Você está na página 1de 136

Raimundo Paulino Silva

MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE
ERICO VERISSIMO

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Analista de Escrita e Artes

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO


NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária Responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

SI581

Silva, Raimundo Paulino.


Memória imaginativa nas lembranças de Erico Verissimo / Raimundo Paulino Silva. –
Curitiba: CRV, 2021.
136 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-0327-3
ISBN Físico 978-65-251-0326-6
DOI 10.24824/978652510326.6

1. Ciências sociais 2. Erico Verissimo 3. Memória autobiográfica 4. Imaginação


I. Título II. Série.

CDU 821.134.3.09 CDD 801.95


Índice para catálogo sistemático
1. Erico Verissimo – análise - 801.96

ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL


EM FORMATO DIGITAL.
CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO!

2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Afonso Cláudio Figueiredo (UFRJ)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Andre Acastro Egg (UNESPAR)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Andrea Aparecida Cavinato (USP)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Atilio Butturi (UFSC)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Carlos Antônio Magalhães Guedelha (UFAM)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Daniel de Mello Ferraz (UFES)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Deneval Siqueira de Azevedo Filho (Fairfield
Celso Conti (UFSCar) University, FU, Estados Unidos)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Jane Borges (UFSCAR)
Três de Febrero – Argentina) Janina Moquillaza Sanchez (UNICHRISTUS)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) João Carlos de Souza Ribeiro (UFAC)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Joezer de Souza Mendonça (PUC-PR)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) José Davison (IFPE)
Élsio José Corá (UFFS) José Nunes Fernandes (UNIRIO)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Luís Rodolfo Cabral (IFMA)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Patrícia Araújo Vieira (UFC)
Gloria Fariñas León (Universidade Rafael Mario Iorio Filho (ESTÁCIO/RJ)
de La Havana – Cuba) Renata Fonseca Lima da Fonte (UNICAP)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Sebastião Marques Cardoso (UERN)
de La Havana – Cuba) Simone Tiemi Hashiguti (UFU)
Helmuth Krüger (UCP) Valdecy de Oliveira Pontes (UFC)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Vanise Gomes de Medeiros (UFF)
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Zenaide Dias Teixeira (UEG)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
A Graça, Nícolas e Letícia
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo.
Ao meu pai João Daniel (in memorian) e a minha mãe Francisca
(in memorian) por terem sido os responsáveis pela minha existência.
A minha esposa Graça e aos meus filhos Nícolas Daniel e Natá-
lia Letícia pelo apoio incondicional em todos os momentos.
Aos meus irmãos Francisco, Luiz, Sebastião, Maria, Dasneves e
Lucinha pela força que me deram ao longo deste trabalho, extensivo
a todos/as familiares.
A Coordenação Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pelo apoio financeiro durante os dois ANOS de curso.
A minha orientadora Doutora Ana Laudelina, por tudo e por
todos os momentos em que esteve ao meu lado, com a sua paciência,
sua sabedoria, sua preocupação, sua contribuição, sua lealdade, sua
orientação através da leitura atenta e crítica, uma eterna gratidão.
Ao professor/co-orientador Doutor Ozaías Antonio Batista, o
meu profundo agradecimento pela leitura atenta e sua contribuição
ao longo da produção deste livro.
Aos professores que compõem a banca examinadora, Doutora
Karlla C. Araújo Souza, Doutor Fagner Torres de França e Doutor
Rodrigo Viana de Sales pela participação e contribuição que deram
a este trabalho.
Ao Doutor Alexsandro Galeno e ao professor Doutor Orivaldo
Pimentel na condição de coordenador e vice-coordenador, respecti-
vamente, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPG-
CS-UFRN), o meu agradecimento.
Aos meus professores e professoras do Programa de Pós-gra-
duação em Ciências Sociais (PPGCS-UFRN) e em especial, aqueles
de quem fui aluno.
A todos os pesquisadores e pesquisadoras do Grupo de Pesquisa
Myhtos-Logos do PPGCS/UFRN, ao qual me integrei ao longo do
percurso do mestrado.
A professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini (PUC-RS)
a quem recorri em busca de algumas informações precisas sobre
Erico Verissimo.
Aos funcionários da secretaria do PPGCS, Otânio, Nicolas e
Daniel, que sempre me atenderam bem naquilo que precisei.
Aos colegas da nossa turma de mestrado pela força nos momen-
tos de dificuldades.
A todos/as amigos/as que direta ou indiretamente contribuíram
para a realização deste trabalho.
As relações entre ciência e o poético provocaram uma
virada epistêmica que ultrapassa a dicotomia entre a visão
material e a visão imaginária, sendo no século XX, a obra
de Gastón Bachelard um dos marcos desses deslocamentos,
como sabemos, transformando a imagem da ciência e o
seu funcionamento, considerando que a imaginação do
cientista está eivada de elementos poéticos e até ficcionais.
Ilza Matias de Sousa
SUMÁRIO

PREFÁCIO......................................................................................15
Ana Laudelina F. Gomes e Ozaías A. Batista

INTRODUÇÃO................................................................................19

SOLO DE CLARINETA NA VIDA E OBRA DE ERICO


VERISSIMO....................................................................................29

TEMPO E ESPAÇO NOS SONHOS DE ERICO


VERISSIMO: considerações sobre infância e casa........................45

POÉTICA(S) DA MEMÓRIA EM SOLO DE CLARINETA: do


sonho de ser pintor (não realizado) ao escritor consagrado............81

ARREMATES FINAIS DE UM SOLO POÉTICO DE


CLARINETA................................................................................... 119

REFERÊNCIAS.............................................................................127

ÍNDICE REMISSIVO....................................................................133
PREFÁCIO
LEMBRANÇAS-IMAGENS E
MEMÓRIAS-IMAGINAÇÕES
EM SOLO DE CLARINETA
O livro de Raimundo Paulino Silva faz uma leitura diferenciada
e criativa do Solo de Clarineta, autobiografia do escritor brasileiro
Erico Verissimo.
Na proposta teórica do pesquisador, mais do que ficcional, a
memória se apresenta como memória-imaginação, noção da filosofia
estética de Gaston Bachelard. Por conta desse entendimento, Raimundo
se atreve a buscar a poeticidade dessas memórias autobiográficas.
As lembranças verissimianas consteladas são, portanto, recortes
poéticos e bricolagens de Raimundo. São imagens que se mostram
como provocações à imaginação, imagens provenientes dos movi-
mentos de repercussões e ressonâncias que acontecem com o lei-
tor em processo de devaneio poético ou leitura imaginativa, todas
noções bachelardianas.
Raimundo se apoia também no pensamento de James Hillman,
segundo o qual a imaginação (criador-ativa) funda a memória, pois
a base da mente é poética. Por isso, Raimundo ousa pensar na pos-
sibilidade de uma poética memorial autobiográfica. Assim, o estudo
de Raimundo nos sugere que as memórias autobiográficas suscita-
das por Solo de Clarineta podem ser entendidas como imaginações
poéticas de Verissimo.
E tais memórias-imaginações puderam ser acessadas através
de lembranças-imagens de Verissimo que suscitaram devaneios de
leitura em Raimundo. Supondo-se aí uma comunicação transubje-
tiva entre escritor/leitor. Com isso, Verissimo e Solo de Clarineta
são re-imaginados por Raimundo. O que está totalmente dentro do
bachelardismo, para o qual o que importa é buscar o que as imagens
poéticas provocam e levam seus leitores a dizer, o que elas suscitam.
Raimundo pega na mão de seus ex-orientadores acadêmicos e
vai com eles na mesma direção: não há pretensão de objetividade
16

nem de objetivação na leitura imaginativa de imagens, o que não


implica numa leitura em subjetivação, pois há de se considerar a
comunicabilidade das imagens entre diferentes leitores.
A nosso ver, há uma grande ousadia e originalidade do livro de
Raimundo, pelo fato se do pesquisador buscar o caminho da poeti-
cidade das imagens e, com isso, aplicar tal método fenomenológico
bachelardiano a um estudo de autobiografia memorial. Coisa que
Bachelard nunca tencionou fazer, principalmente porque para esse
filósofo da imaginação, o que importou em seus estudos fenome-
nológicos estéticos foi a leitura imaginativa das imagens poéticas,
leitura em estado de devaneio poético, jamais a biografia do autor,
nem mesmo a leitura imaginativa de suas lembranças. No Grupo de
Pesquisa Mythos-Logos: imaginário e parcerias do conhecimento
(PPGCS/UFRN) – especificamente na linha de pesquisa Polilógica
do mito e do imaginário, a qual nós e Raimundo integramos, há outras
pesquisas que seguem essa trilha gestada ali1. Ou seja, buscar encon-
trar a poeticidade da vida narrada em uma autobiografia. E nessa
leitura imaginativa impõe-se ao leitor dar vazão aos seus próprios
devaneios poéticos, mesmo que isso não seja explicitado no estudo.
O melhor feito de Raimundo nessa linha de investigação foi inaugurar
essa perspectiva voltada às memórias autobiográficas, podendo, com
isso, colaborar para iluminar o percurso de pesquisadores vindouros.
Ao fazer a ciência dialogar com imagens, Raimundo reforça
estudos transdisciplinares, inserindo-se no grupo de pesquisadores
de postura inovadora em relação a isso, enfatizando uma aborda-
gem com as imagens que são predominantemente estética e onírica.
Como indica no estudo, Raimundo segue a linha de trabalho de
sua ex-orientadora, buscando acessar a imaginação que dinamiza o
imaginário do escritor, entendendo ser este o sentido maior da leitura
imaginativa de imagens. Com ela, partilha também a compreensão
de que no bachelardismo a imagem não é coisificada (objeto), nem
tomada como substituto da coisa (representação). Pelo contrário, seu

1 Entre eles podemos citar o livro de Karlla Christine Araújo Souza. (A vida num repente.
Memórias (e) Poéticas de João de Vital. Curitiba: Appris, 2021, no prelo), além de outros
estudos de pesquisadores do grupo, os quais, embora não de forma explícita, tem orientações
semelhantes, como a tese de doutorado de Michelle Ferret Abadiali e a de Rodrigo Viana
Salles, dentre os mais recentes.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 17

método indica que se deve dialogar com a realidade específica da


imagem, realidade de não coisa (no-thing), como um produto dos
devaneios poéticos do escritor e do leitor.
Assim, o livro de Raimundo traz contribuições às ciências
humanas e sociais ao tentar mostrar que a aplicação do método
fenomenológico de Bachelard leva a uma superação do formalismo
em relação às imagens, aderindo à função imaginativa da leitura
em estado de devaneio poético. Com isso, Raimundo pôde mostrar
como Verissimo habitou oniricamente os espaços lembrados, seja da
casa da infância, das cidades percorridas, entre outros. Duas grandes
imagens-lembranças suscitadas por Solo de Clarineta foram justa-
mente a infância e a casa, as quais poderiam ter alçado o patamar das
noções filosóficas bachelardianas de infância e casa oníricas, mas
essa compreensão parece ter chegado tardiamente ao pesquisador,
que disso deixou apenas algumas indicações sugestivas, mas nem
por isso, menos significativas.
As imagens têm o poder de despertar imaginações, orienta James
Hillman. E foi com esse conhecimento e compreensão que Raimundo,
no último capítulo, nos traz algumas das memórias-imaginações des-
pertadas pelas lembranças verissimianas tomadas como imagens.
Outra importância do livro é trazer à baila uma prática cientí-
fica feita numa perspectiva de diálogo com as Humanidades, nesse
caso específico, diálogo com uma obra memorialista, com a filo-
sofia, entre outros campos de conhecimento. E, além disso, porque
Raimundo se ancora em pressupostos dos estudos da complexidade
mobilizados especialmente por Edgar Morin. Ao se apropriar inte-
lectualmente também dessa abordagem metodológica, consegue
pensar a memória não só como matriz criativa, mas como produtora
de conhecimento novo sobre o antropos e a cultura.
Ao par dessas referências todas, Raimundo estabelece uma
relação de intimidade com a autobiografia verissimiana, contra-
riando a cisão cartesiana entre res cogitans (coisa pensante) e res
extensa (coisa pensada), a qual tem historicamente transbordado para
a pesquisa científica através de um método (científico) que separa
epistemologicamente sujeito e objeto do conhecimento.
Pensamos que elaborar um estudo científico dialogando com
lembranças-imagens de um escritor fortalece a proposta moriniana
18

de complexificação e religação dos saberes, – referindo-se a saberes


historicamente pensados de modo disjunto por uma forma de pes-
quisar resultante de um paradigma científico igualmente disjuntivo e
simplificador. Na pesquisa de Raimundo, a imaginação e as imagens
compõem as reflexões e pensamentos que formulam as elaborações
cientificas – o imagético-imaginário não é figurativo, o que denota
uma compreensão aberta de ciência, onde razão e imaginação são
polos complementares e dinâmicos.
Raimundo acaba por resvalar num tema solapado nessa ciência
disjuntiva, que é o pensar por imagens, ao que se chega realizando
um diálogo entre imaginações, o que se supõe no método de leitura
imaginativa. Mas, nem por isso, o pesquisador negligencia fatos e
acontecimentos das narrativas de vida verissimianas, destacadas das
lembranças do escritor.
Podemos dizer ainda que este estudo de Raimundo se constitui
num primeiro exercício de leitura imaginativa do pesquisador que, ao
abordar as lembranças autobiográficas verissimianas, entende-as como
imagens ativas, imagens que fomentam novas imagens, devaneios e
que, por fim, sugerem a existência de uma dada poética memorial
que se traduz por diferentes imaginações suscitadas no pesquisador.
Por tudo isso, acreditamos que este livro de Raimundo tem o
potencial de fortalecer pesquisas transdisciplinares e inaugurar novos
caminhos de investigação para estudos memoriais autobiográficos.
E o que traz sobre Verissimo? Essa talvez seja a cereja do bolo
aos amantes do escritor. Eis nosso convite à leitura do livro!

Ana Laudelina F. Gomes e Ozaías A. Batista2


Março de 2021.

2 Os dois autores foram, respectivamente, orientadora e co-orientador de Raimundo Paulino


Silva em seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no qual ele escreveu a dissertação
que dá origem a este livro. Ana Laudelina F. Gomes é professora colaboradora do referido
Programa e Ozaías A. Batista é professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Ambos
são doutores em ciências sociais, e atuam na linha dos estudos do imaginário dentro do
Grupo Mythos-Logos de Pesquisa: imaginário e parcerias do conhecimento/PPGCS/UFRN-
-CNPQ, do qual Ozaías é vice-líder e coordenador da linha de pesquisa Polilógica do mito e
do imaginário.
INTRODUÇÃO
O amor, como a arte, é uma das mais legítimas formas
de conhecimento.
Erico Verissimo1

Este livro é fruto da dissertação de Mestrado, intitulada –


Memória imaginativa nas lembranças de Erico Verissimo: uma
leitura de Solo de Clarineta –, defendida pelo Programa de Pós-
-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em agosto de 2020.
Para começo de conversa, em primeiro lugar, mostro como
conheci a obra do escritor gaúcho, em especial seu livro autobiográ-
fico Solo de Clarineta, e a forma como ela chegou as minhas mãos.
No verão de 1998, em Natal, numa linda tarde de sol, conver-
sava com um colega sobre os mais diversos assuntos do cotidiano.
Por gostar muito de literatura e sempre andar com um livro em mãos,
esse colega, que não gosta de ler, me perguntou se queria receber
dele uns livros que tinha em sua casa, presenteados por seu irmão
que mora no Rio de Janeiro. Logo respondi afirmativamente e, no
dia seguinte, ele me entregou um pacote com seis livros. Entre eles,
estava Solo de Clarineta, volume II, de Erico Verissimo.
Não obstante ter o hábito de anotar meu nome e data em todo
livro que adquiro, não é mais possível lembrar quais eram os autores
dos cinco livros recebidos do colega, por ter priorizado o do escritor
gaúcho. Até então não tinha lido qualquer um de seus livros, apenas
dados biográficos em obras que tratam da história da literatura no
Brasil. Embora soubesse que ele era o escritor de “O Tempo e o
Vento” e de “Olhai os Lírios do Campo”, não sabia que, junto com
Jorge Amado, eram os mais populares do Brasil.
Ambas essas obras se evidenciavam em termos de populari-
dade, pela razão de terem sido adaptadas para a televisão: “O tempo

1 Nota explicativa: Optei por adotar, neste texto, o nome de Erico Verissimo sem acento gráfico,
no “E” de Erico e no primeiro “i” de Verissimo. Segundo a professora Maria da Glória Bordini,
em e-mail recebido dia 19 abr. 2019, “Erico não usava os dois acentos. Embora a ortografia
oficial diga que se pode corrigir o que foge a ela nos nomes, eu sempre respeito à vontade
do escritor.
20

e o vento”, na TV Excelsior, direção de Dionísio Azevedo, em 1967


e “Olhai os lírios do campo”, novela de Geraldo Vietri e Wilson
Aguiar Filho, direção de Herval Rossano, TV Globo, em 1980.
Na década de 1970, o crítico literário Otto Maria Carpeaux
informava que o escritor brasileiro continuava sem poder susten-
tar-se apenas com as atividades literárias, havendo apenas duas:
Jorge Amado e Erico Verissimo (CARPEAUX, 1972). Isso tornou
Verissimo, não apenas um dos mais populares escritores brasileiros
de seu tempo como também um dos poucos que teve a atividade
literária como principal fonte de sustento econômico.
Mesmo tendo gostado muito de ler o livro de Verissimo que me
foi presenteado, a ideia de ingressar no Programa de Pós-gradua-
ção em Ciências Sociais (PPGCS-UFRN) só amadureceu em 2016,
quando tentei a seleção de mestrado, com o projeto “Erico Verissimo
e Solo de Clarineta: um estudo sociológico”, porém sem sucesso,
tendo conseguido aprovação na seleção do ano seguinte. Como a
linha de pesquisa para a qual entrei não orientava na linha do projeto
que apresentei, a banca consultou-me sobre a possibilidade de rever
a abordagem caso fosse aprovado, e concordei prontamente. O mais
importante para mim era trabalhar com o livro Solo de Clarineta,
somente. E fui aprovado.
De fato, para a dissertação do projeto inicial que entrei no Pro-
grama, resta muito pouco, somente Erico Verissimo e Solo de Clari-
neta. Hoje, ao olhar essa versão, penso que não tinha muito sentido
o que propus àquela altura, é tanto que boa parte dos autores citados
no projeto inicial saíram da lista de referências, a mudança em termos
conceituais e em termos gerais foi muito positiva, ao meu ver.
Enfim, neste livro, busco pesquisar uma obra de memórias
autobiográficas: o livro Solo de Clarineta do escritor gaúcho
Erico Verissimo.
Nascido em 17 de dezembro de 1905, na cidade de Cruz Alta,
localizada na região Centro-Norte do Rio Grande do Sul, a 346 km
de Porto Alegre, Erico Verissimo é o primogênito de uma família
de apenas dois irmãos. Seus pais pertenciam a famílias ricas e tra-
dicionais desse estado.
Verissimo é autor de uma vasta obra, aproximadamente 40
livros; entre os vários gêneros contemplados, encontram-se literatura
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 21

infantil, contos, narrativas de viagem, romances e suas memórias,


sendo que grande parte desses livros foi traduzida para diversos
idiomas (CHAVES, 1972), como por exemplo: “inglês, espanhol,
alemão, italiano, holandês, norueguês, russo, etc.” (FRESNOT, 1977,
p. 1). Do gênero autobiográfico, além de Solo de Clarineta, escre-
veu as seguintes narrativas de viagem: “Gato preto em campo de
neve” de 1941, “A volta do gato preto” de 1946, “México” de 1957
e “Israel em abril” de 1969 (CHAVES, 1972). Além de escritor,
foi tradutor de várias obras, pois dominava o inglês, o francês e
o espanhol.
Verissimo afirmou ter escrito Solo de Clarineta para ter a chance
de contar sua própria história, já que tantos o fizeram antes. A obra é
composta de dois volumes, o primeiro foi publicado em 1973, aos 68
anos do autor, e o segundo em 1976, após seu falecimento há um mês
antes de completar 70 anos, exatamente a 28 de novembro de 1975.
Ele deixara revisadas e impressas as primeiras 251 páginas desse
segundo volume. Com o aval da família do escritor, a editora Globo
organizou e transcreveu os originais restantes a fim de juntá-los ao
que já estava pronto (CHAVES, 1976). Verissimo tinha planos de
escrever um terceiro volume de memórias, já que pensava focar-se
nas pessoas reais e personagens imaginários que marcaram a sua
existência e a gênese de seus romances, mas não teve tempo, a morte
chegou primeiro (VERISSIMO, 1999).
O período quando escreveu essas suas memórias não está
explicitado em qualquer momento dos dois livros. Antonio Hohl-
feldt, professor e pesquisador da PUC-RS, em uma entrevista com
o escritor gaúcho, no ano de 1971, chega a questioná-lo sobre isso,
mas ele desvia o assunto: “acho que para fazer um trabalho sério,
preciso muito tempo, e depois... francamente não ando interessado
na personagem principal. A gente precisaria sangrar a gente mesmo
e outras pessoas, para ser sério, e isso não está me interessando”
(HOHLFELDT, 2003, p. 95). Não obstante a sua resistência em falar
sobre a escrita dessa obra, dois anos após veio essa revelação, “numa
carta a Autran Dourado, em 20 de julho de 1973, diz Verissimo:
adoeci dum livro, desta vez de memórias” (HOHLFELDT, 2003,
p. 95, grifos do autor).
Um livro de memórias, onde se escreve lembranças da infância,
da adolescência e da vida adulta, que narra aquilo que o memorialista
22

quer e consegue se lembrar. Segundo os historiadores, é menos


difícil escrever sobre acontecimentos passados do que do presente
(HOBSBAWM, 2002). Contrariamente, Verissimo adoeceu de suas
memórias, muito provavelmente por não tratar-se de sua própria
história, ou daquilo que ele lembrava dela e também do que suas
memórias ajudavam a inventar.
O escritor narrou suas memórias especialmente nos últimos cinco
anos de vida. Em carta escrita à amiga e escritora Ligia Fagundes
Telles, chega a dizer que sofreu da crise da página em branco mesmo
depois de ter escrito sua vasta obra, entre contos, romances e memórias.
O intelectual que escreve suas narrativas memorialísticas tem
seu estilo próprio, parece não haver normas muito rígidas para esse
gênero literário. Li várias e não consegui identificar uma sequer que
se assemelhasse com outra. Esse tipo de escrita, apesar de se parecer
com o “diário”, é bem diferente dele. O memorialista narra sua vida,
geralmente no final da carreira e o diarista escreve quase todos os dias
ou regularmente reportando-se a um dado dia, a exemplo do escritor
maranhense Josué Montello (1917-2006) que publicou seus diários2.
Diferente de Verissimo, que assinala em Solo de Clarineta ter se
arrependido de não ter escrito um diário quando estava escrevendo
sua obra mais conhecida, “O tempo e o vento”.
Um dos poucos escritores da geração de 1930 que não fez parte
diretamente da Semana de Arte Moderna, Verissimo foi, segundo o
crítico literário Wilson Martins (2002, p. 322), “[...] o mais popular
de todos os romancistas modernos do Brasil e o mais injustiçado
pela crítica”. Para Martins (2002), houve sempre por parte da crí-
tica uma atitude de reserva em relação a Verissimo, ou até mesmo
de hostilidade, por ele não viver no eixo Rio-São Paulo, de maior
hegemonia intelectual no Brasil.
Um desses críticos literários era Álvaro Lins, para quem o
escritor Verissimo “piorava sucessivamente de um romance para
outro” (LINS, 1963, p. 221), acrescentando ainda que seu estilo era

2 Membro da Academia Brasileira de Letras. Escritor de diários. Publicou-os, primeiramente,


em quatro volumes: “Diário da manhã”, “Diário da tarde”, “Diário do entardecer” e “Diário
da noite iluminada”. Depois reuniu esses quatro volumes, adicionados a mais dois, em dois
volumes, pela editora Nova Aguilar: no primeiro, “Diário da Manhã”, “Diário da Tarde” e do
“Diário Entardecer”. No segundo, “Diário da Noite iluminada”, “Diário das minhas vigílias” e
“Diário da madrugada”.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 23

“um elemento duvidoso e irregular em toda a obra” (LINS, 1963,


p. 222). Por outro lado, Verissimo é visto por Wilson Martins, como
o escritor “de maiores recursos técnicos, o de maior capacidade de
renovação e aquele, afinal, a quem estava reservada a missão de
revigorar o romance brasileiro, situando-o, num plano universal e
literário incomparável” (MARTINS, 2002, p. 322).
À parte as controversas da crítica literária especializada, trazer
uma obra autobiográfica de um escritor ficcional para a pesquisa
no campo das Ciências Sociais não requer, necessariamente, uma
perspectiva de sociologização da obra, mesmo considerando os con-
dicionamentos sócio-históricos de toda a escrita e de seu criador.
É importante ressaltar que esta pesquisa parte de abordagens
teórico-metodológicas abrangidas pela linha de pesquisa Comple-
xidade, Cultura e Pensamento Social, do Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (PPGCS/UFRN). Uma das principais propostas dos Estudos
da Complexidade é produzir conhecimento com base na religação
de saberes fragmentados em disciplinas e que não conversam entre
si; isso implica recusar a cisão entre as ciências e as humanidades,
entre as ciências da natureza e a cultura. A reforma do pensamento
que esses estudos propõem pretende “gerar intelectuais polivalentes,
abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido amplo” (CAR-
VALHO, 2005, s/p.). Edgar Morin é um dos sociólogos contemporâ-
neos mais eminentes nessa linha de pensamento. O estudioso critica a
separação entre ciências e humanidades e, consequentemente, a sepa-
ração/disjunção que se operou historicamente, entre dois estados do
antropos, o prosaico e o poético (MORIN, 2006). Religar ou rejuntar
essas duas dimensões do homem e da cultura seria um dos desafios
da contemporaneidade para se chegar a um pensamento complexo,
ou seja, de um pensamento que entrelace essas esferas de conheci-
mento que historicamente tornaram-se disjuntas (GOMES, 2016b).
O pensamento complexo busca conhecer melhor a condição
humana e, para tal, investe no entrelaçamento da ciência com as
humanidades, entre estas a literatura e sua linguagem poética, pois
ela “nos leva diretamente ao caráter original da condição humana”
(MORIN, 2006, p. 43). No romance, assim como no cinema, pode-
mos acessar o que é invisível nas ciências humanas naquilo que
“estas ocultam ou dissolvem os caracteres existenciais, subjetivos,
24

afetivos do ser humano, que vive suas paixões, seus amores, seus
ódios, seus envolvimentos, seus delírios, suas infelicidades [...]”
(MORIN, 2006, p. 43). Ambos, romance e cinema, “põem à mos-
tra as relações do ser humano com o outro, com a sociedade, com
o mundo” (MORIN, 2006, p. 43.). Enfim, “trata-se de demonstrar
que, em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de
música, de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre
a condição humana” (MORIN, 2006, p. 45).
Posso dizer que com essa proposta teórico-metodológica de
religação das duas culturas (científica e das humanidades) e de
outros saberes, “as ciências contemporâneas se abririam a uma
reorganização da racionalidade científica incluindo modos de pen-
samento e lógicas antes considerados não científicos” (WUNEN-
BURGER, 2003, p. 203).
Jean-Jacques Wunenburger, baseado principalmente em estudos
de Gilbert Durand, criador da Teoria do Imaginário, explica que a
história da ciência moderna tendeu a exaltar os poderes da razão
vendo-os ilustrados nas produções científicas, marginalizando a
imaginação e colocando o imaginário num papel negativo de obs-
táculo, acabando por antagonizar imaginário e racionalidade. Mas,
de fato, diz o pensador, essas esferas não são antagônicas pois “a
inteligentibilidade do mundo não é sem dúvida redutível a uma
pura atividade de conceptualização abstrata [...] e as representações
científicas] não rompem fundamentalmente com as estruturas inte-
lectuais profundas, cujas imagens são as primeiras manifestações”
(WUNENBURGER, 2003, p. 265).
Ana Laudelina F. Gomes (2016a) relaciona a proposta de reli-
gação dos saberes de Edgar Morin para a reforma do pensamento
a concepções de imaginário e imaginação simbólica presentes da
filosofia estética de Gaston Bachelard, principalmente nas sinali-
zadas por Jean-Jacques Wunenburger, um dos mais importantes
estudiosos e difusores das obras bachelardiana e de Gilbert Durand
na atualidade. Segundo a pesquisadora, Gaston Bachelard fala-nos
da complexidade do homem contemporâneo cindido em duas esfe-
ras de representação opostas, o conceito e a imagem, a razão e a
imaginação (GOMES, 2016a) e os estudos da complexidade viriam
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 25

no sentido também de enfrentar e, quiçá, superar essa cisão, através


de uma nova forma de fazer ciência que dê conta desse diálogo.
Assim, minha pesquisa construiu um objeto de estudo que entre-
laça saberes; no caso, as ciências sociais em dialogia com a literatura
e com a filosofia. Erico Verissimo entra com seu Solo de Clarineta
e Gaston Bachelard e outros teóricos do imaginário, da imagem e
da imaginação, entram com a abordagem teórico-metodológica que
usei para ler as imagens literárias do livro, principalmente em seu
caráter de memória-imaginação ou memória imaginativa. Portanto,
este estudo baseia-se numa perspectiva transdisciplinar que procura
tecer em conjunto vários campos de conhecimento em torno de um
tema que é por natureza complexo, exigindo e justificando tal método.
Aqui não se trata de pensar memórias no plural, mas da memó-
ria no singular, pois uma faculdade humana.
Este livro tem a finalidade de observar lembranças presentes na
autobiografia Solo de Clarineta, de Verissimo, buscando refletir sobre
as articulações entre memória e imaginação criadora, resultando na
compreensão de uma memória imaginativa. Em face disso, assim
formulei a pergunta de partida: o que é possível dizer da memória
autobiográfica de Erico Verissimo tendo Solo de Clarineta como
balizador? A intenção é falar não somente dos conteúdos memoriais,
mas do modo como sua memória opera.
Quanto aos objetivos, o objetivo geral consistiu em refletir sobre
as lembranças da autobiografia Solo de Clarineta buscando identificar
as articulações entre memória e imaginação criadora. Como objetivos
específicos, sublinhei: a) identificar em Solo de Clarineta elementos
que possam mostrar Erico Verissimo em vida e obra, além de trazer
passagens históricas do tempo em que ele viveu e escreveu sua obra
como um todo e essa autobiografia em especial; b) observar lembran-
ças de Verissimo que remetem a conteúdos oníricos.
Além da filosofia estética de Gaston Bachelard, a pesquisa se
ampara em estudos: a) da complexidade de Edgar Morin; b) do
imaginário de Jean-Jacques Wunenburger; c) de Psicologia Arque-
típica de James Hillman, d) de comentadores e outros estudiosos
da imaginação literária, nomeadamente de minha orientadora Ana
Laudelina Ferreira Gomes, meu co-orientador Ozaías Batista (UFPI)
e da professora Karlla C. de Souza (UERN), todos pesquisadores do
26

Grupo de Pesquisa Mythos-Logos do PPGCS/UFRN, ao qual me


integrei ao longo do estrado.
Com base na abordagem bachelardiana aberta em “A poética
do devaneio” (BACHELARD, 2009) e seguida em “A poética do
espaço” (BACHELARD, 2000), conhecida por abordagem feno-
menológica bachelardiana, a leitura de imagens literárias implica
no leitor perguntar-se o que elas lhe provocam a dizer (e não o que
elas dizem), porque elas só “dizem” pela mediação de um leitor ele
mesmo parte desse dizer. Essa afirmação está sustentada pelas noções
bachelardianas de ressonância e repercussão (BACHELARD, 2000),
as quais mostram que toda leitura de imagem poética é uma leitura
daquilo que repercute e ressoa no leitor. Em síntese, nenhuma preten-
são de objetividade ou objetivação é buscada, uma vez que isso não
seria possível, mas é importante salientar que usar essa abordagem
bachelardiana da imagem não implica em sua subjetivação absoluta
(GOMES, 2016b), haja vista a comunicabilidade da imagem entre
diferentes leitores, ao que Bachelard denomina por transubjetividade
da imagem (BACHELARD, 2000).
Do ponto de vista teórico, sigo a esteira de Ana Laudelina F.
Gomes (2016b), quem, com base em Bachelard e Wunenburger, ao
trata da relação entre ciência e imaginário defende que aprender a
pensar por imagens subentende usar de métodos imaginativos para
a leitura de imagens, e que não é possível ler imagens com métodos
puramente racionais. Apesar disso, há sempre uma pretensão de
articular o racional e o imaginário, o pensamento e o sonho.
Becker (1999) lembra que na autobiografia o escritor não se
preocupa em validar fatos, mas antes de tudo com o impacto emocio-
nal e dramático, com a forma e fantasia e, por fim, com a criação de
um mundo simbólico e artisticamente unificado. Ao mesmo tempo,
“o autor autobiográfico se propõe a explicar sua vida para nós, se
comprometendo, assim, com a manutenção de uma estreita conexão
entre a história que conta e aquilo que uma investigação objetiva
poderia descobrir” (BECKER, 1999, p. 102). Nesse sentido, “os
estudos autobiográficos consistem num tipo de investigação que
visa captar, através de um relato ou narrativa, a interpretação que
determinada pessoa faz do seu percurso de vida, com a sua respec-
tiva diversidade de experiências e sentimentos pessoais que tiveram
lugar ao longo do tempo” (AMADO; FERREIRA, 2013, p. 169).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 27

Meu estudo está mais próximo dessa segunda definição. A diferença


é que não tive a pretensão de “analisar” as narrativas verissianas de
Solo de Clarineta, mas muito mais realizar a leitura imaginativa de
imagens, que é o caminho da filosofia poética bachelardiana.
Em seu livro clássico “O pacto autobiográfico”, Philippe Leje-
une diz que autobiografia é uma “narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza
sua história individual, em particular a história de sua personali-
dade” (LEJEUNE, 2014, p. 16). Levando essa definição em conta
e agregando a abordagem bachelardiana, busquei explorar a poe-
ticidade dessa narrativa do escritor sobre si, ao que chamei por
poética memorial autobiográfica, apresentando a imaginação poética
verissimiana articulada à memória autobiográfica.
A leitura de Simone Vierne (1994) me ajudou a compreender a
estreita relação entre o imaginário e o científico. Para Vierne (1994,
p. 9), o imaginário “também é considerado como um dos motores
da pesquisa, nas ciências que já não ousam chamar-se de ‘exatas’,
se exato quer dizer ponto final, estado último e definitivo, verdade
intangível”. Nessa obra ela reúne diversos autores e traz uma gama
de discussões que relacionam a ciência e o imaginário.
Bachelard aparece nessa obra, segundo Vierne, mostrando que
existe o caminho que relaciona o saber científico e o saber nascido
do imaginário (VIERNE, 1994). Também para Milner (1994, p. 27),
“parece haver poucas dúvidas que a maneira como essa epistemo-
logia foi estruturada levou Bachelard a contrapor os dois modos de
conhecimento, o científico e o poético, a ponto de fazer do segundo
objeto de uma esplendida reabilitação”.
Em se tratando das artes, das visuais à literatura, costuma-se
conceber que seus produtores sempre partem de uma dada realidade,
de uma experiência, de uma observação e isso possibilitaria que suas
obras sejam tomadas como expressões autobiográficas. Essa maneira
de compreender as artes e a literatura é objeto da crítica que faz à
psicanálise a qual tentaria explicar “a flor pelo estrume”, tomando
a imagem sempre como simulacro da realidade (GOMES, 2016b).
Seguindo a trilha do método fenomenológico de Bachelard (2000;
2009), procurei fazer o contrário, sob a realidade (narrativa auto-
biográfica verissiana) buscar a poeticidade da imagem. Tal método
não se propõe a descrever empiricamente fatos, tampouco analisar
28

causalidades biográficas ou sócio-históricas da obra literária, o que


não significa ignorar essas dimensões enquanto contextos de pro-
dução da escrita autobiográfica (GOMES, 2016b). Mas a intenção
principal de meu estudo foi a de ler a poética memorial autobio-
gráfica de Verissimo através da imaginação criadora, ou seja, ler
imagens através da memória-imaginação.
Busquei deter-me na leitura de Solo de Clarineta de forma
sistemática, ou seja, de início, fiz uma leitura de observação e pos-
teriormente uma leitura imaginativa, tentando alcançar meus pró-
prios devaneios poéticos de leitor a partir dos devaneios poéticos do
escritor. Devaneio poético e devaneio poético de leitor (ou de leitura)
são noções bachelardianas, imprescindíveis à leitura imaginativa de
imagens literárias (BACHELARD, 2009).
Em síntese, tratou-se de uma pesquisa documental, que teve
como campo de estudo a obra de memórias “Solo de Clarineta”, em
seus dois volumes, e como principal sujeito da pesquisa, as imagens
poéticas suscitadas por essa obra do escritor Erico Verissimo, já que
se trata de sua autobiografia em sua dimensão poética.
Em termos de organização, este livro compreende três capítulos
distintos, porém articulados. No primeiro, apresento Erico Verissimo
em seu tempo e sua obra.
O objetivo do segundo capítulo consistiu em identificar, a partir
da leitura que fiz de Solo de Clarineta, as lembranças de infância que
Verissimo narra, focando-me especialmente nos dilemas e dramas
familiares por ele vividos, e na casa-sonho, outra noção bachelar-
diana adotada aqui (BACHELARD, 2000).
No terceiro capítulo, realizo as leituras de imagens de Solo de
Clarineta, articulando as memórias de Verissimo aos espaços poé-
ticos e de imaginação, nos termos bachelardianos. Para dar conta
dessa articulação, me utilizei da leitura imaginativa que fiz dessa
obra, buscando mostrar que é possível chegar a uma poética memo-
rial autobiográfica. Assim, exponho as memórias de Verissimo, nos
mais diversos e diferentes temas, procurando mobilizar as teorias
que me embasei e iluminar tais lembranças/memória a partir da
minha própria imaginação, como requer a noção bachelardiana de
devaneio de leitura/leitor (BACHELARD, 2000).
SOLO DE CLARINETA NA VIDA
E OBRA DE ERICO VERISSIMO
A poética da criação literária, em Erico Verissimo, fiel a seu
projeto comunicativo, não esconde seu compromisso com a
existência prática dos homens, quer fazendo-lhe jus e tornan-
do-a compreensível pela mimese, quer avaliando-a e lançando
lhe luz pela racionalidade ética.
Maria da Glória Bordini

Neste capítulo, apresento o escritor cruz-altense, seu tempo


e sua obra, utilizando “Solo de Clarineta” como fonte primária e
campo de estudo deste trabalho.
Tal como ressaltei, mesmo sem saber exatamente quando come-
çou a escrever o primeiro volume dessas suas memórias, uma vez
que em nenhum momento da narrativa isso aparece, procurei em
seus comentadores algo que pudesse fornecer essa informação.
Conforme já assinalei, o primeiro volume é publicado em 1973
e, por conseguinte, começa a escrever o segundo. Uma das minhas
preocupações é saber em que período de sua vida iniciou a narrativa.
Não encontrei, nem no primeiro, nem no segundo volumes, qualquer
trecho que mostrasse em que ano começou a escrevê-los. Porém,
uma das estudiosas de sua obra, Maria da Glória Bordini, professora
da PUC-RS, em seu livro “Criação literária em Erico Verissimo”,
diz que constava nos cadernos de notas de Verissimo, “anotações
profusas e esparsas para suas memórias, [...]” (BORDINI, 1995,
p. 164). Essa pesquisadora, para escrever esse livro, uma versão de
sua tese de doutorado, teve acesso a todo acervo do escritor gaúcho,
inclusive aos manuscritos e originais, com autorização expressa da
esposa e filhos do escritor.
Nesse trecho citado, fica claro que em 1970 Verissimo já tinha
material de pesquisa para escrever suas memórias. É bom lembrar
que este código era usado por Verissimo em suas anotações, con-
forme a referência trazida por Bordini (BORDINI, 1995, p. 291):
“04a0024-70 – Caderno de notas de capa xadrez verde, com o pri-
meiro planejamento e profusão de dados para “Solo de Clarineta”,
30

incluindo a ideia de Dança com máscaras. Citação de Giles goat-boy


de John Barth e notas sobre palavras, semântica e mito”.
Convém ressaltar que a ideia de escrever “autobiografia”, nem
sempre foi um dos objetivos de Verissimo. A propósito, em 1947,
disse: “Creio que nunca escreverei memórias pela simples razão de
não ter sido uma vida novelesca nem excepcionalmente interessante”
(VERISSIMO, 1999, p. 179).
Porém, em 1966, a convite da editora Aguilar, Verissimo
escreve uma breve autobiografia, intitulada “O escritor diante do
espelho”. Passados seis anos, muitos dos seus amigos não sabiam
notícias desse texto autobiográfico. Um dia, seu editor, José Otávio
Bertaso, depois de tê-lo lido, aconselhou Verissimo a publicá-lo
em formato de livro (VERISSIMO, 1999). Outros amigos, escrito-
res, tais como Fernando Sabino, Josué Guimarães, depois de terem
tomado conhecimento desse texto, espantaram-se por tratar-se de
uma obra desconhecida. Nas palavras de Verissimo (1999, p. 180),
“a propósito dum documentário cinematográfico que pretende fazer
a meu respeito, meu amigo Fernando Sabino leu “O escritor diante
do espelho” e espantou-se de ver que esse ensaio praticamente estava
inédito, ou melhor, era muito pouco conhecido”. O romancista Josué
Guimarães tinha a mesma opinião (VERISSIMO, 1999).
Em meio a tantos apelos, foi a partir do pedido de Maurício
Rosemblatt, que Verissimo decidiu ampliar e melhorar o texto que
resultou em Solo de Clarineta (VERISSIMO, 1999). Numa das pas-
sagens da entrevista, fecha um bloco dizendo: “Espero terminar o
trabalho até fins do próximo agosto” (VERISSIMO, 1999, p. 180).
Assim, compreendo que, além dessa justificativa, ele aponta
outra em Solo de Clarineta, em seu segundo volume: “[...] andam
por aí tantas informações biográficas erradas a meu respeito,
mesmo quando bem-intencionadas, que me senti na obrigação
e com o direito de contar eu mesmo a minha história” (VERIS-
SIMO, 1976, p. 321).
Diante dessas informações, posso supor que Verissimo começa
a escrever o primeiro volume de Solo de Clarineta em 1970 e o
termina em 1973, ano que foi publicada a primeira edição.
Quanto ao segundo volume, por sua vez, foi publicado em 1976,
um ano após a morte de Verissimo. Em uma carta que escreveu à
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 31

escritora Lygia Fagundes Telles, em 29 de outubro de 1974, alude


ao momento de escrita do segundo volume: “Continuo burro e atra-
sado no segundo volume de SOLO. [...] Vou voltar ao SOLO. Estou
empacado em Portugal. Feitiço de Salazar? Sei lá” (CLB, 2003,
p. 25). Diante disso, posso imaginar as dificuldades que ele teve ao
escrever essa obra, uma vez que se arrependeu de não ter escrito
um diário, precisamente quando escrevia a trilogia “O Tempo e o
Vento” (VERISSIMO, 1973), ou seja, a escrita se desenvolvia à
medida em que ia trazendo elementos da memória, fatos, aconte-
cimentos, lembranças, episódios, sonhos, entre outros que deram
corpo à obra autobiográfica.
Ainda a respeito desse segundo volume, em outra entrevista
à revista Manchete, publicada em 8 de março de 1975, Verissimo
fala em Solo de Clarineta:

Trabalho com método, nessas coisas sou conservador. Não cos-


tumo escrever pela manhã. Reservo essas horas para caminhar,
ao lado de Mafalda. Depois das três, me sento à máquina. Nesse
segundo volume de Solo de Clarineta, conto minhas andanças
pelo mundo, sempre como homem livre, e me pronunciando
como tal (VERISISMO, 1999, p. 206).

Verissimo, tal como escreve em Solo de Clarineta, volume


II, sinaliza um dos propósitos do livro que era o de contar as suas
impressões do mundo, das diversas viagens que fez, das muitas
cidades e países por onde passou.
Nessa mesma entrevista, Verissimo conta que ainda preten-
dia escrever o terceiro volume das suas memórias, conforme suas
próprias palavras: “Preciso acabar as minhas memórias. Ainda não
terminei o segundo volume. E preciso escrever o terceiro, em que
faço uma espécie de autoanálise, algumas confissões... sempre como
homem livre” (VERISSIMO, 1999, p. 208).
Levando em conta o tempo em que Verissimo começou a escre-
ver Solo de Clarineta, em 1970, aos 65 anos de idade, o período de
tempo por ele narrado vai da origem de sua família (avós paternos)
até o ano de 1965, já homem maduro, ano em que publica um de
seus últimos romances, “O Senhor Embaixador”.
32

Importante salientar é a relação de sua narrativa autobiográ-


fica com o tempo. Não se trata de um tempo contínuo, encadeado,
com começo, meio e fim. Sua narrativa acontece mais num tempo
descontínuo, de vai e vem, onde há claramente uma seleção dos
conteúdos narrados em face de suas predileções.
Imagino que ele selecionou contar somente o que conside-
rava relevante e o que seu leitor pudesse apreciar saber, porém não
implica dizer que não possa ser lida e apreciada por um público leitor
que não conhecesse a obra verissimiana, tal como aconteceu comigo.
No quadro abaixo trago o sumário de cada um dos dois volumes
de Solo de Clarineta.

Quadro 1 – Sumários dos dois volumes de solo de clarineta


Solo de Clarineta – Volume I Solo de Clarineta – Volume II

Álbum de família O arquipélago das tormentas

A primeira farmácia Sol e mel

A ameixeira-do-Japão Entra o senhor Embaixador

A segunda farmácia Mundo velho sem porteira

Em busca da casa e do pai perdidos Espanha

O mausoléu de mármore Holanda

O escritor e o espelho

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dois volumes de


Solo de Clarineta (VERISSIMO, 1973; 1976).

No primeiro volume, o tempo por ele narrado compreende a sua


infância em Cruz Alta, os três anos passados no Colégio Cruzeiro do
Sul, em Porto Alegre (1920-1922), o regresso à cidade natal, onde
viveu momentos de muitas dificuldades financeiras e emocionais. A
falência da farmácia de seu pai foi um dos motivos para ele não mais
voltar à capital gaúcha, deixando de concluir o último ano do antigo
ginásio (correspondente hoje ao 9º ano do Ensino Fundamental).
Associado a isso, um acontecimento que marcou indelevelmente
sua vida foi a separação de seus pais, o que para ele implicou num
momento inesquecivelmente ruim, embora, depois disso, tenha saído
em busca do lar perdido (VERISSIMO, 1973).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 33

Ainda nesse volume, destaco os momentos, quase sempre difí-


ceis que viveu e escreveu seus primeiros livros, de “Fantoches” à
“Saga”. Com este livro, encerra-se a primeira fase de sua obra roma-
nesca. Para Verissimo (1973), este é considerado seu pior livro. A
partir da publicação do primeiro volume da trilogia – O continente –,
já vivia em condições de se sustentar economicamente sem precisar
trabalhar em outras ocupações que não a de seu ofício de escritor,
embora em 1938, com o estouro de venda, já podia dizer que daria
certo viver dos direitos autorais.
Há de se notar um dado curioso no tocante a esses dois livros.
Para Verissimo (1973), “Saga” é considerado seu pior livro enquanto
“O Continente” considerou como a sua obra prima.
Quanto à publicação da sua trilogia “O tempo e o vento”, Veris-
simo publica “O Continente” em 1949 e “O Retrato” em 1951.
Porém, para publicar o terceiro e último volume houve um espaço de
onze anos entre este e o segundo. Ou seja, “O Arquipélago” foi publi-
cado em 1962. Essa obra foi aquela que o consagrou como escritor.
Ainda nesse primeiro volume de Solo, escreve sobre o tempo
em que ficou sem conseguir escrever, pelo fato de ter passado
três anos trabalhando no Departamento de Assuntos Culturais da
Organização dos Estados Americanos (OEA), de 1953 a 1956
(VERISSIMO, 1973).
No segundo volume, começa a narrar a chegada a Porto Ale-
gre depois dos três anos em Washington (trabalhando como dire-
tor de Assuntos Culturais da OEA), e em especial o casamento
da sua filha Clarissa com um físico norte-americano. Conta de
outros momentos de dificuldades, como quando sofre seu pri-
meiro enfarte, em 1961, aos 56 anos (VERISSIMO, 1976). Nesse
período, foi impossível continuar a escrita do terceiro volume
da trilogia, “O Arquipélago”. Além disso, muitos outros fatores
o impediram de fechar o ciclo da trilogia, o que levou um longo
período, mais de dez anos, conforme diz: “Em março de 1962
pinguei o ponto final em “O Arquipélago”, remeti imediatamente
os originais ao meu editor e concluí que merecia umas férias
mediterrâneas” (VERISSIMO, 1976, p. 39).
No quadro abaixo listo as obras publicadas do autor, segundo
o gênero e o ano da 1ª edição.
34

Quadro 2 – Obras publicadas de Erico Verissimo


Gênero literário Título/ano da 1ª edição

• Clarissa (1933)
• Caminhos cruzados (1935)
• Música ao longe (1936)
• Um lugar ao sol (1936)
• Olhai os lírios do campo (1938)
• Saga (1940)
Romance • O resto é silêncio (1943)
• O Continente, 2 volumes (1949)
• O Retrato, 2 volumes (1951)
• O Arquipélago 3 volumes: (vol. I e II, 1961 – vol. III, 1962)
• O Senhor Embaixador (1965)
• O Prisioneiro (1967)
• Incidentes em Antares (1971)

Conto • Fantoches (1932)

Novela • Noite (1954)

• Gato preto em campo de neve (1941)


• A volta do gato preto (1946)
Narrativa de viagem
• México (1957)
• Israel em abril (1969)

• A vida de Joana d’Arc (1935)


• As aventuras do avião vermelho (1936)
• Os três porquinhos pobres (1936)
• Rosa Maria no castelo encantado (1936)
• Meu ABC (1936)
• As aventuras de Tibicuera (1937)
Literatura infanto-juvenil
• O urso com música na barriga (1938)
• A vida do elefante Basílio (1939)
• Outra vez os três porquinhos (1939)
• Viagem à aurora do mundo (1939)
• Aventuras no mundo da higiene (1939)
• Gente e bichos (1956)

• Reflexões sobre o romanceiro (1937)


• O romance de um romance (1944)
• Sol, mar e samba (1945)
• Entre Deus e o Pobre Diabo (1946)
• Viagem a Arizona (1946)
• Língua e caráter (1947)
Artigos e crônicas • Acendamos nossos tocos de velas (1959)
• Minhas lembranças de Aldous Huxley (1963)
• Um escritor diante do espelho (1966)
• Autocrítica de Erico Verissimo (1966)
• Os caminhos cruzados de Porto Alegre (1967)
• Quando eu era bancário (1975)
• Em primeira mão, um Erico quase esquecido (1987)

continua...
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 35
continuação
Gênero literário Título/ano da 1ª edição

• Brazilian Literature – an Outline3 (1945)


Ensaio
• Rio Grande do Sul (1973)

Biografia • Um certo Henrique Bertaso (1972)

• Solo de Clarineta (vol. I, 1973 – vol. II, 1976).


Autobiografia
• O escritor diante do espelho (1966)

Fonte: Elaborado pelo autor4, a partir de dados extraídos de Cadernos


de Literatura brasileira, Instituto Moreira Sales, 2003.

Conforme já assinalei, além de Solo de Clarineta, Verissimo


escreveu apenas um livro autobiográfico, intitulado “O escritor
diante do espelho” (VERISSIMO, 1967). Porém, também escreveu
biografia, “Um certo Henrique Bertaso”, seu único livro nesse
gênero. De fato, ao ler esse livro, me deparei com relatos de con-
vivência e amizade que teve com seu editor, Henrique Bertaso,
vinculado à editora Globo em Porto Alegre. Conforme ele mesmo
diz: “Mas afinal de contas estou tentando escrever minhas lem-
branças de Henrique Bertaso e não uma autobiografia” (VERIS-
SIMO, 1996a, p. 11).

Quadro 3 – Erico Verissimo: obras traduzidas e respectivos anos de edição


Língua Títulos

• Das Bildnis des Rodrigo Cambará [Um certo capitão Rodrigo] (1955)
• Die Zeitund der Wind [O tempo e o vento] (1956)
• Nacht [Noite] (1956)
Alemão
• Mexiko (1958)
• SeineExzellenz der Botschafter [O senhor embaixador] (1967)
• Die LilienaufdemFelde [Olhai os lírios do campo] (1974)

continua...

3 Único livro escrito por Verissimo em língua estrangeira. Com tradução de Maria da Gló-
ria Bordini, foi publicado pela Editora Globo, intitulado Breve história da literatura brasileira
(VERISSIMO, 1995).
4 Para listar as obras, além de Solo de Clarineta, levei em conta duas fontes: “O contador de
história”, livro organizado por Flávio Loureiro Chaves (1972), com a participação de vários
colaboradores, publicado em 1972 e Cadernos de Literatura Brasileira, publicação organizada
pelo Instituto Moreira Sales (2003).
36
continuação
Língua Títulos

• Mirad los Liriosdel Campo [Olhai os lírios do campo] (1940)


• Mirad los Liriosdel Campo [Olhai os lírios do campo] (1944)
• Caminos Cruzados [Caminhos cruzados] (1944)
• Mirad los Liriosdel Campo [Olhai os lírios do campo] (1947)
• Lo Demás Es Silencio [O resto é silêncio] (1945)
• Saga (1946)
• Musica a los Lejos [Música ao longe] (1946)
• El Gato Preto em la Nieve [Gato preto em campo de neve] (1947)
Espanhol
• Clarissa (1947)
• Los Argonautas [A volta do gato preto] (1949)
• Noche [Noite] (1957)
• El Tiempo y elViento [O tempo e o vento] (1953)
• México (1959)
• El Prisionero [O prisioneiro] (1971)
• Incidente en Antares (1975)
• El Señor Embajador [O senhor embaixador] (1984)

Finlandês • AntaresinValtiaat [Incidente em Antares] (1980)

• Le Temps et leVent [O tempo e o vento] (1955)


• L’Inconnu [Noite] (1955)
Francês
• Le Temps et le Vent (1996)
• Le Portrait de Rodrigo Cambará [O retrato] (1997)

Holandês • De Tijd em de Wind [O tempo e o vento] (sd)

Húngaro • A Többi NémaCsend [O resto é silêncio] (1967)

Indonésio • Ketika Hati HarusMemilih [Olhai os lírios do campo] (1990)

• Crossroads [Caminho cruzados] (1943)


• The Rest Is Silence [O resto é silêncio] (1946)
• Consider the Lilies of the Field [Olhai os lírios do campo] (1946)
Inglês • Time and the Wind [O tempo e o vento] (1951)
• Mexico (1960)
• Night [Noite] (1956)
• His Excellency the Ambassador [O senhor embaixador] (1967)

• Il Resto ÈSilenzio [O resto é silêncio] (1949)


Italiano • Tempo Senza Volto [O tempo e o vento] (1953)
• Messico [México] (1964)

• No no Yuri wo Miyo [Olhai os lírios do campo] (1996)


Japonês
• Harukanaru Shirabe [Música ao longe] (1999)

Norueguês • Natt [Noite] (sd)

Polonês • Incidentla Antares [Incidente em Antares] (1982)

continua...
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 37
continuação
Língua Títulos

• Incidentla Antares [Incidente em Antares] (1975)


• Domnul Ambasador [O senhor embaixador] (1981)
• Um anume Cãpitan Rodrigo [Um certo campitão Rodrigo] (1993)
• Ana Terra (1993)
• Razboiul [O continente I] (1994)
Romeno
• Teiniaguá – Frumosa Luzia [O continente II] (1994)
• Roza Vânturilor [O retrato I] (2000)
• Chantecler [O retrato II] (2001)
• Úmbria Îngerului [O retrato III] (2001)
• Incidentla Antares [Incidente em Antares] (2002)

Russo • O senhor embaixador (1969)

• [Enxerto de O retrato] In Fran Urskog Till Megastad (Da mata


Sueco virgem à metrópole; trata-se de uma coletânea de textos de autores
brasileiros) (1994)

Tcheco • Incident v Anterasu [Incidente em Antares] (1977)

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados extraídos de Cadernos


de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Sales, 2003.

Abaixo, apresento fotografias de Verissimo e sua família, colé-


gio onde estudou e capas de seus livros.

Fotografia 1 – Pais de Erico Verissimo

Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira, Erico Verissimo,


Instituto Moreira Sales, n. 16. nov. 2003.
38

Fotografia 2 – Erico Verissimo na idade de 4 anos

Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira, Erico Verissimo,


Instituto Moreira Sales, n. 16. nov. 2003.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 39

Fotografia 3 - Casa onde Verissimo nasceu

Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira, Erico Verissimo,


Instituto Moreira Sales, n. 16. nov. 2003.

Fotografia 4 – Fachada do Colégio Cruzeiro do Sul em Porto Alegre

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.
40

Fotografia 5 – Capas de Solo de Clarineta, volume I


(1973) e II (1976) (1ª edição) Editora Globo

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.

Fotografia 6 – Capas de Solo de Clarineta, volume I (2005) e


II (2005) (20ª edição), Editora Companhia das Letras

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 41

Fotografia 7 – Capa de Fantoches, 1932

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.

Fotografia 8 – Capa de Incidentes em Antares, 1971 (1ª edição)

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.
42

Fotografia 9 – Capa de Saga, 1940 (1ª edição)

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.

Fotografia 10 – Capa de O continente, 1949 (1ª edição)

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 43

Fotografia 11 – Capa de O continente, 1995 (33ª edição)

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.

Fotografia 12 – Capa de O continente, versão em espanhol, 1953

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.
44

Fotografia 13 – Capa de Brazilian Literature – na Outline, 1945

Fonte: Imagens da Internet. Disponível em: www.


google.com.br. Acesso em: 14 abr. 2019.

Todas essas fotografias, tanto dos pais de Verissimo, da casa


onde nasceu, dele com 4 anos de idade e capas de livros, levam-
-me a ler, não apenas fisicamente, mas de modo imaginativo, ou
seja, com a memória imaginativa, as lembranças de Verissimo em
Solo de Clarineta. Isso para apresentar, no próximo capítulo, as
lembranças do tempo e sonho de Verissimo na infância, através da
leitura imaginativa.
TEMPO E ESPAÇO NOS SONHOS
DE ERICO VERISSIMO:
considerações sobre infância e casa
A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda,
e como recorda para contá-la.
Gabriel Garcia Márquez

Neste capítulo, e no próximo, me aproprio de ideias e noções


de pensadores do imaginário, tais como Gaston Bachelard, James
Hillman, Jean-Jacques Wunenburger e alguns de seus comentadores,
os quais me dão suporte teórico que me permite realizar uma leitura
imaginativa da poética memorial autobiográfica de Solo de Clarineta.
O objetivo deste capítulo é identificar, a partir da leitura que
fiz de Solo de Clarineta, as lembranças que Verissimo narra de sua
infância, focando especialmente nos dilemas e dramas familiares por
ele vividos, e a casa sonho, noção bachelardiana da qual falarei mais
adiante, entre outros aspectos da vida do escritor.
Gaston Bachelard, filósofo e ensaísta francês, é um dos autores
que me ajuda a compreender as memórias-sonho de Verissimo, a
partir da leitura de imagens que procurei fazer, precisamente do que
propõe nos seus livros “A poética do espaço” (2000), “A poética do
devaneio” (2009) e “Fragmentos de uma poética do fogo” (1990),
livros que contemplam sua fenomenologia da imaginação.
James Hillman é um psicoterapeuta analítico norte-americano,
que teve como base os estudos de Carl Jung, com quem estudou
e sucedeu na direção do Instituto Zurique, na Suíça, durante uma
década. Fundador da abordagem de estudos da cultura contemporâ-
nea denominada Psicologia Arquetípica, baseada no pressuposto da
base poética da mente, das imagens arquetípicas, e da personificação
mítica do imaginário (HILLMAN, 1995).
Desse autor, proponho demonstrar como a imaginação criadora
(poética) funda a memória, como a imaginação criadora ligada ao
desejo, à personificação de um mito pessoal cria os percursos, esco-
lhe a modulação. Nesse sentido, Hillman me faz pensar a ideia de
que nós nos construímos como personagens míticos. É desse modo
46

que pretendo dizer desse personagem mítico que Erico Verissimo


construiu em Solo de Clarineta, além das categorias de análise que
eu identifico nessa autobiografia.
Jean-Jacques Wunenburger é um filósofo francês contemporâneo,
discípulo de Gaston Bachelard e de Gilbert Durand, uma das grandes
autoridades atuais nos estudos do imaginário. Especialista em Filosofia
das Imagens, sua obra busca uma aproximação com a antropologia
para analisar símbolos e mitos nas suas relações com o racionalismo
no mundo contemporâneo. Desse pensador, busco compreender o ima-
ginário em sua dimensão simbólica (GOMES, 2016a), uma vez que é
através da leitura imaginativa de imagens que medito Solo de Clarineta.
Gomes (2016a) defende que uma proposta de religação dos sabe-
res, tal como propugnada por Edgar Morin (2006), pode ser pensada
também com base na obra de Gaston Bachelard, e que ela está cen-
trada na compreensão do imaginário em sua dimensão criadora (em
oposição a uma dimensão meramente reprodutora). Mas o que isso
significa exatamente? Significa que as imagens são capazes de suscitar
estados poéticos nos leitores, de fazê-los imaginar, ao serem lidas e
trazidas para o campo acadêmico, não devem ser reduzidas à mera
ilustração de conceitos e teorias científicas, uma vez que não podem
ser entendidas numa perspectiva mimética, pois são criadoras de novas
realidades, são instauradoras de inventividades (GOMES, 2013). Ou
seja, o imaginário remete ao onírico, ao sonho, à imaginação. Buscar
acessar a imaginação que dinamiza um imaginário seria o maior sen-
tido da leitura imaginativa de imagens (GOMES, 2016a).
Assim, observo as lembranças de Verissimo que remetem a
conteúdos oníricos, articulando-as com narrativas de imaginação. O
próprio Verissimo demonstra consciência dessa possibilidade em seu
primeiro volume, ao alertar o leitor que “não esperem que estas memó-
rias formem um documento histórico [...]. São apenas uma história
particular – uma história em tom de quase romance”.5 Esse trecho me
traz à memória o romance de Carlos Heitor Cony intitulado “Quase
Memória, Quase Romance” pois, como diz o autor, nele, “além da lin-
guagem, os personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente,
e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes do registro civil.
Uns e outros são fictícios” (CONY, 1995, p. 7). Em todo livro, Cony

5 No preambulo de Solo de Clarineta, vol. I, 1973.


MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 47

mescla narrativas memoriais com ficção, ou seja, narra fatos de sua vida
real (memórias de infância) com a poética romanesca autobiográfica.
E se memória para Bachelard (2000) está intimamente relacionada
com sua noção de espacialidade onírica, como trabalhar com as imagens
do espaço onírico nessa abordagem? Como nos ensina Gomes (2013),
no bachelardianismo não devemos encarar a imagem literária como um
objeto, tampouco como um substituto de um objeto, mas buscar dialo-
gar com sua realidade específica, pois ela é um produto da consciência
criadora do escritor em articulação ao devaneio poético do leitor.
Em face disso, Bachelard (2000) nos apresenta seu método de
leitura de imagens pelas imagens, podendo ser entendido também
como leitura imaginativa de imagens (GOMES, 2013). Método por
ele designado por fenomenológico, mas num sentido muito próprio,
que pretende superar a descrição aderindo à função do habitar o
espaço onírico do devaneio poético (GOMES, 2016a), procurando
responder como o escritor habita seu espaço onírico vital, através
das imagens literárias que cria.
A princípio, com base nesses referenciais e nas leituras que
fiz de Solo de Clarineta, já tenho condições de dizer que muitas de
suas imagens literárias remetem à casa onírica e à infância onírica,
noções bachelardianas que serão dois focos narrativos importantes em
minhas leituras imaginativas da poética memorial de Erico Verissimo
nessa obra. No entanto, tenho clareza que outros centros de imagens
aparecerão trazendo a necessidade de voltar a novas leituras, tanto
da obra bachelardiana quanto da Narrativa verissimiana em foco.
Fiz com que ambas se nutram mutuamente ao longo da pesquisa.
No caso específico deste estudo, busco ler a imaginação que
brota das lembranças do escritor Erico Verissimo em Solo de Cla-
rineta, discutindo como essas lembranças podem ser lidas como
imagens poéticas, tornando possível distinguir tanto os aspectos
factuais como os oníricos (de sonho). A esse sonho do escritor,
nessa obra de memórias, estou denominando de poética memorial
autobiográfica, justamente por se tratar de memórias que são estu-
dadas especialmente em sua dimensão de sonho, de onirismo, de
imaginação, de inventividade, qualidades não exclusivas da escrita
literária, mas também da escrita autobiográfica, principalmente em
se tratando de memórias de um escritor de ficção.
48

Esse é nosso pressuposto teórico de pesquisa, ou hipótese de


trabalho. Partimos também da ideia assegurada por Wunenburger
(2007), segundo a qual, mais do que ferramentas para traduzir concei-
tos e teorias, as imagens são instrumentos de sensibilização estética
do mundo e de seus criadores e leitores, sendo capazes de promover
mudanças e reorganizações de comportamentos individuais e coleti-
vos, sendo que, através delas, os sujeitos são capazes de se reinventar.
Nesse sentido, para Hilmann (1995), as imagens são avaliadas
numa perspectiva não de contribuições individuais, mas enquanto
acontecimentos coletivos. Ainda para ele, uma imagem não pode ser
compreendida simplesmente por aquilo que ela mostra, é preciso ir
além, e perceber a “imaginação” que essa imagem desperta.
Nesse ponto cabe novamente acentuar o propósito de meu
estudo, no que diz respeito à busca do sonho de Erico Verissimo
em Solo de Clarineta, obra abordada nessa pesquisa enquanto uma
poética memorial. Esse sonho do escritor supostamente promove
mudanças e reorganizações em sua trajetória de vida, coisa que parece
poder ser demonstrada pelas suas memórias. Tal sonho se liga a uma
esfera imaginária que orienta escolhas do sujeito e estabelece para si
compromissos éticos. É o que considero possível encontrar em outras
leituras mais atentas da obra em estudo, pois, como diz Wunenbur-
ger, a imaginação participa da lógica pragmática e ética dos agentes
e suas escolhas e compromissos éticos não se limitam à esfera das
obrigações racionais, mas a uma esfera imaginária (GOMES, 2013).

A relação tempo-espaço

Verissimo narra uma das lembranças de quando se encontrava


enfermo (fase adulta) e faz uma reflexão que envolve tempo e espaço.

[...] O tempo como que passou a ser função do espaço daquele


quarto ou, melhor, do espaço de meu cérebro [...] (VERIS-
SIMO, 1976, p. 28).

Dessa lembrança, entendo que para Verissimo, o tempo é um


elemento de reflexão. Em outro excerto, busco entender a relação
entre escrever acerca do tempo longínquo e o recente.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 49

Coisa singular: é muito mais fácil a gente escrever sobre acon-


tecimentos dum passado remoto do que sobre os mais recentes.
O tempo como que faz as vezes de filtro, coando impurezas,
ao mesmo tempo que nos dá uma mais nítida perspectiva do
mundo, dos fatos e de nós mesmos (VERISSIMO, 1976, p. 57).

Esse “tempo” a que alude Verissimo, apesar de trazer uma


conotação física, entendo que vai além disso, ou seja, esse tempo
pode ser um tempo poético, face à leitura imaginativa que faço para
alcançar uma poética memorial autobiográfica verissimiana.
Para Verissimo ainda, o tempo sempre marcou sua trajetória
enquanto escritor e, também de intelectual, preocupado que era com
as questões humanas. Não é por acaso que sua obra romanesca
mais conhecida denomina-se de “O tempo e o vento”. Em Solo de
clarineta, Verissimo faz uma analogia entre o tempo real e o tempo
“poético” ao dizer que

[...] o tempo do calendário e o do relógio pouco e às vezes nada têm


a ver com o tempo de nosso espírito (VERISSIMO, 1973, p. 51).

Desse relógio, ao qual refere Verissimo, extraio algo mais psi-


cológico. Noutra perspectiva, Verissimo alude ao relógio físico, do
tempo e das ordens parentais recebidas de seus pais.

Muitas vezes, estendido num sofá, depois de passar várias horas


na vã tentativa de entrar em Santa Fé e no Sobrado, eu ficava
a pensar outra vez no tempo que se arrastava e se perdia para
sempre, e chegava a senti-lo de forma concreta, como um peso
sobre o peito. Era nesses momentos opacos que me vinha a
impressão de ter passado a vida inteira à sombra ameaçadora
dum relógio, símbolo talvez da autoridade paterna, a qual no
meu caso particular fora exercida por minha mãe. (“Acorda,
vadio, está na hora de ir pra escola!” – “Pula dessa cama, são
oito horas, se chegas tarde ao banco podes perder o emprego!”)
Meu superego fizera-se zelador do relógio, era o cronometrador
implacável de minhas atividades. Marcava-me sempre tare-
fas dentro de prazos rígidos, incitava-me ao “cumprimento do
dever” (VERISSIMO, 1976, p. 20-21).
50

Não obstante essa referência ao tempo cronológico, conforme já


mencionei, Verissimo não escreveu suas memórias de forma linear,
vertical, embora comece narrando as lembranças das suas origens,
de seus ancestrais. Num dado momento, ele faz um questionamento
acerca de acontecimentos de sua vida que possivelmente poderia se
lembrar, devido à distância temporal entre seus primeiros anos de
vida e a idade de sessenta anos.

Quais são as figuras humanas, os objetos, as sensações e os acon-


tecimentos mais remotos de minha vida de que me posso lembrar
hoje? Sei, por ouvir dizer, que até à idade de dois anos usei e
abusei de minha condição de mamífero, sugando o seio materno e
outros seios emprestados ou alugados (VERISSIMO, 1973, p. 59).

Em toda narrativa autobiográfica, penso também tratar-se de


uma obra poética, por haver nela uma interface entre o real e o ima-
ginado, entre memória e sonho (memória-sonho). Na sua, Verissimo
busca lembrar de fatos considerados indeléveis vivenciados em sua
infância, mas deixa também resvalar a poeticidade da alma quando,
já sexagenário, escreveu Solo de Clarineta.

Recordando deste ângulo do tempo e do espaço as cenas a que


assisti naquele pátio, não posso deixar de concluir que elas tinham
muito dos quadros de Bosch, Bruegel e do Goya dos Caprichos
e das pinturas da Quinta del Sordo. Lá estavam vários dos ele-
mentos com que jogaram esses três grandes pintores. O cômico
alternava-se com o trágico, o pitoresco com o grotesco, o sonho
com o pesadelo (VERISSIMO, 1973, p. 42, grifos do autor).

Essas recordações, trazidas por Verissimo, me faz lê-las por


meio de uma imaginação, levando-me a situá-las no tempo e no
espaço de outrora, ou seja, em que ele viveu. Essa imaginação,
segundo Bachelard (1990a), não se restringe à formação de imagens
a partir da realidade, ela forma imagens que ultrapassam o real.

Tempo/infância
Articulando lembranças dos tempos de criança, Verissimo conta
momentos de sua infância vividos e lembrados nos tempos em que
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 51

escreveu essas memórias. No primeiro momento, rememora de que


foi um mamífero, até a idade de dois anos. Mas chama a atenção
para o caráter enganador da memória. Mas chama a atenção para o
caráter enganador da memória:

Uma vez que outra, imagens e sensações de meus tempos de


criança de colo sobem do fundo do oceano em que jazem, apa-
recem por um átimo à superfície, mas envolta em tanta névoa,
que mal lhes consigo distinguir os contornos. Lanço rápido a
minha rede nessas águas turvas, com o propósito de apanhar
alguns dos ariscos espécimes de minha flora e fauna submarinas
(VERISSIMO, 1973, p. 59).

Segundo Hillman (1997, p. 14), “talvez toda nossa vida seja


menos determinada pela infância do que pelo modo como aprende-
mos a imaginar nossa infância”. Nessa perspectiva, procurei articular
as lembranças por meio de imagens. Estas, por sua vez, serão trata-
das aqui não como “um quadro no sentido de um retrato fotográfico
de uma pessoa. Ao invés disso, imagem é uma noção complexa
de uma pessoa imaginada pela mente” que, por sua vez, tem base
poética (HILLMAN, 2018, p. 69).
Assim, começo por articular literatura e filosofia da imagem. No
primeiro volume de Solo de Clarineta, no capítulo inicial, Verissimo
(1973, p. 50) diz que “que o relógio psicológico do tempo da infân-
cia anda mais devagar que os dos adultos” e aproveita o momento
para lembrar de certos episódios e pessoas de seu mundo de criança,
refletindo sobre estes diferentes tempos e sobre a memória:

Tenho a impressão de que minha vida entre os cinco e os dezoito


anos ocupou um espaço de tempo muito mais longo do que dos
vinte aos sessenta. Afinal de contas, a memória de um velho
está cheia de labirintos, de falsos sinais de trânsito, de vácuos
e, por assim dizer, de silêncios temporais e espaciais, isso para
não falar em miragens (VERISSIMO, 1973, p. 50-51).

Tratando dessa infância rememorada, portanto, também ima-


ginada, Bachelard (1988, p. 118) diz que “a infância permanece em
52

nós como um princípio de vida profunda, de vida sempre relacionada


à possibilidade de recomeçar”.
Outro momento de lembranças, de imaginação poética, provoca
ressonância, quando relaciona tais imagens com a figura materna:

Vejo-me ou, melhor, sinto-me deitado num berço, num quarto em


penumbra. Sentada numa cadeira a meu lado, minha mãe me aplica
uma cataplasma de linhaça que me queima o peito, ao mesmo
tempo que um odor acre me entra pelas narinas. Noutra ocasião
as mãos maternas me esfregam as costas com um linimento de
cheiro penetrante. Mas há outro momento ainda mais nítido na
minha memória. É noite, D. Bega me canta uma canção de ninar,
e eu com o indicador e o polegar da mão direita seguro sua aliança,
fazendo-a rolar dum lado para outro no dedo dela, como quem
dá corda a um relógio. Fazia isso todas as noites para conseguir
encontrar a porta do sono. Imagino que nesse tempo eu não teria
mais de dois anos de idade (VERISSIMO, 1973, p. 59-60).

Bachelard (2000) diz que “as imagens poéticas atingem as pro-


fundezas antes de emocionar a superfície”, visto que primeiramente
elas repercutem na alma e em seguida, ressoam na consciência, e
que enquanto “as ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos
de nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofun-
damento da nossa existência” (p. 7).
Noutra passagem, Verissimo articula lembranças de contexto
histórico do tempo em que nasceu com suas fobias:

Nasci a 17 de dezembro de 1905, sob o signo de sagitário. Anda-


vam no ar ecos da guerra russo-japonesa, e os jornais comenta-
vam ainda os horrores do massacre de São Petersburgo. Relutei
em deixar a paz no ventre materno para entrar neste mundo,
como numa paciência de seus horrores e absurdos. Fui arrancado
a ferros e, resultado dessa violência, tenho uma pequena cicatriz
ao lado de um dos olhos. Essa difícil “passagem do túnel” talvez
explique a minha claustrofobia, a minha aversão aos ambientes
confinados, às cavernas, às cabinas de trem ou vapor, em suma,
a todos os lugares que me ameacem com a possibilidade de
sufocação, estrangulamento... (VERISSIMO, 1973, p. 33).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 53

Ler as memórias de Verissimo, através de suas lembranças,


me leva a imaginá-las, num primeiro momento, nas profundezas de
meu ser, e depois, na minha dimensão emocional. São as leituras
que faço dessa poética memorial autobiográfica de Verissimo, por
meio da imaginação criadora, que me provocam novas imagens,
pois, conforme Bachelard (2000), as imagens criam novas imagens,
através do devaneio poético de leitura.
Verissimo ainda evoca outros momentos de lembrança que
remete à sua infância. No primeiro, discorre sobre uma fotografia
quando tinha seis meses de idade e sua relação com o Verissimo
adulto na época em que escreveu essas memórias.

Num de meus retratos mais antigos apareço como um bebê de


seis meses, de cara lunar e morena, olhos escuros e graúdos,
franja castanha sobre a testa arredondada, sorriso aberto e uma
certa expressão que hoje, com uma alegria narcisista, tenho visto
vagamente reproduzidas nas faces de muitos de meus netos. [...]
Se conto estas coisas aparentemente sem importância é porque
me parece que elas podem ajudar o leitor a compreender, através
do menino que fui, o homem que hoje sou (VERISSIMO, 1973,
p. 33-34).

No segundo momento, faz alusão a lembranças do Verissimo


criança em uma das vezes que esteve enfermo:

Numa das lembranças mais remotas que guardo da minha infân-


cia, estou de pé em cima duma mesa, convalescendo da quase
fatal enfermidade, magro e fraco, cercado de tias, e avisto o
Dr. Catarino que se aproxima de mim em mangas de camisa,
o casaco dobrado sobre um dos braços, um sorriso mal escon-
dido sob os bigodões, um brilho de malícia nos olhos claros.
“Gafanhoto!” – grita ele, rindo. Sim, minhas pernas e braços
deviam estar tão finos que na certa eu parecia mesmo um inseto.
Curioso: recordo também o sentimento de indignação que essa
palavra me provocou (VERISSIMO, 1973, p. 35).

Num terceiro momento, relata fatos que são comuns na vida


de uma criança de cinco anos de idade.
54

Outra lembrança longínqua que tenho é a do menino de cinco


anos que da janela de sua casa, certa noite, ficou a espiar, intri-
gado, o cometa que luzia no céu por cima da Fábrica de Massa
Alimentícias, de Rafaele Dell’Aglio, anunciando o fim do
mundo. Puro boato (VERISSIMO, 1973, p. 35-36).

De fato, o que Verissimo observava era a imaginação do fim


do mundo. Trata-se de uma memória-sonho.
Para Bachelard (2001), o devaneio poético não é um sonho
sem sentido, mas sim o encontro de sentido para um sonho. Ou nas
palavras do filósofo: “O devaneio poético escrito, conduzido até
dar a página literária, vai, ao contrário, ser para nós um devaneio
transmissível, um devaneio inspirador, vale dizer, uma inspiração
na medida dos nossos talentos de leitores” (p. 7).

Recordações familiares

Verissimo narra, em seu primeiro capítulo, do primeiro volume, as


lembranças que tem de seus familiares, denominando-o de “Álbum de
família”. Começa falando da curiosidade que um dia sentiu em saber a
origem dos verissimos. Manoel Verissimo, português, natural de Ervedal
da Beira Alta, emigrou para o Brasil na primeira década do século XIX,
levando para o Sudeste brasileiro, São Paulo, o sobrenome verissimo
que acabou por chegar ao interior do Rio Grande do Sul. É neste estado
do sul do Brasil que coabitam as famílias Verissimo e Lopes.
Verissimo, ainda nas primeiras páginas da sua narrativa memo-
rial, busca apresentar o álbum de família, o qual faz das suas lem-
branças, a cidade onde nasceu, a partir do encontro de sua família
materna com a paterna:

Cruz Alta foi o ponto de encontro dos dois troncos cujos ramos
se uniram e, numa sucessão de enxertos e cruzas, tornaram
possível o desabrochar desse espécime humano que agora me
contempla, irreverente, do fundo do espelho. O miserável não
está levando a sério estas memórias. Descobri na idade adulta
que vivem dentro de mim, como irmãos xifópagos, dois sujeitos:
um deles sisudo, responsável e até moralista; o outro um pícaro
que não leva nada a sério (VERISSIMO, 1973, p. 1).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 55

Para se ler esse trecho, na abordagem da imaginação poética, é


preciso entender que o espaço não é o território concreto e geográ-
fico, mas a região da imensidão íntima, da imensidão interior do ser.
Segundo Bachelard (2000), quando se está imerso em si mesmo, na
solidão, encontra-se com a imensidão íntima. Pois é nesse momento
que há a consonância da imensidão do mundo com a profundidade
do seu íntimo. O homem percebe-se como um átomo em um mundo
vasto e, no entanto, ambos estão juntos, unidos, homem e mundo. A
realização dessa consonância ocorre fazendo do mundo e do homem
duas criaturas conjuntas paradoxalmente unidas no diálogo de sua
solidão. É nessa imensidão interior que “nos aprofundamos num
mundo sem limite”, porque é o mundo (espaço) da imaginação poé-
tica (BACHELARD, 2000, p. 317).

Os avós paternos

Sobre sua avó paterna, d. Adriana, Verissimo assinala:

As lembranças que tenho dessa avó me vêm dum velho retrato,


em que ela se parece um pouco com Virginia Woolf, e das
muitas estórias que entreouvi na infância, em serões familiares
(VERISSIMO, 1973, p. 2).

Do avô paterno, guarda a mais terna das recordações:

Quando minha mãe me metia na cama, suspeitando que eu


estivesse febril, quantas vezes me animou a certeza de que um
simples toque da mão do velho Franklin na minha testa seria o
bastante para afugentar a febre! Eu gostava do cheiro de desinfe-
tante daqueles dedos de pontas com manchas de nicotina, e que
eu imaginava iodo. Lembro-me do ruído regular de seus punhos
engomados quando ele sacudia o termômetro para fazer a coluna
de mercúrio baixar, antes de colocá-lo na minha axila. Sentava-se
na cama, olhava-me com seus olhos mansos e, passando a mão
pelos meus duros cabelos de bugre, dizia: “Seu peidorreiro, vamos
ver se isso é febre mesmo ou preguiça de ir à escola”. Apanhava
o termômetro, erguia-o contra a luz e murmurava: “Não é nada.
Quando casar sara” (VERISSIMO, 1973, p. 3, grifos do autor).
56

Ao evocar-se lembranças, adiciona-se valores de sonhos. Essa


afirmação de Bachelard (2000) é central para este estudo. Para tratar
do assunto, o autor vai se debruçar sobre os espaços de sonho (espaços
oníricos) onde estão alojados as lembranças e os esquecimentos. A
exemplo, o filósofo da imaginação traz a casa como um desses espaços
oníricos, por isso mesmo ele a nomeia de casa onírica, e diz que, ao
lembrar-se dela aprende-se a morar em si mesmo, a habitar-se. Ou
seja, o espaço onírico não remete apenas às lembranças que se tem,
mas também a sonhos mais longínquos; através dele, é dada vazão
aos sonhos, ainda que recém-descobertos pela mediação da memória.

Os avós maternos

Não obstante a família paterna e materna terem posses e recur-


sos materiais e ostentar uma posição socioeconômica de classe
média-alta, uma vez que eram estancieiros (fazendeiros) no inte-
rior gaúcho, os avós de Verissimo tinham alguns pontos diferentes.

Sempre que sinto o cheiro da fumaça dum cigarro de palha, a


primeira imagem que me vem ao pensamento é a de meu avô
(VERISSIMO, 1973, p. 29).

Tanto o avô como sua avó maternos, segundo Verissimo, eram


mais sovinas do que os avós paternos.

D. Maurícia era uma serrana trigueira, com feições que lem-


bravam as de uma índia, não tupi-guarani, mas pele-verme-
lha. Era econômica ao extremo, não só no que dizia respeito
a dinheiro e outros bens materiais, como também a gestos e
palavras. Não creio que fosse destituída de afeto, mas era certo
que tinha pudor de demonstrar seus sentimentos. Nada amiga
de abraços e beijos, seu interesse pelos netos manifestava-se na
insistência com que nos seus almoções ou jantares exigia que
“os marotos” comessem tudo que a vovó lhes punha nos pratos
(VERISSIMO, 1973, p. 29).

Nessa fala, Verissimo narra uma lembrança de dona Maurícia


na qual ficou surpreso, por ela ser considera uma senhora íntegra.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 57

Porém, no excerto a seguir, ela faz um comentário sobre uma mulher


que passava em frente à sua casa dizendo que esta traíra o marido.

Essa avó, de quem acabo de dar um instantâneo em sépia, tinha


um vocabulário um tanto arcaico mas limpo. Só uma vez a sur-
preendi fazendo um comentário malicioso. Estava debruçada à
sua janela quando viu passar pela calçada uma jovem senhora
que, segundo a voz do povo, costumava enganar o marido com
outros homens. D. Maurícia fez um sinal na direção da moça
e me disse: “Parece que essa também dá comida pra fora...”
VERISSIMO, 1973, p. 30 grifos do autor).

Verissimo, de forma sintética, assinala um aspecto relevante


da família materna que foi por ele observado.

Eram esses avós e tios – observo agora, nesta distância no tempo


– gente quase absolutamente amelódica. Não me recordo de
tê-los ouvido assobiar ou cantarolar o que quer que fosse. Mas
não! Agora me ocorre que numa tarde de inverno, na década
dos 20, meu avô – quase sempre de chapéu de abas largas na
cabeça, mesmo quando dentro de casa – estava sentado junto
da janela, olhando a chuva cair, quando de repente rompeu a
assobiar uma espécie de melopeia que, muito surdo, ele próprio
talvez não estivesse escutando com clareza. Era pura música
atonal, na certa de sua própria invenção e na qual julguei per-
ceber aqui e ali mal contidas saudades das campinas, tropeadas
e rodeios d’antanho (VERISSIMO, 1973, p. 31).

Nesse trecho, Verissimo reporta-se a um tempo remoto –


inverno dos anos 1920 – no qual observa seu avô assobiando uma
melodia que ele mesmo inventara, trazendo sentimentos de saudades.

Diferença entre os pais

Verissimo, ao assinalar a sua relação com seus pais, mostra


que havia uma diferença substancial entre o Sebastião e a D. Bega.
Obviamente que a diferença que acentua entre ambos é de compor-
tamento e de atitudes.
58

Não quero relembrar minha mãe contra um fundo musical de


violinos plangentes. Por ora direi que D. Bega era tão diferente
de meu pai quanto a água do vinho. (Uso aqui propositalmente
este lugar-comum comparativo.) Ele era um gastador imoderado,
ao passo que ela era econômica (VERISSIMO, 1973, p. 32).

Em vários momentos de Solo, Verissimo demonstra que sentia


algo mais especial em relação a seu pai. É tanto que nos excertos
que apresento abaixo, evidencia-se mais aqueles dedicados ao velho
Sebastião como ele se referia ao pai.

Sua mãe

Ao que parece, Verissimo sentia por sua mãe, uma espécie de


sentimento de culpa, pois conforme conta, o velho foi um gastador
inveterado e acabou com tudo que possuía ficando em apuros e foi
D. Bega, em sua máquina de costura, que sustentou a casa por muito
tempo, inclusive custeando seus anos de colegial realizado numa
escola privada em Porto Alegre.

Graças ao dinheiro que ela ganhou com seu trabalho de modista,


foi-me possível passar três anos como interno num colégio em
Porto Alegre (VERISSIMO, 1973, p. 53).

Tal como cita, várias vezes, a importância que essa máquina de


costura teve como principal fonte de sustento da família, Verissimo
aponta como algo indelével de suas lembranças maternas.

Seu pai

São muitas as passagens que Verissimo narra histórias do pai,


apesar de ter tido a consciência de que o pai fez a família (esposa
e filhos) passar por muitas dificuldades por causa de suas atitudes
desastrosas, tanto em relação à responsabilidade paterna, financeira
ou da prática da poligamia.

Era um guloso do sexo. Desconfio que nessa matéria começara


sendo um gourmet exigente, mas acabara transformando-se num
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 59

gourmand... Considerava válido tudo quanto lhe pudesse pro-


porcionar gozo carnal. Nesse terreno não reconhecia nenhum
obstáculo de ordem moral ou ética. O desejo lhe dirigia os pen-
samentos, as palavras e as ações. Em fornicações improvisadas,
levava criadinhas para o fundo do quintal ou puxava-as para trás de
folhas de porta. E tudo era feito de pé e às pressas. Não lhe bastava
uma mulher por dia ou por noite. Precisava de duas ou três. Não
seria exagero dizer que sofria duma espécie de priapismo mental
(VERISSIMO, 1973, p. 47, grifos do autor).

Incompressível para Verissimo o comportamento de seu pai e


respectiva mudança, no tempo em que escreveu Solo, imagino na
época de adolescente quando vivenciou todo os conflitos em seu lar.

Até hoje um problema da minha infância e adolescência me


visita e intriga, embora sem caráter obsessivo. Como, quando e
por que meu pai mudou de vida, de comportamento, de gostos,
de objetivos? Sei que chegou a Cruz Alta com um diploma de
farmacêutico, um moço cheio de esperanças e nobres projetos
(VERISSIMO, 1973, p. 51).

Verissimo continua sem compreender o comportamento do


velho Sebastião no que tange às contradições e transformações ocor-
ridas na vida dele.

Quando hoje procuro analisar o comportamento de Sebastião


Verissimo, comparando o menino com o adolescente e o homem
maduro, tropeço em mistérios, não consigo explicar a mim
mesmo as suas contradições, entender as suas “transformações”
(VERISSIMO, 1973, p. 21-22, grifo do autor).

Ainda acerca do comportamento controverso de seu pai, Veris-


simo se questionou até a respeito de um profissional, um grafólogo,
poderia fazer um retrato psicológico de seu pai. Fico a imaginar,
Verissimo enquanto um homem poético, tal como refere Hilmann
(1995), o homem é um ser poético, fez tantos retratos psicológicos
de seus personagens, porém não conseguiu compreender, nesse sen-
tido, seu próprio pai.
60

Relendo às vezes as poucas cartas que possuo de meu pai, per-


gunto a mim mesmo se pelo exame de sua letra poderia um
grafólogo traçar-lhe o retrato psicológico. Sua caligrafia era
nítida, graúda, bonita, mas sem enfeites, e não parece denunciar
o homem vaidoso que escolhia com um cuidado requintado suas
gravatas, fatiotas e perfumes. O tamanho da letra talvez possa
denotar generosidade (VERISSIMO, 1973, p. 24).

A grafologia aqui tem uma certa importância, pelo menos para


Verissimo, quando revela que a relação entre a forma como seu pai
escrevia (a lápis) e seu futuro. Ou seja, essa forma de escrever leva
o ser humano a autodestruição, a exemplo de Sebastião Verissimo.

Ao assinar seu nome, meu pai costumava, por assim dizer, pôr
um “rabo” na última letra do nome Verissimo, transformando-a
quase num q. Dizem os peritos em grafologia que esse traço
puxado para baixo revela uma tendência para a autodestruição
(VERISSIMO, 1973, p. 24).

Verissimo, de fato, foi um apaixonado pela figura paterna, a


ponto de quando narra sobre os filhos de seu avô, deixa-o por último
e destacadamente escreve.

Chego agora ao Verissimo que me toca mais fundo. Chamava-se


Sebastião e era meu pai. Intelectualmente a mais brilhante figura
da família, de certo modo foi aquela em que as qualidades e os
defeitos dos Mello e Albuquerque se manifestavam com mais
apaixonada intensidade (VERISSIMO, 1973, p. 15).

Por ser de família tradicional gaúcha, tal como já foi refe-


rida, seu pai foi um privilegiado em termos de formação acadêmica
e profissional.

Sebastião Verissimo formou-se em Farmácia, não por vocação


e sim – imagina o romancista – porque se tratava do mais curto
dos cursos acadêmicos da época (VERISSIMO, 1973, p. 23).

Ainda ao falar acerca de seu pai, Verissimo volta a tocar no


assunto da poligamia e a decisão do casamento com sua mãe.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 61

Foi assim que Sebastião Verissimo, esse polígamo por natureza,


esse insaciável femeeiro, casou-se aos vinte e quatro anos com
Abegahy Lopes, motivado talvez não só pela advertência do pai,
mas também pela mais lírica das intenções, pelo lado romântico
de seu caráter, sim, e pelo seu simpático mas irresponsável oti-
mismo. E, afinal de contas – deve ter ele refletido –, quando um
homem se casa ele necessariamente não morre para as outras
mulheres do mundo... (VERISSIMO, 1973, p. 23).

É visível a demonstração, nessas narrativas, do amor especial


que Verissimo nutria pelo seu pai, a ponto de sua mãe pensar que se
um dia se separasse maritalmente de seu pai, como ocorreu em 1922,
Verissimo optasse entre seu pai ou sua mãe.
Esse momento aconteceu um dia antes de Verissimo, sua mãe,
seu irmão e Maria (empregada da casa) deixarem a casa e irem
morar com seus avós maternos. Já deitado em sua cama, Verissimo
recebe um bilhete de sua mãe, entregue por Maria, que dizia não
poder mais suportar aquela vida e estava decidida a se separar de
seu pai, mas só fazia isso se ele quisesse ir com ela. Logo, queria a
resposta na manhã seguinte.

Tornei a me deitar no colchão, e o bilhete que eu pusera em


cima do peito, pesava-me como um bloco de chumbo. Eu
não queria que o casal se separasse, mas compreendia que
minha mãe tinha razão, pois sua intenção era salvar a família
de desastres maiores. [...] Caminhei como um sonâmbulo na
direção do quarto de D. Bega, aproximei-me dela e murmu-
rei: “Pode contar comigo. Eu vou também”. Ela sacudiu a
cabeça lentamente, depois disse baixinho: “Sempre achei que
gostavas mais de teu pai que de mim” (VERISSIMO, 1973,
p. 154, grifos do autor).

Outro momento que Verissimo alude a seus pais tem a ver com
a sua aversão à ingestão de bebida alcoólica. Em conversa com o
escritor Augusto Meyer (1902-1970)6, que bebia, ficava impaciente

6 Gaúcho de Porto Alegre e contemporâneo de Verissimo. Além de jornalista, ensaísta, poeta,


memorialista e folclorista brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e da Aca-
demia Brasileira de Filologia.
62

com Verissimo. Este justificava-se ao seu interlocutor os motivos


pelos quais não gostava desse tipo de bebida.

Eu lhe explicava que era abstêmio não por motivos morais,


mas hepáticos – o que não era verdade. Creio que o cheio e o
gosto da cerveja evocavam-me a imagem de meu pai nos seus
piores momentos. O álcool era assim uma espécie de símbolo
de suas excessivas auto-indulgências, e portanto o ato de beber
cerveja equivalia – na minha maneira de sentir – a uma espécie
de ato de agressão à minha mãe (VERISSIMO, 1973, p. 238).

Nessa fala, entendo que Verissimo, mais uma vez revela o


quanto as atitudes de seu pai, mesmo as mais extravagantes, tais
como exemplo a vida de boêmio, tiveram um peso em seu com-
portamento e não influenciou-o enquanto filho que não gostava de
“bebedeiras” além de também não contrariar a sua mãe.

O único irmão

Não se compreende o porquê de Verissimo ter tido apenas um


irmão e quase não o ter referido em suas memórias. Além do tre-
cho abaixo, fala nele em outros momentos em Solo, mas de forma
muito secundária.

Ênio continuava o seu curso, sem problemas. Agora tudo nele


indicava o homem que um dia viria a ser: decente, bondoso,
duma discrição a toda a prova, um tanto introvertido, mas por
outro lado senhor duma capacidade invulgar de fazer amigos
(VERISSIMO, 1973, p. 183).

Para Verissimo, seu único irmão é um homem discreto, intro-


vertido mas grande fazedor de amigos. Ao que parece, seu irmão
Ênio, tinha mais apreço e consideração pela figura materna, dife-
renciando-se de Verissimo.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 63

Dois tios que recorda

Verissimo cita todos os tios maternos e paternos, mas destaca


dois deles como sendo boas recordações, cada um com sua idios-
sincrasia. Nota-se mais uma vez a tendência de Verissimo pela parte
da família paterna, pois ambos são irmãos de Sebastião.

Recordemos os machos da família. Tenha uma vaga lembrança


de tio Columbano, dono dum nome que provocava em mim
misteriosas ressonâncias. Alto, de olhos expressivos, tinha bigo-
des castanhos com reflexos de cobre, grossos e longos como
os dois oficiais ingleses que mais tarde eu viria a conhecer
nas páginas de Rudyard Kipling. Homem de poucas palavras,
escolhera uma profissão que sempre me pareceu estranha para
o filho dum estancieiro. Era ourives. Eventualmente complicou
sua vida. (Mulheres? Jogo? Não sei ao certo.) Um dia tentou o
suicídio. Socorrido a tempo, sobreviveu, porém jamais tornou
a levantar-se da cama, onde morreu antes dos quarenta anos
(VERISSIMO, 1973, p. 7, grifos do autor).

Esse tio é citado mais pela sua inconsistência em termos de


vida pregressa que, em parte se assemelha a seu pai, por outro lado
Verissimo o admirava porque provocava em si ressonâncias.
Diferente desse, o tio Fabricio exerceu alguma influência na
vida de Verissimo, não na carreira literária, mas no sentido de amor
ao outro, de humanidade e respeito pelo ser humano.

De todos os meus tios paternos, Fabrício foi aquele com quem


tive maior convívio e intimidade. Era, quando moço, uma figura
romântica, esbelta e elegante, uma mecha de cabelo a cair-lhe
repetidamente sobre os olhos – e o ar nonchalant com que ele a
espaços erguia a mão para repô-lo no lugar, como que se tornou
uma espécie de “gesto registrado” de sua personalidade. Falava
macio, com ares paternais. Sentia-se que tinha um interesse
afetuoso pelas pessoas. Seu rosto era uma réplica masculina
das feições maternas. Depois duma série de aventuras amorosas
muito próprias dos vinte anos – e que punham tias e irmãs em
permanente inquietação – casou-se. Teve apenas um filho, a
64

quem deu o nome do avô. O rapaz formou-se em Medicina e


se tornou um grande médico (VERISSIMO, 1973, p. 8).

Essas lembranças, tanto de um tio como de outro, me faz pen-


sar/imaginar Verissimo recordando sua família em todos os aspec-
tos que tenham contribuído para sua formação enquanto homem.
Refiro-me tanto à família de seus pais, quanto aos seus dois filhos,
os quais serão citados ainda neste capítulo.

1922: um ano para lembrar ou para esquecer?

Para um romancista, um literato que vivenciou esse ano de 1922,


não é possível esquecer de um momento revolucionário, no âmbito
da cultura e das artes brasileiras, em especial no eixo Rio-São
Paulo, mais precisamente na capital paulista, que foi a Semana de
Arte Moderna.

Eu acompanhara de modo um tanto precário o desenvolvimento


da Semana de Arte Moderna – revolução literária e artística
diante da qual me sentia ambivalente. O próprio Lobato, em
cujo juízo crítico eu tanto confiava, manifestara-se contra o
movimento (VERISSIMO, 1973, p. 161).

Para ele, esse ano teve outros significados, especificamente na


vida pessoal e emocional:

Uma das mais terríveis noites de minha vida foi a de 2 de dezem-


bro daquele ano de 1922. Eu chegara de Porto Alegre no trem
do meio-dia, feliz e ao mesmo tempo apreensivo à idéia de rever
minha gente, minha casa (minha?) e minha cidade. Tinha ainda
suficientes reservas de otimismo para esperar que de uma hora
para outra os problemas domésticos se resolvessem satisfatoria-
mente. Mas não levei muito tempo para perceber que a situação
tinha piorado muito, além das expectativas mais pessimistas.
Meu pai continuava na sua vida de sempre e agora bebia em
excesso. Minha mãe parecia ter chegado ao limite de sua capa-
cidade de paciência e tolerância (VERISSMO, 1973, p. 151).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 65

Além dessa lembrança, vejo, através da leitura de imagens, outra


reflexão de Verissimo intimamente relacionada a esse ano de 1922.

Creio que a história da minha vida seguiu uma trajetória clara


e até certo ponto coerente, e que se tem mantido ininterrupta
desde meus dezoito anos. É como o leit-motiv duma sinfonia.
Depois daquela terrível noite de 1922, quando meus pais se
separaram, eu saí em busca do Lar Perdido. E tudo quanto até
hoje tenho feito ou deixado de fazer, todas as minhas audácias
ou temores, meus avanços e recuos, a minha fidelidade a certos
princípios – têm sido determinados por essa busca no tempo e
no espaço. Eu poderia gritar triunfalmente que por fim encontrei
o que procurava (VERISSIMO, 1976, p. 309).

Nesse ano, Verissimo contava apenas com 17 anos de idade,


tornando-se assim, um divisor de águas em sua trajetória pessoal.

O encontro com Mafalda

Verissimo, apesar dos problemas sofridos no seio familiar,


conheceu a futura esposa na sua cidade natalícia, Cruz Alta. De
nome Mafalda, trata-se de uma jovem de família também abastarda
como a sua.

Era uma menina de nove anos e olhos azuis, cabelos dum cas-
tanho alourado, filha duma chapeleira das vizinhanças que por
ela mandava à minha mãe um figurino. Ouvindo as batidas, meu
pai gritou: “Vá embora! Não tem ninguém em casa!”. Assustada
por aquela voz rouca e irada, a menininha se foi quase a correr.
Chamava-se Mafalda, e graças aos enredos e à imaginação do
Autor deste novelão que é a vida, nove anos mais tarde nós nos
casaríamos e ela viria a tornar-se minha companheira pelo resto
da vida (VERISSIMO, 1973, p. 158).

Ao contrário do que viveu enquanto filho, num lar desestabi-


lizado físico e emocionalmente, procurou ser um pai diferente do
que foi o seu.
66

O amor pelas crianças

Verissimo se considerava um amante das crianças, sejam elas


seus filhos e netos, sejam outras crianças. No excerto a seguir, conta
como descobriu esse afeto que tem pelos pequeninos, sobretudo as
menores de cinco anos.

Tenho uma ternura muito profunda pelas crianças, principalmente


as da faixa etária que vai dos três meses aos cinco anos. Lembro-
-me com precisão do dia em que fiz essa descoberta sentimental.
Foi num dia de primavera, no último ano que passei naquele
internato, e no jardim do bangalô de um de seus professores
americanos, o Rev. Franklin Osborn (VERISSIMO, 1973, p. 142).

A descoberta desse sentimento, ele atribui a um dos seus pro-


fessores estrangeiros do colégio onde estudou na capital gaúcha.
Nesse contexto, Verissimo faz uma analogia entre a criança e
o adulto.

Por que será que os verões da infância eram – ou nos parecem


– tão mais suaves que os da idade adulta? Recordo as noites
de antigamente, um vento morno trazendo-nos às narinas um
cheiro acre de macegas queimadas nos campos dos arredores
da cidade. Outras vezes vinha na brisa a doce fragrância da flor
conhecida como “rainha-da-noite”, ou a de jasmins e madres-
silvas (VERISSIMO, 1973, p. 93, grifo do autor).

Essa recordação de Verissimo dos tempos de infância me faz


imaginar os meus tempos de criança, os quais trazem imagens que
me lembram o perfume das rosas, bem como da imagem do céu e
da lua, por exemplo, como se estivessem bem perto de nós. Para
Bachelard (1988), esse cheiro, tal como sons, visões, toques têm um
grande potencial de suscitar imagens poéticas.

Naqueles tempos éramos todos mais íntimos das estrelas e da


lua. Nosso céu era maior e estava mais perto de nossas cabeças
(VERISSIMO, 1973, p. 94).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 67

A ideia de espaço e tempo da criança é totalmente diferente da


do adulto. Eis a razão pela qual Verissimo recorda-se que as crianças
em tempos remotos se sentiam mais afinados com o céu.
Edgar Morin também fala dos paradoxos da idade. Por meio
da multiplicidade sucessiva das idades, cada um de nós carrega,
mesmo sem perceber, todas as idades. Segundo ele, “a infância e
a adolescência não desaparecem na idade adulta, mas são recessi-
vas; a infância reaparece nos jogos; a adolescência, nos amores e
nas amizades; também o velho guarda as idades anteriores e pode
facilmente voltar à adolescência e à infância. Talvez o bebê já seja
um velho” (MORIN, p. 85-86).

O nascimento de Clarissa e Luís Fernando

Do seu casamento, realizado em 1931, nasceram dois filhos:


Clarissa e Luís Fernando.

Para nós o maior acontecimento de 1935 foi o nascimento de


nosso primeiro filho, uma menina. Nos primeiros três anos de
nossa vida de casados, minha mulher e eu, que mal podíamos
esconder nossa tristeza e nossa decepção por náo termos filhos,
entretínhamo-nos com os filhos alheios, que pedíamos empres-
tados a vizinhos e amigos (VERISSIMO, 1973, p. 257).

O nome Clarissa foi uma homenagem ao título de um de seus


romances, publicado em 1933. Já o filho, nasceu no ano seguinte ao
nascimento de Clarissa. Além de ser marcante, Verissimo relaciona o
nascimento deste a publicação de outro romance, “Um lugar ao sol”.

Nosso 1936 foi assinalado principalmente por dois acontecimen-


tos: o nascimento dum filho, Luís Fernando, e a publicação de
mais um romance, Um lugar ao sol, cujo tema – gente moça que
luta pela sobrevivência – refletia as apreensões e dificuldades de
nossa própria vida, embora o elemento autobiográfico nesse livro
seja muito tênue, transfigurado a ponto de se tornar irreconhe-
cível ou – quem sabe? – ausente (VERISSIMO, 1973, p. 262).

Nesse excerto, Verissimo faz analogia entre personagens


do referido romance com elementos autobiográficos, ou seja, em
68

“Um lugar ao sol”, ele procura contar sua história por meio de
pessoas imaginadas.

A Nespereira do Japão

O terceiro capítulo do primeiro volume de Solo intitula-se “A


ameixeira-do-Japão”. Porém, segundo Verissimo, não colocou a
palavra “nespereira”, por não trair o menino que ele foi.

Estive a pique de dar a este capítulo o nome de A Nespereira, e


se não o fiz foi porque me pareceu que isso seria uma traição ao
menino. Afinal de contas esta parte de minhas memórias – ou
todo o livro, em última análise – pertence mais a ele do que ao
homem que hoje sou (VERISSIMO, 1973, p. 56).

Verissimo inicia o capítulo descrevendo essa tão importante


árvore, a qual deixou marcas profundas em sua vida.

Tive no começo da vida uma árvore que até hoje continua dentro
de mim como um marco do tempo da infância e uma entidade
importante de minha mitologia particular. Era a única existente
em nosso pátio interno (VERISSIMO, 1973, p. 55).

Essa árvore, conhecida entre seus conterrâneos pelo nome de


ameixeira-do-Japão, foi tão significativa para ele, que ela intitula um
dos capítulos desse primeiro volume de memórias. Para Verissimo
(1973, p. 55), “a magia da memória afetiva” pode trazer de volta essa
árvore, para contemplá-la. Para Bachelard (1998, p. 5), “sonha-se
antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda
paisagem é uma experiência onírica”.
Pela leitura de Solo, não me é possível precisar a idade de Veris-
simo no momento a que refere, mas imagino que ainda era uma criança.

Foi por esse tempo que um dia descobri a ameixeira-do-japão


no seu canto umbroso e apossei-me dela, não manu militari,
mas com amorosa persuasão (VERISSIMO, 1973, p. 64, grifo
do autor).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 69

À sombra dessa mitológica planta, Verissimo fazia leituras,


pois eram momentos de solidão.

Minha imaginação encarregou-se de purificar o ar daquele


ângulo de pátio, transferindo a nespereira ora para as campinas
do Far-west americano ora para os fiordes escandinavos ou para
um parque parisiense (VERISSIMO, 1973, p. 64).

Esses momentos vividos por Verissimo suscitam em mim uma


imaginação, tal como diz Hilmann (1995), todas as coisas e seres
do mundo têm a sua poeticidade. Assim, é o caso dessa árvore para
Verissimo, visto que sua admiração por ela é algo de muita fasci-
nação e admiração.

O gosto pela leitura

Verissimo, em tempos de infância, tomou gosto pela leitura.


Mesmo assim, não se lembra do título do primeiro livro que leu.

Tenho a impressão de que o primeiro livro que li, quando meu


entusiasmo pelo Tico-Tico começou a arrefecer, continha uma
interessante narrativa sobre caçadas. Não me lembro do título do
romance nem do nome do autor. Era muito bom ler livros – con-
cluí – mesmo que o volume tivesse muitas páginas e nenhuma
ilustração (VERISSIMO, 1973, p. 117).

Gradativamente, foi se apropriando da biblioteca de seu pai e


cada vez mais descobria outras leituras.

Uma das maiores descobertas literárias de meus dez ou onze


anos foi a dum livro encadernado que encontrei um dia no fundo
duma gaveta. [...] Fui sentar-me ao pé da ameixeira-do-Japão e
comecei a leitura (VERISSIMO, 1973, p. 117).

Mais uma vez remete a tão marcante árvore que se tornou um


espaço de busca pelo conhecimento e pela cultura, visto que era esse
um dos lugares onde realizava suas leituras e reflexões.
70

Leitor voraz, com treze anos de idade, já lia autores clássicos


da literatura universal, precisamente em tempos de pandemia, a
gripe espanhola, doença que ceifou milhões de vítimas no mundo
inteiro, inclusive no Brasil.

Foi durante a influenza em 1918 que li pela primeira vez Eça de


Queirós (Os Maias), Dostoievski (Recordação da Casa dos Mortos
e Crime e Castigo), Tolstói (Ana Karenina) e o Ivanhoé, de Walter
Scott. E a minha salada literária foi um dia apimentada fortemente
por livros de Émile Zola como L’Assomoir, Naná, Germinal,
Tereza Raquin e A Besta Humana (VERISSIMO, 1973, p. 121).

Nesse excerto e noutras passagens de Solo, Verissimo conta que


gosta de conversar consigo mesmo e, também, ler em voz alta como
se estivesse conversando com seus personagens fictícios.

Seguindo um hábito que me vem da infância, comecei a conver-


sar comigo mesmo em voz alta. Vieram-me à mente trechos dum
livro do teólogo existencialista Paul Tillich, que eu acabara de
ler. Meu intelecto então começou a doutrinar o corpo (TILLICH
apud VERISSIMO, 1976, p. 13).

Verissimo apreende, desse autor, além de aprender a relacionar


sua mente e corpo, se apropria da reflexão filosófica sobre a exis-
tência do ser.

É necessário que te convenças de que o não-ser é parte de nosso


próprio ser. O não-ser depende do ser que ele nega. Deste modo,
meu amigo, o ser tem uma prioridade ontológica sobre o não-ser.
Não poderia haver negação se não houvesse uma afirmação pre-
cedente a ser negada (TILLICH apud VERISSIMO, 1976, p. 13).

Para Bachelard (1988), a imagem poética é suscitada, quando ela


tem existência no próprio jorro da imaginação, quando o leitor /fruidor
é sensibilizado por forças oníricas que o tomam de corpo e espírito a
ponto de colocá-lo também em estado imaginativo, em estado de anima
ou estado de devaneio poético. Parece que Verissimo aprende que a
escrita literária não é obra somente da mente, mas também do corpo.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 71

O gosto pelas artes – música, poesia, cinema


Verissimo, artista da literatura, em sua narrativa autobiográfica,
apesar de não ser sua preferência, como foram outros escritores de
sua geração, escreveu apenas dois livros de ensaio: “Breve história
da literatura brasileira” (1945) e “Rio grande do Sul” (1973). Mas
não é sobre esses livros que busco imaginar, mas sim as lembranças
de Verissimo sobre a poesia, a música e o cinema, três artes que ele
sempre apreciou. Para ele, a relação entre a poesia e a música tem
o sentido de complementaridade.

[...] Creio que o enigma da vida é já tão complicado, que o


escritor não deve criar em torno dele outro enigma, nem mesmo
de natureza verbal. A poesia, essa sim, é o reino das palavras, o
campo próprio para experiências imagísticas, metafóricas, em
suma, para toda essa metafísica ou alquimia da linguagem. E
estados de alma existem que nem a poesia consegue descrever
ou sugerir, e é nesse ponto que a música pode vir em seu socorro
(VERISSIMO, 1976, p. 309).

Também evoca a música enquanto elemento importante para


dormir. Não foi por acaso que deu a essa autobiografia o título de
Solo de Clarineta.

Estou convencido de que meu primeiro contato com a música,


o canto, o conto e a mitologia se processou através da primeira
cantiga de acalanto que me entrou pelos ouvidos, sem fazer sen-
tido em meu cérebro, é óbvio, pois a princípio aquele conjunto
ritmado de sons não passava dum narcótico para me induzir ao
sono (VERISSIMO, 1973, p. 60).

Quanto à sétima arte, Verissimo teve contato com ela ainda


muito cedo. Ele recorda momentos da sua longínqua infância e rela-
ciona com a idade adulta.

Meu interesse por cinema começou muito cedo com a lanterna


mágica, aparelho primitivo de projeção, dotado duma lente de
aumento através da qual passava a luz duma lâmpada de que-
rosene, projetando, numa parede branca ou em telas improvi-
sadas com toalhas ou lençóis, estórias de quadrinhos. Na idade
72

adulta – e o mesmo me acontece agora na velhice – sempre


que sinto cheiro de querosene queimado, minha mente, casa
assombrada por fantasmas, gratos uns, perturbadores outros,
imediatamente se povoa palidamente das alegrias e deslum-
bramentos do menino de cinco anos que via o feixe luminoso
sair da lanterna e transformar-se no quadro branco em imagens
coloridas (VERISSIMO, 1973, p. 103-104).

Para Bachelard (2000), os cheiros suscitam imagens, como


exemplo de espaço poético. Assim, leio as lembranças de Verissimo
quando alude ao cheiro de querosene queimado.

O gosto por lápis de cor


Os intelectuais de um modo geral e os escritores da literatura
em particular, em sua maioria, possuem algum tipo de mania, ou
gosto de fazer na hora de produzir seu ofício. A título de exemplo,
para sair do contexto brasileiro, cito Gabriel Garcia Marquez que
tinha a mania de, antes de começar a escrever, fazer a ponta de 12
lápis, porém não era para usar esses lápis (MARQUEZ, 2003). Veris-
simo, por sua vez, tinha prazer em adquirir lápis de cor.

Eu sentia uma grande atração por todos os tipos de lápis de cor, cai-
xas com pincéis e pastilhas de aquarela, e o curioso é que até hoje,
já na reta final para os setenta anos, conservo essa afeição infantil e
o hábito de rabiscar caricaturas onde quer que me caia na mão uma
caneta ou um lápis e eu veja um pedaço de papel em branco. [...]
Na minha casa a peça que mais me atraía e divertia era o escritório
de meu pai – que ele pouco usava (VERISSIMO, 1973, p. 68).

Diferente desse escritor colombiano, Verissimo utilizava os lápis


de cor para rabiscar e desenhar as caricaturas de seus personagens.

Gosto pelo circo

Quase todas as crianças, destacadamente quem nasce e vive


no interior, gosta de circo, pois em outrora era um dos únicos diver-
timentos para crianças, adolescentes e adultos. Verissimo também
conta que gostava de circo.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 73

Em dia de circo, eu já pela manhã começava a examinar o céu,


apreensivo ante cada nuvem que surgisse no horizonte. Se cho-
vesse não haveria espetáculo [...] Entre os palhaços da minha
infância, guardo grata lembrança de um que era a alma de seu
pequeno circo: o Braga, negrão alto e corpulento, natural da
Bahia, e que tinha o aspecto dum chefe de tipo africano. Muito
espirituoso, sabia cantar cançonetas, emboladas e lundus. Havia
uma canção – creio que a respeito do bombardeio da Bahia –
cujo estribilho era mais ou menos assim: Tchim-bum! Não é
nada, É o eco da granada! (VERISSIMO, 1973, p. 115).

Essa lembrança que Verissimo relata, certamente desse palhaço


também foi marcante na vida de outras crianças, inclusive a minha.
O palhaço é uma das mais importantes atrações de um circo, pelo
menos noutros tempos.

As amizades

Colher amizade e preservá-la é uma das virtudes de Verissimo.


Em Solo, tem lembranças de vários amigos e amigas, mas trago dois
que ele narra com mais veemência a relação de amizade. Um deles
chamava-se Henrique Bertazo com quem trabalhou por muitos anos
na Livraria Globo em Porto Alegre.

Em princípios de 1931 conheci Henrique Bertaso, homem


também da minha geração. Como era “filho do chefe” eu não
quis aproximar-me muito dele. Como, porém, trabalhávamos
na mesma casa, nossas relações aos poucos e naturalmente se
foram fazendo mais estreitas e acabaram por transformar-se em
amizade (VERISSIMO, 1973, p. 249, grifo do autor).

Outro, conhecido pelo nome de Lotário Müller, com quem


formou uma sociedade para abrir a segunda farmácia.

Metodista, solteirão inveterado, dono de pequena casa própria,


fortalhão, cara larga, cabelos ralos e louros, pele alva, boca de
lábios finos, o nosso “alemão” era homem de leituras ecléticas,
mas em geral bem informado (VERISSIMO, 1973, p. 195).
74

É importante lembrar que a primeira farmácia era de seu pai, o


qual levou à falência. Verissimo, anos depois disso, junto com esse
amigo, abriu esse negócio, o que não prosperou. Isso denota que o
negócio de Verissimo era mesmo a literatura.

Dois vizinhos

Verissimo, em toda sua trajetória, viveu em várias residências e em


cidades diferentes e teve muitos vizinhos. Em Solo, relata a relação com
o casal italiano Rafaelle e Carmela o qual marcou muito a sua infância.

Em suma, o “masseiro”, sua companheira e a vasta prole


do casal constituíram um grato momento da minha infância
(VERISSIMO, 1973, p. 93, grifo do autor).

Do relato desse casal, ele passa a relatar sobre um outro vizinho


que morou em Cruz Alta e, também, foi figura relevante, por isso
lhe traz lembrança.

Passou pelo Sobrado, como um escuro meteoro, um negro


que conhecíamos pela alcunha de Baiano [...] Por incrível que
pareça, até hoje, passados sessenta anos, sempre que vejo uma
vidraça contra a noite, me vem à mente a carantonha7 do baiano
(VERISSIMO, 1973, p. 64).

Nessa lembrança, Verissimo associa a luz da vidraça na noite


com a face do vizinho, por este ter a pele escura.

Sobre sexualidade e erotismo

Verissimo tem na memória lembranças de muitos personagens


que marcaram indelevelmente sua vida. Um desses personagens,
vivenciado em sua fase de adolescência, está relacionado à sexua-
lidade de um jovem de sua idade em uma cidade do interior.

No momento em que escrevo estas linhas, uma figura se traça


nítida na minha memória. Tinha muito quatorze anos e sofria

7 Cara grande, cara fechada, carranca.


MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 75

todas as frustrações dessa idade: voz epicena, postura desa-


jeitada, timidez desconfiada, ignorância supersticiosa, princi-
palmente em matéria de sexo (VERISSIMO, 1973, p. 48-49).

Parece comum que jovens adolescentes do sexo masculino não


gostem de falar de sua primeira relação sexual, mentindo a respeito ou
omitindo informações. Com Verissimo não foi diferente, lá na segunda,
terceira década do século XX.

Aos amigos eu mentia ou dava a entender que já havia conhe-


cido fêmea no sentido bíblico durante meus anos de ginásio,
em Porto Alegre (VERISSIMO, 1973, p. 163).

Essas lembranças são narradas por Verissimo com naturalidade,


tal como mostro a seguir.

Um de alívio e satisfação: agora eu era um homem completo,


e não havia nenhum mistério no ato sexual. O outro era de
frustração. Afinal de contas, desde os doze anos eu tivera em
meu serralho particular mulherinhas de papel que me haviam
proporcionado muito, mas muito mais prazer do que a moça de
Bagé (VERISSIMO, 1973, p. 165).

Esse alívio só ocorreu depois de muitos anos vivendo sob a


culpa de ter transgredido às normas sociais e religiosas; assim, ele
narra lembranças no que se refere à prática da masturbação.

O simples fato de saber que Cordélia se encontrava a poucos


passos de meu quarto, de minha cama, punha-me o sangue a
ferver, excitava-me e ao mesmo tempo me deixava antecipa-
damente frustrado, pois eu sabia que minha timidez não me
permitiria ir até onde a rapariga dormia. Armei todas as arapucas
imagináveis para prender o sono. Inútil. O sangue pulsava-me
nas têmporas e em outros lugares menos nobres de minha ana-
tomia (VERISSIMO, 1973, p. 49).

Naquela época, a Igreja pregava que a masturbação era pecado,


além de debilitar a saúde do jovem adolescente que praticava esse ato.
76

Estava eu um dia escondido num canto, empenhado num ato


desse amor proibido, quando notei que de meu sexo esguichava
um líquido de aspecto leitoso, cujo nome eu conhecia, pois era
muito usado interjectivamente pelos membros de nosso grupo.
Foi o mais espasmódico de todos os meus orgasmos até aquela
data, um gozo que chegou a doer – surpresa, alarma, orgulho...
imaginei que aquela perda seminal me ia deixar terrivelmente
debilitado. Lera, em publicações protestantes contra a mastur-
bação (VERISSIMO, 1973, p. 78).

Tanto esse excerto como o próximo tratam do sentimento de


culpa de Verissimo por ter praticado a masturbação.

Acusava a figura do espelho de me ter induzido ao feio ato.


Meu reflexo repelia a acusação, lançando sobre mim a culpa de
todos aqueles pecados. Por fim concluíamos que éramos ambos
habitantes de Gomorra (leituras do próprio Eu Sei Tudo). O fogo
do inferno nos esperava. No dia seguinte, porém, era o fogo de
nossas entranhas que nos levava de volta ao serralho da ima-
ginação. E a tragicomédia continuava... (VERISSIMO, 1973,
p. 79, grifos do autor).

Assim, Verissimo se auto-culpava pelo ato solitário que prati-


cava. Apesar de não se considerar católico, associava tal sentimento
aos pecados que a Igreja aponta.

As raparigas de Nazaré

É diferente o sentido do termo “rapariga” no Brasil do que é


usualmente praticado em Portugal. Verissimo, quando esteve nesse
país pela primeira vez, teve contato com as mulheres trabalhadoras
da zona de Aveiro e faz essa observação sobre essa palavra entre
seu uso num país como noutro.

As raparigas de Nazaré (ah! O esforço que como escritor tenho


feito para reabilitar a bela palavra rapariga, tão desmoralizada
no Brasil, onde no passado, pelo menos no Rio Grande do Sul,
era sinônimo de prostituta e hoje, quando usada, é apenas para
designar empregadinhas domésticas) mas, como ia dizendo,
estas mulheres descalças de Nazaré usam em geral blusas
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 77

escocesas de lã, e sete saias pregueadas e rodadas, uma por cima


da outra, e que parecem dançar no ritmo de seus passos firmes.
Andam descalças e quase sempre equilibram nas cabeças ces-
tos cheios de peixes e mariscos. “Nunca imaginei” – murmura
Mafalda – “que fosse encontrar aqui mulheres e homens louros
e de pele clara!” – “Não te esqueças” – digo – “que em remotas
eras andaram por estas bandas raças nórdicas: celtas, visigodos,
suevos...” (VERISSIMO, 1976, p. 116, grifos do autor).

Um dado interessante que merece ser evidenciado e foi narrado


por Verissimo é que as mulheres de pescadores que morrem, em espe-
cial no mar, na zona portuária portuguesa não podem casar outra vez.

Quem são aquelas mulheres vestidas de negro, algumas idosas,


outras de meia-idade e não poucas ainda jovens? São viúvas de
pescadores que morreram no mar ou em terra firme. Segundo
uma tradição local transformada em lei não escrita, mas nem
por isso menos inflexível, uma viúva aqui não tem o direito de
casar-se de novo (VERISSIMO, 1976, p. 117).

Essa observação de Verissimo é bem específica dessa região


litorânea portuguesa, visto que nunca havia visto falar nesse aspecto.
Ao meu ver, é como se existisse uma veneração ao mar, o qual é
fonte de sustento para os pescadores e suas famílias, em especial
suas respectivas esposas, embora não tenham perdido seus esposos/
pescadores não necessariamente no mar, mas em terra firme também.

Lembranças do Titanic

Para Verissimo, uma lembrança marcante e trágica foi receber a


notícia do naufrágio do navio inglês Titanic, embora tenha chegado
com certo atraso, devido sobretudo as comunicações que não tinham
a rapidez que temos nos dias atuais. Interessante que ele faz uma
reflexão comovente imaginando a morte de aproximadamente mil
pessoas entre adultos e crianças.

Em 1912 chegou-me, primeiro através dos comentários dos


mais velhos e depois nas páginas das revistas do Rio de Janeiro,
a notícia do naufrágio do Titanic. Profundamente comovido,
78

sentei-me na borda do canteiro onde estava plantada a amei-


xeira-do-japão e ali fiquei, calado e imóvel, tentando recriar
no espírito a horrível tragédia que havia devorado mais de mil
vidas humanas. Eu “via” o transatlântico afundando no negror
gelado da noite e do mar: o pequeno grupo de passageiros na
proa (ou na popa?) cantando um hino religioso – “Mais perto
quero estar, oh meu Deus, de ti!”. Creio que naquela noite tive
um pesadelo em que uma montanha de gelo crescia diante de
meu pavor (VERISSIMO, 1973, p. 95-96, grifos dos autor).

Nesse trecho, Verissimo associa a música, por meio de um hino


religioso, mesmo sem ser católico, ou seguidor de outra religião.
Como certa vez afirmou ser “agnóstico, isto é, um homem que não
se encontra na posse de provas convincentes que lhe permitam negar
ou afirmar a existência de um Criador” (VERISSIMO, 1976, p. 311).

Casa-Sonho

Para Bachelard (2000), a casa simbólica é um espaço de pro-


teção, casa sempre mais imaginada do que real, daí criar a noção
casa-sonho. Mesmo as casas reais em que vivemos, conteriam bas-
tante de sonho ao serem lembradas.
Verissimo, em suas memórias, narras as lembranças das casas
onde viveu, seja em Cruz Alta, seja em Porto Alegre, ou nos Estados
Unidos onde também morou
Em sua primeira casa, onde viveu desde o nascimento até a
idade dos 17 anos quando seus pais se separaram, as lembranças
que tem não são das melhores.

Depois daquela terrível noite de 1922, quando os meus se separa-


ram, eu saí em busca do lar perdido (VERISSIMO, 1976, p. 319).

Verissimo, ao lembrar dessa casa através da imaginação, me


leva a pensar no que Bachelard adverte: “A casa é uma das maiores
forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos
do homem” (BACHELARD, 2000, p. 26).

Nem toda casa – já se tem dito muitas vezes – é um lar. Nunca,


porém, fui indiferente à expressão material do lar, o que se
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 79

explica pela minha tendência de ter do mundo uma visão


plástica. A noção de lar está em mim associada à de casa –
o conteúdo inseparável do continente8. Ambas como que se
interpenetram: há nelas uma espécie de interação (VERIS-
SIMO, 1976, p. 319-320).

Habitar a casa natal é o mesmo que viver na casa desaparecida


tal como foi sonhada um dia, diz o filósofo. A casa da infância e
a casa natal são centros de sonho. Delas é preciso dizer somente
o bastante para que se entre em situação de onirismo, para que se
repouse num passado sonhado (BACHELARD, 2000). Diante de
suas imagens, o leitor já não lê a imagem da casa do escritor, mas
sua própria casa-sonho, onde cada um de seus redutos foi um abrigo,
uma habitação para um devaneio poético. A casa-sonho é a casa
que abrigou sonhos. A casa da infância, a casa sonhada na infância,
aproxima o leitor de uma infância imóvel, daquela infância recon-
quistada com lembranças de proteção, infância que permanece viva
em nós através de nossos devaneios poéticos (BACHELARD, 1988).
Uma das mais significativas imagens do espaço onírico é, por-
tanto, a casa, compreendida por Bachelard como imagem de inti-
midade protegida, reconfortante. O canto que cada um encontra no
mundo. O primeiro universo. Tem seu valor de abrigo, algo profun-
damente arraigado no inconsciente coletivo. A busca de Bachelard
(2000) ao tratar da imagem da casa é por revelar os valores do espaço
habitado, ao menor abrigo, a imaginação dá o sentido de casa, diz
ele. A casa faz evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a
síntese do imemorial com a lembrança, em que memória e imagi-
nação não se dissociam, complementa o filósofo-poeta.

Nossa casa está sempre de portas abertas. Nunca se sabe quem


por elas vai entrar nem quando. Mafalda e eu podemos estar à
noite completamente a sós, lendo ou escutando música, e minu-
tos depois termos conosco dez, quinze, vinte pessoas – amigos
e às vezes até desconhecidos, que aparecem para uma prosa,
sem nenhum motivo relacionado com o calendário ou qualquer
convite especial (VERISSIMO, 1976, p. 320).

8 Esta palavra, imagino eu, Verissimo deve estar se referindo ao “Continente”, o primeiro
volume de “O tempo e o vento”.
80

Verissimo, em toda sua existência, nos quase 70 anos em que


viveu, residiu em diversas casas. Porém, duas delas, posso destacar;
a de Cruz Alta, em que nem chegou aos 18 anos de idade e a de
Porto alegre, onde viveu de 1941 até o dia de sua morte, em 28 de
novembro de 1975. Segundo suas palavras,

Foi em 1941 que a Dra. Stella Budiansky, nossa querida e dedi-


cada amiga, e médica de nossos filhos [...] anunciou-nos que
tinha visto no alto de uma das colinas de Petrópolis, o mais
novo bairro residencial da cidade, uma casa recém-construída
que estava à veda. Mafalda e eu, que andávamos [...] em busca
do lar definitivo, fomos vê-la e... foi amor à primeira vista. Era
uma combinação de falso colonial espanhol com falso colonial
português, mas tinha uma fisionomia simpática e serena. Che-
gamos a descobrir nela um ar de casa já habitada por nós? Mas
quando? (VERISSIMO, 1973, p. 278).

Segundo Bachelard (2000), a casa é lugar de proteção, e os


espaços da casa são espaços vivos. Por isso, elas pouco têm a ver
com a geometria. Cada lugar e cada objeto tem memória e signifi-
cado, dados pelas vivências que eles testemunharam. E as vivências
do lar refletem o espaço íntimo de seu criador.

Alegra-nos saber que as pessoas geralmente sentem-se bem em


nossa casa. Uma jovem que andava atormentada por incertezas
e temores, confessou-nos um dia que, sob aquele teto, sentia-se
abrigada, protegida e reconciliada com a vida. Outros amigos
nos têm dito que nossa presença combinada com a atmosfera da
casa – que é mais que a forma, a cor e a disposição dos móveis,
quadros, tapetes, lâmpadas – proporciona-lhes uma sensação
de repouso e paz (VERISSIMO, 1976, p. 320).

Assim, trago essas lembranças autobiográficas de Verissimo,


articuladas ao que Bachelard fala sobre memória. Memória de “[...]
uma infância que vai mais longe do que as lembranças da nossa
infância, como se o poeta nos fizesse continuar, concluir uma infância
que ficou inconclusa e que, no entanto, era nossa e que, sem dúvida,
por diversas vezes temos sonhado” (BACHELARD, 2009, p. 100).
POÉTICA(S) DA MEMÓRIA
EM SOLO DE CLARINETA: do
sonho de ser pintor (não realizado)
ao escritor consagrado
A memória não só registra, ela confabula, isto é, cria aconteci-
mentos imaginários, eventos inteiramente psíquicos. A memória
é o elemento que a imaginação pode tomar emprestado, a fim
de fazer suas imagens personificadas perceberem-se comple-
tamente reais.
James Hillman

Neste capítulo, realizo as leituras de imagens de Solo de Cla-


rineta, articulando as memórias de Verissimo aos espaços poéticos
e de imaginação, nos termos bachelardianos. Para dar conta desse
intento, me apropriei da leitura imaginativa que fiz dessa obra,
buscando mostrar que é possível chegar a uma poética memorial
autobiográfica. Assim, exponho as memórias de Verissimo, procu-
rando mobilizar as teorias do imaginário e iluminar tais lembranças/
memória a partir da minha imaginação criadora. Importante lembrar
que para imaginar não precisa de uma teoria, contudo as criações
imaginárias podem dialogar com teorias que tratam do imaginativo.
Pensar em escrever memórias, logo imagino uma escrita
que deve seguir uma ordem cronológica, uma vez que trata-se de
dados autobiográficos. No entanto, Verissimo pensa diferente, tal
como assinala:

Escrever memórias numa ordem rigorosamente cronológica


seria uma tarefa difícil, perigosa e possivelmente monótona.
De resto, o tempo do calendário e o do relógio pouco e às
vezes nada têm a ver com o tempo de nosso espírito (VERIS-
SIMO, 1973, p. 51).

Essa fala, efetivamente, me ajudou a não seguir a leitura de


Solo em ordem cronológica. Li-o, de modo circular e imaginativo,
82

num sistema de idas e vindas, embora a primeira leitura, quando


estava de posse dos volumes dessa obra, tenha lido verticalmente,
ou seja, da primeira página até a última.
Uma palavra bastante utilizada por Verissimo nessa obra é
“computador”. Ele se referia a essa palavra como sendo sua memória.
As pessoas que frequentavam a farmácia de seu pai, entre “vadios”
e “aposentados”, foram importantes figuras humanas que ofereciam
ao futuro romancista elementos para uma variada e colorida galeria
de personagens.
Noutra passagem, ele escreve que estava:

Convencido de que o inconsciente representa um papel muito


importante – mais do que o escritor geralmente quer admi-
tir – no ato da criação literária. Costumo comparar nosso
inconsciente com um prodigioso computador cuja “memória”
durante os anos de nossa vida (e desconfio que os primeiros
dezoito anos são os mais importantes) vai sendo alimentada,
programada com imagens, conhecimento, vozes, ideias, melo-
dias, impressões de leitura, etc... O “computador” – à revelia
de nossa consciência – começa a “sortir” todos esses dados,
escondendo bem alguns deles, que passamos anos e anos sem
que tenhamos sequer conhecimento de sua existência (VERIS-
SIMO, 1973, p. 293).

Nesse contexto, acrescenta Verissimo: “O misterioso compu-


tador de meu inconsciente ia sendo assim programado sem que eu
soubesse” (VERISSIMO, 1973, p. 39). Morin (2012, p. 97) faz uma
analogia entre o cérebro e o computador, sendo este comparado à
mente/cérebro humano. Segundo ele, “essa comparação revela as
diferenças e as analogias”.
Entendo que Verissimo se referia ao computador, sendo sua
mente/cérebro, embora Morin faz alusão ao computador como uma
máquina não humana mas produzida pelo homem.

O sonho de ser pintor (não realizado)

O sonho de ser um pintor profissional permeou a memória de


Verissimo em toda narrativa autobiográfica.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 83

Em um dos registros, no segundo volume, Verissimo narra as


lembranças de quando esteve no México:

A gente e as coisas mexicanas fascinavam em mim o roman-


cista, o pintor irrealizado e possivelmente o remoto índio que
dormita agachado em algum abscôndito recanto de meu ser
(VERISSIMO, 1976, p. 7).

Com essa passagem, vejo o escritor retomando seus sonhos


que o religam a si mesmo, a algo mais profundo que emerge com
as lembranças e com a memória escrita que as exprime.
Há várias passagens em que Verissimo demonstra ter talento
para o desenho. Inclusive, isso de praticar o desenho, chegou a
chamar atenção de sua mãe, visto que roubava material dela
para desenhar.

Eu tirava um papel em branco de uma das gavetas – não sem


primeiro ouvir de minha mãe que “papel, meu filho, custa
dinheiro” – e ficava a desenhar figuras humanas, casas, vacas,
o Demoiselle de Santos Dumont, transatlânticos, balões, as
pirâmides do Egito, paisagens nativas com coxilhas, capões,
cavalos... Muito croque na cabeça levei de minha mãe por ter
manchado de tinta o pano verde da mesa ou por ter entornado
no soalho um vidro de goma-arábica. (“Esse menino tem muito
jeito pro desenho.” Ouço com a memória esta frase, mas não
consigo identificar a voz.) (VERISSIMO, 1973, p. 68-69, grifos
do autor).

Verissimo sonhava tanto em ser um pintor a tal ponto de se


imaginar pintando telas de paisagens europeias.

Consolava-me a idéia de que, segundo lera em livros, os ver-


des das colinas da Escócia eram dos mais belos do mundo e
então, para me consolar e para exorcizar a preocupação, eu me
imaginava a pintar numa tela as paisagens escocesas (VERIS-
SIMO, 1973, p. 159).

Ainda em se tratando do sonho de ser pintor, Verissimo chegou


à conclusão de
84

Que jamais viria a ser um bom desenhista, isto é, um criador.


Se havia para mim alguma esperança, essa estava no quadrante
das letras e particularmente no da ficção. No entanto eu insis-
tia em apenas traduzir. Era ainda uma atitude de caramujo.
Recusando produzir literatura própria, eu nada mais fazia que
buscar proteção à sombra de nomes literários consagrados. De
resto, refletia eu, quem no mundo poderia interessar-se pelo que
eu viesse a criar, pois já chegara à firme conclusão de que me
faltava talento para a poesia e carecia de cultura para o ensaio.
Restava-me tentar a ficção (VERISSIMO, 1973, p. 201).

Além desse sonho, do qual posso dizer que Verissimo não se


sentia frustrado, existia nele, também, o sonho de ser poeta, tal
como relata:

Se o pintor e o poeta frustrados que coexistem em mim com


o romancista se haviam comprazido na feitura de Clarissa, o
caricaturista e o satirista tiveram seu dia de festa em Caminhos
Cruzados (VERISSIMO, 1973, p. 255-56, grifos do autor).

Entendo, nesse relato, que Verissimo entra em contradição


quando refere que existia em si um pintor e um poeta frustrado, e
ao mesmo tempo escreve que superava sua frustração transforman-
do-os em personagens de seus romances.
Não obstante não ter alcançado esses dois intentos, tornou-se
um romancista e dos mais conhecidos da literatura brasileira. Esse
objetivo alcançado por Verissimo, leva-me a trazer Hilmann (1997,
p. 14-15), quando indaga: “Como juntar as peças de minha vida para
formar uma imagem coerente? Como encontrar a trama básica de
minha história?”. Tal como afirma Verissimo:

[...] creio que a história da minha vida seguiu uma trajetória clara e
coerente e até certo ponto coerente, e que se tem mantido ininter-
rupta desde meus dezoito anos [...] (VERISSIMO, 1976, p. 319).

Não me parece isso ser verdade, visto que pela leitura que fiz
de Solo, Verissimo entra em algumas contradições tais como essa,
quando diz ter sido coerente em termos de trajetória de vida.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 85

Conflitos da imaginação

Verissimo, num dado momento, faz alusão a momentos de


enfrentamento e de muitas batalhas em sua vida.

As minhas melhores guerras eram as da imaginação, em que


sempre eu era o impávido capitão que não conhecia o medo.
Quantas vezes enfrentei pelotões de fuzilamento! Quando seu
oficial comandante queria vendar-me os olhos, eu sacudia a
cabeça com sublime desprezo e dizia: “Não. Não temo a morte.
Morro pela Pátria!”. Assim, morri várias mortes, e meu nome-
contadas também minhas muitas vitórias – ficou gravado em
letras de ouro numa História que jamais foi nem será escrita
(VERISSIMO, 1973, p. 58-59).

Não obstante essa imaginação a que refere Verissimo não se


configurar numa imaginação poética na perspectiva de Bachelard,
trago aqui o que esse pensador francês diz sobre isso. A imaginação,
para Bachelard (2001), não está restrita à formação de imagens
a partir da realidade, ela forma imagens que ultrapassam o real,
concebendo e instaurando outras realidades, já que ele acredita que
“imaginar sempre será mais que viver”, e a imaginação é a faculdade
de ‘deformar’ as imagens suscitadas pela percepção.

Primeira vez que viu o mar

Verissimo só teve a oportunidade de conhecer o mar, em mea-


dos da década de 1930.

Eu tinha quase trinta anos e jamais vira o mar. Passara os primei-


ros vinte e cinco da minha vida numa cidade do interior. Talvez
me tivesse deixado contagiar por essa indiferença, esse quase des-
prezo que o homem do interior tem pelo mar – isso sem prejuízo
da fascinação artística e literária que a palavra e a ideia “oceano”
exerciam sobre o meu espírito (VERISSIMO, 1973, p. 260-261).

Sobre isso, vem à mente um dado que me faz pensar e imagi-


nar: por que será que, mesmo o Rio Grande do Sul ser um estado
banhado pelo Oceano Atlântico, e também, sua casa em Porto Alegre
86

distava cem quilômetros das praias gaúchas, Verissimo escolheu a


cidade do Rio de Janeiro para ter o primeiro encontro com o mar?
Segundo suas palavras:

Comprei uma passagem de terceira classe no navio italiano


Oceania, no qual embarquei no porto da cidade de Rio Grande.
Foi através de suas vigias que, num dia cinzento de céu nublado,
tive a minha primeira visão do mar. Sua cor me decepcionou:
não era o luminoso verde nem o azul profundo que eu esperava,
porém um violeta desmaiado e opaco. Mas afinal de contas era
o mar... (VERISSIMO, 1973, p. 261).

Assim, fica evidente nessa última fala, que a primeira vez que
viu o mar foi na cidade gaúcha citada, embora só tenha pisado na
areia da praia na capital fluminense9.
Bachelard (1998), em “A água e os sonhos”, ao tratar dos quatro
elementos materiais (o fogo, o ar, a água e a terra), nos diz que muito
mais que os pensamentos claros e as imagens conscientes, os sonhos
estão sob a influência desses quatro elementos. Nesse sentido, o ele-
mento material água, descrito por Bachelard, é sonhado por Verissimo.

O médico e amigo da família – Eduardo Faraco

Verissimo, em toda sua trajetória de vida, alternou momentos


saudáveis e de doença. Usando meus conhecimentos de aspirante
a escritor de ficção, tento descrever esse índio, como também era
conhecido pelos amigos e parentes; magro, julgo não pesava mais
do que 70 quilos, altura mediana, cabelos castanhos, Verissimo se
considerava apenas um contador de estórias.
O médico Eduardo Faraco e amigo da família foi importante
para sua vida. As lembranças que Verissimo traz desse médico, leva-
-me a imaginar a relação que ele faz com os médicos existentes
em sua família, sobretudo pelo lado paterno. Seu avô paterno era
médico, teve tio médico e propriamente seu pai foi um farmacêutico.
Sobre esse importante médico e amigo, descreve:
9 Nessa época, a cidade do Rio de Janeiro era capital do estado da Guanabara e o Estado do
Rio de Janeiro tinha como capital a cidade de Niterói. Só em 1975, os dois estados fundiram
se e formaram o que hoje é rio de Janeiro e capital a cidade do Rio de Janeiro.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 87

A imagem que eu guardava dele no complicado arquivo da


memória era a dum homem muito bem apessoado, de ares um
tanto agressivos – garboso gladiador permanentemente no cen-
tro da arena, à espera do próximo retiário. Algo em seu rosto
– talvez o desenho da boca – dava-lhe uma quase permanente
expressão de desdém (VERISSIMO, 1976, p. 8).

Em conversa com esse médico, dessa vez nos Estados Unidos,


Verissimo recorda-se de um momento marcante, conforme relata:

Lembro-me de que uma vez estávamos discutindo não me lem-


bro exatamente que, quando um dado momento Faraco fez uma
dessas perguntas retóricas que são, por assim dizer, trampolins
numa conversação. “Sabes o que são as cores, não?” Interrom-
pi-o: “As cores são doenças da luz”. Ele me olhou, franziu a
testa, e disse: “Deixa de literatura, índio!”. Vencendo a minha
tradicional preguiça, dei um salto mortal que me levou meio às
cegas de volta a uma certa página dum texto ginasial de Física
(VERISSIMO, 1976, p. 9, grifos do autor).

Verissimo tem na memória as cores como algo poético. Não foi


por acaso que tentou ser pintor. Nesse diálogo, seu amigo lhe explica
que as cores são doenças da luz e ele, ao mesmo tempo, articula com
as aulas de física dos tempos ginasianos na capital gaúcha.

Os problemas cardiovasculares e a memória-sonho


Em 1961, Verissimo viveu um dos mais conturbados momentos
de enfermidade de sua vida. Certo dia, quando estava em seu quarto
após o médico ter lhe aplicado um frasco de soro fisiológico, fez uma
viagem imaginária e escreveu:

Senti um arrepio pelo corpo todo, produzido não pela dor das
repetidas picadas, mas pela impressão visual delas. Resolvi
então, num mecanismo de defesa, ausentar-me em espírito
daquele quarto, fechei os olhos e busquei na memória momen-
tos agradáveis de meu passado. Deixando o corpo na cama,
transportei-me para um certo anoitecer de fevereiro de 1959, em
Portugal. Tinha acabado de descer do automóvel de meu editor
português em Conímbriga, nas proximidades de Coimbra. Íamos
88

ver umas ruínas romanas. O céu, onde cintilava a estrela vesper-


tina, e o ar, que o frio hálito da noite embalsamava, pareciam
feitos do mesmo translúcido cristal azulado. [...] eis um momento
que jamais poderei esquecer… (VERISSIMO, 1976, p. 29).

Nesse trecho, o escritor se reporta ao espaço onírico. Não é que


o escritor se reporte ao espaço onírico, mas é que observo essa ideia
bachelardiana no pensamento de Verissimo. Para Bachelard (2000),
se reportar ao espaço onírico é falar também de tempo, na medida em
que concebe tempo e espaço em sua indissociabilidade. Defende que
não se pode viver as durações abolidas (passado), somente sonhá-
-las. E é no espaço onírico onde se encontraria os belos fósseis de
duração concretizada, já que o inconsciente permanece nos locais,
alojado no espaço onírico da intimidade (GOMES, 2013). Assim,
o espaço onírico retém o tempo comprimido; essa é sua função, ele
possibilita e revive as durações concretas. Por isso, acessar as espa-
cialidades oníricas suscitadas pelas imagens literárias das memórias
de Erico Verissimo em Solo de Clarineta é um recurso para falar
da memória no sentido bachelardiano, ou seja, de memória-sonho,
memória-imaginação (GOMES, 2013).

Antes de ir para a cama, aquela noite, tomei um tranquilizante.


Creio que não levei muito tempo para cair no sono. Lembro-
-me vagamente de que ao amanhecer tive um sonho: estava no
fundo dum rio, tentando, aflito, subir à superfície para respirar...
Despertei, estremunhado, dentro dum grande mal-estar em que
continuava a sensação de afogamento, agora acompanhada de
dores que me agulhavam o peito, irradiando-se para o ombro
esquerdo, continuando no braço, adormentando-o, ao mesmo
tempo que subia, numa espécie de reflexo, pelo pescoço. O cora-
ção havia disparado, e eu sentia as suas batidas surdas e arrítmi-
cas. “Vai passar” – pensei – “não é nada” (VERISSIMO, 1976,
p. 24-25, grifos do autor).

Lembrando que esse sonho, ao qual refere Verissimo, é sonho


de dormir, e não posso relacioná-lo com a memória-sonho.
Observo que essa fase na vida de Verissimo foi uma das mais
complicadas, visto que não mexeu apenas com o seu físico, foi muito
mais além. Era como se a doença tivesse contornos espirituais.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 89

Vultos, faces, vozes, impressões, sensações ligadas à fase aguda


de meu acidente cardíaco voltam-me agora à mente, alguns
claros, outros esfumados, mas eu não saberia colocá-los na
sua devida ordem cronológica. O tempo como que passou a
ser função do espaço daquele quarto ou, melhor, do espaço de
meu cérebro. Estive quase permanentemente sob o efeito de
sedativos, alternando períodos de sono profundo com interva-
los duma aguda lucidez, em que não perdia nada, nada do que
passava ao meu redor (VERISSIMO, 1976, p. 28).

Para Bachelard (2000), o espaço exterior corresponde a um


espaço íntimo, espaço onírico que abriga nossos sonhos.

O coração me bate mais acelerado que de costume. E agora,


passados dezesseis anos eu me pergunto o porquê dessa simu-
lação. Machismo? Pudor de revelar fraqueza? Temor de deixar
minha companheira alarmada? Relutância em aceitar o fato de
que tenho problemas cardíacos? Não sei se durante todo esse
tempo consegui obter uma resposta honestamente satisfatória a
todas essas indagações (VERISSIMO, 1976, p. 133).

Os excertos a seguir, ao meu ver, é um dos mais expressivos, uma


vez que me faz imaginar a relação que ele faz, através das lembranças,
aproximando a experiência da sua doença com um momento vivenciado
por ele em 1959, mais precisamente nas colinas romanas, em Portugal.

Anoitecia já quando descemos do carro para ver as ruínas de


Conímbriga, que distam apenas uns quinzes quilômetros de
Coimbra. Jorge de Sena dissertou brevemente sobre Conímbriga.
De súbito calou-se. Senti então o mistério daquela hora que eu
havia de recordar dois anos mais tarde quando, estendido numa
cama, entre a vida e a morte, angustiada e febril, em espírito eu
procurava refúgio naquele momento e naquele lugar de silêncio e
paz, que haveria de ficar-me na memória como um mágico retalho
recortado ao tecido do Tempo (VERISSIMO, 1976, p. 125-126).

Leio essa lembrança através de uma imagem, não por ser com-
preendida por aquilo que ela me mostra, pois preciso ir além e
perceber a “imaginação” que essa imagem desperta, tal como nos
diz Hilmann (1995).
90

O fascínio pelo “demônio” das viagens


Verissimo registra seu fascínio por viagens desde o tempo
de infância. Em seu segundo volume de Solo, dedica grande parte
da narrativa as viagens que realizou pelos Estados Unidos e pela
Europa, em especial, visto que as outras que fez, ao mundo oriental,
narrou e publicou em outros livros, tais como “Israel em abril”.

Estas memórias ficariam injustificavelmente incompletas se nelas


eu não narrasse, ainda que de modo breve, as andanças em que
me tenho largado pelo mundo na companhia de minha mulher e
de meus fantasmas particulares. Desde criança fui possuído pelo
demônio das viagens. Essa encantada curiosidade de conhecer
alheias terras e povos visitou-me repetidamente a mocidade e a
idade madura. Mesmo afora, quando já diviso a brumosa porta
da casa dos setenta, um convite à viagem tem ainda o poder de
incendiar-me a fantasia (VERISSIMO, 1976, p. 64).

Verissimo conta que viajar é uma das principais atividades


que gosta de fazer, as quais fez com que percorresse o mundo na
companhia de sua esposa.

Os viajantes imaginários

Segundo ele, existem duas categorias principais de viajantes:

Os que viajam para fugir e os que viajam para buscar. Considero-


-me membro deste último grupo, embora em 1943, como já contei
no primeiro tomo destas memórias, nauseado pelo ranço fascista
de nosso Estado Novo, eu tenha fugido com toda a família do Bra-
sil para os Estados Unidos, onde permanecemos dois anos. Devo
entretanto esclarecer que, mesmo durante esse tempo de fugitivo,
jamais deixei de ser um buscador (VERISSIMO, 1976, p. 64).

Assim, Verissimo viaja em seus escritos e eu com ele também.


Ademais, ele remonta também a outro tipo de viagem, diferente
dessas, a qual teve um peso decisivo em sua vida.

Passei a infância, a adolescência e boa parte de minha primeira


mocidade em contraditórias viagens de vaivém entre dois tios
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 91

afins, ambos barbudos – um romântico e o outro clássico – dois


homens excepcionais que tiveram poderosa influência na minha
vida (VERISSIMO, 1973, p. 171).

Nesse trecho Verissimo mistura recordações de dois tios entre-


meados com viagens, mostrando que ambos tiveram importante
influência em sua vida.

Primeira viagem a Portugal

Verissimo, no segundo volume de Solo, dedica quase duas cen-


tenas de páginas a sua primeira viagem às terras lusitanas. Percorreu
de Norte a Sul do país. Essa viagem teve dois objetivos. Um de
natureza profissional e outro de lazer. Era, para ele, um sonho antigo.
Entre as atividades profissionais, ministrou conferências, realizou
tarde de autógrafos, foi homenageado em jantares. Já os passeios,
esses foram os mais diversos.
Não podia eu deixar de imaginar, estas lembranças narrativas e
memoriais de Verissimo por essas terras, embora não seja possível
contemplar a todas por ele escritas. Sabe-se que Portugal, em 1959,
vivia sob o governo ditatorial de António de Oliveira Salazar e
mesmo assim, Verissimo conseguiu cumprir o plano estabelecido
pelo seu editor para os compromissos profissionais. Cabe lembrar
que, apesar de não se engajar politicamente, nem se considerava de
direita, nem de esquerda, mas era contra todas as formas de violência
contra o Homem – em seu sentido ontológico – e defendia todos os
tipos de liberdades humanas.
Narra, de maneira poética, a sua chegada à capital lisboeta:

Gaivotas que imagino lusitanas (ou será o mar a pátria de todas


as gaivotas?) organizaram-se numa espécie de comitê de recep-
ção e acompanharam nosso barco, sobrevoando-o festivamente
aos guinchos, desde o oceano até ao porto de Lisboa, ao longo
do Tejo (VERISSIMO, 1976, p. 74-75).

Devido a seus bisavós paternos terem emigrado de Portugal


para o Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, Verissimo, ao
chegar em solo lusitano, sente-se em casa.
92

[...] Mal ponho os pés em solo português, sinto-me filho desta


terra. Pudera! Aqui estão minhas remotas raízes, daqui partiu
a cento e cinquenta anos um de meus antepassados, para a
aventura brasileira. Estou em casa (VERISSIMO, 1976, p. 75).

Depois de imaginar essa recepção, procuro ler as imagens que


as lembranças memoriais de Verissimo me trazem, nas quais consigo
relacionar a distância entre Porto Alegre e Lisboa,

De súbito a memória, às vezes uma grande galhofeira, me


mandou à mente imagens de policiais de Lisboa tais como
os mostravam caricaturalmente as revistas musicais que em
idos tempos companhias teatrais portuguesas costumavam
encenar no velho Coliseu, em Porto Alegre. (Mais tarde
fiquei sabendo que existia uma delegacia de polícia perma-
nentemente instalada no subsolo do teatro lisboeta.) (VERIS-
SIMO, 1976, p. 92-93).

Em Lisboa, Verissimo diz que foi apresentado a António Alves


Redol10, um ficcionista politicamente coerente e bravamente polí-
tico. Trata-se de um homem de esquerda num país de duro regime
direitista, como o salazarismo, um tipo simpático e informal,
escreve Verissimo:

Vejo-o com a lembrança, e a fotografia que tenho dele agora


aqui à minha frente confirma a imagem que a memória guardou.
Redol está beirando os cinquenta anos, mas aparenta menos
idade, apesar de todos os sofrimentos físicos impostos pelas
muitas prisões e pelos implacáveis interrogatórios da P.I.D.E.11
(VERISSIMO, 1976, p. 86-87).

Nesse trecho, Verissimo narra, além da imagem que guarda


desse escritor português, um pouco do que significava a política
ditatorial do regime salazarista.

10 Escritor português (1911-1969). Obras principais: Avieiros (1942), Horizonte Cerrado (1949),
Uma Fenda na Muralha (1959), Cavalo Espantado (1960) e Barranco de Cegos (1962), con-
siderada a sua obra prima. Escreveu as peças de teatro Maria Emília (1946), Forja (1948).
11 A Polícia Internacional e de Defesa do Estado foi a polícia política portuguesa entre 1945 e
1969, responsável pela repressão de todas as formas de oposição ao regime político vigente.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 93

Depois de Lisboa, Sintra foi a primeira cidade visitada por Veris-


simo, junto com Mafalda, Luís Fernando, seu editor em Portugal,
Antônio de Souza Pinto e o engenheiro e professor Jorge de Sena.

[...] Sintra é um verdadeiro jardim botânico, espécie de mos-


truário da flora de Portugal. Aqui – afirma-se – existem mais de
noventa espécies de plantas que não se encontram em nenhuma
outra parte da Europa. (VERISSIMO, 1976, p. 102).

Leio, através das imagens, duas lembranças de Verissimo em


Portugal, as quais considero relevante.

O céu estava azul e eu me sentia azul por dentro. É que a paisa-


gem, os ares, o povo e as póvoas de Portugal possuem o condão
de liberar em nós sentimentos de ternura lírica e bucólica que,
por machismo ou temor à pieguice, em geral costumamos encer-
rar a sete chaves na mais recôndita alcova da casa de nosso ser
(VERISSIMO, 1976, p. 105).

Para Bachelard (1978, p. 201), “as lembranças do mundo


exterior nunca terão a mesma tonalidade das lembranças da casa.
Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho;
nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco
poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida”.
Outra lembrança de Verissimo leva-me a pensar o ser humano,
o homem enquanto um ser inconcluso. Para Hilmann (1995), todo
homem é um ser poético.

Parece geralmente aceita entre psicólogos e filósofos a ideia de


que o ser humano não é um produto acabado, mas um processo
transitivo, um contínuo devir. Creio que o mesmo acontece, ape-
nas em ritmo mais lento, com os monumentos de pedra: castelos,
catedrais, palácios, pontes... Nascem sob o signo do estilo predo-
minante na arte de construir de seu tempo, e vão sendo alterados
com o passar dos séculos, de acordo com a moda arquitetônica da
época em que cada reforma é feita (VERISSIMO, 1976, p. 110).

Nesse excerto, Verissimo alude que o Homem é um ser incon-


cluso, inacabado. Ou seja, está sempre a construir.
94

Em Setúbal, após ter ministrado uma conferência, Verissimo


responde as diversas perguntas do público presente. Era final dos
anos 1960 e Portugal vivia politicamente uma ditadura, sob o
governo de Salazar. Apesar de sua palestra voltar-se mais para a
cultura, para a literatura, esperava ele até questões de natureza polí-
tica, sobretudo pelo contexto em que estava inserido. Porém, um
dado curioso chamou-lhe atenção numa dada pergunta e ao mesmo
tempo num relato de um senhor de meia idade que estava na plateia:

Acredita V. Ex.ª que um romance pode ter a força de mudar a


vida da pessoa que o lê? Faço uma careta de ceticismo. “Minha
tendência é responder pela negativa” – digo – “Pelo menos não
conheço nenhum caso...” O homenzinho sorri. “Pois é com
prazer que lhe conto a estória de meu próprio filho, que estava
estudando engenharia na Universidade de Coimbra. Um dia leu
o romance de V. Ex.ª, Olhai os lírios do campo, identificou-se
de tal modo com a personagem principal masculina, o Dr. Eugê-
nio Fontes, e passou a interessar-se de tal modo pela profissão
médica, que decidiu deixar a engenharia para estudar medicina.
Hoje em dia está formado, tem uma excelente clínica e sente-se
perfeitamente realizado na sua profissão”. Que pode dizer este
autor de estórias imaginárias senão que se rende diante desse
fato da vida real? (VERISSIMO, 1976, p. 199, grifos do autor).

Para quem acredita na literatura, como eu, é fato; o que me


faz também imaginar que é possível a arte de ficção, tal como esse
exemplo, mudar vidas, no caso a leitura de um romance fez mudar
a carreira acadêmica de um estudante.

Reflexão sobre cidades

Nessa sua primeira viagem a Portugal, Verissimo traz de forma


marcante, a lembrança da cidade de Évora, a qual para ele, é uma
das mais bonitas que conheceu. Foi amor à primeira vista.

Você, leitor, já experimentou a sensação de ver uma mulher pela


primeira e, mesmo antes de trocar com ela uma palavra sequer,
sentir que a criatura vai ser – já é! – o grande amor de sua vida?
Pois coisa parecida aconteceu comigo quando avistei de longe
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 95

a cidade de Évora, clara, serena no alto de sua colina, em meio


duma planura riscada de estradas bucólicas debruadas de oli-
veiras, azinheiras e alfarrobeiras (VERISSIMO, 1976, p. 206).

Além dessa cidade portuguesa, Verissimo faz referência a mais


duas importantes cidades, outra portuguesa e uma brasileira, aliás faz
reflexões desse espaço urbano que ele tanto apreciava, bem como da
importância que as cidades se constituíam cenários de muitos dos
seus romances, até mesmo a cidade imaginária de Antares12.
Sobre Coimbra, explica:

Desconfio que Coimbra já descobriu meu fraco pelas cida-


des antigas e – modéstia à parte – direi até que está se ofere-
cendo para ser incluída na minha burgoteca. Tem tudo para
isso. Situada numa alta colina, suas ruas estreitas descem pelas
encostas até o vale do Mondego. Sua história mais que milenar
parece estar escrita pela mão do tempo nestas pedras, nestes
telhados, no pavimento irregular destas ruas e becos e nas lajes
destas calçadas (VERISSIMO, 1976, p. 128).

Além dessa explicação sobre a histórica cidade, ainda des-


creve acerca de sua passagem por ela, fazendo uma analogia com
a capital baiana:

Voltamos para a cidade alta, subindo uma ladeira estreita e tão


íngreme que lhe dão aqui o nome de Quebra-Costas. (Em Sal-
vador, na Bahia, existe uma rua tão perigosamente empinada,
que lhe clamam brasileiramente Quebra-Bunda.) Passamos
sob o arco que se abre por baixo duma torre meio derrocada,
restos das muralhas que defendiam a antiga Coimbra (VERIS-
SIMO, 1976, p. 133).

A respeito da capital gaúcha, onde viveu grande parte de sua


vida, Verissimo reflete:

Parado a uma esquina da Rua Felipe de Oliveira, a contemplar


os fantásticos poentes da minha cidade, muita vez fiquei a res-
mungar para mim mesmo possíveis soluções para o problema,

12 Cidade imaginada por Verissimo como palco do romance “Incidente em Antares”, em 1971.
96

e acabava sempre concluindo que não devia, não podia alterar o


roteiro da obra pela mesma razão por que um homem não pode
mudar o seu passado, passar a limpo a sua vida. O que aconteceu,
aconteceu... irreversivelmente (VERISSIMO, 1976, p. 23-24).

Por fim, Verissimo faz uma reflexão sobre as cidades e acredita


serem elas detentoras de gênero sexual.

Sinto que as cidades também têm sexo, como os seres humanos


e os animais. O Rio de Janeiro tem encantos de mulher. São
Paulo é homem. Lisboa é uma graciosa rapariga. Mas antes que
eu forme qualquer juízo a seu respeito, o Porto parece gritar:
“Sou macho!”, e atrai minha atenção para a mais alta das torres
de suas igrejas, que lá está empinada em seu flanco, como um
falo secular (VERISSIMO, 1976, p. 150, grifo do autor).

É deveras interessante essa reflexão, visto que trata-se de uma


observação análoga na qual não dispensa a sua poeticidade. Dela,
faz me imaginar e perguntar que sexo teria Natal, cidade onde vivo.
Imagino que nossa capital seria do sexo masculino, talvez por rela-
cioná-la com a cidade do Porto. Bachelard (2009), em “A poética
do devaneio”, fala do sexo das palavras . Para ele, “os caracteres da
feminilidade e da virilidade se acham tão profundamente inscritos
na natureza humana que os próprios sonhos noturnos conhecem os
dramas das sexualidades opostas” (BACHELARD, 2009, p. 54).

As estações do ano

Verissimo cita as estações do ano em diversos momentos de


Solo, a começar pela cidade onde nasceu. Ele descreve como está
distribuído o clima em Cruz Alta, explicando-o em cada uma das
quatro estações.

[...] Frio e seco no inverno, muitos ventos, algumas visitas do


minuano, hóspede nada agradável, mas excelente assunto para
conversação. Verões amenos, com noites perfumadas e tépidas,
exceção feita aos dias bochornosos em que sopra o irritante
vento norte. Primavera escabelada, flores de pessegueiros e de
laranjeiras nos pomares, doces perfumes no ar, céus incertos,
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 97

aguaceiros que não anunciam com antecedência a hora em que


vão irrigar a cidade. O outono, cuja beleza só vim a desco-
brir por acaso num dia de maio e névoa dourada, nos campos
do Retiro, cheirava a mel, e a mim me deixava amolentado e
meio tristonho, tendo por outro lado uma utilidade prática pelo
menos: a de induzir-me ao sonho e à fantasia, ajudando-me a
conceber contos e novelas que em geral eu escrevia no inverno,
com dedos duros de frio (VERISSIMO, 1973, p. 189).

Bachelard, em “A poética do devaneio”, quando se refe-


ria a lembrança de datas, para situar o tempo, usava as quatro
estações. Para ele, “a lembrança pura não tem data. Tem uma
estação” (BACHELARD, 2009, p. 118). Verissimo, por sua vez,
também se utilizava desses elementos de ordem temporal, tal
como mostro a seguir.
Verissimo lembra de como estava o tempo em Portugal, num
dado momento onde se encontrava com sua família e amigos, em
meados de março de 1959.

Fria estava ainda aquela manhã de entrefechado inverno e


entreaberta primavera em que deixamos Lisboa para visitar as
províncias de aquém e além-Tejo. O veículo? Um automóvel
alemão B.M.W. O piloto? Souza Pinto. O navegador e guia?
Jorge de Sena. Os passageiros? A trinca Verissimo (VERIS-
SIMO, 1976, p. 104).

Para Bachelard (2009), a estação é a marca fundamental das


lembranças. A recordação de Verissimo é a de que fazia frio em Por-
tugal, em plena primavera. Essas lembranças, para Bachelard (2009,
p, 118,), tornam-se grandes imagens, imagens estas engrandecidas,
engrandecedoras, “associando-se ao universo de uma estação, de
uma estação que não engana e que bem se pode chamar de estação
total, que repousa na imobilidade da perfeição”.
Ainda no país ibérico, Verissimo se contenta com a chegada da
primavera, embora com resquícios da estação anterior – o inverno.

Em suma, embora nossos olhos já vejam a face e nosso olfato


sinta as fragrâncias da Primavera, nossa epiderme está ainda
meio arrepiada de frio (VERISSIMO, 1976, p. 128).
98

Não obstante está em tempos e espaços distintos, Verissimo


sai da primavera europeia – diferente do Hemisfério Sul – e passa
a desfrutar do verão brasileiro, numa das praias do literal norte do
Rio Grande do Sul.

Em janeiro de 1958 Mafalda e eu formos para a praia de Torres,


onde nos instalamos numa vivenda que os Dantas, um casal de
amigos, nos emprestaram pela metade da temporada de verão
(VERISSIMO, 1976, p. 9-10).

Sem seguir uma ordem cronológica das estações, Verissimo volta


a falar do inverno, estação que é bem definida, tal como é o verão
em clima subtropical, no caso da Região Sul do Brasil. Segundo ele,

Quando o inverno chegou, tive de enfrentar e sofrer uma dura


realidade. O internato não dispunha dum serviço de água quente:
tínhamos de tomar banho com água gelada às seis e meia da
manhã. Despíamo-nos no banheiro geral, pavimentado de
cimento. O primeiro contato de meu corpo como a água me foi
quase insuportável. Soltei um longo gemido sincopado, entrei
a bater dentes e pés. Só a vergonha de fazer papel de maricas
me deu força para me manter debaixo do gélido jorro d’água.
Ensaboei-me estabanadamente (VERISSIMO, 1973, p. 128).

Percebo aqui nesse trecho, outra contradição de Verissimo, pois


demonstra ter uma cultura machista e em outros momentos de sua
narrativa autobiográfica não tem sido coerente.
Entre esse inverno passado em Porto Alegre na década de 1920
e este em Coimbra, em 1959, há diferenças substanciais quanto ao
espaço-tempo.

Clara e suave, com algo de aquarela e presepe, a cidade nos espera


nesta fria manhã de fim de inverno, sob um céu tão azul e límpido
que seria uma insensatez procurar adjetivos raros para qualificá-lo
(VERISSIMO, 1976, p. 74-75).

Essa estação, para Verissimo, não era diferente para ele quando
estava em Porto Alegre. Tanto numa cidade como noutra, as tem-
peraturas, nessa altura do ano são muito baixas, chegando a nevar.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 99

O outono, estação que antecede ao inverno, também é lembrado


por Verissimo em sua autobiografia. Relata ele sobre a leitura que
fez de um livro em francês em companhia de um dos seus grandes
amigos gaúchos. Segundo suas palavras: “No outono de 1935 Joao
Raymundo e eu lemos juntos La Mort, de Maurice Maeterlinck [...]”
(VERISSIMO, 1973, p. 174-175).
Importante dizer que Verissimo, em toda sua narrativa auto-
biografia não se reduz em contemplar apenas esses momentos que
relata as quatro estações. É possível constatar outros momentos em
que narra acerca dessas estações.

Entre a vida pessoal, acadêmica e profissional


Trago aqui uma passagem que mostra o quanto foi difícil para
Verissimo decidir entre a seguir a vida acadêmica, a uma carreira
profissional e, também pessoal, pois tanto essa como aquela são
indissociáveis da trajetória pessoal.

Verissimo, depois de passados os três anos de ginásio na capital,


volta a sua cidade natal. Não quis seguir carreira acadêmica, e
até pensou em dedicar-se “à pintura ou à literatura, ou a ambas”.
Indeciso, sem ter 18 anos completo, “achava mais fácil deixar
o barco deslizar na correnteza do rio, sem pensar num destino
certo”. Referia-se aqui ao “destino acadêmico” porque quanto
ao humano, tinha outros planos: casar com uma das cruz-alten-
ses da sua lista de ‘prioridades’, “ter com ela filhos e uma casa
onde reinasse uma harmonia que na sua (casa de seus pais) não
existia (VERISISMO, 1973, p. 141, grifos do autor).

Nessa última parte, fica claro o que desejava para si, cujo sonho
era viver uma vida diferente daquela de seus pais.
Em seu trabalho na Livraria do Globo, Verissimo conta que era
um polivalente, exercia várias funções, tais como tradutor de livros,
paginador, redator, ilustrador e às vezes fazia função de diretor.
Assim, não sobrava tempo para escrever sua ficção.

Por mais empolgado que estivesse pelas personagens de minhas


próprias ficções, era obrigado a fechá-las a sete chaves num
quarto escuro no fundo do meu cérebro, e dedicar minha atenção
100

a um tipo de trabalho fútil e não raro idiota – porque o “poeta”,


segundo o gerente da Livraria do Globo, era um bom freguês
da Casa e não podia ser “desconsiderado” (VERISSIMO, 1973,
p. 254, grifos do autor).

Acrescenta ainda que, por essa limitação de tempo, visto que


precisava trabalhar – era até então sua única renda fixa – escreveu:
“Clarissa e os quatro romances que se seguiram apenas em tardes
de sábado” (VERISSIMO, 1973, p. 254, grifos do autor).

Sobre o processo de criação romanesca

Maria da Glória Bordini, já citada, é responsável pelo acervo


de Verissimo, inclusive os manuscritos, os quais foram cedidos pela
família (Mafalda e Luiz Fernando), me inspira a ler as imagens de
Verissimo, uma vez que a leitura de imagens é um processo pessoal
e único, a partir desses manuscritos, em especial um que trata da
rotina do seu processo de criação. Segundo ela,

Nos esboços de suas memórias, Erico planeja contar como


chega diariamente à criatividade: à tarde, escrevendo com
três espaços para fazer correções, sem nenhuma secretária,
porque não sabe mandar e porque demanda tempo explicar
como, o que, etc. não usa estimulantes, nem café ou fumo
(BORDINI, 1995, p. 67).

Em outro registro, relata a pesquisadora, tendo em conta tais


manuscritos deixados por Verissimo:

[...] Confessa acordar às cinco da manhã, quando profunda-


mente envolvido num projeto, com ideias brotando, as quais
não escreve, mas acompanha com imagens: “Não costumo
pensar com palavras, mas com imagens”. No seu caso, por-
tanto, a rotina estabelecida depende de uma condição bio-
lógica que não pode ser obtida por um ato de vontade: estar
melhor disposto à tarde para os atos de escritura e de manhã
cedo para a imaginação. Esta, entretanto, só emerge quando
o escrever se torna intenso e desbloqueado (BORDINI, 1995,
p. 67, grifos da autora).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 101

Cabe lembrar que essas duas passagens fazem parte do acervo


de Verissimo, escritas por ele, no ano de 1972. Acrescento ainda que
ambas não constam em Solo de Clarineta. Certamente, não julgou
importante inseri-las nesses dois volumes e imagino que seria mais
viável incluir num terceiro que pensara em escrever.
Ainda sobre Solo de Clarineta, há um registro nos manuscritos
do acervo de um planejamento de capítulo intitulado “A oficina do
Dr. Frankenstein”, o qual segundo Verissimo, faria parte do segundo
volume de suas memórias e seu objetivo seria “discutir as limitações
mentais do ato criativo”. Segundo Verissimo,

Usamos apenas as partes de frente da casa de nosso ser. Ou seja,


nosso cérebro tem mais possibilidades [...] como abrir o quarto
fechado. Como entender certos signos, vozes, premonições...
(BORDINI, 1995, p. 61).

Essa passagem foi escrita por Verissimo em 1970, segundo


esses manuscritos, os quais foram publicados por essa pesquisa-
dora. A casa a que alude Verissimo, segundo Bachelard, pode ser o
espaço onde acrescentemos valores de sonhos. Ou seja, em vez de
buscar sonho no devaneio, buscaríamos devaneio poético no sonho
(BACHELARD, 2009).
Em Solo, Verissimo narra, não de forma sistemática, o pro-
cesso de construção de sua obra, seus romances em especial. Trago
apenas três desses. O processo de imaginação criadora de “Olhai
os lírios do campo” (1938), “O senhor embaixador” (1965) e “O
arquipélago” (1961).
Verissimo conta que “Olhai dos lírios do campo” surgiu a partir
de uma visita que fez a um hospital onde esteve a visitar um amigo
que estava internado. Nesta visita, viu um homem muito jovem
sair dum quarto com um bebê recém-nascido nos braços. Logo,
disseram-lhe que a mãe da criança havia morrido depois que deu à
luz a criança.

A estória ficou-me na cabeça, revoluteando, provocando ideias e


imagens como – hospital... médicos... mulher que morre... homem
que fica, e que provavelmente a amava... Essa nebulosa foi o núcleo
do mundinho de “Olhai os Lírios do Campo”. Tive a intuição de
102

que estava na pista dum romance. E como sempre acontece quando


sinto aproximar-se a ideia para um livro, fique numa espécie de
exaltação interior (VERISSIMO, 1973, p. 265, grifos do autor).

No excerto a seguir, apresento o que aconteceu a Verissimo


a respeito da criação e de como ocorreu a gênese de um de seus
últimos romances. A ideia que tinha era escrever sobre Grécia por
onde tinha estado.

Comecei a ler as notas gregas. Não consegui, porém, concen-


trar a atenção no texto daqueles cadernos cheios de desenhos:
o perfil dum sacerdote ortodoxo, um esboço rápido da cidade
de Rodes, vista do Stella Maris. Um dos leões de Delos [...]
Lembrei-me então duma tarde, em 1954, no saguão do Hotel
Tamanaco, em Caracas, durante a conferência de Ministros do
Exterior da Organização dos Estados Americanos. Estava eu
sentado ao lado dum compatriota, a “olhar as caras” e a fazer
comentários tipicamente brasileiros sobre os que passavam,
quando vimos sair dum elevador um homem de estatura meã,
robusto, a tez acobreada, os malares salientes, os olhos oblí-
quos, vestido como para um casamento ou batizado: chapéu
de diplomata, gravata cinzenta, jaquetão de mescla, calças
listradas, sapatos de verniz... Meu amigo murmurou: “Aposto
como esse índio comprou essa roupa nova especialmente para
a Conferência”. Sacudi a cabeça, sorrindo, e não pensei mais no
assunto. No entanto, agora, ali no meu porão, nove anos mais
tarde, a cena e a figura do desconhecido me voltavam à mente.
Por baixo do desenho escrevi: O Senhor Embaixador. Ali estava
um assunto para romance! Quantas vezes, durante a minha estada
em Washington me assaltara a ideia de escrever uma estória em
torno dum embaixador latino-americano junto à Casa Branca e
à OEA? Sempre, porém, que tentava elaborar um plano para o
romance, tolhia-me a impressão de que a “fruta” estava ainda
verde [...] (VERISSIMO, 1976, p. 60, grifos do autor).

Assim, depois de ter vindo a lembrar das características fisio-


nômicas desse senhor, desiste de escrever sobre a Grécia, explica:

Atirei para um lado os cadernos de notas e comecei a estu-


dar graficamente as possibilidades da nova ideia. Quando dei
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 103

acordo de mim, tinham-se passado quatro horas e eu já havia


esboçado o plano para o romance. A figura central da estória
seria o embaixador dum país imaginário, mas real, na zona do ar
das Caraíbas. Ocorreu-me o nome do herói: Gabriel Heliodoro
Alvarado. Eu via mentalmente o sujeito: logo ele existia. E o
país? (VERISSIMO, 1976, p. 60-61).

Um dos romances que mais teve dificuldade em escrever, foi


o terceiro volume de “O tempo e o vento”, “O arquipélago”. Isso
aconteceu no verão de 1958, numa praia do literal norte gaúcho.

Quando chegamos, chovia torrencialmente. Nossa casa ficou


ilhada em meio de charcos e pequenas lagoas. A chuva continuou
quase ininterruptamente durante três ou quatro dias. Assim, foi
contra um fundo musical feito por um coral de sapos que escrevi
as páginas iniciais do último volume da trilogia. Meti-me no
corpo do Dr. Rodrigo Cambará no momento em que ele sofreu
um edema pulmonar agudo (VERISSIMO, 1976, p. 10).

Ademais, Verissimo explica a separação entre criador e criatura,


tomando a si próprio como exemplo.

Em geral, quando termino um livro encontro-me numa confu-


são de sentimentos, num misto de alegria, alívio e essa vaga
tristeza que vem após o ato do amor físico satisfeita a carne.
Relendo a obra mais tarde, quase sempre penso assim: “Não
era bem isto que eu queria fazer” (VERISSIMO, 1976, p. 309,
grifos do autor).

A sensação que me dá ao ler e imaginar essa lembrança é a de


que somos sempre um ser em construção, inconcluso, que estamos
sempre reinventando, ou seja, não ficamos satisfeitos com aquilo
que temos, apesar da sensação efêmera do gozo material, conforme
diz Verissimo.

Alguns personagens de seus romances


Os escritores de ficção, acredito, os romancistas em especial,
em suas narrativas encontram-se implicitamente, ou mesmo de forma
explícita, algo de autobiográfico. De entre os romances de Verissimo,
104

o último volume de “O tempo e o vento”, há um personagem que


se identifica com seu criador.

Sempre senti em mim todas as possibilidades, tanto para o bem


como para o mal. Cometi todos os pecados da imaginação, bem
como muitos outros que não foram apenas da fantasia. Depois
que publiquei “O Arquipélago”, muitos leitores quiseram saber
se a personagem Floriano Cambará é autobiográfica. Ora, pare-
ce-me ter deixado claro que, no que diz respeito a fatos, nossas
vidas diferem muito uma da outra. Nem todas as coisas que
aconteceram a Floriano aconteceram a este contador de his-
tórias. Poder-se-ia dizer, isso sim, que psicologicamente Flo-
riano e eu somos irmãos gêmeos ou sósias (VERISSIMO, 1976,
p. 318, grifos do autor).

Num dos registros, em seu segundo volume de Solo, identifica


um personagem desse mesmo romance, Rodrigo Cambará, o qual
faz uma comparação com seu pai (Sebastião) e seu filho Floriano
(personagem) como se fosse Verissimo.

Para mim uma das partes mais importantes de “O Arquipélago”


seria o momento em que Floriano, depois dum grande esforço
sobre si mesmo, consegue entabular com Rodrigo, seu pai, o
diálogo que eu gostaria de ter tido com o meu próprio pai: um
“ajuste de contas” no plano sentimental, numa completa liber-
tação de todas as mitologias, de todos os códigos escritos ou
não, um encontro no plano humano da mútua aceitação e do
amor (VERISSIMO, 1976, p. 16, grifos do autor).

O mais importante nesse excerto é o suposto diálogo que acon-


teceu do ponto de vista ficcional, romanesco, poético enquanto que
na realidade, isso não foi possível, ou seja, Verissimo não conseguiu
realizar o diálogo que imaginara ter tido com seu pai.

Um escritor erótico/pornográfico?

Tal como o escritor Jorge Amado, Verissimo é considerado um


escritor que foca muito em sua ficção, o tema do sexo e por essa
razão, recebeu críticas por parte do público e dos críticos em geral.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 105

Chegamos assim a um assunto que eu gostaria de discutir com


mais vagar. Sou habitualmente apontado como um escritor
erótico ou mesmo pornográfico (VERISSIMO, 1976, p. 309).

Verissimo, ao ser perguntado sobre esse tema, responde de


forma enfática, explicando as razões pelas quais explora o sexo em
seus romances.

Por que – perguntam-me às vezes – tenho tanta preocupação


com o sexo? Ora, respondo, decerto é porque no fundo sou
um puritano. Mora dentro de mim um pastor protestante a
pregar interminavelmente um sermão apocalíptico contra o
pecado da carne, e eu não posso consentir que esse homen-
zinho emascule as minhas personagens ou a mim mesmo
(VERISSIMO, 1976, p. 309).

Ao que parece, Verissimo estaria lidando com demônios puri-


tanos que o habitariam e para lutar com eles só mesmo fazendo o
oposto do que fariam.
Dessas questões sexuais presentes em sua ficção, Verissimo
relaciona às questões morais, citando que habita nele um pastor
protestante. Entendo que tais expressões por ele usadas são mais de
natureza metafórica, visto que explica, em sua narrativa autobiográ-
fica, sua posição religiosa:

Tenho encontrado certa dificuldade em explicar a amigos e


leitores a minha posição em face de Deus. Repetirei que sou
um agnóstico, isto é, um homem que não se encontra na posse
de provas convincentes que lhe permitem negar ou afirmar a
existência dum Criador. Posso, no entanto afirmar que não sou
destituído de sentimento religioso, pois tenho uma genuína,
cordial reverência por todas as formas de vida, e um humor
invencível à violência (VERISSIMO, 1976, p. 311).

Depreendo, portanto, dessa exposição verissimiana, que sua


posição possui uma natureza plural, pois defender as diferentes e
diversas formas de vida é compreender o ser humano em toda sua
diversidade e, também, em sua complexidade.
106

Entre ficção e realidade

O romancista, efetivamente, cria seus romances de modo que


convença o leitor que a narrativa que escreve é como se fosse real.
Verissimo, por sua vez, tentou fazer isso, conforme discorre:

Uma das muitas provas por que tem de passar o romancista para
convencer-se a si mesmo e aos leitores de que não é apenas um
memorialista nem um fotógrafo ambulante, é a de criar com
verossimilhança uma personagem que seja diferente dele em
matéria de gosto, temperamento, caráter. Dizer – como suge-
riu um amigo – que deleguei a Rodrigo procuração para fazer
por mim tudo quanto desejei ter feito na vida, mas não fiz por
timidez ou falta de coragem moral ou física, é uma explica-
ção não apenas simplista mais simplória (VERISSIMO, 1973,
p. 297, grifo do autor).

Assim, o escritor romanesco tem que ser um pouco ator. Para


Verissimo, o romancista deve entrar de corpo e alma em seus persona-
gens para dá vida, seja que papel tais personagens representem na trama.

Para dar verossimilhança a uma personagem não autobiográfica,


o novelista tem de usar toda a sua capacidade de empatia, isto
é, a faculdade de meter-se no corpo de outras pessoas, e que lhe
permite sentir-se, ser alternadamente um herói ou um covarde,
um bandido ou um santo, uma dama virtuosa ou uma prostituta
(VERISSIMO, 1973, p. 297, grifo do autor).

Aparece aqui, uma observação de Verissimo que me leva a


pensar como a ficção está inerente a realidade, ou seja, o fictício
na literatura é pensado a partir do real, pois é a partir do real que o
ficcionista imagina.
Uma das dificuldades para Verissimo, antes se tornar um escri-
tor profissional, foi conciliar a sua atividade de criação literária com
o trabalho bancário num banco de Cruz Alta, em 1925.

Na agência bancária meus devaneios artístico-literários eram


constantemente interrompidos por alguns dos comerciantes
que traziam dez, quinze, vinte duplicatas para descontar. Creio
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 107

que ainda hoje me “lembro” do cheiro de suor de cada cliente


importante, do perfume que usava ou do tom de voz de cada
um [...] (VERISSIMO, 1973, p. 183, grifos do autor).

Verissimo, apesar de ter esclarecido que não é um cientista,


procurou misturar, relacionar história e ficção em suas narrativas
romanescas, tal como mostra a seguir.

Parece mentira, mas todos os fatos históricos que aprendi sobre


D. Dinis e sua esposa Isabel parecem ficção quando compara-
dos no meu espírito com a estória e as personagens inventadas
por Eça de Queirós em seu romance O Crime do Padre Amaro
(VERISSIMO, 1976, p. 124).

Para Wunenburger (2003), a imagem serve para criar um espaço


de percepção, e portanto, para tornar, no sentido estrito, um objeto
visível, mas igualmente para melhorar a prestações do olhar. Ou
seja, Verissimo não foi um homem de ciência, e para Wunenbur-
ger, o cientista “só vê as coisas que estiverem dispostas de forma a
serem vistas” (2003, p. 267). Porém, o que Verissimo fez, de fato,
foi “romance” histórico.
Essa observação me ajuda a ler as lembranças verissimianas
através da imaginação, esta não como uma mera faculdade humana,
mas uma atividade da alma à qual a imaginação humana presta teste-
munho. Não somos quem imagina, mas nós que somos imaginados
(HILMANN, 1995).
Ainda em se tratando de ficção e realidade, Verissimo, con-
forme está em sua obra, criou uma relativa quantidade de persona-
gens considerados de personalidade forte, tais como exemplifica.
Rodrigo Cambará13, Ana Terra14, Bibiana15, entre outros. Sobre esses
personagens, destacamente os do sexo feminino, criados pela sua
imaginação criadora, certa vez foi questionado por um leitor.

13 Principal personagem masculino de “O tempo e o vento”. Em 1970, Verissimo publicou “Um


certo capitão Rodrigo” pela Editora Globo de Porto Alegre. A edição consultada é de 1996b,
conforme está nas referências.
14 Principal personagem do sexo feminino de “O tempo e o vento”. Em 1971, Verissimo publicou
“Ana Terra” pela Editora Globo de Porto Alegre. A edição consultada é de 2005, conforme
está nas referências.
15 Em o “Tempo e o vento”, é a neta de Ana Terra e casou com Rodrigo Cambará.
108

Como pode um romancista do sexo masculino – perguntou-me


alguém um dia – descrever com verdade e autenticidade os
sentimentos duma mulher? Expliquei-lhe que, no meu caso,
sempre que tinha de fazer isso eu procurava ser essa mulher.
Meu interlocutor me olhou meio espantado e calou-se, aparen-
temente insatisfeito, e talvez até meio desconfiado de minha
masculinidade (VERISSIMO, 1973, p. 298, grifos do autor).

A esse fato, Verissimo relaciona a um dos romancistas norte-ameri-


cano, muito conhecido do público, que também se sentia como “mulher”
para dá verossimilhança a seus personagens femininos. Trata-se de
Ernest Hemingway, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1954.

Ninguém negará grandeza e importância literária à obra de


Ernest Hemingway. Mais de um crítico, porém, tem mencio-
nado o fato de não se encontrar nos contos, novelas e romances
desse escritor uma única personagem feminina verossímil, viva,
plenamente realizada em sua condição de fêmea. Creio que
isso se deve à obsessão que o grande escritor americano tinha
de provar que era macho – o caçador de leões, o explorador, o
aficionado das corridas de touros. No momento de descrever
suas personagens do sexo oposto ele recusava, imagino, liberar
seu componente feminino e meter-se no corpo delas, sentir
como elas, amar como elas... (VERISSIMO, 1973, p. 298-299).

Em ambos os casos, é possível perceber que ainda é muito forte


a presença do “machismo” em nossa sociedade.

No fundo talvez isso fosse um sinal de insegurança quanto à sua


própria condição de macho, o temor de que alguém pudesse pôr
em dúvida sua virilidade (VERISSIMO, 1973, p. 299).

Para Verissimo, isso podia ser uma escapatória, ou mesmo uma


saída pela tangente do escritor estadunidense.

Sobre escritores/literatos
Ao longo de toda obra autobiográfica, Verissimo faz referência a
muitos escritores, sejam amigos ou não. De quando esteve em Portugal
pela primeira vez, recorda-se de ter encontrado um ficcionista português,
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 109

considerado dos mais importantes do século XX. Trata-se de Aquilino


Ribeiro. Deste romancista, Verissimo leu “Quando os lobos uivam”.

Lembro-me das páginas que mestre Aquilino escreveu à guisa


de prefácio para esse livro. Elas nos dão uma ideia do homem
que tenho agora à minha frente. O meu dia caminha para o
ocaso. Dei bem conta quando cheguei ao fim deste trabalho...
Todavia continuo a produzir como se me penetrasse um ardente
e fecundo Verão. Obriga-me uma espécie de sina e fugir-lhe
seria negar-me. Por isso hei-de morrer com a enxada em punho
(VERISSIMO, 1976, p. 89, grifos do autor).

Nesse contexto, dialogo com Bachelard, para quem a literatura


(escrita) pertence à esfera do psiquismo escrito, o qual difere do
psiquismo falado, sendo que, na escrita, há uma coordenação da
linguagem (BACHELARD, 1990a).

Relação livro versus mídias audiovisuais

Verissimo, apesar de usar o vocábulo “computador” em diver-


sas passagens da sua narrativa autobiográfica, não teve a oportu-
nidade de usar um computador. Porém, no contexto histórico em
que viveu, fez alguma observação sobre os meios de comunicação
audiovisuais. Ele faz uma analogia entre o livro e esse meio comuni-
cacional, defendendo o primeiro, por se usar a imaginação, enquanto
que o outro, a imagem é real.

Concluo que uma das vantagens do livro sobre os meios de


comunicação audiovisuais é a de que no caso destes últimos
a imaginação do espectador fica irremediavelmente presa ao
que vê e ouve, ao passo que a cada releitura dum romance o
leitor imagina as personagens, as cidades, as ruas, as casas
e seus interiores de maneira diferente, embora as palavras
do autor da narrativa permaneçam as mesmas (VERIS-
SIMO, 1976, p. 124-125).

Ao que parece, Verissimo se referia mídia televisiva, não ao


cinema exatamente, pois o cinema de ficção não tem a pretensão
de representar o real.
110

Relação de Verissimo com a natureza

A relação entre o homem e a natureza também foi observada por


Verissimo, mesmo não sendo ele, homem de ciência, tal como escre-
veu: “não sou sociólogo nem historiador e muito menos economista”
(VERISSIMO, 1976, p. 315). Sendo um homem da ficção, aponta dois
elementos materiais fundamentais – terra e ar – no excerto a seguir.

Confesso que sinto uma sadia, cordial inveja dos escritores que
têm uma real, autêntica intimidade com a terra, as árvores, os
ventos, os bichos e principalmente com as criaturas humanas
que também estão perto das raízes profundas da vida, às vezes
chego a pensar – por mais ridícula que a imagem possa pare-
cer – que sou uma planta do asfalto, mas planta de papel [...]
(VERISSIMO, 1976, p. 309).

Essa relação entre homem e natureza, a meu ver, dá a entender


que Verissimo sentia pouca intimidade com a terra, pois apesar de
ter nascido e vivido numa cidade interiorana, sempre residiu na parte
urbana. Por isso que disse se sentia um homem urbano. Não é por
acaso que grande parte de seus romances tem tido como cenário a
cidade, o espaço urbano, seja imaginário ou real.

Os professores inesquecíveis do ginásio

A passagem de Verissimo pelo colégio Cruzeiro do Sul em


Porto Alegre, além das marcas indeléveis em sua vida de adoles-
cente, traz lembrança de alguns de seus professores que contribuíram
positivamente para sua vida adulta. Uma das ciências exatas, dois
que lecionavam língua inglesa e um de francês. Estes, por sua vez,
o impressionaram do ponto de vista humano.

Alberto de Brito e Cunha (Matemática, Desenho, Química,


Física) era português de nascimento, um homem socado de
carnes, baixo de estatura, cabelos crespos, míope, bigode retor-
cido como o de certas figuras dos cartões-postais antigos. No
entanto de antigo o A.B.C. nada tinha: era um homem moderno,
de espírito aberto e arguto, atento a tudo quanto se inventava ou
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 111

descobria no mundo em todos os setores, mesmo dos que não


eram de sua especialidade. Nosso primeiro contato foi para mim
desagradável. Lembro-me dum trecho de carta que escrevi por
aquela época a meus pais. “O meu professor de Matemática é
um português muito antipático. Acho que não vou me entender
bem com ele” (VERISSIMO, 1973, p. 136, grifos do autor).

Alguns anos depois, Verissimo reencontra esse estimado pro-


fessor, sobre o qual mudou sua opinião; até ficaram amigos.

Muitos anos mais tarde, estando eu já casado e residindo em


Porto Alegre, encontrei-o na rua, no mesmo passo miúdo e
rápido, com jornais e livros debaixo dos braços, fazendo o per-
curso duma aula para a próxima. Trabalhou nesse trancão até
ao dia de sua morte (VERISSIMO, 1973, p. 137).

Outro professor que Verissimo lembra como um importante


mestre chamava-se Lindau Ferreira.

[...] Homem de cabelos negros, quase quarentão, a saliência da


arcada dentária superior aumentada pelo grosso bigode negro?
Chamava-se Lindau Ferreira. À primeira vista ou trato não
impressionava o observador por qualquer de suas qualidades
pessoais (VERISSIMO, 1973, p. 137).

Pelo que percebo, esse professor não apenas tinha a função de


ensinar; ele procurava colocar as coisas em ordem, ajudar a educar
os alunos nesse internato.

O Prof. Lindau batia à porta de cada quarto: “Vamos, rapazes,


está na hora!”. Certos dias caminhava cantando uma velha can-
ção americana. Neste exato momento ouço-lhe claramente a
voz de taquara rachada:
Johnny, get your gun!
Get your g
Get your gun! (VERISSIMO, 1973, p. 137, grifos do autor).

Sobre esse tipo de rigidez, chego a imaginar como seriam essas


escolas, em termos disciplinares, mais precisamente “internatos”
112

como é o caso. Sempre é bom lembrar que vivia se o início da década


de 1920, na qual ainda não havia um sistema de ensino organizado
no Brasil. Ou seja, nessa época, ainda não havia em nosso país, em
termos de Educação, um sistema organizacional como nos anos 1960
e nos anos posteriores.
Essas lembranças, das quais procuro imaginar, utilizando as
leituras de imagens de Solo, leva-me a pensar o quanto Verissimo
demonstrava de sentimento, de nostalgia e de agradecimento, tal
como no excerto a seguir:

Quanto mais velho fico, mais pessoas de meu passado tenho


desejo de encontrar para abraçá-las e dizer-lhes sem mais expli-
cações: “Obrigado! Obrigado! Obrigado!” (VERISSIMO, 1973,
p. 138, grifos do autor).

Américo da Gama, também lecionava inglês, foi outro dos


professores inesquecíveis de Verissimo:

Guardo, entretanto, a melhor das lembranças desse professor


de Inglês, que tornei a encontrar mais tarde casado, trabalhando
como alto funcionário na sucursal duma grande firma ameri-
cana, em Porto Alegre (VERISSIMO, 1973, p. 140).

Ademais, outro professor citado por Verissimo chamava-se pelo


nome de M. Carré, cuja disciplina que ensinava era a de francês.

[...] ex-marista belga que ensinava Francês, residia na cidade


e vinha três vezes por semana ao Cruzeiro do Sul para dar as
suas aulas (VERISSIMO, 1973, p. 140).

Desse professor, Verissimo não diz muita coisa sobre ele, mas
certamente, se foi citado, de entre tantos que teve como docente,
deve ter tido alguma importância. Percebo também aqui outra con-
tradição de Verissimo, visto que, de fato, o que fala efetivamente
sobre esse professor, é uma tentativa de assédio sexual. Certo dia,
convidou Verissimo a sentar numa cadeira junto a dele, numa sala
com a porta trancada. Usou como pretexto para essa conversa, o
incentivo para Verissimo fazer o preparatório do francês para a banca
do Colégio Estadual Júlio de Castilhos:
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 113

Enquanto falava, sua mão pousou no meu joelho. Fiquei tenso,


desconfiando da súbita intimidade. E quando aqueles dedos
rosados começaram a escalada da minha coxa, compreendi tudo.
Levantei-me: “Com licença, professor”. E saí da sala (VERIS-
SIMO, 1973, p. 141, grifos do autor).

Além dessa contradição que identifico, ele próprio afirma


em Solo, quando diz que “O Homem é um feixe de contradições”
(VERISSIMO, 1976, p. 321).

Algumas despedidas
Um dos momentos que mais marca as lembranças de Verissimo
é quando se despede da sua filha, após seu casamento com o físico
norte-americano:

Ao deixar o aeroporto, de volta para casa, veio-me a mente


a figura de Lord Tantamount, o biólogo amador do Contra-
ponto de Huxley, que costumava cortar o rego das salamandras
para observar depois como se regeneravam os seus tecidos e
elas recuperavam a parte mutilada de seus corpos. Que tipo de
salamandra psicológica seria eu? Quanto tempo levaria para
me refazer da mutilação sentimental que acabava de sofrer?
(VERISSIMO, 1976, p. 2, grifo do autor).

Outro momento de despedida acontece quando ele termina o


curso ginasial em Porto Alegre.

Finalmente chegaram, com os primeiros calores de novembro,


os exames finais. Fui aprovado em todas as matérias com boas
notas. Na noite da festa de despedida, em que se entregaram os
diplomas, por haver obtido o primeiro lugar na classe, ganhei
como prêmio uma bela lente de aumento. E em breve disse
adeus aos amigos, aos professores, aos empregados do internato
e à paisagem de Teresópolis. E lá me fui com o meu baú e uma
mala de mão, rumo do trem que me levaria de volta à terra
natal e aos fantasmas da infância (VERISSIMO, 1973, p. 151).

Essa despedida do colégio porto-alegrense, ao meu ver, faz Veris-


simo voltar, não apenas a sua Cruz Alta, mas as lembranças da infância.
114

Para Bachelard (2009, p. 97), “ao sonhar com a infância, regressa-


mos à morada dos devaneios, aos devaneios que nos abriram o mundo.
É nesse devaneio que nos faz primeiro habitante do mundo da solidão.
E habitamos melhor o mundo quando o habitamos como a criança
solitária habita as imagens”. Entendo que para Verissimo, voltar aos
fantasmas da infância era habitar num espaço de solidão.

Despedida(s) da figura paterna

Verissimo, apesar de narrar algumas de suas despedidas, des-


taca duas delas como lembranças de fundamental importância para
sua vida: a primeira, quando seu pai se despediu dele ao viajar para
São Paulo; a segunda, a morte desse homem por quem ele sentia
tanta admiração.

Comparei o homem que tinha então na minha frente com o


Sebastião Verissimo dos tempos de caviar e champanha. Recor-
dei as suas finas camisas de seda, os seus vinte e tantos pares de
sapatos, as suas incontáveis gravatas, os seus perfumes, as roupas
de boa casimira inglesa ou de tussor de seda feitas sob medida
no melhor alfaiate de Porto Alegre... A comparação me doía. E
agora, no momento em que descrevo essa cena, pergunto a mim
mesmo se naquela remota manhã de outubro de 1930 eu sentia
algum ressentimento para com aquele homem, por ele não se ter
portado de acordo com a imagem ideal que eu tinha ele na mente,
nas minhas mais velas fantasias filiais. Se tinha – concluo –, esse
sentimento se diluía num vasto, profundo lago de compaixão,
em que eu quase me afogava. Lembro-me de que naquela hora
de despedida procurei não julgar meu pai, mas simplesmente
amá-lo, tentar compreendê-lo, aceita-lo como ele era, com todas
as suas qualidades e defeitos (VERISSIMO, 1973, p. 230-231).

Essa reflexão que faz sobre seu pai demonstra o quanto tinha
sentimentos pela sua figura, apesar dos defeitos que habitavam nele.
Depois dessa partida, disse: “Nunca mais tornei a ver meu pai”
(VERISSIMO, 1973, p. 233). Esse tom de nostalgia, associada com
sentimento de culpa, efetivamente por não ter feito algo que pudesse
tirar seu pai da situação em que se encontrava, de miséria, chega
o dia de sua morte, o fim da vida daquele homem que tanto amou.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 115

Na noite daquele dia Maurício Rosenblatt passou várias horas


fazendo-me companhia. Caminhamos sem destino certo pelas
ruas mais quietas da cidade. Meus problemas íntimos me
davam uma loquacidade nervosa. Falei todo o tempo em meu
pai, recordei os seus mais belos momentos, as nossas relações,
o papel decisivo que eu representara na separação do casal.
Agora – concluí – não havia mais nada que eu pudesse fazer
pelo meu amigo. Imaginei os seus últimos anos em São Paulo,
em empregos precários ou desempregado, sem família, sem
dinheiro... Poderia eu ter feito em favor dele algo que não fiz?
Teria sido um mau filho, um egoísta, um moralista hipócrita?
(VERISSIMO, 1973, p. 258-59).

Tanto a primeira despedida como essa, são momentos que mar-


caram de forma indelével a vida de Verissimo, mesmo estando ele já
numa situação razoavelmente confortável. Verissimo diz que quando
seu pai partiu de Cruz Alta para São Paulo, ele ainda não tinha uma
situação financeira confortável que pudesse ajudá-lo. Já quando soube
da notícia de sua morte, a situação era bem melhor.

A despedida da mãe

Verissimo, tal como narra a morte de seu pai, não é diferente


com sua mãe. Diz ele que não vê razões para entrar em pormenores
sobre isso, porque considera doloroso para ele e desinteressante para
o leitor. Porém, assim escreve:

Minha mãe foi hospitalizada em agosto de 1963. Câncer do pulmão.


Aos setenta e dois anos, D. Bega conservava, nos olhos de pupilas
vivas e escuras, uma extraordinária juventude, em contraste com o
rosto marcado, de expressão habitualmente tristonha. Eram esses
olhos que agora via postos em mim, naquele quarto de hospital,
numa espécie de muda e medrosa interrogação. Minha mãe jamais
procurou saber do que sofria. Seu pavor ao câncer fora sempre tão
grande que temia pronunciar essa palavra, substituindo-a pela expres-
são “aquela doença” (VERISSIMO, 1976, p. 57-58, grifo do autor).

Depois de dois meses hospitalizada, Verissimo narra, com tom


de despedida, a morte de sua mãe:
116

No dia 12 de outubro daquele mesmo ano, por volta de meio


dia, minutos depois que meu irmão e eu deixamos o seu quarto,
D. Bega morreu com a discrição e a dignidade com que sempre
tinha vivido (VERISSIMO, 1976, p. 58).

Evidencio aqui uma breve contradição de Verissimo, pois anun-


cia primeiramente que não vai entrar em pormenores sobre esse fato,
mas acaba por descrevê-lo, mesmo que de forma sucinta.

Reflexões sobre a morte

Parece ser uma questão crucial os escritores terem obsessão


pelo tema da “morte’ e com Verissimo não foi diferente.

Eu sabia que o pai de Floriano ia morrer no último capítulo


do livro, e isso me dava uma certa pena. Aquele homem sen-
sível e sensual adorava a vida. Tinha apenas cinquenta e nove
anos... Pensei assim: tenho o poder de vida e de morte sobre
essa criatura, apesar de todos os seus atos e pensamentos de
independência. Que ente, que força, que deus decide sobre a
minha vida e a minha morte? Um simples, minúsculo coágulo
de sangue me pode fulminar dum momento para outro. Quantos
anos de vida ainda terei? (VERISSIMO, 1976, p. 36).

A “morte” para Verissimo era tema que povoou grande parte


dos seus romances e, também, foi fator de preocupação em sua
trajetória enquanto homem mortal. Imortal, nunca se preocu-
pou com isso, pois sempre foi questionado o porquê de não se
candidatar a uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Sem-
pre enfático na resposta, dizia: “eu já sou uma vaga” (VERIS-
SIMO, 1976). Entendo que ao dizer isso, Verissimo já sabia de
seu reconhecimento como escritor, sendo assim, já era “uma
vaga” (grifo meu).
Sobre a interface noite/morte, reflete Verissimo, em momentos
de solidão.

Caminhando sozinho aquela noite pela praia deserta, fiz algumas


reflexões sobre a morte (VERISSIMO, 1976, p. 12).
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 117

A partir disso, reflito e imagino Verissimo, não mais no Rio de


Janeiro, mas na praia de Torres, litoral norte gaúcho, onde passou o
verão de 1958. Assim, Verissimo comenta:

Parei diante do mar. As ondas rolavam para a praia, soltando um


gemido que parecia vir ameaçador das profundezas, mas que
acabava desfeito em suspiros de espumas sobre as areais. No
céu sem lua as estrelas cintilavam. O vento do largo me batia,
morno, na cara (VERISSIMO, 1976, p. 12).

Os quatro elementos, para Bachelard (1998), surgem enquanto


formações típicas, como arquétipos. Tais elementos são vistos como
simbolismos, visto que a poética trabalha os elementos em sua
dimensão simbólica, permitindo que elas suscitem imagens poéticas.
Essa reflexão verissimiana me faz lembrar Bachelard, a partir
de dois desses quatro elementos fundamentais. O “ar” que aludo
ao “vento” que batia sobre o rosto de Verissimo e a água, outro
elemento bachelardiano que articulo com as profundezas do oceano
refletida por Verissimo. Esse elemento também está voltado para a
morte, como indaga Bachelard: “A morte não foi, afinal, o primeiro
navegante?” (BACHELARD, 1998, p. 100).

A procura do lar perdido

Verissimo, apesar das suas contradições, se diz um vencedor,


visto que, em suas últimas páginas de Solo, afirma ter encontrado
o que procurava.

[...]. Creio que a história da minha vida seguiu uma trajetória


clara e até certo ponto coerente. [...]. Depois daquela terrível
noite de 1922, quando os meus pais se separaram, eu saí em
busca do lar perdido. [...]. Eu poderia gritar triunfalmente que
por fim encontrei o que procurava (VERISSIMO, 1976, p. 319).

Todos esses temas, ou tópicos, foram retirados das leituras


realizadas de Solo, formando um conjunto temático e, ao meu ver,
coerente com o título deste capítulo e articulado, também, com o
livro em sua totalidade. Trouxe as lembranças do Verissimo pintor
118

(não realizado), viajei no conflito da imaginação e por outras para-


gens conhecidas com Verissimo, ele em suas lembranças memoriais
autobiográficas e eu com a imaginação. Também, imaginei-me vendo
com Verissimo, o mar pela primeira vez.
Verissimo, desde a sua tenra idade, foi acometido pelas doen-
ças. Lembra-se dos problemas cardiovasculares, dos médicos que
o tratou, tal como o Eduardo Faraco.
Do fascínio das viagens, enquanto foi um viajante que “bus-
cava”, como mesmo diz, eu viajo nessas suas lembranças imagina-
tivas. Ou seja, sou um viajante imaginário. Dessas viagens, a que
fez a Portugal é marcante, pois faz uma narrativa longa em sua
memória imaginativa.
Reflete sobre as cidades, ao dizer que elas têm sexo. Alude às
estações do ano, inclusive quando esteve nesse país ibérico.
Narra a sua trajetória pessoal, acadêmica e profissional, enfa-
tizando mais a primeira e esta última, visto que não seguiu, nem
tentou a carreira acadêmica.
Refere ao processo de criação literária, sobre os escritores que
lia, e se questionava se era um escritor erótico ou pornográfico, além
de refletir sobre a interface ficção-realidade.
Ademais, alude acerca dos professores que marcaram sua vida,
as despedidas e por fim, faz reflexão sobre a morte.
Com essas lembranças verissimiana, leio-as com a minha ima-
ginação, tentando chegar a uma poética memorial autobiográfica.
ARREMATES FINAIS DE UM
SOLO POÉTICO DE CLARINETA
Para chegar a estes arremates, parti das lembranças “remotas”
de Verissimo. Para ele, em início do século XX, para mim, final desse
século, naquele verão de 1998 quando cheguei ao Solo de Clarineta
pela primeira vez. Desses tempos para cá, digo, tempos poéticos,
percorri caminhos e descaminhos, em busca de uma poética memo-
rial autobiográfica e, para encontrá-la, a leitura das lembranças de
Verissimo me fizeram imaginar, por meio da imaginação criadora,
dos sonhos poéticos, da memória-imaginação e dos espaços oníricos.
Nesse contexto, para Verissimo, o tempo é um elemento de
reflexão. É como um filtro a coar impurezas da nossa água interior.
Trata-se de um tempo da alma, um tempo poético. Falar sobre esse
tempo que dura e morre, em durações e instantes, é falar também de
sua poeticidade. Por isso, acredito poder chamar sua autobiografia
de poética. O tempo do relógio ameaçador simbolizava para ele a
autoridade paterna, exercida pela mãe, o tempo do cumprimento de
prazos e deveres, o tempo de animus, no sentido que lhe dá Bache-
lard (2009). Quando fala em estar em Santa Fé (cenário de O tempo
e o vento) e no Sobrado da família, onde morou toda a infância,
vêm mais fortes as reflexões sobre o tempo. Vasculhando o tempo
passado busca as primeiras lembranças, o que lhe vem é o sugar do
mamífero humano. Nesse vasculhar, o pátio do Sobrado lhe serve de
mote para trazer ao mesmo tempo o cômico, o trágico e o pitoresco.
A infância é um tempo imaginativo e tem suas estações. As
imagens dos tempos de criança de colo “sobem do fundo do oceano
em que jazem”, diz Verissimo, são imagens aquáticas, de vida e de
morte, de despertar e de despedidas e perdas. Verissimo imagina-
-se como o pescador autobiográfico que lança suas redes em águas
turvas para apanhar algumas espécies ariscas de sua flora e fauna
submarinas, as quais não se deixam aprisionar.
“O relógio psicológico do tempo da infância anda mais devagar
do que o dos adultos” alude Verissimo. Porque a criança permite-se
devanear mais, deixa-se mais facilmente levar-se pela imaginação
criadora, não está presa ao tempo cronológico das obrigações, quase
120

sempre, quando pode. Verissimo comenta de si que “a memória de


um velho está cheia de labirintos”. Bachelard (1990b) fala em labi-
rintos em uma das obras dedicadas à imaginação da terra, especifi-
camente no livro que trata da imaginação dos devaneios do repouso,
dos devaneios de intimidade. A imaginação do labirinto traz o sen-
tido de estar perdido. O homem velho, que é também um arquétipo
do homem sábio, aparece na pessoa de Verissimo, que se perde e se
acha em suas memórias, matizando tempos, lugares, fatos e fantasias.
Ao lembrar que foi tirado a fórceps, refere que resistiu a nascer
em meio a um mundo em guerra. Conta ainda que aos 5 anos espiava
intrigado o cometa que passava, assim sonhava com o imaginário
do fim do mundo!
Ao escrever suas memórias, em Solo, Verissimo descobre que
vive dentro de si dois seres, um sisudo e responsável e outro que não
leva coisa alguma a sério. Nessa descoberta, se reinventa, deixando
fazer dançar animus e anima, dois polos do psiquismo humano,
antagônicos e complementares, como diz Bachelard (2009).
Para Verissimo, seu avô paterno foi sonhado pelo escritor atra-
vés do cheiro de desinfetante nos dedos e “pelo ruído regular de seus
punhos engomados quando ele sacudia o termômetro”. E, também
por seus “olhos mansos”, olhos que, numa leitura bachelardiana
traziam o desejo de amansar quem os olhava.
O avô materno era sonhado pelo “cheiro da fumaça de um
cigarro de palha”. Já a avó materna, era lembrada em sua aparência
como uma índia pele vermelha, bem como por sua economia de
gestos, palavras e certo pudor em demonstrar sentimentos. E a exigir
que os netos comessem tudo que lhes punha no prato nos almoços e
jantares da família. Lembrado por Verissimo, por uma imaginação
do não desperdício.
A família materna é sonhada como amelódica, exceto o avô
que em seu assovio resvalava “saudades das campinas, tropeadas e
rodeios de antanho”.
A lembrança que faz o escritor comparar seus pais, traz a mãe
como alguém também muito econômica, e o pai, em contraste, como
o gastador mor da família. Verissimo parecia mais afeiçoado ao pai, ao
passo que pela mãe nutria um sentimento de culpa por ela ter tido que
sustentar a casa e a família enquanto o pai punha tudo fora. Fato que
lhe doía, pois no íntimo, achava que devia estar ao lado dela por isso.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 121

Não por acaso, as memórias de sua mãe estão associadas “ao


ruído da máquina de costura, o cheiro da fazenda e principalmente
com uma tesoura na mão, cortando moldes” o que lhe traz remorsos
e culpa. Sua mãe parecia ser aquela que “tesourava” os sonhos, já
que tinha muito que se preocupar com a realidade dura da vida, do
sustento, do dar conta de tudo sozinha. Ela é quem dava os moldes
da família e, também de Verissimo, de certa feita, pois parece ter se
tornado mais parecido com ela do que ao pai, apesar de tornar-se
um homem de imaginação, um escritor.
Por seu turno, as memórias de seu pai associam-se à gula pelo
sexo, votado ao gozo carnal e à vaidade pessoal, sem conhecer obs-
táculos seja moral ou ético nesse campo. São memórias de várias
fornicações diárias improvisadas e rápidas com criadas da casa,
acontecidas no fundo do quintal ou atrás de alguma porta. Lembra-se
dele como alguém cheio de contradição, comparando-se os vários
tempos de sua vida e seus comportamentos últimos. Chama-lhe a
atenção sua letra grande com um rabo na última letra, o que poderia
denotar tendência para a autodestruição, num estudo grafológico.
Imagina-o como o mais brilhante da família, a condensar as quali-
dades e defeitos de todos, tios e avô.
Verissimo fala pouco de seu irmão Ênio, tendo-o como discreto,
introvertido mas grande fazedor de amigos.
Dos irmãos do pai, lembra-se com mais veemência de dois,
um ourives que tentou suicídio e pôs-se para sempre numa cama até
falecer antes dos 40. Outro, a ensinar-lhe humanidade e a influen-
ciar-lhe para a escrita, com quem mais conviveu e teve intimidade.
Dele traz a imaginação da mansidão e dos ares paternais.
Conta que aos 17 anos seu pai já bebia em excesso e sua mãe
não mais o tolerava, o que culminou na separação do casal no ano
de 1922. A partir de então imaginou-se indo em busca do “lar per-
dido”, de um tempo e de um espaço perdidos.
Quase dez anos depois desse episódio, casou-se com uma moça do
lugar, Mafalda, com que diz ter vivido harmoniosamente, por toda vida.
As noites do verão da infância são lembradas através do “vento
morno” que trazia “às narinas um cheiro acre dos arredores da
cidade”, ou por uma brisa com “a doce fragrância da flor conhecida
como rainha-da-noite, ou a de jasmim e madressilvas”. O céu, as
122

estrelas e a lua parecem estar mais próximos de Verissimo em suas


memórias de infância.
Fazia sua ameixeira do Japão viajar na imaginação pelas cam-
pinas norte-americanas e fiordes escandinavos, sob ela, lia romances
ambientados nesses lugares.
A culpa do pecado e a imaginação da punição religiosa católica,
que se colocava contrária à masturbação dos fiéis, vinham na forma
da imaginação da debilidade pós gozo.
O sonho de naufrágio vinha com a história do Titanic. Outro
sonho de abertura para o mundo se manifesta na casa de portas
abertas, de Verissimo e Mafalda, na casa em que não era preciso
avisar antes para se chegar, tanta a intimidade e empatia os visitantes
tinham com os donos.
A escolha da casa do casal para morar deu-se por um sonho
de simpatia e serenidade. Uma casa que junto com eles proporcio-
naria uma atmosfera de repouso e paz, como diziam os amigos,
segundo Verissimo.
Narra, em diversos momentos, que o inconsciente do escritor
é imaginado como um computador a computar tudo.
O sonho (não realizado) de tornar-se pintor profissional, veio
desde a infância, mas em seus escritos pinta paisagens e perso-
nagens. Pinta seu próprio interior. Seus desenhos de infância são
como roteiros, cenários e personagens de histórias romanescas que
escreveu ao longo da vida.
Sonhou também através de outros sonhadores da escrita, sendo tal-
vez a primeira forma de começar a autorizar-se como escritor de ficção.
A vida imaginativa portanto esteve presente desde a infância,
quando imaginou guerras, batalhas, mortes e vitórias, e alçara seu
nome marcado na história, como na vida real.
Foi fascinado pelo mar, embora o tenha conhecido já adulto e
em outras paragens que não as do Rio Grande do Sul, por conhecer
primeiro, o mar do Rio de Janeiro.
A medicina foi por ele sonhada através do imaginário sobre os
médicos da família, o avô paterno, um tio paterno e o médico que
atendia seus familiares.
A imaginação da enfermidade também esteve presente em sua
vida com os problemas do coração que passaram a se manifestar. Em
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 123

sua memória sobre a doença diz aparecerem “vultos, faces, vozes” e


outras impressões de momentos que passou sob efeito de sedativos,
alternando sono com lucidez.
Na infância, como depois dela, fascinou-se pela imaginação da
viagem, e adulto realizou algumas com sua esposa Mafalda. Ima-
ginação de quem viaja e de quem contempla a viagem do viajante
e seu prazer. Considerava-se um viajante buscador.
As viagens a Portugal ocupam quase duzentas páginas do
volume dois de Solo, o que nos diz o quanto esse país causou-lhe
imaginações de viagens felizes e prazerosas, e resgate de suas ori-
gens portuguesas, advindas dos bisavós paternos.
Talvez em Portugal buscasse também um pouco de si mesmo,
uma viagem as suas profundezas, fazendo com que se sentisse em
casa, abraçado pela imaginação da proteção e do acolhimento.
O que está no exterior está no interior, diz Bachelard (2000),
em Verissimo também aparece assim: “o céu estava azul e eu me
sentia azul por dentro “(fala um momento em Portugal). O azul do
céu aparece como uma tinta, um sangue, uma água, algo que tinge
e deixa uma marca no corpo do tecido. Tinta que é tematizada por
Bachelard (1998) no livro “A água e os sonhos”.
A imaginação das cidades também está presente em suas via-
gens por terras lusas e por cidades de suas terras gaúchas. Em Évora
imagina o amor que acontece à primeira vista. Coimbra traz-lhe
a imaginação da Antiguidade e da história. Porto Alegre chama a
imaginação do sol poente e, junto dela, a aceitação do que se acaba
a cada novo dia.
Para Verissimo, as cidades incitam a imaginação da principal
das ambivalências, traduzida no gênero masculino e feminino,
trazendo a manifestação de cada um dos dois polos do psiquismo
humano e cósmico: animus e anima, sintetizando a imaginação
do antagonismo complementar do poético que há na natureza e
nas pessoas.
São as estações do ano que marcam sua cronologia de viagens,
jamais o calendário, bem como suas diferentes fragrâncias.
A imaginação do inverno no espaço do internato lhe veio como
crueldade e também imposição social de não poder reclamar do frio
para não parecer aos outros como afeminado, assim o inverno traz
124

a imaginação do machismo. Ademais, a imaginação da harmonia


passava por ir na contramão do que foi a vida de seus pais, buscando
e depois formando um lar que tinha por harmonioso.
Sobre Deus, disse não crer nem descrer nele, mas imaginava-
-se como alguém possuidor de sentimento religioso por referenciar
todas as formas de vida.
Sua imaginação criadora parece sintetizar-se em uma frase
principal: “não consigo pensar por palavras, mas com imagens”
(BACHELARD, 1991). Experiências da vida cotidiana atiçam sua
imaginação literária. Logo, a finalização da escrita de um livro é
imaginada como ápice de gozo carnal, quando os sentimentos se
confundem: alegria, tristeza e alívio.
Confessou que, através da imaginação, cometeu todos os peca-
dos, mas nem por isso deu fiança para aqueles que acreditavam
que ele vivia na literatura o que não podia fazer na vida real por
falta de coragem. Pelo contrário, acreditava na experiência de tea-
tro da escrita, onde ele se exercitava vivendo vários personagens
e, com isso, complexificando suas possibilidades de existência. Ao
mesmo tempo, dava vazão à imaginação científica, mesclando his-
tória e ficção.
A imaginação erótica de seus romances era para ele o resultado
da luta que travava interiormente com uma imaginação puritana e
moralista a pregar-lhe condutas impecáveis.
O amor a outros escritores lhe incita a mão criadora de literato
em busca de novas e diversas invenções. A poesia e a música lhe
servem de inspirações. O cinema também não é esquecido e sua
imaginação é ativada com o cheiro de querosene.
A imaginação da natureza não está presente somente nos chei-
ros, que abundam em toda sua autobiografia, mas também na força
da planta, com flores e uma amiga árvore já lembrada. Sim, Veris-
simo é imaginado por suas imagens. Elas o imaginam. A ponto dele
mesmo ser imaginado como “planta do asfalto e de papel”. A cidade
e a escrita aqui se articulam e falam do escritor.
Os professores que lembrou com afeto falam de sua imaginação
do educar e de educador. Ao prestar deferência àqueles que fizeram
diferença em sua vida liga-se à imaginação da velhice, com seus
pesos, medidas e balanços.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 125

A saída da filha de casa, o fim dos tempos do internato e a


morte do pais, trazem todos eles a imaginação das despedidas e das
saudades do que já não é mais e daqueles que não estão mais por
perto. E através da escrita literária percebe o quanto de poder pode
manipular, agenciando a vida de seus personagens e a sua própria,
através das imagens que eles lhe oferecem para imaginar.
E é como Solo de Clarineta e como solo de chão que Verissimo
é imaginado pelas imagens de sua autobiografia. De fato, mesmo
acompanhado, o percurso de cada um na Terra é sempre solo, pois
singular e com sua tônica própria. No caso de Verissimo, pelo título
desse livro de memórias, sua tônica singular é musical. Isso é um
pouco do que ele me ajuda a dizer através de sua poética de vida
observada em suas memórias autobiográficas.
REFERÊNCIAS
AMADO, João; FERREIRA, Sónia. Estudos autobiográficos: histó-
rias de vida. In: AMADO, João (coord.). Manual de investigação
qualitativa em educação. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2013. p. 169-185.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. 3. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2009.

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imagina-


ção do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a ima-


ginação da matéria São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BACHELARD, Gaston. A terra e o devaneio da vontade: ensaio


sobre a imaginação da força. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São


Paulo: Brasiliense, 1990a.

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio


sobre a imagem da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990b.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins


Fontes, 1988.

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; o novo espírito cienti-


fico; a poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em ciências sociais.


4. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
128

BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo.


Porto Alegre: L&PM/EDIPUCS, 1995.

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Erico Verissimo.


Instituto Moreira Sales, n. 16, nov. 2003.

CARPEAUX, Otto Maria. Erico Verissimo e o público. In: CHA-


VES, Flávio Loureiro (org.). O contador de histórias: 40 anos
de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972.
p. 35-39.

CARVALHO, Edgar de Assis. Orelha do livro. A cabeça bem feita.


Repensar a reforma. Reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2005.

CHAVES, Flávio Loureiro. Nota do organizador. In: VERISSIMO,


Erico. Solo de clarineta II: memórias. Porto Alegre: Globo, 1976.
p. 259-262.

CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador de histórias: 40 anos


de vida literária de Erico Verissimo. Porto Alegre: Globo, 1972.

CONY, Carlos Heitor. Quase memória, quase romance. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

FRESNOT, Daniel. O pensamento político de Erico Verissimo.


Rio de Janeiro: Graal, 1977.

GOMES, Ana Laudelina Ferreira. A religação dos saberes no rio


do imaginário e da imaginação simbólica. Revista Cronos, Natal,
v. 17, n.1, p. 107-117, jan./jun. 2016a.

GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Por que buscar articulações cien-


tifico-humanísticas? In: GOMES, Ana Laudelina Ferreira; BRITO,
Silvia Barbalho (org.). Festins de seda: O Festival Mythos-Logos
do Imaginário e outras inventices de inspiração bachelardiana. Natal:
EDFURN, 2016b. p. 49-62.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 129

GOMES, Ana Laudelina Ferreira. Educação por imagens. In:


GOMES, Ana Laudelina Ferreira (org.). A flor e a letra: poéticas e
lições de imagens. Natal: EDFURN, 2013. p. 191-202.

HILLMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Petrópolis:


Vozes, 2018.

HILLMAN, James. O código do ser: uma busca do caráter e da


vocação pessoal. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

HILLMAN, James. Psicologia arquetípica: um breve relato. São


Paulo: Cultrix, 1995.

HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século


XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

HOHLFELDT, Antonio. Terra de contrastes. In: Cadernos de


Literatura Brasileira. Instituo Moreira Sales, n. 16, nov. 2003.
p. 82-107.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à inter-


net. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

LINS, Álvaro. Sagas de Porto Alegre. In: LINS, Álvaro. Os mor-


tos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
p. 220-229.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Viver para contar. 3. ed. Rio de


Janeiro: Record, 2003.

MARTINS, Wilson. A ideia modernista. Rio de Janeiro:


Topbooks, 2002.

MILNER, Max. Metáforas e metamorfoses no imaginário científico:


o exemplo da ótica. In: VIERNE, Simone et al. A ciência e o ima-
ginário. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. p. 27-51.
130

MORIN, Edgar. O método V: a humanidade da humanidade – a


identidade humana. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2012.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar


o pensamento. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

SOUZA, Ilza Matias de. Prefácio . In: GOMES, Ana Laudelina


Ferreira (org.). A flor e a letra: poéticas e lições de imagens. Natal:
EDFURN, 2013. p. 11-36.

VERISSIMO, Erico. Ana Terra. 3. ed. São Paulo: Companhia das


Letras, 2005.

VERISSIMO, Erico. A liberdade de escrever: entrevistas sobre


literatura e política. São Paulo: Globo, 1999.

VERISSIMO, Erico. Um certo Henrique Bertaso: artigos diversos.


9. ed. São Paulo: Globo, 1996a.

VERISSIMO, Erico. Um certo capitão Rodrigo. 3. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 1996b.

VERISSIMO, Erico. Breve história da literatura brasileira. Tra-


dução: Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1995.

VERISSIMO, Erico. Solo de clarineta II: memórias. Porto Alegre:


Globo, 1976.

VERISSIMO, Erico. Solo de clarineta I: memórias. 2. ed. Porto


Alegre: Globo, 1973.

VERISSIMO, Erico. Israel em abril. Porto alegre: Globo, 1970.

VERISSIMO, Erico. O escritor diante do espelho. In: VERISSIMO,


Erico. Ficção completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967. v. 3.
p. 13-174.
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 131

VIERNE, Simone. Ligações tempestuosas: a ciência e a literatura.


In: VIERNE, Simone et al. A ciência e o imaginário. Brasília.
Editora Universidade de Brasília, 1994. p. 79-95.

WUNENBURGER, Jean Jacques. O imaginário. São Paulo:


Loyola, 2007.

WUNENBURGER, Jean Jacques. Imaginário e ciências. In:


ARAUJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, Fernando Paulo (coord.).
Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas her-
menêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 265-285.
ÍNDICE REMISSIVO

A
Autor 18, 19, 24, 30, 31, 33, 35, 45, 46, 50, 55, 56, 57, 59, 61, 63,
65, 66, 68, 69, 70, 73, 74, 76, 77, 83, 84, 87, 88, 94, 96, 99, 100,
102, 103, 104, 106, 107, 108, 109, 111, 112, 113, 115

B
Bachelard 11, 22, 23, 24, 25, 26, 45, 46, 47, 50, 51, 52, 53, 54, 55,
66, 68, 70, 71, 78, 79, 80, 81, 85, 86, 88, 89, 93, 96, 97, 101, 109,
114, 117, 119, 120, 123, 124, 127

C
Casa 13, 17, 26, 30, 36, 43, 45, 47, 53, 56, 57, 58, 61, 64, 65, 69,
71, 72, 73, 78, 79, 80, 86, 90, 92, 93, 99, 100, 101, 102, 103, 113,
120, 121, 122, 123, 125
Clarineta 13, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 33, 35, 38,
39, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 71, 81, 88, 101, 119, 125, 128,
130

E
Erico verissimo 3, 4, 9, 13, 17, 18, 23, 26, 27, 32, 34, 36, 37, 45,
46, 47, 48, 128
Escritor 13, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 33,
35, 47, 48, 49, 61, 70, 72, 76, 78, 81, 82, 83, 86, 88, 92, 104, 105,
106, 108, 116, 118, 120, 121, 122, 124, 130

H
Homem 21, 22, 29, 53, 55, 59, 60, 61, 62, 63, 68, 73, 75, 77, 78,
82, 85, 87, 91, 92, 93, 96, 101, 102, 105, 107, 109, 110, 111, 113,
114, 115, 116, 120, 121
134

I
Imagens 22, 23, 24, 26, 38, 39, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 48, 50, 51,
52, 53, 64, 66, 71, 78, 79, 81, 82, 85, 86, 88, 92, 93, 97, 100, 101,
112, 114, 117, 119, 124, 125, 129, 130
Imaginação 4, 11, 22, 23, 25, 26, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 53, 54, 55,
56, 65, 68, 70, 76, 78, 79, 81, 85, 88, 89, 100, 101, 104, 107, 109,
118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 128
Imaginário 22, 23, 24, 25, 45, 46, 81, 103, 110, 118, 120, 122, 128,
129, 131
Infância 13, 19, 26, 30, 43, 45, 46, 47, 50, 51, 53, 55, 59, 66, 68,
69, 70, 71, 72, 73, 78, 79, 80, 90, 113, 114, 119, 121, 122, 123

L
Lembranças 3, 4, 17, 19, 23, 26, 29, 32, 33, 35, 43, 45, 46, 47, 48,
50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 58, 63, 70, 71, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 80,
81, 83, 86, 89, 91, 92, 93, 97, 107, 112, 113, 114, 118, 119
Literatura 17, 18, 21, 22, 25, 32, 33, 35, 36, 37, 51, 69, 70, 71, 73,
84, 87, 94, 99, 106, 108, 109, 124, 128, 129, 130, 131

M
Memórias 18, 19, 20, 23, 26, 27, 28, 29, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 53,
54, 62, 68, 78, 81, 88, 90, 100, 101, 120, 121, 122, 125, 127, 128,
130

O
Obra 4, 11, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31,
33, 35, 36, 46, 47, 48, 49, 50, 70, 81, 82, 92, 96, 101, 103, 107, 108

S
Solo de clarineta 13, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 30, 33,
35, 38, 39, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 71, 81, 88, 101, 119, 125,
128, 130
Sua vida 20, 24, 27, 30, 36, 46, 50, 63, 64, 68, 74, 85, 86, 87, 90,
91, 94, 95, 96, 110, 114, 118, 121, 122, 124
MEMÓRIA IMAGINATIVA
NAS LEMBRANÇAS DE ERICO VERISSIMO 135

T
Tempo 13, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 26, 27, 29, 30, 31, 34, 43, 45, 48,
49, 50, 51, 52, 57, 58, 59, 63, 64, 65, 66, 68, 75, 78, 81, 84, 87, 88,
89, 90, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 100, 103, 104, 107, 113, 115, 119,
121, 124

V
Vida 13, 19, 20, 23, 24, 27, 28, 30, 32, 36, 45, 46, 48, 49, 50, 51,
52, 53, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 72, 74, 80, 82, 84, 85, 86,
87, 88, 89, 90, 91, 94, 95, 96, 99, 105, 106, 110, 114, 115, 116, 117,
118, 119, 121, 122, 124, 125, 127, 128, 129
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 10 X 17 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

Você também pode gostar