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Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

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Karina Furini da Ponte
Maria de Jesus Morais
(Organizadoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES
E TRABALHO NA AMAZÔNIA
SUL-OCIDENTAL

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagens da Capa: Wirestock/Freepik.com
Revisão: Os Autores

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

T327

Territórios, identidades e trabalho na Amazônia Sul-Ocidental / Karina Furini da Ponte,


Maria de Jesus Morais (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2022.
212 p.

Bibliografia.
ISBN Digital 978-65-251-3316-4
ISBN Físico 978-65-251-3315-7
DOI 10.24824/978652513315.7

1. Geografia 2. Amazônia 3. Território – identidade 4. Trabalho I. Ponte, Karina Furini da, org.
II. Morais, Maria de Jesus, org. III. Título IV. Série

2022-28021 CDD 918.11


CDU 913(8113)
Índice para catálogo sistemático
1. Geografia – Amazônia – 918.11

2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
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Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Sylvio Fausto Gil filho (UFPR)
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Renato Francisco dos Santos Paula (UFG) Venilson Luciano Benigno Fonseca (IFMG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES) Vera Lúcia Caixeta (UFT)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������� 9
Karina Furini da Ponte
Maria de Jesus Morais

METAMORFOSES SOCIOESPACIAIS DE NEGROS E NEGRAS NO


ESTADO DO ACRE: educação escolar e trabalho na correlação entre o
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racismo, preconceito e discriminação������������������������������������������������������������� 13


Ângela Maria Bastos de Albuquerque
Maria de Jesus Morais

AS CONDIÇÕES DE TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS:


caso da Uber Eats e Ifood em Rio Branco (AC)���������������������������������������������� 37
Raquel Lins Brandão
Karina Furini da Ponte

A POLÍTICA ENERGÉTICA PARA A AMAZÔNIA BRASILEIRA NO


CONTEXTO DO “NOVO DESENVOLVIMENTISMO”: caos destrutivo
anunciado em um mundo de “progresso”������������������������������������������������������� 55
José Alves

AS CATEGORIAS GEOGRÁFICAS E OS ESPAÇOS DE VIVÊNCIAS


NO ENSINO DE GEOGRAFIA ESCOLAR, EM RIO BRANCO (AC)��������� 87
Iago Sales de Paula
Lucilene Ferreira de Almeida

CAMPONESES, INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E GRILEIROS EM


LUTA NO CAMPO BRASILEIRO���������������������������������������������������������������� 121
Ariovaldo Umbelino de Oliveira

GEOTECNOLOGIAS APLICADAS NA ANÁLISE DO SANEAMENTO


BÁSICO EM BACIAS HIDROGRÁFICAS URBANAS DE RIO
BRANCO (AC)���������������������������������������������������������������������������������������������� 151
Victor Régio da Silva Bento

ESTUDO DE CASO DA ZONA DE PROCESSAMENTO DE


EXPORTAÇÃO — ZPE/ACRE�������������������������������������������������������������������� 179
Carlos Estevão Ferreira Castelo
Ravela de Souza Marinho

ÍNDICE REMISSIVO����������������������������������������������������������������������������������� 209


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APRESENTAÇÃO
O Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
do Acre (PPGEO) tem a satisfação de apresentar o livro: Territórios, Identi-
dades e Trabalho na Amazônia Sul-Ocidental. A publicação é composta por
capítulos dos professores vinculados ao programa e dos mestrandos egressos
da primeira turma de 2019 a partir das discussões e análises teórico-metodo-
lógicas de suas pesquisas desenvolvidas e defendidas em 2022.
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A proposta da Pós-graduação em Geografia, no âmbito da realidade


socioespacial amazônica acriana, tem como foco a inspiração de promover
campos investigatórios que articulem o alcance científico geográfico aos pro-
blemas sociais; ambientais e econômicos; aos espaços segregados; aos confli-
tos territoriais; à apreensão das lógicas que impactam o bioma regional; entre
outros sujeitos e setores que se visam alcançar, nestes rincões das fronteiras
amazônicas Sul-Ocidental.
Assim, a geografia, no seu ato de pensar, refletir e agir sobre a produção
do espaço abrirá a possibilidade de efetivar ações para compreender a ordem
geopolítica da(s) fronteira(s) em uma apreensão do alcance e utilidade da
pesquisa, como base para instrumentalizar ações reflexivas da realidade em
suas dimensões integrais no âmbito ambiental, econômico, social e cultural.
Portanto, busca-se a apreensão da totalidade socioespacial desta porção sul
da PanAmazônia. Nisto, a Geografia por sua formação multidisciplinar tor-
nará possível adentrar na complexidade dos problemas regionais, produzindo
conhecimentos desde modelo socioprodutivo, até a ordem geoestratégica da
incorporação regional no circuito das articulações econômicas do capital global.
Pelo exposto, tratar da complexidade de efetivar um Programa de Pós-
-graduação em Geografia nesta porção territorial amazônica, nos leva a
entender o conjunto das ações que se podem efetivar por um processo de
formação de pesquisadores nesta área do conhecimento inserido em tal escala
socioespacial. Os alunos de pós-graduação em geografia, porém, deverão ser
capacitados a pensar formas mais eficientes para colocar a práxis do conhe-
cimento geográfico afim de melhor conhecer e transformar a realidade. Ou
seja, em busca de um desenvolvimento regional, local e ambiental ativo para
articular e colocar-se frente aos processos exógenos nacional e internacional
que atingem a região. Além disso, há também ações e experiências que devem
ser dialogadas com os países sul-americano vizinhos que compartilham esses
espaços e necessitam desenvolver conhecimentos que atendam a realidade
local e transfronteiriça.
Para dar conta dessas características, o Programa se estrutura em
duas linhas de pesquisa que subsidiarão a efetivação da referida área de
10

concentração, sendo: Análise da dinâmica socioambiental e Territórios,


identidades e trabalho. Nesse sentido, a publicação do livro Territórios,
Identidades e Trabalho na Amazônia Sul-Ocidental expressa a linha teórica
e área de interesse de pesquisa dos professores vinculados ao Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Acre.
Na linha de pesquisa “Territórios, identidades e trabalho”, as temáticas
centram nas discussões sobre reestruturação produtiva do capital e ordena-
mento territorial; o papel do Estado e impactos no mundo do trabalho; dinâ-
micas territoriais amazônicas, disputas e conflitos pelos bens naturais entre

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capital, trabalhadores urbanos e rurais, camponeses, populações indígenas e
tradicionais; abordagens sobre os conceitos de território, trabalho, identidade,
memória e suas aplicabilidades na perspectiva geográfica; produção agroin-
dustrial, dinâmicas ambientais e laborais; grandes projetos hidroenergéticos,
de integração regional e seus impactos; migração e mobilidade do trabalho;
conflitos territoriais, movimentos sociais e resistências; disputas da construção
identitária; relação entre memória e identidade; relações de disputas em torno
da memória coletiva e das identidades.
Assim, o livro Territórios, Identidades e Trabalho na Amazônia Sul-O-
cidental está estruturado em 6 capítulos que nos oferecem análises, discus-
sões e contribuições sobre a temática da linha de pesquisa do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Acre (PPGEO).
O capítulo 1 “Metamorfoses socioespaciais de negros e negras no
estado do Acre: educação escolar e trabalho na correlação entre racismo
preconceito e discriminação” de autoria de Ângela Maria Bastos de Albu-
querque e de Maria de Jesus Morais traz discussões consubstanciadas nas
proposições da formação socioespacial de Milton Santos que reflete duas
escalas de análise: como negros e negras se veem, ou como são vistos pela
sociedade, e uma outra mais ampla, que discute as políticas afirmativas como
forma de corrigir os erros históricos. Assim, busca correlacionar educação
escolar e trabalho e as condições de racismo, preconceito e discriminação nas
trajetórias de negros e negras na Amazônia acriana.
O capítulo 2 “As condições de trabalho em plataformas digitais: o
caso da Uber Eats e Ifoof em Rio Branco (AC)” de autoria de Raquel Lins
Brandão e Karina Furini da Ponte traz as contribuições a partir da centralidade
do trabalho na sociedade capitalista ao enfatizar o aprofundamento da utiliza-
ção das novas tecnologias no cotidiano do trabalho, o que representa como um
dos mecanismos de degradação ao gerir e comandar a produção e o trabalho,
como nas plataformas digitais e nos aplicativos. Assim, o objetivo desse capí-
tulo é mostrar uma caracterização das empresas Uber Eats e Ifood, grandes
empresas do ramo da Economia do compartilhamento, que se colocam apenas
como mediadoras das relações entre clientes, restaurantes e entregadores,
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 11

quando na verdade empregam um grande número de trabalhadores que são


tidos apenas como “parceiros”, “colaboradores”, e ainda microempreende-
dores. Destacando essa realidade a partir da vivência dos trabalhadores da
cidade de Rio Branco — Acre, mostrando a sua realidade laboral.
Já no capítulo 3 “A política energética para a Amazônia brasileira no
contexto do ‘novo desenvolvimentismo’: caos destrutivo anunciado em
um mundo de ‘progresso’” de autoria de José Alves visa analisar o papel da
Amazônia na política hidroenergética brasileira, passando pelo contexto da
integração regional e enquanto fronteira econômica, bem como a construção
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de grandes projetos hidrelétricos na região. Também se debate como o plane-


jamento governamental, sob o “Novo Desenvolvimentismo” dos Governos do
Presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011 a
2016), colocava a referida região na “corrida por megawatts” e como espaço
privilegiado de apropriação territorial para a reprodução do capital.
O capítulo 4, de Iago Sales de Paula e Lucilene Ferreira de Almeida
intitulado “As categorias geográficas e os espaços de vivências no ensino
de geografia escolar, em Rio Branco (AC)” apresenta os resultados de uma
pesquisa que objetivou investigar como as categorias geográficas são tra-
balhadas pelo professor de Geografia e como os espaços de vivências dos
alunos são considerados neste processo de ensinar e aprender na escola. Para
isso, foram realizadas três frentes de investigação sobre a relação catego-
rias geográficas e espaços de vivência: análise dos documentos norteadores
do ensino de Geografia (Parâmetros Curriculares Nacionais, Base Nacional
Comum Curricular de Geografia da Área de Ciências Humanas e Currículos
de Referência Únicos do Acre); análise da práticas pedagógicas docentes, a
partir de entrevistas e questionários com professores de Geografia de escolas
de Rio Branco (AC); e, análise de livros didáticos de Geografia.
No capítulo 5 “Camponeses, indígenas, quilombolas e grileiros em
luta no campo brasileiro” de Ariovaldo Umbelino de Oliveira traz uma
importante contribuição teórico-metodológica para a compreensão da questão
dos conflitos no campo brasileiro. Para isso, nos oferece um banco de dados
secundários, na forma de gráficos, tabelas e mapas, extraídos na Comissão
Pastoral da Terra (CPT) para caracterizar a situação dos conflitos, posse de
terra, assassinatos, através de uma abordagem histórica, espacial e com ênfase
nos sujeitos que compõe a realidade agrária do Brasil.
O capítulo 6, de Victor Régio da Silva Bento, intitulado “Geotecnologias
aplicadas na análise do saneamento básico em Bacias hidrográficas urba-
nas de Rio Branco (AC)” traça um panorama socioambiental com enfoque
da distribuição desigual das infraestruturas de saneamento básico em bacias
hidrográficas situadas no perímetro urbano da capital acriana. Para tanto, o
autor especifica uma metodologia de estratificação de bacias hidrográficas
12

em softwares de geoprocessamento, compatibilizando essas unidades ter-


ritoriais às bases cartográficas censitárias do IBGE para espacialização dos
indicadores de abastecimento de água, captação de esgoto, coleta de lixo,
drenagem urbana e adequação das moradias. Este mapeamento demonstrou
as desigualdades intraurbanas desses serviços essenciais para a manutenção
das atividades econômicas e do bem-estar da população, indicando as locali-
zações com melhores condições de acesso e de maior escassez do saneamento
básico em Rio Branco.
Então, convidamos os leitores a navegar nas discussões e contribuições

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da geografia acriana trazidas a partir da publicação do livro Territórios, Iden-
tidades e Trabalho na Amazônia Sul-Ocidental.

Karina Furini da Ponte


Maria de Jesus Morais
METAMORFOSES SOCIOESPACIAIS
DE NEGROS E NEGRAS NO
ESTADO DO ACRE: educação escolar
e trabalho na correlação entre o racismo,
preconceito e discriminação1
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Ângela Maria Bastos de Albuquerque2


Maria de Jesus Morais3

Introdução
Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua sociabilidade,
o que inclui a sua cidadania. Mas a conquista, por cada uma vírgula da
consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lembre a
efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no
Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E
esta seria mais uma manifestação para ambiguidade a que nos referimos,
cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu
conteúdo nacional. (SANTOS, 2002, p. 160).

Seria impossível correlacionar o racismo, o preconceito e a discriminação


com as trajetórias escolares e de trabalho sem levar conta as propositivas de
Santos (2002), ao lembrar que a corporeidade se sobrepõe a individualidade
e à cidadania. Quando se trata de analisar questões étnico-raciais negras,
essa delimitação assume maior significado, especialmente pelo destaque que
o próprio Milton Santos (2002) atribui ao corpo do negro, e à cor preta que
torna a pessoa alvo de todos os tipos de depreciações.
As análises das questões étnico-raciais negras nas propostas de Milton
Santos (2002), levam em conta a formação socioespacial a partir de duas
escalas de compreensão: uma setorizada, individualizada, que refletem como
1 Este texto é uma versão resumida do capítulo 04 da dissertação de mestrado: Trajetórias de negros e negras
no estado do acre: das metamorfoses socioespaciais às lutas contemporâneas, de autoria da primeira autora,
orientado pela segunda.
2 Mestra do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Acre, Rio Branco, Acre,
Brasil. Professora em Geografia do Centro de Formação dos Servidores da Secretaria de Educação Estadual
do Acre; angela.mbb.@gmail.com
3 Professora do curso de Geografia e, dos Programas de Pós-Graduação: Mestrado em Geografia e Mestrado
e Doutorado em Letras Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, Rio Branco, Acre, Brasil;
maria.morais@ufac.br.
14

negros e negras se veem, ou como são vistos pela sociedade, e uma outra
mais ampla, que considera o contexto em que a população negra foi inserida,
a nível nacional. Desta forma, o entendimento das questões sobre racismo,
preconceito e discriminação, devem partir de uma compreensão ampliada,
quer dizer, do geral para o particular. No caso do Acre, por exemplo, deve-se
levar em conta a formação socioespacial nacional, em busca de compreender
as questões locais.
Nessa perspectiva, a formação social, e a produção do espaço, são cate-
gorias e processos interdependentes e interligados, formados historicamente e

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espacialmente em conjunto através do movimento. O método de pesquisa em
Milton Santos indica que o conhecimento da realidade do espaço geográfico
deve ser concebido do particular (lugar onde reside o sujeito), à totalidade do
espaço vivido por seus antecessores considerando que cada lugar constitui, na
verdade, uma “fração do espaço total, pois apenas esse espaço total é objeto da
totalidade das relações exercidas em uma sociedade em um dado momento”
(SANTOS, 1985, p. 19).
Nos mais de três séculos de escravização de africanas e africanos no Bra-
sil produziu-se uma infinidade de realidades, tanto pela diversidade de cores
e raças formadas pela três categorias centrais: indígenas, brancos e, pretos,
quanto pela expansão geográfica e cultural brasileira que produziu um leque
de situações tão diversas que podem ser interpretadas em variadas bases do
conhecimento, com materiais de estudos e pesquisas que servem a diversos
tipos de abordagens, desde as geográficas, antropológicas, historiográficas,
sociológicas entre outras vertentes do conhecimento.
A partir dessas concepções, neste capítulo estão assentados os resultados
parciais da pesquisa de Dissertação intitulada: Trajetórias de negros e negras
no Estado do Acre: das metamorfoses socioespaciais às lutas contemporâ-
neas. (ALBUQUERQUE, 2022). Na totalidade da pesquisa foram realizadas
dez entrevistas com negras e negros de nove municípios acreanos que con-
tribuíram em narrar suas trajetórias de lutas e conquistas, até às realidades
contemporâneas experienciadas nos contextos das mudanças socioespaciais.
As entrevistas foram realizadas com cinco negras e cinco negros migrantes
dos municípios de Brasiléia, Bujari, Cruzeiro do Sul, Feijó, Manoel Urbano,
Sena Madureira, Rio Branco e, Xapuri e área rural do município de Porto Acre.
No presente capítulo encontram-se registradas oito das dez entrevistas, e o
principal objetivo perseguido no presente registro foi correlacionar a educação
escolar e trabalho ao racismo, preconceito e discriminação nas trajetórias de
negros e negras na Amazônia acreana. Porém, antes de apresentarmos esses
temas, registramos uma breve consideração sobre como se deu a integração
de negros e negras na sociedade de classe após a proclamação da Lei Áurea,
em fins do século XIX e na primeira metade do século XX.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 15

A integração de negros e negras na sociedade de classe


O caso do Brasil é diverso, já que a nossa história hegemônica sempre
buscou entender as diferenças entre os homens como naturais. Referimo-
-nos à história escrita pelos que mandam e que dela se utilizaram para
conformar mentalidades e perpetuar injustiças. Isso quer dizer que aqui
a conquista exigirá uma luta muito mais tenaz. Para obstáculos maiores,
tenacidade maior. (SANTOS, 2011, p. 182).
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A naturalização da miséria, da pobreza e das condições de penúrias pelos


colonizadores europeus sobre negras e negros escravizados(as) nos mais de
300 anos do regime de servidão contribuiu para perpetuação das injustiças e
conformação das mentalidades até a contemporaneidade. Por esses motivos
Milton Santos (2011, p. 182), conclui que as “lutas contra a miséria e a pobreza
no Brasil exige muito mais tenacidade”. Essa assertiva pode ser confirmada
nos registros de Florestan Fernandes (2008), conforme destacado na repro-
dução do título desta seção ao analisar a complexa situação vivenciada pelos
ex-escravizados no Brasil no período posterior à assinatura da Lei 3.353, de
13 de maio de 1888, que extinguiu a escravidão oficial no Brasil dando início
a outro drama coletivo ao assegurar uma liberdade sem garantias das mínimas
condições de sobrevivências para os negros e negras que se viram livres do
jugo servil oficial, mas presos a uma condição de miserabilidade.
As dificuldades de se encontrar trabalhos ou ocupações como principal
meio de sobrevivência foi analisada por Fernandes (2008) pelo viés da injusta
concorrência entre os negros e negras recém-libertados(as) e, os milhares de
imigrantes que ingressaram no Brasil motivados pela política de substituição
da mão de obra negra escravizada pelo trabalho livre do europeu de cor branca.
A política de embranquecimento e também, de substituição da mão de obra
dos ex-escravizados(as) antecedeu o período da assinatura da Lei Áurea e
foi entendida por Clóvis Moura (1988, p. 65), como complexa e, ao mesmo
tempo contraditória porquanto “da passagem da escravidão para o trabalho
livre, o negro é logrado socialmente, sistematicamente”, apresentado como
incapaz de trabalhar assalariado.
Na concepção de Moura (1988), a implementação daquela política elevou
a ideologia do branqueamento ao máximo grau de eficiência com a coni-
vência do próprio Estado ao beneficiar o grupo de imigrantes europeus de
cor branca, ao mesmo tempo que impunha inúmeros obstáculos à ascensão
social de negras e negros pelas vias da educação e do mercado de trabalho.
As circunstâncias que excluíram ex-escravizados(as) negras e negros das
oportunidades trabalhistas relegara-os à marginalização econômica e social.
Outro ponto, analisado por Fernandes (2008), foi à expansão urbana que
ampliou as desigualdades na concorrência entre uma grande massa de negros
16

e negras a maioria ex-escravizados(as) egressos(as) das lavouras de café e da


cana de açúcar que migraram para as grandes cidades com indeléveis marcas
consideradas indesejáveis na concorrência do mercado de trabalho urbano: ser
ex-escravizado de cor preta, ser analfabeto e, consequentemente ser mantido
na condição de desqualificado para ocupar os postos de trabalho que surgiam
com o gradativo processo de industrialização brasileira4. Nas condições em
que se encontravam negros e negras no período pós-abolicionista foi-se cons-
truindo sobre aquele grupo, uma reputação desabonadora, que iria “bani-los
do mercado urbano de trabalho ou forçá-los(as) a lutar, arduamente, na orla

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das ocupações indesejáveis ou insignificantes” (FERNANDES, 2008, p. 90).
Nos resultados de suas análises sobre aquele nebuloso período, Fernandes
(2008, p. 122), utiliza a terminologia do “déficit negro” como representativa
da “cadeia de ferro que se estabeleceu entre a situação social do negro ou
do mulato e a pauperização”. A constatação do autor aponta que os eleva-
dos níveis de pobreza e miséria a que os ex-escravizados foram submetidos
se agravaram e se perpetuaram na medida em que as precarizações sociais
foram se acumulando, pela ausência de moradia digna, pelas dificuldades de
melhores empregos e renda, que resultaram em uma péssima qualidade de
vida, carência de alimentação com qualidade geradora de variados tipos de
doenças e elevados números de óbitos entre negras e negros.
Essa trajetória urbana, do negro foi descrita por Clóvis Moura (1988,
p. 8), como repleta de “barreiras impeditivas”, para que ele não chegasse
aos postos de comando, nem às profissões socialmente privilegiadas e mais
remuneradas. As dificuldades constatadas por Moura iniciavam-se nas famí-
lias, que desde sua origem, foram mantidas pobres, carentes das necessidades
básicas, além das precárias condições de saúde, e educação de qualidade. As
restrições no mercado de trabalho e nas seleções de emprego, eram apenas
continuidades das dificuldades que negros e negras enfrentavam em conse-
quências dos obstáculos iniciais. Inevitavelmente, tinham que se sujeitar aos
mais baixos salários, aos empregos insalubres, às ocupações autônomas sem
vínculos empregatícios, nem garantias de direitos trabalhistas. Essas eram,
e ainda continua sendo a realidade para maioria desse grupo étnico “durante
todos os dias, meses e anos que representam a vida de um negro” (MOURA,
1988, p. 8).
No âmbito urbano as configurações das exigências recaiam primaria-
mente na necessidade de uma educação que garantisse a progressiva adaptação
ou ajustamento da vida anterior de escravizado(a) nas lavouras em áreas rurais
para a nova realidade nas grandes cidades. Em suas análises Fernandes (2008,

4 A essa lista acrescenta-se as dificuldades relacionadas à aquisição de indumentárias, a ausência de expe-


riência com trabalhos urbanos, além do desconhecimento dos mecanismos de socialização.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 17

p. 50), assegura que “a educação foi colocada como condição número um da


luta do “negro” contra a miséria, o “preconceito de cor” e a desorganização
social. Continua o autor:

Pela instrução, o ‘negro’ não adquire apenas uma via de classificação na


ordem social competitiva. Ele passa a dominar uma perspectiva que lhe
confere a própria capacidade de competir. Os resultados dos estudos de
casos e das entrevistas patenteiam que a educação formal representa um
verdadeiro patamar no desenvolvimento da consciência social no negro e
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no mulato. Ela fornece um novo ponto de partida, que se caracteriza pelo


conhecimento gradual das forças sociais do ambiente e pela percepção
realista dos ajustamentos sociais mais ou menos frutíferos na situação
de contato racial existente. De um lado, ela ‘pode compelir o negro a ter
mais coragem’ e ‘a viver entre os brancos’. De outro, ela ‘abre os olhos
do negro’, estimulando-o a refrear os ressentimentos, a ‘vencer seus recal-
ques’, a ‘compreender que o mundo não se fez num dia’ etc. Em suma,
oferece-lhe um maior domínio sobre si mesmo, condição essencial para
não se colocar nem ser posto à margem na competição com o ‘branco’.
(FERNANDES, 2008, p. 251).

Para além dessas realidades constatadas por Fernandes (2008), destaca


que, ao passo que algumas pessoas negras ascendiam aos mais elevados graus
de escolarização surgiam outras dificuldades indicando que o problema não
se resumia às questões educacionais e socioeconômicas.

em numerosas entrevistas, brancos que toleravam bem a competição com


colegas ‘mulatos’ ou ‘pretos’ declararam que não os convidavam para
visitar suas casas, para saírem juntos, para irem ao cinema etc. Esse con-
junto de restrições castiga severamente os ‘negros’ mais sensíveis. Alguns
acreditam firmemente, até, que ‘é uma mentira afirmar que o negro pode
subir só pela educação e pela profissão’. ‘Depois de educado e de ter com-
petência como profissional é que começa o drama do negro.’ Aí, ‘encontra
todas as portas fechadas pelo branco’. (FERNANDES, 2008, p. 260–261).

A obra de Florestan Fernandes (2008), leva em conta a realidade viven-


ciada por negros e negras na cidade de São Paulo até meados do século XX,
entretanto, diferentes realidades vivenciadas em outros espaços e lugares a
exemplo das comunidades quilombolas, além de outros(as) que continuaram
vivendo nas áreas rurais e, ainda os que viviam e ainda vivem nas florestas a
exemplo da Amazônia acreana tornaram-se gradativamente objetos de estudos
de outros pesquisadores e pesquisadoras principalmente nas últimas décadas
do século XX e nas primeiras do século XXI.
18

Grande parte desses estudos refletem o posicionamento de Florestan


Fernandes (2008, p. 95–96), ao evidenciar que era necessário “reeducar”
a massa de negros e negras e, “prepará-las, emocional, intelectual e moral-
mente”, para a condição de elemento ativo, responsável e atuante. O mesmo
autor constatou que era quase impossível apanhar toda a rede de influências
“psicodinâmicas e sociodinâmicas, desencadeadas imediata ou retardadamente
pelos movimentos reivindicatórios” (FERNANDES, 2008, p. 95).
Com as considerações apresentadas nesta seção fica evidente que a ten-
tativa de integração de negros e negras na sociedade de classe foi inconclusa,

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pois as mazelas identificadas por Florestan Fernandes (2008), Clóvis Moura
(1988), entre outros estudiosos e estudiosas da condição dos ex-escravizados
no pós-abolição permanecem pouco alteradas em pleno início do século XXI.
Enquanto perdurarem as enganosas construções de miscigenação, de raça, e
de racismo como rugosidades no processo da integração de negras e negros
na sociedade de classes no Brasil permanecerão igualmente inalteradas as
possibilidades de transformações dessa realidade.
Isso nos faz lembrar da epígrafe de abertura desta seção, quando Milton
Santos (2011, p. 182) dizia que, no “caso do Brasil é diverso, já que a nossa
história hegemônica sempre buscou entender as diferenças entre os homens
como naturais” e na continuação de suas explanações adverte que esse é o
posicionamento dos que mandam na política, na economia e nas instâncias
de poder e que dela se utilizaram “para conformar mentalidades e perpetuar
injustiças. Isso quer dizer que aqui a conquista exigirá uma luta muito mais
tenaz. Para obstáculos maiores, tenacidade maior” (SANTOS, 2011, p. 182).
Para reafirmar que a realidade detectada por Fernandes (2008), em mea-
dos do século XX, permanece pouco alterada nas primeiras décadas do século
XXI, as pesquisas de Prates et al (2021), detectaram a permanência das desi-
gualdades ocupacionais entre negros e brancos, com ênfase nas diferenças
de gênero, comprovando que há maiores dificuldades entre mulheres negras
em comparação às mulheres brancas, e, homens negros, na luta pela ascen-
são educacional e socioeconômica. Em seus resultados, Prates, et al (2021)
aponta que, a essas desigualdades, combinam-se numa espécie de conjunto dos
mecanismos de discriminação que operam no cotidiano das relações sociais,
“afetando a competitividade das pessoas negras no mercado de trabalho de
variadas formas (estratificação ocupacional, mobilidade social, retornos na
renda)” (PRATES et al 2021, p. 12).
Pelo exposto, não é possível compreender os resultados das antigas e
recentes pesquisas sobre oportunidades educacionais, e, ocupacionais empre-
gatícias, se, desconsiderarmos os efeitos do racismo, do preconceito e, da
discriminação incidida sobre negros e negras desde o período inicial do pós-
-abolicionismo até as primeiras décadas do século XXI.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 19

Na lente teórica de Achille Mbembe, (2014, p. 295), a exclusão, a dis-


criminação e a selecção em nome da raça permanecem, aliás, factores estru-
turantes — ainda que muitas vezes negados” em relação à desigualdade, à
ausência de direitos e à dominação contemporânea.
Ainda que já tenham se passado mais de 123 anos, desde a assinatura da
Lei Áurea, em 1888, “não podemos fingir que a escravatura e a colonização
não existiram ou que as heranças desta triste época foram totalmente liqui-
dadas” (MBEMBE, (2014, p. 295).
Portanto, as tentativas de integração de negros e negras na sociedade de
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classe não surtiram efeitos plenamente desejados reverberando na condição de


pauperização de negros e negras em todas as regiões brasileiras, e na Amazô-
nia acreana não foi diferente conforme explicitado nos registros a seguir, do
qual apresentamos inicialmente uma breve apresentação das negras e negros
entrevistados no Acre, e os resultados das análises de suas contribuições.

Estratégias metodológicas: contribuintes da pesquisa: pessoas


negras e negros efetivamente entrevistados(as)
A centralidade da técnica reúne as categorias internas e externas, permi-
tindo empiricamente assimilar coerência externa e coerência interna. A téc-
nica deve ser vista sob um tríplice aspecto: como reveladora da produção
histórica da realidade; como inspiradora de um método unitário (afastando
os dualismos e as ambiguidades) como garantia da conquista do futuro,
desde que não nos deixemos ofuscar pelas técnicas particulares, e sejamos
guiados, em nosso método, pelo fenómeno técnico visto filosoficamente,
isto é, como um todo. (SANTOS, 2006, p. 13).

Diante da amplitude e multiplicidades de realidades encontradas no


campo empírico, pela impossibilidade de abordar todos os problemas decor-
rentes dessas realidades, foi necessário aplicar as orientações contidas nessa
epígrafe de Milton Santos por estabelecer categorias de análises que permitis-
sem assimilar as coerências, e contradições nas narrativas gentilmente pres-
tadas pelas negras e negros, que contribuíram com suas histórias de vidas, ao
narrarem suas trajetórias, e metamorfoses socioespaciais no Acre. Na realidade
mencionada por Santos (2011, p. 63), “o conhecimento empírico da simulta-
neidade dos eventos e o entendimento de sua significação interdependente são
um fator determinante da realização histórica”. O fato de a geografia ter se
interessado no passado mais pelas formas das coisas do que por sua formação
levou Milton Santos a realçar essas necessidades nas pesquisas socioespaciais.
Com essa propositiva em foco, no Quadro 1, apresentamos um breve perfil
das pessoas negras que foram entrevistadas e registradas no presente trabalho.
20

Quadro 1 – Deslocamentos por grau de parentesco – local de origem


e destino dos entrevistados
Entrevistados(as) Parente ancestral Ano de chegada Origem Destino
Edson Darlindo Pai 1965 Maranhão Tarauacá
João Divino Avós 1898 Ceará Sena Madureira
Silmara Brasil Avó 19285 Brasiléia Brasiléia
Flávio Oliveira Pai 1951 Piauí Rio Branco
Dercy Teles Avó 1940 Piauí Xapuri

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Franco Mendes Pais 1944 Paraíba Manoel Urbano
Isaac Melo Pais 1943 Rio Grande do Norte Xapuri
Ana Xavier Pai 1943 Ceará Rio Branco

Fonte: Construído pela autora da dissertação.

O senhor Edson Darlindo informou que não foi soldado da borracha


porque nasceu no Maranhão em 1943, e só tinha direito de ser identificado
como soldado da borracha, quem nasceu antes de 1933. Migrou em direção
ao Acre, juntamente com um dos seus três irmãos no dia 5 de fevereiro de
1965, com destino ao seringal chamado Ave, no rio Gregório, onde desem-
barcou em 13 de março de 1965, aos 22 anos de idade, juntamente com seu
irmão Toinho Darlindo, 21 anos de idade, no município de Tarauacá. Seu pai,
entretanto, preferiu migrar para o estado do Pará em 1964. Após chegar no
Acre, e, transitar entre Tarauacá e Cruzeiro do Sul, Edson Darlindo casou-se
com Leda Tamires, uma acreana de cor branca, nascida Tarauacá, no ano de
1971 e teve duas filhas dessa união matrimonial.
No caso do senhor João Divino, seu avô e sua avó eram cearenses e,
apesar de não se lembrar do ano exato que migraram para o Acre, é possível
compreender que foi entre o final do século XIX e início do século XX, por-
que chegaram no Acre, ainda jovens e, construíram família no Acre, com 6
filhos e 1 filha, que era a mãe do senhor João Divino, então, naquela época
(1933) ele já era parte da terceira geração dos ancestrais, que migraram para
cortar seringa em Sena Madureira. Pelo fato de seu pai ter falecido, enquanto
ainda era criança, (1935), quando João Divino tinha 2 anos de idade, por
esse motivo foi criado por sua avó, que em sua adolescência o entregou aos
seus tios que moravam no Seringal Oriente, onde aprendeu a cortar seringa,
posteriormente mudou-se para outros seringais de nome: Macauã e Campo
Osório no rio Iaco todos no município de Sena Madureira.
A outra entrevistada, identificada como Silmara Brasil reside no bairro
Calafate, na cidade de Rio Branco, com sua filha única de 10 anos de idade e

5 1928 foi o ano de nascimento de dona Isaura no município de Brasileia no Acre.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 21

trabalha como Secretária para se sustentar e pelo menos três vezes por semana
atua como escriturária no Coletivo de Mulheres Negras na cidade de Rio
Branco, no Acre. Sua avó chamava-se Dona Isaura nasceu em 1928 no Acre,
e, teve 11 filhos(as) com mais de quatro pais diferentes, o que resultou em
variadas cores, Ela também trabalhou no corte da seringa, no Seringal Nazaré
e, posteriormente, mudou-se para a cidade de Brasileia. Dona Isaura era dona
das terras, onde residia por tê-las herdadas de um dos seus tios que decidiu
morar na cidade de Rio Branco. O local desse antigo seringal foi transformado
no atual bairro Samaúma II, na cidade de Brasiléia, onde ainda residem três
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filhos de dona Isaura, incluindo a mãe de Silmara Brasil, enquanto os outros


venderam as partes que lhes cabiam da herança de terras e migraram para
outros municípios do Acre.
O perfil do outro entrevistado, o senhor Flavio Oliveira encontra-se na
quarta linha do Quadro 1, após sua aposentadoria passou a residir com sua
esposa em uma colônia no município de Bujari, entretanto, permanece tam-
bém com sua residência na cidade de Rio Branco, no bairro Tucumã, onde
juntamente com sua esposa e sua filha me concederam a entrevista no dia 11
de agosto de 2021. A exemplo, de outras duas pessoas negras entrevistadas,
senhor Flávio Oliveira é acreano, nascido no ano de 1958.
Seu pai Elias Rosendo chegou no Acre em 1951 para cortar seringa,
e, no período de 1967 até 1975, separou de sua primeira esposa, na década
de 1980, quando foi morar em Brasiléia, mas, seus filhos, continuaram resi-
dindo com a mãe, na Colônia Custódio Freire, no ramal da castanheira, que
na época era área rural do município de Rio Branco. Após 1975, a mãe de
senhor Flávio Oliveira vendeu a colônia e migrou, inicialmente para cidade de
Rio Branco, junto com os filhos(as) onde passou a residir na Avenida Getúlio
Vargas. Senhor Flávio Oliveira casou-se com Dona Sofia em 1979, teve três
filhos(as), um homem e duas mulheres, sua filha mais velha e seu filho já são
casados e, até a ocasião da entrevista, tinham três netos: dois homens e duas
mulheres. O senhor Elias Rosendo faleceu no dia 8 de janeiro de 2018, com
94 anos de idade, e, a mãe do senhor Flávio Oliveira, faleceu em 16 de julho
de 2020 aos 87 anos de idade.
A quinta pessoa negra entrevistada e registrada no Quadro 1, foi Dercy
Teles Carvalho Cunha, moradora e trabalhadora rural do município de Xapuri.
A entrevista foi realizada no dia 13 de agosto de 2021 na residência de uma de
suas irmãs, no bairro Nova Esperança na cidade de Rio Branco. Sua mãe era
acreana e seu pai era negro piauiense, do município de Regeneração, e, migrou
para o Acre na década de 1940, no período da Segunda Guerra Mundial. Pri-
meiro veio o pai dele, avô da entrevistada Dercy, no início da década de 1940.
Ele foi dono do Seringal Humaitá no município de Xapuri. Ao se estabilizar
retornou ao Piauí para buscar sua família, esposa e filhos que já eram rapazes
22

para lhe auxiliar no corte na Seringa. Com o tempo, dois retornaram ao Piauí
enquanto os outros dois permaneceram com a família em Xapuri.
Na ocasião da morte de seu pai, em 1 de novembro de 1974, Dercy tinha
20 anos de idade e a família residia no Seringal Boa Vista, onde Ela reside até
o dia em que concedeu essa entrevista. Os descendentes de seu pai, residem
nesse mesmo local até a atualidade. Somente seu irmão caçula, nasceu neste
seringal, todos os outros irmãos nasceram no Seringal Humaitá e chegaram
criança no seringal Boa Vista.
A sexta pessoa entrevistada foi um senhor negro de nome Franco Men-

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des, que tem 64 anos de idade, residente do Bairro Jorge Lavocat, na cidade
de Rio Branco, seus pais (pai e mãe) migraram do estado da Paraíba para o
Acre, em 1944. A trajetória inicial de seus pais passou primeiro em Belém e,
posteriormente foi transferido, por seus próprios patrões seringalistas para o
Rio Moaco, localizado no Amazonas, onde encontravam-se outros seringais,
nas proximidades de Manuel Urbano. Nas suas palavras, o Rio Moaco atual-
mente (2021), está completamente desabitado, mas antes era um lugar bastante
movimentado pelas populações que residiam nos seringais de nome: “Toma
jeito, Sossego, Terra nova, Pauzinho” entre outros, todos na beira do Rio
Moaco, na década de 1950, os grandes proprietários da época eram da família
Said, eram turcos que até hoje seus descendentes familiares residem no Acre.
O senhor Franco Mendes e seus três irmãos, nasceram nesse Rio Moaco
e migraram para Rio Branco, pelo período de um ano e seis meses, quando
Ele tinha doze anos de idade. Posteriormente, retornaram novamente para os
seringais no município de Feijó, vindo a retornar para a cidade de Rio Branco
em 1988, com objetivo de servir ao exército, período que se casou e teve três
filhos. Anos depois, se separou de sua primeira esposa, mães de seus filhos,
casando-se novamente com sua atual esposa. Dois dos seus irmãos, faleceram,
um em Manuel Urbano e outro faleceu em Boca do Acre, apenas uma irmã
ainda é viva, mora no município de Senador Guiomard.
A sétima entrevista foi realizada na residência do Senhor Isac Melo, no
dia 21 de agosto de 2021. Isac Melo é acreano, nascido no dia 10 de maio de
1953, na maternidade Barbara Heliodora, no centro da cidade de Rio Branco.
Seus pais migraram para cidade de Rio Branco em 23 de março de 1943, com
duas filhas, o nome de seu pai era João Felipe de Melo, era negro, cearense,
sua mãe Maria Anastácia de Melo era de cor branca, Tiveram seis filhos no
total, quatro homens e duas mulheres. Seus pais migraram da cidade de Angico
no Ceará, em suas palavras, após uma fatídica viagem de navio que saiu de
Mossoró, no Rio Grande do Norte Apontou em Belém e seguiu para Santa-
rém, Manaus, Boca do Acre onde esperou o rio encher e partiu para o Acre.
Finalmente a última entrevistada foi Ana Xavier, uma antiga colega
de trabalho, seu pai migrou do Ceará em 1943 para trabalhar no Seringal
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 23

Apolônio Sales, no município de Rio Branco. Entretanto após se casar, Ana


mudou-se para o bairro Xavier Maia, também na cidade de Rio Branco, onde
reside até a contemporaneidade.
Esse foi um breve perfil das origens ancestrais de cada pessoa negra
entrevistada. O fator em comum em todas as trajetórias, fica por conta da
migração dos estados do nordeste, motivada pelo trabalho no corte da seringa,
quer seja antes, durante, ou após a Segunda Guerra Mundial. Nos registros
seguintes, estão assentados os resultados das análises das entrevistas gentil-
mente prestadas pelas negras e negros no Acre.
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A educação escolar, e o trabalho, de negros e negras no Acre na


correlação entre o racismo, preconceito e discriminação
A desigualdade social é um acesso desigual para pessoas ou grupos sociais
aos bens materiais e simbólicos na sociedade. A produção da desigualdade
pode ser entendida como uma combinação de fatores que criam barreiras e
impedem seletivamente os atores sociais da obtenção desses bens materiais
e simbólicos. (NASCIMENTO, 2007, p. 85).

A maior evidência identificada na presente pesquisa indica que as desi-


gualdades de oportunidades educacionais e trabalhista foram/são tão maiores
quanto mais longe adentramos nas espacialidades e temporalidades em que
viveram negras e negros nas primeiras décadas do século XX, tanto no Acre,
quanto em seus estados de origem. Conforme a epígrafe de Nascimento (2007,
p. 85), as desigualdades são resultados de “uma combinação de barreiras” que
impediram e ainda impedem o acesso e/ou a permanência de negros e negras
na trajetória escolar, e consequentemente na ascensão do mercado de trabalho.
Ao buscar compreender essa realidade, registramos e analisamos, como
se deram as oportunidades de escolarização e trabalho de negras e negros no
Acre, levando em consideração o contexto migratório dos primeiros ingres-
santes em cada família, suas trajetórias e metamorfoses na perspectiva do
acesso, permanência e, ascensão na trajetória escolar de seus descendentes.
Para citar um típico exemplo que pode ser traduzido como a realidade vivida
pela maioria das negras e negros nas décadas de 1930 em diante (que foi o
período alcançado na presente pesquisa6), quando o primeiro homem negro
entrevistado, o Senhor Edson Darlindo lembra que estudava pelo interior do
Maranhão ao dizer o seguinte:

6 A pessoa entrevistada mais idosa foi o senhor João de Divino que nasceu em 1933.
24

Eu estudei lá pelo interior, mas era meu pai [que] pagava aquelas pro-
fessorinhas7 do interior do Maranhão, que estudava até o 4ª ano, aí ele
pagava para me ensinar [para eu] aprender, porque quando eu fui pra
escola, eu já tinha quatorze anos de idade. Infelizmente eu nunca tive o
direito de sentar no banco de escola, estudava assim mesmo, passava 2
meses ai bora trabalhar no roçado. Aí, com um ano voltava na escola de
novo passava 2 meses ou 3 meses aí [ele me] tirava de novo, era assim,
meu estudo foi sempre assim. (Entrevista com Senhor Edson Darlindo
em 3 de setembro de 2020).

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Fica evidente nessa narrativa que quanto mais longe se busca nas memó-
rias de negras e negros, quanto mais se percebe as minguadas oportunidades de
escolarização formal ou a ausência delas diante da necessidade de obtenção do
sustento pelo trabalho iniciado na infância, sem margens ou espaços de tempos
para as práticas das atividades escolares. O conjunto de fatores produtores das
desigualdades lembrados por Nascimento (2007), aqui estão representados
pelas dificuldades socioeconômicas da família que impõe aos filhos menores
desde a tenra idade até a fase adulta a necessidade de trabalhar para auxiliar
no orçamento doméstico. Nesse contexto a escola faz pouco sentido diante
da emergência do trabalho na garantia do sustento.
Entre as dificuldades em assimilar o trabalho no corte da seringa no Acre,
senhor Edson Darlindo atuou ao menos dois anos no corte de madeiras para o
Exército em Cruzeiro do Sul, em persistindo as dificuldades, no ano de 1971
resolveu migrar para os garimpos no Estado do Pará onde já se encontravam
seus pais e seus irmãos. Foi nessa ocasião que, ao final da entrevista, sua
esposa, de cor branca motivada por sua filha negra confirmou que foi rejeitada
pela família do senhor Edson Darlindo, pelo fato de ela ser branca e toda a
família do senhor Edson Darlindo ser de cor preta. Apesar de se expressar
com bastante facilidade e detalhar cada fato narrado em sua trajetória de vida,
fica evidente que o senhor Edson Darlindo se esquivou de se expressar sobre
eventuais situações racistas, e preconceituosas em sua vida. Isso ficou mais
evidenciado no momento, após a entrevista, quando sua filha em particular
disse o seguinte:

Quando nós éramos pequenas e estávamos na casa do meu avô, na Pales-


tina, [no estado do Pará], a mãe ouviu do meu avô, quando ele chamou
meu pai pra num canto da casa e disse: — você com essa mulher doente,
por que você foi casar com essa branca! Se essa mulher morrer aqui, a
família dela vem atrás da gente. Era uma situação constrangedora, que
eram de longe, que ela era branca, que meu avô era de uma região do

7 A transcrição foi realizada de acordo com as narrativas originais.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 25

Jalapão. Meu pai já era nascido no Maranhão, mas as origens eram no


Jalapão, dentro do Tocantins, que era uma região, tipo quilombola, eu não
sei como é que chama, mas é mais ou menos isso. Eles tinham essa ideia
ainda, aí minha mãe estava doente lá, e, escutou quando meu avô falou
isso para o meu pai. (Entrevista com Leidiane Tamires, Filha do senhor
Edson Darlindo e Leda Tamires).

Essa é uma situação em que as marcas da discriminação e do racismo são


tão fortes ao ponto da família do Senhor Edson Darlindo utilizar essa estra-
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tégia de defesa ao antever a uma possibilidade de serem acusados em conse-


quência de um possível óbito da mulher branca, que poderia ser revertida em
acusações de assassinato, simplesmente por Ela se encontrar em uma família
de negros(as) que supostamente seriam estranha à mulher que se encontrava
em situação patológica. Na prática, aquela família de pessoas negras estavam
se precavendo das práticas racistas que sempre revertem a culpabilidade dos
sinistros às pessoas negras, especialmente quando as vítimas são pessoas de
cor brancas. Aquela situação era o resultado dos longos anos de convivências
com práticas racistas, discriminatórias e preconceituosas e a família buscava
se defender de uma possível acusação pelo eventual óbito da mulher branca
que temporariamente residia em sua casa.
Quanto aos casos de racismo em sua trajetória, senhor Edson Darlindo
disse que não tinha problemas com expressões racistas, mas pelo menos por
duas vezes foi identificado como “moreno” e chamou a atenção da pessoa por
dizer que seu nome não era moreno e que ele na verdade era negro mesmo,
mas, mesmo sendo negro, tinha nome e gostaria de ser identificado por seu
nome. Mesmo assim, em suas narrativas essas situações são minimizadas
conforme o registro de sua fala abaixo:

Mas antigamente tinha um negócio de chamar a gente pelo apelido de


moreno. Mas eles diziam assim na simplicidade, para eles eram tão sim-
ples aquilo, que eu, não ligava, mas teve umas duas vezes que um cara me
chamou de moreno, e eu não gostei, aí eu falei, que não sou moreno, sou
negro e negro também tem nome, você não sabe meu nome? Meu nome
é Edson Darlindo, então me chame de Edson! E a maneira que a pessoa
fala, à forma que a pessoa fala é que tem muita diferença. (Entrevista com
Senhor Edson Darlindo em 3 de setembro de 2020).

Em outra entrevista com o senhor Isac Melo, também foi possível identi-
ficar uma atenuação do racismo ao mencionar que sua mãe não era uma pessoa
negra de cor fechada, era mais clara do que seu pai, além de comentar que as
gerações estão sujeitas a miscigenação. “Já fui muito chamado de nego do
cabelo duro, mas quando a gente é criança isso fica por lá mesmo, a gente às
26

vezes achava até carinhoso, ser chamado de neguinho, era neguinho pra lá, era
neguinho pra cá”, em suas palavras não vale a pena ir para o enfrentamento
com pessoas racistas. Ao tentar explicar as uniões entre homens negros e
mulheres brancas e entre homens brancos com mulheres negras, senhor Isac
Melo compreende que “isso é parte da seleção natural em que cada pessoa
quer o melhor pra si”, justifica, entretanto, que isso não tem nada a ver com
as teorias darwinistas em que supostamente haveria uma evolução das raças
pela dominação dos grupos étnicos considerados inferiores, pelos conside-
rados superiores.

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Essa foi a segunda narrativa que trouxe a união entre negros e brancas
como elemento característico da existência do preconceito do próprio negro
contra si mesmo. A primeira foi com a família do senhor Flávio Oliveira ao
mencionar que o negro não se aceita como negro, e, precisa casar-se com uma
pessoa branca. Uma questão que poderia ser levantada nessas duas narrativas
seria tentar compreender o outro lado, quer dizer: porque pessoas brancas
casam-se com pessoas negras em todos os níveis e classes sociais? Que fato-
res estão envolvidos nas uniões mescladas entre as cores pretas e brancas?
Em todas as narrativas os comentários e posicionamentos discutem apenas o
lado da pessoa negra, que na primeira narrativa é considerada preconceituosa
consigo mesmo, e na segunda, leva em conta interesses do que o senhor Isac
Melo considera como “estando em busca de algo melhor”. Se o melhor para
o negro é casar-se com uma pessoa branca? O que seria então o melhor para
a pessoa branca que se casa com a pessoa negra? Pelo menos na presente
pesquisa não houve nenhum posicionamento nessa direção.
Essas discussões fazem parte do cotidiano não apenas no Acre, mas, na
maioria dos estados brasileiros. Porém, essas narrativas não são determinantes
na implementação de reais mudanças relacionadas à justiça social e equidade
de direitos. A superação do racismo passa pela discussão de políticas públicas
que levam em conta a aplicabilidade de legislações antirracistas, além de
práticas educacionais que respeitem as diferenças, que estimulem a empatia
na promoção de discussões sobre as estruturas de manutenção do racismo,
do preconceito e da discriminação.
Ao destacarem as diferenças entre negros e negras brasileiros, com a
comunidade negra americana, Domingues e Asinelli-Luz (2021) compreen-
dem que, aqui no Brasil,

não possuímos a lógica do ‘one-drop rule’, que define as pessoas pelas


suas ancestralidades e as categoriza em grupos já estabelecidos. Por aqui
possuímos as relações de cor. Por aqui, possuímos a imagem e a percep-
ção do outro a respeito das pessoas negras e de seus descendentes. Cabe
a sociedade perceber que movimentos como o intitulado ‘Black Lives
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 27

Matter’ não são uma oposição ou a negação de que “vidas brancas impor-
tam”. Todas as vidas importam. O que nos cabe lembrar é que a população
vulnerável necessita de condições que permitam igualar-se ao restante da
sociedade, sem expor-se a violência que por vezes determina aqueles que
podem ou não sobreviver em função de sua cor de pele. (DOMINGUES;
ASINELLI-LUZ, 2021, p. 163, 164).

As construções sociais e as realidades sobre negras e negros apresentam


características distintas, a depender do lugar onde as relações foram estabele-
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cidas. Em que pese os efeitos danosos que o mito da democracia racial trouxe
para comunidade negra brasileira, não há espaços para divisões na luta contra
o racismo, pessoas de todas as cores e origens devem se posicionar contra
esse mal, não apenas ao lado de negras e negros, mas, também contra todas
as formas de preconceitos e discriminações, independentemente da cor/raça
ou origem das pessoas.
A entrevista com a família do senhor Flávio Oliveira foi concluída com
a fala da esposa, mencionando que,

O próprio IBGE te põe numa situação difícil, quando impõe aquela coisa:
você é preto, branco ou pardo? Existe essa cor parda? Não existe essa cor
parda. Quando eles vêm me perguntar eu ponho lá que eu sou negra porque
parda não existe. Na verdade é uma aceitação da sua origem […]. Nem
concordo com essa questão do indígena porque indígena não é cor […].
(Entrevista com Flávio Oliveira e família, no dia 11 de agosto de 2021).

Em todos esses posicionamentos há que se levar em conta o seguinte: a


entrevista foi realizada com descendentes de um senhor negro, casado com
uma mulher de cor branca, em que tanto seus filhos quanto seus netos(as)
apresentam fenotípico mais aproximado da cor branca, apesar de o senhor
Flávio Oliveira mencionar situações típicas de racismo em seu local de traba-
lho e sua esposa se autodeclarar negra, sua filha que apresenta a mesma cor,
se autodeclara de cor branca, apesar de expressar a opinião que seu cabelo é
“ruim”, segundo suas próprias palavras.
Na entrevista com Dercy Teles, ao narrar seus posicionamentos sobre
questões racistas. Para Ela, sempre houve racismo, e, muito mais forte no
passado que hoje. Em suas lembranças narra a maneira que o seringueiro era
visto pela sociedade de forma pejorativa. Destaca em sua fala os chinelos
usados pelos seringueiros que eram feitos de borracha da própria seringa
extraída por eles. Ao ser indagada sobre a cor dos seringueiros na década de
1981, Ela menciona os diversos tipos de fenotípicos de negros, de cabelos
encaracolados, negros de cabelos ondulados, tinha negros de cabelos lisos,
28

mas, “os mais discriminados eram negros que tinham cabelo, que chamavam
de pixaim, cabelo que não molha, que a água bate, e desce, e, o cabelo fica
seco” (Entrevista com Dercy Teles em 13 de agosto de 2021).
Sobre suas lembranças das festas de São Sebastião, padroeiro da cidade
de Xapuri, que é comemorada no dia 20 de janeiro, Dercy Teles menciona o
que fora descrito por Milton Santos quando identificou na USP, “os olhares
enviesados”8 quando a pessoa negra alcança os níveis mais elevados na pro-
fissão. Esse tipo de “olhares enviesados”9 eram sentidos por Dercy, quando as
crianças e adolescentes da cidade de Xapuri davam cotoco de dedo, xingavam

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e diziam que sua família era índios, porque só iam na cidade uma vez por ano,
nas comemorações religiosas de São Sebastião.
Desde a primeira vez que as questões sobre racismo tomam a pauta da
conversa, nota-se que há uma ligeira confusão não apenas nas declarações de
Dercy, como também nas narrativas da família do senhor Flávio de Oliveira,
ao mencionar problemas e conflitos socioeconômicos, com questões raciais.
Na primeira menção de Dercy, o foco centrou-se nas condições financeiras em
que as sandálias dos seringueiros eram feitas em casa com a própria borracha
de seringa, na segunda menciona a rejeição social pelas crianças e adolescentes
da cidade pelo fato de morarem na colônia, e, não terem contatos regulares
com a vida da cidade. Com exceção de suas lembranças sobre negros e negras
de cabelo encaracolados, ondulados e “pixaim”, todas as outras menções
referem-se às questões relacionadas à discriminação socioeconômica, sem
referências ao fenotípico racial de origem negra.
Na semana seguinte à entrevista com Dercy, em uma conversa informal a
mesma permitiu gravar uma narrativa de outra situação, da qual havia viven-
ciado na década de [19]80, quando assumiu a presidência do Sindicato de
Trabalhadores Rurais de Xapuri. Logo no início de sua gestão, quando uma de
suas amigas encontrou com o contribuinte sindical de nome William Souza10
que questionou se era realmente verdade que dona Dercy havia ganhado
novamente a eleição de presidente do sindicato? Ao mencionar, que ela era
uma negra muito perigosa, que havia enriquecido no período de Presidenta
do sindicato pela primeira vez, na década de 1981. Esse fato é narrado por
Dercy Teles da seguinte forma:

8 Esses registros estão no contexto de sua palestra quando disse: “Ser negro no Brasil é, pois, com frequ-
ência, ser objeto de um olhar enviesado. A Chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar
pré-determinado, lá embaixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo
haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver subido na vida”. (SANTOS, 2002, p. 160).
9 Idem.
10 Nome fictício.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 29

Logo que aconteceu a eleição do sindicato em 2006, que nós éramos opo-
sição e eu era presidente. Ai um cidadão que se chama [Willian Souza]
encontrou uma colega minha na rua e perguntou:
— É verdade que aquela negra ganhou a eleição do sindicato? Tem que
tomar cuidado porque aquela negra é muito perigosa, quando ela foi Pre-
sidente do Sindicato pela primeira vez, nos anos [19]80, ela enricou o
ex-marido dela, aquela negra é perigosa, a gente tem que tomar muito
cuidado com ela.
Depois minha amiga me contou e eu perguntei-lhe:
— Você confirmaria o que você está [me] dizendo na presença dele? Ela
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disse que sim, por que,


— O que eu estou falando, foi o que Ele me disse. Eu disse:
— No dia que ele vier no sindicado falo com ele. Infelizmente passaram-se
dois anos e no dia que Ele entrou no sindicato, Ela não estava, mas eu o
chamei numa sala em particular e perguntei-lhe:
— Olhe seu [Willian Souza] eu lhe chamei aqui porque eu soube que o
senhor me chamou de negra e disse que eu enriquei o meu ex-marido,
quando eu fui presidente do sindicato nos anos [19]80. O senhor me fez
duas acusações extremamente grave: primeiro o senhor me chamou de
negra, que é uma discriminação, por que eu sou negra com muita honra,
mas eu tenho o registro de nascimento, que me dá um nome de Dercy e
segundo o senhor me acusou de ladrona, por que quando o senhor diz que
eu enriquei meu marido, o que não é verdade, por que até hoje, depois de
tantos anos que se passaram ele ainda não é rico, o senhor me acusou de
ladrona e eu quero dizer pro senhor o seguinte:
— Que eu nunca roubei, não enriquei e, negra eu sou, negra com muita
honra e eu só quero lhe avisar que eu poderia processar o senhor por inju-
rias e calunias e por discriminação. Eu como negra poderia lhe processar
por discriminação. (Entrevista com Dercy Teles em 13 de agosto de 2021).

Quando teve oportunidade de se encontrar com seu acusador, cerca de


dois anos após o fato, nota-se que Dercy chamou seu incriminador em par-
ticular e o lembrou das duas acusações da qual teve conhecimento por outra
pessoa, o que ele não negou, mas ouviu calado a defesa de Dercy ao mencionar
que, “para acusar uma pessoa tinha que ter provas” e que ela não era ladra e
que era realmente negra, mas tinha nome e que identificar uma pessoa como
negra nas condições que o fez, associando a uma pessoa desonesta, e, lembrou
que o que ele fez era uma discriminação e que nem ela nem sua família havia
ficado rica, e, que ele havia cometido duas falhas muito grave, acusando-a de
ladrona com o pejorativo da expressão negra ladrona do sindicato. O resultado
nas palavras de Dercy foi que o homem chegava a tremer o bigode, porque
não tinha nenhum argumento e lamentava pegar uma chamada daquela de
uma mulher, coisa que nunca tinha ouvido de nenhum homem.
30

Em outra entrevista com o senhor Franco Mendes, também ficou a


impressão que não havia uma elevada preocupação com conflitos racistas.
Mencionou que não vale a pena se preocupar, quando sofre racismo, pois,
em suas palavras o negro deve assumir que é negro “se uma pessoa branca
lhe chama de negro, negrinho ou negão não tem problema, porque a gente é
negro mesmo, a gente tem que assumir que é negro”. Apesar de mencionar
que passou e ainda passa por várias situações racistas, se esquiva de entrar em
detalhes e expressa uma narrativa generalista e superficial ao dizer que sua
mãe chegou a ir algumas vezes na escola para resolver situações envolvendo

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ofensas de colegas que eram racistas, e, as professoras diziam que ia resolver,
mas nada era efetivamente feito para sanar o problema e ficava tudo do mesmo
jeito. Sua atitude demonstra relevante teor de resignação diante de todas as
situações racistas que já enfrentou por mencionar, que esse problema sempre
existiu e sempre vai existir.
As dificuldades enfrentadas na escola pela entrevistada Ana Xavier, eram
concentradas nas práticas racistas sobre seus cabelos, quando seus colegas
chamavam de cabelo de bombril. Ela menciona sua insatisfação e desgosto
de frequentar a escola por causa da discriminação e do preconceito racial
por causa do seu cabelo. Várias vezes, Ana Xavier saia correndo da escola
pelas implicações sobre sua aparência estética, principalmente direcionada
ao seu cabelo. Diferentemente de outras pessoas negras entrevistadas que
mencionaram não serem afetadas, por situações similares, no caso de Ana,
sua mãe interferia sobre os conflitos causados por seus colegas para que ela
não desistisse de continuar estudando, por motivos de discriminação e pre-
conceito racial.
Ao final da entrevista, Ana Xavier se lembrou de uma situação racista que
vivenciou na Universidade, logo após concluir um trabalho em grupo onde
haviam apresentado um seminário e, uma das colegas da turma, que estava
assistindo cochichou no ouvido de outra colega que, de todas que haviam
apresentado o trabalho “aquela neguinha foi a melhor de todas”. Quando ques-
tionei se ela havia considerado aquela situação como racismo ela mencionou
que, apesar de ter sido um termo de preconceito ela não levou para esse lado,
porque a colega não falou com intensão de ofendê-la.
O racismo é tão presente nas vidas das pessoas negras, tanto quanto
ausente nas falas e narrativas, que omitem situações vexatórias, constran-
gedoras e humilhantes. A seletividade da memória cuida de impedir, ainda
que a pessoa negra reviva em suas lembranças a representação da opressão
vivida no passado. Essa percepção das lembranças passa também pelo que
Lima (2017) constatou quando a pessoa nega sua negritude para não ser dire-
tamente atingida por atitudes e expressões racistas. Para Eliane Cavalleiro
(2012, p. 84) “o racismo apresenta inúmeras dificuldades derivada da cor da
pele”. A dificuldade de cada negro e negra em lidar com o racismo, com a
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 31

discriminação e com o “preconceito cria impedimentos para o exercício da


cidadania. Assim, diante da sua existência, cada um vai vivendo da melhor
forma possível” (CAVALLEIRO, 2012, p. 84).
Diante das variadas realidades encontradas nas narrativas de homens
negros e mulheres negras, genericamente é possível afirmar que as opor-
tunidades de acesso e permanência na escolarização formal foram bastante
restritas até a primeira metade do século XX, tomando como base o período
de ingresso dos Soldados da Borracha no Acre. Porém, seus descendentes
foram gradativamente avançando nas trajetórias escolares ao passo que as
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políticas educacionais, a exemplo da primeira Lei de Diretrizes e Bases —


LDB, implementada pela Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, apesar
de ter sido interditada pelos governos militares, foi um marco nas questões
dos direitos à educação em massa no Brasil.
A partir da segunda década do século XX, especialmente após a abertura
política com a aprovação da Constituição de 1988, novas regulamentações
educacionais ampliaram os direitos de negros(as) e pobres no Brasil, com a
segunda LDB, instituída pela Lei 9394/1996, que abriu caminhos para garan-
tias de financiamentos de todas as etapas da educação básica, a exemplo
do Fundef, do Fundeb e da Lei 12.796 de 4 de abril de 2013 que obriga as
famílias a matricularem seus filhos ou tutelados dos seis aos dezessete anos
na educação formal escolarizada. Ainda que as primeiras pessoas negras nor-
destinas não tivessem ultrapassado as primeiras séries do primário, é possível
perceber uma pequena evolução nas trajetórias dos seus filhos e filhas, ao
tempo que houve grande avanço nas oportunidades de escolarização dos seus
netos e bisnetos.
Foi possível constatar ao menos três fatores relevantes que intervêm nas
trajetórias das mulheres negras e dos homens negros entrevistados na presente
pesquisa: o quanto a influência da religião, da disciplina militar e da assimi-
lação e normatização de práticas discriminatórias, preconceituosas e racistas
interferem diretamente nas trajetórias e nas metamorfoses socioespaciais,
como também nas lutas contemporâneas. Das dez pessoas entrevistadas, quatro
são militantes da igreja Assembleia de Deus, com fortes tendências à aceitação
dos preceitos da Igreja, sem maiores preocupações com questões raciais, nem
ambição por melhores graus de escolarização pelo fato da esperança de uma
vida espiritual melhor que a terrena.
Uma nítida percepção nas duas primeiras entrevistas, com o senhor Edson
Darlindo e o senhor João Divino foi que a influência da religião protestante
(ambos são da Assembleia de Deus) na vida de pessoas negras interfere sobre-
maneira na aceitação do mito da igualdade racial impedindo uma percepção
mais crítica sobre as possibilidades de negros e negras ocuparem melhores
postos de trabalho, além de dificultar a compreensão dos porquês, dos moti-
vos pelos quais negros e negras tiveram e ainda têm menos oportunidades de
32

permanecer na trajetória escolar e alcançar o nível superior e a pós-graduação,


com possibilidades de galgarem melhores postos de trabalho. A disciplina
religiosa parece eliminar os efeitos da crítica sobre a opressão socioeconômica
e educacional além das situações racistas não enfrentadas diretamente, como
nocivas na garantia de melhores condições e oportunidades na trajetória de
negras e negros.
Outros dois homens negros entrevistados, como o senhor Franco Mendes
e o senhor Isac Melo foram diretamente influenciados pela disciplina do exér-
cito brasileiro que lhes possibilitou ascensão ao segundo grau (ensino médio),

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além de garantir relativa boa condição de vida, com salários de militares,
suficiente para sustentar suas famílias, sem maiores preocupações. O princípio
da disciplina militar é similar ao religioso na medida em que desenvolve na
pessoa atitudes e comportamentos de aceitação do status quo, principalmente
nas questões étnico-raciais, sem maiores questionamentos sobre os efeitos
das desigualdades de oportunidades que recaem sobre a grande maioria das
pessoas negras no Acre e no Brasil.
O que fica explicito quando analisamos o conjunto das entrevistas, foi
que muitos(as) não se importam demasiadamente com expressões racistas,
discriminatórias e preconceituosas evidenciando certa assimilação e norma-
tização dessas práticas que legalmente são criminosas e eticamente imorais.
Há também a percepção que negras e negros politizados, militantes com ou
sem formação acadêmica não apenas reagem com alto grau de rigorosidade
contra expressões e atitudes racistas, como também fazem questão de alertar
outras pessoas negras do perigo de acreditar no mito da democracia racial,
que ainda permanece presente nas falas e comportamentos de muitas pessoas
negras em pleno século XXI.
As constatações indicam que, enquanto há evidentes e relevantes preocu-
pações com as questões no combate ao racismo, ao preconceito e a discrimina-
ção, por parte da alguns(mas) dos(as) entrevistados(as) a exemplo de Silmara
Brasil, que desde a década de 1980, sempre esteve envolvida em instituições
que lutam pela direito à terra e moradia, outros influenciados(as) pela Igreja ou
pelo militarismo, dão pouca importância às questões de racismo, preconceito
e discriminação. A entrevistada Silmara Brasil continua suas lutas no Cole-
tivo de Mulheres Negras Acreanas, mas, no período da entrevista trabalhava
como Secretária em um escritório, apesar de ter diploma de graduação em
Geografia. Percebe-se que esse é o resultado das precarizações trabalhistas
quando pessoas com diploma de nível superior exercem funções aquém de
suas formações e qualificações.
Por outro lado, enquanto Dercy Teles construiu uma larga experiência
nesse campo dos direitos trabalhistas nota-se suas limitações quanto aos con-
ceitos de luta contra o racismo, preconceito e discriminação, quando asso-
cia essas categorias às questões de classe social, a exemplo de quando os
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 33

citadinos na cidade de Xapuri discriminavam sua família por causa das suas
aparências, em função das sandálias e das indumentárias que portavam, mas
em suas análises entendia essas questões associadas em um único problema
envolvendo o racismo, o preconceito e a discriminação.
Ainda outra constatação foi as negras e negros no Acre, que deram con-
tinuidades nas lutas empreendidas por negros e negras no século XX, em
outros estados brasileiros, principalmente, pela efetiva participação feminina
nas lutas por direitos e justiça social. A exemplo de Silmara Brasil que faz
parte do coletivo de mulheres negras na cidade de Rio Branco, além dos seus
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envolvimentos nas CEBs de Brasiléia, na década de 1980 onde conheceu os


movimentos de criação das associações extrativistas. Meus contatos com
outras negras e negros no Movimento Negro Unificado no Acre confirmam
as expressões de Silmara Brasil, quando esse movimento empreende embates
em variadas frentes de lutas11.
Algumas negras e negros que alcançaram a Universidade Federal do
Acre, e produziram trabalhos de dissertações e teses com a temática racial,
também estão nas frentes de lutas tanto do MNU/Acre, quanto do Neabi/Ufac,
além de outras instituições, a exemplo do Fórum Permanente de Educação
Étnico-Racial e do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade da cidade
de Rio Branco. Em todos esses espaços, negros e negras no Acre sentem-se
contínuos(as) das lutas iniciadas no passado, tanto nas formações dos qui-
lombos no período escravista, quanto nas formações de espaços de lutas, a
exemplo da Imprensa Negra, da Frente Negra Brasileira, do Teatro Experi-
mental Negro e do próprio Movimento Negro Unificado, criado em 1978.
O que salta aos olhos em todos esses movimentos de lutas contempo-
râneas, é a participação de mulheres negras nesses movimentos. A grande
participação feminina apontada na presente pesquisa de mestrado foi de Dercy
Teles, não apenas por ter sido a primeira presidente de Sindicato de Trabalha-
dores Rurais (em Xapuri) e, a segunda mulher brasileira a ocupar esse cargo
no Brasil, mas por todos seus envolvimentos também nas CEBs de Xapuri,
e, seu empenho nos processos de escolarização de base que requer toda uma
articulação política para seu funcionamento. A relevância da trajetória de
Dercy inicia-se com os movimentos dos empates, antes e após o assassinato
de Wilson Pinheiro e Chico Mendes, além de tomar a dianteira nos projetos de
assentamentos, de escolarização dos extrativistas e dos seringueiros e agregar
larga experiência na militância das frentes sindicais e dos movimentos sociais
em Xapuri.
As lideranças negras em associações e sindicatos rurais analisadas lem-
bram a necessidade de continuidade da luta pelos direitos, pela igualdade de

11 O MNU, luta por políticas de ações afirmativas, representatividade negra na política, apoio à população
negra em condições de vulnerabilidade, entre outras pugnas contemporâneas.
34

oportunidades e pela equidade e justiça social. Ficam as reflexões sobre a


relevância da presença de negros e negras no Acre, nas formações dos bairros
na cidade de Rio Branco, nos idos das décadas de 1970 e 1980, e, os resulta-
dos dessas luas e embates nos sucessivos e visíveis progressos alcançados a
partir dos seus enfrentamentos na luta pela terra e pela preservação das áreas
dos antigos seringais.
As lutas contemporâneas de negras e negros no Acre estão presentes em
variados lugares, cada qual da sua maneira, continua lutando para uma melhor
escolarização de seus filhos e netos, além da preocupação com melhores condi-

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ções de trabalhos que garantem a continuação de suas vidas e de suas famílias.

Considerações finais
Ao encerrar essas breves considerações sobre a correlação entre racismo,
preconceito e discriminação nas trajetórias de negros e negras no Acre. Vale
lembrar das palavras de Milton Santos (2002, p. 160) na epígrafe de abertura
deste capítulo ao registrar que “o homem é o seu corpo, a sua consciência,
a sua sociabilidade, o que inclui a sua cidadania”. Desses registros e todos
os outros extraídos das obras de Milton Santos podemos garantir que esse
grande intelectual negro expressava relevante preocupação com as questões
étnico-raciais negra em seu tempo.
Suas teorias contribuíram significativamente para sustentar as discussões
apresentadas na presente pesquisa sobre as metamorfoses socioespaciais de
negros e negras no estado do acre, quando analisamos a educação escolar e
trabalho na correlação entre o racismo, preconceito e discriminação. Ficou
evidente que as tentativas de integração de negros e negras na sociedade de
classe nos idos da primeira metade do século XX, foi incompleta, inacabada,
ao ponto de negros e negras no Acre, enfrentarem as mesmas condições pau-
perizadas identificadas nas grandes cidades brasileiras.
O diferencial no Acre ficou por conta das diferenças socioespaciais onde
essas condições foram enfrentadas nas áreas de floresta da Amazônia acreana.
Ainda que as condições de precarizações escolares e trabalhistas continuem,
em relação ao século passado, os descendentes de negros e negras daquele
período encontram melhores oportunidades escolares pelas políticas de ações
afirmativas implementadas como leis de cotas raciais na universidade.
Esses avanços não impediram a continuidade das práticas racistas, pre-
conceituosas e discriminatórias sobre negros e negros nos espaços escolares
nem em seus lugares de trabalhos. Fato que impõe a necessidade de conti-
nuidade de pesquisas que lançam luz sobre essa realidade presente, herdada
de mais de três séculos de escravização.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 35

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no Estado do Acre: das metamorfoses socioespaciais às lutas contemporâ-
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AS CONDIÇÕES DE TRABALHO EM
PLATAFORMAS DIGITAIS: caso da
Uber Eats e Ifood em Rio Branco (AC)12
Raquel Lins Brandão13
Karina Furini da Ponte14
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Introdução

Nas últimas décadas do século XXI, o mundo do trabalho passou por


crescentes e intensas transformações em sua organização e no modo como as
relações de trabalho se estruturam, devido a utilização das novas tecnologias
no cotidiano do trabalho.
Um processo que ocorre nas chamadas novas morfologias do trabalho, ou
seja, os modos criados pelo capitalismo para cada vez mais explorar o traba-
lhador. Esse processo pode ser observado na chamada Economia do Comparti-
lhamento, que acentua o papel da tecnologia como mecanismo de degradação
do trabalho, utilizando a internet e os recursos digitais para gerir e comandar
a produção e o trabalho, como nas plataformas digitais e nos aplicativos.
O uso da tecnologia se torna um mecanismo de degradação do trabalho,
que proporciona a fuga das empresas de suas responsabilidades, o que gera
a acumulação de lucros exorbitantes e uma intensa desregulamentação do
trabalho. Os trabalhadores/as são colocados em condições informais e insa-
lubres, com ganhos extremamente baixos e injustos.
O que culmina no caso dos entregadores de aplicativos, sujeitos que
destacam o difícil momento pelo qual passa o mundo do trabalho, no qual o
trabalhador fica cada vez mais subordinado à lógica capitalista de dominação,
em um sistema altamente degradante, onde a única preocupação é a geração
cada vez maior de lucros.
Assim, o objetivo desse capítulo é mostrar uma caracterização das empre-
sas Uber Eats e Ifood, grandes empresas do ramo da Economia do comparti-
lhamento, que se colocam apenas como mediadoras das relações entre clientes,
restaurantes e entregadores, quando na verdade empregam um grande número
12 Esse texto é uma retomada das ideias apresentadas e discutidas na Dissertação de Mestrado intitulada
“Precarização e Degradação do Trabalho: o caso dos entregadores de aplicativos da Uber Eats e Ifood em
Rio Branco – Acre.”
13 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Acre. raquelbrandao40@gmail.com
14 Doutora em Geografia pela UNESP, Professora do Curso de Geografia e do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade Federal do Acre. karinaponte211@hotmail.com
38

de trabalhadores que são tidos apenas como “parceiros”, “colaboradores”, e


ainda microempreendedores. Destacando essa realidade a partir da vivência
dos trabalhadores da cidade de Rio Branco — Acre, mostrando a realidade
laboral enfrentada por esses trabalhadores.

A realidade do trabalho no Brasil

Começando nosso recorte de análise a partir da década de 2000, o capi-


talismo brasileiro vai se expandir e se reorganizar a partir de um novo padrão

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de desenvolvimento capitalista, conhecido como “neodesenvolvimentismo”.
Esse novo padrão pode ser considerado um projeto alternativo ao neolibe-
ralismo da década de 1990, e alimentava desejos de modernização por parte
da burguesia brasileira.
Alves (2014), enfatiza que, neste momento, a persistência histórica de
traços estruturais da degradação do trabalho no Brasil continuava, tais como:
o aumento da taxa de rotatividade do trabalho e o crescimento dos contra-
tos de trabalho precário por conta das novas modalidades de contratos de
trabalho flexíveis, inscritas na CLT, com a expansão da terceirização e do
emprego subcontratado.
Desta forma, o mundo do trabalho brasileiro sofreu ações que intensi-
ficaram as suas atividades, a partir de uma união entre os ditames toyotistas
e as novas tecnologias. Em virtude disso, os locais de trabalho na década de
2000 vão se caracterizar pela presença de novas máquinas informacionais,
computadores desktops, tablets e smartphones conectados em rede, que não
ficaram restritos aos locais de trabalho, mas se inseriram na vida cotidiana
das pessoas, como discutido por Alves (2014).
Esse contexto, é fruto do processo iniciado com a Terceira Revolução
Industrial e a aplicação do sistema Toyotista, que tem como base fundamental
a microeletrônica, desenvolvido na informática, robótica e engenharia. No
qual, o computador é a máquina central, que se constitui na linguagem do
algoritmo, com base no sistema de processamento.
Esse processo, como destacado por Huws (2017) e Antunes (2018) vai
gerar uma nova subdivisão da classe trabalhadora, o chamado “cibertariado”
ou “infoproletariado”, isto é, trabalhadores que antes realizavam tarefas pre-
senciais, e que passam a interagir com o público a partir da telecomunicação,
digitalizando aspectos do trabalho.
Assim, se manifesta um novo modo de organização laborativa, uma alterna-
tiva para redução dos custos fixos para com o empregador, a partir do momento
em que se transforma os computadores de instrumentos de trabalho para ins-
trumentos de controle, tornando o monitoramento da produtividade mais fácil,
rápido e preciso, o que leva a intensificação do tempo trabalhado (HUWS, 2017).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 39

Outro ponto importante de se ressaltar, são as altíssimas taxas de desem-


prego encontradas no Brasil nos últimos anos. Desde 2012, o IBGE faz uma
série histórica, levantando dados essenciais para se compreender a realidade
instaurada no país.
Em 2019, o desemprego atingiu uma taxa de 12,3% nos meses de março
a maio, resultados alarmantes de acordo com o acompanhamento feito pelo
IBGE, que até então não havia registrado número tão alto, como mostrado
por Alegretti (2019).15
Essa alta taxa de desemprego, ajuda a compreender o porquê novas
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modalidades de trabalho tão degradantes ganham espaço, e alcançam milha-


res de trabalhadores. Tendo em vista, que é em muitos casos, a única opção
encontrada para garantir a subsistência a indivíduos e suas famílias.
Podemos citar como exemplos dessas novas modalidades, o trabalho
intermitente, o trabalho informal, a terceirização, e o trabalho nas platafor-
mas digitais. Destacarei os 3 primeiros a seguir, e o último será focado nos
próximos tópicos deste capítulo.
O trabalho intermitente é aquele no qual o trabalhador é contratado, mas
não tem garantias, nem jornada mínima de trabalho. Desta forma, ele fica
sempre disponível para a empresa contratante, que só o contrata de acordo
com a necessidade. Assim o trabalhador fica disponível aguardando o contato
da empresa, uma espera que pode durar meses. Silveira (2020)16 constatou,
com base no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do
Ministério da Economia, que em 2019, foram registradas mais de 155 mil
contratações sob essa modalidade.
Já o setor informal, é formado por atividades urbanas que geram renda
mas que ocorrem fora do âmbito oficial, isto é, ocorre em locais de traba-
lho desregulamentados, formados por mão de obra desqualificada, ofertando
empregos instáveis e de baixa renda.
Antunes (2011) ressalta que existem dois tipos de trabalhadores infor-
mais: os menos instáveis, que possuem um certo conhecimento profissional e
meios de trabalho, e que em maioria desenvolvem atividades do setor de ser-
viços, como: costureiras, pedreiros, jardineiros; e os informais mais instáveis,
recrutados por um determinado período de tempo e geralmente remunerados
por peça ou serviço realizado, normalmente suas funções são feitas com base
na força física, como carregadores, carroceiros, entre outros.

15 Disponível em: ALEGRETTI, Laís. Reforma trabalhista: ‘Foi um equívoco alguém um dia dizer que lei ia criar
empregos’, diz presidente do TST. BBC News Brasil, Londres, 3 jul. 2019. Disponível em: https://www.bbc.
com/portuguese/brasil-48839718. Acesso em: 3 mar. 2021.
16 Disponível em: SILVEIRA, Daniel. Em dois anos, dobra o número de contratos de trabalho intermitente no
Brasil. G1, Rio de Janeiro, 12 nov. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/
noticia/2020/11/12/em-dois-anos-dobra-o-numero-de-contratos-de-trabalho-intermitente-no-brasil.ghtml.
Acesso em: 3 mar. 2021.
40

Outro modo da informalidade, diz respeito aos trabalhadores informais


assalariados que não possuem registro ou contrato, o que deixa esses traba-
lhadores à margem da legislação do trabalho, o que garante que os acordos
coletivos feitos por suas respectivas categorias, não os englobe, como discu-
tido por Antunes (2018).
Em novembro de 2021, a taxa de informalidade no Brasil chegou a 40,6%
da população, reunindo 38 milhões de trabalhadores informais. De acordo com
o IBGE, a informalidade responde por 54% do crescimento da ocupação no
país, como mostrado em reportagem do jornal G1.17

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E por fim, a terceirização, que de acordo com Marcelino e Cavalcante,
é “todo o processo de contratação de trabalhadores por empresa interposta,
cujo objetivo último é a redução de custos com a força de trabalho e/ou a
externalização dos conflitos trabalhistas” (2012, p. 338).
Assim, a terceirização ocorre com uma aliança entre empresas, a que
contrata o serviço e a que realiza esse serviço, isso permite constatar uma
nova forma de gestão organizacional, pois a negociação acontece somente
entre as empresas e este é o único vínculo estabelecido.
Isso possibilita uma maior flexibilização nas relações de trabalho, e o
capitalismo usar isso amplamente, provocando um desmonte da classe traba-
lhadora e estabelecendo condições muito precárias que se constituem a partir
de contratos frugais, que retiram a responsabilidade dos contratantes com os
direitos dos contratados.
Com isso, gradualmente o trabalho formal e estável vai diminuindo pois
para o capital é mais lucrativo manter os trabalhadores como terceirizados, já
que praticamente não há limites para a precarização e exploração.
Esses trabalhadores sofrem com o aumento das cargas horárias de tra-
balho, com o controle do tempo livre, com contratos temporários, e com a
diminuição dos salários. Como pode ser observado nos seguintes dados:

[no Brasil] na indústria do petróleo, no período 2000-2013, o número de


terceirizados cresceu 631,8%, enquanto os funcionários próprios aumen-
taram em 121%. No setor elétrico, entre 2003 e 2012, os terceirizados
cresceram em 199%, enquanto os funcionários próprios aumentaram em
apenas 11%. Nos petroquímicos, o aumento do número de terceirizados
no período 2009-2012 foi maior do que as contratações diretas para 6 de
10 empresas que forneceram informações, chegando a diferenças percen-
tuais muito grandes, como 128% a 15%, 157% a 43% ou 102% a 15%.
(ANTUNES; DRUCK, 2015, p. 26).

17 ALVARENGA, Darlan; SILVEIRA, Daniel. Desemprego cai para 12,6% no 3º trimestre, mas ainda atinge 13,5
milhões, aponta IBGE. G1, 30 nov. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/11/30/
desemprego-fica-em-126percent-no-3o-trimestre-aponta-ibge.ghtml. Acesso em: 14 dez. 2021.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 41

Assim as novas morfologias se colocam no mundo do trabalho, reguladas


pelo capitalismo, que acaba redesenhando todo o universo laborativo. A base
dessas novas morfologias são suas várias formas de expressão, exibida nas
mudanças que afetaram o próprio sistema do capital.
Os pontos principais que marcam essas novas morfologias se expressam
no trabalho precarizado, temporário e terceirizado, que crescem exponen-
cialmente no mundo do trabalho, em especial no Brasil, sendo utilizadas
amplamente no cotidiano dos mais diversos setores.
Como abordado por Antunes (2018), isso pode ser visualizado no ope-
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rariado industrial, no operariado rural, nos assalariados dos serviços, nos


terceirizados, subcontratados, temporários. São exemplos os assalariados do
fast-food, os empregados dos hipermercados, os motoboys, e aqueles mais
atingidos pelo advento digital, tais como os trabalhadores de telemarketing
e call-center, os digitalizadores dos bancos e trabalhadores de aplicativo.
O que fica expressa pelo autor quando afirma que,

os trabalhadores pertencentes ao núcleo que atua com maquinário mais


avançado, dotado de maior tecnologia, encontram-se cada vez mais expos-
tos à flexibilização e à intensificação do ritmo de suas atividades, expressas
não só pela cadência imposta pela robotização do processo produtivo, mas,
sobretudo, pela instituição de práticas pautadas por multifuncionalidade,
polivalência, times de trabalho interdependentes, além da submissão a uma
série de mecanismos de gestão pautados na pressão psicológica voltada
ao aumento da produtividade. (ANTUNES, 2018, p. 140).

Isso evidencia o processo de precarização do trabalho, que só cresceu ao


longo do tempo, principalmente com a consolidação do sistema capitalista que
encontrou diversas formas de expandir a precarização na rotina do trabalho.
Alves (2007) afirma que a precarização do trabalho é uma condição
sócio estrutural que caracteriza o trabalho vivo e a força de trabalho como
mercadoria, atingindo aqueles que não possuem o controle dos meios de pro-
dução, sendo assim, uma condição histórica ontológica da força de trabalho
como mercadoria.
O autor ressalta ainda que a “precarização não apenas desvela uma con-
dição ontológica da força de trabalho como mercadoria, mas explicita novos
modos de alienação/estranhamento e fetichismo da mercadoria no mundo
social do capital” (ALVES, 2007, p. 115).
É importante retomar, que os altos níveis de desemprego no Brasil, pos-
sibilitam cada vez mais o aumento dessa precarização, tendo em vista que
a possibilidade de total desemprego leva os trabalhadores a aceitarem as
condições impostas.
42

Desta forma, pelo medo do desemprego, os trabalhadores que ainda


possuem um ofício, aceitaram vários desmontes, por exemplo: o aumento
da carga e das jornadas de trabalho; a continuidade do mesmo salário que já
recebiam antes, pois não houve ajuste e, em muitos casos, a falta de direi-
tos como folgas e não pagamentos de horas extras cumpridas. Desse modo
“alcançamos um ponto no desenvolvimento histórico em que o desemprego
se coloca como um traço dominante do sistema capitalista como um todo”
(MÉSZÁROS, 2007, p. 145).
Os que conseguem uma oportunidade de emprego também aceitam todo

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tipo de condições, pois não encontram outras alternativas e ainda se consi-
deravam afortunados, considerando o medo de se manter na condição de
desemprego que ainda é realidade para muitas pessoas.
Alves (2007) denomina isso de precarização da subjetividade insubmissa,
isto é, o medo é um grande aliado do capital, o constitui essencialmente e
por isso, é tão amplamente utilizado. Ocorre então uma busca constante do
capital por novos meios de manter os trabalhadores nessa condição de sub-
jetividade insubmissa.
O que leva a uma flexibilização do trabalho em larga escala, e todos os
elementos do trabalho passam a ser flexibilizados, o tempo para cumprimento
das funções, o valor a ser recebido pelo trabalho exercido, em quais dias o
trabalhador vai efetivamente trabalhar, todos esses processos não são mais
previamente delimitados, mas são flexibilizados pelas demandas e necessi-
dades do contratante.
Alves (2014) destaca que a flexibilidade da força de trabalho se coloca
como a necessidade que o capital possui de subsumir o trabalho assalariado
ao processo de valorização, o que ocorre através da elevação da produção das
mercadorias e, em especial, da força de trabalho.
Como salientado por Antunes, ocorre

uma nova fase de desconstrução do trabalho sem precedentes em toda


a era moderna, aumentando os diversos modos de ser da informalidade
e da precarização. Se no século XX presenciamos a vigência da era da
degradação do trabalho, na transição para o século XXI passamos a estar
diante de novas modalidades e modos de ser da precarização [...]. (2018,
p. 156, grifo do autor).

As plataformas digitais: Uber Eats e Ifood


Como falado na introdução desse capítulo, as plataformas digitais são pro-
venientes da chamada Economia do Compartilhamento, que significa um modo
de economia que liga uma gama de serviços oferecidos a pessoas que precisam
desses serviços, um processo que ocorre online, se efetivando presencialmente.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 43

Apesar de ser uma nova onda de negócios, é errôneo pensar que seu
surgimento é recente, de acordo com Capozzi, Hayashi e Chizzola (2018), a
Economia Compartilhada teve origem na década de 1990, nos Estados Unidos,
constituída por práticas que possibilitavam o acesso a bens e serviços. Entre-
tanto, o termo se popularizou por volta dos anos 2000, em razão do desen-
volvimento das tecnologias de informação e o crescimento das redes sociais.
Desta forma, como explicado por Slee (2017), a Economia Comparti-
lhada surgiu com a ideia de trocas informais, como caronas entre colegas de
trabalho, empréstimo de utensílios de usos esporádicos como furadeiras a
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vizinhos, vendas por um preço mais barato de algo que não tem mais utili-
dade para um amigo que precisa, criando um sentimento de que as pessoas
pudessem contar mais umas com as outras. Se utilizando da Internet para dar
escala a essas trocas.
Nesse contexto, surgem as empresas Uber, e seu ramo Uber Eats que
é central para a discussão feita aqui, e a Ifood. Destacarei brevemente as
duas empresas.
De acordo com o site da própria empresa18, a Uber é uma plataforma que
conecta usuários a motoristas parceiros, uma opção de mobilidade a preços
acessíveis que funciona através de uma plataforma digital.
Como discutido por Slee (2017), a Uber começou como um serviço de
carros de luxo, os clientes solicitavam por aplicativo e motoristas de empresas
de serviço de limusine respondiam, o serviço decolou de modo significativo,
levando a um rápido crescimento da empresa, de 2009 até 2013, expandindo
a Uber por várias cidades.
Após seu sucesso, a Uber ampliou os seus serviços, e aqui ocorreu
a chegada do Uber Eats, um aplicativo de delivery que conecta usuários
com restaurantes.
O site da Uber relata ainda que com o Uber Eats se ganha para entregar
quando quiser, gerenciando seu próprio horário, podendo acompanhar seus
ganhos nas ferramentas do respectivo aplicativo, desta forma, expondo uma
gama de “vantagens” para adesão desse novo modelo de trabalho, que também
começou a ser rapidamente aceito e efetivado nos locais por onde passou,
garantindo mais um êxito à Uber.
Em Rio Branco, o Uber Eats chegou em fevereiro de 2019, como mos-
trado no jornal O Rio Branco19. De modo a garantir que as pessoas conhe-
cessem o aplicativo, o Uber Eats ofereceu entrega grátis nos primeiros dias,
de modo a atrair os clientes.

18 Site oficial da Uber: https://www.uber.com/pt-BR/blog/o-que-e-uber/.


19 Disponível em: UBER Eats chega a Rio Branco como alternativa para entrega de comida em casa. O Rio
Branco, Rio Branco, 14 fev. 2019. Disponível em: https://www.oriobranco.net/noticia/geral/14-02-2019-uber-
eats-chega-a-rio-branco-como-alternativa-para-entrega-de-comida-em-casa. Acesso em: 23 out. 2020.
44

Já o Ifood surgiu em 2012, fruto do trabalho dos amigos Felipe Fiora-


vante, Guilherme Bonifácio, Patrick Sigrist, Eduardo Baer e Patrick Eberhardt,
que criaram uma plataforma digital, que começou como um site, e que conecta
clientes, restaurantes e motoboys. Esse site logo deu lugar a um aplicativo
para celular, assim, a empresa conseguiu sair na frente com um modelo que
hoje é o padrão.
Segundo o próprio Ifood eles são “uma empresa brasileira que aproxima
clientes, restaurantes, e entregadores de forma simples e prática. E para pro-
porcionar uma experiência incrível a cada um deles, nossa entrega vai muito

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além do delivery” (IFOOD, 2021).20
O Ifood chegou em Rio Branco em 2018, objetivando, segundo a empresa
a democratização da alimentação, ajudando pequenos restaurantes a cresce-
rem, e aumentando o alcance para com os clientes. De acordo com a própria
empresa, seus parceiros crescem em média 50% já nos três primeiros meses
na plataforma, beneficiando tanto clientes quanto empresários do ramo, infor-
mações do jornal A Gazeta21.
Mesmo com o sucesso das empresas, e seus ganhos consideráveis, ambas
tem o mesmo problema no que se refere as suas relações, tanto com os restau-
rantes (pois como é um serviço terceirizado, as empresas ficam com uma parte
de todas as vendas realizadas por delivery, o que antes ficava inteiramente com
o próprio estabelecimento), e sobretudo com os entregadores, responsáveis
por retirar os pedidos nos restaurantes e fazer a entrega ao cliente, levando
ao êxito no sistema desenvolvido pelo Uber Eats e Ifood.
Apesar de serem fundamentais para o bom funcionamento das empresas,
esses entregadores se encontram em uma posição de desamparo, um cotidiano
exaustivo e alienado, já que não se reconhece o vínculo empregatício, e a
relação se resume a serem somente prestadores de um serviço, o que na prá-
tica significa a inexistência de uma relação de trabalho contratual ou formal.
Esse fenômeno que tem crescido em larga escala no mundo do trabalho,
é intitulado de Uberização, um conceito central para entender essa realidade.
A uberização do trabalho,

Somente pode ser compreendida e utilizada como expressão de modos de


ser do trabalho que se expandem nas plataformas digitais, onde as rela-
ções de trabalho são cada vez mais individualizadas (sempre que isso for
possível) e invisibilizadas, de modo a assumir a aparência de prestação de
serviços. Mas os traços constitutivos de sua concretude [...] são expressão

20 De acordo com: https://institucional.ifood.com.br/ifood. Acesso em: 15 de outubro de 2021.


21 Disponível em: MELLO, Bruna. Aplicativo de delivery de comida, iFood, chega a Rio Branco. A Gazeta do
Acre, 30 jan. 2018. Disponível em: https://agazetadoacre.com/aplicativo-de-delivery-de-comida-ifood-chega-
-a-rio-branco/. Acesso em: 14 out. 2019.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 45

de formas diferenciadas de assalariamento, comportando tanto obtenção


de lucro, exploração de mais valor e também espoliação do trabalho, ao
transferir os custos para seus/suas trabalhadores/as que passam a depender
diretamente do financiamento de suas despesas, que são imprescindíveis
para a realização de seu labor. (ANTUNES, FILGUEIRAS, 2020, p. 32,
grifo do autor).

Com isso é possível perceber que a uberização é um novo modo de


organização, gerenciamento e controle do trabalho, que tem aumentado no
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cenário mundial, destacando o crescimento do trabalho precário que se coloca


a partir da tecnologia.
As empresas incluídas nessa lógica da uberização estão empenhadas
exclusivamente no crescimento dos seus lucros, e em mascarar sua relação
com os seus trabalhadores, desta forma, se isentando da responsabilidade
trabalhista para com os entregadores, principalmente pelo mecanismo das
plataformas digitais, onde a comunicação e relação ocorre praticamente de
forma online.
É a partir desse cenário, que começamos a analisar a realidade desses
entregadores em Rio Branco — AC, porém antes é importante contextualizar a
realidade do trabalho no estado do Acre, o que ajuda a compreender o grande
número de pessoas trabalhando nessas plataformas no Estado.
Uma grande parcela da população acreana está na situação de desem-
prego, segundo o jornal AC24horas22, no último trimestre de 2019, 22 mil
acreanos tinham desemprego de longa duração, ou seja, pessoas que procura-
ram emprego continuamente por pelo menos 1 ano, mas estavam sem ocupar
postos de trabalho.
Com isso, muitas pessoas acabam encontrando alternativas de trabalho
no mundo da informalidade, tendo em vista que para a grande maioria dos
trabalhadores desempregados é a única solução encontrada.
Importante lembrar que a informalidade, em concordância com Costa
(2010), se expande em modalidades diversas de atividades, contribuindo para
uma heterogeneidade ainda maior do mercado de trabalho, que tem como
marca a precariedade das condições de trabalho e de vida, a negação dos
princípios mais elementares de cidadania, a perpétua reprodução da pobreza
e das desigualdades sociais.
Por isso, a preocupação com a informalidade no Acre, tendo em vista as
mazelas que isso causa à população, principalmente levando em consideração
seus níveis altíssimos nos últimos anos, como pode ser constatado a seguir
no gráfico 1.

22 Disponível em: SABINO, Orlando. A força do trabalho do Acre: desemprego, desalento e informalidade. AC
24 horas, Acre, 19 mar. 2020. Disponível em: https://ac24horas.com/2020/03/19/a-forca-do-trabalho-do-
-acre-desemprego-desalento-e-informalidade/. Acesso em: 24 out. 2021.
46

Gráfico 1 – Taxa de informalidade no Acre


52
51,4
51
51
50,2
49,8
50

49
48,2
48

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47

46
2016 2017 2018 2019 2020

Informalidade no Acre

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Org.: Raquel Brandão.

Importante elencar, que apesar do gráfico demonstrar uma diminuição da


informalidade a partir de 2018, isso não significa que a população esteja em
trabalhos formais. O que se nota é um aumento no número dos desalentados
(pessoas classificadas pelo IBGE como aquelas que tem idade para trabalhar,
mas desistiram de procurar emprego por não ter disponível postos de trabalho).
Além do fato de que muitas pessoas não conseguem opção de trabalho
nem na informalidade, principalmente com o advento da pandemia que piorou
a situação geral, e em especial a questão do desemprego que possibilitou tam-
bém a partir do auxílio emergencial (mesmo sendo tão baixo) uma condição
mínima de subsistência que também fica de fora dos dados da informalidade.
Conforme apurou o AC24horas23, diante da informalidade, o serviço de
compartilhamento de viagens e delivery de comida cresceu muito no Acre.
Um dado alarmante, tendo em vista que o trabalho nessas plataformas digitais
é um ambiente de precarização, o que enfatizaremos a partir de agora.
Ser entregador de aplicativo vem se tornando uma saída para se ter um
emprego, pode ser uma complementação da renda, ou como para a maioria o
trabalho encontrado, em razão do desemprego. Porém, esse trabalho que acaba
atraindo pessoas pela facilidade de adesão e pela possibilidade de “fazer seu
horário”, diariamente se mostra exploratório e precarizado, a negligência para
com os entregadores se nota desde o momento da “contratação” do serviço.

23 Disponível em: FERREIRA, Edmilson. Informalidade já ocupa 50,2 da força de trabalho no Acre. AC 24
horas, Acre, 14 fev. 2020. Disponível em: https://ac24horas.com/2020/02/14/informalidade-ja-ocupa-502-
-da-forca-de-trabalho-no-acre/. Acesso em: 24 out. 2021.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 47

O trabalhador que deseja começar a exercer a função de entregador


no Uber Eats ou Ifood, se cadastra no aplicativo pela Internet e decide qual
será seu meio de trabalho, se o veículo escolhido para fazer as entregas for
bicicleta, o trabalhador só precisa ir ao escritório da referida empresa buscar
e pagar a mochila para carregar as refeições (o valor pago pela denominada
bag é de 150 reais). No caso de motocicletas existe a necessidade de após o
cadastro efetuar no Detran exame psicotécnico e de vista, pois só assim sua
licença para começar a utilizar o aplicativo será liberada. (Informações verbais,
retiradas de entrevista realizada com entregador R.M, em novembro de 2019).
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Logo, é possível observar que desde o início o contato entre o traba-


lhador e a empresa ocorre praticamente online, o trabalho se inicia a partir
de um cadastro pela Internet, já mostrando a falta de relação, e a informali-
dade da contratação. Após esse cadastro, o trabalhador pode começar a rotina
das entregas.
Porém, é importante ressaltar que o trabalhador deve assegurar o bom
funcionamento do veículo se for próprio, ou a compra de um, além de um
bom plano de Internet para receber a solicitação dos pedidos e realizar as
entregas, o abastecimento de gasolina, uma capa de chuva, suporte para celu-
lar, entre outros.
A partir disso, é importante buscar compreender a razão pela qual os
trabalhadores escolheram esse trabalho. Alguns levantam a questão de que já
realizavam entregas, e viram nos aplicativos somente mais uma oportunidade
de emprego, considerando que já era um trabalho rotineiro.
O entregador D.A, afirma que “É que eu já fazia entrega, então pra
mim foi mais uma oportunidade de trabalho que ajuda ali na renda” (Infor-
mação verbal, retirada de entrevista realizada com entregador em 19 de
agosto de 2021).
Outros entregadores apontam a problemática do desemprego, como abor-
dado neste capítulo. M.Z quando questionado sobre o motivo de trabalhar
com os aplicativos, afirmou que “ Foi o desemprego mesmo, na falta de outra
opção fui para as entregas” (Informação verbal, retirada de entrevista realizada
com entregador em 29 de agosto de 2021).
Assim como o entregador D.B, que disse “Foi a opção mais rápida que
eu encontrei, tá muito difícil arrumar emprego” (Informação verbal, retirada
de entrevista realizada com entregador em 29 de agosto de 2021).
Desta forma, como discutido por Cant (2021), esse capitalismo de pla-
taforma, na figura do Uber Eats e Ifood, tira proveito do enfraquecimento da
classe trabalhadora e do fato de uma grande parcela da população precisar
de trabalho a ponto de aceitar todo tipo de trabalho, diante da necessidade de
renda para a sobrevivência.
48

Outro ponto que comprova a precarização desse trabalho, são as jorna-


das diárias. Na pesquisa realizada na cidade de Rio Branco — AC, 47% dos
entregadores afirmaram trabalhar mais de 10 horas por dia, todos os dias da
semana, e 30% trabalham de 8 a 10 horas diárias. Os entrevistados que tinham
jornadas de trabalho menores, normalmente conciliavam os aplicativos com
outros trabalhos, ou com estudo.
Essa carga horária exaustivas, podem ser comprovadas nas falas dos
entregadores, apenas para citar um exemplo, o entregador R.S afirmou que
sua jornada de trabalho “Chega a mais de 10 horas. Pego de manhã e vou

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até a noite. Todo dia, de segunda a segunda” (Informação verbal, retirada de
entrevista realizada com entregador em 03 de setembro de 2021).
Essas horas trabalhadas se dividem nos dois aplicativos, Uber Eats e
Ifood, contudo a maior parte dos entregadores está concentrada no Ifood. A
pesquisa em Rio Branco — AC, mostrou que 50% dos entregadores trabalha-
vam para os dois aplicativos, enquanto 40% trabalhavam somente no Ifood,
contra 10% que trabalham só no Uber Eats.
Essa diferença decorre do fato de que o Ifood paga mais por cada entrega
realizada do que o Uber Eats. Algo salientado pelos próprios entregadores,
C.M declarou que o valor pago por cada entrega “No Uber Eats normalmente
é uns 3 reais, 3,50 por entrega, no Ifood é uns 5... 5,50 por aí, Ifood paga bem
mais. (Informação verbal, retirada de entrevista realizada com entregador em
17 de agosto de 2021).
Em relação ao ganho mensal desses trabalhadores, 40% afirmam ganhar
cerca de 2.000 reais mensais, e 35% ganham de 1.000 a 1.500. Contudo, se
faz necessário lembrar que esses valores obtidos mensalmente correspondem
ao valor total, isto é, não são subtraídos os gastos com gasolina, com troca
de pneu, problemas com o veículo, refeições feitas durante essas jornadas de
mais de 10 horas por dia na rua, entre outros.
Outro ponto levantado na pesquisa, foi acerca das dificuldades encon-
tradas diariamente pelos entregadores, os quais relataram questões como o
trânsito, a demora dos clientes em receber os pedidos, o medo de acidentes e
o cansaço cotidiano, o que pode ser constatado a seguir.
O entregador A.B apontou como pior problema o “Trânsito, muito trân-
sito e tem uns carros que faltam pouco bater na gente. Eu tenho muito medo
de sofrer um acidente, porque é todo mundo apressado no trânsito, as ruas
cheias de buraco, é complicado” (Informação verbal, retirada de entrevista
realizada com entregador em 15 de agosto de 2021).
Já o entregador M.M salientou “a pessoa demorar pra receber a gente,
faz o pedido a gente chega e fica buzinando um tempão, liga, toca campainha,
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 49

e a pessoa demora muito, isso é bem chato” (Informação verbal, retirada de


entrevista realizada com entregador em 22 de agosto de 2021).
Enquanto M.Z afirmou que o pior é “O trânsito, o medo de assalto e o
medo de acidente” (Informação verbal, retirada de entrevista realizada com
entregador em 29 de agosto de 2021, grifo nosso).
Tais relatos permitem entender a conjuntura deplorável que acomete a
classe trabalhadora, em especial com o advento da tecnologia que propor-
cionam ao sistema capitalista a converção de trabalhadores em indivíduos
altamente precarizados, o que resulta em duas situações: desemprego, ou
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trabalhos precarizados, informais e exploratórios.


Desta forma,

Quando as empresas conseguem usar e direcionar a individualidade das


pessoas para seus fins, a vontade [...] delas é instrumentalizada e desviada
para fins corporativos; autoexploração e esgotamento completo podem
ser as consequências. Isso ainda corresponde ao diagnóstico da alienação.
(HENNING, 2017, p. 53).

Como último ponto, é importante destacar uma questão central, os entre-


gadores de aplicativos no contexto da pandemia da Covid-19. Pois, além
das altas condições precárias já apresentadas, esses trabalhadores não foram
considerados no processo de quarentena.
Como observado pelo entregador Luiz Carlos Marcelino, a recomendação
de parar era para todo mundo, “mas na prática, não se aplica. As classes baixas
é que movimentam o País”, como mostrado em reportagem da Carta Capital.24
Já que, enquanto os decretos de lockdown começaram a entrar em vigor,
e parte da população ficou em casa confinada, os entregadores continuaram
nas ruas garantindo a entrega de comida, de mercados, de farmácias e afins.
De maneira que é preciso perceber que a garantia do isolamento social
não pode ocorrer para determinados grupos sociais, sustentado no risco de
vida e na precarização do trabalho de outros, como apontado por Braga e
Santana (2020).
Em Rio Branco — AC, os entregadores apontaram um aumento no
número de pedidos logo no início da pandemia, mas que encerrou rapida-
mente. Outra questão crucial é o fato de que poucos entregadores afirmaram
ter recebido algum tipo de auxílio dos aplicativos na pandemia.

24 Disponível em: BASILIO, Ana Luiza. “As classes baixas movimentam o País, continuaremos expostos”.
Carta Capital, 23 mar. 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-classes-baixas-
-movimentam-o-pais-continuaremos-expostos/. Acesso em: 3 ago. 2020.
50

O entregador R.M afirmou que não recebeu “Suporte nenhum, auxí-


lio nenhum, minhas máscaras e álcool em gel, foi tudo eu que comprei”
(Informação verbal, retirada de entrevista realizada com entregador em 02
de agosto de 2021).
Isso mostra que esses trabalhadores precisaram assumir sozinhos todos
os riscos proporcionados com a pandemia, e também encarregar-se dos gastos
com os materiais necessários ao trabalho nessa nova fase.
Enquanto isso, as empresas viram seus lucros crescerem exponencial-
mente. De acordo com a revista Istoé Dinheiro25 a empresa viu os pedidos

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quase triplicarem, saíram de 22 milhões, no começo de 2020, e atingiram o
pico de 60 milhões, em março de 2021. Assim sendo,

Os aplicativos aproveitaram a pandemia para aumentar seus lucros [...]


dado o alto nível de desemprego e informalidade, e com vários setores
com atividade paralisada, a categoria, como já vinha ocorrendo nos últi-
mos anos, recebeu um afluxo grande de novos membros o que aumentou
o ganho dos aplicativos, aumentando a competição entre os entregadores/
as e, consequentemente, reduzindo seus rendimentos. Reativamente, os/
as trabalhadores/as passaram a trabalhar por mais horas a fim de mitigar
a queda da remuneração. Trata-se de um jogo viciado no qual apenas as
empresas ganham. (BRAGA; SANTANA, 2020).

Considerações finais

Diante do exposto, é possível observar que a era digital alterou sobrema-


neira o modo de trabalho. Apresentaram-se novos mecanismos, que influen-
ciam diretamente na realização do trabalho, mediados por plataformas digitais,
que geram uma realidade de intensas precarizações.
É benéfico ao sistema capitalista, essa nova vivência de trabalho que
se impõe, onde os direitos mais básicos dos trabalhadores são mascarados
atrás de discursos de parceira, colaboração, empreendedorismo, e o vínculo
empregatício é desconsiderado, resultando no total descaso das empresas para
com seus funcionários.
A partir desse argumento empresarial, onde a mediação somente entre
restaurantes e entregadores é colocada, os trabalhadores dessas plataformas
digitais estão sendo excluídos de direitos essenciais, o que evidencia o pro-
cesso de desumanização que vem ocorrendo no mundo do trabalho.

25 Disponível em: VEROTTI, Angelo. Muito mais que entregar comida. Isto É Dinheiro, 30 abr. 2021. Disponível
em: https://www.istoedinheiro.com.br/muito-mais-que-entregar-comida/. Acesso em: 21 jul. 2021.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 51

E assim, esses trabalhadores inseridos nesse contexto, se colocam como


usuários desses aplicativos para assegurar uma renda mensal, o que na prática
leva a jornadas de trabalho exaustivas, sem vínculos com as empresas e logo
sem direitos assegurados, e fazendo uso de ferramentas de trabalho que ele
mesmo precisa viabilizar.
Ou ainda, acreditam que o trabalho nos aplicativos foi uma escolha,
desconsiderando os altos índices de desemprego e informalidade que assolam
o país inteiro, e que os levam a encontraram nessas plataformas uma garantia
de sustento.
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Como corolário desse cenário, é possível compreender o capitalismo na


figura das plataformas digitais, enquanto figura que danifica, oprima, explora
e aliena o mundo do trabalho em todas as esferas possíveis, modificando os
trabalhadores e a humanidade, em uma sociedade da degradação, extorsão e
até escravização moderna, por assim dizer.
52

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sociologia do trabalho. Londrina, Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.

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A POLÍTICA ENERGÉTICA PARA
A AMAZÔNIA BRASILEIRA
NO CONTEXTO DO “NOVO
DESENVOLVIMENTISMO”: caos destrutivo
anunciado em um mundo de “progresso”26
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José Alves27

Introdução

Durante participação no Seminário “Diálogos Capitais — Hidrelétricas:


as necessidades do País e o respeito à sustentabilidade”, realizado na cidade de
São Paulo (SP), no dia 22 de agosto de 2011, evento promovido pela revista
Carta Capital e patrocinado pela ELETROBRAS, a então Ministra do Plane-
jamento Miriam Belchior, e o Presidente da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), Maurício Tolmasquim, entre outros convidados, discutiram sobre a
importância das hidrelétricas na matriz energética nacional e sua contribuição
para o desenvolvimento nacional. Um ponto que mereceu destaque nesse
seminário, na fala de Tolmasquim, referiu-se à questão de a hidroeletricidade
continuar a ser a principal responsável pelo fornecimento de energia elétrica
no País, e o seu papel de destaque no desenvolvimento nacional. Para ele,
essa importância é um fato, e diante de tal relevância, o bioma amazônico é a
saída para a expansão de energia que o mercado nacional necessita, já que “a
Amazônia é a fronteira hidrelétrica que o Brasil tem” (informação verbal)28.
Deste modo, neste capítulo busca-se analisar o papel da Amazônia na
política hidroenergética brasileira, o que será realizado em três seções: na
primeira destacaremos, no contexto da integração regional e enquanto fron-
teira econômica, o papel da Amazônia e dos grandes projetos hidrelétricos;

26 Este texto refere-se ao primeiro capítulo inédito da tese de doutorado intitulada “As revoltas dos trabalha-
dores em Jirau (RO): degradação do trabalho represada na produção de energia elétrica na Amazônia”,
orientada pelo Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior, no PPG em Geografia da FCT/Unesp, Pres. Prudente,
defendida em 2014.
27 Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia da Ufac; Doutor em Geografia junto
ao Programa de Pós-Graduação em Geografia/FCT/Unesp/Presidente Prudente (SP). Membro dos Grupos
de Pesquisa “Centro de Estudos de Geografia do Trabalho” (Ceget) e Grupo de Estudo em Produção do
Espaço na Amazônia (Gepea). Tutor do Grupo PET Geografia / Ufac. jose.alves@ufac.br
28 Afirmação de Tolmasquim no Seminário “Diálogos Capitais – Hidrelétricas: as necessidades do País e o
respeito à sustentabilidade”, em São Paulo, em agosto de 2011.
56

posteriormente, as reflexões fundamentar-se-ão como o planejamento gover-


namental, sob o “Novo Desenvolvimentismo” dos Governos do Presidentes
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011 a 2016), que
colocava a referida região (na “corrida por megawatts29” e como espaço pri-
vilegiado de apropriação territorial para a reprodução do capital.

A Amazônia no contexto da política energética brasileira: da


integração e fronteira nacional à dominação pelo grande capital
e nova fronteira hidroenergética

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O entendimento da Amazônia no contexto da política energética brasi-
leira, nos leva, de imediato, a ter como pressuposto que este setor não pode
ser visto distanciado da totalidade que envolve a região e suas gentes, seja
ela amazônida, ou migrantes que ali foram se instalando e construindo novas
relações com o bioma, com a natureza, com a cultura. Também não pode ser
compreendida sem ter em primeiro plano a ação do Estado brasileiro pelo
domínio, controle e integração da vasta região à sociedade e ao território
nacionais, articulada aos interesses de reprodução ampliada do grande capital
nacional e internacional.
Por necessidade de recorte do tema, focaremos na ação dos governos
após a segunda metade do século XX e, assim, de como a Amazônia brasi-
leira (em seu processo de integração e enquanto fronteira econômica) teve na
infraestrutura energética um dos elementos balizadores para a intensificação
do capital na apropriação e exploração da natureza, bem como, elo articula-
dor a outros projetos de infraestruturas (políticas territoriais), planejados e
executados pelo Estado, com financiamento internacional.
Dois processos nos parecem importantes, sendo: a) o respaldo no conceito
de fronteira (para melhor entendimento ver PAULA; MORAIS, 2010), seja
no sentido geopolítico de controle pelo Estado nacional, que representa em
torno de 58% do território brasileiro, mas em especial da fronteira enquanto
mecanismo econômico de apropriação, disputas, territorialização de/no
espaço geográfico pautado em diferentes formas de uso que se chocam, em
suas racionalidades espaço-temporais diferenciadas. Ou seja, de uma relação
metabólica entre homem e natureza respaldada fundamentalmente no valor
de uso (populações indígenas, caboclos etc.), para uma relação mediatizada,
mercantilizada da natureza e do território para o valor de troca; b) o papel do
Estado a partir da segunda metade do século XX para a integração nacional
e o papel que coube à Amazônia enquanto fronteira econômica no projeto de
Nação, e como a questão energética (hidroenergética) se insere nesse contexto.

29 Termo empregado no título da Nota Técnica Nº. 8, do Observatório de Investimentos na Amazônia.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 57

Influenciados por Mészáros (2007), somos levados a nos questionarmos


se a ação do Estado brasileiro e do grande capital nacional e internacional,
teria como consequência no “desafio do desenvolvimento”, da modernização
e da integração, um destrutivismo ímpar para as populações e natureza na
Amazônia, já que desse processo de desenvolvimento desigual e combinado
(THEIS, 2009), o preço pago pelos “de baixo” para a ação dos “de cima” foi
alto, com a vida, com a desterritorialização, com “a própria degradação do
outro nos confins do humano” (MARTINS, 2009), o que refletem os múltiplos
conflitos observados na monopolização do capital nacional e internacional
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nessa região.
Se a sociedade brasileira acreditou, a partir dos discursos ideológicos
oficiais (como o nacionalista) da necessidade de integração regional para a
defesa da natureza amazônica e de seus recursos naturais (minérios, madeira,
água etc.) frente a um processo de internacionalização regional, o resultado
disso foi a exclusão desencadeada pelo “fracasso da modernização e do desen-
volvimento conservador e autoritário”.
Com a ditadura militar (1964-1985) os governos (im)põem em prática um
amplo programa de ocupação econômica e geopolítico da Amazônia brasileira,
considerados oficialmente em bases modernas, haja vista a não orientação
com as oligarquias regionais, como ocorrida com o extrativismo da borracha,
conforme indicado por Porto-Gonçalves (2001). Em termos ideológicos, os
programas e ações inicialmente estavam impregnados de um discurso ideo-
lógico nacionalista, embora o fosse na aparência (OLIVEIRA, 1991), de que
a integração regional tivesse uma base de ocupação econômica, ou seja, de
“integrar” a Amazônia ao Brasil para que a mesma e sua natureza (recursos
naturais) não fossem entregues para os estrangeiros, o que fechava o lema
“para não entregar”, ou seja, “integrar para não entregar”.
A região deveria ser integrada, e assim já estava sendo antes dos militares,
pois com o governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1955-1960) houve
a construção de Brasília e os seus Planos de Metas, propiciando a expansão
da fronteira para o Centro-Oeste brasileiro, o que deu base para as primeiras
grandes rodovias adentrarem na região como a Belém-Brasília (1961), e poste-
riormente a Brasília-Cuiabá-Santarém (ligando Mato Grosso à Transamazônica)
e a Brasília-Cuiabá-Porto Velho-Rio Branco, além da faraônica Transamazô-
nica (1972), no sentido Leste-Oeste (ligando o Nordeste e a Belém-Brasília
à Amazônia ocidental — Porto Velho e Rio Branco). Assim, alguns motivos
potencializaram, pós 1960, essa integração amazônica ao contexto nacional,
com destaque para: necessidade de novos mercados consumidores para o capi-
tal industrial — produtos industrializados do Centro-Sul; expandir o mercado
de trabalho para empregar o excedente de trabalhadores (urbanos e rurais) do
Nordeste e os já expropriados e expulsos pela modernização da agricultura na
58

regiões Sul e Sudeste; necessidade de aproveitar o potencial mineral, madei-


reiro, pesqueiro, extrativista da Amazônia com vistas à exportação; procurar
novas terras mais baratas para investidores do Sul-Sudeste do país. No que
tange aos aspectos geopolíticos pode-se destacar a ação do Estado com o con-
trole territorial e de “segurança nacional”, com a defesa da fronteira e ocupação
do espaço, considerado equivocadamente como “vazio demográfico”, bem
como válvula de escape para as pressões sociais em outras regiões, como a
seca no Nordeste e a modernização da agricultura no Centro-Sul (LOUREIRO,
2004; OLIVEIRA, 1990, 1991; BECKER, 2004; MARTINS, 2009).

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O respaldo encontrado pelos governos militares, e os pactos com a bur-
guesia e o capital nacional e internacional, com aval e apoio dos Bancos
Multilaterais como o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), se fez inicialmente pela “Operação Amazônia”, como
uma ocupação mais efetiva do território, embora com elementos contraditórios
como: o incentivo à grande propriedade para criação extensiva de gado bovino,
reconhecida pela baixa geração e precariedade do trabalho empregado (além
do trabalho escravo); incentivo à colonização oficial para ocupar efetivamente
a fronteira, via, por exemplo, projetos de colonização na área de 200 km (100
km de cada lado — com a federalização das terras devolutas na Amazônia
Legal), das rodovias que integravam o território regional; além dos grandes
projetos agropecuários e minerais, via polos de desenvolvimento, que também
se estenderam para os projetos industriais calcados na Zona Franca de Manaus.
O respaldo financeiro para a atração dos grandes capitais, tanto nacionais
como estrangeiros, vão se dar pelos incentivos fiscais e financiamentos (como
desconto de 50% do imposto de renda devido pelos seus empreendimentos nas
áreas mais desenvolvidas do país), que pudesse assim se tornar base para cons-
truir uma empresa agropecuária ou mineral na região amazônica. O governo
financiava, então, 75% desses empreendimentos e os capitalistas entravam
com 25% de recursos próprios. Para romper o bloqueio que a propriedade da
terra fazia para os empresários de outros setores, Martins (2009) afirma que
o Governo Federal (militar) oferecia aos empresários a “recompensa dessa
doação de 75% do capital de que necessitam para o novo empreendimento. [...]
Tratava-se de uma doação e não de um empréstimo” (MARTINS, 2009, p. 75).
Em termos territoriais e sua articulação com o planejamento governamen-
tal, não podemos deixar de referenciar o papel importante dos Programas de
Desenvolvimento e sua relação com a região amazônica, com destaque para:

a) Programa de Integração Nacional (PIN — Decreto Lei nº. 1.106 de


16/06/1970), com ênfase para a abertura de rodovias (Transamazô-
nica e Cuiabá-Santarém), e inicialmente na faixa de 10 km de cada
lado da rodovia para reforma agrária e projetos de colonização;
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 59

b) I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1972/1974), devido


ao seu aporte de integração rodoviário, ocupação humana via pro-
jetos de colonização oficial e particulares, e com desenvolvimento
econômico com incentivos fiscais da Superintendência de Desen-
volvimento da Amazônia (SUDAM) ao setor privado, além dos da
Zona Franca de Manaus;
c) II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND, 1975/1979), que
teve como destaque os Programas de Polos Agropecuários e Agro-
minerais da Amazônia, no caso para a região o POLAMAZÔNIA,
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com “objetivo de promover o aproveitamento integrado das poten-


cialidades agropecuárias, agroindustriais, florestais e minerais, em
áreas produtoras da Amazônia” (apud LOUREIRO, 2004, p. 99)30;
d) O Projeto RADAM (Radar da Amazônia, criado em 1970) incorpo-
rado ao PIN que, para Oliveira (1991), foi importantíssimo para a
“descoberta dos recursos minerais da Amazônia”, que desembocou
no programa dos Polos Agrominerais e Agropecuários da Amazônia.

Os pontos citados (embora de modo sumário) mostram a abertura pelo


Estado e os incentivos para a apropriação da natureza pelo grande capital,
bem como as formas de “controle do trabalho” na região amazônica, ou seja,
abrem-se os mecanismos via fronteira econômica e seus desdobramentos
articulados pelas frentes pioneiras para que o capital possa se apropriar dos
recursos como terra, água (UHEs), minerais, madeireira, além de outras como
as florestas etc., para sua reprodução com base na exploração do trabalho.
Conforme nos ensina Martins (2009, p. 133), o estudo e análise da fron-
teira no Brasil, e na Amazônia em particular, revela sua situação de conflito
social, que na sua “interpretação, nesse conflito, a fronteira é essencialmente
o lugar da alteridade”, de descoberta do outro e de desencontro. “O desencon-
tro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas”, da reprodução
dos grupos que se levado em conta a complexidade da frente de expansão e
frente pioneira, permite compreender que os grupos estão situados diversa-
mente no tempo da história — indígenas, caboclos, camponeses, ribeirinhos,
seringueiros. Mas tempo e espaços são “revelados” na fronteira, e em suas
expressões como frente de expansão e frente pioneira, pode-se compreender
os avanços, meandros e estratégias do capital para sua reprodução ampliada,
em seu desenvolvimento desigual, contraditório e combinado, da sua expansão
territorial no domínio, controle e exploração/superexploração do outro, à sua
30 A lógica desses polos era irradiar o desenvolvimento em um espaço maior, embora tenha ficado concentrado
no Polo Carajás, e no Programa de Desenvolvimento Regional de Infraestrutura do Complexo de Alumínio
Albras-Alunorte, como o projeto hidrelétrico de Tucuruí, com suporte energético a esses empreendimentos.
O destaque então do II PND foi a exploração da mineração e grandes projetos agropecuários.
60

lógica. Como arremata Martins (2009, p. 157, grifos no original): “A teoria


da fronteira é, no meu modo de ver, basicamente um desdobramento da teoria
da expansão territorial do capital”.
Ainda sobre a questão do conceito de fronteira para a análise das trans-
formações amazônicas, Becker (2004, p. 20) demonstra que “a fronteira como
espaço não plenamente estruturado, e, por isso mesmo, potencialmente gerador
de realidades novas”, contando que “sua especificidade é a sua virtualidade
histórica”, faz com que, apesar das grandes transformações ocorridas na região
nas duas últimas décadas “ainda permanece válido”.

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No contexto da mundialização do capital a Amazônia assumiria um novo
significado geopolítico como “fronteira do capital natural em nível global”.
Em escala nacional apresenta-se uma “grande questão”, afirma Becker, que é a
possibilidade de “recrudescimento da fronteira em certos momentos, vinculado
a múltiplas condições que reativam fatores estruturais”. Isso significaria que a
fronteira funciona como uma válvula de escape reguladora para investimen-
tos de atores capitalizados, ora se expandindo, ora permanecendo estável,
dependendo da conjuntura nacional/internacional, como o que corre com a
soja, madeira e pecuária que explicaria a retomada da expansão da fronteira.
Portanto, “a reativação da fronteira é um problema crucial para a Amazônia”
devido às suas riquezas como “biodiversidade, as florestas, a água”.
Outra contribuição para o entendimento da Amazônia, ainda como
fronteira, é apresentada por Loureiro (2009, p. 74), que analisa a Amazônia
no século XXI, que passa de “fronteira econômica” do país à “fronteira do
mundo”, vista, respectivamente, entre os anos de 1970-1980 e após os anos
de 1990 aos atuais. Assim, demonstra ter havido uma ruptura histórica que
produziu uma nova fronteira que se consolida na década de 1990, mas que tem
sua raiz na crise dos anos de 1980 e na ação do Governo Federal com outra
estratégia para a exploração da região, tida com a instalação dos mega-pro-
jetos amazônicos — como a construção de Tucuruí, o Projeto Ferro-Carajás
e o Projeto Albrás, tendo aquela UHE como base. A engrenagem passaria
então a ser movida com a mudança do perfil da fronteira nacional (integração,
colonização etc.) em direção ao mercado internacional, “[…] cada vez mais,
a fronteira amazônica se transforma numa fronteira de commodities voltada
para o mercado internacional”.
É neste contexto que presenciamos, a partir dos discursos do desenvol-
vimentismo sustentável, processos de “espoliação” de recursos naturais sob
o chamado capitalismo verde. É o caso da reterritorialização capitalista na
Amazônia Sul-Ocidental (área da tríplice fronteira entre Brasil-Bolívia-Peru)
que a partir dos mecanismos dessa economia verde como o Pagamento por
Serviços Ambientais (PSA), Manejo Florestal Sustentável (MFS), Programa
de Redução de Emissões por Desflorestamento e Degradação (REDD), entre
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 61

outros, que Paula e Morais (2013, p. 356) analisam que “a Geopolítica do con-
trole dos bens naturais passa a orientar a reterritorialização do capital ancorada
nos novos e velhos interesses, valendo-se, sobretudo, da instrumentalização
do discurso ambientalista”.
Aqui já vamos chamando a atenção do leitor ao fato do bem natural água
estar cada vez mais na mira deste processo de mercantilização, em especial
tendo a ação do Estado em transformar a região cada vez mais na nova “fron-
teira hidroenergética”. Isso nos levaria à hipótese de que como “fronteira de
commodities”, a ação do Governo Federal e do Estado em prol de uma Ama-
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zônia como “fronteira hidroenergética” do setor elétrico nacional, permite uma


forte articulação nos mecanismos de mercantilização da natureza, da vida e
dos territórios que passariam a estar cada vez mais voltados para a lógica da
reprodução ampliada do capital em detrimento da reprodução da vida, de valor
de uso a valor de troca. Como consequência há o aumento do desmatamento,
a luta pela terra disputada agora pelas commodities frente ao campesinato,
indígenas e populações ribeirinhas, extrativistas, além da intensificação da
grilagem de grandes extensões de terras públicas.
Por fim, um ponto que chamamos a atenção, devido à necessidade do
recorte, é que esse “novo/velho” contexto da fronteira econômica amazônica
exige cada vez mais infraestruturas pesadas, financiadas e executadas por parte
do Estado, como novas estradas, recuperação e asfaltamento das rodovias fede-
rais e construção de novas UHEs, como as do Complexo Hidrelétrico Madeira
e Belo Monte, o que geram imensos impactos sobre o meio rural, florestas e
na dinâmica urbana, além da apropriação de terras indígenas, quilombolas,
ribeirinhas, extrativistas. Portanto, se o capital passa a atuar de modo mais
independente em alguns setores econômicos na Amazônia, transformando-a
em “fronteira de commodities”, por outro, não podemos deixar de considerar
o papel central do Estado dotando o espaço regional de grandes obras de
infraestrutura, como os grandes projetos hidroenergéticos, que são base para
essa investida do capital na região nas bases esboçadas até o momento.
A fronteira amazônica, a partir das diversas formas de intervenção esta-
tal e do capital na região, teve mudanças significativas no seu processo de
organização espacial, que tendo como elos importantes de apropriação econô-
mica, cultural e territorial, com destaque para dois padrões que se alteraram
ao longo de sua história. Porto-Gonçalves (2001) assim os denominam: a
organização do espaço rio-várzea-floresta para o padrão de organização do
espaço estrada-terra firme-subsolo.
Isso nos leva a questionarmo-nos, com as grandes obras de geração de
energia o que pode ser alterado nesse padrão de organização espacial amazô-
nico? A análise do Complexo Hidrelétrico Madeira nos daria quais pistas? A
lógica exógena do enclave seria o padrão do capital transnacional e um novo
62

elemento dinamizador da fronteira econômica amazônica em constante movi-


mento, com mais essa ação do Estado brasileiro? De fato, mercantilização e
apropriação da natureza não vêm sem as formas de controle e exploração do
trabalho, como elemento central para seu processo de apropriação e transfor-
mação em valor de troca.
Nesse contexto o conceito de agrohidronegócio (THOMAZ JÚNIOR,
2010) é revelador por possibilitar a análise das conexões e relações das for-
mas de apropriação dos recursos terra e água e das formas de subordinação e
degradação das relações de trabalho nos processos de investida do capital no

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território nacional, bem como as mediações que articulam os conflitos e as
contradições fundantes da relação capital trabalho, onde o entendimento das
suas dinâmicas territoriais permite desvendar suas formas de materialização,
de alienação, bem como os conflitos e resistência que daí surgem.
Assim, a dinâmica do agronegócio em diferentes biomas brasileiros, a
ação do Estado no fortalecimento dos agrocombustíveis, mas não só como
a “fronteira de commodities” analisada por Loureiro (2009), as práticas da
“economia verde” discutidas por Paula e Morais (2013), além da instalação
de projetos de novas usinas hidrelétricas na Amazônia, o pacto com o grande
capital nacional e internacional, bem como com as grandes construtoras, nos
chamam ao debate, conforme Thomaz Júnior (2009), para a problemática não
somente da concentração de terra e riqueza, mas para o monopólio e mercan-
tilização da água em prol do processo de acumulação do capital, respaldados
pelo discurso do desenvolvimento econômico nacional, com ares e roupagem
de sustentabilidade. Portanto, aspectos importantes da dinâmica do capitalismo
brasileiro no contexto do “Novo Desenvolvimentismo”.
A gestão e a forma de mercantilização da natureza para o recurso água,
que nos interessa, é sobre a gestão das outorgas de uso da água para a gera-
ção de energia hidrelétrica na Amazônia, que tira esse bem natural da posse
de camponeses, indígenas, ribeirinhos, seringueiros, e o coloca sob controle
e domínio dos grandes conglomerados de capitais que vão explorá-lo como
matéria prima para gerar a mercadoria energia, e com ela decide-se e faz a
gestão dos usos que cabem as represas e nos rios amazônicos.
Esse diálogo nos possibilita analisar como no contexto de inserção da
Amazônia na dinâmica de acumulação do capital nacional e internacional,
como a nova fronteira hidroenergética nacional, respaldada pela atuação do
Estado brasileiro, em especial pelas políticas do setor energético nacional dos
governos do ex-Presidente Lula e da Presidenta Dilma Rousseff, se inserem
as formas degradantes do trabalho nas grandes obras de produção de energia.
Portanto, a análise do tema feita por Alves (2014) prioriza a precarização,
terceirização, intensificação, desemprego, além das formas de resistência
e revoltas de trabalhadores nas Usinas de Jirau e Santo Antônio, diante da
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 63

intensa exploração do trabalho, pois busca desvendar os complexos processos


que envolvem a classe trabalhadora frente às investidas do capital (nacional e
internacional) nessas grandes obras de geração de energia hidrelétrica na Ama-
zônia, o que vem ocorrendo na região com a atual política energética brasileira.
Isso porque, a Amazônia Legal nas últimas décadas voltou a ser foco
do governo federal para a construção de novas UHEs (além da reativação
de velhos projetos, como Belo Monte), como condição, no discurso oficial,
de tirar o país de uma crise energética intensificada após os “apagões”. Fato
que corrobora a pressão à sociedade brasileira para que a energia hidrelétrica
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seja colocada como alternativa mais viável economicamente, além de ser


considerada renovável/sustentável diante da térmica e nuclear, mas que não
evidencia os problemas da forma como o modelo do sistema elétrico nacional
foi gestado politicamente, sem uma soberania nacional.
Os grandes projetos para a Amazônia, na primeira década do século
XXI, constituem-se de um olhar geoeconômico articulado à Iniciativa para
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) com ações
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), dos Planos Decenais de
Energia (PDEs) e do Plano Nacional de Recursos Hídricos. Portanto, conforme
Sevá Filho (2010, p. 115–116) constata em sua análise, a partir da expressão
“desenvolvimento” uma “acumulação de capital em grande escala, ampliação
da economia mercantil, apropriação de terras, rotas e recursos”, e para tanto
no jogo das relações internacionais que a região se insere, há a expansão de
infraestrutura produtiva pesada, que se concretiza dentro da lógica do circuito
econômico global. “Assim, essa expansão da infraestrutura e do capital fixo
sempre se faz à custa dos recursos naturais locais e da renda dos países e das
regiões onde são realizadas as instalações novas ou ampliadas”.
A fala oficial do Governo Federal fundamentava-se nos argumentos de
que tais obras contribuirão para fortalecer o Sistema Interligado Nacional
(SIN), gerar empregos e alavancar o desenvolvimento do País, sem os temo-
res da falta de energia e como base ao “crescimento acelerado nacional”
— velhos discursos, velhas práticas com ares de novo — um dos lemas do
“Novo Desenvolvimentismo”.
As ações para instalação de novas UHEs na Amazônia ocorrem em detri-
mento de uma atenção necessária, porém negligenciada por parte dos governos
federal, estadual e municipal dos impactos ambientais, sociais, econômicos,
culturais e territoriais. A meta continua sendo a racionalidade na esfera econô-
mica, ainda mais com o processo de privatização que o setor passou pós 1995
e mantido em 2004 com o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
inclusive “melhorado” com o “Novo Modelo” do setor elétrico brasileiro,
mantido pela Presidenta Dilma Roussef.
64

O setor elétrico brasileiro não fugiu a essa regra e também passou por
reestruturações com o Programa Nacional de Desestatização (PND) con-
solidando um novo modelo baseado na desverticalização do sistema elé-
trico, fundada em princípios comerciais e de concorrência via modelo de
desverticalização (GONÇALVES JÚNIOR, 2007), desmembrando as fases
que envolvem o sistema (geração, transmissão, distribuição, somando-se à
comercialização), além das privatizações de distribuidoras e geradoras de
energia, a implantação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL),
implementando-se o novo modelo energético brasileiro.

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É nesse sentido que as disputas territoriais frente à construção de UHEs é
um tema que permite compreender a inserção atual da Amazônia no contexto
do chamado agrohidronegócio (THOMAZ JÚNIOR, 2009), que no âmbito
desta pesquisa articulou-se com a energia, ou seja, ao território do hidronegó-
cio-energético, no qual a água mais do que nunca passa a ser o foco de uma
forte investida do capital nacional e internacional como um recurso econô-
mico, matéria prima básica para a mercadoria energia, visto a partir da ótica
da sua mercantilização. Em suma, assim se coloca a Amazônia como a “nova
fronteira hidroenergética” nacional, ou dito de outro modo, constituem-se no
“Novo Desenvolvimentismo” uma retomada da região amazônica como a
fronteira hidroenergética, tendo em vista o desastroso histórico de implantação
de grandes UHEs na região no último quarto do século XX.
Assim, identificaremos qual o legado dos grandes projetos hidrelétricos
na Amazônia brasileira, implementados na fase anterior ao Novo Desenvolvi-
mentismo, o que podemos denominar da expansão do setor elétrico nacional
para a região.

Grandes projetos hidrelétricos na Amazônia... lições do passado,


pesadelo no presente

No contexto do “milagre econômico”, do projeto modernizador do


“Nacional Desenvolvimentismo” posto em prática pelo Estado brasileiro
para inserir a região amazônica nacionalmente, a infraestrutura teve um papel
de peso, e a energética (hidroelétrica) foi uma delas.
Até a década de 1980 as regiões Sul, Sudeste e Norte eram consideradas
referências na geração de energia, posteriormente, com os planos de expansão
as bacias hidrográficas da região Norte passaram a ser objeto de intervenção.
Do ponto de vista da contextualização histórica, alguns pontos demonstram
a evolução do setor elétrico na Amazônia brasileira, dos quais se destacam:
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 65

a) Em 1934, com o Código de Águas, houve condições nacionais para


a utilização do potencial hídrico regional; até 1939 eram poucas
as usinas para a produção de energia; em 1952 foram criadas as
Centrais Elétricas de Manaus (CEM); na década de 1960 ocorreu a
criação de várias Centrais Elétricas estaduais; em 1968 foi criado
o Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia, que
embasou a criação da ELETRONORTE (1973);
b) A criação da ELETRONORTE (Central Elétrica no Norte do Brasil),
uma subsidiária da ELETROBRAS (criada em 1962) teve como
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base “gerir o aproveitamento de Tucuruí” (BERMANN, 1996,


p. 18), mas também “com o objetivo de realizar estudos de inven-
tário e viabilidade econômica de aproveitamentos hidrelétricos, a
transmissão de energia voltada para o suprimento às concessionárias
estaduais e para a região Nordeste” (OLIVEIRA JR, 1995, p. 240).
Logo, com a ELETROBRAS e a ELETRONORTE houve uma ação
de planejamento do setor elétrico com olhar nacional, no qual, a
partir (especialmente) dos Planos 2010 e 2015, pode-se afirmar
que o setor passou a compreender um papel importante da região
amazônica atrelada a uma lógica exógena da política energética,
seja se inserindo no planejamento como geradora de energia elé-
trica para “exportar”31 para a região Nordeste e também Sudeste, a
longo prazo, seja como fornecedora de energia para as indústrias
eletrointensivas de ferro e alumínio da região. Fato que a Amazônia
se incluiria subordinada e com enclaves de grandes hidrelétricas para
“exportar” energia elétrica, em um primeiro momento embutida nos
produtos eletrointensivos, e a longo prazo exportando energia elé-
trica para outras regiões brasileiras, o que já ocorria para o Nordeste;
c) A UHE de Tucuruí (1974-1984), como já enfocado, esteve vinculada
à formação dos grandes projetos modernizantes/industrializantes da
região amazônica, em especial no complexo de alumínio ALBRÁS/
ALUNORTE e ALUMAR, embora não só, tendo em vista o Grande
Projeto Carajás. Esta foi um exemplo alarmante do lugar reservado
ao potencial hidroenergético da Amazônia;
d) A construção de outras importantes UHEs e com significativos
impactos ambientais, como a UHE de Balbina (1980) e Samuel
(1983), também são significativas, nesse contexto de grandes UHEs
na Amazônia (Mapa 1).
31 Com os Planos 2010 e 2015 da ELETROBRÁS, Oliveira Jr (1995, p. 247) afirma que essa estratégia se
torna mais clara, pois com o possível esgotamento da capacidade das regiões Sudeste e Nordeste de se
autossustentarem, há o destaque para o suprimento de suas demandas também pelo potencial hidrelétrico
da região Amazônica “com troncos de transmissão oriundos das usinas do Xingu, Madeira e dos formadores
do Tapajós [...]”.
66

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TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 67

De modo objetivo, registraremos alguns pontos importantes da constru-


ção destes projetos hidrelétricos na Amazônia, os quais destacam-se:

a) A geração de energia não visou atender as demandas da população


regional, sem acesso à eletricidade, mas sua geração esteve vol-
tada principalmente para atender o grande capital em seu processo
de exploração e mercantilização da natureza na Amazônia, como
o caso de Tucuruí, uma usina com investimento inicial em 1,2
bilhões de dólares (valor de 1974) bancado pelo Estado, para uma
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capacidade instalada de 3.960 MW em sua primeira etapa, e total


de 7.960 MW na fase I e II. Bermann (1996) demonstra que em
torno de 60-62% do total de energia gerado era consumido pela
ALBRÁS e pela ALUMAR, com tarifa correspondente a 20% do
preço internacional do alumínio;
b) O Estado brasileiro manteve o subsídio tarifário a tais empresas
na Amazônia, pelo menos no período de 1980 a 2004, quando
venceria a vigência dos contratos. Além dessas duas empresas, o
Projeto Ferro Carajás da CVRD (com prazo de vigência indeter-
minado), a fábrica de silício metálico da Camargo Corrêa Metais
em Tucuruí (prazo até 01.04.2018), também são beneficiárias de
subsídios tarifários. Isso representa que a ELETRONORTE abriu
mão de faturar US$ 1,2 bilhões por meio da concessão de subsídio
(PINTO, 1996);
c) Tucuruí é um exemplo dos nefastos impactos ambientais no bioma
amazônico, com um reservatório ocupando 2.430 Km2, inundando
14 povoados, 09 reservas indígenas pertencentes a cinco povos
indígenas diferentes, 160 km de rodovias, e gerando o desloca-
mento compulsório de 05 mil famílias, com estimativa de popu-
lação total afetada variando entre 25 a 55 mil pessoas (BECKER;
NASCIMENTO; COUTO, 1996);
d) Outro impacto refere-se aos graves problemas sociais, como
os mecanismos de indenização que não reconheceu as famílias
posseiras, ou seja, 2/3 do total de famílias atingidas, já que os
detentores dos títulos de propriedade eram de 1.800 famílias (BER-
MANN, 1996);
e) Se Tucuruí constitui-se no exemplo de geração de energia para
suprir demandas e usos exógenos (PINTO, 2011), voltados
ao grande capital, Balbina é o exemplo da desgraça ambiental
ampliada a grande potência. Impactos ambientais gerados por essa
68

lógica de mercantilização e degradação da natureza, tendo como


consequência elevado “custo ecológico” das hidrelétricas. Como
afirma Mari(1996, p. 964), “a construção de barragens [UHEs na
Amazônia brasileira] provoca bruscas mudanças, perdas e riscos
incontroláveis [...] que tem escapado a esfera de decisões. A pro-
blemática ambiental está relacionada a balanço de perdas — de
energia, de espécies e de qualidade de vida [...] dos diferentes
grupos sociais — indígenas, camponeses sobre sua existência nes-
ses espaços”, quando não sua própria vida. Balbina e Tucuruí são

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exemplos que não podem ser esquecidos. Dentre esses impactos,
autores como Fearnside (2009) e Tundisi (2007) também analisam
os impactos de empreendimentos hidrelétricos quanto a emissão
de gases de efeito estufa, em decorrência dos seus grandes reser-
vatórios, fato desmistificador da energia limpa, não poluente. “Os
impactos da construção de hidrelétricas na Amazônia decorrem
principalmente do efeito da decomposição de vegetação terrestre
inundada, a grande área inundada, a deterioração da qualidade da
água e a perda de serviços dos ecossistemas terrestres e aquáticos,
incluído a biodiversidade e a alteração dos processos” (TUNDISI,
2007, p. 111).
f) Embora na bibliografia pesquisada não tenhamos encontrado aná-
lises da degradação do trabalho diretamente envolvidas na constru-
ção das usinas hidrelétricas, há referência das formas de exploração
do trabalho no contexto dos grandes projetos. O Complexo Carajás
Ferro e Alumínio da ALBRÁS-ALUNORTE, além da ALUMAR,
apresentaram mecanismos de controle e exploração do trabalho
desde formas articuladas aos novos mecanismos de gestão do tra-
balho e da produção, como terceirização, flexibilização, controle de
qualidade (CASTRO, 1996 e 1995), mas também formas precárias
e de superexploração do trabalho na construção desses canteiros
de obras (FONTES, 1996), da qual a UHE de Tucuruí faz parte,
embora não tenha sido um caso analisado pelos autores estudados.

Embora de modo sumário, os pontos citados nos permitem eviden-


ciar o papel centralizador e com o enfoque prioritariamente econômico do
Estado (via ELEBRAS, ELETRONORTE etc.) no planejamento e execução
de grandes hidrelétricas na Amazônia. Assim, Peiter (1996), analisando o
planejamento do setor elétrico e a inserção da Amazônia neste contexto, via
grandes projetos de transmissão e o planejamento de grandes UHEs previstas
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 69

pela ELETROBRAS nos Planos Decenais de Energia Elétrica referentes a


2010 e 2015, respectivamente, elaborados em 1987 e 1993, demonstra que
no período 2005-2015 o Estado previa a expansão dos sistemas elétricos e a
necessidade de se contar com as UHEs de grande porte a serem construídas na
Amazônia para suprimento das regiões Sudeste e Nordeste, sendo elas: UHE
de Belo Monte (11 mil MW, no rio Xingu), Altamira (5.720 MW, rio Xingu),
TA-1 (9.528 MW no rio Tapajós) e MR-1 (6.854 MW, no rio Madeira).
Portanto, já havia indicativo de que “a Amazônia se integra[ria] aos demais
sistemas nacionais [projeto de transmissão da Amazônia, via exportação de
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grandes blocos de energia hidrelétrica] na condição de ‘fronteira de recursos’


ou ainda na condição de ‘periferia’ do sistema ‘core’ do Sudeste” (PEITER,
1996, p. 901; COELHO, 2010).
Essa análise também é feita por Bermann (1996) e Zylbersztajn (1996),
os quais levantavam a hipótese e previsões de que os casos dessas grandes
hidrelétricas na Amazônia seriam usados pelos planejadores oficiais de que
a capacidade hidrelétrica da região deveria ser aproveitada no futuro com
base no modelo de desenvolvimento regional de exportação de energia para
o Centro-Sul, e como base para atender a demanda eletrointensiva, isso,
claro, em detrimento de um desenvolvimento de fato regional inclusivo.
Bermann faz uma “previsão” de um futuro próximo em que “num clima de
chantagem” movido pela “síndrome do blackout”, permitirão articulações
complexas com vistas à exportação da oferta de energia elétrica no País.
Assim, tais planejadores foram movidos pela vertente “que admite um caráter
irreversível do aproveitamento hidrelétrico em grande escala na Amazônia”,
como os novos aproveitamentos como Belo Monte no rio Xingu (na época
com capacidade de 6.600 MW), Tucuruí II (1.320 MW), além de Serra Que-
brada (1.200 MW) — ambas no rio Tocantins — e Samuel no rio Jamari,
que estava em construção.
Em termos regionais, o processo demonstra uma dicotomia entre a
lógica dos grandes projetos atrelados aos interesses externos à região, como
gerar energia para abastecer empresas eletrointensivas, e a ausência de um
desenvolvimento considerado endógeno. Apesar disso, vários autores con-
sideram que o bioma Amazônia seria cada vez mais solicitado para atender
a crescente demanda do mercado nacional, em especial como exportadora
de energia para os grandes centros urbanos, e regiões industrializadas. Esta-
ria assim estabelecido um paradoxo entre região com rica reserva de água
e potencial para a geração de energia hidrelétrica e, devido ao modelo de
desenvolvimento regional, manifesta uma carência de energia (BECKER;
NASCIMENTO; COUTO, 1996).
70

Nessa lógica do Estado para o setor elétrico nacional e o lugar delegado


da região amazônica, em termos territoriais, as grandes hidrelétricas atuariam
mais como enclaves, ou polo de sucção de riqueza, do que geradora de riqueza
(polos de desenvolvimento). Além, é claro, dos grandes impactos sociais,
econômicos, ambientais e étnicos decorrentes da valorização e produção do
espaço daí decorrente mediante inundação das terras camponesas, povos
indígenas e populações originárias e comunidades tradicionais.
Como vemos em Almeida (1996), há no discurso do desenvolvimento
pelos planejadores oficiais a “importância” das grandes obras de infraes-

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trutura (energética, petrolífera, mineral, de transporte etc.), que incidem
sobre territórios já ocupados por camponeses e indígenas, como sendo obras
necessárias “ao progresso e modernização” nacional. Para tanto, empresas
estatais, organismos militares, órgãos fundiários e órgãos indigenistas ofi-
ciais acabam atuando para o “deslocamento compulsório” dessas popula-
ções, e para tanto usam de termos como “desocupação”, “esvaziamento”,
“transferência”, “remoção”, o que se faz em vista ao “reassentamento” e
“relocação”. De tal modo, há a desconsideração pelas relações territoriais,
sociais, culturais e étnicas preexistentes e que com o “reassentamento”, há
no mínimo uma desconsideração às práticas de existências de camponeses,
indígenas, que não leva em conta “o sistema de apossamento preexistente”.
Como exemplo das Barragens de Tucuruí, Balbina e Samuel, há registro,
respectivamente, de deslocamento de povos/etnias indígenas como Parakanã
e Gavião, Waimiri-Atroari e Urue-au-au.
Minimizam-se nos termos empregados o “espaço perdido” (HÉBETTE,
1996, p. 545), a desconstrução do lugar com a desterritorialização, o que
passou a ser a trajetória do “povo da fronteira amazônica”, “feito de índios,
de caboclos e de colonos migrantes, de um povo que foi tirado de sua tran-
quilidade e quietude, passou para a revolta, denúncia e resistência, para se
tornar no auge de sua trajetória, autor de um mundo diferente”. Exemplo de
lutas e conquistas como as dos povos da floresta no estado do Acre com as
Reservas Agroextrativistas.
Isso nos permite trabalhar com a hipótese que o Estado, de planejador e
executor na fase do Nacional Desenvolvimentismo, executando ações impor-
tantes para a inserção da Amazônia brasileira como fronteira hidroenergética,
retomou esse projeto no contexto do “Novo Desenvolvimentismo”, e como
condição de fornecedora de energia hidrelétrica para o propagado crescimento
acelerado, no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Com o PAC, um dos pilares do “Novo Desenvolvimentismo”, reforçou-
-se a retomada do Estado brasileiro no planejamento de grandes hidrelétricas,
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 71

e com elas reforça-se também o modelo energético para atender os grandes


consumidores, especialmente os setores eletrointensivos, a exportação de
commodities de todos os gêneros, bem como de criação e articulação de
infraestrutura ao território, o que nas palavras de Milton Santos (2002) pode-
ríamos entender como um sistema de objetos aptos a dar fluidez ao território,
um híbrido entre ação-objeto-intencionalidades cada vez mais voltados para
a reprodução ampliada do capital, tendo como base a mercantilização e apro-
priação da natureza e formas reinventadas e cada vez mais elaboradas de con-
trole e exploração/superexploração do trabalho nesses “espaços do capital”.
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É neste contexto que a Amazônia passa a ser considerada uma impor-


tante fronteira — a “nova/velha fronteira hidroenergética nacional” — para a
geração de energia nova (a partir de novos leilões preconizados pelo “Novo
Modelo” do Setor Elétrico), isso além das UHEs em operação na Amazônia,
em torno de 9.591 (MW) de potência instalada, ou seja: Balbina (AM) (250
MW), Caoracy Nunes (AP) com 67 MW, Curuá-Una (PA) 30 MW, Tucuruí
I e II (PA) com 8.125 MW, Samuel (RO) com 216 MW e Luís E. Magalhães
(TO) com 902 MW (Conhecida como Usinas do Lajeado), ver Mapa 1.
Mas qual o sentido atual de se pensar a Amazônia Legal como a “nova/
velha fronteira hidroenergética nacional”, projeto este já esboçado há muito
tempo pelo Estado e gestores do setor elétrico? O que muda entre essas
duas etapas de expansão do setor elétrico nacional quanto à consolidação da
Amazônia como fronteira hidroenergética, no Nacional Desenvolvimentismo
e no “Novo Desenvolvimentismo”?
Na próxima seção analisaremos o planejamento governamental na última
década para a expansão de UHEs na Amazônia brasileira.

Planejamento governamental no “Novo Desenvolvimentismo” e a


construção de UHEs na Amazônia: da “corrida por megawatts”
à apropriação de novos territórios pelo capital

A ação do Governo Federal em projetos hidrelétricos para a Amazônia


brasileira pode ser compreendida a partir de Planos para o setor, como: o
Plano Nacional de Energia 2030 (PNE 2030), os Planos Decenais de Energia
2020 e 2021 (PDE 2020 e PDE 2021), o Programa de Aceleração do Cresci-
mento (PAC 1 e 2), e o Plano Plurianual (PPA) 2012-2015.
Deste modo, tais mecanismos de planejamento realizados após 2011, no
Governo da Presidenta Rousseff — recorte temporal referente ao 3º manda-
tado presidencial do Partido dos Trabalhadores (PT) à frente do Executivo
— são mantidas as linhas gerais do “Novo Desenvolvimentismo” para o
72

setor elétrico na referida região amazônica. Como durante os governos do


Presidente Lula, a então ministra Dilma Rousseff esteve à frente do Ministério
de Minas e Energia (MME) e, posteriormente, da Casa Civil, e entre 2011 e
2016 à frente do Executivo, podemos deduzir que foi colocado em prática
um projeto em torno de uma década no qual a Amazônia brasileira torna-se
a nova fronteira hidroenergética nacional. Como o Estado põe em ação essa
integração regional à luz do “Novo Desenvolvimentismo”, tendo em vista a
fase anterior já analisada, é o desafio a ser entendido nas próximas páginas.
Os Planos analisados em suas inter-relações permitem estabelecer as

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mediações desde os projetos em estágio mais avançado, como UHEs em ope-
ração e em construção, mas também as planejadas e os estudos de inventários
do potencial hidroenergético dos principais rios amazônicos, no período de
2007 a 2030.
O PNE 2030 tem como objetivo o planejamento de longo prazo do setor
energético do país, de modo a orientar as “tendências” e “dar base às alter-
nativas de expansão” do setor no prazo de duas décadas. Sua fundamentação
são Notas Técnicas produzidas no âmbito da Empresa de Pesquisa Energética
(EPE), que levam em conta “as perspectivas de aproveitamento dos recursos
hídricos, com enfoque para a disponibilidade dos recursos hídricos, o cenário
tecnológico, perspectivas do potencial hidrelétrico a aproveitar, e potencial
de geração” (BRASIL — PNE, 2007, p. 10).
Em uma perspectiva de médio prazo, para o período de 10 anos, o PDE
parte de um cenário de referência da expansão da demanda e da oferta de
recursos energéticos que permitam orientações para a tomada de decisão
do Ministério de Minas e Energia (MME) e dos agentes do mercado, por
meio dos leilões de energia realizados pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL).
Com base em tais documentos, dentre outros, elaborados pela EPE e
pelo MME, há subsídios para que o PPA possa atender as demandas energé-
ticas nacionais em curto prazo, que, por sinal, é insaciável sob a lógica do
mercado. O PPA 2012-2015 (BRASIL — PPA 2012-2015, 2011) — “Plano
Mais Brasil, Mais Desenvolvimento, Mais Igualdade e Mais Participação” —
destaca que as experiências do Governo Federal, desde 2003, e em especial
com o PAC após 2007, teria permitido uma articulação dessas experiências
para o referido Plano Plurianual. Assim, no PPA o Programa Temático de
Política de Infraestrutura tem “ações voltadas para a energia elétrica, com o
objetivo de ampliar a oferta interna de energia elétrica para manter o ritmo
de crescimento nacional” (BRASIL — PPA 2012-2015, 2011, p. 15).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 73

Nos Planos para o setor elétrico nacional as estimativas de consumo


de energia são elevadas, tendo em vista o modelo de desenvolvimento e a
perspectiva de crescimento. O PDE 2021 (BRASIL — PDE 2021, 2012) esti-
mava, a partir do cenário do PIB mundial, do comércio mundial e da dinâmica
econômica nacional, em 2011, uma projeção de crescimento do PIB brasileiro
de 4,4% entre 2012-2016 e de 5,0% entre os anos de 2017-2021. Assim, dos
investimentos totais de R$ 1,1 trilhão no PDE 2021, 24,4% corresponderiam
à oferta de energia elétrica, havendo ampliação na capacidade instalada de
geração de 116,5 GW, em 2011 e 2012, para 182,4 GW, em 2021.
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Para isso, diante de uma taxa de investimento em relação ao PIB de


16,7% e 18,3%, entre 2001-2005 e 2006-2010, a meta seria uma projeção
acima de 20% entre 2012-2021 — 20,2% entre 2012-2016 e 21,7% entre
2017-2021. Tais investimentos seriam necessários, segundo o documento,
para manter o consumo final energético no decênio que representaria uma
variação anual de 4,9% entre 2011-2021, ou seja, se em 2012 o consumo de
eletricidade foi de 500 TWh, a projeção seria de 774 TWh em 2021, ou seja,
um aumento de 35,4% da demanda do consumo de eletricidade.
Para manter essa perspectiva elevada de consumo de energia elétrica e
evitar o fantasma do “apagão elétrico”, discurso muito bem empregado na
última década do século XX para a reforma do Setor Elétrico brasileiro32, o
Governo Federal busca a todo custo (vale repetir) manter a oferta de energia,
vinculada, sobretudo, à demanda insaciável do mercado e do grande capital,
em especial às indústrias eletrointensivas.
A aposta é então manter a projeção de uma matriz energética que o
Governo Federal considera limpa, segura e sustentável do ponto de vista
ambiental, como prega o discurso oficial sobre o setor. Embora entre os
especialistas do tema seja questionável, a questão para o momento é que da
capacidade instalada, no âmbito da matriz energética, em dezembro de 2011,
67% (77.001 MW) era de fonte hidráulica; 14% (16.166 MW) térmica; 12%
(13.713 MW) de fontes renováveis como biomassa, PCHs e eólicas; 2%
(2.007 MW) nuclear; e 5% (6.275 MW) importado, contratada da Binacional
de Itaipu, ou seja, comprada do Paraguai.
Nesse cenário, o planejamento governamental na era do “Novo Desen-
volvimentismo” teve como base alguns aspectos, dos quais para nossa análise
destacaremos, com base no PDE 2021, os seguintes:

a) Manter o crescimento médio anual da carga de energia elétrica do


Sistema Interligado Nacional (SIN), que para o período decenal
32 Uma análise crítica da reestruturação do Setor Elétrico nacional é realizada por Gonçalves Junior (2007).
74

indica cerca de 3.200 MW/med., ou seja, uma taxa de expansão


de 4,6% a.a. Isso representa em termos absolutos que em 2011
o SIN tinha uma capacidade instalada de 116.498 MW, e a meta
planejada para 2021 era de 182.408 MW, aumento total de 65.910
MW, equivalente a 36,13%;
b) Segundo Tolmasquim (informação verbal — São Paulo, em agosto
de 2011) para atender essa demanda seria preciso instalar nos pró-
ximos anos 61 mil MW, valor muito elevado, e com os leilões reali-
zados desde 2005, 75% da necessidade de energia já fora contratada

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pela ANEEL;
c) Nos leilões realizados desde 2005 pela ANEEL, foram contratados
63 mil MW, fato que demonstraria o empenho do Governo Federal
para responder as demandas do setor;
d) Tomando como base a distribuição regional da capacidade insta-
lada, em 2011, da qual as regiões Sudeste e Centro-Oeste detinham
59%; Sul 17% (19.708 MW); Nordeste 14% (16.708 MW); e Norte
10% (11.454 MW), a meta de expansão direcionou-se para a Ama-
zônia brasileira, de modo que na região Norte haja acréscimo de
32.783 MW, passando para 44.237 MW a participação total no SIN,
o que corresponderia por 24% da capacidade instalada em 2021;
e) A meta visava aumentar a capacidade instalada de energia tendo
como fontes prioritárias a hídrica e um aumento da eólica, biomassa
e PCHs. Segundo dados do PDE 2021, a capacidade de geração
hidráulica aumentará de 77 GW para 117 GW, aproximadamente,
de 2012 até 2021;
f) A região Norte era vista pelo Governo Federal como a “fronteira
hidroenergética”, como já dito, região na qual ocorrerá a maior
expansão hidrelétrica, já que estava previsto a entrada em operação
de grandes empreendimentos, como a UHE de Belo Monte, Jirau e
Santo Antônio, além de outras UHEs em construção, contratadas,
outorgadas, e em estudos de viabilidade e inventários, em anda-
mento pela EPE;
g) Para a região Norte, a expansão já contratada era de 21.806 MW,
como empreendimentos em construção (UHEs de Belo Monte, Jirau
e Santo Antônio, por exemplo), de modo que parte do crescimento
da demanda dos anos de 2017 a 2019 já está atendida com usinas
que dispõem de contratos de concessão (BRASIL — PDE 2021).
Além disso, a expansão planejada pós 2017 a 2021 era de 11.427
MW, quase o equivalente a outra Belo Monte.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 75

Diante do exposto, mesmo frente aos problemas e impactos de toda


magnitude que representam a expansão de grandes hidrelétricas no bioma
amazônico e frente à fome incontrolável de energia pelo modelo de desenvol-
vimento nacional, o que se constata na leitura dos Planos de Desenvolvimento
para o setor elétrico nacional é que a Amazônia brasileira (Amazônia Legal)33
há muito tempo está na mira do setor elétrico, como demonstramos na seção
anterior. Se não teve sua inclusão no setor elétrico nacional de modo mais
intenso até recentemente — por uma série de fatores, em especial pela luta
dos movimentos sociais, indígenas etc., frente a este processo devastador —
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com o “Novo Desenvolvimentismo” criaram-se mecanismos materiais para


sua inclusão como a nova/velha fronteira hidroenergética.
Igualmente, as regiões Norte e Centro-Oeste, em especial a porção ter-
ritorial atrelada à Amazônia Legal, apresentam-se como áreas prioritárias
para a construção de UHEs de todas as dimensões, em especial as grandes
UHEs — acima de um mil MW de potência, mas também as PCHs. Isso
sem falar que “os inventários hidrelétricos recém-concluídos apontam que
projetos importantes poderão ser viabilizados nos próximos anos, a despeito
da crescente complexidade socioambiental, que normalmente impõe estágios
de desenvolvimento extensos” (BRASIL — PDE 2021, 2012, p. 83).
Isso é possível por uma série de motivos, os quais vão além da nossa
possibilidade de análise para o momento, mas três pontos devem ser tocados,
como: a) a forte pressão governamental para a realização de tais projetos,
como o ataque sistemático ao IBAMA para a agilização dos licenciamentos
ambientais, que inclusive tornou-se elemento importante de ação do PAC para
“desburocratizar” os instrumentos legais presentes nas decisões do Governo
Federal, e do setor elétrico em particular. Além disso, (b) há um elemento de
ordem tecnológica, já que as UHEs a fio d’água34, com turbinas tipo Bulbo,
são indicadas como a “salvação da lavoura” por não exigirem reservatórios de
acumulação/regulação, em decorrência de não necessitarem de queda d’água
com grande declividade, mas com grande fluxo de água e por isso gerarem
energia hidrelétrica a partir da regulação desta vazão. Outro ponto chave

33 Estados que compõem a Amazônia Legal: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima,
Tocantins e parte do Maranhão (oeste do meridiano de 44º). Informação disponível em: http://www.sudam.
gov.br/amazonia-legal Acesso em: 20 mar. 2013.
34 Conforme Gomes (2012), as UHEs a fio d’água permitem a geração de energia elétrica a partir do fluxo
de água dos rios, podendo ter pouca ou nenhuma capacidade de regularização, já que UHEs desse tipo,
com represamento, possuem capacidade de regular a vazão de curto prazo, em base diária ou semanal. O
contrário ocorre com as UHEs com reservatório de acumulação, que atuam na geração de energia elétrica
a partir da água acumulada. Em outras palavras, há um estoque de água nos grandes reservatórios que
podem compensar os momentos de estiagem prolongada.
76

(c) é a forma truculenta como o Governo Federal, via EPE, MME, a Casa
Civil, Secretaria Geral da Presidência, e o próprio Executivo, atropelaram a
tudo e a todos que resistiram à construção de grandes projetos hidrelétricos
na Amazônia brasileira. O Complexo Hidrelétrico Madeira foi o laboratório
governamental para isso, entretanto Belo Monte pode ser considerada o
exemplo nefasto de como populações tradicionais e povos indígenas foram
desconsiderados para que o empreendimento pudesse sair do papel em prol
do crescimento nacional, do atendimento dos interesses do capital, e da sua
exigência por energia elétrica.

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Para constatar como a Amazônia está sendo apropriada, mercantilizada,
pilhada pelo “hidronegócio-energético”, é importante demonstrar a expansão
de UHEs em construção e contratadas, além das planejadas, para a região,
no período de 2011 a 2021, conforme o PDE 2021 (Quadro 1 e Mapa 2).
O primeiro ponto de destaque refere-se aos projetos de expansão hidrelé-
trica contratados e em construção no período de 2012 a 2021. O PDE 2021
já inclui no horizonte decenal os resultados dos leilões de compra de energia
elétrica promovidos pela ANEEL até dezembro de 2011, o que representa
uma expansão até 2014. Para os anos de 2015 e 2016 o parque de geração
estava mapeado, devido aos leilões de 5 anos (A-5) para a compra de energia
decorrente de novos empreendimentos. O PDE 2021 (BRASIL — PDE 2012,
2011), informava ainda, que estavam previstos leilões para os anos 2012-
2013, por meio de leilões A-3. Isso significa que os leilões de energia nova
previstos no referido PDE já têm para o 1º quinquênio certames realizados
como ocorreu em 2007 com a UHE de Santo Antônio, em 2008 com a UHE
de Jirau, e em 2010 para a UHE de Belo Monte, o que representaria, sem
contar com os atrasos nas obras devido a fatores de múltiplas ordens, como
veremos no capítulo 3, a entrada das UHEs citadas no SIN, respectivamente,
em 2012, 2013 e 2015. Para o segundo quinquênio do PDE 2021 (2017 —
2021), os certames de leilão ainda estão previstos.
Na Quadro 1, são evidenciados os empreendimentos já construídos e em
construção no período de 2011 a 2016. De 2017 a 2021 eram novos projetos
hidrelétricos a serem viabilizados, ou seja, empreendimentos planejados.
Assim, para o período de 2011 a 2021, a meta total de inserção da capacidade
nacional de energia instalada era de 55.401 MW, sendo até 2016, 22.530 MW,
e de 2016 a 2021, 32.871 MW. Em termos comparativos, representaria em
MW construir o equivalente a quase 05 UHEs de Belo Monte, 14,7 UHEs
de Jirau e 17,6 UHEs de Santo Antônio na Amazônia brasileira.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 77

Quadro 1 – Amazônia Brasileira – Expansão hidrelétrica


contratada e em construção no período de 2011 a 2021
Ano de início
Projeto Rio UF Potência MW
Operação
2011 Estreito Tocantins TO 1.087
2011 Dardanelos Arapuanã MT 261
2012 Rondon II Comemoração RO 74
2012 Santo Antônio Madeira RO 3.150
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2013 Jirau Madeira RO 3.750


2014 Santo Antonio do Jari Jari AP/PA 373
2015 Ferreira Gomes Araguari AP 252
2015 Colíder Teles Pires MT 300
2015 Belo Monte Xingu PA 11.233
2015 Teles Pires Teles Pires MT 1.820
2016 Foz do Apiacás Apiacás MT 230
2017 Sinop Teles Pires MT 400
2017 São Manoel Teles Pires MT 700
2017 Cachoeira Caldeirão Araguari AP 219
2017 Água Limpa Das Mortes (Bacia Xingu) MT 320
2018 São Luiz do Tapajós Tapajós PA 6.133
2019 Cachoeira dos Patos Jamanxim PA 528
2019 Jatobá Tapajós PA 2.336
2020 Bem Querer Branco RR 709
2020 Jamanxim Jamanxim PA 881
2020 Cachoeira do Caí Jamanxim PA 802
2020 Serra Quebrada Tocantins TO/MA 1.328
2021 São Simão Alto Jurena MT/PA 3.509
2021 Marabá Tocantins PA/TO/MA 2.160
2021 Salto Augusto Baixo Jurena MT 1.461
S/D* Escondido Jurena MT 1.248
Hidrelétrica Binacional RO/
S/D* Beni/Madeira/Mamoré 3.000
Bolívia-Brasil Bol.
S/D* Chacorão Tapajós PA 3.336
S/D* Urucupatá Jari AP 292
Total 55.401

Fonte: PDE 2021 (2012).


*S/D: Sem data para início da operação. Org.: José Alves.
78

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Dados do PDE 2021 (Quadro 1) mostram que eram 30 UHEs contra-


tadas, em construção e planejadas para a Amazônia brasileira no período de
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 79

2012-2021, tornando-a, assim, a “nova fronteira hidroenergética”. Das UHEs


previstas para entrar em operação até 2016, destacam-se: Belo Monte (11.233
MW), Santo Antônio (3.150 MW), Jirau (3.750 MW), Teles Pires (1.820
MW), Ferreira Gomes (252 MW), Colíder (300 MW), Santo Antônio do Jari
(373 MW), Estreito (1.087 MW). Isso representava 21.965 MW de energia
contratada e em construção no período de 2012 a 2016.
Já no período de 2017 a 2021, os empreendimentos planejados de desta-
que eram: UHE São Luiz do Tapajós (6.133 MW), UHE Jatobá (2.236 MW),
UHE Serra Quebrada (1.328 MW), UHE São Simão do Alto (3.509 MW) UHE
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Marabá (2.160 MW), UHE Salto Augusto Baixo (1.461 MW), UHE São Simão
Alto (3.509 MW), UHE Escondido (1.248 MW), UHE Hidrelétrica Binacional
Bolívia-Brasil (3.000 MW). Como observa-se todos esses empreendimentos
são acima de 1.000 MW, mas há outros projetos de menor potência (< 1.000
MW) importantes, como: UHE Santo Antonio do Jari (370 MW), UHE Colíder
(300 MW) Sinop (400 MW) e UHE São Manoel (700 MW).
As bacias hidrográficas prioritárias de UHEs em operação e para a expan-
são no PDE 2021, territorializadas por tais projetos hidrelétricos na Amazônia
brasileira (Quadro 2), são as dos seguintes rios: Branco, uma usina; Araguari,
duas usinas; Jari, um empreendimento; Xingu, com um empreendimento;
Tapajós, com dois empreendimentos; Madeira, dois empreendimentos (sendo
uma UHE planejada binacional que não consta no PDE); Arapuanã, com uma
usina; Teles Pires, com quatro empreendimentos; Juruena, com dois empreen-
dimentos; e, Tocantins, com quatro usinas.

Quadro 2 – Bacias hidrográficas amazônicas prioritárias


para construção e planejamento de UHEs
Bacia hidrográfica UHEs Potência (MW)
Rio Branco 01 Bem Querer 709
Rio Araguari 02 Cachoeira Caldeirão; Ferreira Gomes 469
Rio Jari 01 Santo Antonio do Jari 370
Rio Xingu 01 Belo Monte 11.233
Rio Tapajós 02 São Luiz do Tapajós; Jatobá 8.469
Rio Madeira 03 Jirau; Santo Antônio 6.900
Rio Aripuanã 01 Dardanelos 261
Rio Teles Pires 04 São Manoel; Teles Pires; Colíder; Sinop 3.220
Rio Juruena 02 São Simão Alto; Salto Augusto Baixo 4.970
Rio Tocantins 04 Estreito; Luiz Eduardo Magalhães (Lajeado); São Salvador; Marabá 4.392
Total (MW) 40.948

Fonte: BRASIL — PDE 2021 (2011). Org.: José Alves.


80

Portanto, são quase 41 mil MW de potência total para a expansão em


diferentes estágios, ou seja, UHEs já em operação, sendo instaladas ou em
planejamento. Dessas UHEs as duas do rio Tapajós (Jatobá e São Luiz do
Tapajós) entram como estratégicas e de interesses público para o governo
tendo em vista que depois do rio Xingu (com Belo Monte) o Tapajós é o rio
com maior potencial de empreendimentos em Megawatts; em terceiro, mas já
em fase de operação parcial das UHEs, está o rio Madeira. Juruena, Tocantins
e Teles Pires são outros rios em destaque, caracterizando assim em nosso ponto
de vista territórios hidroenergéticos. Em outras palavras, além do Complexo

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Hidrelétrico Madeira com as UHEs de Jirau e Santo Antônio, no estado de
Rondônia, há também outros complexos importantes na região amazônica,
como: o Complexo Hidrelétrico do Tapajós (aproveitamentos Jatobá, Jaman-
xim, Cachoeira do Caí, Cachoeira dos Patos, Chocorão) no estado do Pará; o
Complexo Hidrelétrico do Teles Pires (UHEs de Teles Pires, Sinop, Colíder,
Foz do Apiacá e Magessi) no estado do Mato Grosso, e divisa com o Pará.
Isso sem falar no mais importante projeto para a região, ou seja, o Complexo
Hidrelétrico do Xingu, previsto incialmente com cinco grandes reservatórios
como Babaquara (Altamira) e Kararaô (Belo Monte) (FEARNSIDE, 2009).
Deste modo, o PDE 2021 tinha um horizonte de implantação de 34 UHEs
no período decenal, distribuídos em todas as regiões do País. Deste total, 15
estavam previstas inicialmente por já terem Licença Prévia (LP), em fase de
implantação, o que representava 22.369 MW. As outras 19 UHEs planejadas
correspondiam a 19.672 MW, totalizando 42.040 MW da potência do parque
nacional hidrelétrico brasileiro (PDE 2021). Do cenário em questão, como
destacado até o momento, a região Amazônica é a que concentra a maior
expansão, tanto em número de projetos quanto em relação à potência instalada,
correspondendo a 86,5%. É com base nessa performance que a Amazônia tem
sido carimbada como a “fronteira hidrelétrica do País”, seja pelos projetos
implantados, em construção, planejados, inventariados, mas também pelo
potencial hidrelétrico ainda não explorado.
Das UHEs planejadas, os estados com maiores empreendimentos são o
Mato Grosso, com 11 UHEs; Pará, com 7 UHEs; Rondônia, com 4 UHEs; e
Amapá, com 3.
Por fim, outra meta do PDE 2021 é de permitir que os subsistemas regio-
nais da Amazônia sejam interligados ao SIN. Dados do PDE 2020 mostram
perspectivas de ações governamentais para interligar os subsistemas isola-
dos ao SIN, bem como as novas hidrelétricas e seus subsistemas dos quais
passam a integrar e a constituir, como o caso da UHE de Belo Monte. O SIN
divide-se em 5 regiões geoelétricas interligadas: Sul/Sudeste/Centro-Oeste,
Norte e Nordeste.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 81

Assim, sem levar em conta os atrasos das obras das UHEs em construção,
a expectativa do Governo Federal era de que a partir de 2012 o Complexo
Hidrelétrico Madeira já fosse inserido no SIN e, a partir de 2015, ocorresse
a integração de outras UHEs da região Amazônica, permitindo a ampliação
das interligações regionais35. Por exemplo, as instalações associadas à UHE
de Belo Monte e às UHEs do Complexo Teles Pires, e a partir de 2017 a
integração das UHEs do rio Tapajós. Já a UHE de Belo Monte constitui-se
um subsistema por si, conectado ao subsistema Norte. As UHEs da Bacia
Teles Pires, a perspectiva do PDE-2020 é de um novo subsistema interligado
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à região Sudeste/Centro-Oeste.
Vale registrar também a ação do Estado brasileiro e da burguesia em
relação à Amazônia quanto aos interesses no que se refere à integração ener-
gética de países latino-americanos, como Peru, Bolívia e Guiana. O Peru,
com potencial de 180 GW, aproximadamente, é um “alvo” para a constru-
ção de UHEs por empresas brasileiras (a exemplo de grandes construtoras e
empreiteiras), inclusive com seis UHEs com capacidade de 7 mil MW, sendo
a UHE de Inambari (2 mil MW), o estágio mais avançado (mas sem previsão
de início da construção) por meio do Acordo Energético Bilateral Peru-Brasil.
A Bolívia, com potencial estimado em 20,3 GW, tem perspectiva já plane-
jada do projeto binacional de Cachoeira Esperança, com 800 MW; projeto
binacional Brasil-Bolívia, com localização ao montante das UHEs de Jirau e
Santo Antônio, no rio Madeira, “com potencial de exportação de excedentes
de geração para o Brasil”.
Assim, tanto no caso do Peru como da Bolívia, o PDE 2021 previa que
os estudos de inventários de empreendimentos hidroelétricos, além de priori-
zarem o atendimento à demanda local, visam “a possibilidade de exportação
de energia excedente para o Brasil com a interligação dos sistemas elétricos
se dando no estado de Rondônia” (BRASIL — PDE 2021, 2011, p. 67).

Considerações finais

Como constatamos, a partir dos principais planos governamentais vol-


tados para o setor de energia elétrica, a Amazônia está em pleno processo de
reintegração, agora sob o slogan de nova fronteira hidroenergética nacional,
constituindo-se assim uma região estratégica ao Governo Federal e ao grande
capital nacional e internacional para a territorialização de projetos hidrelétri-
cos, tanto por grandes UHEs como empreendimentos menores de 1.000 MW.

35 A interligação dos estados do Acre e Rondônia ao subsistema da região SE/CO entrou em operação em 2009.
Também no PDE 2020 foi planejada a entrada das UHEs de Santo Antônio e Jirau, a partir de 2012 (sem
considerar os atrasos), com conexão na subestação coleto de Porto Velho, para atender prioritariamente o
mercado local. A ligação se dará por corrente contínua de 700 kV entre Porto Velho (RO) e Araraquara (SP).
82

Esse mecanismo de territorialização do capital, com planejamento e apor-


tes vinculados ao Estado brasileiro, mostrava-se voraz, insaciável e destrutivo,
pois penaliza as populações e trabalhadores atingidos por tais obras e beneficia
os grandes conglomerados, empreiteiras representadas pelas construtoras, e
os consórcios controladores da produção de energia.
Como demonstramos o bioma amazônico, via bacias hidrográficas que
compõem o rio Amazonas e o Tocantins-Araguaia, são prioritários para essa
expansão, tendo em vista seu potencial já em outorga, em uso e planejado,
mas também inventariado.

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O Complexo Hidrelétrico Madeira além da mercantilização do rio
Madeira para a geração de energia hidrelétrica, atua também como ponto
articulador de pilhagem dos recursos hidroenergéticos dos países vizinhos para
o mercado brasileiro, bem como tem previsão de articular esses três territórios
por meio de uma hidrovia naquela região fronteiriça, intensificando, assim,
o processo de pilhagem dos recursos naturais de populações indígenas e do
vasto campesinato amazônico.
A estratégia do Governo brasileiro, para o período analisado, não foi só
de fazer a Amazônia nacional (Amazônia Legal) a nova fronteira energética,
mas também articulá-la às possibilidades da Amazônia Sul-americana, como
os projetos previstos na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regio-
nal Sul-Americana (IIRSA), a exemplo do Complexo Hidrelétrico Madeira.
Portanto, a Amazônia constitui a região central para a ação do capital com
o hidronegócio-energético. Os grandes rios são mapeados em inventários e
estudos de viabilidade para decidir onde serão barrados e, assim, construídas
as UHEs. Os grandes Complexos Hidrelétricos, formam territórios de mer-
cantilização da natureza, os quais cada UHE representa em si um controle do
espaço, do corpo hídrico, da terra e da ambiência da relação antes estabelecida
entre homem e rio. Jirau constitui deste modo um território do hidronegó-
cio-energético, no qual a natureza é mercantilizada e a água torna-se recurso
estratégico para a produção de energia elétrica.
Em outras palavras, a Amazônia continua sendo uma fronteira econô-
mica e de recursos em intenso processo de expansão e de mercantilização da
terra e da água. Isto, pois, potencializado como nunca, que além da floresta,
biodiversidade, subsolo, dos mercados fictícios de carbono, a água passa a ser
a bola da vez, a matéria prima e “mercadoria” fetiche para o capital, já que
carrega em si, além da potencialidade de gerar uma mercadoria estratégica
como a energia elétrica o seu controle também permite se apropriar de parte da
mais valia social (via “lucro suplementar”), quando a energia é intensamente
requisitada no processo de acumulação do capital.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 83

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AS CATEGORIAS GEOGRÁFICAS
E OS ESPAÇOS DE VIVÊNCIAS
NO ENSINO DE GEOGRAFIA
ESCOLAR, EM RIO BRANCO (AC)
Iago Sales de Paula36
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Lucilene Ferreira de Almeida37

Introdução

O ensino das categorias geográficas (espaço, território, região, paisagem


e lugar) está presente na disciplina de Geografia ao longo do Ensino Básico.
Podemos dizer que elas, constituem a base deste componente curricular nas
escolas, a partir dos variados conteúdos e temas propostos. Todavia, é possível
percebermos que alguns alunos apresentam dificuldades em compreender e
articular as categorias geográficas, não conseguindo associá-las ao seu coti-
diano ou relacioná-las em atividades, quer sejam escritas, práticas ou na leitura
de mapas, sendo comum a pergunta “para que eu preciso aprender isso?”.
Tais dificuldades acabam se perpetuando e não se desenvolve a com-
preensão e leitura do espaço a partir dos elementos que a própria disciplina
geográfica tem como base. No âmbito da academia, inclusive, percebe-se que
alguns alunos chegam com tal déficit nos cursos de Geografia (bacharelado
e licenciatura).
Assim, partimos da hipótese de que alguns alunos, durante suas trajetórias
escolares, acabam não recebendo uma boa formação no quesito categorias
geográficas, e a principal causa disso é a ausência de relação entre essas temá-
ticas e os seus espaços de vivências, o que acaba fazendo com que eles não
percebam essas categorias como sendo integrantes das suas vidas e de suas
ações diárias, sendo relegadas a simples conteúdos memorativos e passíveis
de caírem no esquecimento.
Ana Fani Alessandri Carlos, em seu livro O Lugar no/do Mundo (2007)
explica que é nesse local onde se vive e onde se estabelecem relações coti-
dianas (lugar), que as expressões regionais, nacionais e mundiais ganham

36 Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em geografia, da Universidade Federal do Acre. Pro-
fessor de Geografia da Educação Básica, na rede estadual de Ensino do Acre. E-mail: iago.ufac@gmail.com.
37 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia e dos Cursos de Licenciatura e Bacharelado em Geogra-
fia do Centro Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Acre. E-mail: lucilene.almeida@ufac.br.
88

destaque, pois “O mundial que existe no local, redefine seu conteúdo, sem,
todavia, anularem-se as particularidades” (CARLOS, 2007, p. 14). Portanto,
a categoria lugar precisa sempre ser encarada sob diversas perspectivas,
inclusive a global, pois esta última influencia e é influenciada pelas rela-
ções cotidianas.
Fazer com que os alunos compreendam as categorias geográficas (bem
como outros conteúdos) relacionando-as com seus espaços de vivências, fará
com que os mesmos criem relações que lhes permitirão compreender como
eventos e fenômenos que ocorrem do outro lado do mundo, por exemplo,

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terão impacto nas suas vidas e nas suas rotinas.
Assim, consideramos primordial realizar essa discussão, pois de acordo
com Ruy Moreira (2017) as categorias são frutos de ideias, que são criações
humanas que utilizamos para interpretar o mundo sob diferentes formas e
perspectivas. O homem, antes de criar um objeto, o mentaliza. As categorias
geográficas, portanto, são mentalizações do espaço, as quais servem para
facilitar nossa análise e compreensão do mundo. Sem elas, a Geografia não
existiria enquanto ciência. Retirar as categorias geográficas ou tratá-las com
leviandade na Geografia, é o mesmo que decretar o fim dessa ciência.
Logo, compreender se as categorias geográficas são abordadas sob a
perspectiva dos espaços de vivências dos alunos é essencial para que possamos
descobrir o porquê alguns deles apresentam dificuldades em relacioná-las com
outros temas cotidianos, tratando-as sem a devida importância e como meros
conteúdos memorativos e (apenas) conceituais.
Neste texto, objetivamos investigar como as categorias geográficas são
trabalhadas pelo professor de Geografia e como os espaços de vivências dos
alunos são considerados neste processo e mesmo se deixam de ser conside-
rados, tendo em vista que muitas são as dificuldades para realizar tal tarefa,
como excesso de turmas e de alunos, o que impossibilita trabalhos de campo;
sobrecarga de trabalho, que não permite aos professores a elaboração de ati-
vidades e metodologias mais criativas e complementares aos discentes; além
de uma série de outros fatores externos, alheios aos professores, mas que
acabam dificultando o processo de ensino/aprendizagem.
Nessa direção, a fim de alcançarmos este objetivo, a pesquisa realizada
se pautou a partir de três frentes, conforme descrito a seguir:
Primeira — Uma análise dos documentos norteadores do ensino de Geo-
grafia, para nestes identificarmos como as categorias são apresentadas e se
há referências aos espaços de vivências dos alunos. Partimos de uma análise
sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia a fim de criarmos um
contraponto com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Geografia
(para os anos finais do Ensino Fundamental) e da Área de Ciências Huma-
nas (para o Ensino Médio), que regulamenta atualmente as aprendizagens
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 89

a serem trabalhadas nas escolas brasileiras. Realizou-se ainda a análise dos


Currículos de Referência Únicos do Acre, Ensino Fundamental-anos finais
e Ensino Médio.
Segunda — Uma análise das práticas docentes no decorrer de suas ativi-
dades em sala de aula, de modo a analisarmos a maneira como os professores
lidam com as categorias geográficas em sala de aula e qual o papel dos espaços
de vivências durante esse processo. Para isso, apresentamos os resultados de
uma pesquisa realizada com 39 professores de Geografia que estão atuando
em sala de aula, tanto no Ensino Fundamental (anos finais) quanto no Ensino
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Médio, através de questionário, composto por 34 perguntas relacionadas ao


cotidiano escolar.
Para além da coleta de dados, foi possível ter conversas complementares
com muitos dos professores, que contribuíram significativamente para os
resultados obtidos nessa pesquisa, pois para além do questionário, pudemos
compreender de fato os desafios e realidades de cada docente e de seus alunos,
nos possibilitando, inclusive, inferir certos resultados.
Terceira — Por fim, achamos importante realizar uma análise sobre o
livro didático, tendo em vista que, no questionário aplicado aos professores,
esse material apareceu como um recurso recorrente nas práticas docentes em
sala de aula. Para isso, escolhemos duas coleções de livros didáticos utiliza-
dos pelos professores em sala de aula, uma do Ensino Fundamental e uma do
Ensino Médio. Tais coleções não foram escolhidas ao acaso, mas se deram
a partir dos apontamentos feitos pelos próprios professores no questionário.
Tendo em vista que muitos deles afirmaram que utilizam os livros de Geografia
com muita frequência, analisamos a forma como as categorias geográficas e
os espaços de vivências são abordados, também, nesse tipo de material.

Categorias geográficas e os documentos norteadores

Nesse ponto, objetivamos analisar a forma como as categorias geográficas


estão presentes nos documentos norteadores da educação nacional (Parâme-
tros Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum Curricular) e estadual
(Currículos de Referência Único do Acre — Ensino Fundamental [anos finais]
e Ensino Médio).
Albuquerque (2014, p. 166 e 167) explica que muitos professores com-
preendem os currículos como um resumo dos conteúdos a serem ministrados
ao longo do ano letivo, quando na verdade, os mesmos vão muito além disso,
representando interesses e objetivos que, de acordo com a autora, privilegiam
um determinado grupo e menosprezam outros. Tais documentos oficiais, que
orientam o currículo escolar, são eivados de interesses que sobressaem às reais
necessidades de aprendizado dos alunos das diferentes regiões brasileiras.
90

Nesse sentido, a autora explica ainda que os currículos oficiais muitas


vezes se distanciam da realidade da sala de aula justamente por privilegiar
certos grupos culturais em detrimento de outros. Por esse motivo, a análise
dos documentos norteadores da educação é importante para que possamos
compreender se e como as categorias geográficas estão presentes nos mesmos
e se os espaços de vivências são contemplados, entendo estas como questões
centrais e basilares no contexto do ensinar e aprender Geografia para a com-
pressão das diferentes espacialidades.

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PCN’s e as categorias geográficas

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) constituíram, até a


implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o principal docu-
mento norteador para o currículo oficial da educação brasileira. Achamos por
bem realizar uma análise sobre esse documento por dois motivos: 1º) para
termos um contraponto de análise com a BNCC; e 2º) porque o Currículo de
Referência Único do Acre (anos finais) recebeu forte influência desse docu-
mento nacional, mesmo com a BNCC já em processo de implementação.
Os PCN’s estão organizados por Ciclos. Nos atemos ao terceiro e ao
quarto ciclos do Ensino Fundamental, que compreendem os 04 últimos anos
dessa etapa de ensino, denominada de anos finais, sendo os 05 primeiros
anos (04 até o ano de 200538) classificados como anos iniciais, os quais não
analisaremos neste texto, tendo em vista que nosso foco são as etapas pos-
teriores do Ensino Básico. Assim, a 5ª e a 6ª séries (atualmente 6º e 7º ano)
compreendem o terceiro ciclo, e a 7ª e 8ª séries (atualmente 8º e 9º ano)
compreendem o 4º ciclo.
No que se refere ao terceiro ciclo, é afirmado no documento que o obje-
tivo principal da Geografia é fazer com o que os alunos compreendam que as
relações entre o homem e a natureza possuem ligação direta com a construção
do espaço. Por isso, a paisagem local e o espaço vivido devem ser referên-
cias para o professor de Geografia, pois a partir da introdução do aluno nesse
ambiente local, ficará mais fácil para que o mesmo compreenda, posterior-
mente, o espaço mundializado. (BRASIL, 1998, p. 51).
Notemos que a categoria espaço já aparece nessa breve introdução como
sendo o principal objeto de análises da Geografia dentro dos PCN’s. Outro
sim, partimos do entendimento que espaço vivido sempre deve ser o ponto

38 A ampliação do Ensino Fundamental de 8 para 9 anos começou a ser discutida em 2004, sendo implemen-
tada paulatinamente em algumas regiões em 2005. Os estados brasileiros teriam até 2010 para aderir a tal
mudança. De acordo com o Ministério da Educação (MEC) essa alteração visa assegurar que as crianças
permaneçam por um tempo mais longo no ambiente escolar, de modo que aos 6 anos de idade elas já
estejam no 1º ano do Ensino Fundamental e concluam tal etapa aos 14 anos. (BRASIL, 2007).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 91

de partida para uma melhor compreensão geográfica. Os PCN’s corroboram


essa afirmativa explicando que esse olhar sobre o local deve fazer parte da
rotina dos professores de Geografia e dos alunos em sala de aula.
O documento explica também que a paisagem é uma categoria geográfica
de suma importância e que deve ser aprofundada com os alunos já no início
deste ciclo, pois a mesma permite um amplo entendimento sobre a relação
sociedade-natureza e possibilita aos alunos uma compreensão apurada sobre
as mudanças espaciais ocasionadas pelas atividades econômicas, pelos hábitos
culturais e/ou as questões políticas expressas no meio onde os discentes vivem.
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Mais adiante, é destacada a importância do lugar para problematizar


situações e realidades presentes no cotidiano dos alunos, de forma que os mes-
mos consigam relacionar os espaços local e global e compreender que existe
uma forte influência entre ambos. Para que esse exercício seja satisfatório, os
PCN’s afirmam que o fator tempo também deve ser levado em consideração.
Sintetizando, as três principais categorias geográficas que irão nortear o
ensino de Geografia ao longo do terceiro ciclo são: o espaço, a paisagem e o
lugar. O território também aparece em alguns conteúdos, conforme veremos
mais adiante. Todavia, tal categoria não possui o mesmo peso que as outras,
ao menos neste ciclo.
Uma questão que nos parece bastante pertinente é como tais catego-
rias devem ser abordadas pelo professor. O documento explica que, entre as
diversas metodologias possíveis, “Observar, descrever e representar carto-
graficamente ou por imagens os espaços” (BRASIL, 1998, p. 52), deve ser
primordial durante as aulas, e principalmente, o espaço local deve sempre ser
o ponto de partida das aulas.
É preciso citar ainda que o documento estabelece treze objetivos a serem
alcançados pelos alunos ao longo do terceiro ciclo. A maioria deles fazem
menções diretas às três categorias geográficas citadas anteriormente e a impor-
tância da relação local-global. Dentre esses objetivos, gostaríamos de destacar
o de número 2: compreender a escala de importância no tempo e no espaço
do local e do global e da multiplicidade de vivências com os lugares. Tal
objetivo resume de forma primorosa a forma como as categorias geográficas
estão dispostas nesse documento.
Em relação aos conteúdos a serem ministrados pelos professores, os
PCN’s propõem uma organização por eixos temáticos, ou seja, temas que
devem fazer parte do ensino da Geografia. O documento, apesar de propor
vários conteúdos dentro de cada eixo temático, explica que o professor e a
escola possuem autonomia para selecionar aquelas temáticas que considerem
mais importantes ou que possuam uma maior relação com a realidade local.
Dessa forma, para o terceiro ciclo são propostos os seguintes eixos temá-
ticos: I) a Geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do
92

mundo; II) o estudo da natureza e sua importância para o homem; III) o campo
e a cidade como formações socioespaciais; IV) cartografia como instrumento
na aproximação dos lugares e do mundo. Dentro de cada eixo estão dispostos
vários conteúdos que possuem alguma relação com a temática. Gostaríamos
de destacar os eixos I e IV.
I) a geografia como uma possibilidade de leitura e compreensão do
mundo: neste eixo, o foco principal é auxiliar os alunos na compreensão de
terminologias e nas categorias basilares da Geografia. Para tanto, sugere-se
que o professor valorize ao máximo a realidade local dos estudantes. O espaço,

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o território, o lugar e a paisagem são as categorias que aparecem com bas-
tante destaque dentro desse eixo. A seguir alguns conteúdos destacados pelo
documento nesta etapa: O trabalho e a apropriação da natureza na construção
do território; O lugar como experiência vivida dos homens com o território e
paisagens; Os monumentos, os museus como referência histórica na leitura
e compreensão das transformações do espaço.
IV) a cartografia como instrumento na aproximação dos lugares e do
mundo: neste eixo, os mais variados recortes do tempo e do espaço são priori-
zados. O lugar aparece com categoria de destaque para a compreensão de tais
recortes, os quais devem ser demonstrados a partir da cartografia. “No estudo
dos lugares, para que o aluno possa se situar melhor, a cartografia estará neste
ciclo priorizando a grande escala, garantindo-lhe maior detalhamento dos
fatores que caracterizam o espaço de vivência no seu cotidiano” (BRASIL,
1998, p. 76). Através da cartografia o aluno deve ser capaz de compreender que
os espaço cotidianos possuem relação direta com os espaços mundializados.
Entre os diversos conteúdos destacados nesse eixo, achamos interessante men-
cionar alguns: Confecção pelos alunos de croquis cartográficos elementares
para analisar informações e estabelecer correlação entre fatos; A importância
dos sistemas de referência nos estudos das paisagens, lugares e territórios.
Assim, os eixos e os conteúdos que compõem esse terceiro ciclo estão
baseados na análise espacial através da paisagem, do lugar e do território,
embora esse último apareça de forma menos aprofundada que os demais. Ao
longo desse ciclo, composto por 5ª e 6ª série (atuais 6º e 7º ano), o foco prin-
cipal é fazer com o aluno aprofunde seus conhecimentos geográficos através
de uma ampliação do seu espaço de vivência. Todavia, tal complexidade deve
ser trabalhada de maneira ainda introdutória e sempre a partir da categoria
lugar. Vejamos agora a forma como esse exercício é feito no 4º ciclo.
Neste ciclo, composto por 7ª e 8ª séries (atuais 8º e 9º anos), há uma
ampliação da escala de estudos na Geografia para dos espaços local-nacio-
nal para os espaços regional-mundial, tendo como foco de análise o Estado
e o território a partir dos diferentes espaços geográficos e suas respecti-
vas paisagens.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 93

O aluno deve ser levado a compreender que, a partir do seu lugar de


convívio, o mundo está em constante transformação, e que por esse motivo,
seu local de vivência será direta ou indiretamente impactado por tais mudan-
ças. Mais do que nunca a relação local-global deverá ser explorada pelos
professores de Geografia.
Identificamos que todas as categorias geográficas apresentadas como
primordiais no ciclo anterior continuam tendo papel de destaque no quarto
ciclo. A diferença é que a forma como as mesmas são abordadas em sala de
aula se torna mais complexa, tendo em vista que agora terão como foco de
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análises o espaço mundializado. Outro sim, o território ganha muito mais


destaque em tais análises.
O documento ressalta também a importância da paisagem como uma cate-
goria facilitadora desse processo de compreensão das relações mundiais, pois
a mesma direciona os alunos às especificidades e transformações presentes
no espaço geográfico. Ressaltamos também que as categorias geográficas não
serão mais trabalhadas de forma tão conceitual e introdutória, pois parte-se
do pressuposto de que os alunos desse ciclo já possuem certo conhecimento
sobre as mesmas ao ponto de conseguir contextualizá-las. Por isso, é essencial
que as categorias geográficas sejam muito bem trabalhadas no terceiro ciclo.
Assim como no ciclo anterior, o quarto ciclo também elenca treze obje-
tivos que considera essenciais para o aprendizado do aluno. Todos eles fazem
menção direta e indireta às categorias geográficas citadas anteriormente, mas
gostaríamos de destacar os seguintes objetivos 1: compreender as múltiplas
interações entre sociedade e natureza nos conceitos de território, lugar e
região, explicitando que, de sua interação, resulta a identidade das paisa-
gens e lugares; e 6: fazer leituras de imagens, de dados e de documentos de
diferentes fontes de informação, de modo que interprete, analise e relacione
informações sobre o território e os lugares e as diferentes paisagens. (BRA-
SIL, 1998).
Em termos conteudísticos, o quarto ciclo apresenta três eixos temáticos:
I) a evolução das tecnologias e as novas territorialidades em redes; II) um só
mundo e muitos cenários geográficos; e III) modernização, modo de vida e
a problemática ambiental. Analisaremos aqui os eixos I e II.
I) a evolução das tecnologias e as novas territorialidades em rede: neste
eixo, busca-se levar o aluno a pensar criticamente sobre a potencialidade
criativa do homem, em busca de novas tecnologias que superem a distância
espaço-tempo e na integração de lugares e espaços no mundo. A seguir alguns
conteúdos destacados pelo documento neste eixo: A internet, a comunicação
instantânea e simultânea e a aproximação dos lugares; Os polos técnico-
-científicos informacionais e os novos centros de decisões; A nova divisão
internacional do trabalho e as redes de cidades mundiais.
94

II) um só mundo e muitos cenários geográficos: nesse eixo, o foco são os


grandes blocos regionais surgidos ao final da 2ª Guerra Mundial (Mundo Socia-
lista x Mundo Capitalista, Mundo Desenvolvido x Subdesenvolvido, Primeiro
Mundo, Segundo Mundo, Terceiro Mundo). Mais do que analisar as configura-
ções em si, nesse eixo espera-se que os alunos compreendam os antagonismos
existentes entre cada um desses blocos e as causas e consequências de tais con-
figurações até os dias atuais. A região é a categoria chave desse eixo. Vejamos
alguns conteúdos: O mercado desenhando novas fronteiras: a formação dos
blocos econômicos regionais; Novas localizações para as atividades empresariais

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nas regiões: flexibilização nas escolhas e competição entre os lugares.
Como podemos observar, as questões territoriais e regionais acabam
ganhando muito destaque dentro do quarto ciclo. Todavia, gostaríamos de cha-
mar a atenção para o fato de a categoria região, mesmo aparecendo com peso,
não ser abordada de forma conceitual e aprofundada dentro dos ciclos 3 e 4.
Percebemos que, dentro dos PCN’s, a região aparece apenas com essa
característica, que seja, auxiliar na compreensão de assuntos relacionados a
outras categorias. A região sequer aparece como uma categoria geográfica,
recebendo um tratamento bem diferente do espaço, território, paisagem e
lugar, categorias que aparecem, inclusive, na primeira parte do documento de
forma enfática, na qual é realizada uma breve contextualização e explicação
de cada uma delas. Essa característica da região ficará ainda mais nítida na
etapa do Ensino Médio.
Concluindo essa análise das categorias geográficas no Ensino Fundamen-
tal — anos finais, dentro dos PCN’s, vimos que as categorias espaço, território,
paisagem e lugar são norteadoras da organização dos conteúdos e atividades.
O objetivo principal é levar o aluno a articular essas categorias com os mais
diversos conteúdos. Outro sim, o espaço de vivência dos discentes sempre
deve ser levado em conta em qualquer aula, para que os mesmos consigam
compreender que as relações locais e globais estão intimamente interligadas.
Vejamos agora a forma como essas categorias estão presentes na proposta
curricular para o Ensino Médio.
Os PCN’s+, voltado para o Ensino Médio, aprofunda e torna mais com-
plexa a relação com as categorias geográficas. Fica evidente que não é o
objetivo dessa etapa, conceituar e introduzir as categorias. Entende-se que
essa construção já foi realizada ao longo do Ensino Fundamental, em especial
no 3º ciclo dos anos finais. Os conteúdos abordados também adicionam um
grau de complexidade maior em relação aos que vinham sendo trabalhados,
de modo que não é o objetivo proposto realizar análises simples sobre fenô-
menos isolados. O grande foco é fazer com que o aluno articule os diversos
fenômenos existentes no espaço geográfico mundial e compreenda que todos
eles terão impacto direto em seu cotidiano.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 95

Gostaríamos de ressaltar ainda que as categorias geográficas (com exce-


ção da região) aparecem com muito peso dentro dos PCN’s, tanto na etapa do
Ensino Fundamental quanto na etapa do Ensino Médio. Todos os conteúdos,
objetivos e até mesmo propostas de atividades se encaixam em alguma cate-
goria geográfica, sempre tendo uma relação direta com o espaço geográfico.
A nosso ver, esse é o principal ponto positivo desse documento. Tratar
as categorias geográficas como o que realmente são, objetos da Geografia
sobre os quais o ensino deve ser direcionado. Não estamos dizendo, com
isso, que elas devem aparecer nitidamente em todos os conteúdos. Tal tarefa
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seria exaustiva. Mas os alunos devem compreender que todos os conteúdos


terão relação com uma ou mais categoria. Não devemos jamais perder esse
ponto de vista.

BNCC e as categorias geográficas

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de cunho


normativo que versa sobre o conjunto de aprendizagens essenciais que todos
os alunos em nosso país devem desenvolver ao longo de todo processo da
educação básica, desde a etapa infantil até o Ensino Médio. É, portanto, a
atual referência para a formulação de currículos escolares de todos os estados
e municípios brasileiros e o Distrito Federal. (BRASIL, 2018).
Em se tratando especificamente sobre as categorias geográficas, é impor-
tante salientar que, diferente de seu antecessor, os PCN’s, as mesmas não estão
presentes de forma tão aprofundada e objetiva na BNCC, tanto de Ensino
Fundamental quanto do Ensino Médio, o que a nosso ver representa um ponto
falho de tal documento, visto que tais categorias são os objetos da Geografia,
os quais compõem sua base de estudos e pesquisas.
Na etapa documental que versa sobre o Ensino Fundamental, o mesmo
está organizado em cinco áreas do conhecimento: Linguagens, Matemática,
Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso. Segundo o que
consta no documento, essa organização visa facilitar a interdisciplinaridade
entre as ciências escolares, pois “[...] favorecem a comunicação entre os
conhecimentos e saberes dos diferentes componentes curriculares” (BRA-
SIL, 2010 in BRASIL, 2018, p. 27, grifo do autor.). A Geografia está inserida
na área do conhecimento denominada de Ciências Humanas.
Já no Ensino Médio, a Geografia está inserida no itinerário Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, e se encontra mais presente na Base do que
outras disciplinas. Todavia, é perceptível a perda de importância que a mesma
apresenta se comparada aos PCN’s, por exemplo. Isso pode ser comprovado
ao analisarmos a (pouca) presença das categorias clássicas da Geografia.
96

A indicação de uma Base Nacional Comum já vinha sendo pontuada


desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/1996,
a qual chamava a atenção para a necessidade de construção de uma formação
básica comum. Em 2014, a Lei n° 13.005 de 25 de junho, regulamentou o
Plano Nacional de Educação (PNE) com vigência de 10 anos. Tal plano pos-
sui 20 metas para a melhoria da qualidade da Educação Básica, das quais 4
falam sobre a Base Nacional Comum Curricular. Ainda em novembro desse
ano (2014) ocorreu a 2ª Conferência Nacional de Educação organizada pelo
Fórum Nacional de Educação (FNE) que resultou em um documento sobre as

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propostas e reflexões para a Educação brasileira, o que se tornou um impor-
tante referencial para o processo de elaboração da BNCC.
Em abril de 2017, o Ministério da Educação (MEC) entregou a versão
final da BNCC ao Conselho Nacional de Educação (CNE), o qual elaborou
um parecer e um projeto de resolução sobre o documento, até que em 20 de
setembro daquele ano, a Base foi então homologada pelo então ministro da
Educação, Mendonça Filho.
Os encontros estaduais e as audiências públicas ocorridas desde o início
do processo de formulação da Base, foram marcadas por uma série de conflitos
e que, diferente do que o site da BNCC e o Ministério da Educação (MEC)
publicizaram, o processo de discussões não foi harmonioso, tendo em vista que
os professores do Ensino Básico, do Ensino Superior, pesquisadores e a própria
comunidade, de uma forma geral, não tiveram suas proposições consideradas,
as quais foram simplesmente ignoradas e houveram, em muitas ocasiões,
desrespeito por parte dos organizadores, o que acabou gerando um sentimento
de mal-estar e conflitos em muitos desses encontros. (SILVA, 2018).
Em dezembro de 2018, por exemplo, o então ministro da educação,
Rossieli Soares, homologou o documento oficial da Base Nacional Comum
Curricular para a etapa do Ensino Médio, ignorando totalmente as sugestões
feitas pela comunidade educacional para esse documento. Silva (2018) explica
que a proposta de Ensino Médio homologada pelo governo, foi de encontro
à Medida Provisória 746/16 publicada pelo então presidente Michel Temer
em caráter de urgência. Entre os argumentos apresentados para justificar tal
urgência, a autora elenca como principais:

a) Corrigir o número excessivo de disciplinas do ensino médio, não


adequadas ao mundo do trabalho;
b) As novas propostas apresentadas para o Ensino Médio precisa-
vam estar alinhadas com as recomendações do Banco Mundial e
do Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF);
c) O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do ensino
médio estava estagnado;
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 97

d) A urgente e necessidade de melhorar o desempenho dos estudan-


tes brasileiros no PISA (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes);
e) Apenas 10% da matrícula do ensino médio é em educação profis-
sional, muito aquém dos países desenvolvidos”;
f) Apenas 16% dos concluintes do ensino médio ingressam na educa-
ção superior, portanto, é necessário profissionalizar antes;
g) A reiterada argumentação de que o Brasil é o único país do
mundo com uma mesma trajetória formativa e sobrecarregada por
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13 disciplinas.

Essas justificativas carregam um teor economicista e de mercado sobre


as novas propostas para o Ensino Médio, e não possuem qualquer rela-
ção com a melhoria da qualidade de educação. Além disso, o novo Ensino
Médio proposto pela BNCC, com respaldo na Lei n.° 13.415/17, promove
uma aproximação entre a educação e o setor privado. (FERRETI; SILVA,
2017). Essa Medida Provisória de 2016 foi transformada, no ano seguinte,
na Lei 13.415/2017, a qual efetivou profundas mudanças no Ensino Médio,
conforme analisaremos melhor mais adiante.
As categorias geográficas na etapa documental do Ensino Fundamen-
tal (anos finais). Inicialmente, precisamos ressaltar que, dentro da BNCC,
o Ensino Fundamental está organizado em cinco áreas do conhecimento:
Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino
Religioso. Segundo o que consta no documento, essa organização visa faci-
litar a interdisciplinaridade entre as ciências escolares, pois “[...] favorecem
a comunicação entre os conhecimentos e saberes dos diferentes componentes
curriculares” (BRASIL, 2010 in BRASIL, 2018, p. 27, grifo do autor.).
A Geografia encontra-se inserida na área das Ciências Humanas, junta-
mente à História. O documento explica que o tempo e o espaço são as cate-
gorias basilares dessa área, e que devem ser abordadas de maneira conjunta e
indissociável. O aluno deve compreender que “o ser humano produz o espaço
em que vive, apropriando-se dele em determinada circunstância histórica”
(BRASIL, 2018, p. 353).
Assim, fica evidente que o espaço geográfico é o objeto de estudos da
Geografia que se encontra inserida na BNCC, assim como ocorreu nos PCN’s.
É interessante deixar claro que documento ressalta a importância de o espaço
e o tempo serem trabalhados de forma indissociável, dessa vez de maneira
mais enfática e melhor definida, ficando o espaço a cargo da Geografia e o
tempo a cargo da História, sendo importante que essas duas disciplinas atuem
de maneira interdisciplinar e conjunta.
98

Um outro ponto interessante que gostaríamos de destacar é que a BNCC


elenca três tipos de espaços que devem ser trabalhados pelos professores em
sala de aula: o espaço percebido, o espaço concebido e o espaço vivido39.
Os professores, portanto, devem sempre levar em consideração os espaços
de vivências dos alunos, pois como já foi dito anteriormente, isso facilita o
exercício de reconhecimentos dos objetos, fenômenos e lugares distribuídos
pelo território.
Assim, nos anos finais do Ensino Fundamental, composto pelos quatro
últimos anos dessa etapa de ensino (6º,7º, 8º e 9º ano), a BNCC explica que

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os alunos precisam se ver como indivíduos ativos em um mundo de constan-
tes mudanças.
Falando especificamente da Geografia, a BNCC ressalta a importância de
os alunos pensarem espacialmente, e para isso, propõe o desenvolvimento do
raciocínio geográfico, cujos princípios são: analogia, conexão, diferenciação,
distribuição, extensão, localização e ordem. Tal termo é recorrente em toda
a etapa geográfica do documento, e está associado à integração da Geografia
com outras ciências, como Arte, Matemática, Ciências etc.
Nos PCN’s o eixo gravitacional sobre o qual se assentavam os conteúdos,
objetivos e avaliações eram as categorias geográficas, mais especificamente o
espaço. Na BNCC, tal papel fica a cargo, também, do raciocínio geográfico,
o que, a nosso ver, é algo importante trazido por esse documento e que não
era tão bem desenvolvido no anterior. Infelizmente, as categorias geográficas
acabaram sendo relegadas a segundo plano, aparecendo apenas em apenas
alguns momentos.
Girotto (2015) explica que o raciocínio geográfico é a capacidade de esta-
belecermos relações espaço-temporais entre os fenômenos e os processos em
diferentes escalas geográficas, sendo anterior até mesmo ao próprio processo
de sistematização da Geografia enquanto ciência, ocorrido no século XIX.
Para o autor, o raciocínio geográfico remonta aos primeiros grupos nômades
que se viram, em determinado momento, na necessidade de se organizarem
e se projetarem espacialmente de modo a garantirem sua sobrevivência. “Por
isso, era necessário interpretar e produzir o espaço a partir dos interesses e
estratégias de sobrevivência do grupo” (GIROTTO, 2015, p. 72).
Conforme as sociedades evoluem e se tornam mais complexas, o saber
geográfico (na forma de raciocínio) se torna ainda mais necessário, princi-
palmente por parte dos poderes hegemônicos, que precisam garantir o poder.

39 Essa teoria dos três espaços (percebido, concebido e vivido) foi proposta por Henri Lefbvre, em seu livro La
production de l’espace (2013). De acordo com o autor, esses três espaços não existem sozinhos, de modo
que há uma mútua relação e dependência entre eles.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 99

O raciocínio geográfico, portanto, possui um forte teor geopolítico. Ainda de


acordo com Girotto (2015), no mundo atual esse conhecimento se faz ainda
mais importante e necessário.
No âmbito educacional, o raciocínio geográfico tem como objetivo
fomentar um ensino prático para a Geografia. Lacoste (1988) explica que
durante muito tempo a Geografia trabalhada na Educação Básica, foi abor-
dada de maneira muito teórica e sem nenhuma aplicação prática no cotidiano
dos alunos. O autor afirma ainda que o papel da Geografia era mascarar a
realidade e os saberes estratégicos da ciência geográfica. Portanto, o ensino
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e compreensão do raciocínio geográfico não eram interessantes para os pode-


res hegemônicos.
Lacoste (1988) explica ainda que tal raciocínio se baseia em diversos
conjuntos espaciais e precisam ser compreendidos sob diversas categorias
científicas, como geologia, climatologia, demografia, entre outros. O raciocínio
geográfico, portanto, pode ser definido como a pura compreensão do espaço
onde se vive ou onde se locomove. Mas de qual espaço estamos falando?
Moraes (2018) afirma que vários espaços podem entrar nessa equação e tudo
depende do ponto de vista do sujeito, pois, enquanto no passado tínhamos
apenas um espaço bem definido, limitado e contínuo, no mundo atual predo-
mina uma espacialidade diferenciada.
Por isso, ressaltamos novamente que a inserção dessa discussão na BNCC
é de considerável relevância para a disciplina de Geografia. Infelizmente, não
há uma explicação aprofundada sobre o seu real significado ou sugestões
didáticas e metodológicas e como o professor de Geografia pode utilizá-lo
melhormente em sala de aula, a fim de desenvolver nos alunos o pensamento
e a prática espacial. Os apontamentos feitos são bastante rasos e, de certa
forma, confusos.
A BNCC reforça que o raciocínio geográfico é a maior contribuição
da Geografia para os alunos do Ensino Básico, com vista a compreender o
pensamento espacial. O documento faz, então, algumas rápidas menções às
categorias geográficas, explicando que sua correta utilização auxilia os alunos
a analisarem melhor os fenômenos geográficos.

Nessa direção, a BNCC está organizada com base nas principais categorias
da Geografia contemporânea, diferenciados por níveis de complexidade.
Embora o espaço seja a categoria mais ampla e complexa da Geografia, é
necessário que os alunos dominem outras categorias mais operacionais e
que expressam aspectos diferentes do espaço geográfico: território, lugar,
região, natureza e paisagem. (BRASIL, 2018, p. 361, grifo nosso).
100

Notemos que apenas aqui a categoria natureza aparece ao lado das cate-
gorias clássicas da Geografia, o que é uma novidade trazida pela BNCC. O
documento explica ainda que o espaço e tempo precisam caminhar juntos,
pois possibilitam a análise da construção social bem como as memórias e as
identidades dos sujeitos.
Falando agora especificamente sobre os anos finais do Ensino Fundamen-
tal, a Base chama a atenção para a necessidade de ampliação dos conhecimentos
dos alunos sobre o uso do espaço em diferentes situações geográficas e enfati-
zando a transformação desses espaços em territórios usados, que de acordo

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com a Base, é tanto um espaço de ação concreta das relações de poder quanto
um espaço mundial originado da rede global de computadores e geotecnologias.
Em termos estruturais, a BNCC manteve a “distribuição” das categorias
geográficas conforme ocorreu nos PCN’s: 6º ano- lugar e paisagem; 7º ano —
território e região; 8º ano — território e região; 9º ano — região. O espaço está
diluído em todos os anos que formam essa etapa, pois o próprio documento
ressalta que a base de todo o ensino geográfico é essa categoria geográfica,
de modo que todos os estudos devem ter interligação direta com ele.
Assim, concluímos a análise da etapa do Ensino Fundamental — anos
finais, cientes de que as categorias geográficas estão presentes, embora a
ênfase maior seja dada ao espaço e ao território. Embora não apareçam com
o mesmo peso que tinham nos PCN’s (o que, a nosso ver, representa um sério
retrocesso), as categorias geográficas continuam em vigor. Infelizmente, as
considerações a respeito dos espaços de vivências dos alunos acabaram per-
dendo parte do destaque que tinham no documento anterior, embora sejam
mencionadas de maneira rápida.
As categorias geográficas na etapa documental do Ensino Médio. Antes
de tratarmos especificamente sobre as categorias geográficas nesta etapa de
ensino, precisamos compreender a forma como o Ensino Médio está organi-
zado a partir da BNCC. Para isso, precisamos remontar a 2016, quando o então
Presidente da República, Michel Temer, homologou a Medida Provisória 746,
a qual tratava de uma profunda reforma do Ensino Médio. De acordo com
Silva (2018) essa MP estabelecia mudanças no Ensino Médio em dois pontos
principais: na sua organização curricular e no seu financiamento público.
Essa MP trouxe também a separação do currículo do Ensino Médio em
duas partes: a primeira é destinada à formação básica comum, a qual todos os
alunos deverão obrigatoriamente cursar ao longo de 3 anos. A segunda parte se
subdivide em 5 itinerários formativos: Linguagens, Matemática, Ciências da
Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional. Em teoria, o
estudante escolherá, conforme seu interesse e disponibilidade dos sistemas de
ensino, um desses itinerários a partir da 2ª série do Ensino Médio e a cursará
juntamente à formação básica.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 101

A formação básica comum terá (até) 1.800 horas e os itinerários for-


mativos teriam cerca de 1.200 horas. A carga horária total do Ensino Médio
passa a ser de 3.000 horas mínimas, ficando a cargo das Secretarias Estaduais
organizar as disciplinas que irão compor cada itinerário da forma que julga-
rem mais conveniente, desde que não desobedeçam ao que foi estabelecido
pela Lei. Alguns itinerários formativos também receberam o termo “e suas
tecnologias”, ficando, portanto: Linguagens e suas tecnologias, Matemática e
suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas
e Sociais Aplicadas e Formação Técnica e Profissional.
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Um outro ponto que precisamos chamar a atenção para a BNCC e a


Lei 13.415/17 é a possibilidade mercantilização da educação, a partir da
relação público-privada, isso porque, como dito anteriormente, passa a ser
permitida a possibilidade de que os sistemas de ensino firmem convênios/
contratos com instituições privadas de educação à distância, por exemplo,
visando oferecer cursos integralizados para cumprir carga horária. (SILVA,
2018). Fica evidente que a BNCC, principalmente na etapa do Ensino Médio,
traz um caráter muito mais técnico e profissionalizante à formação dos alunos.
Fica nítido também o “achatamento” que as disciplinas de cunho humano
e social e, altamente críticas sofreram com essas mudanças. A diminuição
brusca de carga horária que as Ciências Humanas (bem como as demais)
tiveram em detrimento de Português, Matemática e Inglês, além dos itinerá-
rios formativos, com conteúdos cada vez mais técnicos e menos reflexivos,
comprovam que os alunos já não podem receber uma educação que os levem
a pensar contra (ou de forma crítica) o status quo.
Falando especificamente da Geografia, a mesma está inserida no itine-
rário Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, e se encontra bastante presente
na Base, diferente de outras disciplinas. Todavia, é perceptível a perda de
importância que a mesma apresenta se comparada aos PCN’s, por exemplo.
Isso pode ser comprovado ao analisarmos a (pouca) presença das categorias
clássicas da Geografia.
De acordo com o documento, o itinerário das Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas visa garantir um leque de aprendizagem aos jovens no Ensino
Médio. Assim, as principais categorias ligadas às disciplinas de Geografia,
História, Sociologia e Filosofia, e que deverão ser amplamente exploradas, são:
Tempo e Espaço; Territórios e Fronteiras; Indivíduo, Natureza, Sociedade,
Cultura e Ética; e Política e Trabalho.
Percebemos que duas categorias clássicas da Geografia são comtem-
pladas claramente nesse itinerário: o espaço e o território. Tal fato já vinha
ocorrendo desde a etapa do Ensino Fundamental-anos finais. De acordo com
o documento, a noção de espaço deve contemplar dimensões históricas e cul-
turais, indo além de representações cartográficas. O estudo desse espaço deve
102

abordar questões como natureza, movimentação de grupos, povos e socieda-


des, bem como disputas, conflitos, ocupações (ordenadas ou desordenadas)
ou dominações. “No espaço (em um lugar) se dá a produção, a distribuição e
o consumo de mercadorias. Nele são realizados fluxos de diversas naturezas
(pessoas e objetos) e são desenvolvidas relações de trabalho, com ritmos e
velocidades variados” (BRASIL, 2018, p. 563).
Já o território, de acordo com a BNCC, aparece como uma categoria
usualmente recorrente, sempre que nos referimos a porções da superfície
terrestre que estão sob domínio de um grupo de pessoas e/ou que serve de

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suporte para nações, estados e países. Tal categoria deve englobar “[...] as
noções de lugar, região, fronteira e, especialmente, os limites políticos e admi-
nistrativos de cidades, estados e países, sendo, portanto, esquemas abstratos
de organização da realidade” (BRASIL, 2018, p. 564).
Ainda de acordo com a BNCC, o estudo dessas duas categorias deve
possibilitar a compreensão dos processos identitários marcados por territo-
rialidades e fronteiras em históricas disputas, de modo que a curiosidade a
respeito do lugar do aluno no mundo, seja instigada, possibilitando tanto sua
transformação quanto lugar em que vive. (BRASIL, 2018).
Embora estejamos focando apenas nas categorias clássicas da Geogra-
fia (espaço, território, região, lugar e paisagem) ressaltamos que todas as
demais que são apresentadas no itinerário Ciências Humanas e Sociais Apli-
cadas possuem relação direta com essa disciplina e fazem parte dos seus
conteúdos. Assim, ao compararmos a Geografia com outras disciplinas, cons-
tatamos, mais uma vez, que apesar dos retrocessos, ela foi privilegiada em
termos conteudísticos.
Assim, podemos concluir que a etapa documental da BNCC que versa
sobre o Ensino Médio apresenta algumas considerações referentes ao espaço
e ao território. Ao fazermos uma comparação com os PCN’s, vemos que a
Geografia (juntamente com várias outras disciplinas) acabou perdendo espaço.
As categorias geográficas, que serviam de norteadoras para a organização
curricular dos Parâmetros Curriculares, já não possuem o mesmo papel na
BNCC, e isso, a nosso ver, representa uma grande desvalorização dos obje-
tos geográficos.
Em síntese, faz-se necessário tecermos algumas considerações a respeito
dos documentos norteadores nacionais da educação:

a) Os PCN’s, em suas etapas voltadas à Geografia, sempre deixaram


claro que as categorias geográficas eram a base de toda a organiza-
ção de ensino e aprendizado, algo que acabou não acontecendo de
maneira tão nítida na BNCC;
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 103

b) Em ambos os documentos, o espaço aparece como a categoria base


e de maior importância dentro da Geografia, sendo tratado como
seu principal objeto de estudos;
c) BNCC traz consigo o conceito de raciocínio geográfico com muito
mais ênfase do que os PCN’s. Tal conceito é a mais pura junção de
todas as categorias geográficas. Infelizmente, não há aprofunda-
mento sobre o mesmo, o que faz com que ele acabe ficando confuso.

Apesar de alguns pontos negativos dos PCN’s, tínhamos uma valorização


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maior em relação às categorias geográficas e, os espaços de vivências dos


alunos eram levados em consideração para uma melhor aprendizagem e articu-
lação dos conteúdos geográficos, algo que não foi tão bem abordado na BNCC.

Currículos de Referência Únicos do Acre e as categorias geográficas

Conforme vimos anteriormente, os documentos norteadores da educação


nacional propõem um apanhado mais geral a respeito das disciplinas escolares,
e, embora tivéssemos alguns direcionamentos a respeito da aprendizagem
esperada em cada um dos anos e séries escolares, tais documentos deixaram
evidente que uma organização mais específica e detalhada, em termos conteu-
dísticos e metodológicos, ficariam a cargo das secretarias e/ou órgãos respon-
sáveis pela educação em cada um dos estados brasileiros e o Distrito Federal.
Os Currículos de Referência Únicos do Acre, como o próprio título
afirma, tratam-se de propostas curriculares que definem o que deverá ser
ensinado em cada ano e série dos ensinos Infantil, Fundamental e Médio em
nosso estado, bem como propostas metodológicas, atividades, entre outros.
Analisaremos as etapas que tratam sobre o Ensino Fundamental-anos finais
e o Ensino Médio.
Através de conversas com alguns elaboradores e organizadores do Currí-
culo de Referência Único do Acre — Ensino Fundamental, foi explicado que,
de fato, o atual Currículo do Acre foi organizado mais com base nos PCN’s do
que na própria BNCC, pois, de acordo com eles, reaproveitaram-se as antigas
propostas curriculares do estado, elaborados de acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais, e acrescentaram-se exigências e especificidades trazi-
dos pela Base. O mesmo não ocorreu no Currículo do Ensino Médio, o qual foi
elaborado mais com base na BNCC. Isso fez com que houvesse considerável
diferença entre os dois currículos, e até mesmo uma sensação de “quebra de
sequência” entre um e outro, como se ambos fossem documentos totalmente
e sem relação um com o outro.
No Currículo do Ensino Fundamental — anos finais, as categorias geo-
gráficas estão bem presentes e aparecem organizadas, mas pouco se mesclam
104

ou se trabalham de forma conjunta, passando a impressão de que uma é inde-


pendente da outra. Até mesmo o espaço, que deveria cumprir esse papel de
sintetizar as demais categorias em si, aparece sempre como um conteúdo à
parte ou fora da realidade dos alunos. Já Os espaços de vivências dos alunos,
embora não apareçam com tanta ênfase nesse documento, são mais recorrentes
do que na própria BNCC, por exemplo.
Já no Currículo do Ensino Médio, as categorias geográficas e os espaços
de vivências dos alunos foram “sucateados”. Ao compararmos com o docu-
mento do Ensino Fundamental, vemos que não há um avanço, em termos de

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complexidade e aprofundamento das categorias geográficas, como ocorria
nos currículos anteriores, pelo contrário, os Currículos de Referência Únicos
do Acre — Ensino Fundamental e Médio, se constituem como documentos
independentes e quase sem relação um com o outro, o que pode ser explicado
pela mudança e substituição quase que total da equipe que elaborou o docu-
mento do Ensino Fundamental, o que ocorreu devido à mudança de governo40.
A equipe que elaborou o Currículo de Referência Único do Acre —
Ensino Fundamental, teve um período de quase 04 anos para elaborá-lo (o
processo de preparação e elaboração se iniciou em 2015), nos quais partici-
param de reuniões, discussões e projetos de elaboração a nível nacional. Essa
equipe se encontrava, inclusive, em preparação para elaborar o Currículo do
Ensino Médio, mas por questões políticas, devido à mudança de governo,
foi totalmente substituída por outra, com menor tempo para elaboração do
documento do Ensino Médio, e nem contou com a mesma preparação e expe-
riência adquiridos pela equipe anterior, que participou de diversas formações
oferecidas sobre a BNCC.
Por esse motivo, o Currículo do Ensino Médio parece ser tão confuso em
alguns pontos, com questões pouco aprofundadas. Prova disso é que, ao ler-
mos o Currículo do Ensino Fundamental, conseguimos ter uma compreensão
do que está sendo proposto e de como as disciplinas devem ser trabalhadas.
O mesmo não acontece com o Currículo do Ensino Médio, sendo comum a
sensação de “confusão” ao concluirmos a leitura do documento.
Todos esses pontos tiveram um grande impacto no Currículo e na própria
organização do Ensino Médio no Acre. Através de conversas com alguns
professores, coordenadores pedagógicos, de ensino e gestores, foi possível
inferir que muitos deles se encontram receosos em trabalhar no Ensino Médio,
pois ainda não compreenderam como essa modalidade se encontra e deve
ser trabalhada.

40 O atual governador do Acre, Gladson Cameli (Partido Progressista), ganhou as eleições estaduais em
2018 e assumiu o governo em janeiro de 2019, colocando fim a uma sucessão de governos do Partido dos
Trabalhadores (PT) de quase 20 anos.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 105

Assim, todo esse cenário acaba tendo um impacto negativo na educação,


com professores, equipes gestoras e até mesmo profissionais da Secretaria de
Educação do estado do Acre confusos em relação à essa nova configuração
do Ensino Médio. As categorias geográficas perdem totalmente a importância
dentro desse documento e, quando aparecem, são abordados como simples
conteúdos sem nexo com os espaços de vivências.

O livro didático de Geografia


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Pontuschka, Paganelli e Cacete, em Para Ensinar e Aprender Geogra-


fia (2009) realizam algumas considerações a respeito do livro didático, que
consideramos importante analisar, antes de avançarmos nessa discussão. De
acordo com as autoras, os livros didáticos são tanto um produto cultural,
quanto uma mercadoria que visam atender um determinado mercado. Por
isso, os professores não podem escolher os livros didáticos de maneira alea-
tória. Antes, é preciso que realizem uma reflexão apurada sobre o material
que os mesmos têm em mãos. O primeiro passo para essa análise é procurar
conhecer o autor (ou os autores) do livro, o qual precisa ser um especialista
naquela área, e no caso da Geografia, é preciso ter todo um cuidado com a
linguagem, os elementos gráficos e cartográficos e a forma como o espaço
geográfico será abordado em tal material.
O livro didático não pode se apresentar como um simples apanhado
de textos sem nexo com a realidade. Os escritos, as imagens, os mapas, as
atividades, os elementos gráficos, entre outros, precisam ser atrativos aos
estudantes, e isso só será possível se os alunos enxergarem nesse material
algo que remeta à sua realidade.

Daí surge a importância de que os autores de livros didáticos também


descubram formas atraentes de tratar de assuntos relativos ao cotidiano
dos alunos do ponto de vista espacial e de outras realidades, os quais no
mundo globalizado em que vivemos interferem no cotidiano tanto do
aluno quanto do professor. (PONTUSCHKA; PAGANELLI; CACETE,
2009, p. 343).

Todavia, as autoras explicam que tal tarefa é árdua, visto que o Brasil é
um país de dimensões continentais com inúmeras realidades sociais, cultu-
rais e econômicas diferentes, de modo que os livros didáticos não consigam
abarcar. “Daí advém a necessidade de um professor bem formado, que saiba
relacionar os conteúdos e as imagens do livro com as diferentes linguagens
disponíveis e com o cotidiano dos seus alunos” (PONTUSCHKA; PAGA-
NELLI; CACETE, 2009, p. 343).
106

Feitas essas considerações iniciais, vejamos os apontamentos feitos pelos


professores a respeito dos livros didáticos utilizados em suas aulas. Primeira-
mente, apenas 41% (16 professores) dos entrevistados participaram da escolha
do livro didático de Geografia utilizado em suas escolas; 52% (20 professores)
não participaram dessa escolha; e 7% (3 professores) participaram da escolha,
mas não foi enviada para a escola a coleção escolhida por eles.
59% dos professores entrevistados têm à sua disposição livros didáticos
que não tiveram poder de escolha. E como vimos, é necessário realizar uma
ampla leitura e reflexão a respeito do material que será utilizado. Cada pro-

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fessor possui critérios diferentes de escolha. Alguns preferem escolher livros
que estejam de acordo com os documentos norteadores locais de sua cidade ou
estado; outros se baseiam na linguagem do livro; outros no referencial teórico;
e outros ainda nas imagens e nos elementos gráficos presentes no material.
É essencial, portanto, que o professor tenha o direito de escolher o livro
didático que melhor o auxilie em suas aulas, pois isso facilitará que o mesmo
faça as adaptações que julgar necessárias, de maneira mais fácil e rápida. Infe-
lizmente, como mostram os dados, isso nem sempre é possível, e muitos são
os fatores que contribuem para isso: rotatividade de professores nas escolas
(principalmente aqueles que não possuem contrato efetivo); a ausência do
professor na escola onde leciona atualmente na época em que os livros foram
selecionados (tendo em vista que os livros são escolhidos a cada 04 anos);
e ainda, o que é muito recorrente, o envio de uma coleção diferente daquela
que foi escolhida pelo professor ou escola.
De uma maneira geral, os professores afirmaram que consideram os
livros didáticos utilizados em suas escolas muito bons. Todos afirmaram que
os livros possuem uma linguagem adequada ao público-alvo, e que apresen-
tam uma boa qualidade em relação às imagens e elementos gráficos. Porém,
os professores fizeram algumas ressalvas que achamos interessante elencar
no quadro a seguir.

Fala docente sobre o livro didático de Geografia


Professor Sobre o livro didático
Os livros atendem a um bom número de aspectos, todavia, precisam sempre ser complementados com
1
outros materiais ou didáticas.
Apesar de bons, os livros poderiam apresentar textos mais amplos. Sempre é preciso acrescentar
2
materiais que não estão presentes neles
3 Os livros são muito bons, no entanto, são resumidos e não apresentam aprofundamento.
Apesar de ser resumida, principalmente em relação aos textos, é uma boa coleção, e está de acordo
4
com os planos de estudo da Secretaria de Educação.

Fonte: Organizado pelos autores (2021).


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 107

É interessante notar que uma queixa recorrente entre os professores é


em relação aos conteúdos resumidos dos livros didáticos. Isso, a nosso ver,
é preocupante, pois mostra o quanto os docentes estão dependentes do livro
didático, esquecendo-se que o mesmo é apenas uma ferramenta de apoio, e
não um recurso que deve embasar todas as aulas ministradas. Particularmente,
consideramos um ponto positivo os livros didáticos não serem tão amplos,
mas apresentarem textos mais curtos e resumidos, pois isso acaba tornando-
-os mais atrativos para que os alunos leiam, não “engessam” os conteúdos e
deixam espaço para que o professor faça as intervenções necessárias sobre
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determinados conteúdos, propiciando debates e discussões que podem enri-


quecer as aulas.
Notemos também que o fato de os livros exigirem que os professores
sempre complementem os conteúdos com textos ou outros materiais, é apon-
tado por eles como um problema e não como um fator positivo. Isso corrobora
ainda mais nossa afirmativa anterior, de que o nível de dependência dos pro-
fessores em relação a esse material é muito grande. Entendemos, no entanto,
que a elevada carga horária e o elevado número de alunos por turma acabam
deixando os docentes com pouco tempo para planejar, elaborar e preparar
aulas mais diversificadas, fazendo com que o livro didático acabe se tornando
o material didático mais atrativo e prático nesse processo.
Outro dado interessante é que 94% dos professores entrevistados conside-
ram que os livros didáticos utilizados por eles estão de acordo com a realidade
dos seus alunos. Através de conversas com alguns professores, eles explicaram
que os livros apresentam exemplos, problemáticas e situações que são muito
semelhantes à realidade de seus alunos, embora não necessariamente esses
exemplos se passem em Rio Branco, no Acre. Questões que se passam em
São Paulo ou Rio de Janeiro, por exemplo, como problemas de enchentes,
inundações, doenças, inflação, desigualdades sociais etc., são as mesmas (ou
muito semelhantes) à realidade da nossa cidade ou estado.
Isso mostra porque 98% dos professores entrevistados afirmaram que
adaptam os conteúdos do livro didático com a realidade dos seus alunos, da
sua escola, da sua cidade e/ou do seu estado. Embora os livros apresentem
situações semelhantes às nossas, é necessário trazer tais questões para a nossa
realidade, de modo que os alunos se identifiquem com aquilo que está sendo
proposto na aula e mostrem interesse pela disciplina.
As coleções Araribá Mais: Geografia (Ensino Fundamental-anos finais)
e Fronteiras da Globalização (Ensino Médio) foram as mais apontadas pelos
professores que participaram dessa pesquisa.
Os livros da coleção Araribá Mais Geografia, estão de acordo com o
público-alvo ao qual se destinam e articulam bem as categorias geográficas
108

com os espaços de vivências dos alunos. É nítido que os livros apresentam tex-
tos, imagens e elementos gráficos que condizem com a realidade dos alunos.
Vale ressaltar que, por se tratar de uma coleção de distribuição nacional,
não é possível realizar detalhamentos mais específicos sobre nossa cidade
ou nosso estado. No entanto, os exemplos, imagens, mapas e outros recursos
apresentados nos livros possibilitam que o professor, juntamente aos seus
alunos, realize facilmente essa adaptação.
Vimos também que o grau de complexidade dos livros aumenta gra-
dativamente com o passar dos anos aos quais se destinam. Por esse motivo,

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as formas como as categorias geográficas se apresentam se torna cada vez
mais discreta, pois entendemos que os autores esperam que os estudantes se
tornem cada vez mais independentes em relação à percepção e entendimento
das categorias geográficas.
Já a coleção Fronteiras da Globalização apresenta uma boa estrutura em
relação às categorias geográficas. Embora elas sejam trabalhadas de maneira
mais aprofundada no livro da 1ª série, com conceituações e relações com os
espaços de vivências, todas estão presentes também nos demais livros, embora
de maneira menos explícita. Um dos pontos altos desse livro é abordar as
categorias de maneira mais complexa e ampla, variando a escala de estudos
entre o local e o global. Há também referência a grandes geógrafos do meio
acadêmico brasileiro e internacional, como Milton Santos, Jackes Levy, entre
outros. Esse tipo de abordagem aproxima a escola e a universidade, ampliando
as possibilidades das análises geográficas.
A única ressalva é a região, que infelizmente é abordada como um ins-
trumento de análises e não como uma categoria, pois diferente das demais,
a região não aparece de forma destacada e nem há uma preocupação em
conceituá-la, como ocorreu com as demais. Isso ocorre também na coleção
Araribá Mais Geografia.
Os livros didáticos, infelizmente, acabaram sendo apontados como
um verdadeiro condutor de aulas para os professores, servindo inclusive de
base para os conteúdos ministrados. Ao analisá-los, percebemos que tanto as
categorias geográficas quanto os espaços de vivências aparecem de maneira
interligadas, mesmo assim, é necessária a intervenção dos professores para
trazer esses pontos para a realidade local dos alunos, o que muitos afirmam
que realizam.

Categorias geográficas e os espaços de vivência nas práticas docentes

Reforçamos aqui a importância de se levar em consideração os espaços


de vivências dos alunos durante as práticas docentes. Tal prática se torna
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 109

ainda mais necessária ao se abordar as categorias geográficas, pois é a partir


do lugar que conseguimos compreender de maneira mais ampla e eficaz os
fenômenos ocorridos no espaço geográfico.
Abordamos brevemente como esses espaços de vivências, atrelados às
categorias geográficas, são abordados nos documentos e currículos oficiais
que norteiam a educação em nosso país e em nosso estado, de modo que foi
possível concluir que, embora tais elementos apareçam de maneira resumida
nos documentos, em especial na BNCC, ainda assim estão presentes, de modo
que consideramos crucial que os professores de Geografia, em suas práticas
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docentes, abordem tais questões (ou objetos) a fim de levar os alunos a com-
preenderem a maneira como cada um integra e modifica, de forma individual
e social, o espaço geográfico em suas práticas cotidianas.
Nesta parte do texto serão apresentados alguns resultados da pesquisa
realizada com professores de Geografia, com objetivo de compreender se e
como os espaços de vivências dos alunos são levados em consideração em
suas práticas docentes, ao abordarem as categorias geográficas. Para isso,
elaboramos um questionário de 34 questões no Google Formulários, o qual
foi enviado a diversos professores de Geografia, que lecionam no Ensino
Fundamental (anos finais) e no Ensino Médio em escolas de Rio Branco, Acre.
Ao todo, 39 professores de Geografia, atuantes em sala de aula, respon-
deram ao questionário, instrumento desta pesquisa. Entendemos, portanto,
que os dados aqui apresentados representam parte da realidade da maioria dos
professores de Geografia atuantes em sala de aula, pois esses 39 professores
representam um universo muito maior de profissionais.
No que diz respeito ao tempo em que os profissionais trabalham como
professores de Geografia, temos os seguintes resultados: 43,6% dos entre-
vistados exercem a docência entre 01 e 05 anos; 25,6% estão em sala de aula
entre 05 e 10 anos; e 28,2% são professores a mais de 10 anos. Apenas 2,6%
dos entrevistados afirmou ser professor de Geografia a menos de 01 ano.
A quase totalidade dos professores entrevistados, portanto, possui expe-
riência em sala de aula, o que pode revelar dois fatores: a) são profissionais
familiarizados com a rotina docente e com os espaços de vivências dos alunos
das escolas onde lecionam (visto que alguns deles afirmaram durante a entre-
vista que lecionam na mesma escola a muito tempo); e b) o muito tempo de
trabalho pode provocar um certo “comodismo” e uma falta de atualização em
relação a documentos recentes, além de que, os com menos tempo de trabalho,
podem ser aqueles mais recém formados, o que os possibilita estarem mais
atualizados com esses documentos.
Quase 90% desses professores leciona apenas na rede pública de ensino,
ou seja, estão em contato direto com a realidade da maioria dos estudantes do
110

nosso país e do nosso estado, bem como com o ambiente escolar do ensino
público, conhecendo de perto as dificuldades e limitações desse sistema de
ensino e as abordagens que podem dar certo ou não com seus alunos. São
professores que conhecem os espaços de vivências dos alunos da rede pública.
Outro dado que gostaríamos de destacar é que, nesta pesquisa, 38,5%
dos professores entrevistados lecionam apenas no Ensino Fundamental —
anos finais; 38,5% lecionam apenas no Ensino Médio; e 23% lecionam em
ambas as modalidades de Ensino. Isso nos possibilita compreender melhor a
forma como os espaços de vivências são levados em consideração durante o

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processo de ensino das categorias geográficas, pela variedade de anos esco-
lares trabalhados pelos participantes da pesquisa, pois de acordo com Tuan
(1983), crianças, adolescentes e adultos possuem “tempos” diferentes para
criar relações afetivas com um local, de modo que a forma como esses indi-
víduos encaram seus espaços de vivências irá variar de acordo com a faixa
etária de cada um.
Espera-se que as categorias geográficas sejam abordadas de maneira
cada vez mais complexa com o passar dos anos e séries escolares. O 6º ano
do Ensino Fundamental, por exemplo, é focado em conceituar as categorias
geográficas tendo como base o espaço local. No 7º ano essa conceituação terá
como base o espaço nacional. No 8º e 9º ano entende-se que o aluno sozinho
já seja capaz de conceituar as categorias geográficas. Parte-se então para
abordagens mais complexas, tendo como viés os espaços nacional e mundial.
No Ensino Médio essa complexidade acentua-se ainda mais, de modo que o
aluno seja capaz de interligar e contextualizar diferentes fatos, fenômenos e
objetos do espaço geográfico nas mais diversas escalas. É a pura materiali-
zação do raciocínio geográfico.
Achamos por bem analisar também a carga horária de trabalho dos pro-
fessores, pois entendemos que isso terá um impacto direto em suas dinâmicas
de ensino. Embora não seja uma regra, professores com carga horária maior em
sala de aula terão menos tempo para preparar suas aulas e realizar pesquisas
de modo a enriquecê-las.
Tardif e Lessard (2014) analisam a carga de trabalho dos professores a
partir de dois pontos de vistas complementares: o administrativo, definido
pelas normas legais nos contratos e negociações; e aquele “das exigências
reais do trabalho cotidiano” (p. 111). Nesse sentido, há de se considerar que,
ao questionar o professor sobre sua carga horária ou carga de trabalho em um
dado período de tempo (semana, mês), estes tendem a se referir aquela carga
horária administrativa, no entanto, o que os realmente define enquanto traba-
lhadores é a soma desta com a carga de trabalho cotidiano, aquele que extra-
pola a dimensão contratual. A ela, somam-se outras atividades que, segundo
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 111

os autores, Tardif e Claude (2014), contabilizam um trabalho invisível ou


carga informal de trabalho.
Sobre a carga horária de trabalho dos professores participantes da pes-
quisa, os dados revelam que mais de 80% dos professores entrevistados pos-
suem uma carga horária de trabalho superior a 30 horas. Tais horas se referem
apenas ao tempo de serviço na escola, a prática docente de fato, em sala de
aula, mas não leva em consideração o tempo de trabalho que esses professores
possuem em casa, durante a correção de provas, trabalhos e elaboração de
aulas. Quanto maior a carga horária docente em sala de aula, menor o tempo
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de leituras, análises e “atualizações” que o mesmo terá para preparar suas


aulas, o que terá um impacto significativo na qualidade das suas aulas.

Entendemos nesse contexto que o trabalho do professor, entendido


enquanto aquele que extrapola o tempo de ministração da aula (presencial
ou online), não é totalmente considerado como carga horária de trabalho.
Por mais que para o planejamento de aulas estejam atribuídas horas de
trabalho, não são contabilizados o tempo utilizado para várias outras de
atividades relacionadas ao processo de ensino. É nesse sentido que enten-
demos este enquanto um “trabalho invisível” e “não pago” (PAULA;
ALMEIDA, 2021, p. 243).

Todos os professores entrevistados afirmaram que possuem formação


superior em Geografia Licenciatura, e quatro deles possuem também formação
em Geografia Bacharelado. De 100% dos entrevistados, 60% possuem apenas
graduação; 18% possuem graduação e especialização; 11% possui graduação
e mestrado; e 11% possui graduação, mestrado e doutorado.
A formação acadêmica dos entrevistados revela que todos estão aptos a
lecionarem Geografia em sala de aula. 90% do total dos professores entrevis-
tados afirma que suas formações contribuíram significativamente, para que
compreendessem de forma satisfatória as categorias geográficas. Os outros
10% afirmaram que suas formações iniciais e/ou continuadas não contri-
buíram de maneira tão significativa para suas compreensões a respeito das
categorias geográficas, mas, mesmo assim, entendemos que tais formações
foram primordiais para ambos os grupos, pois nenhum professor afirmou que
suas formações não contribuíram em nada no quesito categorias geográficas.
Entre os professores entrevistados, 61% ressaltaram ainda que, além de
suas formações iniciais e continuadas, outros fatores contribuíram para que
eles se aprofundassem nessa temática basilar no ensino de Geografia. Entre
tais fatores, os mais apontados foram: i) a própria prática docente, que faz
com que acabem compreendendo e relacionando cada vez mais as catego-
rias geográficas; ii) leituras e pesquisas complementares realizadas durante
112

a elaboração de suas aulas; e iii) leituras e pesquisas realizadas nas pós-gra-


duações de alguns deles.
Assim, podemos concluir que os professores de Geografia entrevista-
dos nessa pesquisa possuem familiaridade com as categorias geográficas e
noções conceituais sobre as mesmas. Mas será que as categorias geográficas
são realmente trabalhadas por esses docentes em sala de aula? E caso sim, de
que forma eles costumam abordá-las?
De acordo com a pesquisa, 90% dos professores afirmaram que, durante
suas práticas docentes, as categorias geográficas são recorrentes. Entre as

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diversas respostas e apontamentos conteudísticos, a maioria dos professores
afirmou que em praticamente todos os conteúdos abordados nas suas aulas,
as categorias geográficas estão presentes. “Praticamente em todos, já que
estão presentes de alguma forma em todos os conteúdos de Geografia” foi a
resposta do Professor 1. “Em diversos conteúdos. As categorias geográficas
estão sempre presentes nos conteúdos de Geografia, mesmo que de forma
implícita” afirmou o Professor 2.
Alguns professores, ao responderem essa questão, preferiram elencar
uma série de conteúdos que ministram e nos quais trabalham diretamente com
as categorias geográficas. O que nos chamou a atenção, foi o fato de poucos
conteúdos se repetirem, ou seja, os professores elencaram inúmeros conteú-
dos que, ao final, acabam compondo os temas centrais da Geografia ao longo
do Ensino Básico. Um dos professores, por exemplo, apontou as seguintes
temáticas: “Cartografia; Geografia da população; Atividades econômicas
brasileiras; Formação do território brasileiro; Migrações; Região e regio-
nalizações do Brasil etc.”; um outro professor afirmou que sempre recorre
às categorias geográficas ao trabalhar com “Formação territorial do Brasil,
migração (dinâmica populacional), geopolítica, fusos horários, composição
da população brasileira e produção do espaço geográfico acreano.”.
Esses dados mostram que as categorias geográficas são consideradas de
algum modo pelos professores de Geografia durante suas práticas docentes.
Um ponto a destacar é que os professores, pelo que pudemos inferir através
de alguns dados, não se restringem a apenas definir o que são as categorias,
mas a de fato levar os alunos a compreendê-las e a “enxergá-las” nos diversos
conteúdos de Geografia, pois as categorias constituem os objetos centrais
dessa disciplina.
Se o aluno conseguir compreender por si só que, ao estudar questões
geopolíticas e de conflitos, por exemplo, ele está relacionando questões ter-
ritoriais, regionais e espaciais, o professor pode considerar que as categorias
geográficas foram trabalhadas e compreendidas. Ao compreender, através de
imagens, que com o passar do tempo a floresta amazônica vem sendo derru-
bada e em seu lugar estão surgindo construções, estradas e áreas de pastagem,
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 113

os alunos estão conseguindo compreender, através da paisagem, as mudanças


que vem ocorrendo no espaço, incluindo aí as relações de disputa e poder
estabelecidas para estas configurações. É justamente nessas correlações de
conteúdos que os professores conseguem avaliar se de fato os alunos com-
preendem as categorias geográficas.
Assim, achamos interessante investigar quais os pontos de vistas desse
grupo de professores entrevistados, a respeito da percepção que os seus alunos
possuem sobre as categorias geográficas. Será que esses professores conside-
ram que seus alunos compreendem os conceitos basilares da geografia (espaço
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geográfico, região, território, paisagem e lugar) a partir das suas aulas? E


caso sim, como eles chegam a essa conclusão? É importante enfatizar que na
compreensão e construção de conceitos, que se dão no contexto dos espaços
formais de ensino, como a escola, consideramos que as vivências têm impor-
tante contribuição, principalmente quanto tratamos especificamente aqui sobre
as categorias geográficas.
De acordo com a pesquisa, 54% dos professores afirmaram que seus alu-
nos compreendem bem as categorias geográficas a partir das suas aulas. 46%
explicaram que tal compreensão acontece apenas em parte. Alguns apontaram
que os alunos possuem dificuldade em compreender categorias mais comple-
xas como o espaço e o território. Dos 39 professores entrevistados, quase 88%
afirmaram que chegam a essas conclusões a partir de atividades e perguntas
contextualizadas. Alguns apontaram ainda que realizam tal exercício através
de atividades escritas, debates e perguntas diretas. Há ainda aqueles que ava-
liam essa aprendizagem a partir de situações e falas expressas pelos próprios
alunos a respeito de situações cotidianas expostas por eles durante as aulas.
Sintetizando, até aqui foi possível perceber alguns pontos interessantes
a respeito das categorias geográficas em sala de aula.

a) A formação iniciada e continuada dos professores é de vital impor-


tância para que eles dominem bem as categorias geográficas e este-
jam aptos a trabalharem as mesmas em sala de aula. Vimos ainda
que as práticas docentes exercidas no cotidiano escolar são essen-
ciais para que os docentes aprimorem esse conhecimento. Assim,
é preciso que na graduação haja uma aproximação maior entre os
conteúdos estudados no Ensino Superior (no caso as categorias
geográficas) com aqueles que serão abordados no Ensino Básico.
b) É impossível dissociar os conteúdos estudados em Geografia das
categorias geográficas. Não queremos dizer, com isso, que em toda
aula o professor necessita explicar e apontar as categorias. De forma
alguma. Tal exercício seria deveras cansativo. Mas é importante
ter sempre em mente que as categorias são objetos da Geografia e
114

que as mesmas estão presentes em todo o decorrer dessa disciplina,


conforme apontaram os PCN
c) Conforme vimos, quase metade dos professores afirmou que seus
alunos compreendem apenas de maneira parcial o que de fato são
as categorias geográficas. Tal número é preocupante, pois revela
que tais alunos concluirão o Ensino Básico sem ter aprendido, de
fato, o que são as categorias e como as mesmas são essenciais no
nosso cotidiano. Isso faz com que a Geografia se torne uma disci-
plina desconexa e alheia à realidade desses alunos, vista sem muita

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importância. É preciso que os alunos compreendam as categorias
geográficas, e não apenas as conceituem, e para isso, é primordial
que os professores investiguem esse aprendizado a partir da con-
textualização cotidiana.

Feitos esses apontamentos, passemos às questões relacionadas aos espa-


ços de vivência dos alunos e as aulas de Geografia. Foi realizado o seguinte
questionamento: os espaços de vivências dos alunos são levados em conside-
ração pelos professores ao ministrarem suas aulas, em especial, ao abordarem
as categorias geográficas? E caso sim, de que forma esse trabalho é realizado?
Carlos (2007) explica que o lugar é a base de reprodução da vida dos
seres humanos, e que é nele que se estabelecem relações mundiais. Portanto,
é importante que durante as aulas o lugar sempre seja o ponto de partida,
principalmente em relação às categorias geográficas, pois isso facilitará a
criação de relações com os espaços nacionais e globais.
De acordo com 75% dos professores, relacionar os conteúdos de geo-
grafia trabalhados em sala de aula com os espaços de vivências dos alunos é
uma tarefa fácil de realizar. Esses mesmos professores afirmaram ainda que,
assuntos cotidianos relacionados à nossa cidade e ao nosso estado costumam
ser discutidos com frequência em sala de aula. Tais dados respondem à nossa
primeira pergunta exposta anteriormente: os espaços de vivências dos alunos
são sim levados em consideração pelos professores, mesmo que isso não seja
uma unanimidade.
Nessa direção, 100% dos professores entrevistados afirmarem que os
alunos costumam apresentar questões cotidianas durante as aulas de Geo-
grafia e relacioná-las aos conteúdos estudados nessa disciplina. Todos os
39 professores, com exceção de 1, afirmaram ainda que os conteúdos tra-
balhados em sala de aula costumam gerar debates e discussões por parte
dos seus alunos.
Mas de que forma esse trabalho é realizado, ou seja, como os espa-
ços de vivências são abordados em sala de aula? Ao questionar isso com
os professores, partimos do entendimento que há diversas possibilidades de
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 115

desenvolvimento de atividades com esse fim, que propiciam valorização dos


saberes do cotidiano dos alunos, como ponto de partida e meio para siste-
matização do conhecimento escolar. Lopes e Richter (2014), por exemplo,
abordam o trabalho com mapas mentais “a partir da articulação entre con-
teúdos, conceitos geográficos e saberes aprendidos pelos alunos ao longo
da formação escolar” (p. 4), concluindo na pesquisa realizada a importância
do conhecimento cotidiano dos alunos ser considerado para a formação de
leitores críticos do espaço.
Outra possibilidade de atividade é apresentada por Fuini (2013), que a
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partir de atividades com música, destaca o aprendizado de categorias geo-


gráficas, considerando que este está “diretamente associado à formação de
uma consciência espacial através do diálogo, interação e reflexão do aluno
com seu espaço de vivência” (p. 93). A letra de diferentes ritmos musicais é
trabalhada, aproximando algo que é comum no cotidiano dos alunos, ouvir
música, com estudos de variadas temáticas geográficas, aproximando o espaço
de vivência e as categorias.
Entre as práticas que possibilitam a construção de categorias geográfi-
cas com os alunos, nas aulas de Geografia, destacamos também o trabalho
de campo. Este se caracteriza pelo contato direto entre o aluno e os objetos
e fenômenos existentes e ocorrentes no espaço geográfico. Autores como
Kimura (2014) e Neves (2010), pontuam a importância das atividades de
campo na construção do olhar e leitura geográfica, potencializando a cons-
trução de categorias. Isso é possível, já que o contato com o real e sua relação
com o que o professor apresenta para o aluno em termos de ciência, levam a
uma maior compreensão dos espaços de vivência.
Nesse sentido, investigamos com que frequência os professores entre-
vistados costumam realizar trabalhos de campo com seus alunos. Tal dado
nos parece importante pois essa atividade envolve diretamente os espaços de
vivências dos alunos (embora não seja a única). Apenas 8% dos entrevistados
(o que corresponde a 03 professores) afirmaram que realizam atividades de
campo com muita frequência. Vale ressaltar que tais professores lecionam em
escolas particulares. 43% (17 professores) afirmaram que realizam trabalhos
de campo com pouca frequência; e 49% (19 professores) afirmaram que nunca
realizam trabalhos de campo.
Entre os diversos fatores apontados pelos professores, para a não rea-
lização de atividades de campo, a falta de verbas, de transporte e de apoio
logístico são os que mais se destacam. Outro ponto que merece atenção é a
insegurança, pois muitas escolas se localizam em áreas com elevados índices
de violência, o que torna perigoso se deslocar com os alunos. A falta de tempo
também é um fator a ser considerado. Conforme vimos, 90% dos professores
entrevistados possuem carga horária de trabalho superior a 30 horas semanais,
116

o que impacta diretamente no planejamento de um trabalho de campo, bem


como nas próprias aulas.
Outros recursos apontados pelos professores, os quais relacionam ou
são adaptados aos espaços de vivências, foram: vídeos, pesquisas, debates,
trabalhados em grupo e slides, contendo conteúdos baseados no lugar dos
alunos. Todavia, 90% dos entrevistados afirmaram que é o livro didático o
principal recurso didático utilizado em sala de aula. Por esse motivo, achamos
interessante investigar quais as coleções mais utilizadas pelos professores e
analisar como as mesmas abordam tanto as categorias geográficas quanto os

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espaços de vivências.
Assim, podemos concluir que, através das respostas dos professores, os
espaços de vivências dos alunos são levados em consideração ao lecionarem
suas aulas, e tal fato é importante, pois como dito anteriormente, isso facilita a
compreensão dos alunos sobre temas diversos, os ajudam a criar relações entre
o local e o global e possibilita um pleno exercício do raciocínio geográfico.

Algumas conclusões

As questões aqui apresentadas partiram de levantamentos e análises dos


documentos norteadores da educação e das práticas dos professores de Geo-
grafia nas escolas locais. Em relação aos documentos norteadores, ficou claro
que há uma grande discrepância entre os Parâmetros Curriculares Nacionais, já
em desuso, e a Base Nacional Comum Curricular, que é o principal norteador
da educação atualmente. Tal discrepância se dá nas categorias geográficas.
Enquanto no primeiro, as mesmas são abordadas como o que de fato são,
objetos da Geografia, na BNCC, embora apareçam com essa roupagem, não
possuem o mesmo peso que no seu antecessor.
Nos PCN’s as categorias geográficas norteavam todos os conteúdos pro-
postos para a Geografia. Havia em muitos casos, inclusive, uma preocupação
em evidenciar onde determinadas categorias geográficas se encaixavam e a
maneira como as mesmas direcionavam as temáticas. O mesmo não ocorre na
Base. Embora tenhamos a presença das categorias geográficas, elas aparecem
de maneira mais “tímida” e com um teor de complemento aos conteúdos, e
não como um objeto.
Esses fatores acabam se refletindo nos Currículos de Referência Único
do Acre. Vimos que no Currículo do Ensino Fundamental — anos finais, as
categorias geográficas aparecem com bastante protagonismo, e isso se deve ao
fato de esse documento ter tido uma forte influência dos PCN’s, mesmo estes
estando em desuso. De acordo com alguns elaboradores (inclusive o respon-
sável pela disciplina de Geografia), isso se deve ao fato de o antigo currículo,
baseado inteiramente nos PCN’s, ter sido apenas repaginado e atualizado de
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 117

acordo com a BNCC. Não se tratou de um currículo construído do zero, pois,


de acordo com eles, tratava-se de um material muito rico e com o qual as
escolas já estavam familiarizadas. A orientação recebida por eles, portanto, foi
de apenas “repaginar” o antigo documento e acrescentar as novas diretrizes e
orientações da BNCC, retirando somente o que não era possível se encaixar
de acordo com ela.
Fica nítido que as categorias geográficas são tratadas com importância
pelo Currículo do Ensino Fundamental — anos finais pelo fato de terem her-
dado essas características dos PCN’s. O mesmo não aconteceu com o Currículo
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do Ensino Médio, que, conforme vimos, possui um caráter confuso e no qual


as categorias geográficas quase não aparecem.
Os espaços de vivências dos alunos também são levados em pouca con-
sideração por ambos os documentos, muito embora nos PCN’s e o Currículo
de Referência do Único do Acre — anos finais, cheguem a mencionar, de
maneira rápida, alguns pontos que envolvam tais espaços.
Ao analisarmos como os docentes, ao trabalharem com as categorias
geográficas, levam em consideração os espaços de vivências de seus alunos,
vimos que 100% dos entrevistados afirmaram que as categorias geográficas
são abordadas tanto de maneira conceitual (o que é um exercício importante,
embora não devamos nos restringir apenas a ele) quanto em temas e conteú-
dos diversos da Geografia. Isso mostra que os professores entrevistados têm
a preocupação de levar seus alunos a relacionarem as categorias geográficas
com suas realidades. Esse é o pleno exercício do raciocínio geográfico.
Como explicar, então, alunos que adentram a graduação, em especial
nos cursos de Geografia, e apresentam dificuldade em compreender o que de
fato são as categorias geográficas e a forma como as mesmas estão imersas
no nosso cotidiano? Felizmente, tais casos (e afirmamos isso com base em
conversas informais e paralelas com alguns colegas professores de Geografia
e até mesmo por experiência própria) não representam a maioria, mas se res-
tringem a um grupo, o que podemos concluir que têm esse déficit por conta
da falta de relação entre os conteúdos estudados com seus próprios espaços
de vivência.
Tal exercício precisa ser trabalhado desde que os alunos começam a
frequentar a escola. Se durante esse processo eles não são habituados a criar
relações entre as diferentes escalas geográficas (local, regional, nacional, mun-
dial), terão dificuldade não apenas em compreender as categorias geográficas,
como diversos outros conteúdos, inclusive de outras disciplinas.
Vale ressaltar, no entanto, que analisamos apenas o ponto de vista dos
professores, e a partir deles é que chegamos a esses resultados. Se tivesse sido
possível analisar os pontos de vistas dos alunos, de modo confrontar ideias e
falas, talvez esses dados convergissem.
118

Quantos aos livros didáticos, vimos que muitos professores afirmaram


que utilizam o utilizam com muita frequência, o que nos fez concluir que
muitos fazem dele um recurso de embasamento de suas aulas e não um apoio,
como deveria ser. Tendo isso em mente, realizamos uma análise sobre as duas
coleções mais utilizadas pelos professores entrevistados: Araribá Mais Geo-
grafia (Ensino Fundamental) e Fronteiras da Globalização (Ensino Médio).
Ao analisá-los, percebemos que tanto as categorias geográficas quanto os
espaços de vivências aparecem de maneira interligadas, embora de maneira
pouco aprofundada, o que, a nosso ver, é algo positivo, pois faz com que,

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tanto professores quanto alunos necessitem recorrer a outras fontes e, com
isso, enriqueçam o processo de ensino-aprendizagem.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 119

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Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistageografia/article/
view/249516/39889. Acesso em: 1º dez. 2021.

PONTUSCHKA, Nídia Nacib; PAGANELLI, Tomoko Iyda; CACETE, Núria


Hanglei. Para ensinar e aprender Geografia. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009.

SILVA, Monica Ribeiro. A BNCC da reforma do Ensino Médio: o res-


gate de um empoeirado discurso. Educação em Revista, v. 34, 2018.
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pi-
d=S0102-46982018000100301&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 22 mar. 2021.

TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria


da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

TUAN, Yu-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de


Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.
CAMPONESES, INDÍGENAS,
QUILOMBOLAS E GRILEIROS EM
LUTA NO CAMPO BRASILEIRO
Ariovaldo Umbelino de Oliveira41

Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui


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necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única”


mensagem” que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento
histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à
liberdade do homem ... Cada novo nascimento garante esse começo; ele
é, na verdade, cada um de nós (ARENDT, 2016, p. 639)42

A grilagem é o mecanismo mais comum de obtenção de imóveis rurais


ou urbanos no país. A grilagem é uma prática passível de crime que envolve
invadir, ocupar, lotear e obter ilicitamente a propriedade de terras públicas
sem autorização do órgão governamental competente e em desacordo com
a legislação. Trata-se, pois, de invasão de terras públicas para apropriação
particular, seja por meio de violência, ou por desmatamento nas áreas flores-
tadas, com ou sem fraude nos documentos.
No Brasil, o assalto das terras públicas ocorre em todo o país, e, particu-
larmente na Amazônia, onde existe grandes extensões de terras do Governo
Federal ou estados, que não tiveram seu uso definido.
Trata-se de prática muito lucrativa, via de regra, praticado por grupos
de pessoas organizadas e com muito dinheiro. Uma prática muito utilizada
com o uso de “laranjas”, ou seja, pessoas que invadem as áreas, como se
visassem a terra para si. No entanto, essas pessoas recebem por este trabalho
dos grileiros. Como consequências tem-se as queimadas, o desmatamento, a
concentração fundiária e, principalmente a violência no campo.
A origem da expressão “grilagem” decorre de uma prática antiga, de
envelhecimentos de falsos documentos visando a obtenção de porção de terra.
Os documentos falsos são colocados em gaveta ou caixa com grilos, e, depois
de um tempo, os excrementos dos insetos tornam os documentos com jeito
de velhos. Atualmente a grilagem segue outros modos, sendo o mais comum
o acordo com os donos de cartórios, e assim, obtém-se mais facilmente os
documentos falsos. Assim, garantem a através da falsificação dos documentos
cartoriais, tornando-os oficiais.

41 Professor Sênior da Universidade de São Paulo – arioliv@usp.br


42 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.
122

Uma vez, obtendo os documentos dos cartórios em geral de notas e de


registro de imóveis, o grileiro faz a mesma coisa nos órgãos fundiários dos
governos estaduais e federal. Inclusive o grileiro faz várias “vendas e compras
igualmente falsas, para dar “idoneidade” ao imóvel.
A prática do grilo é feita de muitas formas, mas via de regra, o grileiro
prepara a “documentação falsa” da terra, tornando se assim, “proprietário”. E
passa a expulsar quem eventualmente, esteja vivendo naquela terra. E, assim,
instaura a violência na área rural do país, envolvendo um número elevadíssimo
de assassinatos no campo brasileiro.

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Assim, a maior parte dos documentos de propriedade da terra no Brasil,
foi obtido de fórmula fraudulenta. Esta fraude teve a participação de muitas
pessoas, entre elas estão os próprios funcionários dos cartórios de registro
de imóveis, funcionários públicos dos órgãos de terra, e, demais brasileiros
que obtiveram escrituras públicas ilegais. Isto permite dizer, de início, o país,
necessita de um grande trabalho para que se possa saber quem de fato, é
proprietário de terra. Porque para ser digno deste nome, é necessário que a
obtenção de suas terras fosse feita de acordo com a legislação em vigor à época
que a primeira escritura foi lavrada. E, principalmente, tenha como primeiro
documento um título federal ou estadual de quem é de fato o proprietário, ou
seja, a União ou os Estados43. Está é a prova cabal de que a maior parte das
documentações cartoriais são falsas. Para provar é só solicitar ao cartório de
registro de imóveis um documento denominado certidão de cadeia sucessória
ou cadeia dominial completa. Ou seja, para provar o que estamos escrevendo
é necessário solicitar ao cartório de registro de imóvel a que o bem está vin-
culado a documentação de propriedade do atual até o primeiro proprietário do
imóvel, que deve ser um documento da União ou do Estados brasileiros. De
posse deste documento é possível saber a legalidade documental do imóvel.
Assim, chegamos ao documento de origem do imóvel, ou seja, o primeiro
documento do imóvel que foi levado a registro. Para emissão da matrícula o
imóvel tem que ter título de origem, que poderá ser: título de sesmaria confir-
mado e registrado em Portugal; título de sesmaria não confirmado e título de
posse medidos e registrado nos livros das Paróquias (Lei de Terra de 1850);
título emitido pelo Império; título emitido pelos estados (CF 1892); títulos
emitidos pela União para a faixa de fronteira, faixa das rodovias federais na
Amazônia Legal e projetos de assentamentos de reforma agrária ou regulariza-
ção fundiária, através do INCRA; e sentenças judiciais de usucapião (Código

43 Há no Brasil, a possibilidade que tiveram alguns municípios de serem proprietários de área de terra ao
redor dos centros urbanos, o que dá a estes municípios o direito de lavrar escrituras, mas, mesmo assim,
devem estes municípios ter documentos que transferem a jurisdição destas terras do Estado ou da União
para os municípios.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 123

Civil). Dessa forma, pode-se chegar aos imóveis que tem documentação em
ordem e corretamente obtido.
É muito bom lembrar que os documentos necessários para se obter o
registro do imóvel é um contrato de venda e compra devidamente registrado
no Cartório de Notas, a escritura de compra e venda registrada no Cartório
de Notas, registro da Escritura de compra e venda no Cartório de Registro
de Imóveis, matrícula (Lei 6015/1973) Registro no Livro 2 do Cartório de
Registros de Imóveis. Antes do Código Civil de 1919, os cartórios faziam o
registro dos imóveis no Livro 3 através das transcrições.
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Dessa forma, existe no Brasil, um número elevadíssimo de escrituras


onde não há fazendas. No país há um número elevado de fraudes na documen-
tação de terras, principalmente em municípios da fronteira amazônica, como
em São Félix do Xingu, no Pará, que possui um dos maiores rebanho de carne
bovina do Brasil. A mesma coisa se repete no Pontal do Paranapanema no
Estado de São Paulo. Lá também a maior parte dos documentos cartorários,
na realidade, praticamente quase todos são nulos. A quase totalidade desses
documentos devem ser anulados. A maior parte dos documentos do cartório
têm que ser anulados, porque são falsos. A corregedoria do Pará anulou mui-
tas escrituras registradas nos cartórios de registros de imóveis das comarcas
do estado. No Pará o Provimento 13/2006 do TJE-PA declarou o número de
registros bloqueados conforme o tamanho envolvendo um total de 486.194.001
hectares. No Estado do Amazonas a Corregedoria do TJE-AM cancelou um
total de 48.478.357 hectares de terras que foram devolvidos ao patrimônio
fundiário federal. Isso ocorre em todos os municípios do Brasil onde mais da
metade dos documentos é ilegal. No segundo governo Lula foi concebido o
Programa Terra Legal para promover a regularização fundiária de ocupações
em terras públicas federais situadas na Amazônia Legal. Iniciou-se em 2009,
e sua meta se baseava na legalização das terras ocupadas por cerca de 300 mil
posseiros/grileiros até 1.500 hectares. Com o projeto, o governo também dizia
buscar uma redução no desmatamento, e ampliar as ações de desenvolvimento
de forma mais sustentável na região e redução dos casos de grilagem.
As mudanças que as medidas provisórias propostas pelo ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, que autorizaram a doação de porções de terras públi-
cas e aceleram os processos de regularização das propriedades, permitiram
a legalização de mil e quinhentos hectares. Isso foi uma ação que contribui
para a legalização dos grilos. É bom lembrar que o direito a legitimação de
posse só pode ser feito para cinquenta hectares. Como foi elevado para mil
e quinhentos hectares, estava-se ferindo a Constituição. E mais, há muitas
formas de burlar a lei, pois, coloca-se mil e quinhentos no nome de um filho,
124

depois mil e quinhentos no nome de outra filha, e, assim legaliza-se dez mil,
vinte mil hectares. Há que se defender que há um princípio que está baseado
na ilegalidade e outro baseado na justiça social, pois, quem já tem terra não
tem que ter mais terra.
Mas, quis a história que se desse um golpe que levou a presidenta Dilma
Rousseff, a ter o seu segundo mandato de apenas, um ano e quatro meses.
E coube a seu vice-presidente, concluir o mandato como presidente durante
o período de dois anos e quase oito meses. O mandato de Michel Temer foi
curto, porém, nele os grileiros ficaram à vontade, para continuar a grilagem

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de terras pelo país. O motor desse processo foi a aprovação da lei federal
nº 13.465/2017 que passou a permitir a regularização da grilagem em áreas
de até 2.500 hectares. Depois do mandato tampão de Temer, veio a última
eleição para presidente da república, e, foi eleito Bolsonaro que levou para
a Secretaria Nacional de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura
Nabhan Garcia, o presidente da UDR. Sua principal meta é a implementação
da regularização fundiária autodeclarada, que é feita pelos próprios grileiros
da terra. Dessa forma, o governo pretende titular 600 mil propriedades de até
2.500 hectares na Amazônia Legal.

Os conflitos no campo no Brasil

Os conflitos no campo no Brasil alcançaram o número de 2.054 em 2020.


Trata-se do maior número já ocorrido no país. Mas, é o primeiro lugar em
conflitos por terra já registrado no Brasil, que foi de 1.576 em 2020. Em 2021,
o número de conflitos no campo foi menor, atingindo 1.768, e, o número de
conflitos por terra chegou a 1.242. (Gráfico 1)
Outros dados presentes no Gráfico 1 são aqueles relativos à presença do
trabalho escravo e da superexploração. Eles revelaram que o trabalho escravo
foi expressivo de 2002 a 2014, atingindo em 2008, o número de 280 pessoas
escravizadas, sendo que em 2020 alcançou 96 e em 2021 chegou a 169. Já os
conflitos por água também, apresentaram o maior indicador no ano de 2019,
quando, atingiram o total de 502 conflitos. No entanto, os conflitos por água
atingiram em 2020 um total de 350 e em 2021 chegaram a 304.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 125

Gráfico 1

BRASIL - NÚMERO DE CONFLITOS NO CAMPO - 1985/2021


2500

2000

1500

1000
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500

2019
2020
2021
2017
2018
2015
2016
2012
2013
2014
2010
2011
2008
2009
2005
2006
2007
2003
2004
2001
2002
1998
1999
2000
1996
1997
1994
1995
1991
1992
1993
1989
1990
1987
1988
1985
1986

CONFLITOS POR TERRA OCUPAÇÕES/RETOMADAS NOVOS ACAMPAMENTOS TRABALHO ESCRAVO

SUPEREXPLORAÇÕES CONFLITOS POR ÁGUA OUTROS

FONTE: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Já os dados relativos aos conflitos no campo (Gráfico 2) composto por


conflitos por terra, ocupações/retomadas e novos acampamentos, apresentou
1.576 no ano de 2020 e, 1 242 em 2021. Cabe destacar que no ano de 2020 o
dado alcançado foi maior número de conflitos por terra, e, simultaneamente,
os menores números também no ano de 2020.

Gráfico 2

BRASIL - No DE CONFLITOS NO CAMPO - 1985/2021


1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
2021

CONFLITOS POR TERRA OCUPAÇÕES/RETOMADAS NOVOS ACAMPAMENTOS

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.


126

Cabe salientar que em 2020, o resultado foi de 687.872 pessoas envolvi-


das em conflitos por terra. E, em 2021 o número apresentado foi de 670.760
pessoas envolvidas. É fundamental destacar o aumento significativo de 1.576
conflitos por terra ocorrido em 2020, mostrado no Gráfico 3, o que demons-
trou ter alcançado o dobro dos primeiros períodos observados. Outro fato
interessante de se verificar é que os conflitos por terra vêm crescendo ano
a ano até 2020, sendo que no ano de 2021, mesmo no pico da pandemia da
covid-19, o número observado foi praticamente semelhante ao de 2019.
Quanto a ocupações/retomadas (Gráfico 4) apresentaram-se com relação

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ao número os seguintes resultados: o período do maior resultado foi o ano
de 1998 com 599. Em 2020, chegou-se, apenas, ao menor número de 29, e,
em 2021 o resultado foi de 50, voltando a aumentar as ocupações/retomadas.
Os dados de ocupações/retomadas marcam de forma clara a com a queda
expressiva nos números.
Com referência aos novos acampamentos os dados foram coletados a
partir de 2001 (Gráfico 5), e, assim, os resultados apresentados foram os
seguintes: em 2020, com a ocorrência de apenas14 novos acampamentos, e, o
ano de 2021, apresentou tão somente três unidades, e, no ano de 2021, repetiu
o número três. Ou seja, também apresentou queda nos resultados.

Gráfico 3
BRASIL - No CONFLITOS POR TERRA - 1985/2021
1800
1576

1600

1400
1260

1242
1112

1200
1033
1000

1000
828
820
818
828
802
777
761
752

800
659

638
636
634

615
582
550

528
495

600
459
420

366
351
306

294

400
280

277
272
260

255
195

168
152

200

0
2020
2021
2018
2019
2016
2017
2013
2014
2015
2010
2011
2012
2007
2008
2009
2005
2006
2003
2004
2000
2001
2002
1998
1999
1996
1997
1993
1994
1995
1991
1992
1989
1990
1985
1986
1987
1988

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA A.U.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 127

Vale a pena ressaltar que os dados apresentados mostram uma diferença


entre o Gráfico 3 e os de números 04 e 05, uma vez que o primeiro grá-
fico indica uma posição de aumento dos conflitos por terra, e os dois outros
mostram uma posição de queda, destacando o de novos acampamentos, que
apresentaram durante o ciclo mais pesado da pandemia um número expres-
sivo de queda.

Gráfico 4
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BRASIL - NÚMERO DE OCUPAÇÕES/RETOMADAS - 1985/2019


700
599
600 593

496
463

500

437
398

391
390

384
364
400

290
252

255
245
300

234
223
211

224
180

193
194
184

157
146

200
119
89
81
80

77
71

100
50

50
46
29
0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
2021
Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA A.U.

Gráfico 5

BRASIL - NÚMERO DE NOVOS ACAMPAMENTOS - 2001/2021


300 285

250

200

150
150

100 90
65 64 67
50 48 40
36 35 32 30 25
15 15 22 13 20 5 3 3
0
1985 1987 1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2021

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA A.U.


128

Os assassinatos no campo

Os assassinatos é um dos pontos mais trágicos dos acontecimentos envol-


vendo os movimentos socioterritoriais no campo brasileiro. Eles têm ocorrido
em grande quantidade e por isso apresentaram o dado de 2.631 assassinatos em
conflitos no campo de 1964 a 2021. Desse total, ocorreram durante o período
da ditadura militar 687 (26,1%) assassinatos em conflitos no campo brasileiro.
Durante o governo Sarney foram 605 (22%) assassinatos; no governo Collor/
Itamar foram outros 311 (11,8%) assassinatos; no governo FHC foram 292

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(10%) assassinatos; no governo Lula foram 304 (11,6%) assassinatos; no
governo Dilma foram 246 (9,4%) assassinatos; no governo Temer foram 99
(3,8%), assassinatos; e, no governo Bolsonaro foram 142 (5,4%) assassinatos
em conflitos no campo. (ver Gráfico 6). Estes números demonstram a vio-
lência com que os conflitos se deram no campo brasileiro.
O dado que representa a média anual de assassinatos no campo brasileiro
por governos, entre 1964 e 2021 (Gráfico 7), foi o seguinte: ditadura militar
32,7; governo Sarney 121,0; Collor/Itamar 62,3; FHC 36,5; Lula 38,0; Dilma
41,0; Temer 49,5; e, Bolsonaro 29,0.
O número total dos assassinatos em conflitos no campo, entre 1964 e
2019, tem os dados presentes no Gráfico 8. Ele traz os dados coletados por
pesquisas em jornais da época, que, assim, trouxeram um número limitado
de pessoas assassinadas no campo. Dessa forma, o número total de assassi-
nados/as no período foi de 2.631 pessoas, sendo que a distribuição regional
apresentou os seguintes dados: região Norte 1.126 pessoas ou 42,8%; região
Centro-Oeste 3l4 pessoas ou 12,9%; região Nordeste 793 pessoas ou 30,8%;
região Sudeste 243 pessoas ou 9,3%; e, região Sul 135 pessoas ou 5,1%.
Desse total, tivemos um período que foi de 1964 a 1970, quando o número
de pessoas assassinadas foi inferior a dez por ano, alcançando o total de 49
pessoas mortas, uma média de sete mortos por ano, e, a maior parte delas era
de origem nordestina. O próximo período foi de 1971 a 1978, que marcou o
início da elevação do número de assassinatos, passando a atingir o total de 202
pessoas mortas, uma média de 25 mortos por ano, e, um total de 72 mortos
(35,6%) na região Nordeste e 65 mortos (32,2%) na região Norte, perfazendo
um total de 137 mortos ou 67,8%. Em seguida, o período de maior número
de pessoas assassinadas no campo brasileiro, um total de 1.207 pessoas mor-
tas, o que equivale a dizer que teve uma média anual de quase 93 pessoas
assassinadas por ano (92,8), no período de 1979 a 1991. Estes 13 anos do
período apresentou a subida dos dados de 63 assassinados em 1979 para 168
pessoas assassinadas em 1985, e, queda para 87 assassinados em 1991. Neste
período os anos de 1984 a 1987 foram os tempos de maior número de pessoas
assassinadas 560, que atingiu uma média de 140 pessoas assassinadas por ano.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 129

Ainda, nesse mesmo período de 1984 a 1987, que foi o primeiro período
do I Plano Nacional de Reforma Agrária, e, ano da fundação da UDR, a região
Norte passou a liderar as regiões no país, chegando a alcançar o número de
200 mortes e uma média anual de 50 mortes; a região Nordeste atingiu 175
mortes, e uma média anual de 43,7 mortes; a região Centro-Oeste alcançou
98 pessoas assassinadas e uma média anual de 24,5; a região Sudeste atingiu
80 mortos e uma média de 20 mortes por ano; e, a região Sul alcançou sete
pessoas mortas e uma média anual de 2,3 mortes.
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Gráfico 6

BRASIL - ASSASSINATOS - TOTAL - 1964/2021


700
605
600
500
400
311 292 304
300 246
200
99 87
100
0

Fonte: MTRST/1987/CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Gráfico 7

BRASIL - ASSASSINATOS - MÉDIA ANUAL - 1964/2021


140
121,0
120
100
80
62,3
60 49,5
36,5 38,0 41,0
40 32,7 28,3
20
0

Fonte: MTRST/1987/CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.


130

Este período de 1979 a 1991, chegou-se ao total de 1.207 pessoas assas-


sinadas no campo brasileiro, e, uma média anual de 92,8 mortes. Desse total,
teve-se em termos regionais: na região Norte 429 pessoas assassinadas e uma
média anual de 33 mortes; a região Nordeste 409 pessoas assassinadas e uma
média anual de 31,5 mortes; a região Centro-Oeste 179 pessoas assassinadas
e uma média anual de 13,8 mortes; a região Sudeste 146 pessoas assassinadas
e uma média anual de 11,2 mortes; e, a região Sul 44 mortes e uma média
anual de 4,4 mortes.
Depois, veio o período de 1992 a 2000, que foi marcado por uma queda

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no número de assassinatos no campo, pois, os dados foram de 46 assassinatos
em 1992, para o total de 21 em 2000. Perfazia-se um total de 365 pessoas
assassinadas, e, uma média anual de 40,6 mortes. A distribuição regional
indicou os seguintes dados neste período: a região Norte 174 pessoas assas-
sinadas, e, uma média anual de 19,3 mortes; a região Nordeste 99 pessoas
assassinadas, e, uma média anual de 11 mortes; a região Centro-Oeste 33
pessoas assassinadas, e, uma média anual de 3,7 mortes; a região Sudeste 28
pessoas assassinadas, e, uma média anual de 3,5 mortes; e, a região Sul 31
pessoas assassinadas, e, uma média anual de 4,4 mortes.
Este novo período no número de assassinatos no país, indicou o período
de 2001 a 2009 no Gráfico 8 e Gráfico 9, que coincidiu com o governo Lula
e a elaboração do II Plano Nacional de Reforma Agrária, e, teve-se, no ano de
2003, seu ano maior, pois, foram 73 assassinatos. Naqueles anos chegou-se ao
total de 342 pessoas assassinadas, e, uma média anual de 38 mortes. A região
Norte alcançou 177 pessoas assassinadas, e, uma média anual de 19,7 mortes;
a região Nordeste alcançou 77 pessoas assassinadas, e, uma média anual de 8,6
mortes; a região Centro-Oeste alcançou 43 pessoas assassinadas, e, uma média
anual de 4,8 mortes; a região Sudeste alcançou 32 pessoas assassinadas, e,
uma média anual de 4 mortes; a região Sul alcançou 13 pessoas assassinadas,
e, uma média anual de 2,2 mortes.
Por fim, o último período que foi de 2010 a 2021, no Gráfico 8 e Grá-
fico 9, e, que teve os anos de 2015 a 2017 os picos de maior ocorrência dos
assassinatos no campo, quando alcançaram, respectivamente, 50, 61 e 71
mortes. Esses três anos foram determinantes, pois, marcaram o último ano
e meio do governo Dilma, e, o primeiro ano e meio do governo Temer, e,
consequentemente, o final da reforma agrária como política pública no país.
Os assassinatos foram 35 em 2021, 20 em 2020, 32 em 2019, contra o total
de 28, em 2018, sendo que em 2017, foram 71, e, em 2016, foram 61. Ou
seja, foi um aumento de 2018 a 2019, de14,3%. Este número mostrou que os
assassinatos que já atingiu o número de 71 em 2017, apresentou um decrés-
cimo significativo entre 2018 e 2021, atingindo 28 e 35 assassinatos.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 131

No período de 2010/2021 o número de assassinatos foi de 464 mortes, e,


uma média anual de 38,7 assassinatos. A Região Norte atingiu 268 mortes, e,
uma média anual de 22,3 assassinatos; a Região Nordeste atingiu 125 mortes,
e, uma média anual de 10,4 assassinatos; a Região Centro-Oeste atingiu 39
mortes, e, uma média anual de 3,3 assassinatos; a Região Sudeste atingiu
18 mortes, e, uma média anual de 1,5 assassinatos; a Região Sul atingiu 10
mortes, e, uma média anual de 0,8 assassinatos.

Gráfico 8
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BRASIL - NÚMERO DE ASSASSINATOS NO CAMPO - 1964 A 2021


180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
1964
1966
1968
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
2020
NORTE CENTRO OESTE NORDESTE SUDESTE SUL

Fonte: /MTRST/1987CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Gráfico 9

BRASIL - NÚMERO DE ASSASSINATOS NO CAMPO - 1964 A 2021


80

70

60

50

40

30

20

10

0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021

NORTE CENTRO-OESTE NORDESTE SUDESTE SUL

Fonte: /MTRST/1987CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.


132

Os conflitos por terra no Brasil

No conjunto, os conflitos por terra apresentaram uma queda em 2021,


quando alcançaram 1.242 conflitos, porém trouxeram espetacular crescimento
em 2020 quando chegaram a 1.576 conflitos por terra. Em 2019, atingiu o total
de 1.256, sendo que, em 2018, havia alcançado o total de 1.124, em 2017,
chegou a 1.188, e, em 2016, havia atingido 1.295. Entre os três dados que
formam os conflitos por terra — ocorrência, ocupações/retomadas e novos
acampamentos, aquele total apresentou o crescimento expressivo em 2020,

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quando alcançou 1.608, o que vale dizer, cresceu 22,7%.
Enquanto aqueles dados relativos a número de ocupações/retomadas
apresentaram uma queda excepcional, chegando a 29, em 2020, e, a 50 em
2021, o que equivale a uma descida de 63,0% no ano 2020, e uma retomada,
em 2021, de 72,2%.
Já os novos acampamentos caíram um pouco mais em 2020 e 2021,
quando chegaram a três novos acampamentos, e, conheceram o dado de apenas
cinco, em 2019, uma queda de 70,6%. Ao que tudo indica, esses dois números,
parecem definitivamente entrar no processo de acomodação dos dados baixos.
Por fim, também, os números do trabalho escravo tiveram um crescimento
169 casos em 2021, e, de 96 em 2020, de 89 casos no ano de 2019, contra
86, no ano de 2018. Já o conflito por água teve uma queda, quando passou de
304 em 2021, para 350 em 2020, quando já vinha de queda apresentando 502
em 2019, depois, de apresentar alta em 2019, vindo de 276 em 2018. Assim,
apresentou um aumento expressivo de 77,2% de 2018 para 2019, e uma queda
para 2020 e uma maior ainda para 2021.
As ocorrências de conflito por terra entre 2010 e 2021, aparece no Grá-
fico 10, a seguir, revelando que de um modo geral está se repetindo o exemplo
do ano de 2016, porém com uma novidade, a queda acentuada das ocupações/
retomadas: 43 em 2019, e, para 29 em 2020. Depois, da queda obteve um
leve acenso quando atingiu 50 em 2021. Enquanto os novos acampamentos,
também, apresentaram baixa, com queda para apenas cinco acampamentos em
2019, e para três em 2020 e em 2021. Porém, os dados de conflitos por terra
apresentaram uma espetacular ascensão chegando em 2020 a 1.576 casos.
Estes resultados dos dados de 2020 e 2021, são coerentes com o processo que
se deu a partir de 2009, quando, os conflitos por terra apresentaram uma eleva-
ção para 528, ante um ponto mais baixo na curva alcançada em 2008, quando
atingira seu limite de queda 459. Ou seja, os conflitos por terra apresentaram o
número máximo de elevação. Em 2019, portanto, o aumento alcançado foi de
63%, ante uma redução das ocupações/retomadas entre 2018/2019 de 137,2%.
Ao que parece os conflitos por terra sinalizaram que, agora, no terceiro ano
do governo bolsonariano, somente a luta encarniçada no campo brasileiro dá
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 133

sentido à luta pela terra. Pois, passou em 2020 para 1.576 conflitos por terra,
e, em 2021, para 1.242.
Entretanto, quando analisamos o Gráfico 11 que traz as três curvas dos
dados apresentados anteriormente, conflitos por terra, ocupações/retomadas
e novos acampamentos, verifica-se que quando se toma as curvas dos dados
desagregados, ocorre a inflexão na curva do número de conflitos por terra a
partir de 2009, pois, continua sinalizando para um resultado cada vez mais
alto. Os números na curva indicam 1.242 para 2.021, 1.576 para 2020, 1.260
para 2019, e, 964 para 2018, ou seja, um aumento de 28,8% para a relação
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2018/2021, ou então, 63,5% para uma relação 2018/2020.

Gráfico 10
BRASIL - No DE CONFLITOS NO CAMPO - 1985/2021
1800
1600
1400
1200
1000
800
600
400
200
0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
2019
2020
2021
CONFLITOS POR TERRA OCUPAÇÕES/RETOMADAS NOVOS ACAMPAMENTOS

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Gráfico 11
BRASIL - N o DE CONFLITOS POR TERRA - 1985/2021
1600 1576

1400
1260
1242
1200 1112

1000 1000
1033
828 820
777 818
800 828
761 802
636 752
634 659 638
600 582 550 599 593 615
495 496 528
463 390 437 459
400 420 398 391
351 306 280 272 366 384 364
260 294 255 277 194
285 252
290 255 245223 234
224193
200 211
184 150 180 157
119 1461… 152 168 65 90 67 48 40
71 80 50 77 81 89 64 36 35 32 15 15 22 30 25 13 20 46 29 50
0 5 3 3
2018
2019
2020
2021
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2008
2009
2010
2011
2005
2006
2007
2002
2003
2004
1997
1998
1999
2000
2001
1994
1995
1996
1989
1990
1991
1992
1993
1985
1986
1987
1988

CONFLITOS POR TERRA OCUPAÇÕES/RETOMADAS NOVOS ACAMPAMENTOS

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.


134

Assim, vai se fazendo a luta pela terra desesperada do campesinato, dos


indígenas e dos quilombolas, fortemente expresso no dado do número das
ocupações/retomadas, que ficou, em 2021 em 50, em 2020 em 29, em 2019,
em 43, sendo que no ano de 2018, fizeram 145 atuações que redundaram
em ocupações/retomadas.
Cabe informar que o ano de 2019, teve duas características, a primeira,
foi aquela que versa sobre o crescimento dos números de conflitos por terra,
e, a segunda, foi aquela que indicou a redução dos números de ocupações/
retomadas. O primeiro foi fruto dos descaminhos que os governos tomaram

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para negar os conflitos. O segundo, ocorreu em decorrência das ações dos
movimentos socioterritoriais e sua recusa de somar-se à luta. Assim, vai se
seguindo a luta pela terra e a luta dos movimentos pelos seus ideários políticos.
Já o olhar sobre o Mapa 1, a seguir, que contém a destruição territorial
dos 1.264 conflitos por terra no país, mostra a distribuição territorial dos
conflitos ano 2019. E, dessa forma, não se pode continuar afirmando que os
conflitos por terra são uma especificidade das áreas de fronteiras, porque os
conflitos estão esparramados por todo o país. Logo, essa é mais uma tese que
se esboroa na realidade, e, temos que afirmar com segurança, que no Brasil,
os conflitos por terra ocorrem por todo o país no ano de 2019 (ver Mapa 1).

Mapa 1
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 135

A distribuição regional, para o ano de 2019 apontou a região Norte com


39,2%, a região Nordeste com 34,4%, a região Centro-Oeste com 12,1%, a
região Sudeste com 6,7%, e, a região Sul com 7,5%. Ainda, no plano da dis-
tribuição pode-se destacar a concentração dos conflitos nos seguintes estados
que apresentam 62,9%: Maranhão 14,3%, Pará 11,8%, Bahia 10,8%, Acre
7,0%, Rondônia 6,7%, Mato Grosso 6,5% e Paraná com 5,8%.

Mapa 2
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Quando se observa o Mapa 244, verifica-se a ocorrência dos conflitos


no ano de 2020, e ocorre uma distribuição razoável dos conflitos por todas
44 CHAVES, P. R. “Fala Parente!” Fala Comadre! “Fala Vizinho!” “Fala Irmão!” – Resistência Camponesa,
Indígena e Quilombola em tempos de pandemia da COVID-19, in Cadernos no Campo Brasil 2020, Centro
de Documentação Dom Tomás Balduíno, Goiânia/GO, 2021, p. 24/38.
136

as regiões brasileiras. Mas cabe destacar o Estado do Pará como aquele que
possui a maioria dos conflitos por terra, ou seja, 248. Depois vem o Estado do
Maranhão com 203 conflitos; em seguida, vem o Estado do Mato Grosso com
169 conflitos; a seguir vem o Estado de Rondônia com 133 conflitos; depois
vem a Bahia com 129 conflitos; depois vem o Estado do Mato Grosso do Sul
com 96 conflitos; em seguida vem o Estado de Pernambuco com 75 conflitos,
e outros estados da federada. Cabe notar que todos as unidades apresentaram
conflitos por terra, e, no total ocorreram 1.608 conflitos por terra.
Com relação a distribuição da população rebelde no ano de 2021, o país

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conheceu um total de 1.295 conflitos por terra. Desse total, tivemos 38,7%
deles ocorreram na Região Norte do país. Enquanto isso, 30,0% deles ocor-
reram na Região Nordeste. Também, 14,7% dos conflitos se deram na Região
Sudeste, e, 12,6% dos conflitos se desenvolveram na Região Centro-Oeste e,
3,9% dos conflitos de deram na Região Sul do país.
Este foi o aspecto distributivistas das regiões e estados brasileiros nestes
três últimos anos quanto a ocorrências dos conflitos por terra no Brasil.
No ano de 2019, quando se analisa a destruição territorial do número de
famílias que foram 144.537 presentes no Mapa 3, verifica-se que de certo
modo ocorreu uma concentração na região da Amazônia, que concentrou
os números da região Norte mais Mato Grosso e Maranhão com 59,9%. As
regiões geográficas do IBGE, ao contrário, apresentaram os seguintes dados:
Região Norte 50,0%, Nordeste 24,4%, Centro Oeste 17,2%, Sudeste 5,5%,
e o Sul com 2,9%. Porém, pelos estados aqueles que detiam os maiores con-
tingentes foram os estados do Pará 21,0%, Maranhão 17,8%, Mato Grosso
10,8%, Roraima 8,7%, Amazonas 7,9%, Bahia 6,5%, Rondônia 4,9% e Acre
com 4,7%. Cabe esclarecer, que neste item, apareceu a presença da população
indígena, que somou ao todo 51.219 famílias de várias etnias.
No ano de 2020, a distribuição das famílias envolvidas nos conflitos
por terra apresentou o seguinte quadro: em primeiro lugar, o total geral do
número de famílias 171.968. (Mapa 445) Deste total tivemos 76.181 famílias
localizadas na Região Norte, dentre estas famílias tivemos 28.608 (44,3%)
no Estado do Pará, que apresentou em primeiro lugar neste particular,16.806
famílias envolvidas (9,8%). Em seguida veio Roraima com 16.806 famílias
(9,8%), e, a seguir Amazonas com 12.252 famílias (7,1%). Depois veio a
Região Nordeste com 48.600 1com 12.252 famílias (7,1%). Em seguida veio
a Região Nordeste com 48.600 famílias (28,3%) envolvidas em conflitos por

45 CHAVES, P. R. “Fala Parente!” Fala Comadre! “Fala Vizinho!” “Fala Irmão!” – Resistência Camponesa,
Indígena e Quilombola em tempos de pandemia da COVID-19, in Cadernos no Campo Brasil 2020, Centro
de Documentação Dom Tomás Balduíno, Goiânia/GO, 2021, p. 24/38.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 137

terra, e, dentre elas, aquelas oriundas do estado do Maranhão que somaram


20.864 famílias (12,1%).

Mapa 3
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Em seguida veio a Região Centro-Oeste com 31.608 famílias (18,4%),


com o Mato Grosso do Sul com 16.321 famílias (9,5%), e, o Mato Grosso com
13.029 famílias (7,6%). Por fim, tivemos a Região Sul com 8.829 famílias
(5,1%), e, a Região Sudeste com 6.750 famílias (3,9%). Ao todo o país conhe-
ceu no ano de 2021 um total de 167.690 famílias envolvidas em conflitos por
terra. Desse total, tivemos 77.432 famílias entre aquelas conflitadas naquele
ano na Região Norte. Em segundo lugar, tivemos a Região Nordeste com
50.785 famílias. Em terceiro lugar, ficou a Região Centro-Oeste com 19.497
famílias. Em quarto lugar, apareceu a Região Sudeste com 14.021 famílias,
e, em quinto lugar ficou a Região Sul com 5.955 famílias.
138

Mapa 4

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4. A luta pela terra e pelo território: os sujeitos sociais em marcha

A observação dos dados dos sujeitos sociais e sua distribuição pelo país,
apontou o envolvimento de 144.537 famílias em conflitos por terra no ano de
2019. Desse total teve-se a presença, em primeiro lugar, dos camponeses com
79.154 famílias, com destaque para as famílias de camponeses posseiros que
somaram 29.734 famílias; depois, os 25.614 dos camponeses proprietários;
depois, os 24.283 dos camponeses sem terra; e por fim, a presença dos indí-
genas com 51.219 famílias individualmente, e, os quilombolas com 13.687
famílias. Assim, os povos indígenas ganharam destaque nas lutas dos sujeitos
sociais por terra no ano de 2019, quando, alcançaram, individualmente, o
primeiro lugar nos números de famílias.
O Gráfico 12 traz o número de conflitos por terra no período de
2008/2019. Neste período pode-se dividi-lo em dois, sendo um de 2008/2010
e outro de 2011/2019.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 139

No primeiro, a hegemonia era dos camponeses sem terra; e, o segundo,


foi o período de domínio dos camponeses posseiros, que, assumiu o primeiro
lugar, atingindo, em 2019, o total de 412 conflitos por terra, num período
que, o total do ano foi de 1.207 conflitos. Assim, o ano de 2019, foi aquele
de maior número de conflitos por terra atingido.
Segundo o Gráfico 13, o dado de número de famílias alcançado em
conflitos por terra, no Brasil, apresentou nos anos de 2008 e 2009, o primeiro
lugar para os camponeses sem terra, sendo que de 2010 até 2018 ficou com
os camponeses posseiros. No ano de 2019, foram os indígenas que ficaram
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em primeiro lugar. No total este ano foi de 144.537 famílias, sendo que o
número de famílias em conflitos por terra, individualmente, foi, então, maior
nos povos indígenas 51.219 famílias, seguidos pelos camponeses posseiros
29.734 famílias, camponeses proprietários 25.614 famílias, e, camponeses
sem terra 24.283 famílias. Ficaram em último lugar, os quilombolas com
13.687 famílias.
A análise do Gráfico 14, que representa os números de conflitos por
terra entre os camponeses posseiros, atingiu o total de 560 casos em 2011,
e, chegou a 412 casos em 2019. Este período apresentado teve as seguintes
características: uma queda entre 2008 e 2009, de 153 casos para 87; o inter-
valo de 2010 e 2011 trouxe um aumento dos casos, que foi de 253 para 560;
enquanto isso, o próximo intervalo que foi de quatro anos, 2012 a 2015,
conheceu uma relativa estabilidade de 249 em 2012 para 253 em 2015, com
um acréscimo para 287 em 2013 e decréscimo para 252 em 2014. Enquanto
isso, o intervalo de 2016 e 2019 foi outro período de um ligeiro acréscimo
de 373 em 2016, para 412 em 2019. Ficando os anos de 2017 e 2018 com os
dados de 352 casos e 332 casos.
Os dados dos camponeses sem terra têm expressividade apenas nos dois
primeiros anos da série, que representou o final do período de supremacia
do MST entre os movimentos socioterritoriais no país. Depois, de 2010 em
diante, a supremacia foi dos camponeses posseiros, e, nos dados de 2019, o
destaque foi para os indígenas.
Já os dados de número de famílias envolvidas com os camponeses pos-
seiros também, apresentou uma curva de tendência de alta de 16 mil famílias
para quase 400 mil famílias. Quanto aos dados reais do número de famílias
dos camponeses posseiros envolvidas em conflitos de terra, ele foi de 10.743
famílias em 2008 e 29.734 famílias em 2019. Mas, o intervalo foi intermitente,
pois, apresentou 27.785 famílias em 2011, e, 37.129 famílias em 2016, como
exemplo de altas, e, os anos de 21.116 famílias em 2012, e, 26.286 famílias em
2018. No conjunto, os dados apresentaram um progresso de altas entremeados
por anos de baixas, mas, sempre em com a tendência de alta.
140

Gráfico 12

BRASIL - NÚMERO DE CONFLITOS DE TERRA - 2008 / 2019


1300

117
1100
93
102 281
74 82
900
175 293
138 230
84 293
700 86 109
237 158 219 412

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72 214
500 373 332
181 560
36 352
43 287
155 249 252 140
300 253
185 158
253 160
153 99 92 75 140
87 103 77 247
100 29 60 153 173
47 118 133 138 100 106
52 44 33 78
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
-100

Indígenas Quilombolas Camponeses Posseiros Camponeses Sem Terra Camponeses Proprietários

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Gráfico 13

BRASIL - NÚMERO DE FAMÍLIAS ENVOLVIDAS EM CONFLITOS POR TERRAS - 2008/2019


160000

140000
25614
120000

14837 24283
100000 23634
6578
80000 28106
25336 23991 29734

10750 10678
60000 8681 8838 13687
5356 10871 11491 37129 26286
13235 14597 6492 34495
40000 4262 10002 14573 8113
21365 21902
16760 21116 11863
17497 27785 25367 11438 51219
20000 25037 7021 10895
10743 6122
14165 6942 26849
1879 2499 6274 6915 6586 19488 16880 20966 18196
9506 3556 3507 6038 12156 6205
0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Indígenas Quilombolas Camponeses Posseiros Camponeses Sem Terra Camponeses Proprietários

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 141

Gráfico 14

BRASIL - CAMPONESES POSSEIROS - NÚMERO DE CONFLITO DE TERRAS - 2008/2019


600
560

500
412
400 373
352
332
300 249 287
253 252 253

200
153
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

100 87

0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Assim, segundo os dados do Gráfico 15, os números apresentados para os


casos apurados para os camponeses sem terra passaram a conhecer uma ligeira
queda em 2010 e 2011, quando apresentou os números de 185 e 175 casos.
Depois, conheceu um aumento em 2012 para 237 casos, novamente,
conheceu três anos de queda em relação com o dado de 2012, que foram os
dados de 158 em 2013, e, 219 e 214 nos anos de 2014 e 2015. Em 2016 e
2017, conheceu de novo um ligeiro aumento passando para dois anos segui-
dos de 293 casos. Em seguida, conheceu nova queda no ano de 2017, quando
alcançou 230 casos, e, terminou a série em 2019, com 281 casos.
Quanto aos números de famílias envolvidas nos conflitos por terra, eles
foram um pouco diferentes. Em primeiro lugar, eles foram coerentes com os
casos, tendo os dois primeiros anos da série, 2008 e 2009, quando apresenta-
ram um total de famílias envolvidas nos conflitos por terra foram de 16.760 e
17.497 famílias. A partir daí, como o MST tinha alterado sua estratégia de luta
pela terra, passando da luta pela reforma agrária, para a luta pelo socialismo,
começou declinar sua participação nos dados de conflitos por terra.
Assim, passou de 14.573 famílias em 2010, para 13.235 famílias em
2011; para 14.597 famílias em 2012; para atingir 8.113 famílias em 2013, o
mais baixo número dessa série. Depois, em 2014, alcançou o total de 10.871
famílias, e, em 2015 chegou a 11.491 famílias. A partir daí, mais do que
dobrou novamente sua participação para 28.106 famílias em 2016; para 25.336
famílias em 2017; para 23.991 famílias em 2018, e, chegou ao ano de 2019
atingindo o total de 24.283 famílias.
142

Gráfico 15

BRASIL - CAMPONESES SEM TERRA - NÚMERO DE CONFLITO DE TERRAS - 2008/2019


350
293 293 281
300

250 237 214


219 230
200 185 181 175
155 158
150

100

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


50

0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Já os dados referentes ao número de camponeses proprietários envolvidos


em conflitos por terra, presentes no Gráfico 16, mostram o início da série nos
anos de 2008 e 2009, como os mais baixos no período, quando apresentaram
36 e 43 casos.
Depois, foram aumentando sua participação chegando a 72 casos em
2010; para 102 casos em 2011; caindo novamente para 84 casos em 2012;
para 86 casos em 2013. A partir desse número, voltou a subir novamente,
alcançando o dado de 138 casos em 2014, o mais alto da série.
Em seguida, voltou de novo a cair para 109 casos em 2015; caiu mais em
2016, quando chegou a 93 casos, e, mais ainda em 2017, atingindo 74 casos.
Em seguida, voltou a subir um pouco chegando em 2018 a 82 casos, e, em
2019, alcançou o total de 117 casos. O dado do número de famílias envol-
vidas entre os camponeses proprietários no período estudado, 2008 a 2019,
apresentou um longo período entre baixos e altos, até o ano de 2017. Como
pode ser visto no, apresentou um crescimento de 4.262 famílias para 10.002
famílias entre 2008 e 2009, para depois, cair para 5.356 famílias em 2010.
Subiu um pouco para 8.681 famílias em 2011; depois, para 8.838 famílias
em 2012; para 6.492 famílias em 2013; subiu novamente, para 10.750 famílias
dos camponeses proprietários, em 2014; e, para 10.678 famílias em 2015. A
partir desse dado alcançado, nova subida para 14.837 famílias em 2016, e, de
novo uma queda para 6.578 famílias em 2017. Os dois números do final da
série os anos de 2018 e 2019, atingiram nova subida passando para 23.634
famílias e 25.614 famílias.
Já os dados referentes a quilombolas com relação aos conflitos por terra,
referente ao Gráfico 17, é parecido com aqueles dos camponeses posseiros, pois,
apresentaram no período de 2008 a 2014, um total de 29 casos em 2008; 47 casos
para 2009; 60 casos em 2010; e, 103 casos em 2011, ao maior deste período.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 143

Gráfico 16

BRASIL - CAMPONESES PROPRIETÁRIOS - NÚMERO DE CONFLITO DE TERRAS - 2008/2019


160
138
140
117
120 109
102 93
100
84 86
82
80 74
72
60
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43
40 36

20

0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Depois iniciou um período de queda atingindo 99 casos em 2012; 92


casos em 2013; 75 casos em 2014, e, 77 casos em 2015. Daí em diante, subiu
novamente para 160 casos, que foi o maior do período, que vai de 2016 até
2019. Mas, em seguida caiu de novo para 140 casos em 2017; subiu novamente
para 158 casos em 2018, e, caiu outra vez em 2019 para 140 casos.
Com relação aos dados sobre o número de famílias de quilombolas envol-
vidas em conflitos por terra, o caminho foi semelhante. Os dois primeiros
anos da série, 2008 e 2009, foram reduzidos apresentando 1.879 famílias e
2.499 famílias, respectivamente. Em seguida, foram seis anos dos dados com
aumento: em 2010 foram 6.274 famílias; em 2011 foram 6.915 famílias; em
2012 foram 6.942 famílias; em 2013 foram 6.586 famílias; em 2014 foram
7.021 famílias; e, em 2015 foram 6.122 famílias. Depois, um período que
apresentou quase o dobro daqueles alcançados até então, no ano de 2016
foram 11.438 famílias; no ano de 2017 foram 10.895 famílias; em 2018 foram
11.862 famílias; e, em 2019 foram 13.687 famílias.
Quanto ao número de casos envolvendo os indígenas foram, segundo o
Gráfico 18, os dados relativos ao número de casos. Os dados apresentados
foram 62 casos em 2008, 44 casos em 2009, 33 casos em 2010, que mostraram
o primeiro período de queda. Depois, foram 78 casos em 2011, 118 casos em
2012, 133 casos em 2013, 138 casos em 2.014, uma queda em 2015 alcan-
çando o tal de 100 casos, nova alta em 2016 de 153 casos, e, novamente uma
queda para 106 casos em 2017. Os dois últimos anos da série, 2018 e 2019,
apresentaram no período de alta 173 casos e 247 casos, respectivamente.
144

Gráfico 17

BRASIL - QUILOMBOLAS - NÚMERO DE CONFLITO DE TERRAS - 2008/2019


180
160 158
160
140 140
140
120
103 99 92
100
75 77
80
47 60
60

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40 29
20
0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: CPT. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Quanto aos dados do número de famílias envolvidas nos conflitos por


terra, relativo aos indígenas, eles apresentaram características parecidas com o
anterior. Inicialmente, apresentou o ano de 2008 com 9.506 famílias, 2009 com
3.556 famílias, 2010 com 3.507 famílias, 2011 com 6.038 famílias, 2012 com
12.156 famílias, 2013 com 6.205 famílias, 2014 com 19.488 famílias, 2015
com 16.880 famílias, 2016 com 20.966 famílias, 2017 com 18.196 famílias,
2018 com 26.849 famílias, e, 2019, apresentou o mais alto dado entre todos os
integrantes, camponeses, quilombolas e indígenas, o total de 51.219 famílias.

Gráfico 18

BRASIL - INDÍGENAS - NÚMERO DE CONFLITO DE TERRAS - 2008/2019


300
247
250

200 173
138 153
150 133
118
100 106
100 78
52 44
50 33
0
2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 145

O Mapa 5 mostra a distribuição dos contingentes de sujeitos sociais


pelo território brasileiro no ano de 2019. Essa distribuição indicou que o
envolvimento dos conflitos dos indígenas marcou de forma expressiva, os
dados de 2019. Vem, em segundo lugar, a luta dos camponeses posseiros, e,
em terceiro, aqueles dos camponeses sem terra, em quarto, dos camponeses
proprietários, e em quinto lugar dos quilombolas. Em todos não ocorreu uma
concentração expressiva a se destacar, mas sim, a distribuição por todo o
território brasileiro dos conflitos por terra.
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5. Para onde vão os conflitos no campo no Brasil?

O aumento significativo dos conflitos no campo no Brasil sinaliza que


camponeses, indígenas e quilombolas, não ficaram calados diante o processo
de desmonte do país que está sendo feito pelo bolsonarismo. Seus gritos já
ecoam por todos os cantos do país, como pode-se ver pelos dados de 2020,
no Mapa 646 dos sujeitos sociais. Assim, urge que todos tenham consciência
desse momento histórico que se está vivendo: de um lado, o aumento dos
conflitos no campo e do outro a mídia e o governo fazendo de conta que nada
acontece no país. É que estão admirando a invenção deste século: os celulares.
Por isto estão todos muito informados, mas, permanecem mudos.
Assim, o processo histórico vai sendo escrito por aqueles que lutam e
buscam no futuro um lugar para que possam produzir, e de outro, aqueles que
nunca fizeram nada, buscam indicar o caminho da reação e do conformismo.
Portanto, antes que seja tarde demais, à luta companheiros, porque ela está
se ampliando no campo brasileiro!

46 CHAVES, P. R. “Fala Parente!” Fala Comadre! “Fala Vizinho!” “Fala Irmão!” – Resistência Camponesa,
Indígena e Quilombola em tempos de pandemia da COVID-19, in Cadernos no Campo Brasil 2020, Centro
de Documentação Dom Tomás Balduíno, Goiânia/GO, 2021, p. 24/38.
146

Mapa 5

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TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 147

Mapa 6
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148

REFERÊNCIAS
CHAVES, P. R. “Fala Parente!” Fala Comadre! “Fala Vizinho!” “Fala Irmão!”
— Resistência Camponesa, Indígena e Quilombola em tempos de pandemia
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Dom Tomás Balduíno, Goiânia/GO, p. 24/38, 2021.

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GEOTECNOLOGIAS APLICADAS NA
ANÁLISE DO SANEAMENTO BÁSICO
EM BACIAS HIDROGRÁFICAS
URBANAS DE RIO BRANCO (AC)
Victor Régio da Silva Bento47
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Introdução

A utilização de bacias hidrográficas como unidades territoriais em áreas


urbanas, para planejamento e gestão dos recursos hídricos, do meio ambiente
e sociedade vem se ampliando ao longo das últimas décadas. Dentre os fatores
desse avanço, destaca-se a popularização das Geotecnologias como instru-
mentos metodológicos nos meios de pesquisa acadêmica e institucional.
O uso de Sistemas de Informação Geográfica (SIGs) na análise de indi-
cadores socioambientais, dentre estes os que compõem o saneamento básico
é uma temática relevante para se observar as disparidades existentes na uni-
versalização dessas redes de infraestrutura. Sabe-se que o saneamento é essen-
cial tanto para a manutenção da qualidade de vida da população e de suas
atividades, sejam estas domésticas ou econômicas, quanto para a redução dos
impactos da atividade humana sobre a natureza, especialmente nos recursos
hídricos superficiais e subterrâneos.
Diante dessas assertivas, o presente trabalho objetiva compreender e
analisar as disparidades do saneamento básico nas bacias hidrográficas do
perímetro urbano de Rio Branco por meio da aplicação de Geotecnologias,
como subsídio para o planejamento e gestão de bacias hidrográficas. Espe-
cificamente, busca-se relacionar o meio ambiente físico e antrópico, como
forma de analisar os contrastes no provimento das redes de saneamento nas
bacias hidrográficas e espacializar indicadores que demonstrem a qualidade
dos componentes do saneamento nessas unidades territoriais.
Para alcançar as metas propostas, necessitou-se uma operacionalização
dos indicadores de saneamento, extraídos dos agregados de setores censitários
do IBGE, referentes ao censo de 2010. Para tanto, partiu-se da delimitação de
bacias hidrográficas com o plugin TauDEM 512, em Software de geoproces-
samento Quantum GIS. As bacias recortadas para o perímetro urbano de Rio

47 Doutor em Geografia. Professor adjunto do CFCH/UFAC, cursos de licenciatura, bacharelado e mestrado


em Geografia
152

Branco foram compatibilizadas com grades estatísticas e setores censitários


como bases cartográficas de interpretação. Essa adequação serviu de base
para a espacialização dos indicadores de saneamento básico.
Como resultado obteve-se um panorama do abastecimento de água, cap-
tação de esgoto, coleta de lixo, drenagem urbana e adequação das moradias
nas bacias hidrográficas da capital acreana. Espera-se que esse trabalho, des-
dobre-se em novas pesquisas sobre o planejamento e gestão integrada dos
componentes ambientais e sociais em bacias hidrográficas. Ademais, que
este sirva de apoio para políticas públicas e estudos sobre temáticas socais e

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ambientais em áreas urbanas.

Referencial teórico

A bacia hidrográfica, como unidade territorial de planejamento e gestão,


constitui-se em base importante para os estudos urbanos, uma vez que integra
tanto os recursos naturais quanto os elementos resultantes da ação antrópica
sobre o meio ambiente. Estes territórios devem ser compreendidos em sua
complexidade, que inter-relaciona natureza e sociedade.
Ao analisar ambientes urbanos observa-se claramente as problemáticas
socioambientais envolvendo os recursos hídricos e suas bacias hidrográficas.
O rápido crescimento demográfico das cidades brasileiras durante o século
XX pressionou os recursos hídricos com aterros, canalizações, contaminação,
ocupações domiciliares e impermeabilização do solo. Além disso, a crescente
população urbana passou a exigir demandas maiores por água e aumentou a
produção de esgotos e resíduos sólidos que, sem coleta e tratamento, contri-
buem para poluir gradativamente os recursos hídricos.
Sabendo das peculiaridades dos estudos que envolvem bacias hidrográ-
ficas, observa-se que uma análise que abranja apenas os fatores de ordem
ambiental (solo, declividade, cobertura vegetal) não contempla uma visão
adequada para a gestão de bacias, pois exclui a ação do homem como agente
modificador do meio ambiente. Assim, a análise dos fatores sociais, dentre
os quais, as condições de saneamento e habitação a qual se encontra a popu-
lação residente nessas bacias hidrográficas, possui grande relevância para o
planejamento e gestão hídrica.
Apesar de ser um termo que está sendo utilizado amplamente em estu-
dos que envolvam planejamento e gestão, a bacia hidrográfica é um recorte
territorial antigo na literatura dos diversos ramos do conhecimento dentre os
quais a Geologia, Hidrologia e Geografia Física. A partir de Cunha e Guerra
(2003) pode-se defini-la como uma área da superfície terrestre drenada por
um rio principal e por seus tributários, sendo limitada pelos divisores de água.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 153

A concepção de Christofoletti (1980) caracteriza a bacia hidrográfica


como sendo uma “... área drenada por um determinado rio ou por um sistema
fluvial”. Barrella (2001) segue na mesma perspectiva dos autores citados ante-
riormente conceituando-as como um conjunto de terras drenadas por um rio e
seus afluentes, que se formam nas regiões mais altas do relevo por divisores
de água, no qual as águas pluviais ou escoam superficialmente formando os
riachos e rios, ou infiltram no solo para formação de nascentes e do lençol
freático. Na percepção de Guerra (1997, p. 76–77), a bacia hidrográfica é um:
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Conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes. Inclui-


-se também uma noção de dinamismo, por causa das modificações que
ocorrem nas linhas divisoras de água sob o efeito dos agentes erosivos,
alargando ou diminuindo a área da bacia.

Os termos sub-bacia e microbacia hidrográfica também estão presentes


nas conceituações técnico-científicas, porém apresentam divergências quanto
a delimitação da dimensão territorial ao qual são aplicadas.
Na visão de Faustino (1996), a delimitação de sub-bacias é definida por
recortes territoriais maiores que 100 km² e menores que 700 km². Porém, na
compreensão de Rocha (1997 apud MARTINS et al., 2005), a dimensão ter-
ritorial das sub-bacias varia entre 200 km² e 300 km²). Santana (2003), afirma
que as bacias hidrográficas podem ser fragmentadas em um número diverso de
sub-bacias. Esse autor também analisa o conceito de microbacia que, apesar
de sua larga difusão, pode ser delimitado de forma empírica, dependendo da
visão metodológica do pesquisador, sugerindo a sua substituição desse termo
por sub-bacia hidrográfica.
Faustino (1996) acrescenta que a microbacia é hierarquicamente menor
que a sub-bacia, possuindo uma dimensão inferior a 100 km². Já Botelho
(1999) demonstra que as definições entre sub-bacia e microbacia são muito
parecidas, dificultando a formação de um conceito específico para estas uni-
dades, assim, utiliza o conceito de bacia hidrográfica para esses recortes de
menor extensão territorial.
A bacia hidrográfica é a unidade territorial para implantação da Política
Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerencia-
mento de Recursos Hídricos, Lei Nº 9.433/1997, Art.1 §5. “O Sistema de
Informações sobre Recursos Hídricos é um sistema de coleta, tratamento,
armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores
intervenientes em sua gestão” (BRASIL, 1997).
O saneamento é pauta importante em indicadores sociais e ambientais
aplicados à gestão de bacias hidrográficas. Ele abrange um compêndio de
infraestruturas, obras e serviços considerados prioritários para a qualidade de
154

vida nas cidades. Compreende o sistema de abastecimento de água, a desti-


nação e o tratamento do esgotamento sanitário, o destino do lixo, a drenagem
urbana e as condições sanitárias domiciliares.
Sobre a relevância do tema saneamento básico, a Pesquisa sobre os Indi-
cadores de Desenvolvimento Sustentável do IBGE (2015) aponta o conjunto
de variáveis que compõem o saneamento, definindo que estas se enquadram
tanto na categoria ambiental quanto na dimensão social por ter grande rele-
vância na qualidade do meio ambiente e influência na saúde e no bem-estar
da população.

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O saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição e definido
pela Lei nº. 11.445/2007. Este consiste no conjunto de serviços, infraestruturas
e instalações operacionais voltadas para o abastecimento de água potável, o
esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos, drenagem
e manejo das águas pluviais (BRASIL, 2007).
Os princípios fundamentais do saneamento visam garantir a universali-
zação do acesso, integralidade de seus componentes, adequação dos serviços
às necessidades da população, adequação às peculiaridades locais, eficiência,
articulação com políticas públicas, transparência, segurança, regularidade,
regulação do consumo de água, além da disponibilidade de drenagem e manejo
de águas pluviais devidamente fiscalizados em todas as áreas urbanas (BRA-
SIL, 2007).
A falta de acesso à água potável, ao esgotamento sanitário adequado
(coleta e tratamento dos esgotos), assim como ao tratamento e disposição
final de resíduos sólidos constitui um dos mais sérios problemas ambientais
e sociais que afetam as pessoas do mundo todo, principalmente nos grandes
centros urbanos. Nessa perspectiva, o estudo de bacias hidrográficas urbanas
torna-se relevante para entender as disparidades no provimento desses serviços
básicos, especialmente em cidades Amazônicas, à exemplo de Rio Branco.

Metodologia

O processo de delimitação de bacias urbanas para análise dos indicado-


res de saneamento passou por uma série de etapas de tratamento de imagens,
transformação das bases cartográficas e análise espacial de dados.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 155

Quadro 1 – Etapas metodológicas da pesquisa


Etapa 1
Construção das bases cartográficas — Geoprocessamento
Dimensão Ambiental Dimensão Demográfica Dimensão Social
Delimitação das bacias hidrográficas Compatibilização da grade estatística Análise dos setores censitários
Etapa 2
Caracterização da área de estudo
Integração entre as bases ambiental, demográfica e social
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Etapa 3
Mapeamento e Interpretação dos dados coletados
Análise dos componentes do saneamento básico

Fonte: Elaborado por BENTO, V. R. S.

A base cartográfica ambiental refere-se aos polígonos das bacias hidro-


gráficas existentes no perímetro urbano de Rio Branco, Acre. Para obten-
ção desses recortes territoriais foi necessária a transformação de um Modelo
Digital de Elevação — MDE em um plano vetorial, por meio do software
Quantum GIS — versão 2.1.6.
Como primeiro passo para sua construção, recorreu-se à página do
TOPODATA, a qual possui um banco de dados geomorfométricos do Brasil48
contendo Modelos Digitais de Elevação — MDE. Desta plataforma digital foi
extraído o MDE das folhas topográficas 09S69 e 10S69, referentes ao muni-
cípio de Rio Branco. Tais arquivos, obtidos em formato GeoTIF, consistem
num padrão de metadados que unifica coordenadas geográficas com formato
TIF (Tagged Image File Format), demostrando, latitude, longitude e altitude.
As imagens foram transportadas para o software livre Quantum GIS
— versão 2.1.6 para tratamento e delimitação de bacias. Esta operação foi
possível por meio da instalação da ferramenta de processamento TauDEM
512, responsável pela análise topográfica, extraindo as áreas de contribuição
e redes hidrográficas. Para tanto, foi realizado um mosaico, juntando as duas
imagens MDE (folhas 09S69 e 10S69) em uma única camada. Em seguida foi
feito o recorte dessa junção, tendo o perímetro urbano de Rio Branco como
camada máscara (Figura 1).

48 Disponível em: http://www.dsr.inpe.br/topodata/acesso.php.


156

Figura 1 – Localização da área de estudo no mosaico MDE

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Fonte: TOPODATA. Elaborado por: BENTO, V. R. S.

O TauDEM 512 oferece os seguintes passos para o tratamento de


imagens SRTM:
1) Pit Remove: Etapa que consiste na suavização dos erros existentes nas
imagens TIF (Figura 4). Este possibilita uma melhor utilização, minimizando
os erros na escala preto-branco transformando o Modelo Digital de Elevação
— MDE em hidrologicamente corrigido.
Conforme visto em Gomes (2015, p. 10) a aplicação desse algoritmo:
“Remove todos os poços ou buracos presentes no MDE. No raster, esses poços
são as células mais baixas cercadas por um relevo mais elevado. A remoção
dos poços é o primeiro processo executado com os algoritmos doTauDEM”.
2) Flow Direction: Após a atenuação dos erros, direciona-se para a deli-
mitação da rede de drenagem. Esse procedimento gera uma camada de direção
da drenagem — Flow direction (Figura 2) e uma camada de declividade deno-
minada Slope (Figura 3). Assim, foi possível captar o sistema de tributários,
necessários para estabelecer os limites das bacias. Essa etapa caracterização
pela geração de um raster que: “mapeia o escoamento de água através do
método D8, que estima para cada pixel presente na imagem oito direções para
o fluxo hídrico. O algoritmo D8 Flow Directions gera dois arquivos raster: a
direção de fluxo e a declividade (GOMES, 2015, p. 10).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 157

Figura 2 – Aplicação do algoritmo Figura 3 – Aplicação do algoritmo


Pit Remove. Flow Direction
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Fonte: Elaborado por: BENTO, V. R. S.

3) Contributing Area: Gera a área de contribuição das bacias, promo-


vendo uma relação com o Flow Direction. Essa ferramenta permite uma
melhor definição dos rios principais e demais tributários das áreas de captação.
“O raster D8 Contributing Area gerado pelo TauDEM permite a visualização
da rede de drenagem. Os rios apresentam melhor realce com a opção de sim-
bologia Corte de Contagem Cumulativa” (GOMES, 2015, p. 13).
4) Stream Definitiom by Threshold: Suaviza os contornos da rede hidro-
gráfica e permite uma melhor visualização das linhas mediante a atribuição de
um limiar (Figura 4). Assim, possibilita verificar mais claramente o formato
dos rios desde a nascente até a foz.
5) Stream Reach and Watershed: é a última etapa para a delimitação de
bacias (Figura 5). Esse algoritmo possibilita a visualização das bacias urbanas.
Posteriormente, utilizando a conversão de raster para polígono no Quantum
GIS, obtém-se a transformação do raster em formato shapefile (Shp.).
158

Figura 4 – Aplicação do Stream Figura 5 – Aplicação do Stream


Definitiom by Thres hold
Reach and Watershed

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Fonte: Elaborado por: BENTO, V. R. S.

A junção das bacias pode ser estabelecida pela criação de um ponto exutó-
rio onde ocorre todo o agrupamento de toda área de escoamento que contribui
para a formação da bacia, ou mesmo ser delimitada pelo próprio pesquisador,
verificando o curso dos tributários e as suas respectivas áreas de captação.
No caso dessa pesquisa, optou-se por delimitar manualmente, selecionando
os polígonos das microbacias e agrupando-os em bacias de maior dimensão.
Como a rede de drenagem no perímetro urbano de Rio Branco é bastante
densa, permitindo a segmentação em diversas bacias, foram selecionados os
principais cursos fluviais que percorrem essa cidade, tendo como resultado a
divisão em nove bacias (Figura 6).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 159

Figura 6 – Bacias hidrográficas do perímetro urbano de Rio Branco


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Fonte: Elaborado por BENTO, V. R. S.

Para análise da dimensão demográfica, recorreu-se à espacialização de


microdados do IBGE, por meio da aplicação da grade estatística. Com o
auxílio dessa base cartográfica foi possível extrair informações populacio-
nais e domiciliares que darão suporte para a interpretação do saneamento
nas bacias hidrográficas. A criação desse sistema de grades regulares supre a
necessidade de agregação de dados em unidades pequenas, que não variem
ao longo do tempo. Assim este mecanismo possibilita uma melhor utilização
de técnicas de geoprocessamento, permitindo a criação de unidades artificiais
de análise (bacias, áreas de influência), indo além das divisões territoriais já
estabelecidas pelo IBGE.
A grade estatística possibilita “análises detalhadas e independentes das
divisões territoriais, visando atender, principalmente, a necessidade de se
ter dados em unidades geográficas pequenas e estáveis ao longo do tempo”
(IBGE, 2016, p. 4). Essa base cartográfica é composta por dados vetoriais, ou
seja, por pontos que determinam a localização do domicílio e do logradouro
160

encontrados na base territorial desse instituto e no Cadastro Nacional de


Endereços para Fins Estatísticos — CNEFE. Já as informações estatísticas
são referentes aos microdados do universo do Censo Demográfico de 2010.
Para Bueno (2014) esse sistema possui diversas vantagens quando relacio-
nado a disseminação de informações censitárias em unidades geográficas
preestabelecidas como regiões, estados e municípios. A forma de agregação
em grade possui maior estabilidade temporal, podendo ser utilizada para com-
parações entre censos, uma vez que a delimitação espacial não será alterada.
Diferente dos setores censitários que são comumente modificados em seus

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limites e dimensões.
O formato padronizado das células com dimensões de 1 km x 1 km nas
áreas rurais e 200 m x 200 m nas áreas urbanas favorece a agregação em
áreas homogêneas de acordo com a necessidade do pesquisador. A junção de
25 unidades celulares urbanas (em um formato 5 x 5), por exemplo, sempre
terá mesma dimensão de uma unidade rural. Esta malha estatística adapta-se
facilmente aos recortes geográficos estudados, como pode ser visto na deli-
mitação de bacias em Rio Branco (Figura 7).

Figura 7 – Relação entre grade estatística e bacias em Rio Branco

Fonte: Elaborado por BENTO, V. R. S.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 161

A partir da agregação das células presentes na grade estatística, adequan-


do-as ao formato das bacias hidrográficas do perímetro urbano de Rio Branco,
obteve-se as informações relacionadas a área, composição populacional por
gênero, população total, quantitativo de unidades domiciliares e densidade
demográfica por hectare. Este percurso metodológico originado de operações
algorítmicas do software Quantum GIS, gerou um panorama da composição
sociodemográfica das bacias rio-branquenses (Tabela 1).

Tabela 1 – Demografia das bacias hidrográficas urbanas de Rio Branco


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População Domicílios Hab/


Bacia Área (ha) Homens Mulheres
Total Ocupados ha
Maternidade 361 7.045 8.176 15.221 4.503 42,16
Batista 1.699 10.857 11.524 22.381 6.270 13,17
Belo Jardim 759 2.207 2.286 4.493 1.228 5,92
Dias Martins 297 2.359 2.689 5.048 1.383 17,00
Fundo 683 18.022 20.079 38.101 11.262 55,78
Judia 3.643 15.305 15.532 30.837 8.466 8,46
Redenção 1.394 20.001 21.326 41.327 11.533 29,65
S. Francisco 2.478 26.769 29.859 56.628 16.348 22,85
Rio Acre 3.916 39.397 41.730 81.127 22.360 20,72

Fonte: Grade estatística do IBGE (2010). Elaborado por: BENTO, V. R. S.

As dimensões territoriais das bacias hidrográficas e sua relação com


a população residente resultam em densidades demográficas elevadas nas
bacias do Igarapé Fundo e do Canal da Maternidade, situadas na porção
mais central da cidade, sendo as mais urbanizadas e bastante alteradas em
sua composição ambiental.
Na medida em que se direciona para as bordas oeste e sul do perímetro
urbano, essa densidade populacional vai reduzindo, assim como verifica-se
as bacias de maior dimensão territorial e menor densidade populacional, com
a rede de drenagem dos igarapés Batista, Dias Martins, Judia e Belo Jardim.
Essas poligonais são caracterizadas pela presença de múltiplos usos do solo
(agrícola, industrial e residencial), possuem remanescentes de vegetação nativa
e um menor acesso à infraestrutura quando comparadas às bacias mais urba-
nizadas. Como resultado da menor oferta de serviços públicos relacionados
à uma população dispersa, ocorre maiores problemáticas socioambientais.
Em direção à parte norte da cidade é observável às bacias do São Fran-
cisco e Redenção, que possuem um elevado quantitativo populacional e
são áreas de rápida expansão urbana, com novos conjuntos habitacionais,
162

ocupações irregulares, loteamentos e condomínios. Por estarem situadas em


cotas altimétricas mais elevadas e com menor risco de inundação, estas redes
de drenagem sofrem com a rápida transformação do meio ambiente e pela
pressão demográfica. Logo, demandam uma rápida expansão das redes de
saneamento por parte do poder público.
A dimensão social sob o enfoque do saneamento básico foi obtida por
meio da base cartográfica de setores censitários e espacialização dos indica-
dores do IBGE, referentes ao último censo (2010). Os microdados sobre os
componentes do saneamento — abastecimento de água, captação de esgoto

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e destino do lixo — foram extraídos dos agregados de setores censitários. Já
os dados referentes à drenagem e adequação das moradias foram obtidos dos
microdados intitulados: Características urbanísticas do entorno dos domicílios.
O setor censitário é uma unidade territorial que abrange em média de
250 domicílios. Estes recortes estatísticos são uma construção do IBGE, des-
tinado para pesquisas sobre as características populacionais, habitacionais e
do entorno domiciliar. Caracterizam-se como poligonais definidas para coleta
e controle de dados cadastrais capaz de ser percorrida por um recenseador e
sendo estabelecidas por lei municipal (IBGE, 2011)
Os setores censitários são importantes em análises intra-urbanas, pois per-
mitem enxergar a heterogeneidade social que está oculta escalas mais amplas
como municípios, bacias hidrográficas e bairros. Essas dimensões territoriais
encobrem as problemáticas sociais, econômicas e ambientais devido a apa-
rente uniformidade, que disfarça a presença de realidades diferenciadas. Um
bairro com altos índices de atendimento por um determinado serviço público
pode apresentar pontos onde essa oferta pública não é suficiente, o que pode
indicar a presença de um aglomerado subnormal.
O município de Rio Branco possui 338 setores censitários em toda a sua
extensão territorial, sendo 297 urbanos 41 rurais. Dentre as dificuldades de
utilizar tal base cartográfica nessa área de estudo aponta-se a dificuldade de
agregação das informações, uma vez que esta é a única capital brasileira que
não apresenta o recorte territorial “bairro” catalogado pelo IBGE.
A grande quantidade de bairros considerados pela prefeitura da capital
acreana impossibilita a junção com a base censitária, pois ocorre partilhas
de um único setor por dois ou mais bairros. Por vezes, a divisão municipal
imposta pela prefeitura é tão fragmentada que as comunidades aparecem em
tamanho mais reduzido que o dos próprios setores (Figura 8).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 163

Figura 8 – bases cartográficas de bairros e setores censitários de Rio Branco


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Fonte: Elaborado por BENTO, V. R. S.

Apesar das limitações, a base cartográfica censitária serviu de suporte


para uma análise conjunta com as bacias hidrográficas sem que os limites
dos polígonos fossem alterados. A relação bacia-setores foi importante para
verificar internamente as áreas mais vulneráveis e de melhor atendimento dos
serviços de saneamento. Assim, os indicadores sociais serviram como plano
de fundo para a análise do meio físico, representado pela rede hidrográfica.

Resultados e discussão

Adentrando na escala intraurbana pode-se observar as disparidades


quanto à distribuição dos serviços de saneamento básico — abastecimento
de água via rede geral, captação de esgoto via rede geral/pluvial, lixo coletado
diretamente por serviço de limpeza, rede de drenagem, assim como o indicador
de adequação das moradias — nas bacias hidrográficas urbanas de Rio Branco.
No que concerne ao abastecimento de água via rede geral, os setores
censitários cujos moradores possuem atendimento superior à 80% estão con-
centrados com maior expressividade no território que compreende a bacia do
Igarapé Redenção e em trechos das áreas de captação da margem esquerda
do Rio Acre, Igarapé Batista e Canal da Maternidade (Figura 9). Nesses frag-
mentos da cidade encontram-se conjuntos habitacionais e bairros planejados
164

os quais foram beneficiados pela expansão das infraestruturas de provimento


hídrico, exemplificado pelos conjuntos Adalberto Sena, Xavier Maia, Castelo
Branco, Bela Vista, Jorge Lavocat, Montanhês e loteamentos privados como
Jardim Europa, Jardim Nazle e Portal da Amazônia.
Ao contrário de outras capitais de estado e cidades de maior porte verifi-
ca-se em Rio Branco a presença significativa de setores censitários na proximi-
dade do centro nos quais os moradores em domicílios particulares permanentes
possuem atendimento inferior à 60% pelas redes de abastecimento d’água.
Esses estão situados nas bacias do Igarapé Dias Martins e do Igarapé São

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Francisco, onde encontra-se bairros de maior poder aquisitivo como Vila
Ivonete, Morada do Sol, Tropical e Universitário. Tal fator pode ser explicado
pela utilização de poços como forma de obtenção hídrica, estando relacionado
mais à fatores culturais do que mesmo pela ausência de água encanada.
Os menores percentuais são evidenciados nas bacias situadas na mar-
gem direita do Rio Acre, drenadas pelos igarapés Judia, Belo Jardim e seus
afluentes. Nessa parte da cidade, os valores do atendimento pela rede geral
raramente ultrapassam a marca de 20% de moradores beneficiados.
A utilização de formas pontuais de obtenção hídrica é bastante difundida
em território nacional, especialmente nas áreas rurais e nas zonas de expansão
urbana ainda desassistidas pelas redes oficiais de provimento desses servi-
ços (BENTO, 2011). Os poços rasos existentes em áreas rurais e urbanas,
especialmente os situados em localizações densamente povoadas, podem
tornar-se inadequados para o consumo humano, por causa da contaminação
pelas fontes pontuais de esgotamento (fossas sépticas e rudimentares) ou pela
destinação inadequada de resíduos sólidos. O mesmo risco de contaminação
pode ocorrer em águas de nascentes, pois estas são afloramentos de águas
subterrâneas na superfície.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 165

Figura 9 – Percentual de moradores atendidos por rede


geral de abastecimento de água em Rio Branco
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Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Elaborado por: BENTO, V. R. S.

O uso de água obtida em poço ou nascente corresponde a dois quintos


dos domicílios acreanos. O abastecimento de água oriundo de poço/nascente
em Rio Branco predomina nas proximidades de seus recursos hídricos super-
ficiais e em locais beneficiados pela baixa profundidade do aquífero. Seu
uso, também, se faz presente em alguns bairros afastados das áreas de maior
adensamento urbano.
O provimento de água via poço ou nascente na propriedade é um recurso
bastante utilizado na zona urbana de Rio Branco, pois quase metade de seus
moradores recorrem à essas formas pontuais. Essa característica do abasteci-
mento na capital acreana é comum em outras cidades da Região Norte devido a
disponibilidade hídrica subterrânea além de estar relacionada à fatores sociais
e econômicos.
A deficiência da rede de provimento de água e as dificuldades em pagar
pelo consumo são fatores socioeconômicos que contribuem para a manutenção
166

das formas pontuais de abastecimento. São pessoas vivendo tanto nos bairros
mais afastados do centro, quanto em localizações de ocupação mais antiga
utilizando cacimbas e chafarizes para o seu consumo. No caso dessas formas,
existem aspectos negativos relacionados ao manuseio hídrico e a possibilidade
de contaminação (FASE, 2009).
Outro fator a ser observado é que a utilização de formas pontuais pode
estar relacionada aos costumes da população. A cidade se expande horizon-
talmente e as infraestruturas de serviços urbanos vão sendo implantadas,
entretanto, alguns habitantes continuam a desenvolver as práticas tradicionais

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de retirada de água de chafariz e de poço/nascente, inclusive em localizações
de ocupação mais antiga (BENTO, 2011).
A predominância do abastecimento de água extraída desses usos pontuais
associada a ausência de rede de esgoto e construção de fossas rudimentares
contribuem para a poluição das águas subterrâneas na capital acreana, espe-
cialmente nas áreas situadas sobre o aquífero Rio Branco, A baixa profundi-
dade desse aquífero, que se encontra principalmente no território do Segundo
Distrito propicia o extravasamento dos efluentes sanitários.
A situação de dificuldade no provimento de água por rede geral reflete
problemáticas em algumas localizações da capital parecidas às presenciadas
nas zonas rurais, onde as redes de abastecimento domiciliar são menos abran-
gentes. Mesmo com o acréscimo nos percentuais de atendimento por rede
geral de água em domicílios da capital acreana, observa-se que uma parcela
considerável da população está excluída desse serviço, recorrendo a fontes
inseguras e sem tratamento adequado.
O atendimento por rede geral de esgoto ou pluvial em Rio Branco encon-
tra-se bastante disperso em seus setores censitários exibindo contrastes inter-
nos em suas bacias hidrográficas. No que concerne ao atendimento superior
à 80% dos moradores em domicílios particulares permanentes observa-se a
concentração em localizações onde existem conjuntos habitacionais benefi-
ciados por sistemas independentes de descarte de efluentes como as lagoas de
estabilização como no caso do Conjunto Universitário, na bacia do Igarapé
Dias Martins, Waldemar Maciel, na bacia do Igarapé Batista e Apolônio Sales,
na bacia do Igarapé Redenção. Outros pontos isolados aparecem em áreas
de ocupação mais antiga, nas proximidades do Rio Acre, como no caso do
Conjunto IPASE e trechos dos bairros Bosque e Morada do Sol.
O atendimento entre 60% e 80% é predominante nas bacias do Igarapé
Fundo e do Canal da Maternidade, nas áreas de urbanização mais consoli-
dada e de maior intensidade das atividades comerciais e de serviços. Nessas
localizações ocorrem as principais intervenções no sistema esgotamento sani-
tário com a construção de galerias, canais e extensão da rede de captação de
efluentes ao longo das principais avenidas (Figura 10).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 167

Em contraposição observa-se a ineficiência da rede de esgotamento sani-


tário na margem direita do Rio Acre, no território que compreende as bacias
dos Igarapés Judia e Belo Jardim. Essa porção da cidade encontra-se em zona
de ocupação controlada (RIO BRANCO, 2016) devido a incidência das inun-
dações periódicas decorrentes do inverno amazônico. Possui baixa densidade
demográfica e ocupação dispersa, constituindo áreas de transição rural-urbana.
Esses fatores contribuem para a escassa implantação das redes de saneamento
e o predomínio das formas pontuais de descarte dos efluentes domésticos.
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Figura 10 – Percentual de moradores atendidos por rede


geral de esgoto e/ou pluvial em Rio Branco

Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Elaborado por: BENTO, V. R. S.


168

A fossa séptica e fossa rudimentar são formas pontuais de destinação de


efluentes domésticos, que não estão ligadas à rede de tratamento de esgotos.
O IBGE (2011, p. 23) caracteriza a fossa séptica quando: “a canalização do
banheiro ou sanitário é esgotada, passando por um processo de tratamento
ou decantação, sendo ou não a parte líquida conduzida em seguida para um
desaguadouro geral”. Já a fossa rudimentar é caracterizada pela ligação do
banheiro ou sanitário a uma fossa rústica causando impactos na saúde da
população e na qualidade dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos.
Estas: “ao contrário das sépticas são construídas sem qualquer cuidado quanto

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à contenção dos agentes contaminantes presentes nos esgotos. São simples-
mente buracos sem adequada vedação” (FASE, 2009, p. 35).
A coleta de lixo é um componente do saneamento básico que possui um
grande alcance no cenário urbano brasileiro quando comparado à rede de
esgoto. Entretanto, a deposição irregular dos resíduos sólidos em lixões ainda
é uma realidade na maioria dos municípios brasileiros.
O lixo coletado diretamente por serviço de limpeza é a forma adequada de
captação dos resíduos sólidos, sejam estes domiciliares, industriais, de origem
institucional e/ou comercial. Quanto maior o percentual de moradores que
utilizam esse serviço, mais impactos positivos são observados na qualidade
do meio ambiente, do entorno domiciliar e do bem-estar da população.
Apesar do elevado atendimento da coleta de lixo em Rio Branco, verifi-
ca-se que o uso de formas inadequadas ainda faz parte da prática cotidiana de
13% de seus moradores. Esse componente do saneamento se encontra quase
universalizado na Bacia do Canal da Maternidade e dos igarapés Dias Martins
e Batista. Entretanto, nas demais áreas de captação verifica-se a presença de
setores censitários onde o número de moradores atendidos por esse serviço é
inferior à 40%, demonstrando a ineficácia da intervenção governamental na
garantia desse bem coletivo (Figura 11).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 169

Figura 11 – Percentual de moradores com lixo coletado


diretamente por serviço de limpeza em Rio Branco
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Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Elaborado por: BENTO, V. R. S.

As formas pontuais irão variar de acordo com a localização e a forma


de ocupação do espaço intraurbano. Algumas porções de Rio Branco terão o
predomínio de coleta indireta por caçamba, que não é uma forma tão adequada,
mas se insere na coleta de resíduos sólidos. Em outras localidades haverá
práticas mais ambientalmente devastadoras, com o lixo queimado, enterrado
ou jogado nos mananciais.
A coleta indireta de lixo via caçambas é comumente verificada nas áreas
de maior movimentação comercial e institucional, onde há uma geração maior
de material descartado. Assim, setores censitários dos bairros Centro e Bosque,
na bacia do Canal da Maternidade, assim como no Jardim Europa, na rede de
drenagem do Igarapé Batista. As localizações adensadas com características
de assentamentos precários situados nas margens do Rio Acre, possuem uma
estrutura viária estreita, formada por vielas, becos e ruas sem saída. Assim,
essas áreas denominadas de aglomerados subnormais pelo IBGE exibem
170

percentuais significativos de moradores que recorrem à deposição em caçam-


bas. São exemplos os bairros: Preventório, Papouco, Dom Giocondo, Baixada
da Cadeia Velha e Baixada da HABITASA.
O lixo queimado na propriedade é uma forma pontual de descarte que é
característica das áreas de transição rural-urbana. Esta ação remete a práticas
rurais das queimadas, dentro do espaço urbano em localizações ainda não
incorporadas totalmente aos serviços públicos. A escassez da coleta seletiva
associada ao crescimento populacional é uma prática rural, fazendo com que
os residentes em bairros de expansão mais recente recorram à queima dos

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resíduos sólidos. Em Rio Branco, as queimadas urbanas se intensificam no
período de estiagem e podem se alastrar para as zonas com vegetação mais
densa, causado danos inestimáveis ao meio ambiente e arriscando a vida dos
moradores. Os maiores valores dessa prática de destinação do lixo podem
ser verificados na bacia do Igarapé Redenção (no Bairro Apolônio Sales), na
Baixada da Cadeia Velha e em trechos da bacia do Igarapé Judia.
A forma de descarte denominada de lixo enterrado na propriedade é uma
deposição irregular que degrada ambientalmente o solo e os aquíferos, con-
taminando-os e comprometendo a qualidade hídrica, especialmente quando
associada a obtenção de água via poço ou nascente. Assim como a queima
dos resíduos sólidos, o lixo enterrado é característico de bairros menos aden-
sados e com baixos percentuais de coleta via serviços públicos de limpeza
urbana. Essa prática de descarte é expressiva nos setores do Loteamento
Praia do Amapá e bairro do Amapá, nas imediações do Rio Acre e em área
de proteção permanente.
Comunidades antigas situadas nas proximidades da área central ainda
conservam essas práticas advindas da população migrante das zonas rurais.
Assim, em trechos do Preventório e Papouco, na margem esquerda do Rio
Acre observa-se a queima e o aterramento do lixo.
Outro componente importante do saneamento é o sistema de drenagem
das chuvas, pois este constitui-se num item fundamental para o escoamento
hídrico superficial e subterrâneo das cidades. Com crescimento das áreas
urbanizadas ocorre o aumento de áreas impermeabilizadas, fator que precisa
ser contornado por sistemas eficientes de escoamento para evitar não somente
a acumulação hídrica, mas, também, outros problemas relacionados como
erosão e assoreamento. Neste sentido, as grandes e médias cidades dependem
cada vez mais de sistemas de drenagem, que constituem parte essencial da
agenda de planejamento urbano, para assegurar crescimento ordenado com
menores riscos à população.
Para a espacialização dos sistemas de microdrenagem em Rio Branco,
recorreu-se aos dados do IBGE (2010) referentes às características do
entorno dos domicílios. Pesquisou-se se na face do logradouro ou na sua
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 171

face confrontante, existia bueiro ou boca de lobo, ou seja, abertura que dá


acesso a caixas subterrâneas, por onde escoam a água proveniente de chuvas,
as regas etc.
A presença do bueiro e da boca de lobo revelam a qualidade do entorno
dos domicílios, estando associadas à outras infraestruturas atuam diretamente
na qualidade ambiental e no urbanismo, dentre os quais: calçadas, meio-fio
e pavimentação, uma vez que estas obras são frequentemente realizadas em
conjunto. Ao mapear essas estruturas de drenagem urbana em Rio Branco,
percebe-se as discrepâncias na infraestrutura desses itens necessários para um
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melhor escoamento da água das chuvas (Figura 12).

Figura 12 – Percentual de moradores cujo entorno domiciliar


possui bueiro e/ou boca de lobo em Rio Branco

Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Elaborado por: BENTO, V. R. S.

As bacias hidrográficas urbanas revelam disparidades nesse componente


do saneamento. As áreas mais centrais e de maior adensamento de atividades
comerciais e de serviços estão presentes principalmente nas bacias do Canal
172

da Maternidade e do Igarapé Fundo. Consequentemente, os bairros Bosque,


Vila Ivonete, Isaura Parente, Capoeira e José Augusto possuem percentuais
elevados de atendimento por bueiro e/ou boca de lobo no entorno domiciliar.
Fora dessas localizações, a distribuição desses itens da drenagem urbana
vai se tornando mais rarefeita, evidenciando poucos territórios com qualidade
desse serviço. Alguns setores censitários na Bacia do Igarapé Redenção apre-
sentam uma maior intervenção estatal no provimento dessas estruturas de
escoamento. Estes fazem parte de conjuntos habitacionais construídos pela
COHAB Acre, tendo como exemplo os bairros Xavier Maia e Adalberto Sena.

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Na Bacia do Igarapé São Francisco, percentuais satisfatórios de atendi-
mento pelas obras de drenagem ocorrem nos conjuntos habitacionais Tucumã,
Rui Lino, Guiomard Santos e no entorno do Horto Florestal, onde a pre-
sença de bueiro e/ou boca de lobo ultrapassa 60,00% de atendimento do
entorno domiciliar.
Em contraposição é verificável que parte majoritária do perímetro urbano
de Rio Branco é carente de serviços de drenagem, repercutindo diretamente
na presença de esgoto acumulado nas vias e dificuldades no escoamento das
águas pluviais. Dentre as áreas mais afetadas encontra-se os bairros drenados
pelos tributários da margem direita do Rio Acre: Taquari e Praia do Amapá;
A maior parte das bacias dos igarapés Belo Jardim, Judia (bairros Santa Inês,
Canaã e Vila Acre) e parte considerável da bacia do igarapé Batista (Regional
Calafate), com atendimento inferior à 20,00% ou mesmo ausente.
O IBGE fornece em suas pesquisas o indicador de adequação das mora-
dias. Para este instituto, é considerada uma moradia adequada os domicílios
que têm rede geral de abastecimento de água, rede geral de esgoto ou pluvial
ou fossa séptica e coleta de lixo direta ou indireta (por caçamba de serviço
de limpeza) e até dois moradores por dormitório.
Um adensamento excessivo implica na qualidade da moradia, está vin-
culada à precariedade habitacional, sendo típicas de áreas onde predominam
as condições subnormais, tais como favelas, invasões e demais assentamentos
irregulares. É notório que as localizações mais afastadas das áreas econo-
micamente centrais das cidades sejam mais afetadas pela não adequação da
moradia. Isso acontece tanto pela formação recente de bairros periféricos,
quanto pela falta de intervenção estatal em certas porções da cidade que são
historicamente marcadas pela irregularidade fundiária, como em áreas de
marinha, proteção ambiental e áreas institucionais indevidamente ocupadas.
No caso de Rio Branco, verifica-se que as localizações de melhor ade-
quação da moradia estão situadas na bacia do Canal da Maternidade, devido
as intervenções urbanísticas realizadas nessa área de captação (Figura 13).
O Centro da Cidade, por ser um território historicamente beneficiado pela
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 173

melhor acessibilidade e infraestrutura também se configura como área com


satisfatória adequação habitacional.
Os conjuntos habitacionais são territórios beneficiados pelo planeja-
mento estatal, pois são planejados com os itens essenciais de saneamento,
assim como pela presença de instalações sanitárias e melhor qualidade do
padrão construtivo das habitações, quando comparados aos bairros autocons-
truídos das periferias. Assim, as áreas residenciais originadas pelas políticas
habitacionais possuem uma elevada adequação da moradia. Os conjuntos
Xavier Maia, Adalberto Sena e trechos do Montanhês, na bacia do Igarapé
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Redenção; conjunto Oscar Passos, Tucumã e Rui Lino, na bacia do São Fran-
cisco; conjunto Universitário, na bacia do Dias Martins; Bela Vista e Castelo
Branco, na área da captação da margem esquerda do Rio Acre, representam
este panorama em Rio Branco.

Figura 13 – Percentual de residentes em moradias


adequadas no perímetro urbano de Rio Branco

Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Elaborado por: BENTO, V. R. S.


174

Em oposição, este indicador encontra-se em níveis alarmantes no


Segundo Distrito de Rio Branco, onde se localizam os bairros margem direita
do Rio Acre e nas bacias do Igarapé Judia e Belo Jardim. Esta inadequação
habitacional, associada à presença de uma densa rede hidrográfica superficial
e de um extenso aquífero subterrâneo, potencializa as problemáticas sociais
e ambientais, interferindo na qualidade da água e no despejo correto dos
efluentes domésticos.
Outra localização que precisa urgentemente de atenção por parte do
poder público é o Distrito Industrial de Rio Branco. Situado nas bacias do

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São Francisco e do Dias Martins, estas localizações são prejudicadas tanto
pela deposição irregular de dejetos industriais, quanto pela crescente pressão
demográfica na formação de assentamentos marcados pela clandestinidade e
carência das infraestruturas.

Considerações finais

A partir desse estudo verificou-se a diversidade de realidades do sanea-


mento nas bacias hidrográficas que drenam a capital acreana. Em algumas
dessas unidades territoriais, o provimento de redes de água, esgoto e coleta
de lixo é bastante satisfatória, especialmente nas áreas de captação do Canal
da Maternidade e do Igarapé Fundo. Estas bacias são o alvo principal das
intervenções públicas nessa cidade, beneficiadas com projetos de canalização
de cursos fluviais, reassentamento de famílias que habitavam áreas irregulares
e pela expansão das redes de água e esgoto.
Coincidentemente, são os territórios de maior valorização fundiária e
imobiliária de Rio Branco, onde estão concentrados equipamentos públicos,
atividades comerciais e de serviços, assim como o impulso a verticalização e
formação de espaços socialmente segregados. Os bairros Bosque, Vila Ivonete,
Village Wilde Maciel, Isaura Parente e Jardim Nazle estão situados nessas
bacias e são caracterizados pelo elevado rendimento dos chefes de família.
Na outra extremidade, verificou-se que a maior parte da zona urbana de
Rio Branco está desassistida de todos os serviços de saneamento, inclusive
da água tratada, que é escassa nas bacias do Igarapé Judia e Belo Jardim,
fazendo com que a população recorra a formas pontuais de abastecimento.
O uso alternativo de poço e nascentes são prejudicados pela baixa oferta da
captação de esgoto e os domicílios estão majoritariamente conectados às fossas
sépticas e rudimentares. Consequentemente, está relação entre carência de rede
de água e de esgoto, potencializa danos ambientais e à saúde humana, com a
proliferação de doenças de veiculação hídrica e contaminação dos mananciais.
Ressalta-se a importância das bacias hidrográficas como unidades terri-
toriais estratégicas para o planejamento e gestão, ultrapassando os limites de
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 175

bairros, regionais e municípios. Sua aplicação se faz relevante, pois a falta de


assistência das redes de saneamento em um ponto a montante da bacia afetará
as populações residentes na jusante. Observou-se que utilização de bases car-
tográficas complementares como a grade estatística e os setores censitários
auxilia em uma análise integrada entre fatores ambientais, demográficos e
sociais, sendo útil para interpretação das áreas de captação hídrica em zonas
urbanas, as quais são caracterizadas pelo adensamento populacional e maior
impacto nos recursos naturais.
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176

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ESTUDO DE CASO DA ZONA
DE PROCESSAMENTO DE
EXPORTAÇÃO — ZPE/ACRE
Carlos Estevão Ferreira Castelo49
Ravela de Souza Marinho50
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Introdução

O Brasil já foi uma das dez maiores economias globais e possui uma
indústria diversificada. Apesar disso, seu percentual de exportações em relação
ao PIB ainda é baixo, principalmente se comparado a outros países. De acordo
com dados do Banco Mundial, em 2014, as exportações brasileiras de bens
e serviços representavam apenas 12% do Produto Interno Bruto, ao passo
que a média mundial é 30% — valor que não se altera muito em economias
emergentes ou menos desenvolvidas. Nos últimos anos, essa situação vem
se mantendo semelhante. Ademais, o Brasil contribui com apenas 1,2% do
volume mundial de exportações de bens, valor que cai para 0,7% se apenas
os manufaturados forem considerados.
Esse cenário pode ser, em grande parte, explicado pela falta de competi-
tividade das empresas exportadoras brasileiras, que precisam superar diversos
desafios para vender seus produtos no mercado internacional. Burocracia,
excesso de leis e tarifas, demora na liberação de mercadorias e dificuldade
de escoamento tornam o processo de exportação caro e lento, o que provoca
aumentos dos preços das mercadorias e reduz a competitividade dos produtos
brasileiros no comércio internacional.
No estado do Acre, apesar da existência de um mercado potencial com
cerca de 30 milhões de consumidores em um raio de 750 km da capital Rio
Branco, as trocas internacionais ainda são consideradas tímidas. São diversas
as questões e/ou gargalos que dificultam a inserção de empresas acreanas no
comércio internacional, notadamente com os vizinhos andinos. Os indicadores
evidenciam que, até o momento, não se verificaram aumentos consideráveis
e sustentáveis do comércio internacional (do Acre e pelo Acre), mesmo com
inauguração da “Estrada do Pacífico”, pavimentada desde 2011, e o alfande-
gamento de uma Zona de Processamento de Exportações — ZPE.
49 Professor da Universidade Federal do Acre, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Professor do Programa
de Pós-Graduação em Geografia da UFAC, Rio Branco, Acre, Brasil. Email: carlos.castelo@ufac.br
50 Geógrafa. Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFAC. E-mail: ravela-
gaspar@hotmail.com
180

Isto posto, o presente artigo trata-se de uma “estudo de caso” da Zona de


Processamento de Exportações — ZPE/AC dentro do contexto das políticas
públicas de desenvolvimento econômico do estado do Acre, na tentativa de
contribuir na elucidação dos não resultados dessa iniciativa efetivada pelo
governo estadual com o apoio do governo federal. Deve-se apontar que o
estudo que originou esse texto é fruto de uma pesquisa de maior fôlego rea-
lizada no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFAC para a obten-
ção do título de Mestre por Ravela de Souza Marinho, orientada por Carlos
Estevão Ferreira Castelo. Estudo realizado no âmbito do grupo de pesquisa

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“Integração Regional”.
Inicialmente apresentam-se as informações sobre a pesquisa proposta,
ou seja, o tema, a problemática e sua importância, os principais objetivos e
as informações acerca das estratégias metodológicas utilizadas para se chegar
aos resultados.
Na parte final, aponta-se o conceito de ZPE e sua origem (China) e
destacam-se problematizações relacionadas com as experiências de ZPE que
deram certo no Brasil e indicações das diferenças desse modelo para o modelo
da Zona Franca de Manaus. Também nessa parte final foram destacadas as
considerações sobre a origem/criação da Zona de Processamento de Expor-
tações — ZPE/AC, explicando e esclarecendo os reais motivos que a mesma
não entrou em operação com base em fontes criadas através de entrevistas
com pessoas-chaves.

Informações gerais sobre a pesquisa realizada

Pode-se afirmar que a pesquisa resultou de um questionamento frequente-


mente levantado no meio acadêmico sobre os vários motivos da não existência
de uma economia regional acreana efetiva, que não utilize a administração
pública como principal fomentador da economia do estado, visto que a região
do Acre é dotada de muitos recursos oriundos da floresta, além de outros recur-
sos culturais, tais como a ayahuasca. Na tentativa de trabalhar na perspectiva
de compreender esse tipo de questionamento, foi que se optou por verificar os
reais motivos do não funcionamento de uma iniciativa de desenvolvimento
que, aparentemente, poderia provocar certo dinamismo econômico na região
do estado do Acre, que, para muitos, inclusive, poderia colocar estado na rota
da economia nacional: a Zona de Processamento de Exportação — ZPE/AC.
Observa-se que o estado do Acre atualmente possui como principais
fontes de geração e circulação de renda, diferente de regiões mais dinâmi-
cas economicamente, os setores da administração pública, de serviços, e o
comércio, sendo a administração pública o principal meio de empregabilidade,
como mostra a Tabela 1. Dessa maneira, a importância de fazer a pesquisa
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 181

surgiu dessa análise, pois caso o estado diminua a dependência das transfe-
rências federais e as pessoas residentes dependam menos da oferta de vagas
em concursos públicos ou cargos comissionados, poderíamos minimizar a
dificuldade de parte considerável da população na obtenção de renda. A rele-
vância do estudo de caso da Zona de Processamento de Exportação — ZPE/
AC, portanto, aparece no centro dessa problemática, ou seja, espera-se buscar
encontrar alternativas para a geração de renda e emprego no estado do Acre.

Tabela 1 – Principais setores econômicos do estado do Acre


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Atividades econômicas 2010 2011 2012 2013 2014 2015


Total 121.187 121.321 125.229 129.232 133.161 136.011
Administração Pública 57.764 52.465 51.850 53.091 52.321 26.415
Comércio 19.281 22.784 24.406 24.172 25.183 25.488
Serviços 23.955 27.306 29.597 32.373 35.498 35.929
Indústria de Transformação 6.769 7.189 7.029 6.966 6.655 6.589
Construção Civil 8.960 7.088 7.745 7.814 8.574 5.631
Agropecuária 3.260 3.115 3.098 3.338 3.603 3.859
SIUP* 978 1.054 1.171 1.222 1.209 1.813
Extrativa Mineral 220 320 333 256 118 287

Fonte: Acre (2017).

A questão central de pesquisa foi entender os principais motivos para


a Zona de Processamento de Exportação — ZPE/AC nunca ter entrado em
operação, mesmo com esse distrito industrial incentivado, tendo sido devi-
damente alfandegado e disponibilizado toda a infraestrutura necessária para
alocação das empresas exportadoras.
Observa-se que a Zona de Processamento de Exportação — ZPE/AC teve
sua “inauguração” no ano de 2010, com a disponibilização da infraestrutura
para a alocação das empresas que se instalariam nesse espaço alfandegado. E
mesmo não tendo uma definição clara de quais empresas seriam convidadas
para a implantação de plantas dentro da ZPE/AC e quais seriam os produtos
e os públicos que as empresas iriam atender, a ZPE/AC parecia possuir uma
estratégia interessante de logística, na medida em que se localizou no muni-
cípio de Senador Guiomard, que possui ligação com os eixos da “Estrada do
Pacífico”, com o interior do estado, e a integração com o restante do país.
Nesse sentido, a ideia básica foi indicar os principais motivos que a ZPE/
AC não teve sua funcionalidade como iniciativa de desenvolvimento, efetivada
pelo governo estadual com o apoio do governo federal. Em suma, buscou-se
responder sobre os principais motivos da inviabilidade de funcionamento da
mesma e, também, os prováveis impactos que poderia provocar na/para região.
182

Vale salientar que, no Acre, os governos da FPA (liderados pelo Partido


dos Trabalhadores — PT — período de 1999 a 2018) apresentaram para a
sociedade um novo modelo para o desenvolvimento, pautado na lógica do
“desenvolvimento sustentável”, que, conforme o discurso do próprio governo,
focaria no aproveitamento inteligente da floresta, considerada nossa única
vantagem comparativa. Depois de diversas iniciativas visando gerar o desen-
volvimento baseado na exploração dos recursos da floresta, quase todas com
resultados questionáveis (experiência com o “extrativismo melhorado tecni-
camente por dentro — neoextrativismo”51, com o manejo de madeira, com a

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venda de crédito de carbono, etc) e percebendo que a geração de emprego e
renda não estavam sendo significativas, foi necessário criar outros mecanismo
de desenvolvimento na/para região. A ZPE/AC apareceu como uma proposta
nesse contexto.
Dessa maneira, a ZPE/AC, localizada na BR-317, no município de Sena-
dor Guiomard- AC, foi “inaugurada” no ano de 2010, mas nunca entrou em
operação efetivamente, mesmo o modelo aparentemente possuindo vantagens
econômicas para as empresas que nesse espaço se instalassem (incentivos
fiscais e os mecanismos facilitados para o escoamento da produção via eixo
do pacífico).
Vale apontar ainda que a análise do objeto pesquisado se deu no período
que compreende a “inauguração” da ZPE/AC até os dias atuais, onde o
governo tenta vender as instalações para empresários da China. Conforme o
site Acre News (2021):

O Instituto Sociocultural Brasil-China (Ibrachina) nesta quarta-feira, 27,


em São Paulo, o secretário de Ciência e Tecnologia (Seict), Anderson
Abreu, o procurador- geral do Estado João Paulo Setti e o secretário de
Estado de Saúde, Alysson Bestene e o presidente da Ordem dos Advo-
gados do Acre Erick Venâncio, apresentaram um projeto com objetivo
de atrair investidores chineses para a possível compra e investimentos
na Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Acre (GOVERNO,
2021, não paginado).

Observa-se que, no momento em que a pesquisa estava sendo desenvol-


vida (dezembro de 2021), o governo do estado não tinha realizado a venda da
ZPE/AC. Uma empresa chinesa havia ganhado o processo licitatório, mas,
como não efetuou o pagamento inicial descrito nos termos do acordo do
contrato de compra e venda, o processo foi cancelado.

51 Sobre neoextrativismo, ver mais em REGO et. al (1996).


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 183

Informações sobre a metodologia

A pesquisa foi realizada através dos seguintes procedimentos: a) revisão


de literatura (em livros, artigos de jornais, dissertações e teses e sites da inter-
net); b) análise do Projeto de Lei nº 5.957/2013, que dispõe sobre o regime
tributário, cambial e administrativo das Zonas de Processamento de Expor-
tação; c) análise de relatórios técnicos sobre as ZPEs, boletins informativos
sobre a ZPE/AC, e ainda d) realização de entrevistas com pessoas que fizeram
parte da criação e implementação da ZPE/AC, empresários e especialistas
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no tema (considerados pessoas chaves), com objetivo de levantamento de


informações e criação de fontes visando explicar a não entrada em operação
dessa importante iniciativa.
Vale assinalar que o estudo contou com alguns contratempos, pois, a jul-
gar pela temática do ineditismo, existiam poucos materiais publicados sobre o
assunto, principalmente sobre a ZPE/AC, de certa maneira obrigando a buscar
informações com pessoas que fizeram parte da criação e implementação da
mesma. Outro grande obstáculo foi a negativa de fala da grande maioria das
pessoas previamente selecionadas para entrevistarmos. Sem dúvidas, esse foi
o principal obstáculo enfrentado que, de certa maneira, limitou muito as pos-
sibilidades de levantar questões e problematizações mais aprofundadas sobre
o objeto pesquisado. Muitos alegaram como justificativa de suas negativas o
período pandêmico. Outros simplesmente não quiseram falar (notadamente
os ex-governadores da Frente Popular do Acre, senhores Jorge Viana, Tião
Viana e Binho Marques).
Para as entrevistas, utilizamos roteiros com perguntas abertas, enca-
minhados previamente via e-mail. Como o roteiro foi encaminhado previa-
mente, os possíveis entrevistados poderiam escolher falar ou não falar sobre
as questões apresentadas. Destaca-se que três (03) das entrevistas daqueles
que aceitaram falar ocorreram presencialmente, e uma (01) utilizando video-
chamada ( Google Meet). Nas entrevistas presenciais, utilizamos todas as
medidas de distanciamento e cuidados para a prevenção da covid-19. Em
todas as entrevistas, o entrevistado era perguntado e passava a falar (relatar)
livremente sobre o que tinha sido indagado, podendo, inclusive, mudar de
assunto sem a intervenção do entrevistador52. Em nenhum momento foram
interrompidos. Durante a coleta, procurou-se sempre prestar atenção nos dis-
cursos, nos silêncios, nos olhares e nas alterações da paisagem.
Se tem consciência que os assuntos relatados pelos entrevistados podem
não ter sido o que verdadeiramente aconteceu, mas uma versão — nem melhor
nem pior — única, de vivências filtradas pela experiência e pelo tempo.

52 Todas as entrevistas foram conduzidas por Ravela de Souza Marinho.


184

Certamente o que informaram não foi exatamente fiel ao que se passou, sobre
como se deram as coisas, mas momentos narrativos. Para Benjamin (1985),
por exemplo, uma narrativa não está interessada em transmitir o “puro em si”
da coisa narrada, como uma informação ou um relatório.
Coletou-se a voz do atual presidente da Federação das Indústrias do
Estado do Acre — FIEAC, José Adriano da Silva, no dia 13 de julho de 2021
(entrevista presencial, com duração de aproximadamente 16 minutos); entre-
vistou-se o técnico Mário Humberto Acuna, professor doutor da Universidade
Federal do Acre, que participou como consultor da construção de um relatório

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de viabilidade técnica da ZPE/AC no ano de 2019 (esta entrevista foi realizada
por meio da plataforma Google Meet no dia 23 de agosto de 2021). Marcos
Vinícius O. de Moraes, Diretor de Gestão Operacional e RH da ZPE desde
2012 também concedeu entrevista, realizada no dia 23 de novembro de 2021
(entrevista com duração de aproximadamente 40 minutos). Outro entrevistado
foi o ex-presidente da FIEAC e um dos primeiros membros do Conselho local
da ZPE/AC, João Francisco Salomão. Observa-se que Salomão, atualmente,
é empresário e presidente da empresa ITS, localizada no parque industrial,
sentido Rio Branco — Porto Velho (entrevista realizada no dia 24 de novembro
de 2021, com duração de 10 minutos). Todos os entrevistados autorizaram
que os resultados de suas falas fossem utilizados no texto da dissertação e em
possíveis subprodutos gerados a partir dela.

A ZPE/AC no contexto da crise estrutural do capital

Nos parágrafos a seguir destaca-se o significado e a importância das crises


estruturais do capital, na medida em que foi durante o governo Tião Viana
que aconteceu o alfandegamento da Zona de Processamento de Exportações
— ZPE, em 2010, exatamente no período que o Brasil e o Acre começavam
a sofrer os rebates da crise iniciada em 2007/2008.
Parece não restar dúvidas que o sistema capitalista se encontra novamente
em grave crise estrutural. Significando que o padrão de valorização do capital
está em perigo (MARX, 1985). Em vários tempos históricos, crises estruturais
sistêmicas aconteceram, sempre colocando o capital em xeque. Entretanto,
nunca em xeque-mate.
Uma crise importante que abalou as estruturas do capitalismo foi a de
1929. Mas o capital conseguiu sair dela. E, quando saiu, se reinventando com
o “auxílio luxuoso” do Estado e, embalado pela teoria keynesiana, o sistema
entrou em um ciclo de expressiva expansão. Prosperidade que durou até os
anos finais da década de 1960 e início dos anos de 1970 do século 20 quando
novamente outra crise estrutural ameaçou o padrão de valorização do capital.
A crise dos anos finais de 1960 e início dos 70 travou o ritmo de crescimento
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 185

dos “países centrais” e estendeu-se para os países “dependentes”, provocando


transformações importantes relacionadas à lógica de acumulação.
Como se pode notar, o sistema capitalista é cíclico e vive de crises.
Nas palavras de Alencar Jr (2021, p. 266), “a crise econômica como sendo
o resultado do funcionamento histórico da lei geral da queda tendencial da
taxa de lucro, é, portanto, orgânica ao sistema capitalista, e necessária para a
produção e reprodução do capital”.
As dificuldades enfrentadas para o capital se reproduzir com o advento
da crise dos anos finais de 1960 impulsionaram fortes pressões dos capitalistas
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para que governos e organismos internacionais buscassem alternativas visando


minimizar os problemas. Surgiram desse processo as estratégias principais da
“reestruturação neoliberal” e a intensificação da “globalização da produção”,
que provocaram modificações profundas na dinâmica de acumulação levando
o capitalismo a outro período de relativa expansão.
Sobre o “neoliberalismo”, pode-se sumarizar no conjunto de medidas de
ajustes macroeconômicas apresentadas em 1989 com a uma famosa reunião
na cidade de Washington, nos EUA, que ficou conhecida como “Consenso
de Washington”. “Receituário” que se tornaria a política oficial do Fundo
Monetário Internacional — FMI a partir dos anos de 1990.
Os processos de intensificação da “globalização da produção” relaciona-
ram-se com movimentos de relocalização de instalações/plantas para países
com baixos salários e ainda transformações radicais nos sistemas produti-
vos (automação, just time etc.). A adoção de novas tecnologias e a busca
por redução nos custos, visando maior rentabilidade, tornaram-se obsessão
nesse período.
Mudanças no “mundo do trabalho” também foram intensas. Verificaram-
-se processos de terceirização, mudanças nas relações de assalariamento e,
principalmente, intensificação da precarização das relações de trabalho com
crescimentos da informalidade, em especial, nos países capitalistas depen-
dentes, cujos capitais instalados precisavam compensar parte do “mais valor”
neles produzidos que, através de mecanismos diversos, era apropriado pelos
capitais centrais. Para Alencar Jr (2021, p. 268):

Essa estratégia econômica e político-ideológica do capital aumentou a


riqueza do bloco no poder e reduziu as condições de vida das classes
populares; porém, não conseguiu retomar os patamares de crescimento
da economia mundial, muito menos as taxas de lucratividade anteriores
à crise dos anos 1970.

Embora as estratégias encontradas para a saída da crise tenham oca-


sionado aumentos da lucratividade do capital em curto prazo, no médio e
186

longo, mostraram-se contraproducentes, uma vez que provocavam quedas


na “demanda efetiva” via redução de salários e/ou impedimentos de aumen-
tos aos trabalhadores e via pacote de reformas impostas. Talvez por esse
motivo, ou como resposta para, o capital criou uma nova lógica de acumula-
ção: a financeirização.
Essa “nova lógica de acumulação” baseada na financeirização infiltrou-
-se em todos os setores da economia. O “capital fictício” (MARX, 1985)
tornou-se preponderante, invertendo totalmente o processo de acumulação
até então dominante.

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O industrialismo entrou em evidente declínio, e o regime de acumula-
ção ficou sob a dominância financeira. O “capital financeiro” superou a elite
industrial, inclusive em poder e influência. Os financistas tornaram-se os
“donos do mundo”. Antes, o setor financeiro funcionava como uma espécie
de apoio ao setor produtivo; com a aceleração da financeirização, o “rabo é
que passou a abanar o cachorro” (DAWBOR, 2017).
Na nova lógica de acumulação, o capital passou a não ter necessidade
de existir a priori (D – M – D`). A existência prévia foi substituída por uma
expectativa, que permitiria a apropriação do “mais valor” que ainda seria
produzido. O futuro é antecipado. Com base nessa nova lógica de acumula-
ção, o capitalismo contemporâneo construiu diversos mecanismos financeiros
que contaminaram todos os setores da economia. Nota-se que, nesse novo
esquema, o capital fictício passou a não participar diretamente da produção
da “mais valia” somente do processo de apropriação dela.
Esse processo se intensificou até os anos de 2007/2008, quando acon-
teceu uma desconfiança generalizada por parte dos detentores de “capital
fictício”, que começaram a desconfiar que as expectativas de apropriação
do “mais valor” poderiam não ser realizadas. Então, iniciaram uma busca
desenfreada para tentar passar adiante as expectativas de apropriação (tecni-
camente falando: vender papéis podres). O resultado foi outra crise estrutural
do capital, que perdura até os dias de hoje.
Para Alencar Jr (2020, p. 269):

[...] a busca por altas rendas imprimida pelas classes capitalistas através
da financeirização e da globalização, aliada a mecanismos de geração
de ganhos fictícios, a partir de fraudes contábeis, de pagamentos de ren-
das reais altíssimas por resultados falseados e de desregulação, criaram
uma estrutura financeira frágil e inadequada capaz de reduzir o poten-
cial estabilizador das macropolíticas dos Estados. Essas tendências, ao
se combinarem, foram determinantes para deflagrar a crise financeira em
agosto de 2007 nos EUA, mas a faísca necessária para a explosão fora a
expansão extraordinária do mercado hipotecário norte-americano e em
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 187

seguida seu colapso, que levaram o mercado imobiliário a entrar em crise


e as instituições financeiras relacionadas a quebrarem, contaminando a
frágil estrutura financeira global.

Como já acontecido em outros tempos históricos, pressões em cima dos


governos se repetiram. E assim, na tentativa de evitar um desastre maior, os
estados nacionais entraram para salvar o capital comprando os papéis podres e
fazendo, com isso, explodir a dívida pública. O crescimento da dívida pública,
principalmente em 2010/2011, se configurou como uma das características
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importantes da crise estrutural do capital iniciada em 2007.


No caso brasileiro, antes de 2007/2008, o cenário externo se mostrava
muito favorável. Isso permitiu ao país certa tranquilidade. Entretanto, depois
de 2007, quando o cenário externo virou, os problemas começaram a se mul-
tiplicar, aprofundando questões estruturais nunca resolvidas (desigualdade,
pobreza etc.). Foi nesse contexto de crise que a ZPE do Acre foi alfandegada.

Resultados e discussões: um estudo de caso da a ZPE/AC

Nesta parte final, apresentam-se as considerações sobre o conceito de


ZPE e as origens desse tipo de distrito industrial incentivado na China. Apon-
tam-se também informações sobre a origem/criação da Zona de Processamento
de Exportações — ZPE/AC, como se problematiza sobre os motivos para
o não funcionamento da ZPE do Acre na tentativa de responder a questão
central de pesquisa. Para tanto, como já informado, se fez uso de entrevistas
realizadas com 04 atores envolvidos diretamente com a ZPE (considerados
pessoas-chaves), além da busca de informações secundárias disponíveis.

O significado e a finalidade de uma ZPE

Uma ZPE nada mais é do que um Distrito Industrial (DI) incentivado,


onde as empresas nele localizadas gozam de tratamento diferenciado em ter-
mos tributários, cambiais e administrativos, com a condição de exportar o
equivalente a pelo menos 80% de sua renda bruta. O objetivo central é esti-
mular o investimento industrial voltado predominantemente para as exporta-
ções, tanto de empresas nacionais (viabilizar), como estrangeiras (atrair). E,
dessa forma, gerar empregos, fortalecer o balanço de pagamentos, promover
o desenvolvimento regional e difundir novas tecnologias e métodos gerenciais
mais modernos.
Nas palavras do Conselho Nacional das Zonas de Processamento de
Exportação, as ZPE´s, “[...] caracterizam-se como áreas de livre comércio com
o exterior, destinadas à instalação de empresas voltadas para a produção de
188

bens a serem comercializados no exterior, sendo consideradas zonas primárias


para efeito de controle aduaneiro” (BRASIL, 2013, p. 16).
As ZPEs possuiriam como finalidade econômica “reduzir desequilí-
brios regionais, atrair investimentos estrangeiros, gerar empregos, promover
o desenvolvimento econômico e social do país e, ainda, aumentar a competi-
tividade das exportações” (BRASIL, 2013, p. 16). Outras finalidades podem
ser visualizadas de acordo com a figura a seguir:

Figura 1 – Finalidade de uma ZPE

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Atrair investimentos Criação de empregos
estrangeiros e fortalecer e redução de
o Balanço de Pagamento desiquilíbrios regionais.

ZPE
Promover o
desenvolvimento Promover a difusão
econômico e social do tecnológico.
País.

Fonte: ZPE (ACRE, 2021).

Para a Associação Brasileira de Zonas de Processamento de Exportação


(ABRAZPE), com a implantação de uma ZPE, uma região/território teria
várias oportunidades, ou seja:

• Oportunidades para o governo e iniciativa privada (fomentariam o


desenvolvimento, gerariam emprego, impactariam diretamente e
indiretamente na arrecadação de impostos).
• Para o usuário (empresas instaladas na ZPE): receberiam bene-
fícios com o compromisso de exportar a maior parte de sua pro-
dução (80%).
• Para o administrador da ZPE: seria remunerado da venda/arrenda-
mento dos terrenos e da prestação de serviços (para os usuários).
• Para os prestadores de serviços: às empresas instaladas em ZPE,
bancos, operadores logísticos, construtoras, portos, aeroportos, cozi-
nha industrial, transportadores, escritórios de advocacia, sistemas
de controle informatizado etc.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 189

• Para o proprietário do terreno: geração de renda a ser comparada


com destinações alternativas para a área.
• Outras oportunidades criadas pelas ZPEs na sua área de influência
direta: construção de áreas residenciais e de outros equipamentos
urbanos requeridos pela criação de empregos diretos e indiretos que
poderiam chegar a dezenas de milhares de pessoas.

Vale ressaltar nesse último ponto que as oportunidades de empregos


formais e informais que a Zona de Processamento de Exportação traria para
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o município de Senador Guiomard e também para o estado como um todo


seriam de grande ajuda, visto que a atuação do comércio se fortaleceria e a
economia regional deixaria de ser exclusivamente da máquina estatal.
Os principais incentivos para as empresas em ZPE, de acordo com a
busca de informações realizadas em documentos oficiais, internet e publica-
ções da Associação Brasileira de ZPE (ABRAZPE) seriam:

• Suspensão de Imposto de Importação, IPI, AFRMM, PIS/COFINS,


PIS/COFINS-Importação (inclusive sobre máquinas e equipamen-
tos usados).
• Possível isenção do ICMS Estadual (Convênio CONFAZ 99/1998).
• Procedimentos de exportação e importação simplificados (dispensa
de licenças de órgãos federais).
• Liberdade cambial (receitas de exportação podem ser mantidas
100% no exterior).
• Condições asseguradas pelo prazo de até 20 anos. Segurança jurídica
e “estabilidade das regras do jogo”.
• Venda de até 20% da produção no mercado interno (pagando todos
os impostos).
• Redução de 75% do IR sobre os lucros por 10 anos (SUDAM/
SUDENE/CENTRO-OESTE).

A figura a seguir detalha melhor os benefícios:


190

Figura 2 – Detalhamento dos benefícios para empresas instaladas em ZPE

Aquisição de bens e serviços no Aquisição de bens e serviços no


Mercado Interno: Mercado Externo:
Suspensão da exigência de: Suspensão da exigência de:
• II;
Tributários • IPI;
• AFRMM;
• COFINS; e
• PIS/PASEP. • IPI;
• COFINS Importação; e
• PIS/PASEP Importação

As operações de importação e exportação das empresas instaladas em

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ZPE estão dispensadas de licenciamento e de autorização, por parte dos
órgãos do Governo Federal.

• Exceções:
Administra�vos (i) Controles de interesse de segurança nacional, de ordem sanitária,
e de proteção ao meio-ambiente; e
(ii) exportações de produtos des�nados a países que o Brasil
mantenha convênio de pagamentos; sujeitos ao regime de cotas
de exportação; e de produtos sujeitos ao IE.

Os limites do ar�go 1º da Lei nº 11.371/2006 (manutenção, no exterior,


das receitas ob�das com exportações) não se aplicam as empresas
instaladas em ZPE (parágrafo único do ar�go 15 da Lei nº 11.508/2007).
Cambiais • Observação: atualmente, entretanto, a Resuolução CMN nº 3.719/2009
possibilita ao exportador de mercadorias ou de serviços manter, no
exterior, a integralidade dos recursos rela�vos ao recebimento de suas
exportações.

Fonte: ZPE (ACRE, 2021).

A figura acima detalha os principais benefícios que o funcionamento


de uma ZPE oferece para o lugar onde a mesma se instala, pois um dos seus
principais objetivos é desenvolver economicamente a região e seu entorno a
fim de diminuir as desigualdades regionais existentes.

Sobre as diferenças de ZPE para a Zona Franca de Manaus

De acordo com Helson Cavalcante Braga, professor da Universidade


Federal do Rio de Janeiro, em entrevista concedida ao “Diário do Amazonas”
(2008), as empresas em ZPEs teriam acesso limitado ao mercado doméstico,
podendo até ser vedado, caso o governo resolvesse fixar em zero o percen-
tual de internação de um particular projeto. Já na Zona Franca de Manaus,
as empresas têm acesso ilimitado a esse mercado. Outra diferença é que,
enquanto as vendas de uma ZPE para o mercado doméstico pagarão todos
os impostos e contribuições incidentes sobre importações, são beneficiadas
com isenções de tributos indiretos e com a redução do imposto de importação
sobre os insumos importados. Portanto, um modelo não seria prejudicial ao
outro, pois possuem foco em mercados distintos.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 191

Ainda para o professor, os setores que se estabeleceriam nas ZPEs seriam


distintos daqueles implantados na ZFM — eletroeletrônico e duas rodas —,
basicamente voltados para o mercado doméstico. Nenhuma empresa desses
setores se localizaria em uma ZPE brasileira para exportar a partir dela. Nesse
caso, elas prefeririam atender seus mercados externos através de plantas já
existentes em países com condições mais propícias à exportação.
A Zona Franca de Manaus (ZFM), então, não seria uma Zona de Proces-
samento de Exportação. A ZFM é uma área de livre comércio de importação e
exportação criada com o objetivo específico de promover o desenvolvimento
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regional — comercial, industrial e agropecuário — da Amazônia Ocidental. O


incentivo é concedido a partir de benefícios fiscais às empresas interessadas
em se instalar na região.

A experiência internacional de ZPE’s

De acordo com o estudo “Special Economic Zones: Performance, Lessons


Learned, and Implications for Zone Development” (2008), o Banco Mundial
contabilizou a existência de cerca de 2.650 zonas, instaladas em 135 países,
que oferecem mais de 68 milhões de empregos diretos e geram mais de U$
500 bilhões de receitas cambiais líquidas (exportações menos importações).
Observa-se que as estatísticas internacionais sobre ZPE’s variam enor-
memente em razão das diferentes definições empregadas para o conceito
genérico de Zonas Francas (há cerca de duas dezenas de definições utilizadas
pelos diversos países). No entanto, do total de ZPE’s no mundo em 2008, cerca
de 350 estavam localizadas nos países desenvolvidos e 2.300, nos países em
desenvolvimento. No 1º grupo, o maior número de ZPE’s estava nos Estados
Unidos, que possuíam 266 “foreign trade zones” (como são chamadas as suas
ZPE’s). O Japão aparecia em segundo lugar, com 22 “foreign access zones”,
que são mais direcionadas para adaptação de produtos estrangeiros para venda
no mercado doméstico daquele país. Mas havia unidades também no Reino
Unido, Dinamarca, Austrália, Alemanha, Espanha, entre outros países.
Ainda segundo o estudo “Special Economic Zones: Performance, Lessons
Learned, and Implications for Zone Development”, de 2008, no bloco dos
países em desenvolvimento, a região da Ásia-Pacífico tinha o maior número de
ZPE’s: 991 (os países que mais as utilizavam eram a China com 187 e o Vietnã
com 186). Em seguida, apareciam as Américas, com 540 (266 nos EUA); o
Oriente Médio e Norte da África (com 213) e a África Subsariana, com 114.
As primeiras ZPE’s criadas nos países em desenvolvimento, principal-
mente na Ásia, foram implantadas e administradas pelo setor público. Hoje,
porém, mais de 60% das ZPE’s existentes têm gestão privada e a tendência
192

é no sentido de aumento dessa proporção, tanto porque costumam sair mais


baratas, como por gerarem resultados econômicos mais significativos.
Evidentemente, nem todas as ZPE’s no mundo foram exemplos de
sucesso. Algumas falharam ou tiveram desempenho pouco expressivo. O
Banco Mundial sugere que os principais fatores determinantes do sucesso
de uma ZPE estão associados à escolha do local onde estão instaladas (prin-
cipalmente à infraestrutura disponível) e à qualidade da sua gestão (que
fica facilitada com a administração privada). Ademais, recomenda que as
ZPE’s sejam do tipo distrito industrial cercado, que se permitam a instalação

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tanto de empresas industriais como comerciais e que a gestão seja privada,
e não pública.

China e Brasil

A China pode ser considerada exemplo internacional de utilização da


estratégia das Zonas de Processamento de Exportações como alavanca para
fomentar o desenvolvimento regional. De acordo com Ribeiro (et al., 2021,
p. 5), o aproveitamento de áreas costeiras pelos chineses possibilitou o desen-
volvimento regional daquele país e o aumento da disponibilidade de mão de
obra especializada, atraída pelas oportunidades advindas das ZPEs.

A presença de fatores de produção e de políticas favoráveis permitiu que


países como a China experimentassem elevados níveis de crescimento, em
especial a partir da década de 70, com a instalação da ZPE em Shenzhen,
uma das maiores e mais importantes cidades da China, localizada no sul
do país, ao norte de Hong Kong, na província de Guangdong (YEUNG;
LEE; KEE, 2009).

No Brasil, a Zona de Processamento de Exportações de Pecém, locali-


zada no município de São Gonçalo do Amarante/Ceará, pode ser considerada
a referência nacional nesse tipo de estratégia de desenvolvimento. De acordo
com as informações da administradora da ZPE/CE, a mesma possui:

O intuito de desenvolver a economia local, regional e nacional movi-


mentando materiais siderúrgicos, fertilizantes, granel e contêineres. O
plano diretor divide a região em quatro setores. O primeiro é destinado às
termelétricas e à Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP); o segundo, à
refinaria e pólo petroquímico; o terceiro, à área industrial e o quarto, é da
área institucional, serviços e ZPE. Grandes e estratégicos empreendimentos
para o Ceará estão instalados na região. Atualmente, o Complexo congrega
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 193

30 empresas. Em operação já são 22 e as demais em fase de implantação.


Juntas totalizam investimentos na ordem de R$ 28,5 bilhões, gerando
50,8 mil empregos diretos e indiretos (COMPLEXO INDUSTRIAL E
PORTUÁRIO PECÉM, 2021).

O complexo da ZPE/CE foi pensado estrategicamente para cumprir com


a função de desenvolver a região e a economia local. No Ceará, a ZPE é uma
empresa de economia mista, portanto, possui investidores que garantem o
funcionamento da mesma. Nesse ponto, destaca-se uma diferença fundamental
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com relação à Zona de Processamento de Exportação alfandegada no Acre,


as fontes consultadas deixaram claro que apenas o estado era o realizador
dos investimentos.
A viabilidade econômica de uma ZPE no pensamento do governo fede-
ral, na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, era do Brasil se fazer
presente no mercado internacional como concorrente de outros países. Foram
criadas nesse governo mais de 12 ZPEs de acordo com a Lei nº 11.508/2007.
Como já existiam algumas, contabilizou-se 22 ZPEs ao total, sendo que apenas
duas conseguiram o alfandegamento: a ZPE do Acre e a ZPE do Pecém —
Ceará. Segundo Ribeiro (et al., 2021, p. 5):

No Brasil, segundo o Ministério da Economia, Indústria, Comércio


Exterior e Serviços (Brasil, 2019) há 25 ZPEs autorizadas, distribuídas
por 20 estados, sendo 12 instituídas até 1994, por meio do Decreto-Lei
nº 2.452/88, e as demais após a Lei nº 11.508/2007 (Brasil, 1988 e 2007).
Dessas, apenas a unidade localizada em PECÉM-CE encontra-se em efe-
tiva operação (Abrazpe, 2018). Exceção feita à ZPE do Acre, em condições
mais adiantadas, as demais autorizadas ainda desenvolvem projetos que
sequer concluíram a etapa de entrega da infraestrutura necessária, ou seja,
não apresentaram, até o presente momento, condições suficientes para dar
prosseguimento ao processo de implementação (Brasil, 2019).

A seguir, apresenta-se uma figura com a distribuição das Zonas de Pro-


cessamento de Exportação que o Ministério da Economia disponibiliza em
seu site para fins de localização e datas de instalação das mesmas.
194

Figura 3 – Principais Zonas de Exportação do Brasil

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ZPE criadas até 1994

ZPE criadas no âmbito


da Lei nº 11.508/2007

Fonte disponível em: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-


exterior/pt-br/assuntos/zpe. Acesso em: 8 fev. 2022.

A figura descreve as localizações de cada ZPE e o processo de criação das


mesmas, pois algumas tiveram seu processo de instalação até o ano de 1994
e as outras foram criadas através da Lei nº11.508/2007, quando o governo
federal pôde iniciar o processo de instalação da ZPE em áreas menos desen-
volvidas economicamente.

A ZPE do Acre

O esforço para a implantação da Zona de Processamento de Exporta-


ção do Acre foi concretizado através de parcerias formadas pelo governo do
estado, empresários, parlamentares e com o apoio da Associação Brasileira
de Zonas de Processamento de Exportação — ABRAZPE. No início, foi
formado um Grupo de Trabalho — GT coordenado pelo governo do estado
e pela Federação das Indústrias do Estado do Acre — FIEAC, com a missão
de elaborar o projeto a ser apresentado ao Ministério de Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior — MDIC.
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 195

Durante os trabalhos de elaboração do projeto, os empresários acreanos,


com o apoio SEBRAE/AC, organizaram uma Missão para a China, com o
objetivo de prospecção de mercados e conhecer o modelo de ZPE em funcio-
namento naquele país. A missão contou com a participação de aproximada-
mente 75 pessoas, entre elas autoridades do governo do estado, parlamentares
e empresários dos mais diversos setores. De acordo com o presidente da
FIEAC à época, João Francisco Salomão, “a experiência foi avaliada pelo
Grupo de Trabalho — GT de forma positiva, que ao mesmo tempo concluía
o Projeto ZPE/AC a ser apresentado ao MDIC”.
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O Projeto da ZPE/AC foi construído e protocolado no MDIC no dia 16


de junho de 2010. Após a tramitação legal, no dia 28 de junho de 2010, o
mesmo foi aprovado pelo Conselho das Zonas de Processamento de Expor-
tação — CZPE (Resolução nº 9 de 28/06/2010 publicada no DOU nº 122 de
29/06/2010) e indicado para assinatura do Decreto Presidencial. O presidente
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o decreto em 30 de julho de
2010, publicado no Diário Oficial da União no dia 01 de julho de 2010 (DOU
nº 124, página 15), criando assim a ZPE/AC.
Acreditava-se naquele momento que a ZPE mudaria o cenário econômico
e social do Acre, transformando suas potencialidades regionais, notadamente
seus recursos florestais, em oportunidades de negócios, investindo em pro-
dutos diferenciados com alto valor agregado e ampliando escala, de forma
que apresentassem vantagens comparativas em relação a outras regiões e que
fossem competitivos no mercado mundial.
Pensava-se que a ZPE do Acre desempenharia uma função estratégica
fundamental no processo de desenvolvimento do estado, em consonância com
a Política Nacional de Desenvolvimento Produtivo (lançada em maio/2008),
contemplando 5 (cinco) dos seus 6 (seis) destaques estratégicos: i) expor-
tações (ampliação e diversificação); ii) regionalização (nova distribuição
geográfica da indústria); iii) micro e pequenas empresas (capacitação para o
mercado externo e geração de postos de trabalho); iv) integração produtiva
com a América Latina e Caribe (articulação com as cadeias produtivas nas
áreas fronteiriças da Amazônia), e v) produção sustentável (manejo de uso
múltiplo dos recursos florestais, agroflorestais, certificação e preservação do
meio ambiente).
A criação de uma área com esses benefícios naquele momento, além
de utilizar o potencial econômico do estado, também ajudaria na geração de
emprego e renda, bem como inseriria o Acre no mercado internacional, pelo
menos era isso que o governo pensava.
A ideia era aparentemente simples: criaria-se a ZPE/AC para aproveitar as
matérias-primas disponíveis na região (da floresta), que seriam processadas e
se exportariam os produtos industrializados utilizando a “Estrada do Pacífico”.
196

Figura 4 – Potencialidade da ZPE/AC

Aproveitamento das Comércio fronteiriço e a Acesso aos Portos do


matérias-primas Rodovia Interoceânica Pacífico
disponíveis na região

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Fonte: ZPE (ACRE, 2021).

O aproveitamento dos recursos oriundos da floresta, a localização estraté-


gica do estado com relação aos principais portos do Peru, entre outros motivos
foram largamente utilizados como justificativa pelo governo local e pela par-
cela significativa do empresariado do Acre como motivação para transformar
o “Porto Seco”, que estava em construção, em uma ZPE. É o que se pode
verificar de acordo com as evidências coletadas nas entrevistas.
Observa-se que a inexistência de um “Porto Seco”/EADI no território
acreano para facilitar o desembaraço aduaneiro era uma demanda antiga do
empresariado acreano. “Porto Seco” ou Estação Aduaneira do Interior (EADI)
nada mais é do que uma área alfandegada de uso público localizada em uma
zona secundária. Ou seja, fora dos portos principais e próxima de regiões com
grande volume de produtos a serem comercializados tanto para importação de
mercadorias, como exportação. Nesse local, segundo a literatura especializada,
é possível realizar todos os serviços aduaneiros. As cargas vindas de outros
países, por exemplo, podem ser recebidas e nacionalizadas. O local também
serviria para armazenar a mercadoria do importador em regime de suspensão
de impostos e fazer a nacionalização por partes.
Deve-se notar que o governo do Acre, nas gestões de Jorge Viana (1999-
2006), por vários momentos, sinalizou intenções claras de implantar um “Porto
Seco” no território acreano. Mas foi o governador Binho Marques, atendendo
às reivindicações do empresariado, que decidiu a iniciar a construção das
instalações do “Porto Seco” no município de Senador Guiomard, entretanto,
antes mesmo da obra ser finalizada, o projeto foi alterado para Zona de Pro-
cessamento de Exportações — ZPE.
A pesquisa não conseguiu descobrir as motivações do governo para a
mudança no projeto, mesmo assim, conversas informais com assessores do
governo da época e com membros do GT que participaram da elaboração do
estudo de viabilidade inicial da ZPE indicaram que parte dos técnicos tinha
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 197

entendimento diferente do que foi realizado, ou seja, defendia a manutenção


da instalação do “Porto Seco”. Dessa forma, pode-se inferir que a decisão
foi política, e não técnica. A persuasão/influência do consultor chefe que
assessorou o Grupo de Trabalho — GT inicial junto ao governo, um profes-
sor aposentado da UFRJ que implementava ZPE´s em todo o Brasil, também
deve ser considerada como fator explicativo para a mudança na ideia original.
De acordo com a publicação ZPE: Acre (2021) e Aravena Acuña (2019),
no período entre 2011 e 2016, foram aprovados cinco projetos pela Adminis-
tradora da ZPE/AC e pelo Conselho Nacional das Zonas de Processamento
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de Exportação (CZPE), os quais não chegaram a ser concretizados devido


a diferentes falhas de planejamento, gestão e disponibilidade de recursos
monetários. Abaixo se listam algumas das iniciativas de projetos, de acordo
com o observado na pesquisa documental realizada:

• Anawá Indústria de Alimentos:


Produtos: Açúcar cristal e refinados embalados em sacos alumizados de 1 kg,
e óleo comestível de soja, envasado em garrafa PET de 900 e 200 ml.
Investimento inicial previsto: R$ 19.139.620,18

• Acre Parquet indústria e Comércio de Importação e Exportação


LTDA
Produtos: Pequenos artefatos de madeira, móveis para jardim e pisos de
madeira dura.
Investimento inicial previsto: R$ 4.286.412,45

• Superfruits Global Acre — Importação e Exportação Ltda.


Produtos: Açaí em pó, embalado a vácuo em saco flexível de 5 kg.
Investimento inicial: R$ 4.003.727,13

Essas empresas que tiveram projetos de construção aceitos junto ao


Ministério da Economia eram compostas, em grande parte, por brasilei-
ros (acreanos), com sócios estrangeiros que tinham interesse no comércio
de exportação.
Destaca-se que, no período de realização da pesquisa (2020/2021), o
empreendimento (ZPE/AC) se encontrava totalmente desativado. As estru-
turas físicas se encontravam completamente abandonadas e com problemas
elétricos, hidráulicos, de cobertura e com 1000 metros da cerca destruída,
permitindo a entrada de animais bovinos que acabaram por deixar o ambiente
em um estado deplorável.
Observa-se que a estrutura da Zona de Processamento de Exportação
do Acre, construída no município de Senador Guiomard, possui uma área de
198

130 hectares, exclusivamente pertencentes ao estado do Acre. De acordo com


Aravena Acuña (2019):

Os recursos públicos aplicados no investimento, corrigidos e desconta-


dos pela inflação monetária e pela correção cambial para o mês de abril
de 2019, nos períodos estimados correspondem a R$ 54.269.585,00. Os
valores foram calculados sem ter o conhecimento certo das condições
dos empréstimos contraídos do BNDES. Foram utilizadas as informações
verbais de funcionários públicos gestores e as taxas de juros obtidas nos

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relatórios anuais da instituição financiadora

A tabela a seguir demonstra os investimentos no projeto de instalação da


Zona de Processamento de Exportação do Estado do Acre, onde verifica-se
que foram gastos mais de 50 milhões de reais.

Tabela 2 – Investimento público realizado. Valores


atualizados e descontados ao mês de abril de 2019
Investimento Valor R$
Principal empréstimo 16.794.468
Juro empréstimo 14.145.519
Correção cambial s/ principal 2.929.903
Cerreção cambial s/ juros 1.806.395
Total 35.676.285
Recursos próprios 11.000.000
Correção monetária recursos próprios 7.593.300
Total 18.593.300
TOTAL INVESTIMENTO PÚBLICO (março/2019) 54.269.585

Fonte: Aravena Acuña (2019).

Uma obra dessa magnitude, com investimentos elevados, segue sem


cumprir sua finalidade, gerando gera certo desconforto. Isto não só para a
atual gestão, mas para toda a população que via nesse empreendimento novas
chances e oportunidades de melhores condições de vida digna.
Vale ressaltar que a estrutura física devidamente alfandegada foi dispo-
nibilizada pelo estado para as empresas que tivessem interesse em se instalar
no local, mas a crise mundial de 2008, que afetou todo o mercado interna-
cional, rebateu no Acre, impactando na disposição dos bancos a financiar
empreendimentos que demorariam a gerar renda. O mercado de exportações
estava praticamente estagnado devido à crise, talvez esse tenha sido um dos
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 199

principais motivos para a falta de interesse das empresas. A figura 9 mostra


a área que compreende o Parque Industrial da Zona de Processamento de
Exportação e sua infraestrutura.
Atualmente a infraestrutura da ZPE/AC encontra-se abandonada, o que
foi verificado em visita in loco. Em realidade, encontrou-se apenas guardas
vigilantes que faziam a segurança do local, visto que não há empresas ins-
taladas na área. A deteriorização do patrimônio público é bem evidente, nos
últimos meses, o atual governo Gladson Cameli ofertou a venda da ZPE, pois,
na sua visão, a mesma não estava cumprindo com seu papel social e ainda
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estava gerando despesas para as contas públicas.

A ZPE nas falas (“falas silenciadas”) dos agentes promotores

Por se tratar de um tema sensível, pois envolve muitas pessoas que


fizeram e fazem parte de altos cargos públicos no estado do Acre, algumas
delas, quando solicitadas a fala sobre os principais motivos que a ZPE não
teve efetividade, encontramos um silenciamento. Uma hipótese levantada
para esse silenciamento seria não ter que aceitar que o fracasso se deu sob as
gestões (Jorge Viana, Arnóbio Marques e Tião Viana).
Outro fator importante que pode ser considerado nesse silenciamento
estaria no fato que a ZPE foi um projeto precipitado tanto pelo governo fede-
ral, quanto pelo governo estadual, visto que os primeiros estudos realizados
levariam a criação de um Porto Seco, onde seriam feitos os ritos aduaneiros
necessários para o transporte de mercadorias. Apesar dos estudos técnicos
iniciais apontarem para a instalação de um Porto Seco, o governo fez uma
mudança repentina para ZPE, sem realizar um estudo em longo prazo mais
aprofundado, como indicaram as evidências.

Principais motivos para o não funcionamento da ZPE/AC

Na visão do diretor da AZPE/AC (administradora da ZPE/AC), Marcos


Moraes, um dos motivos que levou a mesma a não ter entrado em operação
foi o fato de apenas o governo estadual ser o gestor e único donatário. Para
ele, uma ZPE “não pode apenas contar com os recursos oriundos do estado.
A participação de outros sócios seria importante na medida em que também
fariam os investimentos necessários para a atração de empresas dispostas a se
instalarem no do local”. Para esse entrevistado, deveria (o governo) ter atraído
uma grande empresa âncora, como o mesmo observou no Ceará.
Sobre a afirmação acima, vale destacar que, em Pecém/CE (um dos casos
de sucesso de ZPE no Brasil), o processo foi diferente do que acontece no
Acre. No Ceará, a ZPE se constituiu como uma empresa de economia mista,
200

onde o estado é o sócio majoritário, mas a gestão é feita com outros sócios
(proprietários de empresas âncoras). Além disso, no Pecém, a ZPE está ao
lado do porto, o que facilita muito o processo, segundo o entrevistado.
As fontes consultadas indicaram que a ZPE/AC, apesar de ter empresas/
projetos/empresários dispostos a realizarem investimentos no local, eles se
depararam com problemas para viabilizar financiamentos nas instituições
de crédito. Isso parece ter sido decisivo para a não implantação dos projetos
inicialmente aprovados pela AZPE/AC, taxativamente destacado por Marcos
Moraes. A julgar pelo período que nos encontrávamos na época (2010/2011),

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quando se tinha a crise econômica instalada no mercado mundial, os bancos
dificilmente iriam arriscar empréstimos de valores altos para empresas que
iriam operar com o mercado externo. Destaca-se que a crise mundial do capi-
tal iniciada em 2007/2008, problematizada na primeira parte do trabalho, já
apresentava seus rebates no Brasil à época.
Segundo Marcos, o projeto que mais avançou foi o de um grupo que
pretendia trabalhar com açaí. “O projeto foi aprovado pela AZPE/AC e
por Brasília. Inclusive, o terreno foi disponibilizado para a empresa, mas o
financiamento, que seria feito através do Banco da Amazônia/FNO, demorou
demais devido às questões de burocracia. Demorou tanto que o grupo desistiu
e implantou a unidade na Bolívia”.
Na visão do ex-presidente da FIEAC, Francisco Salomão, que até hoje
ocupa o cargo de presidente do Conselho da ZPE/AC, o maior problema foi
falta de visão empresarial do governo Tião Viana. Para esse entrevistado, a
ZPE/AC, como acontece em vários locais pelo mundo que o mesmo diz que
visitou (como a Colômbia53), deveria “ser gerida totalmente por empresários.
Mas não foi o que aconteceu no Acre”. Outro aspecto que Salomão considera
relevante foi a mudança de governo. Segundo informou, com a posse de Tião
Viana, que sucedeu Binho Marques, aconteceu uma reformulação na estru-
tura de cargos. “O governo criou uma estrutura de cargos políticos e colo-
cou pessoas totalmente despreparadas, que não conheciam a ZPE, ganhando
altos salários”.
Segundo Salomão, mesmo com esse problema de pessoas despreparadas
na gestão da ZPE/AC, a mesma seria viabilizada por investimentos que um
empresário do Acre estava disposto a fazer. Esse empresário era Roberto
Moura (grupo RECOL), que planejava implantar três empresas no local para
“ensacar café e processar óleo de soja”, com o objetivo de exportar para o
Peru. Mas o empresário faleceu e a família desistiu do negócio.
Salomão também afirmou que a FIEAC, entidade que presidia, plane-
java fazer uma mobilização junto à Federação das Indústrias de São Paulo

53 Na Colômbia , a ZPE de Cartagena funciona com pequenas empresa e cooperativas.


TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 201

— FIESP no sentido de convencer as empresas de São Paulo a relocalizarem


plantas no Acre, tais empresas já exportavam para o Peru e provavelmente
aceitariam transferir suas plantas para o Acre devido aos ganhos que obteriam
com a encurtação das distâncias. Entretanto, o entrevistado disse que “saiu
da presidência da FIEAC antes de realizar a mobilização e o presidente que
o sucedeu não levou adiante a iniciativa”.
Esse empresário destacou que tem certeza que a ZPE/AC é viável ainda
hoje, mas o problema reside no fato do “governo não abrir mão dos car-
gos políticos na sua estrutura”. Inclusive o governo atual (referiu-se a Glad-
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son Cameli).
A busca de informações realizadas e as respostas dos entrevistados suge-
rem que algumas limitações existentes no Acre puderam, de alguma maneira,
ter provocado desestímulos em empresários a investirem na ZPE/AC. Uma
das limitações relaciona-se com a baixa capacidade de investimentos em
P&D no estado. Outro aspecto possui relação com a inexistência de mão
de obra qualificada e de recursos humanos especializados (os entrevistados
empresários ressaltaram esse ponto).
Os entraves burocráticos existentes no período de alfandegamento para
efetivação do comércio Brasil/Peru/Bolívia/Chile são outra questão que pode
e deve ser considerada. Principalmente a baixa quantidade e qualidade de
serviços e recursos humanos em postos fronteiriços de controle. Deve-se
salientar que esses gargalos existem até hoje.
No setor florestal, que no momento do alfandegamento da ZPE era
considerado base forte do desenvolvimento acreano, existiam entraves para
a expansão da produção, ou seja, baixa profissionalização dos produtores;
limitações tecnológicas; dependência de recursos públicos; baixa capacidade
de investimentos; insuficiência de mão de obra qualificada e de incentivos e
dificuldade de acesso à terra. Além dessas limitações estruturais e conjunturais,
faltava ao produtor acreano uma visão empresarial sobre o negócio agrícola
e florestal, principalmente da parte de pequenos e médios produtores, o que
pode ser inferido das fontes.
O entrevistado José Adriano da Silva informou que existia uma espécie
de euforia entre o empresariado do Acre quando a proposta de ZPE apareceu.
“Muitos estavam empolgados e animados com a esperança de transformar o
Acre em um corredor de exportações para o Pacífico”. Isso se dava, na visão
do entrevistado, devido à construção da “Estrada do Pacífico”54, das hidrelé-
tricas do Rio Madeira e do apoio do governo federal (Lula), que pensava
estrategicamente na região. Para Adriano, os empresários locais “enxergavam
na ZPE uma grande oportunidade para alavancar negócios”.

54 O governo brasileiro havia financiado as obras também do lado peruano.


202

Mas a demora na autorização para o Acre iniciar os trabalhos de constru-


ção da ZPE fez com que a ficha começasse a cair, pelo menos para parte do
empresariado. Para esse entrevistado, com a demora dessa autorização para
o início dos trabalhos, aconteceu a mudança de governo. Jorge Viana saiu e
entrou Binho Marques, que possuía “um pensamento sobre desenvolvimento
completamente diferente”. Segundo Adriano, “Jorge era mais desenvolvimen-
tista que Binho”. Para Adriano, o problema todo se inicia nesse momento.
Vale observar, na fala do presidente da FIEAC, que a existência de evidências
claras que a proposta de criação de uma ZPE no Acre aparece ainda no governo

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Jorge Viana e não depois, como muitos pensam até hoje. Infelizmente Jorge
Viana, mesmo procurado, se negou a falar.
Juntamente com a mudança de governo e do perfil do governador, o setor
externo brasileiro começava a ser estrangulado em função da crise mundial.
A insegurança cambial ficou enorme no período, segundo Adriano. O empre-
sariado do Acre percebeu que era prudente continuar com plantas fora da
ZPE. Para Adriano, não “existia segurança alguma sobre garantias do governo
estadual que o empresário conseguiria exportar os 80% da produção, como
era exigência das normas da ZPE”. Pode-se inferir nessa fala do presidente
da FIEAC que o empresariado local esperava que o governo assumisse parte
dos riscos inerentes ao próprio processo empreendedor.
Para José Adriano, “no Acre, não existiam produtos com escala suficiente
no momento do alfandegamento da ZPE”. Esse fato, na sua visão, contribuiu
sobremaneira para a euforia acabar. Além disso, os problemas de infraestrutura
aduaneira e a logística de transporte foram decisivos. Adriano parece esquecer
que, com a ZPE, resolveria esses “problemas aduaneiros”
José Adriano destacou assertivamente que “a ZPE poderia ter dado certo
sim, alavancando o comércio exterior do Acre/pelo Acre de forma a trans-
formar o território em um corredor de exportações para toda a região”, mas
“a crise mundial que estrangulou o setor externo, a inexistência de escala
em produtos potências, o perfil do governador menos ‘desenvolvimentista’,
e a questão da obrigatoriedade de exportar 80% da produção sem garantias
do governo” explicam o porquê de o empresariado local ter perdido a eufo-
ria inicial.
A fala de Adriano de certa maneira explica as mudanças de estratégia
na política pública com a chegada de Tião Viana ao poder. Com Tião, inten-
sificaram-se os investimentos públicos na industrialização do estado (estado
empreendedor), principalmente na cadeia produtiva de proteína animal (boi,
peixe, porco e frango), além de tentativas mais contundentes para tentar
atrair empresários de fora do estado para a ZPE (se o empresariado local
não estava disposto e estava difícil atrair empreendedores de fora, o próprio
estado empreenderia).
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 203

Na visão do atual presidente da FIEAC, “hoje a ZPE não tem mais


sentido. Só gera despesas para o estado”. Para ele, o governo deveria se
desfazer da estrutura ou transformar o local em algo que gerasse empregos
(“pelo menos um”). Segundo relatou, “a FIEAC estuda sugerir ao governo
transformar a estrutura atual em uma usina fotovoltálica, para reduzir a conta
de energia do estado”.
Sobre a geração de despesas para o estado, o atual diretor da AZPE/AC
destacou que o governador estaria disposto até mesmo em doar as estruturas,
desde que fosse para “um empresário sério administrar”.
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Um ponto interessante na fala acima, diferente do afirmado pelos empre-


sários entrevistados (presidente e ex-presidente da FIEAC), é uma crença
pessoal que a ZPE não era a melhor estratégia. Para ele, o estado deveria ter
implementado um “Porto Seco”. Se assim tivesse feito, acredita Moraes que
as exportações e importações feitas pelo Acre, e através do Acre, estariam hoje
bastante dinamizadas. Vale observar que, de acordo com conversas informais
com técnicos que trabalharam no primeiro Grupo de Trabalho — GT que
elaborou o projeto da ZPE/AC, o “Porto Seco” teria sido mesmo a melhor
alternativa naquele momento, tecnicamente falando. Moraes avaliou a decisão
pela implantação de uma ZPE no lugar do “Porto Seco” como “precipitação
do governo da época55”.
O entrevistado Marcos Moares vê o Acre não como fim da linha, mas
como o início, ele acha que a saída para o desenvolvimento acontecer passa
pelo intercâmbio com o mercado externo (o entrevistado citou Costa Oeste
Americana e China). Só assim acredita que poderemos nos livrar da “econo-
mia do contracheque”. É possível inferir ainda da fala de Moraes que o Acre
precisa se industrializar e substituir importações (ele ainda indicou como
exemplo o leite “Piracanjuba”, que atualmente importamos).
Moraes avalia como um erro estratégico do governo Tião Viana permitiu
a construção de grandes plantas industriais, como a “Peixes da Amazônia”,
fora da ZPE. E foi taxativo: “como é que tendo uma ZPE pronta e alfandegada,
o governo constrói uma “Acreaves e uma Dom Porquito fora dessa área? Foi
um tiro no pé da gestão passada”.
Destacou também que até hoje recebe muitos investidores procurando
informações sobre a ZPE, e acredita que isso se deve ao alfandegamento.
Segundo Moraes, são poucos os estados brasileiros que possuem áreas para
implantação de indústrias devidamente alfandegadas. “Existem muitos aero-
portos alfandegados, mas áreas como a existente no Acre são poucas”. Entre-
tanto, ressalta que “esses empresários sempre desejam outros favorecimentos
que o Governo não pode dar”.

55 Quando falou isso, atribuiu ao governo Lula, e não ao governo do estado do Acre.
204

No tempo presente, a Zona de Processamento de Exportação do Acre está


sendo oferecida à venda segundo Moraes (no caso, venda da administradora
da ZPE). Inclusive, “aconteceu um leilão de venda amplamente anunciado
pelo governo do estado na mídia que teve como proposta uma empresa chi-
nesa interessada, que propôs um arremate no valor de 25 milhões de reais. A
empresa teria que fazer o aporte de 25% do valor, mas, como não realizou, esse
aporte a venda foi cancelada”, o entrevistado disse ainda que existem discus-
sões dentro do próprio governo revendo essa ideia de vender a administradora.
Para Mario Acunã, a ZPE “já nasceu morta”. O entrevistado afirma isso

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indicando que faltou planejamento no início. Segundo ele, os indicadores
técnicos para o processo de tomada de decisão foram insuficientes e preva-
leceu a política, Acunã ainda avalia que iniciativas como a ZPE devem ser
pensadas como estratégias de longo prazo. “O retorno só acontece em prazos
longo, e só se consolidam com tempo longo”, e exemplificou com algumas
cadeias produtivas na Europa, que só se consolidaram após quase um século,
destacando que a Assembleia Legislativa do Acre deveria ter produzido leis
pensando em consolidar a ZPE no longo prazo. Mario Acunã disse, ainda que
“o modelo político atual do Brasil não permite iniciativas de longo prazo”.
O entrevista acredita que uma ZPE poderia sim ser viável, mas desde
que “... fosse bem planejada tecnicamente e tivesse amplo apoio político e
logístico”, para ele, o Acre possui uma posição altamente estratégica (está
cercado por mais de 30 milhões de consumidores no lado andino e por esta-
dos importantes no lado brasileiro) e uma ZPE poderia ser o elo entre esses
consumidores. Para Mario, a ZPE/AC poderia alavancar três cadeias espe-
cíficas: a da madeira, a de proteína animal (gado, porco, frango e peixes) e a
de frutas, i. Isso traria uma grande “rotatividade para a economia”. Para ele,
a ZPE funcionaria como “uma espécie de gatilho para dinamizar a economia
acreana, mas foi muito mal planejada”.
Mario Acunã foi taxativo com relação aos motivos para o insucesso: “a
ZPE não estava de acordo com os melhores preceitos da economia mundial
e a equipe não realizou um estudo de viabilidade econômica e financeira
considerando o longo prazo”. Ele também fez críticas com relação às pessoas
colocadas pelo governo para trabalharem na ZPE. Segundo Mario, “ninguém
conhecia de mercado internacional”.

Considerações finais

Parece-nos muito claro que a crise estrutural do capital, iniciada em


2007/2008, deve ser considerada como fator importante na explicação do
não funcionamento da ZPE/AC. Com o rebate da crise no Brasil, o setor
externo da economia começou a passar por problemas trazendo consigo
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 205

variações cambiais que dificultaram enormemente a atração de empresários


para a ZPE/AC.
A questão da oferta de créditos também foi decisiva, principalmente no
início. Observa-se que a própria crise pode ter desestimulado os bancos a não
viabilizarem investimentos para os poucos empresários que se habilitaram.
Outro aspecto relaciona-se com a inexistência de escala de produtos com
certo potencial de mercado.
A euforia inicial do empresariado acreano logo passou quando eles se
deram conta que seriam obrigados a exportar 80% da produção. Em plena
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crise, quando o mundo não estava comprando e sem as habilidades, as com-


petências e, principalmente, sem experiência para atuação no mercado inter-
nacional, o interesse rapidamente desapareceu.
Sobre o empresariado local, vale dizer que ainda é bastante resistente aos
processos de mudanças e inovação, como também parece mais confortável em
situações com riscos não tão altos. Não à toa, percebe-se, na fala do presidente
da FIEAC, certa “cobrança” por garantias do governo para as empresas.
Questões como a insuficiência de mão de obra qualificada, logística de
transporte, limitações relacionadas com a baixa capacidade de investimentos
em P&D no estado podem e devem ser consideradas como fatores explicativos.
Apesar de parecer sem muita importância, merece atenção considerar
também as questões políticas envolvidas nas decisões tomadas pelos governos
do Acre no período analisado, como os citados cargos na ZPE, sempre ocu-
pados por pessoas sem experiência com o mercado internacional. As “ques-
tões políticas” também explicam a mudança no projeto de construção de um
“porto seco” para ZPE. Pelo que se pode observar, o próprio GT técnico que
elaborou o projeto inicial indicou pela continuação do “Porto Seco”, mas o
governo preferiu a outra estratégia.
Finaliza-se, então, apontado que as narrativas dos entrevistados apresen-
tadas, bem como a revisão crítica na documentação que foi possível fazer,
parecem descortinar algumas questões importantes relacionadas à iniciativa
da ZPE que, como visto, consumiu milhares de reais de recursos públicos.
Pensa-se ainda que essa pesquisa, realizada para a obtenção do título de Mestre
em Geografia, permitiu a demonstração da complexidade do objeto de estudo
enunciado no projeto da pesquisa. Ao mergulhar na bibliografia de referência,
especialmente na escuta dos entrevistados, percebeu-se que ainda há muito
que analisar através do que foi narrado e das condições de observação reali-
zada. Desse modo, uma condição se impôs para a vida acadêmica do autor:
a necessidade do continuar.
206

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Estado de Planejamento, 2017. Disponível em: http://acre.gov.br/wp-content/
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Acesso em: 8 fev. 2022.
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ÍNDICE REMISSIVO

A
Abastecimento de água 12, 152, 154, 162, 163, 165, 166, 172
Alunos 9, 11, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 98, 99, 100, 101, 103, 104,
105, 107, 108, 109, 110, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

C
Capital nacional 56, 57, 58, 62, 64, 81
Categorias geográficas 7, 11, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 100,
102, 103, 104, 105, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118
Ciências humanas 11, 87, 88, 95, 97, 100, 101, 102, 119, 148, 176
Conflitos no campo 11, 124, 125, 128, 145, 149
Conflitos por terra 124, 125, 126, 127, 132, 133, 134, 136, 137, 138, 139,
141, 142, 143, 144, 145

D
Discriminação 7, 10, 13, 14, 18, 19, 23, 25, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35

E
Energia elétrica 55, 64, 65, 69, 72, 73, 75, 76, 81, 82, 83
Ensino de geografia 7, 11, 88, 91, 111, 119, 120
Ensino fundamental 88, 89, 90, 94, 95, 97, 98, 100, 101, 103, 104, 107, 109,
110, 116, 117, 118, 119
Ensino médio 32, 88, 89, 94, 95, 96, 97, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 107,
109, 110, 117, 118, 119, 120
Entregador 46, 47, 48, 49, 50
Entrevista 21, 22, 24, 25, 27, 28, 29, 30, 32, 47, 48, 49, 50, 109, 184, 190, 204
Espaços de vivências 7, 11, 87, 88, 89, 90, 98, 100, 103, 104, 105, 108, 109,
110, 114, 115, 116, 117, 118
Exportação 7, 58, 69, 71, 81, 179, 180, 181, 182, 183, 187, 188, 189, 191,
193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 204, 206, 207
210

F
Famílias 16, 31, 32, 34, 39, 67, 136, 137, 138, 139, 141, 142, 143, 144, 145,
174, 206

G
Geração de energia 61, 62, 63, 64, 67, 69, 71, 75, 82
Governo federal 58, 60, 61, 63, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 81, 121, 180, 181,
193, 194, 199, 201

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I
Informação verbal 47, 48, 49, 50, 55, 74

M
Mercado de trabalho 15, 16, 18, 23, 36, 45, 57, 84
Mortes 77, 129, 130, 131
Mundo do trabalho 10, 37, 38, 41, 44, 50, 51, 96, 185

N
Negros e negras 7, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 23, 26, 28, 31, 33, 34, 35

P
Pessoas assassinadas 128, 129, 130
Preconceito 7, 10, 13, 14, 17, 18, 23, 26, 30, 31, 32, 33, 34, 35
Professores de geografia 11, 89, 91, 93, 109, 112, 116, 117
Professores entrevistados 106, 107, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 117, 118

R
Racismo 7, 10, 13, 14, 18, 23, 25, 26, 27, 28, 30, 32, 33, 34, 35
Região 9, 11, 24, 25, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 69, 70, 72, 74, 76, 80,
81, 82, 87, 93, 94, 95, 99, 100, 102, 108, 112, 113, 123, 128, 129, 130, 131,
135, 136, 137, 138, 165, 180, 182, 188, 190, 191, 192, 193, 195, 201, 202

S
Sala de aula 89, 90, 91, 93, 98, 99, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116
Século XX 14, 17, 18, 20, 23, 31, 33, 34, 42, 56, 64, 73, 151, 152
Setor elétrico 40, 61, 63, 64, 65, 68, 70, 71, 72, 73, 75, 85
TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E TRABALHO NA AMAZÔNIA SUL-OCIDENTAL 211

U
UFPA 5, 83, 84, 85, 86
Universidades amazônicas 83, 84, 85, 87

V
Vivências dos alunos 11, 88, 98, 100, 103, 104, 108, 109, 110, 114, 115,
116, 117
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Z
Zona de processamento de exportação 7, 179, 180, 181, 182, 189, 191, 193,
194, 197, 198, 199, 204
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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