda falta um pouco de
O velho sorriu como alguém há muito acostu-
verdade no fundo da tela. O homem estávivo, sem
mado a esse tipo de elogio.
dúvida, ele está se erguendo e vem em nossa dure
"Mestre Frenhoítd': disse Porbus , "não poderia
ção. Mas o ar, o céu, o vento que respiramos, vemos
me servir um pouco de seu bom vinho do Reno?"
e sentimos, não estão aíl Enfim, tudo que existe aí
"Duas pipas': respondeu o velho. "Uma pelo
é apenasum homeml Ora, o único homem que
saiu diretamente das mãos de Deus deveria ter algo prazer que senti estamanhã ao ver sua linda peca-
dora e a outra em sinal de amizade."
de divino que esseno entantonão tem. O próprio ' eu não estivesseme sentindo meio mal
Mabuse o admitia, com desgosto,quando não es-
) ainda': continuou Porbus, "e se me deixasse ver sua
tavabêbado.'
amada,eu poderia me inspirar para fazer um qua-
Poussin olhava alternadamente para o velho e
dro grande, largo e profundo, com rostos em tama
para Porbus com uma inquieta curiosidade. Apro- nho natural.'
ximou-se de Porbus como 'para perguntar-lhe o
"Mostrar minha obra!':
n.=nl#VH+bnP'L'+nrT
exclamou o velho com
nome de quem assim os recebia; mas o pintor põs
veemência."Não, não, ainda tenho de aprjmQrá-la.
um dedo sobre os lábios com um ar de mistério e
Ontem à noite': disse,"pensei que havia termina-
o jovem, vivamente interessado,nada disse, espe'
, do. Seusolhos me pareciam amidos, sua carne pal-
rando que cedo ou tarde uma pa]avra qua]quer ]he
Í pitava. As tranças de seus cabelos se mexiam. Ela
permitiria adivinhar o nome daquelehomem cuja
l respirava! Mesmo tendo encontrado o modo de
riqueza e talentos estavam suâcientemente com-
reproduzir no plano o relevo e as curvas da natu-
provados pelo respeito que Porbus Ihe manifestava
reza,hoje, à luz do dia, percebi meu erro! Ahl Para
e pelas maravilhas amontoadas naquela sala.
chegar a esse resultado glorioso, estudei a fundo os
Poussin, vendo no escuro madeirame de carva-
grandes mestres da cor, analisei e dissequei camada
lho um magníâco retrato de mulher, exclamou:
por camada os quadros de Ticiano, esserei da luz. E
"Que lindo Giorgione!"
assim como essesoberano pintor, esbocei meu ros-
" Não!': respondeu o velho, "você está vendo um
to num tom claro com uma textura delicada e rica,
de meus primeiros borrões'l

3o
. :a'"
HONORÉ DE BALZAC A OBRA- PRIMA IGNORADA

pois a sombra é apenas um acidente. Não se esque sobre os objetos. Mas na natureza, onde tudo é ple-
nitude, não existem linhas; é modelando que se de
ça disso, menino. Depois, reâz minha obra e ser- J senha,quer dizer, que se isola uma coisa do meio
vindo-me de meias-tintas e esfumados cuja trans-
parência eu diminuía sempre mais, consegui som- l onde ela está. A distribuição da luz é que dá for-
bras vigorosas e um negro dos mais profundos. As ma ao corpos Assim, não eixo o delineamento dos
sombras dos pintores comuns têm uma qualidade rostos, espalho sobre os contornos uma nuvem de
diversa daquela de seus tons mais claros; pode ser semitons amarelados e quentes que tornam im-
tudo, madeira ou bronze, o que quiser, menos car- possívelcolocar com exatidão o dedo ali onde os
ne sombreada. Podemos perceber que se o rosto contornos mesclam-secom o fundo. De perto, o
em suas telas mudasse de posição, os lugares som trabalho parece borrado e carente de precisão mas
breados não ficariam mais claros e não se torna- a dois passosde distância tudo se reforça, se imo-
riam iluminados. Evitei esseerro no qual incorre- biliza e se destaca;o corpo gira, as formas tornam-
V sesalientes,sente-seo ar circulando ao redor do
/
ram muitos dos mais ilustres e em minhas obras a
alvura se revela sob a opacidadeda sombra anais rosto. Mesmo assim,.Maome contento, tenho dúvi
J /
marcada!Ao contrário dessaturba de ignorantes r das. Talvez fosse o caso de.!!ãg çiesenhar unl:lJ!!jçg.
4

1.t!!$g:melhor seria atacar um rosto a partir de seu


que pensam desenhar corretamente apenas por se'
rem capazesde fazer um traço correto, nunca acen-
tuei cruamente os limites externos de meus rostos
ly l centro, começando pelas partes salientesque rece-
bem mais luz para em seguida passar às zonas mais
e nunca ressalççl:o;l pequenos.detalhes anatómicos, \ sombrias.Não é assim que faz o sol, divino pintor
já que o corpo humano não tS!!plBg.Dumalinho. do universo? Natureza, natureza, quem conseguiu
Nisso os escultores se aproximam mais da realida- surpreender-te em teus mistérios? É assim, conhe

de do que nós, pintores. A natureza comporta uma #


8mento demais, tanto quanto a ignorância, não
série de curvas que se prolongam umas nas outras. levaa lugar algum. Duvido de minha.obrar"
A rigor, o desenhonão exi!!SI Não ria, meu joveml O velho fez uma pausa e depois prosseguiu:
Por estranho que isso possaparecer, um dia com- "Trabalho há dez anos nessatela, meu rapaz. Mas,
que são dez anos quando se trata dç lut.al:.IQ.ttl.Â
>

preenderá meus motivos para dizê-lo. A linha é o


meio pelo qual o homem representao efeito da luz natureza?Ninguém sabede quanto tempo preci-

33
32
HONORÉ DE BALZAC A OB RA- PRI MA IG NO RADA

sou Pigmaleão para fazer a única estátua que ga- rezahumana. O que a fértil imaginação de Nicolas
nhouvida! poussin pôde captar de claro e perceptível olhando
O velho caiu em profundo devaneio,manten- para aquele ?e! sobrenltuml formava uma imagem
do o olhar fixo enquanto brincava maquinalmente completa da natureza de ym 21B$Ea, essanatureza
com sua faca. i dementeà qual tantos poderes são confiados e dos
/\,,Ó'
"Está conversando com seu espírito'\ disse Por- quais ela õeqüentemente abusa, levando a úia. ]le-
bus em voz baixa. zão, os burgueses e mesmo alguns amantes da arte
Ouvindo isso, Nicolas Poussin sentiu-se sob a .por mil caminhos áridos onde, para eles, nada exis
influência de uma inexplicável curiosidade de ar- te, mas onde, exatamente ali, caprichosa em suas
tista. Aquele velho de olhar vazio, imóvel e parvo, fantasias, essajovem de asasbrancas descobre epo-

que se tornara para ele mais do que um homem, péias,castelos,obras de arte. Natureza zombeteira
pareceu-lheum gênio fantástico que vivia numa e boa, fecunda e pobres Assim, para o entusiasma-
esfera ignorada. Deixava entrever mil idéias con- do Poussin,aquelevelhote transformara-se, em sú
fusas em sua alma. Ê tão impossível definir p fe l bita !!ansíiguração, na própria arte, a arte com seus
)#'''
nõmeno moral dessaespéciede fascínio quanto l segredos, sey!.arrebatamentos e seus devaneios.
l
traduzir a emoção provocada por um cântico que l "Sim, caro Porbus'l prosseguiu Frenhofer, "nun-
ca consegui encontrar, até hoje, uma mulher irre- ©
traz, ao coração de um exilado, a memória da terra
natal. O desprezo que aquele velho parecia expres' tocável,um corpo cujos contornos sejamde uma
sar pelas mais belas tentativas da arte, sua riqueza, belezaperfeita e cuja carnação...Mas onde': disse
seusmodos, as deferências de Porbus para com ele, ele, interrompendo-se, "vive essaVênus dos anti-
aquela obra mantida em sigilo durante tanto tem- gos, tão procurada e da qual encontramos apenas

po, obra de paciência,obra genial sem dúvida, a alguns belos õagmentos esparsos?Ah, para poder
ver por um instante apenas,uma única vez, a na-
julgar pelo rosto da virgem que o jovem Poussin
havia tão sinceramenteadmirado e que, bela como tureza divina completa, ideal enfim, eu daria toda
era, mesmo perto do Anão de Mabuse, atestavao minha riquezas Iria até o limbo para encontra-la,
fazer imperial de um dos príncipes da arte, tudo essabeleza celestiall Como Orfeu, eu desceria aos
infernos da arte para de lá trazer a vida."
enâm naquelevelho .e.......,....--.... qes.da natu-
.E
34 35
MONO RÉ DE BALZAC
A O BRA- PRI MA IGNORADA

"Podemos ir embora': disse Porbus a Poussin, vê mais alto e mais longe que os outros pintores.
"ele não nos ouve mais, não nos vê mais! Meditou profundamente sobre as cores, sobre a
"Vamos ao ateliê dele'\ respondeu o jovem, des- verdade absoluta da linha, Mas, de tanto pesquisar,
lumbrado. chegoua duvidar do próprio objeto de suaspes-
"Hã! A velha raposa soube proteger a entrada / qüiiãÊ"Eiií'Êéqs momentos de desespero, diz que
da toca. Seustesouros estão muito bem guardados, .-H l o'ãesehho não existe e que usando linhas só é pos-
ll

não há como chegar até eles. Não precisei esperar ' \í sávelfazer âeuraâ.geomÉQlkaj, o que é radical de
mais porque com a linha e o preto pode-se fazer
por você e sua imaginação para tentar eu mesmo o
) um rosto o que prova que nossaarte, como a na-
assalto a essemistério.'
"Quer dizer que há um.!E!!!élio?' .p l tureza, compõe-se de uma inanidade de elemen-

.lr' "Sim'l respondeu Porbus. "0 velho Frenhofer é +iüç/! tos:.o desenho fornece o esqueleto,a cor é a vida,
'\
V' l mas a vida sem esqueleto é uma coisa mais incom-
1..
0 único discípulo que 1l!!!!!119,4ççilgu. Tornando-
se seu amigo, seu salvador, seu pai, Frenhofer sa- q ' pleta que o esqueleto sem vida. Enfim, há algo de ~
criâcou a maior parte de sua fortuna para satisfa- mais verdadeiro ainda que isso e que é tudo para
l um pintor: a prática e a observação.E quando o ra-
zer as paixões de Mabuse. Em troca, Mabuse con-
tou-lhe o segredodo relevo,o poder de dar aos $gçÍ!!igE..!.llgggi!.j2111gamcom os pincéis, o resul-
rostos essavida extraordinária, essaflor da nature- tado é a dúvida, a mesma que acompanha estese-
za, nosso eterno desespero,cujos segredos ele co- nhor, tão louco quanto artista. Pintor sublime, teve

nhecia tão bem que um dia, tendo vendido e bebi- a desgraça de nascer rico, o que Ihe permitiu diva-
do o brocado adamascadoque deveria ter vestido f gar. Não o imitei Trabalhe! Os pintores só devem
l pensar com os pincéis na mão." '
para a recepção de Carlos V. ele acompanhou seu
mestrevestindo uma roupa feita de papel pintado "Vamos entrará': exclamou Poussin que não
mais ouvia Porbus e de nada mais duvidava.
como damasco.O brilho singulardo tecido usado
Porbus sorriu diante do entusiasmo do jovem
por Mabusesurpreendeuo imperador que, procu'
rando fazer um elogio ao protetor do velho bêba- desconhecido e foi-se embora, convidando-o para
ir vê-lo à noite.
do, acabou descobrindo o truque. Frenhofer é um
Nicolas Poussin voltou a passos lentos para a
apaixonado por nossa arte da pintura, alguém que

37
36
HONORÉ DE BALZAC A OBRA- PRIMA IGNORADA

amante, uma dessas almas nobres e generosas que


Rue de la Harpe e sem perceber passou diante da
modesta pensão onde se hospedava. Subindo com vêm sofrer.ao lado de um grande homem, despo-
jando suasmisérias e esforçando-se por compreen-
inquieta presteza a escada miserável, chegou a um
der seus caprichos, fortes na pobreza e no amor as-
quarto alto, com teto sem forro, singela e ligeira
cobertura das casasda velha Paras.Perto da úni- sim como outras são intrépidas na ostentação do
ca e sombria janela daquele quarto, viu uma Jovem luxo e no desce da própria insensibilidade. O sor
riso nos lábios de Gillette iluminava aquele sótão,
que, ouvindo o barulho da porta, erguera-sede re
rivalizando com o brilho do céu. O sol nem sem-
pente num impulso amoroso: havia reconhecido o
pintor pelo modo como ele abrira o trinco. pre brilhava mas ela estavasempre ali, recolhida
"0 que você tem?': ela disse. em sua paixão, confinada em sua felicidade, em seu
soúimento, consolando o gênio que transbordava
"0 que eu tenho, o que eu tenho': exclamou ele
no amor antes de assenhorar-se de sua arte.
asfixiado de prazer, "é que me senti um pintor! Até
"Escute, Gillette, venha cá."
hoje duvidei de mim mas esta manhã acreditei em
mim! Possoser um grande homeml Seremos ricos, Obediente e alegre, ela pulou no colo do pintor.
Gillette, felizes! Há ouro nestes pincéis! Era toda graça, toda beleza, linda como a primave-

Mas, de repente Poussin emudeceu. Seu ros- ra, dotada com todas as riquezasfemininas e ilu-
minando-as com o fogo de uma bela alma.
to grave e vigoroso perdeu a expressãode alegria
"Meu Deusa'l exclamou ele, "nunca conseguirei
quando comparou a imensidão de suasesperanças
dizer- Ihe ...'
com a mediocridade de seus recursos. As paredes
estavam cheias de papéis comuns cobertos por es' "Um segredo?': perguntou ela. ' quero saber."
O Poussinficou um tempo perdido em seus
baços a lápis. Ele não tinha nem quatro telas lim-
pensamentos.
pas Os pigmentos de tinta custavam caro e o pobre
cavalheiro via sua paleta quase nua. Ng.!çiçLdes- Diga de uma vez.'
sa miséria, ele sentia PQssl!!Llpçrjvejs..$qy.ç!!!..de "Gillette, minha pobre paixão!"
alma e a abund.â!!çia..deuiq. gênio dSygrador. Le- "Oh, você quer me pedir algo?"

vado a Paraspor um cavalheiro amigo, ou talvez


"Se quer que eu pose de novo como daquela
por seu próprio talento, logo havia arranjado uma

38 39
A OBRA-PRIMA IGNORADA
H ONORÉ DE BALZAC

vez'l continuou ela um tanto agastada,"não acei- sede joelhos. "Prefiro sellmado a alcançar a glória.
tarei, nunca mais. Nessashoras, seusolhos não me Para mim, você é mais linda que todas as riquezas
dizem mais nada.Você não pensa mais em mim, e honrarias. Joguefora meus pincéis, queime esses
mesmo se fica me olhando." esboços.Eu estavaerrado, minha vocaçãoé amá-
"Prefere me ver copiando outra mulher? la. Não sou pintor, sou um homem apaixonado.A
arte e seus segredos podem ir para o infernos"
"Talvez, se ela for bem feia."
"Pois então': continuou o Poussin num tom sé- Ela o admirava, feliz, deslumbradasEla coman-

rio, "e seem nome de minha futura glória, separa dava, sentia instintivamente que as artes eram pos-
tas de lado e jogadas a seus pés como grãos de in-
que eu me torne um grande
)) pintor, você tivesse de
censo.
posar para um outro?
"Mas, ele é apenas um velho': retomou Poussin.
"Você está querendo me testarT, ela disse. "Sabe
) "A única coisa que poderá ver é a mulher que existe
muito bem que eu não iria.'
O Poussin inclinou a cabeça sobre o peito como em você. você é tão perfe8d"
"0 amor tudo vence': exclamou ela prestes a sa
quem sucumbe a uma alegria ou a uma dor ü)rte
demais para o coração. criticar seus escrúpulos amorosos para recompen-
"Escute': disseela puxando Poussin pela manga sar o amado por todos os sacrifícios que por ela

do gibão puído, "eu já disse,Nick, que daria minha fazia. "Mas'l ela continuou, "isso signiâcaria per-
vida por você. Mas nunca Ihe prometi renunciar a der-me. Perder-me por você seria maravilhosos

meu amor por você enquanto for viva.' Mas você me esquecerá depois. Que péssima idéia
vocêtevel
"Renunciar a seu amor?': exclamou Poussin.
"Se eu me mostrasse assim a um outro, você não "Sim, e no entanto eu a amo': ele disse, algo con-
trito. "Isso me torna infame?"
me amaria mais. Eu mesmo me acharia indigna de
você. Obedecer a seus caprichos é natural e simples "Vamos consultar o padre Hardouin."
"Não, este será um segredo entre nós'l
para mim. A contragosto,fico feliz e mesmoorgu-
lhosa de fazer sua vontade. Mas, para um outro? "Muito bem, eu aceito. Mas você não estará lá':
disse ela. "Você fica à porta, punhal na mão. Se eu
De modo algum!"
gritar, entre e mate essehomem."
"Perdão,minha Gillette'\ disseo pintor pondo-

4o 41
H ONO RÉ DE BALZAC

Nada enxergandoalém de sua arte, o Poussin 2


apertou Gillette entre os braços.
"Ele não me ama mais!': pensou Gillette quando CATHERINE
Poussinsaiu. LESCAULT
Ela já se arrependia da decisãotomada. Mas, foi
logo acometida por um pavor ainda mais cruel que
o arrependimento. Esforçou-se por espantar um
pensamento terrível que brotava em seu coração:
imaginando-o menos digno de estima, pensou que
já o amava menos

T
rês mesesdepois de seu encontro com
Poussin, Porbus foi visitar mestre Frenho
fer. O velho estava mergulhado num da-
queles momentos espontâneos de profunda apa-
tia cuja causa,a crer nos matemáticosda medici-
na, devia ser procurada na má digestão, no vento,
no calor ou em algum inchaço dos hipocõndrios
e, no dizer dos espiritualistas, nas imperfeições de
nossamoral. O pobre homem estavapura e sim-
plesmente esgotado pelo esforço de completar sua
misteriosa .tela:.Desabara nüúã vasta poltrona de
carvalho esculpido, guarnecido por couro negro,
e, sem abandonar sua atitude melancólica, dirigiu
a Porbus o olhar de alguém que já se instalara no
desespero.

43
4z
HONORÉ DE BALZAC A OB RA- PRIMA IGNORADA

Então, mestre': disse Porbus, "o ultramarinho '"mostrar minha criatura, ipinha espia? Rasgaro
que foi buscar em Bruges era tão ruim assim? Ou véu que pudicamente cobre minha felicidade? Mas

será que não conseguiu preparar um novo branco? . l isso seria prostitui-lal .Faz dez anos que vivo com
Ê o óleo que não está bom ou os pincéis que nao l essamulher. Ela é minha, só minha. Ela me ama.
prestam? Sorriu-me a cada pincelada que Ihe dei! Tem uma
'Antes fosse!': exclamou o velho. "Cheguei a alma, a alma que Ihe dei. Teria vergonha caso ou-
pensar que minha obra estavaterminada. Mas a tros olhos que não os meus se detivessem sobre ela.
verdade é que me enganei em alguns detalhes e não Mosuá-lal Mas que marido, que amante.seriavil
descansareiaté eliminar minhas dúvidas. Decidi a ponto de conduzir sua mulhell.,p.a11g:a
desonra?
viajar e vou para a Turquia, para a Grécia, para a Quando você faz um quadro para a corte, não põe
Ãsia, procurar uma modelo e comparar meu qua- nele toda sua alma. A única coisa que vende aos
dro com outras propostas da natureza. O que te- cortesãossão manequins pintados. Minha pintura \ b
nho aqui': continuou deixando escaparum sorriso não é uma pintura, é..y . .,
de contentamento, "talvez seja a própria natureza. Nascida em meu ateliê, ela tem de âcar aqui, vir- . ,'"
Às vezes tenho medo que um sopro possa desper gem, e só sair daqui vestida. A poesia e as mulhe- 't
)
tar esta mulher e ela vá embora.' res só se entregam nuas a seusamantesl Podemos
Em seguida levantou-se, como se estivesse por possuir os rostos de Rafael, a Angélica de Ariosto,
sair. a Beatriz de Dante? Nãos A única coisa que vemos
"Então'\ respondeu Porbus, "chego bem a tempo são suasformas! Pois bem, a obra que estálá em
)
de evitar-lhe os gastos e cansaços da viagem.' cima trancada é uma exceção em nossa arte. Não é
"Como assim?': perguntou Frenhofer, surpreso uma tela,.Í.!ima muUierl Uma mulher com quem
"0 jovem Poussintem uma amante de uma be- choro, rio, converso e medito. Quer que de repen
leza incomparável e sem mácula. Mas, caro mestre, te eu abandone uma felicidade de dez anos assim
se ele consentir em cedê-la, em troca terá de dei- como quem despeum casaco?Quer que eu de re-
xar-nos ver seu quadro.' pente deixe de ser p.qlz..apg+].çe
e Dçys? Esta mulher
O velho ficou imóvel, em pé, atónito. não é uma criatura, é ulpa criação. Mande aqui seu
"0 quê!': exclamou por fim, como se ferido, jovem amigo, eu Ihe darei todos os meus tesouros,

44 45
HONORÉ DE BALZAC A OBRA-PRIMA IGNORADA

os quadros de Correggio, de Michelangelo, de Ti- possível trazer essaestranha paixão para a luz da
ciano, beijarei as pegadas de seus passos na terra. razão?
Mas, torna-lo meu rival? Que vergonhas Hãl Ainda Prisioneiro dessespensamentos, Porbus disse ao
sou antesum amantedo que um pintor. Sim, te- velho: "Mas, não é uma mulher pela outra? Poussin
rei forças suficientes para queimar minha Cathe- também não estáexpondo sua própria amante aos
rine em meu último suspiro. Mas, fazê-la supor' olhos de um outro?"
tar o olhar de outro homem, de um jovem, de um , "Que amante?': respondeu Frenhofer. Ela irá \
pintor? Não, não! Mato na hora quem a macular l traí-lo mais cedo ou mais tarde. E a minha sempre l '
com um só olhar! Eu o mataria na hora, meu caro l meseráfiell " /
amigo, se você não se ajoelhasse diante delas E ago- "),iiiíilõ"bêm': disse Porbus, "não falemos mais
ra você vem querendo que eu submeta meu ídolo disso.Mas antes que consiga encontrar, mesmo na
aos olhares frios e às críticas estúpidas dos imbecis? Ásia,uma mulher tão bela,tão perfeita como esta,
Hã! O amor é um mistério, sçSexiste .po...h.p4Q.dg$ morrerá talvez sem ter acabado essequadro."
cç21êçÊes.ç.
!udo..está..perdiçlp.quando um homem ..'Oh, ele já está terminado'l .disse Frenhofer.
aponta, ainda que para seu melhor amigo: 'E aque- "Quem o vir pensará estar percebendo uma mu
la que eu amor Iher deitada num leito de veludo, por trás do corti-
O velho parecia rejuvenescido; seus olhos bri- nado de um dossel.Ao lado, de um tripé dourado
lhavam, vivos; suas faces pálidas estavam matiza emanam perfumes. Você se sentirá tentado a pegar
das por um vermelho vivo e suas mãos tremiam. a borla dos fios que comandam as cortinas e terá a
Porbus, surpreso com a violência apaixonada com impressão de ver arfar o seio de Catherine. Mesmo
a qual aquelas palavras haviam sido ditas, não sa- assim, eu gostaria de ter certeza..."
bia o que dizer diante de um sentimento tão ines- "Vá para a Ãsia, então'\ respondeuPorbus ao
perado e profundo. Frenhofer estava no gozo de perceber uma espécie de hesitação no olhar de Fre-
lr seu juízo ou enlouquecera? Estava dotüiõado por nhofer. E Porbus deu alguns passosna direção da
uma fantasia de artista ou as idéias que manifes- porta.
tara provinham dessefanatismo inefável produzi- Nesse instante, Gillette e Nicolas Poussin chega-
do pela longa gestaçãode uma grande obra? Seria vam à casade Frenhofer. Quando a jovem estava

46 47
H ONO RÉ DE BALZAC A OB RA- PRIMA IGNORADA

prestesa entrar, largou o braço do pintor e recuou pudico rubor coloria seu rosto, ela mantinha os
como tomada por um repentino pressentimento. olhos abaixados,suas mãos pendiam ao lado do
"Mas, o que estou fazendo aqui?': perguntou a corpo, suas forças pareciam abandona-la e lágri-
seu amado numa voz profunda e olhando-o fixa- mas protestavam contra a violência feita a seupu-
mente. dor. Nesse instante, Poussin, desesperadopor ter
"Gillette, deixei a decisão com você e eu a obede tirado aquele lindo tesouro de sua arca, amaldi-
cerei em tudo. Você é minha consciência e minha çoou a si mesmo. Tornou-se mais amante que ar-
glória. Volte para casa,eu me sentirei melhor, tal- tista e mil escrúpulos torturaram-lhe a alma quan-
>
vez, do que se você...' do viu o olhar revigorado do velho que, por hábito
"Sou senhora de mim quando você me fala as- de pintor, por assim dizer desnudava aquela jovem
sim? Não, sou apenas uma criança... Vamos'l acres- adivinhando-lhe as formas mais secretas. E foi to-

centou, parecendo fazer um violento esforço, "se mado então pelo ciúme feroz do verdadeiro amor.
nosso amor se acabar e se meu coração for tomado "Gillette, vamos emboral': exclamou.
por um proft=tndo remorso, $ua celebridade será o Ouvindo essaspalavras, esse grito, sua amada,
preço de minha obediência a seus desejos.Vamos feliz, ergueu os olhos na direção dele, viu-o e, cor-
entrar. Viver ainda que na forma de uma lembran- rendo para seus braços:
ça em sua paleta será, mesmo assim, villçÇ 'IAh, você me ama, então': disse ela, derretendo
Abrindo a porta da casa,os dois amantes encon- se em lágrimas.
traram-se com Porbus que, surpreso com a beleza Depois de haver conseguido energiaspara calar
de Gillette, cujos olhos estavam rasos de lágrimas, seu sofrimento, faltavam-lhe forças para esconder
conduziu-a, tremendo que ela estava,à presença sua felicidade.

do velho pintor: "Aqui está'\ disse, "ela não vale to- "Deixe-a um pouco comigo ", disseo velho pin-
das as obras-primas do mundo?" i tor, "e poderá compara-la com minha Catherine.
Frenhofer estremeceu. Gillette estavaà sua fren l Sim, concordo."
te, na atitude ingênua e simples de uma jovem cir Ainda havia amor na exclamaçãode Frenhofer.
cassiana inocente e amedrontada, raptada e exibi- E uma certa coqueteria no modo de falar daquele
da por bandidos a um mercador de escravos.Um retrato de mulher. Ele dava a impressão de antego-

48 49
H ONO RÉ DE BALZAC A OB RA- P RI MA IGNORADA

zar o triunfo que a beleza de suavirgem consegui- rosto mostrava-se profundamente entristecido. E
ria sobre os encantos de uma mulher real. embora os pintores mais velhos não sintam mais
"Não o deixe voltar atrás': exclamou Porbus ba- essesescrúpulos,tão ínfimos diante da arte, ele os
. tendo no ombro de Poussin. "Os frutos do amor l admirou por serem tão ingênuos e encantadores.
l acabam depressa, os da arte são imortais " / O jovem pintor mantinha a mão na guarda da lâ-
"Quer dizer'\ respondeu Gillette olhando aten- mina e o ouvido quase colado à porta. No escuro
tamente para Poussin e Porbus, "que para ele sou e em pé, pareciam dois conspiradores à espera do
apenasuma mulher?" Ergueu a cabeçacom orgu- momento de golpear um tirano.
lho. Mas quando, depois de haver disparado um "Entrem, entrem'; disse-lheso velho radiante de
olhar ft=Llminantena direção de Frenhofer, viu seu felicidade."Minha obra é perfeita e agoraposso
amado perdido outra vez na contemplação do re- mostra-la com orgulho. Não há pintor, pincel, cor,
trato que pensara ser de Giorgione, ela disse:' tela e luz que poderá rivalizar-se com minha Ca-
vamos! Ele nunca me olhou assim." therine Lescaulü"

"Velho': disse Poussin, arrancado de sua medita Tomados por viva curiosidade, Porbus e Poussin
ção pela voz de Gillette, "está vendo esta espada?Eu correram para o centro de um vasto ateliê coberto
a encarei em seu coração ao menor chamado desta de pó, onde tudo estava em desordem e onde viam
mulher, incendiarei sua casae ninguém sairá vivo aqui e ali quadros pendurados nas paredes. Detive-
daqui.Entendeu?" ram-se primeiro diante de uma figura de mulher
Nicolas Poussin estavacom um ar sombrio. Suas em tamanho natural, seminua, que os deixou pas-
palavras terríveis, sua atitude, seu gesto consola- mos de admiração.
ram Gillette que quaseo perdoou por sacriâcá-la "Não percam tempo com isso': disse Frenho-
à pintura e a seu glorioso futuro. Porbus e Poussin fer, "é uma tela que borrei para estudar uma pose,
permaneceramna porta do ateliê,olhando-seem essequadro não vale nada. Vejam todos estesmeus
silêncio.Se,no início, o pintor da Mana do Egito equívocos': continuou, indicando encantadoras
permitiu-se algumas exclamações, como 'IAh, ela composições suspensasnas paredes à volta.
estáse despindol Ele Ihe diz para põr-se sob a luzl Ouvindo essas palavras, Porbus e Poussin, es-
Ele a comparam':logo se calou ao ver Poussin, cujo tupefatos diante do desprezo por todas aquelas

5o 51
H ONO RÉ DE BALZAC A OBRA-PRIM
A IGNORADA

obras, procuraram a tela anunciada, sem conseguir - l "Nada."


identifica-la. Os dois pintores deixaram o velhote mergulhado
"Aqui está!'l,disse o velho, os cabelos em desor- num êxtase e trataram de ver se a luz, caindo verti-
dem, o rosto inflamado por uma exaltaçãosobre- calmente sobre a tela, não estaria neutralizando to
natural, os olhos coruscantese arfando como qual- dos aqueles efeitos. Começaram então a observar a
quer jovem embriagado de amor. ' ah!'l, excla- pintura pela direita, pela esquerda,de dente, aga
mou ele,"vocês não esperavamtanta perfeiçãol Es- chando-se, erguendo-se na ponta dos pés.
tão diante de uma mulher e ficam procurando um "Sim, sim, é uma tela, sem dúvida" disseFre-
quadro. Há tanta densidade nesta tela, o ar é tão nhofer, enganando-se quanto ao motivo daquele
real nela que vocês não conseguem distingui-lo do escrupuloso exame. "Vejam, aqui está o chassi, o
ar que nos envolve. Onde está a arte? Perdeu-se, de cavalete,e aqui estãominhas tintas, meus pincéis."
sapareceu! O que está aí são as formas mesmas de E pegou um pincel maior para mostrar-lhes, num
uma mulher. Não captei bem a cor correta, a força gestoingênuo.
da linha que parece completar o corpo? Não sq dá "0 velho tratante está zombando de nós': disse
aqui o mesmo fenómeno dos objetos que estão na Poussin , voltando a olhar o suposto quadro. "SÓes
atmosfera como peixes na água?Reparem como os à tou vendo cores confusamente espalhadasumas so-
contornos sedestacamdo fundo. Não dá a impres- bre as outras, contidas por uma multidão de linhas
são que seria possível passar a mão por estas cos- bizarras que formam uma muralha de pintura."
tas?Levei sete anos estudando os efeitos do casa- "Acho que não estamos entendendo': continuou
mento entre a luz e OEgl2i©o$..E estes cabelos, não Porbus.

estão inundados de luz? Ela está respirando, eu sei! Aproximando-se, perceberamnum canto da tela
E esteseio, estãovendo?Quem não cairia de joe- um pedaço de pé que seprojetava para fora daque-
lhos diante dela, em adoração?Sua carne palpita. le......+-'
caos de cores, tQnlç.matizes indecisos, uma es-
Esperem, ela vai levantar-se.' plge de neblina sem forma. Mas, aquele era um pé
"Você está vendo alguma coisa?'l, perguntou delicioso, um pç,Xi:ild Ficaram petrificados de ad-
Poussin aPorbus. miração diante daquele âagmento que escaparade
"Não. E você?" @ uma incrível, lenta e progressivadestruição Aque

5z 53
HONORÉ DE BALZAC A OBRA- PRIMA IGNORADA

le pé aparecia ali como o torso de alguma Vênus de eliminando os excessos e o granulado da massa e à
Paros em mármore surgindo entre os escombros força de acariciar o contorno do rosto mergulhado
de um palácio incendiado. r em meios-tons, eu consegui eliminar até mesmo a
"Há uma mulher aí embaixo!': exclamou Porbus idéia do desenhoe de qualquer meio artificial de
chamando a a enção de Poussin para as diversas reprodução e dar-lhe o aspecto e a curvatura pró-
camadasde tinta que o velho pintor havia suces- prios da coisa natural. Aproximem-se, poderão
sivamente superposto pensando assim aperfeiçoar apreciar melhor o trabalho. De longe, ele desapa-
sua pintura. rece. Estão vendo? Isto aqui, acredito, é notável." E
Os dois pintores voltaram-se espontaneamente com a ponta do pincel mostrou aos dois pintores
uma massa de cor clara.
para Frenhofer, começando a entender, vagamente,
o êxtase no qual ele vivia. Porbus tocou no ombro do velho, dizendo para
"Ele está de boa fé': disse Porbus. Poussin : "Sabe que temos aqui um grande pintor?"
"Sim, meu amigo': respondeu o velho desper- "Um poeta, mais que um pintor': respondeu
tando, "é precisoter fé, ter fé na arte e viver por Poussin , sério.

muito tempo com a obra para gerar algo assim. "Aqui'l continuou Porbus, "acaba a ajllq..dç$çç
mundo.'
Algumas dessassombras me custaram muito tra-
balho. Vejam, aqui neste rosto, sob os olhos, uma ''''A partir daqui, ela sobe aos céus e lá desapare-
leve penumbra quase intraduzível da natureza para ce': disse Poussin
a arte. Não podem imaginar como sofri para re' 'Quantas delícias neste pedaço de pano!'l excla-
mou Porbus.
produzir esseefeito. Veja, caro Porbus, olhe aten-
tamente meu trabalho e compreenderá melhor o O velho, absorto, não os ouvia, sorrindo para a
que eu Ihe dizia sobre a maneira de tratar o mode- mulher imaginária.
lado e os contornos, veja a luz do seio e veja como, } ='Mas, cedo ou tarde vai perceber que nessa tela )
por uma seqüência de pinceladas e realces forte- \ não existe njlda': comentou Poussin . /
mente empastados,consegui capturar a verdadei- "Nada em minha tela?'\ disseFrenhofer olhando
ra luz na tela e combina-la com a brancura relu- alternadamente para os dois pintores e seu supos-
zente dos tons claros. E como, pela ação contrária, to quadro.

54 55
H ONO RÉ DE BALZAC A OB RA- P RI MA IGNO RADA

"0 que você foi dizer?'l disse Porbus a Poussin. Nesseinstante, Poussin ouviu o choro de Gillette,
O velho seguravacom força o braço do jovem esquecidaa um canto.
e Ihe dizia: "Não está vendo nada aqui, ignorante? "0 que é, meu anjo?" perguntou-lhe o pintor re.
Incréu! VagabundosPara que veio aqui, então? pentinamentetransformado outra vez em um ho-
"Meu velho Porbus': continuou, virando-se para mem apaixonado.
o pintor, "será que você também, até você faz pou- "Mate me!" ela disse. "Eu seria uma infame se
co de mim? RespondamSou seu amigo, diga-me, es- ainda o amasse, porque o desprezo. Você é a minha
traguei meu quadro? vida, e me causa horror. Creio até que já o odeio."
Indeciso, Porbus, não se atreveu a dizer nada. Enquanto Poussin ouvia Gíllette, Frenhofer re
Mas a ansiedadeestampadana fisionomia opaca cobria sua Catherine com uma sarja verde, estu-
do velho era tão cruel que Porbus apontou para a dadamente compenetrado como um joalheiro que
tela e disse: "Veja você mesmos" fecha suas gavetasacreditando estar diante de la-
/' Frenhofer contemplou seu quadro por um ins- drões espertos. Deitou dissimuladamente sobre os
tante e cambaleou. dois pintores um olhar cheio de desprezo e suspei-
l l "Nada! NadamE trabalhei dez anosl" ta e em silêncio os conduziu à porta do ateliê, com
} Sentou-se no chão e chorou. "Quer dizer que uma presteza convulsiva. E no umbral lhes disse:
sou um idiota, um loucosEntão não tenho nem ta- "Adeus, meus amigos."
lento, nem competência, sou apenas um homem Aquela despedida gelou-lhes o sangue. No dia
rico que sepermite seus prazeres, nada além disso! seguinte, Porbus, preocupado, foi ver Frenhofer e
Nada criei, então!" Contemplou sua tela por entre soube que ele havia morrido durante a noite após
as lágrimas. Levantou-se de repente, altivo, e dóri queimar suas telas.
giu aosdois pintores um olhar furioso.
f "Pelo sangue,pelo corpo de Cristo, vocês dois Pauis,fevereiro de 1832
l são uns invejosos que querem me fazer crer que
estequadro é um fracassopara rouba-lo de mima
i Eu a estou vendo!': exclamou. "Ela é maravilhosa-
l mente linda.'

56 57
A
REFE RE N CLÃS

Os números da coluna da esquerda indicam a página em


que aparecemos nomes, palavras ou expressõescomentados.

Gi1lette

11 "A um lorde" Esta dedicatória permanece um enigma.


Pode ser uma falsa dedicatória, uma paródia a um cos-
tume da época.Viu-se também em "À un lord': como no
original francês,o anagramade Arnould, que remeteriaa
SophieArnould, famosa cantora nascida em 1744 e mor-
ta em 1803.
13 "Gillette" Este primeiro capítulo chamava-seinicial
mente Àcfesfre Frei/zoáer.
13 "François Porbus" O modelo para este personagem é
Frans (François) Pourbus 11,chamado Pourbus o Jo-
vem (1569-1622),membro de uma dinastia de pinto
res de Bruges. Pintor oficial da corte õ'ancesa,autor de

59
H ONO RÉ DE BALZAC A OBRA-P RIMA IGNORADA

uma série de retratos da realeza e de nobres (entre eles,o uma política económica, então como agora, baseadana
de Henrique IV mencionado na novela) num estilo bas- idéia de que era necessáriaa máxima economia na apli
tante formal. Balzac ficcionalizou o personagem histó cação dos recursos, motivo pelo qual seus adversários
rica mas vários de seus traços correspondem à realida- passaram a chamar de silhuetas aqueles desenhos que
de,entre eleso fato de que Pourbuscombinou o estilo apresentavam apenas um contorno da figura e que, para
mais seco da pintura de origem alemã com a maneira eles,simbolizavam o estado a que suas medidas redu
ziam os contribuintes Ranceses.
)

mais solta da Escola de Veneza, como observa o persona-


gem de Frenhofer. Está enterrado na Igreja des Petits-Au- 19 "Prometeu" Prometeu esculpiu uma âgura humana a
gustins, no Faubourg Saint-Germain, perto da Rue des partir do barro e para dar-lhe vida usou o fogo celestial
Grands-Augustins onde se localiza o imóvel menciona- de que era o depositário. Para pum-lo, Zeus condenou
do nanovela. o a permaneceramarrado numa montanha onde uma
15 "je ne sais quoi" Expressãoque entra em uso no século águia Ihe devorada eternamente o fígado.
XVII. 22 "Proteu" Divindade grega mitológica com dotes cama-
17 "três lápis" Estudos feitos com lápis preto, vermelho e leânicos: tinha a capacidade de assumir cores e formas
branco. detudo queo cercava.
17 "sanguina" Lápis de ocre vermelho. l 23 "currus venustus" Carro elegante.
17 "tempos de comoção e revolução" O rei Henrique IV 23 "pulcher homo" Homem bonito.
havia sido assassinadodois anos antes do início dos acon 24 "Mabuse" Jean Gossaert, conhecido como Mabuse ( 1478
tecimentosencenadosnestanovela. 1535),pintor flamengoconsideradoo primeiro dos"ro-
18 "Mana do Egito" Abjurando sua anterior vida devassa, manistas'l Sua produção inicial segue a marca da esco
Mana do Egito decide isolar-seno deserto. Não tendo la flamenga, posteriormente matizada por elementos da
como pagar pela travessia de um rio, prostitui-se ao bar- arte antiga com a qual travou conhecimento em Romã.
queiro uma última vez. Foi mais tarde beatificada.Não O personagem de Frenhofer refere-sea sua habilidade de
há registro de que tela semelhantetenha sido pintada por
+ pintar a figura humana, herança em Mabuse do natura-
Porbus. lismo flamengo.
19 "silhueta" O controlador geral das finanças de França, 25
"Nicolas Poussin" Nascido na Normandia, Poussin ( 1594-
Étienne de Sílhouette, de cujo nome deriva a palavra 1665) atuou mais na ltália do que na França salvo no breve
até hoje utilizada, entrou em função apenas em 1759 e, período de 1640-1642quando trabalhou na corte de Luís
\ portanto, o recurso à palavra que derivou de seu nome Xlll em Paris. Esteve sob a influência de vários pintores
numa novela situada em 1612 configura um caso de ana italianos, como Domenichino eTiciano, antesde entregar-
cronismo por parte de Balzac.Esseburocrata praticava se a seusprincípios de orientação clássicaque influencia

6o 61
H ONORÉ DE BALZAC
Y' A OBRA- PRIMA IGNORADA

36 "damasco" Tecido brilhante típico de Damasco, na Síria,


ram toda uma corrente francesadefinida sobretudo em
que permite ver dos dois lados, avesso e direito, os dele
oposição à obra de Rubens ( 1577-1640). Poussin não foi nhos nele formados.
discípulo de Pourbus o Jovem, como a novela pode dar 39 "0 Poussin" Assim como se diz às vezes o Tlrztoreao, a
a entender, embora tenha registrado sua admiração por
Canjas.Aqui, o uso é forçado mas permite a Balzac indi-
pelo menos uma das obrasdo pintor de Henrique IV: A
car que neste momento quem fala é Poussin o pintor e
Última ceia, 1618, hoje no Louvre.
não Poussin o homem.
26 "0 Filia" Hino medieval entoado durante a Páscoa.
40 "Nick" O recurso, no original de Balzac, a esse diminuti-
28 "Catherine Lescault" Foi apenas na última revisão de
vo inglês do nome de Nicolas pôde surpreender. Não era,
seu texto que Balzac deu este nome, título do segundo
porém, um apelido de todo incomum: a esposade Nico-
capítulo da novela,ao fictício quadro do fictício .EEç- lau 11,último czar da Rússia,assassinadocom a família
nhofer. Até então, o título da obra era l,a BenzeNoiseuse
em 1918,também o chamavade "Nickie" na intimidade.
(literalmente, a linda criadora de casos;melhor, a linda 41 "Padre Hardouin" Padre jesuíta, como tal habilitado a
pentelha). Esse foi também o título do Hme que Jacques lidar com os "casosde consciência':Outro anacronismo
. / Rivette fez em 1991, com Michel Piccoli no papel do ve-
de Balzac, uma vez que essepadre nasceu em 1646, mais
\ Iho pintor, a partir desta novela de Balzac.A propriedade
de 30 anos depois da datação dada a estesepisódios pelo
destadenominação, mais expressivado que aquela que a
escritor.
substituiu, ficará evidente no segundo capítulo.
28 "normando" Nicolas Poussin nasceu perto de Rouen,
Cafheríne l,escazzlf
em LesAndelyz, na Normandia.
29 "Adão" Tudo indica que se trata do quadro Anão e Eva,
43 "Catherine Lescault" Personagemfictício, modelo para
hoje em Berlim. La Be!!e Noiseuse.
31 "Frenhofer" Personagemfictício. O nome de ressonân-
43 "Três meses" Na versão inicial, apenasdois dias -- perío-
cia germânica, porém, não é fortuito (ver posfácio).
do de tempo mais lógico na narrativa interpõem-se en
34 "Pigmaleão" Pigmaleão, de acordo com a lenda, apaixo-
tre os eventos da primeira parte e os da segunda.
nou-se pela estátua de Galatéia por ele mesmo esculpida 45 "Angélica" Angélica é a heroína de Orlando Furioso, de
A seu pedido, Afrodite deu vida à estátua para que o es-
Ariosto( 1471-1533); foi tema de pinturas famosas de Ingres.
cultor pudessetê-la como mulher. 54 "Paras" Ilha grega fornecedora de um mármore particu-
34 "o fazer" "le paire'l no original francês, em lugar de sa-
larmente apreciado.
voir-áaíre.Seu uso intencional por parte de Balzac ressal-
57 "Enquanto Poussin" Estes dois últimos parágrafos fo-
ta o caráter pernóstico do termo, naquele momento tan-
ram acrescentadosao texto para a edição de 1837.
to quanto hoje (exemplo: "o fazer artístico").

63
6z
H ONO RÉ DE BALZAC

57 "1832" Estadata não tem relaçãocom nenhum fato re


lativo à novela ou sua publicação. 1832 é o ano em que
BalzacconheceuHanska,suamulher.

Bibliogra$a

BaZzac,Honoré de. l,e chef-d' oeuvre {nconrizl. Paris, Le Livre


de Poche, 2001. Apresentação de Maurice Bruéziêre.
l,e c/ze#-d'oez4vreíncorznu. Pauis, Gallimard, Folio
Classique, 2000. Prefácio de Adrien Goetz
The Unkfzown À4asterpíece.New York, New York Re-
view of Books, 2001. Introdução de Arthur C. Danto.
Pos.ócio
Berlin, lsaíah. T/ze Roofs of Romanticism. Princeton, Prince-
ton University Press, 1999. Editado por Henry Hardy. ENTRE A VIDA E A ARTE

64
F
ascínio de longa data, esta novela de Balzac. Lida
e renda mais de uma vez, mais que muito outro
livro em minha vida. Ao longo desselongo pro
cesso de leitura (é um processo, embora de início sem
qualquer finalidade desenhada), a descoberta, previsí-
vel, de que o encanto funcionou também com tantos
outros. Surpreende, um pouco: uma pequena novela
entre vários romances sólidos de Balzac e é ela que vol-
ta e reaparece.Uma pequena novela entre tantos outros
livros de tantos escritores e é ela que volta e reaparece.
Livro de cabeceira de Cézanne, por exemplo, convenci-
do como estava de que Balzac nele se basearaprospec-
fivamerzre para construir a personagem de Frenhofer.
E Picasse. Picasso também. Picasso foi morar naquele
prédio da Rue des Grands-Augustins, o imóvel conhe-
cido como Hotel de Savoie-Carignan, 7 rue desGrands-

67
T EIX EIR A C O EL H O
v' ENT RE A VIDA E A A RTE

Picasso foi mais feliz ali onde outros fracassaram,


Augustins, coração do Quartier Latin, a uma quadra do
Sena,ao lado do Pont Saint-Michel, cujo sótão serviu, aquelesque vão em busca de lugares e cidades trans
formados em cenários de romances sem conhecer a ad
tudo indica, de cenário inicial para a história de Balzac.
vertência de Proust, À /a rec;zero/ze,
sobre a inutilidade,
E ali Picasso pintou uma de suas grandes obras, Guer-
níca, uma das memoráveis do século XX, para alguns a a tolice de ir atrás de cidadese lugares reaisíiccionali-
zados na literatura: umas e outros só existem nos livros,
mais importante do século.
nos livros e na imaginação dos leitores, rzãona rea/idade
ainda que reais: é difícil convencer-se disso.
Do ponto de vista moral, pode ser.Como arte em si,
semdúvida impressionante:impossível vê-la semsentir
seu impacto estético, impacto físico. Pelo menos era im- Pessoas
também partem em buscade cidadese luga-
res descritos fzo círzema. O desencanto final é menor, po-
possível não senti los enquanto instalada em anexo do
Museu do Prado, sozinha em imensa sala cuja pompa e rém, bem menor que com a literatura: o cinema é de

austera solenidade asseguravamIhe um destaque único, masiado explícito em seu modo de representação,abre
pouco espaçopara o investimento da imaginação sobre
o que devia ter. O cenário não era apenascenário de mu
o que mostra, ninguém pode decepcionar-seexcessiva
seu, cenário comum de museu: um monumento, tam
bém. Sem que isso diminuísse o vigor da obra, era'qua mente com o que encontra na realidade depois de vê-lo

se um mausoléu, como se naquela encenação a Espanha na tela: o cinema antes confirma a visão ulterior do que

sepultassee resgatasseuma culpa em parte nacional pelo é por ela desmentido: seusespectadoresestãodesobriga-
dos das desventuras impostas pela literatura.
que acontecera em Guernica: as culpas de uma pessoa,
um partido, um grupo, acabampor vezesvergando om-
bros nacionais, ombros inteiramente nacionais, e a rza Picasso íoi mais feliz do que aqueles que desconhe-
cem a advertência de Proust ou a ignoram e partem em
ção tem de expiá-las. Guernica. Mas depois de instalada
no museograficamente medíocre Reina Sofra -- espacial-
buscadesseslugares:procurou o lugar apontadona no-
mente não tão distante do Prado embora culturalmen- vela, Rue des Grands-Augustins, e nele se instalou em
te em outra dimensão -- numa sala medíocre permitindo 1931,pouco depois de cumprir a encomendaque Ihe fi
zera o mare/zandAmbroise Vollard, uma série de águas-
apenasuma medíocre recepçãoda tela, Guernica perdeu
muito da aura, assim como perdeu muito de seu signifi fortes e xilogravuras feitas especialmente para ilustrar
cado o que sepassou em Guernica, a cidade, em 1937.De uma nova edição de... A obra-prima ígrzorada,publica
todo modo, o trajeto da arte:do fotão real de uma ficção da naquele mesmo ano, 1931, pelo mesmo Vollard que
proporcionara a Picasso sua primeira exposição indivi-
para o espaço de ficção de um museu real.

68 69
T EIXEI RA CO ELHO
v' ENTRE A VIDA E A ARTE

dual. 1931: exatos cem anos antes, em 1831, Balzac pu- do para aquele exato ano, é menos provável. Setiverem
blicava essanovela em dois números sucessivosda re- sido propositais, reforçam o caráter singular do fenó-
vista l,' Artista, que a havia encomendado ao autor as- meno em que setransformou estanovela. Senão for as
sim como uma revistahoje encomendaum texto a um sim, essemesmo caráter será ainda mais forte porque
crítico ou jornalista: é preciso escrever sobre este tema então é como se um encantamento envolvessea nove-
não sobre aquele, é preciso falar desta obra ou desta ex- la, encantamento ou magia, magia como outro nome
posição e não daquela. Para Balzac, a encomenda fora que se pode dar ao jogo das coincidências bem mais
escrever uma novela à marzeíra alemã. E ele a escreveu. comuns, largamente mais comuns do que se costuma
As datas, ainda: Picasso termina Guernica (ou a con- pensar e do que a precária lei matemática das previsões
sidera acabadado modo como queria ou podia acabar) estatísticas permite supor: as coincidências estéticas, as
em ]937, cem exatos anos depois de Balzac fazer a úl- coincidênciasna historia da arte (quando não falsas,
tima de tantas ampliações e revisões em sua novela e por retrospectivas: profecias retrospectivas),as coinci-
entrega-laspara publicação na forma hoje privilegiada dênciasdavida.
Eu desconheciaessascoincidências, essascoincidên
por diferentes edições
das todas, quando li a novela nas primeiras duas vezes,
As revisões e alterações no texto da novela permitem três. Naquelas ocasiões li-a como as novelas e ficções
ver como ela era especial também para Balzac. Durante devem ser lidas: nelas mesmas, por elas mesmas, sem
fase da vida arada, e arada fundo, como de resto tantas dados adicionais, sem intenção de cumulá-las de co-
outras, por problemas financeiros só dissipáveis com um nhecimento ou reflexão. E o fascínio que senti deve ter
aumento de suaprodutividade literária, quaseprodução seoriginado no reconhecimento imediato de que a no
em série no primeiro século da produção em série, retor- l vela toca no rzervo mais serzsíveZ
da arte: sua relação com
nar a um texto que já servira para um de seuspropósitos \ a vida. Sua relação com a vida de quem a faz, também
imediatos -- fazer dinheiro signiâca distintamente um a relação da arte com a vida de quem a recebe.E que é
apegoespecialdo autor ao próprio texto. O autor fasci- / uma relaçãode substituição, alternatividade, causação
nado pela própria criação l ou continuação: a arte no lugar da vida, a vida no lu-
gar da arte, arte gerandovida, vida como fonte da arte.
Ê improvável que tantas coincidências tenham sido Uma vida. Também: a arte eliminando a vida, arte ig-
armadas,intencionalmente montadas.A ida de Picas- norando a vida. A questão mais importante da arte. Por
so para a Rue des Grands-Augustins, a uma quadra vezes, a questão mais importante da vida.
do Sena,foi por certo proposital; que a tenha marca- Pode-sedizer, alguém sem duvida dirá: é a questão

7o 7t
TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A ARTE

uma convicção interna que não cede aos argumentos


mais importante da arte do ponto de isto de uma cotz-
cepçãoromânticada arte -- um pouco como sediz uma banais, nem aos mais fortes, que não cede a essesargu-
mentos mesmo diante da acusaçãomais terrível: a de
visão inl$antíZ
da arte, uma visão adolescente
da arte. Já
foi dito. Que outra visão se opõe, porém, à visão ro- que essaconvicção é uma loucura; uma das hastesle
mântica da arte: uma visão realista,uma visão da arte ves do â'ágil tripé romantismo-revolta-revolução; de

como um prodzíroa mais, um produto como outro seiode romper os limites estreitosda individualidade e
do aqui-agora e expandir-se infinitamente e o contrá-
qualquer, que vale o que vale mas não é decisivo? Ou à
visão romântica da arte somente pode opor-se uma vi- rio disso também: esgotar-se no aqui-agora, em si mes-

são cínica da arte, como provavelmente em Warhol no mo ou no grupo; a inexprimível delícia de brincar com
início de sua carreira e em grande parte de sua carreira; a própria alma; ou de esquecê-la totalmente; energia vi-

como em Duchamp na parte de sua obra pe]a qual âcou tal mastambém auto-aniquilamento, suicídio, dandis-
afinal conhecido; como no realismo-socialista; como na mo, exibicionismo,excentricidade,tédio, a morte na
arte nazista: uma visão cínica. alma, o sursis, visões diabólicas, visões divinas, fideli
Romantismo, um termo vago e amplo. Melhor táti- dade ao detalhe tanto quanto a buscado oceânicoin
ca:não defina-lo,não descrevê-lo:setanto, esboçar-lhe diferenciado; opacidade e obscurecimento como tam
os contornos. Muita coisa aponta para o romantismo, bém deslumbramento; esquerda e direita; não aceita-
muita coisa e seu contrário, coisa demais para reduzir ção do conhecimento como virtude, a criaçãode valo-
res no lugar do esfzzdodos valores, a criação a partir do
a fórmulas precisas.Um conceito que desliza e escapa
nada; operar sabendo que não existe o objeto, apenaso
de toda análiseque pretenda transforma-lo em unida-
de, reduzi-lo a uma essência incontrovertível. A vâo de sujeito; o marginal, o exilado, o super-homem, a auten
ticidade existencialista, a certeza de que nada existe no
pássaro, em todo caso, para dar-lhe as cores básicas: de
mundo que possa amparar você e que você é responsá
dicação a um ideal pelo qual vale a pena sacrificar o que
se tem ou é; decisão de não negociar com o que se opu- vel por tudo que é ou possa ser e fazer; a recusa de uma
ser a essabusca; desinteressepela felicidade: o anseio é estrutura metafísica para o universo, e o inverso: o mer-
por outra coisa;indiferença diante dos padrõesforma gulho no místico; o vazio como o grande dado,portan-
tadores da sociedadee dos códigos todos; independên to a valoração do aqui-agora; a certeza de que os valo
cia frente ao poder, desprezo pelo senso comum; deci- res são muitos e incompatíveis; a noção de pluralidade
são de lutar incessantemente pelo que importa, capa- e diversidade, o liberalismo; a recusadas feorfas expZI
cativas pelláeífas e irzcorzfestáveís,recusa do determinis-
cidade de suportar o martírio; opção pela minoria não
mo, da razão da história; a certeza da imprevisibilidade
pela maioria, idealismo em seu sentido mais comum;

73
7z
TEIXEIRA COELHO ENT RE A VIDA E A A RTE

do comportamento humano, tudo isso e muito do que alcançar,num esforço diante do qual habitualmente se
contraria tudo isso cabena forma do romantismo, ao costuma considerar que é melhor e?zfrarnum compro
lado e por cima dos valores românticos banais banal- missa:acertar um compromisso com a própria vonta-
mente descritos nos manuais de arte e literatura. Na op- de, com a própria vida, com o cosfz4me:
e ceder. O ro-
ção por um resumo da essência do romantismo avan- mantismo como atitude não simbólica, quer dizer não
çadapor lsaiah Berlin:, o romantismo é a vontadedeja- normativa,não generalizantee não abstrata;e atitu-
zer e a aârmação de que não existe uma estrutura imu- de tampouco baseadano pragmatismo embora atitu
tável das coisas,e que portanto é possível com elas fa- de que possater o pragmatismocomo fim; o roman
zer o que se decidir, quase;no mínimo, a certezade que tismo, antes, como atitude abdutiva diante da vida e do
vale a pena tentar. A I'ontade e o ;comemcomo afivída mundo, uma. atitude tipo pode ser, atitude icânica. Ati-
de (Lenz: é preciso agir, agir sempre), isso é o romantis- tude mágica, no limite, caso se prefira que a palavra seja
mo. A rigor, numa outra versão,romantismo ê o reco- pronunciada porque essaé a afifude da arte. Não há
nhecimento e a cotzvocaçãoda vontade (as teorias forma- por que se enganar quanto a isso: diante das estruturas
tadoras, unitaristas e integradores convergentes,quase e práticas que estão aí, a arte é um modo do pensamen-
todas fundamentalistas, chamam a isso voluntarismo). to selvagem (mais do que um resíduo do pensamen-
Desdobrando desempacotandb cultivando a voiítade to selvagem) no exato sentido em que se insiste ainda
(que nos termos de hoje se poderia traduzir por exer- em apresentar o pensamento selvagem como oposto ao
cer a escolha), romantismo é o homem como atividade pensamento cultivado, quer dizer, educado,normatiza
continuamente se criando e recriando e não tão preo- do e, portanto, como pensamento primitivo, não avan
cupado assim com a identidade, com sua identidade, ao çado. Necessário reivindica-lo.
contrário do que aparecedescrito nasversõesrudimen-
tares do romantismo ou como aparecenos romantis- A magia: no documentário sobre e com Woody Allen,
mos rudimentares e nas versõesrudimentares das in- Á Záeírz.Êlm (Turner Classic Movies, lançado em 4 de
terpretaçõesdo romantismo. Homem não preocupa' maio de 2002), o cineasta insiste: alma porque enquanto

do com issoporque sabeque a única coisa que existee escreveo roteiro depois o filma depois edita o filme, está

a única coisa que conta é o movimento. Essaé sua au- mergulhado numa outra vida que Ihe permite enú'entar
tenticidade -- que custa alcançar, custa enormemente a a ozzfravida, aquela fora da arte. Um pensamento selva
gem,perfeitamente selvagem.Primitivo. Quanto retina
mento num primitivo. Claro, Woody Allen vaí ao Madi-
1. 1saiah Berlin, Tbe roots of romantícism. Princeton, Princeton University
Press,1999. son Square ver básquete, toca clarineta no Carlyle uma

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A A RTE

vez por semana, cultiva suas relações amorosas, estraga sem argumentar a respeito: o convencimento sobre o
suas relações amorosas. Mas a outra vida está lá, o cine- bom fundamento deste ponto não deriva de argumen-
ma, e é lá que ele faz e refaz e desfaz sua outra vida. E por tação. É senti-lo ou não.
isso faz um âlme por ano: dez mesesem doze ocupado
em fazer refazer desfazer sua vida com a outra vida. l.Jma
vida no cinema.
Um primeiro ponto, que já faz parte dessaquestão:
Não é esteo lugar para distinguir um romantismo de o título adotado na tradução da novela, com a opção
outro nem para dizer quanto e quando um romantis- por .A obra-prima ignorada no lugar do que seria a ten-
mo é adequado e quando não é, atitude classiâcatória dência inicial, automática: .A obra-prima descon/zecída,
portanto pouco romântica mesmo se ocasionalmente assim como se diz, um pouco, o se/dado descon/legião.
inevitável. E embora o romantismo busque a perfeição Uma tradução para o inglês desta novela apresenta-a
no sentido em que o romantismo pode ou quer des- como T/ze ufzknown masferpíece,onde unknown equi-
crevê-la, sabe que fracassará buscando-a. Ê nesse sen- vale a descorz/decida.
Mas a situação de desconhecimento
f tido, num sentido romântico então, se se quiser, que a do soldadotombado nada tem a ver com a situaçãoda
questão do lugar da arte na vida, da relação entre ante e obra de arte mencionada na novela.A obra na novelaé
' l vida e da arte no lugar da vida, da arte como alternati- uma obra-prima ignorada a palavra francesa incon
l va à vida e da arte como a morte da vida, é nessesenti- rzuecomporta essesigniâcado ao lado do outro, deixa
do que essaquestão continua a questão central da rela- do de lado. A tela de Frenhofer é vista pelos dois outros
ção entre a arte e o homem, a mulher. Se não for assim, pintores. Não pode ser uma tela desconhecida como se-
se não for nessefoco, não interessa, a arte não interes- ria aquela que o pintor tivesse pintado e deixado esque-
sa(a vida não interessa,para o homem estético:para a cida a um canto, num porão, propositalmente esqueci-
parte estéticado homem). Quando essaatitude diante da ou descuidadamente esquecida (mas nenhum artista
da arte e da vida, da artevida, não mais for possível, por deixa uma obra descuidadamente esquecida num can-
ter o pensamento selvagem encontrado seu horizonte to; um museu pode fazê-lo, um artista nunca.) Pous-
intransponível, numa possível e provável situação pós- sin e Porbus vêem a tela, vêem a tela e não a reconhe-
humana, a arte terá encontrado sua morte. Até lá é essa cemcomo obra-prima, não a reconhecemnem mesmo
a questão central do imaginário da arte e é essaa ques- como obra, vêem-na como â'acasso,coisa sem sentido,
tão de .A obra-prima ignorada. Questão fascinante, de indício de senilidade de Frenhofer: mais incisivamente,
um fascínio indizível. Melhor então apenasenuncia-la, sinal da demência (aí está a palavra) do velho pintor. Os

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TEIX EIRA COELH O EN T RE A VIDA E A A RTE

dois vêem a obra e a ignoram, decidem ignora-la como criação na arte (não é uma parte, é uma dimensão difusa
obra de arte. Intencionalmente a ignoram. É outra his da novela) não é abordada diretamente e acasosomen-
tória decidir se poderiam não ignora-la, uma história te os leitores de hoje, conhecendo a arte dos últimos
que não será evitada pouco mais abaixo.Ignoram-na, 100anos, podem apreendê-la por inteiro ou fazer asila
seja como for. ções amplas que hoje se podem fazer: nunca se saberá
É essaignorância, é essaobra de arte ignorada como como de fato a apreendeuum leitor da época de Bal-
tal e como obra-prima de arte que aponta para um ou- zac (como um divertíssemenf,talvez). O fato é que an
tro aspecto central da novela ao lado daquele relativo tes de ser uma novela sobre a criação na arte estaé uma
novela sobre o drama da criação rzaarte, este sim. E um
às relaçõesentre arte e vida, vida e arte, e vida e arte e
morte, morte da vida por causada arte (aqui é o lugar drama, enorme drama: Frenhofer passa dez anos com
correto para dizer: morte da vida em virtude da arte, aquelapintura, não quer mostra-la a ninguém antesde
morte da vida como uma virtude da arte) termina-la, talvez não a mostre nunca, decide mostrá-
la, zombam dele, Frenhofer queima a pintura, queima
Vlrtíztem jorna decorar,está inscrito no verso da tela todas suas pinturas, põe fogo no ateliê e morre no in
onde Da Venci pintou o lindíssimo retrato de Ginevra de' cêndio.Enorme drama. Rigorosamente,uma tragédia.
Benci em 1474,como expostona National Gallery de À&a E por ser uma novela sobre o drama da criação na arte
shington. O belo decoraa virtude: a arte decora a virtude, e da arte é que a novela deixa em evidência um de seus
mais radicalmente: a forma decora a virtude: a forma co- focos centrais, o da recepção da obra de arte, recepção
roa a virtude: a virtude não existe sem a forma certa. de uma certa obra de arte, aquela que recebe o nome de
obra-prima. A narrativa central da novelatudo organi-
ou morte da arte por causada vida, morte da arte em za e tudo faz caminhar para o ponto em que, não sen
vÍrfzide da vida: o aspecto para o qual assim se aponta do reconhecido aquilo que Frenhofer tem de mais caro,
é o da questão da recepçãoda obra de arte. Costuma-se o drama se instale. O drama e a tragédia. É essanar
dizer, é quase um lugar-comum entre os comentaris rativa, a narrativa da discrepância entre o que Frenho-
tas desta novela, que Á obra-prima !g/corada é sobre a fer diz sobre suatela e aquilo que os dois pintores nela
criaçãona arte, sobre a criação da arte. Em parte sim, vêem ou nela não conseguem ver, que convencePous-
sin e Porbus do drama que presenciam assim como dele
um pouco, embora não porque Frenhofer dê lições de
se convence a maioria dos leitores da novela, inclusive
como se devepintar ou não se devepintar, liçõesque
de resto quase, apenas quase, seriam irrelevantes para a leitores qualificados que são os comentaristas da litera
situaçãoatual da arte. A parte da novela que é sobre a tura e da arte e da âlosofia da arte ou quem sabefosse

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TEIXEIRA C O ELH O ENT RE A VIDA E A A RTE

melhor dizer: da .piosoÚaque acomparz/zaa arte. Há na tro lado. Por vezesnem é necessáriopâ-la contra a luz
novela um problema de recepçãoda arte, por certo não para perceber a porosidade da página, a permeabilida-
apresentadocomo tal, e é em torno dele que também de de uma face pela outra.

gira a novela, muito mais fortemente, sob certo aspecto,


do que sobre o problema da criação na arte. A marca d' água,quando existente,é outra história
Esta novela de algumas poucas dezenasde páginas
é mais profunda (atravessamais camadas,tem mais Dizer que são os lados indestrinçáveis de uma mes-
pelesa cobri-la) do que à primeira vista pode pare- ma entidade significa dizer que a criação se faz freqüen
cer. Mais densa e profunda e certamente nada simples temente a partir de uma recepção.THvez não o façam
e nem simplista, e nenhuma conversa sobre ela, como apenas aqueles espíritos que rzão domesticaram sua
esta conversa agora, pode cair no erro de assim fazê- vontade e não acreditam nos formatos, sejam quais fo-

la parecer: toda sua complexidade, todos seus parado- rem e para o que forem, como definitivos e indesmon-
xos e seusbecos sem saída precisam ser enfrentados e táveise insuperáveis.A tendência para entrar num com-
vividos. E respeitados.Neles se aloja e se alimenta sua promisso,neste tema, é grande: compromissar a criação
força, demonstrando e ressaltando o ponto de vista ro- com a recepção,como se todas as energias disponíveis
mântico de que a ficção, a arte,'é mais poderosa, ilâfi- fossem canalizadas para isso e nada sobrasse para o es-
nitamente mais poderosa na abordagem da coisa hu forço na direção contrária.
mana do que as teorias formatadoras "realistas'l "obje- Um problema de recepção: Poussin e Porbus olham
tivas'l "idealistas" ou "materialistas't Assim, desmontar aquela tela e nela nada mais vêem além de "cores confu
a novela não é fácil. Nem a rigor desejável (mas às vezes samente espalhadasumas sobre as outras, contidas por
necessário -- ou tentador). Alguns de seus pontos, algu uma multidão de linhas bizarras que formam uma mu-
masestaçõessuaspodem-sever com clareza,no entan- ralha de pintura': Áproicímam-se,percebem num canto
to, e esteé um deles:representa-seaqui, para o criador da tela um pé emergindo do "caos"de cores,neblina in
da obra de arte e para o leitor da novela, o drama da re- forme: pé delicioso, pé vivo.
l cepção da obra de arte. Recepção da obra de arte e cria-
ção da obra de arte são os dois lados de uma mesma e A beleza, no entanto, só se vê de longe.- (o que se vê

quaseperfeitamentetranslúcida folha de papel. Pondo de perto é a virtude da forma.-)


essafolha contra a luz pode-se ver atravésdeste lado o
que está na outra face, pondo-a contra a luz pode-se ver Ficam petrificados de admiração diante do frag
o que apareceneste lado sobreposto ao que estáno ou- mento que escapou a "uma lenta e progressiva destrui

8o 81
d

TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A ARTE

ção': destruiçãoé a palavra usada. Poderiam ter visto telas, Árabes Ititarido rias Honram/zas(National Gallery.

outra coisa, alguma outra coisa? Washington, D.C.), pintada em 1863, ano da morte do
Algum comentaristajá notou, como Cézanne,que artista, já existisse uma inclinação para o impressionis
esta novela de Balzac anuncia (volto a este tema ao fi- mo numa narrativa cuja açãocentral descrita no título é

l nal) o aparecimento da arte moderna ou é uma alegoria mero pretexto para o exercício da pintura, e embora nes-
l do início da arte moderna. O âctício Frenhofer pode sa tela as montanhas ocupando a maior parte do quadro

ria ser assimalgo como um pintor romântico, um De- já abram caminho para os volumes cúbicos de Cézanne,
lacroix. A alusão não é gratuita. Primeiro, Baudelaire apesar de tudo isso a mzzra/hade pirzrura, ela, estálonge
de seu alcance.
consideravaDelacroix como o último grande artista da
Renascença e o primeiro moderno. SÓa falta de infor-
mação, somada a uma miopia identitária nacionalista, / Essamz4ra/hade pífzfurapoderia bem ser a pintu-
poderia levar Baudelaire a dizer isso; mas não impor- l ra matérica que se encontra em pintores abstracionis-
ta: os três, Baudelaire, Balzac e Delacroix, fazem parte l tas-expressionistas dos anos 60 do século 20, em pinto-
de uma mesma cz4Zfzzra comum e essaé a referência de l res neo-expressionistas dos 80 e 90. Nem é necessário
Balzac.E em segundo lugar, Balzac informava-se sobre ir tão longe, chegar tão perto de hoje. A descrição do
arte com Delacroix, portanto Delâcroix aparecia no ho- que Poussin e Porbus vêem nessa passagempoderia dar
+ l rizonte de Balzaccomo um marco da modernidade, da a entender,melhor, que estão diante de um Turner, de
sua contemporaneidade. A questão é que a mural/za de uma tela de Turner na qual, como numa ou noutra de-
pí7ztz/radescrita está além do alcance de Delacroix. las, um navio emerge de um caos de cores, informe ne-
blina colorida, ou não um navio: um castelo ou alguma
Enquanto escrevia e revia sua novela, Balzac poderia coisa que parece Veneza, é Veneza. Cores dispostas de
de fato ter conhecido telas de Delacroix como Massacre modo aparentemente desordenado e contidas por uma
em Chips, 1824, Àforfe de Sardarzapalus,1827, e a famo- multidão de linhas estranhasque formam uma mura
sa Á liberdade /íderando o povo, 1830. Mas embora te- ' l Iha de pintura, uma catadupade pintura, uma torren
las como essastrês evidenciassemos princípios do ro te de pintura, uma enxurrada de pintura, uma lufada
mantismo pictórico, em especiala Àforte de Sardarzapa de pintura, com a diferença de que das telas de Turner
Zuscom seu erotismo intenso em meio a uma campo não emergenenhum pé delicioso nem algum outro de-
lição de um cromatismo e jogo de luz e sombra clara talhe delicioso porque agora, neste momento histórico,
mente pós-barroco (muito mais do que Renascentista, já é possível olhar para trás e perceber e dizer que nelas
como quis Baudelaire); e embora numa de suasúltimas tudo é delicioso.

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TEIXEIRA COELHO ENT RE A VIDA E A A RTE

Tempestade de neve: AnÍba! e seu exército atravessando os


O clássico Poussin e o arcaico Porbus rzãopoderiam
A/pes: Aníbal e seu exército são quase invisíveis, ínfimos
ter visto naquela tela do âctício Frenhofer uma tela de
como os árabesde Delacroix; o que interessapara Tur
Turner porque a ação da novela escrita em 183 1 se passa
em 1612,duzentos anos antes de Turner: Dois séculos ner é a pintura em si, na Forma, aqui, de um céu negro de

inteiros: um outro mundo. Um ou rom ndo. Mas Bal- tempestade que obscurece o sol enquanto a maior parte
da tela é tomada por uma cortina branca desabandodo
zacsim, poderia ter visto uma tela de Turner, em Paras,
ou numa de suasviagens ao exterior: uma tela de Tur- alto numa muralha de pintura que se derrama da tela se
bre o observador.
ner ao vivo ou alguma improvável reprodução. Ou po-
deria ter ouvido um comentário sobre uma tela de Tur-
Balzacpode ter assim descrito daquela forma a tela
ner, como poderia ter /ido um comentário sobre uma
de Frenhofer por ter visto telas de Turner, e delas des
tela de Turner, um comentário de alguém que não ti
vessese impressionadomuito com o que vira ou, nada gostadoou imaginado que poderiam desgostarao pú-
blico, ou por ter recebido notícias das telas de Turner
improvável, que tivessefrancamente rqeifado o que ha-
fornecidas por alguém incapaz de ver nelas outra coi-
via visto. Foramlargamentecontemporâneos,Turner
sa além de um amontoado de cores confusamente dis-
vivendo entre 1775 e 1851, Balzac entre 1799 e 1850,
postas.Ou Balzac assim pode tê-la descrito porque essa
compartilhando entre si, nessa enquarztoque quase
era suaidéia de uma pintura fracassada.
Essamesma
semprenada significa por constituir-se numa absolu-
ta ilusão e falsidade, parte acentuada do período mais passagem,quaseao final do segundocapítulo, na qual
criativo de ambos.A tela de Frenhofercomo sinal da Balzacdescreveo encontro daquelepé deliciosocom
modernidade,não modernidade nascente;modernida- os olhos de Poussin e Porbus, um pé portanto forço
lamente realista em algum grau, é a única em que apa-
de para BaZzacna verdade já existente pelo menos desde
rentemente o escritor Balzac, o narrador da novela que
l Turner, Turner que em 1797pintara uma tela à qual deu
é Balzac,toma o partido do pintor clássicoe do pintor
o titulo Impressão do nascer do soZ,retomado por Monet
arcaico,porque diz que essepé surge como se escapa-
l para uma tela de 1873;Impressão,
soZtzascente.
O im-
do de uma /anta e progressiva destruição, como o torso
pressionismo então nasceu duas vezes: uma na história
fáci] francesa,hábito cultural, e outra antes,mais radi- de alguma Vênus surgindo entre os escombros de uma
cal. Nasceu duas vezes,então. Tanto melhor.
cidadeíncetzdíada.Não direi que essaé a opinião defi-
nitiva e central de Balzacsobre a tela de Frenhofer: Bal-

Turner ainda que em 1812,outra vez antes de De- zac pode ter-se sentido inseguro e incerto em suas pró
proasidéias a respeito daquela fictícia tela, um escritor
lacroix e antes que Balzac escrevessesua novela, pinta

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A A RTE

não domina o assunto sobre o qual escrevenem con- zac talvez não mais tinha tanta certeza sobre aquilo que

segue sempre se posicionar claramente diante do que poderia existir na fictícia tela do fictício Frenhofer to-
mada como símbolo de uma arte que não era mais tão
escreve.E Balzac pode ter mudado de opinião de uma
fictícia assim,pois Turner a fazia, e que podia passar
parte para outra da novela, ele que mexeu tanto e du-
rante tantos anos nessetexto e que assim pode ter-se por uma antecipação da nova arte, a arte moderna. Fre-
contradito semperceber,como pode não ter consegui- nhoíer morre, a reaçãodos pintores pode ter contribu-
ído espaçosamentepara aquela resolução a narrativa
do aparar as contradições que nele percebia existentes:
de Balzac pode ter contribuído vastamente para aquela
por vezesa estrutura, a forma de um texto não admi-
te certas correçõessem que todo o texto exploda: o es- reso[ução.Objetivamente, na descriçãofinal sua morte
critor seu autor não sabemais como mexer no texto, é apenasconstatada. Nas entrelinhas, porém, percepti-
velmente existe uma sensaçãode pesar: e remorso. De
não encontra a porta de saída para as correções que faz,
Porbus. De Balzac.
não mais encontra a porta de entrada no texto a par
tir das correções que quer fazer e já fez. Digo que essa
A menos, claro, que Balzac tenha feito a correção em
é a passagem onde Balzac aparepzfemente toma o parti-
decorrência de uma decisãocínica: a novela fica muito
do dos dois pintores porque mesmo ela pode preten-
mais dramática com o novo final, muito mais emocio-
der propor-se como a mera descrição dos pensamentos
nante, muito mais envolvente mais grandiosa, menos
e sensaçõesdos dois pintores, eles mesmos, não do au-
Tomar rosé.
tor. Não se pode excluir que Balzac em alguma medi-
da compartilhasse aquela opinião, sensaçãoque em fi-
Uma sensível oscilação na sensibilidade do autor,
ligrana perpassao leitor. E de todo modo, diria que essa
nesta novela.
passagemque eventualmentepoderia ser de endossoà
opinião dos dois pintores pelo autor é no mínimo en- É difícil imaginar Balzacalheio aos novos proble
sombrecida, se não atenuada, pelo novo final da nove mas que a arte enfrentava no exato momento em que
escreviaa novela, ele que lia sobre estética e tinha ami-
la, acrescentadoanos depois. Ali, a última palavra, que
gos pintores com os quais conversavasobre arte. Aânal,
na primeira versão da novela pertence a outrem, cabe
a fotografia é inventada em 1823 por Niepce num mo-
a Frenhofer, que surge como uma figura que se pro'
)eta acima, por cima das figuras dos dois outros pin- mento em que Balzac começaa escreverseusprimei-
tores,como se a razãono fundo Ihe pertencesse -- e o ros romances.Turner de algum modo já se inscreveu
num percurso da arte marcadopelo gradual porém fir-
apoio do narrador a Frenhofer, invisível, é quasepalpá
me desaparecimento, nas representações pictóricas, da
l vel. Seis anos depois da primeira versão da novela, Bal-

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TEIXEIRA COELHO ENTREA VIDA E A ARTE

presença sensível, da presença recon/zecíveZ,da presen- sante,pode ter-se arrependido um pouco e matado Fre-
ça nitidamente ídenfi@cáveZ da figura, e se antecipara nhofer para que o arcaico Porbus se sentisse culpado,
ao problemaque a fotografa apresentariapara a pin- para que ele mesmo Balzac sesentisse culpado e expias-
tura. Outros não, não puderam fazê-lo, não quiseram se sua culpa não exatamente resgatando a pintura de
fazê-lo.Entre o surgimento da fotografia no entanto e o Frenhofer (impossível fazê-lo àquela altura) mas ma
momento em que a novela de Balzac é publicada, 1831, tando o pintor e se sentindo mal por isso, e sem dúvi-
tempo suficiente transcorreu para que algumas impli da fazendo-nos sentir mal a nós por isso: é uma lógica
caçõesdo jogo que se estabeleceriaentre fotografa e oblíqua, sim, uma lógica oblíqua, mas as dívidas de gra
pintura tivessemsetornado evidentespara quem refle- tidão e de ofensase pagam ambascom o massacredo
tisse sobre o tema por pouco que fosse, alguém como credor, como sabemos e para que o público da novela
um escritor da vida contemporânea como Balzac,como sedeleitasseno drama, delicioso apesar de tudo.
Balzacprecisamente, com sua ambição de abarcar e re- E se o final da novela arma dúvidas cerradasao re-
presentartudo da vida e do mundo. Balzacpode ter dor da idéia de desfruíção,da qualidade de salvadode
imaginado o qzze então faria um pintor que quisesse ífzcêndioque teria a tela de Frenhofer na única passa-
se sobressair dentre seus pares a ponto de dizer-lhes o gem em que Balzac parece endossar Porbus e Poussin,
que era pintura e o que não era pintura e como deve- o ifzício da novela faz uma proposição nítida desde o tí
riam pintar se quisessem revelar-se verdadeiros artistas. tulo: é uma obra-prima, uma obra-prima que se igno
E Balzacpode ter imaginado alguma coisa como uma rou; está-sefiando de uma obra-prima, não percebi-
muralha de pintura da qual emergisseum pé delicioso, da como tal. Artimanhas armadilhas e fUigranas de um
mesmo realista, saindo de uma neblina informe como escritor criativo: ele aârma no título que é uma obra-
asnévoasralasou espessas do informalismo. E pode ter prima no entanto ignorada, diz que vai falar de uma
imaginado que ele mesmo talvez não gostassedisso,re- obra-prima e depois faz dois artistas respeitáveise tão
ação perfeitamente plausível e compreensível e justifi- mais respeitáveisporque verdadeiros,históricos, dize
cávelmesmo num escritor, mesmo num intelectual. O rem que a obra em questão não passavade um fracas
contrário sim, quase poderia ser surpreendente. Pode se ao mesmo tempo em que acua Frenhofer a ponto de
ter imaginado que não gostaria do que veria e pode ter força-lo a dizer, a reconhecer imaginar temer, que gas
criticado de antemão o que poderia vir a surgir. E de tara tantos anos de sua vida naquilo para nada e obri-
pois, seis anos depois, quando de novo revê a novela e ga Frenhofer a perguntar-se se não se estaria descobrin-
quando talvezjá tivessevisto alguma coisada novapín- do ao anal da vida como apenasmais um burguêsrico
fzíra e se perguntado se aquilo não seria afinal interes- às voltas com um mero passatempopreferido. Balzac

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ENTRE A VIDA E A A RTE
TEIXEIRA COELHO

Desnecessário dizer, o problema de recepção narra


pode ter armado intencionalmente essejogo de vai-e-
vem para nos deixar confusos e hesitantes,para com do em .A obra-prima igrzoradapersisteainda hoje, mu
tatis mutandis ou mesmo tat qual se apresentava nessa
essaambiguidade preservar o mito das aventuras e des-
ttarrativa que em breve completará duzentos anos de ida-
venturas da criação e do sucessocomo a outra face do
fracasso na arte, mito que como todo mito é ambíguo de, quer dizer, quando em jogo está uma obra de arte
indefinido e impreciso e quanto mais ambíguo indeâ- visual ou outra com as característicasdaquela atribuí-
nido e impreciso, mais mítico -- e assim deve ser pre- da ao único pintor fictício dos três, Frenhofer.Nunca
se saberá se a tela imaginada por Balzac seria a obra de
servado.E pode não ter conseguido de$nir-se diante de
um pré-Turner, a primeira tela pré-impressionista para
uma inovação estéticatalvez vista, talvez ouvida em des-
não dizer primeira tela pré-informal, ou se era mesmo
crição, talvez pressentida.Ê comum: um escritor não
uma bobagem, monte de tinta espalhada demencial-
saber tudo aquilo que diz nem exatamente por que o
diz, nem saber se concorda concordaria ou concordará mente excremencialmente por um artista senil. Tam-
bém os melhores artistas tornam-se senis e fazem bes
com o que diz (só o faz o escritor que domina por in
tenrasno fim da vida assimcomo filósofos no fim da
tenro o que escreve e diz, mas esse quase nunca interes-
vida têm acessosde loucura e assassinamsuas mulhe-
sa). E, da maneira mais evidente, a .novela toda pode ser
uma metáfora do próprio Balzaccomo jovem escritor res. Nada na narrativa de Balzac permite porém con-
firmar sem traço de dúvida essademência de Frenho-
que, como todo .jovem escritor, acredita poder mudar o
modo de escrever, mostrar aos outros como se deve es- íer que mesmo algumas mentes argutas apressadamen-
te nele identificaram.
crever e ser um enorme sucessoao mesmo tempo em
que como jovem escritor duvida de suasforcas e se per'
E nenhuma edição contemporânea dessa novela, nes
gunta se não estariafadado aojracassodesde o começo,
te momento em que as capasdos livros trazem ilustra
e se pergunta se não é e permanecerá apenas um dile-
ções visuais, deveria sugerir na capa que a tela de Fre
tante, por isso hesitando em qualiâcar o que faz, tudo
nhofer não passade um acúmulo de borrões sem senti
que faz, como obra-prima. Pior: teme ser capaz de es-
do, como o faz a edição do l,ít're de rocha na coleção l,i
creveruma obra-prima e que essaobra-prima passeig-
breüi: beira-se com issoum erro cultural crasso.
norada -- assim como certamente não julgará o que co-
meça a escrever como um fracasso desde o início inevi-
Alguns artistas fazem no anal da vida coisas um tan
tável e irresgatável...
to inesperadas que desagradam, e como desagradam,
a seus seguidores fiéis, sobrefzzdoa seus sega/odores
.#éís

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9o
ENT RE A VIDA E A A RTE
TEIXEIRA COELH O

que são na verdade carcereiros de seus amados artistas


zarrasque marcou as várias versõesde sua À4zi//zer no
início dos anos 50 e Ihe valeu um lugar na arte, aquela
porque, inebriados pelo justo prazer que um dia senti-
ram ao descobrir as obras dessesartistas,querem que multa//za de pintura inicial havia desaparecido do espa-
eles continuem a fazer por toda a eternidade o mesmo ço agora vazio entre as linhas, desaparecido por intei-
que um dia fizeram ou a confínz4ação lógica daquilo que ro. Algumas críticas sobre sua última faseforam cor
um dia fizeram. Mas qual pode ser a continuação lógi- tantes: preguiça do artista, esgotamento da criativida-
de, maneirismo, e de maneirismo se falou mais de uma
ca daquilo que um dia um pintor um escritor fez? Caso
de De Kooning, vez -- e, inevitável, a influência do mal de Alzheimer: a
demência. Os que sabiam de sua doença não hesitaram
Surpreendi-me inúmeras vezes,e como, indo a uma na associação (era um caso c/ássíco): um artista no fim
da vida e doente.Não deveriaser necessáriolembrar
livraria para ver se não havia sido lançado algum livro
novo de um escritor fascinanteno entanto morto há lO, que De Kooning poderia estar, estavajazendo naquele
15 anos. Não tenho sequer a desculpa de que esperava momento o que sempre quis fazer naquele momento
que algum pesquisador de espólios literários houvesse
senão em todos os momentos anteriores: pintar a es-
localizado um manuscrito olvidado e inédito: o que eu sência de sua pintura.
esperavaera pura e simplesmenteencontrar um novoli- Atualidade da questão da recepçãoda obra de arte
vro do mesmo autor que não mais podia escreverlivro e atualidade da questão da representaçãonas artes vi-
suais.
algum. Uma esperançaabsoluta, uma esperançavazia,
despida de qualquer qualificativo atenuante... É arriscadopropor que um texto escrito no século
retrasado, como esta novela de Balzac, se aplica a um

por exemplo,que se encaixabem na história de Fre- objeto de um outro momento, a arte moderna, depois à
nhofer e na imaginação comum sobre a criação da arte arte contemporânea:a história vista destelado do tubo
telescópico permite facilmente a prática da prclÓecía
re-
porque suas últimas telas desgostaram seus admirado-
res e porque De Kooning sofreu do mal de Alzheimer frospecfiva,essaprofecia que se volta para trás com os
em seus derradeiros dias. Essasderradeiras telas mos- olhos de hoje para afirmar como o presentejá era vi-
tram apenas linhas sinuosas coloridas distanciadas sível desde aquele momento: a profecia retrospectiva,
umas dasoutras, quando não se cortam, por largos es- a prazerosaprática duvidosa da profecia retrospectiva,
paços de tela em branco, pintados de branco. Aquela que demonstrou inúmeras vezessua pouca ou nenhu-
multa/;za de pitzfzzra em empasto e de algum modo de- ma pertinência. Ao mesmo tempo, de outro lado, am-
limitada: delimitada, não: entrecortada por linhas bi- bivalente e ambígua como é, essase revela uma prática

9z 93
TEIXEIRA COELH O ENTRE A VIDA E A ARTE

comum no processocultural. Mais do que comum, tal- cores cottfusametlte espalhadas umas sobre as outras, con-
vez inevitável; entende-sea tentação exercida pela relei- tidas por uma mLlltidão de tinhas bizarras que formam
tura do passadocom os olhos do presente, a reelabora- uma multa/ha de pítzfura.

ção a reinterpretação do passado pelos olhos do presen-


te: afinal, o passado é a única dimensão temporal mol- Quem pela primeira vez se depara com um âlme de
dável: o futuro é um conjunto vazio e o presente, dema Godard (deparar-se é a palavra, muito mais do que as-
fiado resistente, demasiado inerte. Quando se trata en- sísír pára-sediante do âlme de Godard como quem se
tretanto de procurar as aproximações projetivas en tre o detém diante de um muro

passado e o presente para ver como o presente se des-


dobra sob uma outra luz mantendo sua característica e deter-sediante da obra de arte é fundamental,estar
ou suacondição própria, e sema veleidadeou o intuito diante de uma obra de arte que detémseu observadoré
criminoso de transtornar o passadomas apenascom o fundamental: é quando o observador percebe que a obra

propósito de verificar por que ele fda de perto ao pre- existe como tal, é quando ele percebe que e/e existe como

sente,essaprática tem um valor heurístico certo, o jogo tal, diferente da obra ainda que não saiba quem é ele e o

é válido. O fato é que lendo a descriçãoda tela de Fre- gueé ela

nhofer, descriçãosugerida muito mais que feita, tem'-se


a impressão forte, de todo justificada e reforçada na jus- corre risco idêntico de ver na tela cenasconfusamen-
t
tificativa por dezenasde exemplos, de que se está dían- te reunidas sobre o pano de fundo de uma multidão de
fe de uma obra de arte cotzfemporálzea,feita agora, com sons estranhos que formam com as imagens uma mu-
l os meios de agora. ral;za audiovisual argamassada em linhas bizarras na
Um filme de Godard,por exemplo:Jean-LucGo- qual a maior parte do público não pode penetrar, que
dard, o poeta da imagem que nos pergunta se quan- a maior parte do público não pode sequer arranhar. E
do vemos nossa própria foto não nos consideramos assim como Poussin e Porbus não conseguem ver na
uma acção, o poeta que enfrenta a colonização da ima- quela tela a mulher que Frenhofer ali enxerga tão bem,
gem, do olhar. As mesmasrecriminações lançadascon- a não ser um pé entrevisto depois de alguma insistên-
tra a tela de Frenhoíer poderiam ser feitas contra a tela cia, um delicioso pé entrevisto e visto de perto (quando
de Godard, com pequenasalteraçõesna forma, sealgu não deveriamver de perto essebelo pé ou quando não
ma. Poussin e Porbus nada vêem na tela de Frenhofer poderiam vê-lo como belo porque o belo é para sever
se não algumas de longe) tampoucoo público desavisado de um filme
de Godard como Passion ( 1982) por exemplo ou l,'éZoge

94 95
ENT RE A VIDA E A ARTE
TEIXEIRA COELHO

correspondem nem ao contacto do que estão fazendo:


de I' amour (1999) talvez mais Passíotíque l,'éZoge,
tal-
vez Passíoncomo NouveZZeVaguee alguns mais, e vários propõem-se, depois de alguns segundos de desorienta
ção, como diálogos talvez de outras personagens fora de
outros mais --, não conseguediscernir qual tema estáse
cena, em outro contexto, de um outro tempo da nar
desenrolando na película projetada, não consegue en-
rativa que não é uma narrativa. E a música que se ouve
tender sequer sobre o qtzêé o âlme, nem se o filme é so-
anexadaaos fragmentos visuais, a intervalos desiguais,
bre alguma coisa. A sensaçãode caos é completa, per-
não comenta a ação, que não é uma ação no sentido tra
feita. O que está sendo projetado parece fragmentos es-
dicional, e a música não é nem mesmo mais importan
capadosde uma incrível, lenta e progressiva destruição
te sonoramente, sonicamente, do que a buzina de carro
Se alguma coisa é identificável e reconhecível ao ouvido
que se ouve, estridente irritante, em diferentes e insis-
e à visão, é como o torso de alguma Vênus em mármore
tentes momentos. Coroando tudo, se é uma coroação,o
surgindo entre os escombrosde um palácio incendiado.
Nessesfilmes há uma situação dramáfíca que de algum filme não tem história. Simplesmente,não conta uma
história no sentido em que aristotélica e hollywoodia-
modo sevislumbra: personagensdiscutem com perso'
namente a conhecemos.É algo que o filme Pnssiorz, que
nagens, portanto estão em oposição, portanto há con-
a obra de arte Passio/z, essa obra que se mostra eÓefiva-
flito, portanto deveexistir ali a sombra,um pedaço.de
menfecomo ficção,artifício, como construção,como
urna narrativa aristotelicamente portanto hollywoodiá-
obra de arte (não como fotografia) deixa claro: o pro-
namente definida; não se percebe porém, que essanar-
dutor do 61medentro do filme Passíon(pois é um fil
rativa de fato existe, onde começa e onde termina, mes-
me que de algum modo fda de um filme que estásen
mo porque ela não termina. Nem propriamente come-
do rodado, embora isso pouco interesse), preocupado
ça embora o começo seja esperado e codificado como
com os gastose com a ausênciade uma multinacional
sendo o começo da projeção, começo gratificante como
que poderia entrar com dinheiro, garantir boa distri-
todo começoao contrário do final, õ'ustranteno caso
buição e assim evitar o desastreeconómico total do fu-
de Godard porque não ferminalzte, porque não se espe-
me, pedepor uma história ao diretor o tempo todo, coi-
ra que termine otzde qzzandoe como fermirza. Em vários
momentos, se na tela se podem ver duas ou mais per' sa queo diretor do fume dentro do filme Passionrecu-
sa atender não menos obstinadamente. Não há no fll-
sonagensque parecem conversar, os diálogos ouvidos l me-dentro-do-filme e no fume ele mesmo uma histó-
sobrepostos a essasimagens instáveis flutuantes não
l ria clara, por certo talvez nada mais além de um pé de
correspondem ao que as personagens estão dizendo
l história, uma minúscula parte de uma história; mashá
(ou será os amores?
não se parecem com autênticas per'
semdúvida um tipo de narrativa: uma narrativa poéti-
sonagensembora não surjam como reais atores), não
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96
TEIXEIRA COELHO ENT RE A VIDA E A A RTE

ca. Modificando levemente o que Frenhofer disse, Marés ainda na passagem referente à "missão da arte': missão
estãodiante de uma narrativa cinematográ$cae $cam da arte naquele momento assim como hoje e em vários
procurando uma /zisfória de ci/lema? Melhor: Vocêses- outros instantes situação em que a contemporaneida-
tão diante do cinema ePcam procurando um $1me?Ou de se transforma em supratemporalidade, em um largo
ainda: Mocasestãodiante de um poeta e.Piam procuralz- confirzuum.Analisando a pintura de Mana do Egito fei-
do um dírefor de cinema, quer dizer, aquilo que para ta por Porbus, Frenhofer aponta para as partes que jul-
a indústria do âlme não passade um capatazdo cine- ga "verdadeiras': aquelas onde reside a verdade da arte
ma? Nenhuma das regras clássicas da narrativa, sobre ou a verdadena arte, e aquelasque vê como falsas,ali
as unidades de tempo espaço ação, são respeitadas, ne onde para eleo artista â'acassou.Aquelasonde há vida
nhuma delase várias outras mais. No meio de uma con e aquelas ocupadas apenas pelo simulacro. O acuado
versa entre duas personagens numa sala, à noite, inse Porbus responde que tudo que pintou deriva da obser-
re-se uma tomada de um mar diurno que não se sabese vação de modelo ao vivo: ele vít{ aquele pescoço, aque-
estáao lado da casa,muito longe da casa,no outro lado le colo, aquele peito antes de pinta-los, observou-os com
do mundo ou no outro lado da imaginação do cineas- afe7zção.Frenhofer responde:
ta. Nunca se saberá onde estáessemar, que é como um
mar de Gerard Richter, se é o maó se é um mar, inclui;o a missão da arte não é copiar a natureza mas expressa-la
se não é mar algum. E a tela se escurecepor um tempo.
E o quadro negro às vezestraz uma palavra ou mais de Não há como deixar de ver ;zde nessaproposta fei-
uma. Às vezesnão. E quando a ação retoma não se sabe ta naquele momento por Balzac, por intermédio de sua
se é no mesmo tempo da ação anterior ou antes ou de- personagem,uma preâguração da nova arte romântica
pois. Muralha de imagens e sons. O que é visual nem que só estaria no mercado 200 anos depois. As relações
sempre é visível, capaz de ser visto. O que é sonoro nem entre Balzac e Delacroix já foram mencionadas. 1822:
sempre é audível: muralha. Delacroix aparecepara o cenário da arte com a tela Á
É nessapista larga e de alta velocidade da poética, no barca de Dente aceita pelo Salão de Paris desse ano, no
entanto com tráfego reduzido, que o texto de Balzac as- mesmo momento quase em que Balzac começa a escre-
sume toda sua contemporaneidade e se larga solto. ver seusromances: 1823. São portanto contemporâne-
os plenos, Balzac e Delacroix, e Balzac pode estar co-
locando na boca de Frenhofer propostas que ouviu de
pintores como Delacroix ainda que não fosseDelacroix
A contemporaneidade desta novela de Balzac surge o pintor que poderia vir a pâr aquela proposta em prá-

98 99
TEIXEIRA C O ELH O ENT RE A VIDA E A A RTE

tica. Fique de lado por um instante a certezade que a sempre mais de si mesmo, pensando sempre mais so-
proposta de Frenhofer aplica-se não apenasao roman- bre si mesmo, cada vez mais pensando mais sobre es
tismo e a toda a arte que veio depois como igualmente sasmediações e sobre si mesmo do que sobre o real que
a quasetoda a arte que veio antes:o programa da arte inicialmentevisou.A ponto de abolir o real ou substi-
não é copiar a natureza mas expressa-la. tuí-lo por outro, motivo pelo qual copiar o real tornou
se cada vez mais uma inviabilidade. Essefoi o caminho
A copia da natureza é de resto impossível. da arte numa progressãorazoavelmenteregular até a
décadade 60 do século 20, quando um curso em senti-
Restringindo a discussão apenasao cenário mais pró- do oposto é retomado num movimento no entanto pa-
ximo que envolve a ação desta novela, é fato que a na- ralelo ao anterior, que continua. Que se reforce porém
tureza recomeça a surgir na arte de maneira mais icâ- a propaganda da arte moderna, para a qual o programa
nica a partir da Renascença.Mas os pintores renascen da arte certamente é expressara natureza, não copia-la
testasnão pintavam suastelas copiando a natureza, não -- o que tem por consequênciaa separaçãodura entre
levavam seuscavaletespara o ar livre: pintavam a par' comunicação e expressão: a nova arte será uma arte que
tir de desenhos e gravuras feitos por eles mesmos e ou- expressa e se expressa sem necessariamente comunicar
tros ou pintavam de memória, de imaginação: o papel e comunicar-se. As primeiras "vítimas" da nova fórmu-
da mediaçãona representação é amplo também aqui. la podem ter sido exatamente Porbus e Poussin, que
Mesmos os rostos retratados com mais verossimilhan- não retiram da pintura semi-imaginária de Frenhofer
ça são vistos pelo pintor através de lentes teóricas (de nem a mensagem de que se trata de uma mulher como
simetria, valores espirituais, estruturas perspéticas,có- quer Frenhofer, nem qualquer se?zsação estéticacapazde
digos amplos de representação) que orientam seus pin- indicar-lhes que havia ali se não uma cópia pelo menos
céis mais do que o próprio olho. Expressar a nafzzreza uma expressão.
em lugar de copia-la: proposta-resumo da história da
arte ocidental marcada pelo gradual, embora incons- Uma exposição de arte contemporânea: na exposição

tante, declínio da presença sensível das coisas reconhecí- 'De Jasper Johns a Jeff Koons" na Corcoran, Washing-
veis,num movimento simétrico ao do pensamentoabs- ton, maio de 2002, ao lado de uma tela de Cy Tbvombly
trato reflexivo que se nutre cada vez mais de mediações vem uma citação do artista a respeito de sua série de pin

para alcançar seu objeto real, seu objeto "no real'l e que turas Boiserza:"Toda linha é assim a experiência real de

igualmente por isso começa a pensar cada vez mais so- sua história singular. Nada ilustra, é a percepçãode sua
bre essasmesmas mediações e com isso aproximar-se própria realização':A tela de Frenhoferna qual o clas-

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ENT RE A VIDA E A ARTE
TEIXEIRA COELHO

como parece ter sido, poderia eventualmente, de algum


sicista Poussin e o arcaico Porbus nada vêem parece ser
modo possível embora improvável, ter lido alguma coi-
isso: a percepçãode sua própria realização,não a remis-
sasobre Hegel se não o próprio Hegel ele, Balzac,que
são a algo exterior a ela mesma. Idéia que aírzda não se
pesquisava,para criar seustextos, nessasfontes discutí-
aceita com facilidade em 2002: como poderia fazer sen-
veis para o bom senso acadêmico porém valiosas para a
tido em 1612, 1831?
imaginação: as enciclopédias, os almanaques. E se não
leu, pode ter pensadode modo icânico ao de Hegel:
A enunciação de um dos pilares da estética contem-
idéias contemporâneas surgem paralelamente em men-
porânea que faz Frenhofer é em seguida por ele.mesmo tes contemporâneas.A arte estavaem vias de perder es-
reforçada numa frase onde estabeleceoutra distinção,
It paço para a teoria da arte, maneira pior de dizer que a
agora entre o artista e o poeta: Vocênão é um viZ copis- teoria da arte conquistavaum espaçomaior ao lado da
ta mas um poeta,diz a Porbus respondendo à observa- arte. Como não veremos a tela de Frenhofer, não será
ção,ao protesto do pintor de que havia estudado a na- possívelverificar até que ponto da arte modernahavia
tureza diretamenfe com seuspróprios olhos e nzJmmo-
avançado o velho pintor acaso mais revolucionário que
delo l.'ívo e que era preciso admitir a existência na na-
os dois outros mais jovens, não será possívelverificar se
tureza de ({$eifosque serevelam improváveis na pintu;
sua arte já pregava, já fazia aquilo que fará a arte do sé-
ra: inviáveis. Poeta,não copista, diz Frenhofer. Poeta no
culo 20 tardio: comentar a arte e a própria obra dentro
sentido de poíesis,corzsfrução,criação ab novo, quase do da obra ela mesma.
nada, sem muita consideração pelos determinantes do
processo de criação e por aqueles que pesam sobre o re-
Áqtzí acaba a arte rzestemundo, diz Porbus a Poussin
ferente expressado.Mais que uma diferença entre artis-
em tom de aparente pilheria às custas de Frenhofer. Era
ta e poeta, porém, e caminhando no sentido desta con- verdade, num sentido que ele não poderia entender.
temporaneidade: diferença entre o artista e aqt4eZe que
pensaa arte, entre o artista e o teórico, entre um "artista SePorbus tem razão, Frenhofer ilustra outro princí-
comum" e aquele que tem uma idéia, entre por exemplo
pio da arte moderna e da arte contemporânea: a obra
e sem que isto inclua qualquer juízo de valor: entre Mo- de arte como crítica da obra de arte e como a primeira
net e Duchamp. Comentarista contemporâneo desta
crítica de si mesma,de sua própria realização.Prática e
r novela de Balzac,Maurice Bruéziêre anotou: de pintor,
metaprática simultâneas.
Frenhofer tornara-se teórico. A referência, de imedia- Comentaristas como Maurice Bruéziêre tomam a
to, é Hegel, vivendo entre 1770 e 1831: outro contem-
passagemdo artista para o teórico como sinal de que o
porâneo de Balzac. Se Balzac foi homem de seu tempo
io3
102
'v ENTRE A VIDA E A A RTE
TEIXEIRA COELHO

artista se transformou não em poeta mas em 24fopzsfa


e para tomar o partido dos dois pintores, um já em des
censo naquele momento, Porbus, substituído no gosto
ufopísta impotente incapaz de expressar numa tela aqui-
lo que responderiaà suabusca do inacessível.A distin- de Mana de Médias por Rubens,quão revolucionário
ção feita, se sequiser fazê-la,é entre o teórico obcecado perto dePorbus,
por uma idéia de perfeição e o pintor humilde que se
Porbus (1569-1622), pintando, à maneira de Van
expressa pintando telas reais possíveis e não quimericas.
Dyck (1599-1641), ou vice-versa, figuras hieráticas mais

Um pintor pensacom seuspincéis,um pintor deveria do que vivas, cujas vestes-- com muita técnica represen
tadas nos detalhes do tecido são mais importantes que
pensar apenascom seuspincéis, sediz
o corpo e a alma, figuras formais retratadas em sua con
dição exterior mais que em sua situação existencial, num
A novela de Balzac viria neste aspecto ilustrar a tese
multissecular da impotência do intelectual, visão en- ambiente tomado por bens pessoais realisticamente re-
presentadose situados contra um fundo ocasional de na-
dossadapor explicadores de um século, o 20, que foi
no entanto o séculodosexplicadorese que reconheceu tureza irrealista; Porbus, pintor de retratos dos quais por
definição o retratado está paradoxalmente retirado, ríf-
a criação intelectual, alguma criação intelectual, como
trafo, ou nos quais o retratado é portratado, pintado por
instrumento privilegiado de criação-
traços externos, porfraíf. por traço, não pela vida ante
Apresentar o pintor transformado em teórico impo-
tente dá a deixa para a entrada em cena de outro tema Flor, Porbus então sendo superado por um Rubens que
quando pinta cenas mitológicas (A queda de P/zaefon,
caro à criação artística: o do .Õacasso.
Porque o pintor
se torna um teórico, ele fracassae por fracassar como 1605,por exemplo) o faz com drama explorando a ins-
tabilidade e a fluência e o movimento e a luz, com pes-
pintor ele se torna teórico, essa a circularidade concep-
tual em retorno eterno. O fracassode Frenhofer é lu- soas e cavalos despencando dos céus num torvelinho de

corpos e objetos precipitados entre jorros e feixes de luz;


gar comum entre os comentaristas da novela (não en-
e substituído por um Rubensum pouco mais tardio que
contrei quem ouse propor o contrário). Esse fracasso
quando pinta cenas burguesas (1)eborah Kip, mu/;zer de
é supostamente atestado pelo depoimento do clássico
Poussin e do arcaico Porbus, que nada viram na tela a Bala/casarGerbíer e seus.$Zhos,entre 1629 e 1640; tam-
bém na Nationa] Gallery, Washington DC) põe vida nas
não ser um pé delicioso, como se fora um salvado de in-
cêndio. Quem poderia saber mais e melhor do que am- pessoas,nos rostos e nos gestosdas pessoas,nos olhos
das pessoas (seus olhos são pré-Renoir), além de eviden
bos e pelo menos tanto quanto Frenhofer, era Balzac.
dar sua técnica.
Numa única e breve passagemele parece manifestar-se

lo4 lo5
ENTREA VIDA E A ARTE
TEIXEIRA COELHO

ca antiga para ele feita de " nobre simplicidade" e "tran-


e o outro que não poderia deixar de passarpor desta
qüila grandeza'l que era como via os antigos, ele e tan-
no idêntico, Poussin, com suas aguadas,bucólicas pai
tos outros como Marx por exemplo ou os jo ndirzgja-
vagensbíblicas neo-renascentistas
fhersamericanos que mandaram construir Washington
como em O batismo de Crista, 1641/1642, nem mais re- com seustemplos gregos e panteões romanos também
eles feitos de "nobre simplicidade" e "tranqüila grande-
nascentista nem ainda barroco, sem detalhes destaca-
za': E a passagem na qual Balzac parece tomar o partido
dos (como depois, no romantismo) mas também sem
dos dois pintores é:
expressão, em pintura fria, controlada, ilustrativa (seus
rostos são máscaras,poderiam caber em qualquer per'
Ficaram petrificados de admiração diante daquele
sonagem:pinta um mito, e o mito não tem cara), ou em
fragmento que escaparade uma incrível, lenta e progres-
Ascensãoda Virgem, 1626, uma tela melada de sentimen-
siva destruição. Aquele pé aparecia ali como o torso de
tos religiosos apoiada em anjinhos ao redor de uma san-
alguma Vênus de Paros em mármore surgindo entre os
ta que por definição não tem carnes e vida mas que não
escombros de um palácio incendiado.
chega a ser sublime

Na verdade, Balzac não é apenas quem saberia mais


e suas neo-arcaicas pinturas mitológicas
sobre aquela pintura do que os dois pintores: nessapas-
sagem ele se revela possuidor de um conhecimento so-
como Alimentando o jrl$attte.rúpírer, 1640,cena pastoril
bre a tela de Frenhofer maior do que aquele que o pró-
com cabra e Júpiter criança bebendo leite num chifre en-
prio Frenhofer poderia ter tido. Balzac intervém na
quanto uma deusa impessoal seprepara para Ihe oferecer
um favo de mel numa folha de árvore e é observadapor suahistória para fazê-la pender para um lado, embo
duas ninfas nuas mas congeladas,vistas contra um ceu
ra momentaneamente.Sua intervenção não convence,
imobilizado numa cena ilustrativa muito mais e multo
porém. Talveznão foi feita para convencer,quem sabe
ele mesmo se debatia entre uma posição e outra, issojá
antesdo queexpressiva,
pintura de quem domina tudo
foi comentado. E aquelasduas frasescondenatórias afi-
que vai colocar na tela, dos significados aos processos
nal podem ser apenasa transcrição do pensamento dos
dois pintores. Sejacomo for não estamoslendo a novela
umas e outras antecipando e conformando o gosto do
com os olhos de Balzac não com os olhos do anal da
teórico da arte do século18 Winckelmann ( 1717-1768),
novela, não com os olhos que lêem o título da novela --
diretor espiritual do romantismo tanto quanto do neo-
nem com os olhos dos dois pintores mas com os olhos
classicismo com sua nostálgica paixão pela arte clássi-

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A ARTE

e o outro que não poderia deixar de passarpor desti- ca antiga para ele feita de " nobre simplicidade" e "tran-
no idêntico, Poussin, com suas aguadas, bucólicas pai- quila grandeza':que era como via os antigos,ele e tan-
sagensbíblicas neo-renascentistas tos outros como Marx por exemplo ou os jo fzdi?zgja-
f/zeroamericanos que mandaram construir Washington
como em O bafísmo de Crísfo, 1641/1642, nem mais re- com seustemplos gregos e panteões romanos também
nascentista nem ainda barroco, sem detalhes destaca eles feitos de "nobre simplicidade" e "tranqüila grande-
dos (como depois, no romantismo) mas também sem za't E a passagem na qual Balzac parece tomar o partido
expressão, em pintura ítia, controlada, ilustrativa (seus dos dois pintores é:
rostos são máscaras,poderiam caber em qualquer per
sonagem:pinta um mito, e o mito nãotem cara),ou em Ficaram petrificados de admiração diante daquele
Ascerzsãoda Virgem, 1626, uma tela melada de sentimen- â'agmento que escaparade uma incrível, lenta e progres-
tos religiosos apoiada em anjinhos ao redor de uma san- siva destruição. Aquele pé apareciaali como o torso de
ta que por definição não tem carnese vida masque não alguma Vênus de Paros em mármore surgindo entre os
chega a ser sublime escombros de um palácio incendiado.

e suas neo-arcaicas pinturas mitológicas Na verdade, Balzac não é apenasquem saberia mais
sobre aquela pintura do que os dois pintores: nessa pas
como AZímenfarzdoo inlÓanteJúpiter, 1640, cena pastoril vagem ele se revela possuidor de um conhecimento so-
com cabra e Júpiter criança bebendo leite num chifre en- bre a tela de Frenhofer maior do que aquele que o pró
quanto uma deusa impessoal seprepara para Ihe oferecer prio Frenho6er poderia ter tido. Balzac intervém na
um favo de mel numa folha de árvore e é observada por sua história para fazê-la pender para um lado, embo-
duas ninfas nuas mas congeladas,vistas contra um céu ra momentaneamente. Sua intervenção não convence,
imobilizado numa cena ilustrativa muito mais e muito porém. Tãvez não foi feita para convencer,quem sabe
antesdo que expressiva,
pintura de quemdomina tudo ele mesmo se debatia entre uma posição e outra, isso já
que vai colocar na tela, dos signiâcados aos processos foi comentado. E aquelas duas õ'asescondenatórias afi
nal podem ser apenas a transcrição do pensamento dos
umas e outras antecipando e conformando o gosto do dois pintores. Seja como for não estamos lendo a novela
teórico da arte do século 18 Winckelmann( 1717-1768), com os olhos de Balzac não com os olhos do final da
diretor espiritual do romantismo tanto quanto do neo- novela, não com os olhos que lêem o título da novela
classicismocom sua nostálgica paixão pela arte clássi- nem com os olhos dos dois pintores mas com os olhos

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TEIXEIRA COELHO
'v ENTRE A VIDA E A A RTE

da arte moderna e da arte contemporânea que a nove- so. A convicção de um 6'acasso proviria legitimamente

la explora prospectivamentea partir do ponto de vista apenasdo estudo da pintura de Frenho6er,estudo im-
possível, ou do que ele pudesse dizer de firme sobre sua
das personagens situadas lá atrás na história e das quais
pintura, nunca a mesma coisa que é ver a pintura dure
ela se torna agora metáfora privilegiada. Lemos a nove-
la com o material que Balzacnela coloca, com o mate- tamente. O problema é que recorrer às palavras contra
ditórias de Frenhofer não leva muito longe exatamen
rial que resta implícito na novela e que aparece ao lado
dela, material gravado em tudo que ela revela aos olhos te em virtude do que ele mesmo diz. No primeiro capí-
tulo da novela ele aparecedizendo coisasno segundo
contemporâneos, e a lemos com tudo aquilo que pode-
mos saber retrospectivamente sobre ela como sujeitos contrariadas: no primeiro, diz que a missão da arte não
historicamente situados que somos. é copiar a natureza mas expressa-la; no segundo, afirma
que o ar envolvendo sua âgura magna é tão verdadei-
Expressando a opinião de Balzac ou dos pintores,
ro que não se pode distingui-lo do ar que nos circun-
aquela passagem introduz então o tema do fracasso.
Tema e componente central da prática da arte. Frenho- da; e os cabelosda mulher, diz, parecemestar inunda
fer "fracassa"porque se tornou um teórico, quer dizer dos de luz como estariam se fossem reais, e uma ligei-
ra penumbra sob os olhos pôde ser feita tal como uma
impotente, ou porque estavasenil ou porque havia sido .
tomado pela demência como acreditam vários autores penumbra real sob um olho real -- detalhesimitativos
aparentemente representados mais de maneira realis-
no entanto tão argutos em tanta outra coisa. O fracasso
e a demência. 0 6'acassoo sucessoe a demência, tópi- ta copista que do modo expressit'opor ele antes privile-
cos recorrentes nas histórias da arte. No entanto, o fra- giado. Como se ele tivesse esquecido o que havia dito.
Como se não pudessepõr em prática o que diz. As con
cassopelo menos neste caso não pertence ao artista. O
fracasso,o grande fracasso,o fracassode quem é artista tradições continuam: na primeira parte, Frenhofer ída
contra o recurso à linha para desenhar o corpo huma-
poeta, nunca pertence ao artista poeta. O sucessotam-
pouco. Fracasso e sucesso giram na esfera de um sujeito
no, porque o corpo humano não termina em linhas; e
exterior ao artista e essesujeito exterior é múltiplo e por
na segundaressaltaa linha viva que pareceterminar o
vezesnem mesmo contemporâneo do artista: é um gru corpo de sua tela preferida. A culpa dessascontradições
não deve e não pode ser atribuída inteiramente a Fre
po, uma corte, uma época,um território, um conlun
nhofer, não é ele quem as diz, não é só ele que as pensa:
to amplo e vagode pessoas-- uma nação,como se diz.
Nem mesmo a morte de Frenhofer confirma a tesede Balzac responde por elas em grande parte. Balzac não
seu fracasso. Frenhofer queimou suas telas: abatimen- dominava a teoria da arte e a linguagem da arte quan-
do se põs a escrevera novela,buscouinformação em
to profundo, não necessariamenteadmissãode fracas-

io8 io9
TEIX EIRA COELHO ENT RE A VIDA E A ARTE

conversas,livros e enciclopédias; depois, pâs-se a alte- quem sabe,uma peça de música concreta, talvez dode-
rar seutextos diversasvezes,talvez não tenha percebido cafânica.Mas no conto de Hoffmann não há margem
suascontradições, talvez estascontradições sejam suas para identificar no velho músico nem uma prática nem
também, talvez do artista, os artistas não estão vincula- um discurso renovadores, que contestassemum costu-
dos à coerência... me, não há nenhuma indicação de uma nova música a
A idéia do fracasso de Frenhofer provavelmente de- caminho: estanarrativa é incisiva: o velho não sabiato-
riva, é muito provável -- e seinsinua na cabeçade Bal- car, por mais que se imaginasse um gênio. E ao contrá-
zac tanto quanto de seus comentaristas -- do conto ale- rio do que ocorre na novela de Balzac, o artista nun-
mão no qual Balzacteria se inspirado,A aula de vio/i ca fica sabendodisso porque ninguém nada Ihe diz. O
no,de Hofftnann, E.T.A.Hofftnann, o autor alemão que contoilustra,aqui,o tolo chavãodo "quemsabefaz,
a revista l,' Arffsfe apresentou ao francês como modelo quem não sabe ensina't A situação na novela de Balzac
a seguir. Balzac executou a encomenda. Naquele con é outra. O fracasso de Frenhofer não pode ser consta
to, jovem músico aspirante recebe aulas de velho músi- tado: o que dizem as personagensnão convence, antes
co rico, detentor dos segredosda boa execução.O velho aponta para a incapacidade que têm para ver o que não
violinista corrige os erros de um outro músico mais ex- é usual. O fracasso do músico de Hoffhann, sim, pode
periente, não tão velho (um análogo de Porbus), ami- ser observadoa partir da construção interna do conto.
go do jovem, e submeteo novato a uma performance- As contradições e as ambigüidades freqüentemente ha-
teste assim como o jovem artista em prometoPoussin faz bitam as grandes obras e asvitalizam e habitam a no
uma cópia na hora para mostrar seutalento a Frenho vela de Balzac que, mesmo não sendo uma obra-prima,
fer. O velho músico conhece todos os segredos da arte, mostra suhciente profundidade. Seja como íor, mes-
menciona todos os violinistas maiores, sabe de todos mo presentesessasambiguidades e incoerências sobre
os recursos.Ao final de páginas ainda mais breves que o fracassoe o sucessoficam algo soterradas sob a elo-
as de Balzac, o velho músico vai executar, ele mesmo, qüência rapsódica da expressãodo tema central que a
uma peça.O que resulta é, na narrativa do jovem mú novela deixa em evidência quase da primeira página até
sico (aqui não há narrativa na terceira pessoa:toda ela sem dúvida a última: as relações entre arte e vida.
é narrativa subjetiva, contada pelo jovem), o que resul-
ta é uma tragédia, sucessãode miados e tons desafina
dos, gritantes, cortantes, gemidos e estridências que se E então, de volta ao ponto: a arte e a vida: a arte para
vincamcomo espinhosnos nervos do ouvinte. Nós que tocar na vida, arte para sufocar a vida, a vida asfixian-
do a arte.
estamosaqui, e hoje, poderíamos receber aqtziZocomo,

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TEIXEIRA C O ELH O ENTRE A VIDA E A A RTE

O que aparentemente não é percebido quando se es- tecae emblemática de Frenhofer e a respeito da qual o
creve sobre A obra-prima igrzorada ou, se percebido, leitor só será informado, e bem pouco, ao longo da lei-
silenciado -- é que a novela organiza-se ao redor de dois tura do capítulo.Uma simetria de fundo, feita de opos-
tos, a rigor estavaali: a arte de um lado, a vida de ou
Pólos, dois capítulos, que não se intitulam por exem-
tro; mas é uma simetria rala, etérea, que não aproveita
plo Porbus e Poussírz, o primeiro, e FretzhoÚer o segundo
ou O velho e O c/coquedo tzovoou A aula e O son/zoou a tensãoque poderia se estabelecerentre o artista Fre-
A a Zae Á traição ou A paücãoe O desencanto.Os dois nhofer e suaobra e que só seforma ou na mente do lei-
capítulos chamam-se simplesmente GÍZZeüe, o primei- tor terminada a leitura, ou na mente do escritor Balzac,
ro, e Cafherínel,escauZt.Que ambos títulos não sãodes- que tem um mínimo plano prévio de trabalho e sabe
motivados ou ocasionais,e em nada indiferentes a Bal por onde vai -- mais ou menos. Por outro lado, se no
zac,de modo algum indiferentes, demonstra-o o fato de primeiro capítulo Frenhofer é apresentadoe em certa
que Balzacalterou, da publicação inicial para as seguin medida descrito, como artista e homem, de Catherine
Lescault, a mulher, nada se sabe, dela Balzac nada diz.
tes,o título do primeiro capítulo. Inicialmente,o pri
meiro capítulo chamava-seMestreFrenho$er.O segun Que Frenhofer dela nada queira dizer é compreensível,
do desde o início, desde a primeira publicação da nove- está dentro de sua lógica exposta na$ páginas da nove-
la: manter aquela mulher à parte. Com relação a Bal-
la pelo menos, vinha sob o mesmo solo atual: Cafheríne
l,escaulf.Havia na primeira versãodepois abandonada zac, a questão é outra. Se ele fosse cumprir o modelo
uma certa assimetria que não poderia escapar a Balzac: que sugere com o título do primeiro capítulo, no segun
o ato inicial da novela trazia para o primeiro plano des- do Balzaccontaria a história de Catherine-mulher. Não

de a página de abertura, orientando o leitor, a figura do o faz. Balzac poderia ter denominado o segundo capí-
tulo com o título da misteriosaobra de Frenhofer,l,a
grande mestre, o pintor, o artista e por extensão a arte,
BeZ/e Noísez4se, Á ZÍ/zda pente//za, título que ele mais tar-
a ficção. E o segundo chamava em seu título a atenção,
de abandonou em favor de Caf/zeríne l,escauZf, um úni-
com um nome de mulher, não para a profissão de pin-
tor e nem tanto para a arte (o leitor não sabe ainda mui- co e mesmo nome para a obra de arte e para a mulher
to, não sabe nada, ao começar a leitura do segundo ca- (a não adoção de um código tipográfico, como o itáli-
pítulo, sobre a tela feita a partir da mulher que secha- co, para o título do capítulo, de modo a indicar que se
ma Catherine Lescault, nem sobre a mulher) mas para trata de uma obra e não de uma pessoa,não permite ao
a vida, para a vida comum: essetítulo assestavao foco leitor imaginar que Catherine Lescault é Cafherífzel,es
de início sobre a vida, as coisasda vida, sobre uma mu cauZf, a obra). Caso o segundo capítulo tivesse por título

Iher, sobre a modelo que posara para a tela problema claramente o título da obra de arte Cat/feri?ze Z,escauZí,

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A A RTE

a composição estaria com sua simetria perfeita: o artis- :Mate-me!'! ela disse. "Eu seria uma infame seainda

ta-sua obra, o pintor-sua pintura. Isso não acontecen- o amasse,porque o desprezo. Você é a minha vida, e me

do, o jogo se desequilibra. Era exatamente dessaoposi- causahorror. Creio até que já o odeio.'

ção, desse conflito, que Balzac queria falar em sua ale-


goria; mas aparentemente não era dessemodo que que- A última fda da novela pertencia antes à mulher, a
ria apresenta-la. THvez seja diante desse problema de uma mulher, aquela que empresta o nome para a aber-
construção poética que Balzac se dá conta do núcleo tura da novela, o primeiro capítulo. Nessa primeira ver-
de sua novela e o reafirma: o amplo e constante confli- são do anal, o eixo da narrativa era um e bem claro.
to entre arte e vida, não apenaspara um pintor ou ar- Jáo novo final acrescentado por Balzacfaz com que o
tista em particular mas para todos os artistas em todas lzarrador, em cena e em primeiro plano desde a primei-
as situações de arte. E faz assim sua opção, que não será ra página, retome as rédeasda narrativa em seutérmi-
levada em conta pelos comentaristas: o primeiro capí- no, centre a ação sobreos pirzfores,os três, e em seguida
tulo se chamará GÍZZeüe,e desse modo uma simetria de façade Frenhofer o foco da narração, Frenhofer a quem
construção se estabelececom o segundo, Cafherine l,es- cabe a ação final, as duas ações finais: põr os pintores
cazíZf.E assim os dois capítulos da novela remetem, em para fora de sua casa,queimar suastelas. Pode-sedi-
efeito de superfície, não à arte, já destacada no título dá zer que essenovo final resgatou a novela de uma esfera
novela, mas à vida, à vida comum, à vida de todos: às inteiramente individual e menor, construída pelo anti-
duas mulheres. Remetem então ambos títulos às rela- go final e com essetom impressa na sensaçãodo leitor
çõesque os dois pintores, Poussin e Frenhofer, o novo e (um drama de amor ao qual sejunta subsidiariamente
o velho, e não será fácil dizer quem é o novo e quem o uma questão mais profunda, a derrota da vida pela arte:
velho, têm com suas mulheres: com a vida. Poussin perde Ginete que o perde também: a esferada
Não é improvável que o problema de saber e de es- vida) e deu-lhe dimensão diversa,trágica (a arte per-
colher sobre o quê afinal era sua novela tenha preocu- de, a vida também, e perde-se uma vida, além de uma
pado Balzacdurante um tempo Sinal do incomodo e arte: passa-seda esferada vida para a esferado mundo,
da oscilação do escritor é o fato de que na primeira ver- que inclui a arte, que inclui sobretudo a arte e a cultura,
sãoa novela encerrava-secom uma fala de Gillette: não aquilo que permanece e dura), a dimensão que hoje Ihe
de Frenhofer nem de Porbus nem do narrador onis- é reconhecida, a dimensão de uma /iferafz/ra de idéias,
ciente mas de Gillette. Fala forte, incisiva, uma decla- para não recorrer ao presunçoso"literatura filosóâca':
Possível.
ração uma convocação, um ordenamento e um desli-
gamento: Mas essenovo (láeirofinal não anula a anterior estru-

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VID A E A A RTE

da e reconhece: prefiro ser amado a alcançar a glória. E


tura da novela,que se arma formalmente, em super-
fície, ao redor das duas mulheres: Gillette e Catherine Frenhofer replica pouco depois: ainda sou antes um ho-
Lescault. mem apaixonadodo que um pintor. Nesseinstante ne-
As duas são imaginárias. Porbus e Poussin são perso-
nhum dos dois quer abrir mão do que Ihe pertenceou
crêpertencer. Verdade que o clássico Poussin mostra-se
nagenshistóricos, Frenhoíer não, mesmo podendo ter
nitidamente mais caco do que o romântico Frenhofer:
sido, quase.Gillette não é artista ou personagemhistó-
recua quando Gillette resiste mas volta atrás e insiste
rica, é apenasmulher, linda mulher amantede Poussin,
e Catherine Lescault é a modelo para .A lírzda penfeZha mais uma vez: quer muito ver a grande obra. Frenhofer
cederá também mas sua resistênciaé mais encarniçada.
de Frenhofer, uma pentelha que perturbou o artista por
dez anos, continuava perturbando-o a ponto de leva-lo Quando Gillette está a ponto de entregar-se ao olhar de

ao ato final e que incomodou também enormemente a Frenhofer,Poussintem um instante de arrependimen-


Poussin e Porbus. Uma grande pentelha. to e torna-se outra vez antes um homem apaixonado do
que um artista -- como Frenhoíer. Cede, porém. Nova
A arie como uma grande pentelha. me?zfecede. Não terá uma terceira chance para se arre-
pender. E só volta a vestir as roupas de apaixonado de-
E ao redor dos dois eixos criado's pelas duas mulhe: pois de ter visto a obra até ali secreta e com ela sedecep-
res Poussin-Gillette, Frenhofer-Lescault, um só eixo cionado: quando a visão da arte desencanta,a mulher --
quer dizer, a vida ao lado pode então atrair.
com dois pólos roda a história, formando uma sime
troa talvez fácil mas operativa, cativante. De um lado, Poussin mostra-se mais fraco, menos radical apesar

um artista que troca a mulher, sua mulher, pela visão de suajuventude, porque ainda estabeleceuma distin-
de uma mulher pintada que pertencea outro homem. ção entre a vida e a arte: a vida, neste caso Gillette, é al-
No lado oposto,um artista que troca a mulher pinta- guma coisa que Ihe permitirá alcançar a arte. ParaFre
da na tela, sua,pela visão de uma mulher real, de ou- nhoíer, não há quase distinção alguma que valha a pena
destacar: "Há dez anos vivo com essamulher': ele diz
tro. Nenhum dos dois artistas quer se desfazerde seu
referindo-se à tela pintada. "Minha pintura não é uma
bem, daquilo que Ihe pertence, hesitam em fazê-lo. Os
dois acabamabrindo mão do que têm, mirando algu- pintura, é um sentimento, uma paixão." De início ele
ma outra coisa que não têm. O embate entre a vida e a não chegaa identificar a tela com a vida, com uma mu-
lher: a tela é uma paixão, portanto uma coisa viva; não é
arte permanece acesoo tempo todo. Tentando conven-
cer Gillette e confrontado por ela,que não quer se en menos uma vida por ser uma tela, é uma vida, uma par-
te de um sentimento vivo, uma parte de um sentimen-
tregar para não perder o amado,Poussin tem uma recaí-

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A ARTE

to que faz viver: é a percepção de sua própria realiza- A escultura resulta belíssima, como forma e representa-
ção. Depois, contudo, as palavras fortes são pronuncia- ção da mulher. E por ela -- por sua criação, por sua obra
das: não é uma tela, é uma mulher, uma vida. E Frenho- se apaixona seu autor, Pigmaleão, que pede aos deu-
fer hesita em troca-la pelavisão de uma mulher real que ses,num festival dedicado a Aítodite, que dela façam sua
Ihe seria menos real que a sua.Mas cede. Mas não cede mulher. A deusa surpreende-se com a beleza da obra e

pela mulher real: cede pela tela, é diverso. com a força da paixão do escultor. E concedeo dom da
vida à escultura criada pelo homem, que a toma em seus
Esta passagemserá certamente aquela que alguns to- braços. A paixão pela própria criação; a criação que não
mam, mesmo alguns em princípio muito qualificados, é apenasaquilo que parece mas uma outra coisa:a arte
como indício da demência de Frenhofer. E no entanto, só que não é arte porém vida: esseé o sentido da história,
um tolo na forma de um materialista empedernido, um envelopadanum mito hoje não maisdifundido e no en
tolo materialistadiabéticoou não,histórico ou não,po- tanto presente nas mentes que não se deixaram invadir
deria tomar a identificação entre uma pintura e um sen- de todo pelos costumes,pelos hábitos culturais da mo-
timento, entre uma pintura e uma paixão, como sinal de dernidade que vêem a demência ali onde sobrevive o
demência. Fazê-lo é nada entender de arte, do processo mito e que banalizam a arte como um produto decora
que leva à arte. Essaincompreensão é algo inexplicável tive ou económico, nadamais. Há aqui uma carênciade
em mentes qualificadas de escritorese filósofos no iní- pensamentomítico, de imaginário mítico, que impede
cio do século21 -- e no entanto comum, vastamenteco- alguns leitores de ver o fundo da metáfora. Uma metá-
mum: não secostuma entender muito de arte, das coisas fora ambígua,por certo, como expressapor Frenhoíer, e
que pertencem ao mundo da arte: ainda não. E o enten- como toda boa metáfora. Uma metáfora necessária.
dimento literal, demasiadoliteral, da afirmação de Fre-
nhofer de que rzãosetraía de uma eZamasde uma m Do ponto de vista do ideal romântico, Poussine Gil-
/her, embora possível, é pobre e empobrecedor. E reve- lette são igualmente fortes (o par Frenhofer-Lescault é
la antes de mais nada uma carência, a carência de pensa- um par desequilibrado do ponto de vista do leitor, que
mento mítico, carênciade zlm imagírzáríodo mito, nessas nada sabeda modelo, da mulher real Catherine, suba
mesmas mentes qualificadas. Não por nada a humani- tituída pelalinda pentelhade tinta). Cadaum estádis-
dade elaborou a lenda de Pigmaleão e Galatéia, recon posto a sacrificar o que tem em favor do próprio ideal:
fada por Ovídio nas JL4efamorÊoses:
Pigmaleão, monarca Poussin hesita mas sacrifica seu amor pela possibilida-
e escultor numa versão,apenas escultor em outras, cria de de ver a grande arte mesmo advertido de que assim
uma estátua de marfim expressando uma jovem mulher. perderia a amada: troca uma paixão por outra. E Gillet

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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A A RTE

te sacrifica sua paixão pelo homem amado em troca do pel tradicional de alavanca generosa para o homem no
ídea! do amado, o que implica que seu ideal de partida rumo de seudestino supra-relacional do ponto de vis-
é o ideal do amado: a arte. A situação não é porém de ta do amor ou outro nome que sequeira dar a esseelo
todo simétrica: Poussin sem dúvida acredita que pode que une duas pessoas e concede assim à mulher al-
ter as duas coisas,pensaque pode comer o bolo e guar- guma graça adicional. Pode ser. Gillette não é porém
da-lo para si: ver a grande arte e ter, manter a mulher. uma resignada, tola. Descobre o que a espera, conhece
Gillette desde o início sabe que perderá: move-se ou o desenlacedaquela situação, desde logo sabe que per-
deixa-se mover como seu amado Ihe pede e sabe que deu seu amado no próprio instante em que pela pri-
o perderá fazendo isso: não pode deixar de fazer o que meira vez o pedido de expor-seao velho artista Ihe
fará e sabe que esseato é sua perdição -- sem dúvida, a foi feito. Sabe desde logo que perderia o amado por-
perdição do amado. Não, não é que "não pode deixar que sabe que o amado a desprezada depois de expor-
de fazer o que fará": escolhefazer o que fará porque a se.No final, perde o amado porque eZamesmao des-
situação futura -- na verdade também atual e passada preza ao constatar o desprezo não admitido dele por
-- de seu relacionamento com Poussin já Ihe surge níti- ela: Poussin olha para uma obra de arte como nunca
da diante dos olhos: Poussincoloca-a em segundo lu- olhou para ela, Poussin a toma como mediação, não
gar, relativiza-a, enquanto para ela'Poussin é o absolu: como seudestino final: a arte: Poussina zzsa. No en-
to... Um desequilíbrio sentimental que ela não aceita. tanto, Gillette é a mais forte. A mulher é a mais for-
Está disposta a sacrificar-se pelo ideal do amado mas te. Ela controla sua vida ao reagir, ahrmando seu po-
não o aceita por troca-la por esseideal. Sentimentos der de ação, aquilo que a vida Ihe oferece: nega um
ambíguos. homem que a troca por uma coisa.Nessesentido, dos
Do ponto de vista da vida, Gillette se dá, seentrega; dois, ela e Poussin, é ela que encarna o ideal românti-
Poussin não se dá, não se entrega. Para Poussin, tudo co: ela toma a vida em suas mãos, ela age. Poussin a ri-
é pela arte. Para Gillette, no final tudo é pela arte tam- gor não pode fazer senão aquilo que fez: estácondena
bém, arte que ela não procura e no fundo não quer, do a colocar a arte acima da vida, não pode fazer ou-
mas apenas porque não é possível evita-lo -- não, em tra escolha a não ser aquela que faz: trocar Gillette pela
todo caso,do modo como Poussinconstruiu a equa- mirada de uma obra-prima. O pintor classicistaNico-
ção. Balzac coloca a mulher sob perspectiva mais ge- las Poussin não poderia ter uma afifzzde,uma sensibi-
nerosa.Algum discurso feminista mais duro argumen- Zídademais clássica: é um foguete nas mãos do desti-
taria: Claro, ele nega à mulher a possibilidade da arte, no. E nesse sentido revela-se adequadamente pré-ilu
da criação, e assim sobra para a mulher apenas seu pa' minista,um iluminista a anf /a Zeftre,de um iluminis-

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TEIXEIRA COELHO ENTREA VIDA E A ARTE

mo que o romantismo viria combater e contrariar em a destrói. Mas Poussin não destrói a relação com Gillet
tudo e por tudo ou quasetudo. Ou um iluminista de te: Gillette é quem o repudia.
segundo grau, daqueles que surgiram no século 19 e se Mesmo com suas imperfeições de estilo e talvez de te-
assumiram cercados pelos vários determinismos, entre citura lógica, a novela não é simples ou simplista e abre
eles o da história. largo campo para as ambiguidades. É densa, profunda
Frenhoferde modo análogo,por tomar a vida nas no sentido em que toca domínios vitais do ser humano.
mãos, é um perfeito romântico avarztZaZeüretal como Uma evidência se destaca,contudo: a obra-prima ig-
pintado pelo romancista realista Balzac para o qual a norada é Gillette, Gillette é uma das duas obras-primas
idéia do romantismo já era no entanto uma realidade à ignoradas. Não diz Porbus a Frenhofer, ao mostrar-lhe
suavolta: Frenhofer escolhepintar uma mulher duran- Gillette e deslumbrado pela beleza da mulher: Mega,eZa
te dez anos, escolhe permitir que outros a vejam para não vate todas as obras-primas do mundo? Nesse mo
poder contar com uma basede comparação,escolhe mento, o mesmo discurso feminista de antes,agora um
queimar uma tela e destruir uma arte da qual talvez du- pouco caricatural, poderia reaparecerpara insistir que
vide, eventualmenteescolhetirar-se a própria vida em- Balzac e o mundo masculino da arte no século XVll to-

bora isso nunca seja aârmado na novela e permaneça mam a mulher apenascomo objeto. Nós, porém, que
como uma possibilidade latente, uiva possibilidade for- lemos a novela até o fim, sabemos que Gillette é mais
te porém não enunciada: ele simplesmente morre de do que um corpo bonito: há uma cabeçae há um sen-
pois de queimar suastelas.Seudestino, sua vida depen timento nessamulher, e um sentimento de auto-estima
de dele: o ideal romântico. Na troca, Frenhofer perde e uma avaliação do mundo e das pessoas e da vida que
menos que Poussin, muito menos: permite que o rival a cercam. Ela certamente se revela uma obra-prima, no
em embrião veja sua arte maior, é verdade, mas depois entanto ignorada: está a um canto, de lado, não conta,
da comparação ele negligencia a base de comparação, olhos a vêem mas procuram nela outra coisa: um mol-
Gillette, e se reapoderado objeto comparado, da vida de e um molde, um paradigma, para os olhos que o
comparada: a linda pentelha, sua tela, sua arte, a gran- observam, não tem emoções e sentimentos e vida. Des-
de obra, a grande criação. Gillette não é nada para Fre- de o momento em que é mostrada a Frenhofer, Gillette
nhofer, enquanto Poussin acredita que .A /inda pente/ha, não conta mais: âca a um canto, ignorada. Apenas de-
esta, será tudo para ele. Não é assim que a descobre, po- pois de nada ver na tela de Frenhofer é que Poussin per
rém, e quando sevolta para olhar o que tem -- Gillette cebe o choro de Gillette, "esquecidanum cafzfo':A obra
não a tem mais. Frenhofer, depois de reivindicar sua prima estavaali o tempo todo, num canto,esquecidae
arte, acaba perdendo-a, porque a destrói: ele a criou, ele quando Poussin finalmente olha para ela, ela não está

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ENTRE A VIDA E A A RTE
TEIXEIRA COELHO

do divulgado reafirmado reconhecido,e ela setornasse


mais lá, já está fora de seu alcance, jó estava fora de al-
bela, uma bela tela.
cance, desde sempre estivera fora de seu alcance. Não
era desconhecida, certamente era ignorada. Frenhofer é
Gertrude Stein, a Gertrude Stein que, coincidência,
superior a Poussin: sempre teve fé no que tinha à mão,
suaarte: Poussin nunca teve fé no que tinha ao alcance, faz no relato Pnrfs, France, 1940, um século depois da
novela de Balzac, a mesma observação incomum de Fre
Gillette. Ignora-se também como era a Catherine Les-
nhofer sobre o ar numa pintura e a jarra de ar numa pin
cault de quem nem Frenhofer nem o narrador da no-
tura. Embora a observação de Stein seja mais ingênua, lá
vela dizem algo, como nada se diz sobre os motivos pe'
estáessecomentário incomum de que o lá.»ra, outdoors,
los quais Frenhofer não mais pode continuar tendo-a
como modelo e se vê compelido a buscar outra mulher o "ar livre" exatamente,é feito de ar e que uma pintura
não tem ar; que o ar é substituído na pintura por uma
para veriõcar se sua tela estava terminada ou não. Ela
superfície chata e que tudo aquilo que numa pintura
podia ter morrido ou, como Frenhofer levou dez anos
imita ar é apenas ilustração, não arte.
pintando-a, pode ter desgraçadamente envelhecido, na
maior tragédia que pode acontecer a um apaixonado:
De um modo ou outro -- Balzac ambiguamente, en-
ver seu objeto de paixão envelhecell.Catherine Lescault
genhosamentepermite que se suponha uma obra-
podia não mais servir. Para chegar a inspirar uma obra-
prima estava ali, esquecida num canto: Gillette. Quer
prima, obra-prima que os dois pintores e o narrador re-
dizer, a vida. Que é o preço que se tem de pagar pela
solvem ignorar, os dois pintores com mais convicção do
arte, como mostra Poussin na novela, como indica Fre
que o narrador, Catherine Lescault talvez fosseela tam-
bém uma obra-prima. Ou talvez não, talvez Frenhofer nhofer depois da questão de recepçãoestéticaque en-
6'entam os dois outros pintores e talvez também o nar-
quisessetransmutá-laem obra-prima atravésda arte,
rador. São então duas as obras-primas que se ignoram
uma arte que produzisseuma obra-prima. TalvezCa-
nesta novela: a da arte e a da vida.
therine Lescaultfosseuma Gertrude Stein, a roman-
cista americana modernista, mulher não muito bonita, Então, uma novela que encena as relações entre a arte
feia mesmo, uma mulher feia que pintada por Picasso e a vida e que põe em jogo a questão da recepção estéti-
transformou-se numa tela que de início todos, menos ca estrutura-se em dois capítulos que não recebempor
Gertrude Stein e Picasso,reconta Alice B.Tocklasnas título nem os nomes dos pintores (o nome de um deles
é mesmo retirado deliberadamentedo título de um dos
palavras de Gertrude Stein, cofzsideravam um .Üacas-
capítulos), nem qualquer outra alusão à arte ou à esté-
so até que o fracasso fosse resgatado depois, mais tar-
tica. Os dois capítulos recebemo nome de duas mulhe-
de, pelo valor cultural, pelo valor canonizado dolariza-

iz4 iz 5
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TEIXEIRA COELHO ENTRE A VIDA E A ARTE

res, âctícias e por isso não menos reais. Como convém história imaginária, fantástica. A novela de Balzactrazia
a uma novela, de resto. Como convém a uma visão fic- esserótulo como indicativo de sua categoria literária,
cionalizada da arte. Uma visão existencial da arte. Visão quase como subtítulo: "conte fantastique't As edições
vitalda arte. contemporâneas da novela não mais o incluem: com
ou sem explicações sobre o sentido de "fantástico" na-
:Não analisemos mais, só aumentaria seu desespero. quele instante, a novela hoje não soa fantástica ou ima
ginária -- se um dia o fez; melhor eliminar de todo essa
Ê possível ver nesta novela a equaçãoingênzíaentre a alusão.Não é indicação que influa em sua leitura, capaz
arte e a vida. Sem dúvida: uma equação ingênua. Mas de desenvolver-se perfeitamente bem sem ela.
A novela de Balzac não é então fantástica e talvez
esseé o ponto: o mérito desta novela é que não nos libe-
ra das equações ingêntlas da arte e da vida, das equações nunca tenha sido. Mas Balzac, como bom escritor que
ingênuas entre a arte e a vida. Seu fascínio está em rea- entrega o que Ihe foi pedido e pelo que Ihe pagam, es-
creveu sim uma novela à maneira alemã: escreveuuma
.armar essaequação ingênua. Adequado. A arte, afinal,
é uma operação ingênua. A arte é uma operação vasta- novela marcada pelos timbres do Romantismo que
mente ingênua. teve em escritores alemães seusprecursores e proposi-
tores destacados. Quando Frenhofer diz a seus dois co-
legaspintores, o arcaico Porbus e um jovem artista em
embrião que vai renegar a escola daquele Porbus que
Á obra-prima igfzorada surgiu de uma encomenda no início da novela Ihe parece um mestre, sem contudo
feita a Balzac:que ele escrevesseuma novela à maneira entender a proposta de um modo talvez mais novo que
alemã, uma novela à maneira de HoKmann, o que sig ele não poderá praticar, o modo de Frenhofer quan
niíicava naquele momento um "conto fantástico" como do Frenhofer diz a seusdois colegaspintores que a mis
os que Hoffmann escrevia. A palavra "fantástico" tinha são da pintura não é copiar a natureza mas expressa-Za,

então sentido diverso daquele de hoje: "fantástico" que o que ele está fazendo é ecoar uma das propostas cen-
ria dizer "imaginário': no sentido de "criativo'l " surpre- trais de um dos promotores do romantismo, Herder
endente't Naquele momento, uma história em que um (que nasce em 1744 e morre quando Balzac está nas-
conhecedorprofundo de música, como no conto de cendo), para quem um dos atributos fundamentais do
Hoffmann, capazde discorrer sobre as mais delicadas ser humano, sua função talvez (a idéia de que o ser hu
sutilezas da execução musical, revela-se totalmente in- mano possa ter uma /u/zção só se compreenderá num
capaz de tocar uma única nota, poderia soar como uma cenário panteísta da vida e do mundo), é expressar-se,

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TEIXEIRA COELH O EN T RE A VIDA E A A RTE

com a coisa. Nos expomos a essapessoa;nos expomos


ação pela qual o ser humano põe para fora, exterioriza,
sua total e autêntica natureza. Esseé o expressionismo àquilo que mais nos interessacomo pessoas:uma outra
de perder: para perder, uma obra de arte é a expres- pessoa.Que só pode ser alcançada por sua própria ex
são, a voz de alguém, de uma pessoa: a maneira pela pressão.A missão da arte não é copiar a natureza por-
qual uma pessoa i?zd vidaaZizada se dirige a outra pes- que não é a naturezaque interessaou estáem jogo, o
soa para dizer-lhe alguma coisa, para representar-lhe que estáem jogo é a expressãodeste artista, daquela ar-
tista diante dessanatureza. É o que Frenhofer está ten-
alguma coisa, para significar-lhe sua história de vida
e de mundo. A expressãode alguém, elaborada de ma- tando dizer a seusdois colegaspintores é o que Fre-
neira consciente ou menos ou mais consciente ou de nhofer estátentando dizer a si mesmo:não é fácil acre
uma maneira inconsciente ou menos ou mais incons- ditar nas próprias idéias, nas idéias que nos são impor-
ciente. De tal modo que quando se está exposto ao que tantes: mais difícil ainda põ-las em prática.
essapessoafez um poema uma composição musical Quando Frenhofer diz que a missão da arte não é co-
piar a rzafurezaele estáigualmente dando voz a um ou-
um código de leis ou uma obra de arte visual -- o que se
tro expoente do Romantismo, um romantismo radical:
percebeé a expressãode um entendimento e uma afzfu
Schelling (vivendo entre 1775 e 1854, é um contem
de pessoaisdiante da I'ida (a existência individualizada)
e do mundo (a soma de todos os tempos e todas as coi- porâneo mais próximo de Balzac), que considera coi-
sas)e não a ída e/a mesmaou o mz4rzdoeZepróprio. SÓ sa morra toda obra de arte que for simplesmente uma
uma pessoaque secantil'esseem sua mais interior ca- cópia"do real': toda obra que surja como resultado de
uma observação atentíssima da natureza e, em seguida,
pacidade de imaginar a vida e o mundo e de represen'
tar a um e outro, só uma pessoaque não mergulhasse como resultado de uma re-produção fiel e escrupulosa
em seu fluxo mais próprio de idéias e noções e simbo- e lúcida e controlada e consciente,por parte do obter
lizações, só uma pessoa que se deixasse dominar pelo vador, daquilo que ele observou, portanto uma repro-
costume, essemonstro dução subjugada ao objeto observado e por ele contro-
lado, como se faz por exemplo na prática cientíâca (ou
that monster, custam (Hamlef) na prática científica que acredita entregar-sea seu obje
l to e ser por ele comandada). A cópia é uma coisa mor-
e pelo código pela língua pelo esquema,não se expres- l fa, é o que Schelling considera. Todo modo da arte que
sada. Quando nos expomos a uma obra de arte, nosex- proceder assim é um modo de arte inteiramente cons-
ciente de si mesmo e todo modo de arte inteiramente
pomos ao co?ztatocom qt4em a jez, não com a coisa com
a qual essa pessoa entrou em contato -- e muito menos consciente de si mesmo é apenas uma jofograÚa, uma

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TEIXEIRA COELHO
ENTRE A VIDA E A ARTE

coisamorta. Paraservivo, um modo de arte tem de in-


cluir na representação algo não inteiramente consciente
e essealgo não de todo consciente provém da expressão,
não da cópia. Quando a expressãofalta, quando tudo nar corpo algum.
for feito de acordo com determinadas regras como fazia
Porbus e como faria Poussin, o resultado pode ser bem
Samzlrai pack, desenho animado de Gendy Tartako
acabado, elegante, mas morto. Por isso a missão da arte
vsky, distribuído pela Cartoon Network em 2002, não re
não é copiar a natureza: expressa-la.
corre à linha para definir o corpo das personagenspor
que o autor acredita que isso dá mais verismo ao dese-
E Goethe (entre 1749 e 1832), Goethe, claro, a pri-
nho. Descobriu o efeito por acaso,vendo desenhosani
meira ce/ebrídademoder7za,
estáentre essesromânticos,
mados antigos em películas borradas e imprecisas...
como no livro que popularizou o romantismo, Werf/zer,
1774: 'daquele que se orientar apenas pelas regras forma-
Pergunta-lhes se não têm a impressão de que pode-
das nunca produzirá nada de mau gosto [...]; por outro
riam passar a mão entre as costas da mulher e o fundo
lado, toda regra firmada é capazde destruir o entendi-
mento autêntico da Natureza e süa autêntica expressão't
da tela assim como essasmesmasmãos passariampor
trás de uma mulher real num espaço real. Ele diz: esta
Goethe, aliás, cujo mito de Fausto impregna toda a
carne palpita, esperem, ela vai levantar-sel
novela, junto com o de Pigmaleão, e Ihe atribui um toque
\ adicional da maneira alemã pedida pela revista..
Os dois pintores foram ao ateliê de Frenhofer para ver

É difícil para Frenhofer acreditar no que ele mesmo uma pmtura e não a encontram: para Frenhofer, a peça
não poderia ser vista como pintura, como arte: assumi-
diz, é difícil pâr em prática o que ele mesmo recomen-
ra uma outra condição. "Vocês estão diante de uma mu-
da (como aconteceu com Artaud, por exemplo). Ape-
lher e ficam procurandoum quadro';diz Frenhofer.A
sar de ter dito aos dois pintores que a missão da arte é
arte havia desaparecido, a arte já era: apenas mentes de-
a expressãoe não a cópia, chama-lhes a atenção para a
finidas pelo Cosfumepodiam estar ainda em busca de arte
luz que banha os cabelos da mulher em sua tela do mes-
mo modo como a luz real banha cabelosreaisna reali quando alguma outra coisa havia sido feita: criada. Um
artista moderrzo talvez teria dito, nessa situação: "Vocês
dade conforme as /eís díz Juzque ele estudou "durante
estão día/zfe de um quadro e ficam procurando uma mu-
seteanos" meticulosamente,como um cientista, sepo-
lher!" O que Frenhofer de fato diz, invertendo estaexcla.
deria dizer ainda que ele não o diga. E pergunta-lhes
mação, poderia ser dito hoje por um artista pós-moder-

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i3 l
PEIXEIRA C OELH O ENTRE A VIDA E A ARTE

rzo.Decidir qual das duas conclamações é mais acentua Há contradições na novela, é verdade. Erros, talvez.
damente romântica que a outra será não apenas difícil Podem ser de Frenhofer. Ou de Balzac.Não alteram a
como fora de propósito: as duas pertencemao campo qualidadeda novela.Há de fato no texto pelo menos
do romantismo. dois erros objetivos, como se costuma dizer. Balzac re-
corre à palavra sí/;zuefa,tirada do nome de Étienne de
Mesmo assim, Frenhofer não perdeu a âncora que o Silhouette, um ministro da fazenda em ação apenas em
mantém no campo da arte, do modo como a arte po- meados do século 18 e que portanto nada tinha a fa-
dia ser entendida naquele momento e hoje ainda, sob zer em 1612,cenário da novela;e mencionao jesuíta
certo viés: ele diz "Não dá a impressão que...?': "Não dá Hardouin, que Gillette sugereconsultar para seu caso
a impressãoque seria possível passara mão...?" O con- de consciência, quando essereligioso nasceu em 1646 e
dicional: Frenhofer não perdeu o sensodo condicional, não podia aconselharninguém em 1612.Nenhum des-
não perdeu o costume do condicional que é a arte. Di- seserros altera a â'uição da novela: podem perturbar,
fícil perdê-lo: o fio sobre o qual se anda aqui é âno de- levara sorrir ou fazervibrar o cientistada literatura
mais, a oscilaçãode um lado para outro é inevitável: mas essepouco interessa: esseserros de datação não al
ambiguidade. Frenhofer, descrevendoa pintura para os teram a qualidade da novela.
dois pintores, embarca numa rapsódia poética mas não A alternativa do delírio de Frenhofer,já foi dito, é a
perdeu o elo com o costumeestético:é uma pintura, ele opção menor: o fenómeno mais comum na história da
sabe disso: arte é o fato de não se reconhecer, no momento em que
elaé feita, a grandezade uma obra de arte, a revê/ar-se
:Sim, sim, é uma tela, sem dúvida': disse Frenhofer, como tal apenasmais tarde porque em algum momen-
enganando-se sobre o motivo daquele escrupuloso exa- to posterior alguma coisa mudou fora dela que permi-
me. "Ve)am,aqui estáo chassi,o cavalete,
e aqui estão tiu essereconhecimento; ou a e/abonar-secomo tal so-
minhas tintas, meus pincéis." E pegou um pincel maior mente mais tarde, às vezesbem mais tarde, caso nunca
para mostrar-lhes, num gesto ingênuo. tenha sido o que depois sediz que é, uma obra-prima,
mas que assim passa a ser porque alguma coisa mudou
Ê uma tela, ele sabe disso: há um chassi, um cavale fora dela. O delírio de Frenhoíer é portanto uma op-
te, as tintas, os pincéis. A alegação de demência, que co- ção menor. A ambiguidade, a incapacidade de Frenho-
mentaristas de resto argutos encontram na novela, está fer ser inteiramente coerente em sua fala e em sua prá-
fora de lugar. Leitura apressada.Pior: carência de pen- tica, a diâculdade encontrada por Frenhofer para per-
samento poético. correr a distância entre aquilo que ele mesmo prega

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TEIXEIRA COELHO ENTREA VIDA E A ARTE

e o que consegue fazer, essaé uma possibilidade con- ainda estálonge de redigir a extensae realistaComé-
creta. E comum na arte. Mais simplesmente,pode ser dia /zamana.

que Frenhofer fosse, como Balzac pode ter sido quan- As hesitaçõese ambigüidades e incoerências que são
do escreviaestanovela (e Frenhofer é o que é porque de Frenhoíer ou que são de Balzac não alteram a qua
Balzac era o que era) e como nós hoje freqüentemen- lidade da novela,como não a altera o fato de que em
te somos, resultado de uma composição assimétrica erz 1612 esses princípios do Romantismo expostos por
fre duas serzsíbíZidades
corzfemporáneas,quase contem- Frenhofernão poderiam ser expostospor ninguém.
porâneas, e incompatíveis: a sensibilidade romântica e Nas últimas três ou quatro décadas do século 18, sim:
{
a sensibilidade iluminista. Esta sensibilidade iluminista um século e meio antes, não. Em 1612 alguém pode-
caíasob a descrição do que Schelling apresentavacomo ria ter enunciado aquelaproposta de Frenhofer sobrea
o oposto da arte, por querer-se científica em sua obses- copia e a expressãonum cenário e com uma ressonân-
são por regras e códigos e em seu desejo de entregar- cia inteiramentediferentes.Um realistaou um classicis-
seaos determinismos variados que iriam manifestar-se ta poderia tê-la pronunciado e estar pensando em coi-
tanto nas doutrinas dos ideólogos da Revolução Fran- sa totalmente diferente daquela que Frenhofer tinha na
cesacomo nas de Hegel, Marx e outros a seguir. A sen-, cabeçaquando a enuncia: de certo modo, pelo menos
sibilidade romântica, pelo contrário, insistia na idéia para o sensode hoje, aquelafórmula sobrea expres-
de que não há uma estrutura para as coisas,que a rea- são e a cópia da natureza é um lugar comum na arte. E
lidade não se manifesta sob uma forma que pode ser essadatação, 1612, pode ser, assim, mais um anacronis-
apreendida, analisada e representada portanto comu- mo de Balzac. E mais uma vez, isso não afeta a novela,
nicada de um modo cientíâco. Compor-se uma per- que é densa, que é profunda no sentido em que toca em
sonalidade com traços de ambas sensibilidades que se aspectos,em dimensõesdas relaçõesentre o artista, a
entrecruzam e se alternam é o que há de mais comum, obra, a vida, o mundo e a recepçãoda obra de arte que
naquele momento como agora: não se pode dizer que são vitais ao ser humano e talvez inseparáveis da ainda
seja inevitável porque um espírito decidido pode op- atual condição humano de existência.Nessadimensão
tar por exerceruma delasapenas,ou uma delasde ma- atemporaZ, a novela não poderá ser alzacróníca, não con
neira extremamente mais acentuada que a outra. Mas tém anacronismos.
é difícil: difícil para um pintor, diHcil para um jovem
escritor que ainda queria encontrar sua voz (que ainda A questão do tempo nesta novela: o balé das datações
acredita que isso possa existir ou que vive numa epo' - o 1845 da dedicatória, mistificador ou secretamente

ca que acredita que isso existe ou é importante) e que motivado; o 1612 da ação da narrativa, o 1831 que as-

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ENTRE A VIDA E A A RTE
PEIXEIRA COELHO

sófico do presente do que contemporâneo histórico do


sinala a primeira publicação, o outro desnorteante 1832
presente;o problema é que ele insistia em que se deve-
que assinao final, a revisão em 1837-- e os anacronismos
ria ser contemporâneo histórico do presentee não esta-
de sílhueía e do padre Hardouirz. Há comentaristas, como
va preparado para aceitar que a contemporaneidadeâ-
o Adrien Goetz da edição desta novela pela Gallimard,
losófica é outro modo de se dizer anacronismo cultural
que adverte para os perigos de seadmirar esta novela pe-
ou, simplesmente, cultura, e para aceitar que a contem-
las "razões erradas": vê-la como anunciadora ou premo'
notória da arte moderna, da arte abstrata. Uma advertên- poraneidadehistórica, que ser contemporâneo histórico

cia culturalmente deslocada, equivocada: inútil. A cultu- de seu próprio momento, é uma utopia, cada vez mais
uma utopia no mundo contemporâneo. Balzac era um
ra é feita de gostos e valorações anacrónicos, fora da data
contemporâneo fUosófico de seu presentee sua novela
certa, tirados de seuscontextos cronológicos e cenográfi-
irremediável e deliciosamente anacrónica é prova disso.
cos. Rafael, por exemplo, Rafael que Frenhofer tanto va-
E é por isso que é delicioso gostar dessa novela, como da
lora: no tempo de Rafaelas tapeçariaseram muito mais
arte, pelas "razões erradas': que são as únicas razoes cul
prezadas e admiradas e muito mais caras que as pintu-
turalmente em seu lugar: as razões historicamente em
ras da época que hoje veneramosnos museus (algumas
seu lugar: as correçõessão todas filosóficas...
das grandes,enormestapeçariasX
com seusfios de ouro,
prata e seda,custavam tanto quanto uma nau inteira; e
eram mais valiosas que aspinturas também porque mui- E deixando de lado os esforços historicistas de loca
to mais úteis do que a pintura: protegiam contra o frio). lização da novela num cenário adequado de mentalida-
Nessemomento, como ainda hoje, mal sevia e mal sevê des reais ou imaginárias, do ponto de vista da arte mo-
derna e da arte contemporânea A obra de arte ig/corada
uma pintura de Rafaele outros tantos, perdida como es-
representa a passagempara um estado cultural dentro
tava e está nas paredes, acima das portas ou no teto das
salasdo Vaticano e outros palácios, sufocadapela com de cujas linhas verificam-se ruinosas as teorias de expli-
caçãounitária e cientificista do ser humano e desejável
petição de outras tantas pinturas e da excessivadecora
a noção de que os valores sãovários, de que a plurali-
ção em madeira. E no entanto é Rafael, muito mais que
dade é germinadora, de que as questões humanas são
qualquer tapeçaria, que por costume sobrou e passou
tão inexauríveis quanto as respostasque se lhes podem
para hoje. É assim que se constrói a cultura comum, a
comum da cultura: por extraçõese interpolaçõescrono- encontrar e igualmente imprevisíveis,que asimperfei-
lógicas, pelo transporte (que se diz metáfora, em grego)
çõesda vida sãono fundo seusaltanto quanto as im-
intermitente dos valores. Marx talvez tenha intuído isso perfeições das teorias que as toleram, como o Roman-
tismo. A novela simboliza, de modo particular, a passa
quando disse que é mais fácil ser contemporâneo filo-

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TEIX EIRA COELHO ENTRE A VIDA E A A RTE

gem para um estadode coisasem que o artista conquis- cinante, do surgimento se não da arte moderna e con-
ta de modo definitivo sualiberdade diante de uma lar- temporânea, pelo menos do artista moderno e contem-
ga série de condicionantes, a passagem para um estado porâneo. E pós-moderno. O artista que é romântico ou
em que a arte pode assumir infinitas formas, pode ser não énada.
várias coisasuma vez que quem diz que alguma coisa é
arte passaa ser o artista que a faz -- uma vez que arte é
aquilo que o artista faz. Balzacmatou Frenhofer,não deixouao pintor a
chancede recorrer apenasao orgulho para sustentar
L' obéissance est douce au vil coeur des classiques; suaalma romântica,não Ihe deu a chancede escutar
lls ont toujours quelqu' un pour modêle et pour loi. apenas seu próprio eu e dispensar-se dos modelos e das
Un artiste ne doit écouter que son moi leis e das opiniões, negou-lhe o romantismo possível de
Et [' orguei] seus emp]it ]es âmes romantiques' sua arte e vida, negou-lhe a chance de afirmar-se como
artista contra a opinião dos outros. Claro que escreven-
Porbus e Poussin não estavam preparados para ad- do como o fez e optando como optou pelo novo final,
mitir que fossearte aquilo que Frenhofer dizia que era o que Balzac fez foi reaÚrmar o caráter romântico de
arte; não estavam preparadospara ver naquela tela o Frenho6er que romanticamente prefere não ser a ser al
que Frenhoferdizia que ali estava(como hoje, exata- duma coisa contrária a seu ideal de vida e de arte um
mente como hoje, com tantos modos de arte); prova- romantismo maior e mais densono pintor do que na
velmente não estavam preparados nem para compre- passagem codificadamente romântica que Balzac aca-
ender e menos ainda deslindar as intrincadas relações bou encontrandopara o segundoe definitivo final de
sua novela...
entre a arte e vida esboçadas
na novela.Com anacro
nismos, equívocos, ambiguidades e indecisões, e sem
talvez poder deslindar essasrelações ele mesmo, Balzac Teixeira Coelho

escrevia uma alegoria ambígua e indecisa, por isso fas- Washington,maio de2002

2. "A obediência é bálsamo para o vil coração dos clássicos/Que sempre


têm a alguém por modelo e lei./Um artista só deveouvir a si mesmo/E
somente o orgulho ocupa as almas românticas."Do poema inédito "Pol-
me sur I'orgueil': 1846, autor anónimo, citado por Louis Magron em .Le
romã/zz-ismeet /es moeurs, c. 1910.

t38 i39
A
REFE R E N CLÃS

BaZzac,Honoré de. l,e che#-d'oeuvrefnconriu. Paria, Le Livre


de Poche, 200 1. Apresentação de Maurice Bruéziêre.
l,e chef-d'oeuvreíncorznu.Paris, Gallimard, Folio
Classique, 2000. Prefácio de Adrien Goetz
T/ze UnknowrzÀ4asrerpíece.
New York, New York
Reviewof Books,2001. Introdução deArthur C. Danto.
Berlin, lsaiah. T/zeRootsofRomanfícísm. Princeton, Prince
ton University Press, 1999.
Goethe. J.W. von. 7'he Sorrows of Uou/zgWerrher. New York,
Vintage Classics, 1990.
Herder, J. G. Se/ecfedWorks.University Park, Pennsylvania
StateUniversity Press,1992.
Schelling, F. W. J. von. 7'he PhiZosoph7oÍ Art. Minneapolis,
University of Minnesota Press, 1989.

i4i
ESTE LIVRO FOI DESENHADO E COMPOSTO EM MINION
PELA NEGRITODESIGNE IMPRESSOEM SÃO PAULO
PELA GRÁFICA DORON
MAIO ZOO3
0 impacto de ,4 obra-prima /gnorada foi
M ., $ , ::' U « forte. Cézanne, o precursor do cubismo nascido
quando a novela já havia sido escrita, estava
no entanto convencido de que o texto falava
dele. E Picasso foi instalar-se no mesmo
local menciono ! l :la novela para ali pintar
uma de suas maiores obras, Guernfca. Mais
recentemente, o cineasta francês Jacques
Rivette dela extraiu um filme, La Be//e Nofseuse
com Michel Piccoli no R Í velho pintor

Este volume inclui um ensaio inédito de

Teixeira Coelho, prepara i i l ]raestaedição


e
que parte da novela de Balzac para penetrar
no emaranha ] tl e idéias sobre a arte,o
Romantismo e a vida, naquela época como
agora, na literatura como em outros domínios

Honoré de Balzac (1799-1850) escreveu quase uma

centena de romances e inúmeros contos, novelas

e textos jornalísticos. Em 1834 concebeu o projeto


de colocar toda sua produção ficcional sob uma
designação única, A comédia humana, espécie de obra-

em-progresso que daria uma visão geral da sociedade


francesa da época, da Revoluçãoaos dias vividos pelo
autor. 0 conjunto deveria compreendercerca de 150
volumes,
apresentar
pertode2 personagens e

tratar dos mais diferentes tipos de indivíduos, em suas

variadas atividades. Balzac concretizou perto de 2/3 do


ambicioso projeto. .4 ol)ra-prima énorada apareceu em
1831, nas páginas da revista L'l4rtfsfe,trazendo como
subtítulo a designação"Conte fantastique

Teixeira Coelho. ex-diretor do Museu de Arte

Contemporânea
da USP.
é professorda ECA
e autorde
vários ensaios e obras de ficção, entre eles Moderno
pós Moderno e ?liemeyer: um romance

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