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Sao Paulo:
Companhia d a s Letras, 1989.
DECADÊNCIA?
X
o-
p.* ,
então: derrota e ocupação em 1814-5, nova derrota e ocupação
depois de 1870 sugeriam, o que mais tarde se confirmaria, que
os dias de conquista da França estavam chegando ao fim, substi-
V tuídos pela nova e incômoda experiência do declínio.
//k decadência, esboçada pelos poetas românticos, seria afir-
<f mada pela descrição naturalista, saudada por aqueles que sabo-
*- reavam seus refinamentos concomitantes, denunciada com amar-
V'' ga satisfação pelos que viam seu mundo se esfacelar.Jka metade
^ do século, a pesquisa médica pareceu confirmar sentimentos
dessa espécie, quando o dr. Benedict Morel publicou seu Trea-
tise of the Physical, Intellectual, and Moral Degenerations of the
Human Race and of the Causes That Produce These Maladive
Varieties (1857). O debate se estabeleceu em torno da tese de
Morel. "No último quarto de século", queixava-se um médico
em 1876, só o que se ouve é "Somos degenerados! Estamos em
decadência!". Como que para confirmar a tese, os estatísticos
dizem que a população está decrescendo, a altura média dos
' recrutas diminui, o número de recrutas recusados cresce, a mora-
lidade definha, o crime prospera, a mente e o corpo tendem à
deformidade, ao cretinismo, à idiotia, à sandice, e assim por
diante. Algumas dessas declarações eram comprovadamente fal-
sas, outras discutíveis. As estatísticas variavam, como sempre.
Mas o máximo que os oponentes da tese da Decadência podiam
oferecer não chegava a ser uma refutação, apenas argumentos
de que a "pretensa degeneração física" dos franceses era relativa-
mente pequena se comparada à de outros europeus. 16
A questão não comportava uma abordagem ciéntífica. As
provas, assim parecia, estavam por toda parte. Entre os que
discutiam esses problemas, ou davam ouvidos à discussão, a de-
gradação e a decrepitude da sociedade e de seus valores pare-
ciam fora de dúvida. Principalmente quando os sintomas se
apresentavam em âmbito mais doméstico: sono perturbado, di-
gestões complicadas, má circulação, fadiga, e assim por diante.
O dr. de Fleury, descrevendo Os grandes sintomas neurastênicos
(1901), só podia deplorar "esta lassidão desanimada, esta impo-
^ tência intelectual e física" que caracterizava a doença. Em uma
década, tudo ficou pior./A neurastenia, assegurava o dr. Grel-
lety, era a maladie du siècle [doença do século]. "A neurose
k, «j"" , e s t á à nossa espera e torna-se cada vez mais grave ] . . . [ O
monstro nunca fez tantas vítimas, seja porque os defeitos ances-
trais se acumulam, seja porque os estimulantes de nossa civili-
^ yÀ zação, mortais para a maioria, nos precipitam numa debilitação
\ ociosa e assustada."/Como Pasteur Vallery-Radot lembra, "era
VVj^ moda, em 1910, comprazer-se na melancolia". 17 Isto talvez ex-
plique por que um jornalista contemporâneo, ao considerar as
profissões que um jovem brilhante poderia escolher, focaliza a
medicina, onde "encontraria uma próspera carreira p o r causa
das ansiedades, neuroses e desordens gerais que reinam entre as
classes sociais mais elevadas". 18
As classes sociais mais elevadas, ou pelo menos seus filhos
sensíveis, sabiam que nervos frágeis eram prova de sensibilidade
refinada. Baudelaire admirara o caráter nervoso da escrita de
Edgar Allan Poe e a intensidade nervosa da música de Wagner.
Os admiradores de Baudelaire veneravam na sua obra "a magní-
fica queixa nervosa que afetaria todas as almas sensíveis depois
dele"; procuravam, como ele, "exasperar suas aflições". Félicien
Rops, o grande aquafortista, garantia trabalhar com seus nervos.
Os poemas de Maurice Rollinat, Les Névroses, datam de 1883.
Para Zola, a obra dos irmãos Goncourt era "uma espécie de
imensa neurose", e Taine "ajusta-se bem em nossa sociedade de
nervos". Edmond de Goncourt considerava Degas um neuró-
tico. Art Moderne, de Huysmans (1883), descrevia Berthe Mo-
risot como uma colorista nervosa, Guillemet como " u m pacote
de nervos sob controle" e Gauguin como "uma pele embaixo da
qual os nervos vibram", enquanto Mary Cassatt oferece "um
redemoinho de nervos femininos transposto para seus quadros". 1 9
Esta ênfase dada aos nervos e à procura de fontes de
energia nervosa andava de mãos dadas com uma sensação de
abatimento, perda de entusiasmo, lassidão, énervement d'esprit
[enervamento do espírito], uma degradação geral de energia
confirmada, aparentemente, pela teoria da entropia, derivada
da segunda lei da termodinâmica. Mas não era apenas a energia
que se dissipava. O mesmo acontecia com a saúde e a força,
fato comprovado pelo miserável desempenho da França nas pa-
radas demográficas. Da década de 1880 até a Primeira Guerra
Mundial inúmeras vozes se levantaram para avisar que o país
corria o perigo de desaparecer. E, enquanto o número dos habi-
tantes encolhia, os que restavam apodreciam por dentro.
O domínio da Igreja enfraquecera, mas as dívidas do pe-
cado, a serem pagas neste mundo e não no próximo, conti-
nuavam terríveis para culpados e inocentes. Oprimido, explo-
rado, o povo reagia através de suas mulheres, que transmitiam
a sífilis aos machos burgueses. Apanhada na rua, no bordel ou
no quarto da empregada, a degradação afetava necessariamente
a "raça". A convicção de que o vício traz consigo seu próprio
castigo, por meio da doença venérea que arruina o portador e
seus descendentes, associava-se a um darwinismo vulgarizado
para sugerir que, como as famílias, sociedades e grupos sociais
estavam sujeitos à degeneração. " A degeneração da raça", escre-
via André Derain a seu amigo Vlaminck, "jorra de todos os
nossos poros [. . . ] Somos os cogumelos de antigos montes de es-
terco". 2 0 /
- — P i Na versão francesa apresentada pelo teatro avant-garde de
Antoine, Fantasmas, de Ibsen, não falava mais sobre os efeitos
hereditários da sífilis, mas sobre os do alcoolismo. 21 Porém, o
vício ou o álcool que minava as classes dominantes depravava
e brutalizava as mais baixas. Se a raça se deteriorava, o resul-
tado era mais corrupção: a degeneração física favorecia o crime;
dégénérescence [degenerescência] e criminalité [criminalidade]
eram associadas em mais de um título, como na saga de Zola
sobre o clã Rougon-Macquart.^E não demorou para que uma
conclusão lógica fosse tirada: o homem moderno estava indo
contra o princípio da seleção natural. Algumas das próprias ins-
tituições que uma sociedade avançada gera causam o declínio
da raça./O homem moderno cuida dos fracos, dos retardados,
dos degenerados. A assistência pública, asilos, clínicas e hospi-
tais prolongam a vida de pessoas — idiotas, imbecis — que vão
gerar outros degenerados, cuja sobrevivência contribui para o
desastre social. Essa seleção às avessas deveria terminar: crimi-
nosos, degenerados e deficientes mentais deveriam ser esterili-
zados — por livre e espontânea vontade ou, se fosse preciso,
"por pressão fraternal". De outro modo, como preservar a socie-
dade? 2 2 ^
Veremos que o crime tinha uma participação tão grande nas
inseguranças do fim do século x i x quanto nas de nossa época;
e também figurava com freqüência nos argumentos sobre dete-
rioração social. No entanto, a noção de decadência, estreitamente
associada à de fin de siècle, não era uma preocupação intensa
das classes vulgares, mas antes de uma minoria c u l t a / U m tema
jdeste livro será a discrepância entre a preocupação das classes
^superiores com a decadência (moral, material, social) e a melho-
ria efetiva dos padrões de vida, do equipamento intelectual e
;das oportunidades sociais que as massas populares começavam
a perceber, às vezes até a experimentar ./Uma questão que atraía
tanta atenção, ainda que só em esferas limitadas, não pode ser
descartada levianamente. As dificuldades refletiam problemas
reais — mesmo que nem sempre aqueles a que eram atribuídas.
Cem anos atrás, assim como hoje em dia, a sociedade movia-se
aos arrancos. Enquanto as condições de vida melhoravam para
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