Você está na página 1de 280

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Marina Corbetta Benedet
João Fillipe Horr
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO,
VULNERABILIDADES E
ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO:
pesquisa em Psicologia

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de Capa: @starline | Freepik
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


C743

Constituição do sujeito, vulnerabilidades e estratégias de enfrentamento: pesquisa em


Psicologia / Marina Corbetta Benedet, João Fillipe Horr (Organizadores) – Curitiba : CRV, 2023.
280 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5856-3
ISBN Físico 978-65-251-5858-7
DOI 10.24824/978652515858.7

1. Psicologia 2. Pesquisa em Psicologia 3. Epistemologia 4. Método 5. Constituição do


sujeito 6. Vulnerabilidades I. Benedet, Marina Corbetta, org. II. Horr, João Fillipe, org. III. Título
IV. Série.

CDU 159 CDD 150


Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia - 150

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela Editora CRV
Tel.: (41) 3029-6416 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Fauston Negreiros (UFPI)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Celso Conti (UFSCar) Helmuth Krüger (UCP)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) João Ricardo Cozac (PUC-SP)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcelo Porto (UEG)


Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Gloria Fariñas León (Universidade Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
de La Havana – Cuba) Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
de La Havana – Cuba) Virgínia Kastrup (UFRJ)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO [OU SOBRE ITINERÁRIOS, PONTOS DE


ENCONTRO E MODOS DE SER]: as relações que nos trouxeram até
aqui... ................................................................................................................. 9
João Fillipe Horr
Marina Corbetta Benedet

SITUAÇÕES DE VULNERABILIZAÇÃO E VIOLÊNCIAS:


aproximações éticas e políticas na investigação científica da Psicologia ....... 17
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

João Fillipe Horr


Marina Corbetta Benedet

DIMENSÕES ÉTICO-POLÍTICAS, PROCESSOS DE


SUBJETIVAÇÃO E DIREITOS HUMANOS ................................................. 31
Bruna Heleno Zarske de Mello
Marina Corbetta Benedet
Yuri Eller Verzola

SEXUALIDADE FEMININA: santas, bruxas, sensuais, recatadas


[visibilidades, dizibilidades e o que escapa] .................................................... 45
Brenda dos Santos
Paula Maria Serpa Seleme Carvalho
Marina Corbetta Benedet

ENTREGADORES DE APLICATIVO: um estudo com trabalhadores do


alto vale do Itajaí ............................................................................................. 73
Matheus Braciack
Yuri Eller Verzola

POR TRÁS DA ARTE DE RUA: a voz dos artistas de rua ............................ 97


Ana Beatriz de Souza Medeiros
Paula Natália Ramos
Marina Corbetta Benedet

TERRITÓRIOS, CORPORALIDADES E SENSORIALIDADES: a


pesquisa cartográfica e os dispositivos de produção de conhecimento ....... 125
Gustavo da Silva Machado
Marina Corbetta Benedet

DISPOSITIVOS E TECNOLOGIAS PSICOSSOCIAIS EM POLÍTICAS


PÚBLICAS DE SAÚDE, EDUCAÇÃO E JUSTIÇA .................................... 139
Bruna Heleno Zarske de Mello
Maria Vitória Schizzi Tiepo
Vitoria Nathalia do Nascimento
David Tiago Cardoso
NÓS SOMOS ELO: a sistematização da experiência e coletividade com
mulheres em situação de acolhimento institucional ...................................... 159
Gleice Barros da Silva
Larissa Pereira de Santana
João Fillipe Horr
Enis Mazzuco

RELATOS DE ESTUDANTES DE UM CURSO DE PSICOLOGIA


SOBRE SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO DURANTE A PANDEMIA ... 175
Gabriela Lira Zanato
Natália Mueller Jenichen Perboni

A EXPERIÊNCIA DE PESSOAS LGBTQIAP+ EM UMA

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


PENITENCIÁRIA DA REGIÃO DO VALE DO ITAJAÍ - SC ....................... 197
Eduardo Henrique Dos Santos Freitas
Yasmin Pereira Baldi Da Silva
Gustavo Da Silva Machado
David Tiago Cardoso

TRANS(RETALHOS) URBANOS: uma costura cartográfica sobre


espaços seguros e acolhedores pela perspectiva de pessoas trans/
travestis em uma cidade do sul do Brasil ...................................................... 219
Marco Vagnotti
Gustavo da Silva Machado
Enis Mazzuco

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO CONSELHO TEMÁTICO DA REDE


DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: uma proposta de investigação-ação-
participativa ................................................................................................... 241
Ketlyn Terres
Thayse Elis Salvalagio
João Fillipe Horr
Carlos Eduardo Máximo

SOBRE O QUE NÃO FINDA....................................................................... 267


Marina Corbetta Benedet

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 269

SOBRE OS AUTORES ................................................................................ 273


APRESENTAÇÃO [OU SOBRE
ITINERÁRIOS, PONTOS DE
ENCONTRO E MODOS DE SER]: as
relações que nos trouxeram até aqui...
João Fillipe Horr
Marina Corbetta Benedet
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Bem lembra Vygotsky (2010), o que existe na realidade objetiva é pro-


duto da imaginação humana cristalizada em um objeto, relação, modo de
ser. E assim iniciamos essa poiésis: não apenas como um livro, mas como
a construção de algo que inicia-se e vai ganhando forma conforme nossos
encontros ocorrem e vamos, cotidianamente cristalizando sonhos, projetos
de futuro e dinâmicas de trabalho em palavras, citações, imagens, diálogos.
E se é na construção dialógica que nos formamos, convocamos outra voz.
Freire (2020), a partir das proposições marxianas, faz lembrar que a história é
história das pessoas, nossa ação no mundo que produz, reproduz e transforma
as realidades. Amorosamente ele também ratifica que uma das funções da
educação é a construção de sonhos possíveis: de outros mundos, de outras
formas de existir, de ultrapassar o vivido atual e projetar-se ao futuro como
possibilidade de construção no presente, a partir daquilo que carregamos como
marcas em nós de nossas histórias – pessoais e coletivas.
Talvez este seja o território de construção dessa materialidade grafada
em signos (significantes, significados, sentires, sabores e saberes). Este livro
foi o exercício de construir caminhos de encontro entre nós, numa perspectiva
de fazer valer uma outra ciência psicológica. A temática não é nova, mas a
urgência se dá pelas discussões ainda presentes e ataques aos modos de pro-
dução de conhecimento que não sejam os considerados tradicionais.
Esse livro se faz – ratificamos – como caminho de gerar registros, de
apreender em palavras, de grafar a experiência. Dos autores e autoras: somos
docentes-pesquisadores e pesquisadoras que não cabíamos nos grupos de
pesquisa de nossa instituição. Entre olhares, risos, incômodos e lágrimas a
tentativa de constituir um grupo contra hegemônico, que pudesse ampliar as
margens do fazer ciência no campo psi, dialogando nos contextos de forma-
ção acadêmica e de comitês de pesquisa para, quem sabe na construção de
um sonho possível, transformar as realidades para além da academia. Assim
nasce o grupo de pesquisa chamado “Constituição do sujeito, vulnerabilidades
10

e estratégias de enfrentamento”, com duas linhas de pesquisa, a saber: 1)


Dispositivos e tecnologias psicossociais em políticas públicas de saúde, assis-
tência social, educação e justiça e; 2) Dimensões ético-políticas, processos
de subjetivação e Direitos Humanos.
Nascemos assim... e, acreditamos, seja este o ponto que nos coloca como
seres desejantes, vibráteis e potentes. Mas cabe lembrar que o diálogo é a
abertura ao que difere, a quem não somos, a alteridade e ao devir. Entender
esta questão implica em, para além de observarmos nossos pontos de encon-
tro, entendermos nossas diferenças e os modos como elas podem carregar as
potencias dos bons encontros spinozianos – aqueles que nos aumentam nossa
capacidade de agir no mundo.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Assim sendo, torna-se mister compreendermos de qual ciência falamos
e de como entendemos – no campo epistemológico – a produção do conheci-
mento científico. Ciência para nós, não é compreendida como um saber em si,
ou como uma tentativa de descoberta da verdade. A produção do conhecimento
científico é entendida como um espaço criativo, implicado ética, estética e
politicamente, compreendendo que não há uma neutralidade de quem pesquisa,
pois a realidade não é um dado, mas sim uma produção humana. Conforme
afirmam Bicalho et al. (2012, p. 268),

não entendemos que haja uma neutralidade do pesquisador, na medida em


que há escolhas feitas por ele: com relação ao objeto de estudo, ao método
da pesquisa, ao campo de atuação, às análises formuladas, ao referencial
teórico como solo para problematizações. Mesmo quando o pesquisador
recebe uma encomenda de estudos, os modos de investimento nos quais ele
aposta, bem como as produções que aparecem ao longo dessa pesquisa, não
estão desassociadas de seus afetos, tensões e desejos. O pesquisador não é
o detentor de saber que iluminará uma parte obscura do objeto e/ou aquele
que revela o conhecimento verdadeiro. Avessos a essas concepções, enten-
demos que o pesquisador e campo se constitui em relação, em processos
de invenção de si mesmo e do mundo (Kastrup, 2007). Apostamos que o
amálgama pesquisador-campo não remete a falhas no ato de pesquisar ou
a um problema a ser resolvido com a dissociação; ao contrário, a conexão
pesquisador-campo pode ser transformada em potência

Dessa maneira, esse posicionamento nos coloca em outra perspectiva


num momento histórico em que muito se retoma o discurso de endeusa-
mento da ciência como modo de combate ao negacionismo, perdendo de
vista o exercício reflexivo de qual ciência estamos produzindo, bem como a
necessidade de compreensão de que ao se produzir conhecimento científico
servimos a algo ou a alguém e questionar-se sobre a quem serve a produção
do conhecimento da ciência psi é necessário, tendo em vista os modos como
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 11

nossa ciência já foi sustento para muitas práticas de extermínio e violação de


direitos. Zanella e Sais (2012) reiteram essa necessidade ao argumentarem
que toda pesquisa nasce de uma pergunta a qual se pretende responder, sendo
que, por esta razão,

Perguntas, por sua vez, indicam escolhas, e em pesquisa essas se rela-


cionam com o referencial teórico de base de quem questiona, com os
seus valores e concepções de mundo, escolhas essas que apontam alguns
caminhos a serem trilhados para a produção de respostas. Por sua vez, é
importante destacar que esse mesmo referencial de base permite proble-
matizar explicações já consolidadas, verdades supostas, ou então reafir-
má-las, posições essas que revelam igualmente condições ético-estéticas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e políticas (Zanella; Sais, 2008, p. 683).

Assim, ser pesquisador ou pesquisadora nos implica na construção do


mundo, de realidades, exigindo de cada um e cada uma certa sensibilidade
para “[...] colocar em análise suas implicações com o processo de pesquisa
[...] ‘cujo projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social, a par-
tir de estratégias de coletivização das experiências e análises’, que se pode
provocar estranhamentos e contradições” (Bicalho et al., 2012, p. 268). Esse
posicionamento nos leva a construção das incertezas, não somente no sentido
clássico da produção de conhecimento científico, na famosa frase: “tudo que
sei é que nada sei”, mas num lugar de desconforto que ao nos retirar “[...] do
confortável lugar de neutralidade axiológica para lançá-lo em um conjunto
múltiplo de condições da pesquisa – o qual lhe traz embates e desafios devido
à análise de suas posições libidinais e políticas” (Bicalho et al., 2012, p. 269).
Pesquisamos encarnados e encarnando a realidade sobre a qual nos debruça-
mos e produzimos a partir dos saberes do campo psi.
Essa noção também nos coloca - pesquisadores e pesquisadoras - a pers-
pectiva de que pesquisar é transformar realidades, transformando a si nesse
processo. Se não somos neutros/neutras na pesquisa isso diz que estamos
tomados pelos encontros que o campo produz, carregando nossas histórias
a este contexto, dialogando com ele e intervindo nessa realidade, ao mesmo
tempo em que vamos revisitando nosso olhar para a realidade, para o que
sabíamos, permitindo-nos a potente alquimia do devir.
Bicalho et al. (2012, p. 269) nos faz lembrar que

[...] a pesquisa produzirá efeitos em ambos, posto que esta se constitui


como mais um regime de discursos e práticas que atravessa os agencia-
mentos coletivos de enunciação e os agenciamentos maquínicos. Con-
cordamos, então, com Kastrup (2008) que o ato de pesquisar produz pelo
menos quatro níveis de efeitos: no pesquisador, no processo estudado,
12

na questão da pesquisa e no campo do conhecimento. Tais efeitos não


dependem da intencionalidade do pesquisador, nem se organizam de forma
linear (Bicalho et al., 2012, p. 269).

Zanella e Sais (2012, p. 684), partindo de outro referencial teórico meto-


dológico corroboram nessa discussão, afirmando que

toda e qualquer pesquisa implica relações entre sujeitos, entre pesquisa-


dor e as pessoas e/ou práticas sociais que são foco de seu olhar, ou entre
pesquisador e o conhecimento já produzido, no caso de pesquisas docu-
mentais, onde muitos outros, ausentes, se fazem presentes. [...]. Mesmo
no caso de documentos, considerados ‘não reativos’ (Valles, 1997), é

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


importante considerar que estes (re)existem nas relações que com eles os
pesquisadores estabelecem, relações essas em que novos sentidos neces-
sariamente se produzem sobre o que se apresenta como imagem/texto a
ser lido (Zanella; Sais, 2008, p. 684).

Deste modo a relação entre pesquisador/pesquisadora e realidade é uma


relação de mútua implicação, transformação, constituição. A travessia pela
pesquisa pede revisitar-se. A construção do ser pesquisador/pesquisadora só
se faz nessa dialogia intensa e intensiva com o campo: o caminho só existe
quando por ele passamos.
Outra questão que também partilhamos quando pensamos a produção do
conhecimento científico diz respeito a compreensão de que a realidade é da
ordem da complexidade e, ao compreendê-la desta maneira, se torna mister a
noção de que a produção de conhecimento científico é também da ordem da
complexidade, sendo que explicações causais, com isolamento de variáveis
não dão conta dessa realidade, pois o real não é isolado, pelo contrário, a
realidade se compõe na tecitura complexa das interrelações que mutuamente
se constituem e nos constituem. E nessa constituição, ainda há a perspectiva
do fio do tempo a constituir condições de possibilidade para a produção do
conhecimento psi, isto é, o conhecimento científico, sendo produção humana
também é datado, pois a realidade muda, varia constantemente, fato que não
invalida a produção de conhecimento científico – mas que pede a compreensão
de uma estabilidade relativa, ajustando-se ao ritmo mutante e dinâmico do real
(Zanella; Sais, 2008, p. 683). Fazer ciência é um fazer ciência historicamente,
dada as condições glocais que dão possibilidade para essa produção discursiva.
Deste modo o próprio entendimento do que seria o erro na pesquisa
difere, isto é

O erro é visto como positividade, como sinônimo de errância, no qual


imanentemente se dariam processos de diferenciação (Moraes, 2003). Na
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 13

errância, a inventividade constitui vetor de produção de normas temporá-


rias, instáveis e locais. Nesse sentido, erro e errância são aqui analisados
como efeitos no ato de pesquisar devido à aposta de sua potência na
produção de efeitos de devir-nomadismo-invenção (Moraes, 1998, 2003).
Dito de outra forma, nossa aposta de pesquisa-intervenção é escapar das
hegemonias, problematizar as naturalizações e, principalmente, potencia-
lizar a criação de outros possíveis. É a ciência como prática nômade que
redefine o lugar do erro na pesquisa. O erro entendido como errância está
em articulação com uma prática híbrida, que ultrapassa limites por todos
os lados, que coloca em deriva as formas, a constituição do pensamento
(Bicalho et al., 2012, p. 272).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

De maneira que a produção do conhecimento científico é vista como


produção criativa-inventiva, que convoca a olhar para nossa formação e nossa
errância com a perspectiva da criação de novos modos de olhar para a rea-
lidade e para si mesmo. Como processo criativo-inventivo – base de nossa
compreensão do que seria o fazer ciência no campo psi –, vale lembrar que

[...] criar requer relações estéticas pautadas em uma sensibilidade que


possibilite não somente ver, mas fundamente olhar, admirar, problematizar
a realidade; sensibilidade para não somente estar, mas para viver inten-
samente e sensivelmente os encontros e desencontros que caracterizam a
existência humana – as relações que caracterizam o pesquisar aí se incluem
– e o que esta produz como mediação fundamental para o seu próprio vir
a ser. Sensibilidade, enfim, que mobilize para a procura de algumas res-
postas às perguntas que são feitas e que movem o pesquisador em direção
à produção de possíveis respostas, respostas essas decorrentes da reflexão
sobre os resultados da investigação e que não raro provocam a afirmação
de muito mais dúvidas do que certezas. Mas o criar não se encerra aí, pois
o ciclo do processo de criação se completa somente com a objetivação do
produto criado, o que requer a escolha de signos mediadores que permitam
expressar o que se quer comunicar (Zanella; Sais, 2008, p. 685).

Diante dessa concepção, entendemos que o cotidiano é potente campo


para desterritorializar e construir novas margens-bordas, há vida que escapa ao
fazer ciência e a ciência pede inventividade da própria vida, em outras linhas,
outros signos, outros sabores. Não há afetos sem cognições, nem cognições
sem afetos, sendo que pesquisar implica-nos porque pede pessoas inteiras,
que sentem, sonham, transformam e transformam-se nessa atividade que gera
outras compreensões e outras dinâmicas afetivas em nossas relações. Não há
sujeitos de pesquisa: há coparticipes durante toda a caminhada, a dialogar e
construir discursos sobre o mundo e sobre cada experiência singular e coletiva.
14

Arte e pesquisa articulam-se, dialogam e produzem espaços-tempos de


[re]criar realidades, pessoas, mundos, a própria ciência e aquele/aquela que
pesquisa, bem como a realidade pesquisada, permeados e permeadas pelos
encontros potentes que mobilizam afetos e cognições. Pesquisamos de corpo
inteiro, como pessoas inteiras que dialogam com realidades complexas e que
nos mobilizam, nos transformam, nos fazem rir e chorar, desterritorializando
nossas certezas e saberes de si e do mundo, pedindo novos sabores para si e
para o mundo.
Assim, se o que nos une são os afetos da angústia e da ruptura ao que
ideologicamente vem se consolidando no Brasil no campo de produção do
conhecimento científico nas áreas psi, o que faz diferir perpassam muitos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


caminhos de construção das nossas diferentes matrizes epistemológicas, nossas
histórias pessoais e profissionais que carregam os itinerários que percorremos
no mundo como sujeitos e sujeitas, os temas de investigação e os modos como
trabalhamos e construímos saberes-sabores sobre os fenômenos psis. Sobre
isso, lá no capítulo chamado “Sobre os autores” você terá um pequeno retrato.
Porém, garantimos que ao longo de toda a obra há rastros dos itinerários que
construímos e que nos tornam um coletivo que difere entre cada um de nós
e do nós aos outros e outras.
Como quase tudo que implica na vida diferimos muito, porém o ponto
que nos une – as epistemologias críticas -, também nos aproximam em pro-
fundidade. Discursar sobre o campo epistemológico na produção do conhe-
cimento científico dos fenômenos psicológicos é arena de embate, travessia
nada simples, porém território necessário a esta construção. Certeza que aqui
não daremos conta do caminho, mas, como já mencionado, a ideia é construir
o caminho na errância inventiva do fazer vivo da ciência mobilizadora de
afetos e cognições. Convite feito!
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 15

REFERÊNCIAS
BICALHO, P. P. G. et al.. Cinquenta anos de produção do conhecimento: prá-
ticas políticas da pesquisa em Psicologia. In: Psicologia Ciência e Profissão,
v. 32, n. esp., p. 264-275, 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pcp/a/
c9gqjz6TN8w87V8KqTXFgPL/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: out. 2023.

FREIRE, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. 6. ed. São Paulo: Paz e


Terra, 2020.

VYGOTSKI, L.S. Psicologia pedagógica. 3. ed. São Paulo: WMF Martins


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fontes, 2010.

ZANELLA, A.V.; SAIS, A. P. Reflexões sobre o pesquisar em psicologia como


processo de criação ético, estético e político. In: Revista Análise Psicológica,
v. 4, n. 26, p. 679-687, 2008. Disponível em: https://repositorio.ispa.pt/bits-
tream/10400.12/6115/1/2008_26%284%29_679.pdf. Acesso em: out. 2023.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SITUAÇÕES DE VULNERABILIZAÇÃO
E VIOLÊNCIAS: aproximações éticas e
políticas na investigação científica da Psicologia
João Fillipe Horr
Marina Corbetta Benedet

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Neste ensaio, buscaremos argumentar a importância do conceito de vul-


nerabilidade como ferramenta para a investigação científica em Psicologia,
especificamente no diálogo com as políticas públicas e no enfrentamento dos
cenários de violência. A presença desse conceito nos fundamentos do grupo de
pesquisa abordado nesse livro demonstra a necessidade de articulá-lo com três
campos de saberes: a) os princípios éticos e normativos presentes no Código
de Ética da Psicologia, ou seja, os Direitos Humanos como norteadores das
necessidades e problematizações científicas; b) a retomada da experiência
vivida e elaborada por nossos sujeitos de pesquisa, que não se reduzem às
determinações que os interpelam; c) do compromisso da pesquisa em Psico-
logia em situar-se no campo sociocultural a partir de uma perspectiva ética,
e principalmente, na inserção e defesa das políticas públicas no contexto
brasileiro contemporâneo.

2. A vulnerabilidade como categoria analítica nas políticas de saúde:

De acordo com o dicionário Michaelis (2008), o termo ‘vulnerabilidade’


pode significar: 1) qualidade ou estado do que é vulnerável; 2) suscetibilidade
de ser ferido ou atingido por uma doença; fragilidade; 3) característica de
algo que é sujeito a críticas por apresentar falhas ou incoerências. Podemos
perceber, na acepção da palavra, que a vulnerabilidade carrega na sua defi-
nição características em torno de um sujeito frágil, falho, carregando em si
poucos recursos de reconhecimento e enfrentamento daquilo que o acomete.
No entanto, neste ensaio, trabalharemos junto a autores que tensionaram
essas definições, resgatando a experiência de sujeitos e coletivos, e princi-
palmente, seu agenciamento diante das adversidades encontradas nos pro-
cessos saúde-atenção-adoecimento (Ayres et al.., 2009; Dimenstein; Neto,
2020; Silva; Hüning; Guareschi, 2020). Portanto, é o resgate da potência da
18

fragilidade que se torna indissociável da habilidade de nomear, enfrentar e


produzir ação se torna um dos principais objetivos do reconhecimento das
vulnerabilidades na construção do conhecimento científico.
Como um passo inicial do nosso diálogo, discutiremos com o conceito
de vulnerabilidade, utilizado há mais de duas décadas no contexto brasileiro
das políticas de saúde (Ayres, 2021). Sua emergência conceitual e pragmática
se deu no enfrentamento das políticas direcionadas ao público que vivenciava
a epidemia do HIV/Aids frente a naturalização da categoria de risco. Como
destacam Cazeiro, Leite e Costa (2023), sabe-se dos efeitos de reificação
subjetiva produzidas nas políticas de ‘risco’ prevencionistas no contexto esta-
dunidense da década de 1980, quando passou a constituir os ‘grupos de risco’,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os conhecidos cinco ‘Hs’ suscetíveis à contaminação: a) os Hemofílicos, por
procedimentos médicos de transfusão de sangue; b) Homossexuais, pelas prá-
ticas sexuais sem proteção; c) os Haitianos, pelo seu processo migratório para
os Estados Unidos; d) os Heroinômanos, pela dependência e compartilhamento
de seringas de heroína; e por fim e) os hookers ou trabalhadores do sexo.
Em termos ontológicos, a categoria de grupo de risco produziu uma
estigmatização desses coletivos, e com isso, suas intervenções reproduziram
preconceitos e tiveram pouca efetividade enquanto política pública assistencial
e preventiva (Ayres et al., 2003). No entanto, seus efeitos psicossociais conti-
nuam nas políticas de saúde, como a priorização de bancos de dados de sangue,
monitoramento do comportamento sexual de determinados grupos (além de
pessoas homoafetivas, inclui-se travestis, transgêneros e profissionais do sexo),
sem conceber perspectivas mais ampliadas de cuidado, educação popular e
sensibilização da temática nas coletividades (Cazeiro; Leite; Costa, 2023).
Nesse sentido, a categoria de vulnerabilidade se tornou uma ferramenta
conceitual potente na Saúde Coletiva, concebendo três componentes, segundo
Ayres et al. (2009): a) individual, no reconhecimento das singularidades e
adversidades vivenciadas por determinados sujeitos, e nas formas de acolhi-
mento e orientação com fins preventivos e protetivos; b) social, na reflexão
crítica de barreiras socioculturais, como o sexismo, a desigualdade social,
o racismo, além da importância de influenciar nos cenários micro e macro-
político as decisões acerca das práticas de cuidado e nas políticas públicas
de saúde; e c) programático, ao envolver a gestão e a qualidade das práticas
de cuidado e prevenção nos níveis nacionais, regionais e locais, mediante a
eficiência dos recursos públicos.
Recentemente, Ayres (2022) aprofundou a reflexão sobre as vulnera-
bilidades, com objetivo de situá-las num contexto contemporâneo após a
pandemia do covid-19 e o tensionamento dos novos saberes da teoria social
crítica. Segundo o autor, as categorias de Cuidado e integralidade devem estar
interligadas das vulnerabilidades vivenciadas pelos usuários do Sistema Único
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 19

de Saúde. Na sua reconstrução conceitual, Ayres (2021) posiciona a vulne-


rabilidade nas suas reverberações éticas, políticas e técnicas, frente às novas
reflexões críticas sobre as interseccionalidades, os processos de colonização
na América Latina e os Direitos Humanos.
Na perspectiva da Saúde Coletiva, Ayres (2022) também aponta os desa-
fios da biomedicalização das propostas de intervenção (redução das práticas de
cuidado às tecnociências) e a individualização dos processos coletivos como
principais mecanismos a serem evidenciados pelas experiências de vulnerabi-
lização. Concordamos com o autor, na medida em que os Direitos Humanos
podem se tornar um eixo norteador para a construção de políticas públicas e
estratégias interventivas relacionadas às epidemias e outros enfrentamentos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e adversidades no campo da saúde. Nesse sentido, os Direitos Humanos se


tornam um critério normativo, tanto na construção do conhecimento científico
eticamente implicado, quanto nas suas propostas interventivas.
Uma segunda análise que consideramos importante sobre o conceito foi
construída por Dimenstein e Neto (2020), ao problematizar a vulnerabilidade
nas políticas de saúde e socioassistenciais, que frequentemente encontram os
profissionais de Psicologia em suas equipes. Segundo os autores, o conceito
traduz uma polissemia teórico-prática, justamente pela sua derivação histórica
relacionada aos sujeitos que vivenciam situações de exclusão, marginalização
e, consequentemente, dificuldades de acesso aos direitos civis e políticos.
Portanto, a utilização e problematização do conceito deve ser conside-
rada um desafio inerente às políticas públicas e as práticas de cuidado, na
medida em que estão próximas dos usuários e ampliam a compreensão das
suas relações com o processo saúde-atenção-adoecimento. Sendo assim, a
compreensão de situações de vulnerabilização se torna parte de uma trama
conceitual e operacional, que convoca dissensos e consensos de diferentes
matrizes teórico-metodológicas no saber-fazer da Psicologia (Silva; Hüning;
Guareschi, 2020).
Uma das questões centrais debatidas por Dimenstein e Neto (2020) é a
premissa nas políticas de saúde e socioassistenciais da produção de um amál-
gama entre o risco e a vulnerabilidade. Diferente do enquadre epidemiológico,
em que o risco remete a uma ontologia da repetição e uma epistemologia
probabilística de eventos, a vulnerabilidade representa uma expressão desi-
gual das singularidades e coletividades num sistema capitalítisco, neoliberal e
patriarcal. Nesse sentido, nos tornamos vulneráveis às adversidades na medida
em que estamos interpelados por estruturas historicamente construídas nas
desigualdades de classe, gênero, raça e etnia.
Podemos encontrar uma crítica semelhante, principalmente relacionada
aos métodos de pesquisa generalizadores da experiência da vulnerabilidade,
20

na investigação das narrativas construídas num contexto comunitário por


Silva, Hüning e Guareschi (2020, p. 8):

Naquele instante, e ao longo de nosso percurso de pesquisa, encontrávamos


a materialidade das pesquisas e dados estatísticos nacionais na forma com
que a cidade se organizava e colocava em questão as relações entre vida e
governo em determinados territórios urbanos – ao mesmo tempo em que
éramos assaltados pelo constante histórico de negligência pública que se
asseverava sobre as formas de existência daquelas pessoas. Como ressal-
tamos, o processo de pauperização da lagoa e as dificuldades de acesso
a direitos que poderiam melhorar suas condições de vida enfatizavam a
produção de marginalidade e vulnerabilidade alardada pela segurança

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pública, pelos discursos e narrativas midiáticas, bem como por pesquisas
de caráter quantitativo e qualitativo. Ao invés de garantirem condições de
enfrentamento a essa condição, incentivavam a expulsão de moradores
daqueles espaços urbanos e a ação truculenta da polícia.

Podemos destacar, com essas contribuições, como as situações de vulne-


rabilização podem nortear um paradigma técnico e científico para as políticas
de saúde, e consequentemente, sobre a produção de conhecimento em Psico-
logia. A premissa das vulnerabilidades pode permitir um arcabouço implicado
com o conhecimento histórico, político e ético, indissociáveis dos desafios
inerentes do contexto latino-americano.

3. As violências e os processos de vulnerabilização

A violência estrutural, marcada pelas intersecções de classe, gênero,


raça eetnia tem sido demonstrada em inúmeros relatórios internacionais e
nacionais. Vejamos, por exemplo, a ocorrência dos feminicídios no contexto
brasileiro, situando-o como o quinto país que produz mais violências letais
contra mulheres (United Nations of Drugs and Crimes, 2018; Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, 2022). O último mapeamento nacional demonstrou
que a cada 100.000 mulheres, pelo menos 3,5 são assassinadas em nosso
país (FBSP, 2021).
Da mesma forma, as vulnerabilidades aos homicídios da população jovem
e negra são alarmantes, sendo que em 2019, a cada 100.000 jovens entre 15 a
19 anos, 39 foram vítimas de violência letal (FBSP, 2021). No entanto, não é
incomum encontrarmos noticiários que evidenciam esses cenários violentos
de forma espetacularizada, em que a informação midiática naturaliza esses
fenômenos da realidade brasileira que vivenciamos.
Assim, como apresentado no Atlas da Violência, a maioria dos jovens
vítimas de violência letal são homens, jovens e pretos, e que convoca, por
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 21

exemplo, a produção científica crítica sobre a relação entre as masculinida-


des, o racismo e sua relação com os cenários de violência urbana na América
Latina. Da mesma forma, se faz necessário refletir sobre a violência de gênero
em relação aos feminicídios, já que cerca de 35 a 40% ocorrem no contexto
doméstico, por um parceiro ou ex-parceiro, indicando que mulheres tem pelo
menos cinco vezes mais chances de serem assassinadas por um autor da qual
possuíam um vínculo conjugal (FBSP, 2022).
Utilizamos do homicídio como forma de evidenciar a problemática da
violência e seus inúmeros efeitos devido à sua condição de violação extrema
dos Direitos Humanos. A vida, assim como a dignidade, são direitos funda-
mentais, e a vulnerabilidade do humano frente a isso se torna uma questão
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ética e política na construção dos saberes. Nesse sentido, o saber produzido


pelo campo científico possui implicação nas nossas formas de inteligir a vio-
lência, como pontua Butler (2021, p. 86) na analítica da guerra:

[...] Nossa capacidade de reagir com indignação depende de um tácito


reconhecimento de que existem vidas dignas que foram feridas ou perdidas
no contexto da guerra, e de que nenhum cálculo utilitário pode fornecer a
medida para se avaliar o desamparo e a perda dessas vidas.

As violências enquanto fenômeno coletivo e de enfrentamento das políti-


cas públicas de saúde tem sido pauta da Organização Mundial da Saúde desde
o início dos anos 2000. Como pontuam Bowman et al.. (2015), as investi-
gações científicas e interventivas sobre as violências foram, inicialmente,
permeadas por uma compreensão epidemiológica, como forma de estabelecer
os impactos no processo saúde-adoecimento nas diferentes Nações e garantir
visibilidade do fenômeno frente ao financiamento científico e político para
o seu enfrentamento.
No entanto, justamente pelas singularidades contextuais da África do
Sul, os autores convocam a necessidade de uma segunda onda de investi-
gação acadêmica acerca das violências. Os estudos epidemiológicos, ainda
que importantes para as tomadas de decisão no investimento de políticas de
enfrentamento das violências, podem encontrar limitações teóricas impor-
tantes, principalmente ao não refletirem sobre a historicidade e as estruturas
socioculturais que se entrecruzam nas relações violentas hodiernas.
Outra limitação importante sobre a investigação científica das violências
é a sua excessiva taxonomia e tipologia. Um exemplo possível disso são as
demarcações conceituais realizadas sobre as violências letais nas relações
conjugais: homicídio por parceiros íntimos, homicídio conjugal, feminicídio
conjugal. As nomeações de diferentes tipos e cenários, ainda que possam
fortalecer a compreensão das especificidades dessas experiências, acaba por
22

traduzir objetos ontológicos e epistemológicos diferentes, que podem tanto


assumir um diálogo analítico potente ou se tornarem terrenos teóricos radi-
calmente distintos nas formas de inteligibilidade (Horr; Adames; Martins-
-Borges, 2019).
Assim como Ayres (2021), Bowman et al. (2015) sinalizam como as
interseccionalidades de gênero, etnia, classe e outros elementos culturais
simbólicos são fundamentais para a compreensão das violências e seus efeitos
nos processos de adoecimento coletivo. Portanto, se faz necessária a comple-
mentaridade e o diálogo dos estudos epidemiológicos e as análises qualitativas,
especialmente àquelas que não se adequam às regularidades amostrais das
políticas públicas. Além disso, demonstra a necessidade da interface com a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Psicologia Social Crítica, que produza significados sobre as interações nas
vivências consideradas violentas e que tensione as dicotomias maniqueís-
tas no campo.
Esses desafios teóricos convocam a necessidade de construir saberes que
possam interrogar ou explicar as relações entre as violências e seus efeitos
psicossociais. Da mesma forma, autores do campo da antropologia das vio-
lências, como Rifiotis (2015) tem tensionado os saberes e políticas em torno
do objeto ‘violência’, a reificação subjetiva das díades vítima-agressor e da
judicialização de conflitos sociais.
Nossos argumentos, em concordância com esses pesquisadores, também
colocam a necessidade da potência heurística dos diálogos epistemológi-
cos, concebendo seus pontos de convergência e divergência, entre saberes
nomotéticos e idiográficos. No entanto, mais que uma problemática epis-
temológica, ou um fenômeno do campo da Saúde Coletiva, a violência é
historicamente estruturada, que exige um posicionamento ético diante da
vulnerabilização do outro.
Neste sentido, devemos considerar que falar de violência é falar sobre
quais vidas são consideradas importantes, e quais não são consideradas neces-
sárias. Butler (2021, p. 66) ao trazer a discussão da violência e da força da
não violência afirma que:

[...] quando e onde a preservação da vida é evocada: invariavelmente


fazemos suposições sobre o que conta como vida. Essas suposições não
incluem apenas quando e onde começa a vida ou como deve terminar,
mas também, talvez em outro registro, a quem pertence a vida que conta
como vida.

Sendo, neste caso necessário os questionamentos a respeito das produ-


ções das vulnerabilidades e os modos como são atravessadas pela violência
estrutural. Seguiremos nossas reflexões a partir das algumas premissas éticas
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 23

possíveis, mas indispensáveis, sobre a articulação entre as violências e os


sujeitos em situações de vulnerabilidade.

3. Vulnerabilidade e alteridade: algumas aproximações éticas

Gostaríamos de apresentar uma situação, decorrente das nossas expe-


riências de atuação e supervisão no campo das políticas de saúde. Durante o
processo de trabalho em saúde mental na atenção primária, fomos solicitados
pelo serviço de média complexidade da Assistência Social em acompanhar
uma senhora de 80 anos, que era responsável pela sua neta de 8 anos de idade,
e vive numa situação de extrema vulnerabilidade social.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Dada essas condições de precariedade, a equipe socioassistencial decide


encaminhar a neta para um abrigo, considerando as dificuldades materiais do
exercício do poder familiar da avó. No entanto, havia um mal-estar inerente
da situação, já que as relações familiares entre neta e avó eram permeadas
por cuidado e afeto, e portanto, protetivas. Um paradoxo se instaurou nas
nossas reflexões.
Logo percebemos que nosso lugar nesse cenário se tornou uma enco-
menda de cuidado diante do sofrimento psíquico, produção da intervenção do
Estado. Nos perguntamos, a partir disso, qual o nosso lugar diante da demanda
social, diante do Estado que julga a precarização material? A presença e
reconhecimento desse mal-estar que, de alguma forma, permitiu explorar a
relação ética entre vulnerabilidade, alteridade e resistência.
Argumentaremos, para além dos desdobramentos epistemológicos e polí-
ticos das situações de vulnerabilização, a importância das dimensões éticas
presentes nestes cenários. Para isso, buscamos nos orientar por reflexões e
pesquisadores que têm construído tensionamentos sobre a relação ética (prin-
cipalmente da Psicologia) diante dos sujeitos, especialmente àqueles aos quais
se destinam nossas intervenções nas políticas públicas.
A primeira acepção que discutiremos se dá pelas contribuições de Sawaia
(2020), na perspectiva ético-política em relação às violências, a partir da
ontologia spinozista. Segundo a autora, a reflexão ético-política deve resga-
tar os processos históricos e a dialética como ferramentas analíticas sobre a
violência, e portanto, das condições de vulnerabilização.
Sawaia destacará, na sua análise sobre o afeto e a violência, sobre os
posicionamentos, aqui considerados éticos, na produção do conhecimento
em Psicologia em relação as dinâmicas violentas. O primeiro se organiza na
reflexividade, em pensar e criticar o lugar da Lei (ou o Estado), no confronto
com os cenários das violências frente aos sujeitos vulnerabilizados. Segundo
a autora, uma análise acrítica desses cenários pode fixá-los em determinados
24

enquadres (por exemplo: agressor-vítima, capaz-incapaz), sem reconhecer a


dinamicidade do poder.
Além disso, propõe que a reflexividade ética não se deve seduzir e aplicar
naturalizações psicologizantes, sejam estes os autores ou sobreviventes do
jogo de forças da violência. Portanto, as experiências concretas das pessoas
interpeladas pelas violências podem se tornar indicadores éticos no saber-fazer
da Psicologia. Sawaia (2020) sinaliza, na sua análise dialética, como a força
destrutiva da violência, enquanto tese, pode produzir a antítese dos saberes,
forças e resistências criativas necessárias para o seu enfrentamento.
Cabe ressaltar a analítica do afeto e do corpo na ontologia spinozista,
de acordo com a autora:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a esse contexto, Spinoza nomina de servidão, um corpo político definido
pelo negativo: impotência humana, perda da potência de agir e de pensar
do corpo e da mente. Temos aqui a essência da violência para Spinoza:
uma composição de desmesurado poder, desrespeito aos direitos naturais
e desigualdade social, e como já dito, a afetividade desempenha papel de
relevo nesse processo” (Sawaia, 2020, p. 36) (grifo nosso).

Numa ontologia spinozista, a violência se dá de forma universal e histó-


rica. De um lado, pode ser reconhecida como uma experiência subjetivada e
íntima, mas é simultaneamente coletiva e política, e produtos de um processo
histórico. A violência aparecerá nos cenários de destruição do outro como
via possível de proteção de si. Aqui, os próprios Direitos naturais, como o de
viver, parecem ser avassalados como forma de proteção do seu próprio Direito.
Nesse sentido, cabe lembrar as proposições spinozianas de que todo corpo
é potência e que “toda potência é inseparável de um poder de ser afetado, e
esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido
pelas afecções [...]” (2002, p. 103), de maneira que a vida se faz nessa dinâ-
mica de potências em afetar e ser afetado. Ao considerarmos dessa maneira,
lembramos que na medida em que a potência é ação – sobre o mundo, sobre
o outro e sobre nós mesmos – ela também é a de abertura as afecções, isto é,
a potência de ser afetado na construção da nossa vulnerabilidade, da nossa
abertura ao encontro com o outro e com o mundo que nos constituem.
Assim, é justamente nossa potência de afetar e ser afetado que nos mobi-
liza e nos coloca em relação, condição possível de estabelecer encontros que
aumentam nossa ação no mundo, bem como encontros que diminuem de
nossa ação no mundo. Deleuze (2002, p. 112) recorda que a noção de socie-
dade, a partir de Spinoza, consiste justamente na compreensão desta como
“Estado (civil) no qual um conjunto de homens [leia-se pessoas] compõe sua
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 25

respectiva potência de maneira a formar um todo de potência superior. Este


estado conjura a fragilidade e a impotência do estado de natureza em que
cada um corre sempre o risco de encontrar uma força superior à sua capaz
de destruí-lo”, de maneira que as formas de organização em sociedade tra-
duzem possibilidades da nossa potência de ação no mundo, frente às nossas
impotências como sujeitos individuais.
Recorremos aqui a compreensão de que na medida em que uma socie-
dade se organiza, há uma partilha sensível do comum, entendida como uma
dimensão estética da vida, esse “[...] sistema das formas a priori determinando
o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do
invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

está em jogo na política como forma de experiência” (Rancière, 2005, p. 16).


Dessa maneira, viver implica nesse exercício estético político no encontro
com os outro, de partilha da vida na arena de produção de sentires e sentidos
para si, para o outro e para o mundo. Contudo, cabe também recordar que:

se a morte é inevitável, não é absolutamente porque ela seria interior


ao modo existente; é, ao contrário, porque o modo existente está neces-
sariamente aberto para o exterior, porque experimenta necessariamente
paixões, porque encontra necessariamente outros modos existentes capazes
de levar uma das suas relações vitais, porque as partes extensivas que lhe
pertencem sob a sua relação complexa não deixam de ser determinadas e
afetadas do exterior (Deleuze, 2002, p. 106)

Assim o encontro com o outro, como necessidade desse corpo que é


potência de afetar e ser afetado, é também nosso lugar de fragilidade, de
abertura a própria condição de sofrimento e adoecimento. E os modos como
nos organizamos em sociedade nos narra, consequentemente, sobre o que é
possível de ser nominado, visibilizado e sentido, ao mesmo tempo que silen-
ciamos, aprisionamo-nos e invisibilizamos, produzindo assim os caminhos
das desigualdades
Essas reflexões permitem estabelecer a relação entre o afeto, o corpo e
o campo histórico e social. Gostaríamos também de pensar os efeitos que as
violências possuem nos próprios profissionais de Psicologia, ao estarem diante
da vulnerabilidade. Isabel Kahn Marin, por meio da sua experiência com
mães no contexto prisional e crianças na condição de abrigamento, permite
articular questões pertinentes sobre esse campo relacional e ético, alertando
sobre a postura preventivista e tutelada do Estado.
A autora nomeia o fascínio exercido pelas crianças na condição de orfan-
dade, na medida que a condição de abrigamento parece expressar um fracasso
26

civilizatório, diante da perda de direitos fundamentais: o de se humanizar


numa determinada ordem familiar e comunitária que é prevista para todos.
Nesse sentido, Marin (2023) coloca o abrigo como metáfora de uma angústia
primordial e também societal, que atravessa as relações profissionais nesses
cenários: “o horror ao abandono, a sensação catastrófica de perder a continui-
dade de ser – ferida narcísica que jamais cicatriza e que encontra no abrigo a
tentação de ser acalmada quando o abandonado é o outro.” (p. 5)
Neste caminho teórico, é possível compreender uma contribuição ética,
permeada pela condição de desamparo fundamental, e particularmente
constitutiva das situações de vulnerabilização. Kahn (2023, p. 6) sinaliza
os desdobramentos afetivos nos profissionais e do instituído, ao lidar com

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


esse desamparo:

Evidencia-se assim quais seriam os riscos e as tentações de se fazer o


bem, quando o beneficiado se caracteriza como um outro bem distante
“desfavorecido”, onde todo desamparo humano pudesse estar projetado.
O confronto com um social desumanizante pode se tornar insuportável,
levando ou a situações de agressividade ou, ao contrário, a uma empatia
exagerada para se opor ao irrepresentável, ao impensável e à impotência.

É por isso que a condição de vulnerabilidade também pode ser reconhe-


cida como uma alteridade radical, capaz de sustentar abertura ao desconhecido
e um alerta às tentações narcísicas dos nossos saberes tecnicistas no campo
da Psicologia. Aqui, a suportabilidade da ambivalência e do paradoxo podem
viabilizar o reconhecimento do humano e de suas variadas formas de expressão
desse sofrimento. Sofrimento este que pode ser expressado em projeções de
responsabilidade no outro de ocupar o lugar de poder familiar, ou na supressão
ou alívio imediato diante o desamparo.
Kahn (2023) também aponta a importância de alternar entre presença
e ausência na sustentação do vínculo junto aos sujeitos em condição de vul-
nerabilidade, aqui metaforizadas pela sua experiência de trabalho com as
crianças abrigadas. Para que o bebê adquira sua potência de investir no mundo,
acreditando nas relações humanas, são necessárias formas de simbolização
do desamparo.
Acreditamos que a reflexividade ética e a implicação do saber psicológico
nessas fronteiras frente à vulnerabilização permitem uma atitude distinta das
dicotomias presentes em nossa ciência: o universal/particular, positivismo/
subjetivismo. Se a realidade é da ordem da complexidade, certeza que, mesmo
procurando caminhos de leitura desta de maneira a superar dicotomias, ainda
muito há que se fazer nessa produção.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 27

5. Considerações finais

Como base conceitual e paradigma técnico e científico para a investiga-


ção em Psicologia, é fundamental investigar as situações de vulnerabilização
implicadas com o conhecimento histórico, político e ético, indissociáveis num
contexto colonizado como é o caso da América Latina. Nesse sentido, cabe
a lembrança poética de Galeano (2005) em seu texto sobre a “Celebração da
voz humana/2”

quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana


não encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos temos
algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser
celebrada ou perdoada pelos demais (Galeano, 2005, p. 23)

Compreender os modos como se procuram silenciar essas vozes – nas


interseccionalidades territorializadas na condição de colonialidade da América
Latina – implica numa sensibilidade ética, estética e política diante do sujeito
que nos chega em seus processos de saúde e adoecimento. Perceber como os
discursos psi podem sustentar esse silenciamento é necessário quando pensa-
mos uma ciência ética e consciente de sua produção de realidade, ainda mais
em uma realidade como a que nos encontramos marcada por tantas desigual-
dades e produção de iniquidades, características que consolidam as violências,
normalizando-as e normatizando-as inclusive como prática no campo psi. Se,
como proposto no Código de Ética Profissional da psicologia, dentro nossos
princípios fundamentais encontramos a luta contra toda e qualquer forma de
discriminação, violência, negligência e nos pautamos nas bases dos Direitos
Humanos, uma das premissas que precisamos consolidar é o exercício ético
de nos colocarmos o mesmo olhar analítico e reflexivo de compreensão sobre
a quem serve nosso fazer e como ele pode sustentar discursos e realidades de
opressão e violências.
28

6 REFERÊNCIAS
AYRES, J. R. Vulnerabilidade, Cuidado e integralidade: reconstruções con-
ceituais e desafios atuais para as políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids.
In: Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 46, p. 196-206, 2020.

AYRES, J. R. C. M.; FRANÇA, I.; CALAZANS, G. J.; SALETTI H.C. O


conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desa-
fios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (orgs.) Promoção da Saúde:
conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP. Atlas da Violência 2021. São
Paulo: FBSP. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/
artigos/5141atlasdaviolencia2021completo.pdf. 2021. Acesso em: out. 2023.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP. Violência contra mulheres


em 2021. São Paulo: FBSP. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/
wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf. 2022.
Acesso em: out. 2023.

BOWMAN, B.; STEVENS, G.; EAGLE, G.; LANGA, M.; KRAMER, S.;
NDUNA, M. The second wave of violence scholarship: South African syner-
gies with a global research agenda. Soc Sci Med., v. 146, p. 243-248, 2015.

BUTLER, J. A força da não violência. São Paulo: Boitempo, 2021.

CAZEIRO, F.; LEITE, J.F.; COSTA, A.J.. Por uma decolonização do HIV
e interseccionalização das respostas à AIDS. In: Physis: Revista de Saúde
Coletiva, v. 33, p.1-21, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/
QBDdjZzyPLw3kpPYqqsY93k/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: out. 2023.

DELEUZE, G. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

GALEANO, E. O livro dos abraços. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015.

HORR, J. F.; ADAMES, B.; MARTINS-BORGES, L. Homicídio conjugal


masculino e feminicídio íntimo: diálogos epistemológicos sobre as violências
letais na intimidade. In: BAGGENSTOSS, G. A.; SANTOS, P. R.; SANTOS,
S. S.; HUGLL, M. S. G. (orgs.). Não há lugar seguro: estudos e práticas
sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 29

reprodutivos. Santa Catarina: Editora Centro de Estudos Jurídicos, 2019,


p. 282-302.

Michaelis dicionário escolar língua portuguesa: nova ortografia conforme


acordo ortográfico da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2008.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed.


34, 2005.

RIFIOTIS, T. Violência, Justiça e Direitos Humanos: reflexões sobre a judicia-


lização das relações sociais no campo da “violência de gênero. In: Cadernos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Pagu, 2015, p. 261-295.

SAWAIA, B. Prólogo: A dimensão ético-ontológica da violência. In: SAWAIA,


B. et al.. (orgs.). Afeto & violencia: lugares de servidão e resistência. Embu
das Artes: Alexa Cultural, 2020. Disponível em: https://www5.pucsp.br/nexin/
livros/afeto-e-violencia-ebook.pdf. Acesso em: out. 2023.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
DIMENSÕES ÉTICO-POLÍTICAS,
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
E DIREITOS HUMANOS
Bruna Heleno Zarske de Mello
Marina Corbetta Benedet
Yuri Eller Verzola

1. Introdução
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Existe um diálogo famoso no campo da literatura, contada lá na estó-


ria da Alice no país das Maravilhas, diálogo esse realizado entre Alice,
recém-chegada nas terras do país das Maravilhas, e o Gato de Cheshire, com
seu sorriso de meia lua, a pairar plenamente no ar. A conversa inicia-se com
Alice reconhecendo-se perdida e pedindo ao gato a indicação do caminho
por onde deveria seguir. O gato interroga-a para onde ela desejava ir e Alice,
inconformada com a falta de entendimento do gato, relembra-o que está per-
dida e que assim não sabe onde quer ir. O gato de Cheshire então afirma “se
você não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve”.
E assim iniciamos nós aqui também nossa conversa com você, que talvez
como Alice, tenha chego aqui por curiosidade. A referência a este diálogo é
para te lembrar que quando não sabemos para onde queremos ir, qualquer
caminho serve. E esse “perder-se” pode ser interessante, desafiador, desenvol-
vedor. Como o gato de Cheshire, no campo da pesquisa, é essencial sabermos
construir perguntas, perguntas que possam ser mobilizadoras de reflexões e de
um exercício crítico da própria realidade, do saber e de nós mesmos ao longo
do caminho de construção do conhecimento científico. E pesquisa é construir
caminhos. Porém essa construção nos pede determinado posicionamento éti-
co-político, estético, epistêmico e metodológico.
Este é o motivo pelo qual esse capítulo se apresenta e aqui encontra-
-se localizado: há aqui um caminho. Dimensões ético-política, processos
de subjetivação e Direitos Humanos é uma linha de pesquisa do grupo de
Pesquisa Constituição do Sujeito, vulnerabilidades e estratégias de enfren-
tamento, grupo este que é vinculado ao curso de graduação em Psicologia
da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Apresentar-se como caminho
implica na compreensão de que estamos em um determinado território, com
fronteiras-bordas (e diálogos) com outros tantos caminhos, mas também como
possibilidade de construção.
32

Deste modo, tenha esse capítulo como um mapa-convite a desenhar


um campo de produção de conhecimento que convoca determinados sabe-
res, delimitando nossas fronteiras e indicando nossa geografia. Mas também
lembramos que mapa não é território e que ao adentrar nesse itinerário cada
qual deixa suas marcas, sendo a experiência do vivido algo que compõe esse
caminho, mas o ultrapassa. Este capítulo então está organizado procurando
apresentar nossa compreensão enquanto pesquisadores e pesquisadoras que
constroem essa linha de pesquisa a fim de delimitarmos os conceitos-chaves
que nos vinculam e aproximam diante da diversidade teórica que nos constitui.
Assim, te convidamos a dar os primeiros passos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


2. Dimensões ético-políticas

“Perder-se” em novos espaços, sem rumos declarados, assim como fez


Alice pode ser verdadeiramente enriquecedor, afinal, o lugar em que nos
encontramos, pode vir a ser, assim como na estória da referida personagem,
fantástico. Mesmo curiosos/as e prontos/as para sermos desafiados/as a des-
bravar o inexplorado, compreendemos as possibilidades e as potencialidades
de saber nosso ponto de partida, o caminho que iremos tomar e onde quere-
mos chegar.
Pensar em dimensão ético-política é pensar em base, em consciência
teórica e em intencionalidade em oposição à neutralidade, ou melhor, a uma
“falsa” ideia de neutralidade. O exercício da escrita, da pesquisa, da docên-
cia e dos demais exercícios profissionais no âmbito da psicologia dos e das
participantes desse grupo de pesquisa se configuram em uma dimensão éti-
co-política comum estabelecida a priori, mesmo que dentro de perspectivas
epistemológicas diversas. Pensar nessa dimensão é pensar em nosso projeto,
o projeto do conhecimento e da prática psicológica que inserimos nos nos-
sos diferentes espaços de atuação. É pensar em quem nós queremos ser, em
qual é a função social da psicologia e como queremos nos relacionar com a
sociedade que acolhe a nossa ciência e a nossa prática.
Uma breve revisão histórica, nos mostra que em diferentes momentos da
sua vida, a psicologia no Brasil teve diferentes finalidades, todas bastantes dis-
tintas daquelas em que nos reconhecemos hoje. A Psicologia chegou ao Brasil
junto com a educação, mais especificamente, junto com os jesuítas. Em 1549
a Companhia de Jesus ancorou em terras brasileiras, espaço onde permaneceu
até 1759, com uma tríplice missão de: catequizar os índios; formar os filhos
dos colonizadores, mantendo a hegemonia política e cultural de portugal e
a hegemonia religiosa da igreja católica; e frear o avanço do protestantismo
que se espalhava pela Europa. Os estudos no campo da psicologia, nesses
primeiros séculos anos no nosso país, tinham como objetivo contribuir para
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 33

essa tríplice missão, sendo um aporte principalmente para a análise e controle


dos comportamentos das populações indígenas, consideradas populações
selvagens a serem domadas, em prol da coroa portuguesa e da igreja católica.
Mais tarde, com a chegada da família real e da corte portuguesa em 1808
e com a transição entre Brasil Colônia e Brasil Império, nosso país modificou-
-se profundamente. Passamos por um certo desenvolvimento cultural, nossa
primeira constituição foi escrita, tivemos pela primeira vez uma preocupação
com o Ensino Superior e a necessidade de conhecimentos mais complexos
e especializados e experienciamos uma aglomeração de pessoas em espaços
não projetados e com poucas condições básicas de sobrevivência em cidades
como o Rio de Janeiro. O resultado dessa “urbanização” foi a proliferação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de doenças infecciosas que incitou uma série de campanhas higienistas. A


psicologia, nesse momento, teve o papel de construir conhecimentos sobre
as doenças da moral, que acometiam prostitutas, pessoas em situação de rua,
pessoas pobres e pessoas com problemas de saúde mental. Inicia-se aqui a
construção dos grandes hospícios em nosso país. Nossa ciência caminhou em
direção a resolução de problemas na perspectiva de uma elite, sendo que as
respostas para esses problemas eram permeadas por um “racismo científico”
e por outras formas de preconceito (Bock, 1999).
Na Primeira República, ao mesmo tempo em que a psicologia passou a se
distinguir enquanto ciência, o Brasil passou por um processo de industrializa-
ção, distanciando-se de práticas agrárias e procurando se desenvolver e entrar
efetivamente na era moderna. A psicologia então, ocupou-se em desenvolver
práticas com propósito de auxiliar o país nessa nova empreitada. As práticas
psicométricas e de aferição de habilidade e competências se ampliaram, e
a relação entre a psicologia e a educação se estreitou, enquanto ambas se
dedicaram a identificar o “capital humano” necessário para o crescimento
econômico e tecnológico da nação (Bock, 1999).
Em 1962, nossa profissão passou a ser reconhecida e regulamentada por
lei. Nos anos que se seguiram foi possível observar a criação de sindicatos e
a ocupação dos conselhos de psicologia por grupos reconhecidamente mais
progressistas e atentos à necessidade da população brasileira. Foram criados
novos cursos de graduação em psicologia e nossa ciência passou a estar cada
vez mais presente no ensino superior, não somente em uma perspectiva de
formação, mas também naquilo que diz respeito à produção de conhecimento
científico. Os e as psicólogos/as ingressam e intensificam o movimento pela
saúde pública, e por outros direitos que foram negados a parcela historica-
mente marginalizada da população brasileira, e se inseriram fortemente na
luta antimanicomial (Bock, 1999).
Foi a partir desse momento na vida da psicologia no Brasil, que profis-
sionais da área passaram a se questionar de forma mais intensa sobre a função,
34

ou melhor, sobre o compromisso social da psicologia, enquanto ciência e


profissão, em uma sociedade profundamente desigual, permeada pelos mais
diversos tipos de preconceitos e demais violências. Nosso campo de conheci-
mento, aos poucos, se deu conta que não existia no “vácuo” e que muitas de
suas práticas adotadas ao longo dos anos, estavam associadas a manutenção
de um determinado status quo.
Se faz necessário mencionar que esse novo momento da profissão do/a
psicólogo/a também abriu novos campos de atuação, seja na saúde pública,
nas empresas, nos hospitais, nas organizações não governamentais, nas varas
familiares, no âmbito do esporte e do trânsito etc. Esses novos espaços exi-
giram mudanças nas nossas formas de fazer psicologia, que se abriram para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


aspectos de coletividade, multidisciplinaridade e prevenção e promoção de
saúde. Aos poucos, foi possível a aproximação da psicologia com a população
brasileira, ou melhor, com o povo brasileiro. Aproximação que se deu de forma
tímida, mas que sem dúvida, é reconhecida como um aspecto fundamental
pelos/as pesquisadores/as desse grupo.
Nos voltemos, então, ao termo “dimensão ético-política”, aspecto
somente possível ser pensado no âmbito da psicologia após as importantes
mudanças acima mencionadas. Aquilo que compreendemos enquanto ética
está ligado aos valores e princípios que nossa profissão defende. Esses prin-
cípios, assim como as responsabilidades dos/as profissionais da nossa área,
estão dispostos no Código de ética do psicólogo de 2005, que aponta para a
necessidade de uma prática pautada na realidade do país, que analisa critica-
mente a história, o cenário político, econômico e social do Brasil; que está
em concordância com os direitos humanos (que serão mais cautelosamente
discutidos a seguir); que preocupa-se com o bem estar coletivo e que se
opõe firmemente a qualquer situação de discrimnação, negligência, violência,
preconceito, opressão, exploração e crueldade; e que promove a liberdade, a
igualdade e a dignidade (CFP, 2005). Essas noções deveriam afastar a nossa
categoria das práticas preconceituosas, excludentes, medicalizantes, pato-
logizantes e individualistas tradicionalmente enlaçadas em nossa profissão,
conforme observado no breve resgate histórico realizado.
A questão política nos lembra que a nossa profissão demanda por um
posicionamento, que não é neutro, frente a difícil realidade brasileira. Esse
posicionamento fica igualmente claro em nosso código de ética, conforme os
princípios mencionados acima. O mito da neutralidade paira sobre a ciência
desde as postulações positivistas de Auguste Comte que influenciou diversas
gerações de cientistas das áreas sociais e das humanidades no mundo inteiro.
A obra de Comte inicia com a publicação dos quatro volumes do Curso
de Filosofia Positiva (1830-1842), onde são dispostos os três principais ele-
mentos do Positivismo, ou a base epistemológica do Positivismo: a lei geral do
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 35

desenvolvimento do espírito humano ou a lei dos três estados, a classificação


da ciência e a neutralidade da ciência.
Segundo Michel Löwy, para Auguste Comte, assim como as ciências da
natureza são ciências objetivas, uma vez que o universo é regido por leis fun-
damentais, imutáveis e independentes da vontade e/ou ação humana, também
assim devem ser as ciências sociais, econômicas e políticas. Seguindo a lógica
da filosofia positivista, os mesmos métodos e procedimentos utilizados para
conhecer a natureza devem ser aplicados nos estudos sociais (Löwy, 2010).

Significa que a concepção positivista é aquela que afirma a necessidade e


a possibilidade de uma ciência social completamente desligada de qual-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

quer vínculo com as classes sociais, com as posições políticas, os valores


morais, as ideologias, as utopias, as visões de mundo. Todo esse conjunto
de elementos ideológicos, em seu sentido amplo, deve ser eliminado da
ciência social (Löwy, 2010, p. 39).

Fica claro que a filosofia positiva não tem um interesse no descobri-


mento das causas ou de mudança da realidade, uma vez que “os fenômenos
sociais são submetidos a leis naturais invariáveis” (Löwy, 2010), a melhor
das saídas é a simples aceitação dos fatos, ou a “sábia resignação” (Comte,
1983). O verdadeiro fato é que se operamos em uma lógica de valores, não
somos neutros. Se compreendemos que as desigualdades econômicas, de
gênero, de orientação sexual, de etnia ou raça, entre outras, são construídas
e mantidas histórica e socialmente, admitimos que nesse mesmo campo elas
podem ser desconstruídas.
Dessa forma, falar na dimensão ético-política na psicologia é verdadei-
ramente falar sobre o nosso compromisso com a garantia de direitos humanos
e enfrentamentos de sofrimentos e de injustiças sociais nos mais diversos
campos em que nos configuramos, desenvolvendo práticas que estejam em
alinhamento com esses compromissos e que respondam às demandas da socie-
dade brasileira. Significa compreender que o ambiente e práticas sociais são
também desencadeadores de sofrimento psíquico. Significa, ainda, sensi-
bilizar-se e posicionar-se, não se apoiando em uma lógica de neutralidade,
costumeiramente utilizada para minimizar o sofrimento de uma parcela da
população, invisibilizar as possibilidades de mudanças e eximir as ciências
sociais e humanas de suas responsabilidades com o bem-estar coletivo.

3. Processos de subjetivação

Apresentar a compreensão sobre os processos de subjetivação também


não é tarefa simples. Ao realizar essa empreitada é necessário compreender
36

que em nossas linhas de pesquisas construímos diálogos com pontos de con-


vergências em alguns aspectos, mas, conforme já afirmado anteriormente,
também com uma diversidade epistemológica. E no campo psi, apesar de
compartilharmos de algumas perspectivas, reconhecer as diferenças e com-
preendê-las é primordial tendo em vista que nos posicionam com leituras da
realidade de maneiras distintas.
Assim, tendo apresentado essa questão, salientamos que um dos pontos
de convergência de nossas concepções diz respeito à compreensão de que o ser
humano está em abertura, em processo, ou seja, não está pronto nem existe por
si, mas sim em processo de constituir-se. É nesse sentido que falamos sobre
os processos de subjetivação. Entendido de diferentes modos em cada uma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


das perspectivas teóricas com as quais trabalhamos, consideramos importante
salientar aquilo que, mesmo vindo de compreensões distintas, atravessa-nos.
Deste modo, não estamos aqui propondo que as diferentes concepções teóricas
aqui versam sobre o mesmo entendimento, mas sim que nos trazem pistas de
territórios-margens os quais construímos travessias.
De algum modo, em cada uma de nossas perspectivas, a dinâmica obje-
tivação-subjetivação se torna mister na compreensão do que sejam os pro-
cessos de subjetivação. Seja numa perspectiva dialética ou em compreensões
pós-estruturalistas que pautam nossas concepções teórico-metodológicas,
“[...] ser sujeito é ser, ao mesmo tempo, subjetividade e objetividade, é ser
objetividade que se subjetiva, subjetividade que se objetiva, constantemente”
(Maheirie, 2008, p. 53).
Assim, entendemos que há sempre um ser devir “[...] pelo encontro ou
captura entre dois ou mais elementos heterogêneos tomados numa zona de
vizinhança” (Caetano, 2015, p. 215) ou seja, uma construção do sujeito no
encontro com o mundo, com o outro, com a cultura, entendendo que o devir
constituir-se sujeito implica ainda num “[...] encontro por contágio, uma pro-
pagação por epidemia em que elementos heterogêneos são tomados numa
aliança que os fazem derivar sem, no entanto, haver identificação” (Caetano,
2015, p. 215) e não numa cópia ou depósito do mundo ou do outro, mas sim
em transformações mútuas.
Melo (2007, p. 14) ainda nessa discussão sobre os processos de subjeti-
vação no encontro com o outro, recorda-nos que “no processo de constituição
o indivíduo se apropria, através da mediação semiótica, das significações
socialmente e historicamente produzidas e, vivendo em um espaço inter-
subjetivo e possuindo uma história particular, atribui sentido pessoal para
suas experiências”, trazendo a relevância de compreendermos que esse pro-
cesso emerge (e está imerso) num campo histórico que produz condições de
possibilidade para essa construção, ou seja, “o sujeito torna-se autor e ator,
pois transforma o contexto social ao qual está inserido, apropriando-se dos
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 37

significados produzidos e se constituindo. Ao subjetivar a cultura, o homem


[leia-se ser humano] acaba por ressignificá-la, baseado nas suas experiências
singulares, objetivando algo novo” (Melo, 2007, p. 14).
Deste modo, também se torna mister compreendermos o papel da lin-
guagem nesse caminho de subjetivar-se. Novamente recordamos que existem
diferenças profundas entre nossas compreensões sobre as questões relativas à
linguagem, seus modos de produção e os caminhos pelos quais esta constitui
aquilo que somos. Entretanto, o território que co-habitamos neste âmbito
diz respeito à compreensão do campo de produção discursiva e espaço de
mediação na constituição do que somos.
Nesse sentido, a linguagem é entendida para muito além da fala, mas
como espaço dialógico, arena de construção de sentidos para si e para o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

mundo, enredando sujeitos produzindo-os, assim como arena ética-estética


e política possível de construção dos sujeitos. O discurso é entendido como
esse campo de produção do que somos, espaço de disputa das múltiplas vozes
sociais que nos constituem e as quais constituímos, território de produção das
materialidades da vida.
Produção discursiva não de uma racionalidade, mas de um corpo inteiro
que se produz nas dinâmicas afetivas. Não compreendemos o afeto aqui como
algo que “reside” em um sujeito, mas como a produção cultural, que mobi-
liza os sujeitos em suas realidades. Partilhando da compreensão de um corpo
potente porque pode afetar e ser afetado, “a emoção também ocupa um lugar
de destaque nos processos de constituição do sujeito singular, uma vez que
a apropriação e posterior ressignificação do que é socialmente produzido é
mediada por ela [...]” (Melo, 2007, p. 14), sendo ainda que o “[...] percebido
pelo sujeito dependerá do que é sentido como necessário no momento, tendo
a emoção um papel de destaque nesta seleção” (Melo, 2007, p. 14).
Assim os processos de subjetivação se dão numa arena discursiva pro-
dutora de afetos e cognições, mas também produzida por estes, de maneira
coletiva, histórica e culturalmente localizados como condição de possibi-
lidade da trama que nos enreda em nossos encontros - devir. Diante das
produções discursivas, como esse campo político de encontros de diferentes
saberes e poderes, entendemos que é primordial as discussões referente aos
Direitos Humanos, tendo em vista a necessidade de compreensão de quais
discursos sustentam nossa compreensão sobre o humano e como esses dis-
cursos produzem condições de possibilidade de produção de humanidades e
quais humanidades.

4. Direitos Humanos
Quando conversamos sobre Direitos Humanos, evocamos um imaginá-
rio construído internacionalmente, uma borda construída, uma fronteira que
38

permite que os devires existam e co-existam. Este imaginário se concretiza


na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DHDU). Este documento
é resultado de um esforço coletivo que considera o desprezo e o desrespeito
à humanidade que ocorreu na Segunda Guerra Mundial e busca “um mundo
em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade” (ONU, 1948, n. p).
O primeiro artigo da Declaração indica um direito e um dever que pare-
cem ser óbvios e intuitivos, mas se faz necessário reiterar continuamente:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade” (ONU, 1948, n. p). Nesse esteio, a Psicologia

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


brasileira, principalmente após a redemocratização do Brasil, se orienta pelos
postulados contidos na DHDU. Portanto, todo psicólogo/a ou estudante tem
o dever de seguir seus princípios.
Os Direitos Humanos podem ser compreendidos como limites para este
mapa que estamos desenhando, este lugar de construção de conhecimento.
Limites ao mesmo tempo cerceiam e protegem, seguram e dão forma, ou
seja, são fundamentais para a coexistência da humanidade. A História nos
mostra que o homem, com o domínio de ferramentas poderosas, se autori-
zou a fazer atrocidades com outros homens, muitas vezes clamando pela sua
própria liberdade e com um discurso que desafia todo e qualquer limite. Dois
exemplos maiores representam essa face destruidora da humanidade são o
colonialismo e o nazismo.
Logo após o fim da guerra, em 1945, foi criada a Organização das Nações
Unidas (ONU), que buscou estabelecer a paz e a segurança mundial. Em 1948
foi instituída a DUDH, que regula e orienta a proteção internacional dos direi-
tos em todos os países-membros da ONU. Neste sentido, toda Constituição
Federal deve seguir os preceitos universais de igualdade e liberdade, inde-
pendentemente de idade, sexo, raça/cor, religião ou nacionalidade descritos
na DUDH (Faria; Machado, 2022; Severo; Giongo; Moura, 2021).
Neste contexto, percebemos que a ideia dos Direitos Humanos é moderna
e ocidental, fortalecida após as atrocidades e genocídios ocorridos no séc. XX.
Tanto a empreitada eugenista levada pelo nazismo, as explosões das bombas
atômicas no Japão e o desenvolvimento bélico estadunidense mostraram que
o próprio Estado é o maior responsável pela violação dos direitos humanos.
Neste sentido, a DUDH vem como um lastro de garantia de direitos às pes-
soas e de deveres aos Estados, para assegurar a dignidade da pessoa humana
(Severo; Giongo; Moura, 2021).
Vale salientar que, quando falamos de humanidade, o semblante estético
evocado permanece sendo o do ser humano europeu, branco, cis, masculino
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 39

etc. No entanto, os direitos humanos remetem a todas as pessoas. Um tra-


balho coletivo é necessário para que as fronteiras de proteção se alastrem,
ocupando de fato as pessoas mais vulneradas e menos imediatas no imaginá-
rio do senso comum. Neste sentido, chama-se o pensamento revolucionário
de Frantz Fanon, que propôs o humanismo radical, a valorização radical de
toda e qualquer vida humana, explicitamente incluindo aí as vidas negras,
historicamente vilipendiadas (Faustino, 2018).
Seguindo essa história e percebendo o elemento universal dos direitos
humanos, muitos movimentos sociais emergiram na segunda metade do séc.
XX, questionando o poder hegemônico. Os movimentos feministas, antirra-
cistas e pacifistas se fortalecem nos EUA, criando um aumento da discussão
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sobre a distribuição mais igualitária de poder entre as pessoas e seus grupos.


Embora os direitos humanos não fossem o fio-condutor desses movimentos,
eles estavam em diálogo constante (Porto, 2014).
Apesar dessa ebulição cultural e o estabelecimento da DUDH, algo de
sinistro pairava no ar do dia-a-dia da ciência e do desenvolvimento da Saúde.
Ainda havia no imaginário dos cientistas e os demais “homens no comando”,
a categoria de “cidadão de segunda classe”, pessoas que estavam permanen-
temente à disposição (leia-se seus corpos, suas identidades e suas vidas) ao
usufruto da ciência e ao progresso. Estas pessoas eram internas em hospitais
de caridade, pessoas com deficiências intelectuais, crianças com atraso no
desenvolvimento, pacientes psiquiátricos, pessoas privadas de liberdade, bem
como idosos e recém-nascidos (Diniz; Guilhem, 2017).
A divisão (in)visível entre pessoas de primeira e segunda classe gerou
outras novas atrocidades na ciência estadunidense, que foram denunciadas
por Henry Beecher em 1966. Não apenas os nazistas se utilizavam da vida
dos subalternos ao seu bem entender, essa prática era comum no país da
liberdade. Pesquisas/torturas vieram à público, mostrando que a disputa pelos
direitos humanos ainda seria longa. Como exemplo, uma pesquisa realizada
por médicos que injetavam intencionalmente o vírus da hepatite em pessoas
com deficiência intelectual para se conhecer a evolução da doença (Diniz,
Guilhem, 2017).
O caso mais famoso e perturbador destas intervenções médicas foi o
“Caso Tuskegee”. A pesquisa era conduzida pelo Serviço de Saúde Pública
estadunidense e tinha como objetivo acompanhar o ciclo natural de evolução
da sífilis. Durante quarenta anos, entre as décadas de 1930 e 1970, 400 pessoas
negras infectadas com sífilis foram “tratadas” apenas com placebo, sendo
proibidas de ter acesso ao tratamento eficaz: a penicilina (algo relativamente
fácil de conseguir nas décadas finais do experimento). A justificativa para
a proibição era a de que, já que o tratamento ficou disponível à população
40

durante a pesquisa, nunca mais seria possível traçar a evolução da doença.


Somente nos anos 2000 o governo dos EUA reconheceu e se desculpou ofi-
cialmente aos 7 sobreviventes (Diniz; Guilhem, 2017).
Estes exemplos mostram as dificuldades de respeito aos direitos humanos
nas ciências da saúde. Já na Psicologia contemporânea, enquanto ciência e
prática de cuidado, entende seu potencial, tanto para fazer o bem, quanto para
fazer o mal. Cuidamos para não transformar nosso trabalho em um trabalho
moral, ao mesmo tempo que estamos atentos a todos os tipos de violência que
nos permeiam, como a tortura, a discriminação, o abuso de poder e a exclusão
social. Nosso trabalho também é para limitar essa violência, além de acolher
quem já foi violentado e sobreviveu para contar a sua história.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Entendemos que a saúde, incluindo aí a saúde mental, é condicionada
aos determinantes sociais. Além de questões fisiológicas, fatores como lazer,
moradia, educação, trabalho, transporte, influenciam significativamente as
subjetividades e o sofrimento das pessoas. O nosso Sistema Único de Saúde
reconhece esses determinantes e trabalha em prol da promoção de saúde e a
prevenção de agravos. Nesta mesma linha, a DUDH aponta em um de seus
artigos o direito ao repouso, ao lazer, a férias remuneradas e a limitação
razoável de horas de trabalho (Faria; Machado, 2022).
Ademais, a psicologia segue na luta pela consolidação dos direitos huma-
nos em discussão sobre os direitos, por exemplo, das crianças e dos adoles-
centes, de igualdade de gênero e de raça, da Reforma Psiquiátrica e do sistema
prisional (Severo; Giongo; Moura, 2021).
Diante deste contexto, alguns desafios se despontam para os brasileiros,
pois vivemos em um país que a violência urbana se assemelha à países em
guerra civil, há pobreza distribuída por todo o território, temos o patriarcado
como discurso que reitera violências de gênero e o racismo que fundou este
Estado, dividindo a nação entre pessoas livres e escravizadas. O debate sobre
direitos humanos no Brasil é tomado por diversos ataques e defesas, muitas
vezes explícitos nos movimentos sociais e no debate público. Enquanto os
movimentos populares buscam a garantia dos direitos, alguns representantes
do poder privado intentam enfraquecê-los com diversas estratégias, incluindo
a tentativa de promover desinformação e desconhecimento do que os direitos
humanos garantem (Severo; Giongo; Moura, 2021).
Inúmeros exemplos de ataques a grupos vulnerados são percebidos no
Brasil. Discursos de ódio direcionados às pessoas da margem, como pessoas
negras, pobres, periféricas, mulheres trans e travestis buscam colocar essas
pessoas na posição de segunda categoria e de desumanização. Além disso, rei-
teradamente nós escutamos ataques aos direitos das mulheres, principalmente
na sua escolha de abortar (mesmo nos casos legalizados, como os casos de
violência sexual) e nos seus cuidados à saúde (Silva; Euzébios Filho, 2023).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 41

Outro grande desafio nacional se refere aos direitos dos povos originários,
vítimas de ataques sistemáticos e histórico de aculturação. Seu direito à terra,
estabelecidos na demarcação de terras para povos indígenas e quilombolas,
é constantemente questionado e disputado por décadas a fio (Silva; Euzébios
Filho, 2023).
Percebendo todos estes desafios, fica evidente que falar sobre direitos
humanos é algo complexo, pois diz muito dos direitos que faltam e de pes-
soas que são constantemente pressionadas para fora da humanidade. Como
explicitam Silva e Euzébios Filho (2023):

Direitos humanos, em certa medida, estão fetichizados; parecem a garantia


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de algo que é bonito, algo reparador da dignidade humana - o que real-


mente o é. Entretanto, discutir direitos humanos é sempre discutir o estado
de violência e de falta de direitos. Porque a luta pelo direito é exatamente
isso: a luta por aquilo que não se tem, por aquilo que é faltoso, por aquilo
que é precário, por aquilo que não tem espaço social e político dentro de
uma determinada lógica de produção social e política, de organização
social, de ação do Estado e ação da própria sociedade (Silva; Euzébios
Filho, 2023, p. 4).

Com essa perspectiva, fazer pesquisa considerando os direitos humanos


pressupõe uma nova sensibilidade ao sofrimento social e uma resistência
constante à apatia e ao silenciamento. Após sofrer muita violência, o ambiente
que se cria é de que nada vale a pena, a saída é apenas individual e o fata-
lismo de que nada vai mudar (Silva; Euzébios Filho, 2023). Nosso grupo se
propõe sair desse fatalismo e entende que há muito trabalho para se fazer e
conhecimento para se construir. Diante da constante violência, reconhecer
a beleza dos direitos humanos é a saída possível para continuar buscando a
dignidade humana.

5. Considerações Finais

Sob o sorriso do gato de Cheshire, nos perdemos diante das muitas


possibilidades do fazer pesquisa no campo psi (em princípio, das múltiplas
possibilidades do campo psi), ao mesmo tempo que vislumbramos alguns
caminhos por onde seguir. Este território demanda atenção, pensamento crí-
tico e muito diálogo para não sermos pegos distraídos. Assim como quem
caminha para conhecer (porque desconhece) o caminho, estar atento implica
em escolhas, em abertura ao novo, em um posicionamento de si diante do
mundo que possibilite o diálogo.
Ter em mãos um mapa pode auxiliar como um dispositivo a mediar o
território. Porém, lembrar que mapa não é território é importante agora para
42

você que nos lê, pois implica em recordar que mesmo com esse mapa a vida
pede atualização permanente, uma observação de si, das produções do campo
da ciência, do fazer-se pesquisador e pesquisadora e da produção da psicologia
em sua diversidade epistemológica, metodológica e teórica que pede a cada
dia mais um fazer comprometido com a transformação da nossa realidade
brasileira. Assim como Alice adentra ao País das Maravilhas e - ao perder-se
vai conhecendo este território - ela também implica-se com as injustiças e
desigualdades do seu mundo e do mundo das Maravilhas, construindo cami-
nhos para transformação de ambos.
Assim, entendemos que a Psicologia enquanto ciência e profissão
demanda um compromisso social diante do Brasil desigual. Nossa dimensão

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ético-política requer posicionamento, retirando o véu da neutralidade e assu-
mindo nossos problemas, as diversas formas de violência e opressão cotidianas
dos brasileiros. Nesse sentido, a ideia de devir nos ajuda a compreender como
nos tornamos e continuamos sujeitos.
O compromisso com os direitos humanos nos demarca em uma fronteira
civilizatória que buscamos continuamente sua expansão. Pensar todos esses
problemas nos desafia a manter uma postura crítica no pensamento e otimista
na vontade, propositiva, transformadora, inconformada, ética.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 43

6. REFERÊNCIAS
BOCK, A. M. B. A psicologia a caminho de um novo século: identidade pro-
fissional e compromisso social. Estudos em Psicologia, 1999.

CAETANO, Patrícia de Lima. Por uma estética das sensações: o corpo intenso
dos Bartenieff Fundamentals e do Body-Mind Centrering. In: Revista Bra-
sileira de Estudos Presença, v. 5, n. 1, p. 206-232, 2015.

DINIZ, D.; GUILHEM, D. O que é bioética (Primeiros Passos) São Paulo:


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Brasiliense, 2017.

FARIA, C. D. de; MACHADO, Y. de J. Análise comparativa: direitos huma-


nos e as leis orgânicas da saúde. Rev. bioét. (Impr.), v. 30, 2022. Disponí-
vel em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/2927.
Acesso em: 28 out. 2023.

FAUSTINO, D. M. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro.


São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal


dos Direitos Humanos. [S.l.: s.n], 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/
EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf. Acesso em: 28 out. 2023.

MAHEIRE, K. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambiguidade


dos movimentos sociais. In: ZANELLA, A. et al.. (orgs). Psicologia e prá-
ticas sociais. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008,
p. 49-56. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/886qz/pdf/
zanella-9788599662878.pdf. Acesso em: out. 2023.

MELO, M. T. Processos de objetivação e subjetivação em ambientes de EaD.


In: Revista E-ducação Virtual, v. 1, n. 3, p.13-27, 2007. Disponível em:
https://www2.unifap.br/midias/files/2012/03/Texto.complementar3.UNIDA-
DEII.pdf. Acesso em: out. 2023.

LINS, Ivan. Perspectivas de Augusto Comte. Rio de Janeiro: Livraria São


José, 1965.

LÖWY, M. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista.


São Paulo: Cortez, 2010.
44

PORTO, D. Bioética na América Latina: desafio ao poder hegemônico. Rev.


bioét.(Impr.). v. 22, 2014. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/
revista_bioetica/article/view/911. Acesso em: 28 out. 2023.

SEVERO, F. K. T. da C.; GIONGO, C. R.; MOURA, E. P. G. de. Educação


em Direitos Humanos na Perspectiva de Adolescentes Participantes de um
Projeto Social. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 41, n. spe4, p. e214978,
2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1982-3703003214978. Acesso
em 28 out. 2023.

SILVA, A. S.; EUZÉBIOS FILHO, A. Poder, crise e insurgência no Brasil e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


o direito a ter direitos. Psicologia USP, v. 34, p. e210101, 2023. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/0103-6564e210101. Acesso em: 28 out. 2023.
SEXUALIDADE FEMININA: santas,
bruxas, sensuais, recatadas [visibilidades,
dizibilidades e o que escapa]
Brenda dos Santos
Paula Maria Serpa Seleme Carvalho
Marina Corbetta Benedet
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

A presente pesquisa reconhece a importância em contribuir para o


debate a respeito do empoderamento da mulher, que historicamente teve
sua sexualidade negada e envolta em preconceitos, de modo a impossibi-
litar as mulheres de sentirem-se livres para falar do assunto ou questionar
a estruturação dos padrões estabelecidos socialmente. Dessa forma surgiu
o interesse em saber quais os impactos dos sentidos de ser mulher na
experiência da sexualidade de universitárias da saúde. Através de uma
pesquisa qualitativa, foi considerado o discurso de 12 universitárias, tendo
por objetivo geral analisar os impactos dos sentidos de ser mulher na
experiência da sexualidade delas.
As discussões de gênero ajudam a compreender a condição da mulher na
sociedade, que perpassa uma construção histórica e cultural, entendendo
que as diferenças entre sexos são dadas com relevância de símbolos cul-
turais, conceitos normativos, relações institucionais e a subjetividade da
pessoa (Scott, 1989). Ao assimilar os conceitos padrões de uma socie-
dade, o próprio sujeito os reproduz e os transforma, assim, produz e é
produzido por seu meio social. Onde a constituição do sujeito depende
das experiências estabelecidas com o contexto social, mediadas pela cul-
tura da sociedade em que interagem, e são constantemente transformadas
(Zanella et al.., 2006).
O entendimento da sexualidade, embora possua o mesmo termo, dife-
re-se entre masculino e feminino, pois organicamente os próprios órgãos
moldam tanto o conceito como a distinção no corpo, tendo a mulher um
clitóris e vagina, marcada por ciclos menstruais e períodos férteis a par-
tir da puberdade, socialmente compreendida por passagem à vida adulta
(Beauvoiur, 1967; Foucault, 1988). Assim, durante a adolescência, pres-
sões sociais e seu próprio organismo com alterações hormonais significativas,
46

são de possível impacto na vida da mulher. Sendo muitas vezes construídas


socialmente a serviço da procriação, vista como uma responsabilidade com
sua sociedade, levando a discussões sobre sua autonomia.
Assim sendo, pretendeu-se, nesse estudo, como objetivos específicos:
a) identificar os sentidos de ser mulher construídos pelas universitárias
da Escola de Ciências da Saúde, b) levantar os modos como os discursos
sociais sobre ser mulher e sexualidade impactam na construção de sentidos
sobre ser mulher; c) analisar a experiência de sexualidade das participan-
tes, d) compreender os modos como elas reconhecem que os padrões de
corpo impactam na construção da sexualidade feminina e e) levantar as
principais dificuldades e violências vivenciadas por acadêmicas de cursos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


da saúde em relação a sua sexualidade em função dos padrões sociais.
Conforme pesquisa realizada em base de dados, em setembro de
2020, com as palavras “mulher”, “sexualidade feminina” e “corpo”, foram
encontrados 466 artigos científicos publicados nos últimos 5 anos. Essas
pesquisas recentes, têm dialogado muito sobre o fato de que, apesar da
sociedade ter sofrido grandes alterações acerca dos padrões sociais que
ditam a moral e comportamento da mulher, a sexualidade feminina ainda
se mostra muito censurada, gerando assim uma necessidade de discus-
são sobre o tema. Dentre algumas problemáticas sociais, Lucas e Ghis-
leni (2016), falam sobre a necessidade de um processo de constante luta,
uma vez que até mesmo a legislação brasileira, de forma oculta, carrega um
certo controle sobre os corpos femininos, em especial acerca da sexuali-
dade feminina.
Dessa forma, foi considerado este tema como relevante socialmente,
pelas demandas relacionadas à sexualidade feminina constitui-se um
assunto pouco abordado no passado e significativo para o atual cenário
encontrado, onde a mulher encorajada a buscar seu sucesso, vem reivin-
dicando seu espaço dentro de organizações e voz dentro de seu relaciona-
mento. Contudo, é evidente a complexidade em mencionar questões de
sexualidade, podendo invadir uma intimidade da mulher que ainda hoje
se conserva, por todos os signos que esta carrega, que lhe foi ensinado,
passando por gerações familiares. A pesquisa sobre este tema, parte de uma
necessidade de problematizar e ressignificar vários aspectos da vida da mulher,
refletindo como o social interferem em seu processo de autoconhecimento,
sua lida com o corpo, a forma com a qual se posiciona e sua liberdade.
Assim, a pesquisa é de interesse de mulheres, independentemente da idade,
que procuram reconhecer sua sexualidade para além das normatizações
sociais, tendo sido até mesmo reprimidas em relação a simples atos de
autoconhecimento, como tocar-se, e compreender seus desejos.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 47

São recentes as aberturas de discussões sobre prazer, corpo e auto-


conhecimento. O corpo orgânico pode ser um caminho para a libertação,
sendo necessário, para tanto, estimular o autoconhecimento e o amor pró-
prio (Lucas; Ghisleni, 2016). E por mais que alguns bloqueios tenham
sido rompidos, ainda se carrega resquícios desta repressão, perpassada seja
pela religião, familiares e entre outros. Como acreditam Souza e Pereira
(2018), o processo de reforma da sociedade é longo, e faz-se necessário
mais estudos que questionem a constituição do sistema patriarcal e suas
falhas para o empoderamento feminino. Pensar sobre a autonomia da
mulher e sua sexualidade, envolve o poder sobre o seu corpo, e a liberdade
sobre a busca do prazer. Para isso, “Devemos falar sobre a mulher, falar sobre
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sexualidade, e falar sobre o corpo, afinal recuperar o corpo é recuperar a


mulher” (Souza; Pereira, 2018).
Durante a pesquisa à base de dados, observou-se que grande parcela
dos artigos publicados sobre sexualidade feminina nos últimos cinco anos,
possuem autor masculino. Enquanto mulheres e acadêmicas de psicologia,
é relevante ocupar tal lugar de fala , buscando romper com os paradigmas
impostos pela sociedade, ressignificando questões que bloqueiam a autonomia,
autoconhecimento e liberdade de expressão. Outra importância da realização
deste trabalho para as pesquisadoras é reconhecer, admirar e dar continuidade
à trajetória de diversas mulheres, através da história, que lutaram, abriram
espaço para essa pesquisa, se manifestaram contra o sistema e auxiliaram no
processo de desmistificação do tabu em torno da sexualidade feminina. Con-
tudo, para que essas mulheres existissem, houveram muitas outras, as quais
sofreram ao passar dos tempos, abdicando de si mesmas para fazer cumprir
um padrão imposto pela sociedade. É fundamental identificá-las como parte
de nossa pesquisa, onde com muito orgulho poderemos falar sobre o tema,
respeitando-as e homenageando.

2. Fundamentação Teórica

2.1 Constituição do Sujeito

A constituição do sujeito é um processo complexo, não linear, con-


trapõe-se a ideias mecanicistas, é feito de construções e desconstruções,
pois compreende o ser humano como ser histórico e cultural. Tendo base
nas obras de Vygotski (1995 apud Zanella et al., 2006) com sustentação na
dialética marxista, é possível analisar a singularidade do sujeito, produzido
e produtor das circunstâncias sociais e também como um humano-gené-
rico. As relações do ser em seu contexto social, se constituem em uma
48

dimensão singular e outra fundamentada socialmente, pois tendo em vista


a mediação semiótica, o ser se apropria das significações de pensamentos,
hábitos e até sentimentos através do convívio com outras pessoas. É neste
meio social que se possibilita enxergar a singularidade, sendo gênero, classe
e etnia alguns exemplos da inserção idiossincrática (Zanella et al.., 2006).
Compreendendo a influência do “outro” no “eu”, é possível pensar
a respeito da influência do “eu” no “todo”, pois o ser é produzido pela
sociedade e também a produz. a mesma. Quando este participa ativamente
do seu contexto social, há uma relação concomitante de transformações,
pois ao atuar como ser social está diretamente colaborando com a sua
sociedade, desenvolvendo símbolos, apropriações e a própria cultura (Zanella

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


et al.., 2006).
O desejo de “ser” é entendido como o que movimenta o sujeito no
mundo, buscando tornar-se a idealização de um ser projetado. Contudo,
quando o desejo de ser é manifestado com a ideia de ser em-si não é
possível concretizá-lo, pois a consciência não se transforma em- si, esta
impossibilita a plenitude afirmativa, pois não se assume de fato no em-si, mas
o impulso em direção de buscar algo mostra o sujeito como sempre além
do que se é, um movimento de transcendência constante, dialético desde o
príncipio (Maheirie, 2002). Assim, é entendido que o projeto de ser define
o sujeito, pois movimenta o sujeito do passado para o novo inexistente,
possibilitando a compreensão da constituição do mesmo como: seu pas-
sado, pois não é possível deixar de ser o que já se foi, mas com o futuro
que atribui sentido e movimento ao ser, como um projeto inacabado com
muito desejo de ser.
A segurança ontológica está mais para emocional do que cognitiva,
pois a emoção é uma forma de transformar a história dos homens. As emo-
ções estão dentro de uma perspectiva histórica e socialmente construída
também, devendo ser analisadas dentro do contexto psicossocial próprio
de cada um, com as variáveis de suas significações (Maheirie, 2002).
Os significados das palavras e dos sentidos produzem a subjetividade,
desse modo, conclui-se que as palavras são polissêmicas e as vozes poli-
fônicas, onde existem múltiplos sentidos para o que se foi dito, pensado e
assumido. Assim é essencial realizar e expressar para que seja capaz de se
redefinir, reinformar, reinventar e recriar processos dentro da constituição
do sujeito (Molon, 2011).
Finalizando, compreende-se que os aspectos intrapsicológicos e
interpsicológicos são parte do processo da constituição do sujeito, por
meio do outro, pela linguagem e através de uma dimensão semiótica,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 49

com signos, natureza e a gênese, fundindo no diferente e no semelhante


(Smolka; Góes; Pino, 1998 apud Molon, 2011).

2.2 Gênero

A personalidade dos sexos é socialmente construída, logo, as dife-


renças não são atribuídas apenas pela natureza (Mead, 1969). Ao nascer,
distingue-se homem ou mulher, trazendo definições simbólicas que acom-
panham tais denominações, e realizando tal papel padrão sem questiona-
mentos. Afirmando as atribuições dadas ao ser, torna-se fato que não se
nasce mulher e sim torna-se uma (Beauvoir, 1967), em razão dos símbolos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que isto representa além do biológico.


Questiona-se o início do termo feminilidade, o qual impõe à mulher
a necessidade de serem delicadas, polidas, estar para o cuidado, submissa ao
outro. No princípio, acredita-se que a força física necessária para sobrevivên-
cia da humanidade em tempos antigos, tenha influenciado o momento em
que os detentores do poder, sendo homens poderosos, sacerdotes, filósofos,
os responsáveis pela elaboração das leis, cercaram-se de teorias empenhadas
a colocar a mulher na condição de subordinada (Beauvoir, 1949).
A busca pela compreensão da história da mulher na sociedade, encon-
tra-se vinculada ao termo gênero e suas aplicações ao longo da história,
onde inicialmente, encontrava-se um uso inadequado do termo, pois rela-
cionava-se exclusivamente a traços sexuais (Scott, 1989). Embora a termi-
nologia mantenha-se confusa para algumas partes da sociedade, seu uso
adequado se deu junto às feministas, de modo a referir-se à organização
social da relação entre os sexos (Scott, 1989).
Para clarificar a compreensão sobre gênero, considera-se este um ele-
mento constitutivo de relações sociais, baseado nas diferenças percebidas
entre os sexos, e o gênero é o princípio para significar as relações de poder
(Scott, 1989). Dentro desta problemática, compreende- se a implicação de
quatro fatores: símbolos culturais como representações simbólicas, concei-
tos normativos, relações com as instituições, e uma identidade subjetiva.
Consequentemente, entende-se gênero como um meio de decifrar a com-
plexidade de diversas formas de relação humana (Scott, 1989).
Percebe-se que não é cabível que as relações sociais sejam definidas
por questões meramente biológicas, pois o ser humano vai além disto,
o qual provoca uma problematização entre os papéis sociais “homem”
e “mulher”, que colocam o homem como um sujeito e a mulher como o
outro distinto (Beauvoir, 1949). Diante da discussão entre o determinismo
biológico e os papéis sociais, apropria-se do termo gênero para tais
50

reflexões, e o conceito passa a significar essas relações sociais de modo


a problematizá-las.

2.3 Sexualidade e Educação Sexual

Para que se possa compreender narrativas sobre sexualidade feminina,


faz-se necessário de antemão, compreender a sexualidade. Acerca da inicia-
ção sexual feminina, a partir de uma reflexão binária, compara-se a oposição
entre dois órgãos, clitóris e vagina ao espasmo clitorial à mesma autonomia
erótica atribuída ao homem, enquanto entende a vagina como centro erótico de
intervenção masculina, ao qual associa-se com a procriação, e com a pas-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sagem do universo infantil para a vida de esposa, que põe a mulher a serviço
do homem e da espécie (Beauvoir, 1967). Nessa perspectiva a adolescência
era um momento angustiante na vida feminina, pois antecipava o período de
concretização da sexualidade para mulher, que é visto como a passagem para
a vida adulta, e simboliza a fase da vida de maior responsabilidade para
com a sociedade. Afinal, enquanto ao homem lhe era reservado o direito
de satisfazer seus desejos, as mulheres possuíam o dever de defender sua
virtude, pois estava delegada à finalidade matrimonial, ao qual qualquer
ato carnal não santificado era visto como pecaminoso e desqualificador
(Beauvoir, 1976).
Mas considerar a sexualidade feminina através dessa perspectiva, ao
qual coloca o homem como detentor do poder e a mulher como reprimida,
não é mais suficiente. Pode-se compreender que há uma repressão social
envolta da sexualidade, contudo não está para a negação, pois há um desejo
e é a partir deste que se movimenta o poder (Foucault, 1988).
Desse modo, sexualidade passa a ser dispositivo de poder, produzido
por meio de discursos, interações sociais, que constroem o indivíduo. E a
partir da perspectiva de um corpo que é construído, se pensa em instituições
disseminadoras de discursos, discute-se sobre sexo não a fim de condená-
-lo, mas gerenciá-lo de modo a inserir em sistemas de utilidade, falar sobre
regulando para um bem comum (Foucault, 1988). Tais instituições de
poder, tratam de moldar este corpo através do discurso, para que este seja
viável à sociedade, e esteja sujeito a uma ordem social e na medida que
este corpo é adequado às boas práticas, também passa a ter consciência
enquanto indivíduo que possui seus deveres sociais.
Diante disto, entende-se que ao mesmo tempo em que há uma neces-
sidade de conhecer sobre si, a culpabilização torna-se um impeditivo, que a
limita na relação de poder, pois se conhecer é contra deveres sociais aos quais
se moldou, e quanto menos se sabe sobre si, mais poder se atribui ao outro.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 51

3. Metodologia

3.1 Delineamento da pesquisa

Essa pesquisa se caracterizou-se como descritiva e exploratória, de


abordagem qualitativa, pois é mais abrangente e teórica frente às problemáti-
cas e busca estabelecer relações entre os padrões de comportamento e falas
(Decarli, 2018). A pesquisa exploratória possui o intuito de desenvolver,
esclarecer e modificar conceitos, crenças ou ideias, visando a criação
de novos problemas para futuras pesquisas e como pesquisa descritiva
busca compreender os sentidos de ser mulher construídos a partir das suas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

experiências (Gil, 2008). Em pesquisas qualitativas o método é subjetivo


e não busca resultados objetivos, pois concebe a perspectiva singular a
partir de contextos inseridos (Decarli, 2018). A fim de cumprir com os
objetivos propostos, essa pesquisa foi realizada em campo, pois consistem
na interrogação do público alvo, buscando o aprofundamento das questões
propostas (Gil, 2008).

3.2 Participantes da pesquisa

Foram participantes desta pesquisa 12 mulheres que se voluntariaram,


descritas através de nomenclaturas fictícias. A escolha dos nomes fictícios
foi pensada dentro de mulheres mitológicas, religiosas e mulheres reais,
as quais sofreram distorção em sua história ou foram silenciadas atra-
vés dos anos.
• Afrodite: a deusa da mitologia grega correspondente a beleza e amor,
é vista como símbolo de sexualidade e sedução. Com base em sua
história, seu matrimônio foi forçado, por seu pai, Zeus, o deus mais
poderoso, não gostar da disputa de homens interessados em possui-la,
com isso, obrigou que se casasse com o deus Hefesto, o mal-humo-
rado e feio. Por não o amar e por seus desejos corresponderam muito
com a sexualidade, esta continuou com relações extraconjugais com
o deus da guerra, Ares.
• Lilith: Segundo a bíblia, Deus criou o homem e a mulher a partir
de sua imagem e semelhança, contudo, há evidências que mostram
a primeira mulher criada ocultada da história. Lilith, feita a partir
da poeira, assim como Adão, negou-se a deitar com este na hora do
sexo, pois não se sentia inferior a ele, assim, abandonou o Éden.
Nos séculos 7 e 6 a.C, hebreus e judaico-cristãos passaram a cultuar
52

Lilith como a deusa da fertilidade, indo contra a religião patriarcal,


logo foi tornada por esta uma figura demonizada, em textos é descrita
como mulher alada e serpentina, sendo assim, a serpente do Éden.
Em histórias e mitos, seu nome é citado como a irmã de Lúcifer ou
a figura feminina do diabo em si, além de ser a patrona das bruxas.
• Maria Madalena: é descrita na bíblia como uma das seguidoras mais
dedicadas de Jesus Cristo, sendo considerada santa em algumas reli-
giões cristãs. As controversas em sua história se dão por muitos
a considerarem prostituta, a qual foi resgatada por Jesus e boatos
em que esta havia se relacionado com este, inclusive gerando um
filho. O fator relevante de sua história, é que inicialmente obtivera

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


papel importante nos primeiros anos de cristianismo, mas após se
relacionar com outros homens e pecar, estaria vista historicamente
como impura. Acredita-se que a frase “quem nunca errou que atire
a primeira pedra”, falada por Jesus, tenha sido direcionada a ela.
• Leila Diniz (1945-1972): Atriz brasileira, símbolo da revolução
feminina no país durante a ditadura militar, para a época, suas ati-
tudes eram vistas como escandalosas, sendo uma mulher que falava
palavrões e fazia referências sobre atos sexuais em suas falas, esta
defendia a liberdade sexual e do corpo feminino, onde ao ir para
praia de biquíni pequeno ao estar grávida foi criticada.
• Eva: Conhecida pela história como a mulher que cometeu o pecado
de comer o fruto, é uma personagem mostrada como submissa, por
ter sido criada a partir da costela de Adão e frágil por ser influenciada
a ir contra a vontade de Deus que a proibiu de pecar. Por outro lado,
é possível pensar que esta que negou a submissão a qual foi subordi-
nada e fez suas vontades, mesmo que implicasse em consequências,
sendo a expulsão do paraíso.
• Ana Bolena (– 1536), foi a esposa do rei Henrique VIII e Rainha Con-
sorte do Reino da Inglaterra por três anos, é mãe de Elizabeth, que
também se tornou rainha. Ana resistia às tentativas de aproximação
de Henrique VIII, pois este era casado e sua irmã já havia sido amante
dele. Mas casou-se com este e após quatro meses de sua coroação,
Elizabeth nasceu, assim, estava grávida antes do casamento. Henrique
VIII havia encerrado seu antigo casório por sua ex-esposa não lhe
conceber um filho homem para ser o futuro rei, assim, ao nascer Eli-
zabeth, uma mulher, houve mais pressão para que Ana engravidasse
novamente. Existem rumores que alegam caso de incesto, onde Ana
relacionava-se secretamente com seu irmão, assim, foi acusada de
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 53

adultério por homens de poder, mas há boatos que estes desejavam


sua morte pois eram contrários à criação da Igreja Anglicana. Ela
foi vendada e decepada com golpe de espada e um mês depois o rei
estava casado novamente.
• Barbie: Uma boneca comercializada, inicialmente direcionada ao
público feminino infantil. A Barbie foi alvo de polêmicas por pro-
vocar nas crianças o desejo de ser como ela, pois era loira de cabelo
liso, magra, com seios fartos e cintura fina, sendo um corpo esbelto.
Existem pesquisas que comprovam que após a chegada da boneca
no Brasil, o movimento de padronização de corpos e problemas
com autoestima aumentou. Seu nome é usado para referir a pessoa
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

com vida perfeita e estereótipo de mulheres delicadas, como popu-


larmente falado “bem Barbiezinha”. Mas, sabe-se também que os
filmes da personagem e até em alguns brinquedos, está sempre em
trabalhos diversos, com muita autonomia, possuindo casas de luxo e
não necessariamente acompanhada de seu namorado. Hoje a produ-
ção da boneca está diferente, aparecendo além do padrão de beleza
anterior, podendo ser vista como ruiva, negra, de cabelos crespos
e com roupas de diversos estilos, deixando também de ser apenas
para meninas. Recentemente a conta oficial da personagem publicou
uma foto desta com sua namorada, outra Barbie, defendendo a causa
LGBTQIA+. Pode-se perceber que a boneca está acompanhando
a evolução social e podendo servir de modelo da causa feminista
para crianças.
• Medusa: personagem emblemática da mitologia grega, possui cabelos
de cobras e olhos que transformam a pessoa que a olhasse em pedra.
Existem duas versões de sua história, a que estaria competindo sua
beleza com Atena e a esta a enfeitiçou, transformando-a nesta mulher
que ninguém poderia olhar. Mas também, a versão em que Poseidon,
deus dos oceanos, estaria desejando Medusa, mas ao negá-lo, foi
estuprada por ele dentro do templo e, Atena brava por sua sacerdo-
tisa ter perdido a castidade a transformaria em tal monstro, como é
conhecida. Ainda em sua história, foi assassinada por Perseu quando
estava grávida.
• Joana D’arc (1412-1431): Camponesa, viveu e lutou durante a guerra
dos Cem Anos. A partir dos 13 anos, começou a ouvir vozes dizendo
ser de Santa Catarina e São Miguel dos Arcanjos, identificando isso
como uma missão que Deus a encaminhara para lutar, então cortou
seus cabelos e escondeu seus seios para que conseguisse se proteger
54

na jornada. Foi uma das maiores responsáveis pelas estratégias de


guerra. Após a vitória, deu liberdade para seu povo e foi considerada
heroína, o que causou uma conspiração para diminuir seu poder,
onde foi capturada e vendida. Sofreu 70 acusações, entre elas ser
uma bruxa, por dizer que conversava com santos e Deus, conside-
rado um pecado mortal na época, o que a condenou para a morte na
fogueira, e segurou um crucifixo enquanto morria queimada. Após
sua morte sua imagem se transformou, em 1431 o papa Calixto III
retirou suas acusações e em 1909 o Papa Bento XV a tornou santa,
a Padroeira da França.
• Dandara: viveu o período de escravidão de negros no Brasil Colonial,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sendo descrita como uma guerreira, dominando técnicas de capoeiras
e lutados em batalhas para preservação do Quilombo dos Palmares,
acredita-se que tenha sido presa e cometeu suicídio pois não queria
voltar a ser escrava.
• Dona Hermínia: é uma personagem fictícia brasileira, criada por
Paulo Gustavo (1978-2021), sendo inspirada em sua mãe. Dona
Hermínia é protagonista de filmes e peças teatrais, esta personagem
cativou os espectadores por reconhecerem nela características de
suas mães. Contando sua história, divorciou-se de seu marido pois
ele a trocou por uma mulher mais jovem, fala tudo sem filtro e está
sempre cuidando de seus filhos, mesmo que estes não sejam mais
crianças, faz de tudo por eles.
• Marielle Franco (1979-2018): socióloga, foi eleita vereadora em
2017, sendo conhecida internacionalmente por ONGs e projetos de lei
referentes aos direitos da população LGBTQIAPN+ e de mulheres,
envolvida também em causas contra o racismo. Iniciou sua trajetória
de defesa dos Direitos Humanos após sua amiga falecer vítima de
bala perdida. Sua morte segue em investigação tendo como indica-
tivos motivação política.

3.3 Instrumentos para coleta das informações

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista, téc-


nica a qual utiliza-se de perguntas para obter informações sobre a opinião,
crenças e desejos dos participantes. A escolha do instrumento baseou-se
na flexibilidade que possibilitou desenvolver o assunto com o participante.
A entrevista foi conduzida por pautas, com as acadêmicas-pesquisadoras
explorando os assuntos conforme as respostas recebidas, sendo que a
entrevista por pautas é aconselhada para momentos em que o entrevistado
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 55

não se sinta à vontade em falar com indagações de forma mais rígida


(Gil, 2008).
A respeito do conforto do entrevistado, as entrevistas foram realizadas
de maneira individual, procurando-se mais um diálogo sobre o tema, expli-
cando a finalidade da entrevista, os objetivos da pesquisa, a importância
social do tema e a própria colaboração da participante.

3.4 Procedimentos para coleta das informações

Primeiramente foi elaborado o projeto de pesquisa, submetido à avaliação


do Comitê de Ética em Pesquisa, para verificar também se as condições
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de pesquisa oferecem risco à integridade e dignidade dos sujeitos pesqui-


sados. Após obtida a aprovação do Comitê, pelo Parecer n. 4.622.863,
realizou-se contato com a instituição acadêmica em busca de permissão
de continuidade e a divulgação do convite para voluntárias que preenches-
sem os requisitos da pesquisa. Ao alcançar o número de 12 participantes,
houve a comunicação inicial e apresentação do termo de consentimento
livre e esclarecido (TCLE), explicando e respondendo possíveis dúvidas que
poderiam existir sobre a pesquisa e futura entrevista.
Após o esclarecimento, solicitou-se a assinatura do TCLE, para
agendar data e hora da entrevista. Estas foram realizadas através do Goo-
gle Meet e do Teams, pois em razão da atual situação de pandemia pela
covid-19 evitou-se o contato presencial. Antes de iniciar a entrevista, foi
informado as participantes que esta seria gravada para posteriormente
realizar transcrição de tal, salientando que em seguida esses documentos
seriam excluídos.
Iniciou-se a entrevista semiestruturada com apresentação das volun-
tárias e a partir de do roteiro de entrevista seguiu-se discussão sobre os
assuntos abordados. Após a realização das entrevistas, fez-se a transcrição,
constituindo um novo texto para construção das análises.

3.5 Procedimentos para análise das informações

Optou-se como método a análise de discurso, que trabalha com os


sentidos manifestados pelos sujeitos em suas respectivas falas. A análise
de discurso se configura por: 1) entender e identificar quais são as outras
vozes contidas nos discursos dos sujeitos da pesquisa (discursos sociais),
lendo os textos da transcrição das entrevistas; 2) identificar os entrelaça-
mentos entre os discursos de cada uma das participantes, pois se os sujei-
tos se constituem na alteridade e mediados semioticamente, observando
56

sobre quais sentidos são produzidos nos discursos dos diferentes sujeitos
convergem e sobre quais sentidos desses discursos divergem; 3) posicio-
nar socialmente os sujeitos, ouvindo-os a partir dos diferentes lugares
sociais ocupados e dialogicamente posicionados diante do pesquisador,
identificando e relatando os momentos de construção dialógica dos discursos
entre sujeito participante e pesquisador; 4) relacionar o texto produzido pelos
sujeitos (discursos), com o contexto cultural no qual este trabalho foi reali-
zado, seu momento histórico e lugar social, apresentando a as informações
coletadas na observação participante; e 5) constituir unidades de sentidos
as quais serão organizadas a posteriori e analisadas no texto da pesquisa.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


4. “Que bem mocinha”: sentidos de ser mulher e sexualidade

A partir da realização das entrevistas, entre as várias questões abor-


dadas, foi possível compreender os modos como as falas das participantes
denotavam o dinamismo entre o que pode ser falado, o que se consegue
explicar e o que é visto dentro do tema sexualidade, contrapondo-se ao
que não pode ser falado, explicado ou visto mas sabe-se que existe. Também
percebemos que essas situações do dizível-visível, proibido-invisibilizado
e indizível, também há o atravessamento da produção dialógica do discurso,
ou seja, quem fala e para quem é falado.A partir da leitura dos textos de
transcrição das entrevistas percebemos também a necessidade de manifes-
tar o que se torna indizível, ou seja, o que se apresenta além das estruturas
sociais possíveis de serem amarradas na linguagem e seus recursos que
não dão conta de explicar o fenômeno, afirmando assim a potência daquilo
que também escapa, sendo estes os caminhos pelos quais será construído
então o texto de análises pelas falas das participantes.
Foi solicitado à todas as participantes que descrevessem o que com-
preendem como sexualidade, dentre as características semelhantes e dis-
tintas apresentadas, vale destacar:
Barbie: “envolve a gente com a mesma pessoa, envolve a relação com
o outro, envolve a visão que a gente tem sobre a sociedade, sobre as relações,
sobre muitas outras coisas. Então desde a nossa orientação sexual, desde
nosso corpo antes disso, lá na infância a gente aprendeu sobre educação
sexual, quem pode tocar no nosso corpo e quem não pode. E assim ao
longo dos anos, na adolescência principalmente, pela nossa puberdade, e
até hoje é porque é um movimento constante de aprendizado”. Afirmando
a sexualidade como algo amplo, pessoal, sujeito a modificações, depen-
dente de relações sociais e estando presente desde a infância. Inclusive
apontando a regulação ocorrida através da educação sexual, que está para a
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 57

participante como um dispositivo de contenção, e responsabilização da mulher


sobre como esta deve resguardar seu corpo. Como o discutido durante o
tópico de fundamentação teórica, para Foucault (1988), o discurso sobre
sexualidade é disseminado em um sentido de conter esses corpos, reali-
zando o gerenciamento e monitoramento do desconhecido.
Sexualidade foi considerada também por Ana Bolena como: “essa parte
de se expressar, dessa liberdade de se sentir, de se sentir mulher, se tornar
mulher… de se poder, dentre as possibilidades, infinitas possibilidades de
ser mulher, poder se escolher como, como se portar”, e também por Marielle
Franco: “seria minha autoestima”. Utiliza-se a sexualidade como forma de
se expressar, pois esta traz consigo além do que se é possível dizer em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

palavras ou gestos, trata-se da estima da pessoa, seus desejos, gostos, sen-


timentos e condições reprimidas ou mal compreendidas pelo próprio ser.
Assegura-se que reconhecer sua sexualidade está relacionada a questões
de autoconhecimento e autonomia frente ao outro, tornando-a um dispo-
sitivo de poder ao qual a sociedade busca controlar. Esse controle ocorre
através de um novo modelo político, diferente de seus antepassados, que
buscavam o poder através da decisão sobre a morte, hoje a nova perspectiva é
baseada na necessidade econômica de corpos produtivos, buscando exercer
o controle através da vida, produzindo um corpo conforme regras morais,
sociais e políticas (Prado Filho; Trisotto, 2008). Dessa forma, conhecer o
próprio corpo através de uma perspectiva autônoma, é um empecilho ao
controle dos corpos, apresentando perigo a movimentação de discursos.
Essa ideia de poder exercido na vida, parte de um pressuposto de produção
tanto no corpo individual quanto no coletivo, e é chamada de “biopoder”
(Foucault, 1988).
É possível observar em histórias de vida distintas, relatos como o
de Joana D’arc: “eu sempre ouvia muito [...] da minha família né, que se
você não aprender a fazer as coisas, você nunca vai ter um cara que vai
querer você”, percebendo a educação como um dispositivo que vem tornar
viável a manutenção e disseminação de um discurso doutrinário, definindo
não só o que se é dito, como o que não se pode dizer. Esta reprodução é
visível em falas como:
Dandara: “fizeram toda uma reunião, específica falando sobre mas-
turbação, falando o quanto aquilo é errado fazer, porque você estava
adiantando as coisas que você só pode fazer com seu marido, quando você
estiver casada, e aquilo me assustou muito na época ”,
Afrodite: “eu tive primeiro namorado, que assim, eu fiz sexo, tava
tomando anticoncepcional e mais ou menos obrigaram que tinha que casar
com primeiro namorado sim [...] de escutar do meu pai que ninguém mais
vai querer namorar, vai querer casar”.
58

As falas acima representam um reforço da responsabilidade sentida


por estas mulheres em se manterem aptas, puras para instituição matri-
monial ainda hoje, pois historicamente era de incumbência exclusiva das
jovens refrear as investidas masculinas, conservando-se virgens até a
efetivação do matrimônio, tais ideias perpassadas por gerações, em dis-
cursos sobre o que se espera da mulher, do permitido à ela e o que deve ser
resguardado ao matrimônio. Por séculos a sociedade buscou moldar uma
figura da esposa ideal, onde apenas a mulher certa, sendo submissa, obe-
diente e discreta, merecia ser a mãe dos filhos e ocupar altar doméstico
(Del Priori, 2013).
Pelo fato de precisar adequar-se em seu meio social, é estimulada a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


reprimir seus desejos e calcular seus comportamentos, retirando parte de
sua individualidade para corresponder ao modelo pré-existente, visto em
Joana D’arc: “se você é uma mulher, a coisa que você menos quer ser
numa cidade pequena, é uma biscate, porque isso significa que ninguém
nunca vai te querer e que você vai ficar sozinha, e toda aquela ques-
tão ainda muita conservadora”. Esta imposição da mulher modelo, foi
influenciada por movimentos religiosos, descrito por Del Priore (1990),
como fabricação do conceito santa-mãezinha existente desde o período
colonial, que tratou de regulamentar corpos femininos através da trans-
missão de normas e valores a serem seguidos pela mulher, objetivando
também a eliminação de condutas sociais indesejadas de outras culturas
existentes na época.
Outra influência religiosa do período colonial pode ser percebida
através da fala de Maria Madalena, contando sobre a crítica que recebeu
de seu filho, por possuir filhos de diferentes pais: “Ele assim: você vai
ter três filhos com ele [homem que ela demonstrou interesse], com um pai
só. Não que nem você que tem três filhos de cada pai.” e em sequência
ela destaca: “Ele é criado comigo, um filho de cada pai julgando. Aí eu falei
assim, tá julgando a mãe amor?! [...] Na verdade, seu avô tem duas ex
mulheres e elas têm filhos com ele e seu outro avô também. Por que só a
mulher não pode ter filho com pai diferente?”. É visto a replicação de um
padrão de boa e santa mãe onde a igreja intitulava o dever do matrimônio
como forma de proteção à prole, dando “estado” à eles, uma vez que o
estado civil poderia ser visto como uma forma de obter poder. Dessa forma
repudiando às mulheres que se colocam à serviço de vários homens, e por
consequência, deslegitimando o fruto dessas relações, com uso da moralidade
para normalizá-las a serviço da igreja e governo. Sendo possível visuali-
zar o discurso eclesiástico, o qual impôs o matrimônio, simultaneamente
construindo o modelo de mãe (Del Priore, 1990).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 59

Em falas como as de Ana Bolena: “o maior choque foi de ter vindo


de família conservadora e ter reproduzido discursos bifóbicos” e Barbie:
“eu fui criada como uma menininha assim, uma criancinha, uma menini-
nha que veste vestido floral bonito, sapatinho, tiara, lacinho no cabelo…
Tinha uns comentários assim, como, senta direito, senta que nem mocinha
assim.” Percebe-se retratado o hábito social existente de padronizar os atos de
meninas em sua infância, além disso, nos discursos, é considerável a falta
de cuidados relacionados à espontaneidade para as crianças que se inseriram
em grupos sociais além da família e deveriam portar-se socialmente como
foram ensinadas em casa. Ressaltando que atualmente os corpos não só são
produzidos pelo discurso, mas também os educados conforme regras de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

normalidades e anormalidade que estão além da sexualidade, e definindo


a identidade deste como útil para o grupo que está inserido, a sociedade
em que vive (Prado Filho; Trisotto, 2008).
A partir da moralização desses corpos, deixam implícito a necessi-
dade de conter a mulher, em relação a princípios de como esta deveria
ser segundo o meio social, por medo de julgamentos ou demais violên-
cias, observadas nas falas de Medusa: “existe um certo horário que se tu
anda na rua, tu corre um sério risco de diversos crimes, assalto, estupro,
latrocínio, só pelo fato de tu ser mulher sabe” e Joana D’arc:“se você
for menina [...] qualquer passo que você der fora da curva, você é uma
puta, uma biscate”, assim como Maria Madalena: “meu ex marido fala,
eu sou muito risonha [...] ai meu ex disse e eu percebi que só de tá rindo
eles já se passam”.
Para Foucault (1988), esses discursos normatizadores, distinguem-se
em dois polos, o da verdade, sobre o que se é conhecido e possível de
explicar e o da não verdade, como censura por não haver recursos que
expliquem, tornando-o perigoso, de modo onde tudo que é categorizado
como não verdade, precisaria ser observado e corrigido. Assim, o não com-
preendido é visto como perigoso, com necessidade de se vigiar, adequando
normas de conduta para um padrão social a fim de preservar a aparição
do desconhecido e com isto inicia- se uma imposição de validar através
de símbolos construídos o que será útil socialmente, produzindo através
de discursos sobre sexualidade, efeitos de poder no coletivo.
A partir dessa perspectiva foi possível reconhecer através das falas,
não só a identificação do que não se pode dizer, como foi visto por Maria
Madalena: “minha mãe não me ensinou nada”, determinando certa cen-
sura. Mas também a convocação quanto ao autoconhecimento como dispo-
sitivo para o resgate da liberdade, exemplificado por Afrodite: “enquanto
não tiver esse autoconhecimento você não vai se respeitar, não saber o que
60

gosto e o que não gosto, e isso vai ferindo alguma área da sua vida que não
se conhece porque aceita qualquer coisa né”. Esta renúncia surge a partir da
identificação de quem é autorizado a falar, à quem o discurso é vedado, e
de que forma ocorrem quando permitido a circulação, como observado por
Joana D’arc: “já é naturalizado que os homens se conheçam, se masturbem,
desde muito jovenzinhos e tudo mais... só que mesmo assim quando se fala
sobre, é sempre num tom de piada né, e agora sobre meninas, geralmente
nem se fala, né! A gente não, não entende que a gente pode se conhecer
e se tocar, e conhecer o próprio corpo, e descobrir os nossos gostos”.
As falas acima reforçam a perspectiva do campo do prazer como
direcionada à masculinidade, enquanto a mulher está para o desejo ape-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nas como um objeto a ser desejado, logo, tomar conhecimento sobre si
e seus desejos, é fazer uso do campo proibido do desejante, ao qual não
faz parte do papel social da mulher, que se trata de ser puritana, delicada,
cuidadoras, o pudor feminino é tido como alimento ao desejo masculino (Del
Priore, 2011). O discurso proposital de contenção, direcionado às mulheres,
regulamenta corpos, de modo a torná-los docilizados, buscando atender
as demandas sociais na manutenção de um padrão, e na própria continui-
dade da sociedade, retirando de campo os desejos pessoais. Del Priore
(2011), ao descrever o papel da mulher na história, evidencia que estas
não poderiam demonstrar conhecimento sobre o ato sexual, pois apenas
puras e castas seriam desejadas.
O relato a seguir traz uma feminilidade construída socialmente,
devendo existir delicadeza e submissão, enquanto o toque em seu corpo
que lhe daria autoconhecimento é evitado, pois o corpo foi apresentado
como proibido, Dona Hermínia: “porque a menina (...) o aprendizado
dela é assim, se recolher, se preservar, ser recatada, não se mostrar demais
e isso também vai pra masturbação né, [...] é errado se tocar”. Apesar de
inicialmente no Brasil, os povos indígenas não atribuírem pudor à exposição
do corpo, ao implementar o catolicismo, este logo tratou de apresentá-lo
como proibido. Cobrindo assim, o corpo da mulher, como uma maneira de
evitar a instigação do desejo masculino, uma vez que o corpo feminino era
reconhecido como algo demoníaco, que levava o homem a cometer o pecado
carnal e distanciar- se dos objetivos matrimoniais, e por consequência da
igreja. Assim, além de tampá-la, a afastou de seu próprio corpo. O acesso às
genitálias femininas era reconhecida apenas para reprodução e maternidade,
e tudo o que escapava a isso tornava o órgão feminino como uma espécie
de “porta do inferno” (Del Priore, 2011).
Antigamente, os homens buscavam mulheres puras e reservadas
para exibi-las como suas esposas, embora eventualmente procurassem
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 61

por prostíbulos para satisfação de desejos sexuais. Essa percepção passou


por transformações ao longo do tempo, ainda se encontram resquícios
da busca pela mulher idealizada para o matrimônio, entretanto, os homens
passaram a desejar também o padrão do pornô dentro do casamento, espe-
rando que as esposas reproduzam seus desejos de ideias sensacionalistas
de um ato sexual aprendido através da pornografia. A problemática sobre
o fato mostrado, se dá em razão de que apenas um público a consome e é
beneficiado por essas produções. Conforme criticado por Dona Hermínia:
“ninguém faz uma historinha no pornô em que o homem tá esfregando o
banheiro assim, aí chega a mulher lá de roupão e para a faxina, ninguém
faz um pornô assim [...] muito das histórias é do adultério, da mulher
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

casada… ou algo desse gênero, sempre a mulher pintada de bruxa má,


da feiticeira, enfim”. Nesse exemplo, é visto onde se apresenta a sexua-
lidade feminina e como esta é distorcida, além de ser desenvolvida para
um público masculino.
A ideia continua com Dandara: “os homens podem ver pornô, desde
pequeno às vezes eles são até incentivados a isso, é referência deles, e mulhe-
res não se identificam com isso, com o sexo propagado do pornô, e então,
os homens acham demais né, e às vezes até querem reproduzir coisas que
são ridículas” rebatendo a temática sobre a quem é incentivado realizar o
ato sexual, mostrando também uma contraposição do quanto se é permitido
conhecer a respeito e a exigência do que a mulher precisa realizar, sendo que
Lilith: “ as mulheres [...] às vezes não sabem o líquido que sai o que é, não
sabem que elas tem que tocar, o que é clitóris Considerando a fala anterior,
é válido ressaltar a visão de que o toque de masturbação é exclusivamente
permitido aos homens e proibido socialmente para mulheres, afirmando
a discussão anterior sobre quem permite e ensina, enquanto para mulheres
quem nega a existência do assunto.
Outro fator a se observar, trata-se da beleza e o impacto desta na sexua-
lidade da mulher. Disfarça-se como um dispositivo de poder, mas é de fato
um dispositivo de uniformização, demonstrado no relato: Lilith: “real-
mente a sociedade, a mídia, eu acho com essa repercussão que a internet
tomou, isso é bom mas traz malefícios às vezes, de trazer a mulher perfeita,
que fica na estética, que tá sempre na academia com bunda empinada e
siliconada, cria muito uma competição invisível. A gente não vê mas tem
que estar sempre perfeita”. Esse falso poder oferecido pela sociedade
através de questões de beleza movimentam o capitalismo, pois os produ-
tos de beleza, academias, roupas contemplam o ciclo de imagem social
e necessidade de enquadrar-se em tal. Quando os cuidados relacionados
à culturação da beleza começaram a ser acessíveis para todas as classes,
62

conjuntamente ocorreu que feiúra seria algo culpável, por assimilar a


negligência, então não compactuar com a beleza padrão estaria relacio-
nado a ser uma mulher desleixada, mais um julgamento a qual a mulher
precisa evitar, assim, se responsabiliza por sua imagem, simultaneamente
fazendo crescer estereótipos frente a isso (Berger, 2007).
O culto à beleza passou por transformações históricas, conforme a
demanda social apresentada. De início, apresentava-se o padrão dentro da
beleza espiritual e religiosa, sendo esta transparente, remetendo à pureza do
corpo e assim contemplando a semelhança com Deus, negando mudanças,
pois tudo o que este criava era perfeito. Em tempos distintos, moveu-se o
interesse com a beleza da força, pois haviam períodos de guerra constante-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mente e com isso os músculos tornam-se atraentes. Hoje, a beleza corporal
é culturalmente formada, mas a base inicial mantém-se em reprodução,
como por exemplo o cabelo loiro, que teve início pela criação e circulação de
bonecas em tempos antigos, mas é visível que muitas mulheres continuam
pintando seus cabelos em tal tonalidade. Este cabelo além de tudo deveria
ser liso, pois crespos e ondulados representavam traços de negros, logo,
eram mal vistos socialmente em torno deste preconceito (Berger, 2007).
As falas expõem a interferência da mídia frente à padronização, visto
com Joana D’arc: “e a gente vê que isso é muito barrado pela sociedade,
em um sentido de que a mídia constrói tudo por traz. As redes sociais te
vendem produtos, coisas a partir do fato de você se odiar, então também
entra na questão capitalista mesmo, eu diria, é vendável você se odiar.”. O
sucesso de categorizar a beleza se deu com influência midiática, iniciando
com modelos de passarela e revistas, levando a preocupação conjunta
relacionada à moda e à vontade de estar dentro do que se considerava
moderno, pois o que seria ultrapassado remetia à feiura, isto em roupas
ou no próprio corpo, como exemplo as rugas, que remetem a chegada da
velhice, algo repudiado socialmente (Berger, 2007).
Visualizar-se fora dos padrões é reconhecido como uma destituição de
poder, tornando- se vulnerável, observado em Dona Hermínia: “a vó do
meu marido tem princípio de alzheimer e eu fui na casa dela com o meu
bebê e ela tocava meu peito e: nossa, ta murchinho né, caiu. E eu senti
aquilo com uma dor”. O apreço em se preocupar com ser bela, iniciou-se
em razão do prestígio social que isso fornecia à mulher, pois assim ocupava
lugares junto de seus maridos, relacionando também a busca pela conquista de
uma posição social, sendo essa a mulher casada (Schumps, 1997 apud Berger,
2007). A continuidade dessa preocupação, pode ser pensada pelo incentivo a
conquistar a aparência entendida como perfeita, por existirem recursos que
os contemplem, como academias, plásticas e maquiagens (Berger, 2007).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 63

É possível relacionar a crescente influência da estética com o desen-


volvimento da economia, onde com o aumento de empregos e consequen-
temente o valor de salários, é estimulado o consumismo, visível neste a
exposição dos corpos como algo a ser comprado (Berger, 2007), observado
com Eva: “a mídia mostra o corpo perfeito, pele perfeita, cabelo perfeito e
a gente quer ser igual a outra, porque ela tem pele bonita, cabelo bonito
e a gente quer ser igual a pessoa”.
Entendendo a sexualidade dentro da autoestima e como esta é fundamen-
tada através da educação recebida desde a infância do ser, é reafirmado o
controle imposto que priva as particularidades dentro dos comportamen-
tos a que se deve reproduzir, as falas e também a imagem física, onde as
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

características individuais são desvalorizadas. O corpo é refletido em sua


identidade social, assim, para inserção em seu meio é preciso que esteja
similar às características do grupo desejado, podendo estas as semelhanças
relacionarem-se ao físico também (Prado Filho; Trisotto, 2008), explícito
em Dandara: “eu alisava meu cabelo quando eu era adolescente, justa-
mente para enquadrar num padrão, foram vários motivos, preconceitos
que eu já ouvi quando era nova. [...] Aí na escola eu era a única, tinha
ouvido de várias pessoas que eu ia ficar muito mais bonita com cabelo liso,
que ia ser mais fácil de cuidar e tudo, e eu fui caindo nisso”, relatando
também que “não existia produtos de cabelo para cabelo enrolado [...]
simplesmente eu tive que ficar indo para o Rio de Janeiro, porque lá tinha um
salão específico para cabelo enrolado [...]”. Onde a dificuldade de acesso
à cuidados de características que não se voltavam ao padrão estabelecido,
reforçava a necessidade de modificar-se, como visto no exemplo do alisa-
mento de cabelos, para que facilitasse cuidar dos mesmos.
A falta de produtos é semelhante a questões das roupas, onde mulheres
magras são prejudicadas, como Leila Diniz fala: “eu tenho que comprar roupa
na sessão infantil… é muito triste isso”. O que também acontece com corpos
maiores, Marielle Franco: “não é qualquer loja que encontra roupa, minha
calça é 44, não é nem um número tão maior, é uma bunda brasileira e já tive
que sair de loja porque o número maior era 42 e o 42 era aquele tamanho
pequeno. Já evitei muito ir em lojas por ficar mal com minha aparência.”
As causas sociais que se opõem às questões de padronização, enxer-
gam o sofrimento causado no psicológico dessas mulheres, e buscam valo-
rizar a beleza contida em corpos não padrões e expor o quão prejudicial
é a não aceitação de seus biotipos, contudo, criou-se outra problemática
onde para afirmar uma dor nega-se a outra, explicado em: Leila Diniz:
“Isso é muito chato, desconfortável, mas parece que não é meu lugar de
fala, porque as pessoas que tem mais peso sofrem mais do que eu que
64

não tenho e quando falo que me sinto desconfortável, as pessoas que têm
sobrepeso já começam a revirar os olhos, mas cara, dói pra mim, não tô me
fazendo de vítima, é um sofrer que existe sabe, mas aí eu fico na minha pra
não gerar discussão, parece uma competição de dores.” Estabelecendo
assim uma nova rivalidade, depois de conflitos com a sociedade em um
todo e outras brigas internas em seu psicológico, existe uma necessidade
de validar seu sofrimento de modo que outros pareçam menores, desesta-
bilizando novamente o emocional da mulher, que hostilizou seu próprio
corpo anteriormente e reproduz tais danos com o de outras, repetindo o
ciclo de categorização.
Esses movimentos de aceitação estão ganhando visualizações entre

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


as redes sociais, possibilitando uma mudança de pensamento, contudo, os
reforços vão além das mídias, produzidos pela família também, demons-
trado em falas como de Ana Bolena: “às vezes eu já ganhava roupas com
números menores, minha família sabe que eu não visto aquele número, aí
eu falava que ia trocar e eles falavam pra guardar para aquele ser meu
objetivo” conduzindo a mulher em uma obrigação de enquadrar-se diante
das referências padrões, pressionada a agradar o outro com seu corpo; e
Medusa: “se você está com uma pessoa, e essa pessoa te imagina lá, 100%
sem pelos, cabelo top, corpo top, sem estria e nem celulite, então para
algumas mulheres pode ser desanimador.” Mulheres se preocupam com a
imagem sexual que os homens possuem sobre elas durante o ato, é iden-
tificado que problemas com libido podem estar relacionados também ao
medo de não corresponder a vontade do outro (Goldenberg, 2004 apud Berger,
2007). A exposição do corpo é vista como constrangimento, em outro exemplo
além do sexo, como ir à praia de biquini ou maiô. Estas mulheres podem
se sentir observadas por homens e até outras mulheres e sentem medo de
críticas negativas em relação a sua aparência (Berger, 2007).
Para falar sobre aceitação do próprio corpo, ressalta-se a fala de Bar-
bie: “Tem umas mulheres que são: viva bem com o seu corpo, se aceite
como você é, e aí é cheia de cirurgia plástica, botox, isso e aquilo, mas diz:
seja você mesma, seja feliz” em que o sujeito é visto sendo polifônico, com
vozes controversas, onde afirma-se a necessidade de aceitação, enquanto se
submete a cirurgias para mudanças na aparência. Além disso, a demanda a
qual a sociedade expõe é utilizada para marketing no capitalismo, mesmo
que nesta tenha a própria desconstrução, como observada na fala anterior.
Com a mídia reforçando a perfeição em fotos de modelos e marcas
consumidas, é visto como um horror exibir em fotos nas redes sociais
algo socialmente recusado no corpo, mas ao ouvir Medusa: “eu evito
ficar vendo foto, de Instagram, das blogueiras, porque eu sei que não é
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 65

real” e Ana Bolena: “eu ainda caio muito no estereótipo de padrão de


beleza, de querer ser como elas, mas elas nem são reais também, então
eu tenho que ter um alarme mental de olhar pra uma foto de uma pele
que parece de bebê e querer que a minha seja assim, mas a da pessoa
também não é” é visto o fato de algumas publicações de fotos editadas para
disfarçarem o que não é entendido como belo, transformando as pessoas
da imagem como não reais, pois são produtos de edição, diferente do que
se é pessoalmente.
As marcas e produtos que propagam a beleza sem defeitos negam
a exibição de imperfeições, mesmo compreendendo que todos os corpos
possuem cicatrizes. Pensando em relação à exposição com críticas, ao
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ver roupas menores, por exemplos shorts e cropped, como atualmente


acontece em razão da moda, obtém-se uma maior exposição do corpo, ten-
denciando este como algo a ser olhado, e para ser visto ou apreciado é con-
denado imperfeições (Berger, 2007). Manter fotografias na rede social com
marcas e cicatrizes que culturalmente são criticadas, é possível refletir
com a questão citada anteriormente sobre negligências e faltas de cuidado,
gerando preconceitos a esta mulher que expõe o que é considerado feio
para outros observarem, pois há recursos que alterem e ocultem o que não
deveria ser mostrado.
Em razão das problemáticas e pressões sociais, o processo de
aceitação, com maior conhecimento perante o próprio corpo, pode ser
angustiante, por buscar amar características que são enxergadas como
imperfeições, exposto por Medusa: “Então, eu gosto de dizer que às vezes
eu to em uma montanha russa, às vezes eu estou aqui, me achando gata,
super gostosa, e é isso aí, mas às vezes eu caio, tô lá na sombra do fundo
do poço, chorando horrores, mas depois sobe de novo”. Essas constantes
alterações são fruto da própria constituição do sujeito, o qual está sempre
sendo construído pela sociedade e a construindo conjuntamente. Em razão
da mediação semiótica, está se apropriando do que é do social, mas este
também se modifica a todo momento (Zanella et al.., 2006).
Durante a entrevista, três participantes relataram espontaneamente
situações de abusos e assédios sexuais sofridos que perpassaram questões
de abuso sexual pelo tio durante a infância, tentativa de abuso sexual por
mais de um homem durante uma festa e um assédio sexual ocorrido em
ambiente de trabalho, o qual foi denunciado. Infelizmente, pensar sobre
sexualidade feminina é também pensar sobre violências sexuais e importuna-
ções, onde homens sentem-se no direito de invadir um corpo e obter prazer
através do sofrimento de mulheres ou de crianças que no momento não
sabem o que estaria acontecendo. Em ambas as situações, as participantes
66

relataram receio na decisão de contar sobre o abuso para familiares e autori-


dades, devido àa possibilidade de serem desacreditadas, inclusive, uma delas
em específico, ao procurar apoio de psicóloga, não se sentiu acolhida por
ser questionada diversas vezes se estava alcoolizada, ao invés de ofere-
cer suporte psicológico, gerando reflexão sobre como a preparação dos
profissionais gera impacto na vida das pessoas. Foi observado também, em
relatos da estudante de fisioterapeuta, em que suas colegas de sala nega-
vam a necessidade de disciplinas práticas relacionadas aos órgãos sexuais
feminina por sentirem desconforto em relação à área.
Percebemos aqui a questão da necessidade de colocarmos em pauta
as dificuldades ainda encontradas pelas mulheres participantes da pesquisa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em lidarem com a temática da sexualidade e como, ao haver essa proibi-
ção/dificuldade/apagamento, acabamos por estar vulneráveis a situações
de violência e abusos.

5. Considerações Finais

A presente pesquisa respondeu ao questionamento sobre quais os impac-


tos dos sentidos de ser mulher, possibilitando às acadêmicas-pesquisadoras
a ampliação da percepção das problemáticas que envolvem esses sentidos,
dessa forma trazendo a percepção sobre novos problemas a serem discu-
tidos/investigados. Referente a esses impactos, foi possível perceber que
a sexualidade feminina está presente em diversos fatores da vida da mulher,
intensificando esses sentimentos de ser mulher dentro da sociedade atual.
Os impactos gerados por este, estão presentes nas experiências de todas as
mulheres entrevistadas, dentre eles podemos destacar como principal, a
perda da autonomia da mulher promovida, em muito, por uma necessidade
social de normatizar esses corpos femininos, através de uma política de
biopoder, que na busca da construção deste corpo produtivo, suprime as
singularidades, reforçando dessa forma a discussão sobre autoconheci-
mento em combate a esta regulação.
Outra consequência observada diz respeito às dificuldades encon-
tradas pelas mulheres de posicionarem seus sentidos diante do que já se
está dito. Esses discursos repetidos incansavelmente são internalizados na
vida da mulher, de modo que essas se sentem culpadas de romperem com
alguns padrões e, quando tentam, acabam muitas vezes reproduzindo ainda
comportamentos padrões ou sendo julgadas quando destoam, uma vez que
esse discurso também molda o corpo coletivo. A busca pela satisfação
feminina, por mais que tenha apresentado avanços, ainda perpassa pelos
lençóis do pudor, de modo que falar sobre seria o caminho da libertação,
mas depende de uma rede disposta a discutir.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 67

Os sentidos de ser mulher construídos pelas voluntárias, encontra-se


acompanhado de percepções perpassadas de pais para filhos, e ressignifi-
cações que estas fizeram e vem fazendo a partir deste, apresentados sempre
de forma a renunciar um poder, o autoconhecimento, a relação que esta tem
consigo mesma, e com o outro.
A pressão social causada pelos padrões de beleza, tem se tornado mais
evidentes a partir do avanço da tecnologia e mídias sociais, uma vez que a
imagem de como deve ser a mulher perfeita, são encontradas mais facil-
mente, e de forma recorrente, dispostas na palma da mão. Esta competição
de beleza não se trata apenas de encontrar um marido, como ocorria com
nossas antepassadas, agora o foco é atrair audiência, visibilidade através
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de “likes”, ocasionando uma competição desenfreada de postagens do


corpo perfeito, pois encontrar-se fora dos padrões submete a mulher a
uma desclassificação social. Uma vez que essa pressão se encontra bem
mais recorrente através da tecnologia, a possibilidade de adoecimento
deve ser vigiada com cautela.
Ao longo da pesquisa, houve uma ampliação da percepção das pro-
blemáticas questionadas inicialmente, uma delas trata-se do fato de que
durante as entrevistas, as voluntárias trouxeram sua orientação sexual
mesmo que esta não tenha sido questionada. Mulheres lésbicas, bissexuais
e pansexuais afirmaram sua sexualidade a partir desta pontuação e também
deixaram implícito a necessidade de que é preciso que a sociedade com-
preenda que ser mulher também é estar dentro de outras orientações além
da heterossexualidade. Na análise, não foi utilizado tal temática, tendo em
vista que se criticou a categorização e assim, estaria novamente encaixan-
do-as em características que se distinguem. Houve a percepção de novas
problemáticas não atendidas por esta pesquisa, pois precisou-se delimitar um
assunto, trazendo a discussão de uma perspectiva ainda dualista, mulher
contrapondo-se a homem, e ainda discutindo mulher apenas de uma pers-
pectiva cisgênero, mas vale ressaltar que as pesquisadoras reconhecem as
mulheres transgênero dentre as infinitas possibilidades que é ser mulher.
Mas, é válido ressaltar que tal problemática deve ser tema para realização
de mais pesquisas.
Assim como citado durante a relevância pessoal da pesquisa, parte
dos artigos sobre sexualidade feminina são escritos por homens, o intuito
inicial era de se utilizar autoras mulheres para referenciar, contudo, pela
falta de disponibilidade, acrescentou-se tais autores na fundamentação, sendo
outra temática para levantamento de novas pesquisas.
Sobre o desenvolvimento da pesquisa, houve empolgação a respeito
de como seria realizá-la. Para isso, discutiu-se em equipe sobre o assunto,
68

com troca de experiências sobre crenças limitantes, falas sobre desconstru-


ção e um aprendizado a partir da fala da outra. Essa troca de experiências,
também foi vista nas entrevistas, onde em forma de conversa, muito se
refletiu a partir das falas de cada participante, sendo interessante conhecer
outras histórias e como muitas se assemelham a experiências compartilhadas
pelas acadêmicas-pesquisadoras.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 69

6. REFERÊNCIAS
ALVES, Jessica. Deusa Afrodite. 2019. Disponível em: https://www.edu-
camaisbrasil.com.br/enem/religiao/deusa-afrodite. Acesso em: 11 jun. 2021.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

BERGER, Mirela. Corpo e identidade feminina. 2006. 295 f. Tese (Dou-


torado) - Curso de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Antropologia, USP, São Paulo, 2007.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

DECARLI, Mariana Oliveira. Métodos: qualitativo, quantitativo e misto.


In: DECARLI, Mariana Oliveira; SANTOS, Gessika Mayara dos; SAN-
TOS, Jandira Pereira dos; DORETO, Daniella Tech; AZEVEDO, Vanessa
Lúcia Santos de. Fundamentos da Pesquisa em Serviço Social. Porto
Alegre: Sagah, 2018.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia


Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: http://
www.dudh.org.br/wpcontent/uploads/2014/12/dudh.pdf. Acesso em:
out. 2020.

DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades


e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: Edunb, 1990.

DEL PRIORE, Mary. Histórias e conversas de mulher. Editora Planeta


do Brasil, 2013. DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas. Editora Planeta
do Brasil, 2011.

DEL PRIORE, Mary. Histórias e Conversas de Mulher. São Paulo:


Planeta, 2013.

FOUCAULT, Michel. A História da sexualidade: a vontade de saber.


Rio de Janeiro: Graal, 1988.

GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6. ed. São Paulo: Editora


Atlas S.A., 2008.

HYPENESS, Redação. Medusa foi uma vítima de violência sexual, mas


a história a transformou em monstro. 2019. Disponível em: https://
70

www.hypeness.com.br/2019/06/medusa-foi-uma-vitima-de-violencia-se-
xual-mas-a- historia-a-transformou-em-monstro/. Acesso em: jun. 2021.

LEITE, Helena. Minha Mãe É Uma Peça: 6 características de Dona


Hermínia que toda mãe tem. 2020. Disponível em: https://paisefilhos.uol.
com.br/familia/minha-mae-e-uma-peca- 6-caracteristicas-de-dona-hermi-
nia-que-toda-mae-tem/. Acesso em: jun/2021.

LUCAS, Doglas Cesar; GHISLENI, Pâmela Copetti. O corpo que fala:


a (im) possibilidade de regulação das novas experiências corporais pelo
direito. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v. 17, n. 2,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


p. 493-526, 2016.

MAHEIRIE, Kátia. Constituição do sujeito, subjetividade e identidade. Inte-


rações, São Paulo, v. 7, n. 13, p. 31-44, jun. 2002.

MARTINS, Geiza. Conheça 15 mulheres feministas que marcaram a


História. 2018. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/
redacao/2018/04/24/conheca-15- mulheres-feministas-que-marcaram-a-
-historia.htm. Acesso em: 11 jun. 2021.

MEAD, Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2000.

MOLON, S. I. Notas sobre constituição do sujeito, subjetividade e lingua-


gem. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, out./dez. 2011.

PEIXOTO, Leonardo. “Quem mandou matar Marielle?’ - uma conversa


com Luyara Franco”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28,
n. 3, e72525, 2020.

PETTI, Carin Homonnay. A execução de Ana Bolena: teria realmente


sido adúltera? 2019. Disponível:https://aventurasnahistoria.uol.com.br/
noticias/reportagem/execucao-ana- bolena-adultera-traicao.phtml. Acesso
em: jun. 2021.

PINO, Angel L. B. Processos de significação e constituição do sujeito. Temas


psicol., Ribeirão Preto, v. 1, n. 1, p. 17-24, abr. 1993.

PRADO FILHO, Kleber; TRISOTTO, Sabrina. O corpo problematizado de


uma perspectiva histórico-política. Psicologia em Estudo, [S.L.], v. 13,
n. 1, p. 115-121, mar. 2008.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 71

PORTILHO, Gabriela. Quem foi Lilith, a primeira mulher de Adão.


2015. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/teoria-da-
-conspiracao-lilith-a-primeira-mulher-de- adao/. Acesso em: 11 jun. 2021

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte (MG): Letra-


mento, 2017.

SIMILI, Ivana Guilherme; SOUZA, Michely Calciolari de. A beleza das


meninas nas “dicas da Barbie”. Cadernos de Pesquisa, [S.L.], v. 45,
n. 155, p. 200-217, mar. 2015. FapUNIFESP (SciELO). DOI: http://dx.doi.
org/10.1590/198053142878.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação


& realidade, v. 20, n. 2, 1995.

SOUZA, Natália Salomé de; PEREIRA, Vinícius Carvalho. A escrita da


mulher/a escrita feminina na poesia de Maria Teresa Horta. Rev. Estud.
FemFlorianópolis, v. 26, n. 2, 2018.

VEIGA, Edison. O mistério sobre quem realmente foi Maria Madalena.


2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43381775.
Acesso em: 11 jun. 2021.

ZANELLA, Andréa Vieira et al. Relações estéticas, atividade criadora


e constituição do sujeito: algumas reflexões sobre a formação de professo-
res(as). Cad. psicopedag., São Paulo, v. 6, n. 10, 2006.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ENTREGADORES DE APLICATIVO: um
estudo com trabalhadores do alto vale do Itajaí
Matheus Braciack
Yuri Eller Verzola

1. Introdução

Até 2019, o número aproximado pelo IBGE de pessoas que trabalhavam


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

para aplicativos no Brasil era de 4 milhões. Com a decorrência da pandemia


do Covid-19, este número só aumentou. Isto fica evidente ao ver que entre
março e junho de 2020 só a plataforma iFood recebeu quase 500 mil novos
cadastros (Souza; Santana, 2021). O trabalho de entregas por aplicativos pos-
sui características próprias, pautadas por uma grave precarização que estes
trabalhadores experienciam para obter uma renda que muitas vezes é insufi-
ciente para o sustento de suas necessidades básicas. Entre esta categoria de
trabalhadores, é normal a existência de jornadas de trabalho diária que beiram
às 12h, sem nenhum auxílio ou segurança em decorrência de alguma eventua-
lidade durante a execução de uma entrega (Filgueiras; Antunes, 2020). Estas
características irão, consequentemente, trazer implicações para a saúde do
trabalhador, que vivenciam uma rotina que se baseia em trabalhar e assumir
riscos o tempo todo. Assim, esta pesquisa busca estudar quais são as relações
entre as características que o trabalho plataformizado impõe a estes trabalha-
dores e o sofrimento psíquico consequente deste trabalho.
Conceituar o neoliberalismo é uma tarefa árdua. Isto porque apesar de
se tratar de um modelo econômico existente no modo de produção capita-
lista, é também uma engenharia social que busca intervir na produção de
subjetividades e conflitos de uma sociedade (Safatle, 2020). Assim, existe no
pensamento neoliberal a construção de uma ideologia que busca generalizar a
lógica empresarial na produção de subjetividade do corpo social, resultando
na ascensão de discursos que promovem a individualização e que colocam
o homem como um “investidor de si mesmo”. É a partir da extensão do dis-
curso de mercado a outras esferas da vida social que o neoliberalismo cresce,
uma vez que a concepção destas ideias é parte fundamental na manutenção e
progressão deste modelo econômico (Brown, 2007).
Na tentativa de tecer um conceito sobre o que é trabalho, evoca-se as con-
tribuições de Karl Marx (2020) sobre o tema. Para o teórico, o trabalho é um
processo entre o homem e a natureza, uma forma de controlar a matéria natural
através das disposições físicas do homem. Porém, a questão fundamental do
74

trabalho para o autor é que o homem, no momento em que modifica a natureza


externa através da utilização de sua corporeidade, ele modifica-se a si mesmo
no processo. Desta maneira, utilizando-se de um exemplo formidável, Marx
(2020, p. 255) diz “[...] o que desde o início distingue o pior arquiteto da
melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes
de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um
resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do
processo, ou seja, um resultado que já existia idealmente”.
Assim, ainda pensando sobre a questão do trabalho, Marx (2020) define
que o que distingue cada época é a forma como as coisas são produzidas. Ou
seja, é o seu modo de produção. É através desta comparação que se pode ter

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


acesso às condições sociais do trabalho e suas implicações em determinados
momentos históricos.
Sobre esta questão, é pertinente discutir previamente os aspectos que
estão na gênese do liberalismo clássico e que continuariam a existir no neo-
liberalismo. Ao se pensar no conceito de liberalismo, trata-se de uma linha
de pensamento que tem a liberdade individual como questão central de seu
funcionamento e que possui, por exemplo, figuras como John C. Calhoun e
John Locke entre os principais autores. Porém, construir um raciocínio crítico
sobre a teoria passa também por questionar posicionamentos e ações desses
mesmos escritores. Neste sentido Calhoun salienta, por exemplo, que a escra-
vidão dos povos era um bem positivo e que os escravos eram uma forma de
propriedade legítima e garantida pela Constituição da época (Calhoun, 1992
como citado em Losurdo, 2006). Há de se salientar que a defesa da escravidão
é algo recorrente entre os teóricos do liberalismo clássico, como por exemplo
em Francis Hutcheson (mestre do liberal Adam Smith). Apesar de Hutcheson
proferir palavras que vão contra a escravidão de cunho racial e hereditária, ele
salienta que a escravidão dos povos mais “humildes” da sociedade pode ser
algo benéfico, sendo um castigo para aqueles que não conseguem sustentar
a si e a sua família através do trabalho útil (Davis, 1971 citado em Losurdo,
2006). Assim, fica o questionamento: quem estaria incluído nessa premissa
da liberdade individual como fundante do pensamento liberal?
Dito isso, uma das concepções fundamentais que autores do liberalismo
clássico introduzem é a interpretação do mundo e das relações como um
grande mercado, em que a “razão humana” da liberdade encontra o capitalismo
como um modelo natural dessa forma de agir no mundo, justificando certas
ações, já que seria algo espontâneo do homem. Assim, através desta concepção
de um homo economicus, a vida se transforma em uma constante busca pelo
acúmulo de capital e a operações de trocas e rentabilidade (Safatle, 2020).
Somado a esta questão, existe uma falsa ideia construída no senso comum
de que o neoliberalismo se trata da ausência ou da intervenção reduzida do
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 75

Estado na agenda de um país. Neste quesito, se comparado com o liberalismo


clássico, o modelo neoliberal possui uma intervenção estatal ainda maior.
Portanto, cabe questionar quais são as esferas que o Estado busca intervir.
Faz parte dos objetivos do Estado neoliberal, por exemplo, construir uma ree-
ducação que possibilite a internalização coletiva da racionalidade econômica
como a única possível (Safatle, 2020). A exemplificação disso entra na famosa
frase de Margareth Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido que adotou
e defendeu medidas neoliberais: “Economia é o método. O objetivo é mudar
o coração e a alma” (Thatcher, 1981).
Outro ponto que caracteriza o neoliberalismo é a forma como este modelo
econômico afeta as relações de trabalho no mundo, corroborando para que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ocorra uma forte precarização trabalhista em diversos setores. Apesar de hoje


isto estar mais visível do que nunca, a presença de discursos liberais que pau-
tavam a “especialização flexível” ocorre desde a década de 1970-80. Assim,
o trabalho precário deixou de ser exceção para se tornar regra na realidade de
milhares de trabalhadores. E no lugar dos direitos trabalhistas que buscavam
garantir um mínimo de segurança à classe trabalhadora, deu-se espaço para
longas jornadas de trabalho e maiores riscos ao trabalhador, em prol de romper
com as barreiras (direitos e leis trabalhistas) que limitam a possibilidade de
uma acumulação ainda maior de capital (Praun; Antunes, 2020).
Com o advento desta precarização das relações de trabalho trazidas pelo
neoliberalismo e com o auxílio de tecnologias de informação, surgiram nos
últimos anos uma série de empresas que buscam ofertar serviços que possuem
grande demanda, utilizando mão de obra barata e impondo as condições de
trabalho. O nome para tal fenômeno se popularizou como uberização ou
trabalho plataformizado, fazendo alusão a inúmeros serviços que ocorrem
através do uso de aplicativos para celular. O termo provém da entrada da
empresa Uber no mercado, porém não se limita somente a esta empresa ou
se inicia a partir dela. A utilização do termo é referente às características que
existem e que se modificam com a inserção destes aplicativos de serviços,
tais como novas formas de controle, gerenciamento do tempo, organização
do trabalho e distribuição desigual de renda (Abílio, 2020).
Uberização, portanto, é um processo decorrente da flexibilização e infor-
malização de setores trabalhistas providos através de regulação estatal, uma
vez que é o Estado quem possibilita esta destituição de direitos trabalhistas.
Assim, há neste fenômeno uma forma de trabalho que preza pela individualiza-
ção e invisibilidade do trabalhador, transferindo custos e riscos aos entregado-
res, livrando as empresas de qualquer responsabilidade perante acontecimentos
que ocorrem nas jornadas de trabalho (Antunes, 2020). Nesta modalidade de
trabalho, Abílio (2020 como citado em Masson et al.., 2021) ressalta que além
desta forma de trabalho ser pautada por um grande gerenciamento algorítmico
76

através do uso de dados de usuários e trabalhadores, existem outras quatro


questões centrais que auxiliam nesta (des)construção de forma de trabalho,
sendo estas: 1. A concepção de um trabalhador sem direitos legais e contra-
tuais; 2. O acesso a um enorme número de trabalhadores disponíveis, já que
não há uma regulação de horário para exercer o serviço; 3. A formulação por
parte da empresa para que ela não conste juridicamente como uma contratante,
mas como uma “mediadora” entre restaurantes e entregadores; e 4. A perda
de um caráter profissional para algo amador, gerando maior mão de obra.
Agregado a estas questões, torna-se importante estabelecer aproximações
entre tais características da uberização e pensar como o trabalho no capitalismo
neoliberal se relaciona com o campo do sofrimento psíquico. Isto porque, com

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a produção de um novo sujeito através deste modelo econômico, há também
a produção de um novo tipo de sofrer. Com o modo de vida neoliberal, houve
a realização de que se pode extrair, do próprio sofrimento do sujeito, mais
produção e mais gozo. O neoliberalismo produz e gerencia o sofrimento psí-
quico (Safatle; Silva Junior; Dunker, 2020). Assim, vendo que a uberização
é um fenômeno que surge mediante o modelo econômico do neoliberalismo,
cabe se perguntar em quais esferas desta forma de trabalho haverá a produção
de sofrimento psíquico.
Para conceituar o termo sofrimento psíquico evoca-se Dalgalarrondo
(2019), que traz uma noção de individualidade para o sofrer, tratando-se de
uma experiência única para cada um, movimentando esferas em seus afetos,
desejos e medos. Desta maneira, sofrimento passa por uma narrativa pessoal
e não necessita estar em algum tipo de manual descritivo para ser válido.
Ademais, a noção psicanalítica sobre o sofrimento agrega com o supracitado.
Trata-se de uma perspectiva que encontra o homem como um ser conflitante.
Assim, para a psicanálise a formação de sintomas são formas de expressão
desses conflitos, frutos de desejos nos quais não podem ser satisfeitos em sua
totalidade. Empenhado na tentativa de realização de tais desejos e ao mesmo
tempo tendo de conviver com um código de normas e leis e as possibilidades
reais para satisfação desses desejos, o homem produz uma série de experiên-
cias que lhe causam formas de sentir em seu conjunto (Dalgalarrondo, 2019).
Portanto, é uma forma de pathos do sofrimento, uma vez que este conflito será
sentido em seu corpo, em suas relações com o outro, em sua fala e também
na produção de sua própria interpretação sobre o mundo, construindo suas
verdades e sua narrativa singular de sofrimento
E parte disto se dá pela concretização de uma lógica de mercado na pro-
dução da subjetividade, criando valores que passam a guiá-lo dentro da lógica
de competitividade e concorrência que gere o capitalismo (Franco et al..,
2020). Assim, como postulado por Dardot e Laval (2010), o neoliberalismo
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 77

opera através da interiorização de normas que privilegiam discursos de per-


formance, autovigilância constante e a competitividade com o outro. O que
há de se ressaltar é que apesar de um claro adoecimento produzido ao sujeito
por esta forma de se enxergar no mundo, esta mentalidade ainda é capaz de
ganhar adesão e atenção (Franco et al.., 2020). Assim, o sofrimento passa por
um processo de individualização, tornando todo este fenômeno como algo
isolado através de um apagamento do mundo material. Portanto, afastam-se
as dimensões políticas e culturais como conflitos causadores do sofrimento,
remanejando para um discurso que encara o sofrimento apenas como uma
questão individual, como algo passível de uma mera desregulação química
do cérebro (Dunker, 2020).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

E a partir desta lógica que rege o neoliberalismo, encontram-se aqueles


que devido à falta de empregos inerente ao capitalismo e a necessidade de
uma remuneração para sobreviverem, precisam se submeter a trabalhos escan-
teados, pautados por uma nova lógica de trabalho denominada just-in-time
(ou uberização/plataformização). A correlação entre o sofrimento psíquico e
neoliberalismo é gritante no caso destes trabalhadores que, ao se submeterem
a estes serviços plataformizados, estão à mercê de relações de trabalho que
não lhe garantem qualquer segurança, estabilidade e direitos trabalhistas. Há,
portanto, uma forma de trabalho em que existe uma enorme transferência de
riscos para o trabalhador, que gera lucro a partir de sua prestação de serviços
mas que, em muito dos casos, não oferta sequer um auxílio para realizar uma
refeição e um ponto de descanso entre uma entrega e outra (Abílio, 2020).
Esta relação entre desenvolvimento tecnológico e degradação do trabalho
é uma característica no capitalismo, conforme bem explorado por Marx ao
citar a relação entre o adoecimento de costureiras em domicílio e a utilização
do tear a vapor (Marx, 1982 como citado em Abílio, 2020). Porém agora,
diferente dos trabalhadores de chão de fábrica, temos um proletariado que é
explorado através da prestação de serviços para aplicativos. Os entregadores,
utilizando de sua força de trabalho e de uma bicicleta (que muitas vezes é
alugada) ou motocicleta, realizam jornadas que podem chegar a doze horas
diárias, durante os sete dias da semana, para obter uma remuneração que, se
descontado todos os custos que envolvem a manutenção de suas ferramentas
de trabalho, equivale a um salário mínimo (Machado, 2019).
E para que este fenômeno ocorra, é importante atentar-se ao fato de
que há toda uma organização prévia por parte da empresa, através de uma
estrutura legal que coloca estes aplicativos não como contratantes, mas como
plataformas que fazem a mediação entre oferta e procura, criando “parceiros”.
Porém, o ponto chave é que apesar disto, continuam sendo apenas as empresas
plataforma quem detém os meios para controle e distribuição do trabalho de
78

entregadores. E indo além, também são as empresas que gerenciam o tempo


de trabalho, a produtividade, o acesso e o desligamento de trabalhadores das
plataformas e, é claro, a remuneração obtida por cada serviço de entrega
prestado. Portanto, há uma exclusão dos custos do trabalho para a empresa
enquanto segue-se obtendo ganhos e controle sobre a produção (Abílio, 2020).
Porém, é necessário também se ater nas possibilidades de mudança e
potencialidades que partem dos trabalhadores envolvidos neste ramo. Já exis-
tem algumas formas de organização entre os entregadores ao redor do mundo,
com a ocorrência de manifestações que demandam melhores condições de
trabalho. Uma dessas manifestações ocorreu no Brasil em julho de 2020 e
ficou conhecido por “Breque dos APPs”. A ideia do movimento partiu dos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


próprios entregadores e teve como objetivo reivindicar aumento nas taxas
de entrega, aumento da taxa mínima por cada serviço, fim dos bloqueios
indevidos, seguro para roubos e acidentes durante o trabalho, licença paga
para casos de covid-19 e distribuição de equipamentos de proteção individual
(EPIs). Dentro destas manifestações, os entregadores desligaram seus apli-
cativos para não haver trabalhadores disponíveis, construíram piquetes para
obstruir aqueles que não aderiram à greve e incentivaram aos usuários a não
realizar pedidos pelos aplicativos naquela data (Marin, 2020). Foi a primeira
organização coletiva de trabalhadores uberizados no Brasil.
Estas formas de uma nova classe de trabalhadores se organizar partem
diretamente do desmantelamento dos direitos trabalhistas, inerentes ao neoli-
beralismo e que no Brasil ganhou ainda mais força com a Reforma Trabalhista
de 2017. Através da Lei nº 13.467/2017 e da Medida Provisória nº 808, a
legislação trabalhista brasileira foi alterada em pontos que mudam as regras
relativas a contrato por tempo determinado e possibilita ampliar a abrangência
da terceirização na prestação de serviços, que antes era restrita às atividades
meio, ou seja, ao grupo de atividades que não corresponde com a proposta
principal para qual determinada empresa foi criada, como os serviços de lim-
peza, vigilância, contabilidade, etc. (Praun; Antunes 2020). Assim, dada as
características da atual conjuntura política do país, estas empresas encontram
uma população que está disposta a vender sua força de trabalho independente
das condições impostas para a realização do trabalho, visto o alto índice de
desemprego e o aumento no custo de vida brasileiro.
Outro ponto fundante para a pesquisa e que estabelece ligação com a obra
de Masson et al. (2021) é a relação entre controle e produção de sofrimento.
O controle contra os trabalhadores ocorre de forma tão exacerbada que Wood-
cock (2020) o descreve como um “panóptico algorítmico”. O termo utilizado
pelo autor se dá por conta de que, apesar das empresas terem um discurso de
liberdade e autonomia na realização do trabalho, elas estão supervisionando
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 79

os dados gerados entre trabalhador-usuário em tempo real. O trabalhador que


é escolhido para realização de determinada entrega tem como única opção
aceitar o trabalho. Apesar de poder ignorar a notificação, Woodcock (2020)
relata que isso traz implicações na avaliação que o trabalhador possui dentro
do aplicativo o que, ocasionalmente, pode virar um desligamento sem aviso
e demais explicações por parte da empresa.
Assim, há uma forma de controle unilateral que favorece somente a
empresa. O aplicativo é quem vai ter acesso a todas as informações coletadas
pelos usuários e é a partir disso que vai manejar a forma como o trabalho
deve ser realizado, a remuneração que o entregador vai receber, o tempo que
o pedido deve ser entregue e até mesmo as rotas que o trabalhador deve tomar.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Posteriormente a estas etapas, o entregador será avaliado e esta informação


também será utilizada pelo aplicativo, para ranqueá-lo entre outros trabalha-
dores, afetando a forma como a demanda por serviços vai chegar até ele em
outros momentos e reforçando uma lógica de competitividade. Esta avaliação
e vigilância contínua produzem uma maior adequação do trabalhador aos
procedimentos que a empresa propõe, além de regular a produtividade em
sua ocupação (Abílio, 2020).

2. Método

Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório, descritiva e qualita-


tiva. Os participantes são pessoas que trabalham com serviços de entregas
através de aplicativos na região do Alto Vale do Itajaí. Houve dificuldades
para realização das entrevistas, uma vez que muitos participantes que em
um primeiro momento afirmaram querer participar e forneceram dados para
entrar em contato e agendar a entrevista, não deram retorno. Ao total, foram
16 pessoas que aceitaram participar, mas posteriormente apenas 5 delas de
fato responderam as mensagens do pesquisador para a realização da entrevista.
Grande parte destes outros 11 contatos não responderam ou alegaram falta
de tempo para participar.
Em relação a contextualização demográfica sobre aqueles que respon-
deram o questionário, todos os cinco participantes se declaram homens, hete-
rossexuais e possuem a média de idade de 31,4 anos. Dois participantes se
autodeclaram brancos, um pardo e dois pretos. Todos residem em cidades do
Alto Vale do Itajaí. Três possuem o ensino médio completo, um incompleto
e um tem ensino superior.
Em relação a coleta de dados, foi estabelecido um primeiro contato
de forma presencial, através de dois pontos informais de descanso que os
entregadores utilizam entre uma entrega e outra: uma praça pública e um
80

estacionamento de um estabelecimento alimentício. Através desta primeira


conversa foi explicado as questões metodológicas e éticas que compõem o
estudo e feito o convite para participação.
Através das gravações das entrevistas foi realizada a transcrição das falas
para a análise dos dados. Utilizou-se da análise categorial de Spink (2013)
para esta etapa, evocando os sentidos construídos pela prática discursiva. A
investigação ocorreu através de um roteiro de entrevista semiestruturado,
com perguntas sobre a descrição do trabalho (pontos positivos e negativos),
a influência do trabalho na saúde mental e as possibilidades de organização
e mudança da categoria.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


3. Resultados e discussão.

Com base na coleta de dados dos cinco entrevistados, se tornou possível


estabelecer pontos que vão em concordância com os objetivos estabelecidos
que a presente pesquisa busca se debruçar. Portanto, a partir disso, emergiram
quatro categorias passíveis de análise. A descrição do trabalho, o conceito de
liberdade, o sofrimento psíquico e as possibilidades de mudança.

3.1 A descrição do trabalho

Antes de descrever aspectos mais específicos do trabalho, há de se falar


sobre o processo de cadastramento na plataforma. Assim como as demais
etapas do trabalho, o cadastramento para se tornar um entregador é totalmente
online, através do aplicativo de entregadores do iFood. A explicação destas
etapas é descrita de forma breve no site oficial da plataforma explicitando a
facilidade que existe para ingressar nesta forma de trabalho. Em relação ao
cadastramento, quando perguntado sobre como ocorre, um dos entrevistados
fala que o necessário é somente o “Documento do veículo, comprovante de
residência e CNH” (N2).
Denota-se que esta facilidade no cadastramento não é em vão, uma vez
que as empresas plataformas utilizam-se desta estratégia para melhor utilizar
de uma mão de obra de fácil acesso, baixa remuneração e livre de direitos
trabalhistas. A popularização do trabalho plataformizado em contextos com
um alto índice de desemprego e em que a informalidade é praticamente uma
condição ocorre justamente pela obrigatoriedade de gerir a sobrevivência
(Grohmann, 2020).
Sobre isso, Marx (2020) ressalta que a existência de altos índices de
desemprego, de um excedente de mão de obra, é um produto necessário
para o modo de produção capitalista, por se tratar de um material humano
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 81

sempre à disposição para a continuação do acúmulo de capital. Esta massa


de trabalhadores considerados supérfluos pela ótica daqueles que detém os
meios de produção é o que Marx irá chamar de exército industrial de reserva.
Sobre esta questão, Trindade (2017) elucida que o exército de reserva existe
para que, por exemplo, se mantenha e/ou diminua os salários e estabelecer
uma massa de sujeitos disposta a trabalhar independente das condições de
trabalho existentes.
Ainda sobre estas questões que envolvem o cadastramento e ingresso na
plataforma, o iFood oferta duas categorias para trabalho: trabalhar para um
operador logístico (OL) e trabalhar como Nuvem. Estas categorias possuem
características específicas e vão ditar, de modo geral, para quem o entrega-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dor responde. No caso do OL, as informações que constam no site oficial do


iFood não aprofunda sobre esta categoria, dizendo apenas que o motoboy
tem a possibilidade de fazer parte da equipe de entregadores de um OL e que
irá responder diretamente a ele, além de que será este mesmo OL quem irá
fornecer os kits, definir turnos de trabalho e fazer o repasse dos valores de
cada entrega. A forma de trabalho como Nuvem é a mais comum entre os
entregadores cadastrados no iFood (cerca de 90%). Trata-se de uma relação
de trabalho em que o entregador não tem relação com um Operador Logístico,
apenas com o aplicativo. Ele liga e desliga o aplicativo quando desejar. Na
pesquisa, dois dos cinco entrevistados trabalhavam como Nuvem.
Em contraste com tais informações, buscou-se indagar sobre como fun-
ciona o trabalho de um entregador que presta serviços para um OL e foi
possível encontrar os seguintes relatos através dos entrevistados N3 e N4:

N3: “O OL tem uma pessoa que é dona de um grupo de iFood. Você tá


desesperado pra trabalhar e ah, “fui desempregado, preciso de dinheiro,
etc”. Você arranja uma bike ou uma moto, você vai se cadastrar nesse
operador logístico, que tem um dono, e que que ele vai fazer contigo [...]
Você é obrigado a trabalhar no horário que ele te botar. Sábado, domingo,
com chuva, sem chuva”.
N3: “Então você é escravo dele, você é obrigado e ele ganha dinheiro em
cada entrega de vocês. Então ele tem 50 pessoas a 100 trabalhando pra
ele, imagina o quanto ele ganha em cima de cada entrega, por isso que
ele te obriga a trabalhar”.
N3: “Então ele ganha uma determinada quantia a cada entrega e quantas
entregas esses motoqueiros, de 50 a 100 motoqueiros por dia faz para
ele? Então a pessoa fica na frente do computador ganhando dinheiro em
cima dos outros.”
N4: “[...] é uma pessoa em que ela trabalha para uma empresa que trabalha
para o iFood, é um terceirizado, mas eu trabalho para a empresa [o OL]
através do iFood. Então, no caso, eu não ligo e desligo meu aplicativo.
82

Quem liga e desliga o meu aplicativo é a empresa para a qual eu traba-


lho, entende?”.

Diante de tais relatos, verifica-se que a relação de trabalho estabelecida


entre entregador e OL funciona como um agravamento da já existente ter-
ceirização promovida pelo aplicativo. Ao responder para um OL o motoboy
está sob o comando de uma pessoa que dita como e quando o trabalho será
realizado, cumprindo as exigências impostas por este OL e continuando sem
qualquer tipo de segurança trabalhista, além de ainda estar sob as condições
que o próprio aplicativo estabelece. Abílio (2020) pontua que esta possibili-
dade de gerenciar, subordinar e organizar inúmeros trabalhadores faz com que

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


as empresas plataforma se livrem dos custos do trabalho enquanto mantém os
ganhos e o controle sobre a produção. E este é o ponto chave na extração de
mais-valia deste exército de trabalhadores, facilitado pelo controle algoritmo.
O algoritmo é o destaque para a manutenção desta forma de trabalho. É
ele quem comanda o trabalho daqueles que se cadastram como entregadores.
Através do contínuo fluxo de informações geradas entre usuários-trabalha-
dores, se torna possível organizar e ditar a forma como o trabalho deve ser
realizado (Woodcock, 2020). Assim, o entregador se encontra em uma relação
desigual com o aplicativo, uma vez que todo este fluxo de dados não lhe é
revelado, sendo utilizado somente pela empresa para estipular rotas, tempo
para a entrega, tarifas e para o próprio desligamento automático do trabalhador.
O aplicativo, portanto, rege uma espécie de prática taylorista do trabalho, já
que ele especifica o mínimo sobre que deve ser feito, como deve ser feito e o
tempo exato permitido para que tal tarefa seja feita, produzindo uma forma
de alienação entre trabalho e trabalhador. Em relação a este controle, algumas
falas situam como a utilização do algoritmo funciona:

N2: “Ele te passa um cliente e o resto é contigo, né. Só que é aquilo, se


não cumprir as regras, recusar corrida, desfazer alguma coisa... o próprio
algoritmo tem o sistema pra te bloquear, né.”
N4: “O algoritmo é o meu chefe, sabe? Se eu não trabalhar direito, se eu
não fizer o serviço direito, o aplicativo vai me mandar menos corrida. Mas
se eu trabalhar direitinho, se eu não reclamar, aí eu ganho mais entregas,
assim que funciona [...]. É tempo, velocidade de entrega, tipo... tu tem um
tempo para fazer uma entrega também. Se passar desse tempo a entrega
é deslocada e daí tu não ganha nada, entendeu?”.

Os relatos dos entregadores expõem uma realidade de trabalho con-


trolada e operada pelo algoritmo. Tempo e supervisão constante são dois
aspectos mensurados através do algoritmo e que aparecem marcados nas
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 83

falas, corroborando para o que Woodcock (2020) aponta sobre a uberização.


O autor ressalta que a característica de constante mensuração apresentada
pelo aplicativo constitui uma gestão de trabalho em que o próprio entregador
internaliza a necessidade de se supervisionar, controlar e disciplinar-se para
a realização dos serviços. E este estado de constante vigilância e avaliação
tem se mostrado como um bom fator de regulação da produtividade e da
adequação às normas estabelecidas para a execução dos trabalhos dentro dos
aplicativos (Abílio, 2020).
Diante disto, há de se salientar que a construção destas mediações não
se abstém de neutralidade e que respondem as políticas previamente estabe-
lecidas pela empresa que, neste caso, não é a mera coleta de informação, mas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a extração de valor e de recursos destes trabalhadores (Grohmann, 2020). O


entrevistado N4 traz uma fala sobre esta questão: “[...] algoritmo, ele não é
um ser humano, né. Então ele não tem um mínimo de empatia por ti, né. O
algoritmo não tá nem aí com o que acontece contigo, sabe? A prioridade dele
é maximizar o ganho do iFood [...]”. Estas informações coletadas mediante
o trabalho realizado pelos motoboys (e pelos clientes) serão utilizadas pelas
empresas-plataformas para fomentar ainda mais as formas de controle e geren-
ciamento propiciadas pelo algoritmo, veiculados ao objetivo de maximizar
os lucros da empresa com o menor custo possível.

3.2 Liberdade

Durante a realização da coleta de dados, os entregadores salientaram


inúmeras vezes sobre a liberdade vivenciada como entregador de aplicativo.
Assim, esta se faz como uma categoria importante para o presente estudo,
necessitando ser analisada e discutida. O termo liberdade aparece em todas as
entrevistas, sendo caracterizado como um dos pontos positivos desta forma
de trabalho e valorizada pela maioria dos entrevistados. Se torna possível
visualizar estas afirmações nas seguintes falas:

“N1: O ponto, assim, a característica [positiva] que eu achei é a liberdade.


Com o aplicativo eu só trabalho no dia que eu quero, não sou obrigado a
ir todo dia. Aí achei melhor essa forma de trabalho. Nos outros casos o
cara não pode ficar sem. Na entrega não... no iFood não tem isso. Só se
estiver em baixa que aí tu pega pouca entrega, mas pode estar faltando
um dia ou dois que não dá nada.”
“N5: [...] é um meio livre de trabalho, que não tem uma certa obrigação
com uma empresa ou com algum responsável específico, entendeu? Então
tu é meio que teu próprio patrão, entendeu? Eu acho que isso cria uma
bela liberdade.”
84

Estes relatos se fazem importantes porque o conceito de liberdade apa-


rece como uma das matrizes psicológicas do episteme neoliberal, influen-
ciando diretamente na forma como o sujeito pensa, sente, sonha, se relaciona e
conhece o mundo em que vive. A noção de liberdade é, portanto, um discurso
que constrói o sujeito (Silva et al., 2020).
Este conceito provém, inicialmente, das bases teóricas do liberalismo e é
recorrente entre autores como Friederich Hayek, que promove uma realocação
significativa ao condicionar a liberdade individual à do mercado. De acordo
com o autor, a coerção seria a fonte dos problemas e o livre-mercado uma
condição de exercício da liberdade, como algo natural da experiência humana.
Assim, pensar a noção de liberdade em Hayek é pensar na liberdade do sujeito,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


através do afastamento de qualquer intromissão na esfera individual. Com
base nestes pontos é que se torna possível desenvolver a noção neoliberal de
liberdade, como uma pessoa que independe do outro, que governa a si mesmo
e se vê em uma constante disputa com o próximo (Silva et al., 2020).
Há de se questionar os fundamentos desta noção de liberdade e o modo
como possivelmente influencia na realidade destes trabalhadores, visto que
este conceito se faz como um dos fundamentos ideológicos propagandícios do
neoliberalismo, funcionando como uma ferramenta na construção e manuten-
ção deste modelo de vida (Silva et al., 2020). Portanto, há um caráter ilusório
nesta concepção? Este é um questionamento que deve ser realizado e que, ao
longo das entrevistas, aparece pelos motoboys através das seguintes falas:

“N2: Olha a Liberdade... Se tu for parar pra pensar verdadeiramente, eu


que já trabalhei [como entregador] em outros sistemas... ela chega a ser
ilusória, porque se tu não se prende ao aplicativo, tu não tem fonte de
renda, sabe?”
“N2: Tu tem que ter muita regra pessoal. Tu tem que ser uma pessoa que
se programa, que faz uma agenda. Porque se a pessoa acredita assim, ah...
não tenho patrão e vou trabalhar quando eu quiser, a pessoa passa fome.”

Além destas falas, houve um momento importante durante uma das


entrevistas, em que o entrevistado N5 fez uma reflexão sobre esta noção de
liberdade após um momento da conversa em que se indagou sobre a questão
de “ser o próprio patrão”. Trata-se de uma construção interessante, visto que
ele contradiz a última fala dele (citada acima):

“M: E nesse sentido de Liberdade, assim... como é que tu vê, é... agora
que tu comentou por exemplo, isso de ser teu próprio patrão? Então,
nesse sentido com os dados, essa forma de talvez tu não tem um patrão
físico, aquela pessoa, mas tem essa relação com a com a tecnologia, com
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 85

a informação. Cara, como é que tu vê... Tu vê o aplicativo como um chefe


teu às vezes?”
“N5: [...] parando pra pensar de outro lado é... eu falei que eu tinha uma
certa liberdade, como se eu fosse o meu patrão, mas como tudo passa
pelo aplicativo, então eu acho que meio que eu não sou meu próprio
patrão, entendeu?”

Assim, o que se tem é uma forma de trabalho que nega um vínculo


empregatício, que dita como, quando e em quanto tempo o serviço deve ser
feito, que utiliza-se de informações produzidas pelos trabalhadores e usuá-
rios mas que informa em termos mínimos o trabalhador e que, ainda assim,
consegue vender a imagem de um trabalho carregado de liberdade. Essa ideia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

só mascara esta deliberada precarização, marcada por uma transferência de


riscos, aumento de controle, ausência de rendimentos garantidos, aumento de
responsabilidades e custos para a execução do próprio trabalho (Filgueiras;
Antunes, 2020).
Assim, há uma concepção de liberdade que se desenvolve perante a
ordem do mercado e toma uma posição de “ordem natural” no regimento do
status quo. Dardot e Laval (2014) salientam que o neoliberalismo é, exata-
mente, uma generalização da lógica de mercado como normativo para todas
as esferas da vida. Mediante a isto, a ideia de liberdade não fica de fora,
desempenhando como um conceito vital para a construção e manutenção do
sujeito neoliberal.
Com base nas informações coletadas, cabe destacar que quase todos os
entregadores comentaram trabalhar com uma carga horária de, em média,
10h por dia, durante seis dias da semana (um dos entrevistados diz trabalhar
7 dias por semana com uma carga horária de 16h por dia), evidenciando
que o aspecto de liberdade, apesar de existir no discurso de mercado, não se
apresenta verdadeiramente no contexto destes trabalhadores. Assim, o que
se tem é uma contradição. Esta contradição, se trazida para o pensamento
marxista, aparece da seguinte forma: liberdade não é e nunca será o simples
ato de se afirmar livre perante o mundo, cabendo haver condições materiais
para que tal liberdade possa se efetivar. Ela não é um ato do plano indivi-
dual, mas uma construção no coletivo. Assim, a única liberdade que se tem
no capitalismo é a de escolher para quem irá se vender a própria força de
trabalho (Oliveira, 2007).
Em vista disso, a noção de liberdade tem um papel importante na cons-
trução da uberização por se tratar de um discurso que influencia no exercício
do trabalho destes entregadores e que, por consequência, irá produzir seus
efeitos. E, neste caso, os efeitos em específicos que se buscou observar dizem
respeito ao sofrimento psíquico.
86

3.3 Sofrimento psíquico

A categoria sofrimento psíquico possui grande relevância na construção


do trabalho. Isto porque, inicialmente, a ideia que moveu dar forma a esta
pesquisa era investigar a aproximação existente entre as condições de traba-
lho uberizado e a maneira como ela influencia na saúde dos entregadores.
Portanto, trata-se dos “pontos negativos” citados pelos entrevistados e que
surgem como implicações demonstradas através da precarização, da transfe-
rência de riscos e da insegurança (características inerentes nestas plataformas)
e que vão aparecer na vida psíquica do sujeito. Quando perguntados sobre já
terem sentido algum tipo de implicação psicológica em suas vidas mediante

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


o trabalho exercido, os entregadores responderam:

N2: “Eu já tive um colapso nervoso, né... Eu trabalho em torno de 16 horas


por dia, todos os dias. E quando eu não trabalho de noite, eu trabalho de
tarde. Não tenho folga. E a gente acaba sofrendo, porque daí o estresse do
trânsito é... eu costumo dizer que é assim: pro ladrão nós somos um alvo,
pra polícia nós somos um alvo. Pro cliente nós somos um número, que
é o tempo que é dado pra entrega. E pro patrão, nós somos descartáveis.
Então quando tu começa a ter essa personalidade, que começa a pensar
nisso, muitas pessoas ficam pelo caminho e acabam desistindo.”
N4: “A gente trabalhar tantas horas por semana faz com que tu fique cada
vez mais estressado. Sério, tipo, pô... Tu vai perdendo cabelo, tuas unhas
vão ficando fracas e vai cedendo ao vício, tá ligado? Tipo, várias questões
vão acontecendo do estresse do trabalho porque, por exemplo, quem está
na situação como eu estou que precisa muito de dinheiro, urgente e rápido,
precisa trabalhar muito para poder pagar as contas e botar as contas em
dia. A pessoa vai sacrificar a saúde pra poder fazer mais dinheiro e quanto
mais ela sacrifica a saúde, mais ela se prejudica porque tu vai ficando cada
vez mais estressado e daqui a pouco tu perde sono.”

As falas dos entrevistados destacam que esta extenuante rotina de tra-


balho e as condições pelas quais ela é exercida trazem implicações de saúde
para suas vidas. Mas, a questão é que há na própria forma de organização do
trabalho uberizado características que sujeitam o trabalhador se estender em
longas jornadas de trabalho, visando obter uma renda que, além de lhe garantir
os meios de sobrevivência, também se torne possível custear a manutenção
de suas ferramentas de trabalho (veículo, celular, plano de internet, equipa-
mentos, etc.). Sobre esta questão, o participante N4 destaca: “[...] às vezes tu
trabalha muito, que nem eu que tô trabalhando 70 horas por semana agora, e
às vezes tu trabalha muito e muito do teu dinheiro fica pra ti poder continuar
trabalhando, sabe.”
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 87

Entretanto, há de se ater a uma questão importante neste tempo de tra-


balho explicitado pelos entregadores que também influencia na produção
de sofrimento psíquico: sua jornada de trabalho também envolve estar em
constante disponibilidade e espera. Assim, por mais que passem 10h de seu
dia para o trabalho, não é em todo o momento que estarão de fato exercendo
entregas e, assim, sendo remunerados. Portanto, são tempos de espera (e de
deslocamento) que não são remunerados e que explicitam que na uberização
não há uma definição do que é hora de trabalho e tampouco o valor desta
(Abílio, 2020).
Diante destas condições, cria-se um cenário em que o trabalho é exercido
constantemente por conta da facilidade de conectar trabalho e trabalhador e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

da insegurança financeira que as plataformas utilizam ao seu favor. Afinal,


grande parte da população que trabalha em aplicativos de entrega são pessoas
de baixa renda e quem controla a atribuição de entregas e o valor a ser recebido
é a própria empresa-plataforma (Filgueiras; Antunes, 2020). Esta questão é
um dos pontos relevantes na produção de sofrimento psíquico, uma vez que
os entregadores anseiam por realizar o maior número de entregas possíveis e,
entretanto, devem enfrentar períodos de intervalo que não são remunerados.
Assim, a ansiedade e o medo se tornam sentimentos marcantes para os traba-
lhadores, através da necessidade de cumprir metas e arrecadar financeiramente
(Maior; Vidigal, 2022). Dentro das entrevistas, os entregadores discorrem
sobre este ponto através das seguintes falas:

N1: “Assim, o mínimo [por entrega] é R$6,00, sempre uma entrega...


nunca é abaixo de R$6,00. Mas, quando pega duas, o correto é eles pagar
R$12,00, mas eles nunca pagam.”
M: “E geralmente entra o que, por exemplo? Assim, 2 entregas que era
para entrar 12 e tu recebe quanto, mais ou menos?”
N1: “Eu já cheguei pegar até R$7,00 só... em duas entregas”

A questão da insegurança financeira que os aplicativos promovem é


algo marcante em algumas entrevistas. Entretanto, é nas falas de N4 que isto
aparece de forma mais recorrente:

N4: “[...] o complicado é a incerteza, porque tu não sabe quanto de dinheiro


tu vai fazer quando ele liga [o aplicativo], tu não sabe nem se tu vai fazer
dinheiro porque pode ficar ligado o dia todo e não tocar nada. Ainda não
aconteceu isso comigo, mas já aconteceu de eu trabalhar, por exemplo,
4h e eu fazer 20 reais, tá ligado? Ou sei lá, teve outro dia que eu trabalhei
por 13 horas e eu fiz 110 (reais), tá ligado. Às vezes não dá grana e isso é
complicado porque tu tem conta pra pagar e tu não sabe quanto dinheiro
vai fazer.”
88

Aliado a estas questões financeiras, surge uma fala interessante por parte
deste mesmo entrevistado. A necessidade de se obter renda faz com que o
trabalho se estenda não só para momentos em que se exercem atividades,
mas para a vida no geral:

M: “Mas de uma maneira específica, assim... tu já percebeu se teu trabalho


já te afetou psicologicamente de alguma forma?”
N4: “[...] tu acabou teu turno e tu tem que dormir pra acordar às 6 da manhã
e daí tu não consegue dormir porque tu tá acelerado, e aí a hora que tu
consegue dormir, tu sonha que tu tá trabalhando, tá ligado? [...] O ritmo
de trabalho é tão exaltante, tão cansativo que tu não consegue pensar em
outra coisa. Quando tu vai conversar com as pessoas, só conseguem falar

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


do trabalho, só consegue falar de “ah, aconteceu uma coisa aqui”, como
se a tua vida fosse para o trabalho, entendeu? Parece que o resto escapa,
sabe? A tua mente fica presa ali no trabalho, trabalho, trabalho, trabalho.”

Esta sensação de estar imerso no trabalho, de nada escapar e de todo o


tempo de vida ser tempo para produzir é o que Fisher (2020) coloca como
parte do realismo capitalista. O desenvolvimento do capitalismo acontece
de forma tão agressiva que se cria uma uma sensação de realidade em que
trabalho e vida tornam-se uma única coisa, em que até nos sonhos o capital
lhe persegue. E estas condições são ainda mais intensas quando se fala de
um fenômeno como a uberização, que tem um trabalho por peça e que exige
de seus entregadores uma adaptação (e aceitação) à precariedade, vivendo a
partir de situações perpassadas por instabilidade e imprevisibilidade.
Aliado a estas questões, verifica-se que esta imprevisibilidade e falta
de segurança contida na rotina do trabalho uberizado possuem um papel
importante no adoecimento dos entregadores. As condições de um contexto
de trabalho com constantes situações imprevisíveis e sem o tempo e assis-
tência necessária para lidar com estes eventos adversos, necessitando ater-se
somente ao curto tempo que possuem para a realização das entregas oferta-
das. Estas vivências podem contribuir para o aparecimento de sentimentos
de medo, insegurança, ansiedade, desânimo e desesperança (Metzger, 2010).
Sobre estar em um trabalho que te coloca nestas situações, os entrevistados
relatam o seguinte:

N2: “[...] é a escravidão moderna, o aplicativo é escravidão moderna. Por-


que se você não trabalha, você não recebe. Se você se acidenta, como até
no tempo dos escravos... eles eram descartáveis. Escravo que não produzia,
era um escravo descartável, era simplesmente trocado por outro, indepen-
dente do porquê. Hoje, se o motoboy adoece, o aplicativo simplesmente
tira ele e coloca outro. É simples, não tem nada, é só isso. O sentimento
de ser descartável ele realmente é bem gritante na nossa categoria.”
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 89

Aliado a esta mesma questão, o entregador N3 acrescenta a


seguinte informação:
M: [...] e vocês têm algum tipo de suporte de auxílio assim por parte
dos aplicativos?
N3: “Tem seguro [contra acidentes]. Mas justamente isso: eles sabem
quando ligou. Se a gente ligou, aí já está automaticamente assegurado
por eles. Trabalhou, andou com a moto e com o aplicativo ligado está
assegurado. Desligou o aplicativo e depois de um segundo você sofre um
acidente, já não corre mais, entendeu?”

Entretanto, há uma contraposição sobre essa questão do seguro e pon-


tuada através da entrevista do participante N4: “Se tu se acidentar é “só
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

lamento” pra ti, né. Espero que tu não quebre as pernas e os braços, pra ti
poder continuar trabalhando.”
Existem algumas contradições sobre a questão de um seguro contra aci-
dentes. Alguns dos entrevistados relatam a sua existência, mas questionam
se ele de fato é efetivado e é garantido em acidentes. Assim, há um impasse
nesta questão porque o sentimento de desassistência se espalha ao ponto de
ser justificável esta dúvida perante um seguro. Sobre isto, N5 acrescenta: “Se
o seguro deles for verdade, já é uma grande ajuda, né?”
Estas falas destacam a existência de um clima de desamparo e trans-
ferência de riscos para o motoboy que presta serviços de entrega. A fala do
entrevistado N2, trazendo o “sentimento de ser descartável”, explicita como
a uberização utiliza-se da facilidade no cadastramento e do exército industrial
de reserva para contínua exploração e produção de capital: se você não puder
trabalhar, haverá outro entregador apto a vender sua mão de obra nestas con-
dições ofertadas. Assim, isto vai de acordo com o que Marx (2020) destaca
em suas investigações, relatando que o capital não faz qualquer consideração
pela qualidade de vida ou pela saúde do trabalhador, a não ser em situações
em que seja forçado pela sociedade a contribuir com o melhoramento das
condições de trabalho.

3.4 Possibilidades de mudança e coletividade

Através das informações fornecidas pelos entregadores ao longo das


entrevistas, tornou-se possível listar inúmeras características do trabalho ube-
rizado que, de alguma forma, trazem implicações na vida destes trabalhadores.
Assim, faz-se necessário propor não só a exposição e discussão da precariza-
ção existente neste meio, mas também a percepção dos entregadores sobre a
capacidade de alternativas e da construção de coletividade.
De antemão, é importante destacar que as respostas obtidas nesta categoria
possuem algumas contradições sobre a perspectiva de mudanças e construção
90

de coletividade que reivindicam melhorias para a classe. De maneira geral,


quatro dos cinco entrevistados trazem falas que colocam a necessidade de
mudanças em um tom individual, através da garantia de auxílios por parte
da plataforma que custeiam a manutenção da própria ferramenta de trabalho
(na gasolina e em reparos, por exemplo) e de reajustes em taxas de entrega.
Apesar de serem mudanças que alterariam de forma significativa os
custos para manutenção do trabalho, há de se atentar que é improvável que
ocorra um movimento espontâneo por parte das empresas-plataforma para
custear tais serviços, uma vez que não há nenhuma vinculação legal que a
obrigue a exercer tal papel. Além do mais, a possibilidade de maximização
de lucros é o objetivo destas empresas, tendo tais condições de precariedade e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


transferência de custos e riscos para o trabalhador como parte essencial deste
plano (Filgueiras; Cavalcante, 2020).
Dentro da literatura, Grohmann (2020) destaca alguns pontos interes-
santes para se pensar a construção de alternativas para o trabalho mediado
por aplicativos, sendo estes: aspectos de regulamentação trabalhista (I) e
movimentos coletivos dos entregadores (II).
Em relação ao item (I), o autor destaca um ponto importante na regula-
mentação: a superação do status de “autônomo”. O movimento de negação
de vínculo trabalhista que as empresas-plataformas defendem, declarando-se
legalmente apenas como mediadoras entre trabalhadores e estabelecimentos
comerciais, não exclui a condição de uma relação de trabalho. Assim, a uberi-
zação se favorece a partir da produção de um contrato de emprego deturpado,
que esconde a responsabilidade destas empresas perante os aspectos jurídicos
do trabalho, restringindo o acesso a direitos trabalhistas.
Durante a realização das entrevistas, quando perguntados sobre suas per-
cepções a respeito de uma regulamentação trabalhista aos moldes da CLT, sur-
giram respostas distintas sobre a questão, como se vê nas seguintes colocações:

N2: “[...] tem que haver uma reforma com relação a regularização dos
aplicativos, ter uma regulamentação, ter um pouco mais de critério. Hoje
o motoboy em si ele fica um pouco desassistido dentro do aplicativo.
Porque por mais que seja uma ferramenta que te forneça ali, que faça uma
ponte entre cliente e motoboy, a gente não tem ali nenhum vínculo, não
tem nada que nos traga uma segurança. Essa insegurança acaba afetando
também os motoboys, a minha categoria... porque você tem medo [por
estar desassistido].”
E há também a seguinte contraposição por parte do entrevistado N5:
M: “E cara, na tua percepção... se tivesse uma possibilidade, talvez con-
tinuar um trabalho de aplicativo, mas através de uma carteira assinada,
por exemplo, tu acha que seria bacana?”
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 91

N5: “Que nem eu te falei, a gente tem uma liberdade na questão do salário,
né. Eu acho que se a gente trabalhar de carteira assinada, a gente teria
um salário específico para trabalhar. Dessa forma que a gente trabalha, a
gente tem uma certa liberdade por dia de fazer quantas corridas a gente
quer e dependendo do dia fazer bastante entregas e, quanto mais entrega,
mais dinheiro no caso. Se a gente trabalhasse de carteira assinada, eu acho
que a gente ia receber aquele valor exato por mês e eu acho que morreria
ali, entendeu?”

Portanto, dentro desta parcela de público entrevistado, existem visões


contrárias sobre a possibilidade de regulamentação trabalhista por conta da
possibilidade de maiores ganhos financeiros, principalmente. Novamente,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

encontra-se aquela relação entre liberdade e o estado de autogerencia subor-


dinada que foi apresentado na categoria 4.2 através de Abílio (2020). Então,
através do contrato deturpado pelos quais as empresas-plataformas utilizam-se
e do pagamento por peça (entregas, neste caso), surgem visões que entram
em comum acordo com a lógica dos aplicativos: não há limitação do tempo
de trabalho e nem do quanto você pode ganhar, apesar de não haver auxílios
e a manutenção das ferramentas partirem do seu próprio salário.
As diferenças continuam a aparecer dentro do ponto (II), sobre movi-
mentos coletivos. Grohmann (2020) situa que a organização de trabalhadores
através de sindicatos é importante para a conscientização dos trabalhadores
envolvidos e a reivindicação de melhores condições de trabalho. No Brasil
já existem alguns sindicatos de trabalhadores uberizados, como é o caso dos
sindicatos dos Motoristas Autônomos de Transporte Privado Individual por
Aplicativos (Sindmaap), o Sindicato dos Motoristas por Aplicativo e Condu-
tores de Cooperativas do Estado da Bahia (Simacctter-BA) e o Sindicato dos
Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros por Aplicativo
do Estado de Pernambuco (Simtrapli-PE).
Denota-se que apesar de já haver movimentos coletivos que asseguram
a necessidade de buscar melhorias para a categoria, Gonsales (2020) ressalta
pontos que funcionam como entraves para a contínua organização da classe
dos entregadores de aplicativo: a competição entre os próprios trabalhadores,
através do pagamento por peça e do ranqueamento através de avaliações; a
existência de pouco contato entre entregadores; o caráter de amadorismo
no desempenho do serviço; as longas jornadas de trabalho e a limitação de
recursos de uma população que se encontra à margem do sistema. Assim, o
desenvolvimento de uma consciência de classe se torna dificultoso pela forma
como o trabalho é organizado. Sobre esta questão, grande parte dos entrevis-
tados disse não ter conhecimento de nenhum movimento coletivo organizado
92

por entregadores de aplicativo. Dois participantes comentaram conhecer uma


Associação de Motoboys e alguns grupos em redes sociais em que se discute
os problemas cotidianos.
Apesar das dificuldades de organização coletiva que surgem através das
próprias características do trabalho uberizado, ainda assim existe movimento
e interesse por parte dos trabalhadores para que se melhorem as condições
dentro das plataformas. Assim, apesar de inseridos em um contexto em que
há uma forte influência da racionalidade neoliberal, demarcada pela indivi-
dualização e precarização, nada impede que ocorram tentativas de se construir
alternativas no cenário do trabalho mediado por plataformas digitais. São as
lutas, através de greves e de movimentações online, que constroem as brechas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


para que novas possibilidades surjam (Grohmann, 2020).
Em relação a paralisações, cabe ressaltar que já houveram greves de
grande adesão - por entregadores e usuários - organizadas por trabalhadores
dos mais diversos países. A maior greve envolvendo trabalhadores platafor-
mizados ocorreu na Índia, país em que há um gigantesco número de usuários
em aplicativos de entrega e transporte. Na época, fevereiro de 2017, mais
de 100 mil motoristas cessaram suas atividades por duas semanas, reivindi-
cando melhores remunerações e a possibilidade de se organizarem através de
sindicatos. Cabe citar a experiência ocorrida em maio de 2019, com o prota-
gonismo de motoristas de aplicativo de diversos países que se posicionaram
contra a Uber, que na época iria entrar para a bolsa de valores estadunidense.
Esta primeira paralisação gerou, dez meses depois, o primeiro encontro inter-
nacional da categoria de motoristas uberizados. Reunindo trabalhadores de
27 países, o evento ficou marcado pela inauguração da primeira associação
internacional desta classe, a International Alliance of App-Based Transport
Workers (IAATW), e pela produção de seu próprio manifesto trabalhista
(Gonsales, 2020).
No Brasil, as experiências de greves ocorreram no ano de 2020, durante
os primeiros meses da pandemia da covid-19. Com o agravamento do vírus e
a dificuldade de estabelecer uma renda por conta do parcial isolamento social,
houve um grande número de cadastro nas plataformas, dada a facilidade de
tornar-se um entregador para as empresas. Assim, mesmo havendo um cená-
rio pandêmico e com milhares de novos trabalhadores, não houve qualquer
movimento por parte das plataformas para garantir melhorias e segurança
diante do vírus. Foi com base nestes problemas que nos dias 25 de abril e 01
de junho de 2020 houveram duas grandes paralisações, de escala nacional e
que ficaram conhecidas como Breque dos Apps, conforme já mencionado no
início da pesquisa. Foi a maior manifestação organizada por trabalhadores
uberizados brasileiros (Gonsales, 2020).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 93

4. Considerações finais

A construção desta pesquisa teve o propósito de responder quais as apro-


ximações existentes entre o trabalho uberizado e a produção de sofrimento
psíquico aos. Além disso, o propósito pessoal era de fazer uma denúncia sobre
um fenômeno tão presente na realidade brasileira e latino-americana.
Em suma, o que se encontrou foi um processo de trabalho que eleva as
condições de precarização já conhecidas. Isto porque, conforme visto na lite-
ratura e nos relatos dos entregadores, o trabalhador é constantemente exposto
a riscos, tem de arcar com praticamente todos os custos para exercer suas
entregas, não é assegurado, é impossibilitado de ter acesso a informações que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

regulam seu trabalho e ainda gera os dados que melhoram o funcionamento


do controle desempenhado pelas empresas através do aplicativo instalado em
seu próprio celular.
Assim, a forma de organização do trabalho uberizado é o próprio fator
de risco para a produção de sofrimento psíquico. Soma-se a isto o atravessa-
mento por discursos de liberdade e autonomia que, como descrito no artigo,
possuem matrizes psicológicas importantes ao gerirem o sujeito no contexto
neoliberal e influenciando no desempenho das atividades de trabalho. O tempo
de vida torna-se tempo apto para trabalhar: existe a possibilidade de produzir
a qualquer momento e, portanto, ganhar mais só depende da minha própria
vontade. É a receita perfeita para a popularização destes aplicativos em países
de capitalismo dependente, como é o caso do Brasil. Com uma grande parcela
de pessoas desempregadas e desassistidas pelo Estado e a facilidade de se
tornar um entregador de aplicativo, as empresas usufruem de um proletariado
pelo qual elas não possuem nenhuma responsabilidade trabalhista, pela forma
como se organizam juridicamente.
A uberização não é um fenômeno que para no setor de entregas e trans-
porte e que já adentra serviços de saúde e educação, por exemplo. Existe assim
a necessidade de se atentar que a utilização de tecnologias de informação
(aplicativos, neste caso) não são construídas de forma desprovida de neutra-
lidade e que, no capitalismo neoliberal, constituem-se como ferramentas que
podem auxiliar no agravamento das condições de exploração do trabalho. Os
caminhos para a construção de alternativas podem ser os mesmos pelos quais
os outros momentos históricos já demonstraram: organização coletiva, cons-
ciência de classe e estar nas ruas. Assim como Karl Marx um dia já salientou,
a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores.
94

5. REFERÊNCIAS
ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador jus-
t-in-time. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital e
indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, 333 p.

ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da


Indústria 4.0. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital
e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, 333 p.

BROWN, W. Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


néo-conservatisme. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, 137 p.

DALGALARRONDO, P. Aspectos gerais da psicopatologia: os principais


campos e tipos de psicopatologia. In: DALGALARRONDO, P. Psicopato-
logia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed,
2019, 440 p.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade


neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, 402 p.

DUNKER, C. A hipótese depressiva. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.;


DUNKER, C. (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico.
Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 177-212.

FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho


e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, Ricardo (org.).
Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
2020, p. 333.

FISHER, M. Realismo Capitalista. É mais fácil imaginar o fim do mundo


do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 208.

FRANCO, Fabio et al. O sujeito do mercado: gênese teórica do neolibera-


lismo. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (org.). Neolibe-
ralismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica,
2020, p. 47-75.

GONSALES, Marco. Indústria 4.0: Empresas plataformas, consentimento e


resistência. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indús-
tria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 125-138.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 95

GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: características e alternativas.


In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0.
São Paulo: Boitempo, 2020, p. 93-109.

MARX, Karl. O Capital: Critica da economia política, São Paulo: Boitempo,


2020, p. 912. (Trabalho original publicado em 1867).

LOSURSO, Domenico. O que é o liberalismo? In: LOSURSO, D. Contra-


-história do Liberalismo. Aparecida: Idéias & Letras, 2006, p. 15-47.

MACHADO, L. Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entrega-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dores de aplicativos. BBC News, 2019. Disponível em: bbc.com/portuguese/


brasil-48304340. Acesso em: 7 set. 2022.

MAIOR, N. M. S. S.; VIDIGAL, V. Em modo de espera: a condição de traba-


lho e vida uberizada. Revista Katálysis, v. 25, n. 1, p. 62-72, 2022. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/1982-0259.2022.e82565. Acesso em: 5 jul. 2023.

MARIN, Pedro. ‘Breque dos apps’ é movimento mais importante em meses.


Revista Opera, 2020.

MASSON, L. P.; ALVAREZ, D.; OLIVEIRA, S. “Parceiros” assimétricos: tra-


balho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, Brasil. Ciência
& Saúde Coletiva, v. 26, n. 12, p. 5915–5924, 2021. Disponível em: https://
doi.org/10.1590/1413-812320212612.14652021. Acesso em: 5 jul. 2023.

METZGER, J. Mudança permanente: fonte de penosidade no trabalho?


Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 36, n. 123, p. 12-24, 2011.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0303-76572011000100003. Acesso
em: 5 jul. 2023.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise qualitativa: teoria, passos e fide-


dignidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 17, n. 3, p. 621–626, 2012. Dispo-
nível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007. Acesso em:
5 jul. 2023.

OLIVEIRA, J. W. J. A liberdade humana em Marx: trabalho e política.


Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de pós-graduação em Filo-
sofia, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará. Fortaleza,
Brasil, 2007.
96

PRAUN, L.; ANTUNES, R. A demolição dos direitos do trabalho na era do


capitalismo informacional-digital. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização,
trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 179-192.

SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios:


sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE,
V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (org.). Neoliberalismo como gestão
do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 17-46.

SILVA, D. P. et al. Matrizes psicológicas da episteme neoliberal: a análise do


conceito de liberdade. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


(org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte:
Autêntica, 2020, p. 77-124.

SPINK, M. J. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:


aproximações teóricas e metodológicas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de
Pesquisas Sociais, 2013.

SOUZA, A.; SANTANA, F. Conexão Zero Estrelas: trabalhadores de aplica-


tivos se endividam para pagar internet. Agência Pública, 2021. Disponível
em: https://apublica.org/2021/05/conexao-zero-estrelas-trabalhadores-de-
-aplicativos-se-endividam-para-pagar-a-internet/. Acesso em: 16 set. 2022.

THATCHER, M. Mrs Thatcher: the first two years. [Entrevista concedida a]


Ronald Butt. Sunday Times, Londres, 1981.

TRINDADE, H. Crise do capital, exército industrial de reserva e precariado


no Brasil contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, n. 129, p. 225–244,
2017. DOI: https://doi.org/10.1590/0101-6628.106. Acesso em: 7 jul. 2023.

WOODCOCK, J. O panóptico algorítmico da Deliveroo: mensuração, preca-


riedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização,
trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 23-46.
POR TRÁS DA ARTE DE RUA:
a voz dos artistas de rua
Ana Beatriz de Souza Medeiros
Paula Natália Ramos
Marina Corbetta Benedet

1. Recorte de uma teoria: arte, estética e vida


“A estrada é cheia de luz e sombras, e você só pode respirar o ar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que lhe cabe no pulmão, pois mesmo que seja difícil, nós temos
que aprender a caminhar, pois os gritos do mundo são seus. E você
só encontrará abrigo, se obtiver uma alma. E mesmo que você se
perca, acenda a chama que chama você, deixa as lágrima irem a pé,
elas costumam brotar num novo dia, elas servem pra lhe dizer que
alguma coisa precisa mudar. Só engolimos a neblina, quando nos
distraímos, ou quando somos traídos, atraídos pelo mar” (João1).

Quando falamos sobre arte, a primeira impressão que temos é a de que


se trata de algo grandioso, logo associamos à genialidade; a arte que está nos
museus, que é pouco acessível, esta que pertence apenas aos mais afortuna-
dos ou dotados de um grande talento. Por outro lado, quando pensamos na
arte como algo que é cotidiano, que está nos pequenos grãozinhos, tal como
diria Vigotsky (2004; 1999) e Rubem Alves (2004), nos deparamos com a
capacidade humana de criar, com a “poesia do cotidiano”. Percebemos que
por trás das grandes criações, existem inúmeras pequenas/grandes ideias que
a teceram. A arte é quase uma condição da existência.
Nesse sentido, compreendemos quando Alves (2004) afirma que é possí-
vel ter olhos saudáveis e nada ver ou, quando Vigotsky (2004, p. 333) afirma
que “o principal na música é o que não se ouve, nas artes plásticas o que não
se vê nem se apalpa”, pois o que é importante nesse contexto diz respeito
muito mais com a maneira como nos relacionamos com a realidade, a maneira
como nos permitimos nos (re)encantar com o mundo e nesse mundo sermos
“apanhados” pelas pequenas bonitezas da vida.
Sendo assim, podemos considerar que todos somos, em certa medida,
artistas, no momento em que nos permitimos uma relação sensível com a
realidade. O que os artistas do cotidiano, estes que estão inseridos no meio
urbano expressam, é uma vivência estética que vai além daquilo que é possível

1 Nome fictício do participante da pesquisa.


98

ver, é uma expressão estética e política de seus corpos. Uma forma de socia-
bilidade, de relação com o outro (alteridade) e com o entorno (Nogueira,
2009; Nogueira, 2012; Zanella, 2005). Nesse caminho, passamos a compreen-
der que a percepção sensorial da arte é apenas um impulso para algo muito
mais complexo, para uma emoção estética e, com isso, um fazer político
(Nogueira, 2009).
O espaço que estes artistas ocupam - a cidade - em meio as suas contradi-
ções (produto do desenvolvimento desigual), possui formas de desqualificação
social, entre elas estão o trabalho desqualificado e a segregação do espaço
(Nogueira, 2009). Quem sofre o estigma de ser “desqualificado”, segregado,
nesse processo visível de poder e invisível de dominação, vê sua condição

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de sujeito - portanto ativo, protagonista de sua história - esvaziada. Sofre
“por mecanismos ideológicos vários, pela responsabilização exclusiva de sua
condição”. Diante disso, os artistas de rua aparecem como resistentes entre
os “desqualificados” (DAWIN, 2005 apud GONZÁLEZ REY, 2011. p. 15).

2. Recorte de uma realidade: a cidade-território e seus itinerários


“Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir
aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do
alto, a vida humana. E disse que somos um mar de foguerinhas. “- O
mundo é isso - revelou. - Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem
duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e
fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe
o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos,
fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida
com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e
quem chegar, pega fogo” (Galeano)

Diante dessa compreensão, debruçamo-nos sobre nosso cotidiano e nos-


sas relações com a cidade. Cidade não cimento/tijolo/argamassa. Também não
asfalto/carro/transito. Cidade como essas foguerinhas, vivas. Como vidas que
se “alumiam” no cotidiano.
O sinal fecha, seu carro para e você tem que aguardar alguns segundos
para continuar seu trajeto até o destino desejado (segundos estes que podem
parecer infinitos se você estiver atrasado). Eis que surge um sujeito, que ora
está fazendo malabares, ora está tocando uma música, ora está pintando algo.
Afinal, ele está trabalhando ou fazendo uma performance? Aqui o chamare-
mos de Artista de Rua. Com certeza você já viu algum. Seja no sinal, seja na
calçada, pela cidade adentro, você já precisou “catar” moedinhas no painel
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 99

do carro ou no fundo da bolsa para ajudar esses “pobres coitados”. Diante


desse sujeito muitas vezes não conseguimos perceber/ver a arte, ou ter “olhos
brincalhões” como argumenta Alves (2004). Tentamos ignorar essa fogueira,
mas pestanejamos...
Com certeza também, você já se perguntou por que esses sujeitos não
arrumam um “trabalho” decente, ao invés de fazerem arte de rua, debaixo
do sol quente, por míseros trocados. Talvez, em algumas dessas vezes, você
nem se quer tenha dado bola, não tenha parado para ver, descristalizando
o olhar, permitindo-se brincar/sorrir/zombetear. Talvez nem tenha aberto o
vidro. Talvez tenha desejado que o sinal abrisse antes dele chegar até seu
meio de transporte.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

“Pobres coitados, vagabundos, artistas de rua” - três nomenclaturas que


nos levam à uma reflexão: quem é esse sujeito? Como vive? Sujeito malandro
que prefere “pedir” dinheiro na rua em vez de trabalhar? Qual trabalho? E se
este sujeito realmente houver feito a escolha por mostrar sua arte para o mundo
ao invés de ser bombeiro? Será que estamos preparados para esta escolha?
Sim, artistas de rua são julgados o tempo inteiro, não importa se eles estão
no sinal fechado, na calçada ou no meio da rua; fazendo malabares, pintando
ou tocando; na chuva ou no sol; na sua cidade de origem ou de destino - eles
estão lá. Como já afirmamos anteriormente, habitualmente temos a ideia de
que arte é aquilo que está no teatro ou no museu. E fora desses territórios?
Há arte nas ruas? Qual seu valor?
Rancière (2005, p. 67) ressalta que a prática artística

não é a exterioridade do trabalho, mas sua forma de visibilidade deslocada,


que a produção une o ato de fabricar e o de tornar visível, sendo a arte
uma nova relação entre o fazer e o ver, porque ela antecipa o trabalho
realizando o princípio que ele mesmo propõe: a transformação da matéria
à apresentação dela a comunidade. É preciso sair do esquema preguiçoso
e absurdo que opõe o culto estético da arte pela arte à potência ascendente
do trabalho operário. É como trabalho que a arte pode adquirir o caráter
de atividade exclusiva.

E nesse sentido, arte na rua, arte/visibilidade, arte/dizibilidade, são poten-


tes encontros/provocações. Porém, fica a pergunta: O que os artistas de rua
pensam sobre tudo isso? Por que eles insistem em viver de uma arte a qual
se questiona seu valor/produção? Que territórios são possíveis a arte? Onde,
nas cidades podemos nos encontrar/afetar pela arte?
Spink (2008) ao falar sobre a cidade, argumenta que esta deve ser vista
além de seu espaço geográfico e dos espaços físicos que a compõem, porque ela
possui um cotidiano que a atravessa, isso significa que a cidade é mais do que
100

grandes prédios, cimento e outdoors, a cidade é uma sequência de eventos onde


existem acasos diários, encontros, desencontros, afetos, arte! De que maneira
podemos nos permitir ser tocados por isso? Perceber esses sujeitos com outros
olhos e compreendê-los em sua historicidade/território/subjetividade?
Diante dessa realidade, partimos para nossa pesquisa, nos questionando
qual o sentido de arte para os artistas de rua? E assim pretendíamos anali-
sar o sentido de arte para os artista de rua do município de Itajaí; tendo por
objetivos específicos: levantar o sentido de arte e arte de rua para os artistas;
identificar os discursos que sustentavam a compreensão de arte; compreender
como a arte constituía a identidade dos artistas de rua; levantar a compreensão
de território/cidade e os itinerários desses sujeitos; identificar o modo como

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os artistas de rua se relacionavam como os “espectadores” e compreender a
maneira como eles percebiam a sociedade onde viviam e como percebiam os
modos como a sociedade entendia a arte por eles produzida.

2.1 O mito que me move

“Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,


depois de muito caminhar, o mar estava a frente de seus olhos, e foi tanta
imensidão do mar e tanto o seu fulgor que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
‘- Me ajuda a olhar!’” (Galeano).

Sim! Precisamos aprender a ver. Como argumentamos com Alves (2004)


e agora com Galeano, não nascemos vendo, não nascemos ouvindo. Precisa-
mos ser mediados, diante da imensidão do mundo, para entendermos o que
nos cerca. Porém, também precisamos ser ensinados a questionar, re-ver e
re-encantar com o óbvio. Pela habituação deixamos de ver, de ouvir de sentir.
O excesso embriaga e nos faz dormentes/adormecidos/anestesiados.
E a cidade por vezes se caracteriza por esse excesso, por essa anestesia.
Como tornar o óbvio encantado? Como fazer ver o que não mais se vê pelo
tanto que se mostra?
Spink (2008) versa sobre a cidade como uma sucessão de eventos, como
“micro-lugares” que compõe o cotidiano. Esses micro-lugares pensados pelo
autor, ultrapassam a lógica dos espaços (físicos) construídos para cumprir sua
função dentro de um sistema, estes são pequenas consequências de eventos,
conversas e acontecimentos cotidianos: um sujeito ao esperar o seu café na fila
da padaria, conversando com o atendente no balcão, outro ao jogar malabares
no sinal, afetando a sua maneira aqueles que por ali passam. E a arte ganha
espaço nesses lugares, no sentido de que esta modifica a realidade de tudo o
que está a sua volta.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 101

Assim, esses lugares que compõe o cotidiano, são recriados pelos sujei-
tos a medida em que estes se apropriam da realidade. Ao recriar o sujeito
cria sínteses que contemplam aquilo que é passado no que é presente, que
por sua vez, resulta em um projeto futuro que é constantemente atualizado.
Todas essas objetivações que modificam o mundo, são produtos de apropria-
ções passadas e processos de transformação, tanto de si quanto do contexto,
movimento esse dialético que abre possibilidades para o devir (Spink, 2008;
Furtado; Zanella, 2007)
Esta arte que ganha espaço nos micro-lugares do cotidiano, recriando
estes, modificando sujeitos, é vista por Ranciére (2005) como uma criação
do humano, como um recorte de tempos e espaços, do que é visível aos olhos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ou do que é silenciado. É também uma forma de experiência política, sendo


assim, uma linguagem: a arte dialoga, é polifônica e polissêmica; comunica,
se faz suporte para sentidos
Furtado e Zanella (2007) também discutem a relação entre a arte e a
cidade, argumentando que é possível compreender que além do modernismo
arquitetônico como forma de relação entre a arte e a cidade, e a forma fun-
cionalista como a cidade foi sendo estruturada, o desenvolvimento do capi-
talismo e das formas de consumo fizeram da arte um produto direcionado
para o consumo.
Assim, quando olhamos para a história, vemos que o artista passa a ter
que se adequar as exigências do mercado sob pena de não ser reconhecido
como tal. E isso por vezes pode ser frustrante. Passa a ser entendido como
aquele que detém um dom natural, dando lugar a uma estética distante da expe-
riência cotidiana. Essa arte passou a ser entendida como portadora do belo, do
inatingível. Então surge a divisão do que é estético e do que é extra-estético.
Re-conhecer a arte como trabalho se faz primordial, seja no contexto
estético ou no contexto extra-estético, na medida em que, como argumenta
Zanella (2004) a arte como trabalho constitui o humano como ser histórico,
social e cultural, pois o processo de criação da arte é mediatizado por ins-
trumentos, essa atividade mais tarde irá se materializar num produto social:
a arte. Esta última é assim uma objetivação da atividade e das apropriações
que este sujeito faz sobre o mundo.
Paralelo a esta situação, cabe ainda considerar que em meio ao paradigma
da modernidade, o artista que trabalha na rua ainda se encontra no lugar do
extra-estético, daquele que não é reconhecido como artista, tão pouco sua arte
é reconhecida como trabalho. Costa (2002), fala sobre a reificação e a humi-
lhação vivida por aqueles que tem a cidade, as ruas, como local de trabalho,
fato que torna o artista de rua, lugar social de vários preconceitos/estigmas.
Contudo, Grisci (1999) nos recorda que a maneira como cada sujeito
constitui a sua subjetividade também está atrelada ao lugar que este ocupa
102

no mundo. Nesse sentido, ao pensarmos sobre o modelo atual de sociedade e


sua ordem capitalística, compreendemos que esta ordem produz os modos de
relação existentes mediando formas de subjetivação introduzidas pelo mer-
cado do capital, produz também trabalhadores que correspondam aos modos
de trabalhar do sistema capitalista, instituindo, assim, nas cidades, relações
prático-utilitárias (VAZQUEZ, 1997). Assim, não há espaço para quem tra-
balha de maneira que foge ao instituído, como é o caso dos artistas de rua.
Nessa perspectiva, a subjetividade individual se faz mediada de signos
por todos os lados: arquitetura, coletivos, relações sociais e econômicas, tec-
nologia, etc (Grisci, 1999). E nesse “caldo”, o modo que esse sujeito artista/
trabalhador de rua se constitui é marcado por opressões, não sendo vistos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


como trabalhadores pois seu trabalho não é entendido mediante a norma de
uma atividade necessária para que o sistema capitalista funcione.
A arte de/na rua surge como movimento político de resistência a esse
modelo instituído em meio a cidade como um espaço de contradições - síntese
do capitalismo - que revela de forma explícita o jogo social. É na cidade, na
apropriação dos espaços que a subjetividade é construída. É nos espaços que
os sujeitos sociais inscrevem a sua marca, encontram um “lugar” e por esse
lugar são “marcados” (Nogueira, 2009).
Nogueira (2009) considera ainda que há duas formas de desqualificação
social, entre elas o trabalho como desqualificado e a segregação espacial.
Para a referida autora, aquele que sofre esses processos vê sua condição de
sujeito - por tanto, protagonista de sua história - esvaziada. Este é colocado no
lugar de desqualificado. Sofre em meio a variados mecanismos ideológicos,
pela responsabilização da sua condição ficando desconhecidos os processos
sociais de determinação daquela condição.
Quando pensamos o artista de rua, há ainda uma dialética nesse espaço,
marcada por um tipo específico de relação de alteridade: a inclusão per-
versa. Aos artistas fica restrito o local onde podem ou não se apresentarem,
é requerido dos mesmos uma licença para fazê-lo e essa licença é concedida
através de uma série de burocracias sob a ameaça de marginalização do seu
trabalho, ou, como ouvimos de um artistas “de quem é a rua?”. Com isso,
esses artistas colocam seus corpos na rua, se movimentam e transformam os
espaços que encontram, criam movimentos de ocupação de prédios, festivais
“clandestinos” de arte e etc (Nogueira, 2012; Nogueira, 2009).

3. A arte como dom comum


“Meu, são todas rebocadas por dentro e por fora, algumas são gran-
des e espaçosas, outras são pequenas e estreitas, algumas tem janelas
para o horizonte de si, mas existem outras sem paisagens para as ter,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 103

são todas casas indefesas, como se o todo aberto, e sua parede pintada
de cor verde limão, enquanto caminho nas ruas, percebendo placas de
vende-se, aluga-se, compra-se, poucas vezes vejo empresta-se e assim e
de lá nós vemos o sol no fim do quarteirão, eu não culpo você por nem
sempre conseguir me ajudar, afinal só de estar ao meu lado, e não estar
me indicando o caminho errado, já é uma grande ajuda. Depois que
escolhemos um caminho, temos que colher tudo que ele proporcionar. A
minha casa, é um deserto em mim mesmo, com areia movediça a cada
respiração. Mas não se preocupe a casa não rompe a casa, se mantém
de pé, aqui dentro somente a necessidade de mover os móveis, esquina,
a vizinhança, os corredores, porque são todas, são formas, são elas, as
casas como elas são.” (João)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Debruçamo-nos sobre a construção e o sentido da arte para compreender


esse universo do qual falam os sujeitos de nossa pesquisa, assim nos depa-
ramos com os escritos de Vigotsky sobre a experiência e a emoção estética.
Encontramos nesse autor a noção de que a genialidade seria um dom comum
e a arte, ou a criação, uma condição para a existência.
Buscamos compreender a maneira como essa experiência estética ocorre
para o espectador e para o artista. Vigotsky (2004) explica que embora seja
necessário um certo distanciamento para compreensão da arte, esta não é
percebida com o organismo em completa passividade, também não é per-
cebida somente através dos olhos, ou dos ouvidos. Ele argumenta ainda que
os órgãos, os sentidos, são apenas o primeiro impulso, o impulso básico. É
possível possuir olhos saudáveis em termos de percepção sensorial e nada
ver em termos de sentido estético.
Com isso, é possível perceber que, embora os estímulos sensoriais sejam
a natureza da vivência estética, os momentos de percepção sensorial são
apenas os impulsos primários para despertar uma atividade mais complexa,
pois, como argumenta Vigotsky (2004) o que constitui a natureza da vivência
estética está relacionado a três momentos de reação comum à emoção estética:
uma estimulação, uma elaboração e uma resposta.
O espectador dialogando com a arte, constrói e cria o objeto para o qual
se voltam suas reações posteriores. O complexo trabalho psicológico de dar
sentido à arte, transformando os diferentes ruídos em melodia é inteiramente
do psiquismo do espectador. Vigotsky (2004) chama esse fenômeno de síntese
criadora secundária, porque requer uma síntese dos elementos dispersos da
totalidade da obra.
Os processos de percepção da arte, são também processos de repetição
e recriação do ato criador. Esses processos, assim como os processos de cria-
ção, se encontram em seu sentido biológico, como sublimação. Do ponto de
104

vista biológico, existem apenas duas saídas para aquilo que não conseguimos
realizar na vida, seriam essas a sublimação ou a neurose. Assim, a vazão desta
energia psíquica se realiza na arte evitando o aparecimento de patologias
(neuroses e psicoses) (VIGOTSKY, 2004; VIGOTSKY, 2009).
Nessa perspectiva, então, do ponto de vista psicológico, a arte é um
mecanismo biológico necessário para a superação de excitações não realiza-
das na vida, assim a criação não é privilégio de alguns, mas uma necessidade
profunda do psiquismo em termos de sublimação da energia psíquica. Em
cada um de nós, existiria, assim, uma certa possibilidade criadora. Numa frase
famosa de Nietzsche, a arte existe para que não morramos com a verdade.
O que separa ainda a arte da doença é seu efeito catártico. Entender o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sentido da atividade estética como catarse, significa compreender a arte como
“libertação do espírito diante das paixões que o atormentam”. Para Vigotsky,
entender a arte como catarse, ou seja, como cura da alma, é uma assertiva
adotada da psicologia antiga. O autor faz ainda uma crítica a psicólogos con-
temporâneos, que não apenas abandonaram essa perspectiva, mas acharam
sedutor encontrar traços comuns entre a loucura e a genialidade (Vigotsky,
2004; 1999).
Se o efeito da arte consiste em um processo íntimo de compreensão da
pessoa, o seu pós efeito cognitivo consiste no fato de que a vivência estética
cria uma atitude sensível posterior devido a intensidade de sua experiência
(Vigotsky, 2004).
A arte implica ainda nessa emoção dialética de contradições, uma luta
interna de superação daquilo que é repulsivo (como é o caso da tragédia ou
do horror), que se conclui na catarse: “é necessário ver o feio em toda a sua
força para depois colocar-se acima dele no riso.” (Vigotsky, 2004, p. 345)
Vigotsky (2004), afirma ainda que a genialidade é um dom comum, não
existe assim um dom raro mas “um caso raro de conservação de um dom
comum”. Nesse sentido, existe um alto talento da natureza humana, cabe-
ria às influências educativas desenvolver e preservar essas potencialidades
comuns a todos.

4. Pintando a tela, tocando na rua, brincando com a cidade: o


caminho metodológico nos preparativos para o festival clandestino
“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça-
das continuarão glorificando o caçador” (Galeano)

A metodologia segundo Fonseca (2002) é o estudo da organização e


dos caminhos a serem percorridos, para se realizar uma pesquisa, um estudo,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 105

ou para se fazer ciência. Fonseca (2002) percebe ainda a ciência como uma
forma particular de compreender o mundo e como uma maneira que facilita
a interação com ele. A intenção nesta pesquisa também parte do objetivo de
entender a maneira como os artistas percebem o universo que os cerca, como
eles produzem conhecimento, dessa maneira, concordamos com Fonseca
(2002), quando este afirma que o homem desde que nasce, interage com a
natureza e os objetos à sua volta, logo, ele interpreta o universo que o cerca
a partir das referências que tem, tanto sociais, quanto culturais, sendo que os
sujeitos da pesquisa possuem conhecimentos tanto quanto os pesquisadores,
sendo a pesquisa científica essa possibilidade de diálogo entre os diferentes
conhecimentos, visando a produção de um conhecimento científico.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em termos de pesquisa o pesquisador que a faz não pode pensar-se neutro


diante das situações encontradas, tão pouco pensar que encontrará respostas
objetivas, simples, imutáveis. Desta forma discordamos de autores que afir-
mam que a descrição científica torna-se mais objetiva quando o observador
apresenta-se neutro, de um ponto de observação exterior a realidade assistida.
Tanto o pesquisador quanto o pesquisado são afetados pelas relações viven-
ciadas (Queiroz et al., 2007). O ser humano está em diálogo com o outro e
esta dialogicidade, permite a troca de saberes e experiências. Isso mostra que
o poder de determinar, prever ou ter qualquer controle sobre a natureza não
está nas mãos do pesquisador, entendido aqui como mais um participante no
processo de construção do conhecimento, juntamente aos sujeitos da pesquisa,
coautores da produção do texto científico.
Nesse sentido, nossa pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa quali-
tativa, sendo que na epistemologia qualitativa o conhecimento é uma produção
construída processualmente e de caráter interativo. Para Gonzáles Rey (2005)
a subjetividade do pesquisador atravessa a subjetividade do outro. Sendo assim
a interpretação do fenômeno é oblíqua passando a ser “o sentido do sentido
que o sujeito da”, ou seja, damos um “sentido” a realidade que o outro nos
relata, que por sua vez já deu seu “sentido” subjetivo a essa realidade. Rey
(2005) destaca que é importante trabalhar na horizontal, indo de encontro ao
saber do outro, pois o saber científico é apenas mais um.
A pesquisa que realizamos também caracterizou-se como pesquisa parti-
cipante, onde nos envolvemos, nos identificamos, afetamos e fomos afetadas
por nossas vivências. Não houve aqui o objetivo, por parte das pesquisadoras,
de se fazerem neutras diante das situações encontradas, superando a lógica
positivista da neutralidade e objetividade na pesquisa (Rey, 2005; Gerhardt;
Silveira, 2009). Utilizando a pesquisa descritiva-exploratória realizamos uma
descrição do fenômeno pesquisado. Para isso investigamos as informações
acerca do tema pesquisado, tendo como objetivo proporcionar familiaridade
com o fenômeno (Gerhardt; Silveira, 2009).
106

Dessa maneira, foram sujeitos dessa pesquisa 6 artistas de rua, que esta-
vam exercendo seu trabalho na cidade de Itajaí. São estes: Anna, Miguel,
Pedro, João, Carlos e Léo, com idade entre 22 e 27 anos. Embora estivessem
atuando no município de Itajaí durante o período que correspondeu a coleta
das informações desta pesquisa, apenas três são moradores do município de
Itajaí. Os demais costumam mudar de residência com frequência, possuindo
um projeto idealizado pelos mesmos em que recebem ou são recebidos na
residência de outros artistas. Nesse sentido, formam redes de solidariedade,
e assim, viajam pelo mundo expressando a arte tal como a conhecem. Dois
dos artistas entrevistados vieram do estado vizinho (RS), sendo que um deles
pretendia morar em Itajaí por algum tempo, já o outro, pretendia viajar em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


breve. Três destes artistas sempre moraram na cidade de Itajaí e não expressam
vontade de viajar para outras cidades tal como fazem os outros.
A definição por este número de sujeitos se deu por compreendermos que
cada sujeito é representante do todo social/cultural ao qual participa. O critério
de finalização das coletas de dados foi dado pela repetição/esgotamento do
tema a partir dos diálogos estabelecidos entre os pesquisadores e os sujeitos
da pesquisa no decorrer da entrevista.
Assim, a ferramenta utilizada para mediar o encontro com esses artis-
tas e produzir sentidos, foi a entrevista semi-estruturada. Entendemos que a
entrevista semi-estruturada parte da compreensão de que durante a entrevista
o pesquisador utiliza um roteiro previamente estabelecido, porém incentiva
que os sujeitos da pesquisa falem livremente a partir de perguntas abertas,
estas consistem em perguntas que demandam respostas mais abrangentes,
não sendo esclarecidas com respostas como “sim” ou “não”. Apesar de as
perguntas estarem previamente definidas em um roteiro semi-estruturado,
o pesquisador pode achar útil fazer perguntas “gancho” de acordo com o
que o sujeito traga em seu discurso, estas devem facilitar a coleta dos dados
(Gerhardt; Silveira, 2009).
Essa entrevista também foi caracterizada como uma entrevista infor-
mal, consistindo na escuta das falas cotidianas dos sujeitos, direcionando aos
mesmos, perguntas que levaram os pesquisadores a um conhecimento mais
aprofundado sobre a temática que desejavam abranger na pesquisa. Pode assim
fornecer informações imprescindíveis para o encaminhamento desta (Gerhardt;
Silveira, 2009), assim, compreendemos que dessa maneira, conseguiríamos,
enquanto acadêmicas-pesquisadoras, sermos historiadoras de leões.
Para realizar esse processo, primeiramente, fomos em busca dos artistas
no Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversão (SATED),
a fim de encontrar sujeitos que possuíam registro na cidade de Itajaí. Neste
sindicato foi solicitada autorização para a realização da pesquisa, bem como
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 107

o contato com os possíveis artistas que ali fossem cadastrados e que atuassem
na cidade de Itajaí. Como não foi possível, visto que poucos artistas de rua
mantêm registros nos sindicatos, fomos encontrá-los no seu local de traba-
lho: a cidade.
Na semana em que iniciamos a coleta das informações, estava aconte-
cendo o Primeiro Festival Clandestino de Artistas de Rua na cidade de Itajaí,
e através desse movimento, encontramos a maioria dos artistas entrevista-
dos. Para isso, participamos do movimento junto a eles e os convidamos a
fazer parte da nossa pesquisa. Com o consentimento dos sujeitos (através
da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) foi realizada
a entrevista, com horário e local previamente agendado, respeitando-se as
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

questões relativas ao sigilo das informações coletadas. As entrevistas foram


gravadas e posteriormente transcritas.
Para realização da análise das informações coletadas visando compreen-
der os sentidos que os artistas constroem para a arte trabalhamos com a Aná-
lise de discurso, conforme proposta pelo Círculo de Bakhtin, destacando que
este procedimento de análise que parte do entendimento de que a pesquisa se
constitui em uma relação dialógica, ou seja, “[...] tanto convergência, quanto
divergência; é tanto acordo, quanto desacordo; é tanto adesão, quanto recusa;
é tanto complemento quanto embate” (Fiorin, 2006, p. 170). De acordo com
Amorim (2003, p. 18) “[...] todo discurso produz-se como ato num contexto
singular e irrepetível. Podemos dizer que a teoria de Bakhtin conceitua o dis-
curso enquanto acontecimento em que a diferença entre valores desempenha
papel fundamental na produção de sentidos”, sendo estes sentidos sempre
polifônicos, ou seja, o que o sujeito enuncia enquanto seu vem marcado pelos
enunciados do momento histórico em que vive e pela realidade na qual está
inserido. Desse modo, buscaremos identificar quais são estas outras vozes
contidas nos discursos dos sujeitos da pesquisa, bem como os entrelaçamentos
entre os discursos dos artistas.
Assim, procuramos relacionar o texto produzido pelos sujeitos (discur-
sos), através da entrevista, com o contexto no qual este trabalho será reali-
zado, seu momento histórico e lugar social, entendendo que nessa relação
dialógica de texto e contextos os discursos se permeia no que Bakhtin (1992)
chama de interdiscurso, ou seja, “[...] não existe objeto que não seja cercado,
envolto, embebido em discurso, todo discurso dialoga com outros discursos,
toda palavra é cercada de outras palavras” (Fiorin, 2006, p. 167). Também
importante é ponderar que todo discurso deve ser analisado na relação, ou seja,
quem fala, para quem fala, de onde fala, porque fala, como fala; são questões
essenciais à análise do discurso tendo em vista o que Bakhtin (2004, p. 125)
propõe, de que “a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida
108

e explicada fora desse vínculo com a situação concreta”, pois ela envolve
para além das palavras o campo extralinguístico do não dito, dos silêncios
que falam (Bakhtin, 1976).
Após a produção do texto de pesquisa, os sujeitos participantes foram
convidados a participarem como ouvintes da banca pública de defesa do
trabalho, e entregaremos uma cópia do relatório final de pesquisa para os
sujeitos participantes.

5. O artista e a rua: linguagem e trans-formações com


historiadores de sentimentos-afetos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


“O vento do amor, como bem dito é, é o mago do sentimento. Embora ele
esteja entrelaçado com o vento do tempo, também possa causar dor, mas
que viajante do vento seria eu? Se essa dor, eu me dobrasse e na segunda
curva em que eu passasse, eu te diria: essa dor não doeu. Eu vivo um fluxo,
fluxo esse que não me traz repulso e a cada bater no peito, a cada tatear,
a cada sorriso e a cada olhar eu percebo que um novo amor nasceu, amor
esse não mesquinho, que em troca, não pede carinho. Mas demonstra que
a criança cresceu. Eu vi o céu bem baixinho e com a poeira do caminho,
a distância cresceu, distância essa que não me jogou para longe, e como
um estalo, um instante, um impulso do relance, uma luneta eu ganhei, e
essa, eu uso para os sonhos, pois como marinheiro que sou, sem o vento
das lembranças, eu nada seria. O vento anunciou o viajante que cultivava
o amor, o amor que não tem cor, salvou-me da dor, o tempo me ensinou a
não fazer promessas, as estrelas me mostraram a direção, mas a bússola,
é meu coração.” (João)

Sim, amor! Sim poesia! Como pesquisar com artistas e não se afetar-
-mobilizar? Como não transformar nossos olhares diante desses sujeitos, que,
numa entrevista para uma pesquisa nos entregam encantamentos do cotidiano
em pequenas doses, reencantando nossos olhares e nos provocando bons
encontros na alteridade.
Passeio ao vento do amor, nossa pesquisa assim se fez, num movimento
de construção-desconstrução-construção, transformando principalmente a nós,
acadêmicas-pesquisadoras nos afetos que nos geraram. Diante das entrevis-
tas realizadas e dos textos produzidos a partir da transcrição das entrevistas,
passamos a um trabalho onde

a raspagem da folha em branco repleta de palavras que pousam sem nada


pousar torna-se dizer. Dizer com. Com a folha em branco, com o excesso
do nada de palavras, com os muitos sentidos que se torcem, retorcem e
dobram na forma aberta de um dizer ainda em branco. Aqui, pesquisar não
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 109

tem mais a ver com saber sobre, pois se trata de saber com. Habitar um
estado de coisas, seus trajetos possíveis, seus incompossíveis, subtrair o
que insiste e produzir com (Costa; Angeli; Fonseca, 2012, p. 86).

E isso porque nos encontros com os artistas de rua, nos demos conta de
nossos não saberes e de nossos saberes cristalizados, normatizados e norma-
lizados pelo mundo acadêmico e nos permitimos abrir a este encontro e nos
transformar, transformando também nossa pesquisa.
Assim, partindo das entrevistas realizadas, as informações coletadas
foram nos guiando por territórios de sentidos, sendo que nossa primeira parada
se constituiu na compreensão da arte entendida como linguagem. Para isto, é
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

necessário entender a importância da linguagem como constitutiva do sujeito.


Sabendo que o que nos permite afirmar que a psique humana é social em
sua origem se dá pela condição de que esta psique é mediada, característica
esta de toda atividade humana; e que essa constituição social da psique só
é possível porque a consciência é semioticamente mediada, ou seja, possui
uma estrutura semântica, sendo composta por generalizações feitas a partir
de signos sociais que foram subjetivados pelo sujeito, temos ai a relevância
da linguagem naquilo que nos constitui (Zanella, 2005).
Diante disso, conforme argumenta Zanella (2005), também é certo que
os signos são por assim dizer dispositivos sociais para a compreensão de
algo próprio ou alheio, interpretado por cada sujeito de maneira singular,
embora expresse semelhanças para uma dada cultura, sendo esse o processo
de construção de sentido, ou atividade de significação: uma vez que estes
signos são apropriados pelo sujeito, a psique torna-se sígnica e assim não é
possível separá-la do social.
A arte, então, como forma de comunicação/expressão, também se cons-
titui em um suporte signeo, lugar de sustentação de sentidos e também de
produção/compartilhamento destes. Essa compreensão da arte como lingua-
gem nos veio a partir de falas como a de Anna, entrevistada, que afirma que

“aprendendo a fazer o que eu ‘tava’ fazendo? Não... eu não aprendi, eu


desenhava... eu falo que eu não sei desenhar até hoje, porque eu ia lá
e comecei a descarregar como um escape absoluto, saca? Por que eu
sempre fui muito quieta, e eu sempre tive... Eu descobri faz pouco tempo,
eu tive uma epifania, que eu pensei ‘ah, então eu desenho quando eu sou
obrigada a ficar quieta... ah, beleza. Entendi’. Saca?” (Anna)

Quando a Anna nos conta que “ah, então eu desenho quando sou obri-
gada a ficar quieta” ela nos indica essa possibilidade de compreender a arte
como uma forma de linguagem, de expressão daquilo que o sujeito vive e
110

pensa, assim como de construir uma ponte ao outro (Bakhtin, 2004), como
uma maneira de objetivação daquilo que antes não encontrava caminho para
ser objetivado.
Também percebemos essa compreensão quando Léo e João nos
contam que

“Existe uma frase do Ferreira Gullar que é ‘a arte existe, porque a vida não
basta’. A arte é isso, cara, o ponto além da vida, é quando tu quer explodir e
quer mandar um foda-se geral, mas não pode, então você expressa na arte,
a arte sempre dá conta de trazer a vida tudo o que não é possível ou aceito
de outras maneiras. A sociedade não permite que tu seja quem realmente é,
e acho que quando o ser humano encontra a arte, ele encontra seu verda-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


deiro eu, a arte é libertadora, a arte é a liberdade do ser humano.” (Léo)
“Pra mim a arte tem que falar daquilo que é visível, e daquilo que também
é invisível. É aquilo que me faz adentrar no invisível das coisas, reconhe-
cer o fantástico das relações” (João)

Vemos assim o quanto para os sujeitos da pesquisa a arte passa a ser


compreendida como essa possibilidade de comunicação, como esse espaço
para dizer o que não se encontrou outros caminhos para falar, espaço de visi-
bilidade e de dizibilidade de situações/experiências que na palavra falada não
encontra forma, mas que se permite mostrar numa pincelada, num rabisco,
num gesto, num tom, no dedilhar sobre a corda, nas interações luz/sombra do
giz sobre o papel, no diálogo com o espectador presente/ausente.
Nesse sentido, afirma Bakhtin (1976, p. 5) que a arte se constitui em um
“[...] tipo especial de comunicação, possuindo uma forma própria peculiar”,
sendo necessária entendê-la no seu diálogo constitutivo entre sujeito-artista/
sujeito-espectador/materialidade da obra.
Por se constituir como linguagem, como uma outra linguagem, a arte
pode, muitas vezes ser entendida como a possibilidade de dizer o que não se
encontrou outro caminho, ou seja, a arte entendida como catarse, como esse
caminho encontrado para comunicar ao outro, ao mundo, aquilo que o sujeito
pensa e sente, quando tem dificuldade de falar. Percebemos isso na fala de
Ana, quando nos disse que “‘ah, então eu desenho quando eu sou obrigada
a ficar quieta...”.
Segundo Vigotski (2009) qualquer criação antes de materializar-se man-
tém-se erigida na mente, de maneira que o que costumamos chamar de criação
é apenas resultado de um longo processo agora materializado, mas que existiu
primeiramente no terreno da imaginação. Ele chama esse processo, em ana-
logia ao nascimento, de gestação, e a criação de “ato catastrófico do parto”.
Nesse sentido, para o referido autor, o ser totalmente “adaptado” ao
mundo, livre de anseios ou necessidades, nada criaria, por isso na base de
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 111

toda criação há uma espécie de angústia ou inadaptação que funciona como


a mola propulsora para a “ressurreição espontânea”. Afirma Vigotski (2009)
então que essa “ressurreição”, aparece de forma catártica, de repente, sem
motivo aparente, pois os motivos existem, mas encontram-se ocultos em for-
mas latentes, registrados no inconsciente, pois não encontraram caminhos para
significação anteriores nas possibilidades linguísticas do sujeito.
É possível pensar nessa necessidade ou angústia que ocorre no processo
de criação como sendo o processo inconsciente que torna-se consciente em
Anna através da epifania relatada, e na cristalização da arte, como seu escape
absoluto. Embora ela apresente que esse processo catártico se dá por uma
via não consciente, é possível perceber a tomada de consciência quando ela
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

considera que “eu tive uma epifania”. Dessa mesma forma, a compreensão
da arte como esse “escape absoluto” aparece nas falas de Léo e João, quando
dizem “tu quer explodir e quer mandar um foda-se geral, mas não pode, então
você expressa na arte” (Léo) e ‘É aquilo que me faz adentrar no invisível
das coisas” (João).
Assim, Vygotski (2001) nos faz lembrar que a personalidade humana é
composta em meio a processos conscientes e inconscientes de objetivações
e subjetivações que são marcados por aquilo que cada sujeito significa como
relevante, que sabe, escolhe, que emociona ou mobiliza; ou ainda que passa
por sua vida sem instigar afetos, sem deixar vestígios, encontrando na arte a
forma de comunicar-se, de fazer pontes com o mundo.
Lembra-nos Guatarri (1992, p. 135) que “é evidente que a arte não detém
o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de
invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de ser
inéditas, jamais vistas, jamais pensadas” dando estratégias outras de dizer/
visibilizar aquilo que antes não encontrava caminho e que mobiliza o sujeito
a essa inventicidade.
Como linguagem, que tem por premissa a comunicação (Bakhtin, 2006),
a arte tem essa função de construir pontes ao outro, a alteridade, de possibi-
litar encontros. Compreensão essa percebida também na fala de Carlos que
nos conta que

“é louco como algumas pessoas se emocionam e se sensibilizam com nosso


trabalho, muitas nem falam, tá ligado? Elas só te passam um olhar, um
sorriso, você sente que elas tentam não se deixar levar com o que afeta,
mas não conseguem”. (Carlos)

Assim, percebemos a arte nesse processo de comunicação, de enlace/


afeto com o outro. Se, como argumentamos anteriormente, a compreensão
da comunicação artística perpassa a materialidade da obra no diálogo com o
112

sujeito-autor e com o sujeito-espectador; e se entendemos que cada sujeito


significa da realidade o que é relevante, ou seja, o que lhe afeta, sendo este
o material da sua subjetividade; a partir da fala de Carlos passamos a com-
preender a arte-linguagem como território de subjetividade, como lugar da
alteridade, desse encontro que gera afecções, criando afetos.
Recordando, a partir de Espinosa, que nossa condição, enquanto huma-
nos, se faz na perspectiva de que somos seres que sofremos afecções na mesma
medida em que somos afetados “ao sermos afetados por corpos exteriores,
tal modificação pode implicar a passagem do modo a um grau de perfeição
maior ou menor do que aquele em que se encontrava. Essa variação, passagem
ou transição de um estado (do corpo afetado) a outro, denominam-se afetos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


(affectus) ou sentimentos” (Maxwell, s/d, p.70), Carlos em sua fala nos mostra
como permanece no outro, pela transformação que sua arte-linguagem gera
do não-sorriso para o sorriso, do não-olhar para o olhar; o quanto gera afetos
nos encontros.
Zanella (2005) ainda nos recorda que a psique como expressão subjetiva
dos processos cerebrais, ou ainda como uma característica qualitativa das
funções superiores do cérebro, é parte integrante de um processo que não se
limita a ser consciente, porém “o inconsciente é potencialmente consciente”
(Zanella, 2005, p. 101), de maneira que, como na fala de Carlos, por mais que
muitas pessoas tentem não demonstrar a afetividade em relação ao contato
artístico, não há como fugir desse encontro, como não ser afetado por ele.
No caminho da arte como linguagem-afeto e território da alteridade ainda
ouvimos Léo que nos relata

“Meu principal objeto quando eu comecei a fazer o que eu faço, é ser


feliz. Quando eu faço isso, apresento, ensaio, me exponho ao público, eu
sou feliz. Meu objetivo como ator eu alcancei, quando sinto que consigo
transmitir alguma coisa pra alguém, quando eu olho pro meu público e
sinto que os cativei, sei que alcancei meu objetivo” (Léo).

Assim, percebemos que para Léo a sua produção se faz no diálogo entre
os afetos gerados em si (“meu principal objetivo [...] é ser feliz) pela possibi-
lidade de encontro com o outro (“meu objetivo como ator eu alcancei, quando
sinto que consigo transmitir alguma coisa pra alguém [...]”). Poderíamos
assim, traduzir que Léo nos diz “faço o que faço para ser feliz e consigo ser
feliz quando cativo o outro”.
Se nos atentarmos a polissemia do cativar, o dicionário nos relata que
cativar é “ficar ou permanecer cativo (perder a liberdade); estar preso (fisica-
mente ou moralmente); sujeitar-se”, ou seja, deixar-se apreender pelo outro,
ou como lindamente descreve Exupery (2009) em sua obra clássica, cativar
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 113

é criar laços é ter necessidade do outro e, assim, nos tornarmos “[...] eterna-
mente responsável pelo que tu cativas” (Exupery, 2009). Cativar como esse
lugar da alteridade.
Sabendo que os signos foram sendo construídos desde os primórdios da
civilização, em meio as relações que nela se engendram, portanto relaciona
o eu e o outro, o sujeito e a sociedade no processo histórico de construção
desta, de maneira que cada pessoa seria assim: “um agregado de relações
sociais encarnadas num sujeito”, (Vygotski, 2000, p. 33 apud Zanella, 2005,
p. 103), a linguagem artística passa também a ser entendida como signo,
portanto como mediação cultural.
A arte como linguagem se expressa através de signos, que ao serem
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

objetivados pelo artista, levam o outro/espectador a processos subjetivos de


apropriação/compreensão da arte. Se ela lhe afeta (sujeito-espectado) então o
modifica e passa a significar para si algo por vezes semelhante e, ao mesmo
tempo, distante ao que o sujeito-artista quis expressar, porém ao passar por
esse processo de subjetivação, recebe significados singulares dados por aquilo
que o espectador entende a partir dela. Assim, o sujeito atribui sentido aquilo
que já possuía um sentido anterior, tornando própria a significação da ação
do outro (Zanella, 2005; Zanella, 2004).
Também percebemos essa dialogia materialidade da obra/sujeito-artista/
sujeito-espectador e sua mútua constituição nas falas de Miguel, João e Léo
quando questionados sobre o sentido da arte onde estes nos apresentam seus
pontos de vista como observadores de arte e também como criadores de
arte. Vejamos:

“O que é arte pra mim? Nossa, é uma pergunta... [...] como observador
no universo [...] Um dos fundamentais pontos de ser alguma coisa no
universo é você observar alguma coisa e tentar transmitir o que você
observou de algum jeito, sabe? As vezes de uma história, as vezes de
uma música que eu acho que é muito... a música que eu acho que é mais
próximo... eu acho que de um sentimento, puro assim, sabe? Ou as vezes,
uma pintura assim... então isso, você observou e você transmitiu o que
você observou da sua perspectiva artística-romântica no universo. Então
acho que pra mim é uma representação própria do universo. Então por
isso que eu gosto de improvisar, de não só reproduzir, sabe? Transmitir o
sentimento do momento de algum jeito assim. Isso é arte. Também repro-
duzir também é arte, porque você tá pegando o sentimento de uma outra
pessoa que reproduziu... e ai você tá contando histórias, assim. Então,
de algum jeito acho que todo o artista é um historiador de sentimentos”
(Miguel) [Grifo nosso]
“Pra mim um artista de rua, se ele tiver preparado para dialogar com
qualquer compreensão do que ele tá fazendo, se ele souber pasteurizar
114

o que ele tá fazendo, ele tem como pautar qualquer coisa sabe, por que
ele é o interventor na realidade, ele é uma pessoa que na verdade tira as
pessoas de da bolha em que elas vivem” (João).

É possível perceber, assim, os processos humanos de subjetivação e


objetivação, de construção de si e do mundo a partir das relações/diálogos
estabelecidos em trechos da fala de Miguel quando ele afirma observar (sub-
jetivação), atribuir sentido e transmitir (objetivação) sua perspectiva do uni-
verso. Sua fala evidencia ainda a arte como transcendência, quando refere
que o artista é um historiador, nesse sentido a arte materializada, objetivada,
no mundo conta uma parte da história, história deste sujeito, mas história do

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mundo o qual esse sujeito dialoga.
Alguns pontos trazidos na fala de Miguel e João, também nos remetem a
consideração de Vigotski (2009) quando este afirma que a atividade humana
pode ser a reprodução daquilo que já foi criado de forma mais ou menos pre-
cisa, quando o sujeito reproduz a partir de assimilações feitas da realidade.
Esse tipo de criação está intimamente ligada à memória e a plasticidade cere-
bral na medida que armazenamos conteúdo, transformando e conservando
conteúdos preexistentes.
Um segundo tipo de atividade é a atividade combinatória, esta foi deno-
minada por ele como atividade criadora por combinar e reelaborar experiên-
cias anteriores criando algo novo. É a atividade criadora (imaginação) que
faz com que o sujeito volte-se para o futuro e assim modifique o presente.
Vigotski afirma ainda que, embora a atividade criadora seja influenciada por
experiências vividas no passado, seja voltada para o futuro e modifique no
plano presente, também criamos a partir de coisas que nunca vimos, mas que
faz parte da História da humanidade e de alguma maneira nos afeta, com isso
afirma que: “Qualquer inventor, mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu
tempo e de seu meio. Sua criação surge de necessidades que foram criadas
antes dele e, igualmente, apoia-se em possibilidades que existem além dele”
(Vigostki, 2009, p. 42).
Desta forma, é possível entender a expressão de Miguel “historiador de
sentimentos”, no sentido de que este artista e historiador se apropria e recria a
realidade concreta; e também realidades alheias e histórias. Na opinião deste
artista a reprodução, ou ainda, a combinação de experiências materializada
em arte, transcende o si mesmo, responde a um tempo histórico, a algo que
está além do que é imediato.
A forma como o artista materializa no mundo a sua arte, é uma forma
de ação humana que transcende a própria ação, pois intervém e modificam o
contexto social. Desse modo é possível pensar que não somente o humano é
um agregado de relações sociais, mas o contexto social é resultado da ação
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 115

humana coletiva. Num processo dialético de construção e desconstrução, de


metamorfoses sociais e humanas (Zanella, 2004). E é nesse sentido que João
nos conta que

“a arte de rua é poderosa, ela te abre caminhos, porque quando tu percebe


isso, está respirando e vendo, e sendo testemunha de todas essas dores da
sociedade, alargando tua alma e indo pra muitos, ou seja, tua imaginação,
tua compreensão subjetiva, toda história produzida na humanidade e tu
tá tendo acesso a uma essência que é criativa” (João).

A alteridade é portanto o encontro mediado com o outro (o diferente),


essas relações fundam-se nos signos, que possibilitam a comunicação. Quando
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Vygotski (apud Zanella, 2005), se refere a um encontro consigo, assim o faz


porque este encontro também é social, visto que o indivíduo só é indivíduo
pois se constitui no coletivo, sendo assim, o encontro com o outro, permite a
compreensão de quem somos e quem podemos vir a ser. Essa processualidade
e flexibilidade para a mudança, é caracterizada pela autora como “desestabi-
lizadora” e produtora de heterogênese.
Esse encontro com o outro e consigo mesmo (composto por muitos
outros) é evidenciado também em outra fala de João, bem como nos discursos
de Pedro e Ana, ao afirmarem que

“Na rua tu tem oportunidade de apresentar, quem tem interesse vem e


conversa contigo, tu olha dentro dos olhos dela, e a pessoa fala com você
de frente, sabe? Você encosta na pessoa.” (Pedro) [Grifo nosso]
“Tu consegue ‘tá’ se apresentando, tu percebe que a pessoa ‘tá’ te assis-
tindo mas ao mesmo tempo vocês percebem que vocês estão conversando,
entende? (Anna) [Grifo nosso]
O artista, na verdade, ele ta buscando nas relações diretas uma possibi-
lidade de tocar algo que penetre, e de ser tocado também. O artista, na
verdade, ele ta buscando nas relações diretas uma possibilidade de tocar
algo que penetre, e de ser tocado também (João).

Esses encontros que ocorrem no cotidiano das ruas, possibilitam uma


troca que passa não apenas pela via monetária, que perpassa a lógica da
sociedade capitalista, mas passa pelo afeto das pessoas.
Nos lembra Guatarri (1992, p. 167) “o ser humano contemporâneo é
desterritorializado. [...]. A subjetividade entrou num reino de um nomadismo
generalizado”, característico de uma sociedade liquida e de consumo onde tudo
se torna mercadoria que passa de mão em mão, de território a território, sem
lugares de parada. Entretanto, o mesmo Guatarri (1992, p. 170) nos recorda
a importância de reconstruirmos uma cidade-subjetiva, isto é, que possamos
116

re-singularizar as finalidades da atividade humana, fazê-la reconquistar


o nomadismo existencial [...]. Destacar-se então de um falso nomadismo
que na realidade nos deixa no mesmo lugar, no vazio de uma moderni-
dade exangue, para acender as verdadeiras errâncias do desejo, quais as
desterritorializações técnico-científicas, urbanas, estéticas, maquínicas de
todas as formas, nos incitam.

E, nesse caminho, a arte-linguagem-afeto, demonstrou-se potente nas


falas dos artistas participantes da pesquisa, pois ela possibilita esse encontro
outro com a alteridade, com a cidade; não mais regido por uma lógica práti-
co-utilitária ou funcionalista, mas sim pela lógica do sensível, do encontro,
ou por uma estética da delicadeza do cotidiano. Agregam a essa lógica, as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


falas de Pedro, Miguel e João:

“Isso que é o mágico, tá ligado? Você... as vezes você nem tirou o tanto
que.. tipo, sei lá, você tá passando um chapéu, tá vendendo um cd [...]
você não tem certeza quanto você vai ganhar naquele dia. Mas... po,
velho, se para uma pessoa ali e ela realmente parou a vida dela pra ti
ouvir, velho, entendeu?” (Pedro)
“Quando eu viajava com o Pedro. [...] nós... As vezes conhecia as pes-
soas, teve uma vez que a gente chegou numa cidade em onze pessoas. Era
em quatro na banda na época, a gente conhecia as pessoas, ia fazendo
amizade... as vezes, outros viajantes ou outros artesãos, outros músicos,
eles iam com a gente... as vezes dançarinas, dançando bambolê, faziam
esse percurso com a gente. Se tornavam amigos e ia se conhecendo na
estrada assim. E muitas vezes a gente se encontra em diferentes lugares.
As pessoas que eu encontrei lá no RS, encontraram com os meus amigos
que estão viajando com música no nordeste, em SP, em Minas. Isso é muito
maravilhoso também, então sim, acontece seguido de a gente terminar de
tocar, sair pra conhecer pessoas e acaba, as vezes até conseguindo um
lugar pra dormir. Teve vezes que a gente chegou na cidade assim, sem
um real. A gente toca, consegue um dinheiro, consegue ter o que comer,
faz contato. Tem pessoas que dizem: não, você pode dormir aqui em casa
hoje a noite, até vocês se estabelecerem então, ou ficam uma semana, fica
um mês inteiro, “vamô” lá, tem espaço, tem cama, tem tudo” (Miguel)
“Espectadores? Mais próxima possível, se possível, eu nem fico sabendo
quem são espectadores. Não existe essa relação. Eu gosto de romper com
a quarta parede, a todo custo. Não os chamo de espectadores, os chamo
de construtores da realidade” (João) [Grifo nosso].

Percebemos nessas falas o quanto o encontro com o outro (o outro artista


de rua, o outro espectador - construtor da realidade) é potente na vida dos nos-
sos entrevistados e assim reafirmamos o que considera Fuganti (2012, p. 76)
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 117

quando afirma que “[...] só há acontecimento no encontro, é no encontro que


algo nos acontece e se produz como causa de si em nós [...]. Todo acontecer
nos coloca necessariamente na dimensão do inédito e da diferença irredutível,
incomparável. É que jamais permanecemos os mesmos a cada encontro”.
João ainda colabora nesse entender da potência do encontro, territoria-
lizando este na cidade, nos permitindo lembrar que

A cidade é o nível de interação que há entre as pessoas, quem faz as


cidades são as pessoas, logo, existem cidades que dependendo de quem
interage com esse lugar tem uma leitura, tem tanto que é por isso que tu
no processo de conexão com outro povo. Se tu fosse me apresentar Itajaí,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

o que que tu iria me apresentar? São as tuas referências do que é essa


cidade, e a cidade vai ser apresentada através do teu olhar, através da tua
palavra, através da tua sensibilidade, através da tua experiência, através
da tua história de vida. E isso, o artista então cria essas ressignificações,
por que o espaço que pode ter um contexto arquitetônico, no momento
que tu me leva lá e eu to lá, como um mágico por exemplo, eu posso criar
um momento ali que não fazia parte do que tu tava imaginando. Sabe, em
relação ao teu circuito, ao teu fluxo. E isso é muito magico, interessante.
O artista de rua, ele ressignifica a memória afetiva de um lugar (João)
[Grifo nosso].

Assim, naquilo que João nos coloca, como signo, a arte possibilita esse
re-encontro com a cidade, provocando novos encantos e novas significações,
pois reconhece-se que na memória permanece o que cativa, além do “[...]
patrimônio arquitetônico e seu estilo, que nos acompanham por toda nossa
vida, as paisagens, as datas e personagens históricas [...]” (Pollak, 1998, p. 3).
Prosseguindo em nossa co-produção com os artistas, lembremos que
para Vigotski (2009) a criação é condição necessária para a existência no
cotidiano, nesse sentido nos deparamos com falas como a de Anna e Carlos,
que se comparadas aos escritos deste teórico expressam o que este chamou de
Imaginação Coletiva. Ao serem questionados sobre o que é necessário para
ser um artista, Anna e Carlos respondem:

“[...] tem gente que tá lá, fazendo pão todo dia e tendo gosto nisso, e ‘po’,
melhor pão do mundo, saca? Coisa que eu não consigo fazer, então pra
mim, isso ai é artista (Anna).
“Não tem prazer maior que estar fazendo o que se ama cara… Tu não
precisa de nada além de querer ser feliz e viver do que se ama” (Carlos).

O que Anna percebe “no fazer do pão” ou Carlos no “fazendo o que


se ama” é explicada por Rubem Alves (2004) como sendo a complicada
118

arte de ver tal como fazem as crianças e os poetas. Estes encontram poesia
nas pedras, nas paisagens, no cozinhar. Para este autor, algumas pessoas de
olhos sãos, nada veem. Para estas os olhos são apenas ferramentas. Já quando
verdadeiramente olhamos para o cotidiano, percebemos a criação que há nos
“pequenos grãos” mencionados por Vigotski (2009), para ele a criação não
ocorre apenas na elaboração de grandes obras artísticas, aquelas feitas pelas
mãos dos gênios, a criação ocorre no cotidiano das pessoas, quando o sujeito
imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esta criação seja
apenas um grãozinho comparada as criações de pessoas consideradas geniais.
A imaginação coletiva seria aquela que une todos estes “grãozinhos”, não
raros considerados insignificantes. Vigotski (2007) afirma ainda que grande

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


parte das criações pertence ao trabalho criador anônimo e coletivo de artis-
tas desconhecidos.
Nisso estaria aquilo que Freire (1998) chamou de boniteza da vida, ou o
que contemporaneamente chamamos de uma estética da delicadeza, que nos
transpõe para um tempo além do tempo do capital, nos leva para o tempo da
delicadeza onde

[...] vislumbramos o futuro no presente, de olhos dados com o passado. Um


tempo em que pensamos naqueles que ainda vão nascer e nos comprome-
temos com os vindouros aqui e agora. O tempo da delicadeza é também
um tempo de escuta, ou melhor, de sermos testemunhas de experiências
que se não forem ouvidas poderão ficar para sempre emudecidas (Gusmão;
Jobim; Souza, 2008, p. 30).

Assim, vemos que para os artistas de rua, o território da cidade é esse


espaço-tempo de encontro artístico-linguístico com o detalhe da criação
constante de nós mesmos, do que fazemos com amor, do que fazemos bem,
ressignificando o próprio conceito de trabalho, para além do capital, trabalho
como criação, como poiésis.
Cabe lembrar que Vigotski (2007) considera que o ser humano age sobre
a natureza e cria, através das mudanças nela provocadas, novas condições
naturais para sua existência, sendo esse o conceito de trabalho na obra deste
autor. Dessa maneira, o trabalho seria a ação humana sobre o mundo que
transforma o mundo ao mesmo tempo em que transforma a consciência.
Trabalho este de dar sentido ao mundo, pois ao darmos sentido ao mundo
o transformamos e agimos sobre ele a partir dos sentidos que damos. Mas
só conseguimos dar estes sentidos a partir dos sentidos já produzidos a este
mundo. Sendo assim, nessa perspectiva, o trabalho sempre é criação: de si e
do mundo, perspectiva essa percebida nas falas de João e de Léo.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 119

Trabalho, dentro de uma filosofia libertária, é a conquista de uma per-


sonalidade pra tradução de alguma ferramenta que aproxime as pes-
soas. (João)
Trabalho é trabalho, tudo é trabalho, no quesito ofício, trabalho é ação, é
estar produzindo algo, nunca estar parado, estar sempre buscando algo,
com ambição de um resultado maior, independente de ser renumerado
ou não. (Léo)

Assim, podemos perceber que nas falas dos sujeitos dessa pesquisa o
trabalho por si já é arte (ainda mais se considerarmos o que Ana nos coloca
quando afirma que fazer um pão bem feito seria arte), pois compreende nossa
ação de transformação criadora do mundo e de nós mesmos. Por isso a com-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

preensão de trabalho como poiésis, ou seja, como “[...] ‘caráter poético’ da


existência como vontade de poder, o qual não diz as coisas tal como são, mas
apenas as coloca interpretativamente” (Apolinário, 2011, p. 188), sob ação
do sujeito que a produz.
Diante dessas falas, além de mobilizadas, nos sentimos extremamente
afetadas. Ora por saber que há muito a se pesquisar neste universo artístico, ora
por saber que tivemos que escolher o caminho que seguíramos nesta análise,
e com isso, também deixamos de compreender muitas outras questões. Além
de saber que essas três unidades de sentidos que escolhemos contempla tão
superficialmente a realidade vivida por eles. O discurso desses sujeitos é tão
rico e tão cheio de aprendizagens, que se torna um tanto quanto inviável fazer
qualquer análise em cima de algumas horas de conversa. Mas ainda assim,
neste pequeno resgate de algumas falas, conversando com alguns autores
dos quais escolhemos para dar conta destes discursos, ainda assim, podemos
concluir a grandeza que foi este processo.

5. Considerações Finais
“Fique atento: experimentar afetos sinaliza a enunciação de outras formas
de agir a partir dos modos de expressão que vamos percorrendo. Quando
afetados pelas audições e visões, gostos e cheiros, toques de vidas que
nos forçam a pesquisar na historicidade de um tempo que acontece, per-
cebemos que nossas questões são feitas de vidas. Assim, exercitamos uma
ética e expandimos nosso conhecer nas relações de uma vida de todos em
nós, de uma vida de si com todos” (Lazzarotto, Carvalho, 2012, p. 24).

Essa foi nossa proposta na produção dessa pesquisa: experimentar os


afetos que ela nos possibilitaria no encontro com os artistas de rua, com a
cidade, com a arte. Reencantar, descritalizar (em nós) e recristalizar (nesse
120

texto) aquilo que nos afetou e nos mobilizou no decorrer da produção desse
trabalho de iniciação científica.
Inicialmente pensou-se na arte como genialidade, como o que está nos
museus, que é pouco acessível, esta que pertence apenas aos mais afortunados
ou dotados de um grande talento. Por outro lado, os discursos dos sujeitos
mostraram a arte como “poesia cotidiana”, como pequenos “grãozinhos”,
tal como propõe Vigotsky (2004) e Rubem Alves (2004) ou como “fazer do
pão” como propõe um de nossos sujeitos de pesquisa. Percebemos ainda a
arte como condição para a existência, como necessidade humana de superar
certos aspectos do psiquismo que não encontram vazão na vida cotidiana. Isso
pode ser percebido nas falas como a de Anna: “ahh, então eu desenho quando

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tenho que ficar quieta” (Vygotski, 1999).
Criar possibilita ao sujeito comunicar-se com o outro em uma relação
de alteridade através da arte como linguagem e com isso promove saúde, isso
por que a experiência estética promove a superação e elaboração de sentimen-
tos. Tanto aquele que cria quanto aquele que observa a arte experimentam
essa “experiência estética”. Isso por que observar consiste em um dialogar
com a arte, é um trabalho psicológico complexo, uma síntese dos elementos
dispersos da totalidade da obra, por tanto é também (re)criação. Essas expe-
riências estéticas que se comunicam, como artista e como espectador de arte
aparecem também nas falas dos sujeitos da pesquisa, que compreendem a si
mesmos tanto como observadores do universo quanto como historiadores de
sentimentos (Vigotsky, 2004).
Nesse sentido, a arte aparece como instrumento de luta pela existência,
como promotora de saúde através da sublimação e da catarse. Porém foge aos
objetivos da nossa pesquisa um aprofundamento maior sobre o campo bioló-
gico da arte. Deixamos este espaço para as pesquisas que surgirem a posteriori.
Respondendo a algumas das perguntas que nos inquietaram no decorrer
da pesquisa, encontramos nos artistas o movimento político de apropriação dos
espaços, de expressão de uma vivencia estética e política de seus corpos. Uma
forma de sociabilidade, de relação com o outro (alteridade) e com o entorno
(Nogueira, 2009; Nogueira, 2012; Zanella, 2005). Nesse caminho, passamos
a compreender que a percepção sensorial da arte é apenas um impulso para
algo muito mais complexo, para uma emoção estética e, com isso, um fazer
político (Nogueira, 2009).
Um dos sujeitos de nossa pesquisa questiona “de quem é a rua?”. É esse
movimento, esse fazer político que instiga estes sujeitos a viverem a arte na
cidade, em meio as suas contradições, mesmo diante da desqualificação social
que essa escolha proporciona.
Com isso criam movimentos de ocupação de prédios, festivais de arte
de rua ditos “clandestinos”, viajam pelo país em busca de bons encontros,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 121

fugindo da lógica do consumo, do espetáculo, das relações prático-utilitárias,


tal como vivemos na sociedade que conhecemos. A arte torna-se assim, um
movimento de resistência ao que está posto, ao jogo social comum às “relações
perversas de alteridade” (Nogueira, 2009).
A arte de/na rua, passa a ser uma escolha ideológica comum a estes
sujeitos, que inspira aos mesmos a continuidade desse trabalho. Os sujeitos
desta pesquisa expressam a ideia de que não trocariam o afeto que encontram
na rua pela visibilidade midiática. Com isso nos deparamos com alguns dos
nossos preconceitos como pesquisadoras/humanas, no sentido de que não
percebíamos esta ideologia vivida pelos artistas antes de conhecê-los, de
dialogar com eles. Pensávamos nesses sujeitos como invisíveis aos olhos de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

quem passa por eles nas ruas, porém, nos deparamos com a noção de que
estes sujeitos relatam se sentirem recompensados pelos bons encontros que
vivenciam diariamente.
Alguns dos entrevistados relatam terem vivido experiências em galerias
e orquestras, e preferirem a rua como cenário de práticas. Evidenciaram-se
nas falas o motivo: a troca de olhares, o toque, a “conversa” através da arte,
o sentir-se valorizado por que a pessoa “parou a vida dela” para ouvir, a
remuneração através de um prato de comida, abrigo por um dia ou por um
mês, um bilhete de agradecimento, lagrimas de emoção.
Por fim, finalizamos esta pesquisa extremamente felizes e satisfeitas com
o resultado, embora, como já tenhamos dito, este trabalho não contempla nada
perto da grandeza que é o universo artístico de rua e tudo o que há nele para
ser pesquisado e compreendido. Todo o processo foi muito gratificante e cheios
de aprendizados, que não foram só acadêmicos, e isso é o mais importante.
Neste processo nos tornamos muito mais humanas. Nós nos permitimos ser
afetadas por. E espero que você, leitor e leitora tenha se permitido também.
E que termine essa leitura se sentindo um pouco diferente de como estava
quando começou. Assim como nós.
122

6. REFERÊNCIAS
EXUPERY, A.S. O pequeno príncipe. 49. ed. São Paulo: Casa dos
Livros, 2009.

GUATARRI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora


34, 1992.

GUSMÃO, D. S.; JOBIM E SOUZA, S. A estética da delicadeza nas roças


de Minas: sobre a memória e a fotografia como estratégia de pesquisa-inter-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


venção. In: Psicologia & Sociedade, v. 20, n. esp., 2008, p. 24-31. Disponí-
vel em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v20nspe/v20nspea05.pdf. Acesso em:
nov. 2016.

LAZZAROTTO, G. D. R.; CARVALHO, J. D. Afetar. In: FONSECA, T. M.


G.; NASCIMENTO, M. L. do; MARASCHIN, C. Pesquisar na diferença:
um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012.

LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens


qualitativas. São Paulo: E.P.U., 1986.

MAXWELL, A. Subjetivação pela via dos afetos. Rio de Janeiro: PUC-


-Campinas, s./d. Disponível em:

NOGUEIRA, M. L. M. Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e


trabalho. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 69-85, Apr.
2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1984-02922009000100006&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 nov. 2016.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1984-02922009000100006.

NOGUEIRA, M. L. M. Corpos Políticos. Salvador: Seminário Internacional


Urbicentros, 2012.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos,


v. 2, n. 3, 1998, p. 3-15. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/
Memoria_esquecimento_silencio.pdf. Acesso em: nov. 2016.

QUEIROZ, Â. H. Migração Familiar: Da Quebra à Reconstrução das Redes


Sociais Significativas. Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 123

Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Psicologia.


Florianópolis, 2008.

QUEIROZ D.T.; VALL, J.; SOUZA, A. M. A.; VIEIRA, N. F. C. Obser-


vação Participante na Pesquisa qualitativa: Conceitos e aplicações na área
da saúde. R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 276-83, abr./
jun. 2007.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO


Experimental org. Ed. 34, 2005.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

REY, G. Diferentes abordagens para a pesquisa qualitativa, fundamentos


epistemológicos. In: Pesquisa qualitativa em Psicologia. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2005.

REY, G. Diferentes abordagens para a pesquisa qualitativa, fundamentos


epistemológicos. In: Pesquisa qualitativa em Psicologia. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2005.

SPINK, P. K. O Pesquisador Conversador no Cotidiano. Psicologia & Socie-


dade, v. 20, Edição Especial, p. 70-77, 2008.

VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento Sistêmico – O novo paradigma


da ciência. Campinas, SP: Papirus, 2002.

VAZQUEZ, A. S. As ideias estéticas de Marx. São Paulo: Editora Expressão


Popular, 1997.

VIGOTSKY, L. S. Imaginação e criação na infância: livro para professo-


res. São Paulo: Ática, 2009.

VIGOTSKY, L. S. Psicologia Pedagógica. 2. ed. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2004.

VIGOTSKY, L. S. Teoria e método na psicologia. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2001.

VIGOTSKY, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


124

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ZANELLA, A. V. Atividade, significação e constituição do sujeito: Consi-


derações a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Psicologia em Estudo,
Maringá, v. 9, n. 1, p. 127-135, 2004.

ZANELLA, A. V. Sujeito e Alteridade: Reflexões a partir da Psicologia His-


tórico-Cultural. Psicologia & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 2, p. 99-104,
maio/ago. 2005.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


TERRITÓRIOS, CORPORALIDADES E
SENSORIALIDADES: a pesquisa cartográfica
e os dispositivos de produção de conhecimento
Gustavo da Silva Machado
Marina Corbetta Benedet

1. Corporalizar a pesquisa - diálogos iniciais


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

O que pode um corpo? Diz-se ser essa uma das questões que Spinoza
se propõe a responder. E por aqui sigo a repetir essa pergunta: o que pode
um corpo? Talvez eu, Marina - como mulher cis, psicóloga, pesquisadora,
bailarina, docente, entre tantas de mim - precisaria amalgamar essa questão
com uma outra: sobre qual corpo se questionar o poder? E apresento essas
questões como início de uma conversa a qual considero imprescindível no
campo de produção do conhecimento científico.
Entendendo o corpo como território onde se produz relevos, disputas,
inscrições, potências e limites-bordas a serem sempre negociados na arena
alquímica-discursiva do encontro com tantos outros corpos, pensar pesquisa
é habitar esse corpo-território inteiro a tensionar o lugar-saber desse discurso
que, ainda hoje, opera na lógica de uma racionalidade funcionalista e prag-
mática a garantir na cabeça - apartada de toda sua “extensão” - única morada
do pensar capaz de delimitar “a” verdade sobre o mundo e a vida.
A você que por aqui chega, talvez ainda seja necessário te contar que
essas questões nos são caras tendo em vista a realidade com a qual nos depa-
ramos. O ano é 2023, o lugar é Brasil dentre os tensionamentos presentes
saliento aqui o negacionismo do campo científico (e o que vem se chamando
de pós-verdade), a hipervalorização de uma determinada forma de ciência
(carente de exercício crítico-reflexivo) e o questionamento sobre outras epis-
temes chamadas de pseudociências. Nesse campo, a dialogar com a Psico-
logia - essa de letra maiúscula para indicar o território da ciência - nos pede
o exercício político de novamente questionar - o que pode um corpo? O que
pode o meu corpo-mulher como pesquisadora-docente a produzir conheci-
mento científico em outros territórios-ciência?
Na produção desse itinerário em letras, desejo seguir acompanhada, pois
ao apresentar estes questionamentos também entendo que o território-saber
corpo é múltiplo, não somente na minha experiência, mas no corpo social que
126

tece o chão dos caminhos do saber científico psi. E assim convido-interrogo:


Gustavo, o que pode um corpo? O que pode teu corpo-saber no território Psi?
Recebo a potente provocação, Marina, de modo tentar fazer o difícil
exercício de me olhar no espelho, este mesmo que nos ensinaram mais a temer
do que admirar. O que vejo neste corpo-subjetividade que, por via de regra,
foi marcado pela imposição da norma ao longo do processo de constituição
psíquica? O que sobra nesta tensão entre a interioridade e a exterioridade e
produz uma dobra suficientemente capaz de me anunciar em nome próprio?
Este é um percurso sobre o qual não me sinto - ainda - capaz de nomear com
facilidade, mas posso dizer que, paulatinamente, este corpo-subjetividade
passa a se tornar habitável na medida em que, a partir da coletivização da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


experiência, percebo que é possível viver dissidente à norma. Afinal, quem
deve ser questionada é ela.
Uma das principais questões que marcam minha experiência no território
Psi foi a busca por uma “voz” dentro do campo da produção do conhecimento.
Ou melhor, uma voz que fosse passível de ser escutada. Talvez, Marina, este
seja um dos pontos que nos conectam para esta escrita. Imerso em um terri-
tório subjetivo onde, historicamente, a literatura era o espaço capaz de fazer
da realidade algo suportável, minhas palavras ganharam uma predisposição à
poesia. Na medida em que a norma me impunha um ideal de masculinidade
e heteronormatividade, era nas figuras femininas da obra clariceana1 que eu
encontrava identificação. E imagine a audácia: coabitar ciência e a literatura
em um terreno tão instável quanto a Psicologia que, desde o século XIX tenta
se posicionar “mais para lá do que para cá”. Veja, Marina, coloco-nos neste
“cá” que representa o “aqui-agora” da produção de conhecimento que relati-
viza as fronteiras e nos permite redimensionar a noção de ciência.
Por isso, gostaria de chamar mais algumas pessoas para conversar
conosco, Marina. Além de você, leitora, teremos a companhia de algumas
pessoas que, ao longo deste texto, nos ajudarão a responder com seus textos
já publicados a pergunta que nos pulsa: por quais motivos certos dispositivos
de produção de conhecimento ganham peso de legitimidade em prol de uma
noção de verdade hegemônica? Para isso, desbravaremos nossas experiên-
cias como pesquisador e pesquisadora no campo da cartografia, um método
de pesquisa constantemente questionado em relação a sua possibilidade de

1 Por obra clariceana entendo os livros da escritora brasileira Clarice Lispector. Ao longo de sua vida, mar-
cada por idas e vindas, como ucraniana que se tornaria brasileira por necessidade e sobrevivência, Clarice
imprime em suas obras a delicadeza do fluxo de consciência e nos convida a habitar os pensamentos de
suas personagens principais, em sua maioria, mulheres. Foi neste lugar subjetivo e, ao mesmo tempo,
concreto, que me encontrei com o desejo de ser psicólogo e, sobretudo, que forjei parte significativa daquilo
que entendo como minha própria identidade.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 127

inclusão nos meandros da ciência. A cartografia, como método, se propõe a


acompanhar processos e, como herança da geografia, parte da premissa que
relações psicossociais também produzem uma paisagem e, por isso, são pas-
síveis de serem mapeadas. O traço cartográfico dá vez para a palavra. Como
nos adverte Rolnik (2014), a cartografia nos lança, inevitavelmente, para a
dimensão do afeto e, por isso, convida a pessoa pesquisadora a não temer a
fronteira entre “pesquisador-objeto”. Ao contrário, ela passa a ser, também,
foco da análise.
Assim, retomando a pergunta feita pela Marina, gostaria de tentar pro-
blematizá-la um pouco mais: qual corpo pode produzir ciência? Talvez esta
seja a pergunta que me mobiliza quando tento descrever em palavra o afeto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que me pulsa quando penso em pesquisa no campo da Psicologia. Quais


corpos são questionados em relação a sua “confiabilidade”, “parcialidade” e
“reprodutibilidade”? Assim como Bhabha (1998) alerta para a ideia de que
as sexualidades dissidentes, na verdade, são sexualidades policiadas pela
norma, acredito que adentramos neste capítulo, Marina, em um espaço de
produção de conhecimento também policiado pelas táticas de produção de
verdades que coadunam com a noção de sujeito universal. Da mesma forma,
trago a potente reflexão de Preciado na conferência proferida na École de la
cause Freudienne em 2019: nossos enquadres epistemológicos binários nos
amarram cognitivamente a chegar nas mesmas respostas. A crise contempo-
rânea nos convoca a rever a forma como fazemos perguntas. O que Preciado
(2021) sugere como efeito de sua fala, o “terror epistêmico no divã”, gostaria
de tomar de empréstimo e lançar um terror método-epistêmico na produção
de pesquisa, apresentando nossas ousadias e questionamentos dentro deste
campo. Afinal, quem construiu o medo dos monstros que tememos?

2. Cartografando territórios, corporalidades e sensorialidades:


o método para dialogar com o método

Peguei meu chá e, confesso, fui provocada pelos teus questionamentos


Gustavo. Um chá para a pausa do silêncio necessário à construção dos diá-
logos, apreender as sensações que esse encontro-conversa provoca enquanto
afetos e cognições. Ao seu convite a outros interlocutores, fiquei a corporalizar
o território da cartografia. Acredito que apresentar essa proposta metodológica
é imprescindível não apenas como caminho de método, mas como caminho
para pensar o método.
Explico: apresentar a cartografia aqui enquanto proposta não é apenas
pensá-la como caminho metodológico, nem “defendê-la” como opção única
ao nosso grupo, mas sim transbordá-la como caminho de pensar ciência, em
128

específico a ciência Psi em seus modos de produção de conhecimento. Sim,


isso é um exercício de usar o método para pensar o método. E muito provocada
pela nossa conversa sobre o que pode uma corpa2 e sobre qual corpo pode o
que, tendo em vista que quando pensamos a cartografia torna-se mister uma
sujeita pesquisadora de corpa inteira, que sente-pensa a partir dos encontros
com o mundo, num processo de construir esse mundo e de ser construída por
ele a medida em que produz o conhecimentos e afetos.
De maneira singular, gosto da construção de Krastrup (2018, p.9) quando
ela afirma, no prefácio de uma obra, que “saímos tocados e aprendemos
também sobre a importância da atenção aberta e concentrada nas pesquisas
de campo, bem como sobre a potência do corpo sensível do cartógrafo”, lem-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


brando que o fazer pesquisa a partir do corpo cartográfico é uma construção
que toca e mobiliza pelas potências que este provocam esse corpo e que ele
provoca em outros corpos.
Saliento ainda que o corpo é entendido como território e que

os territórios não são espaços geográficos, cujas fronteiras são desenhadas


pelos signos que emitem. Os signos são emitidos por pessoas ou coisas,
e podem ser apreendidos por diferentes sentidos - visão, audição, tato,
olfato, paladar. Podem ser olhares, sons, texturas, temperaturas, gostos
e atmosferas. Entre o objetivo e o subjetivo, os signos portam enigmas
que exigem decifração e possuem um tempo próprio de reverberação
(Kastrup, 2018, p. 6)

Ou seja, um corpo território é um corpo sensível ao encontro com o


mundo, com o outro, num entendimento de que a construção científica é
também permeada por esse corpo-pesquisador(a) em sua dinâmica afetiva-sen-
sorial. Somos corpo, não como entidade ou dado, pelo contrário, como devir-
-encontro, construção sensível e cognitiva que também precisa ser apreendida
pelo pesquisador(a) na construção do conhecimento científico.
Corpo-território múltiplo e povoado, como canta Sued Nunes (2021)

“Ei, Povoada é um-um nome curioso né?/Porque a gente sempre fala de


Povoada/Em relação à Terra né?/A Terra é povoada/Mas, também sou
terra/A gente também é terra de povoar/Deus te ajuda/Deus te ajude e te

2 Há uma decisão ética, estética e política em assumir a grafia da palavra corpa e posicionar-me mulher neste
campo. Como pesquisadora das questões de gênero e compreendendo que a linguagem é caminho de
constituição do que somos como também espaço de disputa política, construir nesse território da linguagem
acadêmico-científica o lugar das mulheridades é primordial como posicionamento no mundo, exigindo o
tensionar dos sentidos já produzidos pela construção de sentidos outros na arena discursiva. Assim, sem-
pre que possível a compreensão e tensionamento do texto escrevo no feminino, procurando caminhos de
desterritorializar e reterritorializar a linguagem e as sujeitas.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 129

livre do mal/Te desejo tudo de bom, viu fia’? (Povoada!)/Eu sou uma, mas
não sou só, minha fia’/Povoada/Quem falou que eu ando só?/Nessa terra,
nesse chão de meu Deus/Sou uma mas não sou só/Povoada/Quem falou
que eu ando só?/Tenho em mim mais de muitos/Sou uma mas não sou só”.

Então, quando ouço o convite-provocação para pensar a cartografia me


vejo diante, novamente, dessa questão do que pode o corpo de quem pesquisa,
qual corpo. Um passo a mais: o convite-convocação a que pesquisadores e
pesquisadoras do campo psi tornem seus corpos corpos-sensíveis em qualquer
que seja seu fazer pesquisa, corpos que possam produzir sentidos-sentires-sig-
nificações na arena potente afetivamente de encontro com o outro (mundo,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pessoas, coisas) transformando-se e construindo essas realidades. Um corpo


sensível e aberto ao encontro envolve uma postura em que “[...] a análise de
implicações do pesquisador consiste na análise de suas pertenças e referências
institucionais que o constituem e atravessam, ‘analisando também o lugar que
ocupa na divisão social do trabalho na sociedade capitalista, da qual também
é um legitimador por suas práticas’ (Romero, 2018, p. 16).
Dois passos a mais: corpo que vem povoado dos autores lidos, das narra-
tivas vividas, dos encontros como sujeito(a)-pesquisador(a)-pessoa no mundo,
corpo histórico, “sou uma mas não sou só”, tendo em vista que “os diferentes
lugares que o pesquisador ocupa no cotidiano e em outras áreas da vida, na
história em geral, também passam a fazer parte do campo de análise” (Romero,
2018, p. 17). Corpo este que ao ser atravessado pela realidade que investiga
torna-se mais povoado ainda pelas vozes, imagens, cheiros, toques, sabores-
-saberes que reverberam nesse corpo-potente e potência. Ainda reverberando
o diálogo com Kastrup (2018, p. 8) “não é trivial escrever com o corpo e, ao
mesmo tempo, sustentar um trabalho rigoroso de pesquisa acadêmica”, mas
esse desafio torna-se imprescindível quando pensamos uma pesquisa implicada
ética, estética e politicamente.
Assim, posicionarmo-nos como pessoa-pesquisadora implica no genuíno
compartilhar de nossas afecções, interesses e desejos implicados no fazer
pesquisa, a ética aqui não é vista pela falaciosa lisura do distanciamento da
“neutralidade”, mas sim pela ação de também propor a analisar as implicações
de nossas escolhas, como lembra Romero (2018, p. 17) “as implicações do
pesquisador na escolha de seu tema de pesquisa, por exemplo, passam a dever
ser analisadas, uma vez que produzem também desdobramentos que indicam
o lugar que este ‘busca ocupar e do que lhe é designado ocupar enquanto
especialista com os riscos que isso implica’”. Bem, meu chá terminou…vou
esquentar mais uma água, na cumbuca, gengibre, canela, cravo, alecrim e
hibiscos. Trouxe meus convidados a este texto, por hora gostaria de ouvir-te.
130

3. Da inquietação ao “corpo vibrátil”: os caminhos de uma


pesquisa cartográfica

Marina, sinto-me corporalmente convocado para esta conversa, o que é


muito bom. Sentir reverberar no corpo os processos teóricos é algo que beira
o clandestino, não acha? Fomos habituadas separar o mundo com critérios
de formalidade que coloca na ciência uma posição um tanto asséptica, que,
convenhamos, pouco combina conosco. Quando penso nesta conversa que
estamos tecendo, imagino aquele tipo de troca que faz com que o corpo se
incline para frente, com a mão bailarina tentando descrever o que se passa
na folha de papel em branco que é o espaço entre uma pessoa e outra. Ou

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


seja, há algo pulsante aqui e aí, Marina, será que poderíamos chamar isso de
“corpo vibrátil”, como sugere Suely Rolnik (2014)? Para ela, o que poderia
definir o “perfil” da cartógrafa – com um enorme desafio de definição - seria
justamente certa disponibilidade para dar espaço à sensibilidade em lugares
onde ela foi sistematicamente sendo excluída. A proposta é, justamente, dar
atenção e sentido para o que reverbera também em nós no encontro com os
temas e campos de pesquisa, afinal, eles também não foram escolhidos à reve-
lia. Há um importante papel do desejo. Ou seja, corpo vibrátil seria, portanto,
um território corporal-subjetivo onde, no caso da cartografia, a pesquisa se
efetiva e, ao mesmo tempo, nos efetuamos como pesquisadoras.
Este corpo/corpa que se hibridiza no percurso teórico produz um território
de possibilidades que nos constrói como sujeitos fundamentalmente vulnerá-
veis, como nos indica Butler (2015). Somos vulneráveis, pois nos constituímos
na relação com o outro e dependemos disso para produzir nomeações sobre
nós mesmos e sobre o mundo. O mundo e seus referenciais simbólicos são
todos construídos em co-autoria, assim como este nosso texto, Marina. Nesta
investida da falaciosa neutralidade científica, por exemplo, fomos habituadas
a manter o corpo distante da produção de conhecimento. A Psicologia se fez
como ciência seguindo a proposta cartesiana: apenas nossa “mente”, dotada
de um saber neutro, seria capaz de analisar criticamente a realidade, propondo
uma leitura isenta de quem somos e sobre a realidade onde vivemos. Mas que
desafio retirar o corpo disso tudo, não é mesmo? Contudo, o trabalho foi tão
bem-feito que desaprendemos o caminho que intersecciona nosso corpo com
nossa práxis. Mais do que isso: fomos ensinados a temer nosso próprio corpo
ao longo deste processo. Que absurdo, Marina, somos assombrados por um
fantasma que está encarnado em nossas entranhas.
Vou exemplificar com uma de minhas práticas de pesquisa. Em 2016
iniciei minha pesquisa de mestrado. Acredito, Marina, que você deva lembrar
do quanto este momento nos convoca a ocupar uma posição de pesquisadora.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 131

Desde as reflexões teóricas até posicionamentos éticos de pesquisa, somos


posicionados em um lugar que nos faz pensar não só sobre a pesquisa em si,
mas, de fato, como ela será efetivada. Neste momento, precisei retomar quais
eram meus referenciais de pesquisadora e, muito rapidamente, fui invadido
por uma necessidade de adotar uma posição “neutra”. Que forte isso! Porém,
vou descrever um pouco como fui invadido pelo meu tema de pesquisa e de
que forma o olhar cartográfico foi de fundamental importância para o desen-
volvimento do corpo vibrátil, o qual foi tema de análise ao final do processo
de escrita.
Quando ingressei no mestrado, minha ideia de pesquisa era direcionada
para a atenção à saúde da população LGBTQIAPN+, especificamente para
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pensar sobre as barreiras no acesso. Definitivamente, esta ideia partiu por


ser algo que eu vivenciava no corpo e por integrar um grupo de pesquisa
ainda na graduação sobre este tema. Parecia-me algo implicado e, ao mesmo
tempo, concreto, com certa “aplicabilidade”. Porém, durante um estágio que
realizei em um Hospital Psiquiátrico durante a etapa de elaboração do projeto
de pesquisa, fui convocado a habitar outros territórios. Em um dos dias de
trabalho neste período, conversei com uma senhora que estava internada lá
desde os 14 anos e, na época, ela tinha pouco mais de 60. Lembro que quando
me deparei com esta informação, fui tomado por um sentimento visceral que
me questionava: como conseguimos aceitar, em qualquer momento histórico,
que o manicômio poderia ser morada de alguém e por tanto tempo?
Enquanto tive este encontro, esta senhora gentilmente me compartilhou
parte de sua história e deixou para mim um olhar de quem gostaria de me
contar mais coisas. Este olhar me invadiu. Este olhar me fez, imediatamente,
repensar o caminho de pesquisa que eu havia pensado para o projeto de
mestrado. De súbito, toda ideia já estruturada perdeu o sentido e eu queria
escrever sobre ela. Não necessariamente sobre a história dela, mas sobre os
modos de subjetivação dentro de um espaço tão árido quanto o manicômio.
Eu precisava escrever sobre ela. Marina, você já leu “A hora da estrela”? É
da Clarice Lispector. Como avisei, é nas mulheres de Clarice que encontro
amparo para minha prática de pesquisa. Neste livro, especificamente, o último
de sua carreira e publicado postumamente, Clarice apresenta uma narrativa
angustiada de um escritor chamado Rodrigo S. M. que é invadido por um olhar
enquanto caminhava na rua. Esta invasão o colocou em uma necessidade brutal
de escrever sobre ela, conhecer quem era esta mulher. Neste corpo vibrátil
oriundo de um encontro, de uma troca de olhares, nasce Macabea, uma das
personagens mais emblemáticas de Clarice.
E veja que terreno instável, Marina, este encontro aflorou em mim o
Gustavo S. M. (perdão do trocadilho, mas são minhas iniciais!) que precisou
132

colocar para fora o que tem pensado e questionado sobre as condições de


possibilidade dentro desta instituição, marcadas por regulações sexuais, de
gênero, sociais, diagnósticas, enfim, pela normalização do corpo transgres-
sor. Inclusive, ao se analisar a densidade da produção de “A hora da estrela”,
percebemos que Clarice Lispector nos apresenta nesta obra uma cartogra-
fia do estrangeiro de si, um mapeamento possível do não-lugar em meio à
cidade. Na construção da pesquisa, portanto, por meio da literatura trouxe a
figuração para uma experiência compartilhada por pessoas que tiveram suas
vidas enclausuradas em um dispositivo psiquiátrico3. Eu poderia falar com
mais detalhes sobre o que entendi, ao final da pesquisa, como “Experiência
Macabea”, mas gostaria de me ater aos efeitos no corpo e na relação com o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


campo, algo que foi determinante também para os resultados da pesquisa.
Primeiro, para efetivar a pesquisa, foi de fundamental importância per-
ceber o meu lugar na complexa cadeia de relações de poder que perpassam
um Hospital Psiquiátrico. Por exemplo, partindo de uma ideia asséptica da
produção de conhecimento, eu poderia realizar entrevistas semi-estrutura-
das com os moradores do Hospital Psiquiátrico buscando responder minha
inquietação inicial, a famosa pergunta de pesquisa. Porém, qual o peso do
meu corpo nesta trama relacional? Ao chegar como “o psicólogo pesquisador”
eu carregava comigo uma posição subjetiva histórica e polissêmica dentro
daquela instituição. Tive como objetivo principal desta pesquisa investigar
a relação entre modos de subjetivação e sexualidade a partir da experiência
de pessoas moradoras de uma residência terapêutica alocada em um Hospital
Psiquiátrico em Santa Catarina. Com tal objetivo, como chegar apenas per-
guntando e buscando respostas para uma inquietação que era apenas minha?
Para isso, percebi que precisava territorializar o campo (e territorializar
meu corpo no campo). Com idas frequentes ao hospital, ouvi histórias de
vida construídas dentro do manicômio e seu rol imenso de especificidades,
anotando minhas impressões e reflexões em um diário de campo alimentado
semanalmente após (ou durante) as visitas. Imagino, Marina, alguns questiona-
mentos possíveis: qual a ideia principal da pesquisa além de uma curiosidade
ou interesse pessoal do pesquisador? Primeiro, alerto que necessariamente
estava na pesquisa e havia muito de mim lá4. Aliás, eticamente é bom que

3 Pois, então Gustavo, das tramas tecidas na construção de minha tese, uma das imagens me enredou…
E versava sobre um corpo de uma criança atrás das grades de um pátio escolar… me falava sobre como
a escola enclausura a vida. Mas no diálogo com quem produziu a fotografia, o sentido era outro: o retrato
da irmã do amigo, a teia tecida do encontro afetivo possível que escorre pelos buracos que o encontro de
um fio de aço com outro constrói. Tecer a jaula que prende implica em deixar espaços para o que da vida
escapa mesmo nos lugares de encarceramento.
4 Gustavo tua interrogação provoca. Há muito de mim na produção da minha dissertação e mais ainda na
produção da minha tese. A tese foi um projeto de vida, de construção de um sonho possível de uma Marina.
Construir a pesquisa era construir a mim mesma, meu território de trabalho - tendo em vista que realizei
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 133

esteja, não basta falar dos outros, acredito ser importante implicar-me junto
ao campo para que não seja um falar sobre e sim um falar com. Aqui, retomo
a máxima cartográfica colocada por Rolnik (2014): cartografar é acompanhar
processos. Assim, se parto de uma ideia processual do fenômeno de pesquisa,
necessariamente, preciso compreender que o olhar do pesquisador precisa ser
localizado, assim como nos indica Donna Haraway (1995).
Assim, passei a fazer parte, ainda que por um período específico, da
vida daquelas pessoas. Conversando nas informalidades possíveis dentro de
um espaço marcado pela vigilância. Conheci os quartos, a horta, as salas de
atendimento e toda história que as pessoas me apresentavam em camadas,
feito tinta que vai descascando da parede. Com o tempo, fui percebendo que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

o manicômio se sustenta, especialmente, porque ele não tem paredes, ele é


relacional. Ele está aqui, Marina, está aí, está por todo lugar. O manicômio,
além de uma instituição total como argumenta Foucault e Goffman, também é
uma racionalidade sobre a diferença e, por assim ser, se efetua em um discurso
de exclusão que não depende de um artefato arquitetônico. Como concluí na
minha dissertação de mestrado, o manicômio existe para forjar a normalidade
(a externação, ou seja, o direito de estar fora) e, infelizmente, ainda somos
muito apegados a ela no fazer psi.
Bom, mas o que tudo isso tem a ver com o corpo, Marina? Vou che-
gar lá. Tentando focar nas questões do corpo na pesquisa, no meu diário de
campo, percebi que havia um registro sobre o meu próprio corpo na percepção
das pessoas com quem interagi. Longe de um fazer científico que acredita
na imparcialidade, meu corpo foi visto e simbolizado, especificamente, em
três significantes, nenhum deles psicólogo ou pesquisador. São nomeações
oriundas de impressões afetivas das territorializações que o saber psiquiátrico
teve em mim.
Percebi ao longo dos dias que compreenderam meu campo a emergên-
cia de algo no sobre minha corporeidade no que tange o saber. Alguma aura
que impregnava em meu corpo a partir do momento que eu adentrava aquele
espaço. Quem sabe, dentro do que já falamos aqui, aquela passabilidade da
externação que me colocava sempre como diferente, forasteiro. Mas algo
além disso pairava. Um olhar sobre mim por parte de quem lá morava que
me classificava como médico, enfermeiro ou pastor. O médico, representação
máxima do saber psiquiátrico a partir do momento que a loucura passou a ser
objeto científico, é dono da construção disciplinar, capaz de libertar ou apri-
sionar os corpos e ganha um reconhecimento emérito que só o jaleco branco

a pesquisa em uma escola da rede em que atuava como psicóloga. Mas também falava daquela Marina
que teve sua vida transformada pela educação, que se emociona, ri e chora, sente dor nessa corpa a cada
passo dado neste território. Mas que também se reconhece e significa nele.
134

pode trazer. Sua imagem, apesar de reguladora, a partir do estabelecimento


da sujeição passa a ser uma esperança de saída para o fora. Por isso, recebi
por várias vezes pedidos de alta.
O enfermeiro, por sua vez, é o responsável pelo cuidado mais próximo,
nesta forma perversa da regulação asilar, um enviado do saber psiquiátrico que
antes de mais nada representa vigilância e, por isso, pessoa sobre quem se deve
dar satisfações. Assim, não foram poucas as vezes em que recebi explicações
sobre a roupa, sobre a ausência do apetite, sobre formas de se comportar, ou
seja, como se algo da existência singular tivesse que ser aprovada por mim.
As conversas, quando ainda marcadas por este viés, falavam muito sobre a
instituição cristalizada no cotidiano. E mais: não foi logo que percebi este

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


lugar no qual era colocado. A postura do saber psiquiátrico, quando atribuída
assim de bandeja, é confortavelmente assentada na construção de um discurso
dominante e antes de que eu me desse conta disso, as conversas eram entre-
vistas, tudo o que eu não procurava. Refletindo sobre isso, busquei no diário
de campo as tantas vezes que justifiquei as poucas informações precisas que
tinha sobre histórias de vida na fala “monossilábica” dos moradores por conta
do efeito da medicação. Sim, há algo nesta ordem que pode ser inegável.
Mas como que, a partir de uma modificação de minha postura, as histórias
emergiram? Essa mudança se deu quando passei a ir sozinho, sem a presença
de algum profissional da equipe diretamente para o campo, quando recebi o
“visto”. Ou seja, quando me lancei de fato ao campo, tentando reduzir meus
privilégios nos jogos de poder/saber.
A figura do pastor, na mesma medida, foi algo que muito me intrigou.
Primeiro, questionei o evidente, a participação da ordem religiosa ainda dentro
destas práticas normativas. Se resgatarmos o histórico da instituição onde fiz
pesquisa, por muitos anos de sua existência a gestão fora feita por irmandades
católicas que gerenciavam não só a administração, mas também o corpo clí-
nico. Assim, a presença da religiosidade não é apenas simbólica, mas também
concreta e exemplifico com dois fatos: existe uma igreja desativada no pátio
de circulação do Hospital e o Residencial hoje ocupa a antiga casa das irmãs.
Contudo, algo em outra ordem me parece ter sido acionado nas vezes que
fui chamado de pastor e está mais na representação dos efeitos discursivos
da religiosidade sobre as relações. Como pastor, numa compreensão aprio-
rística de sua função, eu teria condições aprovadas divinamente de conferir
uma salvação. Ou seja, colocado numa posição estabelecida nas relações de
poder, a qual me configurava superioridade e detenção do saber, cada qual
dentro de seu arranjo simbólico utilizava na ordem da sujeição uma tentativa
de fuga da ordem asilar.
Trabalhar em instituições como esta podem trazer como efeito protetivo
uma aspereza no olhar sobre o outro para que a imagem de algoz não seja
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 135

reiterada, preservando um olhar sobre si. Então, estas posições sobre as quais
comentei corporificam visões aceitas socialmente e valoradas positivamente
numa questão salvacionista. Por algum tempo me vi dentro de uma luta pessoal
quase que de salvação das pessoas que lá moravam e isto é, no mínimo, um
exagero (pra não dizer pretensão). A corporificação dessas posições de poder
surge, a meu ver, além da repetição da norma asilar, como uma prática de
blindagem da loucura, a qual dentro desta distribuição moralizante da vida,
adentra num viés de receio pelo contágio. Busca-se a garantia da externação5.
Entendendo a cartografia como a tentativa de mapear estes fluxos de
desejos que aparecem em campo a partir de questionamentos de pesquisa e
ao problematizar esta corporificação do saber psiquiátrico, vejo um ponto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nevrálgico a ser questionado dentro dos espaços desinstitucionalizantes. Uma


vez que, se mantida a roupagem de superioridade que nos parece confortável
num primeiro momento, o manicômio não deixa de existir e só ganha cada vez
mais filiais disfarçadas em meio à malha urbana. Nesta pesquisa, por exemplo,
passei a pensar melhor sobre a Experiência Macabea a partir do momento em
que tirei do protagonismo o discurso do Gustavo S. M. e, por conseguinte, o
meu próprio, buscando compreender uma narrativa do entre. Contudo, para
isso, precisei olhar para os efeitos do meu próprio corpo na pesquisa.
Talvez, Marina, pesquisar seja buscar esta possibilidade de contornar sim-
bolicamente o que produzimos no entre relacionalmente. Com a cartografia,
especificamente, ao acompanhar processos, estamos tirando das nossas costas
um peso histórico da “verdade única” e nos entregando para uma metamorfose
de sentido que pode (e deve), inclusive, modificar o modo como nos vemos.
Marina, o que reverberou aí? Ainda tem chá?

4. Entre[-]tecendo fios a tramar algumas possibilidades de


diálogos outros…

Esta corpa senta-se mais para frente a cada sentido produzido nesse diá-
logo… meu chá já se foi, mas, confesso, perdi meu interesse nele a medida em
que te ouvia/lia e na possibilidade desse [entre] dialogava com tantos outros
que me compõem. Lembro sempre de uma escrita de Vygotsky (2000) que
considera que a pesquisa científica - como trabalho humano - é uma ação sobre
o mundo que transforma o mundo e constitui a própria consciência. Acredito

5 Essa consideração em muito me lembra, Gustavo, a possibilidade de pensar as relações entre escola e
vida - que foi primordialmente a tese que sustentei (ou tentei pelo menos). Dentre tantas questões que me
vieram, uma delas dizia respeito ao modo como a escola é o contratempo do tempo, contratempo do tempo
no sentido desse lugar de suspensão do mundo, de um tempo que se faz no entre dos tempos da vida.
Operar outros tempos no mundo é interessante, pensar como esses espaços nos aprisionam é primordial.
Entretanto, perceber como a vida escorre, escapa é simplesmente apaixonante!
136

muito que pesquisar implica em nos transformarmos nós mesmos, constituir-


mo-nos corpo-pesquisa nessa transformação da realidade e de quem somos.
E ao conhecer teu caminho na produção da pesquisa fui dialogando com
meus caminhos também: minhas angústias perpassaram desde a inquietação
sobre minha capacidade de me construir pesquisadora, até o esvaziamento-
-esgotamento de mim mesma. Terminar a tese foi deixar ir uma Marina para
transformar-me em outra. Na época tinha uma amiga que me acompanhou
nos últimos anos do doutorado e no dia da banca ela me falou “mulher você
pode ser a Marina que quiser ser agora”. Que Marina era aquela? Que Marina
gostaria de ser? Não sabia [e talvez hoje só tenha pistas], só havia um vão, atra-
vessada pelas escolhas realizadas na construção da tese, as dores sentidas numa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


corpa que esperançava vida e transformação social pela educação, mas que
sentia-se pequena demais, cansada demais, esvaziada demais para prosseguir.
Quase tudo era demais… e das bordas transbordei nas demasias… e nas
rotas de fuga, nos caminhos do entre, fui me percebendo tecendo meus não
saberes aos saberes-sabores de uma outra pessoa. Se sou quem sou, me formei
em muito no caminho de ser pesquisadora…finalizada? Jamais…porém, de
algum modo, os rastros do que fica - e ficam alguns rastros - talvez o mais
marcante é a dimensão da pesquisa atravessada por afetos, mobilizadora de
cognições e emoções, produtora de esvaziamentos de quem fui e abertura a
quem poderia ser.
Devir - esse espaço dialógico de construção alquímica da experiência de
ser no mundo, como corpo disponível ao encontro. Gosto da ideia da tecitura,
do modo como desde a produção dos fios até a construção da trama fazemos
escolhas e outras tantas vezes nos tornamos escolha, e algumas mais apenas
o acaso. Pensar esse diálogo como nossos corpos a tramar juntos - mãos a
dançarem no espaço, selecionando os fios e compondo sentidos-sentires-sig-
nificações-direções - me fala sobre o modo como a cartografia se compõe no
campo da pesquisa.
Gosto mais ainda da ideia de tramar com a possibilidade de desmanchar
essa trama e construir outras tramas: movimento, transformação, recons-
trução… o desfazer também é fazer[-se]. Tramar como caminho e recurso
também literário das narrativas que constroem mundos sonhados e possí-
veis. Cartografamos, por aqui, na premissa de que o diálogo se faça possível
de construção de outras realidades, de outras Marinas e outros Gustavos.
Naquilo que não tem fim, mas precisa de um ponto final…do meu repousar
de últimas palavras aqui, só gostaria de te agradecer pelas partilhas, saí outra
dessa escritura-conversada.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 137

5. REFERÊNCIAS
BHABHA, H. K. O local da cultura. Minas Gerais: Editora UFMG, 1998.

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e


o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos pagu, v. 5, p.7-41, 1995.

KASTRUP, V. Prefácio. In: Romero, Manuela Linck. Cartografias de expe-


riências urbanas: corpo, pensamento e cidade em movimento. Curitiba:
Appris, 2018.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

NUNES, S. Povoada (canção). 2021. Disponível em: https://www.letras.mus.


br/sued-nunes/povoada/. Retirado em: out. 2023.

PRECIADO, P. Can the monster speak?: A report to an academy of psychoa-


nalysts (F. Wynne, Trad.). Fitzcarraldo Editions, 2021.

ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do


desejo. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFGRS, 2014.

ROMERO, M. L. Cartografias de experiências urbanas: corpo, pensamento


e cidade em movimento. Curitiba: Appris, 2018.

VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas. v. 1. Madrid: Akal, 2000.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
DISPOSITIVOS E TE CNOLOGIAS
PSICOSSOCIAIS EM POLÍTICAS
PÚBLICAS DE SAÚDE,
EDUCAÇÃO E JUSTIÇA
Bruna Heleno Zarske de Mello
Maria Vitória Schizzi Tiepo
Vitoria Nathalia do Nascimento
David Tiago Cardoso
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Para iniciar a tessitura: algumas notas

Este capítulo tem como objetivo tecer nossas compreensões, discus-


sões e inquietações referentes a primeira linha do nosso grupo de pesquisa,
intitulada Dispositivos e tecnologias psicossociais em políticas públicas de
saúde, educação e justiça. Para tanto, é necessário destrinchar os conceitos
que, de certa forma, buscam intersecções entre pesquisadoras/es de distintas
áreas, epistemologias e metodologias de pesquisa. Em comum, localizam-se
práxis que se conduzem por uma ética que parte do entendimento de sujeitos
estéticos e políticos, principalmente no que tange às políticas públicas e seu
alargamento no cenário cotidiano. Neste sentido, trazemos aqui alguns des-
dobramentos a respeito dos conceitos supracitados, amalgamados à prática
de profissionais-pesquisadoras/es que se propõe a olhar para estes eixos na
sua amplitude teórica.

1. Políticas Públicas

A linguagem política é indiscutivelmente ambígua. Grande parte dos


termos utilizados no campo teórico da política são conhecidamente polissê-
micos. Essa multiplicidade pode se dar em decorrência da historicidade dos
termos, que ao longo dos anos passaram por diversas mudanças, assim como
pode se dar em decorrência da não uniformidade do campo da ciência política
(Bobbio; Matteucci; Pasquino, 2016).
Esse cenário aponta para a necessidade do compartilhamento da com-
preensão desse grupo sobre determinados conceitos. Entendemos que concei-
tos são instrumentos de conhecimento construídos e amadurecidos ao longo
do tempo, que nos auxiliam a compreender com clareza as delimitações e
extensões do objeto ao qual se aplicam. Vale notar que esse processo não
140

produz consentimento, algo evidenciado em termos como “ideologia” ou


“poder”, por isso se faz necessário nosso posicionamento. Conceituar auxiliará
a leitora ou leitor a construir um entendimento sobre o universo científico no
qual esse grupo se configura. Um universo múltiplo, sem sombra de dúvida,
mas com numerosas convergências. Apresentamos aqui, acima de tudo, aquilo
que nos une.
Pois bem, tomemos em primeiro lugar o conceito de políticas públicas.
Conforme Poulantzas (1985), não é possível analisar a elaboração e a opera-
cionalização de políticas públicas sem considerar as relações estabelecidas
entre o Estado e as classes sociais, principalmente aquela que o filósofo grego
aponta como classe dominante. Conforme o referido autor, são nessas relações,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


notoriamente tensas, que surgem os agentes definidores de políticas públicas.
Assim sendo, conhecer a organização social, política e econômica é necessário
para compreensão da gênese e da implementação de políticas públicas em
determinada nação (Bonetti, 2018).
Partiremos, então, da organização social, econômica e política brasi-
leira presente nesse momento histórico. Desde 1988, nosso país é conside-
rado uma república federativa presidencialista. República, pois se opõe ao
regime monárquico e totalitário e tem seu poder supremo eleito pelo povo;
federativa por quê a existência de um governo central não é impeditivo na
divisão de responsabilidades e da necessidade de cooperação entre ele e as
unidades federativas (estados e municípios); e presidencialista uma vez que o
poder se concentra na figura da/o presidenta/e, reconhecida/o pela represen-
tação do Estado e administração do governo. Notavelmente, em nosso país
o presidencialismo também é conhecido como de “coalizão” em decorrência
de suas famosas alianças interpartidárias, informação importante quando a
temática envolve a construção e a operacionalização de políticas públicas
(Brasil, 1988).
Nosso processo de redemocratização, após quase duas décadas de Dita-
dura Militar e a promulgação da nossa Constituição Federal em Assembléia
Nacional Constituinte, carinhosamente apelidada de Constituição Cidadã, são
marcos cruciais para pensarmos em políticas públicas, e em dispositivos e
tecnologias psicossociais, uma vez que essa CF formaliza importantes princí-
pios políticos e sociais pelos quais muitas lutas foram travadas em um período
marcado pela revitalização dos movimentos populares em nosso país. Podemos
mencionar aqui as lutas pelo direito à moradia, à educação e à saúde pública.
Já nossas atividades e organização econômicas foram e permanecem
sendo fortemente influenciadas por governos e organismos internacionais. O
fim da Guerra Fria e o processo de globalização sequente, apresentou novas
configurações no contexto social, político e econômico, que impedem a não
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 141

observação de elementos globais na relação entre Estado, classes sociais e


sociedade civil dentro do nosso país. Na década de 1980, o Consenso de
Washington, formulado na capital americana na presença de organismos
financeiros internacionais como Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
apresentou o neoliberalismo como o único sistema socioeconômico possível
para os países da América Latina a fim de que pudessem se inserir na moder-
nidade e se desenvolverem econômica e tecnologicamente. Essa também
pode ser considerada uma informação importante uma vez que a elaboração
e o estabelecimento de políticas públicas são influenciados por alguns fatores
preponderantes, um deles sendo os interesses da expansão do capitalismo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

internacional por parte dos referidos grupos. Não esquecendo que Poulantzas
constrói suas concepções com base em um modo de produção particular, que
é o modo de produção capitalista (Bonetti, 2018).
O que se observou desde então é que as elites globais, de forma a aten-
der seus próprios interesses, procuraram interferir na produção e operacio-
nalização de políticas públicas de países considerados periféricos, como é
o caso do Brasil. Para isso optaram, desde o Consenso de Washington, por
duas estratégias principais: a concessão de empréstimos e investimentos e a
adoção de parâmetros avaliativos a partir de modelos homogêneos de desen-
volvimento (Boneti, 2018). Como exemplo, no campo da educação, podemos
citar o Programme for internacional student assessment (PISA) – Programa
Internacional de Avaliação de Alunos, instrumento de avaliação em escola
proposto pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) que direciona países a adotarem uma concepção educacional baseada
em competências e habilidades necessárias para inserção e permanência no
mercado de trabalho, conforme demanda global de mão de obra. O referido
programa está em consonância com outras iniciativas de organismos multila-
terais como a Conferência Mundial sobre a Educação Para Todos de Jomtien,
promovida pelo Banco Mundial, pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura
(UNESCO). Conforme Libâneo (2012), essas iniciativas dão uma conotação
instrumental a educação pública, que foca no acesso aos conhecimentos míni-
mos necessários para a sobrevivência social e diminuição da pobreza, uma
formação bastante distinta daquela ofertada nas redes de ensino privado, que
propõe uma formação cultural e científica, que promove o desenvolvimento
das capacidades intelectuais, reflexivas e críticas do sujeito e que se preocupa
com a formação para a cidadania.
Um outro fator importante na formação de políticas públicas é a correla-
ção de interesses que se apresentam no próprio contexto nacional, decorrentes
142

das classes dominantes e das organizações da sociedade civil. Poulantzas


(1985) apresenta a ideia de que, apesar de as classes economicamente domi-
nantes terem uma estreita relação com o Estado e uma possível predileção no
acesso e direcionamento de recursos simbólicos e financeiros, elas não são as
únicas forças nesse processo. Outros segmentos sociais surgem, articulam-se
e lutam acirradamente para intervir na realidade social por meio de ações
políticas. É aqui que observamos a presença de problemáticas levantadas
por diferentes grupos sociais não representados pelas classes dominantes,
cujas manifestações representam os mais diversos tipos de interesses, sendo
possível citar: reforma agrária, questões étnico-raciais, questões de gênero e
sexualidade, habitação urbana, saúde mental etc.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Como exemplo, podemos pensar na atuação do movimento de mulheres
e movimentos feministas que por meio de diferentes práticas promoveram
mudanças na legislação brasileira naquilo que tange aos direitos da população
feminina no Brasil, incluindo o direito de viver sem violência. A Lei nº 11.340
de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, exemplifica não somente
o processo de organização de um público historicamente marginalizado e que
teve seus direitos negados, como a reivindicação de políticas com recortes de
gênero, compreendendo que a violência nas relações doméstico-familiares e
afetivas atinge principalmente as mulheres e que as leis em vigência até então
não reconheciam as diferenças de gênero.
Um outro possível exemplo é a luta pela parceria civil entre pessoas
do mesmo sexo, o casamento homoafetivo. As mídias noticiam frequentes
embates ao divulgar situações que envolvem a temática, nesse que é clara-
mente um campo de confronto originido pela movimentação de diferentes
grupos não hetoronormativos em prol do “casamento gay” e pela resistência
de grupos conservadores à mudança nas dinâmicas afetivas e de reprodução
e da sociedade como um todo (Miskolci, 2007).
A partir do exposto até o momento, é possível notar que compreende-
mos políticas públicas como ações que nascem do contexto social, político e
econômico de determinada nação, que representam demandas de diferentes
parcelas da população e que atravessam a esfera estatal como uma decisão de
intervenção pública em uma realidade. Ou seja, entendemos que o governo
não é a única instância de formulação de políticas, uma vez que esse processo
perpassa uma tensão inerente às relações entre a sociedade civil (diferentes
movimentos sociais), as classes dominantes e o estado governista. Conforme
aponta Bonetti, “o processo de geração de políticas públicas acontece diante
de um contexto de disputa arrojada pela apropriação de recursos públicos
ou de regulação que atenda a uma demanda social ou um interesse comum”
(2011, p. 48).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 143

Não podemos deixar de grifar que, a partir dessa elaboração, o Estado


não pode ser concebido como uma entidade “neutra”, despida de concep-
ções e interesses ideológicos. Ele é compreendido como uma instituição que
organiza diferentes interesses de distintos grupos e mantém uma relação de
proximidade com as classes historicamente dominantes. Dessa forma, para
que seja possível a análise de uma política pública, se faz necessário levar
em consideração os agentes que influenciam o processo de elaboração dessas
políticas públicas, suas ideologias, suas intenções, suas “agendas” políticas e
econômicas e o contexto em que se configuram.

1.1 As políticas públicas e a saúde


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Falamos anteriormente dos impactos da Constituição Federal de 1988 na


organização social e política brasileira. Neste mesmo caminho, se fizermos
uma incursão pela Constituição Cidadã (Brasil, 1988) e nos atentarmos ao
que ela diz, veremos que a Saúde se encontra como um direito social básico,
e dever do Estado, assim como a educação, o trabalho, a alimentação, o lazer
e a moradia. Por conseguinte, deve ser garantida mediante políticas sociais e
econômicas. Caberia aqui retomar que antes de 1988 não se tinha no Brasil um
sistema de saúde universal, o que restringia o acesso à saúde a uma camada
da população que pagava a previdência social. A universalização do Sistema
Único de Saúde (SUS), por sua vez, muda esse cenário, garantindo consti-
tucionalmente que qualquer pessoa em território nacional possa ter acesso à
saúde (Carvalho et al., 2001; Boing; Crepaldi, 2014)
Sendo assim, o SUS, através da Constituição Federal e das leis 8.080 e
8.142 de 1990, propôs uma nova formulação política e organizacional para os
serviços e ações da saúde. Ele preconiza a oportunidade de acesso aos serviços
de saúde que visem promoção, proteção e recuperação da saúde. Busca afas-
tar-se de um modelo biomédico clássico e indivíduo-centrado, para a prática
vigilância da saúde e de produção social da saúde (Boing e Crepaldi, 2014).
Para a efetivação deste direito, as políticas públicas operam de maneira des-
centralizada, em contextos federais, estaduais e municipais, a fim de assistir
às demandas sociais em suas maiores abrangências; isto é, programas, açōes,
projetos e decisões que se organizam entre os planos junto-com e para todas/
os as/os cidadãos (Brasil, 1998).
Neste sentido, para que os equipamentos de proteção, promoção e preven-
ção estejam alinhados e possibilitem assistência a toda população, é necessário
que a Rede de Atenção à Saúde (RAS) opere de forma interventiva e articulada
no território. Para tanto, suas diretrizes são correspondentes aos princípios e
normativas do SUS, garantindo a autonomia, liberdade, equidade, além de
144

desenvolver práticas que estejam alicerçadas aos determinantes sociais de


saúde enquanto produções e produtos das necessidades populacionais (Sam-
paio, Júnior, 2021). As RAS são sistematizadas para responder a condições
específicas de saúde, por meio de um ciclo completo de atendimentos (Porter;
Teisberg, 2007), que implica a continuidade e a integralidade da atenção à
saúde, organizada em diferentes níveis de complexidade: Atenção Primária,
Secundária e Terciária.
Enquanto ordenadora do cuidado, a Atenção Primária, base que estrutura
a RAS, se organiza de forma capilar e descentralizada (Brasil, 2012) com o
intuito de estar, para além de próxima, mas junto com as pessoas e suas vidas
cotidianas. Se nos atentarmos à Política Nacional de Atenção Básica (PNAB),

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de 2012, é possível compreender a lógica territorial e participativa que opera
na sua construção, visando um cuidado longitudinal e compartilhado, com-
prometido com a realidade e os determinantes sociais. Para a efetivação da
política, os equipamentos e serviços visam promover conjuntos de ações de
saúde, tanto de ordem individual, quanto comunitária, abrangendo proteção,
prevenção de agravos e doenças, a reabilitação, diagnóstico e a redução de
danos (Brasil, 2012).
Além disso, as RAS organizam-se em redes temáticas de atenção à saúde
no Brasil, a saber: a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil - Rede
Cegonha, que visa garantir o fluxo adequado para o atendimento, desde pla-
nejamento sexual e reprodutivo, o pré-natal, o parto e nascimento, puerpério
e primeira infância, qualificando a assistência e enfrentando a mortalidade
materna, infantil e fetal; a Rede de Atenção às Urgências e Emergências
(RUE), que busca ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral aos
usuários em situação de urgência e emergência de forma ágil e oportuna; a
Rede de Atenção às Pessoas com Condições Crônicas, pensada a partir de
diferentes tecnologias e estruturada em serviços territorializados; a Rede de
Cuidados à Pessoa com Deficiência, que busca proporcionar atenção integral
à saúde dessa população, desde a atenção primária até a reabilitação; e a Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS), criada pela Portaria GM/MS no 3.088/2011,
como proposta organizativa dos serviços de saúde mental no país, acolhendo
e acompanhando as pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com
necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas no âmbito do SUS
(Brasil, 2020).
No Brasil, a psicologia se insere nas políticas públicas de saúde prin-
cipalmente a partir da Psicologia da Saúde, área de atuação e especialidade
da profissional, fundamentada no princípio da integralidade e interdiscipli-
naridade. Desde a década de 1950, as(os) psicólogas(os) brasileiras(os) têm
atuado na área de saúde, sobretudo na atenção terciária, no que tem sido
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 145

denominado Psicologia Hospitalar (Azevedo; Crepaldi, 2016). Por sua vez,


a prática psicológica no contexto da atenção primária à saúde hoje no Brasil
ainda se acha em construção, permeada por tensões e disputas. Isto também
porque no Brasil o Psicólogo não está incluído na equipe de atenção primária,
com exceção dos presídios. As propostas do Ministério da Saúde apontam o
modelo de equipes matriciais; estas se constituem em suporte técnico em áreas
específicas às equipes responsáveis pelo desenvolvimento de ações básicas
de saúde para a população. Assim, as equipes matriciais configuram-se como
atenção à saúde de nível secundário, ou seja, os psicólogos trabalham como
especialistas que oferecem suporte técnico aos profissionais da atenção básica.
Logo, as primeiras incursões de psicólogos no SUS redundam em uma aten-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ção curativa, individual, que não se adequa a saúde coletiva, em função da


transposição do modelo clínico tradicional sem a necessária contextualização
que a saúde pública requer.
Sendo assim, trabalhar com as políticas públicas no âmbito da saúde
requer um trabalho em rede, interdisciplinar e implicado com a atenção inte-
gral à saúde em seus diferentes níveis. Não obstante, trata-se de um trabalho
também permeado por disputas, desmontes e construções contínuas.

1.2 Políticas públicas da educação

A educação escolar brasileira, aquela que se desenvolve majoritariamente


por meio do ensino em instituições formais, divide-se em dois níveis: Edu-
cação Básica e Educação Superior. A Educação Básica, que é obrigatória e
precisa ser ofertada gratuitamente pelo Estado a todas as pessoas, dos quatro
aos dezessete anos de idade, e para aquelas/es que não tiveram a oportunidade
de efetivá-la na idade adequada, é composta pela educação infantil, o ensino
fundamental e o ensino médio (Brasil, 1996).
Conforme apontado anteriormente, a educação escolar, historicamente
constituída como um benefício direcionado apenas a uma parcela da população
nacional, passa a ser compreendida enquanto um direito de todas/os e como
um dever do Estado apenas a partir da Constituição Federal de 1988. É após
duas décadas de ditadura militar, período em que os laços entre a educação
formal e o processo de normalização social se estreitaram profundamente,
que vivenciamos no nosso país o surgimento de novos sujeitos históricos
dentro dos espaços educacionais, que passaram a se organizar e a reivindicar
reconhecimento e aceitação.
Precisamos notar que, após um extenso período de repressão e de impo-
sição compulsória de valores, de identidades e de formas de viver e ser por
um regime ditatorial, a sociedade brasileira, foi se revelando incapaz de lidar
146

com as diferenças que foram se fazendo presente nas instituições de ensino


nesse novo momento na história de nosso país. Dessa forma, a educação se
configurou também como um campo de disputas entre princípios e interes-
ses de diferentes classes sociais, sendo essa a margem que a democracia nos
oferece (Miskolci, 2017).
É inquestionável que análise das construções e operacionalizações das
políticas públicas no campo educacional desde esse marco histórico evidencia
um tenso e constante processo de negociação entre os agentes formadores de
políticas, que trabalham incansavelmente para concretizar ou mesmo para
suprimir reformas, planos, projetos, programas e ações. As políticas públicas
que se dirigem a resolver questões educacionais expressam a multiplicidade e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a diversidade política de um determinado momento histórico. Além de agentes
nacionais, também exercem grande influência no campo da educação, setores
representativos de forças e interesses internacionais. Essas tensões são facil-
mente exemplificadas por discussões sobre a inserção de questões de gênero e
sexualidade no Plano Nacional 2014-2024 que acabou por popularizar o termo
“ideologia de gênero” no Brasil. A pluralidade de olhares na formulação do
PNE 2014-2024, gerou tensões entre grupos políticos com visões divergentes
sobre o que representa, e quais são as consequências de mencionar a palavra
“gênero” em uma política pública da educação.
Os grupos políticos em negociação com o Estado, se uniram e se arti-
cularam em torno de duas concepções diferentes de gênero e de educação.
O primeiro grupo, formado principalmente pelo Movimento Feminista, pelo
Movimento LGBTI+ e por organismos internacionais (como a ONU), defen-
deu a inserção das questões de gênero na educação como uma estratégia para
superação de desigualdades.
O grupo em oposição a inclusão das questões de gênero na educação
escolar, é formado majoritariamente por organizações católicas e neopentecos-
tais, como por exemplo a Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB),
bancadas evangélicas, organizações não governamentais autodenominadas de
pró-vida e outros setores que não necessariamente rejeitam essa inclusão por
questões religiosas, mas por questões políticas, como o Escola Sem Partido
(ESP) e o Movimento Brasil Livre (MBL).
O choque entre setores progressistas e conservadores em relação a inclu-
são das questões de gênero na educação escolar, resultou na supressão da pala-
vra gênero do PNE 2014-2024 e na ausência de diretrizes, metas ou estratégias
com a finalidade de dialogar sobre gênero, reconhecer a assimetria de gênero
ou propor mecanismos de superação dessa assimetria por meio da educação
formal. O resultado desse enfrentamento também influenciou a construção
dos Planos estaduais e municipais de educação.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 147

Outro exemplo são as discordâncias e disputas que surgiram em relação


à fonte de recurso financeiro permanente para a inserção da/o profissional da
área da Psicologia e da assistência social nas instituições de ensino, conforme
previsto pela Lei nº 13.935/2019. Apesar de uma relação de longa data entre
a psicologia e a educação, a inserção da/o psicóloga/o educacional dentro das
instituições de ensino de educação básica tem sido tímida. A aprovação da
referida lei foi, portanto, recebida com contentamento pelas/os profissionais da
área, não somente pela extensa abertura de um novo campo de atuação, como
também pelo reconhecimento da necessidade dessa/e profissional nas escolas.
Apesar de sua aprovação, a lei não foi nacionalmente implantada, majo-
ritariamente, por questões relacionadas ao financiamento para contratação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e manutenção dos funcionários mencionados, uma vez que a lei em si não


aponta fontes de custeio. O que podemos observar nessa situação é que, no
âmbito das políticas públicas, as lutas podem ser por intervenções puramente
administrativas ou burocráticas, como também por investimentos e recursos.
O debate aqui não é somente sobre a necessidade da psicologia educacional e
escolar na educação básica, é também sobre o direcionamento de recursos em
um âmbito de histórica escassez e negligência financeira e simbólica por parte
dos agentes formadores de políticas públicas e em determinados momentos
pela própria população brasileira.
Em 2020, a Lei nº 14.276 propôs a utilização dos recursos do Fundo
de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação (Fundeb) para a contratação dessas/es profissionais, contudo,
foram apresentados empecilhos normativos e respostas contrárias por parte
de algumas/alguns legisladoras/es. Parte da desaprovação do uso dos recursos
do Fundeb, que em próprio nome declara a preocupação com a valorização de
pedagogas/os e licenciadas/os, se deu pela formação e profissionalização de
psicólogas/os e assistentes sociais que não ocorrem no campo educacional.
O não estabelecimento de recursos e a falta de orientações para os estados
e municípios sobre como se daria a integração dessas/es profissionais nas
instituições de ensino, tem resultado na não aplicação da lei.
Naquilo que tange ao ensino superior, podemos evocar as discussões ao
redor das famosas “cotas raciais”. A partir do reconhecimento de renomadas/
os pesquisadoras/es e estudiosas/os da educação de que a escola se configurou
como uma instituição homogeneizadora e discriminou principalmente estu-
dantes negras/os, veiculando valores preconceituosos nos livros didáticos, nos
currículos e em suas práticas pedagógicas e compreendo que a educação não
somente se configura como um direito, mas como um direito que propulsiona
o acesso a outros direitos, no início dos anos 2000 iniciaram-se em nosso
país as primeiras experiências com cotas em instituições de ensino público
(SILVÉRIO et al., 2014).
148

Cotas podem ser entendidas como políticas públicas afirmativas, ou seja,


programas que têm como objetivo conferir recursos ou direitos específicos
para membros de um grupo social desfavorecido, mantendo em vista o bem
estar coletivo. De acordo com Feres Junior et al. (2018, p. 13):

Os recursos e oportunidades distribuídos pela ação afirmativa incluem par-


ticipação política, acesso à educação, admissão em instituições de ensino
superior, serviços de saúde, emprego, oportunidades de negócios, bens
materiais, redes de proteção social e reconhecimento cultural e histórico.

A aprovação da Lei nº 12.711/12 que criou o sistema de cotas do Bra-


sil representa essa mobilização e reivindicação de grupos sociais que foram

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


excluídos do ensino superior por políticas públicas da educação que respon-
dam às suas necessidades e ela foi marcada pela tenacidade da população negra
no brasil e pela resistência de grupos contrários à sua ratificação que utilizaram
de argumentos pautados em uma lógica meritocrática de justiça e igualdade.
Esses são apenas breves recortes utilizados para exemplificar as tensões,
avanços e retrocessos em um mundo imenso que é o mundo das políticas
públicas educacionais.

1.3 As políticas públicas e a justiça

Como já enunciamos anteriormente, a linguagem política é ambígua


por ser polissêmica, da mesma forma, seu uso nunca é inocente (Andersen;
Bergallo, 2022), pois na escolha de certas palavras para expressar determi-
nado objeto ou fenômeno, seu preenchimento se dará com significados que
serão colocados em uso na comunicação para alcançar objetivos (Andersen,
2019). É o que acontece quando a palavra justiça é utilizada como sinônimo
para a palavra direito ou para a expressão sistema judiciário. Cabe aqui um
questionamento: na impossibilidade de uma inocência, o que se quer quando
passamos usá-las como sinônimos?
Para chegarmos a uma resposta possível, é interessante compreender
o que é o Sistema Judiciário e como ele se coloca como o responsável por
garantir que a justiça funcione. No Brasil, também conhecido como “sistema
de justiça”, pode ser entendido por um conjunto de órgãos, instituições e proce-
dimentos destinados a administrar a justiça no país, com atuação independente
dos outros poderes, Executivo e Legislativo, ele é responsável por interpretar e
aplicar as leis, resolver conflitos e garantir a ordem social. (Conselho Federal
de Psicologia, 2019). Como não possui um corpo, o Poder Judiciário se cor-
poriza nos operadores do Direito: juízas(es), promotoras(es), advogadas(os),
defensoras(es) públicas(os), para citar os principais.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 149

Em outras palavras, o poder do judiciário não está representando em uma


única função, estando sempre em disputa. Como nos lembra Foucault (2021)
o poder precisa ser compreendido nas redes de interações sociais, dinâmicas
e complexas, em um fluxo constante, transitando nas mais diversas práticas
sociais, não estando, portanto monopolizada por qualquer que seja a insti-
tuição ou mesmo determinada profissão. Nesta compreensão, a Psicologia
pode se inserir no Sistema Judiciário para além de uma expertise técnica,
produtora de laudos, produzindo territórios políticos que promovam justiça
social. Mas como?
O Sistema Judiciário participa de uma rede de políticas públicas nomeada
como Sistema de Defesa e Garantia de Direitos, em que fazem parte também
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

as políticas públicas como: Sistema Único de Saúde; Sistema Único de Assis-


tência Social; Sistema de Educação, para citar os principais. Nosso destaque
na palavra é para denunciar que o que as políticas públicas têm buscado
garantir não é necessariamente a justiça, mas a defesa que suas/seus usuárias/
os tenham acesso a certos direitos garantidos pela Constituição Federal e por
legislações. Por isso, o ponto em que o sistema judiciário, as políticas públi-
cas de defesa e garantia de direitos e a Psicologia se cruzam no sistema de
justiça revela uma complexa teia de relações que moldam a experiência dos
indivíduos no contexto legal, onde as(os) psicólogos desempenham um papel
crucial, contribuindo para a operacionalização da máquina judiciária através
de avaliações e pareceres técnicos (Reishoffer; Bicalho, 2017).
Reishoffer e Bicalho (2017) colocam que as atribuições da Psicologia
neste sistema não estão isentas de desafios, pois as(os) psicólogas(os) se veem
nas tramas de um dilema ético: devem apenas realizar suas funções periciais
ou resistir aos efeitos desumanizadores, como em contextos que podem con-
tribuir com o encarceramento dos sujeitos? Obviamente, não é uma pergunta
fácil de responder, pois uma das respostas possíveis pode ser a defesa pela
judicialização. Barreiro e Furtado (2015) vão buscar delinear que o termo é
recente, aparecendo pela primeira vez em meados da década de 1990, em uma
coletânea de textos que tinham como conexão a expansão do poder judiciário
nos poderes políticos em todo o mundo. Aguinsky e Alencastro (2006, p. 21)
definem que “[...] caracteriza-se pela transferência, para o Poder Judiciário, da
responsabilidade de promover o enfrentamento à questão social, na perspectiva
de efetivação dos direitos humanos”. Em outras palavras, em sua independên-
cia, o Judiciário passa a ocupar o lugar dos poderes Executivo e Legislativo.
Secchi (2010) discute a inserção da judicialização no ciclo das políticas
públicas que inicia na identificação do problema, passando pela formação
da agenda, formulação das alternativas, tomada de decisão, implementa-
ção e finalizando pela avaliação para dar continuidade, ou não, ao que foi
proposto inicialmente. Na leitura dos autores, a judicialização irá acontecer
150

em cada uma das fases citadas acima. Nestes termos, “a judicialização pode
ser compreendida como um movimento em dois sentidos: a ampliação dos
objetos levados ao judiciário e a implantação da lógica judiciária no próprio
tecido social” (Oliveira; Moreira; Natividade, 2020, p. 30). Seja como for,
Oliveira, Moreira e Natividade (2020) irão apresentar como a judicialização
da vida produz tensões nos encontros entre a Psicologia e o Sistema de Justiça:
A primeira tensão é o modo como a Psicologia se apresenta como útil aos
julgadores por centrar suas atividades em processos avaliativos das deman-
das (com testes psicológicos, por exemplo); Outra tensão apresentada pelas
autoras é o borramento na distinção entre norma e lei, construindo estratégias
colonizadoras na implantação de formas que controlam as vidas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Este último talvez apareça como uma invenção recente, pois, como bem
trata Michel Foucault (2004), desde o século XIX, na sociedade ocidental
moderna, se organiza em volta do poder judiciário uma rede de instituições
de vigilância e de correção dos sujeitos, entre as quais se localizam aquelas
chamadas de psicológicas. A intenção não é mais a punição, mas a correção
das virtudes. Tais práticas, jurídicas e psicológicas, produzem subjetivida-
des e, na atualidade, ao contribuírem para a judicialização da vida, passam
a ter status de objeto de preocupação. Para Oliveira, Moreira e Natividade
(2020, p. 29) “este modo de subjetividade contemporâneo tem como efeitos
o assujeitamento dos conflitos cotidianos, muitas vezes, às duras instâncias
da justiça, deslocando, portanto, o sujeito da condição de protagonista de sua
própria história”.
O deslocamento desta condição pode ser compreendida aqui pela vio-
lência normativa, que irá conferir as categorias que permitem aos sujeitos
serem reconhecidos como inteligíveis ou não, na mesma medida em que
promove os efeitos e riscos na vida destes sujeitos. As normas de gênero, por
exemplo, “[...] tanto autorizam a violência física típica que nós reconhecemos
rotineiramente como tal, quanto simultaneamente apagam essa violência de
nossa apreensão” (Toneli; Becker, 2010, p. 6). Toneli e Becker (2010, p. 1)
identificam dois esforços para o enfrentamento desta violência normativa:
“i. o de interromper a capacidade da violência normativa de permitir outras
violências, e, ii. o de tornar essas outras violências visíveis quando ocorre-
rem”. Como traz Butler (2017) a norma que produz discursos rígidos, também
produz a resistência.
Talvez seja por isso que quando os direitos não estão garantidos, parte
da população queira fazer justiça com as próprias mãos. E é aqui que encon-
tramos nossa resposta ao que se quer quando se coloca justiça e direito como
sinônimos: produzir o enunciado de que ao acessar direitos, estamos aces-
sando a justiça. Como dispositivo, o acesso e a garantia de direitos impede
as classes sociais vulnerabilizadas a fazer justiça, pois a justiça, fundada na
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 151

igualdade, nunca está pronta, ela é sempre um evento a ser construído, pois,
nas palavras de Rancière, “a igualdade não é um dado que a política aplica,
uma essência que a lei encarna nem um objetivo que ela se propõe atingir. É
apenas uma pressuposição que deve ser discernida nas práticas que a põem
em uso”. (Rancière, 1996, p. 45).
De modo rápido, em Rancière (1995) o político, em que o Sistema de
Justiça participa, é o encontro entre as dimensões de polícia e de política.
Enquanto o processo de polícia trata-se da governança e a indução da criação
do consenso comunitário, distribuindo lugares, suas hierarquias e respectivas
funções, o processo de política trata da igualdade, traduzindo-se em con-
junto de práticas emancipatórias onde todos possuem o mesmo estatuto de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sujeito, onde verifica-se que qualquer falante deve ter as mesmas condições
de qualquer outro falante. Nesta direção, a construção da igualdade não é a
apropriação de uma determinada identidade, seja ela singular ou coletiva.
A igualdade é um processo de subjetivação por meio da relação de um Eu
com um Outro, ou seja, um processo de desindentificação, uma subjetivação
política de enfrentamento das injustiças.
A subjetivação política, portanto, nunca é a simples afirmação de uma
identidade, pois também é a negação de uma identidade atribuída por um
outro, pelas regras da polícia, pois a polícia dá os nomes corretos, enquanto
a política trata dos nomes incorretos (Rancière, 1995). Como exemplo, no
campo da violência doméstica, o nome correto atribuído pela legislação aos
homens é o de “agressores”; é assim que a lei os nomeia, o nome incorreto,
portanto, é o de “autores de violência”, que os desloca de uma essência bio-
lógica agressiva, para uma agência sobre o comportamento violento. Nas
palavras do autor, “isto significa dizer que nós podemos atuar como sujeitos
políticos no intervalo ou no hiato entre duas identidades, no entanto, nenhuma
delas podemos assumir” (Rancière, 1995, p. 47), ou seja, a igualdade política
está no entre das relações sociais.
Assim, nessa íntima interligação destaca-se a urgência de uma reflexão
crítica e de um engajamento contínuo por parte dos profissionais envolvi-
dos, em especial, aquelas(es) formados pela Psicologia, visando não apenas
aprimorar as políticas existentes, mas também redefinir fundamentalmente o
propósito e a eficácia do sistema de justiça em construção de uma sociedade
mais justa e equitativa, menos legalista, para seguir fazendo justiça, não apenas
com as próprias mãos, mas com o corpo todo.

2. Dispositivos e tecnologias psicossociais

Por conseguinte, buscamos definir os conceitos que constituem a linha


de pesquisa. No plano das políticas públicas os dispositivos e tecnologias
152

psicossociais assumem funções importantes. Mas, o que é um dispositivo?


Para tentar responder a esta pergunta, dialogamos com Deleuze (1996) quando
o autor relata que este é, antes de mais nada, uma junção de fatores, sendo
impossível propor uma resposta unilateral e monossilábica. Composto por
linhas, fluxos e emaranhados, está sempre submetido a direções diversas,
sendo que, ao passo em que se desloca para um lado, se afasta de outro. De
natureza estratégica (Agambem, 2014) se produz a partir de relações de força,
saberes, instituições, enunciados, subjetividades e discursos responsáveis pela
constituição de sujeitos.
Os dispositivos se agenciam no cotidiano e são produzidos a partir de
necessidades que operam em determinada época, deixando de ser eficaz ao

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


passo em que as características sociais sofrem e engendram mudanças (Agam-
bem, 2014). Neste sentido, o dispositivo está inteiramente ligado no seu inte-
rior por dimensões que perpassam pela linguagem, mas, também, fenômenos
de caráter não linguísticos os quais emitem enunciações.
Aqui trazemos como uma via de trabalho o dispositivo clínico-político,
tal como propõe Gomes et al. (2019), entendido como uma operação sim-
bólica que visa produzir novos enunciados e modos de subjetivação para a
própria história de vida. Nas políticas públicas, o dispositivo clínico-político
se inscreve como mediador simbólico que insiste em fazer vacilar o discurso
hegemônico. Este, que desaloja o sujeito de seu próprio texto, aprisionando
e reduzindo a potência de vida. A Psicologia aposta em dispositivos nas polí-
ticas públicas à medida em que se afasta de respostas prontas e conselhos.
Busca, portanto, produzir um endereçamento, ou seja, um giro na escuta e
nas intervenções realizadas nas instituições, que possibilite uma abertura de
espaço para as singularidades e legitimidade social às narrativas silenciadas
pelas violações de direitos (Gomes et al., 2019; Chaud et al., 2017).
Entremeado ao cenários dos dispositivos, também propomos uma
discussão a respeito das tecnologias psicossociais para que possamos nos
localizar epistemologicamente enquanto pesquisadoras/es. Para tanto, se faz
pertinente agenciar reflexões acerca destes dois grandes conceitos que, em
conjunto, dedicam-se a práticas que vêm se difundido em grande escala no
contexto contemporâneo.
Cabe inicialmente localizar que as tecnologias sociais dentro do contexto
brasileiro, conforme apontam Maciel e Fernandes (2011), são historicamente
engendradas num descompasso entre desenvolvimento científico-tecnológico
e desenvolvimento social, ou seja, opera sob um argumento que a ciência,
tecnologia e inclusão social relacionam-se de maneira concomitante e auto-
mática. Dessa forma, encontra-se nas tecnologias sociais um movimento de
“baixo para cima”, isto é, numa outra via, se caracteriza pela capacidade
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 153

criativa e organizativa de segmentos da população comprometida em gerar


alternativas para suprir as suas necessidades e/ou demandas sociais (Maciel;
Fernandes, 2011).
Por conseguinte, ao desmembrarmos “tecnologias psicossociais” e nos
debruçarmos, primeiramente, ao conceito de “tecnologias”, as compreende-
mos como “uma profusão de dimensões que versam sobre a realidade, que
compreendem tanto os processos e procedimentos, quanto uma mentalidade,
atitude e fabricação de objetos” (Manske et al., 2021, p. 119). Neste ínte-
rim, podemos olhar para a tecnologia enquanto objeto mensurável (artefa-
tos e instrumentos) quanto como posturas subjetivas frente ao processo de
saúde-doença de uma comunidade, território, município.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Assim, as tecnologias provêm de um caráter interdisciplinar e servem


como alternativa na promoção de práticas comunitárias que ofereçam estraté-
gias e cuidados sustentáveis. Tendo como princípio a construção comunitária,
baseada nas necessidades e problemáticas de determinadas localidades, as
tecnologias propõem uma interlocução entre sociedade civil, instituições,
organizações não governamentais, dentre outros, objetivando a solidez na
coletividade (Estival et al., 2020).
Ao tratarmos do conceito de “psicossocial”, logo nos adentramos a uma
discussão epistêmica importante e que merece destaque no campo da ciência,
sobretudo no que tange às pesquisas referentes às práticas em saúde. Mesmo
sendo palco de debates assíduos no contexto acadêmico, ainda oferece algu-
mas lacunas, principalmente no que tange a sua ontologia e contextualização
fenomenológica. Neste sentido, problematizamos o conceito numa tentativa de
não repetir uma lógica asilar e higienista, sobretudo na forma como olhamos
e compreendemos a vida humana e o sofrimento psíquico que nela se instala.
Desta forma, o olhar psicossocial existe no campo teórico e prático,
enquanto tática para superar o modus operandis da psiquiatria e suas especiali-
dades, “considerando fatores políticos e biopsicoculturais como determinantes,
e não apenas de maneira genérica” (Costa-Rosa, 2000, p. 154). Tem-se como
fundamento acolher o sofrimento humano e percebê-lo enquanto fenômeno
alicerçado ao plano de vida, o qual produz e constitui identidades. Para tanto,
as atividades cotidianas e as relações que se estabelecem durante este processo
são objeto de estudo, diferentemente do modelo psiquiátrico biomédico em que
a doença existe enquanto soberana, sobressaindo-se ao plano da vida (Yasui,
Luzio, Amarante, 2018). Neste respaldo, às tecnologias psicossociais vem
enquanto possibilidades de práxis alicerçadas a produção social, entendendo
a realidade enquanto produto e produtora de vidas. Trata-se de uma reformu-
lação das práticas de cuidado, articulando potenciais para a assistência em
rede e, sobretudo, nas condutas terapêuticas dos profissionais em questão.
154

3. Algumas considerações e costuras…


“No fundo da prática científica existe um discurso que diz: “nem tudo é
verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a
ser dita e a ser vista, uma verdade adormecida, mas que no entanto está
somente a espera de nosso olhar a para aparecer, a espera de nossa mão
para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto,
os instrumento necessários, pois de qualquer maneira ela está presente
aqui e em todo lugar” (Foucault, 2004; 1979, p. 113).

Em epígrafe trazemos Foucault (2004) para nos auxiliar nas possíveis


costuras desta escrita. Durante o trajeto de materializar na palavra aquilo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que reverbera no corpo, encontros e reflexões foram sendo produzidos no
exercício de se estranhar e reconhecer as partilhas destas temáticas emergen-
tes. Entendemos que os eixos que trouxemos para discussão se emaranham
e apresentam pontos de convergências. Não deixam de ser mecanismos do
Estado que operam, por vezes, em contradição, com suas tradições normativas
e disciplinares, ainda que amparadas numa aposta no cuidado.
Ao nos atentarmos ao cenário micro e macro das políticas públicas,
nos deparamos com perspectivas distintas que proporcionam condutas éticas
singulares em cada práxis profissional. Neste ínterim, os dispositivos e tec-
nologias que se agenciam, sejam na saúde, educação ou justiça, produzem
modos de existência que estão pautados numa insurgência do próprio Estado
em aperfeiçoar o sujeito para sua vida cotidiana. E aí cabem algumas obser-
vações críticas sobre estas problemáticas.
Neste enredo surgem perguntas, mas uma ecoa e persiste: que política se
realiza em cenários, por vezes, dicotômicos? Sendo a linguagem polissêmica
e ambígua, como já dito anteriormente, nos parece paradoxal tentar responder
tal pergunta. Porém, nos debruçamos sobre tais reflexões entendendo que
existe um ponto de partida em comum para nós pesquisadoras/es: o trabalho
coletivo e o exercício da cidadania. Tais preposições surgem enquanto pontos
de enlace que circunscrevem esta escrita, a qual, nada mais é, do que a própria
objetivação dos nossos atravessamentos.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 155

4. REFERÊNCIAS
AGAMBEN, G. O Amigo Que É Um Dispositivo? Argos, 2014. 71 p.

AGUINSKY, B. G.; ALENCASTRO, E. H. de. Judicialização da questão


social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder
Judiciário. Revista Katálysis, v. 9, n. 1, p. 19-26, 2006. DOI: https://dx.doi.
org/10.1590/S1414-49802006000100002.

ANDERSEN, T. Participação humana: “ser” humano é o primeiro passo


para “tornar-se” humano. Nova Perspectiva Sistêmica, [S. l.], v. 28, n. 65,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

p. 7-18, 2019.

ANDERSEN, T.; BERGALLO, R. M. A linguagem não é inocente. Nova


Perspectiva Sistêmica, v. 31, n. 73, p. 6-11, 2022.

BARREIRO, G. S. de S.; FURTADO, R. P. M. Inserindo a judicialização no


ciclo de políticas públicas. Revista de Administração Pública, v. 49, n. 2,
p. 293-314, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7612126144.

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política.


UnB, 13. ed. Brasília, 2016.

BÕING, E.; CREPALDI, M. A. Reflexões epistemológicas sobre o SUS e


atuação do psicólogo. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 34, p. 745-760, 2014.

BONETI, L. W. Políticas Públicas Por Dentro. Unijuí, 4. ed. revisada,


Ijuí, 2018.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do


Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. 1999.

BRASIL. Lei n.9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretri-


zes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF,
23/12/1996. Seção 1, p. 27833. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/l9394.htm.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília:


Ministério da Saúde, 2012. (Série E. Legislação em Saúde).
156

BRASIL. Ministério da Saúde. As Redes de Atenção à Saúde. Gov.


br, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/servicos-estaduais/
as-redes-de-atencao-a-saude-1.

BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias de sujeição. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2017.

CARVALHO, B. G.; MARTIN, G. B.; CORDONI JR, L. A organização do


sistema de saúde no Brasil. Bases da saúde coletiva, v. 2, p. 47-92, 2001.

CHAUD, L. P.; GOMES, M. A.; KLUGE, B. L. A atuação das/os psicólogas/

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os no serviço PAEFI na região da grande Florianópolis (SC). 2017.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para


atuação de psicólogas(os) em varas de família. 2. ed. Brasília: CFP, 2019.

COSTA-ROSA, A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas subs-


titutivas ao modo asilar. In: AMARANTE, P., org. Ensaios: subjetividade,
saúde mental, sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000.
(Loucura & Civilização collection)

DELEUZE, G. O mistério de Ariana. Trad. e prefácio de Edmundo Cordeiro


Lisboa: Ed. Vega – Passagens, 1996.

FERES JÚNIOR, J.; CAMPOS, L. A.; DAFLON, V. T.; VENTURINI, A.


Ação Afirmativa: História, Conceito e Debates. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.

FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Cabral


de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU
Editora, 2004.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2021.

GOMES, M. A. et al. Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?


O curso de capacitação como um dispositivo clínico e político. Corpos que
sofrem: Como lidar com os efeitos psicossociais da violência, p. 54-68, 2019.

LIBÂNEO, J. C. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola


do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres.
Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 38, n. 1, p. 13-28, 2012.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 157

MACIEL, A. L. S.; FERNANDES, R. M. C. Tecnologias sociais: interface


com as políticas públicas e o Serviço Social. Serviço Social & Sociedade,
p. 146-165, 2011.

MISKOLCI, R. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casa-


mento gay. Cadernos Pagu, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0104-83332007000100006&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso
em: 25 out. 2023.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Autêntica,


3. ed, Belo Horizonte, 2017.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

OLIVEIRA, R. G. de; MOREIRA, L. E.; NATIVIDADE, C. Saberes e fazeres


da Psicologia Social no campo da Justiça e dos Direitos. In: SOARES, Laura
Cristina Eiras Coelho; MOREIRA, L. E. Psicologia social na trama do(s)
direito(s) e da justiça. Florianópolis: ABRAPSO, 2020, p. 21-44. Disponível
em: https://www.abrapso.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=10992.

PORTER, M. E.; TEISBERG, E. O. Repensando a saúde: estratégias para


melhorar a qualidade e reduzir os custos. Porto Alegre: Bookman Companhia
Editora, 2007.

POULANTZAS, N. O Estado, o poder, o socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro:


Graal, 1985.

RANCIÈRE, J. Politics, Identification and Subjectivization. In: Rajchman, J.


The Identity in Question. New York: Routledge, 1995.

RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora


34, 1996.

REISHOFFER, J. C.; BICALHO, P. P. G. de. Exame criminológico e psi-


cologia: crise e manutenção da disciplina carcerária. Fractal: Revista De
Psicologia, v. 29, n. 1, p. 34-44, 2017.

SAMPAIO, M. L.; BISPO JÚNIOR, J. P. Rede de Atenção Psicossocial:


avaliação da estrutura e do processo de articulação do cuidado em saúde
mental. Cadernos de Saúde Pública, [S.L.], v. 37, n. 3, p. 1-16, 2021.
FapUNIFESP (SciELO).

SECCHI, L. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práti-


cos. São Paulo: Cengage Learning, 2010.
158

SILVÉRIO, V. R. Relações étnico-raciais. In: MISKOLCI, R. Marcas da


Diferença no Ensino Escolar. São Carlos, UFSCAR, 2014.

TONELI, M. J. F.; BECKER, S. A violência normativa e os processos


de subjetivação: contribuições para o debate a partir de Judith Butler. In:
Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades e Deslocamentos. Florianópolis:
UFSC, 2010.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


NÓS SOMOS ELO: a sistematização da
experiência e coletividade com mulheres
em situação de acolhimento institucional
Gleice Barros da Silva
Larissa Pereira de Santana
João Fillipe Horr
Enis Mazzuco
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Problematizando as formas de saber nos cenários das violências


contra as mulheres

As reflexões suscitadas por esse trabalho se sustentam numa investi-


gação que buscou compreender os sentidos atribuídos por mulheres vítimas
de violência residentes em uma instituição de acolhimento relacionados aos
enfrentamentos da violência de gênero.
De acordo com a Organização das Nações Unidas Mulheres (ONU
Mulheres, 2016), a América Latina e o Caribe são uma das regiões com
maior ocorrência de violência de gênero, com 14 países entre os 25 que mais
cometem violência doméstica contra as mulheres. Sendo o Brasil o país que
apresenta a maior taxa de assassinatos por razões de gênero entre os países
latino-americanos e caribenhos (ONU CEPAL, 2019). Enquanto dado bruto,
matematizado, podemos identificar que no decorrer de 2023 foram registrados
2.631 feminicídios na América Latina, sendo que 41,7% deles ocorreram no
Brasil (Mapa Latino-Americano sobre Feminicídios, 2023). Como medida
paliativa a tal realidade, o Estado criou serviços de acolhimento institucional
provisório para mulheres em situação de risco iminente de morte ou ameaças
em razão da violência doméstica e familiar, que é causadora de lesão, sofri-
mento físico, sexual, psicológico e/ou dano moral (Brasil, 2014).
De acordo com a tipificação da Resolução CNAS nº. 109, de 11 de
novembro de 2009, o “serviço de acolhimento institucional para mulheres em
situação de violência, é um serviço socioassistencial de alta complexidade,
que compõe a Rede de Atendimento à Mulher em situação de violência”
(Brasil, 2009). Dessa maneira, as mulheres vítimas de violência permanecem
abrigadas - com seus filhos ou não - por um período determinado, no qual
torna-se necessário que estas reúnam condições materiais e psíquicas para
seguir suas vidas (SPM, 2005).
Entende-se o acolhimento institucional como providência paliativa, pois
este, como um serviço de alta complexidade, cumpre a função de compensar
160

a falha do Estado no que concerne a todos os outros níveis de atenção e pre-


venção que foram ineficazes em prover a proteção necessária a estas mulheres.
Apesar dos dados coletados acerca da violação contra a vida (e portanto,
das possibilidades de existir) das mulheres, bem como a criação de medidas
paliativas à violência doméstica, há um silenciamento das experiências e das
formas de resistência dessa população. Tal realidade é reflexo dos processos
históricos que constituem a sociedade brasileira colonial, capitalista e patriar-
cal, que desconsidera e deslegitima as experiências coletivas, as trajetórias de
vida e as insurgências1 das mulheres latinas (Cruz, 2015).
Em diálogo com Kilomba (2019) o mundo branco coloca o indivíduo
racializado no lugar do outro, aquele que é incompatível. Com base nisso, as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


estruturas de poder colonial e escravista são predominantemente patriarcais,
de modo tal que raça e gênero são inseparáveis, já que as construções de
papéis de gênero se baseiam no racismo, e o contrário também é verossímil.
Destarte, Lugones (2014) salienta que os colonizadores investiram na plena
redução dos povos tradicionais brasileiros, destituindo-lhes a humanidade. A
partir disso, constituiu-se a dicotômica construção normativa colonial que os
distingue não apenas hierarquicamente, mas também racialmente, negando a
humanidade e, consequentemente, o gênero aos colonizados.
Com base nessa contextualização da realidade brasileira, Cruz (2015)
ressalta que a colonialidade de gênero reforça o processo de opressão das
mulheres latino-americanas. Haja vista que, o período colonial inaugurou
uma nova forma hierárquica, binária e excludente de relações sociais que
perduram até a atualidade. Em consonância com Crenshaw (2002), as mulhe-
res são particularmente interpeladas por sistemas de subordinações que se
encontram no pano de fundo estrutural e, por serem tão comuns, podem ser
interpretados como naturais ou imutáveis. Sendo assim, a autora considera que
as dimensões raciais, de gênero e classe do problema interseccional devem
ser colocadas em primeiro plano, enquanto fatores que contribuem para a
produção da subordinação das mulheres.
Desta maneira, Lugones (2008) assinala que compreender os efeitos da
colonização ocidental torna-se fundamental quando falamos sobre violência

1 De acordo com o dicionário Michaelis (2008), insurgência pode ser definida como: a) o caráter ou condição
de ser insurgente; b) insurreição contra a autoria. É um termo que, portanto, implica um processo de resis-
tência e rebeldia ao estabelecido como norma e exigência. Pensamos aqui na insurreição como ferramenta
teórica e metodológica, na compreensão das estratégias de enfrentamento construídas por mulheres em
situação de violência grave, que demandam respostas paliativas do Estado enquanto produtor de violências
e mitigação de violações extremas. As estratégias de enfrentamento de mulheres em situação de violência
podem frequentemente ser lidas como expressões de diagnósticos psicopatológicos (Zanello; Silva, 2012)
ou tipologias do ciclo da violência que podem reificar existências, desconsiderando as singularidades situa-
cionais nesses cenários.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 161

de gênero, pois aqui estamos falando de uma violência que é sistematicamente


racializada. Em tal contexto, segundo a autora, o corpo “subalterno” abrange
muito mais do que apenas a classificação racial. A colonização duplamente
inferioriza as mulheres: pela raça e pelo gênero.
Nessa perspectiva, em diálogo com Spivak (2010), o sujeito subalterno
se refere às camadas tidas como as mais baixas da sociedade, sendo estas
constituídas pelos modos específicos de exclusão da representação política
e legal, de sorte que tais indivíduos estão impossibilitados de se tornarem
parte do estrato social dominante. A partir dessa lógica, a autora ressalta
que a mulher subalterna se encontra em maior desvantagem em relação ao
homem colonizado, uma vez que, se no contexto da produção colonial este
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

último não tem história e não pode falar, o sujeito feminino está ainda mais
profundamente na obscuridade.
Diante disso, o presente trabalho, enquanto matriz analítica, se propôs a
reverter essa lógica e evidenciar as mulheres participantes como protagonistas
do saber construído a partir de seus processos de resistência e enfrentamento
às violências, bem como construir desdobramentos e caminhos metodológi-
cos numa dissonância necessária entre mulheres pesquisadoras e mulheres
participantes nos contextos de violência.
As pesquisadoras reivindicaram uma psicologia construída com o outro,
compreendendo-o como protagonista de sua própria história. Assim, o estudo
aborda o fenômeno da violência contra a mulher em uma perspectiva crítica e
histórica, demarcada no cenário da América Latina. A proposta foi alicerçada,
metodologicamente, na “sistematização de experiências” (Holliday, 1996),
método que valoriza os saberes populares e a construção coletiva, suspendendo
a díade pesquisador e pesquisado.

2. Dos métodos tradicionais ao protagonismo de mulheres


em situação de acolhimento institucional: possibilidades na
construção do saber

No modelo de investigação, a análise é dividida em cinco passos: a)


ponto de partida; b) perguntas iniciais; c) recuperação do processo vivido; d)
reflexão de fundo e pontos de chegadas. Elucidamos que esta pesquisa se deu
a partir das experiências de quatro encontros de um grupo em que participaram
cinco mulheres em acolhimento institucional, devido à violência doméstica,
na região do Vale do Itajaí em Santa Catarina.
Os encontros do grupo tencionaram constituir o vínculo, promover a
partilha da experiência e a produção reflexiva em conjunto com as pesqui-
sadoras sobre a experiência da violência e as estratégias de resistência das
162

participantes. Ao longo dos encontros, foram metaforizadas três categorias:


a) o autocuidado; b) o resgate de si; e c) o ‘grito de esperança’.
A denominação do ‘autocuidado’ possibilitou pontos de encontro no
coletivo, os quais permitiram que a díade pesquisadoras e participantes fosse
desconstruída, foi nesse momento de convergência que nos tornamos nós.
Desde então, o grupo ocupou um papel metaforizado pela categoria do resgate
de si, ou seja, a possibilidade de reencontro em relação ao que foi seques-
trado pela violência e pelo aprisionamento no contexto íntimo e doméstico
que todas as mulheres relataram em algum momento. Nesse sentido, aquele
espaço passou a ser uma estratégia de autocuidado também.
O terceiro encontro foi simbolizado pelo ‘grito de esperança’, possí-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vel pelo movimento de aspirar pelo futuro e considerar suas estratégias de
sobrevivência como significativas e fundamentais no processo de libertação.
Por fim, a finalização do processo retomou o vivido, os significados dessa
experiência reverberaram por meio da fala das participantes quando estas fri-
saram a importância de falar para curar, bem como de compartilhar os atos de
insurgência que possibilitaram que elas (r)existissem naquela realidade repleta
de opressões, dores e limitações, sem deixar de reverenciar suas vozes e expe-
riências como ferramentas construção de novas possibilidades de ser e viver.
Posto isso, salientamos que este relato emerge de uma necessidade quase
física de compartilhar as afetações que o encontro com aquelas mulheres nos
possibilitou. A posição subjetiva e social enquanto Mulher é histórica, assim,
nossas relações remontam à composição na qual fomos constituídas. Em roda,
olhamos para nós e para as outras, celebrando e legitimando a circularidade
do afeto, mediante a conexão que somente o feminino é capaz de estabelecer.
Em nosso sangue ouvimos e atendemos o canto insistente da necessidade de
aproximação, de reconhecimento e de partilha.
Isso porque, o encontro é vivo, fluido e necessariamente permeado pelo
afeto, aquele que é construído e partilhado no comum. Quando falamos sobre
a potência do coletivo, não nos referimos a qualquer grupo, discorremos sobre
uma vivência que só se sucedeu dessa maneira porque a união de mulheres
é uma insurgência ancestral que desmonta a lógica colonial a qual tentam
nos submeter.

3. Pesquisador e sujeitos da pesquisa enquanto elo: alguns passos


Se isso é sobre vivência, me resumir a sobrevivência/É roubar o pouco de
bom que vivi (Emicida; Majur; Vittar, 2019).

Para Saffioti (1997), a luta das mulheres pela sobrevivência é ambí-


gua, assim como a própria subordinação. Considerando que as necessidades
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 163

cotidianas, a exemplo de alimentação, moradia e estabilidade, estão sempre


em conflito com os apelos sociais, como a submissão aos maridos, a depen-
dência econômica, o trabalho doméstico, entre outros, faz com que resistir
ou se conformar às violências vividas é particular de cada situação. Contudo,
ainda que as mulheres consigam reunir esforços para não sucumbir à violência
e aos apelos sociais envolvidos, rompendo o ciclo, as mesmas encontram nas
instituições jurídicas e de saúde dificuldades burocráticas que as vulnerabili-
zam e colocam sua segurança em risco (Sagot, 2000; Meneghal, 2011).
Além disso, apesar da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) instituir
mecanismos para prevenir a violência, assim como assegurar a integridade
física e preservar a saúde mental das mulheres, muitas delas ainda correm
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

risco de morte. Em consequência disso, entre as garantias da Lei, encontra-se


o abrigamento, sendo este uma terminante investida para proteger as mulheres
em situação de violência. Em síntese, perseverar na própria existência e bus-
car a felicidade é um ato político do qual o indivíduo só se torna consciente
quando é livre (Sawaia, 2009).
A vista disso, a dimensão subjetiva é imprescindível para a transformação
social, uma vez que é a partir dela que o processo revolucionário se constrói.
Entretanto, Sawaia (2014) ressalta que é na potência do comum e não no
individualismo que se torna possível resistir à dominação, dado que a união
dos subalternos aumenta a força destes para agir, existir e resistir.
A partir dos afetos que nos atravessaram, mobilizaram e transformaram,
aqui tencionamos reconstruir o vivido, assim como apresentar o retrato pin-
tado por distintas mãos que unidas contaram as histórias que se entrelaçam no
mesmo tempo-espaço, resultando na obra coletiva que se tornou este estudo. A
memória vive, dança nas entrelinhas e canta ao pé do ouvido através daquilo
que foi lembrado ou esquecido.
Nós ouvimos e correspondemos à convocação ético-política de
Martín-Baró (2011) e buscamos, por intermédio deste trabalho, colocar a
ciência psicológica à serviço da construção de uma sociedade comprometida
com a transformação social junto aos setores populares vulnerabilizados.
Sendo assim, corroboramos com o autor quando este aponta que o conheci-
mento deve ser construído a partir do dominado e não para ele, a intenção do
pesquisador não deve ser transmitir os esquemas coloniais ou levar soluções
milagrosas a essa população, mas pensar e teorizar a partir deles e com eles.
Spivak (2010) concorda com tal pensamento, quando critica o intelectual
que assume a postura presunçosa de falar pelo outro, de modo a reproduzir
as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe
oferecer um espaço onde possa falar, ser ouvido e interpretar seus processos
psicossociais e, principalmente, suas insurgências frente às vulnerabilidades
164

vivenciadas. Se, enquanto psicólogas, de fato queremos contribuir com a


história do povo latino-americano, precisamos então definir nossa bagagem
teórica por meio da vida, sofrimentos, aspirações e lutas do nosso povo.
Ante tal compromisso, nos propusemos ao exercício metodológico de
atribuir protagonismo às participantes, de modo a possibilitar um espaço de
fala às mulheres que, durante o percurso de suas vidas foram frequentemente
silenciadas, não somente como indivíduos, mas como parte de um povo his-
toricamente subalternizado.
A partir da concepção de que os saberes são constituídos por meio da par-
ticipação popular, a metodologia da pesquisa participante objetivou sintetizar
criticamente o conhecimento científico e o popular em um terceiro conheci-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mento novo e transformador, que considera as interpretações atribuídas pelos
atores sociais às experiências vividas. Assim, neste modelo de investigação
a população pesquisada não é considerada passiva, uma vez que os conheci-
mentos da pesquisa participante devem ser produzidos, lidos e integrados para
emancipação de sujeitos em situações de vulnerabilidade e transformação da
sociedade desigual, excludente e regida pelo capital (Brandão; Borges, 2007).
No que concerne à análise do vivido, o método de Sistematização de
Experiência (Holliday, 1996) viabilizou o encontro das categorias construídas
nas entrevistas individuais, como base para os encontros coletivos com as
mulheres participantes da pesquisa. De acordo com Cidac e Holliday (2008),
assim como a pesquisa participante, o intuito dessa metodologia é valorizar
todos os saberes, não apenas aquele proveniente do pesquisador.
Dessa maneira, seguindo os passos atribuídos pela metodologia, nosso
ponto de partida se deu em uma instituição dedicada ao acolhimento de mulhe-
res vítimas de violência doméstica. O primeiro contato com a organização foi
realizado por meio da psicóloga responsável pelo acolhimento. A partir de uma
reunião online com a profissional, nós apresentamos o projeto de pesquisa e
fomos autorizadas a realizar o estudo no referido campo.
Posto isso, inicialmente realizamos um encontro com as acolhidas para
apresentar o projeto e convidá-las a participar do estudo. Na ocasião com-
partilhamos a música Amarelo (Emicida; Majur; Vittar, 2019) ritmo que já
havia retumbado em nossos corações, nos convidando a olhar para aquelas
mulheres para além da violência a qual foram submetidas. Todavia, foi na
potência do coletivo que cada acorde da canção adquiriu inédito significado,
através desta convergência nos permitimos ser, compartilhar e aprender com
a experiência que tomava forma.
Aceitaram integrar a pesquisa 5 mulheres acolhidas entre os meses de
abril e junho de 2021. As participantes corresponderam aos seguintes critérios
de inclusão: a) estar em acolhimento institucional; b) ser maior de 18 anos;
c) estar acolhida há pelo menos uma semana; d) se disponibilizar a participar
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 165

voluntariamente da pesquisa; e) concordar e assinar o Termo de Consentimento


Livre e Esclarecido.
Cabe destacar que todos os encontros realizados neste estudo aconte-
ceram na modalidade online, mediante a plataforma Google Meet, devido à
necessidade de manter em sigilo o endereço da instituição de acolhimento, bem
como garantir o distanciamento social demandado pela pandemia de covid-19.
O segundo passo se propôs a responder à pergunta principal de Holliday
“Por que queremos sistematizar essa experiência?”. Nesse momento, reali-
zamos entrevistas individuais semiestruturadas com todas as participantes.
Por intermédio dos dados coletados, foi possível observar semelhanças nas
experiências em relação à violência e o percurso feito pelas mulheres até o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

acolhimento institucional.
Esta etapa também serviu para criar vínculos com as entrevistadas, assim
como colocar em prática a experiência, ao passo que a sistematização se tor-
nou uma certeza frente ao desejo de aprender sobre existência e resistência
com essas mulheres. Diante disso, realizamos essa pesquisa com o intuito de
compreender os sentidos atribuídos por mulheres sobreviventes de violência
em acolhimento institucional relacionados aos enfrentamentos da violência
de gênero, a partir das experiências, estratégias e trajetórias destas para além
da violência vivida.
Para que tal intento fosse possível, um deslocamento fez-se necessário.
O conhecimento é circular, democrático, flexível e curioso, assim como nós
precisamos ser para construir um saber que abarcasse as vivências individuais,
ao mesmo tempo em que produzisse coletivamente novas perspectivas e sen-
tidos para as experiências do que já se foi e do que permanece.
A vista disso, no terceiro passo organizamos um grupo de discussão, o
qual era formado pelas acolhidas, a psicóloga da instituição e as pesquisadoras.
A experiência foi vivenciada em 4 encontros, o objetivo de tais reuniões foi
construir, junto às participantes, uma investigação mais profunda dos dados
coletados nas entrevistas individuais realizadas anteriormente, bem como,
elaborar a análise coletiva dessas informações, construindo um novo saber a
partir do compartilhamento da história de vida das participantes.
O primeiro encontro teve como finalidade a promoção de vínculo,
explicação do funcionamento da etapa de análise das informações coletadas
anteriormente e reflexões sobre as vivências em comum das participantes. A
utilização de uma dinâmica de aquecimento possibilitou a promoção do vín-
culo, enquanto o convite à identificação e reflexão vieram através dos seguintes
disparadores: “Vocês sabem as dificuldades que as outras passaram?”; “Como
foi para vocês passar por essas dificuldades?”; “Como é se ver nas dificuldades
umas das outras?”; “Vocês acham que isso as aproxima mais?”.
166

Como forma de expressar as vivências das participantes, em registros


individualizados, percebemos a ausência da presença, tanto de uma rede de
apoio familiar e comunitária, quanto de ações efetivas das políticas públicas
de enfrentamento da violência de gênero. Foi possível, a partir das entrevistas
individuais, analisar uma frágil rede de apoio desde a tenra infância, uma vez
que 3 das 5 entrevistadas relatam que foram abandonadas ainda crianças.
Destacou-se, também, que todas as mulheres entrevistadas foram vítimas de
diferentes tipos de violência doméstica, dentre estas a violação física, psico-
lógica, sexual e patrimonial, além de cárcere privado.
Nesse cenário analítico, nos deparamos com experiências semelhantes,
e que tensionaram a construção analítica dessas experiências. Nos inquie-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tamos com a presença da Casa-Abrigo ser, enquanto equipamento da rede
socioassistencial, a última instância de recuperação do direito violado, o que
sugere que as participantes passaram pelas outras violações que as políticas
públicas de saúde, educação e assistência social poderiam ter agido, embora
os desconheçam. Isso interfere no olhar crítico de tais mulheres sobre os
equipamentos públicos, dificultando que estas sejam capazes de reivindicar
seus direitos junto à rede criada para corresponder às suas demandas enquanto
pessoas vítimas de violência.
Isso nos provocou, tanto por decifrar as experiências comuns das parti-
cipantes enquanto pesquisadoras, a também reconhecer os recursos e estra-
tégias de enfrentamento que construíram nesses cenários de violência. No
segundo tempo ocorreram quatro encontros do que denominamos grupo de
discussão, nos quais se deram reuniões com as mulheres que permaneceram
na casa e haviam sido entrevistadas anteriormente. O objetivo de tais discus-
sões foi construir, junto às participantes, uma investigação mais profunda
dos dados coletados nas entrevistas e, concomitantemente, realizar a análise
dessas informações.
O primeiro encontro contou com a presença de 3 acolhidas, sendo elas,
Dandara, Marilda e Tainá e se propôs a promover o vínculo entre o grupo,
apresentar o projeto desta pesquisa e refletir sobre as vivências em comum
entre as participantes. A partir da recapitulação de alguns pontos das entre-
vistas individuais com a finalidade de trazer para o coletivo as dificuldades
narradas individualmente, Marilda compartilha que:

Quando eu converso com alguma acolhida, eu pergunto da situação né,


tipo a pessoa se sente na liberdade de contar ou não. Se ela conta, acon-
teceu comigo que eu estava conversando com a “Dandara” e ela contou
que ela estava se sentindo prisioneira daquela situação lá... antes de vir
pra cá, não aqui. E eu senti a semelhança, sabe? Porque eu também me
sentia prisioneira [sic].
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 167

Embora tenham compartilhado em outros momentos suas histórias, no


grupo elas construíram novos significados para as situações vivenciadas. Ouvir
as histórias e as semelhanças compartilhadas teve um papel importante para
que as mulheres se percebessem enquanto coletivo e fortalecessem suas rela-
ções, a compreensão de que é possível dividir as angústias e alegrias umas
com as outras foi uma consequência percebida por elas como positiva.
Já o segundo encontro se propôs a identificar as estratégias de autocui-
dado das participantes, conhecer as percepções e experiências que estas tinham
sobre a rede de atenção à mulher vítima de violência e compreender suas tra-
jetórias até o acolhimento institucional. As perguntas principais foram: “Me
sinto melhor quando faço…”; “Você cuida de você?”; “Como você se cuida/
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

se fortalece?”. A dinâmica de participação tinha como objeto norteador iden-


tificar o que a palavra autocuidado significava para as participantes e, a partir
da percepção delas, conhecer as estratégias de autocuidado desenvolvidas.
Nessa ocasião, nós também socializamos nossas próprias estratégias de
autocuidado, movimento que nos aproximou das participantes, haja vista que
tínhamos artifícios em comum. Já não éramos apenas pesquisadoras, ali nos
tornamos parte do grupo, reconhecendo em conjunto com aquelas mulheres
nossos modos de insurgência. Ao final da reunião foi possível identificar que
elas estavam em um processo de resgate de si e que o grupo era um importante
fator nesse processo de reencontro.
Concernente aos equipamentos da rede, as participantes afirmaram que
não tinham conhecimento sobre os serviços oferecidos. Quando ampliamos
o escopo dos serviços que integram a rede de atenção à mulher vítima de
violência, Dandara socializou que, durante uma consulta com a ginecologista
de sua UBS de referência, a profissional percebeu as marcas de agressão física
na participante. Ao ser questionada, a mesma alegou ter caído na cozinha,
entretanto, sua filha que a acompanhava, contou à médica que o pai tinha
agredido fisicamente a mãe. Diante disso, a profissional indicou que Dandara
denunciasse a violência. O CREAS também foi citado como o dispositivo
responsável pelo encaminhamento à instituição.
Considerando que a pesquisa científica deve prezar pelo sigilo de seus
participantes, no terceiro encontro nós tensionamos promover um espaço de
autonomia em que as acolhidas pudessem escolher os nomes pelos quais elas
gostariam de serem identificadas na publicação do estudo.
Nesse ínterim, diante de uma proposta que vinculava a escolha dos nomes
a serem utilizados na pesquisa às características que elas se identificavam ou
achavam admiráveis em mulheres, as participantes escolheram serem apresen-
tadas como Marilda, Tainá, Maria, Dandara e Antonieta, sendo os dois últimos
nomes eleitos por nós em homenagem à importantes mulheres brasileiras, já
que estas participantes foram desligadas da casa antes da referida reunião.
168

Ainda nesse encontro foi resgatado o enfrentamento da violência, com uma


reflexão para além do autocuidado abordado na reunião anterior.
Nesse espaço compartilhado, repleto de dores e amores, eis que o terceiro
encontro serviu como um recanto de sonhos e esperança. O movimento do
grupo nos possibilitou pensar sobre quem gostaríamos de ser, as aspirações e
as maneiras de enfrentar aquilo que tanto machuca. A partir disso, foi possível
perceber a possibilidade de reparação a partir da enunciação daquilo que é
ansiado, o sonhar é uma parte intrínseca do ser livre (Sawaia, 2009).
O grupo é vivo, se movimenta, se encontra e se transforma continua-
mente, não é possível controlá-lo ou prever seu percurso, mas, na fluidez da
construção coletiva, o que fica? No último encontro do grupo de discussão

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nós tencionamos reconstruir o processo vivido. Nesse momento, perguntamos
às mulheres como se deu a experiência, o que ela suscitou e as reverberações
percebidas pelas participantes. A construção coletiva possibilitou que cada
mulher percebesse a importância da sua história para o desenvolvimento desta
pesquisa, neste momento ficou explícito o quanto este trabalho também movi-
mentou cada uma delas. Em resumo, marcamos e fomos marcadas por elas.
Desde o primeiro encontro até este momento, a música Amarelo (Emi-
cida; Majur; Vittar, 2019) embalou os nossos corações. Assim como nós pes-
quisadoras, as mulheres se identificaram com a música. Isto porque, para além
do sofrimento vivido, os encontros eram sobre resistir, continuar lutando e
seguir em frente. “Esperançar” como diria Paulo Freire (1992).
O que permanece é o marco no tempo, um registro da genuinidade do
afeto compartilhado. Perceber que as participantes não se viam como objeto
de estudo, mas como referências na discussão da violência doméstica, fez
nosso coração experimentar um gostoso descompasso.
Isso reflete a potência da coletividade e do partilhar, evidenciando que
o conhecimento não é exclusivo das paredes da academia, o saber também
se encontra na vida cotidiana e nos enfrentamentos que a realidade demanda.
Através desses encontros as participantes identificaram as semelhanças nas
suas dores e, além disso, valorizaram o percurso de resgate do cuidado de si.
Tendo em vista a categoria anterior, na qual ocorreu a recuperação do pro-
cesso vivido nas entrevistas individuais e com o grupo de discussão, o quarto
passo da Sistematização de Experiência, denominado reflexão de fundo, tomou
forma a partir das anotações feitas no decorrer da pesquisa. Nesta etapa nós
embasamos teoricamente o conhecimento construído durante a experiência.
Assim, com o respaldo teórico decolonial e materialista histórico-dialé-
tico, refletimos sobre os afetos que nos atravessaram, mobilizaram e trans-
formaram, a partir da árdua tarefa de analisar criticamente o processo que
protagonizamos junto às participantes. Foi essencial ressaltar que viver é mais
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 169

que sobreviver, sendo assim, a busca pela liberdade e felicidade são neces-
sidades tão fundamentais quanto o pão. Em consonância com Sawaia (2009,
p. 364) “por trás da desigualdade social há sofrimento, medo e humilhação,
mas há também o extraordinário milagre humano da vontade de ser feliz e
de recomeçar onde qualquer esperança parece morta”. A autora acrescenta
que apesar do indivíduo constituir-se em um contexto social que define suas
alternativas de realização, é incoerente voltar-se apenas para a análise das
determinações sociais que atravessam o sujeito, desprezando a singularidade
deste, bem como as estratégias desenvolvidas para lidar com as violências
experimentadas cotidianamente.
Por fim, o quinto passo, chamado ponto de chegada, é o momento de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

refletir sobre quais resultados esta vivência nos proporcionou. A vista disso,
nós consideramos que tanto a identificação das estratégias de insurgências
individuais das mulheres, como a promoção do espaço coletivo, onde foi
possível que estas olhassem para as próprias trajetórias e se reconhecessem
nas histórias umas das outras, constituíram o movimento de humanização e
cuidado que a pesquisa-participante propõe.
Tal exercício metodológico possibilitou um contato mais profundo com
os saberes populares, correspondendo ao nosso objetivo primeiro: compreen-
der quais sentidos as mulheres residentes em uma Casa-abrigo atribuem à
experiência com a violência doméstica.
Diante disso, restou a indagação: o que ficou? Para Maria o que se mani-
festa é a possibilidade de contribuir para o conhecimento acadêmico das
pesquisadoras: Eu nunca pensei que a minha vida, a minha experiência, a
nossa experiência pudesse ajudar vocês também nos estudos, isso pra mim
é marcante [sic].

4. Considerações finais

A construção coletiva dessa sistematização seguiu o preceito de Jara


Holliday (2012) e considerou a importância de avaliar criticamente a expe-
riência de mulheres sobreviventes em situação de acolhimento institucional.
Apesar da potência de vida criada a partir do coletivo, nessa produção tive-
mos a dificuldade causada pela necessidade de utilizar plataformas digitais a
fim de assegurar o sigilo, bem como as regras sanitárias diante da pandemia
de covid-19.
Todavia, apesar da dificuldade apresentada, o presente estudo também
expressa a possibilidade de utilizar o método de sistematização de experiência
na pesquisa em gênero, em especial com mulheres vítimas de violência. Tendo
em vista, que tal metodologia oportuniza a atuação científica não estática,
170

que leva em consideração o território e os saberes nele produzidos e que,


essencialmente, busca construir no coletivo tensionamentos teórico-metodoló-
gicos de dicotomias clássicas do conhecimento: sujeito e objeto; pesquisador
e participante.
Descolonizar a Psicologia significa transcender a importada ciência
apática, distante, neutra e desconectada das mobilizações que só o encontro
permeado por afetos é capaz de produzir. Essa lógica sensível e territoria-
lizada desconstrói padrões quando se enxerga ao olhar para o outro, assu-
mindo uma postura inerentemente humana ao se permitir afetar pela beleza
da convergência.
A vista disso, com o desejo de experienciar modos de atuação que cor-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


respondem a convocação de Martín-Baró (2011) de colocar a ciência psicoló-
gica à serviço da construção de uma sociedade comprometida com os setores
populares, compreendemos que todos os corpos ali presentes (pesquisadoras
e participantes) eram transpassados pelo dito e não dito da violência. O per-
curso da pesquisa e do encontro de saberes permitiu demonstrar a potência
do coletivo em nos transformar, ensinar e mobilizar.
Salientamos que é de suma importância que o profissional psicólogo ao
amparar mulheres que experienciaram a violência não se limite à esfera psi-
cológica, mas que compreenda na totalidade em que essas pessoas vivem suas
vidas. Dialogando com Martin-Baró (1996), compreendemos que os povos
subalternizados possuem necessidades materiais, entretanto, esses indivíduos
também vivenciam vulnerabilidades no campo pessoal, da identidade, signi-
ficação social e relações humanizadoras de amor e esperança.
Posto isso, neste estudo podemos concluir que a violência de fato pro-
duziu efeitos no corpo, ao ponto de silenciar as mulheres entrevistadas, reti-
rando-lhes o direito de expressar o seu sofrimento e também suas maneiras
de perseverar. Diante do exposto, não esquecemos que os sujeitos estão em
interação, e por isso a pesquisa possibilitou um espaço de fala e escuta. Para
as participantes – que são sujeitos ativos nesse processo, não objeto -, o espaço
foi potente, porque deu nome ao sofrimento vivido, através do compartilha-
mento coletivo.
A partir de tal premissa, tanto na pesquisa quanto na prática profissional,
as psicólogas e psicólogos devem atentar-se para, a partir, e, em benefício de
quem, seu fazer se constitui e quais são as consequências históricas concretas
que sua atividade está produzindo na sociedade. Esta preocupação integra
o processo conscientizador que objetiva devolver a palavra às pessoas, não
somente como indivíduos, mas como parte de um povo.
Em suma, diante do que foi possível explanar neste estudo, o que perma-
nece para nós, enquanto mulheres latino-americanas e pesquisadoras-militantes,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 171

é que esta pesquisa constituiu uma estratégia de insurgência contra uma estru-
tura opressora colonial, capitalista e patriarcal que nos mata diariamente. A
convergência construída no coletivo também foi um ato político e contra-
-hegemônico, foi através do afeto compartilhado que, juntas, criamos potên-
cia de vida.
Após tal experiência, seguimos com a certeza de que Audre Lorde (2007)
estava certa ao dizer que não seremos livres se outras mulheres ainda forem
prisioneiras. Portanto, pesquisar a experiência da violência de gênero e suas
resistências implica em partilhar, também, o que nós vivemos como mulhe-
res nesse contexto, por meio de uma construção coletiva que considera as
vivências das pesquisadoras e não exclusivamente seus saberes acadêmi-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cos. Pesquisadoras que sentem, que choram e que dividiram suas histórias e
vivenciaram a experiência junto com aquelas que se dispuseram a construir
e partilhar um saber emancipador. Destarte, afirmamos que não há possibili-
dade de uma psicologia que não seja a psicologia que coloca os pés no chão
e constrói relações reais com o seu povo.
172

5. REFERÊNCIAS
BRASIL. Resolução CNAS nº 13, de 13 de maio de 2014. Tipificação Nacio-
nal de Serviços Socioassistenciais – Reimpressão 2014. Brasília, 2014.

BRASIL. Resolução CNAS nº 109, de 11 de novembro de 2009. Tipificação


Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília, 2009.

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Plano nacional


de política para as mulheres. Brasília, 2005.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


BRANDÃO, C. R.; BORGES, M. C. A pesquisa participante: um momento
da educação popular. Rev. Ed. Popular, Uberlândia, v. 6, p. 51-62, jan. 2007.

CIDAC; JARA HOLLIDAY, O. O Sistematização de Experiências: aprender


a dialogar com os processos. Lisboa: Ed. CIDAC, 2008.

CRUZ, Mariane dos Reis. As mulheres na América Latina: entre opressão de


gênero e colonialidade. Sociologia, antropologia e cultura jurídicas [Recurso
eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFMG/FUMEC/Dom Helder
Câmara; coordenadores: Ana Paula Basso, Daniela Mesquita Leutchuk de
Cademartori, Marcelo Maciel Ramos – Florianópolis: CONPEDI, 2015.

EMICIDA; MAJUR; VITTAR, P. AmarElo (Sample: Sujeito de Sorte - Bel-


chior). São Paulo: Sony Music Entertainment Brasil, 2019. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=PTDgP3BDPIU. Acesso em 27 out. 2023.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do


Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

JARA HOLLIDAY, O. A sistematização de experiências: prática e teoria para


outros mundos possíveis. Trad. Luciana Grafée e Sílvia Pinevro. Colaboração
Elza Maria Fonseca Falkembach. Brasília: CONTAG, 2012.

JARA HOLLIDAY, O. Para sistematizar experiências. João Pessoa: Editora


Universitária/UFPB, 1996.

LORDE, A. Sister outsider: essays and speeches. Berkeley, Crossing


Press, 2007.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 173

LUGONES, M. Colonialidad y genero. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-101,


jul./dez. 2008.

MARTÍN-BARÓ, I. O Papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia, v. 1,


p. 7-27, 1996.

MARTÍN-BARÓ, I. Para uma Psicologia da Libertação. In: GUZZO, Raquel


Souza Lobo; LACERDA, Fernando Jr. (Orgs). Psicologia Social para Amé-
rica Latina: o resgate da Psicologia da Libertação. Campinas: Editora Alínea,
2011. p. 181-197.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

MENEGHEL, S. N. et al. Rotas críticas de mulheres em situação de violência:


depoimentos de mulheres e operadores em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil. Cad Saude Publica, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 743-752, 2011.

Michaelis dicionário escolar língua portuguesa: nova ortografia con-


forme acordo ortográfico da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos,
2008, 951 p.

MUNDO SUR. Mapa Latinoamericano de femi(ni)cidios (MLF). Dispo-


nível em: https://mundosur.org/mlf/. Acesso em: 27 out. 2023.

ONU CEPAL. La medición del feminicidio o femicidio: desafíos y ruta de


fortalecimiento en América Latina y el Caribe, 2019.

ONU MULHERES. Del compromiso a la acción: Políticas para Erradicar la


violencia contra las mujeres américa latina y el caribe: documento de análisis
regional, 2016.

SAGOT, M. Ruta crítica de las mujeres afectadas por la violencia intrafa-


miliar en América Latina: estudios de caso de diez países. San José: Orga-
nización Panamericana de la Salud, 2000.

SAWAIA, B. B. Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade


e tranformação social. Psicol. Soc., Florianópolis, v. 21, n. 3, p. 364-372, Dec.
2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S010271822009000300010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 27 out. 2023.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart


Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 2010.
174

ZANELLO, V.; SILVA, R. M. C. Saúde mental, gênero e violência estrutural.


Rev bioét (impr.), v. 20, n. 2, p. 267-79, jul. 2012. Disponível em: https://
revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewFile/745/776.
Acesso em: 27 out. 2023.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


RELATOS DE ESTUDANTES DE UM
CURSO DE PSICOLOGIA SOBRE
SEU PROCESSO DE FORMAÇÃO
DURANTE A PANDEMIA
Gabriela Lira Zanato
Natália Mueller Jenichen Perboni
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

No início do primeiro semestre de 2020, a Organização Mundial da Saúde


declara como pandemia a contaminação de milhares de pessoas pelo mundo,
causada pelo Coronavírus (SARS-CoV-2), levando diversos países a decla-
rarem severas medidas para a interrupção ou diminuição da transmissão do
vírus. A OMS recomendava distanciamento social, além do uso de máscaras
e uso de álcool em gel (OMS, 2020).
O distanciamento provocou o fechamento de estabelecimentos não essen-
ciais (lojas, academias, restaurantes, entre outros), diminuição de transporte
públicos, e, assim, chegando a instituições de ensino infantil, fundamental e
médio, até de ensino superior como universidades e faculdades. Por conse-
quência, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Portaria nº 343, de
17 de março de 2020, propõe a substituição das aulas presenciais por aulas
em meios digitais na Pandemia do novo coronavírus.
As instituições de Ensino Superior (IES), vivenciaram cada uma con-
forme sua realidade, para algumas houve um período de recessão para pla-
nejarem como proceder seus calendários acadêmicos em meio ao isolamento
social. De acordo com o Monitoramento da Rede Federal de Educação pelo
MEC (2020), tem-se, por exemplo, o período de 20 de maio de 2020, onde 22
das universidades públicas do país tinham suas aulas suspensas, em contraste,
no período de 18 de dezembro de 2020, 37 universidades públicas já haviam
movido suas aulas para ensino remoto, no entanto, 6 delas continuaram com
aulas suspensas.
A universidade em questão desta pesquisa, uma universidade comunitária
do sul do Brasil, em Nota Oficial 002/2020, realizada pelo Comitê Interno,
no dia 16 de março, definiu que “a partir da quarta-feira, dia 18 de março de
2020 todas as aulas seriam migradas para ambientes virtuais (a distância)”.
Seguindo as orientações das instituições internacionais e também nacionais,
176

por meio das normativas publicadas pelo Ministério da Saúde e Governo do


Estado, visando as melhores condutas para a pandemia de 2020.
Esse movimento de mudança para as aulas por meio remoto gerou uma
adaptação inesperada, mas obrigatória, tanto para discentes quanto para docen-
tes nas diversas universidades do país. Os estudos realizados na pandemia
proporcionaram dados e discussões acerca de como essa adaptação e mudança
de cenário ocorreram. Sunde (2021, p. 43), após revisão bibliográfica em 11
na língua inglesa e na língua portuguesa, percebeu: “prevalência de sintomas
de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático, luto, raiva e
pânico entre os estudantes universitários durante a pandemia da covid-19”.
Os dados de Pessoa et al. (2021, p. 6), que realizou uma revisão inte-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


grativa da literatura, também corroboram com os acima citados, dizendo que
“discentes tornaram-se um público altamente vulnerável ao aparecimento de
transtornos mentais, que viabilizam o aparecimento de prejuízos cognitivos,
afetando consequentemente o desenvolvimento da aprendizagem”.
Em uma pesquisa com estudantes do curso de fisioterapia de uma insti-
tuição de ensino superior no interior da Bahia, com o objetivo de investigar
a opinião desses estudantes sobre as metodologias de ensino ativo do ensino
on-line, foi percebido que:

66,6% dos estudantes consideram ter dificuldade moderada com a quali-


dade da internet; 47% consideram também como dificuldade moderada
os ambientes domiciliares disponíveis para o estudo; e o manuseio da
plataforma on-line é vista com dificuldade moderada para 52% dos alunos
(Dosea et al., 2020, p. 142).

No entanto, não apenas os dados de impactos negativos foram encontra-


dos, em relação ao método de ensino - o ensino remoto emergencial. Os dados
também mostraram que 32,1% consideraram o acesso às aulas bom, 34,5%
consideraram o aprendizado muito bom e 42,7% consideraram a interação
em sala muito boa (Dosea et al., 2020).
Isso nos leva a pensar que, com a disponibilidade de um ambiente e
recursos adequados para o estudo, o ensino remoto pode proporcionar uma
qualidade de ensino proporcional ao que vemos no ensino presencial, com
a possibilidade, ainda, de desenvolver novas habilidades, necessárias para
o ambiente.
Por fim, Dosea et al. (2020) também aponta novas pesquisas focadas
na opinião dos estudantes sobre o ensino remoto que tenham como objetivo
explorar as experiências e falas dos estudantes e professores sobre a temática.
A partir um levantamento realizado no dia 2 de setembro de 2022, em
três bases de dados – BVS, Capes Periódicos e Scielo - com as palavras-chave
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 177

“Educação na pandemia; Ensino Remoto Emergencial; Universitários; Estu-


dantes de Psicologia”, foram encontrados 38 artigos (1, 24 e 13, respectiva-
mente), dentre eles, excluindo artigos repetidos e que não se encaixam no
objetivo geral do projeto (“Registrar as vivências de estudantes de psicologia
sobre a experiência do ensino remoto em uma universidade comunitária do
sul do Brasil durante o período de lockdown (2020 a 2021/1) da pandemia
covid-19”), encontramos um total de 9 artigos dentro dessa temática.
Com isso, se busca analisar o discurso trazido por estudantes acerca de
seus períodos de ensino em distanciamento e o contato com ambiente virtual
de aprendizagem, colocando o discente como fonte de dados e suas experiên-
cias em foco. Desse modo, se debruça sobre suas vivências, suas descobertas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e sua resiliência, mostrando e entendendo o valor de cada uma delas. Além


de escutar sua visão de futuro acerca da utilização e (re)adaptação de uma
ER e as possibilidades que ela poderá proporcionar para o ensino superior.
Por consequência, ao ouvir os estudantes sobre o que imaginam do futuro
da educação no ensino superior, a temática abre portas para uma nova moda-
lidade educacional, abrindo ainda mais os horizontes da educação e se apro-
ximando das novas práticas do mercado de trabalho. Além de proporcionar
ao aluno a experiência de um ambiente onde ele tem papel ativo em relação
aos estudos, preparando-o para o caminho após a graduação.
Dessa forma, esse projeto tem como problema de pesquisa entender como
estudantes de um curso de psicologia percebem seu processo de formação
durante a pandemia, para isso o objetivo geral é registrar as vivências de
estudantes de psicologia sobre a experiência do ensino remoto em uma uni-
versidade comunitária do sul do Brasil durante o período de lockdown (2020
a 2021/1) da pandemia covid-19, tendo como objetivos específicos caracteri-
zar a atual realidade desses estudantes em relação ao acesso e utilização das
Tecnologias de Informação e Comunicação; identificar as vivências positivas
que esses estudantes tiveram com a educação remota; refletir sobre o que fica
de positivo para pensar a educação no ensino superior.

2. Fundamentação Teórica

Entender o que são as Tecnologias da Informação e Comunicação


(TIC), é crucial para esse projeto, pois são elas que viabilizaram a Educação
Remota Emergencial nos tempos de Pandemia. As TICs podem ser com-
preendidas como toda tecnologia que lida e/ou é utilizada para transmitir a
informação e comunicação, estando intimamente ligadas às tecnologias de
informação (TI), mas trabalhando com objetivos diferentes. Ou seja, as “TIC
consistem em TI bem como quaisquer formas de transmissão de informações
178

e correspondem a todas as tecnologias que interferem e mediam os processos


informacionais e comunicativos dos seres” (Oliveira; Moura, 2015, p. 78).
Desse modo, com a inserção de TIC em sala de aula há a possibilidade
de uma nova gama de informação e conhecimento, além de ser apresentada
em diversos modelos, suprindo as dificuldades e proporcionando um estudo
adaptado para cada aluno.
Outro ponto, é que para a utilização delas, é preciso a criação ou o aper-
feiçoamento de algumas habilidades do aluno, levando-o a desenvolver, por
exemplo, sua criatividade, cooperação e integração ao coletivo da sala de
aula. Os autores ainda relatam que, para alcançar esses objetivos, precisa-se
ter ciência de que a escola é um importante espaço de interação social, por

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


isso, é interessante incorporar os demais recursos tecnológicos e a comunica-
ção, criando pontes entre esses conhecimentos, assim, “a forma de produzir,
armazenar e disseminar a informação está se transformando; o enorme volume
de fontes de pesquisas é aberto aos alunos pela Internet” (Oliveira; Moura,
2015, p. 83).
Essa concepção caminha para a ideia de que, ao se integrar as TICs no
plano de ensino, este também deverá ser adaptado e pensado para que tanto
alunos quanto professores estejam preparados para usufruir desse novo meio.
Tendo ciência do que são as TICs, cabe entender como funciona o aluno
em ambientes virtuais, aqui, é interessante entender a ideia de nativos digi-
tais, como aqueles que nascem com o uso de tecnologia, ou que tem grande
uso ao longo da vida, e de imigrantes digitais, como aqueles que tiveram que
migrar para o digital, a fim de se adaptar ao “novo mundo” (Coll; Mone-
reo, 2010).
Pode-se fazer uma leitura, na presente era, a partir da rapidez no desen-
volvimento da tecnologia que conhecemos hoje em computadores e smart-
phones, e a velocidade que as pessoas migraram para tal tecnologia, formando
uma grande massa de nativos digitais. No entanto, ao se analisar como estão
esses nativos, há a questão: os nativos digitais utilizam todo o acesso que têm
sobre as novas tecnologias?
Dados do IBGE (2022) apontam que o equipamento mais utilizado pelos
brasileiros é o telefone móvel celular, com 98% da população da pesquisa em
2019, seguido pelo microcomputador, com 46% da população. Nesse contexto,
Coll e Monereo (2010) já discutiam sobre um abismo socioeducativo, na qual
o uso das TICs pode criar uma separação cotidiana e cultural entre aqueles
que fazem maior utilização de tecnologias, do que aqueles que fazem uso
esporádico do equipamento.
Na educação, surge o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), que
é o resultado da implementação de TICs no ensino, dessa forma, sendo rea-
lizado inteiramente online (Oliveira; Moura, 2015). Ele consiste em uma
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 179

plataforma onde o aluno encontrará conteúdos didáticos, vídeo-aulas, fóruns


para debate, espaços para compartilhar e entregar avaliações, além do contato
com o professor, por meio de webconferências ou e-mails.
Os autores debatem sobre como a geração de professores que não aderem
a utilização da tecnologia, como TIC ou AVAs, podem estar prejudicando o
desenvolvimento de competências em seus alunos para a adaptação ao novo
mundo (Coll; Monereo, 2010).
No ensino superior, esse abismo pode ser visto em como as TICs dis-
poníveis para o estudante o afetam no desempenho educacional. A exemplo,
casos onde o estudante portava apenas um smartphone para estudos em pan-
demia, ou não haver internet residencial, precisando utilizar de outros locais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a sua disposição. Esses acessos tornam-se, assim, fatores desmotivadores


para os estudantes.
E em contexto pandêmico, alunos e professores presenciam a utilização
de TICs e AVAs como único meio de continuação de ano letivo, vendo a
adaptação ao contexto como a criação de novas habilidades para seus utili-
zadores, mas provocando o desenvolvimento de adoecimento mental e físico
(Pessoa et al., 2021; Sunde, 2021; Teixeira et al., 2021), comprometendo, por
conseguinte, a área educacional.
Retomando a temática do ensino remoto emergencial (ERE), sua aplica-
ção foi feita de forma abrupta e deixou aos docentes e discentes a responsa-
bilidade de adaptação ao meio, o que gerou, consequentemente, um período
de adequação estressante para ambos os lados. Esse estresse não é somente
pela mudança de ambiente e rotina, mas também gerado pelo campo econô-
mico, quando ocorre a procura e obtenção de eletrônicos, quando possível ou
necessário, para um melhor acesso às aulas.
Em relação a seus métodos, ele é semelhante a dinâmica em sala de aula
presencial, há a possibilidade de interação direta entre aluno e professor por
meio das aulas síncronas, a disponibilidade de fóruns abertos aos estudantes,
para integração entre seus pares, relatar suas dúvidas e compartilharem seu
conhecimento para o grande grupo.
Em contrapartida, mesmo as aulas remotas mantendo um perfil parecido
com as aulas presenciais, Teixeira et al. (2021) traz pesquisa onde aponta que
mais da metade dos estudantes participantes dizem não conseguir se concen-
trar nas aulas online e cerca de 40% deles dizem não conseguir aprender no
modelo ERE, além disso, também apresentam preocupações com o andamento
de seus estudos, como o atraso ou perda de semestres letivos. Dessa forma,
foi possível realizar correlações entre o ERE e a saúde mental em contexto
pandêmico, quando Teixeira et al. (2021) conecta os sinais de adoecimento
mental com os sentimentos de solidão, ansiedade e apatia encontrados no
período pandêmico, sendo esses uma consequência ao isolamento social.
180

Tais dados são também encontrados em Gundim et al. (2021) apud Sunde
(2021, p. 8) onde “fala de reações emocionais descritas como estresse, ansie-
dade, luto, raiva e pânico, associadas à preocupação com o atraso das ativi-
dades acadêmicas e ao medo de adoecer”.
Por outro ângulo, vale considerar a própria fase em que o jovem estu-
dante se encontra, que, culturalmente, se vê como uma transição entre o fim
da adolescência e o começo da vida adulta, essa com mais responsabilidades
e pedindo o aprimoramento de habilidades já presentes no jovem. Em isola-
mento social, quando é esperado que ele se adapte seguindo as influências do
meio socioambiental, o estudante não tem ou diminui o contato com outros
de sua idade, não tendo um modelo, sentindo-se então perdido (Teixeira et

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


al., 2021).
Sendo assim, o contexto desses acontecimentos faz-se pensar que:

O despreparo emocional psicológico revolucionou uma mudança no padrão


do sono, a prevalência de sintomas de depressão, ansiedade, estresse e
outros transtornos em alguns estudantes, sendo a incerteza sobre o fim
da pandemia e sobre o retorno das aulas e a possibilidade de terminar o
curso os principais estressores abordados nos estudos analisados (Sunde,
2021, p. 41).

Sob outro enfoque, já sabendo-se o quão turbulento foi o ERE na Pan-


demia da covid-19, passamos a questão: em um contexto não pandêmico,
seria possível a implementação saudável e progressiva do Ensino Remoto,
já não mais Emergencial no ensino superior? Pode-se entender que muitos
dos problemas relacionados ao modelo de ensino tem base no momento e na
forma como foi utilizado, mas em um novo ambiente, há a possibilidade de
novos olhares para a atual educação.
Na universidade alvo desse projeto, semanas após o decreto de dis-
tanciamento social no país, foi disponibilizado para todos os alunos e
professores o acesso ao ambiente virtual de aprendizado do Grupo A, o
Blackboard Collaborate.

3. Metodologia

Tal artigo teve como objetivo o levantamento das vivências de estudan-


tes de psicologia durante o ensino remoto emergencial de uma universidade
comunitária ao sul do Brasil. Tem natureza qualitativa, utiliza a análise de
discurso nos relatos de 9 estudantes, obtidos através de entrevistas semies-
truturadas, que chegaram até a pesquisadora por convite distribuído via redes
sociais vinculadas ao curso de Psicologia da universidade alvo e convites
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 181

informais entre os estudantes do curso. Todo este movimento foi realizado


após aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa.
Foram entrevistas presenciais e online, juntamente com a aplicação de um
Inventário com questões sobre acesso às TICs, com estudantes matriculados
no período de 2023/1 em um Curso de Psicologia, que realizaram parte da
sua formação em psicologia de forma remota durante a pandemia, utilizando
o ambiente virtual de aprendizagem oferecido pela universidade comunitária
participante do estudo.
Após ouvir estes estudantes, suas falas foram refletidas e organizadas
a partir da análise do discurso, procurando entender o contexto pandêmico
e a realidade do estudante por meio da linguagem, considerando a fala dos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

participantes contextualizadas um período social e histórico específico. O


posicionamento é uma característica importante a se entender, pois, o sujeito
é construído no discurso, ele tem uma posição dentro dele, dada por si ou por
outros (Breakwell et al., 2010).
No projeto de pesquisa, ao se olhar por essa ótica, é possível identificar e
compreender as posições do aluno e professor no ER, no contexto pandêmico
e fora dele, tentando compreender os processos de resiliência e o que os alunos
imaginam em relação a implementação de um novo ensino remoto na educação

4. Análise e Discussão

Nesta análise os presentes sujeitos serão nomeados por nomes fictícios,


assim, mantendo suas identidades em sigilo e os entendendo como pessoas
que vivenciaram parte de sua graduação na pandemia de forma singular em
sua história.

4.1 Primeiros contatos

De maneira geral, os estudantes demonstraram uma boa compreensão


dos conceitos de ER e EAD, assim como suas diferenças, advindo principal-
mente pelas suas experiências com os dois modelos disponibilizados pela
universidade. O tipo de contato com o ER no pandemia também se apre-
sentou de maneira individual para cada estudante, mas alguns pontos se tor-
naram comuns em suas narrativas, como o medo e desconfiança inicial ao
contato com o ER.

Foi uma adaptação assim de todo mundo, né? Que nos pegou de surpresa
e a gente teve que, é, sem imaginar que algo assim fosse acontecer, a gente
teve que, todo mundo se preparar para isso, né? (LUARA)
182

No começo, quando a gente foi surpreendido, porque a gente tinha feito em


torno de 2 semanas de aula, né? E de repente veio, olha, agora, passa a ser
o ensino remoto e acessar um sistema como tudo que é novo na vida, dá
aquele medinho, né? Tipo nossa, será que eu vou conseguir acompanhar
o ensino remoto? (NOEMI)

A chegada do novo em um momento de crise que foi a Pandemia da


covid-19 proporcionou sentimentos de desconfiança e evitação quanto ao ER,
algo esperado e compreensível que acontecesse.
Com o tempo e a experiência com o ER, alguns alunos relataram ter se
adaptado ao ER, tanto pelo tempo que se mantiveram em contato, quanto pela
necessidade que sentiram em continuar seus estudos. Roberto, relata que em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


primeiro momento sentia que o ER era necessário para o afastamento acon-
tecer, como uma medida de segurança, já Luara viu, também, um momento
de caos, pelo fato de se organizarem materialmente para a continuação de
seus estudos, seja a organização de um espaço para estudos ou a aquisição
de tecnologias para um melhor desempenho.
Aqui eu cito o relato de Isadora, quando diz que não consegue separar
seu processo de adaptação por categorias, como sugerido pela entrevistadora.

Eu não consigo fazer a diferenciação do âmbito acadêmico e do âmbito


emocional, sinceramente, porque além de o processo de universaliza-
ção ser um processo emocional, por si [...] eu não consigo me ver uma
estudante e uma Isadora que senti, eu fui uma estudante que sente na
pandemia (ISADORA).

Isso nos leva a questionar se outros estudantes se sentiram dessa forma,


que sentiram sua adaptação em todos os sentidos e que tiveram que se redes-
cobrir nesses sentidos, se questionando “O que fazer com o novo e des-
conhecido à minha frente?”. Moretti, Guedes-Neta e Batista (2020, p. 34)
dizem que “nesse sentido, seja orgânico, seja psicoemocional, o que podemos
definir é que o novo coronavírus nos trouxe inúmeros e significativos rompi-
mentos. Sem muita cerimônia, a COVID-19 rompeu com a nossa conhecida
rotina”. Por isso, o processo de generalização, citado por Isadora, pode ser
um fenômeno vivido por diversos estudantes que carregam consigo o peso
que foi o momento da pandemia, assim, não podemos deixar de olhar para
aspectos emocionais ao falar do que e como foi o processo de aprendizagem
na pandemia.
Outro processo de adaptação grandemente relatado foi a convivência
familiar, tendo em vista que, com as políticas de afastamento, muitas famílias
se viram juntas em momentos em que antes não seria possível pela diferença
de rotinas, trabalho e estudos. Assim, as refeições eram feitas todos juntos, os
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 183

espaços eram divididos com outros familiares e os conflitos se tornaram tão


frequentes quanto a convivência permitia. Pascoal (2022) relata um aumento
de afazeres domésticos e laborais para docentes e discentes, que tiveram
dificuldade em equilibrar esses afazeres, e ainda com um bom suporte que
receberam da instituição e de suas famílias, foi relatado esgotamento mental
e acúmulo de atividades. Desse modo, a resiliência e a comunicação se tor-
naram habilidades essenciais na pandemia, seja para lidar com seus próprios
sentimentos ou das pessoas ao redor da casa.

4.2 Adaptações e habilidades desenvolvidas pelos estudantes


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

De maneira geral os estudantes demonstraram a percepção de que pre-


cisavam de uma maior disciplina perante o ER, relatando que se sentiam
muito mais distraídos, além de ter mais distrações ao seu redor, quando os
estudos entraram em suas casas e em suas relações. Seus métodos de estudos
se mantiveram dentro do que já conheciam, modificando algumas etapas,
pela aproximação com a tecnologia, muitas anotações e pesquisas online se
solidificaram, mas as anotações presenciais continuam presentes. As mudanças
apareceram na preparação para a hora de estudar. O estudo qualitativo-quanti-
tativo realizado por Pereira et al. (2020, p. 52) também aponta como resultado
“a adaptação positiva e capacidade em lidar com o novo” acerca do ER.
Estando dentro de casa se tem uma rotina, afazeres e lazeres, por isso,
em prol da atenção e motivação, os sujeitos relatam que o simples ato de
tomar um banho e trocar a muda de roupa já auxiliava a manter o foco e se
preparar para a aula do dia. O participante Roberto, que já fazia a prática da
meditação e respiração, relata que a sua prática se tornou crucial para uma
boa performance nos estudos, servindo também como um fator de proteção,
visto seus outros benefícios para o bem estar humano.

[...] É de utilizar coisas que eu já usava, né? Que eu já fazia do meu, do,
do, minha prática diária, mas que eu estava tendo que usar também, né?
É, técnicas respiratórias, meditação, coisas relacionadas à concentração
para entrar dentro da sessão, né? (ROBERTO)

Roberto também relata outra visão da importância das práticas corporais


com que trabalha:

Em vários aspectos e como eu gosto muito dessa relação mente-corpo,


né? Eu vejo que o próprio corpo, ele também tem esta predisposição em
ativar, é, mecanismos que podem, então, também refletir melhor na questão
da capacidade mental, cognitiva, atenção, paciência, né? (ROBERTO)
184

A rotina se tornou bem presente nas falas dos estudantes, adaptada à


realidade de cada um, sejam estudantes com filhos ou não, a presença do
companheiro conjugal em casa ou os avós com quem moravam juntos. Luara
relata que com a chegada da pandemia, passa a perceber o quão corrido era
sua vida antes, e sente que teve a oportunidade de desacelerar e assim perceber
que com o ritmo que estava, chegaria a um desgaste emocional muito grande.
Essa “desaceleração” imposta pela pandemia proporcionou aos estudantes
tempo para perceberem e se perguntarem o que importava para eles, quais
eram seus valores e o que poderiam fazer para se aproximar deles.

A pandemia me trouxe uma, uma sensação assim “cara, olha só o tipo


de vida que você estava tendo. Quando isso tudo acabar, não volta mais

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


para aquela correria porque aquilo estava insano” sabe? E eu tento fazer
isso até hoje, assim, de não me colocar em tantas coisas, assim como eu
estava, e foi algo que eu aprendi com a pandemia que eu percebi que cara,
eu ia pirar daqui a pouco do jeito que estava (LUARA).

Esse tempo passado na pandemia apareceu como um período de ócio e


vazio para Jana, que relembra o ensino remoto como algo bagunçado, não
tendo se adaptado muito bem no momento. Ela relata que não se sentia moti-
vada para os estudos, mas com o tempo que teve, escolheu estudar temas
que chamavam sua atenção e explorar seus interesses na psicologia e em
abordagens, aqui sendo a psicanálise. Disse que buscou cursos, aulas e livros
disponíveis online que chamavam e guiavam seus interesses.

Mas foi um momento bom, porque eu fiquei num, muito tipo num, um
vazio assim. Aí eu pude estruturar, tipo, mais ou menos o que eu queria
com a universidade e o que que eu ia fazer da universidade para mim,
sabe? (JANA)

Esse vazio, tempo e espaço disponível na pandemia, claramente não


podemos afirmar que se apresentou da mesma forma para os demais e diversos
estudantes da universidade, entendemos que existiram diferentes contextos
em todo o período pandêmico, com diferentes realidades, pois que nem todos
tiveram a oportunidade e possibilidade de pensar em sua carreira a longo
prazo, já que suas necessidades atuais se mostraram mais urgentes e cruciais
para sua sobrevivência.
Outro ponto apresentado pelos estudantes era a aproximação com a tec-
nologia e a necessidade de aprender a usar os sites, aplicativos, entre outros,
para a realização das atividades propostas pelos professores, aqui:

A estimulação da construção de um conhecimento relacionado a qualidade


dos materiais de estudo, liberdade de opinião sobre seus conhecimentos
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 185

e autonomia nos estudos, são pontos positivos relacionados ao ensino


remoto e que favorecem o crescimento intelectual e pessoal dos estudantes
(Pereira et al., 2020, p. 53).

Para a realização dessas atividades, Verônica relata a necessidade de


desenvolver habilidades de comunicação online, pois diz que via mensagens,
várias interpretações podem acontecer do envio até a visualização e resposta
da outra pessoa. Por isso, disse que ao falar com outros colegas sobre traba-
lhos, sejam eles já conhecidos ou não, sentiu a necessidade de ser o mais clara
possível, com o objetivo de não gerar conflitos, aqui podemos acrescentar
uma comunicação não-agressiva, ao buscar ser empático, não-grosseiro e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

assertivo na comunicação com o outro, habilidades importantes de maneira


geral, utilizadas em diversos outros contextos da vida.

Nessa comunicação que não é cara a cara muitas vezes, a gente, quando
a gente não é claro, há muitos mal entendidos, então, aprender a ser
um pouco mais pontual, né? Na, nas relações ali com os colegas de
sala (VERÔNICA).

E como base estrutural para as questões apresentadas acima, o desen-


volvimento da autonomia do sujeito, entender-se como construtor ativo de
seu futuro, além de promover o desenvolvimento acadêmico e laboral, reflete
nas futuras atividades do estudante, independente do ambiente em que esteja.

[...] porque não estava acostumada ao tipo de liberdade, de autonomia


que a gente tem no ensino remoto, porque as, as atividades e o ensino
mesmo, né? O aprendizado do aluno, no meu caso, do meu aprendizado,
dependia muito de mim (VERÔNICA).

Essa autonomia, também, não se encaixa apenas em seguir seus estudos


de maneira individual e/ou centrada em si, mas na habilidade de pedir ajuda,
de organizar grupos de estudos, de comunicar-se objetiva e gentilmente, assim,
a autonomia passa a manifestar-se nos grupos, oportunizando novos modelos
e possíveis mudanças. Pereira et al. (2020) também apresenta a autonomia
como facilitadora para o desenvolvimento e aquisição de novas habilidades.

4.3 Pontos positivos e negativos

Por mais que a pandemia nos proporcionou um momento de crise que


deixou e ainda deixará marcas, foi possível identificar alguns pontos positi-
vos das vivências dos estudantes, a mais clara foi a logística de locomoção,
relatado por Pietra, tendo em vista que o ensino ocorre em casa, as longas
186

distâncias percorridas todos os dias até a universidade não são mais necessá-
rias, assim como os gastos financeiros e o tempo investido em transporte não
são mais uma preocupação.

[...] então, no meu caso, que mora em outra cidade, é, quando há, por
exemplo, alguma, é, notícia de que alguma matéria vai ser remota, eu
gosto porque nesse sentido, para mim é muito conveniente, né? Então, eu
acho que esse perfil, essa característica do ensino remoto, ser remoto, né,
dá mais liberdade para o aluno, é maravilhoso (VERÔNICA).

Jana também entende como positivo a possibilidade de ter aulas em


casa depois de um dia exaustivo de estudos e trabalho, relata o quão exaus-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tivo é passar um dia inteiro fora de casa e que a possibilidade de desfrutar do
conforto de sua casa ao participar de uma disciplina no modelo ER a noite,
facilitam a rotina corrida de estudos e trabalho.

porque daí às vezes eu estou o dia inteiro fora de casa, eu não quero
voltar para a universidade de novo [...] tipo você sai às 7 e fica fora de
casa até às 22:30, 23 horas, isso cansa, sabe, tipo custa a saúde física
e psicológica. E aí decidi que não ia mais fazer isso, daí as disciplinas
remotas vieram, tipo, foi muito bom ter algumas para escolher assim na
grade, porque, é, eu consigo tipo, não atrasar tanto a graduação e também
‘tá em casa descansando (JANA).

Outro ponto é a maior aproximação com o conteúdo e possibilidade


de foco nos estudos, Bianca diz que nas aulas remotas, tinha mais contato
com o conteúdo no sentido de, quando a professora citar algum livro ou algum
termo, facilmente poderia abrir uma nova aba no seu navegador e pesquisar o
tema ou comprar o livro indicado se interessada, essa aproximação e imersão
do conteúdo a deixava focada, entendendo que aquele era o momento de dedi-
car-se aos estudos. Trazendo, mais claramente, uma noção de administração
de tempo. Pereira et al. (2020, p. 51) aponta que os estudantes percebem
que seu gerenciamento de tempo foi prejudicado durante a pandemia, e com
isso incentiva a busca de “treinamentos sobre organização, priorização de
atividades e autoconhecimento por parte dos estudantes sobre seu papel no
processo de ensino/aprendizagem”.

E já fazia as leituras assim que acabassem as aulas, para evitar ficar


postergando, porque quando a gente está em casa é mais fácil de deixar
para depois, né? [...] começou a aula, terminou a aula, eu continuo ali,
focada, ainda que tenha que sair em alguns momentos para dar atenção
pro filho, fazer comida, essas coisas assim (BIANCA).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 187

Entendendo que mesmo com os pontos positivos apresentados, muitos


foram os pontos negativos vivenciados na pandemia, assim, a falta de comu-
nicação imperou os pontos negativos, primordialmente a comunicação e con-
tato presencial, a saudade dos colegas, as conversas no campus, as “fofocas
acadêmicas” antes das aulas, acabaram se perdendo com o sistema online. Os
sujeitos relatam que em alguns momentos, eram abertos momentos da aula
para conversar sobre como os alunos se sentiam, problemas proporcionados
pela pandemia e outros, o que auxiliou de sua forma, mas ainda assim não
supria a comunicação esperada.
Sucessivamente, um ponto relatado, e mais facilmente identificado, é
a exaustão das telas, pelo fato de as aulas, e às vezes também o trabalho,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ocorrerem de maneira online. Desse modo, essa exaustão acaba respingando


na comunicação, ao passo que ocorria principalmente por meio das telas,
logo, há a possibilidade de em um processo de generalização do fenômeno,
essa exaustão se manifestar em outros campos.

Então pra mim era tipo, ah, acordar faculdade e tu fica lá, tipo, 4 horas
e meia tipo vendo uma tela de computador, que tipo, pra, pra mim que
uso óculos ainda, tipo, doeu muito a cabeça e ainda aumentou um pouco
ainda o meu grau (LARA).

Um dos campos expostos à exaustão foi justamente as aulas no ER em


pandemia, quando tanto professores, quanto alunos acabavam por entregar
o “mínimo” nas aulas, um fenômeno geral na convivência com o ER, seja
percebido no início, meio ou ao final dele. Os estudantes relatam conseguir
perceber quando os professores ou alunos pareciam desmotivados.

Então, era muito comum ver os professores “bah, gente, mas ninguém
tem nada para falar?” (ROBERTO).

Os alunos relatam a sensação de que alguns dos professores ministra-


vam suas aulas, passavam conteúdo esperado mecanicamente, cumprindo
suas obrigações como professor, os alunos marcavam presença, participavam
quando pedido e entregavam os trabalhos propostos. Essa relação orquestra um
acordo implícito, advindo do cansaço e um reflexo do momento pandêmico,
entre professor-aluno, onde o que poderia se entregar era isso.
Aqui podemos citar como o grupo influenciava o comportamento
geral, quando a participação das mesmas pessoas nas aulas, com comentá-
rios, discussões e participação, a longo prazo, de alguma forma acabou por
reforçar a ausência alheia. Esse foi um fenômeno experienciado por muitos dos
188

sujeitos, Roberto e Noemi, especificamente, reconheciam que essa participação


acabava por reforçar a não participação dos demais colegas, entendendo que
sua participação não era necessária, pois outros colegas a estavam suprindo.

Então, também fica aquela situação, dizer assim é, aqui, aquele vazio,
aquele silêncio tem que acontecer também para, de alguma maneira,
tocar o coração das pessoas e elas quererem participar, né? (ROBERTO)

Não se pode deixar de citar, também, a entrada de estudantes em


2020/1, que saíram recentemente do ensino médio, e ao entrar na universi-
dade, logo caíram no ER, como Lara, que passou as três primeiras semanas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de adaptação ao campus, professores e colegas, para logo entrar no modelo
online, onde relatou ter dificuldades, as aulas quase não haviam participações
dos colegas e poucos se conheciam. Pascoal (2022, p. 67) também apresenta
que 64,4% dos alunos perceberam dificuldades ao se comunicar com alunos e
professores, assim, o “formato remoto interferiu consideravelmente nas rela-
ções interpessoais dos discentes e tornou-se mais desafiadora para aqueles que
entraram na graduação já com a pandemia em curso”. Voltando ao presencial,
Lara relata que é como se estivesse conhecendo as pessoas e professores pela
primeira vez, tendo uma adaptação, agora, ao presencial.

É, presencialmente, às vezes, eu às vezes, eu tô olhando o professor e


parece que eu tô lembrando ainda da tela do computador, sabe? [...] não
foi muito bom para mim, sabe? (LARA).

Essa falta de contato presencial com o campus, biblioteca e professores


foi uma deficiência para os estudantes, para aqueles que gostam do campus,
como Pietra, que relata com um saudosismo dos momentos anteriores à pan-
demia, e para aqueles que não tiveram essa vivência no campus. Assim como
Jana, que relata sua experiência de re-adaptação ao presencial:

Daí eu quis viver muito o campus, entendeu? Aí quis participar de grupos


[...] porque, tipo, precisava muito, tá aqui num momento que eu fiquei
muito tempo sem estar, sabe? (JANA)

Pela fala dos participantes, percebemos que a idade não necessariamente


ditou a experiência e desempenho com as TICs e AVA disponível, nos casos
em que foram percebidos colegas com dificuldades tecnológicas, Roberto
entende como um barreira econômica os problemas com equipamentos para
as aulas, que alguns dos colegas não se manifestaram nas aulas pelo fato de
não terem um microfone ou internet que suportasse a aula ao vivo, sem correr
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 189

o risco de perder conexão com a plataforma, por isso ele e outros colegas
acabavam optando por assistir as aulas gravadas fornecidas pela plataforma.
Barbosa, Viegas e Batista (2020) discutem a partir dos relatos de docentes
que as principais dificuldades dos alunos em assistir às aulas são a internet
que não atende as necessidades (33%) e não ter computador ou outro equi-
pamento (21%).

4.4 Diferença de idade entre os estudantes e seu processo de adaptação


ao ER e a sua vivência na universidade, um amadurecimento emocional
e acadêmico
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Um dos dados apresentados na pesquisa foi a diferença de idade dos


participantes, podemos evidenciar três grupos de participantes, o primeiro
grupo sendo 3 estudantes com 21 a 23 anos, o segundo com 3 estudantes de 35
e 36 anos, e o terceiro grupo com 3 estudantes entre 43 e 53 anos. O descon-
forto e desconfiança com o ER foi relatado pela maioria dos estudantes, mas
o desconforto sobre o uso das tecnologias foi uma necessidade apresentada
por Luara, que enxerga o desenvolvimento na área tecnológica como uma
habilidade aprendida em pandemia.

Como eu sou uma pessoa mais velha, é mais difícil pra mim essa parte
tecnológica. Assim, ela não está tipo, não está em mim ainda, né? Então
eu tive que aprender bastante, assim, sobre isso, desenvolver essa parte
um mim meio na força, assim, meio na marra, né? (LUARA)

Aqui partimos a olhar para a diferença entre os nativos digitais e aqueles


que “não nasceram com a tecnologia” e como se relacionam com a tecnologia
na Pandemia, podemos perceber com os relatos dos estudantes que esse con-
tato foi particular para cada um, o primeiro grupo, composto pelas estudantes
mais novas, não relataram problemas em lidar com a tecnologia, mas sim em
desenvolver seu desempenho nelas, seja pelo design de apresentações citado
por Lara, seja Isadora fazendo o uso de um tablet para anotações.
No segundo grupo, fazendo uma ligação para o terceiro, Verônica diz
que a AVA disponível pela universidade, o BlackBoard, apresentou ser uma
ferramenta com interface intuitiva e isso auxiliou seu contato com o ER. Já
no terceiro e último grupo, Noemi conta que seu trabalho já era a maior parte
dele remoto, assim, percebeu uma maior facilidade ao lidar com o ER.
As idades apareceram novamente quando Bianca, iniciando sua segunda
graduação presencialmente, sente uma diferença ao conversar com alunos
mais jovens que ela, percebendo uma divergência entre seus interesses e
190

dos demais colegas. Na pandemia, disse fazer algumas disciplinas à frente


de seu período, e lá começa a encontrar estudantes próximos a sua idade e
interesses, relatando que realizaram grupos de estudo online quando possível,
tentando aproveitar os utensílios que tinham naquele momento para suprirem
aquelas necessidades.
Dando o caminhar da pandemia, percebe-se que a diferença de idade
e seus impactos na convivência e identificação entre os estudantes é um
comportamento comum e esperado na universidade, abarcando tanto pessoas
em sua segunda graduação como Bianca, como recém-saídas do ensino médio
como Lara ou Jana. Tanto seu caminhar na universidade é diferente, quando a
idade e momento em que se está na vida requer diferentes escolhas e focos do

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


estudante, na pandemia, ocorre que esses momentos da vida foram isolados
e em um contexto caótico e de inseguranças, gerando outras possibilidades
de reflexões.

É até interessante que o período, eu acredito que existe um período cru-


cial de amadurecimento do estudante de psicologia que ele vai ocorrer a
partir do terceiro, quarto período e ele vai encerrar com o encerramento
da clínica. [...] tu no segundo período e tu quando tu sai da clínica, são
acadêmicos diferentes. (ISADORA)

Por isso, sobre o grupo de estudantes mais jovens, Isadora percebeu um


amadurecimento acadêmico entre sua experiência nos períodos presenciais
e remotos na pandemia, tendo tempo para repensar desde seus métodos de
estudos até seu propósito e valores na sua caminhada na universidade.

4.5 As implicações de disciplinas ER na Psicologia

Ao nos depararmos com o ER e sua participação na psicologia, muito


se estranha a ideia, sendo uma área de ciência e profissão muito próxima do
contato, da comunicação e de estar presente, com as falas dos estudantes de
psicologia, percebemos a importância da relação da psicologia e da corpo-
ralidade, aqui entendida também como a presencialidade. Com a pandemia e
o ER, Luara relata que acelerou também a chegada dos atendimentos psicoló-
gicos online, também reforça que já esteve tanto no lugar de psicóloga quanto
de cliente em atendimentos, e sente que há uma perda com os atendimentos
online, pelo fato de se perder as mudanças corporais, não poder analisar o
corpo da pessoa como um todo.

Eu até fiz terapia depois da pandemia, assim online, não acho que é o


melhor formato nem para ser paciente, nem para ser psicólogo (LUARA).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 191

No entanto, também reconhece que os atendimentos online se tornaram


uma possibilidade, pois há perfis de pessoas diferentes, seja pela praticidade
ou questões financeiras, e a oferta de diferentes propostas de atendimento
psicológico, para psicólogos e clientes, é uma forma de aumentar o acesso a
atendimentos psicológicos atualmente. Nessa perspectiva, Noemi enxerga com
positividade a entrada dos atendimentos online, apresentando algumas pra-
ticidades do modelo, sobre o tempo de deslocamento e o pagamento de um
ambiente físico, assim, principalmente para aqueles que estão iniciando, tor-
na-se mais vantajoso o pagamento de uma plataforma de atendimentos online.

[...] e muitas pessoas preferem o atendimento remoto, [...] talvez seja mais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

fácil você não está encarando a pessoa frente a frente. É como se tivesse
uma tela, como se fosse uma barreira protetora, entendeu? A pessoa está
te vendo, mas ao mesmo tempo não está ali, né? (NOEMI)

Aqui percebemos uma aproximação por perfil, imaginando que para


pessoas introvertidas ou com alguma fobia social, o início por meio do aten-
dimento psicológico online pode ser menos invasivo para essas pessoas. Além
disso, para o psicólogo, pode se tornar interessante manter tanto horário pre-
sencial quanto online, experimentando o que é mais eficaz para si.

5. Considerações Finais

Com os dados coletados e os objetivos do projeto, foi realizado o registro


das vivências dos estudantes sobre seu processo de aprendizagem na pande-
mia, assim como seus afetos e adversidades. A partir da amostra, percebe-se
que os alunos têm contato sólido com as TICs, seja para a produção de traba-
lhos ou para o acesso da ER na pandemia, com ótimo acesso a internet, sendo
o notebook e smartphone os equipamentos mais utilizados.
Dentro das falas dos estudantes, percebi um discurso voltado para a
importância das habilidades sociais e da presencialidade como propulsora
dela, visto a importância da presença do outro para seu desenvolvimento. Aqui
também vemos a importância das relações pessoais servindo como uma rede
de apoio entre os estudantes, com seus familiares e outros, entendendo que em
momentos críticos estar em conjunto, independente do tamanho desse grupo,
se torna um fator de proteção, desenvolvimento e criação.
Olhando para o problema de pesquisa, partindo da “formação” dos estu-
dantes, vejo que nos deparamos com visões tanto de formação acadêmica
quanto de formação emocional, e partindo da universidade como um lugar
de produção de conhecimento e aprimoramento de diversas categorias, assim
192

como de questões emocionais, habilidades de comunicação, tato social e de


interação social de modo geral, essa é um polo muito propício pra isso, sendo
um pilar importante para a formação do estudante.
Por isso, acredito que a relação da presencialidade e a pandemia refor-
çam essa presença no campus da universidade, que pode não ser tão clara
em ambientes online, também olhando para a qualidade da presencialidade
que encontramos nas salas de aula pós-pandemia e como esses estudantes se
apresentam como grupo, sejam estudantes recém-chegados na universidade
ou de períodos mais avançados.
A ideia de construção de certa forma aparece na fala da maioria dos
sujeitos, sendo a pandemia um momento crítico, foi necessário olhar para si,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


se perceber, analisar seu contexto e escolher o que é o melhor no momento a
se fazer. A partir do ócio ou do caos, os estudantes descobriram partes de si,
desenvolveram habilidades interacionais e tecnológicas, para isso exercitando
sua resiliência e habilidades já desenvolvidas.
A partir das entrevistas, foi visto um esforço dos estudantes ao se pensar
como uma disciplina remota pode ser melhor aproveitada na universidade,
entendendo a importância das salas de aula como egrégoras e fóruns voltados
para discussões, pontuando os ensinos teóricos como um momento individual
e que pode ser realizado de modo online.
O que se apresentou de maneira mais idealizadora, mas que fica como
uma possibilidade de mudança para o futuro, é a ideia de escolha e liberdade
do estudante para montar a grade que melhor se encaixa com seu perfil de
estudo, assim olhando para o contexto socioeconômico que este vive, sua
rotina e suas preferências, para assim montar uma grade de estudos adaptado
ao seu estilo, podendo escolher diferentes modalidades, turnos e disciplinas.
Para isso também olha-se para a atual, mas ainda não vigente, Diretriz
Curricular Nacional (DCN) dos Cursos de Graduação em Psicologia, defi-
nindo questões acerca da presencialidade e apresentação de disciplinas, com
as novas experiências da pandemia, imagino que novas pesquisas podem ser
feitas na temática, a fim de desenvolver essa liberdade de escolha como uma
possibilidade, percebendo que diferentes profissionais são formados todos
os semestres.
Por tanto, olhando para um futuro mais positivo, ficamos com Freire,
quando este traz o aprendizado como “uma aventura criadora, algo, por isso
mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender
para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem
abertura ao risco e à aventura do espírito” (2011, p. 47), assim, olhar para a
pandemia como um aprendizado é crucial para saberes futuros.
Com isso deixo como sugestões para futuras pesquisas temas como a
gravidez, suas facetas e impactos em docentes e discentes em período remoto
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 193

ou home office; discussões em salas de aula e o processo de construção de


conhecimento na universidade; as relações em grupo nas salas de aula e o pro-
cesso de socialização na universidade; a vida no campus como um ambiente
construtor de experiências; as influências da rotina e familiares no processo
de aprendizagem. Com a abrangência de dados que a entrevista desenvolvida
nos proporcionou, muitas falas não estiveram aqui presentes, mas com tais
indicações e futuros trabalhos, podemos continuar expandindo nossos olhares
e compreensões sobre a formação e processos de aprendizagem no Curso de
Psicologia e outros.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
194

6. REFERÊNCIAS
BARBOSA, A.M.; VIEGAS, M.A.S.; BATISTA, R.L.N.F.F. Aulas presenciais
em tempos de pandemia: relatos de experiências de professores do nível superior
sobre as aulas remotas. Rev. Augustus., v. 25, n. 51, p. 255-280, jul./out. 2020.

COLL, C.; MONEREO, C. Psicologia da Educação Virtual: Aprender e


ensinar com as tecnologias da informação e da comunicação. Artmed Edi-
tora, 2010.

DOSEA, G. S. et al. Métodos ativos de aprendizagem no ensino online: a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


opinião de universitários durante a pandemia de COVID-19. Educação, v. 10,
n. 1, p. 137-148, 2020.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 2011.

Folha informativa sobre COVID-19 - OPAS/OMS. Organização Pan-A-


mericana da Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/pt/covid19. Acesso
em: 10 abr. 2022.

IBGE. Educa Jovens. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/


materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html.
Acesso em: 14 abr. 2022.

IMPRENSA NACIONAL. PORTARIA Nº 343, DE 17 DE MARÇO DE


2020 - DOU - Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.in.gov.br/
en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376. Acesso
em: 4 abr. 2022.

MORETTI, S. de A.; GUEDES-NETA, M. de L.; BATISTA, E. C. Nossas


vidas em meio à Pandemia da covid-19: Incertezas e medos sociais. Revista
Enfermagem e Saúde Coletiva-REVESC, v. 5, n. 1, p. 32-41, 2020.

OLIVEIRA, C. de; MOURA, S. P. TIC’S na educação: a utilização das tecno-


logias da informação e comunicação na aprendizagem do aluno. Pedagogia
em ação, v. 7, n. 1, 2015.

Parecer CNE/CES no 1071/2019, aprovado em 4 de dezembro de 2019.


Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/
CNE_PAR_CNECESN10712019.pdf?query=FORMA%C3%87%C3%83O.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 195

PASCOAL, I. de O. Trabalho, Renda e Habilidades Sociais: redução de


vulnerabilidade em tempos de pandemia por Covid-19. 2022.

PEREIRA, R. M. da S. et al. Vivência de estudantes universitários em tempos


de pandemia do Covid-19. Revista Práxis, v. 12, n. 1 sup, 2020.

PESSOA, J. dos S. et al. Impacto do ensino remoto na saúde mental de dis-


centes universitários durante a pandemia da covid-19. Research, Society
and Development, v. 10, n. 14, p. e413101422197-e413101422197, 2021.

Rede Federal de Educação. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

coronavirus/rede-federal. Acesso em: 4 abr. 2022.

REY, F. L. G. Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. São


Paulo: Cengage Learning, 2005

SKATE, R. E. Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam


[recurso eletrônico]. Porto Alegre: Penso, 2011.

SUNDE, R. M. Impactos da pandemia da covid-19 na saúde mental dos estu-


dantes universitários. PSI UNISC, v. 5, n. 2, p. 33-46, 2021.

TEIXEIRA, L. de A. C. et al. Brazilian medical students mental health during


coronavirus disease 2019 pandemic. J. bras. psiquiatr, p. 21-29, 2021.

VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate


em aberto. Temáticas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A EXPERIÊNCIA DE PESSOAS
LGBTQIAP+ EM UMA PENITENCIÁRIA
DA REGIÃO DO VALE DO ITAJAÍ - SC
Eduardo Henrique Dos Santos Freitas
Yasmin Pereira Baldi Da Silva
Gustavo Da Silva Machado
David Tiago Cardoso
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

Estruturalmente, as categorias sexo e gênero são marcadas por enquadres


normativos. Quando as experiências singulares sobressaem à norma, os sujei-
tos recebem julgamento e punição a partir do olhar do outro, considerando
a regulação cis heteronormativa. Além disso, espera-se um comportamento
social dentro dos padrões morais e legais para o bom funcionamento social.
Quando interseccionamos dissidência de gênero, sexualidade e transgressão
legal, constrói-se um cenário ainda mais fértil para a exclusão. Seguindo a pro-
posta de Butler (2017), podemos falar também sobre uma desclassificação da
categoria “humano” para aqueles que não se inserem na matriz de inteligibili-
dade normativa, o que autoriza ações de violência em diferentes cenários. Este
capítulo buscará, por meio de uma pesquisa realizada em uma penitenciária
em Santa Catarina, produzir um registro que reivindique a existência pública
de pessoas que são direcionadas ao esquecimento por meio das práticas de
exclusão, especificamente pessoas LGBTQIAP+ em privação de liberdade.
Ao questionar ou imaginar a respeito da realidade de pessoas LGBT-
QIAP+ quando privadas de liberdade; surgem dúvidas a respeito de suas
vivências e experiências em um ambiente marcado pelo estigma da exclusão e
punição. Inicialmente, ao pensarmos sobre o tema, foi ressaltado, mesmo que
de forma espontânea, sobre os preconceitos vividos: se quando em liberdade
essas pessoas são constantemente ignoradas, excluídas, violentadas e até mor-
tas, como se dá essa “sobrevivência” em um contexto que é frequentemente
pensado como violento e tem como objetivo máximo a punição?
Os castigos aplicados às pessoas que infringem leis são calcados em
atos de violência há muito tempo. Inicialmente, a imposição do suplício
surge como ato de tortura e extrema violência, com o objetivo de mostrar
aos demais o poder de quem castigou, e qual seria o “destino” daqueles que
cometessem transgressões. O sofrimento servia como exemplo, mas também
198

como um espetáculo, caracterizado ainda como divertimento aos demais (Fou-


cault, 2011).
Com o passar do tempo, como apontado na obra ‘Vigiar e punir’ de
Foucault (2011), foi sendo adotado novos mecanismos punitivos, mas ainda
violentos, perpetuando a punição no corpo físico. As pessoas eram enforca-
das e colocadas em guilhotinas, tendo seus rostos tampados por um capuz, a
fim de desumanizar a cena e centrar no ato violento: a punição ainda sendo
atribuída ao corpo, mas com um certo anonimato, tornando a violência algo
intrínseca à justiça. Posteriormente, foi sendo adicionados outros métodos de
punição, como a prisão, caracterizada com isolamento e trabalho forçado, com
condições análogas à escravidão. Como cita Foucault em sua obra:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos
da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma
economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e
tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo
regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado” [...] Utopia do
pudor judiciário: tirar a vida evitando de deixar que o condenado sinta o
mal, privar de todos os direitos sem fazer sofrer, impor penas isentas de
dor (Foucault, p. 15, 2011).

Essa definição de castigo que se caracteriza como punitiva com a sus-


pensão de direitos, é a definição penal assumida pelo sistema prisional Bra-
sileiro. Somado a isso, os corpos são expostos à extrema precarização uma
vez que os espaços prisionais também são marcados pelo descaso, afinal,
para quê investir no lugar daqueles que tiveram seus direitos suspensos? O
projeto punitivista passa pela redução das condições de vida em um nível
subjetivo, especialmente, mas também concreto e arquitetônico. O sistema
penal pode ocupar dois espaços, a prisão punitiva, com a suspensão de direitos
e tratamento cruel, e a prisão “educativa”, que priva aquele indivíduo de seu
convívio em sociedade com o objetivo de promover a reabilitação através de
atividades desenvolvidas naquele espaço, as quais têm o intuito de reintegrar
essas pessoas na sociedade. A educação nesse sentindo ganha um caráter,
emancipador, contribuindo para a diminuição das reincidências criminais
(Rodrigues; De Oliveira, 2021).
Dembogurski et al. (2021) afirmam em seu estudo que a política de
encarceramento em massa não atingiu seu objetivo principal esperado, isto é,
a redução das práticas criminais e, consequentemente, a redução dos índices
de criminalidade. Ao contrário, ela segue produzindo segregações que visam
a manutenção de estruturas sociais desiguais, mais do que cumprindo seu
papel reeducador. A Lei de Execução Penal n° 7.210/1984, garante ao preso
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 199

e ao internado a devida assistência e outras garantias legais, mas a realidade


dos presídios e penitenciárias é, muitas vezes, diferente do que se estabelece
em lei, encontra-se ambientes superlotados e em péssimas condições sanitá-
rias (Eich et al., 2020). E, aqui, uma das maiores inquietações de pesquisa:
sabendo destas dificuldades encontradas, como as pessoas já marcadas por
segregações em decorrência de sua identidade de gênero e sexualidade viven-
ciam o encarceramento?
Pensando nessas questões, o tema abordado foi definido com o intuito de
trazer uma maior visibilidade às pessoas LGBTQIAP+ no contexto prisional
de modo a evidenciar seus direitos. Para elaborar de forma mais precisa o
tema em questão, é importante conhecer as políticas e práticas de encarce-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ramento vigentes no Brasil que concernem a população LGBTQIAP+. Em


2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, publica
um documento norteador das práticas direcionadas a esta população nas pri-
sões, intitulado “LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos
institucionais e experiências do encarceramento’’. Nele, é possível encontrar
orientações no que diz respeito ao tratamento oferecido nas prisões, elencando
dois pontos principais: escassez de dados e importância da criação de celas e
alas específicas para esta população.
Além disso, é constatado pelo documento supracitado que as pessoas
LGBTQIAP+ encontram-se em vulnerabilidade às violências físicas, sexuais
e psicológicas, especialmente em prisões masculinas. Mesmo as pessoas que
estão em celas/alas específicas ainda apresentam riscos, pois vivem a preca-
riedade das políticas institucionais. Desta forma, fica evidente que as medidas
utilizadas para mitigar ou sanar as violências experienciadas por esta popu-
lação nas prisões não se faz suficiente, uma vez que seguem em situação
de risco, sem garantia de sobrevivência. Portanto, o risco é generalizado e
documentado, e esse tipo de percepção exige, com urgência, ações concretas
e duradouras que garantam a sobrevivência das pessoas LGBTQIAP+, bem
como, atenção às demandas específicas dessa população neste cenário.
Como mais uma política de exclusão, salienta-se que, apesar de existir
um projeto de Lei (6.350/19) que determina que pessoas trans sejam encami-
nhadas para o local adequado a sua identificação de gênero, muitas mulheres
trans ainda são enviadas para presídios masculinos, sem ser considerada sua
identidade, ressaltando uma narrativa genitalista sobre a experiência de gênero.
Nos presídios, essas pessoas são constantemente segregadas e até mesmo
violentadas; em um ambiente cultuado pela punição e isolamento, é como
se essas pessoas sofressem duplamente na prisão, como se recebessem duas
sentenças, a da justiça e a outra por serem parte da comunidade LGBTQIAP+
(Nascimento, 2017). O sistema prisional foi construído em cima de uma lógica
200

cis heteronormativa masculina, e qualquer corpo além deste enquadre é obri-


gado a se encaixar nessa definição, violando direitos, legitimando a violência
e a exclusão dessas pessoas (Oliveira et al., 2018).
De acordo com o Departamento de Promoção dos direitos de LGBT,
o Brasil ocupa o ranking de 3° país com maior número de encarcerados no
mundo, se considerar as pessoas presas que ainda não foram a julgamento,
com pelo menos 726 mil pessoas, e quando analisado o perfil das pessoas
que compõem essa população, em sua maioria pessoas pretas e pobres, a
desigualdade que assola nosso país fica ainda mais evidente. Dessas pessoas
privadas de liberdade, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional
(DEPEN), mais de 10 mil se autodeclaram LGBTQIAP+ (Brasil, 2020).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Em outro levantamento feito pelo DEPEN, mostrou também que apenas
101 unidades prisionais são destinadas às pessoas LGBTQIAP+. Os motivos
dessa baixa adesão às celas exclusivas para LGBTQIAP+ são determinados
principalmente pela falta de estrutura das penitenciárias, além da superlotação.
É preciso ressaltar a importância dessas celas específicas: além de configurar
um procedimento que visa a segurança dessas pessoas, faz com que essa popu-
lação seja melhor assistida, monitorada e percebida, para que suas demandas
específicas sejam atendidas (Brasil, 2020).
Fernandes et al. (2016) focou sua pesquisa em um estudo sociológico
sobre a criação de alas exclusivas para apenados LGBT, trazendo uma refle-
xão sobre a realidade vivida nessas celas sobre a perspectiva dos apenados e
dos gestores da prisão, colocando em questão para os entrevistados e como
pergunta principal do estudo se a criação das celas exclusivas seriam a melhor
opção. Através da coleta de dados foi analisado que os apenados das celas
LGBT relataram o sentimento de segregação por estarem em um ambiente
isolado dos demais. Apesar da notável diminuição da violência física, é per-
cebido a persistência da violência psicológica, marcada pela percepção do
tratamento diferente.
Na região Sul do Brasil, de 177 estabelecimentos penais, 6 possuem
celas/alas LGBT (Brasil, 2020). Pouco é relatado a respeito das diversas
formas de violência que essas pessoas são expostas, tanto pelo Estado quanto
pelos demais presidiários. Por exemplo; em algumas regiões as pessoas tran-
sexuais não têm direito e acesso ao tratamento hormonal quando privados
de liberdade. Muitas, inclusive, desenvolvem problemas de saúde por não
dar continuidade na medicação. Além disso, podem ser proibidas de usar
shorts ou camisetas mais curtas, não podem deixar o cabelo crescer ou usar
maquiagem. Esses são dados e relatos de pessoas aprisionadas no estado de
São Paulo, estado com maior número de pessoas LGBTQIAP+ encarceradas
no país (Souza, 2019). Mas será que a realidade dessas pessoas em outras
regiões é a mesma?
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 201

Buscando informações locais em documentos oficiais ou órgãos públicos,


não encontramos dados sobre essa população na região do Vale do Itajaí. Nos
baseando nessa questão, na região em que residimos e nas possibilidades que
dispomos, questionamos como é a experiência das pessoas LGBTQIAP+
privadas de liberdade em uma penitenciária da região do vale do Itajaí - SC?

2. Metodologia

Visando responder ao questionamento lançado, como pesquisadores


nos colocamos em campo. É na realidade do campo que conseguimos produ-
zir territorializações e desterritorializações que sejam capazes de promover
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

rupturas com aquilo que é estruturalmente perpetuado. O presente estudo


caracteriza-se como uma pesquisa descritiva, exploratória com abordagem
qualitativa, utilizando o método de análise de história de vida. A pesquisa
descritiva, visa descrever ou mapear uma realidade e oferecer um retrato
possível dela para fins de interpretação (Tonetto et al., 2014). Além disso, por
se tratar de uma pesquisa exploratória, também busca-se aprimorar hipóteses,
o que no caso diz respeito a situação das pessoas LGBTQIAP+ que estão
privadas de liberdade, proporcionando familiaridade com o campo de estudo
(Franco; Dantas, 2013). Como desenho principal, é importante ressaltar que
esta investigação se desenvolveu como uma pesquisa qualitativa, uma vez
que se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado
(Minayo et al., p. 21, 2011). O método de História de Vida, garante uma
aproximação entre os sujeitos da pesquisa e o pesquisador, o qual também faz
uso da entrevista semiestruturada, que possibilita a alteração das perguntas
conforme a entrevista se desenvolve.
Sobre o método de história de vida ainda cabe dizer que se trata de
uma abordagem em que o que importa ao pesquisador é o ponto de vista
do sujeito, seus relatos, experiências e aquilo que o indivíduo acredita ser
importante sobre sua vida. O objetivo principal do pesquisador é aprender e
compreender a vida do entrevistado, como ela é, sendo assim nesse método
de história de vida ou relato de vida, não se tem o pesquisador como detentor
do saber (Spindola; Santos, 2003). Esta pesquisa ocorreu em uma instituição
penitenciária masculina da região do vale do Itajaí - SC. Para isto, foi solici-
tado a autorização de pesquisa junto a Secretaria de administração prisional
de Santa Catarina. Além disso, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
em Pesquisa com Seres Humanos, com CAAE: 55663121.6.0000.0120.
Participaram da pesquisa aquelas pessoas que aceitaram o convite que
foi realizado pela psicóloga do serviço. Como critérios de inclusão foram
usados: ser pessoa LGBTQIAP+ que esteja dentro do Sistema Prisional da
202

região do Vale do Itajaí – SC, e que aceite participar da pesquisa livremente.


Foram excluídos do estudo aqueles (as) que durante o processo de entrevista
desistiram de sua participação ou não se reconheceram como pessoas LGB-
TQIAP+ no momento da entrevista. O total de participantes não foi estabe-
lecido a priori, pois não obtivemos informações com os dados da população
LGBTQIAP+ encarcerada na região do vale do Itajaí - SC. Sendo assim,
trabalhamos com uma amostra não probabilística indicada pelas “sementes”
do estudo (Vinuto, 2014), ou seja, trabalhadores (as) da assistência prisional.
Foram realizadas entrevistas até que se obteve a saturação das informações.
A análise dos relatos dos participantes, foi por meio das transcrições de
seus relatos, as quais se deram durante a entrevista, pois não foi autorizado

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


por parte da instituição a gravação delas. Transcrevemos o mais fielmente
ao que os participantes relataram, levando em conta também o momento de
como ocorreu o encontro e as emoções e sentimentos presentes em cada fala,
assim como aquilo que fica contido nas entrelinhas, no não dito, nas palavras
entrecortadas por lágrimas e silêncio (Spindola; Santos, 2003). Posteriormente
às entrevistas, foram elaborados diários de campo com os relatos dos parti-
cipantes e das transcrições, com o intuito de nos situar em relação às falas
dos participantes.
Após isso, as falas foram categorizadas em agrupamentos semânticos que
responderam aos objetivos principais desta pesquisa, os quais foram articula-
dos com a base teórica desta investigação. Desta forma, a história de vida das
pessoas que participaram das entrevistas serviu de articulador experiencial
para reflexão sobre a temática, valorizando a potência daquilo que é “vivido”
por estas pessoas na realidade em questão, aproximando-se da proposta da
investida ético-política do pesquisar (Sawaia, 1999; Bonamigo, 2016).

3. Resultados e Discussões

Antes de iniciar as entrevistas, realizamos uma visita no complexo peni-


tenciário com o intuito de nos ambientalizarmos. Com exceção do orienta-
dor da pesquisa, a equipe não possuía experiência prévia de trabalho neste
contexto, o que fez desta uma importante etapa do processo reflexivo. Nos
diários de campo que foram produzidos após este encontro inicial, pudemos
perceber que houve, por parte da instituição, uma tentativa de mostrar que
as estratégias de reeducação utilizadas naquele contexto eram cuidadosas e
seguiam os princípios básicos dos direitos humanos. O que nos fez questio-
nar: tivemos um primeiro contato com o contexto ou com certa “imagem”
enviesada dele? No entanto, cabe ressaltar que pudemos, com esta ida inicial,
produzir uma aproximação com o contexto de modo direto, para além do que
a produção teórica nos apresentava.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 203

As entrevistas ocorreram em dois dias de duas semanas diferentes, no mês


de junho de 2022, o que simbolicamente significa que realizamos a pesquisa no
mês do orgulho LGBTQIAP+. Todas as entrevistas foram individuais, estando
no ambiente a pessoa entrevistada, os pesquisadores e a psicóloga da peniten-
ciária, a qual a presença foi uma exigência da diretoria da instituição. É notável
que a presença dela, durante as entrevistas, possa ter interferido nas respostas
dadas, visto que ela representa a instituição. Embora seja reconhecida entre os
apenados como uma figura de confiança, percebe-se que a exigência de sua
presença deixa implícita uma tentativa de controle e supervisão.
Iniciamos as entrevistas pedindo aos participantes que escolhessem um
nome fictício para que elas fossem representadas na pesquisa. Sobre a des-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

crição de raça e performance de gênero de cada um, alguns se definiram de


acordo com sua identificação em diferentes categorias. É importante indagar
que mesmo não sendo o objetivo do trabalho e não ter surgido através das
falas dos entrevistados, nós entendemos a importância sobre as questões inter-
seccionais e por isso não podemos deslegitimar o racismo como preconceito
sofrido constantemente pelas pessoas racializadas, pois este é estruturado
junto com o patriarcado em nossa sociedade. Ribeiro (2019, p.7), nos diz que
“O racismo é, portanto, um sistema que nega direitos, e não um simples ato
da vontade de um indivíduo”.
Vale ressaltar que todas as pessoas entrevistadas estavam com as mãos
algemadas, alguns também estavam com os pés algemados. Questionamos se
era realmente necessário, visto que ficamos incomodados de imediato, pela
limitação de movimentos de suas mãos, dificultando na gesticulação enquanto
falavam, e pela delimitação explícita entre nós, pesquisadores e psicóloga
representando a instituição, e eles, pessoas em situação de privação de liber-
dade e de direitos. Para os autores Oliveira et al. (2018), é entendido que a
utilização das algemas dificulta a comunicação e a enunciação do discurso,
porque, “uma vez que esta não pode ser compreendida apenas através daquilo
que é nomeado, pois perpassa o corpo e suas performances”.
É sobre essas pessoas marcadas pelo limite que iremos falar agora, elas
serão apresentadas, inicialmente em uma tabela, conforme a ordem em que
foram entrevistadas e depois será discutido mais a fundo as suas vivências nas
categorias de análise elencadas. Entendemos que as apresentaremos a partir
do nosso discurso, e que essas pessoas têm uma imagem já representada para
cada um dos leitores mesmo antes de serem de fato introduzidas, pensando
nisso e no que Butler (2011), retrata em seu estudo, de que em certo modo,
já se configura uma violência para essas pessoas serem representadas a par-
tir do discurso do outro e que por conta disso, há grandes chances de serem
diminuídas, desumanizadas e até mesmo invisibilizadas.
204

Tabela 1 – Participantes da pesquisa


Identidade de
Nome fictício Idade Etnia Tempo que está encarcerada (o)
gênero
Estefani 21 anos Mulher Trans Preta 2 anos
Gabriel 30 anos Homem cis Branco 10 anos
Bruna 27 anos Mulher Trans Preta 1 mês
Giovani 34 anos Homem cis Branco 10 anos
Lucas 23 anos Homem cis Preto 2 anos
Wesley 28 anos Homem cis Branco 9 anos
Verônica 25 anos Mulher Trans Preta 3 anos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Pesquisadores

Como produto das entrevistas, tivemos um registro por escrito dos encon-
tros, o qual hibridizava o nosso e o discurso das pessoas que entrevistamos.
Cientes da indissociabilidade entre estas instâncias, fizemos a categorização
das informações considerando que produzimos um discurso possível na rela-
ção, o qual emergiu no e do encontro. Por isso, admitimos a não-neutrali-
dade do fazer científico e sua característica localizada, como aponta Haraway
(1995), uma vez que, como citado anteriormente, encontramos uma série de
questões pessoais e institucionais que delimitaram as condições de possi-
bilidade desta pesquisa. Para produzir reflexões que respondam à pergunta
de pesquisa, construímos categorias de análise, as quais serão expostas a
partir de agora.

3.1 A vivência de desigualdade e violência antes da prisão

De maneira geral, o cenário socioeconômico que se desenvolve com o


fracasso das experiências de bem-estar social, a saber, a reestruturação do
capitalismo na sua face neoliberal, aponta para uma crescente precarização das
formas de vida, acesso à direitos e de um Estado como garantidor de direitos
fundamentais. A função social do Estado dá lugar a uma dinâmica concorren-
cial que prioriza a concentração de renda e altera inclusive a forma com que
os indivíduos se comportam, pensam, e formam seus laços sociais (Dardot;
Laval, 2020). Considerar o contingente de pessoas que ficam à margem do
acesso a condições fundamentais de vida é essencial para pensar sobre como
se produzem sujeitos e os atravessamentos que experimentam em sua vida.
Durante as entrevistas, nos foi apresentado situações de precarização da
vida nas histórias de cada entrevistado, que se vinculam com a experiência
da sexualidade e gênero de cada um. Questões como a violência familiar, o
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 205

racismo estrutural, falta de acesso à escola, saúde, e vinculação com redes


de apoio, preconceitos e estereotipização, por exemplo, são formas através
das quais se expressam as desigualdades neste cenário, e suas vivências são
determinantes na história de vida de cada sujeito. Sawaia (1999), aponta como
as formas de exclusão se relacionam com os processos de sofrimento dos seres
humanos, nas suas mais variadas formas. Estefani, por exemplo, sofreu uma
violência enorme ainda quando era apenas um bebê, o seu pai assassinou sua
mãe e depois morreu por suicídio, deixando-a com a irmã mais velha, que
acabaram sendo criadas pelos avós paternos.
Ainda no recorte de experiências de violência, Bruna trouxe algumas
situações que vivenciou, como a não aceitação da família; a violência sexual
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cometida por vários homens enquanto estava dopada de remédios; e as agres-


sões e tentativa de feminicídio praticadas pelo ex-marido. Pelo recorte da desi-
gualdade, Bruna se prostituía desde os 17 anos e depois que mãe faleceu, ela
ficou sem condições financeiras e acabou indo morar na rua, e posteriormente
se viciando em crack. Na rua, Bruna diz que sofreu olhares de desprezo e
chegou a se humilhar para conseguir comer. Bruna faz uma fala muito mar-
cante, quando diz que estar presa é melhor do que estar na rua, pois ali tem o
que comer, onde dormir e que assim também consegue ficar longe das drogas.
Em consonância com a precarização da vida e as questões de violência,
nota-se a dependência química como fator comum entre alguns dos entre-
vistados. Wesley e Lucas, por exemplo, foram expostos a droga desde muito
cedo e ambos relataram ter cometido atos ilícitos para manter o vício. Consi-
derando os relatos descritos, podemos dizer que, aos corpos dissidentes está
imposta socialmente a exclusão de diversos âmbitos da vida, como, família,
escola, comunidade, trabalho, serviços de saúde entre outros. Sendo assim,
por inúmeras vezes as violências experienciadas por esses corpos, estão liga-
das às situações de vulnerabilidade e precariedade, as quais são efeitos de
uma sociedade constituída na cis heteronormatividade. (Souza; De Oliveira
Prado, 2019).

3.2 As vivências de gênero

De acordo com Butler (2017), a identidade de gênero acaba por ser per-
formativa, sendo constituída através de gestos, atos e de um acumulado de
fatores visuais, como elementos corporais e de vestimenta.
“Não é uma descoberta”, foi a colocação feita por Estefani quando ques-
tionada sobre sua vivência de gênero. Conta que se declarou aos 14 anos como
homossexual, e aos 17 anos como mulher trans. Quando questionada sobre
como foi esse processo de transição, ela respondeu “foi não, está sendo”, diz
206

que foi bem difícil a questão do preconceito e aceitação por parte dos pais,
mas que se sente bem do jeito que é. Bruna relata que desde sempre “já dava
pinta”, aos 19 anos, se reconheceu como mulher trans e iniciou a transição.
Relata que sempre teve a mãe como apoiadora, que a ajudava muito. Para
Verônica, a nomeação de sua identidade de gênero não normativa aconteceu
dentro da prisão, sendo que somente durante a entrevista que ela se apresenta
com o desejo de ser uma mulher trans.
Como foi possível perceber, a questão da identidade de gênero pode se
manifestar em diferentes momentos da vida, o que vem ao encontro da reflexão
apontada por Lanz (2016), ao dizer que essa “descoberta” pode ocorrer em
diferentes períodos, na infância, adolescência, na vida adulta ou até mesmo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


na velhice, independentemente das circunstâncias da existência. Essas pessoas
vivenciam a não adequação ao binarismo de gênero desde sempre e sofrem
punições sociais por transgredirem.

3.3 Prostituição como uma marca comum entre as mulheres trans


ou travestis

Segundo Broide (2006), a prostituição acaba sendo uma das possibilida-


des de trabalho comum entre as mulheres travestis e transexuais na realidade
brasileira. Foi possível confirmar esta afirmativa nas entrevistas realizadas.
Estefani, por exemplo, começou a furtar para não ter que se prostituir, assim
como Bruna, que quando ficou sem ter onde morar e o que comer, viu a pros-
tituição como único meio de produção de renda, e em determinado momento
foi presa por cometer um delito contra um de seus clientes.
Para Oliveira et al. (2018), a prostituição acaba sendo a opção para as
mulheres trans e travestis, visto que dificilmente essas pessoas são contratadas
para empregos formais, devido a sequência de situações de vulnerabilidade
social e econômica que elas são inseridas. Segundo Pereira e Gomes (2017),
a pobreza tem uma relação intrínseca com as pessoas trans e travestis, pela
discriminação enfrentada, que gera o afastamento da escola e outros meios
de ensino e qualificação, resultando no distanciamento da possibilidade de
atuação no mercado de trabalho formal, permanecendo a margem da socie-
dade, corroborando para a questão da desigualdade social.
Segundo dados do dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis
e transexuais brasileiras em 2020 da ANTRA (Associação nacional de traves-
tis e transexuais), 90% da população de mulheres transexuais e travestis no
Brasil, se prostituem devido à falta de oportunidades e que a maioria delas
são negras. Além disso, o documento indica que as mulheres transexuais e
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 207

travestis, constituem um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e


prematura no Brasil.

3.4 As relações afetivas e a vivência da sexualidade não normativa na


prisão

A performatividade de gênero é calcada nas construções sociais em rela-


ção aos papéis que os corpos ocupam na sociedade. Sobretudo, ela demanda
o reconhecimento do outro para se perpetuar (Buttler, 2017). Em relação
às pessoas trans e travestis, não é diferente. Em determinado momento das
entrevistas, Verônica questiona o que ela teria que fazer para ser tratada pelo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nome que se identificava, indicando uma dificuldade institucional de ser reco-


nhecida. Para a instituição, talvez, assim que ela estivesse “visivelmente”
uma mulher, ela seria considerada uma mulher trans e a partir disso seria
tratada pelo pronome feminino. Porém, encontramos aqui um nó discursivo:
o respeito virá com a performance da feminilidade, a qual é negada pela
instituição sistematicamente.
Giovani relata que teve sua primeira relação que ele entende como
“homoafetiva” em 2020, dentro do presídio com uma mulher trans, e logo
nos mostrou o nome dela tatuado no braço. Ainda sobre a questão da sexua-
lidade no ambiente da prisão, disse que só se relacionou com mulheres trans/
travestis, e diz que gosta de ficar com “homens” mais afeminados, com peito
e sem barba, o que nos faz refletir sobre a objetificação de corpos dissidentes.
Segundo, Anzini (2020) em seu estudo, aponta para o fato de que mulheres
trans e travestis não serem convencionalmente consideradas “”mulheres legí-
timas, e é possível confirmar isso, através das falas de Giovani e Gabriel, onde
as consideram como “homens”. Além disso é pontuado pela autora que esses
corpos são fetichizados e hipersexualizados e que a estruturação social da
transfobia, gera assédio sexual, perseguições nas ruas, estupros entre outras
violências, além de legitimar a prostituição.
Nos dois momentos que comparecemos às entrevistas, encontramos
climas completamente diferentes. No primeiro dia, quase todos pareciam
animados e mais dispostos. No segundo dia, alguns estavam tristes, outros
mais irritadiços, e com o decorrer das entrevistas nesse dia, foi evidenciado
o motivo através dos discursos de cada um. As relações entre eles naquele
espaço são muito frágeis, pois estão em um ambiente naturalmente opressor,
sendo separados dos demais, com essa diferença explícita que é constante-
mente demarcada em todos os movimentos. Pela privação de atividades fora
da cela em decorrência da sexualidade, permanecem todos em constante ócio,
208

convivendo com as questões de suas sexualidades de forma conjunta e com


pouca privacidade.
Verônica aponta sobre a intensidade dos sentimentos que são vivenciados
ali dentro, por estarem em relação 24 horas por dia. Por alguns se relacionarem
afetivamente, cria-se ainda mais um espaço com tensões quase que constantes.
Entre a primeira e a segunda entrevista, por exemplo, dois relacionamentos
se desfizeram, e as pessoas envolvidas passaram a se relacionar com outras
novas pessoas, ocorrendo desavenças e até mesmo um caso de agressão física.
Ou seja, cria-se um espaço propício para conflitos que promovem ainda mais
estereótipos dentro do espaço carcerário.
O “casamento” nesse espaço serve como uma forma de legitimar as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


relações afetivas que são estabelecidas, o termo é utilizado pelos apena-
dos em questão, e pelos funcionários da penitenciária. Como citado por
Baptista-Silva et al. (2017, p. 384), “O cárcere fomenta possibilidades parti-
culares de configurações de conjugalidade que só existem nesse lugar-tempo,
produzidos por redes de cuidado, amparo e gerando laços sociais”. Além
disso, os autores ainda pontuam sobre as configurações das relações, como
por exemplo: a tentativa de suprir carência por troca de afetos, a possibili-
dade de proteção e estratégia apoio e segurança no espaço prisional, além de
concessão para práticas sexuais cotidianas.
Percebemos neste espaço que o grupo em questão vivencia as relações
afetivas de modo intenso e entrelaçado, o que nos fez refletir sobre um efeito
relacional desta ausência de privacidade. Ou seja, como não há possibilidades
de espaços íntimos, todo e qualquer relacionamento é necessariamente público,
tanto para as demais pessoas em privação de liberdade, quanto para a insti-
tuição. Como um dos efeitos perversos da punição, temos a superexposição
destas experiências, perde-se a privacidade e o direito de vivenciar relações
que, por direito, poderiam ser de foro íntimo. Assim, a privação de liberdade
não termina apenas no aprisionamento, ela se ramifica relacionalmente mesmo
dentro das prisões.

3.5 A homofobia e a transfobia no cárcere

Seguindo as categorias de análise selecionadas, um outro ponto a ser


comentado é o fato de as mulheres trans e travestis serem alocadas em peni-
tenciárias masculinas, seguindo a lógica genitalista. Essa separação reforça
os estigmas de exclusão desses indivíduos, que não são considerados mulhe-
res, nem pelos próprios “maridos”, que se referem a elas pelo nome social,
mas que as enxergam como homens. Como citado por Baptista-Silva et al.
(2017, p. 380), “O trânsito entre as identificações de gênero se mistura com
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 209

práticas sexuais, a partir de modelos de códigos concedidos culturalmente às


masculinidades e feminilidades”.
Mantendo a linha de exclusão, o tratamento hormonal não é ofertado,
fazendo com que elas tenham uma regressão em seu processo de transição,
acarretando possíveis problemas de saúde e implicando na autoestima, como
relatou Bruna durante uma das entrevistas, que a barba estava crescendo
novamente e ela estava muito incomodada com isso, e que não conseguia
nem ver como estava, só sentir, já que não tem um espelho.
Foi possível observar ainda, que alguns funcionários chamavam as
mulheres trans/travestis pelo nome de registro e não pelo nome social, esse
fato ocorreu mais de uma vez. Bruna por exemplo, disse que estava sofrendo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

preconceito por parte de um agente, que fez piada sobre ela tomar o “coquetel”
(se referindo de forma estigmatizante ao esquema de tratamento ao HIV).
Além disso, Bruna também relatou uma série de atitudes violentas por parte
dos agentes penitenciários, todas elas direcionadas a sua identidade de gênero:
foi chamada de “traveco” e “viado”, recebe frutas podres durante as alimen-
tações e sua cela foi apelidade de “24”, número que pejorativamente é asso-
ciado à homossexualidade. Em sua fala, destacamos sua reação diante destas
situações: “Estou presa, mas não sou bicho”. A fala de Bruna nos relembra a
condição de não-humanidade lançada às pessoas fora dos enquadres norma-
tivos, o que de maneira perversa, autoriza práticas de violência e exclusão.
Nesse âmbito, a instituição total age sobre a mortificação da subjetividade
como forma de punição, transformando os seres humanos ali inseridos, quase
que de forma literal, como somente um número, como parte de uma categoria
generalizada. Como descrito por Goffman (1974), a privação não se resume
apenas aos direitos básicos, mas no sistema prisional atual priva-se de uma
“vida vivível”, uma vez que as atividades cotidianas ficam à mercê da disponi-
bilidade e agência da instituição, cumprindo a função de uma instituição total.
As situações descritas acima são atos de transfobia escancarados e
descumprem a Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril 2014, do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação e do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária (CNPCP), que afirma que, às pessoas trans e travestis
encarceradas serão garantidos a manutenção do seu tratamento hormonal e o
acompanhamento específico de saúde.
O Manual da Resolução nº 348/2020, reafirma as questões acima e acres-
centa que as pessoas LGBTQIAP+ têm o direito de serem tratadas pelo nome
social, de acordo com sua identidade de gênero, mesmo que distinto do nome
que conste de seu registro civil e que o local de privação de liberdade será
determinado pelo magistrado em decisão fundamentada após consulta à pessoa
acerca de sua escolha.
210

As pessoas LGBTQIAP+ não possuem uma ala exclusiva para sua per-
manência na penitenciária em questão, mas são mantidos em duas celas des-
tinadas unicamente a eles, afastados dos demais presos, para sua segurança,
a fim de evitar confrontos. A partir do momento em que algum preso tem
envolvimento com alguma pessoa LGBTQIAP+, essa pessoa é separada dos
demais. A maioria dos outros encarcerados, principalmente dos membros de
facções, não aceitam a vivência e expressão da sexualidade e de gênero destas
pessoas, deixando explícito as ameaças de morte.
A penitenciária em questão, conta com cerca de 1500 detentos, com
somente um ambiente para tomar banho de sol, que ocorrem em turnos alter-
nados, pois, a penitenciária é dividida em grupos, como por exemplo, mem-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


bros de facções criminosas e pessoas que cometeram crimes sexuais, com o
objetivo de conter a possibilidade de atos violentos entre eles. Por conta dessa
separação, as pessoas LGBTQIAP+ não tem horário de banho de sol, por não
poderem estar com os demais e pelo tempo reduzido para essa atividade. A
mesma situação ocorre no acesso ao trabalho, onde não há possibilidade de
colocar essas pessoas com os demais presos por questão de segurança e não
há um ambiente de trabalho que possa ser ofertado unicamente a eles. Por
conta disso, eles ficam no mesmo espaço o dia todo, sem atividades, sem
ver a luz do sol, apenas interagindo entre si, no ócio. Essa é uma reclamação
pertinente, principalmente vinda de Giovani, que antes quando estava com
os demais presos tinha a possibilidade de trabalhar e estava com o objetivo
na remissão de pena, e por Lucas, que relata estar cansado de ficar sem fazer
nada, que nem livros eles têm acesso. Estefani disse que elas “estão cansadas
de serem presas”. Vemos, aqui, uma questão identitária que emerge a partir
das vivências de limitação e exclusão: ser presa, para elas, significa funda-
mentalmente não ter espaço de existência.

3.6 O sofrimento apagado

As entrevistas nos fizeram refletir sobre o sofrimento enfrentado pelas


pessoas privadas de liberdade, sofrimento que muitas vezes é apagado,
seguindo a lógica de ideologia punitiva que é apresentada neste espaço. As
instituições penitenciárias do nosso país, funcionam como um mecanismo
de exclusão sobre os encarcerados, com um atestado de exclusão com firma
reconhecida, como aponta Tavares e Menandro (2004).
Bruna, no momento da segunda entrevista, chegou bem abalada, bastante
trêmula e inquieta, aparentava cansaço e discurso desorganizado, disse que
estava sozinha na cela e que havia tentado suicídio e se autolesionado, e que
não conseguia parar de pensar em tentar novamente. A psicóloga demonstrou
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 211

preocupação e a acolheu, ao fim da entrevista ela foi realocada para outra cela


com os demais. Bruna havia sido diagnosticada com HIV há poucos dias e
durante a entrevista compartilhou conosco essa informação e disse que não
sabia o que iria fazer, acolhemos sua questão e explicamos sobre o tratamento,
e que há possibilidade de viver de forma saudável e com qualidade de vida.
Aqui, ressaltamos a implicação ético-política com a pesquisa, afinal, esta não é
apenas uma informação para nossa análise, mas um marco significativo em sua
vida. Sabe-se que esse é um momento assustador e difícil de ser vivenciado.
Para Lobo e Leal (2020) o momento do diagnóstico é atravessado por pro-
cessos de estigmatização e carregado de preconceito e o sentimento de culpa,
como é o caso de Verônica, que também vive com HIV e diz se culpabilizar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

por isso. Passar por um momento como este na situação apresentada eviden-
cia a ausência de rede de apoio e sentimentos de solidão, algo que pode ser
determinante para ideação suicida ou pensamentos de morte (Botega, 2015).
De Jesus et al. (2015) relatam que o abandono familiar está associado
a fatores, como, dificuldades socioeconômicas das famílias dos apenados,
a distância das penitenciárias, o constrangimento das revistas para adentrar
esse espaço, o pouco tempo das visitas, além da questão da moralidade, pelo
envolvimento dos indivíduos com a criminalidade. O que contribui para a
diminuição da qualidade de vida e a perda do suporte afetivo e social, ocasio-
nando os sentimentos de solidão, desamparo e sofrimento. Observamos que
muitos deles não recebem visitas, muitas famílias moram em outro estado,
então alguns se comunicam com os entes queridos apenas por cartas, outros
as famílias abandonaram. Durante a pandemia foi implementado a “visita
virtual”, na qual é realizada por meio de chamada de vídeo. Segundo os entre-
vistados essa foi uma ótima mudança, pois possibilitou um maior contato com
suas famílias, mesmo que não presencialmente, alguns até restabeleceram o
vínculo e puderam ver seus entes queridos depois de muito tempo.
Dentre as perguntas da entrevista, uma delas se referia ao que eles gosta-
riam que fosse diferente naquele ambiente, e alguns responderam comumente
que seria “humanizar mais alguns agentes”. Sobre os agentes de segurançapri-
sional, Duarte (2010), apresenta que o seu papel seria de ressocialização dos
encarcerados, porém estes têm a função de manter a ordem e a segurança da
unidade prisional, sendo a contenção e a disciplina do preso, sua prioridade.
É imprescindível que o Estado promova condições, para que os agentes cum-
pram o seu devido papel, de combater a violência institucional e a promoção
dos direitos humanos, uma vez que percebemos a partir dos relatos que são
os agentes penitenciários os representantes da instituição. Em linhas gerais,
é como se os agentes representassem a epiderme de um sistema ainda mais
complexo, mas são eles o contato próximo, onde o toque das relações de
212

poder que buscam a manutenção das normas e a punição se efetua. É impor-


tante problematizar, no entanto, que esta posição de corporificar a instituição
também não os deixa ilesos de vivenciar dinâmicas de opressão e violência,
ao contrário, também os coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade.

4. Considerações finais

Butler (2015), nos convida a assumir um compromisso ético, em que nos


responsabilizamos em relação à nossa narrativa e aos riscos de cruzarmos as
fronteiras da inteligibilidade, e para além disso, nos desfazermos em relação
ao outro como chance de assim nos tornarmos humanos. Quando analisamos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os relatos oferecidos, encontramos fronteiras relacionais que, até o momento,
não conhecíamos. Afinal, não as conhecer faz parte do projeto de exclusão.
As pessoas privadas de liberdade recebem um estigma explícito de exclusão.
Mesmo antes de serem julgados, essas pessoas passam por um processo de
privação de direitos que as excluem de todos os meios sociais, recebem uma
punição moral antes da penal.
A justiça penal brasileira enfrenta diversos problemas, como a infraes-
trutura, superlotação, a presença de facções criminosas, o grande número de
presos provisórios e o alto número de reincidentes. Dentre as desigualdades
e políticas de exclusão desse espaço, estão as formas de tratamento recebido
pela população LGBTQIAP+, que se apresenta nesse ambiente, como alvo de
violência por parte dos demais. Foi questionado por nós, quais as possibili-
dades de ocupação dessa população nesse espaço comumente pensado como
hostil, em um estado do país que não possui dados de nenhuma ala exclusiva
para pessoas LGBTQIAP+. O que encontramos foi certa prática de segregação
que mimetiza uma ala, mas fala mais sobre táticas de separação.
Observou-se que a psicóloga da penitenciária, assim como alguns agen-
tes, é vista pelos presos como ferramentas de assistência, são pessoas mais
próximas da instituição com quem os apenados podem fazer solicitações e
reclamações, Ramminger (2001), reflete sobre haver uma confusão em rela-
ção ao papel e função dos profissionais da psicologia e a dificuldade de se
diferenciar da prática da assistência social. As pessoas que foram entrevis-
tadas demonstram possuir um carinho e uma admiração por ela, que ficou
muito visível para nós. Deixamos explicitado aqui também, que ela foi uma
profissional de extrema importância no desenvolvimento da pesquisa, pois
se demonstrou solícita em nos receber e intermediar o processo da pesquisa
com a penitenciária e contato com os apenados.
Como resultado da pesquisa, obtivemos a confirmação sobre a perda
de direitos dessas pessoas, a privação de liberdade vem acompanhada da
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 213

privação de direitos. Mesmo se tratando de um espaço que conta com alguns


profissionais, como por exemplo a psicóloga, que busca a melhoria do acesso
dessas pessoas a alguns artefatos, existe a instituição total que limita, e que
não consegue atender a todos. A pesquisa propiciou às pessoas LGBTQIAP+,
um espaço de escuta, a chance dessas pessoas contarem suas histórias a um
outro e a partir disso, se perceberem reconhecidas, algo que é muito difícil de
acontecer dentro deste espaço tão árido. Além disso, foi possível identificar
as questões de precarização da vida prévias ao encarceramento, bem como
as experiências de gênero, sexualidade e os relacionamentos afetivos, como a
presença marcante da fluidez da sexualidade e de gênero nesse espaço, assim
como a LGBTQIAP+fobia.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Explicitamos aqui, que a realidade apresentada nessa pesquisa, não pode


e não deve ser generalizada, ela representa a situação de uma penitenciaria
em específico, e deve ser levado em conta a região e o estado em qual ela se
localiza, por isso recomendamos que mais pesquisas sobre a experiência da
população LGBTQIAP+ sejam desenvolvidas em outras regiões e em escala
nacional, para que assim, possamos ter dados e informações sobre essas pes-
soas e que através desses estudos, possam surgir políticas públicas que de fato
assegurem os seus direitos e propicie então uma experiência mais humana
dentro do sistema. É visível a necessidade de criação de alas LGBTQIAP+,
em todo o sistema prisional brasileiro, ou mais ousado ainda, é necessário
repensar o sistema prisional e a sua lógica em um todo.
Sobre as pessoas LGBTQIAP+ no contexto carcerário, ainda é escasso
as pesquisas e políticas de inclusão a seu respeito, visto que o sistema penal
como um todo é uma questão para o país, pelo senso comum da prisão ser
um lugar oportuno e funcional para a retirada de direitos, algo a ser refletido
e questionado, pois essas pessoas são seres humanos e titulares de seus direi-
tos. Como apontado por Mallmann (2015, p.11) “O fato de ter, o apenado,
uma dívida com o Estado, decorrente da prática de um ato ilícito, não o torna
menos merecedor de tutela, ou ainda, menos humano”.
214

5. REFERÊNCIAS
ANZINI, V. B. O poder das coisas: corpa, falocentrismo, transgeneridade e
arqueologia. Revista Discente de Arqueologia, v. 1, n. 1, p. 31-48, jul. 2020.

BAPTISTA-SILVA, G.; HAMANN, C.; PIZZINATO, A. Casamento no Cár-


cere: Agenciamentos Identitários e Conjugais em uma Galeria LGBT1. Pai-
déia (Ribeirão Preto), v. 27, p. 376-385, 2017.

BENEVIDES, B. G.; NOGUEIRA, S. N. B. Assassinatos e violência contra

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo: Expressão Popular,
ANTRA, IBTE, 2021.

BONAMIGO, I. S. O texto científico como laboratório de fabricação de mun-


dos/The scientific text as a laboratory to fabricate worlds. Revista Polis e
Psique, v. 6, n. 1, p. 149-161, 2016.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de lei n. 6350, de 10 de dezembro


de 2019. Altera o §1º do art. 82 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei
de Execução Penal. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2233105. Acesso em: 15
nov. 2022.

BRASIL. Governo Federal. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos


Humanos. Secretaria Nacional de Proteção Global. Departamento de Pro-
moção dos Direitos de LGBT. Documento técnico contendo o diagnóstico
nacional do tratamento penal de pessoas LGBT nas prisões do Brasil,
2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/ptbr/assuntos/noticias/20202/
fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf. Acesso em: 2 nov. 2021.

BRASIL. Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução


Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1984.

BRASIL; CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO.


Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014. Estabelecer os parâmetros
de acolhimento de LGBT em privação de liberdade no Brasil. Diário Oficial
de União, 2014.

BRASIL; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual Resolução nº


348/2020: Procedimentos relativos a pessoas LGBTI acusadas, rés, condenadas
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 215

ou privadas de liberdade: orientações a tribunais, magistrados e magistradas


voltadas à implementação da Resolução nº 348/2020, do Conselho Nacio-
nal de Justiça / Conselho Nacional de Justiça; coordenação de Luís Geraldo
Sant’Ana Lanfredi ... [et al..]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2021.

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 391, de 10


de maio de 2021. Estabelece procedimentos e diretrizes a serem observados
pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena
por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liber-
dade. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 10 maio 2021. Disponível
em: https://atos.cnj.jus.br/files/original12500220210511609a7d7a4f8dc.pdf.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Acesso em: 2 nov. 2021.

BROIDE, J. A psicanálise nas situações sociais críticas: uma abordagem


grupal à violência que abate a juventude das periferias. Tese (Doutorado)
– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade


(1990). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

BUTLER, J. Relatar a si mesmo. Autêntica, 2015.

BUTLER, J. Vida precária. Contemporânea-Revista de Sociologia da


UFSCar, v. 1, n. 1, p. 13-13, 2011.

CHIES, L. A. B. Suicídios em prisões: Um estudo dos acórdãos do Tribunal


de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Dilemas: Revista de Estudos de
Conflito e Controle Social, v. 15, p. 129-151, 2022.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Boitempo editorial, 2017.

DE JESUS, A. C. F. et al. O significado e a vivência do abandono familiar


para presidiárias. Ciência & Saúde, v. 8, n. 1, p. 19-25, 2015.

DEMBOGURSKI, L. S. de S.; OLIVEIRA, D. D. de; DURÃES, T. F. N.


Análise do processo de ressocialização. O método da Associação de Proteção
e Assistência a Condenados. Revista de Ciencias Sociales, v. 34, n. 48, p.
131-154, 2021.

DE SOUZA MINAYO, M. C.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa


social: teoria, método e criatividade. Editora Vozes Limitada, 2011.
216

DUARTE, C. L. O papel do agente prisional na ressocialização do preso.


Trabalho (Conclusão de Curso) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.

EICH, D.; DE SOUZA, C.; COSTA, M. C. Crise no sistema penitenciário


brasileiro. Revista interdisciplinar de ensino, pesquisa e extensão, v. 8, n.
1, p. 431-436, 2020.

FERNANDES, H. R. R. Estudo sociológico sobre a criação de alas exclu-


sivas para apenados do grupo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais. Dissertação (Pós-Graduação) – Universidade Federal da
Paraíba, 2016.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. 39. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

FRANCO, M. V. A.; DANTAS, O. Pesquisa exploratória: aplicando instru-


mentos de geração de dados-observação, questionário e entrevista. In: Con-
gresso Nacional de Educação. 13. Anais [...]. Curitiba. p. 1-16, 2017.

GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspec-


tiva, 1974.

LANZ, Letícia. Ser uma pessoa transgênera é ser um não-ser. Revista Perió-
dicus, v. 1, n. 5, p. 205-220, 2016.

LOBO, Â. S.; LEAL, M. A. F. A revelação do diagnóstico de HIV/Aids e


seus impactos psicossociais. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, v. 9,
n. 2, p. 174-189, 2020.

MACHADO, N. O.; GUIMARÃES, I. S. A realidade do sistema prisional


brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Eletrônica
de Iniciação Científica. Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas da
UNIVALI, v. 5, n. 1, p. 566-581, 2014.

MALLMANN, B. M. Violação dos direitos dos apenados: uma análise do


precário sistema prisional brasileiro. Monografia (Graduação) – Repositório
UFSM. Santa Maria – RS, 2015.

NASCIMENTO, A. Duplamente preso: os desafios da classe LGBT no sis-


tema penitenciário brasileiro. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/arti-
gos/62014/duplamente-preso. Acesso em: 15 nov. 2022.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 217

OLIVEIRA, J. W. de; ROSATO, C. M.; NASCIMENTO, A. M. R.; GRANJA,


E. “Sabe a minha identidade? Nada a ver com genital”: vivências travestis no
cárcere. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 38, p. 159-174, 2018.

OSÓRIO, L.; SANI, A.; SOEIRO, C.. Violência na intimidade nos rela-
cionamentos homossexuais gays e lésbicos. Psicologia & Sociedade,
v. 32, 2020.

PEREIRA, F. Q.; GOMES, J. M. C. Pobreza e gênero: a marginalização


de travestis e transexuais pelo direito. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 22, n. 2, p. 210-224, 2017.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

RAMMINGER, T. Psicologia comunitária X assistencialismo: possibilidades


e limites. Psicologia: ciência e profissão, v. 21, p. 42-45, 2001.

RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. Companhia das Letras, 2019.

RODRIGUES, V. E. R.; DE OLIVEIRA, S. A. As contribuições da educação


no processo de ressocialização da pessoa privada de liberdade. Revista Teias
de Conhecimento, p. 205-220, 2021.

SAWAIA, B. As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da


desigualdade social. Petrópolis, RJ: Editora Vozes Limitada, 1999.

SOUZA, F. Discriminação nos presídios: com pratos marcados e rejeitados


por facções, presos LGBT sofrem com rotina de segregação. BBC News
Brasil, 27 mar. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/bra-
sil-47376077. Acesso em: 2 nov. 2021.

SOUZA, M.; DE OLIVEIRA PRADO, M. Violências, mulheres travestis,


mulheres trans: problematizando binarismos, hierarquias e naturalizações.
Revista Polis e Psique, v. 9, n. 2, p. 45-66, 2019.

SPINDOLA, T.; SANTOS, R. da S. Trabalhando com a história de vida:


percalços de uma pesquisa (dora?). Revista da Escola de Enfermagem da
USP, v. 37, p. 119-126, 2003.

TAVARES, G. M.; MENANDRO, P. R. M. Atestado de exclusão com firma


reconhecida: o sofrimento do presidiário brasileiro. Psicologia: ciência e
profissão, v. 24, p. 86-99, 2004.
218

TONETTO, L. M.; BRUST-RENCK, P. G.; STEIN, L. M. Perspectivas meto-


dológicas na pesquisa sobre o comportamento do consumido. Psicologia:
Ciência e Profissão, v. 34, p. 180-195, 2014.

VINUTO, Juliana. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa:


um debate em aberto. Temáticas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


TRANS(RETALHOS) URBANOS: uma
costura cartográfica sobre espaços seguros e
acolhedores pela perspectiva de pessoas trans/
travestis em uma cidade do sul do Brasil
Marco Vagnotti
Gustavo da Silva Machado
Enis Mazzuco
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Este capítulo é uma tentativa de apresentar parte de uma pesquisa que tive
o prazer de acompanhar. Suely Rolnik (2014) nos adverte que cartografar é
acompanhar processos e, definitivamente, o processo que Marco nos apresenta
é pulsante. Tem muito dele, tem muito de mim, tem muito de nós. Esta pesquisa
surge a partir de uma inquietação que ele me traz em orientação: Gustavo, estou
cansado de falar sobre o sofrimento da nossa comunidade. Quero falar sobre
acolhimento. De fato, Marco. Nossa felicidade é um ato radical e seguiremos
buscando pelo direito de ser feliz e vivenciar a felicidade no espaço público,
na cidade. Enquanto isso, costuramos uma delicada trama que nos sustenta em
rede para dar conta das constantes violações que sofremos. Como homem gay,
um pouco antes de começar as orientações para a elaboração da pesquisa de
Marco, eu havia sofrido diferentes ataques homofóbicos, um deles no ambiente
universitário. Este trabalho veio como um processo de elaboração de algo não
só individual, mas também coletivo. Sentimos este tipo de situação cotidiana-
mente e, como sugere Paul Preciado (2014), precisamos construir uma multidão
queer para produzir força suficientemente capaz de romper com as lógicas da
desigualdade sem que nos machuquemos no caminho.
Marco consegue apresentar em uma escrita de guerrilha um texto potente,
oriundo de uma pesquisa feita com o corpo. Seguimos uma proposta de “psi-
cologia suja”, como propõe Sofia Favero. Não espere encontrar neste capí-
tulo, leitora, uma pesquisa fechada com respostas objetivas. Prepare-se para
reflexões dentro das condições de possibilidade apresentadas no contexto da
pesquisa. A fim de publicar esta pesquisa em outros meios de divulgação,
optamos por fazer um recorte, apresentaremos especificamente uma das três
categorias de análise. Com a palavra, Marco:

1. Introdução
Ocupação. Em muitos momentos essa palavra nos assusta, já que nos
ensinaram que ela é agressiva na maioria das vezes, porém, já diz a ciência
220

da física há séculos: os corpos e corpas ocupam espaços e não tem como um/
uma ocupar o lugar do/a outra/o ao mesmo tempo, surgindo a individualidade,
retratada ainda apenas na materialidade. A partir dessa individualização, cons-
truímos cidades, locais de lazer, lugares específicos para diversas atividades,
dividimos em gostos, estéticas, preferências, vocações, dinheiro, etnia, gênero.
Tudo passou - muito por conta de preconceitos - a ser separado, portanto nós
ocupamos os espaços que nos sentimos confortáveis, que nos identificamos,
criando, inclusive, uma certa territorialidade, que é entendida por uma demar-
cação geográfica e política, mergulhando mais nas individualidades em uma
perspectiva para além do palpável, já que o social e o subjetivo fazem parte
do território (Fernandes, 2006).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Conforme esses espaços tornam-se territoriais, a necessidade de iden-
tificação caminha juntamente com o famoso acolhimento, que perpassa os
sentidos de receber, atingindo o significado de dar espaço seguro para que a
pessoa acolhida. O acolhimento chega a ser uma atitude um tanto desafiadora
e rebelde para com as instituições colonizadoras, visto que, principalmente a
minoria, parece não dever ou merecer sentir-se bem em espaços, quiçá viver.
Inclusive esses mesmos espaços são pensados para que lhe seja dificultado
o acesso, o desfrute e a recepção. Nesta perspectiva, o acolhimento é uma
forma de humanizar pessoas (Brasil, 2013). Acolhimento é praticamente a
experiência de dar um abraço no qual você sente como se estivesse sendo
protegido para sempre.
Nós, pessoas trans, fazemos parte da dissidência humana, tendo em vista
os preconceitos diversos impostos às nossas vivências apenas por sermos quem
somos. Apesar da extrema marginalização de nós pessoas trans/travestis, ainda
temos esperança de viver. A humanidade também nos atravessa e queremos/
precisamos ser ouvidas/os, a vida está passando e nós temos pressa, por isso
a busca incessante por espaços nos quais nós sejamos acolhidos e nos sinta-
mos seguros. Mesmo estes sendo poucos, eles existem e nós, sendo pessoas,
nos fortalecemos nessas relações sociais e de território para pertencermos
(Zanella, 2004).
Itajaí é uma cidade brasileira do litoral norte do estado de Santa Cata-
rina, possui, de acordo como o último censo em 2010, 183.373 habitantes,
mas estima-se que hoje há cerca de 226.617 habitantes. Também de acordo
com o último censo, 88,6% dos domicílios possuem esgotamento sanitário
adequado, 33,2% dos espaços urbanos possuem arborização e 79,6% com
urbanização adequada, que é entendida como a presença de bueiros, calçadas,
pavimentação e meio-fio (Itajaí, 2022). Algo bastante interessante e incômodo
é pensarmos se com toda essa estrutura, até rumo ao que dizem ser o ideal, a
cidade possibilita acesso para todos de maneira igualitária?
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 221

Voltando um pouco na história, para podermos entender sua raiz, o nome


da cidade significa “rios das pedras” em tupi-guaraní, uma das etnias dos
indígenas que viviam nas terras. A invasão europeia teve início em 1494 com
o Tratado de Tordesillas. As invasões coloniais se consolidaram e seguiram
um caminho comum, este conhecido por estupros, violações de direitos, roubo
de terras, identidade, cultura, linguagem, fé, subjetividade. A tal ponto que,
como explica Mbembe (2016), seus corpos, existências e tudo o que era
importante ganhou a sentença de não possuir valor. Com o passar dos anos
as configurações da dominação foram reestruturadas e o matrimônio; entre a
biopolítica e a necropolítica; dos corpos dominantes para os dominados foi
efetivado, possibilitando que ambas se fortaleçam nesta simbiose de poder,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

assim cravando a biopolítica como trono e território para que a necropolítica


reinasse e possuísse passabilidade.
Essa estrutura colonizador/colonizado ganhou vigor o suficiente com
o capitalismo, enlaçado nessas relações de poder, para avançar os séculos e
se perpetuar hoje (Kilomba, 2019, p. 158). E o poder está em quem investe,
logo o investimento traz a posse de tudo (Dunlap apud Bauman, 1999), neste
caso fala-se de vidas. O capitalismo também sustenta o privilégio que algu-
mas classes possuem, como um controle social. Carvalho (2019) discorre
acerca do privilégio que pessoas que são homens cis, héteros, ricos e brancos
estarem na supremacia do privilégio. Itajaí é uma cidade do sul do Brasil, na
qual mais de 80% da população é branca e católica (IBGE, 2019), patriarcal,
como grande parte do Sul do país (Gaige; Maia, 2019), mantendo padrões
de privilégio e exercendo seus preconceitos com maior naturalidade. Nesse
sentido, eu retorno ao questionamento sobre se realmente a cidade é acessível
para todos de maneira igualitária.
Enquanto uma pessoa trans, aqui me coloco em primeira pessoa, pois
este tema atravessa a minha vivência e assim necessito me apoderar desse
construto científico, além de criar uma relação mais próxima com quem lê
(Almeida; Miranda, 2009). E eu, enquanto um ser vivente trans, não me
encontro representado em espaços, muito menos em pesquisas, e quando
estas me contemplam são sempre referentes à violência, normalmente escritas
por pessoas cisgênero, e na vida fora da ciência esse cenário apenas piora.
Minha vivência cansada, com raiva e com sede de “quero mais”, me propor-
cionou unir meu eu pessoal com o acadêmico para construir essa pesquisa,
que falará muito sobre as diversas vivências da população LGBTQIAPN+,
focando na trangeneridade e travestilidade. Porém, houve muito de mim e
da minha gana por trazer os meus para os espaços de escuta, de ciência, de
acolhimento/abraço. Pesquisar esse tema, deve possibilitar que as pessoas
compreendam nossos corpos dissidentes como humanos, detentores de vida,
dores, prazeres e respeito.
222

2. Transgeneridade e subjetividade

Gênero é algo social que se refere a como a pessoa se identifica e se posi-


ciona no mundo. Na nossa cultura controladora, patriarcal e cis/heteronorma-
tiva este gênero se dá a partir do sexo biológico da pessoa e nós ainda somos
apresentados ao mundo através de uma determinada socialização que dita o
que cada gênero pode ou não, bem como o que deve realizar ou não (Jesus,
2014). Nós, pessoas trans, somos aquelas que percorrem o além desta regra.
As autoras trans Araruna (2018) e Jesus (2014) discorrem de maneira
similar em relação às violências que nós pessoas trans sofremos, realizando
uma análise frente ao motivo de violências e assassinatos, os quais são movi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dos pelo ódio para com nossas vidas e diferenças com aquilo que o homem cis/
hétero/branco/rico/magro/sem deficiência dita como aceitável e normal. Elas
ainda falam acerca da dicotomia entre o Brasil ser o país que mais consome
pornografia trans/travesti e estar ocupando, ano após ano, o primeiro lugar
como país que mais mata pessoas trans e travesti. Vale lembrar que esses dados
têm como base as notícias e projetos sociais que se dispõem a realizar esse
levantamento de dados, pois nenhum país no mundo possui de fato um senso
federal para. Araruna (2018) realiza a conversa entre a repulsa e o fetiche,
explicando que a sociedade nos vê como algo muito diferente, ao nível do
bizarro, despertando o desejo velado. Porém, há violência logo em seguida,
pois somos “corpos que enganam”, que são “nojentos” e o tradicional deve
imperar. Assim, tentei explicar um pouco do que é a transfobia que, resumindo,
é o ato de ódio e violência contra pessoas trans/travestis (Jesus, 2014).
Ninguém está preparado para sofrer violência. Nós não nascemos espe-
rando isso ou somos ensinados. Contudo, a vida, a nossa socialização enquanto
pessoas trans é intrínseca ao estar pronto para o violento, assim se torna normal
nos moldarmos a partir daquilo que rasga, fere e mata. A sociedade não está
preparada para nos acolher, o que torna essa uma viagem mais solitária do que
já é. A não ser pessoas que são como nós, ninguém se importa com pessoas
trans/travestis, ninguém te ajuda, ninguém faz questão de estar ao seu lado e
lutar junto, inclusive quando nós nos forçamos a esconder nossas identidades
para evitar transfobia, pois a violência de nos escondermos também é nociva,
também mata (Araruna, 2018). Nossas alegrias e dores são eternizadas no
vácuo, no precipício do vazio.
Desse cansaço e ódio que nos “presenteiam”, nasce o empoderamento
de um corpo e uma existência que são políticos, pois o fato de uma pessoa
trans/travesti ocupar lugares que são negados à elas, bem como transitar livre-
mente, sorrir, amar, chorar e até respirar, é político (Jesus, 2014). É o ato de
resistência que batalhamos diariamente para nunca mais sermos calados e,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 223

talvez um dia, sermos vistos como seres humanos de direitos, porém sei que
estamos na luta, primeiramente, para conquistarmos a posição de ter uma
existência legitimada.
As palavras, que foram escritas/costuradas em retalhos e foram lidas por
você, certamente me geraram reflexões, incômodos, aflições, felicidades e uma
série de encontros e desencontros com o eu que permeia a vivência trans, que
significa, consoante a etimologia do prefixo, “através, além de”. Portanto, as
nossas existências percorrem espaços que vão contra aquilo que nos limita,
nos dizem que somos anormais, que nos violentam, que nos matam, justa-
mente por isso usei o termo “retalhos”, pois não me possibilitam o desfrute
por inteiro, sempre vejo a mim e aos meus/minhas semelhantes se rasgando
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e se remendando.

3. Espaço e direito à cidade: corpos e corpas dissidentes

Espaço configura-se em uma extensão limitada, segundo o dicionário


DICIO (2022), assim, demarcando estar intrínseco em seu próprio significado,
habitual, as barreiras existentes em viver, ocupar e ser nos diversos espaços.
Portanto, quando fala-se de território é automática a ligação com suas atribui-
ções de acesso e significações, tendo em vista que aqui retrata-se o território
como algo para além do concreto (Fernandes, 2006), sendo também uma
conjuntura de relações, permeadas pelo outro através das fronteiras advindas
da alteridade (Silva, 2011 apud Lopes; Silva, 2020).
Essas experimentações são permeadas pela manipulação que advêm de
um arranjo capitalista, político e cultural, determinando quem pode ou não
usufruir dos ambientes de maneira genuína e livre, passando a ser um privi-
légio a ocupação do território. A respeito deste privilégio, Haesbaert (2005)
fala com relação à similaridade etimológica, material e simbólica, das pala-
vras terra-territorium, espaço ocupado, com terreo-territor, terror/aterrorizar,
partindo de uma analogia de que quem domina de maneira política/cultural/
jurídica/social o território, o faz a partir da imposição e massificação de medo,
além da tentativa de unificar o território, facilitando o poder sob os outros e
também apoiando-se em discriminação para efetivar uma higienização dele
(Almeida, 2019).
A partir, também, desse domínio, surgem as cidades. Estas se constituem
em espaços delimitados geograficamente, se pensarmos de maneira sucinta e
rasa, porém, a partir do momento que o ser humano é movimento, se relaciona
e faz história, esta cidade torna-se viva, pois nós a construímos. Essa interação
do fluxo de ser e estar da cidade e das/os sujeitas/os faz nascer a cidade-corpo,
possibilitando que esta cidade viva, não por si mesma, mas juntamente com as
224

relações das alteridades ali presentes, das vidas, histórias, memórias e aden-
trando na imensidão da fronteira com o outro, que não é o limite, todavia é o
espaço entre dois, no qual existe o vínculo (Hissa; Nogueira, 2013).
E estas cidades-corpos nos fazem promessas, tais como o direito a habi-
tá-las, seja de maneira permanente ou transitória. A Carta Mundial do Direito
à Cidade (2005) afirma que todas as cidades possuem o dever e a responsa-
bilidade de assegurar os direitos de todas as pessoas que estão na cidade.
Ainda segundo a carta, essas garantias permeiam os direitos básicos para
todas as pessoas.
Para Slomski (2021) a heteronormatividade e a cisgeneridade estão
impostas de maneira tão intrínseca na nossa sociedade que tudo o que foge

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


disso é considerado dissidente. Portanto, a dissidência perpassa o não nor-
mal, o julgável e o condenável simplesmente por ir contra a regra ditada.
Por conseguinte, Carvalho e Júnior (2017) dissertam acerca de as pessoas
LGBTQIAP+ tornarem-se invisibilizadas no contexto cidade, pois mesmo
que continuem em destaque quando trata-se de violências ou que existam
paradas do Orgulho LGBTQIAPN+ e alguns espaços privados em que essas
pessoas são “bem-vindas”, ainda há a escassez de políticas públicas, segu-
rança, acolhimento e livre acesso sem medos diversos.
Os autores ainda complementam dando uma nova nomenclatura para as
cidades, chamando-as de “cidades-armário”, assim classificando a cidade-
-corpo como um local em que pessoas LGBTQIAPN+ não possuem a liber-
dade de “sair do armário”, pois não há a possibilidade e garantia de direitos
para nós dissidentes ao ocuparmos os espaços sacros e héterocisnormativos.
Carvalho e Júnior (2017) ainda explicam que a utilização da palavra “armário”
se dá de maneira proposital, tendo como objetivo a simbologia de que a partir
do momento que a cidade é também armário, esta é local/fonte de violência e
ainda sendo uma cidade-corpo (Hissa; Nogueira, 2013), às pessoas, que fazem
da cidade um espaço vivo, também propagam e mantém o alicerce de vida da
tirania contra os corpos que, para a classe dominante (Butler, 2018), ali não
pertencem. Nessa perspectiva, Sedgwick (2007) fala sobre a “epistemologia
do armário” sendo um processo público e privado. Privado, pois diz respeito
às subjetividades e público, pois a partir do momento que você sai do armário
existe uma coletividade para receber isso, além de que gerará um impacto
(bom e/ou ruim). Além de abranger a saída eterna do armário para pessoas
LGBTQIAP+, pois a sociedade sempre presumirá que somos héteros e cis,
pois esses são os corpos esperados e desejados (Butler, 2018). Esta saída é,
por muitas vezes, cautelosa, já que não serão em todos os espaços que as
pessoas julgam serem seguros para abrir as portas desses armários, além de
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 225

que a saída gera, como já citado, exposição, sendo incontrolável a resposta


perante ao que se tornou público (Sedgwick, 2007).
O “sair do armário” é um movimento em que a chave é girada de dentro
para fora, é único, atemporal e extremamente íntimo. A clausura só é inter-
rompida quando a transformação é interna, como uma borboleta saindo do
casulo, ela precisa sair sozinha, pois se receber ajuda morre. Portanto nesta
pesquisa me coloco como borboleta, que enfrentou a dor de sair do casulo/
armário e hoje voa com tantas outras borboletas que auxiliarão na costura de
novos sentidos para o espaço que hoje habitamos.

4. Metodologia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A pesquisa em questão é qualitativa e descritiva, tendo em vista que esta


forma de fazer ciência possibilita uma ampla ação, no sentido de o pesquisador
participar ativamente, além de não existir numeração, no sentido de quantificar
pessoas e existências, ou determinar o que é relevante ou não, pois estamos
lidando com vidas e histórias únicas. Portanto, é fundamental que o caráter
descritivo se torne realidade, assim, o todo é observado e analisado com grande
importância, pois tudo é essencial (Godoy, 1995). Além de quê, essa sendo a
natureza da pesquisa, eu, pesquisador trans, tive a possibilidade de entrar nas
vivências e nos escritos com minha bagagem, atravessamentos, viabilizando
meu trabalho como cartógrafo, me fazendo presente integralmente (Rolnik,
2011) juntamente com as pessoas trans/travestis entrevistadas, elas sendo
co-pesquisadoras desta pesquisa, tornando nossos corpos territórios vivos,
amplos, através das interseccionalidades e possibilitando que eles ecoem
(Nascimento, 2020).
Cinco pessoas participaram da pesquisa, pessoas trans/travestis que resi-
dem em Itajaí e nas proximidades e têm contato com a cidade. Essas pessoas
foram contatadas através do meu ciclo social. Devido ao fato de a pesquisa
ter caráter qualitativo, não estabeleci um número mínimo de participantes,
o que permitiu que esse aspecto fosse fluido e que participasse da pesquisa
quem quisesse e aceitasse, e além disso, a amostra não foi probabilística.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista semi-es-
truturada, porém, para a cartografia (Tedesco; Sade; Caliman, 2013) não se
tratou apenas de um simples questionário em que o pesquisador faz perguntas,
o participante responde e se chega ao final. A pesquisa cartográfica dá espaço
para uma entrevista de profundidade acontecer que, em primeira instância,
não existe começo e fim delimitados.
O convite de participação se deu por meio de plataformas digitais (What-
sApp e Instagram), e as entrevistas ocorreram de maneira presencial, sem um
226

prazo de tempo mínimo estabelecido, a única exigência prévia para a realiza-


ção das entrevistas foi a assinatura do TCLE. A ideia da coleta de dados foi
possibilitar a mediação da cidade para com a construção das entrevistas, bem
como entrar em contato com sua interferência nas vivências subjetivas dos
entrevistados. A partir dos princípios cartográficos, as pessoas entrevistadas
foram convidadas a ir até um local no qual se sentiam seguras e acolhidas
para compartilhar suas experiências sobre aquele e outros diversos locais
que elas frequentam na cidade, permitindo que a cartografia se construísse
de maneira genuína e integral.
Para a realização da análise de dados, a cartografia, segundo Rolnik
(2011), me possibilitou enquanto pesquisador-cartógrafo ouvir para além das

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


palavras e ruídos, ver para além das configurações da cidade concreta e das
formas das pessoas. Sendo assim, meu papel foi de ouvir e contar histórias,
considerando que estas possuem um cenário, nada estático, pois para a car-
tografia a cidade é psicossocial e mutável.
Também, uma vez que se busca evidenciar o espaço dos corpos e corpas
dissidentes, entendo que esta escolha metodológica é capaz de sobrepujar,
no campo científico, as linhas de força que sustentam a exclusão e a inclusão
perversa (Sawaia, 2005). Ou seja, evidencia-se o discurso subalterno que é
constantemente fadado ao silêncio (Spivak, 2014). Desta forma, a análise das
conversas se deu a partir da leitura sistemática dos registros transcritos, do
diário de campo e da observação, nos mapas, dos trajetos produzidos durante
os entrelaços. O produto desta interação foi a construção de categorias ana-
líticas coerentes com o enquadre epistemológico, desenhando linhas de fuga
(Rolnik, 2011) capazes de produzir respostas para além das cristalizações
ofertadas pelas relações de poder que engendram as relações sociais.

Discussão

As entrevistas foram realizadas nas cidades de Itajaí e Balneário Cam-


boriú, que são cidades vizinhas e conectadas. As pessoas circulam entre essas
cidades com muita frequência, entre trabalho e moradia, escola, universidade,
entretenimento e outros. O acesso entre elas pode ser feito pela BR -101 ou
pelo acesso interno entre as cidades. Nesse segundo acesso a divisão entre
as cidades só é percebida a partir de um portal. Durante as entrevistas, Bal-
neário Camboriú apareceu como um local de referência para as vivências de
acolhimento e segurança para as pessoas, por isso foi necessário incluir a
cidade na pesquisa.
Na tabela a seguir eu apresento, de maneira básica, as pessoas entrevista-
das, sendo que os nomes fictícios escolhidos foram de pessoas trans/travestis
de influência histórica, literária, política e midiática.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 227

Nome Idade Onde mora Como se identifica Recorte étnico/racial


Paul Preciado 26 anos Itajaí homem trans branco
Xica Manicongo 24 anos Balneário Camboriú mulher trans/travesti não branca
Kamrah 22 anos Itajaí bicha trans não binárie não branque
Erika Hilton 24 anos Balneário Camboriú mulher trans branca
Stefan Costa 19 anos Itajaí homem trans branco

A entrevista com Erika foi realizada em um café próximo ao Shopping


de Itajaí. O local foi escolhido por ela e teve como princípio ser um local
acolhedor e seguro para ela. Com Kamrah, a entrevista foi feita em um res-
taurante vegetariano/vegano na cidade de Itajaí, durante um almoço, busquei
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

elu em sua casa e fomos para o local, sendo este um lugar acolhedor para
Kamrah. Xica foi entrevistada em um café em Balneário Camboriú, perto
de onde ela trabalha. A entrevista foi realizada à noite depois do seu horário
laboral. Já com Paul e Stefan, a entrevista foi realizada no mesmo lugar, em
momentos diferentes, e escolhidas de maneira fluida, no mesmo banco público
da beira-rio (uma parte da cidade de Itajaí é beirada pelo rio Itajaí-Açú). Na
entrevista com Paul, eu quem escolhi o banco, já na entrevista com Stefan
ele quem escolheu o local.

5. Vocês querem nos receber com tortura, mas a cidade nos


recebeu com flores: “Pra não dizer que não falei das flores”

Como a cartografia se constrói a partir da palavra, da vivência, experi-


mentação e da escrita da alma, do coração que pulsa quase saindo pela boca;
começarei essa categoria contando uma cena que vivi com Stefan durante a
entrevista que fiz com ele. Era uma manhã ensolarada, num sábado, as pessoas
indo e vindo (na beira-rio tem um bom espaço para caminhadas, tem ciclovia,
além de ser uma via gastronômica bastante prestigiada), aquele sol gostoso
aquecendo a pele, as expectativas a mil, pois cada entrevista é única e os
aprendizados são inimagináveis. Primeiro vimos uma amiga em comum, que
é travesti, caminhando com a mãe, então a entrevista teve uma pausa surpresa
maravilhosa para que três corpos trans estivessem ali, naquele dia iluminado,
todos nos vendo viver. Depois de nos despedirmos, sentamos no banco e vol-
tamos a conversar sobre a temática da pesquisa. Eu não sei se você já esteve
em Itajaí, mas atrás do banco tem uma árvore belíssima (dá uma olhada nela
de novo) que estava florida no dia da entrevista. Conforme íamos conversando
várias e várias flores caíam em cima de nós dois, demos risada, entramos
em assuntos bons, e naqueles que não eram agradáveis parecia que a árvore
dizia: “Eu quero receber vocês bem! Eu me importo. Fiquem e vivam! Vocês
têm flores nas mãos e não sangue, como a ditadura do terror transfóbico!”.
228

Experiência simbólica e potente contada, agora quero dizer sobre a cate-


goria. Ela vai passear por espaços, literalmente, pois aqui eu contarei sobre
os espaços que proporcionam e não proporcionam segurança e acolhimento
para os entrevistados. Mais a frente debaterei sobre o que falta nos lugares
para que sejam acolhedores e seguros. Para termos um fluxo tranquilo na
escrita/leitura, farei em movimento de cone as (quase) denúncias dos lugares.
Começarei pelos locais que foram mais soltos e singulares, depois parto para
aqueles que apareceram na maioria das entrevistas. Para aqueles lugares que
não aparecerem na escrita, colocarei no mapa, sem dúvidas.
Paul me contou que teve uma experiência muito boa na academia que
frequenta em Itajaí, a “Um Poder”, pois nunca sofreu transfobia naquele

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ambiente. Ele relatou que frequentava a academia antes de fazer a cirurgia de
mastectomia masculinizadora (retirada dos seios), quando voltou contou para
o personal/proprietário sobre algumas limitações de movimento por conta da
cirurgia e ele tratou a questão de maneira comum, o que Paul aponta sendo
algo bom para ele “[...] se você falar que é trans, por exemplo, que a pessoa
trate como algo comum [...]”. Também citou a farmácia “Patel” sendo um
local que sente-se bem, justamente por tratarem ele como alguém comum, o
que é importante relacionar com Butler (2018) no objetivo de perceber que o
tratamento para com o outro pautado em estranheza, diminuição e preconceito
por não estar na norma, gera consequências ruins para nós, pois indica que
não fazemos parte do “normal”.
Além de sua psicóloga e sua endocrinologista possibilitarem espaços de
acolhimento e segurança, ele diz “Eu tive sorte!”, pois a área da saúde ainda
possui uma visão extremamente patologizante das transgeneridades, com
isso os preconceitos se intensificam e são responsáveis pela busca tardia de
atendimentos e cuidados em saúde (Ramos et. al., 2021). Paul ainda citou a
sistema judiciário de Itajaí sendo um local de preconceito, além dos cartórios,
me contou sobre ter sido muito difícil realizar a retificação de nome e gênero,
motivo: preconceito escancarado das pessoas responsáveis pelo processo, o
que é muito comum (Cortês, 2018). Paul disse ter precisado mandar um e-mail
para o STF e para algumas pessoas com cargo político para que o cartório
(que ele foi registrado ao nascer, inclusive) fizesse a retificação, mesmo que
a lei de garantia para pessoas trans/travestis alterassem nome e gênero sem
a necessidade de uma decisão judicial (STF, 2021). Isso aconteceu em 2018,
ano que a lei entrou em vigor e o ano em que o futuro ex-presidente foi eleito
(Jair Messias Bolsonaro), o que gerou receio em Paul, além de muitas pessoas
trans/travestis por termos nossos direitos em risco (Brasil de Fato, 2020).

“Para mim, quando o Bolsonaro foi eleito a sociedade mostrou quem ela
é, pois tu elege um representante. Se tu acha que aquele cara te representa,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 229

cara, temos um problema. [...] Ah, falam ‘mito’, mas mito para quem? O
cara é um babaca, ele não tem respeito nenhum pela vida, nem na pande-
mia ele teve.” – Paul

Ele ainda fala sobre existirem pessoas que não te possibilitam crescer
ou estar em um bom cargo no ambiente de trabalho, somente por ser trans.
Xica relatou uma boa experiência de trabalho na “Donuts quero”, que fica
em Balneário Camboriú, relatando ter tido um bom contato com o dono e
ele não ser preconceituoso, o que a ajudou nos processos de crescimento de
carreira e afirmar o trabalho como rede de apoio, além de o lugar ter empre-
gado mais pessoas trans/travestis além dela. Ela me disse que depois de uma
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

experiência ruim no trabalho em relação às pessoas descobrirem que ela era


trans depois de contratada, a fez sempre contar essa vivência na primeira
entrevista de emprego, para que não passe nenhum tipo de constrangimento
futuro. Também contou sobre um episódio em que o dono do estabelecimento
gritou com ela, isso aconteceu no café do Mercado Tapira, na praia Brava.
Silva (2021) fala sobre o alto índice de transfobia no mercado de trabalho e
em como esses ambientes são desgastantes e agressivos com pessoas trans/
travestis, inclusive muitas pessoas trans (principalmente mulheres e travestis)
acabam indo para a prostituição como única fonte de renda possível. A autora
ainda fala que muitos contratantes gostam do currículo da pessoa, porém não
contratam ou contratam para uma vaga inferior somente pela pessoa ser trans,
além do que que muitas pessoas trans/travestis abandonam ou são expulsas
das escolas, tornando mais baixas as suas possibilidades de empregabilidade.
Xica complementa:

“Escola. É o lugar mais desconfortável para pessoas LGBT’s da vida, para


pessoas trans então. Não terminei o meu ensino médio justamente por
isso, porque eu tive professores extremamente transfóbicos. Que mesmo
todos os meus colegas me chamando pelo meu nome e muitos professo-
res também, alguns tentaram fazer um abaixo assinado para que eu não
tivesse esse direito, que legalmente eu tenho, pois qualquer pessoa trans
tem direito do nome social no currículo escolar se aprovado pelos pais
e minha mãe aprovava, mas mesmo assim a escola não queria deixar”

Ela fez uma colocação sobre grandes empresas quererem empregar pes-
soas trans, mas exigirem término do ensino médio, completou dizendo sobre a
importância de as pessoas pesquisarem e entenderem a pauta de verdade para
poderem ajudar e acabar com o preconceito laboral. Stefan trabalhou em uma
hamburgueria, a Burguer-X em Itajaí, porém não teve uma boa experiência no
local, ele não sofreu transfobia diretamente, mas sempre ouvia comentários
230

desconfortáveis sobre pessoas trans/travestis, o que também acontece no tra-


balho atual de Paul. Apesar dele se sentir seguro no trabalho, é incômodo ter
que lidar com piadas e preconceitos com terceiros, o que propicia um ambiente
desagradável (SILVA, 2021).
Stefan relatou que o primeiro lugar que se sentiu acolhido foi em uma
companhia de teatro em Itajaí, onde fez alguns cursos.

“Teve uma situação no CBT, nós recebíamos um certificado e eu precisei


colocar meu nome de registro, pois ainda não tinha retificado os docu-
mentos, então colocaram meu nome de registro e o diretor não sabia que
era eu pelo nome que estava lá. Ele me chamou pelo nome de registro,
eu fiquei mal e me levantei, pois eu queria o certificado. Quando eu me

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


levantei todos aplaudiram e falaram ‘Stefi!Stefi!Stefi!’, pois era como
um ritual, o diretor chamava a pessoa, as pessoas aplaudiam e falavam
alguma brincadeira/besteira. E quando eu levantei falaram meu nome,
quem eu realmente sou, acima do nome de registro. Eu me emocionei
naquele dia, porque foi muito forte para mim ter esse apoio que eu nunca
tive em nenhum outro lugar.”

Também disse se sentir acolhido e seguro em sua própria casa, pois mora
sozinho. Essa solidão acompanha as pessoas trans/travestis quase que como
uma assombração. Sofremos tantas violências e estamos tanto à mercê daquele
outro correto (Butler, 2018), que o que nos resta muitas vezes é a solidão o
tempo inteiro (Conserva; Rabêlo, 2020) quase que como um ímpeto de fuga
do açoite. Ele também contou sobre adorar estar na praia quando está vazia:

“A praia, estranhamente. Na praia vazia. Agora não estamos falando de


pessoas, estamos falando do mundo, da natureza, de como as coisas são
além das pessoas, às vezes a gente esquece que existe um mundo sem as
pessoas. Quando eu estou na praia eu só sinto a energia, olho o céu e o
mar, sentir a areia, ver o movimento das ondas, as pessoas, pois, mesmo
vazia, ainda tem algumas pessoas vivendo a vida ali na praia, mas você
tem um momento de sou algo, sou existência além de ser um indivíduo
em uma sociedade, também sou um ser vivo, apenas.”

Kamrah trouxe a praia como um espaço de segurança, pois considera


ser um local de afronta já que estamos vulneráveis com nossos corpos nus
e expostos, então aquela brincadeira de gênero misturada com sexualidade
aflorada acontece de uma maneira vulcânica:

“Praias, eu gosto muito de praia, pois é um ambiente de lazer, público e


quase que incontrolável. Divertida, pois sempre tem várias leituras sobre
os corpos com uma tensão sexual.”
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 231

Em contrapartida, Erika não se sente bem em praias, pois acredita que


seu corpo “ainda não é do jeito que eu queria e a praia você deixa o seu corpo
mais exposto”. Aqui a questão da materialidade trazida por Butler bate na
porta para nos relembrar que nossos corpos não são padrões, então prova-
velmente serão apontados com desprezo e esquisitice. Erika se sente segura
no shopping de Itajaí, pois considera ser um lugar claro e movimentado, o
que para ela é bom, inclusive foi a primeira sugestão de local que ela deu
para a entrevista ser feita, mas foi desconsiderada, pois ficou com medo das
pessoas ouvirem, entenderem o assunto que falamos e julgarem. Portanto
fomos em um café há 200 metros do shopping, o Café Sol, e ela explicou que
sente-se segura e acolhida nesse espaço, pois dois amigos trabalham naquele
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ambiente, resgatando o que Matumoto et al. (2002) fala sobre rede de apoio
para a possibilidade de construção de bem-estar.
Resgatando a rede de apoio e famílias, Kamrah comentou sobre a casa
de seus pais e de suas amigas terem sido lugares de acolhimento e segurança
na adolescência (a casa de seus pais ainda hoje), possibilitando que elu se
experimentasse e fosse identificando quem era e como era. Paul, Xica e Erika
também têm o apoio da família do pequeno núcleo e relatam que isso é extre-
mamente importante, tendo em vista que é uma boa rede de apoio que auxilia
o ser humano a enfrentar questões da vida (Matumoto et al., 2002) ainda
mais em relação à identidade própria. Porém, os quatro relatam ter sofrido
transfobia na família em um contexto de grande núcleo, mas que com o tempo
isso foi cessando justamente pelo pequeno núcleo fornecer apoio e auxiliar
no enfrentamento das violências.

“Eu vivi a adolescência na casa das minhas amigas e na minha casa tam-
bém, minhas amigas iam muito na minha casa. Na época eu não me enten-
dia enquanto uma pessoa trans, eu me entendi na pandemia que é quando
eu estive dentro de casa [...] O primeiro lugar que me vem quando eu penso
em espaços seguros e acolhedores, por mais que isso não esteja presente
para a maioria das pessoas LGBT’s, é a minha casa e a casa das minhas
amigas, que são os lugares que eu comecei a experimentar.” – Kamrah

Como Kamrah disse, a maioria das pessoas LGBT’s não são aceitas em
suas próprias casas, sofrem violências e até são expulsas de casa (Benevides;
Nogueira, 2020), como acontece com Stefan que não tem o apoio de sua
família, que até hoje não aceita e respeita o fato dele ser trans, por isso ele
saiu da casa dos pais para morar sozinho. Contudo, encontrou acolhimento
na família de sua namorada e considera essas pessoas como família, mesmo
elas ainda não sabendo que ele é trans:
232

“A família da minha namorada. Eles não sabem que eu sou um homem


trans. Me acolheram como pessoa, mesmo que não saibam, ainda assim eu
ainda me senti pertencente nesse lance de família. E esse lance de família
sempre pecou para mim.”

É essencial eu comentar que a religião dos 5 entrevistades foi um empe-


cilho para a aceitação deles enquanto pessoas trans/travestis, isso acontece
com frequência, pois a religião (principalmente de matriz cristã) faz parte dos
ditadores das normas sociais, consequentemente de gênero (Silva et al., 2021).
Essa desumanidade que pessoas trans/travestis sofrem em casa gera até
um certo movimento de êxodo, em que pessoas saem de suas casas, mesmo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sem serem expulsas, e vão para outras (Benevides; Nogueira, 2020). Inclu-
sive Erika aponta que não se sente segura em cidades pequenas e do interior,
justamente pelas questões de passabilidade, já que seu corpo percorre lugares
que atraem mais olhares, assim colocando sua dissidência em latência (Butler,
2018). Erika e Kamrah disseram que sair de Itajaí e Balneário Camboriú é
sempre bom, pois você fica como anônimo nas cidades, já que ninguém te
conhece, logo não saberão da sua transgeneridade, principalmente em cidades
grandes, o que tornam esses espaços acolhedores e seguros para ela e elu,
voltando novamente para a traiçoeira passabilidade de transitar como um
corpo normal (Pontes; Silva, 2017).

“Um lugar que as pessoas não saibam que você é trans, que as pessoas não
te conhecem, que seja indiferente você ser trans ou não. Tipo, eu já viajei
para cidades grandes como Porto Alegre, São Paulo e Maringá. Lá, como
as pessoas não te conhecem, é indiferente em relação a transexualidade.
Lá você corre outros perigos como assalto, mas no geral é onde as pessoas
não me notam.” – Erika

Esse “não notar” me dói, pois precisamos nos esconder e nos colocar
na solidão para não sermos violentados. Os locais públicos foram trazidos
como não acolhedores e seguros. Hoje, por conta novamente da passabilidade,
Stefan e Xica não sentem medo de andar nas ruas, mas já sentiram. Xica sente
desconforto em andar nas ruas de Camboriú (cidade ao lado de Balneário Cam-
boriú), pois é menor e pelo fato das pessoas a conheceram antes da transição.
Já Kamrah, Erika e Paul não consideram os locais públicos seguros e acolhe-
dores, justamente por nossos corpos estarem visíveis e a qualquer momento
nosso “erro” pode ser descoberto e gerar alguma agressão (BUTLER, 2018).
No início da entrevista com Paul eu o percebi muito inquieto e olhando o
tempo todo para os lados, principalmente quando alguém passava mais perto
de nós, então, mais para o final da entrevista tomei a liberdade de perguntar
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 233

se aquele movimento de inquietude era por não se sentir bem em espaços


públicos e ele confirmou.
Para entretenimento e lazer, o bar PIT, em Balneário Camboriú, foi men-
cionado três vezes como um lugar de acolhimento e segurança por ser um
espaço que mais pessoas LGBT’s frequentam, o que gera sensação de identi-
ficação e, consequentemente, acolhimento (Bonoto, 2021). Já nos bares uni-
versitários isso não é uma realidade justamente pelo fato de não saber até que
ponto conseguiríamos contar com o local e as pessoas presentes (resgatando
o “contar com o espaço e as pessoas dali” como um ponto importante para o
sentimento de acolhimento e segurança). Falando de ambiente universitário,
Kamrah mencionou a Ilavinu, uma universidade de Itajaí, sendo um local
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que proporciona segurança em termos de poder se colocar, porém não é um


espaço acolhedor, tendo em vista alguns episódios de transfobia que já sofreu:

“Tem casos de dividirem a sala entre meninos e meninas e de assimilarem


aos homens, mas teve uma cena de uma pessoa trans me chamar pelo
nome de registro na sala propositalmente, complexidades da comunidade
que eu acho importante serem pautadas também, acho isso vem muito da
experiência da não binaridade, no sentido de algumas experiências trans
são mais válidas que outras. Por exemplo, essa pessoa se coloca como
uma mulher trans e nega a travestilidade [...] Aconteceu também de eu
estar em um grupo de trabalho com dois meninos e deles se referirem ao
grupo como se fosse três homens, isso em um tom de brincadeira que foi
extremamente desnecessário [...] Ah, isso me incomoda sempre, muitas
vezes as pessoas me perguntarem sobre meu nome de registro, pois uma
coisa é eu querer falar e outra é as pessoas perguntarem, sempre que me
perguntam eu me sinto muito incomodada. Também as pessoas que tiveram
contato comigo antes de eu retificar o nome, então se referem ao passado
por esse nome, pois eu entrei na universidade antes de retificar, e eu não sei
o motivo de elas se apegar tanto ao nome, como uma curiosidade maldosa
das pessoas quererem te lembrar que você já foi outra coisa, como se te
invalidasse e te colocassem como se a sua experiência agora não é tão ver-
dadeira, pois você já foi uma outra coisa, como se fossemos mentirosos.”

Não consegui diminuir muito a fala anterior, pois acho importante as


pessoas lerem e saberem o quão desgastante é ter que lidar com isso, por mais
que achem que foi pequeno, certamente não é. Eu já sofri transfobia algumas
vezes nesse local e certamente ficaram cicatrizes. Viana et. al. (2022) dialogam
com relação às universidades estarem engessadas nos padrões de imposição,
logo as afirmações do que está errado e a execução de violências vem junto,
como um presente de grego.
234

Agora voltando para o lazer, ou melhor, o não lazer, uma balada em


Balneário Camboriú foi mencionada como não acolhedora e não segura, a
17. O mais irônico e desesperador, no meu ponto de vista, é que essa balada
se diz voltada para o público LGBTQIAP+. Sim, eu também não entendo.
Eu sofri transfobia lá, na fila para ser revistado pelo segurança, ele não queria
me revistar e falou que “eu estava na fila errada”, assim como fez com Paul,
Xica e Stefan, então mais uma vez aquele outro nos aponta as subversões e
defeitos (Butler, 2018). Paul fez uma reclamação depois, porém a empresa
alegou que os seguranças eram terceirizados e nada poderia ser feito.
Outros locais apontados como não seguros e não acolhedores foram bares
e baladas sertanejos e locais voltados para o público cis heteronormativo, pois

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nesses locais as probabilidades de sofrer violência são gigantescas, tendo em
vista que a partir do momento que você está longe da sua aliança e está dentro
do grupo que dita as normas sociais que te limitam e matam (Butler, 2018),
não tem como se sentir relaxado, pois a sua vida está em risco.

“Locais abertamente hétero normativos. Por exemplo, eu não vou na


“Desh’, porque eu não gosto da galera que frequenta o local, que é cis
hétero normativo, e eu me sinto insegura em relação ao que poderia acon-
tecer comigo ali dentro. Então tipo, se um segurança olha para mim, isso
já aconteceu em balada LGBT (a “17”) antes da retificação de nome e
gênero no documento, e identifica algumas característica que faça ele me
identificar com o gênero masculino eu conseguiria não ser revistada por
um cara? ” – Xica

Por último, mas não menos importante, na realidade é o mais importante


na escala do terror para pessoas trans/travestis: os malditos banheiros. Todes
disseram que não se sentem segures ou acolhides nos banheiros, “banheiros
ainda me dão gatilho”, disse Xica explicando que os banheiros ainda são uma
barreira nas experiências. Houve uma situação que ela passou na qual uma
menina abriu a porta da cabine em que ela estava, mesmo ela urinando sentada
gerou nervosismo por pensar que aquela moça falaria com os responsáveis do
bar e de alguma forma iriam barrá-la para usar o banheiro feminino. Kamrah
viveu uma situação em uma outra balada LGBTQIAP+ em Balneário Cam-
boriú, a “A Gigante”, em que foi proibide de utilizar o banheiro feminino,
pois foi lido como homem. Eu já tive que segurar a urina tantas vezes e por
períodos tão longos para evitar usar banheiros públicos que hoje em dia eu
tenho que me reforçar até em casa que eu preciso ir ao banheiro. Paul ficou
maravilhado com a experiência de ir em um restaurante que tinha absorvente
no banheiro masculino, pois “Não é sobre precisar ou não, (do absorvente),
você se sente acolhido”, afinal pensaram que existem homens com vulva.
Assim como o “Bar do Dinossauro” em Balneário Camboriú que tem apenas
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 235

um banheiro “é o banheiro de uma casa só” e isso traz conforto para Paul.
Já teve uma situação em um acampamento de escotismo, no qual ele foi um
dos líderes, que um outro líder/chefe chamou-o pelo pronome feminino e se
incomodou com o fato de ele usar o banheiro masculino. No final do acampa-
mento todos se reuniram para uma “finalização”, para se identificarem todos
tinham um crachá com seus nomes, então escreveram o nome de Paul atrás
dos seus próprios crachás e quando os responsáveis com cargos mais altos se
pronunciaram contra a situação, todos viraram os crachás para que o nome
real de Paul ficasse à vista.

“Banheiro é uma das maiores preocupações que eu tenho de ir em algum


lugar. É o único lugar que eu vou que eu tenho medo, que eu não me sinto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

seguro.” – Paul

Parece que estou rodando em círculos, mas, mais uma vez, Butler (2018)
aparece aqui em peso reafirmando o que a sociedade realiza com a dissidência
trans, pois como não somos verdadeiros, somos fora da norma, somos não
inteligíveis, então também não teremos direito ao básico (fisiológico). E claro,
eles vêm com a desculpa de que a nossa biologia é quem manda. Certa vez vi
um vídeo no qual um homem trans estava sendo entrevistado (não me recordo
seu nome e nem o nome do vídeo) e ele disse “o dia em que estiver escrito
‘banheiro para pessoas com vulva’ e ‘banheiro para pessoas com pênis’ eu
vou no banheiro que vocês tanto querem que eu use sem problemas, pois eu
tenho uma vulva.” Gera um certo nojo falar sobre esse ponto, porque estamos
falando de direitos humanos, de políticas públicas e de saúde pública, tendo
em vista que o preconceito e dificuldade no acesso aos banheiros aumenta a
probabilidade das pessoas trans/travestis terem problemas urinários (Movi-
mento Posithivo, 2019).

6. Considerações Finais/Começos
Chegamos a um final-começo, pois a partir dessa pesquisa a vontade de
fazer outras está pulsando loucamente em mim. Convido você a pensar de
maneira crítica e quem sabe também ir por esses caminhos de pesquisa. Tive
que deixar guardado muito do que foi falado nas entrevistas, pois não cabia
aqui e escolhi me aprofundar nos assuntos que mais gritavam para serem
escritos. E nesses gritos chorei, ri, fiquei enjoado e nervoso, mas escrevi,
escrevi com alma, corpo, e dei à luz a este trabalho/filho/preciosidade nessa
costura de retalhos em materialidade, inclusive sinto isso em meu corpo, pois
sou literalmente costurado.
Muitos pensam que as histórias estão trancadas em pedaços de papéis e
que elas só acontecem ali, todavia é na vivência do corpo-mundo que essas
236

histórias se constroem, gritam, latejam e, assim, colocam no papel a escrita


dilacerante (Silva, 2018). Exatamente nessa perspectiva que vivi e aprendi a
cartografia, como potência de escuta desses não lugares de existência, andança
nas cidades-corpos (Hissa; Nogueira, 2013) e uma imersão em mim, no outro,
na cidade e no escrever, que é ato crítico, também fundamental para que dei-
xemos registrados partes/resquícios ou o que aparecer/conseguir ser registrado
do que aconteceu. Não estou aqui para romantizar nada do que foi dito, por
isso minha escrita parte de um lugar que, o tempo todo, se debate em angústia
em mostrar a nudez, a crueza na existência trans/travesti.
No dia 1 de outubro de 2022 eu estava na cidade de São Paulo (minha
cidade natal) e visitei a exposição “Bispo do Rosário – Eu Vim: Aparição,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Impregnação e Impacto” no Itaú Cultural na Avenida Paulista, coração da
cidade. Arthur Bispo do Rosário em 1938 foi até uma igreja do Rio de Janeiro
e disse ser “enviado por Deus” e que “julgaria os vivos e os mortos”. Após essa
revelação ele foi enviado para um manicômio e diagnosticado/patologizado
com esquizofrenia paranóide. Passou uma boa parte de sua vida em manicô-
mios e produziu mais de mil peças de arte (reconhecida apenas postumamente)
com materiais diversos e cotidianos. O seu objetivo era catalogar o mundo
para mostrar para Deus. Em um desses catálogos, Bispo do Rosário retratou
um tradicional muro brasileiro:
Ver esse muro me fez refletir sobre como a sociedade normativa e os
corpos inteligíveis constroem muros cortantes para barrar as existências de
pessoas trans/travestis, em como somos impedidos de ir e vir, em como eles
querem nos mostrar que a cidade não nos pertence. E nesse pensamento crí-
tico me deparei com a instalação de Jaime Lauriano, na mesma exposição,
inspirado em Arthur Bispo do Rosário.
Então “como é que eu devo destruir os muros que me impedem de viver
a cidade?”. Acredito que essa pesquisa é sobre essas análises críticas e ações
políticas em relação a como os nossos corpos podem dissidentes conquistar
espaços dignos, além de instigar análises que possibilitem pensarmos e repen-
sarmos como a transfobia se dá hoje e como precisamos relacionar contextos
históricos e atuais, fomentando debates e quebra de muros.
Unindo, em um contexto geral, os aspectos que apareceram na pesquisa,
percebi o quanto a caminhada por uma cidade mais acolhedora e segura ainda
é longa, porém eu confesso que esperava isso, até pelo fato de eu vivenciar
muito disso. Acredito realmente que é preciso que as pessoas pesquisem e
entendam de fato nossas pautas, assim a sociedade, as empresas, os espaços,
os locais religiosos, as famílias, as escolas e universidades passarão a nos
receber com acolhimento genuíno, pensando na questão de que o conheci-
mento auxilia diretamente no combate à transfobia. Precisamos de pessoas
cis que não só simpatizem com a causa, mas que lutem junto, pois é urgente!
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 237

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, J. R. C. F. de; MIRANDA, M. A. O uso de pronomes de pri-
meira pessoa em artigos acadêmicos: Uma abordagem baseada em corpus.
Veredas On-Line - Linguística de Corpus e Computacional, Juiz de Fora,
p. 68-83, 2009.

ALMEIDA, V. S. O acolhimento como estratégia de vigilância em saúde


para produção do cuidado: uma reflexão epistemológica. Orientadora: Fer-
nanda Padovesi Fonseca. 2019. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em Geografia Humana, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,


Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

ARARUNA, M. L. F. B. O direito à cidade em uma perspectiva travesti: uma


breve autoetnografia sobre socialização transfeminina em espaços urbanos.
Periódicus, Brasília, v. 8, n. 1, p. 133-153, 2018.

BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1999.

BRASIL, Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Política Nacional de


Humanização. Brasília, 2013.

BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CARTA MUNDIAL DO DIREITO À CIDADE. Fórum Social das Américas


-Quito -Julho 2004; Fórum Mundial Urbano – Barcelona – Setembro 2004;
V Fórum Social Mundial – Porto Alegre – Janeiro 2005. Disponível em: em:
https://5cidade.files.wordpress.com/2008/04/carta_mundial_direito_cidade.
pdf. Acesso em 26 abr. 2022.

CARVALHO, T. da C. A invisibilidade do privilégio: Uma reflexão sobre a


estrutura de poder do privilégio através da artes do cartaz. Orientadora: Teresa
Veiga Furtado. Co-orientadora: Emérita Jane Gilmor. 2019. Dissertação (Mes-
trado) – Práticas Artísticas em Artes Visuais, Departamento de Artes Visuais
e Design, Escola das Artes, Universidade de Évora, 2019.

CARVALHO, C. O.; JÚNIOR, G. S. M. ‘Isto é um lugar de respeito!’: a cons-


trução heteronormativa da cidade-armário através da invisibilidade e violência
238

no cotidiano urbano. Revista de Direito da Cidade, v. 9, n.1, p. 103-116,


2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/
view/26356

DICIO, Dicionário Online de Português. Espaço. Porto: 7Graus. Disponível


em: https://www.dicio.com.br/espaco/. Acesso em: 15 abr. 2022.

FERNANDES, B. M. Os campos da pesquisa em educação do campo: espaço


e território como categorias essenciais. Educação do campo e pesquisa:
questões para reflexão. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário,
p. 27-40, 2006.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


GAIGE, D. S.; MAIA, G. F. da. Um olhar feminista para a antropologia: refle-
xões sobre as práticas acadêmicas desde uma perspectiva posicionada. Revista
digital de Ciências Sociales, Mendoza - Argentina, v. 6, n. 11, p. 63-86, 2019.

GODOY, A. S. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista


de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63, 1995.

HARAWAY, D. Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo


e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, p. 7-41, 1995.

HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Anais do


X Encontro de Geógrafos da América Latina, v. 20, p. 6774-6792, 2005.

HISSA, C. E. V.; NOGUEIRA, M. L. M. Cidade-Corpo. Revista UFMG,


Belo Horizonte, v. 20, n. 1, p. 54-77, 2013.

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


Censo Brasileiro de 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2022.

ITAJAÍ, Município de. Prefeitura de Itajaí. Cidade. Itajaí, 2022. Disponível


em: https://www.itajai.sc.gov.br/#

JESUS, J. G. de. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas trans-


gênero como genocídio. História Agora, São Paulo, v. 16, p. 101-123, 2014.

KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.


Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LOPES, F. C. R.; SILVA, L. L. da. O território sobralense e os aglomerados


de exclusão na cidade média. Revista Equador, v. 9, n. 3, p. 189-208, 2020.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 239

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção política


da morte. Arte & Ensaios, n. 32, 2016.

NASCIMENTO, L. C. P. Eu não vou morrer: solidão, autocuidado e resistência


de uma travesti negra e gorda para além da pandemia. INTER-LEGERE,
v. 3, n. 28, p. 1-22, 2020.

ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do


desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora UFRGS, 2011.

SAWAIA, B. B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

dialética exclusão/inclusão. In: SAWAIA, Bader. As artimanhas da exclu-


são: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 96-118.

SEDWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, v. 28,


p. 19-54, 2007.

SLOMSKI, R. Um habitar subversivo na cidade: A experiência dos corpos


dissidentes no Parque da Luz. Orientador: Rodrigo Gonçalves dos Santos.
2021. 100 f. Dissertação (Mestrado) - Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021.

SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

TEDESCO, S. H.; SADE, C.; CALIMAN, L. V. A entrevista na pesquisa


cartográfica: a experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia, n. 25,
n. 2, p. 299-322, 2013.

ZANELLA, A. V. Atividade, significação e constituição do sujeito: consi-


derações à luz da Psicologia Histórico-Cultural. In: Psicologia em Estudo,
v. 9, n. 1, p.127-135, 2004.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO
CONSELHO TEMÁTICO DA REDE
DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: uma
proposta de investigação-ação-participativa
Ketlyn Terres
Thayse Elis Salvalagio
João Fillipe Horr
Carlos Eduardo Máximo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

1. Introdução

Partiremos, nesta pesquisa, de uma investigação interventiva e partici-


pativa, que nos implica na condição de acadêmicas de Psicologia em relação
à construção de um Conselho Temático da Rede de Atenção Psicossocial
(CT-RAPS) de um município de Santa Catarina. O objetivo da pesquisa foi
analisar a história desse conselho, o papel dos seus participantes e as pautas
emergentes, acompanhando e intervindo nos temas evidenciados no debate
político e participativo.
Como demarcação teórico-metodológica, nos respaldamos na Inter-
vención-Acción Participativa (IAP) (Oropeza, 2018), a partir de análise das
vivências construídas na composição de um CT-RAPS. A IAP é uma metodo-
logia implicada com o contexto e a construção de uma práxis, reconhecendo
o pesquisador no processo dialético com o objeto de pesquisa e seu intervir.
Neste sentido, a hermenêutica dialética sustentou-se também na análise dos
projetos imbricados no CT-RAPS, por meio da perspectiva existencialista
sartreana e suas contribuições no campo da saúde mental (Spohr, Schneider,
2009; Schneider, 2009; Minayo, 1992).
A investigação da participação popular no campo da saúde mental é
relevante contemporaneamente, ao se considerar a construção histórica da
Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no âmbito das políticas públicas de
saúde e os desdobramentos e movimentos em disputa dentro do contexto
brasileiro. Observa-se, no cenário político da última década, um desmantela-
mento gradativo das políticas públicas de saúde, principalmente no campo da
Atenção Psicossocial. A tentativa da implementação da “Nova Saúde Mental”,
materializada na Nota Técnica, Nº 11/2019, publicada pela Coordenação-Ge-
ral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde em
242

04/02/20191 e da revogação dos parâmetros e custeio do Núcleo Ampliado


de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF) na Nota Técnica, Nº 3/2020
do Departamento de Saúde da Família.
O campo de disputa de lógicas de cuidado na Atenção Psicossocial
expressa o confronto das práticas manicomiais e antimanicomiais que fazem
parte do processo histórico dessa política. O modelo biomédico psiquiátrico
consolidou historicamente a ‘loucura’ como categoria nosológica e biologi-
camente determinada, priorizando os métodos de contenção como principal
estratégia de intervenção, sejam medicamentosas ou asilares (Sales, Dimens-
tein, 2009). Essa forma de tratamento é denominada por Costa-Rosa (2000)
como Modelo Hospitalocêntrico Asilar, que por sua lógica torna o usuário

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sua própria doença ou mal-estar, retirando-lhe a sua autonomia, já que “estão
excluídos de qualquer participação que não seja a de objeto inerte e mudo”
(Costa-Rosa, 2000, p. 159).
Nesse sentido, a perspectiva sartreana, na sua proposição ontológica de
sujeito, corrobora para uma crítica e reflexão antipsiquiátrica desse modelo,
já que o sujeito se constitui num projeto-de-ser, sempre inacabado e dialeti-
camente construído pelas suas mediações, nos polos da subjetividade (vivên-
cias e emoções, as relações interpessoais, o desejo-de-ser) e objetividade (o
mundo, as coisas e o próprio corpo). Spohr e Schneider (2009), por meio da
contribuição da fenomenologia sartreana, descrevem como o modelo asilar
e psiquiátrico acaba por degradar a subjetividade do sujeito dito ‘louco’,
ao ontologizar a doença e seu substrato biológico como deterministas do
seu projeto-de-ser.
Movimentos de resistência passaram a fazer denúncias dessa forma de
cuidado, expressados pela Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica,
por meio das experiências na Itália com Franco Basaglia, na década de 1940,
e produzindo efeitos no contexto brasileiro a partir da década de 1970. A
luta antimanicomial tem por horizonte ético e político a desconstrução das
práticas manicomiais, de aprisionamento do sujeito, seja nas instituições ou
em práticas coercitivas e medicalizantes no cuidado. Nas tentativas de mudar
esse paradigma, a prescrição deixa de ser o isolamento e a institucionalização
dos usuários, ao ampliar as perspectivas de cuidado para as relações de afeto
e no território (Lancetti; Amarante, 2006).
A Luta Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica se debruçam na
“escrita” de uma nova página da história do cuidado: o Modo Psicossocial,
que almeja a dimensão ética do cuidado, da autonomia do usuário e da pers-
pectiva de rede como um processo de trabalho. Uma das premissas centrais é

1 O Conselho Federal de Psicologia apresentou publicamente repúdio à Nota Técnica Nº 11/2019 e afirma
que é um grande retrocesso nas conquistas da Reforma Psiquiátrica no Brasil (CFP, 2019).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 243

a desinstitucionalização, na qual se propõe a construção de serviços externos


substitutivos aos manicômios e hospitais psiquiátricos.
Ao adentrarmos o conceito de desinstitucionalização, devemos nos ater
que não se trata da desospitalização, mas como nos conta Rotelli et al., 1990
citado por Costa-Rosa et al., 2003 é a superação e o desmonte das lógicas
desse tipo de cuidado, em âmbitos como a administração, na produção de
conhecimento e no caráter legislativo. Desinstitucionalizar é desconstruir
o manicômio no campo sociocultural, e vislumbrar o Modo Psicossocial, o
cuidado das pessoas em sofrimento psíquico grave no território, no lugar em
que a pessoa vive (Costa-Rosa, 2000).
De acordo com esse modelo de cuidado substitutivo, Dalmolin (2006)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

relata que o sofrimento psíquico está envolvido em aspectos que vão além do
psicologismo e biologicismo, mas sim do campo relacional, nos contextos de
vida, ou seja, onde mora, no que trabalha, como acessa seus direitos, o que
implica as políticas a refletir sobre os processos de inclusão e exclusão dos
usuários. A noção de território atravessa as concepções de um instrumento de
gestão, o lugar de vida e a sociabilidade, e busca a liberdade, o livre-trânsito,
e não a clausura (Costa-Rosa, et al., 2003).
Portanto, a Atenção Psicossocial expressa a redefinição do paradigma
de cuidado relacionados aos movimentos populares na consolidação do SUS.
Neste sentido, a “atenção” é um conceito amplo, que se refere a “prestar aten-
ção, acolher, receber com atenção, tomar em consideração, levar em conta
e escutar atentamente” (Costa-Rosa, et al. p. 22). É com esse paradigma, de
Atenção Psicossocial, que trabalhamos neste artigo, que dá importância à
participação dos usuários e não a exclusão deles.
Ao refletir sobre a participação popular, deve-se reconhecer o movimento
de conflitos e disputas políticas, entre as lógicas liberais e progressistas no que
tange a saúde, com os mesmos efeitos na Atenção Psicossocial. A democrati-
zação do espaço da saúde se dá por meio da participação popular, articulada
através de Conselhos Municipais e Conferências Nacionais de Saúde. A par-
ticipação dentro desses espaços “é conduzir os rumos da história, é alimentar
sonhos, é superar obstáculos, para quem sabe um dia, esses espaços se tornem
uma grande arena do exercício da democracia e não somente um espaço de
representação” (Quaresma, 2012, p. 185).
Quando pensamos em um Conselho Temático relacionado ao campo
da atenção psicossocial, é necessário refletir como a participação popular se
torna um campo contraditório e regido por disputas em relação aos modelos
de cuidado, mas que também viabiliza ao usuário uma reconstrução de direitos
sobre seu tratamento, implicando-o numa posição de articulador da Rede,
convocando-o para discutir e participar da construção, realização, fiscalização
244

e avaliação das políticas públicas e lutar assim pelo direito à saúde (Valla,
1998). Os Conselhos Municipais são uma das formas de efetivar a participação
popular dentro do SUS e tem como foco a descentralização das decisões. São
formados por representantes dos profissionais de saúde (25%), dos usuários
do serviço de saúde (50%), do governo e dos prestadores de serviços de saúde
(25%) (Brasil, 2013). Entende-se que, nesse espaço de participação popular,
os interesses não sejam pautados na individualidade de cada conselheiro, e
sim nos interesses coletivos (Costa; Vieira, 2013). O envolvimento da popu-
lação em assuntos do município, bairro e nas práticas de serviços de saúde,
é a democracia exercida cotidianamente, ou seja, a democratização da vida
(Miguel, 2017; Pateman, 1992).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O ato de participar do Conselho Temático, entendido como movimento
de debate, se constituiu a partir da perspectiva histórica e dialética como uma
forma de análise. De acordo com a filosofia sartreana, a construção do proje-
to-de-ser, individual ou coletivo, se dá sempre na ultrapassagem do que se é,
mas também expressando as contradições históricas que o constituem. Sch-
neider (2011) considera que os aspectos que estruturam a cultura, sociedade
e as relações, configuram um processo histórico e dialeticamente conflitivo,
em que os sujeitos ao mesmo tempo em que constroem suas histórias, são
também constituídos por elas, ou seja, “o homem é, dessa forma, produzido
por uma sociedade que ele mesmo ajuda a produzir e que, muitas vezes, nela
não se reconhece, por dela se alienar” (SARTRE, 1960, apud SCHNEIDER,
2011, p. 152).
Para compreender essa dialética a partir da perspectiva crítica de Sartre,
a análise proposta é refletir sobre os projetos construídos no CT-RAPS por
meio da totalização, destotalização e retotalização dos sujeitos ali envolvi-
dos, pois entende-se que esse movimento é uma forma de problematização
da ciência, o que resulta em novas sínteses, de tal forma que os fenômenos
psicossociais sejam expressos em tese, antítese e síntese das experiências
vividas (Schneider, 2011). O envolvimento de todos os participantes, assim
como, as pautas que foram discutidas, foram analisadas a partir dessa com-
preensão. Tal método considera os processos de singularidade e totalização
que perpassam o entendimento do ser e do coletivo.

“A história é, assim, uma totalização, um processo de produção de uma


realidade que está sempre em curso e cujo fundamento único são as práti-
cas individuais e coletivas. Toda dialética histórica descansa sobre a práxis
individual. Esta é, portanto, dialética, sendo que a relação com os outros
também o é; quer dizer, somos produtos uns dos outros. Dessa forma,
podemos verificar que as relações entre os homens não se dão ao acaso, os
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 245

indivíduos não se chocam como moléculas, são sempre produtos humanos,


das relações sociais, culturais, sociológicas” (Schneider, 2011, p. 153).

A dialética então se torna um movimento analítico do CT-RAPS, ao


encontrar caminhos que se transformam o tempo todo, além de elementos que
surgem no debate político e participativo, e que resulta na transformação dos
atores sociais ali envolvidos. Assim, trazem consigo, os fatores e concepções
que estão implicados no ser em encontro com o social em relação ao cuidado
em saúde mental. Tais dimensões, que se sustentam da mesma forma que se
contrapõem, produzem consensos e contradições (Amarante, 2007).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

2. Caminhos Metodológicos

Esta pesquisa se caracteriza como uma investigação participativa e


interventiva, com delineamento qualitativo e analítico (Minayo et al., 2011).
Dimenstein et al. (2015, p.26) descreve que as pesquisas participativas são
uma forma de fazer pesquisa, no que se refere às políticas públicas e a psi-
cologia, pois criticam a dissociação da “atividade de conhecer da realidade
onde se realiza; que separa sujeito e objeto do conhecimento e, por fim, nega
a complexidade e tudo aquilo que se refere a um campo de incertezas, ao
contraditório, ao múltiplo”.
As intervenções e análises se pautaram na problematização das relações
que se constroem no processo investigativo, o pesquisar e as pessoas que
fazem parte da pesquisa, sustentados nos pressupostos da IAP, como pro-
posta de práxis construída na América Latina por Orlando Fals Borda, com
influências do brasileiro Paulo Freire e do italiano Antonio Gramsci. Conforme
Rocha e Aguiar, essa forma de se fazer pesquisa é um caminho para também
fortalecer “a organização de espaços de participação coletiva” (2003, p. 66).
Esta perspectiva questiona os parâmetros de neutralidade referentes ao
pesquisar, assumindo que o conhecimento é construído no campo relacional,
entre pesquisador e pesquisado. Ademais, o pesquisador e o pesquisado fazem
parte do mesmo movimento, buscando romper com as diferenças entre as
categorias (Rocha, Aguiar, 2003). Conforme Dobles Oropeza (2018) afirma
que a investigação-ação participativa, requer o desenvolvimento de processos
dentro de grupos e que provocam transformações.
A IAP não possui um manual de instruções acerca do que deve ser feito,
contudo Dobles Oropeza (2018), traz uma proposta de caminho a ser seguido,
e ressalta que esse método requer sensibilidade e criatividade de quem faz
parte da pesquisa. Embora o autor aponte um caminho, ele sempre deverá
ser reconstruído de acordo com o contexto e com a realidade histórica de
cada comunidade ou grupo. O processo é formado pelo: a) contato inicial
246

e a familiarização; b) planejamento e a execução de tarefas; c) recuperação


crítica da história e das memórias coletivas; d) avaliação e a autoavaliação;
e) discussão avaliativa e sistemática do que foi produzido. Entende-se a partir
dessa proposta de se fazer pesquisa, a inclusão das situações emergentes que
exigem uma “flexibilidade metodológica”, a qual não deve ser confundida
com dispersão dos aspectos importantes de uma pesquisa qualitativa, mas dar
espaço para as questões que o campo apresenta.

2.1 Os participantes da investigação

Os participantes dessa pesquisa se constituíram por atender aos seguintes

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


critérios: a) pessoas maiores de 18 anos; b) tenham autonomia para assinatura
do TCLE; c) as pessoas que fazem parte do Conselho Temático da Rede de
Atenção Psicossocial e d) sentirem-se confortáveis com a pesquisa, após apre-
sentados os riscos. Ao compreender que essa foi uma pesquisa que almeja ser
participante, o processo de pesquisa foi feito com e para as pessoas que par-
ticipam do CT-RAPS, e cabe ressaltar, que nós, as pesquisadoras, compomos
esta palavra “participantes”, assim como nossos dois professores orientadores.

2.2 Instrumentos Utilizados: o campo e as experiências

No processo investigativo, foram utilizados a observação participante, a


construção de oficinas e o diário de campo. O diário de campo é composto por
registros de falas, cenas e diálogos, reflexões e inquietações das pesquisadoras
em relação aos objetivos da pesquisa e a participação popular dentro desse
espaço. Conforme Minayo (1992, p. 295), no diário de campo “devem ser
escritas impressões pessoais que vão se modificando com o tempo, resultados
de conversas informais, observações de comportamentos contraditórios com as
falas, manifestações dos interlocutores quanto aos vários pontos investigados”.
Oropeza (2018) apresenta o diário de campo como uma possibilidade para
anotar os diversos elementos do processo investigativo. Dentre as propostas
apresentadas, essa pesquisa se atém a duas formas de registar os aconteci-
mentos, sendo um deles descritivo, que diz respeito aos posicionamentos
dos integrantes do grupo, bem como, de quem investiga e que descreve os
movimentos desse grupo. A segunda, se refere às experiências subjetivas que
se implicam na vivência, o que leva as pesquisadoras a notar seus próprios
sentimentos, conflitos e indagações que fazem parte do desenvolvimento da
investigação participante.
A observação participante, a qual propõe Minayo (1992), é além de uma
estratégia de investigação, é parte do método em si. Trata-se da possibilidade
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 247

de aproximação de quem investiga a fazer parte do campo que se propõe a


estudar, ver de perto e de dentro o grupo e seus movimentos (Oropeza, 2018).

2.3 O campo e as experiências

A fim de analisar como se constrói a participação popular do CT-RAPS,


o processo de investigação ocorreu dentro das atividades em que o Conselho
estava envolvido. Dentre elas, as pesquisadoras participaram de reuniões
ordinárias que respondiam às pautas institucionais do controle social (4 encon-
tros), e encontros com participantes do processo de reconstrução do CT-RAPS
(10 encontros), totalizando assim, 14 encontros. O contato com o CT-RAPS,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

começou antes da pandemia da covid-19, no início de março de 2020, em


que uma das pesquisadoras participou de uma reunião presencial do grupo.
Logo após esta participação, o Conselho ficou inativo até julho de 2020, e
a partir disso, a pesquisa iniciou quando as reuniões foram retomadas, na
modalidade remota, através da plataforma Google Meet. Fato este pode ser
encarado como uma fragilidade ao pensar que, usuários e trabalhadores não
têm acesso aos meios para adentrar as reuniões em uma modalidade remota
que exige aparelhos tecnológicos, e pode, concomitantemente, ser visto como
potencialidade, pois desta maneira não existe a questão do deslocamento até
o local onde aconteciam as reuniões. Um dos encontros com os participantes
do processo de reconstrução do CT-RAPS, foi transcrito a fim de identificar
falas e posicionamentos sobre os temas propostos.

2.4 Análise da investigação

A análise foi feita a partir da Hermenêutica Dialética (Minayo, 1992),


que objetiva resgatar uma compreensão crítica da realidade, mas no seu movi-
mento e contradições. A hermenêutica discute a compreensão no sentido da
atitude de investigar, já a dialética preocupa-se com o movimento, a mudança,
contradição e transformação da realidade.
Como pano de fundo das análises, foram realizados diálogos com os pre-
ceitos da Luta Antimanicomial e da dialética sartreana proposta por Schneider,
na elucidação das concepções de cuidado presentes na disputa dos modelos
manicomiais e antimanicomiais. Enquanto procedimentos, foi realizada a
leitura da transcrição de um dos encontros, a leitura exaustiva dos diários de
campo, juntamente com as observações. A produção das categorias de análise
foi baseada nos objetivos da pesquisa: a) Conhecer os sujeitos participantes
do conselho e suas histórias; b) Detalhar a história do conselho temático em
atenção psicossocial; c) Descrever as formas de participação no conselho; d)
248

Identificar os posicionamentos dos participantes do conselho; e) Levantar as


temáticas presentes nas pautas, reuniões e encontros. Com um movimento
analítico dialético para analisar o processo da participação popular dentro do
CT-RAPS, construímos as cenas de análise que foram descritas no decorrer
do trabalho.

2.5 Aspectos éticos da pesquisa

O projeto de pesquisa faz parte do macroprojeto do grupo de pesquisa


“PRÁXIS” intitulado “Relações educativas no processo de conquista do
direito à saúde nas práticas de ensino, pesquisa e extensão em uma uni-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


versidade comunitária no sul do Brasil” que tem como autores Máximo et
al. (2018). Foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
que é credenciado no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP),
2.643.843, 87774318.9.0000.0120.
Os participantes e conselheiros do CT-RAPS foram questionados sobre
a possibilidade da realização da pesquisa e foi autorizada mediante à assina-
tura do Termo de Anuência feito pelo presidente do Conselho Temático e do
presidente do Conselho Municipal de Saúde no município. Os participantes
do CT-RAPS assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no
qual constavam a forma como seria realizada a pesquisa, os riscos da pesquisa
e medidas mitigatórias, além dos direitos e benefícios da pesquisa. Os regis-
tros de áudio foram arquivados no computador das próprias pesquisadoras,
e seus arquivos foram codificados para preservar identificação pessoal dos
participantes. O Conselho é constituído por usuários do SUS e conselheiros
(gestores, profissionais e usuários). Para identificação dos conselheiros na
análise utilizamos a palavra “conselheiro” e em seguida o que esse ator social
representa dentro do conselho e por um número de identificação, por exemplo:
P1 conselheiro/usuário; P2 conselheiro/profissional. Os demais participantes
serão apresentados como usuários.

3. Resultados e Discussões

Na construção das categorias de análise, foram retomados os objeti-


vos da pesquisa, bem como construídas cenas que pudessem expressar as
experiências descritas no diário de campo. A primeira categoria se refere a
quem são e como são intencionados os projetos dos atores sociais envolvi-
dos no CT-RAPS, indicada pela cena “‘Nós’: conhecendo os atores sociais
que compõem o CT-RAPS”. A segunda categoria, expressa as temáticas que
emergiram como discussão do CT-RAPS, suas pautas de tomada de decisão,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 249

expressadas pela cena “Quando o usuário ocupa o lugar de conselheiro”. Já


a terceira categoria indica os movimentos das pesquisadoras como atuantes
no CT-RAPS, e que ao mesmo tempo, tomam distância para refletir sobre as
intervenções e o movimento do projeto em grupo. Esta categoria de análise
é indicada pela cena “Quando a cabeça pensa onde os pés pisam: o lugar de
investigar e de agir”.

3.1 ‘Nós’: conhecendo os atores sociais que compõe o CT-RAPS

Essa categoria objetiva sintetizar a história do CT-RAPS, bem como


os posicionamentos dos atores sociais envolvidos neste espaço. Durante o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

processo investigativo, tivemos o contato com 11 conselheiros, dentre eles


usuários, profissionais da rede e representantes da gestão pública.
Numa reunião, que teve como tema “nós e nossas histórias”, foi possível
que os conselheiros e usuários colocassem suas histórias a partir de seu lugar
social. Uma cena importante que expressa esta categoria, P1/conselheiro/
usuário traz:

“Posso começar? .... Eu gostaria mesmo de começar, pois eu sou o único


drogadito dessa família”

Embora o modo de se posicionar seja perpassado por uma lógica médica


e de alguma forma manicomial, é importante refletir sobre como o CT-RAPS
proporciona aos usuários um lugar de participação como neste espaço. Nesse
sentido, o usuário sente-se autorizado a falar e tomar decisões, rompendo
com a lógica manicomial hegemônica presentes na ordem política e social
(Dimenstein, 1998).
Essa perspectiva antimanicomial, pode também ser reconhecida por P2
conselheiro/profissional, quando nos conta:

“Eu estou até aqui por acreditar nisso, nesse protagonismo dos usuários
e por entender que enquanto profissionais a gente precisa dessa cutucada,
estarmos juntos e dizer “é com vocês [usuários] também”. A gente precisa
ouvir o que está se passando com vocês, o que vocês estão sentindo antes
de qualquer coisa”

A perspectiva de P2, ao acreditar no protagonismo dos usuários, reflete


ações que acontecem no cotidiano, e que podem promover rupturas no modelo
hegemônico de cuidado em relação aos usuários da rede (Miranda et al.,
2019). Estas experiências da participação popular, no campo da atenção psi-
cossocial, indicam a importância de escutar aquilo que o usuário quer dizer,
250

e compreender as pessoas com sofrimento psíquico grave sob a ótica de


“sujeitos de desejos, de necessidades e de valores” (Dalmolin, 2006, p. 88).
Quando pensamos no reconhecimento dos papéis sociais que usuários e
profissionais constituem o CT-RAPS, P3/conselheiro/profissional expressa:

“Eu vou tentar me colocar como igual, se sentir igual, tentar não me
esconder atrás da minha profissão, é um lugar engraçado esse… É muito
fácil nos esconder atrás desse título de trabalhador”

Essa provocação movimenta as reflexões acerca dos lugares que os pro-


fissionais de saúde e usuários ocupam na participação popular. Diante das
falas dos conselheiros, lutar diretamente implica em resgatar a concepção de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


saúde do SUS, enquanto disputa de direitos. Isso nos levou a compreensão
de que todos os participantes do CT-RAPS são usuários do SUS, inclusive
nós, que além de ‘acadêmicas’, nos percebemos como cidadãs envolvidas
num espaço de disputa e discussão política. Isso ficou evidente na fala de
P3 conselheiro/profissional:

“O que pega para mim é que saúde é um direito, que todos têm um valor,
perante a constituição, que ela é uma decisão enquanto povo, enquanto
povo a gente decide. Ver todas as pessoas como iguais e com direitos”

O SUS preconiza que usuários sejam protagonistas nas tomadas de deci-


sões sobre as necessidades em saúde do seu território. A participação popular
é prevista em lei, e se refere à organização e ao engajamento dos usuários
frente às tomadas de decisões acerca da construção, realização, fiscalização
e avaliação das políticas públicas de saúde (Valla, 1998). No entanto, essas
pontuações implicam em uma pergunta fundamental: como compreender as
necessidades e disputar o político na Participação Popular através da Rede
de Atenção Psicossocial?
Para compreender a existência do CT-RAPS, se faz necessário um resgate
histórico deste espaço que ocupamos na construção desta pesquisa. Podemos
perceber que o CT-RAPS começou com um grupo de usuários que existia no
CAPS II do município que tinha, conforme a fala de P2 conselheiro/profis-
sional o propósito de:

“Que os usuários fossem protagonistas no Caps, cuidassem do espaço


deles, pintando parede, para que dessem cor até chegar às reuniões do
CT-RAPS hoje.”

E foi assim que, na Semana de Luta Antimanicomial de 2019, este grupo


realizou uma caminhada de protesto pelos leitos psiquiátricos no Hospital
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 251

Geral do município, protagonizada por servidores, profissionais de saúde, os


usuários e os familiares. Podemos perceber, então, que o CT-RAPS se torna
um projeto imbricado com estes sujeitos, intencionado pela luta na atenção
de alta complexidade no município.
No entanto, como nos indicará a análise sobre as temáticas do CT-RAPS,
os leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais podem tanto representar um avanço
dos dispositivos da rede de cuidado em relação às urgências e emergências,
quanto uma reprodução da lógica manicomial hegemônica no enfrentamento
das problemáticas dos usuários do município. Este processo dialético envolve
perceber o campo de disputa política do CT-RAPS, em um movimento mani-
comial e antimanicomial, que nos leva a questionar os sentidos e reflexões
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que perpassam essas decisões (Schneider, 2009).


Foi com desdobramentos dessa caminhada e com o suporte de repre-
sentantes do Conselho Municipal de Saúde, que se pensou num espaço de
visibilidade para as temáticas que dizem respeito à saúde mental do município,
conforme a fala de P4 conselheiro/profissional; P1 conselheiro/usuário e de
P5 conselheiro/profissional respectivamente:

“Um discurso próprio, lutar pelas coisas próprias. ” (P4)


“A gestão não queria que essa comissão nascesse. ” (P1)
“Disseram para a gente: ‘não tem lei nenhuma que dê respaldo ao que o
CT-RAPS quer ser.’” (P5)

As falas acima nos contam sobre as dificuldades de objetivação do


CT-RAPS, assim como, a necessidade de um local no qual se pudesse “lutar
pelas coisas próprias” pelos cuidados em saúde mental. Quaresma (2012) e
Silveira et al. (2014) afirmam que a participação popular se efetiva por meio
de reconhecimento das necessidades dos territórios nos Conselhos Municipais,
ou seja, próximo da realidade e dinâmica de cada município. Além disso, a
expressão ‘lutar’ por uma rede de atenção psicossocial do município convo-
cam a ação coletiva e a possibilidade da transformação social. A Reforma
Psiquiátrica nos mostra isso, reforçada na fala de P6 conselheiro/acadêmico:

“O que seria da Reforma Psiquiátrica sem os usuários? Eles


foram fundamentais”

Entende-se que esse local construído por usuários e profissionais abre


portas para um cuidado sustentado nos direitos e necessidades dos usuários,
e dão espaço para enfrentamento coletivo das fragilidades da RAPS no muni-
cípio (Sawaia et al., 2018).
252

3.2 A construção do papel de conselheiro e os temas (in)surgidos no


ct-raps: quando o usuário ocupa o lugar de conselheiro

Essa segunda categoria expressa as temáticas que emergiram como


discussão do CT-RAPS, em suas pautas e tomada de decisões. A dimensão
interventiva e analítica, por parte das pesquisadoras, se deu também no ten-
sionamento das lógicas de cuidado em saúde mental em relação às temáti-
cas construídas.

3.2.1 Construir-se conselheiro no CT-RAPS

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A tessitura de tornar-se conselheiro é a junção de várias linhas, dentre
elas a história da democracia brasileira, a história da loucura e a do lugar do
“louco” na sociedade, materializadas no Modelo Asilar Manicomial. Linhas
que se juntam e se interligam para confeccionar uma rede, pode-se assumir que
a RAPS é dialeticamente constituída por lógicas de cuidado com remendos e
buracos. É nessa perspectiva da produção do estigma da loucura que a disputa
na participação popular encontra as políticas que interpelam o cuidado das
pessoas em sofrimento psíquico grave. Sendo assim, quando as prioridades
na tomada de decisão não viabilizam a territorialidade, assumimos que os
modelos de cuidado que estão próximos da hegemonia do modelo biomédico
e manicomial (Dalmolin, 2006).
A ruptura do paradigma centrado na doença e de estigmas do cuidado em
saúde mental atravessa a construção do lugar de conselheiro e da articulação
da RAPS do município. Compreendemos que estes são espaços de disputa
política e também problematização, como refere P3 conselheiro/profissional:

“Eu acho um máximo quando a gente se junta e faz alguma coisa, eu acho
um máximo quando a gente vai no Conselho Municipal de Saúde e diz
que queremos os leitos e se não tiver os leitos a gente não vai aprovar o
plano. Não porque a gente quer ferrar o hospital, mas porque a gente quer
que eles façam com a gente, vamos fazer, a gente tá precisando disso”

Esta fala expressa uma forma de participação combativa e o desejo de


construir a RAPS com os diferentes serviços, neste caso a alta complexidade.
Podemos pensar também que esta forma de participação é uma resposta em
relação à efetivação de políticas públicas, que frequentemente acontecem de
maneira impositiva, fragmentada e centralizada (Oliveira, Pinheiro, 2010).
Dessa forma, questionamentos e tensionamentos com a gestão acontecem,
na tentativa se viabilizar o movimento de decisão e articulação, o que parece
indicar P1 conselheiro/usuário nas falas:
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 253

“Estamos fazendo fumaça (para a gestão)”


“Se a gente não é visto não é lembrado”

Estas falas permearam as reuniões do CT-RAPS e expressam o modo


como espaços de participação popular produzem efeitos nos processos de
gestão municipal. A participação popular também ultrapassa a democracia
representada apenas no campo legislativo, e pode percorrer a democratização
da vida, no trabalho, na escola, na universidade e na comunidade (Pateman,
1992). Sendo assim, os conselhos municipais podem representar a construção
de uma relação entre o Estado e a sociedade, em que a democracia é ação, à
medida que se inclui os usuários do SUS e suas demandas (Oliveira, Pinheiro,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

2010). Isso também se expressa na fala de P1 conselheiro/usuário:

“É uma coisa extraordinária, eu me sinto emocionado, com a história


de drogadição para conselheiro, justamente buscando assuntos de saúde
mental, com drogadição, é muito importante”

Como podemos perceber nessa fala, a participação dos usuários da RAPS


em espaços políticos, pode ultrapassar a lógica do campo terapêutico, aces-
sando um espaço de cidadania, atrelado a liberdade e a autonomia (Rodrigues;
Brognoli; Spricigo, 2006).
A procura por maneiras de “cuidar em liberdade”, implica na ruptura do
modo institucionalizado da loucura (Alverga; Dimenstein, 2006). E isso se
expressa quando um usuário ocupa a cidade, se expressa, quando ele mesmo
ocupa a cadeira em um conselho, e se autoriza a falar sobre si e sobre o pró-
prio serviço.
A existência do CT-RAPS pode produzir uma inflexão frente aos movi-
mentos contemporâneos das políticas de saúde mental, que tem se aproximado
cada vez mais da hospitalização e aos modelos manicomiais de cuidado. Ao
ocupar o debate político, possibilitam os projetos de ocupar as decisões da
cidade e não mais os muros de um manicômio. Conforme Dalmolin e Vascon-
cellos (2008, p. 54) “o transitar pelos espaços públicos possibilita uma rede
de sustentação, por vezes pouco visível, para a troca de afetos ao sentir-se
útil na realização de pequenos serviços e na participação dos espaços de lazer
no bairro”.
O território, que vai para além de um instrumento de gestão, passa a
ter um sentido importante na construção de um paradigma que responda às
necessidades e singularidades que se estruturam no contexto comunitário
(Costa, Veira 2013). Os sujeitos passam da condição de existir no sofrimento
para ocupar outros lugares em que possam reconstruir-se a partir das suas
ações no cotidiano (Dalmolin, 2006).
254

3.2.2 Insurgências temáticas do CT-RAPS

Nesta etapa, analisaremos as temáticas que emergiram das reuniões ordi-


nárias e encontros. Quais são as pautas que são defendidas e consideradas
importantes para esse grupo? Reconhecer os interesses dos grupos é um passo
para o exercício da cidadania que acontece na democracia participativa que
buscamos viver, por meio de espaços coletivos como o CT-RAPS (Resgis,
Altoé, 2020).
Conforme o P1 conselheiro/usuário traz:

“O conselho é comunitário, é um serviço para a comunidade e precisamos


nos aproximar da comunidade para que as demandas apareçam e que daí

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


para frente o nosso trabalho possa ser feito.”

O aproximar-se da comunidade perpassa identificar os temas que movi-


mentaram o conselho, principalmente os desafios da atenção psicossocial no
contexto pandêmico da covid-19 do município. Ao longo do processo, os con-
selheiros organizaram-se para a elaboração de um documento que questionava
a gestão frente às demandas e ações para o enfrentamento da pandemia nas
políticas de saúde mental. O documento foi enviado, mas as respostas não
foram satisfatórias para o grupo e assim, foi elaborado um documento com
o “Re-questionamento da RAPS” - nomeado assim pelo grupo. O desejo de
conhecer como os serviços se organizam e como o fluxo acontece tornou-se
um tema pertinente, além dos tensionamentos com a gestão.
Outra temática das reuniões foi o questionamento das Comunidades
Terapêuticas (CT) do município. Esta discussão surgiu de um debate entre
dois usuários da RAPS, ambos com experiências de tratamento e internação
em CTs, e relataram experiências de sofrimento que mobilizaram os demais
conselheiros. Percebemos com isso que a vivência no tratamento dos usuários
transformou-se em uma pauta a ser debatida pelo CT-RAPS. As indagações
estão presentes no diário de campo das pesquisadoras:

“Como elas (CTs) são e como funcionam? Como esses serviços de cuidado
se efetivam no município? Quantas são e onde estão? Como podemos
achar elas?” (Diário de Campo de uma das pesquisadoras)

Evidenciamos nesse encontro um movimento do CT-RAPS na produção


do diálogo e protagonismo dos usuários ao compartilhar suas perspectivas
sobre o tratamento e reflexões que pudessem transformar estes contextos de
atenção. Devemos pensar aqui que a cidadania exercida no CT-RAPS rever-
bera na possibilidade do usuário refletir e avaliar os serviços disponibilizados
na RAPS (PAULON, 2017).
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 255

Outra temática que se fez presente na maioria dos encontros em que se


desenvolveu a pesquisa foi o debate pelos leitos psiquiátricos no hospital
geral do município. Essa pauta foi apresentada como um assunto importante
para o município, e que o CT-RAPS tem um papel fundamental na tomada
de decisão de implementação do serviço. Segue um trecho de um encontro:

- (P6 Conselheiro/gestão) “Temos a questão dos leitos a discutir! E o


município quer muito esses leitos! ”
- (Pesquisadoras) “Entendemos, mas quais as demandas de urgência e
emergência notificadas? ”
- (P6 Conselheiro/gestão) “Não temos, mas a demanda é grande e está
previsto em lei. ” (Diário de Campo de uma das pesquisadoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Após uma reunião ordinária do CT-RAPS, os conselheiros e usuários


não chegaram a um consenso em relação a esta temática. Segue outro trecho
deste dia do diário das pesquisadoras:

“O que ficou é, não se tem números (de urgências e emergências), mas


o governo do Estado prevê em lei, então vai ter, parece que se tem como
ter alguma coisa em relação a RAPS, vai ter, não se questiona como e os
motivos, sentimos falta de algo mais reflexivo no CT. Para que se construa
e se pense junto o que significam esses leitos. ” (Diário de Campo)

Conforme os encontros foram ocorrendo, percebemos a constância dessa


temática nos encontros do CT-RAPS. A fala dos conselheiros perpassa a cria-
ção desses novos leitos, o que fica claro em outro trecho do diário de campo
das pesquisadoras:

“... Voltou-se para a questão dos leitos em hospital geral, é a grande


pauta, o que mobiliza todos, e faz tensionamentos com a gestão, e de
certa forma efetiva e legítima a existência do CT-RAPS ao meu ver. Os
leitos são o motivo do Conselho existir e continuar existindo” (Diário de
Campo uma das pesquisadoras).

Neste trecho do diário, discutimos como a institucionalidade do CT-RAPS


se constiui pela luta e efetivação dos leitos, e não pela tentativa de pensar em
fortalecimento dos serviços de cuidado no território. Acompanhando o debate
sobre os leitos psiquiátricos, numa perspectiva dialética, fizemos intervenções
relacionadas à emergência e urgência na decisão pelos leitos, e de pensar
como a implementação sem um plano de cuidado territorial poderia repro-
duzir uma lógica manicomial de cuidado. Pensamos que a emergência das
decisões sobre os leitos expressa as contradições do nosso objeto-intervenção
256

de estudo, o CT-RAPS, um espaço que pode promover linhas possíveis do


modelo antimanicomial, mas que também carrega consigo a presença do
modelo asilar hegemônico.
Intervir no debate do CT-RAPS foi provocar o tensionamento das lógi-
cas de cuidado em saúde mental, reiterando assim o posicionamento ético
relacionado a Luta Antimanicomial, como campo de embate político, teórico
e prático, em que o movimento da tese e antítese permeiam os diálogos e
reflexões sobre as perspectivas para o futuro da rede de atenção psicossocial
(Spohr; Schneider, 2009).
Evidenciamos que um dos temas mais recorrentes do CT-RAPS poderia
ser justamente uma reprodução da tese manicomial e que motivou a construção

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


desse espaço. Nesse sentido, a história do CT-RAPS e seu papel na tomada
de decisão dos leitos também reproduz as lutas, contradições e o paradoxo
do contexto brasileiro frente à Reforma Psiquiátrica e a luta pela desinstitu-
cionalização (Oliveira; Pinheiro, 2010).
Demarcarmos aqui que os leitos, enquanto serviço de cuidado para as
emergências e urgências, são importantes, mas não devem se sobressair frente
ao fortalecimento das redes e serviços comunitários no território. Indagamos:
para onde essas pessoas serão encaminhadas depois? A busca por pautas que
defendam o “cuidar em liberdade”, no território, são deixadas de lado e a pauta
centraliza-se no urgente, os leitos psiquiátricos (Alverga, Dimenstein, 2006).
Esses dois temas emergentes do CT-RAPS nos colocam em diálogo com
a nota técnica “Nova Saúde Mental” publicada pelo Ministério da Saúde em
2019. Conforme o Conselho Federal de Psicologia (2019), a nota preconiza
a inserção de comunidades terapêuticas e leitos psiquiátricos em Hospitais
Gerais. Esses dois temas foram discutidos no CT-RAPS, e os conselheiros
discutiram e refletiram sobre comunidades terapêuticas. Apesar disso, quando
a pauta se centrava nos leitos, buscava-se uma exigência para a efetivação
e implementação urgentes, e o caráter reflexivo não se fazia presente. Cabe
ressaltar que a nota técnica traz que “a desinstitucionalização não será mais
sinônimo de fechamento de leitos e de Hospitais Psiquiátricos’’ (Brasil, 2019,
p. 5), e ainda complementa que o fechamento dos leitos em hospitais psiquiá-
tricos é um acontecimento equivocado das últimas décadas.
Ao olharmos para a nota técnica e as reflexões suscitadas no CT-RAPS,
podemos compreender dialeticamente o objeto das temáticas do conselho,
atravessados pela contradição dos modelos de cuidado. Afinal, o risco de
institucionalização da loucura que permeia as instâncias responsáveis pela
construção dessas políticas, e a urgência das tomadas de decisão, nos convo-
cam a problematizar políticas de retrocesso, ao retirar a capacidade de crítica
desses serviços. O que pode parecer sem paradoxos, como a luta pelos leitos,
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 257

nos serviços da RAPS, é tematizado sem reflexividade, e nisso, o CT-RAPS


se objetifica:

O simples é sempre simplificado… mas tão grande é a tentação da clareza


rápida [...], que esquecemos que não existem fenômenos simples [...]
porque uma ideia simples deve estar inserida para ser compreendida num
sistema complexo de pensamentos e de experiências” (Morin e Lemoigne,
2000, p. 251 apud Dalmolin, 2006, p. 95).

Na medida em que o nosso posicionamento nas discussões se materiali-


zava em questionamentos das temáticas do CT-RAPS, fomos compreendendo
nossas vivências enquanto pesquisadoras que se totalizavam e destotalizavam
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nos encontros situados no Conselho.

3.2.3 Grupo de estudos

Além das temáticas, as inquietações e dúvidas sobre a RAPS do muni-


cípio levantaram a necessidade de reestruturação do grupo de estudos do
CT-RAPS. O que se justifica ao observarmos a fala de P1 conselheiro/usuário:

“No início a gente não sabia, sabíamos muito pouco ainda, quase nada.
E o que nós vamos fazer agora? Agora que temos uma diretoria eleita,
o que nós faremos? Ninguém sabia essa resposta, a gente foi buscar”

Esta fala reflete o desejo de conhecer as atribuições necessárias para


se tornar um conselheiro. A busca pelo conhecimento sobre a participação
popular, SUS e suas políticas, é um dos aspectos que possibilita um bom
funcionamento desse espaço de administração pública compartilhada (Gon-
zales, 2015). O que justifica a importância e a necessidade de reflexividade
para os conselheiros, para que eles possam participar efetivamente da Rede
de Atenção Psicossocial do município (Cotta et al. 2009).
Os participantes do CT-RAPS perceberam essa fragilidade e sugeri-
ram a construção de um grupo de estudos, para o estudo das leis e portarias
que regulamentam a RAPS. O grupo de estudos é considerado pelos conse-
lheiros como parte das reuniões ordinárias. Como podemos ver na fala de
P2 conselheiro/profissional:

“Acho que o CT-RAPS tá sendo isso para mim, uma grande escola prática
do Controle Social”

A fala desse conselheiro sobre a sua participação evidencia como a quali-


ficação do processo decisório acontece, propondo ações que correspondam às
258

necessidades do município no que tange à Atenção Psicossocial (Hartcoph, et


al. 2015). A busca dos participantes por conhecer mais a RAPS vai ao encon-
tro do caráter educativo da democracia participativa que conforme Pateman
(1992, p. 61) “quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles
se tornam para fazê-lo”. É através da prática que os conselheiros aprendem
juntamente com os cursos de capacitação em saúde e em atenção psicossocial
(Vasconcellos, 2009).
Esse movimento do CT-RAPS, se atravessou pela dialética de com-
preender o “grupo em fusão”, como define Schneider (2011), os grupos se
constituem de maneira espontânea quando o futuro dos diferentes projetos
singulares entra em questão, o que pode permitir que se tornem grupos orga-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nizados por um problema em comum. A mediação produzida pela necessidade
de estudar as políticas, as leis e as portarias pelos conselheiros, delimitou uma
ação, da mesma forma que a problemática dos leitos convocava o grupo a se
posicionar frente à implementação desses serviços.

3.3 Quando a cabeça pensa onde os pés pisam: o lugar de investigar


e de agir

Esta terceira categoria indica os movimentos das pesquisadoras como


atuantes no CT-RAPS, e que exigiu também tomar distância para refletir sobre
as intervenções e o movimento do projeto em grupo.
Expressamos essa categoria a partir do nosso diário, quando aden-
tramos pela primeira vez no CT-RAPS, ainda de forma presencial,
P7 conselheiro/usuário:

“Mas eles [os acadêmicos], não voltaram mais.” (Diário de Campo)

Ao ouvirmos isso, que as pessoas da universidade não ficam no conselho,


não permanecem, apenas passam, repensarmos nosso lugar na participação
social e política no CT-RAPS. Conforme Dimenstein et al. (2015) a pesquisa
e intervenção na participação popular são duas dimensões inseparáveis. O que
fica evidente no recorte do diário de campo das pesquisadoras:

“As pessoas da universidade não ficam no conselho, e não deveríamos


contar com elas.” (Diário de Campo das pesquisadoras)

Compreendemos que isso se deve, a partir dos motivos que fazem com
que acadêmicos ocupem os espaços sociais que, usualmente, são para o cum-
primento de experiências práticas, sem um envolvimento politicamente impli-
cado. No nosso caso, como pesquisadoras, entendemos que a forma como se
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 259

realizam pesquisas nas ciências humanas e da saúde, as pessoas que fazem


parte de um recorte do público-alvo da pesquisa, e tornam-se, “objetos des-
cartáveis” no qual, são deixados após terem fornecido as informações para a
justificativa das pesquisas. Pois, assim como nos diz Oropeza (2018), as expe-
riências empíricas geralmente não fazem parte do processo analítico, mesmo
que os participantes sejam os protagonistas das produções de conhecimento.
Diante da importância da subjetividade do pesquisador, adentramos num
tema importante nessa investigação, ou seja, os posicionamentos, implicações
e as consequências na relação entre pesquisador e pesquisado (Oropeza, 2018):

“Me sinto responsável pelas temáticas e pelo que acontece no CT-RAPS,


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

isso que é pesquisa participante?” (Diário de Campo das pesquisadoras)

A práxis, como processo dialético, implica o pesquisador, seu intervir e


seu lugar. Neste sentido, começamos nessa pesquisa, projeto-de-ser pesqui-
sadoras e profissionais, em um processo contínuo da totalização (Schneider,
2011). Este projeto-de-ser pesquisadora em curso, é objetificado nas falas,
ideias e posicionamentos, exteriorizados no campo de pesquisa. A interven-
ção-ação participativa propõe a sustentação dessa forma de se fazer pesquisa,
Oropeza (2018) diz que o planejamento do problema, deverá se manter claro
e coerente, de forma que não se perca ao decorrer do processo, e que as con-
tradições e dificuldades que implicam a indagação empírica, são inevitáveis.
Ao realizar a pesquisa, fomos construindo intervenções que pudessem
problematizar as lógicas em disputa em torno dos leitos psiquiátricos, bem
como a proposição do grupo de estudos em um viés ético sobre a RAPS. No
entanto, ambas experiências produziram tensionamentos que nos fizeram
questionar nosso vínculo com aquele espaço, e nosso lugar enquanto pesqui-
sadoras, enquanto movimento destotalizador do processo.
Contudo, o movimento de pertencer ao grupo e refletir como coletivo,
produziu efeitos tanto na inteligibilidade das temáticas do CT-RAPS, quanto
no nosso projeto de pesquisa. Assim, nosso movimento retotalizador, ainda
que com dúvidas, se construiu na responsabilidade e compromisso ético da
troca dos saberes com CT-RAPS, que constituiu um ato político:

“Já me sinto mais à vontade para estar ali e uma maior abertura para me
posicionar. Também penso, que me sinto responsável pelo que discutimos
nas reuniões, o que me permite falar e me posicionar no grupo” (Diário
de Campo das pesquisadoras).

Diante disso, nossa pesquisa foi implicada nos afetos e movimentos de


destotalização presentes na atuação junto ao CT-RAPS. Começamos nosso
260

campo por meio do contato inicial e a familiarização (Oropeza, 2018), tivemos


o cuidado para que as nossas inclinações fossem ao encontro das experiências
e histórias que já se estabeleceram por ali. Assim, o papel que o pesquisador
ocupa nesse processo de investigação implica sua subjetividade, bem como,
as suas angústias e vivências, como fatores ativos desse movimento (Oro-
peza, 2018).
Talvez a parte mais difícil desse trabalho tenha sido materializá-lo, pelas
nossas escolhas e os caminhos metodológicos. O que nos questionamos incon-
táveis vezes:

“Como pesquisar a participação, participando?” (Diário de Campo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


das pesquisadoras)

Identificamos a dificuldade operacional que se presentifica nessa forma de


se fazer pesquisa, em nos colocar como objeto da própria análise, pois transitar
nestes papéis de pesquisadoras e participantes, evidenciou a importância de
refletir esse movimento constante, bem como, o reconhecimento da liberdade
que existe na relação com o outro, o que coloca os limites e o distanciamento
necessário, e que possibilitaram essa troca (Dimenstein et al., 2015). A res-
ponsabilidade que sentimos, a liberdade de compartilhar nossas inquietações
e ideias, nos levou a exercer nosso papel participativo e ético desta pesquisa.

4. Considerações Finais

O objetivo desta investigação-ação participativa foi analisar sobre o


processo de participação popular na construção de um conselho temático de
atenção psicossocial em um município de Santa Catarina, o papel dos seus
participantes e as pautas emergentes, acompanhando e intervindo nos temas
do debate político e participativo do CT-RAPS.
O estudo resgatou quem são os conselheiros, a história do CT-RAPS, e
a relevância desse espaço no debate político em que usuários, profissionais
da saúde e da gestão para que possam refletir sobre as questões que tangem
a Atenção Psicossocial do município. A participação popular no CT-RAPS
representou uma ruptura com a lógica manicomial, na medida em que usuá-
rios possam protagonizar a reflexão e a tomada de decisão sobre os serviços
da rede de atenção.
As temáticas predominantes se referiram às tomadas de decisão por servi-
ços de alta complexidade no município, materializadas nos leitos psiquiátricos,
além de reflexões e questionamentos sobre as Comunidades Terapêuticas. No
percurso, implicou as pesquisadoras em reconhecer o movimento dialético
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 261

entre as lógicas de cuidado manicomial e antimanicomial sustentadas na cons-


trução dessas políticas junto aos conselheiros.
Este processo investigativo também reconhece o ineditismo do CT-RAPS
como espaço de participação popular na tematização da atenção psicossocial,
principalmente frente aos desafios impostos pela pandemia da covid-19. A
complexidade que permeia os assuntos de atenção psicossocial não deve ser
vista como dificuldade, mas como uma forma de se aproximar dos conflitos,
estigmas e embates que se objetivam nesse campo. A importância desse movi-
mento de proximidade entre a Universidade e a Comunidade, o ato de pesqui-
sar e o campo, são categorias que deveriam ser unificadas e não separadas.
Através da perspectiva da IAP, as pesquisadoras se viram implicadas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

em um processo de reconstrução do papel de uma pesquisa no campo da


Psicologia, ao compreender que os seus estudos tendem a pautar-se em um
cientificismo distante e neutro. A ciência não se sustenta nesse lugar à distância
do seu fenômeno, e buscamos investigar e analisar o fenômeno da participação
popular em sua concretude.
O processo dialético no campo da saúde mental, proposto pela epistemo-
logia existencialista sartreana, nos fez compreender que o projeto coletivo do
CT-RAPS pode abrir outros campos possíveis para além dos serviços de alta
complexidade. Com isso, sugere-se que outras pautas também sejam discu-
tidas pelo Conselho, como por exemplo a geração de renda para as pessoas
em sofrimento psíquico grave, a economia solidária e o cuidado no território,
além do protagonismo dos usuários na avaliação dos serviços de saúde mental.
Por fim, a atuação no campo da atenção psicossocial implica num posi-
cionamento ético, aqui materializado por uma Psicologia que cientificamente
luta por uma sociedade sem manicômios e reconhece a diversidade nos modos
de sofrer e padecer.
262

5. REFERÊNCIA
ALENCAR, T. O. S.; NASCIMENTO, M. A. A.; ALENCAR, B. R. Herme-
nêutica Dialética: Uma Experiência Enquanto Método de Análise na Pes-
quisa sobre Acesso do Usuário à Assistência Farmacêutica. Rev Bras Promoç
Saúde., v. 25, n. 2, p. 243-50, 2012.

ALVERGA, A.; DIMENSTEIN, M. A. Ministério da Saúde Secretaria de Aten-


ção Primária à Saúde. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstituciona-
lização da loucura. Interface Comun Saúde Educ, v. 10, p. 299-316, 2006.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fio-
cruz, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento


de Ações Programáticas Estratégicas. Coordenação-Geral de Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas. Nota Técnica nº 11/2019, de 4 de fevereiro de 2019
Disponível em: https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.
pdf. Acesso em: 20 out. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde: A responsabili-


dade do controle social democrático do SUS/Ministério da Saúde, Conselho
Nacional de Saúde. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. 28 p. Dispo-
nível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/conselhos_saude_res-
ponsabilidade_controle_2edicao.pdf. Acesso em: 20 out. 2020.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departa-


mento de Saúde da Família. Nota Técnica Nº 3/2020, de 28 de janeiro de 2020.
Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2020/01/
NT-NASF-AB-e-Previne-Brasil-1.pdf. Acesso em: 20 out. 2020.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. CFP Manifesta repúdio à


nota técnica “Nova Saúde Mental” publicada pelo Ministério da Saúde.
2019. Disponível em: https://site.cfp.org.br/cfp-manifesta-repudio-a-nota-
-tecnica-nova-saude-mental-publicada-pelo-ministerio-da-saude. Acesso em:
20 out. 2020.

COSTA I. I.; BRAGA, F. W. Clínica sensível à cultura popular na atenção ao


sofrimento psíquico grave. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro,
v. 25, n. 3, p. 547-562, set./dez. 2013.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 263

COSTA-ROSA, A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas subs-


titutivas ao modo asilar. In: AMARANTE, P. (Org.) Ensaios: subjetividade,
saúde mental e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000.

COSTA-ROSA, A.; LUZIO, C. A.; YASUI, S. Atenção Psicossocial: rumo


a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: P.D.C. Amarante (Org.).
Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Nau
Editora, 2003. p. 13-44.

COTTA, R. M. M.; CAZAL, M. M.; RODRIGUES, J. F. C. Participação,


Controle Social e Exercício da Cidadania: a (des)informação como obstá-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

culo à atuação dos conselheiros de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2,


p. 419-438, 2009.

COSTA, A.M.; VIEIRA, N.A. Participação e controle social em saúde. In:


Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estraté-
gica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de
saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assun-
tos Estratégicos da Presidência da República, 2013. Vol. 3. pp. 237-271. Dis-
ponível em http://books.scielo.org/id/98kjw/pdf/noronha-9788581100173-08.
pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.

DALMOLIN, B. M. Esperança equilibrista: cartografias de sujeitos em


sofrimento psíquico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

DALMOLIN, M. B.; VASCONCELLOS, M. P. Etnografia de sujeitos em


sofrimento psíquico. Revista Saúde Pública, v. 42, n. 1, p. 49-54, 2008.

DIMENSTEIN, M. O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desa-


fios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, v. 3,
p. 95-121, 1998.

DIMENSTEIN, M.; MACEDO, J. P.; LEITE, J.; GOMES, M. A. Psicologia,


políticas públicas e práticas sociais: Experiências em pesquisas participativas.
Pesquisas e práticas psicossociais, v. 10, n. 1, p. 24-36, 2015.

GONZÁLEZ, R. S. Conselhos e participação política : teoria e práticas. In:


GONZÁLEZ, R. S. Direitos humanos, participação política e políticas
públicas no Brasil: o papel dos conselhos. Porto Alegre: Editora SGE, 2015.
p. 193-214.
264

HARTCOPH, M.; ROS, M. A.; WENDHAUSEN, A. L. P. Processo decisó-


rio e conselhos municipais de saúde: um estudo da realidade atual. Revista
Brasileira de Tecnologias Sociais, v. 2, n. 1, 2015.

LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde Mental e Saúde Coletiva. In: CAM-


POS, G. W. S. et al. (org.). Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: Fio-
cruz, Coedição Com A Hucitec., 2006. Cap. 18. p. 615-634. Disponível em:
http://professor-ruas.yolasite.com/resources/Tratado%20de%20Saude%20
Coletiva.pdf. Acesso em: 3 abr. 2020.

MINAYO, M.C.S. O Desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


saúde. São Paulo: Rio de Janeiro: Hucitec: ABRASCO, 1992.

MIRANDA, S. A. B.; ROCHA, L. A.; MATOS, R. K. S.; MARTINS, L. H.


S. Loucos, Drogados e Associados: participação social no campo da saúde
mental em tempos austeros. O Social em Questão - Ano XXII, n. 44. Minas
Gerais, 2019.

OLIVEIRA, L.C.; PINHEIRO, R. A participação nos conselhos de saúde e


sua interface com a cultura política. Cien Saude Colet, v. 15, n. 5, p. 2455-
2464, 2010.

OROPEZA D. I. Investigación cualitativa: metodología, relaciones y ética:


Estrategias biográficas-narrativas, discursivas y de campo. San José, Costa
Rica: Editorial Universidad de Costa Rica, 2018.

PATEMAN, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1992

PAULON, S. M. Quando a cidade “escuta vozes”: o que a democracia tem a


aprender com a loucura. Interface, Botucatu, v. 21, n. 63, p. 775-786, 2017.

QUARESMA, S. J. L. Movimentos Sociais: legitimação da participação social


na saúde. Revista Grifos, v. 21, n. 32-33, p. 171-190, 2012.

RESGIS, M. A.; ALTOÉ, D. P. G. Participação popular em saúde mental.


Revista de Educação Popular, v. 19, n. 1, p. 24-44, 2020.

ROCHA, M. L. AGUIAR, K. F. Pesquisa-intervenção e a produção de novas


análises. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 23, n. 4, p. 64-73. Disponível em:
www.scielo.br/pdf/pcp/v23n4/v23n4a10.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 265

RODRIGUES, J.; BROGNOLI, F. F.; SPRICIGO, J. S. Associação de usuários


de um centro de atenção psicossocial: desvelando sua significação. Contexto
Enferm., v. 15, n. 2, p. 240-5, 2006.

SALES, A. L. L. F.; DIMENSTEIN, M. Psicologia e modos de trabalho no


contexto da reforma psiquiátrica. Psicologia Ciência e Profissão. Brasília,
DF, v. 29, n. 4, p. 812-827, 2009.

SAWAIA, B.; ALBUQUERQUE, R.; BUSARELLO, F. Afeto & comum:


reflexões sobre a práxis psicossocial. São Paulo: Alexa Cultural, 2018.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SCHNEIDER, D. R. Caminhos históricos e epistemológicos da psicologia:


contribuições da fenomenologia e existencialismo. Cadernos Brasileiros de
Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, v. 1, n. 2, p. 57-72, 2009.

SCHNEIDER, D. R. Sartre a psicologia clínica. In: SCHNEIDER, D. R.


A dialética da relação eu/outro. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011,
p 147-165.

SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; VAN STRALEN, C. J. Práticas


discursivas na participação social em saúde mental. Saúde em Debate, Rio
de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, 2014.

SPOHR, B.; SCHNEIDER, D. R. Bases Epistemológicas da Antipsiquiatria: A


Influência do Existencialismo de Sartre. Revista da Abordagem Gestáltica,
v. 15, n. 2, p. 115-125, 2009.

VALLA, V. V. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cader-


nos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 7-18, 1998.

VASCONCELOS, E. M. Perfil das organizações de usuários e familiares no


Brasil, seus desafios e propostas. Cad Bras Saúde Mental., v. 1, n. 1, 2009.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE O QUE NÃO FINDA...
Marina Corbetta Benedet

Colocar-se a tecer: produzir os fios que serão utilizados na tecitura, escolher


a trama a ser produzida, bailarinar com dedos e mãos a construção da trama.
Eis no que consistiu essa produção. Somos novos-velhos fios. Entre pessoas de
tempos outros na instituição e pessoas de tempos novos, entre compreensões
teóricas dissidentes, resistentes, metodologias, sentires e sensações distintas,
cansaços e angústias partilhadas, vemos aqui a construção do que vamos sendo.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Ainda estamos a nos conhecer, olhar nos olhos – quando possível -, ouvir
o outro no fazer-se docente pesquisador e pesquisadora, no experimentar-se
constituir nos diálogos que partilhamos para além do mundo acadêmico.
Ainda estamos a nos conhecer e gostaríamos de grafar aqui nosso exis-
tir-conhecendo[-nos] em nossas tramas de vidas, com pontos-nós que nos
atravessam naquilo que transversaliza nossos diálogos. E nesse “ainda estamos
a nos conhecer”, convidamos você a ser interlocutor, corpo-mão a cozer-tramar
conosco, pois a alteridade nos constitui e nesse escrever-viver-pensar-sen-
tir com você também vamos construindo quem somos nesse coletivo-trama
que produzimos.
Particularmente gosto muito de uma afirmativa de Larrosa e Kohan (2007)
que afirma que não escrevemos o que já sabemos, escrevemos para apren-
der o não sabido e transformar aquilo que sabemos. Ao produzir esse livro
aprendemos de nós e estamos a aprender o que é fazer-se grupo de pesquisa.
Certa de que aqui temos uma pequena trama do que nos forma, não
entendo possibilidade de um arremate, mas sim os fios soltos que o diálogo,
agora com você que nos lê (e conosco mesmo que nos leremos) para as
novas tramas que precisaremos tecer. No fio do tempo, esta obra se tece. No
fio do tempo, rezo1 a cada ponto-nó para que essa trama possa ser destecida,
carregando as marcas do que tramamos neste momento, mas também a pos-
sibilidade de outras marcas num novo tecer. O mundo é mover-se.
Destecer para tecer novamente no devir. Se, como lembrar Deleuze,
“acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo que pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espa-
ços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos”, rezo que essa
tecitura se faça acontecimento e que, sem controle se desfaça e refaça em
outros tempos-espaços.

1 No dicionário e língua portuguesa online há algumas definições para rezo. Aqui gostaria de posicionar
aquela definição a qual apreendo ser necessária nessa produção. Rezar como “Falar baixo, resmungando,
murmurando; murmurar. Lembro que a origem etimológica de rezar deriva do recitar. Rezo como possibilidade
de murmúrio-cantarolar a ritmar o bailarinar de dedos no tecer-destecer a trama dessa produção.
268

REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. Controle e devir: entrevista de Gilles Deleuze a Toni Negri.
1990. Disponível em: https://historiacultural.mpbnet.com.br/pos-modernismo/
Controle_e_Devir.pdf. Acesso em: nov./2023.

LARROSA, J.; KOHAN, W. Apresentação da coleção. In: RANCIÉRE, J. O


mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ÍNDICE REMISSIVO
A
Acolhimento institucional 159, 161, 164, 165, 167, 169
Alas exclusivas 200, 216
Análise psicossocial 217, 239
Ansiedade 87, 88, 176, 179, 180
Antimanicomial 33, 242, 247, 249, 250, 251, 256, 261
Artista 98, 100, 101, 102, 103, 108, 110, 113, 114, 115, 116, 117, 120, 278
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Atenção primária 23, 144, 145, 262, 276


Atestado de exclusão 210, 217
Atores sociais 164, 245, 248, 249

C
Cartografia 126, 127, 128, 129, 130, 132, 135, 136, 137, 225, 226, 227,
236, 239
Ciência psicológica 9, 163, 170
Conhecimento histórico 20, 27

D
Desigualdade social 18, 24, 169, 173, 206, 217, 239
Direitos humanos 10, 17, 19, 21, 27, 29, 31, 34, 35, 37, 38, 39, 40, 41, 42,
43, 44, 54, 69, 149, 199, 202, 211, 214, 235, 263, 277, 278
Ditadura militar 52, 140, 145

E
Educação escolar 145, 146
Emoção estética 98, 103, 120
Ensino remoto 175, 176, 177, 179, 180, 181, 182, 184, 185, 186, 195
Entrevistas 55, 56, 67, 68, 79, 80, 83, 84, 87, 89, 90, 107, 108, 109, 132,
134, 164, 165, 166, 168, 180, 181, 192, 202, 203, 204, 206, 207, 209, 210,
225, 226, 228, 235
Epistemológicos 22, 23, 28, 123, 127, 265
Estudantes de psicologia 177, 180, 190
Ética da desigualdade 217, 239
270

Experiências urbanas 137

F
Feminismo 137, 215, 238
Ferramentas de trabalho 77, 86

G
Gênero 19, 20, 21, 22, 29, 35, 40, 45, 48, 49, 61, 71, 128, 132, 142, 146,
150, 158, 159, 160, 161, 165, 166, 169, 171, 172, 174, 197, 199, 203, 204,
205, 206, 207, 208, 209, 210, 213, 215, 217, 220, 222, 228, 230, 232, 234,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


274, 275, 277

H
Histórico-cultural 124, 239

L
Leitos psiquiátricos 250, 251, 255, 256, 259, 260
Lgbt 199, 200, 214, 216, 217, 229, 231, 233, 234

M
Ministério da saúde 145, 155, 156, 176, 237, 241, 256, 262, 263

N
Neoliberalismo 73, 74, 75, 76, 77, 78, 84, 85, 94, 96, 141, 277

P
Pandemia da covid-19 92, 176, 180, 182, 194, 195, 247, 261
Paradigma 20, 27, 101, 122, 123, 156, 242, 243, 252, 253, 263
Pautas emergentes 241, 260
Penitenciária 197, 201, 203, 208, 209, 210, 212, 274
Percepção sensorial 98, 103, 120
Período de lockdown 177
Políticas públicas 10, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 139, 140, 141, 142, 143, 144,
145, 146, 147, 148, 149, 151, 152, 154, 155, 157, 166, 213, 224, 235, 241,
244, 245, 250, 252, 263, 274, 277, 278
Promoção dos direitos 200, 211, 214
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 271

Protagonista 54, 98, 102, 150, 161

R
Rede de atenção 143, 144, 157, 167, 241, 246, 250, 251, 256, 257, 260, 276

S
Saúde mental 23, 33, 40, 80, 142, 144, 156, 157, 163, 174, 179, 195, 241, 245,
251, 252, 253, 254, 256, 261, 262, 263, 264, 265, 273, 275, 276, 277, 278, 279
Sexualidade 45, 46, 47, 50, 51, 56, 57, 59, 61, 63, 65, 66, 67, 69, 132, 142,
146, 197, 199, 204, 207, 210, 213, 230
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Sintomas de depressão 176, 180


Sociabilidade 98, 120, 243
Sofrimento psíquico 23, 35, 73, 76, 77, 80, 85, 86, 87, 93, 94, 96, 153, 243,
250, 252, 261, 262, 263
SUAS 11, 18, 19, 20, 25, 26, 32, 34, 35, 36, 37, 39, 47, 48, 49, 51, 52, 54,
55, 60, 66, 73, 74, 76, 77, 86, 89, 90, 92, 93, 98, 103, 120, 126, 129, 132,
140, 141, 143, 144, 147, 148, 149, 150, 151, 153, 154, 159, 162, 163, 164,
166, 167, 168, 169, 170, 171, 175, 177, 179, 181, 183, 184, 187, 192, 197,
200, 203, 205, 208, 211, 213, 223, 226, 229, 231, 232, 238, 241, 242, 244,
247, 248, 249, 252, 253, 254, 257, 260
SUS 143, 144, 145, 155, 243, 244, 248, 250, 253, 257, 262

T
Tecnologias psicossociais 10, 139, 140, 151, 152, 153
Trabalhadores de aplicativos 96
Trabalho digital 94, 95, 96
Transexuais 200, 206, 214, 216, 217

U
Uberização 75, 76, 77, 83, 85, 87, 88, 89, 90, 93, 94, 95, 96

V
Violência de gênero 21, 29, 159, 160, 165, 166, 171
Vulnerabilidades 3, 9, 18, 20, 22, 31, 163, 170, 278
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE OS AUTORES

Ana Beatriz de Souza Medeiros


Possui graduação em psicologia pela UNIVALI – Universidade do Vale do
Itajaí; Pós-graduação em Psicodrama com ênfase clínica ainda em andamento.
Cursou disciplinas no PPGP – Programa de Pós-graduação em Psicologia
em nível mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua
como psicóloga clínica em um consultório particular junto a um profissional
da área médica.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Brenda dos Santos Arruda


Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (2022), pós-gra-
duanda em Liderança Positiva, Cultura Organizacional e Desenvolvimento
Humano pela PUC-PR. Atualmente trabalha com Desenvolvimento Humano
Organizacional e Psicóloga Clínica.

Bruna Heleno Zarske de Mello


Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali, espe-
cialista em Sociologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica do
Paraná – PUCPR. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná – PUCPR. Foi bolsista na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior. Doutoranda em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUCPR. É pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre
Ensino Médio e Juventudes – NEPEMJ. Atualmente trabalha como Psicóloga
Educacional do Colégio de Aplicação da Univali/CAU, Campus Itajaí e como
docente do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/1017315739002544.

Carlos Eduardo Máximo


Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (1992),
mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (1999) e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Atualmente é professor Senior do programa de mentoria da Uni-
versidade do Vale do Itajaí. Experiência na área de Psicologia Social, Psico-
logia Comunitária, Saúde Coletiva e Políticas de Saúde, Epistemologia das
Tecnologias em Saúde. Participou de programas de formação profissional em
saúde como o PRO/PET-Saúde. Trabalha em cursos de Pós-graduação abor-
dando temas em saúde mental coletiva e práticas psicossociais. Professor do
Programa de Mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho da UNIVALI. Atuou
274

como professor do Mestrado Profissional em Psicologia da UNIVALI. Atuou


como professor e tutor da Residência Multiprofissional em Saúde da Família.
Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/8747526604265633.

David Tiago Cardoso


Mestre (2018) e Doutorando em Psicologia, na área de Psicologia Social e
Cultura, pela Universidade Federal de Santa Catarina, na área de Psicologia
Social e Cultura, pesquisador no grupo de pesquisa MARGENS: modos de
vida, família e relações de gênero, possui graduação em Psicologia pela Uni-
versidade do Vale do Itajaí (2006). Psicólogo no Sistema Único de Assistência
Social da Prefeitura Municipal de Balneário Camboriú, SC. Professor na

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Universidade do Vale do Itajaí no curso de Psicologia. Consultor na área de
Políticas Públicas e Demandas Familiares em Contexto de Vulnerabilidade e
Risco Social. Editor Júnior da Revista Nova Perspectiva Sistêmica, editada
pela editora do Instituto Noos (SP). Currículo disponível em: http://lattes.
cnpq.br/6606364007811435.

Eduardo Henrique Dos Santos Freitas


Acadêmico de Psicologia, pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, cur-
sando o 10 período, atua como Presidente do Centro Acadêmico de Psicologia
Prof. Pedro Antônio Giraldi (CAPSY) e é o atual coordenador cientifico da liga
de Psico-oncologia (LAPO).Foi bolsista de pesquisa pelo artigo 171/FUMDES
do UNIEDU do Estado de Santa Catarina, no qual foi orientado pela Profa.
Dra. Josiane da Silva Delvan da Silva; a pesquisa foi sendo desenvolvida
desde o segundo semestre de 2019 e finalizada no primeiro semestre de 2022,
é intitulada ‘Atenção e cuidado à primeira Infância: características familiares
no período gestacional, periparto e puerpério’. Desenvolveu como Trabalho
de iniciação científica de conclusão de curso o trabalho intitulado “A expe-
riência de pessoas LGBTQIAP+ em uma penitenciária da região do Vale do
Itajaí - SC”. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/4131496490419106.

Enis Mazucco
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(1995) e mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2001). Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do
Itajaí. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Antropologia,
Psicologia Clínica (Gestalt terapia) e Psicologia Social. Currículo disponível
em: http://lattes.cnpq.br/8498975353903261.
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 275

Gabriela Lira Zanato


Estudante de Psicologia, cursando o 9° período. Realizou Estágio Básico
com Acolhimento de Calouros, Estágio Específico em Práticas Psicotera-
pêuticas na abordagem de Gestalt-terapia. Atualmente realiza Estágio Espe-
cífico com ênfase em Saúde e Integralidade, com Orientação Profissional,
participou da Liga Acadêmica de Saúde Coletiva, e no momento na Liga
Acadêmica de Processos Grupais. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.
br/1142824293367495.

Gleice Barros da Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí. Atua como
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

diretora científica na Liga de Saúde Coletiva da Universidade do Vale do Ita-


jaí. Integrante da Gestão Práxis no Centro Acadêmico de Psicologia Antônio
Giraldi - CAPSY. Participou do Projeto Várias Versões com mulheres em
situação de privação de liberdade no Complexo Penitenciário do Vale do
Itajaí. Já atuou com grupos de mulheres em situação de vulnerabilidade e
violência. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/9734630998618906.

Gustavo Silva Machado


Psicólogo formado na Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista
em Saúde com Ênfase em Urgência e Emergência na modalidade Residência
Multiprofissional em Saúde no Hospital Universitário da UFSC. Mestre e
Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia também
pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor dos Departamentos
de Psicologia e Medicina da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Foi
pesquisador do Laboratório de Psicologia da Saúde, Família e Comunidade
(LABSFAC), como integrante do Grupo de Pesquisa “Psicologia, Cultura
e Saúde Mental”, linha de pesquisa “Violência e Trauma”. É vinculado ao
Núcleo Marges (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero) e ao NEMP-
siC (Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e Culturas). Membro
estudante na Équipe de recherche en paternariat sur la diversité culturelle et
limmigration dans la région de Québec (ÉDIQ - Québec, Canadá). Currículo
disponível em: http://lattes.cnpq.br/7468717265791282.

João Fillipe Horr


Doutor em Psicologia, pela Universidade Federal de Santa Catarina (2022).
Atua como professor nos cursos de Psicologia e Medicina da Universi-
dade do Vale do Itajaí. Tem experiência docente e de tutoria na Residência
Multiprofissional da Atenção Básica (2019-2020). Experiência de pesquisa
sobre violência letal na intimidade e saúde mental. Graduação em Psicologia
(2011) e Mestrado (2015) em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação
276

em Psicologia da UFSC, com ênfase em pesquisas de avaliação de programas


preventivos aos problemas decorrentes do uso de drogas. Tem interesse na
área de Psicologia na interface com a Saúde Coletiva, nas temáticas: imple-
mentação e avaliação de programas e serviços em saúde; dispositivos da
atenção psicossocial e prevenção em saúde mental; construção de políticas e
intervenções em relação aos efeitos psicossociais das violências. Currículo
disponível em: http://lattes.cnpq.br/7233120878512131.

Ketlyn Terres
Psicóloga pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Atualmente cur-
sando especialização multiprofissional em Atenção Psicossocial - CAPS Ita-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


peva pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo/SP. Foi voluntaria no
Ambulatório de Psiquiatria do Programa de Atenção à Saúde Mental Uni-
versitária - ACOLHER. Foi estagiária no Conselho Tutelar e na Secretaria
de Saúde do município de Itapema/SC. Atuou como bolsista do Programa
de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET/Interprofissionalidade. Par-
ticipou como integrante de Equipe Multidisciplinar em duas expedições do
Projeto Extensão “Sérgio Arouca”. Currículo disponível em: http://lattes.
cnpq.br/5321086361834565.

Larissa Pereira de Santana


Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Psicó-
loga da Casa de Acolhimento Santa Paulina (Rede Santa Paulina). Diretora
Científica da Associação Brasileira das Ligas de Saúde da Família (ALASF)
(2021). 1ª Secretária do Conselho Temático da Rede de Atenção Psicossocial
(CT-RAPS). Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/9129475963011825.

Marco Vagnotti
Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (2022).
Atuando como Psicólogo Clínico, atendendo principalmente demandas vol-
tadas à pessoas LGBTQIAPN+. Pesquisador, palestrante e mediador em
grupos de estudos sobre a população trans/travesti. Desenvolve trabalhos
com interesse nas áreas de saúde LGBTQIAPN+, subjetivação e linguagem
nas vivências trans/ travestis. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.
br/1444001017326944.

Maria Vitória Schizzi Tiepo


Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Itajaí em 2019. Especiali-
zação no modelo Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Aten-
ção Primária pela UNIVALI. Mestra em Psicologia Social e Cultura, tendo
enfoque em pesquisas sobre relações estéticas e processos de criação pela
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 277

UFSC- Universidade Federal de Santa Catarina. Atuação como psicóloga


social e psicóloga clínica. Professora de Psicologia na Universidade do Vale
do Itajaí. Áreas de interesse: políticas públicas, arte, cultura, processos de
subjetivação, cidade e saúde da mulher. Currículo disponível em: http://lattes.
cnpq.br/8276232759245334.

Marina Corbetta Benedet


Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (2004) –
CRP12/05148, especialização em Psicopedagogia Escolar e Clínica pela Uni-
versidade da Região de Joinville (Univille) e Instituto Superior de Educação
e Pós-Graduação (ISEPG), especialização em Direitos Humanos, Responsa-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

bilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul, especialização em Gestão de Projetos Culturais (SENAC),
especialização em Antropologia Cultural pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, mestrado (2007) e Doutorado (2013) em Psicologia pela Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (área: relações sociais e constituição do
sujeito, linha de pesquisa: relações éticas, estéticas e processos criativos).
Pós doutora em Direitos Humanos e Direitos Difusos: perspectiva comparada
Brasil e Espanha, pela Faculdade Instituto Rio de Janeiro em convênio com
a Universidad de Salamanca (USAL). Em formação em Sistema Laban-Bar-
tenieff (especialização pela Faculdade Angel Vianna), em Gestão da Saúde
Mental (especialização pelo CENAT). Atualmente é docente-pesquisadora
dos cursos de Psicologia e Medicina da Universidade do Vale do Itajaí (UNI-
VALI), psicóloga clínica e social e bailarina e professora de dança. Sócia-
-fundadora do Instituto Entrelaços (pesquisa, psicologia, assistência, saúde
e educação em equidade de gênero). Currículo disponível em: http://lattes.
cnpq.br/7171154125539566.

Matheus Braciack
Psicólogo graduado pela UNIVALI (2023), sua experiência acadêmica foi vol-
tada para temas como saúde coletiva, neoliberalismo, psicanálise e marxismo.
Coordenou e participou de grupos de estudos e ligas acadêmicas durante este
período, além de ter a experiência de pesquisa e extensão através de projetos
da universidade. Atualmente é pós-graduando em Psicanálise e Análise do
Contemporâneo, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS).

Natália Mueller Jenichen Perboni


Psicóloga, educadora, mestre em Educação, docente na Universidade do Vale
do Itajaí. Coordena o curso de Psicologia, campus Itajaí e o projeto de exten-
são universitária #DR - Discutindo a Relação. Integra a linha de pesquisa
278

Constituição do sujeito, vulnerabilidades e estratégias de enfrentamento, com


pesquisas relacionadas à educação, psicologia educacional, tecnologias na
educação, políticas públicas, promoção de saúde, saúde mental. Membro da
Associação Brasileira do Ensino da Psicologia - ABEP. CRP12/08276. Cur-
rículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/4050813442239135.

Paula Maria Serpa Selene Carvalho


Graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (2022), pós-gra-
duanda em Psicologia Clínica: Terapia Cognitivo Comportamental e também
em Transtorno Do Espectro Autista: Inclusão Escolar E Social pela Uninter.
Atualmente trabalha como Psicóloga Clínica e também Psicóloga na UNIVALI

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


no Núcleo de Acessibilidade.

Paula Natália Ramos


Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Itajaí (2018) e artista cênica
desde 2013. Seus estudos e atuação percorrem a clínica privada, a partir da
teoria Junguiana, concomitante a área de gestão de pessoas, em uma empresa
de comércio exterior. Pesquisa sobre Artistas na região do Vale do Itajaí desde
2016. Diretora-presidente da escola de Teatro AECA (Alunos do Exercício
Cênico Anchieta). Atualmente é a principal mediadora teatral da escola, tendo
como peça em cartaz “O Auto da Compadecida”. Coordena projetos sociais
semestralmente, sempre vinculados ao campo das artes cênicas.

Thayse Elis Salvalagio


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente
é estagiária do Setor de Psicologia do Fórum Comarca de Itajaí na Vara de
Infância e Juventude e Vara da Família. É membra da comissão de eventos
do Centro Acadêmico de Psicologia da Univali - Práxis 2021. Realiza estágio
obrigatório no Centro de Atenção Psicossocial II de Itajaí. Tem experiência
na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia, atuando principalmente
nos seguintes temas: psicologia, direitos humanos e acolhimento. Realizou
Intercambio Universitário para Universidad de Sevilla 2019/01. Currículo
disponível em: http://lattes.cnpq.br/6592931309850295.

Vitoria Nathalia do Nascimento


Psicóloga (CRP 12/18106). Professora do curso de Graduação em Psicologia
da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Doutoranda em Psicologia
Social e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Psicologia da Saúde e
Desenvolvimento Psicológico (2021) e graduada em Psicologia (2019) pela
UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Psicologia, Migrações e
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO, VULNERABILIDADES E ESTRATÉGIAS DE
ENFRENTAMENTO: pesquisa em Psicologia 279

Culturas (NEMPsiC), no qual integra o Grupo de Pesquisa Psicologia, Cul-


tura e Saúde Mental. Compõe a equipe de terapeutas da Clínica Intercultural,
projeto de extensão vinculado ao NEMPsiC. Integra também a Équipe de
recherche en partenariat sur la diversité culturelle et l’immigration dans la
région de Québec (ÉDIQ), Université Laval, Canadá. Realizou um estágio
de pesquisa (2021) nesta mesma universidade pelo Programme des Futurs
Leaders dans les Amérique (PFLA). Tem interesse nas áreas de Psicologia
da Saúde e Psicologia Social Jurídica, nas seguintes temáticas: saúde mental,
psicologia clínica, migrações, violência de Estado e violência conjugal. Cur-
rículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/8366862668115408.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Yasmin Pereira Baldi Da Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí, com ênfase
na abordagem psicanalitica. Atuou como represente discente na gestão 2023,
com enfoque na coletividade e representação de mininorias. Possui experiên-
cia de atendimento clínico com público adulto e atendimento ambulatorial a
pacientes de diversas idades com Doenças Inflamatórias Intestinais.Durante a
graduação demonstra interesse em compreender as diferentes faces de atuação
do psicólogo, se permitindo estágiar na área organizacional e educacional diá-
logando com as questões sociais.Possui como interesse a atuação do psicologo
em contexto social e, em serviços de alta complexidade (hospitalar). Currículo
disponível em: http://lattes.cnpq.br/4523422673297565.

Yuri Eller Verzola


Psicólogo graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
(2014). Especialista em Gestalt Terapia pela Comunidade Gestáltica (2017).
Especialista em Saúde da Família pelo Programa de Residência Multiprofis-
sional em Saúde da Família da Universidade do Estado de Santa Cantarina
e da Prefeitura Municipal de Florianópolis (2018). Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFSC (2021) com a dissertação “Por
uma Bioética Antirracista: análise da literatura bioética brasileira e estadu-
nidense sobre racismo”. Docente do curso de Psicologia da UNIVALI desde
2021. Currículo disponível em: http://lattes.cnpq.br/5277712033589234.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SOBRE O LIVRO
Tiragem: não comercializado
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo em brilho 250 g (capa)

Você também pode gostar