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Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

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Antonio Wardison C. da Silva
Marcelo Carvalho
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

DE UM DISCURSO A OUTRO:
Linguagem, Ética e Conhecimento
na Filosofia Contemporânea

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2024
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE

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Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

S586

Silva, Antônio Wardison C. da. (organizador)


De um discurso a outro: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea /
Antonio Wardison C. da Silva, Marcelo Carvalho (organizador) – Curitiba : CRV, 2024.
180 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5768-9
ISBN Físico 978-65-251-5767-2
DOI 10.24824/978652515767.2

1. Linguagem 2. Ética - Conhecimento I. Carvalho, Marcelo (org.) II. Título III. Série.

CDU 1 CDD 400 100


Índice para catálogo sistemático
1. Linguagem – filosofia - 100

2024
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
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Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................ 9
Antonio Wardison C. Silva
Marcelo Carvalho

SUBJETIVIDADE DISCURSIVA E A SURDEZ ........................................... 15


Amanda Cavalcante Ribeiro
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ASPECTOS SEMÂNTICOS DA TEMPORALIDADE E DA MUDANÇA


NO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS ........................................... 29
Diego de Souza Avendano

CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DE HEINRICH HERTZ


NA CONCEPÇÃO DE MECÂNICA DE WITTGENSTEIN NO
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS .................................................. 45
William Botura Apostolico

AS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS E A REVISÃO DA


CONCEPÇÃO DE ‘PENSAMENTO’ DO TRACTATUS .............................. 61
Marcelo Carvalho

A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA FREIREANA E O HABEAS CORPUS


DE WITTGENSTEIN PARA OS SIGNIFICADOS “ENCARCERADOS”:
a (re)construção da realidade.......................................................................... 71
Francisco Estefogo

IDEOLOGIA E O SONHO DE UM GENOMA HUMANO TOTALMENTE


ANALISADO EM RICHARD LEWONTIN ..................................................... 83
Vitor Paixão Roberto

PARA ALÉM DA TÉCNICA PRIMITIVA: A alternativa antropológica de


D. Z. Phillips à caracterização da magia na obra de Jacques Ellul ............... 101
Felipe Couto

A RELAÇÃO ENTRE CORPO, ESPÍRITO E LINGUAGEM NA


FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY ............... 115
Cassiano B. da Costa

APEL, COM E CONTRA WEBER: a Ética do Discurso como superação


da Ética da Responsabilidade ....................................................................... 129
Antonio Wardison C. Silva
ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 175

AUTORES .................................................................................................... 177

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APRESENTAÇÃO
O conjunto de textos reunidos nesse volume foi concebido e elaborado
em um contexto de forte interlocução entre seus/suas autores/as. Para além
disso, entretanto, a diversidade dos textos se constitui a partir de uma seme-
lhança bastante grande quanto à maneira de realizar o trabalho filosófico,
situando em seu núcleo a revisão e crítica de conceitos e a reflexão sobre o
papel da linguagem em nossas práticas e na origem dos problemas mais tra-
dicionais da filosofia. A reflexão sobre a linguagem - que ocupa lugar central
no debate filosófico desde o final do séc. XIX – não deve ser compreendida
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como a elaboração de um tema particular em meio a tantos outros. Ela ocupa,


em grande medida, o lugar de filosofia primeira e está fortemente associada à
metafísica. A revisão crítica desse debate e das concepções sobre linguagem
que se situam no seio da tradição filosófica consiste, assim, em problemati-
zar alguns dos principais pressupostos dessa tradição e do debate filosófico
contemporâneo. De uma perspectiva geral, talvez se possa dizer que a crítica
à metafísica e às concepções tradicionais sobre linguagem, significado, con-
ceitos é um elemento central na revisão das concepções sobre subjetividade,
conhecimento, ética e na abordagem dos temas que se apresentam hoje para
nós como relevantes. Esse é o elemento que efetiva a interlocução apresen-
tada nesse livro e que justifica um percurso que parte da problematização da
reflexão filosófica sobre a linguagem.
O texto de Amanda Cavalcante Ribeiro, “Subjetividade discursiva e a
surdez”, abre o volume com uma confrontação das concepções filosóficas
sobre a linguagem a partir da perspectiva da experiência das pessoas surdas.
O texto busca mostrar o quanto o discurso de pessoas ouvintes acerca da
linguagem, mais especificamente da linguagem relacionada à surdez, afeta a
sociabilidade dessas pessoas e reverbera na construção de sua subjetividade.
Na ausência de uma língua de sinais em que essas pessoas se situam como
agentes ativos, elas seriam marcadas pela exclusão da participação nos jogos
de linguagem da grande maioria das pessoas que os cercam, perdendo com isso
o papel de agentes que se apropriam e constituem sua linguagem a partir de
suas práticas e necessidades. O texto procura mostrar o discurso desse sujeito
surdo, que se opõe de forma enfática a discursos ouvintistas e capacitistas,
de modo a explicitar a natureza psíquica, social e política que atravessa sua
relação com as línguas de seu cotidiano.
A investigação filosófica da linguagem se apresenta ao ter como principal
núcleo a reflexão sobre a obra de L. Wittgenstein. Esse trabalho tem em seu
horizonte a compreensão da relação da linguagem com conceitos psicológicos
e com a dinâmica social e política em que ela se situa, é esclarecida e elaborada
10

de maneira relevante através da interlocução com a obra desse autor central


da filosofia contemporânea. Diego Avendano, em “Aspectos Semânticos da
Temporalidade e da Mudança no Tractatus Logico-Philosophicus”, aborda
o tratamento da filosofia inicial de Wittgenstein em relação à concepção do
tempo como forma dos objetos (Fomen der Gegenstände), conectando-a à
tarefa filosófica de análise lógica das proposições e ressaltando a ideia de que
as sentenças só têm sentido se sua possibilidade de verdade estiver vinculada
à realidade. Ao se propor explorar os aspectos semânticos da temporalidade, o
texto busca mostrar a noção de mudança como uma consequência do contraste
entre a lógica e os fatos, enfrentando a dificuldade de localizar o papel desem-

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penhado pela temporalidade na análise lógica das proposições. Mediante a
apresentação do contraste entre sentido e possibilidade – destacando diferentes
usos do termo “possibilidade” e diagnosticando o colapso do uso lógico e do
uso ontológico de possibilidade na obra – o capítulo irá explorar a relação
entre linguagem e mundo para encontrar o percurso que permite abordar o
tempo como forma dos objetos.
Em “Considerações sobre a influência de Heinrich Hertz na concepção
de mecânica de Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus”, William
Botura Apostolico debate a chamada “epistemologia do Tractatus”, obra
inicial de L. Wittgenstein, publicada em 1921. Seu texto busca delinear como
Wittgenstein, nesse trabalho inicial, compreende a ciência e o conhecimento
científico e, mais especificamente, o debate sobre a Mecânica e a Física. Botura
parte de uma ideia de Bento Prado Neto, de que no Tractatus a Mecânica teria
um certo estatuto a priori e, principalmente, um caráter convencional que, no
limite, faria dos sistemas de Mecânica sistemas alternativos. Sua função seria,
então, prescritiva, e não descritiva (segundo o vocabulário de Luiz Henrique
Lopes dos Santos). O texto procura também elucidar as influências científicas
que formaram Wittgenstein em sua juventude, com particular ênfase para o
“método” proposto por Heinrich Hertz e que seria partilhado por Wittgens-
tein. A confrontação do famoso “Prefácio” aos Prinzipien der Mechanik de
Hertz com as proposições 6.3 do Tractatus visam elaborar uma leitura que
deixe clara a radical novidade na maneira como Wittgenstein concebe, nesse
trabalho, a natureza do discurso da ciência.
A relação entre o Tractatus, obra inicial de Wittgenstein, e sua filoso-
fia madura, apresentada nas Investigações Filosóficas, é tratada no texto de
Marcelo Carvalho a partir do contraste entre a maneira como o conceito de
“pensamento” é elaborada nessas duas obras. A concepção inicial de Witt-
genstein sobre o pensamento, presente no Tractatus, se insere no núcleo de
uma longa tradição filosófica de reflexão sobre a linguagem, que remonta a
Platão, e que a concebe a partir de sua relação com a estrutura metafísica ou
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 11

ontológica do mundo, por referência à qual ela se constituiria como signifi-


cativa. Essa concepção, e toda a tradição a que ela se associa, é duramente
criticada nas Investigações Filosóficas. A filosofia madura de Wittgenstein
recusa a compreensão da linguagem a partir da referencialidade e da ontologia
e se volta para os contextos de ações humanas em meio às quais as expressões
são usadas e ganham significado. A linguagem se constituiria, portanto, em
meio a jogos de linguagem e práticas humanas. O pressuposto à compreen-
são da linguagem não é, então, a investigação da estrutura metafísica do
mundo, a que ela estaria relacionada, concepção recusada por Wittgenstein
nas Investigações, mas a compreensão das ações humanas que a constituem e
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transformam. O texto de Carvalho procura explicitar como a filosofia madura


de Wittgenstein abre uma nova perspectiva para a compreensão da relação
entre linguagem, historicidade e práticas humanas, dissociando-a do contexto
metafísico em que tradicionalmente se situa. O “giro copernicano” - proposto
por Wittgenstein - situa o debate sobre conceitos em meio às diversas formas
de vida humana em que a linguagem se articula.
A interlocução com a obra madura de Wittgenstein é conduzida a um
terreno mais amplo pelo trabalho de Francisco Estefogo. Seu texto debate a
concepção de educação libertária proposta por Paulo Freire, segundo a qual
os partícipes de toda a atividade educativa vivenciam as práticas escolares
de maneira igualitária, colaborativa, democrática e emancipadora, afugen-
tando, de modo consequente, as formas dominantes e silenciadoras, além
dos mecanismos disciplinares de controle da vida em sociedade. Estefogo
sustenta uma convergência entre os pressupostos teórico-filosóficos acerca
da educação libertária proposta por Freire e a condição de liberdade e fluidez
do processo de produção dos significados descritos por Wittgenstein em sua
filosofia madura. Essa aproximação possibilita a problematização da rigidez
e do encarceramento dos sentidos que, circunscritos pelas construções sociais
contemporâneas, parecem sedimentar doutrinas e prescrições dos modos de
viver na sociedade contemporânea. A compreensão da linguagem em seu
uso, da perspectiva de Wittgenstein, permitiria a construção de novos senti-
dos e conhecimentos, e, em consequência, de novas realidades, abrindo um
horizonte de transgressões e transformações, de modo a desconstruir teorias
enrijecidas e homogeneizadoras que marcam a modernidade.
No texto “Ideologia e o sonho de um genoma humano totalmente ana-
lisado em Richard Lewontin”, Vitor Paixão debate uma concepção não sis-
temática de ideologia para as ciências biológicas, problematizando a relação
entre a atividade científica e a estrutura conceitual que a sustenta. Pensando
com o trabalho de Lewontin sobre genética e as aspirações que cientistas e
médicos apresentam sobre o futuro da anotação genômica e sobre como isso
12

poderia ou deveria impactar nossa compreensão acerca de nós mesmos e


de nossas organizações sociais, o texto nos mostra que diferentes níveis de
interpenetração entre visões de mundo - e seus valores sociais associados - e
ciência estão em jogo quando fazemos ciência nas disciplinas biológicas. Essa
pervasividade dos valores sociais na genética, representada pela aspiração de
entender fenômenos como a desigualdade social, diferenças de capacidades
entre grupos sociais e a possibilidade de uma descrição completa do que
seria o organismo “normal” a partir do projeto genoma, nos mostra como
Lewontin entende ideologia como sempre presente no modo cartesiano de
fazer ciência biológica. De fato, Lewontin nos mostra que mesmo os conceitos

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mais fundamentais da genética, como a própria ideia de “gene”, corporificam
o atravessamento entre ciência e ideologia, na medida em que imaginamos
o gene como agente autônomo e figura diretora dos processos fisiológicos,
superior a esses mesmos processos, como trabalhadores são representados
como inferiores a seus gestores e empreendedores que realizam o trabalho
“intelectual”. O texto nos direciona à perspectiva da impossibilidade de pensar
em ideologia simplesmente como um enviesamento dos processos de conside-
ração teórica (das evidências, do valor heurístico das teorias) em favor de um
projeto político, em uma ciência que é, apesar desses vieses, não ideológica.
Levar a descrição lewontiniana da relação entre genética e ideologia a sério
implica em considerar a ideologia como um fenômeno muito mais presente
no fazer científico, que a afeta desde sua institucionalidade até seus conceitos
mais centrais.
No âmbito da filosofia da técnica, Felipe Couto propõe uma abordagem
crítica ao célebre livro A Técnica e o Desafio do Século, de Jacques Ellul. Ellul
enxerga no desenvolvimento da técnica a força motriz que rege as dinâmicas
sociais contemporâneas. Na tarefa de se compreender os principais dilemas da
modernidade, para Ellul a aparente importância dos demais fenômenos histó-
ricos e sociais devem ser descartadas, pois nenhum escapa à determinação do
fenômeno técnica. Na proposta elluliuana, a verdadeira serventia dos estudos
antropológicos de práticas como a magia é tornar manifesto o vínculo que as
liga ao fenômeno técnico. Em sua leitura crítica, Felipe Couto identifica que
a reconstrução histórica de Ellul prescinde de contextualizações sociais que
hoje nos parecem incompreensíveis. Para Ellul, as práticas de magia fundam-
-se exclusivamente sobre critérios formais, como a evidência dos resultados
obtidos a partir de rituais. Por conseguinte, valendo-se da abordagem contex-
tualista do Prof. de Swansea, D. Z. Phillips, Felipe apresenta uma alternativa
à abordagem de Ellul. Sob a ótica de Phillips, não se pode compreender os
ritos de magia, tendo como ponto de partida hipóteses que priorizam o aspecto
formal das práticas que a caracterizam. Do contrário, rituais como feitiços
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 13

e danças são aniquilados, pois, no interior da membrana formal da magia,


perdem seu próprio significado. Em outras palavras, a experiência religiosa de
um povo não se refere à partilha de “fórmulas feitas e acabadas e um resultado
preciso”. O artigo propõe uma reconstrução histórica das práticas mágicas,
não pelas lentes da técnica, mas a partir de seu contexto histórico particular.
A elaboração do tema da linguagem na obra de M. Merleau-Ponty é
abordada por Cassiano B. da Costa no texto “A relação entre corpo, espírito
e linguagem na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty”. Costa
parte da descrição das concepções sobre a linguagem a que perpassaria toda
a tradição filosófica e que são recusadas por Ponty. O autor francês critica a
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maneira como a fala e o pensamento são compreendidos naquilo que chama


empirismo e intelectualismo, elaborando uma nova concepção sobre a lin-
guagem, que possibilita uma revisão de problemas clássicos da história da
filosofia, em particular a compreensão da relação entre corpo e espírito, fala
e pensamento, a possibilidade de uma linguagem interior e um possível pro-
blema solipsista. Nesse percurso surgirá também uma nova concepção sobre
o ser humano como potência criadora de significações, uma unidade confusa
que tenta compreender a si mesma e o mundo na medida em que vive.
No campo da ética filosófica, ao ter como base a reviravolta
linguístico-pragmática do século XX, Antonio Wardison C. Silva, no texto
“Apel, com e contra Weber: a Ética do Discurso como superação da Ética
da Responsabilidade”, analisa o itinerário de Apel em superar o postulado
ético de Max Weber – em uma eminente confrontação da ética do discurso
com a ética da responsabilidade. A chave para essa superação identifica-se
no esforço de Apel em elaborar uma filosofia pragmático-transcendental,
criteriologicamente relevante, fundamentada no contexto da racionalidade
discursiva. O autor, nesse horizonte, evidencia a crítica de Weber à ética da
convicção (ou ética da tradição, bem como ética de valores) e, com isso, o
assentimento de Apel, o que lhe possibilitará uma crítica veraz às éticas de
perspectiva metafísica; após, analisa a perspicácia de Weber em arquitetar a
ética da responsabilidade, como tentativa de superação do paradigma ético
tradicional, então uma ética factível para a sociedade do século XX. Dado
este percurso, Antonio Wardison investiga o esforço de Apel em superar, a
partir da racionalidade discursiva, a perspectiva ética de Weber, a ética da
reponsabilidade, bem como em absorver, ao seu modo, este legado filosófico.
Para tal, expõe a estrutura da ética apeliana como resultado de incorporação
e superação de perspectivas filosóficas moderno-contemporâneas, como de
Emmanuel Kant, e, fundamentalmente, de Weber, ao assumir a ética da res-
ponsabilidade na “parte B” da sua ética dialógica. Então, uma proposta ética
14

capaz de fundamentar e significar o agir humano na sociedade da técnica e


da ciência.
Os trabalhos publicados nesse volume foram elaborados no contexto
das atividades do Grupo de Pesquisas Dissoi Logoi, vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo -
UNIFESP. Agradecemos a colaboração de Márcio Mello, Sandino Patriota,
Thiago Diniz e de outros/as pesquisadores que participaram das atividades
do grupo. Agradecemos também à Universidade Federal de São Paulo, que
apoia suas atividades, e à CAPES e ao CNPq, pelo apoio a vários dos pes-
quisadores envolvidos.

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Antonio Wardison C. Silva
Marcelo Carvalho
UNIFESP
SUBJETIVIDADE DISCURSIVA
E A SURDEZ
Amanda Cavalcante Ribeiro1

Introdução

O espaço interacional que dividimos enquanto sujeitos é permeado por


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vozes que circulam livremente de um discurso a outro, ganhando e dando


forma aos enunciados, nos tornando participantes de cadeias discursivas inin-
terruptas. Esse movimento sinfônico de vozes possibilita o desenvolvimento
constitutivo da subjetividade dos sujeitos. É justamente na experiência de ser
reconhecido na compreensão da língua, que utilizamos na interação verbal, que
nascemos socialmente. Toda fala é endereçada a alguém; nossa característica
humana comunicativa aponta para a necessidade de ouvir e sermos ouvidos,
participando, assim, daquilo que chamamos de sociedade e que por causa
desse encontro no campo dialógico somos reconhecidos; nos reconhecemos
e reconhecemos os outros enquanto sujeitos que partilham individualidades
e coletividades, o que nos torna iguais e diferentes do todo.
Diante dessa dinâmica nos perguntamos se, para o sujeito surdo que
utiliza a língua de sinais, inserido em ambientes onde os sujeitos são ouvin-
tes, não partilhando a mesma língua, portanto não estabelecendo vínculos
linguísticos, há então uma outra forma de subjetivação que escapa aos olhos
do dialogismo, ou se estes sujeitos surdos vivem uma experiência fadada ao
isolamento mudo que condenará seus corpos a espera de um encontro com
outros surdos ou ouvintes usuários da língua de sinais para assim viver a
experiência de reconhecer-se no todo.
Neste pequeno espaço buscamos percorrer alguns pontos teóricos que
defendem a linguagem como ponto de partida para a subjetivação dos sujeitos.
Começando com Benveniste que, em suas discussões linguísticas, volta o olhar
para o discurso, ou seja, para a linguagem em seu uso e para a perspectiva
de que fora da linguagem não há constituição subjetiva, pois, a linguagem
denota não apenas um campo ao qual se chega através do discurso, mas um
ambiente fora do qual nada existe.
Passamos por Humboldt, também autor que fará menção à linguagem
como espaço partilhado e privilegiado para o reconhecimento de si e do outro
por meio do discurso, para, então, chegarmos ao dialogismo apresentado

1 Universidade Federal do ABC – UFABC.


16

por Volochinov em Marxismo e filosofia da linguagem. Aqui caminharemos


pelos pontos em que encontramos as evidências sociais que tecem o caminho
da dependência relacional para que os sujeitos, através do convívio social,
da interação, tomem consciência de si através do reconhecimento obtido na
compreensão do outro.
Ao longo do percurso tencionaremos a teoria apresentada com a realidade
vivida pelos surdos que utilizam a língua de sinais para se comunicarem. Quais
são os entraves teóricos que não apenas atravessam a história dos surdos, mas
mobilizam saberes que delineiam possibilidades de inscrição na sociedade
majoritariamente ouvinte, que muitas vezes desconhecem ou, ainda pior,

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diminuem a possibilidade de vida social dos sujeitos surdos.
A crítica que apresentamos está baseada no fato de que, academicamente,
desconhecemos (e por muitos séculos) a realidade linguística dos surdos. Con-
sideramos a língua de sinais como uma forma rudimentar de comunicação,
realizada por meio de gestos incapazes de produzir o mundo das ideias. Esse
desconhecimento gerou uma fundamentação teórica inclinada a discutir as
características dialéticas da comunicação humana acerca da surdez.
O presente capítulo, nesse sentido, tem a pretensão de problematizar
essa discussão e convidar a filosofia da linguagem para o debate acerca da
aquisição da linguagem dos sujeitos surdos para além do ambiente escolar.
O sujeito surdo precisa ter acesso à comunicação cotidiana a sua volta, em
casa, nas ruas, no trabalho, nas instituições públicas e privadas para, assim,
participar efetivamente da sua história, do seu povo, quer dizer, fazer parte
da sociedade de um modo geral.

1. Subjetividade discursiva

“É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujei-


to”2. A subjetividade, enquanto processo constitutivo do sujeito, é aqui não
apenas definida pela linguagem, mas, antes disso, possibilitada/vivenciada
na linguagem. Para Benveniste, não é possível pensar subjetividade fora do
campo da linguagem, pois a experiência de reconhecimento de si e do outro
é vivida no exercício da língua, ou seja, no discurso.

A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste.


Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha
alocução um tu. Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa,
pois implica em reciprocidade – que eu me torne tu na alocução daquele

2 BENVENISTE, E. Problemas De Lingüística Geral I. Trad. Maria da Gloria Novak e Maria Luiza Neri. 2 ed.
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1988, p. 286.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 17

que por sua vez se designa por eu. Vemos aí um princípio cujas conse-
quências é preciso desenvolver em todas as direções. A linguagem só é
possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele
mesmo como eu no seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela
que, sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo
tu e que me diz tu3.

Portanto, para que haja subjetividade é necessária a presença desse outro


– tu, que contrasta com o eu do discurso, sem o tu não existe a necessidade do
eu na prática enunciativa. Essa relação eu-tu é atravessada pelas condições nas
quais a linguagem está colocada, como a língua, o tempo, a história e espaços
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sociais compartilhados entre os agentes. Para Benveniste, estas condições


podem ser entendidas como “um poder coesivo que faz uma comunidade de
um agregado de indivíduos e que cria a própria possibilidade da produção
e da subsistência coletiva”4, onde reina soberanamente a língua que “repre-
senta uma permanência no seio da sociedade que muda, uma constância que
interliga as atividades sempre diversificadas. Ela é uma identidade em meio
às diversidades individuais”5. Língua e sociedade estão interligadas, sendo
que, a língua utilizada pela comunidade na qual o sujeito está inserido possi-
bilita, de forma natural – no encontro eu-tu –, a constituição da subjetividade
desse sujeito socializado: “a língua é, necessariamente, o instrumento próprio
para descrever, para conceitualizar, para interpretar tanto a natureza quanto
a experiência, portanto este composto de natureza e de experiência que se
chama a sociedade”6.
Essa conceituação da subjetividade constituída na linguagem pressupõe
que todo ser humano está naturalmente em contato com outros sujeitos que
partilham da mesma língua. Afinal há um enfoque relacional, estamos falando
do uso da linguagem; eu e tu estão compartilhando de um cotidiano imerso
em discursos dos quais o eu comunica através da palavra um discurso desti-
nado ao tu, que compreende e responde a este discurso, invertendo os papéis,
colocando-se agora como eu e o primeiro sujeito como tu. O discurso que não
ecoa em outro sujeito, não possibilita o desenrolar natural de reconhecimento
de si no outro.
Quanto a isso, Humboldt segue na mesma direção quando evidencia
a relevância do encontro, da troca que é estabelecida socialmente de forma
natural, através do coletivo.

3 Ibid., p. 286.
4 BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Trad. Eduardo Guimaraes et al. 2. Ed. Campinas:
Pontes Editora, 2006, p. 97.
5 Ibid., p. 97.
6 Ibid., p. 99-100.
18

A nação é um espaço territorial povoado com eventos sociais, históricos e


culturais que atingem a todos os indivíduos, que veem e tendem a obser-
var a realidade de uma maneira semelhante. Desse modo, os indivíduos
sempre se apresentam com dois comportamentos: o indivíduo precisa do
coletivo para se encontrar e se estabelecer no mundo e, ao mesmo tempo,
está sempre buscando se diferenciar dos outros e do coletivo... A língua é
coletiva e individual ao mesmo tempo, uma vez que é o veículo imediato
da ação do indivíduo no mundo e criadora do indivíduo7.

A língua ocupa espaço central na perspectiva da relação linguística


coloquial na qual os sujeitos estão inseridos de forma natural no cotidiano.

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Sem participar da língua compartilhada do grupo no qual o indivíduo está
inserido, qual seria, então, a saída para que a constituição da subjetividade
seja algo possível, ou ainda, vivível? Humboldt demonstra como não apenas
a possibilidade de tornar-se sujeito é vivida no território discursivo, como
também a possibilidade de pensar, racionalizar, questionar, averiguar, ava-
liar essa constituição é uma tarefa própria de quem está submetido e exposto
repetidas vezes a situações comunicacionais que lhe servirão de base para o
pensamento. Veja:

Língua e pensamento interagem constantemente... O pensamento precisa


de elementos linguísticos para existir e, para que exista pensamento, deve
existir língua, e vice-versa. Assim, conforme um indivíduo vai sendo
exposto a um determinado assunto, ele pensa cada vez melhor à medida
que conhece mais sobre esse assunto: quanto mais pensa, mais capaz ele
se torna de compreender esse discurso8.

Com isto, interessa-nos questionar os pressupostos básicos que afirmam


categoricamente a inexistência ou a impossibilidade do pensamento desatre-
lado da linguagem, visto que grande parte da comunidade surda é inserida em
um ambiente propício para o desenvolvimento linguístico apenas quando são
matriculados em escolas bilíngues, o que por vezes acontece tardiamente. A
ideia filosófica que fundamenta a discussão sobre a linguística da língua de
sinais carrega a seguinte passagem:

O filósofo Aristóteles (384 – 322 a.C.) acreditava que quando não se fala-
vam, consequentemente não possuíam linguagem e tampouco pensamento,
dizia que: “... de todas as sensações, é a audição que contribuiu mais para

7 MILANI, S. E. Historiografia Linguística de Wilhelm Von Humboldt. Conceitos e Métodos. Jundiaí: Paco
Editorial: 2012, p. 24.
8 Ibid., p. 25.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 19

a inteligência e o conhecimento..., portanto, os nascidos surdo-mudo se


tornam insensatos e naturalmente incapazes de razão”9.

Apesar desta citação datar 300 anos a.C., encontramos também em um


texto de 2012:

O som, na articulação, é somente uma forma de torná-la mais facilmente


perceptível, sendo possível separá-la dele. Por exemplo: os surdos: para
eles o som não existe e, no entanto, podem entender quando lhes é ensinada
a posição do aparelho articulatório na articulação, chegando até a falar
se receberem um treinamento para associar o pensamento à articulação.
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Para consegui-lo, deverão aprender os diversos movimentos e a posi-


ção de repouso de cada parte do aparelho fonador na realização de cada
movimento a ser produzido e sonorizá-lo. Para eles, a posição do apare-
lho articulatório e a escrita correspondem ao som para um indivíduo que
escuta. Para eles, a aprendizagem da escrita e da articulação é fundamental
para o desenvolvimento da língua, que se dá pela visão e pelo esforço do
indivíduo em produzir a articulação e percebê-la10.

A intenção não é ser leviana com o texto, tentando afirmar coisas que
não estão ditas. É perceptível que o texto trata de um exemplo baseado na
dinâmica sonora da fala. No entanto, convidar o personagem surdo para o
debate linguístico e articular o aprendizado da fala apenas com o treinamento
oral-auditivo é desqualificar todo o empenho e dedicação dos linguistas que
consideram os fatos socioculturais como o conjunto interdependente em que
se instauram as relações dialéticas, que podem ou não ser vivenciadas através
da experiência sonora. Não colocar ao menos uma observação sobre a língua
de sinais ter o potencial emancipador do surdo, onde ele, enquanto sujeito,
não precisa almejar o desenvolvimento da língua verbalizada oralmente, mas
ter na língua de sinais a equivalência com as línguas orais e, portanto, a pos-
sibilidade de participação social, é legitimação das práticas excludentes as
quais os surdos são submetidos cotidianamente.
Dizer que essa omissão caracteriza uma exclusão pode parecer um tanto
quanto irresponsável em alguma medida, mas se olharmos para o indivíduo
enxergando nele a totalidade que lhe é própria, seu grupo, sua nação e, ainda,
sua humanidade, perceberemos que a união, o encontro, o agrupamento é

9 STROBEL, K. História da Educação dos Surdos. Universidade Federal de Santa Catarina. Licenciatura
em Letras-Libras na modalidade a distância. Florianópolis, 2009. Disponível em: https://www.libras.ufsc.br/
colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/historiaDaEducacaoDeSurdos/scos/cap10141/2.html. Acesso
em: 21 ago. 2023, p.18-19.
10 MILANI, S. E. Historiografia Linguística de Wilhelm Von Humboldt. Conceitos e Métodos. Jundiaí: Paco
Editorial: 2012, p. 50.
20

necessário para que haja entendimento, e esse entendimento se dá não no


espaço físico compartilhado por dois ou mais seres humanos; ele se dá exclu-
sivamente por meio da utilização da língua, que é circulada intencionalmente
entre os sujeitos. Se o sujeito não pode participar da dinâmica social que está
estabelecida através da língua compartilhada e tem sua língua não reconhecida
teoricamente, não utilizada por seus semelhantes, o que lhe resta?

Como fenômeno, a fala só se desenvolve socialmente, condição gerada


pela necessidade humana de ser entendido e compreendido, porque o
homem somente entende a si próprio quando se vê compreendido pelos
outros e encontra neles o que está em si próprio... A palavra como criação

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objetiva só acontece realmente quando, depois de criá-la, o indivíduo
encontra sua criação na boca de um outro indivíduo. O intercâmbio reforça
a subjetividade, porque sua criação agora pertence também a outro, e,
quanto maior for a ação do indivíduo no meio social, mais proveito ele
tirará das circunstâncias e mais viva será a colaboração entre os indiví-
duos nas suas relações pela fala. Isso acontece porque o indivíduo passa
a confiar mais na sua capacidade, e mais forte se sentirá ao reconhecer
no outro a ação da sua produção, sentir-se-á mais participante e seguro
de sua capacidade no meio em que atua11.

A teoria construída fora do campo de convivência com a comunidade


surda traz a distorção referente à capacidade intelectual do sujeito surdo, a
omissão quanto sua língua gesto-visual e o aprisionamento da surdez enquanto
uma deficiência que limita o sujeito em todos os sentidos sociais possíveis, o
que é intrigante, pois mesmo as teorias que partem de um ponto de vista dialé-
tico, relacional e sociável, carregam a visão clínico-terapêutica relacionada aos
surdos. E, então, elaboramos a sentença de apagamento e aniquilação subjetiva
dos surdos com a premissa de que: “se um ser precisa de um outro para realizar
o intento social, então deve-se ter em mente que não há outro meio de pensar
e de interagir na sociedade que não seja a língua, pois o homem só existe por
meio dela e nela é que se encontra mais bem representada a humanidade”12.
Até porque a língua de sinais, até pouquíssimo tempo, era considerada
apenas uma forma rudimentar de comunicação. Em 1960, com a publicação
de Sign Language Structure: an Outline of the Visual Communication Sys-
tem of the American Deaf (Estrutura da linguagem de sinais: um esboço dos
sistemas de comunicação visual dos surdos americanos), Stokoe13 afirma
que a língua de sinais é uma língua com todas as características da língua
11 Ibid., p. 45.
12 Ibid., p. 81.
13 William Stokoe (1960) foi o primeiro linguista que trouxe para os estudos linguísticos a equiparação da língua
de sinais com as línguas de modalidade oral. Seus estudos sobre os parâmetros fonológicos da língua de
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 21

oral; o caminho se abre para as investigações linguísticas acerca da língua


de sinais que passa a ser considerada academicamente como uma língua de
fato e não apenas uma forma desestruturada de linguagem. É claro que esse
primeiro reconhecimento acadêmico da língua de sinais, enquanto língua,
não foi suficiente para mudar a concepção construída por séculos de que os
nascidos surdos eram incomunicáveis, pois viviam desprovidos de fala. Na
verdade, essa é uma questão que começamos a discutir academicamente há
pouquíssimo tempo, e esse discurso acadêmico ainda não foi capaz de aden-
trar ao que chamamos de comunicação cotidiana. O senso comum ainda é
permeado pelo discurso clínico terapêutico, que enxerga a surdez como uma
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deficiência a ser curada, e não poderia ser diferente, pois qual é o espaço social
que o surdo pode inserir-se linguisticamente com liberdade e autonomia para
constituir-se através das relações discursivas enquanto sujeito?
Sendo a língua “o elo entre os homens, pois este só compreende a
si mesmo depois de certificar-se da compreensão de suas palavras pelos
demais,”14 nos restam muitas indagações que se voltam não apenas para a
historicidade violenta a que os sujeitos surdos estão submetidos, mas a pró-
pria possibilidade de pensar e criticar as ideias estabelecidas e os saberes tão
enraizados que validam a aniquilação dos surdos por uma questão ontologi-
camente estabelecida. Butler15 nos impele a problematizar a naturalidade com
que discursivamente os corpos são produzidos e impedidos de aparecer como
válidos, mesmo quando não correspondentes às categorias que os definem.
Ora, não é ao acaso que a recusa da comunidade surda acadêmica se oponha à
tabela definidora da surdez em graus de perda auditiva, e ainda de sua história
contada através da aparição “heroica” do sujeito ouvinte que salva o surdo
da surdez de tempos em tempos. O problema está dado. É preciso averiguar,
questionar, expor as várias estruturas conceituais que viabilizam o discurso
que naturaliza a violência perpetuada pela forma de relatar a surdez.
Nesse sentido, Volóchinov sugere que a análise marxista enquanto
método sociológico é a única forma de encarar os problemas que são próprios
da filosofia da linguagem. O autor pretende apontar, de um modo geral, como
o pensamento marxista aborda os problemas concretos da linguística, o que
pode nos ajudar a problematizar as questões que nos chegam relacionadas
à linguagem, surdez e subjetividade. Vejamos, então, o caminho percorrido
pelo autor.

sinais estabeleceram o novo olhar acadêmico para a comunicação dos surdos, dando-lhe o status de língua
e não apenas de linguagem.
14 GRILLO, S. Ensaio introdutório. In: VOLOCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fun-
damentais do método sociológico na ciência da linguagem. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018, p. 19.
15 BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 24. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.
22

2. Problemas de linguagem, surdez e subjetividade

A ciência das ideologias é para a teoria marxista como um eixo do qual


partem, se cruzam, e continuam as ideias fundamentadoras das principais pro-
blematizações encontradas na filosofia da linguagem. Ideologia é a roupagem
que reflete e refrata uma realidade que está para além da realidade daquilo
a que ela está ligada. “Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele
representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo”16. As
coisas por si só não são consideradas signos ideológicos de forma aleatória;
há uma relação estabelecida que designará a coisa ao “mundo dos signos”.

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Ao nos apresentar ao “mundo dos signos”, o autor enfatiza a experiência
externa em detrimento dos paradigmas sustentados até então: o subjetivismo
ideológico e o objetivismo abstrato. O próprio processo de compreensão síg-
nica ocorre na relação de um signo com outros signos já conhecidos. Há,
então, uma cadeia de compreensão ideológica.

Essa cadeia ideológica se estende entre as consciências individuais, unin-


do-as, pois o signo surge apenas no processo de interação entre consciên-
cias individuais. A própria consciência individual está repleta de signos.
Uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é preen-
chida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto apenas no
processo de interação social17.

A característica relacional da consciência define o espaço social, onde


existe interação, como o único possível de possibilitar a constituição de uma
subjetividade. Sem o outro e sem a participação nas cadeias discursivas circun-
dantes não se pode nem ao menos acessar aos signos. E, não estamos falando
em dois seres humanos ocupando o mesmo espaço. É necessário que haja
uma organização social que compõe ou, ainda, caracteriza uma coletividade.
Essa coletividade organizada dispõe de uma língua compartilhada, criada/
continuada através do processo de comunicação social, que só é possível
mediante esta língua, compreendida pelos sujeitos que convivem em um deter-
minado tempo histórico e espaço social. A interação social vivida através da
comunicação evidencia o quanto a linguagem é determinante para o processo
dialógico, afinal “a palavra é o fenômeno ideológico par excellence”18. Essa
constatação se dá pelo fato de que a palavra é um signo neutro e que carrega

16 VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico


na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2 ed. São Paulo: Editora 34,
2018, p. 91.
17 Ibid., p. 95.
18 Ibid., p. 98.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 23

sentidos que são trocados, construídos e continuados justamente no momento


da comunicação social.

Além disso, existe um campo enorme da comunicação ideológica que


não pode ser atribuído a uma esfera ideológica. Trata-se da comunicação
cotidiana. Essa comunicação é extremamente importante e rica em con-
teúdo. Por um lado, ela entra diretamente em contato com os processos
produtivos e, por outro, ela se relaciona com as várias esferas ideológicas
já formadas e especializadas19.

A importância da comunicação cotidiana é, para nós, o principal ponto de


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problematização, pois, o isolamento linguístico cotidiano que o sujeito surdo


vive, inserido numa família que não é usuária de língua de sinais, impossibilita
que o sujeito surdo participe da relação dialógica que dá base para as outras
relações dialógicas que ocorrem fora de casa, possibilitando de forma natural
a troca, compreensão e participação nos processos de reconhecimento de si
no outro. Para além dos processos de subjetivação, há algo da vida prática
que inevitavelmente escorrega pelas mãos de sujeitos surdos que não fazem
parte da comunicação cotidiana, por não terem suas palavras reconhecidas
pelos outros, até porque “a palavra participa literalmente de toda interação e
de todo contato entre as pessoas: da colaboração no trabalho, da comunicação
ideológica, dos contatos eventuais cotidianos, das relações políticas etc.”20
A comunicação cotidiana possibilita a aquisição espontânea de um reper-
tório linguístico que tem por objetivo o reconhecimento do outro através da sua
utilização na comunicação social, que é o ambiente onde as vozes circulam,
buscando outras vozes que lhe continuem, o que não apenas facilita, mas pos-
sibilita a convivência de modo digno e respeitoso. No ambiente de trabalho,
a falta de comunicação do sujeito surdo com os demais trabalhadores impede
que relações trabalhistas sejam criadas, que o sujeito surdo alcance ou ainda
vislumbre outras perspectivas profissionais, pois a barreira comunicacional
está sempre antecedendo o desenvolvimento do sujeito em sua subjetividade
e principalmente em sua coletividade.

O indivíduo como proprietário dos conteúdos da sua consciência, como


autor de suas ideias e desejos, é um fenômeno puramente socioideolo-
gico. Portanto, o conteúdo do psiquismo “individual” é tão social por
sua natureza quanto a ideologia, e o próprio grau da consciência da sua
individualidade e dos seus direitos interiores é ideológico, histórico e está

19 Ibid., p. 99.
20 Ibid., p. 106.
24

inteiramente condicionado pelos fatores socioideológicos. Todo signo é


social por natureza e o signo interior não é menos social que o exterior21.

A essência social da palavra que intenciona sempre a comunicação, ou


seja, o outro, é o que define o não lugar do surdo em nossa sociedade, pois
para ser formado subjetivamente, e assim nascer socialmente, é necessário
ser atravessado pela heterogeneidade do discurso, a qual não está à disposi-
ção do sujeito surdo, dentro de casa, nas ruas, no trabalho, nos hospitais, etc.
Podemos, talvez, delimitar que o período escolar – a depender de a escola ser
inclusiva – é o período em que será possível tornar-se sujeito para aqueles
outros que também se apresentam nas mesmas condições, o que explica o

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grande interesse acadêmico que investiga a surdez e seus desdobramentos
pelo viés da escolarização. Afinal:

Para observar o fenômeno da língua, é necessário colocar os sujeitos


falante e ouvinte, bem como o próprio som, no ambiente social. É preciso
que tanto o falante quanto o ouvinte pertençam a uma mesma coletividade
linguística, a uma sociedade organizada de modo específico. É funda-
mental ainda que nossos dois indivíduos sejam abarcados pela unidade
da situação social mais próxima, isto é, que o encontro entre essas duas
pessoas ocorra em um terreno determinado. O intercâmbio verbal só é
possível nesse terreno determinado, por mais geral e, por assim dizer,
ocasional que ele seja22.

Qual seria o outro momento em que podemos presenciar o surdo utili-


zando sua língua de forma fluída, convivendo socialmente em um ambiente
onde as vozes circundantes lhe são permeadas? Apesar de todo o empenho
em aniquilar sujeitos surdos socialmente, o espaço escolar tem se provado
de extrema potência comunicacional basilar para sujeitos surdos que, ao se
formarem, terão que ser resistência em todos os lugares que se propuserem
a ocupar com seus corpos por vezes considerados mudos, mas que carregam
um grito que só pode ser ouvido por quem se aproxima com a intenção de
ouvir com os olhos.

3. Aquisição da linguagem e surdez


Já temos estabelecido o pressuposto básico de que a língua de sinais
é a língua natural do sujeito surdo. Alguns estudos comprovam que há o
balbuciar do bebê surdo que ocorre primeiramente através de sons e gestos,
assim como no bebê ouvinte, para em seguida esse balbucio ser expresso

21 Ibid., p. 129.
22 Ibid., p. 145.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 25

apenas através de gestos que ensaiam as primeiras palavras do bebê surdo.


Crianças surdas filhas de pais surdos – essa realidade compreende apenas
5% dos casos – estarão expostas aos discursos que poderão ser dirigidos a
ela, como também aos discursos a sua volta. Crianças surdas filhas de pais
ouvintes terão um processo de aprendizado que não ocorrerá dentro de casa
de forma espontânea, mas terá que ser intencionalmente programado e vivido
no ambiente escolar23.

A criança nasce imersa em relações sociais que se dão na linguagem.


O modo e as possibilidades dessa imersão são cruciais na surdez, con-
siderando-se que é restrito ou impossível, conforme o caso, o acesso a
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formas de linguagem que dependam de recursos da audição. Sobretudo


nas situações de surdez congênita ou precoce em que há problemas de
acesso à linguagem falada, a oportunidade de incorporação de uma língua
de sinais mostra-se necessária para que sejam configuradas condições
mais propícias à expansão das relações interpessoais, que constituem o
funcionamento nas esferas cognitiva e afetiva e fundam a construção da
subjetividade. Portanto, os problemas tradicionais apontados como carac-
terísticos da pessoa surda são produzidos por condições sociais. Não há
limitações cognitivas ou afetivas inerentes à surdez, tudo dependendo das
possibilidades oferecidas pelo grupo social para o seu desenvolvimento,
em especial para a consolidação da linguagem24.

Não estamos falando de um simples esforço por parte dos pais ouvintes
no processo de aquisição da linguagem de seus filhos surdos. Estamos falando
do aprendizado de uma outra língua que funciona por outra via e que difere
da língua naturalmente apreendida e utilizada por eles durante toda a vida.
Muitas pesquisas e estudos que querem abordar essa temática buscam ter o
cuidado de não sobrecarregar esses pais com julgamento e culpa relacionados
ao desenvolvimento linguístico dessas crianças surdas, que ocorre nas famílias
que assim estão configuradas, de modo tardio.
A criança surda tem total capacidade cognitiva para um desenvolvimento
linguístico equiparado ao desenvolvimento linguístico de uma criança ouvinte.
A questão é que uma criança surda, filha de pais ouvintes, não estará inserida
em um ambiente em que naturalmente a língua utilizada lhe afete até porque
“mesmo quando os pais usam algum tipo de comunicação gestual, usam-na
somente com a criança, pois é um sistema criado em função da criança nas-
cida ‘deficiente’”25.

23 QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto alegre: Artmed, 1997.


24 GOES, M. C. R. In QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto alegre: Artmed,
1997, (p. 29).
25 QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto alegre: Artmed, 1997.p. 80.
26

A maioria das crianças surdas nascem em lares ouvintes e elas necessitam


de uma comunidade linguística sinalizadora. A alfabetização na criança
surda deve ocorrer primeiramente em sua língua materna, a Língua Brasi-
leira de Sinais, e, posteriormente em Língua Portuguesa. A LIBRAS como
língua natural dos surdos, irá proporcionar o recurso cognitivo e linguístico
que a criança surda precisa para se desenvolver. Será por meio dela que
a criança terá a competência específica para a produção e decodificação
dos signos dentro do seu processo de alfabetização26.

O ideal seria a criança surda começar sua fase escolar já tendo sua lín-
gua natural desenvolvida – a língua de sinais. No entanto, o que acontece, na

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grande maioria das vezes, é que essas crianças chegam ao ambiente escolar
desprovidas de uma língua e, então, o processo que seria apenas para apren-
dizado de conteúdos pedagogicamente programados, torna-se um sistema
onde a criança está sendo apresentada à língua de sinais, apresentada a uma
segunda língua – no caso do Brasil, o português, para modalidade de escrita
e leitura – e os aprendizados das diversas disciplinas. E isso levando em con-
sideração que a escola escolhida pelos pais utiliza o método bilíngue – libras/
português, no caso do Brasil.
Mesmo com todos os entraves no percurso escolar, é justamente na escola
que a criança surda, filha de pais ouvintes, poderá viver a experiência que des-
crevemos: o nascimento social que se dá a partir da inserção em um ambiente
em que a comunicação seja natural, cotidiana e espontânea. O espaço escolar
é local privilegiado para que a criança surda consolide uma identidade própria
e grupal, que resguarde os valores e cultura que são próprios à comunidade
surda. Tudo isso é possível pela circulação da palavra que percorre livremente
nos espaços escolares entre os corpos sinalizantes.

Conclusão

Buscar percorrer os caminhos que nos tornam gente é sempre uma tarefa
que não deve ser considerada concluída. Inclusive, o que temos e seguimos
como pressupostos devem ser sempre questionados, como Benveniste bem
aponta: “às vezes é útil pedir à evidência que se justifique”27. E, no caso da
surdez, é urgente que o discurso clínico terapêutico seja posto em questio-
namento, pois a constituição da subjetividade vivida pelos sujeitos surdos
encontra ressonâncias nas experiências visuais, as quais possibilitam sua
26 PEREIRA, M. R. S.; FEITOSA, M. E. A relação cultural entre a escola bilíngue para surdos e a literatura
surda. Contexto, Vitória, n. 36, 2019/2, p. 285.
27 BENVENISTE, E. Problemas De Lingüística Geral I. Trad. Maria da Gloria Novak e Maria Luiza Neri. 2. ed.
Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1988, p. 284.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 27

participação de algum modo na dinâmica oral auditiva a que estão submeti-


dos cotidianamente.
Ao relatarmos a pequena parte do que constitui o discurso social que
identifica a surdez como uma deficiência limitadora, estamos denunciando
a necessidade de atravessamentos discursivos que não estejam dispostos a
apontar mazelas que são imputadas aos sujeitos surdos pelo fato deles não
utilizarem da audição como via de acesso ao discurso do outro. Muitas são
as lacunas que precisamos trazer para a discussão, problematizar as relações
estabelecidas entre pais ouvintes com seus filhos surdos, como também a
relação social que temos com o sujeito surdo, as políticas públicas que preci-
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sam extrapolar os muros escolares e ganhar voz em todas as esferas sociais.


Não é suficiente oferecer um intérprete de libras em alguns espaços e even-
tos públicos.
Quanto à filosofia, cabe a importante missão de conversar com as novas
descobertas linguísticas que pesquisam a língua de sinais, a fim de incluir a
experiência da surdez em seus estudos basilares que consideram a comuni-
cação humana como esse lugar onde a vida acontece, e que fora dele nada
há. Vamos falar sobre isso?
28

REFERÊNCIAS
BENVENISTE, E. Problemas De Lingüística Geral I. Trad. Maria da Glo-
ria Novak e Maria Luiza Neri. 2 ed. Campinas: Universidade Estadual de
Campinas, 1988.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Trad. Eduardo


Guimaraes et al. 2. Ed. Campinas: Pontes Editora, 2006.

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade.

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Trad. Renato Aguiar. 24 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.

GRILLO, S. Ensaio introdutório. In: VOLOCHINOV, V. Marxismo e Filoso-


fia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência
da linguagem. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

MILANI, S. E. Historiografia Linguística de Wilhelm Von Humboldt. Con-


ceitos e Métodos. Jundiaí: Paco Editorial: 2012.

PEREIRA, M. R. S.; FEITOSA, M. E. A relação cultural entre a escola bilín-


gue para surdos e a literatura surda. Contexto, Vitória, n. 36, 2019/2.

QUADROS, R. M. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto


alegre: Artmed, 1997.

STROBEL, K. História da Educação dos Surdos. Universidade Federal de


Santa Catarina. Licenciatura em Letras-Libras na modalidade a distância. Flo-
rianópolis, 2009. Disponível em: https://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLi-
bras/eixoFormacaoEspecifica/historiaDaEducacaoDeSurdos/scos/cap10141/2.
html. Acesso em: 21 ago. 2023.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas funda-


mentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo
e Ekaterina Vólkova Américo. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2018.
ASPECTOS SEMÂNTICOS DA
TEMPORALIDADE E DA MUDANÇA NO
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
Diego de Souza Avendano1

Introdução
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Nossa proposta neste capítulo é recapitular os argumentos do Tractatus


Logico-Philosophicus (TLP)2 para defender a tese de que as considerações
sobre o tempo, enquanto forma dos objetos simples, está intimamente ligada
à concepção semântica de possibilidade lógica. Nosso objetivo é mostrar
que, a despeito do que se costuma reconhecer como temporalidade no TLP,
as proposições genuinamente simples expressam necessariamente relações
temporais, mas disso não decorre que sua verificação possa ocorrer apenas no
presente, pois tanto o postulado da completa determinação do sentido quanto
a noção de análise lógica têm implicações profundas na caracterização do
tempo como forma dos objetos. Se, por um lado, Wittgenstein assume que a
quantidade de objetos existentes no mundo é fixa e imutável3 – fato que faz
com que alguns comentadores vejam um determinismo na obra –, por outro
lado, ele diz expressamente que os eventos do futuro não podem ser derivados
dos eventos presentes e que a crença no nexo causal é uma mera superstição.
Esperamos, ao fim deste trabalho, deixar claro que ambas as afirmações – a
de haver uma base fixa de objetos e a de ser impossível derivar os eventos
futuros dos eventos presentes – são complementares e não contraditórias no
contexto da obra. Para tanto, iremos tratar: na primeira seção, da noção de
possibilidade que está em voga no TLP; na segunda seção, iremos apresentar
a noção de análise lógica da obra e assinalar as características que a tornam
distinta das análises lógicas geralmente praticadas; e, na terceira seção, iremos
apresentar as características da temporalidade, explicar a noção de tempo como
forma dos objetos e esclarecer a relação entre mudança e tempo.

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.


2 Um aspecto importante a ser ressaltado quando se trata da filosofia de Wittgenstein é que quando ele
morreu, em 1951, havia sido publicado somente um livro de sua autoria, o Tractatus Logico-Philosophicus.
Entretanto, Wittgenstein havia produzido ao longo de sua vida uma volumosa coleção de escritos conhecidos,
de modo geral, como seu Nachlass. De acordo com seu testamento, Rush Rhees, G. E. M. Anscombe e G.
H. von Wright receberam os direitos autorais de todos esses escritos não publicados, assim como de seus
manuscritos e datiloscritos para que os dispusessem da maneira como pensassem ser melhor.
3 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Transl. by dos Santos, L. H. L. São Paulo: Edusp,
1994, 2.0271.
30

1. A noção de Possibilidade do TLP

A filosofia inicial de Wittgenstein defende um tipo de teoria da ver-


dade por correspondência4 e se fundamenta sob o postulado (Forderung) da
completa determinação do sentido. Tal postulado requer que toda e qualquer
sentença (Satz) com sentido (Sinn) deva ter sua função de verdade (Wah-
rheitsfunktion), estruturada a partir de funções de verdade das proposições
elementares (Elementarsätze), isto é, entre as possibilidades de verdade (Wah-
reitsmöglichkeiten) dos argumentos de verdade da sentença. Wittgenstein
chama de fundamentos de verdade (Wahrheitestgründe) aquelas possibilidades

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que verificam a sentença composicionalmente a partir de uma base de propo-
sições elementares. No fundo, o TLP assume que o sentido de uma sentença
é a sua possibilidade de verdade, de modo que há uma polaridade inerente ao
sentido – aquela polaridade do verdadeiro/falso – que já pode ser verificada
nos primeiros cadernos escritos por Wittgenstein:

Toda proposição é essencialmente verdadeira-falsa: para compreendê-la


temos de saber quer o que tem de ser o caso, se for verdadeira, quer o
que tem de ser o caso se for falsa. Assim, uma proposição tem dois polos,
correspondendo ao caso de sua verdade e ao caso de sua falsidade. Cha-
mamos a isso o sentido de uma proposição5.

Nesta citação dos Cadernos 1914-1916, Wittgenstein já se compromete


com a bipolaridade do sentido ao apresentar uma definição de sentido como
sendo a própria possibilidade de uma sentença ser verdadeira e falsa. Uma sen-
tença pode ser verdadeira e falsa porque descreve algum evento que pode ou
não ocorrer, de modo que toda sentença com sentido corresponde a situações
possíveis que a tornariam verdadeira e a situações possíveis que a tornariam
falsa. No TLP, por sua vez, temos: “as possibilidades de verdade (Wahreit-
smöglichkeiten) das proposições elementares são as condições de verdade e
falsidade das proposições”6.
Disto, podemos concluir que apenas as sentenças que têm a possibili-
dade de serem verdadeiras e falsas têm sentido. Contudo, é importante notar
aqui os usos que Wittgenstein faz ao longo do TLP das expressões: Möglich
(possível) e Möglichkeit (Possibilidade), pois, historicamente, há ao menos

4 Uma teoria da verdade como correspondência entende que a verdade de uma proposição consiste em sua
relação como o mundo, isto é, em sua correspondência com os fatos. Wittgenstein é conhecido por ser um
dos expoentes de tal teoria, em conjunto com Russel, durante seu período de adesão àquilo que se costuma
chamar de atomismo lógico. Para uma caracterização das teorias da verdade como correspondência, ver:
HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. São Paulo: Unesp, 2002.
5 WITTGENSTEIN, L. Cadernos: 1914-1916. Lisboa: Edições 70, 2004, p. 145.
6 Id. Tractatus Logico-Philosophicus, 4.41.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 31

três sentidos diferentes atribuídos à noção de possibilidade7: a possibilidade


nomológica ou causal, a possibilidade metafísica e a possibilidade lógica.
De modo que, ao dizermos “p é possível”, podemos querer significar: 1) p é
nomologicamente possível, pois é consistente com as leis da ciência pressupos-
tas; 2) p é metafisicamente possível, pois é consistente com as leis metafísicas
sejam elas quais forem; 3) p é logicamente possível, pois sua negação não
é – nem implica nenhuma – contradição. Esses três sentidos de possibilidade
se confundem na linguagem ordinária e devem ser distinguidos do uso dessa
expressão no TLP.
Na presente investigação, vamos nos ater à análise de dois desses usos
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e iremos desconsiderar completamente o outro, a saber, discutiremos aqui


o uso lógico e o uso metafísico da noção de possibilidade e iremos descon-
siderar o uso nomológico. Agiremos assim porque em termo das relações
lógicas entre os três tipos de possibilidade, a possibilidade metafísica parece
ser uma parte própria da possibilidade lógica e a possibilidade nomológica,
uma parte própria da possibilidade metafisica; de modo que tudo o que for
nomologicamente possível deve ser também metafisicamente possível, mas
não o contrário, e tudo o que for metafisicamente possível deve ser logica-
mente possível, mas não o contrário.
Nosso ponto aqui será mostrar que no TLP há um nivelamento das noções
metafísicas e lógicas de possibilidade, de modo que se uma sentença é pos-
sivelmente falsa no sentido lógico (isto é, se é contingentemente ou necessa-
riamente falsa) deve ser o mesmo que dizer que ela é possivelmente falsa na
realidade ou tal proposição não possui sentido. Assim, uma proposição que
é possivelmente verdadeira/falsa, e.g., uma proposição contingente como:
Há peixes no Oceano Ártico, precisa conter em si a possibilidade de ser falsa
ainda que essa sentença em particular seja verdadeira, como de fato é. Deste
modo, apesar de Wittgenstein não fazer nenhuma consideração explícita de
como tratar as noções modais no TLP, esperamos mostrar que aquilo que
é considerado como possibilidade na obra é muito semelhante ao que con-
temporaneamente chamamos de possibilidade alética e, de maneira bastante
explícita, inclui tanto a possibilidade de organização dos objetos no mundo
(a possibilidade metafísica) quanto a possibilidade de estruturação possível
das sentenças na lógica (a possibilidade lógica).
Considerações muito semelhantes a essa podem ser encontradas na obra
The Nature of All Being, de Raymond Bradley8, que, em 1992, já nos alertava
que a grande “força motriz” do pensamento filosófico de Wittgenstein no

7 BRANQUINHO, João; GOMES, Nelson; MURCHO, Desidério. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos.


São Paulo: Martins Fontes, 2006. Seguimos a definição de possibilidade dada no verbete da Enciclopédia.
8 BRADLEY, R. The nature of all being. New York & Oxford: Oxford University Press, 1992.
32

período inicial é uma robusta concepção “realista”, de re, das noções modais.
Iremos nos valer, também, da série de equivalências propostas por Bradley:
concebilidade = imaginabilidade = figurabilidade = exprimibilidade através
de proposições com sentido = possibilidade = possibilidade lógica.
Essa equivalência nos permite mostrar que Wittgenstein colapsa as
noções de possibilidade dadas pela combinatória verofuncional (aquela com-
binatória dos valores de verdade em uma tabela de verdade) e a noção de
possibilidade metafísica e aceita somente um único tipo de possibilidade, a
possibilidade lógica. Esse nivelamento das noções de possibilidade se deve
ao fato de que Wittgenstein jamais aceitou a ideia de conteúdos necessaria-

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mente inexprimíveis. O autor vê uma conexão entre as noções de sentido e
possibilidade, de modo que proposições com sentido espelham possibilidades
reais. Essa conexão entre sentido e possibilidade nos mune do critério final
para a determinação do sentido de uma sentença, haja vista que o sentido se
dá, não pela maneira como uma sentença é composta, mas através da conexão
da sentença com uma situação possível.
Falando anacronicamente, Wittgenstein parece endossar o axioma
p→ p do sistema de lógica modal S5 e rejeita expressamente a noção
de possibilidade meramente combinatória. Se o espaço lógico é a totalidade
das possibilidades lógicas, então qualquer proposição que represente um
lugar nesse espaço é uma possibilidade. Deste modo, não pode haver uma
possibilidade que não possa ser representada. Se “a” é um nome genuíno e
possivelmente representa um objeto simples, então “a” existe necessaria-
mente em todos os mundos possíveis. Portanto, ao dizermos “ ( ∃x )( x = a) ”
e considerarmos que “a” é um nome genuíno, deveríamos, em um contexto
proposicional, comprometer-nos com o fato de que “a” realmente existe. Ou,
nas palavras de Wittgenstein:

É verdadeira a proposição elementar, então o estado de coisas existe; é


falsa a proposição elementar, então o estado de coisas não existe”9.
As possibilidades de verdade das proposições elementares significam as
possibilidades de existência e inexistência dos estados de coisa10.

Contudo, no Tractatus, uma proposição representa uma possibilidade


e, por sua vez, é possível que a combinação representada por uma propo-
sição não seja atual. Logo no início da obra, em 2.0123, ele escreve: Se
conheço o objeto, conheço também todas as possibilidades de seu apa-
recimento em estados de coisas. (Cada uma dessas possibilidades deve

9 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 2.1515.


10 Ibid., 4.3.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 33

estar na natureza do objeto). Não se pode encontrar depois uma nova


possibilidade11. Desta maneira, Wittgenstein nos mostra que a parte onto-
lógica formulada na obra é, em grande parte, deduzida das considerações
semânticas. A maneira como o mundo ocorre aparece como consequência
da maneira como o mundo é representado. Neste sentido, poderíamos dizer
que a ontologia do TLP é “transcendental” no sentido Kantiano, pois o
autor assume que nosso pensamento representa e busca as “condições de
possibilidade” dessa representação. Ele afirma que tal representação só é
possível se o pensamento possui uma estrutura que é capaz de “espelhar”
a estrutura do mundo: “a forma de afiguração é a possibilidade (Möglich-
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keit) de que as coisas estejam umas para as outras tal como os elementos
da figuração”12.
Esse “espelhamento” assume que deve haver “antecipadamente”
alguma correlação entre os elementos da estrutura do pensamento e os
elementos da estrutura do mundo. O dispositivo principal da semântica do
TLP é, portanto, uma correlação a priori entre a forma lógica da linguagem
e a forma ontológica do mundo, que é explicada através da metáfora da
correlação dos nomes sintaticamente simples e dos objetos ontologica-
mente simples:

A relação afiguradora consiste nas coordenações entre os elementos da


figuração e as coisas13.
Essas coordenações são como que as antenas dos elementos da figuração,
com as quais ela toca a realidade14.

O mundo consiste de fatos que são configurações de objetos ontologi-


camente simples. Sujeitos conscientes pensam o mundo através de sentenças
que são configurações de nomes sintaticamente simples. Sentenças são sig-
nificativas por causa de sua relação semântica correlacionando cada nome
genuíno com um, e somente um, objeto simples. A sentença é verdadeira se a
configuração dos nomes envolvidos corresponde à configuração dos objetos no
mundo. Caso contrário, a sentença é falsa. Os objetos simples são chamados de
a forma lógica do mundo, os nomes genuínos – a forma lógica da linguagem.
Faz-se importante ressaltar que os conceitos de nome e de objeto são
conceitos técnicos que têm pouquíssimo a ver com seus ancestrais do senso

11 Wenn ich den Gegenstand kenne, so kenne ich auch sâmtliche Möglchkeiten seines Vorkommens in Sach-
verhalten. (Jede solche Möglichkeit muB in der Natur des Gegenstandes Uegen.) Es kann nicht nachtrãglich
eine neue Möglichkeit gefunden werden. WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 2.0123).
12 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 2.151.
13 Ibid., 2.1514.
14 Ibid., 2.1515.
34

comum. Assim como nós dissemos, Wittgenstein sugere que o conjunto dos
objetos ontologicamente simples prescreve de alguma maneira todas as con-
figurações possíveis nas quais os objetos poderiam aparecer, será assim que
serão gerados os conjuntos de mundos possíveis. De fato, essa é uma carac-
terística essencial dos objetos simples. Eles são “decalques” para “algo” que
gera um conjunto de mundos possíveis, qualquer que seja a natureza desse
“algo”. Falar sobre “objetos simples” é só uma imagem. Então, Wittgenstein
não se compromete realmente com a existência de objetos simples, mas os
utiliza como dispositivos para sustentar a estrutura representacional. Os obje-
tos nos ajudam a compreender como a forma lógica do mundo poderia ser. A

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forma lógica é qualquer aspecto do mundo que pode gerar todos os mundos
possíveis, se houvessem realmente tais objetos e mundos. Se admitirmos
que a concepção dos objetos wittgensteinianos, de fato, flui de considera-
ções semânticas e insistirmos na unidade mínima sentencial através da qual
a linguagem refere-se a tudo (as proposições elementares), então o aspecto
da linguagem que, a priori, corresponde aos objetos são os nomes. Assim, a
tese de Wittgenstein é que, isomorficamente, a forma lógica da linguagem é
correlacionada a priori com a forma lógica do mundo.
Para encerrar esta seção, devemos reproduzir claramente a estrutura da
argumentação de Wittgenstein para podermos utilizá-la como chave de leitura
e interpretar a noção de tempo como forma dos objetos. O ponto de partida é
a linguagem pela qual nós representamos o mundo. O primeiro pressuposto
é que tal linguagem deve possuir uma relação isomórfica com a realidade.
A realidade é dita do espaço de possibilidade de ocorrência dos estados de
coisa, de modo que a linguagem em si mesma não representa nada, apenas nos
fornece as condições de possibilidade de representação. Consequentemente,
as únicas sentenças que podemos asserir à verdade são aquelas possivelmente
vinculadas à realidade por algum sentido, pois se são possíveis, elas são neces-
sariamente possíveis. Ao analisarmos completamente proposições com algum
sentido, obtemos proposições elementares. Demonstrar as características das
proposições elementares e sua combinatória é uma das grandes tarefas do TLP,
realizada no grupo de aforismas 5. Tendo esclarecido esses pressupostos da
nossa leitura, passamos agora a uma rápida apresentação da maneira como
a noção de tempo aparece na linguagem ao final da análise lógica para, em
seguida, tratar dos aspectos metafísicos do tempo como forma.

2. A análise Lógica no TLP 12/10

Uma vez que as sentenças com sentido que descrevem a realidade são
constituídas por situações que as tornariam verdadeiras e situações que as
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 35

tornariam falsas, podemos dizer que tais sentenças possuem um sentido vago
e ainda não determinado. Será a análise lógica da sentença que irá possibilitar
a determinação do sentido e estabelecer se ela é verdadeira ou se ela é falsa.
Uma sentença não analisada, à maneira do TLP, tem a forma gramatical
sujeito-predicado e possui em si todas as condições singulares que a tornariam
verdadeira e todas as condições singulares que a tornariam falsa, de modo que
a vagueza de tais situações se expressa em suas partes constituintes. A razão
de tal vagueza é que há vários elementos implícitos e alternativos que cons-
tituem o sentido da sentença com a forma sujeito-predicado que, no entanto,
não aparecem na sua forma sujeito-predicado, de modo que uma análise aos
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moldes do TLP deveria seguir adiante quando a maioria das análises lógicas
se encerra15. Se tomamos a tarefa de uma análise lógica engendrada no TLP,
devemos sempre ter em mente que: “há uma e apenas uma análise completa
da proposição”16.
Para que possamos compreender esses elementos implícitos e alternati-
vos, consideremos a sentença: “os óculos estão dentro do armário”. No TLP,
nós compreendemos o sentido desta sentença, mas não podemos dizer que
todo o seu sentido está explícito nesta sua forma sujeito-predicado. O sentido
da sentença “os óculos estão dentro do armário” não se encontra totalmente
detalhado nem em sua parte nominal nem em sua parte predicativa, pois estão
ausentes importantes elementos do estado de coisa descrito pela sentença.
Podemos indicar a ausência de no mínimo dois elementos importantes que não
se encontram claros na sentença em sua forma sujeito-predicado: o espaço e o
tempo. Ao enunciarmos “os óculos estão dentro do armário”, queremos signifi-
car que os óculos estão em algum lugar – o que subentende várias coordenadas
espaciais que localizariam precisamente os óculos e que não são especificadas
na sentença com a forma sujeito-predicado; para determinarmos precisamente
“estar dentro do armário”, também deveríamos indicar precisamente outras
tantas coisas, como as relações de tamanho estabelecidas entre os óculos e o
armário, haja vista que se os óculos fossem maiores que o armário eles não
teriam a possibilidade de “estar dentro do armário”.
Em uma completa determinação do sentido, também deveríamos indicar
as propriedades temporais que o estado de coisa descrito em “os óculos estão
dentro do armário” sugere, mas não explicita. Isto porque, ontem e amanhã,
as condições de verdade de tal sentença podem ser distintas das de hoje. Além
desses detalhes espaciais e temporais, há também a questão de que cada termo

15 Para uma descrição passo-a-passo desse processo e análise, cf: VELLOSO, A. R. S. Wittgenstein s unique
Great Analysis: a consequence of the construal of propositional sense as truth-conditions. Analytica (UFRJ),
vol. 18(1), p. 229-269, 2015.
16 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.25.
36

constituinte da sentença não analisada por si só indica várias condições de


verdade – logicamente falando -, indica uma disjunção de conjunções de casos.
Por exemplo, a expressão “estão” em “os óculos estão dentro do armário”
pode, por si só, significar que há um único óculos que está dentro do armário,
há dois, três ou mais óculos; pode significar um único óculos horizontalmente
disposto e dois diagonalmente dispostos ou em qualquer outro estado possível.
Por isso, dizemos ser necessário para a análise tractariana diferenciar
entre sentenças não analisadas e sentenças analisadas – pois as sentenças não
analisadas possuem algum sentido, mas não expressam todo o sentido. Seria,
portanto, a análise lógica que explicitaria o sentido e eliminaria toda a multi-
plicidade semântica, toda a vagueza e indeterminação da sentença analisada.

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Essa vagueza das proposições não analisadas diz respeito justamente à riqueza
de detalhes de cada um dos eventos possíveis que instanciariam o estado de
coisa mais complexo do qual a sentença não analisada fala. Assim, uma sen-
tença não analisada possui um sentido ambíguo e torna-se inconcebível que
qualquer sentença tenha um sentido sem que se saiba precisamente sob quais
circunstâncias ela seria verdadeira e sob quais circunstâncias ela seria falsa.
Nesta seção esperamos que fique claro ao leitor que: 1) a análise lógica
do TLP vai além da análise lógica que normalmente se realiza; 2) a análise é
um processo que envolve eliminar toda a generalidade gramatical contida em
termos gerais, bem como aquela contida de modo oculto em termos aparente-
mente singulares; 3) ao final da análise o sentido da sentença deve estar com-
pletamente determinado – incluído aí suas características espaço-temporais.

3. Temporalidade e Mudança no TLP


Esperamos ter mostrado na seção anterior que, ao fim da análise
lógica de qualquer sentença, devemos ter especificado suas características
espaço-temporais. Podemos dizer que até aqui o foco deste trabalho era exi-
bir o contraste entre a estrutura semântica e a estrutura metafísica no TLP,
de modo a apresentar a análise lógica da linguagem como uma maneira de
localizar os objetos no espaço lógico. Entretanto, ainda que este contraste
entre parte metafísica e parte semântica se mostre útil, ainda restam diver-
sas dificuldades ao se caracterizar a temporalidade no TLP. Dentre essas
dificuldades, trataremos especificamente dos problemas ao se considerar o
tempo como uma forma dos objetos (Fomen der Gegenstände). Wittgenstein
introduz a questão da seguinte maneira: “espaço, tempo e cor (ser colorido)
são formas dos objetos”17.
Este é um dos aforismos mais problemáticos da obra e sugere que os
três – o espaço, o tempo e a cor – são formas distintas; ainda assim, o texto

17 Ibid., 2.0251.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 37

não fornece nenhum princípio explícito pelo qual eles deveriam ser indi-
vidualizados e então distinguidos. Além disso, e talvez mais importante, a
passagem deixa vago se cada objeto possui o tempo como sua forma ou se
o tempo seria uma forma geral de todos os objetos. Contudo, este ponto não
será crucial para nosso argumento e deixaremos sua discussão para trabalhos
futuros. O tempo será utilizado aqui somente como um exemplo de forma e
ainda que seja somente uma forma para um subconjunto próprio de objetos
e não esteja contido em todos eles, nosso argumento permanecerá o mesmo.
Outra dificuldade da obra é esclarecer como a mudança e o tempo se
relacionam, e será este problema que iremos explorar para que possamos
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compreender a noção de Fomen der Gegenstände. Para perseguir tal problema,


faz-se importante lembrar que tempo e mudança são conceitos que comu-
mente aparecem juntos na história da filosofia; por exemplo, em Aristóteles,
temos uma definição de tempo como a medida de Kinesis, um dos tipos de
mudança. Entretanto, ainda que Wittgenstein seja extremamente vago sobre
as características do tempo como forma, ele é ainda mais vago e quase não
toca no tópico da mudança. O pouco que encontramos no TLP sobre a noção
de mudança parece ter que ser extraído, com muito custo, do contraste entre
o reino da lógica e dos fatos, e da diferença entre a substância do mundo e os
fatos nos quais ela se divide atualmente. Talvez as observações mais diretas
sobre a questão da mudança sejam aquelas da distinção da forma do objeto e
sua configuração com as outras formas. Tal configuração é, por definição, um
Sachverhalt18 (um estado de coisas possível). Então, a distinção objeto/estado
de coisas deve ser usada como uma ferramenta para se compreender o conceito
de mudança operado no TLP e sua relação com o tempo enquanto forma.
Para que possamos compreender a distinção objeto/estado de coisas
devemos nos amparar na seção anterior e lembrar que: a linguagem ordinária
disfarça o sentido, de modo que para revelar as convenções tácitas das quais
toda linguagem depende, precisamos da análise proposicional. Ao final da
análise, quando chegamos a uma linguagem perfeitamente clara, o arranjo dos
nomes em uma proposição elementar espelha o arranjo dos objetos simples
em um estado de coisas. Assim, não somente as proposições afiguradoras
da linguagem ordinária, mas também os nomes e as relações significativas19
entre os nomes estarão em uma relação projetiva isomórfica marcada pela
noção de possibilidade.

18 Aqui cabe observar que mesmo Wittgenstein tendo aprovado a tradução de Sachverhalt como “atomic fact”
na tradução do alemão para o inglês, não se segue disso que nós devemos aceitar tal tradução como correta,
ou que devemos nos comprometer com aquilo que tradicionalmente se compreende pela expressão “fato
atômico” – o termo está em disputa entre os intérpretes de Wittgenstein e, de maneira bastante explícita,
comprometemo-nos em traduzir Tatsache como fato e Sachverhalt como estado de coisas.
19 Incluo nas relações significativas do nome não só sua “referência”, mas também suas possibilidades com-
binatórias, o próprio potencial combinatório de um nome.
38

Muitas vezes, Wittgenstein recorre à noção de projeção no TLP, mas


precisamos chamar a atenção especificamente para o conjunto:

O sinal, por meio do que exprimimos o pensamento, chamo de sinal pro-


posicional. E a proposição é o sinal proposicional em sua relação projetiva
com o mundo20.
À proposição pertence tudo que pertence à projeção; mas não o projetado.
Portanto, a possibilidade do projetado, mas não ele próprio. Na proposi-
ção, portanto, ainda não está contido seu sentido, mas sim a possibilidade
de exprimi-lo.
(“O conteúdo da proposição” significa o conteúdo da proposição dotada

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de sentido).
Na proposição está contida a forma do seu sentido, mas não o conteúdo21.
O sinal proposicional consiste em que seus elementos, as palavras, nele
estão, uns para os outros, de uma determinada maneira. O sinal proposi-
cional é um fato22.

Neste conjunto de aforismos temos, passo a passo, a relação entre o


sinal proposicional e sua relação projetiva com o mundo, de modo que, ao
final desse “passo-a-passo”, Wittgenstein declara: Das Satzzeichen ist eine
Tatsache (o sinal proposicional é um fato). Tomamos, portanto, a aplicação do
isomorfismo no Tractatus a partir da relação projetiva: sempre indicando que
uma projeção deve preservar tanto as relações internas quanto a equipotencia-
lidade dos pontos no espaço lógico. Neste caso, poderíamos sempre partir do
“sistema da linguagem” (da combinatória vero-funcional, como explicitamos
anteriormente) para descrever o “sistema ontológico” possível – o que ocorre
na relação projetiva – e podemos também partir do resultado de uma projeção
para o original, isto é, de uma possibilidade ontológica para a combinatória
vero-funcional expressa na linguagem – como pode ser deduzido a partir da
relação combinatória exposta em 4.27:

Quanto à existência e inexistência de n estado de coisa, há


K n = ∑ v =0  vn  possibilidades.
n

 
Podem todas as combinações dos estados de coisas existir e as outras
não existir23.

Desta maneira, a partir de uma relação isomórfica podemos compreender,


portanto, que: 1) os objetos denotados por nomes não podem sofrer mudanças

20 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 3.12.


21 Ibid., 3.13.
22 Ibid., 3.14.
23 Ibid., 4.27.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 39

quanto às suas possibilidades combinatórias, isto é, todas as combinações já


estão pré-estabelecidas; 2) as possibilidades reais de combinação desses obje-
tos são determinadas antecipadamente para que a possibilidade de ocorrência
de cada objeto em um fato seja fixada; 3) essas possibilidades são espelhadas
(um para um) pelas possibilidades combinatórias dos nomes; 4) a essas pos-
sibilidades ontológicas de combinação são atribuídas as várias formas que
caracterizam os objetos – entre elas o tempo.
Diante dessas conclusões, poderíamos estar tentados a declarar que Wit-
tgenstein subscreve a certo tipo de determinismo temporal, haja vista que os
objetos denotados pelos nomes não podem sofrer mudanças quanto às suas
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possibilidades. Como advertimos anteriormente, a noção de mudança é bas-


tante vaga no TLP e temos de extraí-la de outras noções. Para mostrar que não
é o caso que Wittgenstein sugere um determinismo temporal, devemos exe-
cutar um exercício mental destinado a mostrar como o conceito de mudança
se relaciona com os outros conceitos da obra tais como objetos e estados de
coisa possíveis. Uma maneira de ressaltar a importância da mudança no TLP
é mostrar o que aconteceria com os outros conceitos, distinções ou doutrinas
fundamentais do livro se a noção de mudança fosse abandonada por completo.
Mesmo que tal experimento mental traga riscos – todos os riscos de conduzir
uma investigação filosófica de maneira que o próprio autor não se deu o tra-
balho de conduzir –, ele parece lançar luz sobre a obscura noção de mudança
e destacar as conexões dessa noção com o tempo como forma.
No TLP, Wittgenstein começa a estabelecer uma distinção objeto/fato
caracterizada por uma referência à mudança, ele diz: “o objeto é o fixo, sub-
sistente; a configuração é o mutável (Wechselnde), instável”24.
Uma observação subsequente, mostra a conexão entre Sachverhalt
(estado de coisa) e verhalten sich (“estar em relação a”): “no estado de coisas
os objetos estão em relação uns para os outros de uma maneira determinada”25.
Assim, um “estado de coisa” é simplesmente a maneira como os obje-
tos se vinculam na estrutura do estado de coisas26, e esse conjunto de forma
determinada é sua configuração. E a própria Forma é a possibilidade da
estrutura, ou nas palavras de Wittgenstein: “Die Forme ist die Möglichkeit
der Struktur”27.
Finalmente, objetos em configuração formam um estado de coisas possí-
vel. Se os objetos que constituem o estado de coisa possível F não estivessem
juntos exatamente como o fazem, então F nada seria. Como tal configuração

24 Ibid., 2.0271.
25 Ibid., 2.031.
26 Ibid., 2.032.
27 Ibid., 2,033.
40

é mutável ou contingente, o mundo – que se decompõe em fatos que são, em


última análise, a configurações de objetos – está aberto à mudança.
O interesse aqui não é a questão factual de se ocorrer uma mudança
no mundo, mas sim a lógica de tal mudança. A mudança no TLP, quando
ocorresse, acarretaria uma reestruturação semântica e ontológica, a saber,
a mudança de qualquer fato depende da reestruturação do estado de coisas.
A mudança de um fato M envolveria, portanto, o encerramento ou altera-
ção do estado de coisa possível F que seria um de seus membros. Como a
mudança do estado de coisas implica mudança dos fatos, caberá responder
aqui duas questões: 1) qual o papel desempenhado pela mudança dos estados
de coisa possíveis no TLP? 2) Em que se fundamenta a mudança dos estados

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de coisa possíveis?
Para responder a primeira talvez bastasse dizer: se a mudança não fosse
possível, todo o raciocínio que distingue as formas dos objetos de estados
de coisa seria perdido. Se admitirmos, como o TLP o faz, que os objetos
compõem a substância imutável do mundo28, enquanto sua configuração – os
estados de coisa possíveis –, são exatamente o que pode variar sobre o mundo,
então devemos admitir que a possibilidade de multiplicidade – a mudança
de um estado de coisa para outro – é justamente aquilo que torna possível a
imutabilidade dos objetos. Se a configuração dos objetos pode ser distinta, é
justamente porque um estado de coisa é variável, isto é, exatamente porque os
objetos são estruturados de maneira contingente. Essas considerações devem
ser suficientes para mostrar que: 1) há multiplicidade tanto no âmbito dos
objetos quanto no âmbito dos fatos; 2) a própria possibilidade de ocorrência
de um objeto no espaço lógico implica uma mudança de localização espacial
e de localização temporal.
Para respondermos a segunda questão devemos ser capazes de mos-
trar que toda a mudança, da maneira como é exposta no parágrafo anterior,
envolve (por definição) uma base “objetual” sob a qual variar. Disso decorre
a multiplicidade dos objetos do TLP29. Se há uma multiplicidade de objetos,
então há uma multiplicidade de fatos nos quais tais objetos ocorram. Conse-
quentemente, para que ocorra qualquer mudança, alguns objetos teriam que
variar sua configuração, o que é (por definição) o estado de coisas possível.
No entanto, essa mudança não encerra o mundo, porque o mundo não é um
estado de coisas possível particular, mas a totalidade dos fatos (Tatsachen);
além disso, os estados de coisa são independentes uns dos outros30. Portanto,

28 Ibid., 2,021 - 2,023.


29 Se o número de objetos é infinito ou finito é uma questão bastante discutível, mas que foge ao escopo de
nossa investigação atual. Sugerimos a todos aqueles que queiram se enveredar por essa questão que leiam
a dissertação: Análise lógica da proposição e divisibilidade infinita de extensões no Tractatus de Wittgenstein,
de Paulo Junior de Oliveira.
30 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus, 2.061.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 41

a mudança é possível em um mundo que altera sua composição e continua


a existir.
Em suma, o fundamento da mudança no TLP é a própria possibilidade
da mudança de modo que múltiplos objetos e múltiplos fatos implicam tal
possibilidade e são implicados por ela. Além disso, a mudança deve ser pos-
sível para que se dê a distinção entre os objetos. No entanto, vale lembrar que
mudança não é um conceito primitivo no TLP, mas um conceito derivado de
uma forma; e, para nossos propósitos, trataremos da mudança como derivada
da forma do tempo. A mudança como derivada da forma aparece no aforismo
2.033 e, se tomamos o tempo como forma, devemos nos questionar primei-
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ramente se o tempo é uma forma interna ou externa dos objetos. Embora


algumas passagens possam sugerir que a forma é uma propriedade “externa”
dos objetos, outras ressaltam que o tempo é uma forma “interna” ou essencial.
Assim, o tempo como forma pertence essencialmente aos objetos e permite
que tais objetos tenham sua estrutura, isto é, que se mantenham ligados em
um estado de coisas atual.
Considerar o tempo como forma é uma condição suficiente para se assu-
mir a noção de mudança e tal mudança implica e é implicada pela multiplici-
dade dos objetos e fatos. Se a mudança ocorre no nível dos estados de coisa
possíveis enquanto uma mudança na base real dos objetos que constituem os
estados de coisa, então a mudança advém da própria possibilidade da estru-
tura. Será no nível elementar da estrutura do mundo, onde os objetos se ligam
uns com os outros diretamente, que se fundamentarão todas as condições
de possibilidade da mudança. Assim, o tempo como forma fundamenta as
mudanças e, também, a multiplicidade entre objetos e fatos que corresponde
à possibilidade de tal mudança.
Importante lembrar sempre que Wittgenstein separa explicitamente o
lógico (os objetos invariáveis, incluindo sua forma invariável) do factual (as
variáveis em que o mundo se decompõe). O tempo como forma obviamente
pertence ao lógico, de modo que as noções de mudança e multiplicidade dizem
respeito à possibilidade e não à atualidade. Como conceitos de possibilidade,
tanto a mudança quanto a multiplicidade também pertencem ao âmbito lógico.
Assim, podemos dizer que parece haver alguns níveis dentro da análise do
TLP: a possibilidade de mudança e de multiplicidade dentro dos objetos e dos
fatos está em um nível; e em um nível “mais profundo” está o tempo como
forma, o que fundamenta ambos.

Conclusão

Para concluir, recupero a sequência do argumento desenvolvido e o torno


o mais claro possível: 1) ao assumirmos a equivalência entre possibilidade/
42

sentido de Bradley, assumimos também uma explicação modal do sentido nas


obras de Wittgenstein – de modo que, no TLP, aquilo que tem sentido é equi-
valente a aquilo que é possível; 2) a noção de possibilidade que encontramos
no TLP, aquela que chamamos de possibilidade lógica no nosso trabalho, é
um misto de ao menos duas noções de possibilidade: a possibilidade real (que
rege as possibilidades de ocorrência dos estados de coisa) e a possibilidade
combinatória (que rege as combinações vero-funcionais das proposições; 3)
a estrutura do espaço lógico de combinação dos objetos é dada pela noção de
possibilidade; 4) há apenas uma única análise lógica da proposição que nos
leva até as proposições elementares; 5) as proposições elementares são uma

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concatenação de nomes que mantêm uma relação isomórfica com a concate-
nação dos objetos simples da realidade; 5) os objetos denotados por nomes
não podem sofrer mudanças quanto às suas possibilidades combinatórias; 6)
as possibilidades de combinação dos objetos são determinadas antecipada-
mente para que a possibilidade de ocorrência de cada objeto em um estado de
coisas seja fixada; 7) a essas possibilidades ontológicas de combinação são
atribuídas as várias formas que caracterizam os objetos – entre elas o tempo;
8) espaço, tempo e cor são formas gerais dos objetos; 9) a mudança acarreta
uma reestruturação semântica e ontológica; 10) há multiplicidade tanto no
âmbito dos objetos quanto no âmbito dos fatos; 11) a própria multiplicidade de
objetos atrelada à possibilidade de ocorrência de um objeto no espaço lógico
implica uma mudança de localização espacial e de localização temporal; 12)
o fundamento da mudança no TLP é a própria possibilidade da mudança, de
modo que múltiplos objetos e múltiplos fatos implicam tal possibilidade e
são implicados por ela.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 43

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A
INFLUÊNCIA DE HEINRICH HERTZ
NA CONCEPÇÃO DE MECÂNICA
DE WITTGENSTEIN NO TRACTATUS
LOGICO-PHILOSOPHICUS
William Botura Apostolico1
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Introdução

“Se posso pensar numa ‘espécie de objetos’, sem saber se há tais objetos,
preciso, assim, ter-me construído seu protótipo de figuração. Não se baseia
nisso o método da Mecânica?”2. Assim reza uma anotação feita por Wittgens-
tein em um de seus cadernos – escrita durante a Primeira Guerra Mundial, em
7 de julho de 1916. Outras questões como essa, que versam acerca da natureza
metodológica e do estatuto da Mecânica, e sobre a natureza das proposições
das ciências naturais [Naturwissenschaften], perpassam, de maneira geral, a
obra de juventude de Wittgenstein, recebendo uma formulação mais madura
no Tractatus Logico-Philosophicus: as proposições 4.1 a 4.116 caracterizam
a relação entre a filosofia e ciência; já as proposições 6.3 a 6.3751 abordam
as ciências naturais em geral e, de maneira mais específica, a Mecânica.
Apesar de estes questionamentos não fazerem parte do núcleo principal
de temas que compõem o itinerário filosófico do jovem Wittgenstein3, a “epis-
temologia do Tractatus” – ou seja, nos utilizando do vocabulário de Bento
Prado Neto, “sua reflexão sobre a ciência e , mais especificamente, sobre a

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.


2 WITTGENSTEIN, L. Werkausgabe Band 1 (Tractatus Logico-Philosophicus, Tagebücher 1914-1916 und
Philosophische Untersuchungen). Berlin: Suhrkamp, 1989. (Tradução nossa; grifos nossos, exceto o primeiro).
3 Retomamos, aqui, uma afirmação de Luiz Henrique Lopes dos Santos, em seu texto A Essência da Pro-
posição e a Essência do Mundo: “o itinerário da reflexão filosófica de Wittgenstein entre 1913 e 1916 pode
ser identificado, em suas grandes linhas, num conjunto de textos dessa época, que apenas foram dados
a público após sua morte [...]. O estudo desse itinerário revela que as preocupações lógicas e filosóficas
de Wittgenstein nesse momento eram as de Russell: caracterizar a natureza e os fundamentos da lógica
e elucidar a natureza do sentido proposicional”. Como o grosso dos comentários acerca do estatuto da
Mecânica que figuram no Tractatus já aparecem nos Tagbücher, entre 1914 e 1916, achamos seguro afirmar
que a tal “epistemologia do Tractatus” não veio a compor o núcleo das preocupações de Wittgenstein, e a
lógica continua, entre 1916 e 1921 (ano de publicação do Tractatus), sendo seu foco principal. SANTOS,
Luiz Henrique Lopes dos. A Essência da Proposição e a Essência do Mundo. In: WITTGENSTEIN, Ludwig.
Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993, p. 50.
46

Mecânica”4 – ocupa uma parte considerável do livro (se levado em conta


seu tamanho), e é sabida a posição privilegiada que Wittgenstein termina por
conceder às proposições das ciências naturais, proposições essas com sentido
[sinnvoll], se comparadas às pretensões metafísicas, contrassensos [unsinn]:

O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer senão o


que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – ou seja, algo
que nada tem a ver com filosofia; e, então, sempre que alguém pretendesse
dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos
sinais em suas proposições5.

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O movimento de reavivamento de estudos relacionados à “epistemologia
do Tractatus” é, então, uma marca importante da literatura especializada das
últimas duas décadas. Apesar disso, não há uma uniformidade estabelecida
para a abordagem de tal tema; diferentes comentadores dão ênfases diversas
a problemas específicos. Tomaremos dois desses problemas como principais
e, consequentemente, estabeleceremos diálogo com dois comentadores, em
suas abordagens particulares. E, a partir desse jogo de referências, circuns-
crevemos o tema central do presente texto.
Em primeiro lugar, destacamos o problema do estatuto da mecânica do
Tractatus. As proposições 6.3 a 6.3751 não dão uma palavra final e definitiva
acerca do que Wittgenstein entendia ser a mecânica, seu método e seu caráter;
ao mesmo tempo que o percurso parece insistir no estatuto inteiramente a
priori de leis, como a lei da indução e os princípios da mecânica, sua relação
com os fatos e com os objetos do mundo não é deixada de lado (cf., respec-
tivamente, as proposições 6.31, 6.3431 e 6.35). Daí a importância do texto O
Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus: nele, Bento Prado Neto intenta
“pinçar alguns dos traços gerais dessa caracterização da mecânica, para nos
perguntarmos por suas relações com os princípios mais gerais do Tractatus”6.
Para tanto, focaliza sua exposição em um problema circunscrito, o do estatuto
a priori da mecânica. Ao final de seu texto, Bento faz o seguinte balanço: “este
nosso pequeno percurso, assim, mais levantou problemas do que os resolveu.
Mas creio ter mostrado (i) a existência de um problema e (ii) a direção geral

4 PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus. Cad. Hist. Fil. Ci., série 3, v. 17, n.
1, p. 91-108, jan.jun, 2007. Disponível em: https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/cadernos/article/
view/583/462. Acesso em: 15 set. 2023, p. 91.
5 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo:
Edusp, 1993, 6.53. Notamos que, daqui para frente, como a tradução do Tractatus citada será sempre a de
Luiz Henrique Lopes dos Santos, referenciamos o texto a partir de sua numeração original, e não a partir
da paginação da edição utilizada; ou seja, serão citados os números das proposições.
6 PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus, p. 92.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 47

que a tentativa de solucionar esse problema deve assumir”7. Um dos pontos


fortes do artigo de Bento, acreditamos, é a insistência em tentar solucionar a tal
questão sem importar soluções estrangeiras, seja essa solução, por exemplo,
um recurso à estratégia russelliana da “geometria pura”; em outras palavras,
o ponto forte do percurso é apontar na direção de uma solução tractariana
para um problema propriamente tractariano, ao mesmo tempo que, por meio
de seu percurso negativo, resgata soluções e temas que viriam a ser caros a
Wittgenstein pouco tempo depois8.
Em segundo lugar, ainda engendra problema a relação deveras nebulosa
de Wittgenstein com toda uma tradição que, não menos que Russell e Frege,
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foi responsável por sua formação intelectual: a Física e a Mecânica do século


XIX, em especial seus notáveis representantes, como J. C. Maxwell, Ludwig
Boltzmann e Heinrich Hertz9. Quanto a isso, apontamos para o texto Hertz
and Wittgenstein ‘s Philosophy of Science, de Peter Kjaergaard: apesar de
menos técnico (especialmente no vocabulário empregado) que o artigo de
Prado Neto, torna-se relevante ao trazer ao foco a figura de Hertz, mostrando
sua profunda influência na formação científica e filosófica de Wittgenstein;
influência essa que, de alguma maneira, perdura na maturidade do autor.
Lembramos, com Kjaergaard, que Wittgenstein cita Hertz nominalmente no
Big Typescript10 e chegou a considerar uma passagem da principal obra do
físico – os Prinzipien der Mechanik – como mote das Investigações Filosó-
ficas11; esta citação foi, entretanto, substituída por uma referência à peça O
Protegido [Der Schützling], de Johann Nestroy, vindo a se tornar o efetivo
mote do livro em sua versão publicada. Para Kjaergaard, saber medir corre-
tamente a influência de Hertz sobre o “corpus wittgensteiniano” é, inclusive,
mister para a compreensão da unidade do pensamento de Wittgenstein e,

7 Ibid., p. 107.
8 Bento fecha seu texto da seguinte maneira: “se o fizemos [refere-se aqui ao fato de ter comparado Wittgens-
tein a Russell e Ramsey, comparação que, a olhares incautos, poderia parecer evitável], foi justamente para
contrastar esses dois tipos de “geometrias” e “sintaxes”: uma que consiste numa determinada multiplicidade
de formas proposicionais - o que corresponderá à geometria do espaço visual, em 1929 – e outra que
consiste num sistema de derivação ou de ordenação de proposições elementares – o que corresponderá
à descrição do espaço físico em 1929. Esse contraste parece-nos extremamente relevante para o exame
dos pontos de continuidade e ruptura entre o Tractatus e as Philosophische Bemerkungen. PRADO NETO,
Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus, p. 107.
9 Quanto a esse quadro de influências diversas, cf. a nota 6 do texto de Kjaergaard: KJAERGAARD, Peter.
Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science. Journal for General Philosophy of Science, v. 33, n. 1,
2002, p. 140.
10 TS-213, 421r[4]: Tal como eu pratico filosofia, é toda sua tarefa configurar a expressão de tal maneira, que
de fim a determinadas || inquietações || problemas?((Hertz)). (Tradução nossa).
11 “Quando essas dolorosas contradições tiverem sido afastadas, a questão a respeito da essência não terá
sido de fato respondida, mas nosso intelecto, não mais torturado, cessará de propor a si mesmo questões
ilegítimas”. HERTZ. Princípios de Mecânica (Introdução). In: VIDEIRA, Antonio Augusto Passos; COELHO,
Ricardo Lopes (Org.) Física, Mecânica e Filosofia: o legado de Hertz. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2012, p. 82.
48

mais especificamente, da coerência de certos argumentos sobre o conceito


de fundamentação e sobre a matemática:

É importante para a nossa apreciação da coerência dos argumentos filo-


sóficos de Wittgenstein sobre o conceito de fundação, desde seus estágios
iniciais e através de sua carreira, que isso [a influência de Hertz] seja ulte-
riormente desenvolvido. De maneira semelhante, a influência conectiva
de Hertz na crítica de Wittgenstein às metalinguagens e nas suas reflexões
posteriores sobre a fundação da matemática precisa ser contemplada12.

Kjaergaard pretende alcançar tal compreensão, em um primeiro momento,

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mediante a análise da influência hertziana sobre a “epistemologia” wittgenstei-
niana de juventude13. O autor se utiliza de tal análise, inclusive, para afirmar
uma equivalência metodológica completa entre Hertz e Wittgenstein, ponto
que acreditamos importante problematizar mais adiante.
Assim, além de apresentados dois problemas centrais e dois autores
exemplares na retomada do tema da epistemologia e da filosofia da ciência
no pensamento de juventude de Wittgenstein, está também montado o qua-
dro de referências que ajudará na delimitação do tema a ser aqui explorado.
Bento Prado Neto nos mune com o vocabulário para lidar com um problema
específico, o do estatuto a priori da mecânica do Tractatus, e com uma dire-
ção para sua possível solução, a consideração da mecânica como um “modo
de ‘ordenar’ proposições em séries formais”14. Kjaergaard, por sua vez, nos
lembra da necessidade em considerar Hertz como peça fundamental para
o entendimento das considerações wittgensteinianas sobre ciência e epis-
temologia. Tomando esses dois pontos como epígrafes do nosso percurso,
desrespeitaremos – deliberadamente – o princípio que, como supracitado,
acreditamos em parte responsável pelo sucesso do texto de Bento Prado Neto:
nos afastaremos momentaneamente do Tractatus para uma leitura dos Prin-
zipien der Mechanik de Hertz, ponderando como o que é ali exposto pode
ajudar para o esclarecimento do estatuto a priori da mecânica.

12 KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science. Journal for General Philosophy of
Science, v. 33, n. 1 (2002), p. 125. (Tradução nossa). O tema da unidade do pensamento de Wittgenstein não
será abordado diretamente aqui, dada sua complexidade. Cf., para mais detalhes da posição de Kjaergaard,
a segunda seção do artigo aqui citado, intitulada “Hertz and the continuity of Wittgenstein’s thinking”.
13 Kjaergaard não chega a falar em “epistemologia”, mas em “philosophy of science”; tal formulação é nossa,
e a escolhemos para aproximar Kjaergaard do horizonte de problemas que havíamos ganhado com o texto
de Bento Prado Neto. No original, Kjaergaard diz: “Para que se possa entender isso, será necessário engen-
drar uma análise mais minuciosa do conteúdo e do caráter da influência hertziana inicial sobre a filosofia
da ciência de Wittgenstein. Através dessa reconstrução intelectual do pensamento de Wittgenstein, uma
biografia qualificada pode ser estabelecida, produzindo uma coerência mais historicamente acurada acerca
de sua vida e trabalho”. KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science, p. 125.
14 PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus, p. 106.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 49

1. A concepção de mecânica de Hertz, como exposta nos Prinzipien


der Mechanik

Ao caracterizar a influência que as obras de Heinrich Hertz e Ludwig


Boltzmann tiveram sobre a “filosofia da ciência” de Wittgenstein, Peter Kjaer-
gaard afirma que a mecânica de Hertz, da maneira que foi apresentada pelo
físico em seu livro Prinzipien der Mechanik, de 1894, tornou-se prototípica
para a noção de ciência do Tractatus, a ponto de o sistema hertziano desempe-
nhar um papel de “ciência per se para Wittgenstein”15. Isso se deve, segundo
Kjaergaard, ao fato de a mecânica hertziana cumprir a demanda de enfatizar
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o caráter representacional das teorias científicas (ou seja, meramente descri-


tivo, em oposição a um caráter explicativo dos fenômenos naturais), ponto
importante para Wittgenstein como parte de uma recusa de interpretações
“ontologizantes” da ciência (por exemplo, o debate realismo/ anti realismo):

Que uma teoria científica tivesse sucesso não era, claramente, uma coisa
ruim, apesar de ter o efeito lamentável de inspirar interpretações onto-
lógicas indesejadas. Uma maneira de evitar isso seria enfatizar o caráter
puramente representacional de uma teoria física e demonstrar sua inde-
pendência de fundações externas, por meio de uma representação clara
e simples, evitando assim, a confusão acerca do status dos elementos
formais na teoria construída. Para Wittgenstein, essa demanda do caráter
representacional da ciência parecia ser preenchida pela mecânica de Hertz,
que tornou-se prototípica para a ciência no Tractatus16.

Por mais que concordemos parcialmente com as afirmações de Kjaer-


gaard, acerca da influência de Hertz no Tractatus, parece-nos problemática
a afirmação de que a caracterização de mecânica feita nos Prinzipien der
Mechanik seja prototípica, um modelo para a concepção tractariana de ciên-
cia17, ou sequer prototípica para a concepção de mecânica exposta no livro,
se levado em conta seu estatuto a priori, como caracterizado por Bento Prado
Neto: primeiro porque parece desconsiderar a diferença, marcada pelo próprio
Wittgenstein, entre ciências naturais e mecânica; em segundo lugar, porque

15 KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science, p. 131.


16 Ibid., p. 131. (Tradução nossa).
17 A afirmação pode não parecer tão forte à primeira vista, mas deve ser levada em conta junto à unidade do
texto de Kjaergaard, populado de outras afirmações contundentes que, se mantidas no horizonte durante
a leitura, ajudam na medição do tom geral do texto. Lembramos de apenas uma aqui, onde Kjaergaard
chega a insinuar que Hertz e Wittgenstein possuem, ambos, apenas um método filosófico, compartilhado:
“na passagem que acabamos de considerar, Hertz e Wittgenstein tocaram em um dos temas centrais de
seu método filosófico”. KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science, p. 135.
(Grifo nosso).
50

a leitura dos Prinzipien não parece dar lastro a uma redução das concepções
de mecânica de Wittgenstein às de Hertz. Vê-se necessário, então, retomar
a introdução feita por Hertz ao livro para clarificar a noção de mecânica por
ele afirmada e verificar em que medida ela se assemelha com a concepção
correlata de Wittgenstein, no Tractatus.
Nota-se, em primeiro lugar, que o objetivo da introdução aos Prinzipien é
justificar a pertinência do projeto hertziano de apresentar a mecânica sob nova
forma, e tal justificativa é levada a cabo mediante um percurso que mostra
a inadequação de sistemas mecânicos anteriores, sistemas esses que Hertz
pretende, no limite, abandonar, em favor de seu próprio sistema. Antes de
avaliar o primeiro desses sistemas, que teria ganhado com Newton e d’Alam-

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bert sua forma mais acabada18, Hertz define o que entende por “princípios
da mecânica”: “com isso, estaremos visando a qualquer seleção, entre tais
proposições e outras semelhantes, que satisfaça a condição de que o todo da
mecânica possa ser desenvolvido a partir delas, sem qualquer apelo posterior
à experiência”19. E prossegue, afirmando que, nesse sentido em que foram
definidos, os conceitos fundamentais [Grundbegriffe] em torno dos quais
uma mecânica se estrutura, “juntamente com os princípios que os conectam,
apresentam [darstellen] a mais simples imagem que a física pode produzir das
coisas no mundo sensível e dos processos que nele ocorrem”20. Apresentar
os princípios da mecânica sob nova forma significa, nesse contexto, variar
os conceitos fundamentais e princípios que constituem a base para toda a
mecânica, que deles pode ser dedutivamente desenvolvida. Se esses princípios
da mecânica apresentam uma imagem do mundo, e se podem ser variados,
conclui Hertz, “podemos conseguir diferentes imagens das coisas”, imagens
que podem ser valoradas de acordo com critérios estabelecidos previamente.
É impactante como, nessa passagem da Introdução, Hertz entoa formu-
lações que iriam ressoar no Tractatus quase duas décadas depois: diz Wit-
tgenstein, na proposição 6.343, que “a mecânica é a tentativa de construir,
sobre um só plano, todas as proposições verdadeiras de que precisamos para
a descrição do mundo”. Entretanto, definidas as proposições da mecânica
como imagens do mundo, é lícito perguntar como Hertz concebe que essas
imagens são formadas, e quais são os critérios segundo os quais pretende
julgar e comparar cada uma das diferentes imagens de mundo obtidas pelas
diferentes mecânicas. É uma discussão desses dois pontos que, curiosamente21,
ocupa as primeiras páginas da Introdução de Hertz.

18 HERTZ. Princípios de Mecânica (Introdução), p. 77-8.


19 Ibid., p. 77. (Grifo nosso).
20 Ibid., p. 77.
21 Curiosamente, pois, para um texto que se pretende uma justificativa de um projeto físico de refundamenta-
ção (vocabulário nosso) da mecânica, inicia-se dando voz a problemas caros à tradição filosófica, como o
problema da predição de eventos futuros e o problema da indução.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 51

O texto se inicia identificando o problema de “prever experiências futu-


ras, de modo que possamos, conforme essa previsão, orientar nossa ação
no presente”22 como o problema mais importante que nosso “conhecimento
consciente da natureza” [bewussten Naturerkenntnis] nos capacita a responder.
Hertz aponta que a solução comumente adotada por nós, para tal problema, é a
produção de inferências sobre o futuro a partir do passado: “como fundamento
para a solução dessa tarefa do conhecimento, utilizamos sempre experiências
passadas, tenham sido essas adquiridas por meio de observações aleatórias ou
de experimentos deliberados”23. Segundo ele, adotamos sempre um mesmo
processo na tentativa de construir tais inferências sobre o futuro, processo
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descrito da seguinte maneira:

O procedimento de que nos servimos para derivar acontecimentos futuros


a partir dos passados, alcançando, dessa forma, a almejada previsão, é
sempre a formação de imagens mentais ou símbolos dos objetos, e fazemos
isso de modo tal que as consequências logicamente necessárias das ima-
gens sejam sempre, por sua vez, imagens das consequências naturalmente
necessárias dos objetos retratados24.

Kjaergaard já havia notado como essa formulação hertziana do pro-


cesso, segundo o qual somos facultados a construir inferências acerca do
futuro, é parecida com a maneira como Wittgenstein introduz, no Tractatus,
a figuração25; similaridade de formulação que pode ser facilmente asseverada
ao se olhar para os textos originais: diz Hertz que “Wir machen uns innere
Scheinbilder oder Symbole der äußeren Gegenstände [...]”26; já Wittgenstein
afirma, na proposição 2.1 que “Wir machen uns Bilder der Tatsachen”27.
Gostaríamos de acentuar, entretanto, as diferenças, em oposição às seme-
lhanças imediatamente constatáveis, entre essas duas falas: Hertz pretende
descrever a maneira, o processo por meio da qual nós construímos imagens
de conexões (fenômenos) naturais, posteriormente utilizadas na produção de
inferências sobre o futuro, imagens essas de caráter mental (todo o trecho
se constrói por contraposição entre o caráter interno do símbolo e o caráter

22 HERTZ. Princípios de Mecânica (Introdução), p. 73.


23 Ibid., p. 73.
24 Ibid., p. 73.
25 KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science, p. 143: “Há quase que uma identidade
literal entre Hertz e Wittgenstein no que diz respeito ao processo mental de figuração”.
26 “Fazêmo-nos imagens aparentes de objetos externos [...]”. Optamos nesse caso pela nossa tradução, para
que pudéssemos aproximar os dois textos com maior fluência. HERTZ, Heinrich. Die Prinzipien der Mechanik.
Leipzig: Johann Ambrosius Barth (Arthur Meiner), 1894, p. 1.
27 “Fazêmo-nos figurações dos fatos”. (Tradução nossa). WITTGENSTEIN, L. Werkausgabe Band 1 (Tractatus
Logico-Philosophicus, Tagebücher 1914-1916 und Philosophische Untersuchungen). Berlin: Suhrkamp,
1989, p. 14.
52

externo do objeto simbolizado). Já Wittgenstein, ao introduzir o conceito


de figuração, o caracteriza de maneira muito mais geral, identificando, nas
proposições subsequentes a 2.1, o que deve acontecer para que a figuração
(o ato de figurar fatos mediante outros fatos) se arme (por exemplo, em 2.18:
“o que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com
a realidade para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é
a forma lógica, isto é, a forma da realidade”); entendemos que Wittgenstein
está atribuindo um papel muito geral à noção de figuração, tornado possível
afirmar, como faz Luiz Henrique Lopes dos Santos em seu ensaio A Essência
da Proposição e a Essência do Mundo, que “toda figuração, na acepção do

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termo fixada pelos aforismos em questão, é uma proposição”28. Em outras
palavras, a noção de figuração e a noção de proposição são ambas implodidas
pelo Tractatus, a ponto de se poder afirmar que toda linguagem com sentido
deve obedecer o paradigma da figuratividade colocado pelas proposições de
número 2. Esse papel, atribuído pelo Tractatus ao conceito de figuração, é
muito mais geral do que o atribuído por Hertz à sua noção de “imagens apa-
rentes” [Scheinbilder], que vêm a fazer parte de um processo específico de
produção inferencial de predições sobre eventos naturais.
De qualquer maneira, para que seja cumprido o requerimento de que “as
consequências logicamente necessárias das imagens sejam sempre, por sua
vez, imagens das consequências naturalmente necessárias dos objetos retra-
tados”29, Hertz postula a necessidade de haver “certas concordâncias entre a
natureza e o nosso espírito”, concordâncias tais que a experiência nos ensinaria
existir, dado que “nos ensina que a exigência é realizável”30. Tais imagens
são chamadas posteriormente por Hertz de “nossas representações das coisas”
[unsere Vorstellungen von den Dingen], e ele afirma que, no limite, possuem
uma, e apenas uma coisa em comum com as coisas que representam, a tal
exigência mencionada, resumida da seguinte maneira: “a exigência de que as
consequências das imagens sejam uma vez mais as imagens das consequên-
cias”31; em uma palavra, a única coisa em comum que as imagens por nós
construídas, representações de fenômenos naturais, mantém com as coisas que
representam é a correspondência (formal) entre antecedentes e consequentes
na imagem e antecedentes e consequente na natureza das coisas figuradas.
Hertz introduz, então, a observação de que tais imagens, das quais nos
utilizamos para representar os fenômenos como acontecem no mundo natu-
ral, não podem ser produzidas sem certa ambiguidade, pois “são possíveis

28 SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A Essência da Proposição e a Essência do Mundo. In: WITTGENSTEIN,
Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993, p. 60.
29 HERTZ. Princípios de Mecânica (Introdução), p. 73.
30 Ibid., p. 73.
31 Ibid., p. 74.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 53

diferentes imagens dos mesmos objetos, e essas imagens podem distinguir-se


umas das outras em diferentes sentidos”32. Daí desdobra, finalmente, os pos-
tulados segundo os quais pretende avaliar tais imagens, de maneira indepen-
dente: admissibilidade, correção e conveniência. Interessa-nos, entretanto, a
maneira como Hertz modifica esses postulados para avaliar “a apresentação
científica das imagens”:

Desta [da apresentação científica das imagens] exige-se que nos mos-
tre claramente quais propriedades atribuímos às coisas por causa de sua
admissibilidade, de sua correção e de sua conveniência. Somente assim,
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temos a possibilidade de modificar e melhorar as imagens que fazemos.


Aquilo que foi atribuído às imagens por causa de sua conveniência está
abarcado nas designações, definições, abreviações; numa palavra, naquilo
que, arbitrariamente, podemos inserir ou remover. Já aquilo que se atribui
às imagens por causa de sua correção se deve aos resultados das experiên-
cias que serviram à construção das imagens. Por outro lado, aquilo que
diz respeito às imagens em virtude do fato de serem admissíveis é dado
pelas propriedades do nosso espírito33.

Esses são os pontos de partida segundo os quais Hertz procura pesar o


valor, tanto das representações das teorias físicas, em geral, quanto dos Princí-
pios da Mecânica (no sentido em que entende essa expressão, supracitado por
nós nessa seção), em específico. Isto é, os diferentes princípios da mecânica
serão julgados, na Introdução, segundo o que imputam às imagens que geram,
no que diz respeito à admissibilidade, à correção e à conveniência: “podemos
conseguir diferentes imagens das coisas, cujas imagens experimentamos e
podemos comparar umas com as outras, levando em conta sua admissibilidade,
correção e conveniência”34.
O estatuto da mecânica, para Hertz, pode ser reconstruído a partir da
maneira como se julgam diferentes sistemas de mecânica com base nos crité-
rios acima expostos; deve ser reconstruído, então, a partir do próprio percurso
textual de justificação do projeto hertziano, que também mostra a inadequação
dos outros sistemas mecânicos historicamente constituídos. Não pretendemos
reconstruir todo esse percurso, mas fazer algumas observações que nos aju-
darão a diferenciar o estatuto da mecânica para Hertz e para Wittgenstein.
Primeiramente, é necessário lembrar que Hertz mesmo acreditava que
muitos dos problemas que podem ser levantados às imagens construídas a
partir de um conjunto de princípios da mecânica são extinguidos pela mera

32 Ibid., p. 74.
33 HERTZ. Princípios de Mecânica (Introdução), p. 75.
34 Ibid., p. 77.
54

remoção das contradições que engendram tais problemas. É sobre esse ponto
que versa a passagem dos Prinzipien der Mechanik, considerada por Witt-
genstein como possível mote das Investigações Filosóficas, por nós citada na
primeira seção. Isso quer dizer que, no que diz respeito à “admissibilidade”
dessas imagens, muitas das contradições e incertezas lógicas que as fustigam
são contradições formais, entre caracteres não essenciais da imagem: “essas
indeterminações não podem consistir em contradições entre os traços essen-
ciais da nossa imagem, ou seja, entre as relações da mecânica que correspon-
dem a relações entre coisas. Elas devem limitar-se estritamente aos traços
inessenciais”35. Em outras palavras, Hertz considera que essas contradições

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não dizem respeito ao conteúdo da imagem; não concernem ao que a imagem
busca representar, mas ao como ele busca representar. O tratamento pelo qual
esse tipo de imagem, internamente contraditória, ainda não passou, e que deve
ser levado à cabo para que a imagem se torne adequada e, por conseguinte,
científica, é a distinção penetrante e minuciosa “entre o que, na imagem
projetada, deriva da necessidade lógica, da experiência e de nosso arbítrio”36.
Em segundo lugar, no que diz respeito à “correção”, Hertz a interpreta
no sentido de uma correspondência entre teoria e experiência, de maneira
que as seguidas e diversas experiências empíricas (e experimentos, criados
artificialmente com o intuito de testar teorias) devam continuamente confir-
mar a veracidade de uma imagem mecânica do mundo, ad infinitum; uma
experiência contrária às predições é suficiente para desestabilizar todo um
sistema mecânico. É nesse sentido que, ao avaliar seu próprio sistema, ou
sua pretensão em construir um sistema de princípios da mecânica a partir
dos conceitos fundamentais de massa, espaço e tempo apenas, Hertz faz a
seguinte observação:

Em primeiro lugar, não há qualquer dúvida de que o sistema representa


corretamente um número bem grande de movimentos naturais. Mas isso
não basta: o sistema precisa abarcar todos os movimentos naturais, sem
qualquer exceção. Penso que isso também se pode afirmar dele, ao menos
no sentido em que atualmente não é possível mencionar nenhum fenômeno
definido que se mostre inconsistente com o sistema37.

Na medida, então, que os princípios da mecânica pretendem representar


relações necessárias a todos os fenômenos naturais, eles pretendem-se “válidos
universalmente”38. Apesar de toda a mecânica ser derivada dedutivamente de
35 Ibid., p. 82.
36 Ibid., p. 82.
37 Ibid., p. 118. (Grifo nosso).
38 Ibid., p. 96. Diferentes traduções empregam diferentes vocabulários para essa passagem. A tradução inglesa,
por exemplo, diz “universally true”. No texto original, lê-se: “Voraussetzungen Allgemeingültigkeit”. O texto
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 55

um sistema formal de princípios, a experiência continua, para Hertz, a ter o


papel de juíza de uma teoria: a mecânica mantém-se verdadeira, conquanto
toda e qualquer experiência empírica a confirme, mas torna-se falsa a partir do
momento em que uma, e apenas uma experiência a refuta. Depende ainda, em
outro sentido, da mecânica da experiência empírica, isto é, no que diz respeito
a seus conceitos fundamentais [Grundbegriffe]; essas imagens, como defini-
das anteriormente, devem ser introduzidas “como objetos da experiência, no
que indicamos por meio de quais concretas experiências sensíveis podemos,
de modo determinado, pensar tempos, massas e grandezas espaciais”39, ou
qualquer outro conceito fundamental.
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Em suma, a partir dos elementos apresentados, pode-se fazer um balanço


preliminar: a mecânica, ou melhor, os princípios da mecânica, como concebi-
dos por Hertz, são sistemas formais de proposições que permitem a construção
dedutiva de todo um edifício de conhecimento. Nesse sentido – ou seja, no
que diz respeito a sua admissibilidade e conveniência – a mecânica pode
ser dita “a priori”, na medida em que pode ser construída sem referência a
nenhuma experiência, e de maneira completamente independente dela. Esses
sistemas mantêm, entretanto, uma relação fecunda com a experiência sensível,
requisitando sua presença em, pelo menos, dois momentos fundamentais: na
determinação inicial de seus conceitos fundamentais e na progressiva con-
firmação da validade universal da teoria (ou em sua eventual refutação). Em
outras palavras, forçando um vocabulário que está aquém do hertziano: o
estatuto da mecânica pode ser dito parcialmente a priori, mas parece-nos
impossível dizê-lo realmente (ou melhor, inteiramente) a priori.

2. A mecânica no Tractatus: o apriorismo e a “pesquisa de


toda legalidade”

No Tractatus, Wittgenstein nos apresenta a sua concepção de mecânica


nas proposições 6.3, e seu tratamento dessa noção encontra-se subordinado aos
comentários acerca da legalidade: “a pesquisa da lógica significa a pesquisa
de toda legalidade. E fora da lógica é tudo um acaso” (T, 6.3). Dessa maneira,
não se pode confundir (como aparenta fazer Kjaergaard) os comentários que
Wittgenstein faz acerca da mecânica, da “lei da causalidade” (6.32 e 6.321)
e da “lei da indução” (6.31), com o que comenta acerca das proposições das
ciências naturais. Compare-se, por exemplo, a proposição 6.3431 – “como
todo o aparato lógico de permeio, as leis físicas ainda assim falam dos objetos

em português fala em pressuposições com “validade geral de fato”. Aqui, preferimos manter a expressão
“válidos universalmente”, assim nos aproximando mais do texto original que das traduções citadas.
39 Ibid., p. 106.
56

do mundo” – com anotação, do Tagebuch de 1916, que abre o presente artigo:


a física, enquanto ciência natural, é composta por proposições, ou figura-
ções [Bilder] com sentido, fala de objetos do mundo; a mecânica, sugere a
passagem em tom de hipótese, teria por método a construção de protótipos
de figuração [Urbild], pensaria numa “espécie de objetos”, sem saber se de
fato existem. Esse é um dos pontos frisados por Bento Prado Neto no início
de seu texto: “comecemos por lembrar que não se deve confundir mecânica
e ciência. [...]. A ciência (ou as ciências naturais, ou as ciências empíricas)
se define pela verdade das suas proposições, ao passo que a mecânica, pela
unicidade do plano de construção das proposições científicas”40.

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É nesse contexto, da legalidade lógica, em contraposição à casualidade
factual, e a partir dessa contraposição com as ciências empíricas, que o Trac-
tatus abordará a mecânica. A referência ao a priori já é feita antes mesmo de
Wittgenstein construir sua famosa analogia das redes e das manchas, analogia
nuclear às observações sobre o estatuto da mecânica; diz ele, na proposi-
ção 6.34: “proposições como o princípio de razão, continuidade na natureza,
mínimo esforço na natureza etc., todas elas são iluminações a priori sobre a
conformação possível das proposições da ciência”. Esse aforismo, argumen-
tamos contra Kjaergaard, enfatiza o papel prescritivo, e não descritivo, de
“proposições” como os princípios mecânicos e a lei da causalidade; elas não
descrevem como o mundo é, não são proposições com sentido, que figuram
fatos, mas formas de proposições, formas de leis (6.32: “a lei da causalidade
não é uma lei, mas a forma de uma lei”). Afinal, só existe legalidade lógica,
e se as proposições da mecânica fossem bipolares, figurassem fatos, seriam
contingentes, como todas as proposições que figuram fatos; essa contingência
não é eventual, mas necessária, lógica: toda proposição é essencialmente
bipolar, ou seja, o estado de coisa possível que figura pode – ou não – acon-
tecer no mundo; na medida em que possuem condições de verdade, possuem
também condições de falsidade41 (é mister não esquecer a proposição 1.21:
“algo pode ser o caso ou não ser o caso e tudo o mais permanecer na mesma”).
É nesse sentido que Luiz Henrique Lopes dos Santos diz que “o princípio da
causalidade nada mais é que a prescrição metodológica de que as proposições
da ciência assumam a forma de leis hipotéticas. [...] Toda a sua relevância
para a representação proposicional do mundo concentra-se em seu núcleo
prescritivo”42. Luiz Henrique afirma que o mesmo deve ser dito para as leis
mecânicas, pois elas “prescrevem uma forma especial para as leis relativas
ao movimento dos corpos”43. A esse papel prescritivo, acresça-se a completa

40 PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus, p. 92. (Grifo nosso).
41 SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A Essência da Proposição e a Essência do Mundo, p. 51.
42 Ibid., p. 93.
43 Ibid., p. 93.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 57

generalidade da mecânica, apontada pelas proposições 6.343 (supracitada)


a 6.3432: “não podemos esquecer que a descrição do mundo por meio da
mecânica é sempre completamente geral. Nela, nunca se trata de falar, por
exemplo, de pontos materiais determinados, mas sempre e somente de pontos
materiais quaisquer”.
Por mais que a caracterização de mecânica feita por Wittgenstein se
aproxime da feita por Hertz nesse sentido, da completa generalidade das
proposições mecânicas, em pontos cruciais as duas se distanciam. Por exem-
plo, ponderando a ausência de sentido característica da mecânica, e tam-
bém seu caráter prescritivo, percebe-se que ela, para o Tractatus, não pode
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– como acontece nos Prinzipien der Mechanik, e esperamos ter mostrado


aqui – ser refutada pela experiência empírica, nem deve sequer se conformar
a ela. Na verdade, num sentido muito próprio do Tractatus, a mecânica não
pode ser refutada, ou confirmada, por qualquer experiência possível; pois
nenhuma experiência possível pode fazer verdadeiras suas proposições, ou
torná-las falsas.
Assim, diz Wittgenstein que “a mecânica determina uma forma de descri-
ção do mundo ao dizer: todas as proposições da descrição do mundo devem ser
obtidas, de dada maneira, a partir de certo número de proposições dadas – os
axiomas da mecânica” (T, 6.341). Ela mesma, entretanto, nada diz sobre esse
mundo que permite colocar em forma unitária; ela pode ter, como também
pode a rede que é usada para descrever as manchas pretas sobre a superfície
branca, todas as suas propriedades especificadas a priori (T, 6.35). Pode-se
mudar de mecânica da mesma forma que se mude de rede, e o fazemos por
conveniência e necessidade. São traços essenciais dessa caracterização, então:
(i) o caráter em parte a priori da mecânica (assim como de toda lei científica)”,
[...] (ii) o caráter convencional, por assim dizer, da mecânica [...] que supõe,
de modo óbvio, um terceiro traço, a saber, (iii) o fato de que há sistemas
alternativos de mecânica”44.
Dito tudo isso, uma coisa é importante de ser notada: a mecânica no
Tractatus, como Bento Prado Neto bem indica, tem um caráter a priori, mas
este não é completamente a priori, ou seja, a mecânica ainda mantém relação
com elementos empíricos, ou, falando de maneira alternativa, apesar de seu
caráter prescritivo, ela ainda mantém relação com proposições com sentido,
verdadeiras, que figuram o mundo:

Há, assim, certamente algo de empírico nas ciências naturais, mas, quando
elas são formuladas na forma de leis, encontramos nelas também algo de
não puramente empírico, uma “construção lógica”. A ciência, enquanto

44 PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus, p. 92-3.


58

tal, é tão somente a totalidade das proposições verdadeiras, ao passo que


a mecânica é fundamentalmente um sistema de leis45.

Esse estatuto é parcialmente a priori; porém, por motivos que estão


além de Hertz.

Conclusão

Por mais que obviamente influente no pensamento de Wittgenstein, Hertz


não é suficiente para explicar aquilo que o Tractatus diz sobre a mecânica,

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sobre seu estatuto a priori e sobre sua relação com as ciências empíricas. Essas
proposições só podem ter seu sentido esclarecido se retomadas no contexto
tractariano em que foram escritas, levando-se em consideração as noções de
forma lógica, figuração e, como Bento Prado Neto indica, citando os textos
de João Vergílio Cuter, operação e séries formais. Nos parece difícil, então,
ver a mecânica hertziana como prototípica à noção tractariana de ciência.
Algumas coisas na obra de Wittgenstein se explicam a partir da influência de
Hertz, Boltzmann e da física do século XIX, porém, muitas especificidades
de sua filosofia não se subsumem ou resumem às referências que o autor
teve durante sua formação e trajetória intelectual. Por isso, parece-nos forte
demais afirmar, como Kjaergaard ensaia fazer, que Hertz é um dos respon-
sáveis pela “continuidade” entre a obra de juventude de Wittgenstein e sua
obra de maturidade, e que o método filosófico de ambos seria comum, uno e
compartilhado. No limite, tentar reduzir, ou dar a entender que aspectos do
pensamento de Wittgenstein se reduzem, seja a Hertz, seja a Frege ou Russell,
ou a qualquer um dos interlocutores do autor, faz com que se perca de vista
sua especificidade, sem a qual pouco se pode asseverar sobre sua importância
e sobre a forte influência que exerceu, e ainda exerce, sobre o pensamento
filosófico contemporâneo.

45 Ibid., p. 92.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 59

REFERÊNCIAS
HERTZ, Heinrich. Die Prinzipien der Mechanik. Leipzig: Johann Ambrosius
Barth (Arthur Meiner), 1894.

HERTZ, Heinrich. The Principles of Mechanics. Londres: Macmillan & Co.,


Ltd, 1899.

KJAERGAARD, Peter. Hertz and Wittgenstein’s Philosophy of Science.


Journal for General Philosophy of Science, v. 33, n. 1 (2002).
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PRADO NETO, Bento. O Estatuto A Priori da Mecânica no Tractatus. Cad.


Hist. Fil. Ci., série 3, v. 17, n. 1, p. 91-108, jan.jun, 2007. Disponível em:
https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/cadernos/article/view/583/462.
Acesso em: 15 set. 2023.

SANTOS, Luiz Henrique Lopes dos. A Essência da Proposição e a Essência


do Mundo. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus.
São Paulo: Edusp, 1993.

VIDEIRA, Antonio Augusto Passos; COELHO, Ricardo Lopes (Org.) Física,


Mecânica e Filosofia: o legado de Hertz. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Cadernos 1914 – 1916. Trad. Artur Morão. Lis-


boa: 70, 2004.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Notebooks 1914 – 1916. Trad. G. E. M. Ans-


combe. Nova York: Harper Torchbooks, 1969.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Hen-


rique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1993.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Werkausgabe Band 1 (Tractatus Logico-Phi-


losophicus, Tagebücher 1914-1916 und Philosophische Untersuchungen).
Berlin: Suhrkamp, 1989.
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AS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS
E A REVISÃO DA CONCEPÇÃO DE
‘PENSAMENTO’ DO TRACTATUS
Marcelo Carvalho1

Introdução
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O vasto percurso filosófico empreendido por Wittgenstein entre seu pri-


meiro livro, o Tractatus logico-philosophicus, publicado em 1921, e seu tra-
balho maduro, que encontramos nas Investigações Filosóficas e nos escritos
posteriores, é, certamente, fundamental para a compreensão de sua filosofia.
Mas o arco descrito por esse percurso faz com que ele seja relevante a partir
de uma perspectiva mais ampla, externa à leitura da obra de Wittgenstein e
aos especialistas em seus trabalhos: no Tractatus encontramos o que pode
ser caracterizado, sem muito receio, como a principal atualização do projeto
lógico-metafísico formulado inicialmente por Platão e Aristóteles, ajustando-o
às profundas transformações pelas quais passa a lógica a partir do final do
século XIX. A descrição de L. H. Lopes dos Santos é ainda mais contundente:
esse trabalho se situa deliberadamente na confluência de duas tradições das
mais veneráveis e significativas da história da filosofia. Nele se encontrariam
a tradição crítica, em que se situam o ceticismo e Kant, e a tradição lógica, que
inclui Parmênides, Platão, Aristóteles, Frege e Russell2. Nas Investigações
filosóficas, por sua vez, o que se propõe é uma das críticas mais radicais que
a concepção lógico-metafísica do Tractatus jamais encontrou. Contra esse
pano de fundo, a descrição da contraposição das Investigações ao Tractatus
ganha a relevância de um ajuste de contas com a maior parte da história da
filosofia ocidental, na qual seus pressupostos mais amplamente irrefletidos e
aceitos são trazidos à luz e questionados, dentre eles a relação entre lógica e
ontologia, o conceito de essência e sua relação com a linguagem, os argumen-
tos transcendentais e o conceito de objetividade. No núcleo desse movimento
se encontra a revisão por Wittgenstein, em seu trabalho maduro, do papel
atribuído ao “pensamento” pelo Tractatus e pela tradição a ele ligada.

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP


2 SANTOS, L. H. Lopes. A Essência da Proposição e A Essência do Mundo. In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus
logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993, p. 13-14.
62

1. O processo de sublimação e o pensamento


A delimitação do debate sobre o “pensamento” nas Investigações filo-
sóficas envolve, entretanto, uma dificuldade. Dois terços do livro tratam, de
maneira direta ou indireta, do “pensamento”. Entre os parágrafos 243 e 693
(o final do livro) Wittgenstein elabora uma longa investigação sobre o pen-
samento a partir de diferentes perspectivas: o vocabulário das sensações (e
a linguagem privada), a imaginação, a intenção, o querer dizer. Parte desse
material tem ainda a forma de percurso negativo que marca o início do livro,
mas em sua etapa final, a partir do parágrafo 422, encontramos uma investi-
gação direta e, por assim dizer, construtiva da gramática dos conceitos psico-

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lógicos3. A descrição e compreensão desse material é, por certo, relevante,
mas o que nos interessará aqui é um momento anterior e mais restrito do livro,
no qual esse mesmo tema, o “pensamento”, é apresentado por meio de refe-
rências e críticas diretas ao Tractatus. Trata-se da narrativa da sublimação da
lógica, entre os parágrafos 89 e 107. Essa é uma passagem bastante particular
do livro, cuja compreensão é facilitada pela explicitação do contexto de sua
escrita e de seu papel no fluxo das Investigações.
Depois de muitas tentativas frustradas de escrever “seu livro”4, em
1936, Wittgenstein foi para uma cabana isolada em Skjolden, um fiorde na
Noruega, e redigiu os 88 parágrafos iniciais do que seriam as Investigações
filosóficas. Ele retornou à Áustria no Natal daquele ano, claramente satisfeito
com o resultado, e chega a dar uma cópia desse texto, seu novo livro, como
presente para sua irmã. Não é implausível supor que, em algum momento,
ele tenha considerado que esses 88 parágrafos fossem um livro completo. Ali
ele apresenta o conjunto mais relevante de suas concepções e aponta para boa
parte dos temas que ele depois trataria de maneira mais ampla nos parágrafos
subsequentes. De qualquer modo, em 1937, Wittgenstein resolve voltar à
Noruega para continuar seu livro e o problema que se coloca é compreender
qual a continuação do material bem estruturado e fechado que escrevera no
ano anterior.
Qual o desdobramento da apresentação inicial de suas concepções sobre
a linguagem que Wittgenstein considerou, então, adequado? O problema que
o texto se propõe nesse ponto está diretamente relacionado aos parágrafos
anteriores, mas de uma maneira bastante particular. Feita a descrição de como
operamos com a linguagem, restaria compreender como tantas pessoas, inclu-
sive “o autor do Tractatus”, foram levadas a afirmações sobre a linguagem
que a apresentam tão distantes da maneira como ela é efetivamente usada em
nossas ações e tão diferentes do que se depreende dos 88 parágrafos iniciais

3 CARVALHO, M. Posfácio às Investigações Filosóficas. In: WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.


São Paulo: Fósforo, 2022, p. 390ss.
4 Ibid., p. 348-350.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 63

das Investigações. Tais concepções se envolvem em um processo de “subli-


mação da lógica de nossa linguagem”, em meio ao qual se enredam em erros
e ilusões sobre a constituição da linguagem, seu contexto e seu uso5.
A abordagem do problema da sublimação envolve também uma mudança
no estilo do texto. O núcleo inicial das Investigações, escrito em 1936, se apre-
senta em um formato arrojado de diálogo – no qual os interlocutores muitas
vezes estão ocultos – que se desdobra a partir da citação inicial de Agostinho,
situada no início do livro. Wittgenstein apresenta suas concepções de maneira
indireta, em meio à contraposição e crítica de concepções associadas ou deri-
vadas do texto de Agostinho. Esse diálogo em tom negativo, em meio ao qual
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vislumbramos a nova concepção sobre a linguagem proposta nas Investiga-


ções, dá lugar, a partir do parágrafo 89, a uma narrativa: o texto passa a des-
crever um percurso, executado em primeira pessoa do plural, através do qual
vislumbramos as sucessivas escolhas, tentações e ilusões que nos conduzem a
um processo contínuo de sublimação da lógica, até o ponto em que o conflito
entre tais concepções e nossas práticas se torna “insuportável”6. A forma
narrativa amplia a dramaticidade do texto e propõe uma espécie de anatomia
da ilusão e do erro a partir da identificação das sucessivas “tentações” com
as quais nos confrontamos e de sua obscuridade e sedução. O processo de
sublimação e o contexto inóspito, incompatível com a vida, a que ele conduz
é uma experiência vivida e compartilhada com o leitor e a leitora do livro. No
núcleo dessa narrativa está o Tractatus e as ilusões de seu autor7.
O percurso de sublimação parte de um tipo de investigação bastante
particular, exemplificada por uma nova citação de Agostinho, sobre o tempo,
que marca o reinício do livro no parágrafo 89: é como se buscássemos “ver

5 STERN, D. As Investigações Filosóficas de Wittgenstein. São Paulo: Annablume, 2012, p. 184ss.


6 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas (IF), 107. A estrutura narrativa é dada por uma temporalidade
interna ao texto, que marca a sucessão de escolhas que conduzem à sublimação: “parecia” que a lógica tinha
uma profundidade especial (IF, 89); “agora pode-se ter a impressão de que haveria algo como uma análise
última” (IF, 91); “outras ilusões se conectam” à de que o pensamento é algo singular (IF, 96); “absolutamente
não nos ocorre o pensamento” de retirar os óculos coloridos de nosso nariz (IF, 103); “aqui é difícil manter a
cabeça erguida” (IF, 106); “o conflito [entre a linguagem e nossas exigências] se torna insuportável” (IF, 107).
7 Um exemplo dos vários equívocos consolidados na leitura da narrativa wittgensteiniana da sublimação da lógica,
que tornam nossa tarefa ainda mais difícil, é a afirmação de G. Baker e P. Hacker, e de muitos outros leitores,
de que a concepção de análise descrita em 90b está sendo efetivamente afirmada por Wittgenstein (em lugar
de ser um dos passos da narrativa da sublimação à qual ele se contrapõe): “o §90 (b) concede que alguns dos
mal-entendidos que a filosofia deve esclarecer podem ser removidos substituindo uma expressão por outra, como
na Teoria das Descrições de Russell. Lá, as preocupações com falhas de referência e lacunas no valor da verdade,
decorrentes de analogias entre nomes próprios e descrições definidas singulares, são eliminadas substituindo
‘O ...’ por ‘Existe um e apenas um...’. Esse procedimento pode ser chamado de ‘análise’, pois às vezes parece
decompor algo. (Observe a relação com PI §§60–4.) Mas, por implicação, essa não é a concepção de análise
que informou o atomismo lógico, mesmo que tenha sido inspirada por esse paradigma. Para tal análise, é uma
investigação gramatical – não, como Russell e o jovem W. supuseram, uma investigação sobre a natureza das
coisas.” BAKER, G. & HACKER, P. Wittgenstein: Understanding and Meaning - Volume I, Part II of an Analytical
Commentary on the Philosophical Investigations: Exegesis §§1-184. Oxford: Blackwell Publishing, 2009, p. 203.
64

através dos fenômenos: porém, nossa investigação não se dirige aos fenôme-
nos, mas sim, por assim dizer, à ‘possibilidade’ dos fenômenos”8. A inves-
tigação “não nasce de um interesse pelos fatos que se produzem na natureza,
nem da necessidade de compreender nexos causais, mas sim de um impulso
para entender o fundamento, ou a essência, de tudo o que é empírico”9. Essa
investigação não é, então, empírica; não nos voltamos àquilo que é efetivo,
mas gramatical10: ela nos conduz aos enunciados que fazemos sobre nossa
experiência e, daí, à “impressão de que haveria algo como uma análise última
das nossas formas de linguagem”11, na qual sua articulação com o mundo se
explicitaria. A sublimação nos conduz à procura por algo oculto por detrás do

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uso efetivo da linguagem, uma estrutura fixa e rígida que seria condição ao
uso. Ao final, nos encontramos frente à “pergunta pela essência da linguagem,
da proposição, do pensamento”12, a mesma pergunta proposta por Platão,
Aristóteles, Russell e pelo Tractatus13.
No momento central do processo de sublimação, Wittgenstein situa certa
concepção sobre o pensamento, que aparece como resposta à ilusão de que
seria necessária uma entidade intermediária entre as expressões da linguagem
e o mundo:

‘A proposição, uma coisa notável!’: aí já reside a sublimação própria a toda


essa concepção. A tendência a supor uma entidade intermediária pura entre
o sinal proposicional e os fatos. Ou ainda a querer purificar, sublimar, o
próprio sinal proposicional. – Pois, na medida em que nos lançam à caça
de quimeras, nossas formas de expressão nos impedem de ver, de diversas
maneiras, que estamos lidando com coisas usuais14.
“O pensamento deve ser algo singular.”15

O pensamento se colocaria, nesse processo de sublimação, entre o sinal


proposicional e o fato para o qual aponta. Na linguagem concebida como
8 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 90. Wittgenstein escolhe, curiosamente, colocar uma citação de
Agostinho nesse reinício do texto; cf. Confissões, Livro XI, xiv, 17: “o que é o tempo, então? Se ninguém perguntar,
eu sei; mas se quiser explicar a alguém que me pergunte, não sei” (a citação aparece em latim nas Investigações,
§89 e é apresentada aqui na tradução de L. Mammì, ed. Penguin Classics Companhia das Letras, p. 319).
9 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 89.
10 A afirmação de que a investigação é gramatical parece ter duas justificativas imediatas: é assim que Agostinho
procede (ele elenca os usos que fazemos do conceito de tempo) e, de maneira mais relevante, rata-se de uma
investigação daquilo que é logicamente possível e, portanto, de uma investigação da gramática da linguagem
(a relação sobre linguagem e possibilidade será elaborada adiante por Wittgenstein, como veremos).
11 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 91.
12 Ibid., 91.
13 A metáfora da ocultação está presente no Tractatus: “a linguagem é um traje que disfarça o pensamento.
E, na verdade, de um modo tal que não se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento
trajado” (T, 4.002); cf. também T, 4.011.
14 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 94.
15 Ibid., 95.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 65

figuração ou representação, o pensamento desempenha o papel de agente


último: ele é o puro intermediário sem o qual a fala é apenas som indistinto.
Não há significado ou uso da linguagem sem o pressuposto do pensamento.
Mais do que isso, entretanto, o elemento decisivo que conduz a investigação
à suposição de que o pensamento é algo único é sua suposta posição por detrás
dos fatos efetivos, da realidade, como um domínio no qual se apresenta, para além
do real, o possível. A sublimação se explicita completamente nesse movimento
em que a proposição deixa de ser algo cotidiano, marcando sua desvinculação
com o uso efetivo da linguagem. O núcleo da sublimação está neste voltar as
costas para os fatos e se perguntar pelo possível. Wittgenstein explica: a singu-
laridade do pensamento está no paradoxo de que “pode-se pensar o que não é o
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caso.”16 O pensamento traria em si não apenas a possibilidade de figurar o que


é efetivo, mas, para além dele, por detrás dele, o conjunto de todas as possibili-
dades, dadas a priori. Isso seria a contrapartida da possibilidade de pensarmos
o que é o caso, o que ocorre, mas também aquilo que não ocorre agora, nunca
ocorreu e talvez nunca venha a ocorrer. O “pensável” traria consigo a delimitação
metafísica daquilo que, ainda que não atual, é possível. O atual seria apenas uma
parcela desse domínio mais amplo e estável do qual é destacado.
A imagem de algo sublime já se delineia diante de nós: da perspectiva do
pensamento, em lugar da mudança, do acaso, das circunstâncias, encontraría-
mos o pano de fundo fixo e estável de todas as possibilidades de estados de
coisas. Aí estaria o “fundamento de tudo o que é empírico”: olhando “através
dos fenômenos”, para a “sua possibilidade”, buscamos “a pureza cristalina
da lógica”, a “ordem a priori do mundo”, que não se confunde com a preca-
riedade do fenômeno e da experiência.
O Tractatus é visado de maneira explícita por essa descrição17:

O pensamento está envolto por um halo. – Sua essência, a lógica, apresenta


uma ordem e, na verdade, a ordem a priori do mundo, isto é, a ordem das
possibilidades que mundo e pensamento precisam ter em comum. Mas
essa ordem, assim parece, precisa ser sumamente simples. Ela é anterior
a toda experiência; precisa se infiltrar por toda a experiência; nenhuma
opacidade ou incerteza empírica pode aderir a ela. — Ela precisa ser, pelo
contrário, do mais puro cristal. Esse cristal, porém, não aparece como uma
abstração; mas como algo concreto, aliás, como o que há de mais concreto,
de mais duro, por assim dizer (Tractatus Logico-Philosophicus, 5.5563)18.

16 Ibid., 95.
17 Ainda que o Tractatus seja o principal interlocutor da narrativa da sublimação da lógica, ela inclui um vasto
número de referências implícitas.
18 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 97. O parágrafo 5.5563 do Tractatus diz o seguinte: “de
fato, todas as proposições de nossa linguagem corrente estão logicamente, assim como estão, em perfeita
ordem. O que há de mais simples, que nos cumpre aqui especificar, não é um símile da verdade, mas a
própria verdade plena. (Nossos problemas não são abstratos, mas talvez os mais concretos que existam.).”
66

O pensamento, concebido como a ordem a priori do mundo, anterior à


experiência, teria em comum com o mundo a ordem de suas possibilidades.
O mundo, que se apresenta como atualidade, poderia, assim, ser descrito da
perspectiva da ordem estável que lhe seria subjacente, aquela que se mostra
no pensamento. A sublimação procura justamente por essa passagem da “opa-
cidade e incerteza” da experiência para a pureza cristalina do pensamento.
Por meio dela, viramos de costas para a experiência mundana e voltamos
nosso olhar na direção do possível e da totalidade estável que ele delineia19.

2. A concepção de pensamento no Tractatus

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Consideremos brevemente a concepção de pensamento elaborada no
Tractatus, de modo a explicitar os elementos da crítica proposta nas Investi-
gações Filosóficas. O Tractatus parte da descrição de um esboço de ontologia,
no qual se afirma que “o mundo é a totalidade de fatos, não das coisas”20.
É contra esse pano de fundo que se afirma, no parágrafo 2.1, que “nós nos
fazemos figurações dos fatos”21. Não há figuração ou linguagem na quase-
-ontologia22 descrita até o parágrafo 2.1. Elas só aparecem no texto a partir
do “fazer” que ali se descreve, e que se restringe àquilo que é possibilitado
pelo mundo concebido a partir da descrição magra que se apresentara até ali:
há fatos; podemos, então, não mais do que usar um fato como figuração de
outro fato que tenha a mesma forma lógica que ele23. Descrito dessa maneira,
fica claro que a “ontologia” com a qual se inicia o Tractatus é o que sustenta
a caracterização da figuração e da linguagem apresentada a seguir: é porque
o mundo é um mundo de fatos que a figuração se restringe a utilizar um fato
para figurar outro24. Dessa “ontologia” resulta, então, que temos, de um lado,
o fato que será figurado e, de outro, a figuração, que é ela própria um fato, e

19 Sobre a sublimação no Tractatus, Luiz H. Lopes dos Santos comenta: “tudo aquilo que concerne à natureza
intrínseca do símbolo, ao modo particular de produzir materialmente o símbolo, é logicamente desprezível. A
essa desmaterização do símbolo, Wittgenstein chamará ironicamente “sublimação do sinal” nas Investigações
Filosóficas. Sem os entraves materiais do sinal, o produto dessa sublimação, a proposição, pode sem problemas
reclamar para si o título de figuração lógica do mundo” (“A essência da proposição e a essência do mundo”, p. 74).
20 WITTGENSTEIN, L. Tractatus, 1.1.
21 Ibid., 2.1. No original: “Wir machen uns Bilder der Tatsachen.” A tradução aqui apresentada foi revista
pelo autor.
22 Utiliza-se aqui a expressão “quase-ontologia” pois, ainda que o livro se inicie com uma série de proposições
sobre “o mundo”, parece equivocado atribuir ao Tractatus o projeto de uma ontologia; o texto se limita a
delinear o que seria implicado pela ideia de necessidade lógica.
23 Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus, 2.18.
24 Coloca-se, então, de imediato, a pergunta pelas razões da caracterização do mundo como uma totalidade de
fatos; a resposta a esta questão parece estar diretamente ligada ao argumento delineado em 2.0121: “a lógica
trata de cada possibilidade e todas as possibilidades são fatos seus”. Que o mundo seja uma totalidade de fatos,
não de coisas, implica compreendê-lo como um domínio fechado de possibilidades, que exclui o acaso (“pareceria
como que um acaso se à coisa, que pudesse existir só, por si própria, se ajustasse depois uma situação”).
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 67

que se dispõe a ser tomada como instrumento por ter em comum com aquilo
que será figurado a mesma forma lógica, “a forma da realidade”. A única
restrição para que se use um fato como figuração de outro fato é que ambos
tenham a mesma forma lógica.
O conceito de pensamento é introduzido a partir da identificação da
forma mais geral de figuração25. Em um recorte que evidencia a sucessão
dos passos propostos pela argumentação do Tractatus, podemos identificar
como o pensamento ocupa a posição central na constituição da figuração e
da linguagem:
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2.19 A figuração lógica pode afigurar o mundo.


3 A figuração lógica dos fatos é o pensamento.
3.01 A totalidade dos pensamentos verdadeiros é uma figuração do mundo.
3.02 O pensamento contém a possibilidade da situação que ele pensa. O
que é pensável é também possível.
3.5 O sinal proposicional empregado, pensado, é o pensamento.
4 O pensamento é a proposição com sentido.

A forma mais geral e pura de figuração, de uso de um fato como figu-


ração de outro fato, se apresenta como “pensamento”, que pode afigurar o
mundo. O mundo é concebido, assim, como uma parcela do possível, do que
pode ser pensado (a saber, como a totalidade dos pensamentos verdadei-
ros). Como pode, entretanto, o pensamento conter a possibilidade da situação
que ele pensa? Isso é o principal desdobramento da caracterização inicial da
figuração: como usamos um fato como figuração de outro fato e eles têm a
mesma forma lógica, tudo aquilo que se apresenta como possibilidade de
configuração no fato usado como figuração é também possível no figurado.
Como o pensamento é figuração lógica dos fatos, tudo o que é possível no
pensamento é, então, possível no mundo que ele figura. Uma proposição falsa
apresenta, assim, um fato que não ocorre no mundo, mas que descreve um
estado possível de coisas.
O sinal proposicional é, como vimos, apenas um fato. O que o constitui
como figuração e introduz linguagem e sentido em um mundo de fatos é seu
“emprego” pelo pensamento. Sem pensamento não há linguagem ou figuração.
O pensamento é a própria projeção de um fato no outro, por meio da qual ele
se torna figuração. Essa passagem dos fatos no mundo para o pensamento, do
efetivo para o possível, nos joga, supostamente, para além da precariedade e
da mutabilidade da mudança do mundo atual, que passa a ser visto como um
recorte da totalidade estável posta pelo pensamento. Nossa investigação do
fenômeno poderia, então, deixar de se preocupar com as especificidades do

25 Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus, 2.182: “toda figuração é também uma figuração lógica”.
68

que efetivamente acontece e se postar, tranquila, da perspectiva da totalidade


fixa dos fatos possíveis26. O mundo seria, assim, visto de seu avesso, a partir
da estrutura sublime, de puro cristal, que se ocultaria por detrás do efetivo.
Vale ressaltar, de passagem, a maneira como o movimento de sublimação
da linguagem operado no Tractatus renova a tradição (que vem de Platão e
Aristóteles) de restrição da presença humana na linguagem. Pensar o sentido
da proposição, usar um fato como figuração de outro fato, é um ato, feito,
segundo 2.1, por sujeitos não definidos, “nós”. Mas essa ação, no instante em
que se revela indispensável, se explicita, também, vazia: ela se resume a usar
um fato qualquer como figuração de outro que tem sua mesma forma lógica.

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A linguagem é posta por uma ação (humana, talvez), mas não é afetada por
ela, como já era o caso no projeto platônico-aristotélico de instauração das
noções de discurso e verdade a partir de sua relação com o Ser.

Conclusão

Como se constrói, então, nas Investigações filosóficas sua contraposição


ao Tractatus e à concepção da lógica de nossa linguagem como algo sublime?
O que Wittgenstein nos propõe no lugar da concepção sublime de nossa lin-
guagem? As respostas a essas questões já estão dadas na descrição inicial do
problema: em lugar de erigirmos uma metafísica dos fenômenos possíveis,
somos chamados de volta ao solo áspero da precariedade e da particularidade
do que acontece, da experiência e do uso da linguagem. Nos termos do pará-
grafo 108 e do giro copernicano que ele ironicamente insinua:

A ideia preconcebida de uma pureza cristalina só pode ser afastada se


damos um giro em toda a nossa perspectiva. (Poder-se-ia dizer: a perspec-
tiva recisa ser girada, mas tomando como eixo nossas necessidades reais.

Esse giro não pode ser descrito sem que nos remetamos aos 88 parágrafos
iniciais do livro, dos quais a narrativa da sublimação da lógica é uma coda.
Ali Wittgenstein se contrapõe à atribuição de qualquer referencialidade à lin-
guagem: o significado não se constitui por meio de uma relação qualquer com
fatos ou objetos, mas unicamente por meio do uso que fazemos de palavras
e expressões em meio a nossas práticas.

Como a linguagem se constitui em meio a nossos usos das palavras, através


dos jogos que jogamos com as palavras, ela está associada a essas práticas,
não à estrutura essencial do ser ou do pensamento. Não se trata, por certo,
de afirmar um relativismo segundo o qual nosso arcabouço conceitual e,

26 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas, 89.


DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 69

eventualmente, a própria verdade, definem-se por convenção. Trata-se


de constatar que ali onde a metafísica clássica procurava uma relação
essencial entre linguagem e ser não há nada senão práticas humanas27.

A compreensão da linguagem não se fará, então, como resultado do


desvelamento da relação entre nomes e objetos, palavras e coisas, mas pela
descrição dos jogos de linguagem e de suas relações. É nesse movimento
mais fundamental que encontramos a ancoragem da ruptura entre lógica e
metafísica (ontologia) que torna a suposição do pensamento como interme-
diário algo que simplesmente deixa de ter lugar: não há duas ordens distintas
a serem ligadas, há apenas prática humana, que é ao mesmo tempo regrada
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e constituidora de regras28.
A constituição de sentido será encontrada, então, não em uma relação
fixada entre fatos e fatos, entre linguagem e um mundo dado, que pressupõe
o pensamento como intermediário, mas no seio cotidiano das práticas huma-
nas, no uso de palavras como instrumento das ações humanas, nos jogos de
linguagem que só existem como parte da vida de pessoas como nós aqui,
agora, no registro que ilusoriamente parece derivado, em nossas ações, em
nossas práticas, que passam, nas mãos do autor das Investigações, a serem
vistas como, ao mesmo tempo, significativas e constituidoras de significado.
Caso se queira descrever o problema que se coloca à nossa frente de
maneira mais dramática, mas não equivocada, a virada copernicana de Witt-
genstein recusa a concepção sobre a relação entre teoria e prática presente na
tradição de investigação sobre a linguagem. É disso que se trata, em grande
medida, no debate sobre regras e no conjunto das Investigações. O giro coper-
nicano de Wittgenstein, em um só movimento, nos joga de volta para o con-
texto cotidiano de nossas ações e elimina a pressuposição de algo oculto, de
um domínio metafísico de possibilidades, e tenta nos mostrar que estamos
lidando, todo o tempo, com coisas usuais, essas coisas que fazemos agora com
as palavras, e cuja descrição não pressupõe erigirmos uma metafísica do que
seria eterno e oculto, da totalidade do possível. A descrição de como usamos
a linguagem terá que se resolver a partir dos elementos que ali estão: o que
fazemos, como agimos e reagimos e como, nesse processo, constituímos toda
a normatividade e significação que estruturam nossa fala como linguagem.
Quanto ao pensamento, resta-nos apenas a descrição dos jogos que joga-
mos com esse termo. Ele é uma expressão que se constitui como significativa
da mesma maneira que qualquer outra. Compreendê-lo pressupõe, então,
compreender as práticas humanas em que ele se situa, e não uma qualquer
estrutura essencial da linguagem em sua relação com o mundo.
27 CARVALHO, M. Posfácio às Investigações Filosóficas, p. 360-1.
28 Ibid., p. 370-1.
70

REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões. Trad. de L. Mammì. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2017.

BAKER, G. & HACKER, P. Wittgenstein: Understanding and Meaning -


Volume I, Part II of an Analytical Commentary on the Philosophical Investi-
gations: Exegesis §§1-184. Oxford: Blackwell Publishing, 2009.

CARVALHO, M. Posfácio às Investigações Filosóficas. In: WITTGENS-

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TEIN, L. Investigações Filosóficas. São Paulo: Fósforo, 2022.

ENGELMANN, M. L. Wittgenstein’s Philosophical Development. New York:


Palgrave Macmillan, 2013.

SANTOS, L. H. Lopes. A Essência da Proposição e A Essência do Mundo.


In: WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo:
Edusp, 1993.

STERN, D. As Investigações Filosóficas de Wittgenstein. São Paulo: Anna-


blume, 2012.

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Trad. de G. Rodrigues e T.


Tranjan. São Paulo: Fósforo, 2022.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Trad. Luiz H. L dos


Santos. São Paulo: Edusp, 1995.
A EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
FREIREANA E O HABEAS CORPUS
DE WITTGENSTEIN PARA OS
SIGNIFICADOS “ENCARCERADOS”:
a (re)construção da realidade
Francisco Estefogo1
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Introdução

A retórica beligerante, colonizadora, negacionista e preconceituosa,


mesmo já na segunda década do suposto “desenvolvido” século XXI, tem
sido a tônica dos principais acontecimentos contemporâneos, singularmente,
na ambiência das instituições sociais mandatárias. Por conseguinte, a uni-
formização, o silenciamento e o daltonismo alusivo às desigualdades étnico-
-culturais, as injustiças sociais, bem como os devaneios opressores políticos
e econômicos são as palavras de ordem da vez no que se refere a como, de
alguma forma, as linguagens representam o mundo nos dias de hoje e, destarte,
afetam a nossa percepção sobre a realidade. Como consequência, a opressão, o
autoritarismo, a regulação, a disciplina e a intolerância, dentre outras coações
homogeneizadoras, desenham-se num horizonte sombrio e uniforme.
Avesso aos sistemas disciplinares da sociedade e às asperezas da mera
sobrevivência, configurações de um modo de vida uniformizado, reprodutor
e inexpansivo, Freire2 propõe a educação libertária, na qual os partícipes
de toda a atividade educativa vivenciam as práticas escolares de maneira
igualitária, colaborativa, democrática e emancipadora, afugentando, de modo
consequente, as formas dominantes e os mecanismos disciplinares de controle
da vida em sociedade. Nessa linha, todos os autores envolvidos na ação escolar
são responsáveis pela construção dos significados e, portanto, de uma nova
realidade, dado o ensejo que todos, a rigor, agem na esfera social mediante a
linguagem. Num mundo imerso no pesadelo das ameaças de retorno ao auto-
ritarismo e de ideias obscurantistas, a proposta freireana sinaliza ser uma fer-
ramenta civilizatória e insurgente frente ao anunciado retrocesso democrático.

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.


2 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
72

Freire3 também entende que o desejo e a vontade de construir a própria


história são, de modo igual, as bases vitais para resistir a coerções dominadoras
e questionar o status quo, considerando que cada modo de viver, pensar e agir
seja respeitado e possa ser o manancial de novos significados e realidades.
Para tanto, as propostas freireanas se pautam nas palavras, em razão de ser
por intermédio das ações das linguagens, singularmente, no bojo do diálogo,
que a reflexão pode ser desenvolvida e a ação transformadora e emancipadora
engendrada4. Em suma, a proposta da educação libertária freireana5 diz
respeito à (re)construção de significados e às narrativas ancoradas na histori-
cidade, na prática, na tomada de consciência, na subjetividade e no coletivo,

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com vistas às atividades revolucionárias e transformadoras.
Nessa mesma toada, a filosofia de Wittgenstein6 também oportuniza
a reflexão sobre a suposta rigidez e o encarceramento dos sentidos que, de
algum modo, circunscritos pelas construções sociais, sedimentam, à primeira
vista, a inflexibilidade dos dogmas, das doutrinas e das prescrições dos modos
de viver. No reverso, a partir das concepções wittgensteinianas, a linguagem
em uso permite a construção de novos sentidos e conhecimentos, e, em con-
sequência, de novas realidades, componentes fundamentais para a origem
de transições, transgressões e transformações. A linguagem é um artefato
volátil e pluricultural de concepção do mundo, visto que seu papel de retratar
a sociedade não se restringe somente aos significados estáticos que os itens
lexicais, dentre outros marcos linguísticos, historicamente fomentam. Con-
forme Wittgenstein, não é possível pressupor um sentido meramente a partir
da sua forma, mas como ele é usado no meio social.
Como os conceitos são reformulados cotidianamente frente ao contexto
sócio-histórico-cultural, Wittgenstein recusa qualquer naturalização de signi-
ficado precedentemente dado a uma palavra, posto que a linguagem não é um
fenômeno social fixo e fossilizado, como se encarcerado numa senzala, mas,
na contramão, é livre e fluído. Com base na alegoria de um “habeas corpus”
do aprisionamento dos sentidos já construídos ao longo da história, o processo
de sociabilização viabiliza a construção de novos conceitos, o que garante e
resguarda a autonomia da fluidez e da liberdade que o significado da palavra
pode desencadear e se espraiar. Amparado na metáfora da sensação da dor,
Wittgenstein esclarece os possíveis problemas ao se considerar a linguagem
como um fenômeno rígido e prescritivo:

3 Id. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 2008.
4 OLIVEIRA, R. L. Um diálogo com Freire e Foucault sobre poder e saber. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
5 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido.
6 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Trad. T. Tranjan e G. Rodrigues. São Paulo: Fósforo, 2022.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 73

“Mas você certamente admitirá que há uma diferença entre o comporta-


mento de dor com dor e o comportamento de dor sem dor.” – Admitir?
Que diferença poderia ser maior! – “E, no entanto, você sempre chega ao
resultado de que a sensação ela própria é um nada.” – É claro que não.
Ela não é um algo, mas também não é um nada! O resultado foi apenas
que um nada presta os mesmos serviços que um algo sobre o qual não se
pode dizer nada. Nós apenas rejeitamos a gramática que, aqui, quer se
impor a nós. O paradoxo desaparece apenas quando rompemos radical-
mente com a ideia de que a linguagem funciona sempre de uma maneira,
que ela serve sempre ao mesmo propósito: veicular pensamentos – sejam
eles pensamentos sobre casas, dores, bem e mal, ou o que quer que seja7.
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De acordo com Wittgenstein, essa dinâmica constantemente corrente


da linguagem se configura a partir da interface entre a posição individual do
sujeito atrelada à incumbência indispensável da sociedade. Por ser decor-
rente da linguagem em uso, ou seja, pela e na práxis humana, o contexto
sócio-histórico-cultural é terminantemente central no processo da construção
dos sentidos. No que toca à compreensão dos significados construídos, pela
perspectiva wittgensteiniana, é por intermédio da ação humana em relação à
palavra que a capacidade de entendimento se materializa.
Tendo em mente que a transformação do mundo passa igualmente pela
transformação dos conceitos, este capítulo objetiva refletir sobre a convergên-
cia entre os pressupostos teórico-filosóficos acerca da educação libertária8 e
a condição de liberdade e fluidez do processo de produção dos significados9,
de modo a desconstruir prisionais teorias enrijecidas ao longo do percurso
da humanidade. O foco é trazer à baila como as relações humanas produzem
significados e, portanto, engendram novas realidades e rompem com o que, a
priori, está definido como padrão, comungando, então, com o eixo da educa-
ção libertária freireana10, na qual todos os agentes da teia social são responsá-
veis pela (re)edificação da história cujo roteiro se estabelece inevitavelmente
pelas e nas ações das linguagens, que são sempre vivas.
Para tanto, primeiro serão abordadas as principais circunstâncias rela-
cionadas à constituição da educação libertária de Freire11. Na sequência,
articulada a essa discussão e por meio da metáfora de um “habeas corpus”,
as concepções de Wittgenstein serão explanadas, em particular, no tocante

7 Ibid., §304.
8 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
9 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
10 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
11 Id. Pedagogia do oprimido.
74

às formas de vida e aos jogos de linguagem12, elementos catalisadores da


gênese de significados, contextualizados e incorporados nas multidiversas
práxis comunicativas.
Por final, reflexões serão elaboradas no sentido de aprofundar o enten-
dimento sobre as interfaces dos dois filósofos relacionadas à conexão da
liberdade de configuração dos sentidos, no que tange à originalidade, e ao
ineditismo da práxis humana para o engendramento de transformações da
realidade, calcada nos cambiantes mecanismos da linguagem e seus desdo-
bramentos nas relações sociais.

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1. Educação libertária

Com a funesta organização de grande parte da hodiernidade, no que diz


respeito aos fossilizados modos de ser e agir no mundo, os meandros esco-
lares, normalmente, não fogem à regra. Em muitos cenários educacionais,
o paradigma escolar se estabelece de forma que o estudante não é somente
apenas exposto a conteúdos acumulados ao longo da história, mas entende
que precisa de outra pessoa (“conhecedora, ou mais sábia”, como diriam os
gregos) para ensinar, saber ou pensar. Consequentemente, o sistema de ensi-
no-aprendizagem, de algum jeito, petrifica-se como um procedimento de mão
única, no qual quem sabe, teoricamente, o professor (“o sábio”) “ensina”, e
o aluno, passivamente, em tese, “aprende”. Como párias estáticas, por esse
prisma da educação reprodutora, os estudantes apenas observam o mundo,
como sustenta Freire: “é fundamental, contudo, partirmos de que o homem,
ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com
o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz
ser o ente de relações que é”13.
À luz desse padrão de conduta educativa profundamente verticalizada,
Freire14 entende a ação docente, ainda comum nos dias de hoje, como um con-
glomerado de comunicados e depósitos de conteúdos que são pacientemente
memorizados e meramente repetidos pelos educandos. Trata-se, na verdade,
da educação bancária15 que apenas oportuniza o movimento de os alunos
receberem a vulga “matéria” para, na sequência, depositá-la, guardá-la e repro-
duzi-la, geralmente, em provas e exames. Nessa operação, o elo de poder,
autoritarismo e servidão se estabelecem, consolidam-se e se capilarizam num

12 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.


13 FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, (p.39)
14 Id. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados:
Cortez, 1989.
15 Id. Pedagogia do oprimido.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 75

círculo vicioso. Esse sistema dominador e prescritivo da educação, munido de


poder voltado para alienação e opressão, à primeira vista, tolhe o estudante
de condições profícuas, de resistência e expansão, para transformações e (re)
criações. A falta da consciência da habilidade e da potência de tomar decisões
é corroborada por Freire com os seguintes dizeres:

Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em


que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade
organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem
o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das
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decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples,
mas a ele apresentadas por ume elite que as interpreta e lhas entrega em
forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva
seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massifica-
ção, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito.
Rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se16.

De acordo com Freire17, como os seres humanos são os verdadeiros


agentes (re)construtores da história, os processos educativos deveriam ser
viabilizados a toda coletividade, de modo que os saberes escolares possam
ser ferramentas para fomentar a transformação, de forma democrática e, pos-
sivelmente, igualitária. Na perspectiva freireana, a educação, como agente
transformativo e (re)criador, deveria inspirar mudanças radicais na sociedade,
na economia, na ciência, na cultura, nas relações humanas e na busca dos
direitos, dos sonhos e, seguramente, da liberdade.
Nesse sentido, Freire18 preconiza a educação humanizada e emancipa-
dora, ao estimular a participação ativa, agentiva e criativa na produção dos
saberes. A centralidade da proposta freireana reside na libertação dos atos
de dominação e coisificação do indivíduo de modo que as relações sociais,
sobretudo e começando na escola, sejam mais equânimes, horizontais e dig-
nas. Destarte, urge que se proponham ações docentes permeadas por lingua-
gens que possibilitem o engendramento de um fluxo livre e criativo de novas
oportunidades e realidades. É nesse movimento que a visão de linguagem de
Wittgenstein19 se converge com a educação libertária de Freire20 dado o fato
de que a linguagem é uma construção social, sem fronteiras, de ordem livre,
líquida e em constante evolução.

16 Id. Educação como prática da liberdade, p. 43.


17 Id. Pedagogia da esperança.
18 Ibid.
19 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
20 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
76

2. O habeas corpus para os significados “encarcerados”

Wittgenstein21 recusa a lógica formal e estática da linguagem uma vez


que os sentidos e os conhecimentos são oriundos da relação do sujeito com a
coletividade multidiversa e pluricultural, num determinado contexto sócio-his-
tórico-cultural. À vista disso, os significados não são perenes, confinantes ou
determinantes, mas livres. Sua essência está circunscrita pelo tempo, situação,
lugar e pelos partícipes desses, o que Wittgenstein denomina, jogos. Dito de
outra forma, como Wittgenstein assevera, são os jogos de linguagem contex-
tualizados e incorporados, no cerne da práxis comunicativa, que possibilitam a

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construção dos conhecimentos, dos sentidos e, assim, da subjetividade. A con-
siderar os jogos de linguagem, os significados são concebidos baseados no uso
das manifestações linguísticas, compreendidas nas diferentes, multidiversas
e plurilíngues circunstâncias sociais. Logo, os significados ganham liberdade
após esse insurgente “habeas corpus” wittgensteiniano, fundamentado na evo-
lução e na práxis humana. Marx elucida a funcionalidade da vida-que-se-vive
que corrobora, de uma forma ou de outra, a liberdade do aprisionamento dos
significados ao afirmar: “toda vida social é essencialmente prática. Todos os
mistérios, que induzem as doutrinas para o misticismo, encontram sua solução
racional na práxis humana e na compreensão dessa prática”22.
Essas percepções, em relação ao papel da seara social na constituição
dos jogos de linguagem, são construídas de forma viva e multicultural pelos
sujeitos, demarcadas pelo tempo e o espaço. Os jogos de linguagem são defi-
nidos por Wittgenstein da seguinte maneira:

Podemos imaginar que todo o processo de uso das palavras em (2) é um


daqueles jogos por meio dos quais crianças aprendem sua língua materna.
Quero chamar esses jogos de “jogos de linguagem”, e falar de uma lin-
guagem primitiva, às vezes, como de um jogo de linguagem. E também
se poderiam chamar de jogos de linguagem os processos de nomeação dos
materiais e de repetição das palavras ditadas. Pense nos vários usos que se
fazem das palavras nos jogos e brincadeiras de roda. Também chamarei de
“jogo de linguagem” o todo da linguagem e das atividades com as quais
ela está emaranhada23.

Ademais, Marcondes robustece a dinamicidade e a pluralidade dos jogos


de linguagem ao apontar que:

21 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.


22 MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Lisboa: Progresso, 1982, §8.
23 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosófica, §7.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 77

Novos jogos surgem, outros desaparecem, a linguagem é algo de vivo,


dinâmico, que só pode ser entendido a partir das formas de vida, das ativi-
dades de que é parte integrante. O uso da linguagem é uma prática social
concreta. Por isso, a análise consiste agora em examinar os contextos de
uso, considerar exemplos, explicar as regras do jogo24.

Em relação às regras desse jogo, Wittgenstein25 entende que a lingua-


gem é usada sem normas pré-definidas, pois o seu uso não está delimitado
pelo nível teórico, mas no universo da sua prática. Como esse cenário social
é ativo e vivo, não há regras fixas que determinam o escopo da ação humana,
tampouco que resolvam os inúmeros infortúnios inerentes a essas atividades.
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Os contratempos, maiormente atinentes à ambiguidade, devem ser resolvidos


na ação, embasados em experiências já vividas. Concernente às imprecisões
de como “regras” dos jogos de linguagem se organizam, Wittgenstein se pauta
na seguinte metáfora do jogo de tênis:

“Muito bem; então, para você, o conceito de número é explicado como a


soma lógica daqueles conceitos individuais aparentados uns aos outros:
número natural, número racional, número real etc.; e, igualmente, o con-
ceito de jogo como soma lógica dos respectivos conceitos parciais” – Não
necessariamente. Pois eu posso dar, dessa maneira, limites rígidos para o
conceito de ‘número’, ou seja, usar a palavra “número” para designar um
conceito rigidamente delimitado, mas eu também posso usá-la de modo
tal que a extensão do conceito não esteja circunscrita por um limite. E
é assim que empregamos a palavra “jogo”. Como então é circunscrito o
conceito de jogo? O que ainda é jogo e o que já não é? Será que você pode
indicar os limites? Não. Você pode traçar alguns: pois até agora nenhum
foi traçado. (Até hoje, porém, ao aplicar a palavra “jogo”, isso nunca
havia o incomodado). “Mas então quer dizer que a aplicação da palavra
não é regrada; o “jogo” que nós jogamos com ela não é regrado”. – Ele
não está delimitado em toda parte por regras; mas também não existe
nenhuma regra, por exemplo, estabelecendo quão alto ou quão forte se
pode jogar a bola no tênis, e mesmo assim o tênis não deixa de ser um
jogo, e certamente tem regras26.

No tocante à solução dos intrínsecos transtornos da ação humana a partir


de vivências passadas, considerando, sem dúvida, o momento sócio-históri-
co-cultural, Wittgenstein assegura que:

24 MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar,
2007, p. 275.
25 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
26 Ibid., §68.
78

Tais problemas, evidentemente, não são empíricos; eles são resolvidos por
meio de uma percepção acerca do funcionamento da nossa linguagem, e
de tal maneira que reconheçamos que isso acontece contrariamente a um
impulso para entender mal esse funcionamento. Os problemas são resol-
vidos não pela introdução de uma nova experiência, mas pela organização
daquilo que há muito tempo nos é familiar. A filosofia é uma luta contra
o enfeitiçamento de nosso entendimento por meio de nossa linguagem27.

Por conseguinte, baseado nos pressupostos de Wittgenstein, a linguagem,


como artefato cultural que representa o mundo em ininterrupto movimento,
não pode se legitimar fundada na mera análise de significados fixos decor-

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rentes, por exemplo, de elementos lexicais apenas, dado que sentido e signi-
ficado não estão vinculados à referência dos itens linguísticos, mas a todos
os modos possíveis de atividades e vivências. A julgar a multidiversidade e a
pluriculturalidade dos estilos de vida, essa volatilidade da linguagem ganha
ainda mais robustez para ratificar a mutante e fluente maneira de como os
sentidos são (re)construídos.
Isso posto, é patente aduzir que as formas de vida não deveriam ser
entendidas com legados puramente herdados. Se assim o fosse, a atitude con-
servadora e preceituada dos modos de viver seria a legitimação da ordem da
vez – problematização e crítica propostas neste capítulo. Pautado na variabi-
lidade e na oscilação do modus operandi da linguagem, como apregoado por
Wittgenstein, somos livres para fazer as nossas escolhas e, como resultado,
ser capazes de semear transformações e (re)criar uma nova história. Mais
particularmente, apoiados na linguagem viva e nas suas novas vertentes e,
muito possivelmente, com mais “jogadores” em atividade podemos contestar
e dissolver os dogmas, normas, regras e atos colonizadores, uma vez que a
(re)construção de novos sentidos e realidades confere a faculdade do rom-
pante, da ruptura, da intencionalidade e do inédito. Nesse esteio, igualmente,
as concepções de Freire confluem com as proposições de Wittgenstein, já
que o educador e filósofo brasileiro concebe o conceito “inédito-viável”28,
inspirado pelo sentimento de mobilização, de ação, de transformação e (re)
criação. Trata-se da prospecção de sonhos possíveis e, essencialmente, coleti-
vos que, ancorados na força mútua e recíproca, direcionam os caminhos para a
justiça social, fundamentados em ideais e ações democráticas e comunitárias,
na busca do que ainda não é, mas pode ser. Decisivamente, essa atividade
inexoravelmente humana se materializa na e pela linguagem.
No mais, além de a nossa trajetória sócio-histórica-cultural ser singular,
principalmente, porque a temporalidade delineia a ação humana, o tecido

27 Ibid., §109.
28 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 79

social multidiverso e plurilíngue deve ser concebido como um território úbere,


isto é, usina germinadora de pluriculturas e, em particular, de inéditas dimen-
sões da existência. Em consequência, a elucubrar que os jogos de linguagem29
caracterizam-se por sua pluralidade, multidiversidade e permeabilidade, este
capítulo entende que o ineditismo da experiência existencial, nascente de
novos sentidos, conhecimentos e subjetividade, é mister para o princípio de
mudanças e transformações e, indubitavelmente, a (re)construção de novas
realidades, uma vez que, cada vez mais, haja mais “jogadores” na ágora social,
compartilhando e (re)criando repertórios.
Nesse campo da linguagem, para este estudo, atividades sociais inédi-
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tas, em especial, as mobilizadoras de conflitos, divergências e discordâncias,


suscitam a elaboração de novos jogos de linguagem que, desenvolvidos com
assente coletivo e, destarte, com maior número de “jogadores”, podem opor-
tunizar artefatos para a transcendência de crises, por isso, a (re)construção de
novas conjunturas sociais de uma maneira mais democrática e participativa.

Conclusão

Este capítulo objetivou refletir acerca da convergência entre a concepção


da educação libertária, discutida por Freire30, e a visão fluída da linguagem,
referente ao processo de construção dos significados, sustentado pelos jogos
de linguagem31. O enfoque foi descontruir conceitos e teorias consolidadas
e aprisionadas que usualmente se estabelecem como prescrições, dogmas,
autoritarismo e servidão. A partir dessa interface dos dois filósofos, é plausível
apontar que a base da educação libertária freireana32, na qual todos os agentes
da trama social são elegíveis e legítimos para a (re)edificação da história, arti-
cula-se com uma perspectiva de linguagem fluída e sem fronteiras, propalada
por Wittgenstein, que acompanha a incessante dinamicidade do multifacetado
contexto sócio-histórico-cultural, maiormente, da contemporaneidade.
Primeiro, foram explanados os principais aspectos constituintes da edu-
cação libertária de Freire. Posteriormente, as proposições de Wittgenstein,
relativas à linguagem, foram discutidas, especialmente, no que corresponde
aos modos de vida e aos jogos de linguagem como agências de fomento
para a geração de novos significados, resultantes e incorporados na práxis
humana. De forma geral, foi abordado como as interações humanas cons-
troem novos saberes e significados e, em seguimento, fomentam novas

29 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.


30 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
31 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
32 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
80

realidades, rompendo com o que, à primeira vista, está ditado como regra
pétrea, padrão e norma.
À vista das articulações feitas entre os pressupostos de Freire33 e Wit-
tgenstein34, apreende-se que, como os seres humanos são os verdadeiros
agentes construtores da história, a fluidez dos jogos de linguagem, que se
organizam a partir da coletividade e do contexto sócio-histórico-cultural e são,
portanto, a alforria para a petrificação dos significados, coaduna com a parti-
cipação ativa, agentiva e criativa na produção dos sentidos e conhecimentos,
como apregoado por Freire35, atinente à educação libertária36.
Afora essa comunhão, tanto a educação libertária freireana37 quanto

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a metáfora usada neste capítulo do “habeas corpus”, no que concerne aos
significados “encarcerados” tradicionalmente enraizado em teorias38, pro-
piciam, à partida, condições sociais e linguísticas para a (re)construção da
realidade. Como efeito, a retórica beligerante, colonizadora, negacionista e
preconceituosa, além da rigidez dos dogmas, das doutrinas e das prescrições
das maneiras de viver podem ser rompidas e ressignificadas, a contar com
mais “jogadores de linguagem” na cartografia social. Afinal, a linguagem,
vista como um fenômeno humano em uso, absoluta e profundamente circuns-
crita e vinculada no contexto sócio-histórico-cultural, faculta a construção de
sentidos, conhecimentos e de novas realidades, fomentos cabalmente centrais
para se desenhar no horizonte um cenário social renovado, mais participativo,
livre, emancipatório, democrático, inclusivo e, de alguma maneira, equalitário.

33 Ibid.
34 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
35 FREIRE, P. Pedagogia da esperança.
36 Id. Pedagogia do oprimido.
37 Ibid.
38 WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 81

REFERÊNCIAS
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.
São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1967.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do


oprimido. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2008.
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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a


Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MARX, K. Teses sobre Feuerbach. Lisboa: Progresso, 1982.

OLIVEIRA, R. L. Um diálogo com Freire e Foucault sobre poder e saber.


Curitiba: Brazil Publishing, 2020.

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Trad. T. Tranjan e G. Rodri-


gues. São Paulo: Fósforo, 2022.
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IDEOLOGIA E O SONHO DE UM
GENOMA HUMANO TOTALMENTE
ANALISADO EM RICHARD LEWONTIN
Vitor Paixão Roberto1

Introdução
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Gustavo Caponi, ao examinar a noção de viés ideológico (sesgo ideoló-


gico), identifica três usos mais frequentes de “ideologia”, que ele denomina
Ideologia Marxista (M), Ideologia Política ou vulgar (P)2 e ideologia E, que é
tomado como sinônimo com a noção de viés ideológico3. Caponi argumenta
que essas três noções são complementares e convivem entre si, mas seu foco
é dado ao que ele denomina ideologia E, que “afeta a apreciação do apoio
empírico e conceitual de uma posição teórica e também a estimação de seu
valor heurístico”4, assim, a ideologia E se refere especificamente a “como
avaliamos ‘representações científicas’”. Para discutir o uso de ideologia no
que se refere a ciências, e as ciências biológicas mais especificamente, utili-
zaremos os textos filosóficos e de crítica social de Richard Lewontin sobre
ideologia e genética, buscando mostrar, com isso, que, apesar de ser um
autor de tradição marxista, Lewontin aplica “ideologia” em um sentido amplo
que não se limita ao que Caponi denominou de ideologia M, direcionando-
-se frequentemente ao que ele identifica como uma análise da ideologia E.
Podemos notar, no entanto, que, na análise da ideologia na ciência feita por
Lewontin, a separação entre ideologia no domínio social (M) e no domínio
científico (E) se desfaz constantemente. Ao falar de uma noção ideológica de
“gene”, ou de um “sonho do genoma humano”, Lewontin trata de ideologia
nas duas dimensões ao mesmo tempo, não fazendo um corte teórico como é
pressuposto por Caponi5.
1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
2 No que se refere ao que Caponi identifica como ideologia P, referimo-nos ao próprio artigo, uma vez que
nosso foco se restringe às noções de ideologia M e E. Aqui, basta dizer que ideologia P refere-se às crenças
que motivam ação política ou fazem parte de um grupo ou ideário político particular. É necessário ter em
mente, no entanto, que Caponi não oferece uma história extensiva da noção de ideologia, seja no marxismo
ou fora deste.
3 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?. Revista de Humanidades de Valparaíso, [S. l.], n. 21, p. 65–82,
2023. Disponível em: https://revistas.uv.cl/index.php/RHV/article/view/3726. Acesso em: 20 ago. 2023.
4 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?, p. 70.
5 LEWONTIN, Richard. As causas e seus efeitos. In: LEWONTIN, Richard. Biologia como ideologia: a doutrina
do dna. Ribeirão Preto: Funpec, 2010, p. 8-21.
84

Caponi apresenta uma interpretação althusseriana de ideologia no que se


refere à ideologia M, como “representações distorcidas da realidade social que
também incidem sobre a representação do mundo geral”, uma certa inversão
da realidade social que oculta as dimensões sociais pelas quais essa reali-
dade foi produzida. Caponi pontua, em veia althusseriana, que a ideologia
M é composta por “representações que, longe de serem simples erros ou
devaneios, surgem como exigências diretas que as condições da existência
impõem aos seres humanos”, sendo reforçada pelos Aparelhos Ideológicos
do Estado. Caponi caracteriza ideologia M como um fenômeno sociológico,
mas reconhece a ela uma certa dimensão epistemológica, uma vez que a

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ideologia M é um fenômeno “cuja mediação é relevante tanto para explicar
processos sócio-históricos, quanto para discutir as diferentes teorizações que
foram feitas destes processos”6. A dimensão epistemológica da ideologia
M não vai muito além daí, já que Caponi a caracteriza como uma ideologia
sem “uma causa interna”, completamente dependente de mudanças sociais
que lhe são determinantes7. A ideologia E, entendida como a ideologia que
influencia na aceitação e na consideração do apoio empírico de uma teoria
científica, teria de fazer esse trabalho epistemológico no que se refere à ciên-
cia e ao “saber como”, uma vez que essas duas modalidades teriam, na sua
composição, processos internos que possuem um “vetor” ou um movimento
de desenvolvimento autônomo; dessa forma, ainda que a ideologia M ajude
a explicar como que um viés chegou a ser introduzido na vida social, não
nos parece que, para Caponi, ele seja suficiente para explicar a ideologia no
conhecimento científico ou no “saber como”, assim, não nos ajuda a definir
ideologia E. O que Caponi reconhece, no que se refere aos vieses ideológicos,
é que a ideologia M tem função de justificar o status quo, na medida em que
há Aparelhos Ideológicos do Estado, como as escolas e a igreja, que refor-
çam, enquanto instituições, para que essas representações se tornem senso
comum, podendo vir a compor a explicação da ideologia E. Esse é um mero
reconhecimento funcional, no entanto, sem qualquer dimensão considerativa
sobre como surgem as representações ideológicas M, ainda que se possa,
pela própria caracterização de ideologia M, afirmar a razão pela qual essas
representações surgem: “elas brotam da atividade humana e das condições
que esta atividade é realizada”8.
Como o próprio Caponi ressalta, há um segundo respiro epistemológico
da ideologia M, que se encontra na ideia de demarcação. A noção mesma
de ideologia M, como caracterizada aqui, parte dos pressupostos de que há
representações ideológicas e representações não ideológicas. Mesmo que essas
6 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?, p. 66.
7 Ibid., p. 67.
8 Ibid., p. 68.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 85

representações estejam amplamente entrelaçadas, “nem todo pensamento é


ideológico”, a ciência e as atividades que podem operar como forças produ-
tivas não estariam no ramo das representações ideológicas9, mas sobre o
signo de “vieses ideológicos”, que Caponi chama de ideologia E.
Essa posição, organizada a partir da influência de Engels e de Althusser,
parece colocar Caponi em oposição a alguns nomes relevantes das pesquisas
sobre valores e ciência que estão fora da perspectiva marxista, como Helen
E. Longino10, que argumentam pela pervasividade de valores externos (ou
contextuais) no processo de produção e aceitação de teorias científicas, em
uma medida em que não faria sentido argumentar que as atividades produti-
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vas (nas quais a ciência e a filosofia se incluem, embora Caponi só trate da


primeira) não são efetivamente ideológicas, mas apenas estão sobre o signo
de vieses ideológicos. Também parece que Caponi se coloca em oposição à
caracterização lewontiniana da biologia evolutiva como uma ciência ideoló-
gica11. Podemos indicar, é claro, que Lewontin não acredita que só é possível
fazer ciência biológica que seja ideológica, em um sentido de ideologia M; há,
pela obra lewontiniana (seja em autoria única ou em colaborações), descrições
de uma perspectiva biológica que Lewontin não caracteriza como ideológica,
embora ressalte sua influência dialética, mas também é o caso que a carac-
terização da biologia como “ideológica” é feita a toda uma perspectiva (que
ele chama de cartesiana) sobre como fazer biologia e suas teses associadas12.
Assim, podemos dizer que, para Lewontin, a biologia é ideológica enquanto
ciência, mesmo que haja maneiras de se fazer biologia que ele não identifique
como “ideológicas”.
Trazer a posição lewontiniana sobre a relação entre biologia e ideologia é
relevante, e nos interessa, por duas razões. A primeira razão é que considerar
a análise da biologia de Lewontin nos permite considerar uma posição sobre
ideologia e ciência que foi efetivamente aplicada à análise de disciplinas
biológicas, fornecendo-nos uma imagem da relação entre ideologia e as ciên-
cias biológicas, baseada na forma como essa relação se expressa na própria
atividade científica. A segunda razão é a possibilidade de fornecer, contra a
interpretação de Caponi sobre Engels e Althusser, uma posição marxista sobre
a relação ideologia e ciência (as ciências biológicas, mais especificamente),
que considera a ideologia mais pervasiva, permitindo uma infiltração maior
de ideologia M na ciência do que Caponi permite.

9 Ibid., p. 69.
10 LONGINO, Helen E. Science as Social Knowledge: values and objectivity in scientific inquiry. New Jersey:
Princeton University Press, 1990.
11 LEWONTIN, Richard. As causas e seus efeitos, p. 8- 21.
12 LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. Introduction. In: LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. The Dia-
lectical Biologist, USA: Harvard University Press, 1985, p. 1- 5.
86

Discutir ideologia em Lewontin, em um sentido sistemático, como con-


ceito passível de ser examinado por si, no entanto, nos apresenta algumas
dificuldades. Lewontin não discute diretamente o conceito de ideologia. No
limite, Lewontin discute o que é ideológico. Assim, não temos qualquer defi-
nição lewontiniana do que seria ideologia para que possamos começar a apli-
car aos casos de ciência e dizer que “esse é ideológico, aquele não é”. Nesse
sentido, a ideologia M de Caponi nos apresenta a vantagem da demarcação:
é sabido exatamente aquilo que é ideológico e aquilo que só pode ter viés
ideológico (como em Ideologia E). Em Lewontin, temos os casos concretos
das disciplinas biológicas. Uma segunda dificuldade é que Lewontin não usa

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ideologia em um sentido unívoco. Há menções a uma ideologia do determi-
nismo biológico, que se refere a um conjunto de pressupostos que todos os
deterministas biológicos aceitariam: “[de que] todos se distinguem nas habi-
lidades fundamentais por causa das diferenças inatas; [de que] as diferenças
inatas são biologicamente herdadas; e [de que] a natureza humana garante a
formação de uma sociedade hierárquica”13. Assim como há menções a uma
“ideologia evolucionista”, interpretada como uma crença geral em mudança
que fundamentou tanto movimentos políticos (a revolução burguesa e o capi-
talismo nascente) quanto disciplinas científicas14 (a mecânica celeste, a geolo-
gia, as ciências sociais e a biologia)15. Não é claro que haja um único sentido
que venha a unificar o uso de ideologia ao longo da obra de Lewontin, e casos
concretos da aplicação do conceito de ideologia precisam ser analisados em
sua especificidade própria. Assim como nunca foi o objetivo de Lewontin
(nem de Richard Levins, seu coautor) aplicar sistematicamente o conceito de
dialética à biologia, o conceito de ideologia também não é aplicado dentro de
um projeto sistemático16.
Podemos, então, partir de um caso particular do trabalho de Lewontin
para buscar a resposta à questão do quão pervasiva é a ideologia nas disciplinas
biológicas. Neste sentido, as considerações presentes em O Sonho do Genoma
Humano17 e em Está Tudo Nos Genes18? são especialmente informativas sobre

13 LEWONTIN, Richard. As causas e seus efeitos, p. 29.


14 LEWONTIN, Richard. Evolution as Theory and Ideology. In: LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. The
Dialectical Biologist, USA: Harvard University Press, 1985, p. 8-27.
15 Aqui Lewontin não faz nenhuma consideração sobre a correção das teorias para que elas sejam consideradas
ideológicas. Lewontin não nega que os geólogos estavam corretos em substituir uma teoria da criação divina
por uma dinâmica de transformação baseada na relação entre diferentes fatores geológicos/físicos, por
exemplo, ainda assim, a substituição de uma teoria da criação por uma teoria da mudança teve dimensões
ideológicas associadas a transformações materiais nas forças produtivas e nos modos de organização
política que nasceram da revolução burguesa e da revolução industrial.
16 LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. Preface. In: LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. The Dialectical
Biologist, USA: Harvard University Press, 1985 VIII-IX.
17 LEWONTIN, Richard. O sonho do genoma humano, p. 303-339.
18 Id. As causas e seus efeitos, p. 25-44.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 87

a perspectiva lewontiniana sobre a relação entre ideologia e genética. Aqui,


cabe ressaltar que Lewontin insere o próprio Projeto Genoma Humano no
que ele identifica como uma perspectiva ideológica cartesiana e reducionista
marcada pela busca pelo controle da natureza. Em As Causas e Seus Efeitos,
Lewontin diz:

A atual manifestação da crença na importância de nossa herança na deter-


minação da saúde e da doença é o projeto de sequenciamento do genoma
humano, um programa multibilionário envolvendo biólogos americanos
e europeus que é destinado a tomar o lugar dos programas espaciais na
medida em que o grande consumo de dinheiro público está voltado para
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a conquista da natureza19.

Lewontin aborda múltiplas dimensões ideológicas na genética em relação


ao projeto do Genoma Humano. São identificadas como ideológicas questões
localizadas no que se definiria como “valores externos/contextuais”20 do
fazer científico, como as promessas e os objetivos pelos quais se faz a pes-
quisa científica, onde encontramos a ideia de uma medicina personalizada e a
resolução de todos os “defeitos genéticos”, ou da descrição da possibilidade
de se resolver problemas sociais como vício em drogas e comportamento cri-
minal, ou déficits psicológicos e morais21. Essas questões contextuais, assim
como a dimensão econômica de que elas participam, uma vez que questões
de genética médica e psicologia moral são grandes motores econômicos que
fazem carreiras científicas e fundam laboratórios, direcionam as perguntas
de pesquisa em uma maneira que Caponi reconhece ideológica (ideologia E).
Valores constitutivos e conceitos fundamentais da pesquisa científica realizada
em genética também são identificados como ideológicos por Lewontin22. De
fato, a própria noção de gene, que Lewontin entende que é aplicada ao Projeto
Genoma Humano, é ideológica.

1. Uma concepção ideológica de gene

Lewontin afirma que o Projeto Genoma Humano (e suas contrapartes


na iniciativa privada) é consequência prática da ideia de que “sequências de
DNA contêm tudo que queremos saber sobre os seres humanos”23. A perspec-
tiva de que, uma vez completa a sequenciação e a análise de nosso genoma,
teríamos a possibilidade de construir uma imagem ou modelo do que seria um

19 Ibid., p. 52.
20 LONGINO, Helen E. Science as Social Knowledge, p. 4.
21 LEWONTIN, Richard. As causas e seus efeitos, p. 29-32.
22 Id. O sonho do genoma humano, p. 303-310.
23 Ibid., p. 309.
88

ser humano “normal” e, a partir disso, poderíamos, por comparação ao nosso


modelo de normalidade geneticamente informado, descobrir como adequar
sujeitos desviantes foi o que fundou o sonho de um genoma totalmente ana-
lisado e de suas promessas associadas: uma medicina personalizada baseada
na identificação de problemas genéticos causados por alelos mutantes, um
modelo de psicopatologia geneticamente informado, que nos mostraria as
causas da depressão, das mais variadas manias, do abuso de drogas e álcool,
da violência masculina e do sucesso ou insucesso. De fato, é depois que
os projetos de sequenciamento estão terminados que a atividade de fazer
sentido das três bilhões de A, T, C e G começa, com o custo da promessa de

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nos dizer algo sobre “saúde, doença, felicidade, miséria e o significado da
existência humana”24.
Claramente, esse tipo de promessa, que Lewontin identificou como uma
postura gospel de tratar o gene e o genoma como o Santo Graal da pesquisa
científica em biologia25, se baseia em uma certa concepção sobre os poderes
do gene e do que é esperado que ele faça em um organismo. A amplitude dos
“poderes”, que está sumarizada no dogma central da bioquímica, está ligada
diretamente à crença de que aquilo que eu sou, a diferença entre mim e os
outros membros de nossa espécie e a diferença entre nós e os membros de
outras espécies são determinados pela composição dos nucleotídeos de nosso
DNA, ou, para colocar nos termos de Dawkins, na crença de que os genes “nos
criaram, mente e corpo”. Há algo nos genes que nos faz ser quem somos, que
distingue entre a gente e nossos companheiros na árvore da vida. Descobrir
e descrever o nosso genoma deveria então nos ajudar a compreender o que
nos faz humanos e o que faz alguns humanos “humanos normais”, enquanto
outros são pessoas doentes, ou pessoas pobres, moradores de rua e pessoas
que passam fome. Como Lewontin brinca26, “saberemos porque alguns de
nós lemos The New York Review of Books, enquanto outros não conseguem
ir além do The New York Post”27.
Lewontin indica que, para a genética ter todo esse poder, o DNA precisa
ter duas qualidades, autorreprodutor e ação própria:

Primeiro, se as milhões de células do meu corpo contêm cópias de molé-


culas que estavam originalmente presentes em parte no espermatozóide

24 Ibid., p. 310.
25 Ibid., p. 304.
26 Ibid., p. 305.
27 The New York Review of Books foi a seção onde o texto The dream of Human Genome foi publicado pela
primeira vez, em 1992. A piada com um suposto elitismo do jornal já aparece no artigo original, que foi
republicado em diferentes formas nos livros It Ain’t Necessarily So: The Dream of Human Genome and
Other Illusions (2000); Biology as Ideology (1991) e no Biology Under the Influence: Dialectical Essays on
Ecology, Agriculture and Health (2007), publicado em coautoria com Richard Levins.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 89

e em parte no óvulo de onde minha vida se originou, e se, por sua vez,
fui capaz de passar cópias para os milhões de células de esperma que
produzi, então a molécula de DNA deve ter o poder de autorreprodução.
Segundo, se o DNA dos genes é a causa eficiente de minhas propriedades
como ser vivo, das quais sou o resultado, então o DNA deve ter o poder de
ação própria. Isto é, deve ser uma molécula ativa que impõe uma forma
específica a um óvulo fecundado previamente indiferenciado, de acordo
com um esquema que é ditado pela própria estrutura interna do DNA28.

Para que o genoma tenha o poder de ação própria, o DNA informa e


determina o modo de produção para proteínas que realizam todo tipo de ativi-
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dade em um organismo. Lewontin descreve esse processo como acontecendo


em duas etapas, com uma divisão de trabalho: parte do DNA “determina
exatamente qual proteína será produzida” para uma certa função no corpo,
outra parte do DNA age como regulador, ligando e desligando DNA produ-
tores de proteínas. Desse modo, o DNA cria organismos “mente e corpo”29.
E a recriação do DNA, presente no seu poder de autorreprodução, se dá
“por sua própria estrutura dupla e autocomplementar (da mesma forma que
o sangue de cristo é dito renovado no graal do espírito santo)”30. Lewontin
explica que, nessa visão, a reprodução do DNA se dá “pelo desacoplamento
das fitas combinadas, seguido pela formação de uma nova fita complementar
em cada uma das fitas parentais”31. Isso explica tanto a autorreprodução do
DNA quanto seu poder criativo, que é dado pela formação de novas fitas a
partir da complementaridade dos nucleotídeos de que o DNA é composto.
Apesar de uma descrição bioquímica adequada dos processos em que
o DNA está envolvido, toda a noção do trabalho feito pelo DNA, e a noção
de que o DNA faz qualquer trabalho, é ideológica. Como Lewontin ressalta,
“primeiro, o DNA não se autorreproduz, segundo, na verdade, ele não faz
nada, e terceiro, os organismos não são determinados por ele”32. A posição de
que o DNA na verdade não faz nenhum trabalho é compartilhada por Evelyn
Fox-Keller, autora que Lewontin cita mais de uma vez ao longo do review O
sonho do Genoma Humano, que afirma, assim como Lewontin, que o DNA
é uma molécula inerte, sem atividade:

O DNA é uma molécula inerte. O que pensamos serem seus poderes


causais são, de fato, providos pelo complexo celular em que ela se encon-
tra. É o complexo [celular] que é responsável pelo código que permite

28 LEWONTIN, Richard. O sonho do genoma humano, p. 306. (Grifo do autor).


29 Ibid., p. 307.
30 Ibid., p. 307.
31 Ibid., p. 307.
32 Ibid., p. 307.
90

que uma sequência de nucleotídeos seja traduzida em uma sequência de


aminoácidos, pela replicação do DNA, e pela fidelidade intergeracional.
É o complexo celular que faz todas as reações de que esses processos
dependem possíveis. Sozinhos, essas entidades que chamamos de gene
não agem, eles não têm agência. Falando estritamente, a própria noção
do gene como um elemento autônomo, como uma entidade existente em
si mesma, é uma ficção”33.

A posição de Lewontin é a mesma: a responsabilidade pela reprodução do


DNA não é dele próprio, mas do maquinário celular em que o DNA se encon-
tra, pois “nenhuma molécula viva se autorreproduz, somente células inteiras

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podem conter o maquinário necessário para a autoreprodução”34. No geral,
a sequência de DNA é usada para que o aparato celular saiba quais proteínas
produzir, mas proteínas são produzidas por outras proteínas. É notável que
Lewontin descreva sua posição usando metáforas associadas ao ambiente da
fábrica, pois o que elas indicam aqui é que o trabalhador não é o DNA ou o
Gene. A ideia de que proteínas criam proteínas encontra uma dificuldade, a
possibilidade de um eterno regresso a “quem cria as proteínas que criam as
proteínas?”, mas essa visão, também ideológica, parte do pressuposto de que
o que herdamos dos nossos pais são genes dispostos a construir organismos.
Um ovo já possui todo o aparato celular, o maquinário, necessário para a
produção de proteínas antes mesmo de ser fecundado, apenas proteínas pro-
duzem proteínas, o DNA não produz nada. Segundo Lewontin, a descrição
mais própria do DNA seria de que “ele contém informações que são lidas
pela maquinaria celular no processo produtivo metabólico”35. O que se vê na
imagem ideológica do gene é a transferência da função de fonte de informação
para a noção de superioridade e comando:

Sutilmente, o DNA como portador de informação é transformado como


DNA como projeto, como planta, como plano mestre - como molécula
mestre. É a transferência para a biologia da crença na superioridade do
trabalho mental sobre o trabalho meramente físico, na superioridade
do planejador e do projetista sobre o operário não qualificado da linha
de montagem36.

É somente com essa concepção ideológica de gene que se pode pensar


que um projeto de sequenciamento vai nos revelar “o que é ser humano,
mudando nossa concepção filosófica de nós mesmos e mostrará como a vida

33 FOX-KELLER, Evelyn. The Mirage of a Space Between Nature and Nurture, p. 6.


34 LEWONTIN, Richard. O sonho do genoma humano, p. 306.
35 Ibid., p. 306.
36 Ibid., p. 306.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 91

funciona”37. A visão ideológica de gene como uma entidade cheia de poderes,


um Santo Graal da ciência contemporânea, capaz de explicar tudo de rele-
vante que é necessário saber sobre aquilo que nos faz humanos, tem como
consequência prática o empreendimento do Projeto Genoma Humano, mas
é inegável que sua consequência teórica é uma ciência genética que é em si
ideológica e determinista.

2. Informação e capacidade: a metáfora do balde e a melhora


possível do inato
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Dizer que o gene não faz nada é dizer também que ele não determina
nada. Conhecer a base genética de uma doença não nos ajuda em nada sem
que conheçamos a história da base física da expressão dessa doença nos
organismos (que passa por entender os processos celulares de expressão da
proteína, a atuação dessa proteína no corpo, entre outras dimensões etiológi-
cas) para que se possa pensar em qualquer tipo de intervenção terapêutica38.
Isso acontece porque genes não são o suficiente para se fazer um organismo;
o desenvolvimento, que se expressa na relação entre a genética e o ambiente,
é parte fundamental sobre as explicações de como um organismo chega à
idade adulta, sobre sua saúde e seu comportamento, e, para entender esse
resultado, um genoma totalmente descrito não basta, assim como o material
herdado dos pais (que inclui o maquinário inicial para a produção de proteí-
nas). É necessário levar em conta “temperatura, umidade, nutrição, olfato,
visão e sons (incluindo o que chamamos de educação)39 e, mesmo assim, não
se conseguiria especificar totalmente um organismo, pois o desenvolvimento
não é resultado de um cálculo exato entre valores colocados pelo ambiente e
pelos genes; há ainda um elemento de casualidade que nasce do processo de
desenvolvimento, chamado de ruído desenvolvimental, que explica a diferença
em padrões de desenvolvimento dos organismos. Como Lewontin coloca,
“não sabemos quanta diferença entre nós é consequência das diferenças alea-
tórias no crescimento de neurônios durante nossa vida embrionária e início
da infância”40. Assim, temos posto o problema tradicional de separar o que é
interno e o que é externo, de separar o natural do ocasional, para determinar
os poderes da genética.
Há duas respostas que cientistas confiantes nos poderes da genética
enquanto graal das ciências biológicas podem oferecer. Primeiro, mesmo que
genes não determinem nada e não sejam responsáveis pela totalidade do que é
37 Ibid., p. 312.
38 Ibid., p. 334.
39 Id. As causas e seus efeitos, p. 33.
40 Ibid., p. 33.
92

um organismo, eles descrevem algo que é determinante para o entendimento


do que um organismo é, que nos permitiria localizar melhor nossos recursos
e colocar nosso dinheiro na aposta correta; eles descrevem a capacidade de
um organismo41. Por capacidade, entenda-se um limite para o quanto um
organismo pode desenvolver uma característica. Podemos pensar na relação
de um organismo com seu ambiente, nesse modelo de descrição da genética,
como um modelo onde:

Cada um de nós começa a vida como sendo um balde vazio de diferentes


tamanhos. Se o ambiente proporciona pouca água apenas, então todos esses
baldes terão pouca água dentro. Mas se houver uma abundância de água,

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então os baldes pequenos transbordarão e os grandes conterão mais água42.

Com essa visão de genética, diz-se que desigualdades são justas e natu-
rais , mas também se justifica a limitação da pedagogia em resolver essas
43

desigualdades, baldes pequenos seguraram pouca água independentemente


de quanta água se gaste com eles. Aqui temos mais uma crença ideológica
em uma perspectiva de genética onde o gene tem os poderes de agir sozinho,
a crença de que, se algo é genético, então essa diferença é imutável44. Cla-
ramente, pessoas não são baldes, e falar na genética como uma ciência da
capacidade é enganador. Se dois organismos geneticamente diferentes forem
criados em ambientes iguais, eles ainda serão diferentes, mas isso não se deve
a uma diferença de capacidade de nenhum tipo, e isso logo se vê quando se
transpõe esse organismo para um ambiente diferente onde suas características
são usadas de outras formas: os organismos com mais ou menos “capaci-
dade” facilmente se invertem45. A segunda maneira de responder à questão
dos poderes da genética está na abordagem estatística. Diz-se que podemos
separar quantos por cento de uma característica é resultado da genética e
quanto é resultado do ambiente, e com isso identificar o quanto a genética
explica de uma característica. Assim, se descobrimos que a inteligência é 80%
genética, nossos melhores investimentos em educação só poderiam nos trazer
uma melhoria limitada às realizações acadêmicas de uma população de baixa
inteligência. Esse argumento parte de algumas distorções. Não se pode estabe-
lecer “qualquer conexão entre a variação ser imputada às diferenças genéticas
em oposição ao ambiente e a possibilidade de uma mudança ambiental afetar
qualitativamente o desempenho”46. Basta lembrarmos do exemplo célebre
41 Ibid., p. 34.
42 Ibid., p. 34.
43 Ibid., p. 34.
44 Ibid., p. 37.
45 Ibid., p. 35.
46 Ibid., p. 35.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 93

de Stephen Jay Gould: um par de óculos de 20 dólares de uma farmácia local


corrige um defeito de visão que é 100% herdável47. Lewontin pontua que uma
mudança no ambiente, ou no ambiente cultural, pode mudar a capacidade de
cada indivíduo em termos de magnitude, e essas diferenças podem ser abolidas
de forma ainda mais extrema por invenções mecânicas. Uma calculadora de
algumas dezenas de reais é capaz de abolir qualquer diferença biológica na
habilidade de calcular, e guindastes eletronicamente dirigidos, volantes hidráu-
licos e controles eletrônicos igualam qualquer diferença média de psique e
força entre grupos de homens e mulheres aleatórios48. Um segundo problema
com essa visão é que, como Lewontin pontua, “os genes afetam o grau de
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sensibilidade diante do ambiente, e o ambiente afeta o grau de relevância das


diferenças genéticas”49, ambos estão intimamente relacionados causalmente
na produção do organismo, e só podemos separar estatisticamente seus efeitos
em ambientes específicos, num momento específico de uma população parti-
cular; mudou-se o ambiente, “todas as apostas são perdidas”.
Sem essas crenças, no entanto, tanto a natureza de uma descrição deter-
minista em genética quanto a ideia de que o Projeto Genoma Humano e outras
iniciativas de anotação genômica serão particularmente informativos sobre
questões existenciais e nos fornecerão a capacidade de curar todas as doenças
que desviem de um fenótipo “normal”, ou de resolver problemas sociais como
o alcoolismo, a depressão e a criminalidade urbana, encontram dificuldades
para se sustentar. As perspectivas ideológicas em genética precisam de uma
genética ideológica, em um sentido muito mais pervasivo do que simples-
mente um direcionamento na avaliação sobre quais teorias são aceitas, e quais
perguntas são feitas de modo “ideológico”. Os sonhos de conseguirmos um
genoma humano totalmente analisado parecem nos mostrar isso.

3. O sonho do genoma humano

Caponi está preocupado com a possibilidade de separar ideologia e


ciência, em contrapartida a uma definição de ideologia como crença polí-
tica de grupos particulares (P) que, sendo uma substituição da ideologia M,
coloca a possibilidade de se argumentar que todo mundo é ideológico e que
tudo é ideologia50. Por isso, suas perspectivas de ideologia M e ideologia E,
seguindo Althusser, separam claramente o científico e o ideológico, mesmo
que a ideologia M seja essencial para a formação das crenças que atuam nos
vieses ideológicos (E). De fato, mais duas caracterizações precisam ser feitas

47 GOULD, Stephen Jay. The Mismeasure of Men. W. W. Norton & Company, 1996, p. 34.
48 LEWONTIN, Richard. As causas e seus efeitos, p. 36.
49 Ibid., p. 37.
50 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?, p. 71.
94

sobre a ideologia E antes que possamos prosseguir. Caponi define uma teoria
(T) como ideológica a partir da ideologia E da seguinte maneira:

T será ideológica na medida em que sua adoção ou aceitação suponha


omissões e parcialidades na avaliação de seu apoio empírico, de seu
apoio conceitual, e/ou na mensuração de suas capacidades explicativas
e heurísticas, que são funcionais a adoção de uma posição ou linha de
ação política51.

Esta definição também faz o trabalho de distinguir o cientista que toma


uma posição política e o cientista ideológico. Lewontin e Stephen Jay Gould

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são citados como exemplos de cientistas que são políticos, mas não ideo-
lógicos. Para Caponi, ainda que ele reconheça que sempre haverá vieses
associados à pesquisa científica, nem todos são reconhecidos como ideoló-
gicos52. Podemos dizer que Lewontin não parece indicar ter problemas com
a perspectiva de que nem toda posição política seja ideológica, como dito, a
posição dialética não é descrita como uma posição ideológica por ele, ainda
que as posições que ele identifica com o modo cartesiano de se fazer ciência
sejam descritas como ideológicas constantemente53. A separação entre fazer
ciência de forma política e de forma ideológica parece estar correta, mas o
requerimento de que haja uma omissão54 não parece ser necessário para que
haja ideologia na ciência. Voltemos ao Sonho de um Genoma Humano.
O que a análise lewontiniana indica – para justificar as promessas feitas
com a ideia de sequenciamento e anotação gênica, de “conseguirmos uma
nova visão filosófica de nós mesmos” ou de “uma medicina do futuro” que
vai identificar todos os polimorfismos deletérios de um gene e o substituir
por uma versão saudável –, ser necessário que o gene tenha dois poderes
que ele não tem, autorreprodução e ação própria55, mas ainda que se possa
argumentar que houve omissão dos cientistas envolvidos no Projeto Genoma
Humano em relação à sua perspectiva do que é um Gene, essa perspectiva
está canonizada no corpo de doutrinas da genética, presente no próprio dogma
central da bioquímica, onde se pensa na produção de proteínas a partir do
modelo “gene→transcrito→proteína”. Não é surpreendente que Lewontin
tenha escolhido, não à revelia dos geneticistas envolvidos no Projeto Genoma

51 Ibid., p. 77.
52 Ibid., p. 79.
53 LEWONTIN, Richard; LEVINS, Richard. Introduction, p. 1-5.
54 Caponi não explica se essa omissão necessariamente precisa ser deliberada ou não, ao passo que esse
requerimento pode ser interpretado de maneira mais forte ou mais fraca. Podemos falar em uma omissão
do próprio clima intelectual geral ou de uma omissão individual de cientistas particulares, seja consciente
ou inconsciente, em cada um dos casos esse requerimento se torna mais ou menos razoável.
55 Lewontin, Richard. O sonho do genoma humano, p. 305.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 95

Humano e seus divulgadores, a imagética cristã como metáfora da perspec-


tiva de trabalho no projeto56, e que essa, para Caponi e para a visão dele de
Althusser, esteja associada à Ideologia M. Não se pode argumentar facilmente
que houve omissão ao se aceitar aquilo que é aceito como verdade pelo cânone
da sua disciplina. Uma concepção de ideologia que Caponi considerou, mas
escolheu ignorar por considerar uma versão menos sofisticada da ideologia E,
pode nos mostrar uma alternativa melhor para o problema. Tratemos dela aqui:

Em seu Vocabulario técnico y crítico de la Filosofía, André Lalande (1947,


459) também distinguiu três concepções do termo ideologia. mas, ainda
que em dois de seus elementos essa tríade coincide com a que aquí pro-
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pus, entre ambas tríades há uma diferença que creio pertinente apresentar.
Lalande não considera a ideologia E; em seu lugar, contempla a ideologia
entendida como erro: uma concepção do termo que efetivamente circulou,
e consequentemente não poderia deixar de ser inventariada numa obra
como o Vocabulario57.

A concepção de que o erro é parte do processo de enviesamento ideoló-


gico parece ser mais razoável que o requerimento de omissão. Primeiramente,
Caponi não especifica, neste trabalho, se a noção de omissão58 depende de
intencionalidade ou má-fé, como é o caso do uso de senso comum do termo,
mas a possibilidade de que seja possível ser omisso sem ser ideológico parece
implicar que ela nem sempre depende. Tratando-se de uma omissão comuni-
tária ou individual, é preciso discutir o que constituiria omissão no caso de
uma omissão ideológica. Num segundo plano, Lewontin não parece pressupor
nenhuma dessas coisas para que uma teoria ou tese seja ideológica; embora
ele ressalte claros conflitos de interesse entre alguns cientistas do Projeto
Genoma Humano e suas concepções sobre genoma59, a ideia de omissão não
parece ser fundamental para que o projeto seja ideológico. Ao menos a defi-
nição de trabalho de gene que o projeto usa, segundo Lewontin, não depende
de nenhuma noção de omissão, e pode ser justificada apenas com a ideia de
erro, de considerar o falso como verdadeiro. As considerações sobre má-fé e
intencionalidade, que parecem fundamentais a uma noção como “omissão”,
parecem estar mais limitadas ao uso do projeto enquanto ferramenta econô-
mica, não estando presentes na definição de seus conceitos fundamentais.
Mas esses conceitos fundamentais ainda são ideológicos60.

56 Ibid., p. 305.
57 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?, p. 73.
58 Caponi usa omissão e parcialidade como se fossem sinônimos. De fato, ambos os termos dependem de
intencionalidade ou má-fé em seu uso de senso comum. Não são muito claras as condições de uso de
nenhum dos dois nesse contexto.
59 LEWONTIN, Richard. O sonho do genoma humano, p. 305.
60 Ibid., p. 305.
96

Um último ponto, que pode ser associado ao uso ideológico do Projeto


Genoma Humano como ferramenta econômica, é que Caponi parece man-
ter, de maneira firme, que a ciência não funciona também como Aparelho
Ideológico do Estado para propagar ideologia M: embora ele cite escolas,
como exemplo, de Aparelho Ideológico do Estado, a ciência como instituição
parece ter sido excluída. O uso de DNA, como prova em tribunais, é mais um
exemplo de uso ideológico da genética contido no Projeto Genoma Humano
que podemos apresentar aqui. Lewontin descreve, em O sonho do Genoma
Humano, uma disputa em tribunais americanos sobre a usabilidade do DNA
como prova para condenar suspeitos de crimes na década de 1990, disputa

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essa que resultou na comissão de um relatório sobre tipagem de DNA para
o Conselho Nacional de Pesquisa (NRC, na sigla em inglês). O relatório,
largamente a favor do uso da tipagem de DNA como prova nos tribunais,
afirmando que seu uso era “fundamentalmente sólido” e que poderia fornecer
“em princípio, uma taxa de erro inerente extremamente baixa”61 ainda con-
tinha, no entanto, um reconhecimento de que este tipo de tipagem genética
acontecia em laboratórios em que a padronização de práticas laboratoriais
era “mais problemática do que em outros ambientes de laboratório” onde os
cientistas têm “pouco ou nenhum controle sobre a natureza, condição, forma
ou quantidade da amostra com a qual vão trabalhar”62. Esse endosso com
ressalvas, pedindo por mecanismos de controle de qualidade, foi o suficiente
para que o uso de DNA fosse questionado nas cortes e para que os promotores
pressionassem a Academia Nacional de Ciências, uma instituição financiada
pelo governo e obrigada a realizar os estudos que lhe são direcionados, a
refazer os estudos e buscar um resultado que validasse completamente o uso
do DNA na ciência forense, o que foi feito a partir do pedido do diretor do
FBI em 1993, com as problemáticas acerca dos mecanismos de controle e da
dificuldade de compreensão de leigos de modelos estatísticos nesse tipo de
tipagem, sendo curiosa e cuidadosamente corrigidas63. Esse caso nos mostra,
claro, uma agência científica sendo usada como fonte de propaganda para que
se continue a validar o status quo e se faça uma opinião associada ao modo
de vida particular de uma realidade se tornar senso comum, qualidades que
Caponi defendeu como necessárias a Aparelhos Ideológicos do Estado em sua
análise althusseriana da ideologia M64. Não nos parece que a descrição feita

61 Ibid., p. 329.
62 Ibid., p. 329.
63 Ibid., p. 338.
64 Althusser menciona a censura como característica dos Aparelhos Ideológicos do Estado Culturais e a repri-
menda e a exclusão como características da “educação” dos Aparelhos Ideológicos do Estado Escolares
(ALTHUSSER, 1980), ambos poderiam descrever parte essencial da dinâmica relacional dos lugares onde
se faz ciência, o estado e a iniciativa privada, como o caso do relatório citado por Lewontin bem demonstra.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 97

por Lewontin do Sonho do Genoma Humano nos permita pensar na ciência


como instituição, e nas ciências biológicas como disciplina participante dessa
instituição, como alheias aos outros instrumentos ideológicos de justificação
do status quo. A própria escolha da imagética cristã como representativa da
genética e de seus dogmas (o dogma central pode ser descrito como um dogma
ou como um dictum) nos mostra que a separabilidade da ciência e de outros
Aparelhos Ideológicos do Estado não está no plano de visão de Lewontin (e da
concepção não sistemática de ideologia que estamos discutindo a partir dele).

Conclusão
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Caponi nos oferece uma forma de entender a ideologia que se associa


fácil com a perspectiva marxista de ideologia que ele descreve, que é propria-
mente althusseriana. Também é verdade que ela não impede que discutamos
a relação entre ideologia e ciência como uma posição que nega a existência
de uma infiltração de valores externos à ciência na produção científica. O
conceito de vieses ideológicos (ideologia E), construído como a omissão ou
a parcialidade que afeta a “consideração do apoio empírico e conceitual de
uma posição teórica e também a estimação de seu valor heurístico”65, nos
permite discutir com alguma clareza sobre quais tipos de distorções podem
acontecer com um cientista quando sujeito às ideologias M e P, que aqui não
foi discutida, mas, se a exposição que fizemos aqui sobre as visões sobre a
relação entre ideologia, genética e o sonho do Genoma Humano completa-
mente descrito em Lewontin são informativas, isso não é o suficiente para
pensarmos o quão pervasiva é a ideologia nos campos da ciência biológica
associados à genética. Essa oposição é interessante justamente pelo caráter
não sistemático do pensamento lewontiniano sobre ideologia. Partir de uma
definição dada nos permite analisar o uso conceitual feito por Lewontin e de
que modo ela dialoga com a análise apresentada por Caponi. Nesse sentido,
a separação que as noções de ideologia E e M fazem entre “ideologia” e ati-
vidades produtivas (as ciências, a filosofia, as disciplinas formais e as áreas
de “saber como”) se apresenta especialmente difícil de sustentar. A genética
é uma ciência ideológica, ou, no mínimo, está sendo feita a partir de uma
perspectiva ideológica (que Lewontin chama de “perspectiva cartesiana de
ciência” em outros lugares66).

E é nesse sentido que falamos de ciência como instituição, tratando-se dos lugares onde a ciência é feita,
as relações entre cientistas nesses lugares e as relações econômicas que permeiam sua atividade e seu
produto social.
65 CAPONI, G. ¿Qué es un sesgo ideológico?, p. 66.
66 Como, por exemplo, no prefácio do The Dialectical Biologist, VII-IX.
98

A noção de omissão também parece ter uma defesa difícil quando se fala
de ideologia em Lewontin. Se podemos falar de uma perspectiva ideológica
ou de uma ciência ideológica, onde os conceitos fundamentais e o cânone
com que se trabalha são em si ideológicos, como, por exemplo, quando se faz
genética com a perspectiva ideológica de “gene” que tem poderes de autor-
reprodução e ação própria67, não se pode dizer facilmente e sem qualquer
argumentação posterior que houve omissão, a não ser em um sentido muito
relaxado de omissão. Aqui, surpreendentemente, a noção de erro se sai melhor.
É possível falar que um cientista que trabalha com as definições correntes de
sua disciplina erra, embora seja difícil dizer que ele seja omisso. O tratamento

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de Lewontin de ideologia não parece requerer omissão, embora pressuponha
o erro, assim como pode envolver má-fé, mas não necessariamente envolve.
O caso dos conflitos de interesse entre geneticistas e a questão do patentea-
mento de seções de DNA mostra um exemplo onde a má-fé está presente68.
Ainda que, partindo do trabalho de Lewontin, não dê para se tirar
nenhuma definição unívoca de ideologia, ou indicarmos uma única maneira
em que ela se relaciona com a ciência, podemos indicar, a partir do que exa-
minamos aqui, que ela não se resume, em sua análise, a um enviesamento
da atividade científica que é essencialmente não ideológica sem esses envie-
samentos. O tratamento que Lewontin oferece da genética e das esperanças
que vêm junto da ideia de um genoma totalmente descrito e analisado nos
permite concluir que a ideologia se relaciona com a ciência de uma maneira
extremamente intrincada, e fazer a separação delas não é exatamente fácil.
Dizer que se faz ciência ideológica não significa dizer que não haja meios de
se fazer ciência não ideológica. Lewontin não parece identificar a maneira
dialética de fazer ciência, em oposição à cartesiana, como uma perspectiva
ideológica, embora certamente ressalte com bastante clareza seus compro-
missos políticos. Nesse sentido, Caponi está correto sobre a possibilidade
de se fazer ciência de maneira política, tomando uma posição política sobre
teses deterministas, sexistas, racistas e exclusionárias sem ser ideológico, e
os exemplos selecionados por ele, Stephen Jay Gould e o próprio Lewontin
mostram isso com alguma segurança.

67 LEWONTIN, Richard. O sonho do genoma humano, p. 305.


68 Ibid., p. 323.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 99

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ponível em: https://revistas.uv.cl/index.php/RHV/article/view/3726. Acesso
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PARA ALÉM DA TÉCNICA
PRIMITIVA: A alternativa antropológica
de D. Z. Phillips à caracterização da
magia na obra de Jacques Ellul
Felipe Couto1
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Introdução

Mais do que palavras protocolares que assinalam a importância do tema


em questão, não seria exagero afirmar que os termos que abrem A técnica e o
desafio do século definem em alguma medida a própria metodologia da obra
de Jacques Ellul: “nenhum fato social, humano, espiritual, tem, no mundo
moderno, tanta importância quanto o fenômeno técnico”2.
A fim de provar seu ponto, Ellul inicia seu percurso pelo estudo de gênese
da técnica moderna. Ele entende que não podemos avançar na compreensão do
fenômeno técnico sem ao menos uma retificação histórica, pois, nas palavras
do autor, a maioria dos estudos dedicados ao tema reconhece a importância
do progresso técnico, mas sem lhe prestar a devida atenção como fenômeno
autônomo. O primeiro sintoma de tal negligência pode ser visto na constância
com que esses estudos reduzem a história da técnica moderna à introdução e
ao avanço da máquina na sociedade.
A despeito de reconhecer na máquina o ponto de partida da técnica em
sua acepção moderna, para Ellul, a identificação histórica entre ambas deve
ser circunscrita à origem, vez que, nas palavras do autor, a técnica adquiriu
“autonomia quase completa em relação à máquina”3, a qual deve ser con-
cebida como uma manifestação em particular da própria técnica4. Nessa
perspectiva, a mudança de foco do advento das máquinas para a emancipação
da técnica nos auxiliaria a compreender o desenvolvimento das formas de
organização que marcaram o mundo moderno. Despojada de qualquer deter-
minação material, a técnica pôde se expandir e incorporar elementos que, a
princípio, lhe pareciam distantes.

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP


2 A Técnica e o Desafio do Século, p. 2 (Tradução nossa).
3 Ibid, p. 2.
4 Ibid, p. 2. Ao subscrever a ideia de que a técnica despontou com a introdução da máquina na sociedade,
podemos identificar o ponto de partida de Ellul nos processos industriais da segunda metade do século XVIII.
102

Uma vez estabelecida a cisão, a perspectiva que ditará A técnica e o


desafio do século pode ser anunciada de maneira explícita:

A máquina [...] não mais representa nem mesmo o seu aspecto na realidade
mais importante (embora continue a ser o mais espetaculoso) porque a
técnica assume hoje em dia a totalidade das atividades do homem, e não
apenas sua atividade produtora5.

É nesse contexto de reconstituição histórica que ganha fôlego um dos


traços centrais da obra de Ellul: a reiterada denúncia sobre o domínio que o
fenômeno técnico passou a exercer sobre os demais fenômenos sociais. A esse

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propósito, Ellul constrói seu argumento a partir do ponto inicial já instituído
para, a partir de então, empreender sua própria leitura. Como se acenou, a
história da modernidade enquanto história da racionalização da sociedade
encontra seu marco inicial não no nascimento ou na interação entre ambas,
mais precisamente no momento em que elas se separam. A mecanização dos
processos industriais apenas preconiza a modernidade, cuja complexidade
não pode ser reduzida às dinâmicas estabelecidas pelos modos de produ-
ção capitalista.
A organização que caracteriza o mundo moderno seria, portanto, resul-
tado da técnica aplicada à esfera social, econômica e administrativa6, pois
a técnica não rompeu apenas com seus grilhões materiais, mas também se
tornou independente de qualquer meio, instrumento ou método definido. Na
perspectiva de Ellul, o paradoxo dessa emancipação está no fato de que, se
por um lado a técnica pôde se disseminar indefinidamente (penetrando, pois,
“em todos os domínios”)7, por outro, tal autonomia não dissolveu a tendên-
cia totalitária que lhe foi transmitida, mas, pelo contrário, foi justamente o
aspecto decisivo de sua libertação.
A fim de expor essa natureza, o pensador francês entende que, com a
ruptura e expansão, a lei da eficácia foi disseminada pela técnica, a qual “cla-
rifica, arruma e racionaliza”8 todos os “domínios abstratos”9 da sociedade,
determinando, pois, quais elementos devem ser descartados nesse processo.
Como exemplo de tal processo, Ellul se vale do funcionamento das máquinas,
operando uma sobreposição pouco clara:

Com [a máquina] não se mistura a nenhum outro fator: é técnica em estado


puro, poderíamos dizer. Em todas as situações nas quais se encontra,

5 Ibid, p. 2. (Grifo nosso).


6 Ibid., p. 10.
7 Ibid., p. 7.
8 Ibid., p. 4.
9 Ibid., p. 4.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 103

um poder técnico procura, de modo inconsciente, eliminar tudo o que


não se pode assimilar. Com outras palavras, sempre que o encontramos,
êsse poder funciona necessariamente, predeterminado, por sua origem,
a fazê-lo, ao que parece, no sentido ele uma mecanização. Trata-se de
transformar em máquina tudo o que ainda não o é. Pode-se, pois, dizer
que a máquina constitui realmente um fator decisivo10.

De acordo com a perspectiva histórica elluliana, portanto, a investigação


sobre o advento da máquina é útil tão somente na medida em que nos escla-
rece que é na máquina que o automatismo, aspecto marcadamente totalitário
da técnica, manifesta-se em sua pureza11. Mais do que isso, ao sustentar
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que “tudo deve ser revisto a partir da ordem mecânica”12, Ellul reivindica
a mecânica como autêntico princípio fundador e força-motriz que constitui
ambos os fenômenos aqui abordados.
Mas o automatismo da ordem mecânica seria apenas uma das faces que
determinaram o primado da técnica. Esta foi imbuída de uma ambivalência
decisiva, mantendo-se adequada à máquina por incorporar certa “dose neces-
sária de mecanicismo”13, mas, ao mesmo tempo, só pôde expandir-se em
virtude de seu aspecto integrador:

O monstro de metal não podia continuar a torturar os homens durante


muito tempo; encontrou uma regra tão dura, tão inflexível quanto ele
próprio, que a ele se impõe tanto quanto ao seu parceiro e os acasala por
necessidade. A técnica integra a máquina na sociedade, a torna social e
sociável. Constrói para ela, igualmente, o mundo que lhe era indispensável,
põe ordem onde o choque incoerente das bielas havia acumulado ruinas14.

A combinação desses aspectos relegou a máquina a um papel secundário


na sociedade, exigindo dela apenas o essencial. Portanto, na reconstituição
aqui proposta, as “incoerências”15 instituídas pelo irrompimento da máquina
na sociedade só encontraram paz no seio dessa nova ordem. Embora esse fato
histórico possa sugerir uma competência flexível e apaziguadora da técnica,
aos olhos de Ellul, é a ordem mecânica que deve ser vista como condutora
desse processo. A conjugação entre máquina e homem se deu por meio da
aplicação incontornável de leis que humanizaram um mundo de aço. Ao assu-
mir o papel de mediadora absoluta, a herdeira da máquina e produto da ação

10 Ibid., p. 2-3.
11 Ibid., p. 3. “De outro ponto de vista, porém, a máquina continua a ser extremamente sintomática, porque
fornece o tipo ideal da aplicação técnica. E apenas e exclusivamente isso.” Ibid., p. 3.
12 Ibid., p. 4.
13 Ibid., p. 4.
14 Ibid., p. 4.
15 Ibid., p. 4.
104

humana passou a situar-se acima de seus polos fundadores. Eis, portanto, o


que caracterizou o fenômeno técnico.
Toda originalidade de Jacques Ellul se exerce sobre a ideia de que o pro-
gresso técnico se apodera do ser humano à medida que lhe cerceia qualquer
poder de escolha, instaurando, dessa forma, um novo modelo de mundo. Mais
que isso; ao submeter o ser humano à aplicação cega de suas leis, a técnica
moderna se mantém imperceptível. É esse aspecto oculto que permite o autor
subverter a análise dos demais fenômenos sociais. Doravante, ao abordar as
relações e adventos do mundo contemporâneo, Ellul passa a ter como obje-
tivo evidenciar como esses fenômenos se subordinam invariavelmente ao

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fenômeno técnico.
O primeiro capítulo de A Técnica e o Desafio do Século nos fornece
ainda um panorama oportuno da leitura de Ellul, pois não apenas assinala sua
visão sobre o erro de situar o fenômeno técnico como um advento paralelo aos
demais fenômenos socioculturais, mas inaugura o deslocamento de perspectiva
que será constante ao longo da obra. A releitura histórica sob a perspectiva
do primado técnico se torna evidente na breve passagem dedicada ao papel
ocupado pelo capitalismo na dinâmica aqui proposta:

O homem viveu em uma atmosfera inumana. Concentração das grandes


cidades, casas sujas, falta de espaço, falta de ar [...] proletários e aliena-
dos, eis a condição humana em face da máquina [...] é inútil deblaterar
contra o capitalismo: não é ele que orla esse mundo, é a máquina. As
penosas e forçadas demonstrações para provar o contrário fizeram desa-
parecer essa evidência sob toneladas de papel impresso; honestamente, no
entanto, e se não queremos fazer demagogia, precisamos afinal designar
o responsável16.

Coerentemente com o que foi sustentado, Ellul reivindica que “a cons-


ciência do mundo mecanizado”17 emergiu com o advento da técnica moderna.
Nessa concepção sistematicamente original, as críticas que recaem no capi-
talismo em sua relação com a máquina dirigem-se a uma pista falsa, contri-
buindo para a ocultação do verdadeiro demiurgo que, desapercebido, ditaria
as regras da modernidade.

1. A magia compreendida como uma prática estritamente técnica

Para compreender melhor o desenvolvimento histórico do fenômeno


técnico nos moldes descritos no primeiro capítulo, Ellul pretende examinar os

16 Ibid., p. 3.
17 Ibid., p. 4.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 105

fenômenos socioculturais que o antecederam. Embora não se pretenda passar


por historiador, o autor se vale de registros etnográficos e antropológicos que
contribuem para sua própria finalidade. Nesse contexto, Ellul assinala a insu-
ficiência de tais estudos antes de assimilá-los à luz de sua própria teoria18.
Ao tentar distinguir a técnica moderna das operações técnicas presen-
tes nas sociedades anteriores à modernidade, Ellul renuncia à pretensão de
chegar a uma definição que abarque todas as especificidades da técnica em
sua acepção moderna, preferindo apontar para um aspecto que lhe parece ser
comum em todas suas manifestações específicas:
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[...] O fenômeno técnico, pode resumir-se na “procura do melhor meio


com todos os domínios”. É, esse “best one way” que é, a rigor, o meio
técnico e é o acúmulo desses meios que produz uma civilização técnica.
Consiste, pois, o fenômeno técnico na preocupação da imensa maioria
dos homens de nosso tempo em procurar em todas as coisas o método
absolutamente mais eficaz19.

Segundo Ellul, a técnica moderna engendra sistematicamente novos


métodos, vez que sujeita o ser humano à aplicação cega dos melhores meios
disponíveis de cada época. Está longe do nosso propósito tentar expor e muito
menos submeter à análise crítica todas as nuances que Jacques Ellul elabora
sobre o desenvolvimento histórico da técnica. É suficiente para nosso objetivo
recorrer à ideia do best one way, tal como descrita acima, pois é essa a concep-
ção que o autoriza a situar a magia como uma prática rigorosamente técnica20.
A magia – diz Ellul - “desenvolve-se simultaneamente com as outras
técnicas e se apresenta como uma vontade do homem em obter certos resul-
tados de ordem espiritual suficientemente precisos”21. Mas é por meio da
formalização e da repetição de certas práticas que o ser humano chega à con-
solidação do melhor meio possível e, doravante, necessário, para se alcançar
determinados resultados.

Para alcançar este objetivo utiliza-se todo um conjunto de ritos, de fór-


mulas, de processos, com a característica de que, fixados de uma vez
por todas, não mais variam. O formalismo é um dos aspectos da magia:
formalismo, ritualismo, máscaras sempre as mesmas, idênticas técnicas
de adoração, ingredientes de drogas místicas, receitas de adivinhação...

18 A Técnica e o Desafio do Século, p. 23-24. Na contramão da corrente dominante até então, Ellul não enxerga
a magia como uma técnica constituída progressivamente em meio a um mundo que ainda não havia sido
desencantado, mas como um tipo de técnica que surge e desaparece em determinadas comunidades.
19 A Técnica e o Desafio do Século, p. 21.
20 Ibid., p. 21.
21 Ibid., p. 21.
106

tudo isso se fixa e se transmite, pois o menor erro, uma palavra, um gesto,
ameaça comprometer o equilíbrio magico22.

A ampla formação de Ellul como sociólogo e teólogo, contudo, não lhe


permitiria passar pelo tema sem ao menos apontar para a existência de aspectos
sociais e religiosos que caracterizam a magia enquanto fenômeno histórico.
Porém, é o próprio autor que identifica na magia as raízes totalitárias da ordem
mecânica. Em outras palavras, o filósofo nos relembra da capacidade que a
técnica tem de integrar outros elementos e subvertê-los para seus próprios
propósitos, impondo-se, de tal forma, como uma prática autóctone:

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No domínio espiritual, a magia apresenta assim todos os caracteres de
uma técnica, é mediadora, quer dizer, serve de intermediaria entre “as
potencias” e o homem, exatamente como a técnica serve de intermediária
entre a matéria e o homem; tende à eficácia em seu domínio, pois tende à
subordinar ao homem o poder dos deuses e a obter determinado resultado.
Afirma o poder do homem, isto é, procura subordinar os deuses ao homem,
exatamente como a técnica serve para impor obediência à natureza23.

Se é verdade que todos os membros da sociedade primitiva já encontra-


vam prontos e cristalizados os rituais que envolviam adoração, ingredientes de
drogas místicas, receitas de adivinhação e afins, também é verdade que essas
práticas permaneciam à disposição dos membros para serem utilizadas para
propósitos particulares em variados contextos. Em contrapartida, de acordo
com Ellul, na magia, as demais práticas surgem a reboque da eficiência do
melhor meio empregado. Com efeito, qualquer oscilação passa a ser suprimida
nessa nova estrutural formal.
Ellul identifica justamente no formalismo da magia a causa de seu desa-
parecimento. Apresentada por Ellul como uma técnica sui generis, que nasce
e morre em paralelo ao saber cumulativo que caracteriza a técnica moderna,
a magia implica universalidade, mas não alcança a evidência, aspecto formal
necessário para a técnica prolongar-se no tempo.

[...] a técnica mágica que não se transmite nem no tempo nem no espaço,
não apresenta a mesma curva de evolução que a técnica material. Suas
descobertas não se adicionam, mas permanecem lado a lado, sem misturar-
-se. Finalmente, há um último fator de regressão das técnicas magicas: o
problema da evidência. [...] Quem pode ser juiz da eficácia? Esta nem sem-
pre se mede por um resultado material evidente fazer cair a chuva), mas

22 Ibid., p. 24. (Grifo nosso).


23 Ibid., p. 24.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 107

pode perfeitamente referir-se a fenômenos puramente espirituais ou ainda


a fenômenos materiais que se estendem por longo espaço de tempo24.

Ainda que Ellul esteja atento à série de circunstâncias que envolve uma
compreensão plenamente convincente dos ritos primitivos, o reconhecimento
de que os rituais mágicos se constituem a partir de um pano de fundo histórico
não o faz colocar em xeque o itinerário adotado até aqui. De nossa parte, a
esta altura já parece prudente apontar para a insuficiência da concepção de
magia como uma prática estritamente técnica, tal como concebida pelo autor
no início do capítulo dedicado ao tema.
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2. A alternativa antropológica de D. Z. Phillips

Para fins de aproximação e contraste com as concepções de Ellul, pode-


mos nos valer das observações sobre magia do professor da Universidade
de Swansea, Dewi Zephaniah Phillips. Ele é comumente descrito como um
dos representantes de uma filosofia da religião inspirada pela obra tardia
de Wittgenstein25. De fato, parte significativa das reflexões de Phillips foi
desenvolvida sob a necessidade de lançar luz aos conceitos desenvolvidos
nos escritos tardios do filósofo vienense, os quais o expõe com rara clareza.
Não obstante, os escritos de Phillips não apenas se caracterizam pelo uso
moderado de um vocabulário especializado, mas também ganham fôlego no
exercício crítico desse vocabulário.
Antes de entrarmos no tema da magia, cabe mais uma observação intro-
dutória: em oposição à recepção manualística, Phillips compreende que a
maior contribuição de Wittgenstein, sob risco de ser deformada em mero
academicismo, é a de descrever a complexidade de contextos em que ocorrem
as diferentes práticas sociais e linguísticas. A seu ver, a noção de prática seria
o elemento fundamental proposto por Wittgenstein para a compreensão de
qualquer conceito, pois é apenas a partir de práticas compartilhadas que con-
ceitos adquirem significado e ganham vida26. No contexto especializado da
filosofia, conceitos frequentemente são dissociados das práticas e por isso se
tornam jargões esotéricos ou abstrações metafísicas. Por essa razão, segundo
o autor, os intermináveis debates em torno de conceitos como “jogos de lin-
guagem”, “formas de vida” e “proposições dobradiças” perderiam de vista o
objetivo verdadeiro e último de Wittgenstein.
Para além da querela acadêmica, e avançando ao ponto que mais nos inte-
ressa, o primeiro objetivo do professor galês em seu diálogo com Wittgenstein

24 Ibid., p. 27.
25 Aqui nos valemos da apresentação crítica de Puntel. (Ser e Deus, p. 70)
26 Phillips, D. (1993). ₢, p. 125.
108

consiste em reconduzir debates conceituais e abstratos sobre rituais e crenças


religiosas para âmbito antropológico, recentrando, de certa forma, a descrição
das práticas humanas para o núcleo das análises.
Mas ao contrário do que poderia se supor, a exegese do professor de
Swansea em torno do léxico apresentado por Wittgenstein, é pouco contro-
versa. É desenvolvendo propriamente a temática das práticas ritualísticas e
religiosas que seus escritos ganham originalidade na medida em que Phillips
explicita os limites da analogia entre essas práticas e rituais e jogos de lin-
guagem. Em outras palavras, para poder trilhar seu próprio percurso, Phillips
se encarrega de pavimentar um terreno wittgensteiniano que ele reconhece

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como tortuoso:

Como jogos de linguagem, certas músicas e danças ritualísticas, diz-se,


são dependentes de conexão com outras coisas. Se significado não é trans-
mitido em si, por mais que os atos objetivem isso. Pensar de outra forma
é adotar o que Wittgenstein chamaria de uma visão mágica de signifi-
cado. Wittgenstein chama uma forma de vida a este amplo contexto da
vida humana no qual nós vemos como um jogo de linguagem é tomado.
A noção de forma de vida é essencial para ver em que sentido um ritual
pode dizer algo27.

Apontar para essas inadequações não implica, todavia, corroborar com


certa visão já difundida de que, o que Wittgenstein escreveu sobre ética e reli-
gião não tem grande valia, ou que “não está rigorosamente de acordo com o
resto de seu trabalho”28. Pelo contrário, Phillips reivindica que escritos como
Remarks on Frazer’s Golden Bough, compreendidos à luz dos conceitos apre-
sentados nas obras mais consagradas de Wittgenstein, abrem possibilidade de
aprofundarmos o entendimento das variadas experiências religiosas a partir da
descrição dos ritos e práticas que a constituem. É nesse contexto que Phillips
enxerga a magia, como uma prática indissociável da experiência das religiões
primitivas. O ponto crucial sob a perspectiva do nosso trabalho, é o de que,
para Phillips, o horizonte aberto por Wittgenstein fornece instrumentos para
uma reconstituição histórica mais atenta às variadas circunstâncias e a partir
da qual práticas como a magia adquirem significado.
É com base nesses pressupostos que Phillips apresenta uma alternativa
em oposição ao que ele compreende ser duas leituras bastante comuns no
âmbito da filosofia da religião. A primeira está ligada justamente à visão de
que rituais seriam práticas herméticas, calcadas em crenças formadas a partir

27 Ibid., p. 125.
28 Ibid., p. 117.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 109

de “jogos esotéricos, apreciados pelos iniciados, mas de pouca significância


fora das formalidades internas de suas atividades”29.
Ainda segundo Phillips, a segunda corrente, formada tanto por apologe-
tas quanto por críticos de visões religiosas, compreende que ritos religiosos
devem estar fundamentados em critérios completamente alheios aos da própria
religião. Trata-se de uma visão metafísica, segundo a qual práticas só possuem
significado a partir de evidências e hipóteses.
A alternativa apresentada por Phillips não desvincula os ritos da crença
religiosa fundamentada em evidências e hipóteses, mas favorece o olhar para
a conexão dos cultos com os demais aspectos “da existência humana que são
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totalmente inteligíveis sem a referência à religião: sofrimento, morte, misé-


ria, desespero, esperança, fortuna e infortúnio”30. No contexto das práticas
de magia, percebe-se, portanto, que leituras como as de Ellul, centradas nos
aspectos objetivos e formais dos rituais, tendem a converter a magia numa
espécie de técnica primitiva porque escamoteiam as conexões da magia com
as de outras esferas da vida de seus praticantes31.
Mas a alternativa que nomeamos como antropológica não deve ser vista
como mera abstração. São vários os pontos levantados por Phillips sobre a
temática da religião, porém, no âmbito da magia, podemos ressaltar ao menos
dois aspectos negligenciados na concepção elluliana.

1. Em primeiro lugar, podemos considerar as observações de Phillips a


respeito da ordem cronológica segundo a qual as práticas e crenças
religiosas se formam. Ao contrário de concepções como as de Ellul,
onde as crenças em rituais mágicos são constituídas e consolidadas
a partir do formalismo e de repetições do conjunto de fórmulas, ritos
e processos de práticas, Phillips se vale dos escritos de Peter Winch
para imaginar uma possibilidade distinta:

Peter Winch nos pede para pensar nos moradores das montanhas, os quais,
antes de desenvolverem expressões especificamente religiosas em sua
linguagem, contemplam as montanhas, prostram-se diante delas, cele-
bram ritos relacionados a elas, em modos tais que nós as chamamos de
respostas religiosas primitivas. Mais tarde, eles começam a falar de deuses
nas montanhas. Rituais e estórias se desenvolvem e dizem ser sobre estes
deuses. Devemos nós, então, dizer que discursos sobre deuses expressam
as pressuposições existenciais das reações primitivas32?

29 Ibid., p. 90.
30 Ibid., p. 104.
31 Ibid., p. 103.
32 Ibid., p. 159.
110

A proposta endossada por Phillips não visa explicar por que os membros
de tal religião contemplariam as montanhas, mas sim chamar atenção sobre a
complexidade que pode envolver a conexão entre a compreensão dos povos
sobre seus deuses e suas práticas ritualísticas.

2. Em segundo lugar, Phillips aponta para um lado que classifica como


ético dos rituais33. Esse aspecto está diretamente vinculado ao que
podemos grosso modo classificar como uma dimensão existencial
dos praticantes da magia. Phillips se vale do exemplo de rituais
que envolvem fincar agulhas nos olhos de uma efigie para subli-

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nhar o papel essencial que desempenha o desejo em tais práticas:
“onde rituais expressam um desejo [...] nós teríamos de levar em
conta o papel desempenhado pelo ritual nos detalhes das vidas das
pessoas que o celebram34. Por essa razão, a prática deve ser con-
siderada também como uma expressão do desejo de quem espeta
a agulha no boneco, e não reduzida a uma técnica apta a produzir
certas consequências35.

Segundo Phillips, a ideia de que rituais são redutíveis à “eficácia como


um modo entre outros de assegurar certos fins”36 torna-se inconcebível se
levada em conta qualquer reconstituição histórica:

Uma explicação muito intelectual do homem primitivo [que] atribuía a


ele uma ignorância massiva de conexões causais [...] nunca se tornou
plausível, já que os primitivos eram hábeis caçadores, fazendeiros e meta-
lúrgicos. Se eles fossem ignorantes de conexões causais como alguns
têm dito, eles não poderiam ter sobrevivido. Por outro lado, ao longo de
suas atividades ordinárias, eles realizavam rituais. Como estão os rituais
relacionados às outras atividades37?

A reconstrução proposta por Phillips nos permite apontar para a per-


tinência de aproximar a magia dos primitivos com práticas ainda presentes

33 Ibid., p. 159. Recorrendo a Wittgenstein mais uma vez, o autor compreende que muitas vezes “o que está
envolvido é ver como a crença regula a vida de uma pessoa” (Ibid, p. 98). Elas se tornam “critérios, não
objetos de avaliação. Reconstruir essas crenças como hipóteses que podem ou não serem verdadeiras é
falsificar seu caráter”. Ibid, p. 99.
34 Ibid., p. 160. Vale mencionar que, como em outras circunstâncias, a questão das “agulhas na efigie” se
desenvolve em torno de um debate filosófico mais técnico (no caso, acerca da intencionalidade).
35 Ibid., p. 158.
36 Ibid., p. 109. De nossa parte vale dizer que a alternativa de Phillips se propõe a combater não apenas à
concepção das práticas ligadas a eficácia para determinados fins, mas visa sobretudo se opor à ideia mais
refinada de que práticas religiosas não são erros, mas ações sem sentido.
37 Ibid., p. 147.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 111

em grupos étnicos contemporâneos, como o rito que acostumamos designar


“dança da chuva”. Não se trata de uma equivalência anacrônica entre práticas
desenvolvidas em circunstâncias muito distintas, mas o exemplo vale para
apontar como soaria absurdo associar rituais de dança de grupos como os
caiapós à falta de acesso desses grupos às previsões meteorológicas. Aqui uma
observação de Ellul se torna valiosa; não há possibilidade de estabelecer tal
comparação, já que o pano de fundo histórico dos ritos mágicos se desenvolve
em circunstâncias radicalmente estranhas ao contexto moderno em que se
inserem os diversos grupos que formam a etnia dos caiapós.
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Nas sociedades chamadas primitivas, é verdade que a vida toda está encer-
rada com uma rede de técnicas mágicas. É sua multiplicidade que empresta
caráter de rigidez e de mecanização a esses grupos. Vimos que essa magia
pode ser considerada uma origem das técnicas, mas o caráter primário nes-
sas sociedades não é a consideração técnica, é a consideração religiosa38.

Com essa observação, entendemos que Ellul enquadra a magia como um


tipo primitivo de técnica constituída, porém, num contexto cujo núcleo social
permanecia fundado numa espécie de pano de fundo religioso. Nesse ponto,
nos parece lícito constatar que um conceito estritamente moderno como o da
técnica não nos parece adequado para compreender em profundidade ritos
primitivos. Mas a inadequação também se revela na descrição de Ellul, que
compreende esse pano de fundo não de forma concreta, mas como um para-
digma abstrato de uma época que permanece impossível de ser tematizada.

Conclusão

Por mais valiosa que seja a contribuição de Ellul, a negligência dos


demais aspectos que constituem a magia leva o francês a reconstituir a história
regida pelo desenvolvimento da técnica, evidenciando o aspecto soberano da
mecânica que o próprio Ellul almejaria escapar. Como se acenou, se remover-
mos da magia seus aspectos mais humanos, constituídos no entrecruzamento
com diversas práticas dos povos primitivos, ela será, na melhor das hipóteses,
interpretada como uma técnica espiritual.
Sem reivindicar a tarefa quixotesca de resolver a problematicidade de
compreender práticas primitivas em sua totalidade, a abordagem de D.Z.
Phillips parece nos indicar para a possibilidade de compreendermos certos
aspectos para além das linhas já claramente demarcadas pela filosofia da
técnica de Jaques Ellul.
Eis como o próprio Phillips resume seu objetivo:
38 A Técnica e o Desafio do Século, p. 66.
112

[...] apresentar certas possibilidades que muitos filósofos e, talvez, antro-


pólogos, são tentados a ignorar. Alguém pode querer dizer que estas pos-
sibilidades são ignoradas não porque filósofos e antropólogos não são
conscientes delas, mas simplesmente porque eles não acreditam que elas
são uma explicação acurada de religião e magia. [...] Quando os autores
em questão consideram práticas religiosas com as quais nós estamos fami-
liarizados, eles as caracterizam como necessariamente confusas. Eles não
permitem outras possibilidades39.

É, portanto, a partir de uma abordagem que aqui se esboça que devemos


procurar compreender adventos como o da magia, transferindo nossos inte-

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resses da perspectiva da soberana da técnica para as dos demais elementos e
circunstâncias que compõem e caracterizam as práticas em questão. Convém
então seguirmos os passos de Jacques Ellul e repensarmos a reconstituição de
adventos como o da magia e sua relação com a técnica não com o objetivo
de reparar imprecisões históricas, mas buscando compreender os impasses
teóricos e práticos das circunstâncias em que tais fenômenos se situam.

39 Ibid., p. 157.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 113

REFERÊNCIAS
ELLUL, Jacques. La Technique Ou, L’en Jeu du Siècle, 1954.

ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1968.

ELLUL, Jacques. Anarquia e cristianismo. Rio de Janeiro: Garimpo Edito-


rial, 2010.
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PHILLIPS. D. Z. O Ponto Final de Wittgenstein. In: Wittgenstein e Religião.


Trad. Marciano Adílio Spica. São Paulo: Reflexão/ABFR, 2021.

PHILLIPS. D. Z. Crenças Religiosas e Jogos de Linguagem. In: Wittgenstein


e Religião. Trad. Marciano Adílio Spica. São Paulo: Reflexão/ABFR, 2021.

PHILLIPS. D. Z. Reações primitivas e as reações dos primitivos: A confe-


rência Marret de 1983. In: Wittgenstein e Religião. Trad. Marciano Adílio
Spica. São Paulo: Reflexão/ABFR, 2021.

PUNTEL, Lorenz B. Ser e Deus: um enfoque sistemático em confronto com


M. Heidegger, É. Lévinas e J.” L. Marion. São Leopoldo: Unisinos, 2011.
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A RELAÇÃO ENTRE CORPO, ESPÍRITO
E LINGUAGEM NA FENOMENOLOGIA
DA PERCEPÇÃO DE MERLEAU-PONTY
Cassiano B. da Costa1

Introdução
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“Procurando descrever o fenômeno da fala e o ato expresso de signi-


ficação, poderemos ultrapassar definitivamente a dicotomia clássica entre o
sujeito e o objeto”2. Esta passagem abre o Capítulo VI da Fenomenologia
da percepção, e, através dela, Merleau-Ponty enuncia uma dupla tarefa que
ele irá desenvolver. A saber: (1) ele desenvolverá uma acepção particular de
linguagem que se contrapõe a duas tradições filosóficas que ele chama de
intelectualismo e empirismo. E, ao se contrapor a essas tradições, a dicotomia
clássica entre pensamento e fala será repensada através do ato de significar
de uma nova concepção de linguagem. Porém, (2) ao tratar dessa dicotomia,
concepções metafísicas como a relação do corpo com o espírito, ou a pos-
sibilidade de uma linguagem interior, estarão embricadas em sua análise da
linguagem. Assim, ao mesmo tempo em que ele estabelece uma nova acep-
ção filosófica sobre a linguagem, o autor terá de reaver questões clássicas da
história da filosofia.
O autor francês começa sua análise da linguagem apresentando como a
psicologia clássica abordava o tema da linguagem, e, podemos pensar que essa
psicologia se divide em duas correntes: empirista ou intelectualista. Entre-
tanto, mesmo com essa caracterização distinta entre elas, o autor apresenta
que quando a psicologia trata da linguagem, especificamente, na descrição do
ato da fala e do pensamento, é possível identificar um problema em comum
a ambas, “um parentesco entre as psicologias empiristas ou mecanicistas e
as psicologias intelectualistas”3. Posto que existe um problema na maneira
que a psicologia interpreta a linguagem, resta-nos agora, apresentar como
ele descreve esse problema e qual ele é. Todavia, para isso, primeiro apre-
sentaremos como o autor interpreta a psicologia empírica e intelectualista, e,
depois, o que as une.
Sobre a psicologia empírica:

1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP


2 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 5. ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, p. 237.
3 Ibid., p. 240.
116

O sentido das palavras é considerado como dado com os estímulos ou


com os estados de consciência que se trata de nomear, a configuração
sonora ou articular da palavra é dada com os traços cerebrais ou psíqui-
cos, a fala não é uma ação, não manifesta possibilidades interiores do
sujeito: o homem pode falar do mesmo modo que a lâmpada elétrica pode
tornar-se incandescente4.

Nesta passagem é possível verificar que o autor não faz uma distinção
entre o sentido das palavras de um lado, e, do outro, a configuração articular
e sonora que podemos designar como sendo a fala. A fala se relaciona com
o cérebro ou com o psiquismo, e, o sentido da palavra é dado com os estí-

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mulos ou com associações da consciência. Nesse caso não é possível fazer a
pergunta sobre o sentido individual de uma palavra porque esse sentido já é
dado junto com os estímulos cerebrais suscitados por aquilo que ele denomina
de “imagem verbal” que são resquícios, marcas que as palavras deixam em
nós. Ora, falar decorreria de um processo psíquico ou físico entre a imagem
verbal e a elucubração da voz, ou seja, é um processo que vai do cérebro,
ou do psiquismo, até o som emitido ao falar, em suma, ela é um fenômeno
de associações físicas ou psíquicas que são ativadas por uma palavra que
dispara essas associações. Essa descrição exclui o sentido individual de uma
palavra, pois ele é dado junto com esse mecanismo de associações, a palavra
enquanto som é um fenômeno que expressa essas associações, a palavra e o
som são acessórios, fazem parte de um sistema maior que se conecta, mas
a palavra ela mesma é vazia, ela é o que dispara uma associação, mas não é
nela que reside o seu significado. A grande questão para o autor é que essa
descrição mecanicista que interpreta a linguagem como um mecanismo, que
vai do cérebro a voz, por exemplo, não difere de um circuito elétrico de uma
lâmpada. Porque, assim como um circuito precisa de um interruptor para fazer
a energia passar por ele e ligar a lâmpada, a palavra seria esse interruptor que
dispararia associações físicas que vão do cérebro a voz ou do ouvido ao cére-
bro. Assim, tem-se um sistema fechado que através de um estímulo dispara
associações entre a voz, o ouvido e o cérebro. Essa constatação, como dito pelo
autor na citação acima, perde de vista o caráter humano da fala, comunicação
não pode ser uma mera associação física ou psíquica que vai de uma parte de
um sistema a outro, se não o sentido de uma palavra seria uma expressão de
meus estados cerebrais? Parece-nos que não; quando falamos uma palavra
ela parece ter uma significação própria e para explicar como essa significação
funciona, não basta explicar os processos físicos que levam o som do ouvido
ao cérebro, é necessária uma outra explicação.

4 Ibid., p. 238.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 117

Contra essa concepção empirista que resume a linguagem a um sistema


fechado e perde de vista a significação da palavra como um ato humano, ao
estabelecê-la como um ato mecânico, Merleau-Ponty dirá que essa ideia de
“imagem verbal” não basta para explicar o fenômeno da afasia. Na psicologia
empirista, o que causaria a afasia seria uma certa lesão na parte do cérebro
responsável pela linguagem, porém, com os estudos sobre a afasia, identifi-
cou-se um uso da linguagem que pode ser denominado automático e outro
intencional. Com essa diferença de usos da linguagem, o que o doente perde
não é um estoque de palavras armazenadas no cérebro ou na biblioteca da
memória, mas sim o uso que ele faz dessas palavras, segundo Merleau-Ponty:
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O mesmo doente que encontra sem esforço a palavra “não” para rejeitar
as questões do médico, quer dizer, quando ela significa uma negação
atual e vivida, não consegue pronunciá-la quando se trata de um exercício
sem interesse afetivo e vital. Portanto, descobria-se atrás da palavra uma
atitude, uma função da fala que condicionam a palavra5-6

Esse exemplo do autor sobre o doente denota um sentido ambivalente da


linguagem, ela é intencional quando apresenta algo de vivido no momento,
e é automática quando perde seu tom afetivo e vital. Dessa diferença entre
as linguagens, a psicologia empírica explicava que a perda da palavra era
ocasionada por uma lesão ou uma disfunção no cérebro. Porém, quando o
doente consegue dizer uma palavra que ele havia “perdido”, aparentemente,
isso demonstra que a explicação causal e fisicalista não dá conta de explicar o
que é essa linguagem intencional que se expressa por trás da palavra. E, para
responder qual é essa função intencional que se esconde por detrás da fala,
poderíamos dizer que é o pensamento. Ora, é assim que pensa um intelec-
tualista, “porque [a palavra] é apenas o signo exterior de um reconhecimento
interior que poderia fazer-se sem ela e para o qual ela não contribui. A palavra
não é desprovida de sentido, já que atrás dela existe uma operação catego-
rial, mas ela não tem esse sentido, não o possui; é o pensamento que tem um
sentido, e a palavra continua a ser um invólucro vazio”7. Nessa concepção
intelectualista, a intencionalidade é garantida por um sujeito pensante que, no
limite, subsume os dados empíricos a um conceito. E, isso quer dizer que a
fala está em paralelo ao pensamento, a fala é o signo externo do pensamento,
ela é a consciência de um fenômeno empírico, porém, o sentido da palavra
não é garantido pela fala, mas sim, pelo processo mental do sujeito pensante.

5 Ibid. p. 238-239.
6 N. A. – Para um exemplo mais detalhado dessa dupla função da linguagem, ela ser automática ou intencional,
c.f. ex. amnesia das cores, p. 239-240.
7 Ibid. p. 240-241.
118

Dessa maneira, a palavra é um involucro vazio porque ela não possui um


sentido próprio, seu sentido não é dado em si mesmo, ele é dado na cons-
ciência, a palavra é só a expressão empírica desse fenômeno que ocorre na
consciência. Voltando ao exemplo da afasia, o intelectualista poderia dizer
que a intencionalidade é dada pelo sujeito pensante e que, mesmo com algum
dano cerebral, ele é capaz de pronunciar a palavra “não” porque o processo
mental que possibilita o entendimento da palavra não foi danificado. Com
isso, poderia se supor que existe uma certa diferença entre o funcionamento
da mente e do corpo em relação à fala. Se o pensamento tem uma autonomia
em relação à fala, pois ele pode expressar um fenômeno mental sem neces-

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sariamente expressar um fenômeno físico como a fala no exemplo da afasia,
pode-se supor que exista uma diferença entre o corpo e o espírito. Porque, se
o funcionamento dos dois fosse unívoco, a fala seria o próprio pensamento
e teria um significado, e, na citação acima de Merleau-Ponty, vimos que é o
pensamento, uma atividade mental que guarda o significado de uma palavra,
não é o som emitido. Assim, se existe uma diferença entre fala e pensamento,
pode existir uma diferença entre o espírito que pensa e o corpo que fala. E,
se a fala é diferente do pensamento pode existir uma linguagem interior que
só diz respeito à mente do indivíduo, aos seus processos mentais individuais,
já que, como a fala não expressa pensamento, como sei que o que falo é
compreendido pelo outro? Tendo em vista que não vejo, nem sei quais são
os processos mentais que ele faz ao dizer uma palavra.
Todas essas objeções foram levantadas partindo do pressuposto de que
a fala e o pensamento são coisas distintas. Porém, é negando que haja esta
distinção que Merleau-Ponty criticará tanto os intelectualistas quanto os empi-
ristas, pois, no que concerne ao sentido da palavra enunciada, ele (sentido
da palavra) não existe. Porque, em um caso, o sentido estaria na consciência
do indivíduo e não na fala, e, no outro, o sentido estaria na relação entre as
associações da imagem verbal à fala. Nos dois casos, contudo, a palavra não
tem sentido, ela é um acessório que faz parte de um sistema, ela não é neces-
sária para comunicação. Para superar essas duas concepções que tratam da
fala como acessória, o autor estabelecerá que a linguagem vai além da fala,
mas ela, a fala, é importante para comunicação e “ultrapassa-se tanto o inte-
lectualismo quanto o empirismo pela simples observação de que a palavra
tem um sentido”8. Essa constatação de que a palavra possui um sentido que
não é desprendido do pensamento é o que proporcionará a superação das
duas tendências da psicologia, e, buscar-se-á sustentar adiante que a palavra
não precisa ser necessariamente verbal, falada, ela pode ser sinalizada como
na língua de sinais. Portanto, o que decorrerá a seguir será a apresentação

8 Ibid., p. 241.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 119

da conexão entre fala e pensamento e o surgimento de uma nova filosofia


da linguagem.

1. O pensamento e a fala

“À primeira vista, acreditar-se-ia que a fala ouvida nada pode trazer-lhe:


é ele [sujeito] quem dá seu sentido às palavras, às frases, e a própria combina-
ção das palavras e das frases não é uma contribuição alheia, já que não seria
compreendida se não encontrasse naquele que escuta o poder de realizá-la
espontaneamente”9. Neste excerto é possível identificar uma caracterização
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da linguagem como um processo mental feito por um sujeito. Ora, como sei
o significado de uma palavra ao ouvi-la? A passagem acima nos apresenta
que articulação das palavras ouvidas, como na formulação de uma frase, por
exemplo, é feita por um sujeito, é uma capacidade mental que o indivíduo
possui de relacionar o som ouvido com o seu correspondente significado.
Dessa maneira, existe uma passagem que vai do som ouvido ao pensamento,
e, o que garante a inteligibilidade de palavras ouvidas seria a decodificação
que o sujeito faz daquilo que foi ouvido. Perceba-se que, aqui, o significado
de uma palavra ou uma frase não é dado pelo som, mas sim pela capacidade
do sujeito de interpretar o que foi dito. Assim, parece que o sentido de uma
palavra é dado por um processo mental que ocorre na consciência do sujeito.
Se isso for verdadeiro, a palavra, enquanto manifestação empírica, não atua
na comunicação, pois ela não tem um sentido próprio, ela é um fenômeno de
segunda ordem.

Aqui, como em todas as partes, primeiramente parece verdade que a cons-


ciência só pode encontrar em sua experiência aquilo que ela mesma ali
colocou. A experiência da comunicação seria assim uma ilusão. Uma
consciência constrói — para X — essa máquina de linguagem que dará a
uma outra consciência a ocasião de efetuar os mesmos pensamentos, mas
realmente nada passa de uma à outra10

Nesta passagem, Merleau-Ponty indica que essa concepção intelectualista


da comunicação parece verdade porque a consciência só pode encontrar em
sua experiência aquilo que ela mesma criou. Ou seja, parece verdade que a
comunicação depende de um processo mental porque o significado das pala-
vras foi criado por esse mesmo intelecto que as compreende. Assim, por uma
certa identificação entre criador e criatura, os conceitos e palavras criados pela

9 Ibid., p. 242-243.
10 Ibid., p. 243.
120

consciência racional retornam a ela para compreensão de seus significados. E,


como todos têm a mesma capacidade intelectual de operar esses conceitos, o
aparelho mental individual consegue compreender o significado atribuído às
palavras. Se isso for a experiência da comunicação, comenta Merleau-Ponty,
ela é falsa. Porque, se o significado de algo é dado pelo processo mental do
sujeito que pensa, como não vejo nem sei dos processos mentais dos outros,
como sei que ao pensarmos falamos da mesma coisa? Posto que a palavra
que é ouvida e compartilhada não emite sentido. O objetivo da comunicação
é a troca de informação, o diálogo, a criação. Como a palavra ouvida não tem
um sentido próprio, como ela depende de uma estrutura psíquica particular

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para lhe conferir sentido, como eu não vejo esse processo mental nos outros,
a comunicação se torna inviável. Se assim for, ela (comunicação) é inviável
porque cada palavra dita só fala dos meus processos mentais, e como não
vejo os processos mentais do outro não posso saber o que ele fala, ou, ao
falarmos, não dizemos nada sobre as mesmas coisas, estaríamos fechados
em nós mesmos.
A superação dessa comunicação particular da linguagem intelectualista
é dada, como já vimos, pela suposição de que a palavra dita expressa um sig-
nificado, assim, não existe diferença entre aquilo que se pensa e aquilo que
se fala. Se pensarmos que o pensamento é um trabalho do espírito e a fala
um trabalho do corpo, quando Merleau-Ponty comenta que a fala expressa
o pensamento, de alguma maneira então o espirito se entrelaça com o corpo
para que haja comunicação. Essa hipótese será defendida por nós como forma
fundamental de que não há uma distinção entre espírito e corpo na experiência
do indivíduo.
O que constatamos até aqui é que “é preciso que o sentido das palavras
finalmente seja induzido pelas próprias palavras ou, mais exatamente, que sua
significação conceitual se forme por antecipação a partir de uma significação
gestual que, ela, é imanente à fala”11. O que Merleau-Ponty parece chamar
atenção neste trecho é que o significado conceitual de uma palavra é dado
junto com a sua fala, não existe um conceito separado da fala. Porém, mesmo
não existindo diferença entre fala e pensamento, o acréscimo da ideia de uma
significação gestual pode querer dizer que a significação da palavra não é
dada exclusivamente pela elucubração sonora da voz. Pois, o estabelecimento
de um significado para determinada palavra é um gesto, assim, falar é uma
expressão imanente desse gesto, mas talvez não seja a única. “Há, portanto,
tanto naquele que escuta ou lê como naquele que fala e escreve, um pensa-
mento na fala que o intelectualismo não suspeita”12.

11 Ibid., p. 243-244.
12 Ibid. p. 244.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 121

2. A fala como um signo e a significação

“Essas observações permitem-nos restituir ao ato de falar a sua verda-


deira fisionomia. Em primeiro lugar, a fala não é o “signo” do pensamento,
se entendemos por isso um fenômeno que anuncia um outro, como a fumaça
anuncia o fogo. [...] o sentido está enraizado na fala, e a fala é a existência
exterior do sentido”13. Quando o autor comenta “essas observações” ele se
refere a todo o caminho traçado até aqui, a saber; a recusa das psicologias
empiristas e intelectualistas sobre o pensamento e a fala; e a superação delas
através da atribuição de um significado à fala, isto é, a fala expressa pensa-
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mento. A recusa da fala ser um signo do pensamento permite comentar que


essa recusa gera a recusa de pelo menos três outras dicotomias; uma que já
vimos é o pensamento e a fala como coisas separadas; a outra é a interiori-
dade e exterioridade; e a última o sujeito e objeto. Começando pela última,
a relação sujeito e objeto pressupõe um sujeito representante e uma coisa
representada. Em outras palavras, o sujeito que pensa e a coisa pensada. Dessa
relação, a palavra é o involucro sensível do signo, ela aponta para algo que
é compreendido intelectualmente. Para compreendermos de forma clara a
recusa de Merleau- Ponty à palavra como um signo do pensamento citaremos
um exemplo clássico das Confissões de Santo Agostinho onde ele comenta
como ele aprendeu a falar:

Dessa época já eu me lembro, e mais tarde adverti como aprendera a falar.


[...]. Retinha tudo na memória: quando pronunciavam o nome de alguma
coisa, e quando, segundo essa palavra, moviam o corpo para ela. Via e
notava que davam ao objeto, quando o queriam designar, um nome que
eles pronunciavam14.

Como comenta o bispo de Hipona no excerto acima, ele parece ter apren-
dido a falar ao ver como os adultos falavam dos objetos, esse gesto de mover
o corpo que ele comenta é o gesto de apontar. É como se para designar o que
é um objeto precisássemos apontar para ele, esse apontamento, depois de
ter adquirido a linguagem, não seria mais feito com o gesto, mas com a voz.
Assim, a palavra aponta para algo - “cadeira” por exemplo -, mas a elucubra-
ção de seu sentido não está no ato de falar, ele é acessório, o que garante o seu
sentido é uma atividade do espírito que, no caso de Agostinho, é a doutrina do
mestre interior. O que nos interessa nessa constatação da fala por apontamento
é poder comentar que parece que a fala aponta para um significado fora dela

13 Ibid., p. 247.
14 AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril S.A. Cultural e
Industrial, 1973, p. 31.
122

que só é captado pelo intelecto. Dessa maneira, a fala é um signo que aponta
para o pensamento porque o seu sentido está num ato do espírito e não na
elucubração da voz: ela só aponta para um processo mental. Voltando para
a relação sujeito e objeto, podemos pensá-la da seguinte maneira: existe o
sujeito que pensa um objeto e é a fala que aponta para esse objeto, ela é um
fenômeno sensível ou a consciência do mesmo. O que quero chamar atenção
aqui é que pode existir um pensamento sem fala porque a fala não possui uma
significação, é o pensamento que faz isso. Portanto, é contra essa concepção
de linguagem intelectualista que o autor francês dirá que: “É preciso que, de
uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de

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designar o objeto ou o pensamento para se tornarem a presença desse pen-
samento no mundo sensível e, não sua vestimenta, mas seu emblema ou seu
corpo”15. O que autor sugere aqui é que a fala seja a existência corpórea do
pensamento, isso não é fortuito porque se recusássemos isso e recorrêssemos
às psicologias empiristas e intelectualistas, a fala seria desprovida de sentido
e a comunicação intersubjetiva seria um problema. Agora, se admitirmos
que a fala expressa o pensamento surge uma nova forma de compreender a
linguagem, “como dizem os psicólogos, um “conceito linguístico” (Spra-
chbegriff) ou um conceito verbal (Wortbegriff), uma “experiência interna
central”, especificamente verbal, graças à qual o som ouvido, pronunciado,
lido ou escrito se torne um fato de linguagem”16. É um conceito verbal ou
linguístico porque ela une o corpo com o espírito, o pensamento com a fala,
e, assim, o fato da linguagem é expresso por aquele que ouve, que fala, que
lê e que escreve. E, se acrescentarmos a isso a concepção anterior de lingua-
gem como gesto, a compreensão das palavras pode ser gestual, como em
uma língua de sinais. O que reluz dessa nova concepção de linguagem é uma
expressão do pensamento.

Essa potência da expressão é bem conhecida na arte e, por exemplo, na


música. A significação musical da sonata é inseparável dos sons que a
conduzem: antes que a tenhamos ouvido, nenhuma análise permite-nos
adivinhá-la; uma vez terminada a execução, só poderemos, em nossas
análises intelectuais da música, reportar-nos ao momento da experiência;
durante a execução, os sons não são apenas os “signos” da sonata, mas
ela está ali através deles, ela irrompe neles17.

O autor recorre ao exemplo da música para explicitar que o signifi-


cado de uma sonata não é dado somente pelos sons ouvidos, pois, esses sons

15 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 5 ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, p. 247.
16 Ibid.
17 Ibid., p. 248
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 123

representam um todo de significação que se irrompem, se entrecruzam em


cada parte da música para formarem algo maior. Dessa comparação pode-
mos dizer que algo parecido acontece com a expressão linguística, ela não
é tradução dos signos, mas uma significação da experiência que transborda,
que tem um excesso de significação. Portanto, falar não é só transcrever
signos gestuais ou verbais, é uma capacidade de dar vazão ao pensamento
e com essa capacidade de expressão é possível a criação de algo, é possível
significar um mundo. Assim, a “significação devora o signo” porque existe
algo que transcende a própria elucubração das palavras que é a capacidade
de significação da fala como gesto, mesmo ela precisando dos signos para se
expressar ela não se resume a eles.
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3. O pensamento interior
“O pensamento não é nada de “interior”, ele não existe fora do mundo e
fora das palavras. O que nos engana a respeito disso, o que nos faz acreditar em
um pensamento que existiria para si antes da expressão, são os pensamentos
já constituídos e já expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente
e através dos quais nos damos a ilusão de uma vida interior”18. Dizer que o
pensamento não é interior e nem existe fora do mundo das palavras é reafirmar
a possibilidade de comunicação pela linguagem. Porque, se o pensamento
fosse algo plenamente interior e não pudesse ser expresso na fala, a comu-
nicação ficaria inviável e a construção de um mundo coletivo seria apenas
uma abstração. Ir contra uma suposta interioridade é se posicionar contra um
subjetivismo racional absoluto que se pensa como descolado do mundo, que
interpreta o pensamento como algo fora do mundo material e fora das pala-
vras. A princípio, a recusa da ideia de interioridade é para não esquecer que
a existência das coisas do mundo se dá no universo concreto da linguagem,
elas têm uma facticidade que não existe só no pensamento da minha cabeça.
Assim, o que causa essa sensação de engano ao se pensar em algo interior ao
sujeito é uma certa naturalização de significações já existentes. Ora, afinal,
não nascemos falando, se a fala é a expressão do pensamento, no processo
civilizatório de educação aprendemos a falar e a nos expressar, assim adqui-
rimos significações já existentes e, pelo que parece sugerir Merleau-Ponty,
essas significações já existentes tornam-se nossas, são introjetas a tal ponto no
indivíduo que se tornam dele. Daí decorreria a falsa sensação de interioridade,
de silêncio do pensamento, porque acreditamos que essas significações dadas
são nossas e não de um grupo social de determinada cultura ou religião. Isso
não quer dizer que não existe individualidade, quer dizer que significamos
a nós mesmos a partir de “significações já disponíveis, resultado de atos de

18 Ibid., p. 249.
124

expressão anteriores”19. Existe um entrelaçamento entre as significações


existente e a expressão do indivíduo e supor que o que existe primeiro é o pen-
samento individual, nesse caso, é desconsiderar que adquirimos a linguagem
no mesmo momento que tentamos nos expressar, não tem uma anterioridade
do pensamento, essa ilusão decorre do fato de que existe uma significação
previa que nos é dada. E, essa significação não paira fora do espaço e do
tempo como um pensamento puro. “Assim, a linguagem e a compreensão da
linguagem parecem evidentes. O mundo linguístico e intersubjetivo não nos
espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior
de um mundo já falado e falante que refletimos”20. A constatação de que é

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num mundo falado e falante que refletimos, expressa a impossibilidade de se
pensar algo de existente fora do mundo, como um pensamento sem corpo,
uma subjetividade pura, uma alma desencarnada. Porque, se a interioridade
pode pressupor uma relação consigo mesmo desprendida do mundo, isso só
acontece porque excluímos de onde foi que eu adquiri essa capacidade de
pensamento, posto que não nascemos com as palavras, elas são aprendidas.
E restituir a fala como um gesto é devolver a ela algo que foi perdido tanto
pelo intelectualismo quanto pelo empirismo, que é; a fala expressa um pen-
samento. Existe um rompimento do silêncio entre um indivíduo e outro, e a
instauração de uma significação comum estabelece a possibilidade da criação
de um mundo, de uma cultura, de uma religião, de uma sociedade. Em suma,
estabelece a capacidade humana de modificar e criar um mundo. Afinal, “a
fala é um gesto, e sua significação um mundo”21.

4. Fala falante e fala falada

Como uma caracterização geral da linguagem, Merleau-Ponty fará uma


distinção entre fala falante e fala falada:

poderíamos distinguir [linguagem] entre uma fala falante e uma fala


falada. A primeira é aquela em que a intenção significativa se encontra
em estado nascente. [...] A fala é o excesso de nossa existência por sobre
o ser natural. Mas o ato de expressão constitui um mundo linguístico e um
mundo cultural, ele faz voltar a cair no ser aquilo que tendia para além. Daí
a fala falada que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna
obtida. [...] É essa função que adivinhamos através da linguagem, que se
reitera, apoia-se em si mesma ou que, assim como uma onda, ajunta-se e
retoma-se para projetar-se para além de si mesma22.

19 Ibid.
20 Ibid., p. 250.
21 Ibid.
22 Ibid., p. 266-267.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 125

A fala falante é uma intenção em estado nascente porque ela é algo que
transcende o ser, transcende um objeto, ela é um impulso de criação que vai
além da expressão empírica dessa intenção. Porém, como aporte empírico,
essa intenção encontra um meio de expressão, a fala, e assim, aquilo que
tendia para fora do ser retorna a ele através da fala. Mas, esse gesto de expres-
são não é fortuito, quando ele acontece constitui-se um mundo linguístico
porque podemos significar as palavras e dar vazão a esse impulso latente de
intenção. Dessa maneira, construímos sociedades, culturas, religiões e todo
um universo de significações que são inteiramente humanas, a linguagem
não é um artifício secundário da inteligência, é um meio de expressão que
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constitui o ser humano enquanto tal, ela que possibilita o reconhecimento de


mim mesmo e de um outro. A fala falada disfruta significações disponíveis
porque é através delas que nos constituímos, é através das significações que
nos são dadas no processo educacional que podemos pensar a nós mesmos e
ao mundo. Entretanto, não é porque usamos significações já existentes que
não podemos criar ou ressignificar as coisas, a transcendência da fala falante
garante a linguagem uma capacidade de criação porque ela é um excesso, uma
superabundância que tenta se expressar. Como já existe um universo cultu-
ral quando nascemos, nos expressamos através daquilo que já conhecemos,
mas essa expressão não é uma tradução direta do pensamento ou de algum
sentimento. Sempre haverá um ruído, uma forma nova de significar, afinal,
um poeta ou um pintor não querem esgotar a pintura ou as palavras, mas
sim ressignificá-las a fim de criar algo novo, dar vazão a uma nova forma de
expressão. Assim é a linguagem para o autor francês, um ser de criação, uma
potência, e a analogia com a onda do mar se torna elucidativa ao pensarmos
que, da mesma forma que a onda em seu movimento invade a praia, retorna
para si e depois avança de novo, a linguagem, ao desfrutar das significações
já existentes, retorna a si mesma e através delas abre uma possibilidade nova
de significação, uma transcendência que não esgota a linguagem, mas a res-
significa e cria novas possibilidades.

5. A fala e o corpo próprio

Como um balanço do capítulo, Merleau-Ponty resumirá a sua ideia central


em uma passagem, e, com isso, ele apresentará de forma bem discreta, como
a análise da linguagem revela uma característica específica do corpo próprio.

A análise da fala e da expressão nos faz reconhecer a natureza enigmática


do corpo próprio. [...] Sempre observaram que o gesto ou a fala transfi-
guravam o corpo, mas contentavam-se em dizer que eles desenvolviam
ou manifestavam uma outra potência, pensamento ou alma. Não se via
126

que, para poder exprimi-lo, em última análise o corpo precisa tornar-se o


pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra, ele que
fala, eis o que aprendemos neste capítulo23.

Essa natureza enigmática do corpo próprio que a análise da fala expressa,


acreditamos que seja uma característica muito singular, sui generis, da expe-
riência humana. Na análise empirista da linguagem, ela era interpretada como
um mecanismo psíquico ou físico que fazia parte de um sistema, um todo
organizado através de uma lei de associação que podia explicar o movimento
que ia da periferia da voz ou centro do cérebro. Entretanto, a recusa dessa

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interpretação mecanicista suscita dizer que a linguagem não é só um fenômeno
que precisa ser descrito, assim, descrever esse objeto em sua composição
química, atômica, neuronal, colocá-lo em uma cadeia de causalidade, não
garante maior entendimento do poder de significação que a fala possui. Com
isso, existe algo na experiência humana que ultrapassa os limites da análise
objetiva, por isso, não somos pura matéria objetificada e nosso corpo não
pode ser só isso. Com o intelectualismo, vamos ao extremo oposto da maté-
ria, o espírito, a mente em seu pleno funcionamento racional. Aqui, como na
anterior, a análise da linguagem reverbera em um sentido muito particular
que é: a compreensão da palavra é dada por uma operação intelectual, mental
e como a fala não expressa o sentido da palavra, essa compreensão só é evi-
dente ao próprio sujeito, ela é, portanto, particular. Se a palavra não expressa
sentido algum, caímos num problema solipsista da intersubjetividade. Assim,
quando Merleau-Ponty estabelece a fala como um gesto, como uma significa-
ção própria, como um ser de expressão, ele se contrapõe ao intelectualismo
e apresenta que ele pode ser superado se constarmos que a fala expressa um
sentido, expressa um pensamento. Dessa maneira, a possibilidade da inter-
subjetividade é garantida, pois devido à cultura, compartilhamos significa-
ções em comum e podemos nos comunicar e criar tudo aquilo que advém da
capacidade humana: cultura, música, política, ética, poética, religião etc. No
caso do intelectualismo, sua recusa advém de uma separação entre o corpo e
o espírito porque é somente supondo que o pensamento existe fora da fala que
é possível pensar em um distanciamento do corpo e do espírito como coisas
distintas. A reconciliação desses dois na filosofia Merleau-Pontyana garante
que nós não nos desprendamos do corpo a fim de imaginar uma existência
pura, uma alma desencarnada. Afinal, não somos puro pensamento, ele só
existe porque primeiro adquirimos uma linguagem, daí pensamos a nós mes-
mos e o mundo. Voltando à passagem referida, essa característica singular da
experiência humana denota um sentido em que a unidade do indivíduo não

23 Ibid. p. 267.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 127

pode se reduzir ao objeto da ciência, nem a pura subjetividade, pois, “sua


unidade é sempre implícita e confusa”24. Isto quer dizer que somos corpo e
espírito juntos, um não se separa do outro a não ser por abstração como faz a
ciência e a filosofia. O que a análise da linguagem mostrou é que o pensamento
tem corporeidade, ele é vivido e compartilhado, assim, a intersubjetividade
é possível dada conexão, mesmo que confusa, do espírito com o corpo, não
somos uma coisa nem outra, somos uma amálgama das duas, um imbricamento
confuso que tenta se expressar ao se comunicar.

Conclusão
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A constatação da experiência humana como uma unidade implícita e


confusa não é uma alusão à irracionalidade, muito menos um desdém a con-
cepções científicas sobre o que seja o ser humano, segundo Marilena Chauí
– “Merleau-Ponty não buscava refúgio no irracional, mas lutava por uma
racionalidade alargada que pudesse “compreender aquilo que em nós e nos
outros precede e excede a razão25-”26. Baseando-se nessa passagem, pode-
mos interpretar que a recusa às duas tendências - empirista e intelectualista
-, é uma forma de compreensão da linguagem que buscava alargar a maneira
clássica de se tratar da linguagem. E, com essa nova acepção de linguagem,
uma nova concepção de ser humano também se cristaliza. O ser humano,
para além da objetividade empírica, para além da abstração intelectual é o
que buscou o filósofo francês. Apresentar o limite de ambas as concepções
e como elas reduzem o objeto humano a algo diferente daquilo que ele pode
ser. A transcendência de significações pela linguagem apresenta um aspecto
da realidade que a inteligência não capta, um excesso de sentido que tenta se
expressar através da fala, que para tal feito inventa a música, a arte, a ciência,
a filosofia e tudo aquilo que o intelecto humano alcança. Entretanto, não se
resume a nenhuma delas, todas são expressões possíveis da potência humana
de criação. Portanto, a filosofia de Merleau-Ponty, acreditamos, busca apre-
sentar uma experiência da realidade que talvez estivesse perdida ou ofuscada,
sua crítica reluz algo de singular da existência, uma forma de se acercar da
linguagem e do corpo como uma coisa só. Uma potência, uma energia, que
pode ir do nada a lugar nenhum, mas que cria e se descobre como alguma
coisa no processo de existir.

24 Ibid. p. 269.
25 Marilena Chauí. Experiência do pensamento: ensaio sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p.7. Apud Merleau-Ponty, “De Mauss à Claude Lévi-Strauss” in Signes, Paris, Galimard, 1960,
p. 157; São Paulo, abril, op. cit., p. 393.
26 Marilena Chauí. Experiência do pensamento: ensaio sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 7.
128

REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.
São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973.

MARILENA CHAUÍ. Experiência do pensamento: ensaio sobre a obra de


Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos


Alberto Ribeiro de Moura. 5 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.

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APEL, COM E CONTRA WEBER:
a Ética do Discurso como superação
da Ética da Responsabilidade
Antonio Wardison C. Silva1

Introdução
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Na arquitetônica filosófica de Karl-Otto Apel, a ética ocupa lugar fun-


damental, como ação do humano em favor do próprio humano e das demais
espécies, bem como do ambiente em que vivem. A ética apeliana – em razão
dos desafios do mundo atual, de crise humanitária e risco de destruição da
biosfera – apresenta-se como uma macroética, intitulada por ele ética discur-
siva ou Ética do Discurso, capaz de orientar a ação humana na eminente era
da técnica e da ciência. Sua reflexão ética se desenvolve a partir da discus-
são sobre as “racionalidades” que fundamentam um legado ético. No intuito
de compreendê-las, busca demonstrar uma racionalidade factível para a sua
proposta ética, bem como para toda a sociedade.
Diz Apel que, no pensamento contemporâneo, o conceito de raciona-
lidade – e, respectivamente, de racionalização –, atingiu uma compreensão
unívoca, como oposto ao irracional; com isso, não reconheceu os diversos
tipos de racionalidade. O conceito, então, é compreendido como tudo aquilo
que é de caráter lógico ou de cálculo matemático, neutro de valoração e
instrumentalizável para os seus mais diversos fins, com meios estratégicos.
A secularização do legado da fé potencializou esta vertente no dualismo de
uma razão instrumental isenta de valor, por um lado, e de uma decisão de
consciência irracional sobre valores e normas, por outro lado. Ora, o conceito
de razão de Kant e Hegel procurou, de certa forma, combater esta perspectiva,
mas foi abandonado no decorrer do tempo, como ideia obsoleta2.
Nesse horizonte, o filósofo alemão Max Weber, criador do “processo de
racionalização ocidental”, passou a representar este dualismo e, com isso, a
complementaridade de uma racionalidade valorativamente neutra e de uma
escolha irracional de axiomas últimos de valoração. Weber, da mesma forma
que os positivistas, se tornou o cofundador do sistema de complementaridade
da ideologia ocidental, cuja práxis humana, no âmbito da vida pública, é regu-
lada pela racionalidade não-valorativa da ciência e da técnica, com normas
1 Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
2 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Trad. Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 201ss.
130

alcançadas pelo acordo entre os sujeitos, fruto de decisões democráticas de


maioria. Tal concepção, aceita em geral por liberais democráticos, parece
relevante para o mundo hodierno, mas, com base em uma análise mais atenta,
apresenta-se paradoxal e ilegítima. O preço a ser pago com este sistema de
complementaridade consiste na impossibilidade de conferir responsabilidade
às consequências das ações coletivas dos sujeitos, dada a subsistência de
uma distinção entre legalidade e moralidade; também, na recusa de a ética
filosófica alcançar normas intersubjetivamente válidas, tornada obsoleta a
sua pretensão por legitimação e crítica do processo de fundamentação. Esta
concepção é difundida como uma ameaça à liberdade democrática.

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Na perspectiva do sistema de complementaridade não há problema de
legitimação racional, além da conduta institucionalizável. E isto já implica
os fundamentos da democracia. Apel parece não se admirar – considerados
os pressupostos do sistema de complementaridade – de que um sujeito não
possa assumir a responsabilidade pelas consequências das atividades nas
esferas social, política e econômica. Cabe às instituições, na esfera pública,
assumirem tal responsabilidade, tornando o sujeito descompromissado com
as consequências do seu agir. Parece, então, ser utópica uma ética da respon-
sabilidade intersubjetivamente fundamentada e válida para todos. Para Apel,
“só se considera como possível uma responsabilidade racionalmente fundável
para a submissão isolada às regras de cada um, no âmbito de sistemas de regras
convencionais, já estabelecidos”3, mas não uma responsabilidade conferida
pela participação dos sujeitos em processos públicos, comunicativo-consen-
suais, da organização de uma responsabilidade solidária para instituições.
Apel compreende que o paradoxo do sistema de complementaridade
deve-se ao não reconhecimento – dada a carência de uma racionalidade comu-
nicativo-consensual – da necessária conexão entre a consciência privada e
uma racionalidade não isenta de valoração, fundamentando o agir coletivo.
E esta deficiência se demonstra na concepção dos acordos regulamentados,
submissos à simples ação democrática, onde o acordo democraticamente
regulado, alcançado pela maioria, represente um compromisso estratégico
entre as decisões de vontade – e não fundamentáveis – dos sujeitos, bem
como de seus representantes. O acordo representa a fundamentação última das
normas publicamente válidas, inclusive do direito positivo. Esse mecanismo
nada mais acentua que a vontade subjetiva de cada sujeito, restrito ao âmbito
privado, e muito aquém de uma decisão intersubjetivamente válida. Por isso,
Apel insiste na necessidade de a ética se sustentar por uma intermediação
racional entre a moral de consciência e a moral pública, válida, “porque, sem
a pressuposição subjetiva da capacidade de consenso numa comunidade ideal

3 Ibid., p. 205.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 131

de comunicação, também a decisão de consciência do indivíduo, no sentido da


ética da comunicação, não pode ser moralmente cogente para ele próprio”4.
De acordo com Apel, toda essa discussão – em torno dos pressupostos do
sistema de complementaridade – traz um resultado significativo, que consiste
na distinção entre a racionalidade estratégico-consensual (expressa em ações
linguísticas onde os interlocutores se instrumentalizam reciprocamente) e a
racionalidade comunicativo-consensual (expressa em ações linguísticas onde
os interlocutores se relacionam mutualmente como sujeitos para resolver os
problemas da vida em geral)5, ambas formas de interação social ou de comu-
nicação entre os sujeitos de ação. Mas somente a racionalidade comunicati-
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vo-consensual, afirma Apel, “pressupõe regras ou normas que se encontram, a


priori, além do interesse pessoal bem calculado de cada um; a racionalidade
estratégica, ao contrário, se fundamenta exclusivamente na reciprocidade da
adoção técnico-instrumental da racionalidade de ação prática, na convivência
entre os homens”6. Por isso, não pode ser ela a única fonte de fundamentação
ética, caso se busque, como intenta Apel, a fundamentação última racional da
ética. Se os acordos livres, reforça Apel, fossem fundamentados em acordos
arbitrários e estrategicamente pré-calculados, não seria possível entender o
cumprimento de normas por uma pessoa sem reserva criminal.
Com esta análise crítica, Apel pretende demonstrar que o acordo etica-
mente aceitável, na perspectiva da racionalidade comunicativo-consensual,
é aquele capaz de introduzir o critério da capacidade de consenso para os
sujeitos, não só para aqueles envolvidos no conflito, mas para todos os atingi-
dos. Esta perspectiva, da racionalidade comunicativo-consensual, vem a ser
a racionalidade ética legítima, na compreensão de Apel. Ora, Kar-Otto Apel
tem clareza de sua ousada proposta ética, ao ponto de se perguntar sobre a
sua receptividade e alcance na sociedade industrial; se é ela, como já acenado,
uma proposta utópica. Porém, insiste que na ética cada um, naturalmente, deve
optar moralmente por um sistema de autoafirmação. Mas não deve supor que
os outros – também munidos por um sistema de autoafirmação – atendam,
igualmente, um imperativo categórico, de validade normativa para todos
(universal). Por isso, deve o sujeito não apenas agir segundo a racionalidade
consensual-comunicativa, mas, também, segundo a racionalidade estraté-
gico-consensual. E parece que Weber, segundo Apel, não deu uma resposta

4 Ibid., p. 206.
5 CORTINA, Adela. El legado filosófico de Karl-Otto Apel. Topologik, n. 24 (numero speciale), december
2018 – april 2019, p. 107. Na base da racionalidade estratégica se encontra o solipsismo metódico, que
consiste no pensar monológico da filosofia da consciência e da análise linguístico-sintático-semântico. Ele
representa, como é possível admitir, a raiz do liberalismo ocidental, que privilegia a consciência isolada em
detrimento de uma comunidade linguística de comunicação, vindo justificar o egoísmo social. Ibid., p. 107.
6 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, p. 206.
132

satisfatória a este problema em sua composição – demonstrada na obra Política


como vocação – da ética da convicção com a ética da responsabilidade. Este
problema parece ser mais velado que clareado e, por isso, a necessidade de
compreensão destas racionalidades e como elas podem se conjugar em favor
de uma ética racional para o homem contemporâneo7.
Este capítulo tem o propósito de investigar como Apel – ao identificar a
presumida fragilidade da ética da responsabilidade, de Max Weber –, a com-
preende e a incorpora em seu legado ético, na ética discursiva, como tentativa
de superação da ética weberiana. Nesse sentido, o texto, na primeira parte,
expõe a crítica de Weber aos postulados éticos metafísicos e a perspectiva

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da ética da responsabilidade, como também a tentativa de Apel em superar,
com a racionalidade discursiva, a racionalidade teleológico-instrumental; na
segunda parte, apresenta a compreensão pragmático-transcendental e estrutural
(nas partes A e B) da Ética do Discurso, como uma ética de responsabilidade
solidária. De outra forma, o texto busca discutir a apreciação de Apel, com
Weber, a respeito da ética metafísica e, até mesmo – consideradas as limitações
de tal postulado ético – da ética da responsabilidade; a seguir, contra e além
de Weber, a criticidade de Apel acerca da ética da responsabilidade, caracte-
rizada pela racionalidade estratégica, e seu confronto com a racionalidade
comunicativa, de fundamentação na Ética do Discurso. Por fim, esboça a
compreensão da Ética do Discurso e, com Weber, a valoração e necessidade
da ética da responsabilidade, situada na parte B da ética discursiva, como
uma ética da corresponsabilidade.

1. A crítica de Weber aos postulados éticos metafísicos e a


perspectiva da ética da responsabilidade

Para Karl-Otto Apel, o paradigma da racionalidade de Max Weber está


fundado na racionalidade teleológica, de meios e fins. É ela o grau supremo
de racionalização, fundamento da ética da responsabilidade. De grau inferior
encontra-se a racionalidade valorativa, fundamento da ética da convicção8.
Ao discutir, criticamente, essas duas racionalidades, Weber intenta apontar
qual modelo ético, razoável, deve prevalecer em uma sociedade cosmopolita.
Esta investigação se desenvolve em um dos mais brilhantes ensaios de
Weber, em A Política como vocação. Nele, traça a diferença entre a ética da
convicção ou ética da intenção (de perspectiva metafísica) e a ética da res-
ponsabilidade (pós-metafísica), prosperada no âmbito da política e, por isso,
de grande relevância para o mundo real, dada a sua utilidade. Nesse horizonte,

7 Ibid., p. 208.
8 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos. Trad. Carlos de Santiago. México: Fontamara S. A., 2004, p. 32-33.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 133

a grande finalidade de Weber, neste ensaio, consiste em perscrutar sobre o


perfil do político vocacionado, do ponto de vista da ética9.
Ora, deve o político corresponder às qualidades exigidas ao poder con-
fiado pelos seus cidadãos. Por isso, tem o compromisso de alcançar três qua-
lidades: a) paixão; b) sentimento de responsabilidade; c) senso de proporção.
A paixão refere-se ao propósito que o homem deve ter para realizar algo; está
apaixonado por uma causa. Porém, não basta apenas a paixão, por mais legí-
tima que seja. Faz-se necessário a responsabilidade sobre a ação deliberada,
o que poderá transformar o homem em um líder político. Por fim, deve ele
também adquirir a proporção (principal qualidade psicológica do homem
político), compreendida nesse contexto como calma interior; por conseguinte,
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deve manter a distância os homens e as coisas10. Essas três qualidades, do


ponto de vista ético – segundo Weber –, legitimam a ação do político a dirigir
a própria história. Mas a qual causa deve ele entregar-se? E qual racionalidade
deve sustentar-se para agir responsável e eticamente? A causa sustentada e
defendida pelo político está no âmbito da fé, ou que dela provém ou, ainda,
que nela se radica. E deve o político, sustentado por uma fé (crença) agir
responsavelmente. Dado este raciocínio, questiona-se Weber sobre a relação
que deve se estabelecer entre ética e política, com a finalidade de examinar
qual ética deve sustentar a conduta do político, crente e responsável. Com isso,
considera injustificável a independência entre essas duas instâncias, ética e
política, quer dizer, de uma amoralidade da política. Por isso, o político, para
agir de acordo com o poder a ele conferido, deve sustentar-se pela ética11.
Para Weber, toda ação eticamente orientada atende, então, a duas máxi-
mas, radicalmente opostas entre si, a saber: a ética da convicção e a ética da
responsabilidade. Embora opostas, não se quer dizer que a ética da convic-
ção exclua completamente a responsabilidade; a ética da responsabilidade,
a convicção, crença. Na ética da convicção, também conhecida como ética
absoluta, ética incondicional ou ética cósmica – de perspectiva kantiana –, “o
cristão cumpre seu dever e, quanto aos resultados da ação, confia em Deus”12.
Aponta Weber que, “quando as consequências de um ato praticado por pura
convicção se revelam desagradáveis, o partidário de tal ética não atribuirá

9 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria. 2 ed. Salamanca: Sígueme, 1988, p. 187.
10 WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Trad. Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota.
São Paulo: Cultrix, 1993, p. 106. Weber se questiona sobre a possibilidade de o homem conjugar a paixão
e a frieza da proporção. Responde que política se faz com a cabeça e não com as outras partes do corpo.
Adverte ser a vaidade o maior inimigo do homem político, adversário a ser constantemente enfrentado. Para
ele, o político está movido pelo desejo do poder, sendo este instinto uma das suas qualidades normais.
Comete grande erro quando busca o poder sem compromisso com uma causa, mas apenas por exaltação
pessoal. Constata, então Werber, dois grandes pecados no seio da política: não defender nenhuma causa
e não ter responsabilidade alguma. E isso só pode resultar da vaidade. Ibid., p. 107.
11 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 188.
12 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 113.
134

responsabilidade ao agente, mas ao mundo, à tolice dos homens ou à vontade


de Deus, que assim criou os homens”13. Acrescenta, ainda: “o partidário da
ética da convicção só se sentirá ‘responsável’ pela necessidade de velar em
favor da chama da doutrina pura, a fim de que ela não se extinga, de velar, por
exemplo, para que mantenha a chama que anima o protesto contra a injustiça
social”14. Tal postulado ético tem como fim “estimular perpetuamente a chama
da própria convicção”15.
Como entende Apel, o sujeito, nessa perspectiva, tem a competência de
eleger fins e meios adequados, sem responsabilizar-se pelas possíveis conse-
quências do seu agir, pois está convencido da medida (incondicional) a ser

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tomada e, por isso, da ação a ser realizada16; considera que certas ações ou
são boas ou más em si mesmas, podendo ser efetuadas ou evitadas indepen-
dentemente das circunstâncias e sem preocupação com os seus efeitos, con-
sequências. De outra forma, este postulado ético prevê que normas devem ser
observadas ou cumpridas, incondicionalmente: as normas éticas são válidas
para todos e para todo lugar17.
Apel compreende a racionalidade valorativa – ética da convicção – a
partir de dois pressupostos, próprios da filosofia de Weber: a) a concepção
kantiana de um dever inevitável, o imperativo categórico; por isso, para Weber,
o valor da incondicionalidade no agir; b) a “convicção de que os últimos axio-
mas valorativos do indivíduo são imensuráveis e, nesta medida, são assunto
de uma decisão de fé pré-racional ou irracional”18.
Neste aspecto, aponta Weber a semelhança da ética da convicção com
o modelo kantiano, como também com o pacifismo cristão, que prescreve
uma ação com base em mandatos absolutos, independentemente de qualquer
condição. O sermão da montanha (Mt 5,1-12), segundo Weber19, representa
esta perspectiva, como se observa em quatro de seus principais ensinamentos:
abandonar tudo; virar a outra face; não resistir ao mal com a força; dizer a
verdade. Caso essas medidas sejam adotadas pelo político vocacionado, incon-
dicionalmente, poderá ele sustentar a violência e a discordância ou mentira
diplomática; agirá em resposta àqueles que nele confiaram, mas sem se preocu-
par com as consequências das suas decisões. Não será possível justificar uma
medida presumivelmente violenta ou estratégica, nem mesmo a defesa armada,
seja de um indivíduo, seja de vulneráveis, nem mesmo combater o terror. Este
modelo ético desaprova qualquer estratégia no campo das relações humanas

13 Ibid., p. 113.
14 Ibid., p. 114.
15 Ibid., p. 114.
16 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 33.
17 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 189.
18 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 33.
19 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 111.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 135

públicas20. Por isso, deve o indivíduo, caso deseje alcançar a própria salvação
e a dos seus semelhantes, evitar a política, porque ela, por vocação, busca
alcançar seus objetivos e concretizá-los por meio, em geral, da violência21.
Weber, nesse sentido, compreende a ética do sermão da montanha como
a ética absoluta do Evangelho, do tudo ou nada e, por isso, perigosa para a
política, por ser irresponsável e, para Apel, irracional22. O mesmo princípio
é aplicado, como sustenta Weber, na parábola do jovem rico (Mt 19,16-21):
um jovem, ao questionar Jesus sobre o que deveria fazer para alcançar a vida
eterna, recebe a seguinte resposta: obedeça aos meus mandamentos. Mas o
jovem diz já observar tais mandamentos e o questiona sobre o que ainda lhe
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faltava. Então, Jesus responde (e o ordena): se você quer ser perfeito, vá,
venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos
céus. Depois, venha e siga-me. Ao ouvir isso, o jovem, triste, se retira. Vê-se
que a ética do Evangelho é incondicional e unívoca. E não há dúvidas de que,
para o político, este legado ético é absurdo e irrealizável ou não aplicável
para todos23.
Este princípio ainda é identificado, para Weber, no ordenamento de Jesus:
“se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe também a outra. Se alguém
tirar de você a capa, não o impeça de tirar a túnica” (Lc 6,29). Neste princípio
ético, afirma Weber, não pode haver dignidade, ou melhor, exprime uma ética
sem dignidade, com exceção para os santos (ou para aquele que deseja sê-lo).
Somente neste estado de vida (de santidade), poderá tal princípio ético fazer
sentido e exprimir dignidade ao indivíduo24. Assim, se a ética evangélica
ordena não resistas ao mal pela força, estará convencido o político, contra-
riamente: deves opor-se ao mal pela força. Portanto, ao sustentar-se na ética
do Evangelho, não poderá o indivíduo fazer greve (por ser uma ação coativa)
e nem almejar uma revolução; nem mesmo sustentar a guerra civil como uma
ética legítima e, ainda pior, usar armas para defender uma causa25.
Em sentido contrário, segundo Weber, o político deverá agir de acordo
com a elaboração metódica dos fatos, do status quo, condição que o permi-
tirá alcançar bons resultados, ainda que imediatos. Caso não proceda dessa

20 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 189-190.


21 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 120.
22 APEL, Karl-Otto. Ética e Responsabilidade: o problema da passagem para a moral pós-convencional. Trad.
Jorge Telles Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, p. 190.
23 Ibid., p. 111.
24 Diz Weber: “sabe-se que na ética do catolicismo, [...] os consilia evangelica constituem uma moral especial,
reservada para aqueles que possuem o privilégio do carisma para a santidade. Ali se encontra, ao do monge,
a quem é defeso derramar sangue ou buscar vantagens econômicas, o cavaleiro e o burguês piedosos
que têm o direito, o primeiro de derramar sangue e o segundo de enriquecer-se”. WEBER, Max. Ciência e
Política, p. 117.
25 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 117, p. 112.
136

forma, poderá amargar consequências trágicas, pois a deficiência da ética


do Evangelho consiste em não se preocupar com as consequências da ação
do indivíduo26.
Sem dúvidas, a ética da convicção é de perspectiva kantiana, embasada
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes27. Diz Kant nada poder ser
considerado como bom, sem limitação, a não ser a boa vontade. Ela “não é
boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer
finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma”28. Por
isso, está no grau mais elevado, acima de qualquer inclinação e da soma de
todas as inclinações. Ora, se em um homem de razão e de vontade a finalidade

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da sua natureza consistisse no bem-estar, na felicidade, “muito mal teria ela
tomado as suas disposições ao escolher a razão da criatura para executora
destas suas intenções”29, pois suas ações, em vista de tal fim, estariam mais
regidas pelo instinto. Assim, a natureza evitaria o uso prático da razão, agindo
em busca da felicidade e dos meios para alcançá-la. A natureza, então, “teria
não somente chamado a si a escolha dos fins, mas também a dos meios, e teria
com sábia prudência confiado ambas as coisas simplesmente ao instinto”30.
Kant prossegue ao dizer que quanto mais o homem cultiva a razão em busca
da felicidade, mais afasta-se do verdadeiro contentamento. E disso resulta,
em muitas pessoas, o ódio à razão. Contudo, a razão – dada como faculdade
prática, aquela com o dever de exercer influência sobre a vontade – terá como
fim, verdadeiro, produzir no homem uma boa vontade, boa em si mesma e não
somente como meio. Não será ela o único bem e nem o bem total, mas o bem
supremo, condição até mesmo de toda aspiração de felicidade; é necessária
para toda incondicional intenção. Por conseguinte, Kant irá desenvolver o
conceito de vontade boa, estimável em si mesma e ponto alto de todo valor da
ação do indivíduo, com o conceito do dever (nele contido o de boa vontade)31,
que, em atendimento a uma lei, confere ao comportamento valor moral. Nesse
princípio, identifica Kant as Escrituras, particularmente ao prescrever o amor
ao próximo, mesmo ao inimigo. Ainda que essa ordem não seja cumprida por
inclinação, manter-se-á por dever. Conclui Kant que a ação praticada por
dever alcança valor moral na máxima que a determina e não no propósito a
ser atingido em tal ação, quer dizer, “não depende, portanto, da realidade do
objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a ação,

26 Ibid., p. 113.
27 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 191.
28 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,
1986, p. 23.
29 Ibid., p. 24.
30 Ibid., p. 24.
31 Ibid., p. 25-26.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 137

abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada”32. Kant


faz notar, com isso, que o “dever é a necessidade de uma ação por respeito
à lei”33. O objeto de respeito será aquilo ligado à vontade do sujeito, como
princípio, e não como efeito: a vontade, objetivamente, está determinada pela
lei; subjetivamente, o respeito por esta lei prática. A máxima consistirá na
obediência a esta lei. Em suma: o valor moral da ação não residirá no efeito
dela esperado, mas na obediência à lei em si mesma, que determina a vontade,
uma lei universal: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer
também que a minha máxima se torne uma lei universal”34.
Nessa perspectiva, é possível identificar o ponto alto da ética da convic-
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ção e, com isso, criticamente, o problema para o agir ético: pode o indivíduo,
ao querer agir bem, isentar-se das consequências de sua ação? Ora, a ação
ética, nesse sentido, não pode dispensar a convicção do indivíduo, dado o atri-
buto legislador da vontade racional. Portanto, as consequências da ação não
dependem do sujeito, porque não estão sob o seu comando, mas à causalidade
natural. E disso resulta um dilema para o agir ético, pois as consequências
pertencem ao território da experiência35. Então parece razoável afirmar, de
acordo com a ética da convicção, que a qualidade do agir moral depende da
vontade do sujeito36.
A grande deficiência da ética kantiana está justamente em promover
a separação entre o mundo noumênico e o mundo fenomênico, criando no
homem uma esquizofrenia. Tal perspectiva impede o homem de fenomenizar
a moral. Estabelecida esta separação – entre aquilo que está sob o comando
do sujeito (boa vontade e coleta dos meios para o alcance dos fins) e o que
está além do sujeito (o domínio das consequências do seu agir), identifica-se
o limite entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Convém
assinalar que a ética da convicção pode levar o homem a uma catástrofe37,
pois, de acordo com Weber, “há risco de provocar danos grandes e descrédito,
cujas repercussões se farão sentir durante gerações várias, porque não existe
responsabilidade pelas consequências”38. E isso é possível identificar no

32 Ibid., p. 30.
33 Ibid., p. 31.
34 Ibid., p. 33.
35 Nada que esteja ao alcance de uma ética de perspectiva metafísica. Nesse sentido, Apel, habilmente, estru-
turará sua ética em duas partes: A e B. Esta estará apoiada na ética da responsabilidade, de perspectiva
weberiana: a comunidade de comunicação, ao definir (consensualmente) as normas a serem aplicadas,
deverá examinar suas possíveis consequências. A parte B, diferentemente da parte A (contrafactual), é
histórica, factual, responsável pela aplicação das normas alcançadas pelo consenso dos sujeitos.
36 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 192.
37 Ibid., p. 192.
38 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 121.
138

legado kantiano do direito de não mentir39. O homem, ao adotar esta medida-


incondicionalmente – isto é, ao dizer a verdade, poderá ter como resultado a
sua morte ou a dos demais como consequência.
Ao contrário, como considera Weber, na ética da responsabilidade – de
racionalidade teleológica – deve o indivíduo responder pelas previsíveis
consequências de seus atos; “entenderá que não pode lançar a ombros alheios
as consequências possíveis de sua própria ação”40. Qualquer ação praticada,
qualquer fim a ela visada, deve levar em conta as consequências vindouras
“e isso é particularmente verdadeiro para o indivíduo que combate por suas
convicções, trate-se de militante religioso ou de militante revolucionário.”41
Assim, entende Apel que o indivíduo, ao eleger os fins e os meios de sua ação,

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em um horizonte valorativo claramente articulados, pressupõe seus efeitos
secundários42; que o político apaixonado e responsável deve eleger suas ações,
com total consciência dos seus efeitos. Surge, então, um questionamento:
pode o político eleger meios duvidosos para alcançar objetivos bons? Pode
ele mentir para alcançar boas consequências? Pode usar meios, no limite do
moralmente correto, para alcançar fins desejáveis? Esses questionamentos
não somente estão referidos ao político, mas a qualquer homem que preza
pelo outro. Nada que esteja ao alcance da ética da convicção, por condenar
qualquer meio moralmente perigoso para alcançar um fim desejado e bom43.
Dessas considerações, convém um questionamento: a ética da convicção
é irracional ao ponto de negligenciar, em prol da bondade moral, a felicidade
humana? Não necessariamente, ou melhor: ela “está convencida de que os
acontecimentos mundanos vêm regidos por uma lógica ética, de tal modo que
é impossível que de uma ação boa se sigam consequências más e, vice-versa,
que de uma ação má derivem efeitos bons”44. Assim, boas ações produzem
boas consequências; ações más, más consequências. Não é, portanto, a ética
da convicção inimiga da felicidade; ela valoriza o bem moral, em razão da
lógica que nela está contida.
39 Para Kant, não pode o homem mentir em nenhuma hipótese. A mentira pode levar o ouvinte a uma ação
contrária à sua vontade, mas de acordo com aquele que o induziu, com a sentença não verdadeira, privando
o sujeito de usar sua total liberdade. E isso viola o conceito de direito e o direito do sujeito de conhecer a
verdade. A recusa à mentira origina-se do imperativo: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. FIGUEIREDO, Nara Miranda. Sobre um suporto direito
de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos. Revista
Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar, Maringá, n. 7, ago./nov., 2005, p. 2.
40 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 114.
41 Ibid., p. 118.
42 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 33.
43 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 193-194. Sobre este aspecto, entende
Weber: “é o problema da justificação dos meios pelo fim que, em geral, coloca em xeque a ética da convicção.
De fato, não lhe resta, logicamente, outra possibilidade senão a de condenar qualquer ação que faça apelo
a meios moralmente perigosos”. WEBER, Max. Ciência e Política, p. 115.
44 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 194.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 139

De fato, é possível considerar, em um mundo absurdo, uma “irraciona-


lidade ética”, de eleição de meios moralmente perigosos para se alcançar fins
bons, e isso, ainda, com probabilidade de fins não bons. A esse respeito, diz
Weber: “o partidário da ética da convicção não pode suportar a irracionali-
dade ética do mundo. Ele é um racionalista ‘cosmo-ético’”45. Mas o que se
deve colocar em suspense, nesta perspectiva ética, de acordo com Weber, é
a radicalidade da bondade da intenção, conferindo a Deus as consequências
da ação moral46, mesma concepção, como entende Apel, admitida por Kant,
ao valorizar a boa vontade legisladora, a única decisiva para o agir moral.
Vê-se, então, com isso, que as éticas cristã e kantiana recorrem à providência.
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Todavia, como já acentuado, sem o domínio da responsabilidade da ação pelo


sujeito, a ética da convicção permanece obscura, porque visa um bem que
dificilmente alcançará efeito47.
Isso vem demonstrar a degradação da ética da convicção e, com isso,
a conversão em uma ética da responsabilidade e, ao mesmo tempo, a supe-
rioridade desta em relação àquela. Essa conversão, como entende Apel, se
dá pelo fato de a ética da responsabilidade levar em conta as consequências
da ação concreta do sujeito, devendo ser a ética do político. Tendência que,
segundo Weber, como observa Apel, é própria do processo ocidental de racio-
nalização, de uma orientação racional-teleológica voltada para os âmbitos
da cultura e da vida social, com o desaparecimento, por conseguinte, das
cosmovisões de orientação racional-valorativa. Weber chama este processo
de “desencantamento do mundo”, intrinsecamente vinculado ao processo de
“racionalização ocidental”48.
Cabe ao político vocacionado, portanto, mensurar as consequências de
suas ações; em muitos casos, deverá usar meios moralmente perigosos – até
mesmo homens ou a ocultação da verdade – para alcançar fins bons e legí-
timos49. Por conseguinte, deve ele averiguar, para alcançar os fins bons, o
limite permitido dos meios. Eis um problema a ser enfrentado pelo homem
responsável: até onde é possível eleger meios perigosos para alcançar fins
bons? Depara-se a ética da responsabilidade com um risco, de transformar-
-se em um puro pragmatismo. Em todo caso, deverá o homem político ou
homem responsável agir com convicção – e aqui não há recusa à ética da
convicção – e, ao mesmo tempo, atentar-se às circunstâncias e consequências

45 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 115.


46 APEL, Karl-Otto. Ética e Responsabilidade, p. 192.
47 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 196-197.
48 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 34.
49 Segundo Weber, nenhum postulado ético pode ignorar a questão sobre meios e fins, isto quer dizer: muitas
vezes, para o indivíduo ou grupo alcançar resultados bons, vê-se, de certa forma, compelido a utilizar-se
de meios desonestos ou perigosos ou, ainda, desagradáveis. WEBER, Max. Ciência e Política, p. 114.
140

de sua ação50. Donde resulta a complementaridade entre a ética da convic-


ção e a ética da responsabilidade, segundo Weber: “a ética da convicção
e a ética da responsabilidade não se contrapõem, mas se completam e, em
conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à
‘vocação política’”51.
Para Apel52, a análise weberiana sobre as racionalidades das ações
alcança a discussão sobre as ações sociais, atestada em Economia e Sociedade,
de Max Weber. Por ação social, entende Weber toda ação em que o sentido
dado pelo agente ou agentes está referido ao comportamento de outros e por
ele se orienta no seu decurso53. Ela, a ação social (seja no omitir ou permitir),

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pode estar orientada para o passado, para o presente ou para o futuro esperado
dos outros. Esclarece Weber que outros podem ser individuais e conhecidos
ou muitos e, também, não conhecidos. Mas nem toda ação, ainda que externa,
é social, como uma ação orientada pelas expectativas da conduta de objetos
materiais. Não pode ser ação social uma conduta religiosa se permanece con-
templação; assim como não pode ser ação social a atividade econômica (de
um indivíduo), se não toma em consideração o comportamento dos outros. Se
levar-se em conta (o respeito, a necessidade) terceiros, pode consistir em uma
ação social. Assim, somente se pode chamar ação social o comportamento
orientado pelo comportamento de outros. Considera ainda Weber, ao explorar
este conceito, que não pode a ação social ser idêntica: seja uma ação homo-
gênea de muitos (assim acontece quando os homens, diante de um temporal,
abrem o guarda-chuva. Pois a ação de um não está orientada pela ação dos
outros, mas de todos pela necessidade de se protegerem da chuva), seja uma
ação influenciada pelo comportamento de outros (quando a ação do indivíduo
é influenciada – condicionada – pela massa). Dado o sentido aplicado pela
massa, alguns reagem de uma forma; outros, de outra. Mas, caso a ação seja
apenas reativa pela influência da massa, sem nenhuma referência ao sentido,
não pode ser ação social, como também não pode ser uma ação de simples
imitação do comportamento do outro, isto é, reativo, sem orientação signi-
ficativa da ação pelo comportamento do outro. Encontra-se no mesmo nível
uma ação que apenas parece adequada para um fim, porque um aprendeu do
outro: não há, aqui, orientação pelo comportamento do outro, mas a observa-
ção da tal conduta, quer dizer, uma ação determinada casualmente, mas não
pelo sentido, por meio do agir do outro54. Em regra, a ação social pode ser:

50 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 198-199.


51 WEBER, Max. Ciência e Política, p. 122.
52 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 35.
53 WEBER, Max. Economia e Sociedade. Trad. Artur Morão e Teresa e Marian Toldy. Lisboa: Edições 70,
2022, p. 36.
54 Ibid., p. 54-56.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 141

1) racional quanto aos fins: determinada por expectativas de comporta-


mento de objetos do mundo exterior e dos outros homens, utilizando estas
expectativas como “condições” ou “meios” para fins próprios racionais
intentados e ponderados como resultado; 2) racional quanto aos valores:
determinada pela crença consciente no valor – ético, estético, religioso
ou de qualquer outra forma que se interprete – específico e incondicio-
nado de uma determinada conduta puramente como tal e independente-
mente do resultado; 3) afetiva: sobretudo emocional, determinada por
afetos e estados sentimentais atuais; 4) tradicional: determinada como
um hábito vital55.
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Constata-se, aqui, como observa Apel, a reciprocidade da interação


social, compreendida, nesse sentido, como um comportamento, em seu
conteúdo, reciprocamente referido e orientado aos demais indivíduos. No
horizonte da racionalidade teleológica, a ação social se determina pelo com-
portamento dos objetos do mundo interno e de outras pessoas como meios
para os próprios fins racionalmente aspirados56.
Considerados esses apontamentos, diz Apel que a racionalidade da
interação social é entendida por Weber como racionalidade teleológica téc-
nico-instrumental no sentido mesmo da reciprocidade de ações teleológico-
-racionais. Esta concepção de racionalidade da ação social – da racionalidade
da interação social – vigora até os dias de hoje, particularmente na teoria
estratégica dos jogos57, vindo a ser chamada de racionalidade estratégica.
Na racionalidade estratégica – e aqui consiste a sua compreensão, de acordo
com Apel – os sujeitos aplicam seu pensamento meio-fim com referência a
eles mesmos. Ganha status de uma reciprocidade instrumentalizada que se
manifesta em uma peculiar estrutura da reciprocidade da interação estratégica.
Assim, à luz dos jogos estratégicos, os sujeitos calculam seus benefícios ao
levar em conta os benefícios dos outros indivíduos, como condição e meio

55 Ibid., 56.
56 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 33-35.
57 A teoria dos jogos desenvolveu-se no século XX, a partir da matemática. Seus estudos estão centrados no
conflito, seja entre pessoas e grupos, seja entre nações. O conflito, nesta perspectiva, está referido a uma
situação onde as duas partes precisam desenvolver estratégias que maximizem os seus ganhos, com base
em regras pré-estabelecidas. A Universidade de Princeton foi pioneira no desenvolvimento desta teoria, ao
ter em seu quadro de professores Neumann, Einstein, Gödel e Oppenheimer. Destaca-se, também, a RAND,
instituição criada pela Força Aérea dos Estados Unidos com o propósito de criar novas estratégias militares.
Diante da diversidade de concepções, vale destacar que a teoria dos jogos apresenta diversas formas de
resolução de problemas, dos quais os mais conhecidos: a) conceito de estratégias dominantes (quando
uma estratégia é a melhor opção ao jogador); b) estratégia maxmin (quando o jogador garante o mínimo
de ganho para os outros; c) equilíbrio de Nash (quando, por meio de uma combinação, nenhum jogador se
arrepende). MEDEIROS, Angelica Pott de. As raízes da teoria dos jogos e comportamento econômico: uma
análise epistemológica a partir dos trabalhos de John von Neumann, Oscar Morgenstern e John Forbes
Nash. Revista Cadernos de Economia, v. 24, n. 40, 2020, p. 12-14.
142

dos próprios cálculos de benefício; o controle do resultado a ser alcançado,


por meio das ações, está limitado não somente a certo desconhecimento do
mundo real, mas também aos (auto)interesses dos outros indivíduos, agentes
de decisão. Neste campo de interesses competitivos, há uma ambivalência
claramente estabelecida: o êxito das ações, calculado por agentes, depende
das ações a serem esperadas pelos demais, que podem, em parte, apoiar tais
esforços, como também, em parte, se contrapor a eles; também, em parte,
podem os interesses, no jogo, visar aos planos dos demais, bem como, em
parte, promover o seu fracasso. Em razão deste dilema, a teoria estratégica
dos jogos distingue os jogos competitivos – estruturados em torno de um puro

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conflito -, dos jogos não competitivos, que permitem, também, possibilidades
de cooperação entre os indivíduos58.
Tais jogos, sejam puros ou parcialmente cooperativos, no contexto da
interação estratégica – como identifica Apel – sinalizam a existência de ele-
mentos comunicativos, em busca de soluções, ajustes ou acordos entre os
agentes sociais, como próprio das esferas política e econômica. Não obstante,
adverte Apel, que a comunicação estabelecida, com resultado de prováveis
consensos, obedece a interesses particulares (estratégicos) regidos, portanto,
pelos (auto)interesses (vantagens) dos indivíduos do jogo. O provável con-
senso, nesse horizonte da racionalidade estratégica da interação social, terá
uma importância nada mais que instrumental e acidental e não em si mesma.
Conclui, então, Apel: “os sócios da interação, na relação recíproca, são sempre
somente meios e condições limites das finalidades solitárias e dos esforços
de êxito dos atores particulares”59.
Criticamente, sinaliza Apel a limitação desta racionalidade, da interação
estratégica, podendo ser contestada na segunda versão do imperativo categó-
rico kantiano: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e
nunca simplesmente como meio”60. Não há, todavia, na interação estratégica,
abertura para a incondicionalidade da ação; esta racionalidade somente pode
sustentar imperativos hipotéticos. Mas seu pressuposto não hipotético está
sempre firmado nos fins desejados pelos indivíduos do jogo. Por isso, esta
máxima da moral kantiana, acima destacada, vem representar uma limitação
normativa para a interação estratégica. Aqui, uma questão de suma importân-
cia eclodi para Apel, ao ter em vista o seu projeto arquitetônico de uma ética
racional, de caráter intersubjetivo: pode haver uma fundamentação racional
para tal limitação, da racionalidade estratégica da interação humana61?

58 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 36-37.


59 Ibid., p. 38.
60 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 69.
61 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 38.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 143

Entende Apel que caso a racionalidade da interação social se esgote na


racionalidade estratégica, e assim seja conveniente assentir, não haveria, na
perspectiva kantiana, a possibilidade de sustentação de uma ética da razão,
mas, ao contrário, uma ética irracional ou de natureza dogmática, como as
éticas metafísicas, asseguradas por uma fé religiosa (como exposto por Weber,
uma ética da convicção). Mas o paradigma em questão – da racionalidade
da interação social – está referido à ética da responsabilidade, donde os
indivíduos podem eleger os meios para alcançar os seus fins. Neste modelo,
o bem da ética se funda na seleção consciente do último axioma valorativo;
na ética da convicção, na crença religiosa. Fica muito claro, como é possível
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perceber com Apel, que o paradigma da racionalidade estratégica, como


modelo ético, predomina no mundo da técnica e da ciência, isto é, da socie-
dade contemporânea, como uma ideologia dominante, razoável e necessária.
Ainda mais, parece ser ela, a racionalidade estratégica, o paradigma mais
efetivo de uma racionalidade intersubjetiva no âmbito da vida pública. Não
se percebe ou não se quer admitir, contudo, que ela apenas está a serviço de
interesses valorativos subjetivos ou de um presumido equilíbrio, mas estra-
tégico, de diferentes interesses dos indivíduos, tal qual como acontece no
alcance de resoluções pela maioria. Continua a ética, nessa perspectiva, no
campo do privado, análoga à moralidade religiosa. Para muitos, esta mora-
lidade, privada, é o modelo ético ideal para uma democracia liberal. Apel
nomeia esta realidade como sistema ocidental de complementaridade entre
o cientificismo-pragmatista e o existencialismo irracionalista62.
Por isso, e Apel tem razão – contra Weber – não ser possível uma ética
razoável no contexto da racionalidade estratégica da teoria dos jogos, fun-
damentada – irracionalmente – em autointeresses empíricos, de negociação
e formação de consensos e compromissos com o mínimo interesse comum.
Parece até legítimo sustentar, hoje, este paradigma ético, em razão da crise
ecológica, da constante ameaça de guerra entre as nações, dos diversos con-
flitos políticos, econômicos e culturais; situações a serem resolvidas ou mini-
mizadas – dadas seu potencial destrutivo – por uma ética estrategicamente
fundada, pois assim seria possível controlar ou assegurar, de certa forma, a
sobrevivência de todos; também, a médio longo prazo, seria possível calcular
os fins desejáveis e eleger os meios para isso. Contudo, não consegue a ética de
racionalidade estratégica assegurar uma macroética, razoável e responsável,
para a sociedade industrial. Ela não tem força para promover o entendimento,
o interesse comum e, ainda mais, a justiça e responsabilidade última dos acor-
dos alcançados. No máximo, em situação de destruição do planeta – de uma
possível guerra nuclear – os autointerresses, se bem calculados, alcançariam

62 Ibid., p. 38-39.
144

um presumido equilíbrio da situação, com uma paz aparentemente avistada,


assegurando um interesse vital comum. Mas este alcance e normatividade,
via racionalidade estratégica, estariam assegurados somente durante o perigo
de morte fatal e enquanto não houvesse alteração do equilíbrio fantasioso das
forças militares. Apel, portanto, está convencido de que a racionalidade estra-
tégica não proporciona uma ética satisfatória para a sociedade, mas continua,
ainda, válida (embora irracional) no âmbito da ação e das relações sociais63.

1.1 A racionalidade discursiva como superação da racionalidade


teleológico-instrumental

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Para Karl-Otto Apel, a ética no mundo atual deve fundamentar-se por
uma racionalidade consensual-comunicativa de interação na perspectiva do
discurso argumentativo – pois o modo próprio da reflexão estritamente filo-
sófica consiste na situação da argumentação, de caráter pragmático-trans-
cendental64 – e não por uma racionalidade instrumental-estratégica, como
postulado por Max Weber. As pretensões de validade devem ser demonstradas
no âmbito do discurso argumentativo. Não obstante, esta racionalidade, que
pressupõe a formação de consenso, parece padecer de uma notável (e aparente)
dificuldade: de que ela tem pouco ou nada a dizer da regulamentação norma-
tiva de ações reais, isto é, de efetiva resolução de reais problemas e conflitos
sociais. Nesse sentido, contrária à fundamentação pragmático-transcendental
da ética discursiva, se tem sustentado: ainda que às regras da racionalidade
consensual-comunicativa, que devem ser reconhecidas no próprio discurso,
pertencem normas da ética discursiva, parece apenas se tratar de uma ética
mínima ou especial do discurso, isenta de ação, ou melhor, de regulamentação
para o agir65.
Fortalece esta perspectiva, contrária à ética discursiva, Karl Heinz Ilting66,
como atesta Apel. Para Ilting, as normas éticas do discurso argumentativo
devem ser consideradas apenas como pressupostos instrumentais, ou melhor,
como imperativos hipotéticos da racionalidade argumentativa; também, assi-
nala que a regulamentação moral alcançada, oriunda da interação entre os

63 Ibid., p. 40-41.
64 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso. In: VILLA, Mariano Moreno. Dicionário de pensamento contemporâneo.
Trad. Trad. Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2000, p. 282.
65 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 80-81.
66 Karl Heinz Ilting (1925-1984) tonou-se conhecido, fundamentalmente, por sua edição das transcrições
de palestras da filosofia do direto e do estado de Hegel. Em seu trabalho acadêmico, buscou discutir a
filosofia prática, voltada para a filosofia sistemática e histórica. Em 1966, assumiu a cadeira de filosofia na
Universidade de Saarland, em Saarbrucken. Por meio de seus escritos, ganhou grande destaque, inclusive
internacional. HOPPE, Hansgeorg. Orbituary. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/
aop-cambridge-core/content/view/02DEC2B2D891BBF281B06347FD7FFE37/S0263523200003682a.pdf/
karl-heinz-ilting-192 51984.pdf. Acesso em: 17 jul. 2023.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 145

sujeitos, é relativa, sujeita à observância ou não de realidades sociais e jurídi-


cas particulares67. De acordo com Ilting, então, a ética discursiva, fundamen-
tada na racionalidade argumentativa pragmático-transcendental, nada mais
demonstra ser uma falácia intelectualista, que consiste em pressupor que as
regras do discurso alcançam, de fato, obrigações morais68. Mas para Apel,
tais aspectos “se baseiam em uma falsa evolução da função do discurso argu-
mentativo e consequentemente também do sentido de uma ética discursiva”69.
Vale destacar que, na perspectiva da filosofia analítica, como aponta
Apel, três elementos impedem a fundamentação transcendental da ética do
discurso, a saber: a) a partir de fatos não é possível derivar normas; b) normas
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objetivas podem derivar de constatações empíricas ou inferências lógicas,


pois a ciência discorre sobre fatos; c) a validade deve equiparar-se à dedução
lógica de proposições a partir de proposições, quer dizer, somente a ciência
pode buscar a intersubjetividade70. Contra esta perspectiva, Apel compreende
que nem todas as ciências são ciências puras de fatos não valorativos. Ainda
mais, não podem as ciências se ausentarem de uma determinada valoração
moral; mas para aquelas axiologicamente neutras, caso venham assumir este
status, demonstrará a necessidade de pressupostos da validade intersubjetiva
de normas morais em uma comunidade de comunicação71.
Criticamente, Apel certifica que é próprio das ciências e de perspectivas
filosóficas considerarem a função do discurso argumentativo isenta de ação,
de não coordenação imediata das ações teleológicas referidas ao mundo. O
discurso argumentativo parece consistir, nesse sentido, em um “jogo de lingua-
gem” separado do “mundo da vida”, ou em um jogo cooperativo-estratégico,
da racionalidade estratégica. Segundo Apel, esta concepção encontra certa
justificativa externa, quer dizer, na organização do discurso real. Ao contrário,
o discurso argumentativo intenta substituir o princípio da racionalidade estra-
tégica, de interesses, pelo princípio de trans-subjetividade incondicionado,
que deve sustentar a formação argumentativa do consenso. Na fundamentação
das normas, deve a ética proceder (como em Kant) com base em um princípio
da razão incondicionado, não instrumental-estratégico condicionado72.

67 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 82.


68 PAOLICCHI, Leandro. Entrecruzamentos del discurso y el reconocimiento. Algunos comentarios a partir de
Anerkennung oder Argumentation? de Ricardo Maliandi. Erasmus, ano XVII, n. 2, 2015, p. 141. Disponível
em: https://icala.org.ar/erasmus/Archivo/2015/Erasmus%20%202%20-%202015%20-7%20de%20marzo.
pdf#page= 17. Acesso em: 15 jul. 2023.
69 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 82.
70 Ibid., p. 127.
71 CRESPO, Remedios Ávila. El transcendentalismo ético y la vida buena. In: FERNÁNDEZ, Domingo Blanco,
TAPIAS, José A. Pérez; RUEDA, Luis Sáez. Discurso y realidad – en debate con K.-O Apel. Madrid: Trotta,
1994, p. 34-35.
72 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 82-83.
146

A racionalidade discursiva buscará vincular a linguagem, reconheci-


das as suas regras para todo aquele que discursa, às pretensões de validade
universal, observando o cumprimento de suas ações normativas. E tais são
as regras (pressupostos) a serem garantidas, a pretensão de: a) comparti-
lhar um significado intersubjetivamente válido com os demais membros da
comunidade linguística; b) alcançar a verdade com propósito universalmente
válido; c) garantir a veracidade ou sinceridade no discurso, como expressão
das intenções do argumentante; d) assegurar a correção moralmente relevante
dos atos de fala do sujeito73. A comunicação, estabelecida entre os sujeitos, se
constituirá da “formação de consenso sobre as pretensões de validade de atos

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linguísticos que normalmente nas ações de comunicação funciona somente
implicitamente como condição da compreensão e da coordenação das ações”74.
Nesse sentido, se compreende a finalidade comum entre os sujeitos de
uma comunidade de comunicação. Mas esta finalidade não se dá arbitraria-
mente, com base em interesses empíricos, mas fundado na condição “a priori
da formação de consenso sobre as pretensões de validade que está inclusa na
linguagem como médium do pensamento intersubjetivamente válido”75. Esta
condição implica no uso correto do entendimento, que deve ausentar qualquer
vontade perversa, egoísta, de imposições de seus interesses; diz Apel que até
mesmo o demônio, caso participasse de uma comunidade argumentativa,
deveria se comportar segundo as regras do discurso, superando o egoísmo e,
com isso, a si próprio76. Caso alguém queira argumentar, em uma comunidade,
deve somente pressupor a vontade da verdade, de “um imperativo categórico,
movido por um interesse prático da razão teórica mesma”77.
Na compreensão de Apel, agir de forma estratégica (instrumental), em
caso de opiniões contrárias, significa aderir à perspectiva de homem conside-
rada por Hobbes – o homem é o lobo do homem –, o que revelaria a renúncia
do sujeito, em uma comunidade linguística, à sua identidade como ser racional.
Portanto, não pode o discurso atender a um objetivo empírico, teleológico-
-instrumental, de interesses subjetivos. Ao contrário, o discurso, e tal é a sua
funcionalidade, deve conceder “a condição da possibilidade da realização do
pensamento intersubjetivamente válido”78, de entendimento e normatividade.
Conforme Apel, com a função do discurso argumentativo esclarecida,
compreende-se também o sentido do discurso livre da carga de ação. Não quer
dizer que o discurso esteja isento ou limitado de práxis, de refletir e postular

73 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 283.


74 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 84.
75 Ibid., p. 84.
76 APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna, p. 121.
77 CRESPO, Remedios Ávila. El transcendentalismo ético y la vida buena, p. 36.
78 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 84.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 147

normas para o mundo real – ainda mais diante de situações de conflito –, mas
que tem o objetivo de possibilitar uma solução racional não estratégico-ins-
trumental. O discurso livre da carga de ação é “a condição e o meio de uma
livre disposição da racionalidade do discurso a serviço da possível solução
de conflitos da práxis vital exclusivamente através da satisfação consensual
ou justificação das pretensões de validade do discurso humano”79, sublinha
Apel. Deve então o discurso argumentativo garantir a resolução dos problemas
unicamente por meio do cumprimento das pretensões de validade problema-
tizadas. E isso requer a renúncia de interesses, estratégicos, autoafirmativos.
Adverte Apel que o atuar comunicativo não converge, e nem pode, para
o acordo estratégico-instrumental, de jogos e cálculos de utilidades. Tal pers-
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pectiva apenas daria respostas superficiais ao fenômeno investigado. Assim,


não pode o argumentante, no uso do discurso argumentativo, com pretensões
de validade e normatividade consensual, buscar apenas alternativas para os
conflitos apresentados, ainda que relevantes do ponto de vista prático e da
resolução dos problemas80.
Ao chegar nesta concepção, do atuar comunicativo, questiona Apel se
é possível a demonstração de uma racionalidade não estratégica do discurso,
bem como uma fundamentação ética sem regresso ao infinito. Para ele, esta
empreitada só se torna possível com a reconstrução de uma filosofia pragmáti-
co-transcendental – que, mediante as possibilidades de acordo entre os sujeitos
em uma comunidade de comunicação, “legitima o pensar e agir humanos,
fundamenta a dimensão reflexiva da linguagem como instância normativa
do pensar e agir humanos e também a unidade da filosofia como unidade
entre razão teórica e prática”81 –, capaz de justificar uma “razão autônoma,
moralmente legisladora, que a priori está referida a uma comunidade de seres
racionais com igualdade de direitos enquanto seres de fins em si mesmo”82.
Ora, em Kant não é possível, no âmbito da filosofia transcendental, qual-
quer relação entre o eu penso e o nós argumentamos, de uma comunidade
eticamente discursiva de seres racionais autônomos. Dessa alusão, diz Apel
não haver espaço para o solipsismo transcendental ou metódico da filosofia
clássica da consciência83. Ainda, a liberdade enquanto autonomia da razão
moralmente legisladora está fundamentada como possibilidade inteligível
com pretensão de validade, que não pode ser já fundamentada do “feito da
razão”, como em Kant84. Ao contrário, o “feito da razão” – a priori da comu-

79 Ibid., p. 86.
80 Ibid., p. 86.
81 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 92.
82 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 88.
83 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 282.
84 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 88.
148

nidade argumentativa – é condição crítica de possibilidade e validade de


toda argumentação85.
Este é o ponto, das condições comunicativo-linguística, que separa Apel
de Kant, ainda que Apel recorra ao “imperativo categórico como princípio
de universalização, que agora – na ‘transformação da filosofia’ – tem que
entender como princípio de uma reciprocidade consequente e generalizada
de direitos e obrigações”86. Disso se compreende que “o pensamento inter-
subjetivamente válido, enquanto ligado ao discurso, tem já a estrutura do
discurso”87. Com a estrutura do discurso, por sua vez, se pressupõe uma
ilimitada comunidade de sujeitos racionais e universalizável reciprocidade

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das pretensões, de interesses ou necessidades, bem como de possibilidade
de exame dos argumentos. Em síntese: “se pressupõe uma comunidade de
comunicação ideal contrafaticamente antecipada na comunidade de comu-
nicação real”88. A primeira aponta as condições de refletir e compreender o
sentido dos argumentos manifestados, com pretensão de verdade e validade
das normas alcançadas pelo consenso; a segunda, a participação dos membros
mediante um processo de socialização. Então, quem argumenta pressupõe a
comunidade ideal na real. Originam-se, daí, segundo Apel, dois princípios
regulativos fundamentais: as ações e omissões em um discurso argumentativo
devem, sempre, assegurar a sobrevivência do gênero humano como comu-
nidade real de comunicação; assim como se deve assegurar a realização da
comunidade ideal na real89. Nesse sentido, esclarece Apel: “pelo caminho
da estrita reflexão sobre a minha argumentação, encontro a mim mesmo como
sendo já um membro ativo de uma comunidade de comunicação, ou mais
precisamente: de uma comunidade indefinida ideal de comunicação suposta
contrafaticamente e inclusive antecipada”90.
Apel, todavia – em vista de esclarecer melhor sua perspectiva filosófica,
de caráter pragmático-transcendental – questiona por que a necessidade de
uma comunidade real e ideal, e responde:

Porque eu sou, por um lado, um ser humano empírico que, usando certa
linguagem, sou obrigado a pertencer a uma comunidade particular e, entre-
tanto, usando argumentos com pretensões universais de validade, sou
obrigado também a transcender cada comunidade particular e antecipar
o juízo de uma audiência indefinida ideal, que seria a única capaz de

85 CENCI, Angelo Vitório. Apel versus Habermas: a controvérsia acerca da relação entre moral e razão prática
na ética do discurso. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2011, p. 94.
86 CRESPO, Remedios Ávila. El transcendentalismo ético y la vida buena, p. 37.
87 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 88.
88 Ibid., p. 88.
89 CRESPO, Remedios Ávila. El transcendentalismo ético y la vida buena, p. 38-39.
90 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 282.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 149

compreender definitivamente e avaliar as minhas pretensões universais


de validade. Eu sou obrigado e me referir à audiência real de um modo
como se ela já representasse a ideal91.

Apel assegura que esta dupla estrutura dialética – necessária para todo
aquele que pretende argumentar com seriedade – responde às aporias, seja
do comunitarismo, seja do relativismo. Se por um lado o sujeito, em uma
comunidade de comunicação, pode aceitar e explicitar, na perspectiva lin-
guístico-hermenêutico-pragmática, a sua pertença a uma comunidade par-
ticular, de uma pré-compreensão historicamente determinada do mundo da
vida, por outro, pode também convencer-se a não somente conectar-se a uma
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tradição contingente de discurso e representações, mas a pressupostos não


contingentes da meta-instituição do discurso argumentativo. E é por meio da
meta-instituição que a contingência pode ser questionada92.
Então a linguagem, que no discurso argumentativo é médium de todo
entendimento e acordo entre aqueles que dialogam, deve ser não só a insti-
tuição das instituições, mas a meta-instituição, quer dizer: “a instância crítica
de todas as normas sociais refletidas; e também [..] uma instância normativa
obrigatória que não abandona os indivíduos ao arbítrio dos seus próprios
pensamentos, mas os obriga [...] a um acordo mútuo intersubjetivo sobre as
normas sociais”93.
Ora, parece ficar claro para Apel que qualquer limitação ou recusa às
normas da argumentação – que pressupõe interesses diversos de diversos
sujeitos em uma comunidade argumentativa – demonstra a não disposição do
sujeito para a reflexão transcendental; o mesmo acontece caso o sujeito sus-
tente diferenças com os demais argumentantes. Ao contrário, a argumentação
deve pressupor normas válidas e iguais para todos os argumentantes, onde
todos possam participar da discussão, até mesmo os afetados. Ainda que se
leve em consideração a qualificação das condições de cada argumentante ou
regras do discurso, deve-se sustentar um jogo cooperativo para o discurso real.
Apel, então, lança algumas condições necessárias, primeiras, para a
argumentação com sentido, sempre em vista de a verdade ser alcançada,
consensualmente, entre os integrantes de uma comunidade de comunicação: na
reflexão pragmático-transcendental não é possível derivar normas concretas,
de situações, como já pressupostas como certas ou qualitativamente assegura-
das de certeza. Esta é a condição necessária para se alcançar o princípio racio-
nal da fundamentação processual das normas referidas e institucionalizadas,

91 Ibid., p. 282.
92 Ibid., p. 283.
93 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação. Trad. Paulo
Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 200l, p. 238.
150

assegurada suas consequências previsíveis para todos. Ora, neste princípio


processual já se reconhece a obrigação ética e uma norma básica de conteúdo
não empírico e isso indica que “enquanto ‘seres racionais finitos’ (Kant) só
podemos refletir sobre as condições normativas do discurso livre da carga de
ação se temos em conta, ao mesmo tempo, sua tensão com as condições de
ação de nossa existência real”94.
Este princípio processual demonstra a força da ética, da sua capacidade
de reflexão e normatividade, ao promover a ação argumentativa de todos os
envolvidos, particularmente, dos afetados; deve garantir a omissão da mentira,
ou melhor, a veracidade incondicionada (como em Kant), o que constitui um

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dever indispensável no atuar comunicativo. A função ética (discursiva) só
poderá sustentar-se, portanto, no “procedimento dos passos para a fundamen-
tação das normas”95. Para Apel, prova esta capacidade reflexiva o fato de os
sujeitos, ao argumentarem, não poderem opor-se a esta exigência sem cair
em uma autocontradição pragmática; também, de não poderem agir deduti-
vamente, já que haveriam de pressupor o nível pragmático da argumentação.
Não parece difícil, hoje, indivíduos e instituições, em organizamos glo-
bais, alcançarem o consenso acerca de determinados assuntos, sejam de ordem
jurídica, seja de ordem moral. No entanto, do ponto de vista da racionali-
dade discursiva, tal pretensão, a acordos normativos, nada mais consiste que
uma contribuição para a formação do consenso no nível da opinião pública
razoável. Neste nível, por conseguinte, deve-se garantir, com o reto uso da
racionalidade argumentativa, a participação de especialistas na discussão
e alcance normativo96. Porém, o atuar argumentativo, de fundamentação
argumentativo-consensual, demonstra que esta alternativa, tão usual hoje,
pode – sem pressupostos claros para a reflexão sobre as condições de pos-
sibilidade de acordos com garantia de veracidade – apenas consistir em um
estrategismo, sem qualquer fundamentação ética necessária, ainda que, de
forma imediata, alcance normas para a resolução de problemas humanos. O
recurso a este mecanismo, de um consenso entre os participantes, por exemplo,
em um fórum mundial – prática tão explorada pelas democracias liberais –,
não resulta convincente, dada a ausência de fundamentação e justificação das
normas alcançadas; também, a livre aceitação dos acordos tampouco resulta
suficiente para a fundamentação e cumprimento de normas. Ainda mais, o
alcance de leis lógicas não pode justificar a ética, pois a logicidade de uma
lei pode resultar de uma vontade perversa97. Dada esta debilidade ética, Apel
“sustenta a necessidade de um princípio ético obrigatório e intersubjetivo, cuja

94 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 90.


95 Ibid., p. 91.
96 Ibid., p. 92.
97 CRESPO, Remedios Ávila. El transcendentalismo ético y la vida buena, p. 34-35.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 151

fundamentação se intentará mediante o pressuposto lógico-transcendental de


uma comunidade de comunicação”98.
Após lançar as bases de superação da razão estratégica de Max Weber,
com a eminente razão dialógica, de perspectiva da filosofia pragmático-trans-
cendental, intenta agora Apel enfrentar um problema: refletir sobre a possível
conciliação entre elas, em prol da construção e desenvolvimento de uma razão
ética necessária para o mundo da técnica e da ciência, e o fará com base à
referida concepção weberiana da ética da responsabilidade. Apel reconhece (e
concorda) que Weber, ao recorrer à política, coloca em suspense não somente
a ética da convicção, mas também a ética kantiana. Mesmo que os kantianos
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ortodoxos defendam a “boa vontade” não somente como “mera convicção”,


mas como reta intenção de o sujeito atuar de acordo com a lei, permanece, de
fato, o problema do atuar responsável, como entende Weber. Pois a máxima
da lei universal kantiana dispensa a averiguação e avaliação das consequên-
cias concretas de uma ação. Qualquer pretensão, nesse sentido – de avaliação
das consequências – é moralmente repreensível para Kant. Cabe, então, à
ética discursiva reconstruir o imperativo categórico kantiano, na perspectiva
(conversão) de uma ética da responsabilidade. Assim, considerando os pres-
supostos de que (i) todos estão convencidos com o princípio da ética discur-
siva e de que (ii) podem prever as consequências das ações normativas, será
possível superar o abismo do imperativo categórico kantiano, de um sujeito
de consciência99. Esta superação, segundo Apel, “reside no fato de que todos
os indivíduos afetados no discurso de fundamentação das normas averiguam
seus interesses e, na medida em que são universalizáveis, exponha-os como
pretensões de validade normativamente obrigatórias”100. Apel está convencido
de que esta perspectiva comporta uma ideia regulativa da razão, no atuar
argumentativo, com pretensão de alcance das normas (consensuais), a partir
dos pressupostos de validade dos atos linguísticos. O princípio da formação
de consenso, por sua vez, exige não somente que as normas da eticidade
subjetiva sejam “racionais”, “senão que sejam reconstruídas criticamente e
legitimadas como suscetíveis de alcançar consenso ou – no caso dado – até
revisadas”101. O princípio da ética discursiva assegura, nesse sentido, e desde
o começo – em uma comunidade intersubjetiva de comunicação – a refle-
xão e combate às pretensões estrategicamente formuladas e condicionadas,
denunciando-as contra a legitimidade da formação de consenso, a partir de
argumentos valorativos e verdadeiros.

98 Ibid., p. 34.
99 APEL, Karl-Otto. Estudios Éticos, p. 96-97.
100 Ibid., p. 97.
101 Ibid., p. 98.
152

Mas adverte Apel que a ética argumentativa não tem condições, em


si mesma, de fundamentar o princípio da ética da responsabilidade como
requerida por Max Weber. Pois o princípio da ética discursiva esbarra, para
esta condição, no imperativo categórico kantiano. E isso é notável pelos dois
pressupostos idealizados referidos à função regulativa do discurso argumen-
tativo: a) a condição contrafática discursivamente sustentada pelos sujeitos
de uma comunidade de comunicação; b) a previsão das consequências das
normas tomadas pelo consenso. A primeira é irreconciliável com a perspec-
tiva da “responsabilidade política” postulada por Weber; a segunda, com a
perspectiva kantiana, do imperativo categórico102.

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Dessas considerações, sustenta Apel que a racionalidade consensual-co-
municativa se diferencia da racionalidade estratégica unicamente no campo
discursivo, que assegura a transubjetividade. Contudo, por um lado, ela é com-
patível com a racionalidade estratégica, no sentido da responsabilidade. E esta
compatibilidade se dá também com a reflexão transcendental, que pressupõe
esta condição: as condições do discurso argumentativo se encontram tanto na
antecipação contrafática das normas (comunidade ideal) quanto – garantida
a vinculação com o que segue – na tradição linguística e, com isso, com as
normas a serem observadas (comunidade real). Esta compatibilidade não
está isenta de uma tensão entre as comunidades ideal e real, porém provoca
– reconhecida a norma básica da ética discursiva – uma ideia regulativa103.

2. A compreensão pragmático-transcendental da Ética do Discurso

Kar-Otto Apel tem percorrido um longo caminho para arquitetar o seu


legado ético – de perspectiva pragmático-transcendental – para o mundo da
técnica e da ciência. Inicialmente, chamou seu postulado ético de “ética da
comunicação” ou “ética da comunidade ideal de comunicação”, mas logo
depois o nomeou de “ética discursiva”, e isso por dois motivos: primeiro,
por referir-se a uma forma especial de comunicação, como fundamentação
das normas alcançadas; segundo, porque o discurso argumentativo contém o
a priori racional de fundamentação da ética104.
Dadas essas considerações, esclarece Apel: a) o discurso argumentativo,
como médium de todo entendimento e fundamentação das normas consensuais,
desestabiliza uma “moral dos costumes”, onde as normas – referidas a relações
interpessoais próximas – são praticamente evidentes para todos. Este modelo
ético, restrito ao âmbito privado, sustenta um fideísmo não susceptível com

102 Ibid., p. 98-99.


103 Ibid., p. 101.
104 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Trad. Noberto Smilg. Barcelona: Paidós Ibérica,
1998, p. 147.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 153

uma fundamentação racional e intersubjetiva105 e, por isso, não mais sustenta


uma ética para os dias de hoje. Ao contrário, vê-se a necessidade de uma
ética de responsabilidade solidária, capaz de assumir as consequências das
ações coletivas dos indivíduos, tarefa a ser alcançada somente pela coopera-
ção solidária entre os indivíduos que, por meio do discurso argumentativo,
buscam fundamentar as normas susceptíveis ao consenso. Este modelo ético,
acredita Apel, não pode ser mais ignorado, então uma macroética capaz de
responsabilizar a todos (de corresponsabilidade) pelas consequências das
ações humanas coletivas e isso referente à ciência, à técnica, à política e
à economia106. Os discursos práticos, nesse horizonte, devem sujeitar-se à
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cooperação solidária de todos os indivíduos corresponsáveis, bem como à


criticidade das opiniões mediante o discurso; b) o discurso argumentativo
deve possibilitar a fundamentação última do princípio ético107, a conduzir
todo o discurso em uma comunidade de comunicação, enquanto discursos
práticos. E tais discursos práticos de fundamentação das normas (não aque-
les pautados pelo convencimento e jogos estratégicos em busca, apenas, de

105 ESTRADA, Juan Antonio. Tradiciones religiosas y ética discursiva. In: FERNÁNDEZ, Domingo Blanco;
TAPIAS, José A. Pérez; RUEDA, Luis Sáez (Orgs.). Discurso y realidad: en debate con K.-O. Apel. Madrid:
Trotta, 1994, p. 177.
106 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política: as próprias diferenças de
racionalidade entre moralidade, direito e política podem ser justificadas normativa e racionalmente pela Ética
do Discurso? In: APEL, Kar-Otto; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Com Habermas, contra Habermas: direito,
discurso e democracia. São Paulo: Landy, 2004, p. 105. A esse respeito, intensifica Apel a sua convicção
de que qualquer forma de ética individual tradicional – que exija responsabilidade do indivíduo, seja no seio
da família ou do estado – clama, hoje, por uma ética da corresponsabilidade. É relevante, nesse sentido,
o questionamento de Apel: pode um indivíduo, como pessoa privada ou como uma autoridade ecológica,
assumir solitariamente a responsabilidade de conservação da biosfera? Ora, é clara a necessidade de uma
ação coletiva, de corresponsabilidade, para esta atuação de conservação. A Ética do Discurso surge como
uma proposta ética significativa (de caráter pós-convencional e de corresponsabilidade universal) capaz de
enfrentar os problemas da humanidade, pois ela garante uma fundamentação racional da corresponsabilidade
e, ao mesmo tempo, controla, com base na normatividade alcançada, a organização da corresponsabilidade
coletiva. Ibid., p. 106.
107 Para Apel, é possível uma fundamentação última da ética. Ela consiste na tentativa de mostrar determina-
das normas como válidas a priori, a serem reconhecidas obrigatoriamente por todo sujeito que recorre à
argumentação. Tais nomas, “reconstruídas”, são pressupostas pelos argumentantes, em uma perspectiva
pragmática da própria argumentação. A comunidade ideal de comunicação surge aqui, na perspectiva
apeliana, como condição de possibilidade do ato de argumentar. Todavia, a fundamentação última proposta
por Apel – motivo de muitas críticas por seus interlocutores, inclusive de Habermas – não quer significar
uma “metafísica absoluta”, nem mesmo a resistência ou negação a qualquer outra perspectiva filosófica,
senão uma “arquitetônica filosófica” que, em vista das decisões de normatividade moral, recusa um “sujeito
de consciência” (monológico) para garantir sentido e validade moral e, contrariamente, permite o consenso
entre os membros de uma comunidade linguística de comunicação, inclusive daqueles (membros) afetados
pelas consequências das normas tomadas. Para Apel, esta condição é instransponível e, por isso, “última”:
ela não pode ser questionada argumentativamente, porque tal questionamento já pressuporia a argumen-
tação como tal, quer dizer, o sujeito, ao tentar negar essa possibilidade com argumentos, incorrerá em uma
“contradição performativa”. MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva. In: APEL, Karl-Otto.
Semiótica Filosófica. Buenos Aires, 1994, p. 47-49.
154

negociações) já pressupõem um princípio ético que pode servir como critério


formal tanto para o procedimento formal quanto para os resultados normativos
do discurso108. Apel afirma que os discursos, como médium de todo entendi-
mento e alcance das normas tomadas em consenso, pressupõem um princípio
ético criteriológico: “um princípio que permite diferenças a priori entre seus
procedimentos e os resultados aos que se aspira, por um lado, e as práticas
discursivas e os resultados que são eticamente questionáveis, por outro”109.
Acentua ainda, e aqui apresenta a concepção da ética discursiva, que ela
“merece o seu nome somente porque pode pretender descobrir, mediante o
‘discurso reflexivo-argumentativo’ no próprio discurso, um a priori irrever-

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sível para todo pensamento filosófico, que inclui também o reconhecimento
de um princípio criteriológico da ética”110.
Apel está convencido de que esta perspectiva é de caráter estritamente
filosófico-transcendental, de transformação pragmático-linguística da ética
kantiana. Pois Kant constrói sua fundamentação transcendental última da lei
moral no factum evidente da razão (prática), de um princípio subjetivo da
razão e, por isso, sucumbe em um solipsismo metódico. O eu penso kan-
tiano, marco da sua filosofia transcendental, não pode fundamentar a ética
desde si mesmo, nem mesmo a constituição do sentido da lei moral, que
requer uma comunidade intersubjetiva de reflexão mediada pela linguagem.
De acordo com Apel:

Os outros eus, que haveria que pressupor como cosujeitos do conheci-


mento objetivo mediado comunicativamente, não aparecem em absoluto
em função transcendental, segundo Kant; têm que “constituir-se”’ – como
ainda Husserl – como objetos do eu-sujeito transcendental, no sentido de
objetos do mundo da experiência, ou têm que presumir – como no caso
da ética – como puras entidades racionais não transcendentais senão
metafísico-inteligíveis que, junto com Deus, formam o “reino dos fins”111.

Com esta observação, Apel apresenta duas perspectivas que discorrem


da transformação pragmático-transcendental da filosofia transcendental kan-
tiana: a) a argumentação intersubjetiva pressupõe as condições normativas
do discurso argumentativo ideal como condição insuperável para a realiza-
ção das pretensões normativas de validade; b) nesta condição, reconhece-se,
implicitamente, o princípio da ética discursiva. Apel esclarece que na ética
discursiva, de caráter pragmático-transcendental, “a argumentação – igual ao
pensamento com pretensão de validade que se expressa nela – é irreversível

108 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 148-150.


109 Ibid., p. 151.
110 Ibid., p. 151.
111 Ibid., p. 152.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 155

na filosofia”112; da mesma forma, é rigorosa e tematicamente ilimitada113.


O participante de uma comunidade de comunicação deve reconhecer que o
discurso tem a função de elaborar soluções possíveis para quaisquer situa-
ções apresentadas do mundo da vida; também, deve pautar seu interesse, no
ato do discurso, para a solução das questões apresentadas, com pretensão de
validade normativa, sem qualquer jogo estratégico ou instrumentalização do
discurso em benefício próprio.
Nesse horizonte, expõe Apel os pressupostos éticos relevantes a serem
assegurados para todo aquele que argumenta: reconhecer sua participação
em uma comunidade real e em uma comunidade ideal, contrafaticamente
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antecipada. Pois quem argumenta pressupõe uma comunidade real da qual


ele se tornou membro por meio de um processo de socialização e uma comu-
nidade ideal capaz de entender o sentido dos seus argumentos e de julgar a
sua veracidade114. Os argumentantes devem recorrer à hermenêutica filosó-
fica e à pragmática linguística acerca da pré-compreensão de mundo, socio
e historicamente condicionada, e dos acordos almejados, com pretensão de
validade universal. Seriamente intencionado, o argumentante já pressupõe
– em vista da normatividade a ser alcançada, consensualmente – a corres-
ponsabilidade (própria e de todos os interlocutores) acerca da solução de
todos os problemas apresentados, bem como a igualdade de direitos dos
participantes em uma comunidade de comunicação. O discurso terá, então,
como finalidade – pressuposto necessário a ser garantido –, a capacidade
de alcançar o consenso, universalmente válido. Apel considera que em tais
pressupostos, eticamente relevantes da argumentação – que não podem ser
negados sem contradição performativa (“quer dizer, uma contradição entre o
conteúdo semântico do que se diz e o que está necessariamente afirmado no
ato de dizê-lo”115) –, está implicado um princípio ético discursivo, que pode
112 Ibid., p. 154.
113 Aqui se explicita, precisamente, o sentido de a pragmática apeliana ser transcendental, “porque representa
uma busca sistemática das condições de possibilidade da argumentação. Dito brevemente: é a afirmação
de que essas condições podem explicitar-se – “reconstruir-se” – por meio de “reflexão transcendental” (p.
49); também, dão essas condições o reconhecimento de uma comunidade ideal (onde o sujeito, ao argu-
mentar, deverá apresentar suas pretensões de validade universal) e uma comunidade real de comunicação
(onde se encontram as condições histórico-contingentes). MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética
discursiva, p. 52-53.
114 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação, p. 485. Diz
Apel que da argumentação filosófica podem ser deduzidos “dois princípios regulativos e fundamentais da
estratégia moral de ação de todo ser humano a longo prazo: é preciso, em toda atuação e omissão, que
se trate, em primeiro lugar, de assegurar a sobrevivência da espécie humana como comunidade real de
comunicação; e, em segundo lugar, de que a comunidade ideal de comunicação se realize na comunidade
real de comunicação. O primeiro objetivo é a condição necessária do segundo; e o segundo, dá ao primeiro
o seu sentido – qual seja o sentido que já se antecipa com cada argumento”. Ibid., p. 487.
115 MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 48. Esta contradição, na perspectiva pragmá-
tico-transcendental, como explica Apel, não é de caráter lógico-formal, mas dialético. Fica então excluída
156

ser entendido como transformação pós-metafísica do princípio transcendental


kantiano116. O ponto alto desta transformação ocorre pela substituição (supe-
ração) da máxima da ação (que exige o querer, segundo Kant, para obser-
vância da lei universal) pela ideia reguladora da capacidade consensual das
normas válidas, portanto, assegurada pelos indivíduos em uma comunidade
argumentativa. A capacidade consensual confere a implementação de sentido
e a concretização da determinação da lei (no sentido kantiano) no plano da
intersubjetividade, de fundamentação pragmático-transcendental117. Assim,
na perspectiva apeliana, pode ser reformulado o imperativo categórico kan-
tiano: “em lugar de considerar como válida para todos a máxima que queres

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ver transformada em lei universal, submete a tua máxima à consideração de
todos os participantes do discurso a fim de fazer valer discursivamente sua
pretensão de universalidade”118.

2.1 A Ética do Discurso: partes A e B

A arquitetura da Ética do Discurso reflete o esforço de Apel em superar


o transcendentalismo kantiano pela filosofia pragmático-transcendental. Apel
estrutura o seu legado ético em uma parte A, de fundamentação abstrata, e em
uma parte B, de fundamentação referida à história119. A parte A está composta
por dois planos, distintos: de fundamentação última pragmático-transcen-
dental do princípio de fundamentação das normas e de fundamentação das
normas situacionais nos discursos práticos120: no primeiro plano, encontra-se
a comunidade ideal de comunicação como última fundamentação dos valores

a possibilidade de uma contradição lógico-formal dada a estrutura da Ética do Discurso (em uma parte A e
em uma parte B), de ser, eminentemente, sensata, sem quaisquer consequências lógicas aleatórias. APEL,
Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação, p. 486.
116 Em sentido lato, essa transformação pós-metafísica da ética kantiana consiste – o que revela a grande
descoberta de Apel – em promover a mediação entre o “giro linguístico” (de caráter pragmático) e a filosofia
transcendental kantiana (p. 50); em sentido stricto, em passar de uma perspectiva monológica para uma
perspectiva dialógica e, com isso, rejeitar o resíduo metafísico de Kant e, em troca, inserir a perspectiva
da responsabilidade normativa no mudo histórico (p. 61). MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética
discursiva.
117 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 157-159.
118 HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso. In: OLIVEIRA, Manfredo Araújo de (Org.). Correntes fundamentais
da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 182.
119 As partes A e B estão vinculadas, como se conjectura, a um desafio duplo instaurado pela ciência atual à
razão prática: o desafio interno, proveniente da racionalidade tecnológica ou cientificista que abnega ou
restringe as questões de fundamentação ao discurso científico, bem como de uma fundamentação racional
para a ética (parte A); o desafio externo, ao colocar em perigo, muitas vezes, a sobrevivência da espécie
humana e de todo o seu habitat (e tais são as consequências), necessitando, nesse sentido, de uma ética
da responsabilidade e de escala universal (parte B). MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética dis-
cursiva, p. 51.
120 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 160.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 157

que, não estáticos, fundamentam o discurso sobre o real. Para tal, há necessi-
dade de um princípio-ponte, a universalização, que “indica a forma processual
da derivação dos valores, em discurso sobre a realidade fática”121. Assim, toda
norma deve ser observada, mas para isso devem os argumentantes considerar
os efeitos previsíveis já no processo de formação (consensual) das normas.
No segundo plano, por conseguinte, inclui-se o elemento da responsabilidade
ética, que Apel absorve de Weber; consiste em considerar, na formação e
aplicação de normas e valores, as consequências previsíveis.
Esta distinção, na parte A, deriva-se, propriamente, da transformação da
ética kantiana. Ora, o princípio da ética discursiva pressupõe a produção de
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discursos reais para a formação do consenso entre os sujeitos argumentantes


acerca das normas aceitáveis; tal princípio, que se determina a si mesmo,
se constitui como princípio procedimental discursivo, contrário a qualquer
dedução das normas. Cabe aos afetados ou aos seus representantes, a fun-
damentação concreta das normas com o propósito de garantir o máximo de
adequação à situação, bem como de adequação ao princípio de universali-
zação referido ao discurso, o que assegura a responsabilidade dos argumen-
tantes pelas consequências previsíveis em razão da normatividade alcançada
consensualmente. As normas situacionais, por sua vez, são revisáveis, de um
procedimento falível de fundamentação; contudo o princípio procedimen-
tal, de condição de sentido de tais normas revisáveis, conserva sua validade
incondicionada; e nele já se encontra uma ideia reguladora dos discursos
práticos de fundamentação das normas122.
Apel considera que esta condição público-discursiva de fundamentação
das normas consensuais, com pretensão universal, deve garantir, também, os
discursos de consciência particular e empírica dos argumentantes. A capa-
cidade de consenso entre eles, via princípio procedimental e com pretensão
de validade universal – cuja formação argumentativa em busca do consenso
se dá entre parceiros de igualdade de direito e responsabilidade –123, subs-
tituirá o imperativo categórico kantiano124. Esta substituição pode ser mais
bem compreendida da seguinte forma: o consenso, alcançado via princípio

121 HINKELAMMERT, Franz J. Ética de Discurso e Ética de Responsabilidade: uma tomada de posição crítica.
In: SIDEKUM, Antonio (Org.). Ética do discurso e Filosofia da Libertação: modelos complementares. São
Leopoldo: UNISINOS, 1994, p. 89.
122 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 160.
123 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 116.
124 Com Sartre, Apel inquire sobre o imperativo categórico de Kant. Diz ele que para Sartre o indivíduo pode
agir de acordo com a sua intenção, convicto de representar a humanidade, mesmo diante de uma situação
completamente incomparável e restrito de comunicação, podendo, então, transgredir qualquer norma vigente.
Ele pode optar pela humanidade, à medida que opta por si mesmo. Com essa formulação, ou perspectiva,
Sartre sanciona o vazio conteudístico da ética, também encontrado em Kant. Apel, nesse sentido, questiona:
“não se pode derivar, ao contrário da opinião de Kant, um fim conteudístico como princípio regulador de
todas as ações morais a partir do ‘factum da razão’, desde que se conceba esse ‘factum’ como o a priori da
158

procedimental, comporta tanto a coletividade quanto a autonomia monoló-


gica da consciência. Mas a consciência privada deve inclinar-se – base ao
paradigma da intersubjetividade ou reciprocidade – ao consenso definitivo
em uma comunidade linguística de comunicação125. Como sustenta Apel:

[Por um lado] o indivíduo pode e deve comparar e, possivelmente ques-


tionar no experimento mental, cada resultado fático de uma formação
real de consenso com respeito à sua concepção de um consenso ideal.
No entanto, o indivíduo não pode, por outro lado, renunciar o discurso
para a formação real do consenso, nem tampouco interrompê-lo apelando
para o ponto de vista subjetivo de sua consciência. Se o fizera, não estaria

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fazendo valer sua autonomia, senão tão somente sua idiocrasia em seu
aspecto cognitivo e voluntarista126.

Portanto, a Ética do Discurso pressupõe, em sua própria constituição


pragmático-transcendental, o consenso real entre os argumentantes, com vali-
dade normativa e universal e, por isso, não pode se restringir a um experimento
mental, de autonomia da consciência, ao ponto, até mesmo, de questionar o
alcance consensual das normas.
Dados estes elementos iniciais, Apel busca distinguir, com maior preci-
são, as partes A e B da Ética do Discurso. A parte A é de natureza transcen-
dental-reflexiva, do discurso “desonerado de ação” (estritamente filosófico),
de busca constante pelo consenso, idealmente livre de dominação e livre
de coação127; compreende-se, nesse sentido, como uma comunidade ideal
de comunicação, antecipada contrafaticamente, com pretensão de correção
normativa dos atos de fala. Isso requer dos argumentantes os mesmos direitos
e a mesma corresponsabilidade dos acordos alcançados em vista da reso-
lução dos problemas128. Diz Apel que a comunidade ideal tem a tarefa de
eliminar a sociedade de classes ou as assimetrias socialmente condicionadas
no diálogo129.
A parte B complementa ou qualifica o princípio da formação do consenso
e concede responsabilidade (histórica) aos sujeitos – de uma comunidade
linguística – pelas normas alcançadas130. Ainda que a parte A considere a
responsabilidade ética, não consegue tratar esta questão com propriedade,
pois apenas atenta-se às consequências previsíveis. Cabe, então, à parte B,
comunidade de comunicação?”. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade
de comunicação, p. 484.
125 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 161.
126 Ibid., p. 162.
127 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 124.
128 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 283.
129 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação, p. 488.
130 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 140.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 159

tratar das consequências também imprevisíveis e da aplicação da normativi-


dade e responsabilidade pelas suas consequências, de acordo com as normas
despontadas na parte A, regidas pelo princípio da universalização131. Com-
preende-se, portanto, a parte B como uma comunidade real de comunicação,
“de uma forma sociocultural de vida à que pertencem, já sempre, cada um
dos que aceitam a ética, desde a base de sua identidade contingente, isto é,
de seu nascimento e socialização”132.
Diz Apel que se um indivíduo se questionar “por que ser moral?” e “por
que assumir a corresponsabilidade?”, caso pergunte seriamente, então já tem
a resposta: “pois tu podes averiguar, por meio da reflexão radical sobre os
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pressupostos daquilo que fazes, que já assumiste corresponsabilidade no nível


do discurso argumentativo e assim reconheceste as normas fundamentais da
comunidade ideal de comunicação que tracei”133; de outra forma, “já aceitou
implicitamente o telos moral da práxis histórica, a ser alcançado a longo prazo,
da passagem da ética convencional e de suas condições convencionais para
a moral racional pós-convencional que tem que criar as condições sociais de
realização de seu princípio moral”134.
Apel compreende que a corresponsabilidade encontra a sua fundamen-
tação racional, particularmente, na reflexão transcendental-pragmática, dada
as pressuposições de cada questão séria no discurso argumentativo: o argu-
mentante, ao perguntar, já se compreenderá como participante em igualdade
de direitos e corresponsável (não como responsável solitário, mas no âmbito
coletivo, responsável com os outros). Assim, a questão alcançará o seu sentido
último. Nesse horizonte, os afetados e os peritos em uma mesa de discus-
são, em uma comunidade linguística, poderão alcançar consenso universal a
respeito das situações apresentadas. Resulta daí a capacidade de a Ética do
Discurso assumir, com base em sua fundamentação racional, o controle proce-
dimental e a coordenação da corresponsabilidade referente às consequências
das ações coletivas alcançadas, de regulamentação em âmbito planetário.
Adverte Apel que a organização da corresponsabilidade não se restringe a
um programa filosófico, mas a toda discussão coordenada, de debate, capaz
de assumir os princípios básicos da Ética do Discurso; trata-se de uma pers-
pectiva ética já reconhecida mundialmente e extremamente necessária para
o mundo da técnica e da ciência135.
Reconhecidas as normas de uma comunidade ideal de comunicação (parte
A), não poderão as soluções concretas, para o mundo real, serem antecipadas

131 HINKELAMMERT, Franz J. Ética de Discurso e Ética de Responsabilidade, p. 89-90.


132 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 164.
133 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 283.
134 HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso, p. 178.
135 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 107-108.
160

no nível da fundamentação pragmático-transcendental, como fizera o dedu-


cionismo clássico. Ao contrário, as soluções concretas, normativas, devem
proceder dos discursos práticos dos argumentantes. E não só, deve ainda haver
uma institucionalização do discurso prático, qual venha ser o postulado do
direito, que “é uma forma privilegiada de criar as condições históricas para a
realização da racionalidade discursivo-consensual. Daí surge a necessidade
da fundamentação do direito, e o telos visado pela práxis histórica será um
direito legítimo (justo)”136. Ora, Apel acredita haver dificuldades no processo
de institucionalização da normatividade moral, porém se faz necessária e,
por isso, deve ser garantida em uma situação histórica concreta, ainda que
sufocada por conflitos de interesse137.

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Estes elementos, de fundamentação da Ética do Discurso, apontam ser
ela, inicialmente, formal e procedural, mas, também, substancial, no sentido
da institucionalização dos discursos práticos expressa pela normatividade
alcançada pelo consenso. Apel esclarece que as normas fundamentais da ética
discursiva não buscam prescrever a vida boa ou a felicidade, mas o comparti-
lhamento das formas de vida, a serem submetidas ao discurso intersubjetivo
em vista das normas universalmente válidas e da corresponsabilidade refe-
rentes aos problemas comuns da humanidade138.
Com a diferença acima apresentada entre as partes A e B, pretende Apel,
como se observa, evitar o dualismo kantiano da doutrina de dois mundos, que
concerne ao homem como cidadão de dois mundos, gerando a possível tensão
entre a obrigação e a inclinação para o dever. Adverte Apel, todavia, que o a
priori da intersubjetividade (prefigurado em Kant como reino dos fins) deve
ser garantido entre o cruzamento da comunidade ideal (antecipada) com a
comunidade real (referida à história), quer dizer, do a priori da idealidade
com a da facticidade, ainda que a comunidade ideal esteja distante da comu-
nidade real, “mas a argumentação, em razão da sua estrutura transcendental,
continua não tendo outra escolha senão a de estar frente a frente com essa
situação desesperada e desesperadora”139.
Apel chama esta configuração de um a priori quase dialético, que, nota-
velmente, requer a norma fundamental da fundamentação consensual das
normas e a norma fundamental da responsabilidade referida à história para
a conservação das condições naturais de vida e para a conquista histórico-
-cultural da comunidade real, que se torna viável por meio do discurso argu-
mentativo de fundamentação consensual das normas140. Neste a priori quase

136 HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso, p. 180.


137 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação, p. 482.
138 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 283-284.
139 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II – O a priori da comunidade de comunicação, p. 485.
140 Compreende-se que a arquitetônica filosófica de Apel (pragmático-transcendental), desde início, busca não
apenas uma regra argumentativa, mas, também, uma norma ética fundamental. Esta norma não é somente
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 161

dialético se incorpora a facticidade, ainda que subordinada ao a prior não


contingente, universal. O fato é que a Ética do Discurso não somente busca
uma fundamentação da norma básica, mas intenta apresentar as condições de
sua aplicação no mundo histórico, concreto141. Sobre isso, diz Apel: “podemos
pressupor que as condições ideais do discurso não somente têm que antecipar-
-se contrafaticamente, senão que também estão suficientemente realizadas em
tal medida que é possível uma fundamentação pós-convencional das normas
morais sobre a base de um princípio universalmente válido do discurso”142.
Apel compreende que se o a priori da comunidade de comunicação
estivesse fundado somente na perspectiva do reino dos fins, teriam razão os
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críticos em chamá-lo de uma mera utopia. Ao contrário, a Ética do Discurso


reivindica para si as concepções da hermenêutica filosófica no a priori da
facticidade e historicidade (na perspectiva de Heidegger) e nas formas de
vida, socioculturalmente situadas (na perspectiva de Wittgenstein) com – o
que é imprescindível – o a priori não-contingente do discurso argumentativo,
de pretensão universal das normas alcançadas. Este a priori não-contingente,
de pretensão universalista – como atesta Apel – pertence ao legado cultu-
ral dos dias de hoje, de busca constante por acordos, sejam eles de caráter
político, social e econômico e, até mesmo, de caráter religioso. Ora, este a
priori não-contingente é histórico, porque representa uma conquista da evo-
lução cultural; dada esta conquista devem os sujeitos, em uma comunidade
argumentativa, conservá-lo143. Em nenhum momento, diz Apel, isso indica
uma falácia argumentativa, mas a necessidade de um a priori do discurso, de
alcance e validação da normatividade em vista da reconstrução da história da
cultura e da sociedade humana144.

uma condição de possibilidade de argumentação, mas um imperativo categórico. Ora, quem argumenta já
reconheceu, desde sempre, uma norma ética fundamental, que pode ser assim entendida: o argumentante
já reconheceu que a razão é prática, “que é responsável pelo agir humano; isto é, que as pretensões de
validade ética da razão, da mesma forma que suas pretensões de verdade, podem e devem ser satisfeitas
através de argumentos” (apud Apel, p. 73), ou melhor, que as regras ideais da argumentação representam,
de fato, condições normativas de possibilidade, com pretensão de validade, por meio do consenso. Um cético,
ao questionar a possibilidade de justificação das normas, já faz uso do argumento e, por isso, deve admitir
que está interessado, no campo teórico, ao menos, por questões práticas. E sobre isso, é possível a seguinte
afirmação: a busca pela fundamentação da razão prática é assunto da razão teórica. Então, deve-se admitir
que “a vontade de argumentar é equivalente à vontade de verdade, e a vontade de verdade supõe as regras
‘morais’ da argumentação, ou seja, é já vontade moral. Esta estrutura em conjunto não pode ser negada
sem contradição performativa, ou seja, é autoverificável” (p. 77). Portanto, a recusa à argumentação não
pode ser senão uma contradição performativa; a argumentação, por sua vez, já implica em regras morais.
Cabe ao cético: ou tornar-se membro de uma comunidade argumentativa ou atuar como uma “planta”.
VELASCO, Marina. Ética do Discurso: Apel ou Habermas? Rio de Janeiro: FAPERJ; Mauad, 2021, p. 72-78.
141 MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 56-57.
142 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 165.
143 MALIANDI, Ricardo. Semiótica filosófica y ética discursiva, p. 57.
144 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 165-166.
162

Neste ponto, Apel, diferentemente de Kant, adverte: não pode a Ética do


Discurso partir “do ideal normativo dos entes puramente racionais ou de uma
comunidade ideal de seres racionais, separada da realidade e da história”145,
isto é, não pode o priori argumentativo partir de um ponto zero da história,
ou alheio a ela, mas considerar a história humana e nela, em suas formas de
vida, a observação das normas consensuais, válidas para todos. Ora, o caráter
universalista, do dever ideal (kantiano), é conservado por Apel em seu legado
ético, mas em uma perspectiva de transformação, como é possível identificar
na parte A: nela, se dá “a fundamentação de um princípio procedimental
formal – de uma metanorma – para a fundamentação discursiva das normas

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que se podem consensuar universalmente”146.
A parte B garantirá a vinculação da fundamentação consensual das nor-
mas – de um a priori quase dialético – com a facticidade, de situações reais;
assim, a formulação de uma ética da responsabilidade, referida à história. E
não pode tal vinculação recorrer a costumes convencionais de aplicação e
nem ao juízo do homem (como em Kant). Em vista da vinculação, Apel aponta
a necessidade de participação – em uma comunidade de comunicação – dos
especialistas, que poderão, inclusive, discursar acerca dos fatos relevantes
reais. Aqui, Apel identifica a possibilidade e, ao mesmo tempo, a necessidade
de cooperação entre a filosofia e as ciências empíricas (sociais e da natureza).
Elas podem oferecer um conhecimento técnico e previsível dos fatos, como
também possibilitar uma aplicação politicamente responsável da normati-
vidade, discursivamente consensuada, permitindo, assim, a vinculação da
ética tanto com instituições (no âmbito da política e do direito) quanto com
o percurso sócio-histórico, reconstruído147.

2.1.1 A Ética do Discurso como ética da responsabilidade

Como agir eticamente em um Estado de Direito onde normas não são


estabelecidas ou não funcionam148? Deve o indivíduo pagar impostos uma vez
que os demais não pagam? Diante de uma situação conflitiva, que envolve,
inclusive, armamento, deve o político substituir a racionalidade estratégi-
co-instrumental pela racionalidade discursiva, da ética dialógica? Questões
como essas podem apresentar-se para um sujeito ou, ainda mais, para socie-
dades diversas; sem dúvida, esta situação é problema-chave para a inquirição
ética e sua aplicabilidade. No entender de Apel, qual vem a ser a sua resposta
a tais perguntas, não pode o indivíduo agir conferindo a si a responsabilidade
145 Ibid., p. 167.
146 Ibid., p. 168.
147 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 168-169.
148 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 285.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 163

do seu ato ou a alguma instituição por ele confiada, ou melhor, “não se pode
exigir moralmente que, sem uma ponderação responsável dos resultados e
subconsequências previsíveis de sua ação, deva comportar-se segundo um
princípio moral incondicionalmente válido”149. Esta perspectiva, da ética
discursiva, aponta o aspecto fundamental de diferenciação entre a ética da
convicção e a ética da responsabilidade.
Ora, a ética da convicção – de caráter substancialista e de conteúdo
explícito que determina tanto a vida justa quanto a vida boa – restringe-se à
opção pessoal e sem qualquer perspectiva de fundamentação racional da ética
em uma esfera pública. Esta, por sua vez, como compreende Weber, ainda
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que comporte a competitividade entre os indivíduos, em razão dos seus inte-


resses particulares, visa o consenso, como resposta conjunta aos problemas
enfrentados. A racionalidade aqui referida implicará na responsabilização dos
sujeitos pela ação normativa alcançada, quer dizer, em uma ética da responsa-
bilidade, cuja ação normativa dos indivíduos requererá o cálculo dos riscos e
das consequências sociais a ela referida. Diferente, então, da ética da convic-
ção, reduzida à interioridade da pessoa (asseguradora da sua intencionalidade
subjetiva), a ética da responsabilidade se sustenta em uma esfera pública,
de sujeitos de interesses particulares em busca de uma normatividade dada
em consenso (e sobre isso, Apel está de acordo com Weber, de que a ética da
convicção – e de matriz kantiana – fracassa, por exemplo, diante da política,
“porque abstrai da responsabilidade à referida situação as consequências da
sua aplicação”150). Resulta daí a necessidade de um realismo estratégico para
atender a normatividade alcançada e suportar suas reais consequências. No
paradigma da ética da responsabilidade devem os indivíduos “traírem”, ao
menos parcialmente, suas próprias convicções em prol da vida social e do
pluralismo de valores da vida pública; o cidadão moralmente responsável
será aquele capaz de assumir as consequências sociais de uma determinada
ação. É notável, como se conjectura, que a razão estratégica determina a vida
pública, para cumprimento das ações normativas151.
Ainda, esta diferenciação entre a ética da convicção e a ética da respon-
sabilidade aponta, também, para uma constatação: o conflito entre esses dois
postulados éticos surge quando ainda não estão dadas as condições de apli-
cabilidade de uma determinada competência judicativa moral. No horizonte
da ética da responsabilidade weberiana, porém, o surgimento do Estado de
Direito parece oferecer uma solução a este problema, com a “aplicação” de
uma moral de princípios; ele atua como mecanismo responsável de decisão
moral, alcançada pelos homens, não somente estrategistas, mas com senso de
149 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 172.
150 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 111.
151 ESTRADA, Juan Antonio. Tradiciones religiosas y ética discursiva, p. 177-178.
164

justiça. Ainda que o Estado de Direito exija a conduta moral conforme a lei,
ela já não mais se fundamenta por uma ação moral do “dever”. Este alcance
pós-convencional, moralmente relevante – como acentuado por Weber – não
pode fundamentar (ou justificar) a parte A da Ética do Discurso, abstrativa e
universalista. Contudo, dado que Estado do Direito torne possível a moralidade
alcançada, ao impor normas cuja validade considere o reconhecimento (não
violento) dos afetados e, ao mesmo tempo, uma ação coercitiva, legítima,
susceptível de consenso, fundamenta (ou apresenta a justificação normativa)
a parte B da ética discursiva; por isso, uma ética da responsabilidade, referida
à história. Ora, não é possível a parte A – que fundamenta e valida as normas

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com pretensão de universalidade, mediante discurso não violento – oferecer
as condições de aplicação da moralidade, mas a parte B, como afirma Apel,
“justifica a violência legítima como antiviolência, eficaz também estrategi-
camente”152. Por conseguinte, tanto na parte A quanto na parte B, continuam
fazendo parte do a priori do discurso as supernormas da justiça, da solida-
riedade e da corresponsabilidade, pressupostas como válidas153.
Não obstante, Apel entende ainda não ser possível resolver o problema
levantado por Weber, de aplicação da ética – no sentido da ética da responsabi-
lidade – mediante ao poder, de normatividade, que exerce o Estado de Direito.
Até mesmo porque uma ordenação cosmopolita, como se pretende nos dias
de hoje, ainda não se tem alcançado em sua completa pretensão. Então, como
assegurar uma ética responsável, e universalista, quando ainda as condições
de aplicabilidade não estão dadas? Com isso, surge a pergunta: como se dá a
relação entre a Ética do Discurso e a problemática de uma responsabilidade
histórica, que busca assegurar a aplicação da normatividade? Notavelmente,
entende Apel não ser possível resolver este problema na parte A, abstrativa e
universalista. A pretensão de responsabilidade pelas consequências das normas
tomadas em consenso, já presente no princípio universalista – parte A – é
necessária e correta, porém suas condições de aplicação da ética ainda não
estão realizadas historicamente. Por isso, o problema da responsabilidade, de
aplicação histórica, terá que ser resolvido na parte B154.
Nesse horizonte, quando as condições de aplicabilidade da ética não
(ou ainda) estão dadas, Apel compreende que a parte A deve ser suprida pela
parte B, o que implica: 1) não é possível manter a estrita separação entre
a racionalidade estratégico-instrumental e a racionalidade discursiva, na
parte B, pois haverá a necessidade de métodos de mediação entre elas. Pode,
aqui, ser considerada a seguinte regra: “tanto avance no sentido de confiar

152 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 175.


153 NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral: estudos preparatórios. Trad. F. Javier Herrero e Nélio Schneider.
São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p. 92.
154 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 176-179.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 165

no discurso quanto se possa assumir em vista do perigo; e tantas estipulações


estratégicas quantas se requeiram por causa de nossa grande responsabilidade
pelas consequências esperáveis de nossas ações”; 2) as mediações da racio-
nalidade estratégica e da racionalidade comunicativa devem se colocar não
somente a serviço da crise-problema, mas orientadas para as condições de
aplicação normativa, que comportará a realização da comunidade ideal na
(dentro da) real155.
Embora distintas, a racionalidade comunicativa e a racionalidade
estratégica são inseparáveis, realidade que apenas pode ser compreendida
no discurso, dado que a racionalidade do discurso permite conciliar-se com
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a racionalidade estratégica responsável. A parte A já prevê esta conciliação,


realizada na antecipação contrafática das normas e sua vinculação com o
mundo histórico156.
Apel, com isso, quer demonstrar a necessidade da racionalidade estraté-
gica para a Ética do Discurso, como aquela capaz de superar a irracionalidade,
mas, eminentemente, como uma estratégia moral, porque o seu fim é moral;
tem a pretensão de assegurar a observâncias das normas e responsabilidade de
todas as suas consequências. Mas não pode tal estratégia servir-se de meios
perigosos que coloquem em risco as condições culturais e naturais alcançadas.
Por isso, a estratégia é limitada pelo princípio da autoconservação daquilo
já alcançado historicamente157.
Nesse sentido, com Weber – revisado – deve-se levar em conta, estra-
tegicamente, as circunstâncias e as consequências das ações, bem como a
convicção de que de meios bons se seguem fins bons e, vice-versa; ainda,
a segurança de que as estratégias estão em vista de uma causa moral, sem
a qual sucumbiria a ética à imoralidade de um puro pragmatismo. Todavia,
esta causa, contra Weber, não pode ser objeto de fé (ou convicção por uma
causa), motivação sublime do político. Uma “fé” não argumentada e, por
isso, irracional, pode ser tão perigosa como um puro pragmatismo e isso a
história já comprovou, fruto de acentuados fanatismos e dogmatismos. A
causa, no âmbito da ética argumentativa, não só deve ser compartilhada entre
todos os políticos (e isso em Weber não é possível), mas também por todo
sujeito argumentante e responsável, assim, uma comunidade argumentativa
que resolve seus conflitos com base no consenso, moralmente desenvolvido,
e não com base na estratégia; esta procede como mecanismo para aplicação
das normas alcançadas. Ademais, uma ação estratégia é lícita se ela favorece
a criação da comunidade ideal de comunicação158.

155 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 285.


156 CENCI, Angelo Vitório. Apel versus Habermas, p. 91.
157 HERRERO, F. Javier. Ética do Discurso, p. 179.
158 CORTINA, Adela. Razon comunicativa y responsabilidad solidaria, p. 214.
166

Nessa altura, Apel questiona-se sobre a necessidade da parte B para a


Ética do Discurso; se a sua pretensão de universalidade não estaria fadada
ao fracasso, como um mero princípio formal do discurso, sem “força” para
resolução dos problemas apresentados; ou se ela não deveria apenas alcançar,
no sentido de aplicação das suas normas, “formas de vida”, de uma eticidade
particular ou ligada a tradições. Apel então considera, em resposta a tais ques-
tionamentos, que na parte B: a) a aplicação do princípio da Ética do Discurso
– que se dá pelo discurso argumentativo, de regulamentação consensual – será
possível “ali onde as relações locais da moralidade e de direito o possibilitem
conjuntamente desde si mesmas”159. Na racionalidade instrumental-estraté-

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gica, ao contrário, o recurso discursivo encontra-se completamente separado
da aplicação; b) a normatividade alcançada, pelo discurso argumentativo,
não pode derivar apenas do princípio da ética discursiva e de sua aplicação,
fruto de um discurso ideal, mas “também e ao mesmo tempo como resultado
da conexão com a tradição já existente do direito e da moralidade de uma
forma de vida determinada”160. Compreende Apel que esta medida não limita
ou enfraquece, em absoluto, o princípio da ética discursiva, desde sempre
reconhecida pelos dialogantes em uma comunidade de comunicação.
Constata Apel que a parte B dá valor distinto (em relação à parte A) ao
princípio da ética discursiva: “já não se pode seguir supondo como base de
uma norma fundamental, procedimental e aplicável, de uma ética deôntica
que simplesmente limita as valorações e a fixação de objetivos dos homens,
sem prejulgá-los a eles mesmos”161. O princípio ético será então considerado
pela parte B como valor, que pode ser compreendido como princípio teleo-
lógico de complementação do princípio do discurso. Ainda que as condições
de aplicação da ética não se tenham realizado (caso contrário, a Ética do
Discurso seria nada mais que um mero princípio deontológico formal, asse-
gurada pela seguinte máxima: aja, sempre, como se você fosse membro de
uma comunidade ideal de comunicação, ao pressupor já as condições sociais
de aplicação), os sujeitos capazes de compreender a validade do princípio da
ética, no plano do discurso argumentativo, estarão obrigados a considerar o
princípio deôntico do discurso e uma responsabilidade referida à história162.
Assim, a Ética do Discurso comportará um princípio deontológico-normativa
(parte A) e outro teleológico (parte B)163.

159 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 180.


160 Ibid., p. 181.
161 Ibid., p. 181.
162 Ibid., p. 181-182.
163 Nesse sentido, é possível afirmar que “a Ética do Discurso é uma teoria moral deontológica do segundo
tipo, enquanto ética originária da responsabilidade. Enquanto tal, ela distingue entre a validade e a validade
para ser seguida (das formulações) das normas morais”. NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 18.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 167

Este princípio, teleológico – necessário para a ética discursiva – demons-


tra que a comunidade ideal de comunicação, contrafática e portadora do prin-
cípio de universalização (parte A), está sempre por se realizar (parte B).
Por conseguinte, não pode o princípio teleológico ser concebido como uma
utopia social, mas uma realização progressiva, de ações reguladoras e cor-
responsáveis164, uma corresponsabilidade que une todos os sujeitos em vista
de uma solidariedade original, onde a responsabilidade não está conferida
a um indivíduo, sem que a ele isto seja negado, mas a todos os membros da
comunidade linguística (trata-se de uma teleologia referida à ação e à his-
tória)165; também, não pode ser compreendido na perspectiva de uma ética
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da vida boa, mas necessário para a remoção de obstáculos que dificultam a


aplicação da normatividade, oriunda do discurso argumentativo166; ainda, não
pode ser considerado utilitário, de interesses particulares e realização indivi-
dualizada de sujeitos do discurso. Ao contrário, é um princípio racional-final
situado normativo-moralmente em vista de sua aplicação167. Apel considera
que a corresponsabilidade, que oferece as condições para a aplicação da nor-
matividade alcançada, supera, e muito, a ideia de responsabilidade das éticas
tradicionais, atribuída individualmente, como já exposto168.
Este aspecto demonstra a dupla inovação apeliana, inspirada em Weber,
referida à ética tradicional: a) a ética da responsabilidade agora vai além da
responsabilidade pessoal, acerca das consequências das ações do sujeito; dada
que as ações dos sujeitos passam a ser mediadas por instituições, até mesmo
porque os sujeitos, de uma comunidade linguística, provêm de determinadas
comunidades sociais. Ela, todavia, não está restrita a instituições, pois acima
delas existe a comunidade ideal de comunicação, que não deve se reduzir a
consensos factuais em determinadas instituições democráticas. Então, na ética
da responsabilidade toda ação moral de pessoas sempre é mediada institucio-
nalmente, mas, simultaneamente a esta consideração fática, a consideração
contrafática, de condições ideais, deverá ser permanente, orientada para a
reformulação das condições institucionais; b) a ética da responsabilidade –
contra aquela imbuída de atribuir apenas uma responsabilidade individual,
acerca das consequências, ou até mesmo de referir-se a instituições –, alcança
agora uma esfera pós-convencional, no sentido de uma macroética da humani-
dade. Este alcance não é possível em Kant porque seu legado ético não oferece
a base de uma responsabilidade recíproca dos sujeitos como intersujeitos e
nem as condições para a uma avaliação crítico-hermenêutico das instituições,

164 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 114-115.
165 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 284.
166 NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 90.
167 Ibid., p. 93.
168 APEL, Karl-Otto. Ética do Discurso, p. 286.
168

como organismos sócio-históricos dos seres humanos. Com Kant, apenas é


possível fundamentar a mesma responsabilidade para todos os sujeitos morais,
mas não a corresponsabilidade de todos referente às consequências de ações
coletivas. Nesse sentido, a condição de igualdade entre todos os parceiros
da comunidade linguística e a pretensão de solução a todos os problemas do
mundo da vida são complementadas (e justificadas) pela corresponsabilidade.
Será ela capaz de garantir a aplicação das normas tomadas em consenso169.
Ainda, nesta perspectiva de uma ética da responsabilidade, como se
estrutura a Ética do Discurso, de uma corresponsabilidade (coletiva), não é
possível, em nenhuma hipótese, eliminar, ao menos por completo, a morali-

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dade do direito e da política, “pois isso infringiria evidentemente o impera-
tivo ético da corresponsabilidade discursiva pelas consequências de todos,
inclusive justamente das atividades coletivas”170. Este imperativo da corres-
ponsabilidade, portanto, proíbe a exclusão da corresponsabilidade (moral) das
ações públicas, de atividades institucionalmente reconhecidas. Ao contrário, tal
imperativo exige que o potencial de responsabilidade dos sujeitos seja recupe-
rado e garantido diante das ações coletivas e de seus resultados, consequências.
Em uma comunidade de comunicação, os sujeitos, no uso do discurso
argumentativo, deverão buscar entendimento e resolução dos problemas
apresentados, garantida a consensualidade no alcance das normas e isso em
consonância com a valorização da situação, que requer disponibilidade para
uma ação estratégica, ainda mais em situação de perigo extremo, de confli-
tos armados, ou emergencial. Nessa perspectiva, para Apel, compreendida a
diferença entre o real e o ideal – entre a situação condicionada historicamente
e o discurso argumentativo, contrafático – os sujeitos estarão obrigados a
colaborar na supressão aproximativa e a longo prazo da diferença. E “com
este reconhecimento de um compromisso exigido da vontade, em favor do
valor ou objetivo da realização das condições de aplicação do princípio ético
do discurso, alcança este seu novo valor posicional na parte B da fundamen-
tação da ética discursiva”171.

169 CENCI, Angelo Vitório. Apel versus Habermas, p. 298-302.


170 APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política, p. 109. Apel acredita não
poder excluir da parte B, como ética da responsabilidade, o Direito e a Política, para a aplicação das normas
tomadas em consenso. Nesse sentido, vê-se obrigado a explorar a diferenciação entre as partes A e B, e
a faz do seguinte modo: a Parte A tratará da fundamentação do princípio ideal procedimental em vista da
resolução dos problemas apresentados, assegurada pela formação discursiva do consenso (estritamente
discursiva e não estratégica); a parte B1, da fundamentação moral das prerrogativas de coerção do Estado
de Direito e, com isso, da validade das normas jurídicas, considerada a coerção, então, a garantia do direto;
a parte B2, da mediação moral, de responsabilidade, com a ação estratégica, como política responsável.
Ibid., p. 143.
171 APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso, p. 183.
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 169

Em suma, estruturada a Ética do Discurso nas partes A e B, componentes


formativos que revelam uma sólida unidade172 – Apel acredita ter superado,
definitivamente, uma ética de perspectiva deôntica e, com e além de Weber,
alcançado a máxima de uma ética pós-convencional, de responsabilidade
solidária. Tem lucidez ao afirmar que o compromisso de colaboração apro-
ximada e a longo prazo das condições de aplicação da ética discursiva não
está referida, ou em direção, a uma “revolução mundial”; também, no entanto,
que a comunidade de comunicação ideal, antecipada contrafaticamente, não
alude a nenhuma utopia social concreta. A Ética do Discurso é uma proposta
ética relevante e necessária para o mundo atual.
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Conclusão

A arquitetura filosófica de Karl-Otto Apel é construída em diálogo com


diversos pensadores, particularmente, modernos e contemporâneos. Pois Apel,
no seu projeto de “transformação da filosofia”, busca compreender e demons-
trar a fragilidade ou não especificidade do método próprio da filosofia que,
segundo ele, consiste no método transcendental, que tem a linguagem como
médium de todo pensar. A Ética do Discurso, de caráter pragmático-transcen-
dental, demonstra essa habilidade do eminente filósofo alemão: com, contra
e além de Weber, Apel constrói uma relevante proposta ética para o mundo
da técnica e da ciência.
Como discutido, com Weber, Apel assente que a ética da convicção, de
perspectiva metafísica, é insensata e irracional. Seja ela fideísta (religiosa)
ou deducionista (deontológica), não pressupõe a responsabilidade do indiví-
duo pelas consequências de sua ação, cabendo ao sujeito, respectivamente,
agir segundo uma norma divina (extra mundo) e um factum da razão, legi-
timada pela lei, que é consentida pela vontade. O agir, de acordo com este
modelo ético, é incondicional e isso não é relevante para o político, como
demonstra Weber e, muito menos, como entende Apel, para a sociedade indus-
trial. A ética da convicção reduz-se em um puro solipsismo, de um sujeito
de consciência capaz de cumprir mandamentos porque são “bons” e “jus-
tos” incondicionalmente.
Weber não só identificou essa insensatez, como também a tendência de
um novo legado ético, próprio do “desencantamento do mundo”, uma ética
pós-religiosa e pós-kantiana. A chamada ética da responsabilidade inaugura
uma nova racionalidade, a chamada teleológica. Com Weber, Apel também
assente o caráter da responsabilidade ética a ser conferida ao indivíduo, pró-
pria, inclusive, da ação social¸ na perspectiva do Weber: a ação do indivíduo

172 NIQUET, Marcel. Teoria realista da moral, p. 95.


170

está sempre referida ao comportamento do outro. Nesta nova perspectiva ética


os sujeitos alcançam, por meio de um acordo, a regulação moral, cientes da
responsabilidade das possíveis consequências vindouras. Este modelo ético
deve orientar o político, porque racional e condicionado; poderá ele servir-se
de diversos meios para obter os fins desejáveis.
Mas a ética da responsabilidade não ignora, em sua totalidade, a ética
da convicção, porque deve o político agir segundo uma crença e responsável
pelas consequências de sua ação. Contra Weber, Apel dispensa esta conjuga-
ção como necessária para o agir. A “crença” ou convicção, ou ainda a cons-
ciência particular, não compõe a criteriologia da ética discursiva, apenas

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deve ser garantida como ponto de partida, próprio de um “jogo de lingua-
gem”, para uma comunidade de comunicação. Deverá o sujeito, de acordo
com Apel, abandonar sua autonomia monológica em vista do consenso e
da universalidade normativa, observadas as condições imprescindíveis para
a argumentação.
Ainda que a responsabilidade seja relevante para uma ética pós-metafí-
sica, o que evidencia o acordo de Apel com Weber, não pode ela, e aqui Apel
contra Weber, prescindir de acordos estratégicos entre os indivíduos de ação.
Pois não há uma criteriologia clara em Weber, como se presume, em postular
o consenso entre os indivíduos; ao contrário, a ação discursiva desenvolve-se
por um jogo estratégico, de defesa de interesses particulares. Então a res-
ponsabilidade, ainda que necessária, atende um puro pragmatismo, utilidade
ou funcionalidade em decorrência de situações e acontecimentos históricos.
Portanto, Apel constata que a doutrina weberiana incorre, no contexto do
desencantamento, no livre juízo de valor e, por isso, inviabiliza a construção de
uma ordem de valores objetivamente válida, substituindo-a por um politeísmo
axiológico; nesse contexto, apenas é possível esperar dos indivíduos uma ação
estratégica para o alcance regulativo, nada mais que uma ação pré-racional.
Ademais, Apel não dispensa duras críticas a Weber ao apontá-lo como repre-
sentante do sistema de complementaridade da ideologia Ocidental, onde a
práxis, na esfera pública, deve ser regulada pela racionalidade não valorativa
da ciência e da técnica, de tal forma que as ações devam convergir em acordos,
no sentido de decisões democráticas da maioria. Por isso, a necessidade de
discernimento para os pressupostos normativos de valoração que, indiscutivel-
mente, não podem fundar-se na subjetividade, ou pressupor a não obrigação
da intersubjetividade, tal como, desde Weber, se tornou comum. Mas Apel
reconhece que Weber foi o primeiro a analisar a mediatização entre teoria e
práxis, com o conceito de “racionalização” da esfera pública da sociedade
industrial, e isso no contexto do liberalismo no Ocidente.
A responsabilidade, se criteriologicamente fundamentada, assegura o
caráter responsável como legítimo porque legítimo o consenso, assegurado
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 171

pelo princípio procedimental, a priori. Nesse sentido, Apel, com Weber, iden-
tifica na responsabilidade a aplicação ética, no mundo histórico. Na parte B
da ética discursiva, esta perspectiva é incorporada como asseguramento de
aplicação normativa; ela, a parte B, permite à comunidade de comunicação
formular as normas e considerar suas consequências. Ora, a responsabilidade
já é pressuposta na forma procedural, mas com garantia de ser observada
justamente na parte B, historicamente condicionada. Nesse aspecto, Apel
constata, com Weber, a necessidade de valorização do horizonte experiencial
da história para a fundamentação ética.
Além de Weber, Apel confere a corresponsabilidade à Ética do Discurso,
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como superação da responsabilidade conferida ao sujeito. A corresponsabili-


dade renuncia a responsabilidade individual que, no modelo weberiano, parece
relevante; em troca, atribui aos sujeitos de uma comunidade linguística a res-
ponsabilidade conjunta, condizente, inclusive, com o princípio de universali-
dade da Ética do Discurso; a corresponsabilidade atende, de fato, a pretensão
ética de Apel, uma macroética para a sociedade planetária, com o intuito de
responder aos problemas comuns da humanidade. Tal corresponsabilidade é
capaz de unir todos os sujeitos em vista de uma solidariedade original.
Dadas estas constatações, deve-se esclarecer que o diálogo de Apel com
Weber é, ainda, introdutório, do ponto de vista analítico e conceitual por
comentadores da ética apeliana. Até mesmo o próprio Apel limitou-se a explo-
rar – e, talvez, não fosse essa sua finalidade – a ética da responsabilidade de
Weber e como ela se incorpora na Ética do Discurso, particularmente na parte
B. Não obstante, é notável o apreço de Apel ao postulado ético weberiano: sem
percorrer literalmente a Política como vocação, de Weber, entre outras obras,
Apel demonstra a importância do pensamento de Weber para fundamentar e
estruturar sua ética discursiva.
Em suma, é possível constatar que Karl-Otto Apel supera, em larga
escala, o postulado ético de Max Weber, e o faz ancorado na racionalidade
discursiva – de caráter pragmático-transcendental – em detrimento da racio-
nalidade estratégico-teleológica. Com isso, apresenta Apel uma criteriologia
para ética racional e universalista, a Ética do Discurso.
172

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ÍNDICE REMISSIVO
A
Adivinhação 105, 106
Atividade educativa 11, 71

C
Convicção 13, 132, 133, 134, 136, 137, 138, 139, 140, 143, 151, 153, 163,
165, 169, 170
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E
Emancipadora 11, 71, 72, 75
Ética 3, 9, 13, 108, 126, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138,
139, 140, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 151, 152, 153, 154, 155,
156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170,
171, 172, 173, 174, 178

F
Fenomenologia 13, 115, 122, 128
Filosóficos 11, 31, 43, 48, 73, 83

I
Ideologia 11, 12, 22, 23, 83, 84, 85, 86, 87, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 129,
143, 170
Igualitária 11, 71, 75

L
Linguagem 3, 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 28, 31, 33, 34,
36, 37, 38, 52, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77,
78, 79, 80, 107, 108, 109, 113, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123,
124, 125, 126, 127, 145, 146, 147, 148, 149, 154, 169, 170, 177, 178, 179
Localização espacial 40, 42
Localização temporal 40, 42

M
Mecanismos disciplinares 11, 71
176

Metafísicos 34, 132


Método sociológico 21, 22, 28
Multiplicidade 36, 40, 41, 42, 47, 111

O
Ontológicas 39, 42, 49

S
Solidariedade 164, 167, 171

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T
Teórico 11, 73, 77, 83, 161

V
Valor heurístico 12, 83, 97
AUTORES
Amanda Cavalcante Ribeiro
Graduada em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP.
Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade
Metropolitana. Tem ampla experiência na área da surdez e libras; fluente
em Língua Brasileira de Sinais, certificada pela UFSC - PROLibras/2008;
mestranda em Filosofia da Linguagem pela UFABC. Desenvolve pesquisa
sobre as relações entre surdez e constituição da subjetividade à luz das teo-
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rias discursivas.

Antonio Wardison C. Silva


Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP.
Doutor e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo - PUC-SP. Licenciado em Filosofia e Bacharel em Teologia. Docente do
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL, onde desenvolve as
seguintes atividades: gestor do Campus Pio XI, coordenador do bacharelado
em Teologia, coordenador dos cursos de pós-graduação em Ensino Religioso,
Pastoral Escolar, Pastoral e Acompanhamento Juvenil; Catequese e Teologia
Bíblica. De 2017 a 2021 atuou como Pró-Reitor de Extensão, Ação Comu-
nitária e Pastoral do UNISAL. Pesquisador dos Grupos de Pesquisa CNPq:
Antropologia Teológica (UNISAL); Centro de Estudos de Pragmatismo (PUC-
-SP); Teologia e Cultura, Profecia e Sociedade - TCPS (PUC-SP).

Cassiano B. da Costa
Graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal
de São Paulo - UNIFESP. Participa do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica - PIBIC – CNPq; desenvolveu pesquisa em 2020/2021 no
Departamento de Educação da EFLCH -UNIFESP sobre educação e trabalho
no sistema carcerário. Atualmente, desenvolve pesquisa na área da filosofia
da psicologia, com o tema: “a relação entre corpo e espírito: tensões entre a
filosofia e a psicologia”.

Diego de Souza Avendano


Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, na linha de
pesquisa: “Metafísica, Ciência e Linguagem”, com o projeto: “Indeterminação
e Regras nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein”, sob a orientação do
Prof. Dr. Marcelo Silva de Carvalho; mestre em Filosofia pela Universidade
Federal de Goiás, na linha de pesquisa “Lógica e Filosofia da Linguagem”;
178

graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia. Tem interesse


em lógica, filosofia analítica, filosofia da mente e ética.

Felipe Couto
Doutorando em Filosofia da Psicologia pela Universidade Federal de São
Paulo; mestre em Filosofia da Linguagem; graduado em Comunicação Social.
Dedica-se a teorias e questões contemporâneas sobre consciência e lingua-
gem; pesquisa as concepções de subjetividade, linguagem, epistemologia e
ontologia presentes na filosofia tardia de Ludwig Wittgenstein e em escritos
diversos da obra de Blaise Pascal.

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Francisco Estefogo
Membro titular da Academia Taubateana de Letras (ATL); pós-doutor em
Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo; pós-doutorando em Filosofia da Linguagem pela Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP), sob a supervisão do Prof. Dr.
Marcelo Silva de Carvalho, bem como pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUCSP), sob a supervisão da Profa. Dra. Yolanda Gloria Gam-
boa Muñoz. Atualmente, é professor do Programa de Linguística Aplicada
da Universidade de Taubaté (UNITAU) e colunista do jornal Hoje+, de Ara-
çatuba e do O Vale, do Vale do Paraíba, SP; membro do Grupo de Pesquisa
Linguagem em Atividade no Contexto Escolar (GP LACE/PUCSP/CNPq),
que tem parcerias internacionais com a Global Play Brigade, Universidade
de Rutgers (New Jersey - EUA), Universidade da Cidade de Nova Iorque
(CUNY Graduate Center) por meio de projetos de pesquisa e de extensão
focadas, sobretudo, na formação de formadores.

Marcelo Carvalho
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo; Mestre e Graduado
em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente, é Professor do Depar-
tamento de Filosofia da EFLCH – UNIFESP; também, docente permanente
nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia da UFABC e em Metafísica
da UnB. Concentra a sua pesquisa nas áreas da Filosofia da Linguagem, da
Lógica e da Filosofia Contemporânea.

Vitor Paixão Roberto


Mestrando em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);
graduado em Filosofia pela mesma Universidade, com financiamento da
Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES). Tem
experiência em filosofia da ciência, especialmente em filosofia das ciências
DE UM DISCURSO A OUTRO: Linguagem, Ética e Conhecimento na Filosofia Contemporânea 179

biológicas e pesquisa com enfoque nas questões relacionadas ao determinismo


biológico e suas relações com as ciências biológicas e as ciências humanas.

William Botura Apostolico


Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Desenvolveu, entre 2021 e 2023, pesquisa de Iniciação Científica na área de
Filosofia, com ênfase em Filosofia da Linguagem e, mais especificamente,
na obra de Ludwig Wittgenstein.
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: não comercializado
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo em brilho 250 g (capa)

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