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Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

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Leonia Cavalcante Teixeira
Leonardo Danziato
Ana Claudia Coelho Brito
Jean-Luc Gaspard
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS


DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Foto de Capa: De (a)bscenas a (a)bjetos, de Isabelle Montenegro
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

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D441

Destinos trágicos: efeitos da violência doméstica para as filhas e os filhos. / Leônia


Cavalcante Teixeira, Leonardo Danziato, Ana Cláudia Coelho Brito, Jean-Luc Gaspard (orgs.).
Curitiba : CRV, 2023.
198 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5075-8
ISBN Físico 978-65-251-5079-6
DOI 10.24824/978652515079.6

1. Psicologia 2. Psicanálise 3. Violência contra a mulher 4. Politicas públicas I. Teixeira,


Leônia Cavalcante, org. II. Danziato, Leonardo, org. III. Brito, Ana Cláudia Coelho, org. IV.
Gaspard, Jean-Luc, org. V. Título VI. Série.

CDU 159 CDD 150.1952


Índice para catálogo sistemático
1. Psicanalise – 150.1952

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
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Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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“Preciso lutar por mim, pela minha avó e pelos meus filhos!” – sobre
efeitos da escuta psicanalítica de uma mulher em contexto de violência.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 11
Leônia Cavalcante Teixeira
Leonardo Danziato
Ana Claudia Coelho Brito
Jean-Luc Gasspard

AS MANIFESTAÇÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:


compreender para intervir ............................................................................... 17
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Antônio Alberto Freitas


Magda Costa Silva
Verônica Salgueiro do Nascimento

A INCIDÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO CORPO DAS


CRIANÇAS:
contribuições a partir do trabalho em grupo .................................................... 29
Emilia Estivalet Broide
Marina Barreto Rogano
Patrícia Brandão de Lima
Ulisses Miranda

UM MENINO FILHO DA VIOLÊNCIA CONTRA SUA MÃE:


sobre os possíveis do manejo clínico em uma oficina terapêutica.................. 49
Leônia Cavalcante Teixeira
Ana Claudia Coelho Brito
Bruna Estrela Andrade Braga Rocha
Luciana Ribeiro Lira
Cimara Bandeira de Sousa Caldas

SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E SEXUAL:


possíveis efeitos na vida das crianças ............................................................ 63
Marjorie Machado
Karoline Bones Dill
Luciane De Conti
Rafael de Siqueira Fredi

A ESCUTA DE VIDAS DE ADOLESCENTES E MULHERES NEGRAS:


a violência de gênero e a transmissão de uma fábrica de dor ........................ 81
Rose Gurski
Dieine Mércia de Oliveira
Bruna Flores Bayer
Bruna Ferreira de Oliveira
Julia Dias Torman
Jéssica Michelle dos Santos Silva
DE ANTÍGONA A MARIA:
articulações sobre a identidade da lei jurídica................................................. 99
Aline Lima Tavares
Sonia Alberti

ENTRE A VIDA E A MORTE – VIOLÊNCIA, DESTINO E DISCURSO


ANALÍTICO .................................................................................................. 109
Nina Silva Prado Lessa
Angélica Bastos

“TÃO PEQUENA E UM PRONTUÁRIO TÃO GRANDE”:


intervenções psicanalíticas com crianças pequenas afetadas por

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violência doméstica ....................................................................................... 123
Elenice Cazanatto
Sandra Djambolakdjian Torossian

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: ressonâncias traumáticas e seus efeitos no


desempenho escolar ..................................................................................... 139
Paloma Rodrigues Martins
Luciana Gageiro Coutinho

DUPLO DESAMPARO:
crianças em condição de orfandade por covid-19 e pela ausência (quase
total) de proteção pelo poder público ............................................................ 155
Ângela de Alencar Araripe Pinheiro

DEVIR FEMINISTA: por um comum que não a violência ............................ 171


Cláudia Maria Perrone
Juliana Martins Costa Rancich
Gabriela Gomes da Silva
Flávia Tridapalli Buechler

A CRIANÇA E O CASAL PARENTAL ENTRE A TUTELA E A


PROTEÇÃO ESTATAL ................................................................................ 181
Eduardo Ponte Brandão

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 193

DADOS DE AUTORAS E AUTORES ......................................................... 197


APRESENTAÇÃO
Este livro ilumina aspectos da violência contra a mulher que são pouco
debatidos e que se relacionam com as implicações da situação de violência
doméstica para filhas e filhos.
Estes aspectos, embora extremamente graves e com consequências
danosas para as vidas de crianças e de adolescentes, pouco comparecem na
literatura especializada. Os equipamentos e dispositivos de proteção e de
cuidado destinados às mulheres em sofrimento vem se organizando cada
vez mais, graças às lutas da sociedade civil e das áreas jurídica, assistencial
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e psicológica.
No que diz respeito às questões subjetivas, os setores de atendimento
psicossocial da casa da Mulher Brasileira são fundamentais para que sofri-
mentos, antes não validados, possam ser falados e reconhecidos.
Quando mulheres em situação de violência são escutadas é frequente
narrarem uma via crucis para conseguirem ter suas queixas de sofrimento
legitimadas. Além da revitimização dos aparatos da justiça e de assistência
social, a dor também diz respeito á dor das filhas e filhos, sendo, muitas vezes,
em nome deles que suas mães dizem ter força e coragem para denunciar e
sustentar a decisão de saírem do ciclo de violência.
Este livro contem discussões advindas da clínica psicanalítica e psi-
cossocial, bem como de situações da cultura e de contextos institucionais.
O capítulo “Manifestações da violência doméstica: compreender para
intervir” objetiva produzir conhecimento e estimular reflexões sobre a pro-
blemática da violência, ao definir como parâmetro principal as manifestações
da violência doméstica contra a mulher. Utilizou-se o modelo de abordagem
qualitativa, sendo realizada uma pesquisa exploratória para desenvolver uma
familiaridade com a temática, a partir de uma investigação bibliográfica. O
estudo ressaltou as diferentes formas de violência contra a mulher e eviden-
ciou leis de proteção à mulher no Brasil.
“A Incidência da Violência Doméstica no Corpo das Crianças: Contri-
buições a partir do Trabalho mm Grupo” é título do segundo capítulo e se
destina a abordar a incidência da violência doméstica na constituição psíquica
das crianças, a partir do trabalho clínico grupal, sendo este compreendido
como um dispositivo privilegiado nesses contextos, de modo a possibilitar a
narrativa do sofrimento vivido e as vias para sua elaboração. Para tanto apre-
senta o relato de dois grupos, o primeiro realizado com crianças com idade
de seis a nove anos e o segundo com crianças de 10 a 12 anos. Na clínica
psicanalítica com crianças o corpo se impõe e as narrativas se apresentam
12

vivas em intensidade e expressividade corporal. Constata-se que, nos grupos


realizados, as falas e os comportamentos das crianças abordaram posições
opostas: ora agentes da violência, ora vítimas de relações abusivas. A impor-
tância do trabalho clínico grupal se revela pela possibilidade do acolhimento
do sofrimento e pelo compartilhamento das experiências das crianças pelo
corpo e pela fala. É ratificada a importância da não banalização das situações
de violência no interior das famílias, bem como o lugar do psicanalista no
trabalho clínico com crianças diante da constatação da violência doméstica.
O capítulo três é nomeado “Um menino filho da violência contra sua
mãe: sobre os possíveis do manejo clínico em uma oficina terapêutica” e
tem foco na discussão clínica de uma caso de uma criança acompanhada em

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uma oficina terapêutica. A oficina terapêutica constituiu dispositivo clínico-
-institucional de um projeto de atendimento e pesquisa com filhas e filhos
de mulheres em situação de violência com medidas protetivas impetradas
contra seus (ex)companheiros e (ex)maridos. O caso de Ugli adverte para
o quão sofrida pode estar uma criança perdida entre seus pais, objetalizada
em um processo judicial necessário, porém, muitas vezes, reducionista, já
que parece ter poucos recursos para apreender as vicissitudes singulares.
O capítulo 4 é intitulado “Situações de violência doméstica e sexual:
possíveis efeitos na vida das crianças” e se propõe a esboçar, a partir do aporte
da psicanálise freudolacaniana, possíveis efeitos da violência doméstica na
vida de crianças que vivenciaram diversas situações de violência intrafami-
liar, entre elas a sexual. Para isso, utilizamos como método recortes clínicos
de um caso acompanhado por duas das autoras deste escrito, que atuaram
em diferentes serviços da Rede Pública de um município do interior do Rio
Grande do Sul. A leitura-escuta dos fragmentos do caso permitem apontar
alguns significantes que se destacam nos diferentes movimentos delineados
pelas crianças envolvidas nas situações de violência em suas tentativas de
dar bordas a isso que aconteceu com elas, indicando a transgeracionalidade
da violência e os impactos singulares no corpo e na vida de cada membro
dessa família.
“A escuta de vidas de adolescentes e mulheres negras que importam: a
violência de gênero e a transmissão de uma “fábrica de dor” se debruça sobre
uma intervenção desenvolvida a partir da escuta-flânerie (1) em um Coletivo
de mulheres da periferia denominado Preta Velha, localizado no município
de Porto Alegre/RS. O referido Coletivo surgiu a partir da inconformidade
das mulheres dessa comunidade com a violência que elas, seus filhos e filhas
vivenciam cotidianamente. A construção do Coletivo, não por acaso, tem
como questão nodal a figura da mulher preta e seu lugar no laço social.
Depois de alguns meses de escuta dessas mulheres, de suas filhas e filhos, as
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 13

experiências e narrativas ali colhidas foram cruciais para melhor compreender


qual a importância dessas mulheres e meninas para o laço social. O lugar da
mulher preta na sociedade brasileira e quais efeitos que este lugar produz para
as novas gerações de meninas e adolescentes negras - especialmente à luz
das situações de violência que sofrem, foi interrogado. Autoras como Lélia
Gonzalez, Djamila Ribeiro e Bell Hooks foram referências teóricas para a
escrita. A partir da fala de uma das mulheres sobre mulheres da comunidade
serem “fábrica(s) de filhos”, a transmissão da violência de mãe para filha foi
questionada como uma “fábrica de dor”.
“De Antígona a Maria: articulações sobre a identidade da lei jurí-
dica” questiona a eficácia jurídica da adoção e os efeitos subjetivos que
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surgem a partir desta medida. A interface entre Direito e Psicologia testemu-


nha o quanto a Justiça brasileira, mais especificamente as Varas da Infância
e Juventude, tornam-se violentas quando partem da premissa genérica de
que “todos são iguais perante a lei”. As chamadas “devoluções” de crianças
e adolescentes são problematizadas no texto.
O capítulo “Entre a vida e a morte – violência, destino e discurso analí-
tico” destaca-se o relato de situações de violência, na escuta psicanalítica em
clínica-escola e nos serviços públicos de saúde, que não raramente culminam
em morte. É próprio da violência envolver ou resultar em passagens ao ato
que deixam nos sujeitos marcas psíquicas indeléveis em busca de leitura
na clínica. Oferecer a escuta psicanalítica a sujeitos cuja vida se encontra
atravessada pela violência, em muitos casos inseparável da necropolítica,
parece ser o fazer que compete aos psicanalistas, especialmente quando
consideramos que os efeitos da violência se propagam de uma geração a
outra, minando as forças da vida.
O texto “Tão pequena e um prontuário tão grande”: intervenções psi-
canalíticas com crianças pequenas afetadas por violência doméstica” se pro-
põe a apresentar as possibilidades de intervenção com crianças pequenas
cuja infância se inicia em contextos de violência. A proposta se sustenta
nos pressupostos de que a criança pequena sofre, comunica e é sensível
aos significantes que encontra nos espaços de tratamento e/ou proteção por
onde ela circula. A partir dos fios do transitivismo e do brincar, noções nada
novas em Psicanálise, texto propõe um outro enodamento, na esperança de
contribuir para que, no que concerne às situações de violência que assolam
o país, outros deslocamentos sejam possíveis.
“Violência doméstica: Ressonâncias traumáticas e seus efeitos no
desempenho escolar” aborda a violência doméstica e suas ressonâncias que
se presentificam no cotidiano de nas diversas famílias brasileiras. Efeitos
no desempenho escolar são frequentemente percebidos quando crianças e
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adolescentes presenciam um ambiente familiar violento. O presente estudo


dedica-se a entender a relação entre a violência intrafamiliar e o trauma
apresentado por crianças e adolescentes envolvidos nesta condição. A partir
da psicanálise, supomos que o trauma pode ser instaurado quando não há
viabilidade de recorrer aos processos de simbolização. Sendo assim, a falta
de elaboração leva à internalização de vivências traumáticas, que podem ter
como um de seus efeitos alguns entraves no desempenho escolar.
O texto “Duplo desamparo: Crianças em Condição de Orfandade por
covid-19 e pela Ausência (quase total) de Proteção pelo Poder Público”
objetiva abordar, como relato de experiência, a Orfandade de crianças e ado-
lescentes por covid-19, que vem ocorrendo no Mundo e no País, em escala

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numérica assustadora – talvez a mais grave, trágica, complexa, urgente e
delicada consequência da Pandemia iniciada em março de 2020. São enfo-
cadas duas dimensões, umbilicalmente interligadas: a trajetória de uma ini-
ciativa de forças sociais no Ceará, a Articulação em Apoio à Orfandade
de Crianças e Adolescentes por covid-19 (AOCA), e o desamparo desses
sujeitos sociais em decorrência de uma série de omissões impetradas por
parte do Poder Público Estadual e Municipal, particularmente do Governo
do Ceará e da Prefeitura de Fortaleza, em cumprir os preceitos legais, que
estabelecem prioridade absoluta na destinação de recursos e no trato público
de crianças e adolescentes. Trata-se de duplo desamparo – sentimento central
na orfandade e diante da (quase total) ausência do Poder Público há mais de
três anos, em termos de implantação de ações significativas e abrangentes
de acolhida, proteção e cuidado com crianças e adolescentes em condição
de orfandade por covid-19.
O capítulo onze é intitulado “Devir feminista: por um comum que não a
violência” apresenta uma discussão acerca dos efeitos da violência doméstica
a partir da experiência clínicopolítica de escuta no território do Coletivo de
mulheres, realizada através de um projeto de extensão universitária, em
uma periferia da cidade de Porto Alegre. Destaca que esse Coletivo cria
alternativas frente às violências, como espaço de acolhimento, capacitação
e formação política com as mulheres. Ante os pontos expostos e as refle-
xões feitas, compreende que o efeito da violência, para além do trauma,
pode ser elaborado coletivamente pela via de um despertar, a partir de uma
posição crítica. O texto aponta que é por meio da consciência das estruturas
de violência inscritas no território e no laço social que surge o desejo de
transformação e a possibilidade de um outro comum, para além do comum
da violência sofrida.
Com o título “A Criança e o Casal Parental entre a Tutela e a Proteção
Estatal: aportes psicanalíticos”, o último capítulo desta coletânea propõe
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 15

uma releitura das relações interpessoais entre ex-parceiros amorosos que se


atormentam judicialmente com os filhos em comum. A judicialização dessas
relações resultam, frequentemente, no prolongamento do sofrimento psíquico
dos membros familiares, sobretudo, da criança que ocupa um lugar peculiar
em meio à dialética de desejo e de gozo do casal familiar em litígio.
A partir deste rico material, a equipe organizadora desta coeltânea espera
contribuir para olhares menos estigmatizantes e revitimizantes sobre crianças
e adolescentes que tem suas vidas constituídas, atravessadas e implicadas
em e por contextos de violência.
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Leônia Cavalcante Teixeira


Leonardo Danziato
Ana Claudia Coelho Brito
Jean-Luc Gaspard
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AS MANIFESTAÇÕES
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
compreender para intervir
Antônio Alberto Freitas1
Magda Costa Silva2
Verônica Salgueiro do Nascimento3

Introdução
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Pela especificidade do tema, este trabalho se propõe a produzir conheci-


mento e estimular reflexões sobre a problemática da violência, definindo como
parâmetro principal as manifestações da violência doméstica contra a mulher.
Violência, para a Organização Mundial de Saúde, é compreendida pelo
uso intencional da força física ou do poder, real ou ameaça, contra si próprio,
contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou
tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico,
deficiência de desenvolvimento ou privação (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi
& Lozano, 2002).
A Organização das Nações Unidas (ONU) define “violência contra a
mulher” como todo ato de violência praticado por motivos de gênero, dirigido
contra uma mulher (Gonçalves, Rocha & Ferreira, 2021). Ainda na intersecção
de marcador de gênero, tem-se a violência doméstica contra a mulher, que,
de acordo com a definição do artigo 5º da Lei Maria da Penha, se caracteriza
como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Alguns estudiosos concordam que esse tipo de violência sempre existiu e está
relacionada a múltiplos fatores, sobretudo questões de gênero.
No debate da violência doméstica contra a mulher, a maioria das vítimas
permanece coagida a um relacionamento baseado, muitas vezes, na dependência
1 Graduado em Administração Pública pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira (Unilab). Mestrando em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará
(PPGAPP/UFC). Pesquisador da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FUNCAP).
2 Graduada em Direito pela UNILEÃO. Advogada OAB/CE. Especialista em Direito Processual Civil (URCA).
Pós-Graduanda em Direitos Humanos e em Direito Penal (PUC/RS). Mestranda em Avaliação de Políticas
Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
3 Psicóloga, possui doutorado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2009) e Pós-Doutorado no
programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015). Professora
da Universidade Federal do Ceará (UFC).
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financeira e emocional, resultando num ciclo contínuo de violência. Na maioria


das vezes, a violência foi cometida pelo próprio parceiro, na residência (Côrtes,
2012). Estatísticas alarmantes são divulgadas ano após ano sobre a violência
contra as mulheres. Segundo dados da do Instituto de Economia Aplicada
(IPEA), o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019,
sendo que 67% das vítimas eram negras (Gomes & de Souza Nunes, 2022).
É importante coibir práticas de violência, de modo a combater ações que
violam os direitos humanos. Os atos de violência podem estar associados a vários
problemas complexos e de diferentes naturezas. Também podem estar ligados a
compreensões de conceitos importantes, tais como: poder e coação; vontade cons-
ciente e impulso; determinismo e liberdade (Lopes, da Silva & dos Santos, 2020).

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A Lei n° 11.340/06 – Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, define os tipos de violên-
cia, delimitando cinco domínios, a saber: física, psicológica, sexual, moral
e patrimonial. A literatura é vasta em descrever as dimensões da violência e
suas possíveis consequências para a saúde e o bem-estar. A violência domés-
tica contra a mulher atinge repercussões em vários aspectos da sua vida, no
trabalho, nas relações sociais e na saúde (física e psicológica).
Este estudo está composto por 5 sessões, iniciando por esta com as pri-
meiras considerações. Na segunda sessão, são apresentados os aspectos meto-
dológicos. Na terceira, o trabalho descreve as diferentes formas de violência
contra a mulher (física, patrimonial, sexual, moral e psicológica). Na quarta,
são evidenciais leis de proteção à mulher no Brasil. Na quinta, o estudo reflete
sobre a justiça restaurativa no âmbito dos crimes de violência doméstica. A
última sessão assinala reflexões que ensejam a continuidade dos estudos para
o refinamento da proposta aqui delineada.

Metodologia

Toda pesquisa é desenvolvida a partir de uma inquietação e busca contribuir


com o universo científico através dos diferentes estilos e percursos metodoló-
gicos. Trata-se de uma pesquisa exploratória, realizada por meio de estudos
bibliográficos sobre a temática abordada. Para Gil (2019), o principal objetivo
da pesquisa exploratória é proporcionar maior familiaridade com o problema,
para torná-lo mais explícito. De acordo com Fonseca (2002), a pesquisa biblio-
gráfica representa a busca sistemática de conhecimentos sobre o assunto, do que
já existe, o que os diferentes autores já discutiram, propuseram ou realizaram.
Utiliza-se de uma abordagem qualitativa, voltada para conceitos impor-
tantes que compõem os debates na temática da violência doméstica. De acordo
com Marconi e Lakatos (2011, p. 269) a abordagem qualitativa “preocupa-se
em analisar e interpretar aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 19

do comportamento humano. Fornece análise mais detalhada sobre as investi-


gações, hábitos, atitudes, tendências de comportamento”. Diante disso, é mais
flexível, com uma percepção detalhada dos aspectos situacionais apresentados
pelas fontes consultadas.
Partindo do percurso metodológico exposto nesta sessão, o estudo intenta
contribuir para a divulgação da temática, sendo de suma importância para
ampliar a conscientização da sociedade e das vítimas sobre leis que asseguram
direitos e proteção das mulheres.

Manifestações da violência contra a mulher: saber para identificar


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A família é a instituição social mais antiga criada pela humanidade, seu


modelo clássico é baseado no ponto de vista patriarcal, onde o “homem da
casa” chefiava a família e todos estavam ligados por laços sanguíneos ou
matrimoniais. Sabemos que hoje esse conceito se modificou, de modo que
pessoas que compartilham de um mesmo lar e de laços afetivos também se
caracterizam como família (Baluta, 2019).
A família, mesmo sendo socialmente construída como um lugar de amor,
proteção e respeito, a violência também se mostra visível entre os próprios
membros da família e independe de classes sociais e econômicas. Mas nem
sempre essa é a realidade e, onde deveria existir segurança, ganha lugar a
violência (Baluta, 2019).
A violência se desdobra de inúmeras conjunturas no meio social, familiar
e individual. São expressões trágicas que permeiam as relações humanas, que
podem demonstrar necessidades não atendidas, culturas egoístas e sentimentos
negativos que transpassam as circunstâncias e se difundem no meio social.
Desse modo, faz-se importante trazer um conceito de violência, bem como
entrelaçar com a ética, vejamos o que aduz Marilena Chauí:

Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física


e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrária
a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária a seu corpo e à sua
consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte,
a loucura, a agressão ou a agressão aos outros. Quando uma cultura e uma
sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício circunscre-
vem aquilo que julgam violência contra um indivíduo ou contra o grupo.
Simultaneamente, erguem valores positivos – o bem e a virtude – como
barreiras éticas contra a violência (1999, p. 336).

Conforme preceitua Chauí (1999), quando uma sociedade e uma cultura


definem o que são condutas criminosas, logo, erguem valores. É tanto que
a norma jurídica deve carregar as características tridimensionais, tratada na
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teoria da tridimensionalidade proposta por Miguel Reale, segundo o autor,


o direito deve ter o fato, o valor e a norma em qualquer expressão da vida
jurídica (Gonzaga & Roque, 2017).
A partir desse contexto, pode-se captar que o direito visa assegurar valo-
res dos acontecimentos reais da vida, sendo protegidos pela norma. Contudo,
cada época traduz seus valores, culturas diferentes e em decorrência disso,
possuem valorações diferentes, dentre tantas outras acepções e desdobra-
mentos ao longo da vida social. A verdade é que fatos antes ignorados ou
não valorados, hoje estão sendo tutelados pelo direito. Nesse âmbito, uma
proteção que o direito vem trabalhando é a proteção da mulher, a questão de
gênero e os desdobramentos dentro do âmbito doméstico.

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Embora essa preocupação com a questão de gênero, sobretudo da mulher,
enquanto sujeito de direitos, dentro de uma desigualdade gritante em diversos
âmbitos da vida civil, tenha despertado tarde, ela vem tomando acepções
grandiosas, como foi a conquista do voto feminino, em 1932, da Lei Maria
da Penha, em 2006 e da mais vasta legislação contra a violência de gênero e
em especial a violência doméstica, mais adiante aprofundada
A violência pode se propagar de inúmeras formas, como já tratamos no
começo desta seção. Partindo desse pressuposto, o legislador se preocupou
em definir os tipos de violência que permeiam a violência doméstica e fami-
liar contra a mulher. Na Lei Maria da Penha, em seu artigo 7º, foi definido as
formas de violência, a saber:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,


entre outras:
I – A violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II – A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique
e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, cons-
trangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer
outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – A violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matri-
mônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chanta-
gem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos;
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 21

IV – A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que


configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus obje-
tos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e
direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades;
V – A violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.

Isto é, dentro do corpo legal, há cinco formas de manifestação da vio-


lência e essas cinco formas podem se propagar de várias formas, inclusive
podendo ser praticada na esfera virtual, que já existem previsões legais mais
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especificas para isso. Passemos a abordar cada forma de violência de forma


especifica, detalhada com base na exposição da Lei 11.340/06.
A primeira e mais comum é a violência física, fácil de ser percebida,
tanto por quem presencia, como no momento da queixa da vítima, através
do exame de copo delito realizado pela perícia forense. Portanto, se trata de
qualquer ofensa a integridade física, podendo trazer, como exemplo, o arre-
messo de objetos, espancamento e tortura. A segunda forma de violência está
ligada ao dano emocional, aquilo que perturba psiquicamente e compromete o
desenvolvimento da mulher, a exemplo, podemos citar a manipulação, amea-
ças e insultos. A violência sexual, terceira forma de manifestação exposto
pela lei, se trata de forçar a mulher a práticas abusivas de atos libidinosos,
podendo ser de forma direta – praticando o ato – ou indireta – presenciando
–, sem necessariamente praticar o ato, ou por qualquer outro meio exponha
sua sexualidade, além de impedir que a mulher use meios contraceptivos, bem
como force a gravidez, o matrimônio ou ao aborto.
A quarta forma de violência disciplinada na Lei Maria da Penha, é a
violência matrimonial, ela está relacionada a retenção dos objetos, docu-
mentos pessoais, valores ou qualquer recurso econômico, temos a exemplo
controlar o dinheiro da vítima, destruir seus documentos ou objetos de uso
pessoal e privar seus recursos econômicos, dentre tantos outros. E por fim,
porém não menos relevante dentro do cenário de violências contra a mulher
no âmbito doméstico, a violência moral, ela está intrinsecamente ligada a
honra do sujeito, configurando a calúnia, injúria e/ou difamação.
Vamos compreender a diferença entre essas condutas criminosas definidas
como violência moral pela Lei Maria da Penha. A calúnia está ligada ao fato
de o agente imputar fato criminoso (previsto em lei) a uma outra pessoa, no
caso da injúria, se trata de imputar ofensa a dignidade, usando de adjetivos
desonrosos e por último a difamação, que constitui quando o agente ofende a
vítima com imputando-lhe fato desonroso, contudo, não utilizando adjetivos
desonrosos, mas apenas condutas.
22

Vale ressaltar que conhecer as formas como a violência pode se mani-


festar e a legislação que a engloba é de suma importância para identificá-la
no dia a dia, bem como para se buscar a defesa contra essa violência, antes
que implique em consequências irremediáveis (Barbosa, (2019).

Legislação protetora das mulheres: desenvolvimento histórico

Em 7 de agosto de 2006, foi criada a Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da


Penha, legislação para coibir a violência doméstica e familiar. Após muita luta
e violência enfrentada por Maria da Penha Maia Fernandes, mulher, brasileira,
farmacêutica e vítima de uma lamentável violência de gênero. Inserida em

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um cenário de omissão legislativa de proteção a violência doméstica, Maria
da Penha sofreu uma tentativa de homicídio que a deixou paraplégica, o autor
do crime foi seu ex-marido Marco Antonio Herredia Viveros, que ao tempo
do crime era seu marido, o que sinaliza não se trata de uma violência isolada,
mas de um conjunto de violência praticadas ao longo da sua viga conjugal
(Lacerda & Borba, 2022)
A referida legislação, ao longo dos anos foi ganhando detalhamentos e
melhoramentos para que alcance com mais efetividade o combate a violência
doméstica, bem como influenciou outras legislações a se adaptarem a essa
forma de violência. Um marco importante de alteração da Lei Maria da Penha
foi a determinação do registro imediato das medidas protetivas de urgência
pela autoridade judicial, tanto para a mulher vítima da violência como seus
dependentes. Essa alteração se deu pela lei nº 14.310/22. Ainda vale ressaltar
que após o registro da ocorrência da violência doméstica, a mulher não pode
mais retirar a queixa, pois, em detrimento da Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade (ADI) nº 4424, as ações desta natureza são ações públicas incondi-
cionadas (Portal Supremo Tribunal Federal, 2023).
As influências e apropriações para que o combate à violência aconteça
não para. Um decreto-lei de nº 13.104 de 2015 – lei do feminicídio, alterou
o texto do art. 121 do Código Penal e determinou o feminicídio como qua-
lificadora do crime de homicídio, sendo considerado hediondo e a pena em
abstrato pode chegar a 30 (trinta) anos. Ainda no âmbito da saúde da mulher
vítima dessa violência foi instituída a lei nº 12.845/2013 – Lei do minuto
seguinte, que garante o amparo médico em todas as áreas da saúde, desde a
psicológica até a preventiva, de forma gratuita e integral, ainda em relação
entidades de saúde, ficou instituída pela lei nº 13.931/19, a notificação com-
pulsória dos casos de violência doméstica, seja em instituições públicas ou
privadas, comunicando às autoridades competentes, no prazo de 24h, tomar
as providências cabíveis.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 23

Outra modificação no Código Penal foi a tipificação dos crimes impor-


tunação sexual de divulgação de crimes de estupro, tornando a ação penal em
relação a esse crime como pública incondicionada. Para além disso, houve
uma alteração na lei nº 10.446/02 – que dispõe sobre infrações penais de
repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme,
pela lei nº 13.642/18, onde acrescenta a atribuição à Policia Federal para
investigar crimes praticados na rede mundial de computadores relacionados
a conteúdos que propagam a aversão às mulheres.
Assim, como a denominação dada a lei nº 11.340/06 – Lei Maria da
Penha, outras leis homenagearam mulheres vítimas de violência, como é o
caso da Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/12) e a Lei Joanna Maranhão
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(Lei nº 12.650/15).
Carolina Dieckmann Worcman, brasileira, atriz, foi vítima de um hacker
que invadiu o seu computador pessoal e teve acesso a algumas fotos intimas
da atriz, exigindo que a mesma lhe desse dinheiro para não tornar as imagens
públicas, e foi a partir desse marco que se tomou a iniciativa e preocupação
de amparar os crimes dessa natureza, quais sejam, os crimes cibernéticos
(Oliveira & Giordano, 2021).
Nesse mesmo diapasão, porém, com outro tipo de violência, Joanna de
Albuquerque Maranhão Bezerra de Melo, brasileira, ex-nadadora, vítima de
abuso sexual em sua infância, quando tinha 9 (nove) anos, pelo seu treinador,
a lei determinou que o prazo prescricional para os casos de abuso sexual de
crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a criança completa
18 (dezoito) anos, assim, desde a aprovação da lei em 2012, que as vítimas
desse tipo de violência ganham mais tempo para denunciar seus abusadores
(Oliveira & Giordano, 2021).
Em 2021, no cenário pandêmico, foi criada a campanha sinal vermelho
contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, com finalidade de
denunciar as violências contra a mulher através de um canal. Referida campanha
levou a criação da Lei nº 14.188/2021, que a definiu como medida de enfrenta-
mento a violência doméstica, bem como alterou, o Código Penal para enrijecer
as penas de lesão corporal simples cometida contra mulher pela condição de
sexo feminino, além de incluir o crime de violência psicológica contra a mulher.
Em relação a inclusão da mulher na política foi inserido através da lei
nº 14.192/21, que alterou o Código Eleitoral, no que dispõe a combater a
violência política contra a mulher, assegurando a participação de mulheres
em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatos. E para
finalizar o aspecto legislativo, houve uma alteração na Lei de Execução Penal
– LEP, pela lei nº 14.326/22, em que garante à mulher gestante ou puérpera
um tratamento humanitário, bem como assistência integral à sua saúde e
do recém-nascido.
24

Através de muita luta e envergadura social o combate a violência contra a


mulher vem sendo desenvolvida e dando aparato às mulheres, contudo, embora
tenha tanta legislação acerca da violência contra a mulher os números que
permeiam essa violência de gênero são preocupantes. Há uma necessidade de
empoderamento em mais diversos âmbitos para que as mulheres se enxerguem
inseridas no contexto da violência.
A agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), possui no seu
objetivo número 5 – igualdade de gênero, e vem trabalhando com esse objetivo
para o desenvolvimento sustentável, a finalidade da agenda é proporcionar
uma qualidade de vida para a presente e a futura geração, com direitos iguais
ao acesso de recursos naturais e sociais (ONU Brasil, 2015).

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Considerações finais

Este estudo procurou evidenciar mecanismos de enfrentamento e de apoio


que visam romper com o ciclo de violência de gênero que as mulheres sofrem
diariamente. Partindo dessa compreensão, assinalou o quão essencial torna-se
a propagação de informações que possam contribuir e instigar o aprofunda-
mento e o entendimento da temática por parte da comunidade acadêmica e
da sociedade, em especial, das mulheres.
A discussão de gênero se faz fundamental e deve ser forte no tocante
das políticas já alcançadas, que carecem de maior controle para que sejam
implementadas da maneira que foram idealizadas. O esforço de fiscalizar e
cobrar inclui, de forma primordial, a participação e controle social, exercido
como forma de pressionar os tomadores de decisões, no âmbito da organiza-
ção de serviços.
Este estudo pode ser considerado introdutório para pesquisas futuras.
Dessa forma, propõem-se a realização estudos posteriores nesta esfera com
o intuito de aprofundar a compreensão do fenômeno da violência doméstica
contra as mulheres.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 25

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26

Lei nª 10.446, de 8 de maio de 2002. Dispõe sobre infrações penais de reper-


cussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme, para
os fins do disposto no inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição. Brasília,
DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2002/l10446.htm

Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violên-


cia doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a cria-

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ção dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.

Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obri-


gatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Brasília, DF:
Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm

Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação crimi-


nal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 – Código Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência
da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato-
2011-2014/2012/lei/l12737.htm.

Lei nº 13.642, de 3 abril de 2018. Altera a Lei nº 10.446, de 8 de maio de


2002, para acrescentar atribuição à Polícia Federal no que concerne à inves-
tigação de crimes praticados por meio da rede mundial de computadores
que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o
ódio ou a aversão às mulheres. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13642.htm

Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de


novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de
suspeita de violência contra a mulher. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13931.htm

Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº


2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 27

como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº


8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes
hediondos. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm.

Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal


Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfren-
tamento da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei
nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), em todo o território nacional;
e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),
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para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida


contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo
penal de violência psicológica contra a mulher. Brasília, DF: Presidência
da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato-
2019-2022/2021/lei/l14188.htm

Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, repri-


mir e combater a violência política contra a mulher; e altera a Lei nº 4.737, de
15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de
1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997
(Lei das Eleições), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo
com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a
violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres
em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições
proporcionais. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm

Lei nº 14.310, de 8 de março de 2022. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto


de 2006 (Lei Maria da Penha), para determinar o registro imediato, pela
autoridade judicial, das medidas protetivas de urgência deferidas em favor da
mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes.
Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14310.htm.

Lei nº 14.326, de 12 de abril de 2022. Altera a Lei nº 7.210, de 11 de julho de


1984 (Lei de Execução Penal), para assegurar à mulher presa gestante ou puér-
pera tratamento humanitário antes e durante o trabalho de parto e no período
de puerpério, bem como assistência integral à sua saúde e à do recém-nascido.
Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/l14326.htm
28

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edição em 13 de outubro de 2015. https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-
09/agenda2030-pt-br.pdf.
A INCIDÊNCIA DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA NO CORPO
DAS CRIANÇAS:
contribuições a partir do trabalho em grupo
Emilia Estivalet Broide4
Marina Barreto Rogano5
Patrícia Brandão de Lima6
Ulisses Miranda7
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Se há fala, o corpo está implicado. Mas quando o corpo exposto na cena


grupal cria situações violentas que sobrepujam, excedem a palavra? Consi-
deramos que o trabalho grupal pode ser um modo de lidar com tal excesso.
O trabalho analítico com grupos busca criar repertório simbólico, a partir da
associação livre dos seus integrantes, para que aquilo que aparece nas cenas de
briga e guerra possa encontrar guarida e novos sentidos. As crianças aprontam,
se permitem ousar. Vão além do sabido, investigam no grupo com outros as
possibilidades de seu saber. Por isso é importante que, ligada à brincadeira,
os coordenadores dos grupos deem relevo à fala, pois esta pode revelar algo
para além do dito e do exposto corporalmente. Cada integrante na trama
grupal vai constituindo uma narrativa própria que traz muito do vivenciado
em casa, nas relações domésticas, e permite reconstruções diante do drama.

Grupo de crianças de seis a nove anos8

Estava chovendo, de forma que poucas crianças vieram ao grupo. Pri-


meiro chegou Pedro, e na sequência, os irmãos Camila e Caio, cada um com
um guarda-chuva. Enquanto as coordenadoras esperavam a chegada de outros
participantes, os presentes começaram uma brincadeira entre si. Caio e Camila

4 Psicanalista, graduada em psicologia pela PUCRS; mestre em Saúde Pública pela FSPUSP; doutora em
Psicologia Social pela PUCSP; pós-doutora em Psicologia Clínica pela USP. Integrante da REDE SUR
psicanálise e intervenção social; autora de diversos livros e artigos em psicanálise.
5 Psicóloga graduada pela PUCSP. Integrante da REDE SUR psicanálise e intervenção social e do Grupo
Reinserir Psicologia.
6 Psicóloga graduada pela PUCSP, psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae. Integrante da
REDE SUR psicanálise e intervenção social e do Grupo Reinserir Psicologia.
7 Psicólogo graduado pela PUCSP, psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae, integrante do
Grupo Reinserir Psicologia.
8 Grupo coordenado por Marina Rogano e Patrícia Brandão.
30

utilizaram os guarda-chuvas como espadas, simulando uma competição de


esgrima, dando o tom das temáticas que viriam a ser trabalhadas pelo grupo
ao longo do encontro: agressividade, brigas e formas de resolução de conflitos.
Camila está interessada em brincar com o irmão Caio, mal olha para
Pedro, mas Caio a acusa de estar atacando Pedro, e diz que irá protegê-lo. O
contexto da brincadeira é lançado e eles iniciam uma batalha voraz pela defesa/
ataque de Pedro. Este, por sua vez, acha graça de tudo, fica atrás do amigo
que o defende, provocando a atacante de todas as maneiras, com falas como:
“você não me pega!” ou “vamos acabar com você!”. As espadas já não eram
mais suficientes para dar conta do conflito. As cadeiras da sala passam a ser
usadas como barricadas e outros brinquedos da caixa lúdica são transformados

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em bombas e projéteis. Estamos diante de uma guerra, e é justamente isso o
que as crianças gritam enquanto atiram e se defendem.
Nesse momento, as coordenadoras intervêm fazendo pontuações, preo-
cupadas em marcar para as crianças a crescente intensidade da brincadeira,
mas deixando que elas externalizassem as dinâmicas violentas que a brin-
cadeira tematizava.
“Nossa, nessa guerra ninguém se salva, até nós estamos sendo
atingidas!”
“O Pedro não parece tão indefeso, será que ele precisa dessa pro-
teção toda?”
“Por que será que estão em guerra?”
Camila agora se esconde atrás de uma cadeira, que ela diz ser seu campo
de força. Tal cadeira, em um outro grupo, também havia sido utilizada por ela
com uma função de proteção, quando colocando o dedo na boca dizia querer
voltar a ser um bebê, parecendo indicar o retorno ao próprio colo de mãe.
Curiosamente a cadeira foi posicionada atrás de uma das coordenadoras e
gerou a diminuição de projéteis atirados, pois os meninos não queriam atingir
a coordenadora, mas ainda assim acabaram por fazê-lo.
Camila diz que quer ir ao banheiro, interrompendo bruscamente a brin-
cadeira. Uma das coordenadoras a acompanha. Enquanto isso, Caio e Pedro
aproveitam a oportunidade para coletar para si todos os projéteis que haviam
ficado do lado de Camila, além de fortalecerem ainda mais a barricada. Caio
se questiona se aquilo é certo. Diz que teriam que deixar algumas peças com
a Camila para que ela pudesse lutar também. Mas Pedro parece não ligar. A
coordenadora aponta que Caio parece se preocupar em ser justo, mas isso
parece ser difícil em uma guerra. Caio deixa alguns brinquedos do lado da
Camila. Os meninos a aguardam para seguir a disputa.
Ao retornar ao grupo em flagrante desvantagem, Camila é atingida, dá
um grito e diz que não quer mais brincar. Enquanto rói as unhas, culpa os
meninos. Diz ter sido injustiçada ao longo de toda a brincadeira. Caio se
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 31

incomoda, diz que ela estava brincando tranquilamente antes, e que ela havia
feito a mesma coisa com eles. Pedro está eufórico: “Nós vencemos! Ela se
rendeu!” Caio contesta dizendo que não havia vencedores, pois não havia sido
justo, já que eram dois contra um. As coordenadoras convocam a reflexão
dos participantes sobre a cena ocorrida. Surgem temas como guerra, brigas e
formas de resolver conflitos e disputas. As coordenadoras marcam, também,
que a brincadeira saiu do controle. E que elas têm como hipótese que isso
acontece em outras situações da vida deles.
Caio então fala dos filmes de guerra de antigamente que costuma assistir.
Ele se pergunta como são feitos. Parece estar na dúvida se aquelas cenas são
reais. Uma das coordenadoras fala que esses filmes são baseados em fatos
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reais, e a outra diz que às vezes quem está fazendo o filme precisa inventar
um pouco, ser criativo, porque nem sempre é possível saber exatamente o
que ocorre de verdade.
As coordenadoras formularam a hipótese de que a cena de guerra pro-
tagonizada pelos irmãos era uma representação da situação vivida por eles
em casa, uma vez que a mãe havia procurado atendimento para os filhos
depois que estes presenciaram uma cena de violência doméstica, na qual o pai
agrediu fisicamente a mãe. Tal fato provocou a separação do casal, seguida
de reconciliação e separação por alguns meses, até que ela decidiu por se
separar definitivamente.
Questiona-se no grupo se as crianças já haviam presenciado alguma
situação na qual um conflito havia se tornado violência ou agressão. Rapi-
damente Caio diz: “Meu pai uma vez bateu… em um carro”. A história era
pouco precisa. O pai havia batido como? Quem havia feito a denúncia? Caio
parecia confuso. Sugerimos a ele utilizar os bonequinhos de pano da caixa
lúdica para contar a história. Ele imediatamente começa a seguinte narrativa
com os bonecos em punho.
Um dia o pai estava dirigindo, bateu em um carro que estava estacionado,
mas o motorista do carro batido não estava presente. Uma senhora, que morava
em frente ao local do acidente, saiu de sua casa dizendo que havia visto o que
tinha acontecido e que iria denunciar ao dono do carro. O pai de Caio, irritado,
diz a ela que ela poderia avisar, e eles marcam uma briga, para a qual cada
um levaria alguns amigos para ajudar. Caio conta que o pai passou em casa
para deixá-lo, juntamente com Camila, além de falar com a mãe deles sobre
o ocorrido. Nesse momento, fica claro que eles haviam presenciado a cena.
Ele pega dois bonecos, um menino e uma menina, e os representa saindo do
carro e entrando em casa. Ele diz que Camila chorava, e ela? foi se esconder.
A partir desse momento Caio já não sabe dos fatos, pois não acompa-
nhou o pai, e diz que imagina o que aconteceu, baseando-se em alguns fatos
que veio a saber posteriormente. Interpreta com um tom bastante brincalhão
32

a briga que se seguiu, arrancando risadas dos outros participantes do grupo.


Primeiro os homens trocam ameaças, mas depois desistem de lutar. O pai de
Caio diz que pagaria o conserto, pois reconheceu que estava errado. Ele volta
para casa e procura pelos filhos, pergunta se eles estão bem e depois ajuda a
esposa a fazer o jantar. A história quase termina com um final feliz, no qual o
pai, a princípio errado e tendo feito a família sofrer, se redime e assume seus
erros. Entretanto, Caio decide que a história não terminou…
Na brincadeira, em outra versão, o pai, ao chegar em casa, encontra a
mãe e, durante o jantar, inicia-se uma guerra. O pai se torna um super-herói
gigante, que Caio representa com o próprio corpo, na comparação com o resto
da família de bonecos de pano. A mãe também se torna uma super-heroína,

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com olhos laser. A guerra se expande gradualmente, e por fim se encerra com
todos feridos: Camila sem costela, Caio sem braço, seu pai sem pernas e sua
mãe, sem visão. As coordenadoras perguntaram se ele associava as cenas
violentas com algo. Ele diz que sim, e pergunta se as coordenadoras gostariam
de ouvir sobre a briga que resultou na separação de seus pais.
Com os bonecos, ele recria uma cena na qual seu pai bate em sua mãe
mostrando a ele e sua irmã correndo para o quarto. Retrata sua irmã chorando
muito, e sua avó chegando para levá-los para a casa dela. Encerra a história
de maneira rápida, e logo inicia outra história na qual sua irmã passa por uma
situação cômica e constrangedora. Devolvendo a questão, Caio pergunta ao
grupo qual foi a parte que cada um achou mais triste na briga de seus pais, e
em seguida responde: “pra mim foi a parte que o meu pai bateu na minha mãe”.

Grupo de crianças de 10 a 12 anos9

O grupo terapêutico ocorreu durante seis meses em sessões semanais de


uma hora e trinta minutos, com as presenças frequentes de Elisa (11), Joel
(10), Suellen (12), e Amélia (11). No grupo, Elisa fala de sua dificuldade em
“fazer amigos”. Tem medo de ser abandonada pelos outros e de ser deixada de
lado. Afirma detestar falsidade. Diz que não sabe perceber quando as pessoas
estão sendo falsas com ela, com isso reforçando no grupo sua desconfiança
em relação aos outros.
Elisa costuma andar com crianças menores e sempre brinca que elas são
seus filhos. Ela se diz brava e explosiva como a mãe. No grupo dá broncas
constantes em Joel, fala que ele parece “uma criança de dois anos”. Joel “não
para quieto”, é agitado, “tem ataques de raiva”. No grupo, ele arremessa uma
boneca, espreita os outros integrantes com o arco-e-flecha em mãos, perfura
seu suéter com espetos e brande a espada. Observa as reações dos outros:

9 Grupo coordenado por Ulisses Miranda e Julia de Bona


DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 33

espanto e medo. Elisa esbraveja “diminui a intensidade dessa loucura aí, se


não pode acertar alguém” Há vários momentos nos quais Elisa instrui e acon-
selha as outras crianças em tom irritadiço e de crescente agressividade. No
decorrer dos encontros grupais, os outros participantes reclamam da rispidez
e agressões de Elisa. Suellen diz que ela é “muito estourada”, característica
explicada por Elisa em outra situação: “estourada como minha mãe”.
Elisa verbaliza que entende o jeito estressado e irritado de sua mãe, pois
se sente da mesma forma ao lidar com os irmãos. Ela e Suellen se queixam de
ficar no lugar das mães ao cuidarem dos irmãos mais novos. Relatam como
é cansativo e chato ficar nessa posição, sendo ainda responsabilizadas pelas
atitudes tomadas pelos irmãos. Extravasam o incômodo contando as formas
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que encontram para mostrar seus descontentamentos e suas revoltas: jogam a


louça suja para cima do telhado ou enxotam os irmãos para que eles mesmos
busquem o que pediram. No grupo, as situações de raiva, violência e agressão
surgem nas falas e nas encenações das mais variadas maneiras.
À medida que os integrantes do grupo foram se conhecendo, passaram a
se perguntar sobre a possibilidade de “falar ou não falar sobre coisas pessoais”.
Investigavam se o campo grupal era um espaço seguro e de confiança. Elisa
acusou Suellen de ser fofoqueira e de ter dito algo que ela lhe havia contado
em segredo fora do grupo. Tal fato permitiu abordar o tema da desconfiança
trazido por Elisa desde o primeiro dia do grupo. Por parte dos coordenado-
res foi importante a reafirmação dos combinados de confidencialidade, bem
como, assegurar as crianças de que naquele espaço não era necessário dizer
coisas se não tivessem vontade. As duas integrantes repactuaram os códigos
de confiança por meio de um simbólico “acordo de mindinho”.
Gradativamente foi possível à Elisa trazer para o grupo de forma suces-
siva os seus maiores sofrimentos, não somente as suas queixas e broncas.
Como se ela fosse se preparando, encontro após encontro, para dizer de
maneira mais profunda o que a afligia. Inicialmente Elisa dizia ser uma pessoa
muito distraída, “que fica pulando de pasta em pasta” na sua cabeça. Algum
tempo depois, contou no grupo que lidava com sua dor em silêncio; em outro
dia falou efusivamente sobre “sentimentos diferentes, que ficam tão fortes
que desaparecem”; para só mais tarde nomear essas vivências como “crises
de ansiedade”, dizendo que essas começaram quando ela era pequena e que,
nos últimos tempos, teve quatro destas. Conta que nesses momentos sua mão
fica gelada e seu coração bate mais rápido.
Elisa abriu-se mais ainda com os demais integrantes a partir de uma
brincadeira nomeada de “chat do grupo”. Ocorria da seguinte forma: ela
escrevia uma frase relacionada ao seu sofrimento em um papel que chegava
a cada integrante sem que eles precisassem dizer em voz alta o teor da frase,
ou então, a frase ficava com os coordenadores do grupo até o momento em
34

que Elisa falava aos demais o que havia escrito. Os participantes faziam
comentários sobre o “clima do grupo”: se estava muito “pesado” ou “muito
triste”. Decidiram que, se quisessem, poderiam “jogar um assunto difícil fora”.
Então, o papel era amassado e aquele assunto era deixado de lado, podendo
eventualmente, ser “recuperado”.
Elisa perguntou aos colegas de grupo se eles queriam saber “pouco”,
“médio”, ou “muito” a respeito do que ela tinha a dizer: da “tristeza muito
grande que vem e invade”; de uma dor interna que “às vezes a impede de
ver, ouvir, falar e até se mexer”. Encontra no grupo a possibilidade de falar,
pois não quer machucar sua mãe com sua dor. Então “fica tudo pra dentro,
acumulando até chegar na borda”. O acolhimento do grupo é intenso e ela,

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então, confia suficientemente para dizer que se corta. Os demais buscam
compreender: “Acho que isso é depressão”, “Que difícil, Elisa!”, “Isso não
machuca?” ou ainda “Mas por que você faz isso?” Mobilizada, pela discus-
são, Suellen toma coragem e conta algo bastante intimo, fala sobre o dia que
sofreu um abuso sexual.
Com o passar do tempo, o grupo aprofunda temas que revelam as dinâmi-
cas familiares violentas, os silenciamentos e a dor das crianças. O abuso sexual
em casa, o corte no próprio corpo, a ansiedade, a depressão a inquietação,
a dificuldade de colocar em palavras à dor e o alívio quando isso acontece.
Disso, nós analistas queremos saber “pouco”, “médio” ou “muito” como
indaga Elisa a seus colegas de grupo?
A problemática dos cortes coloca a necessidade da conversa com os fami-
liares de Elisa. Tal saída é muito discutida no grupo a partir de um impasse,
pois Elisa se nega a compartilhar seu sofrimento, especialmente com sua mãe.
A determinação com a qual ela afasta essa possibilidade chama atenção. A
terapeuta insiste e diz que irá conversar com sua mãe. Nesse momento Elisa,
muito ansiosa, diz que sua mãe lhe bate muito.

O movimento grupal: o analista enquanto testemunha da violência,


fazendo advir a escuta e a fala elaborativa
A singularidade de todo testemunho é ao mesmo tempo única e plural.
Única na medida de sua autenticidade pessoal, e plural em seu caráter
discursivo. Sua mensagem singular carrega uma potencialidade própria
capaz de transmitir uma polaridade. De um lado a linguagem é portadora
de uma singularidade absoluta, por outro é sempre universal. É por meio
da universalidade discursiva que poderemos entender o testemunho como
a única via de restabelecimento de uma dimensão simbólica. A literalidade
da situação traumática, sua força em achatar por completo o imaginário,
trava o poder de simbolização (Blum, 2015, p. 69).
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 35

O trecho acima, do livro Travessia do silêncio, testemunho e reparação,


evidencia algo que procuraremos apresentar ao longo deste texto: o papel do
testemunho como único e ao mesmo tempo plural na passagem do registro
imaginário para o simbólico, a partir da ficção que a brincadeira nos grupos
propicia. O dispositivo grupal se mostrou privilegiado no atendimento infantil,
especialmente diante de situações de vulnerabilidade e violência doméstica.
Percebemos no processo, que as crianças testemunham e vivem cenas de
excesso em suas vidas, que as transformam, deixando precipitações em seus
corpos. Trazem essas marcas para o grupo e, na relação transferencial com
os integrantes, vão apresentando o impacto psíquico que tais cenas deixaram
sobre si, pois, como dissemos acima, “de um lado a linguagem é portadora
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de uma singularidade absoluta, por outro é sempre universal”. Convocam o


testemunho desse sofrimento, através de disputas, gritos, cicatrizes e brincadei-
ras, com projéteis sendo lançados sobre os coordenadores. Pedem testemunha
para os atos de violência que elas próprias testemunharam.
Se acompanharmos o relato dos grupos podemos perceber os coordena-
dores situados como testemunhas da violência, instituindo um lugar terceiro
– constituindo o Grande Outro, introduzindo a dimensão da alteridade diante
dos integrantes do grupo. Esse lugar terceiro é o lugar-testemunha, no qual
a violência é apresentada. O trabalho analítico deve transformar esse lugar-
-testemunha em um lugar de escuta para fazer advir a fala elaborativa dos
participantes do grupo. A escuta tem como função promover novos enlaces
e desenlaces, a partir dos significantes que vão surgindo na trama grupal.
Entre estes, gostaríamos de salientar a possibilidade de responsabilização
dos sujeitos perante seus atos.
Marin (2006) nos auxilia nessa discussão ao postular a violência como
um sintoma social marcante na atualidade, que precisa ser reconhecido e
tematizado, uma vez que perpassa as situações mais íntimas, bem como está
presente na esfera pública.
Assumir a violência não quer dizer que, pelo fato de ela ser constitutiva
das relações humanas, justifiquem-se e desculpem-se os atos de violência e
aniquilamento. Ao contrário, é preciso responsabilizar-se pelos encontros
humanos e pelos restos de violência que deles resultam. Esses restos, se
puderem ser assumidos, pedirão continência, representação e tolerância
(Marin, 2006, p. 41).
O surgimento dos restos de violência das cenas familiares, observada
na passagem do ato à fala, faz emergir temas significativos para cada criança
e possibilita dar ao brincar a dimensão pública e coletiva, proporcionando a
elaboração de cenas traumáticas.
Para responsabilizar-se e também para responsabilizar o outro, é necessá-
rio dar o tom afetivo que a cena pede, o que poderíamos chamar de implicação,
36

ou afetação do sujeito para com sua história. Compartilhar com outro a própria
vivência foi uma importante condição para que as crianças se apropriassem do
peso narrativo de suas palavras, do excesso que as cenas vividas guardavam.
Caio conta ao final do encontro do primeiro grupo que a cena mais
triste não era aquelas cenas fantásticas que descreveu, mas o fato de que seu
pai bateu em sua mãe. Elisa, integrante do segundo grupo, surpreende-se
com o impacto que a fala sobre o seu sofrimento (e de seus cortes) causou
nos demais membros do grupo. Ao perceber esse efeito pode redimensionar
seu próprio dizer.
No primeiro grupo, evidencia-se ao longo de um único encontro que, de
brincadeira em brincadeira, vai sendo possível para Caio, verbalizar a violên-

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cia vivida em sua casa. Podemos destacar três momentos de Caio no grupo:
o primeiro a cena de guerra, o segundo o de quando o pai bateu no carro de
outra pessoa e o terceiro momento quando Caio fala das agressões que o pai
cometia contra a mãe. Há uma construção narrativa temporal. Inicialmente, a
violência é experimentada no corpo-a-corpo dos integrantes do grupo. Já no
segundo momento, há uma narrativa que passa a ser feita por Caio na qual
ele utiliza os bonequinhos da caixa lúdica e ocorre a encenação da situação
violenta. Num terceiro tempo é possível fazer o relato verbal da agressão que
ocorre entre os seus pais e que ele testemunha.
No segundo grupo, das crianças maiores destacamos o movimento de
construção do espaço de compartilhamento e elaboração no decorrer de vários
encontros grupais. Inicialmente, Elisa relata sua desconfiança em relação aos
outros e demonstra esse sentimento através de seus comportamentos irritados e
hostis direcionados aos demais integrantes do grupo. Num segundo momento
anuncia que tem um segredo e se surpreende com o efeito que isso gera nas
outras crianças; conta sobre o sintoma de cortar-se e o associa à sua “ansie-
dade”. Finalmente, a partir do momento em que fala da sua dor no grupo, diz
que tem conseguido lidar melhor com esses sentimentos destrutivos e que
tem evitado atos violentos contra si. Esse movimento de Elisa, que passa da
desconfiança ao compartilhamento da sua dor, faz com que outros participantes
também se autorizem a falar de seus sofrimentos.
Os conteúdos frequentemente trazidos por Elisa, de que as pessoas acaba-
riam por trair sua confiança, que não gostavam ou falavam mal dela, podem ser
compreendidos, segundo Ferenczi (1929/2011), como um produto de vivências
traumáticas, pois aqueles “que são vítimas de mania de perseguição, a tendên-
cia para proteger-se, para defender-se de perigos, prepondera sobre a angústia
como aflição” (p. 127). Nos parece que ao longo dos encontros grupais, tanto
Elisa como as outras crianças puderam sair de uma posição dilemática para
uma posição dialética na qual se reposicionaram em relação à possibilidade
de confiar pensamentos e afetos junto aos demais.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 37

Nos dois grupos, a possibilidade da construção de laços de confiança e


da aproximação de conteúdos traumáticos foi acontecendo gradativamente:
as crianças não falaram diretamente de conteúdos ansiógenos e não enunciam
os acontecimentos da maneira “completa e linear” nas primeiras vezes que
abordaram a temática. Elas foram, pouco a pouco, se preparando para dizer no
grupo por meio de alusões indiretas, aproximações lúdicas ou mesmo represen-
tando aquilo que queriam dizer ao brincar. Para que isso ocorra o coordenador
do grupo tem que auxiliar com pontuações, aproximações e intervenções, a fim
de que a palavra ganhe o estatuto de um dizer. No grupo, as crianças falam e
brincam muito, mas nem toda fala tem algo a dizer, cabendo ao coordenador
pinçar elementos discursivos que promovam o deslizamento associativo.
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Dunker (2015), ao trabalhar sobre as três características do sofrimento,


explicita a importância de o narrar.

O sofrimento se estrutura como uma narrativa. Ao contrário da dor, que


permanece mais ou menos igual a si mesma. O sofrimento exprime-se em
séries transformativas, ele se realiza por meio de um enredo, ele convoca
personagens (como a vítima e o carrasco). A experiência de sofrimento
envolve a transferência e a partilha de um saber sobre suas causas, motivos
e razões. O sofrimento varia radicalmente em conformidade com o saber
que se organiza em torno e por meio dele (Dunker, 2015, p. 4).

A ideia de Dunker (2015) de que o sofrimento se estrutura como narra-


tiva, diferentemente da experiência da dor, se aproxima da conceituação de
Birman (2020), sobre o desamparo, quando o autor o diferencia do desalento.
Para este, o sujeito acredita que o Outro o queira acolher e proteger. Sabemos
que o sujeito é, antes de tudo, falado pelo Outro. É instaurado em um determi-
nado lugar social para que possa, a partir de então, endereçar sua demanda. O
exemplo paradigmático disso Freud enunciou ao falar do choro convocante do
bebê. O bebê lança seu choro para se fazer ouvir, criando um código para uma
comunicação com o Outro. Para que haja o reconhecimento e a identificação
do eu com a imagem, é preciso que haja uma instância simbólica, o ideal do
eu, responsável pela organização e coerência dessa realidade psíquica, desig-
nando as representações culturais, sociais e os imperativos éticos.
Por outro lado, no desalento, o sujeito não é mais acolhido pelo Outro,
é a pura dor (Dunker, 2015), não encontrando suporte afetivo e efetivo para
desvelar o sentido de seu pranto. Errante, é lançado perigosamente nas incer-
tezas e contingências da existência.
As crianças nos grupos lançam seus corpos expostos à violência, assim
como o choro convocante do bebê. O trabalho grupal com as crianças visa criar
possibilidades de conexão com o outro semelhante, bem como a dimensão
38

alteritária do Outro. Ou seja, o grupo tem que ser condição-suporte para que
as crianças possam endereçar seu sofrimento, vivido como desamparo devido
à violência doméstica.

Identificação: a transmissão consciente e inconsciente

As crianças chegam para os grupos com diversas expectativas, tanto suas


quanto de seus familiares. Os entraves vividos por elas são, em grande parte
dos casos, decorrentes das próprias dinâmicas da família. Sem saber como
lidar com determinados conflitos, as famílias diversas vezes calam-se diante
das problemáticas, perpetuando não ditos. Não percebem que o sintoma da

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criança pode ser porta-voz da dinâmica familiar. Freud assim descreve tal
fenômeno em Recordar, Repetir e Elaborar: “É lícito afirmar que o analisando
não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua.
Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente
sem saber o que faz” (Freud, 1914/2010, p. 199).
Importa salientar que, diversas vezes, escutamos os pais descrevendo
os filhos como uma extensão de si. Suas dificuldades, nesses casos, eram as
mesmas dos filhos. Dessa forma, criavam uma expectativa inalcançável em
relação ao atendimento, pois as questões que imaginavam que deveriam ser
tratadas eram suas e não das crianças. Ao mesmo tempo, rondava um fantasma
aterrorizante de que se reproduzissem os mesmos lugares de conflito. Do lado
das crianças, estas falavam de si a partir da identificação com os pais, tendo-os
como referência a seguir ou a evitar.
Reiterando a construção freudiana acerca da identificação, concebe-se
que o sujeito é produto dos encontros e desencontros de suas identificações
primárias com as figuras parentais. Esse é um mecanismo elementar para
a estruturação do psiquismo. Contudo, gostaríamos de refletir sobre como,
nesse processo, a identificação totalizante pode ser nociva para o sujeito que
se encontra aprisionado em uma profecia autorrealizadora, deparando-se com
barreiras que restringem a compreensão de si enquanto ser desejante. No con-
texto da violência doméstica, os coordenadores dos grupos tinham a função
de atentar-se para isso, possibilitando que as narrativas fossem reescritas e
que as crianças pudessem encontrar maneiras próprias para falar de si.
O emolduramento do eu se estabelece através das transmissões daquilo
que é encontrado na cultura. A moralidade, ou o que pode e/ou não pode,
contorna ideais que estão presentes na constituição do psiquismo. De acordo
com Freud; “[...] A identificação se empenha em configurar o próprio eu à
semelhança daquele tomado por modelo.” (1921/2021], p. 62). É, portanto,
por meio desta que se engendra a edificação do eu. Concebe-se que a identifi-
cação se refere a um processo pelo qual o sujeito assimilará os traços daqueles
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 39

que são tomados como referências e os afetos advindos de suas escolhas


objetais. Traços estes que são englobados no eu, operando uma modificação
de acordo com os moldes aos quais busca pertencer ou se diferenciar por
oposição ou recusa de uma determinada posição à qual foi submetido. Na
travessia do Complexo de Édipo, que opera como lei cultural ao interditar
o desejo incestuoso e o parricida, tem-se uma ambivalência entre ternura e
hostilidade perante essas identificações.
Em ambas as cenas grupais, os sentimentos de ternura e hostilidade
direcionados às figuras parentais demarcam um conflito em relação à ambi-
valência afetiva contida no processo de separação, reavivando, assim, parte
dos conflitos edípicos. Se, por um lado, Elisa e Suellen afirmavam o quanto
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eram apegadas às mães, irritadas como elas e cuidando dos irmãos como se
fossem seus filhos, por outro lado, se queixavam de cansaço e chateação com
essa tarefa. Ambas apesar disso não confiavam seus sofrimentos a suas mães.
Também Caio apresenta sua ambivalência em relação à figura paterna, ao
questionar-se sobre o que pode ou não, o que é justo ou injusto. Tenta finalizar a
história da batida do carro em um momento em que o pai se mostra arrependido
e cuidadoso, mas é atravessado pela concretude da realidade e ficcionou uma
história fantástica, na qual os pais são super-heróis e o pai agente da destruição,
machuca todos os membros da família. Assumindo a posição de justiceiro –
como fez com o colega Pedro – ele se responsabiliza por uma tarefa que a
princípio compreendia como uma função do pai: a proteção das pessoas que
ama. Em outra cena, ao final de tantos conflitos familiares, retratados com os
bonecos, todos eles perderam algum membro, isto é, uma parte de si mesmos.
No grupo, isso pode aparecer como uma tentativa de elaborar as perdas, e seus
próprios conflitos perante as marcas da violência doméstica. Camila evita entrar
em contato com o conflito que apareceu na brincadeira, e se des-implica de sua
própria atuação, havendo algo de insuportável que enseja essa recusa. Pois é
justamente quando se aproxima do que remete à sua dinâmica familiar que ela
sai da brincadeira, o que demarca seu recuo diante do conflito iminente que
tange o ocorrido, sentido como uma impotência diante da guerra.
Na constituição psíquica do sujeito, ao mergulhar no mundo é-lhe for-
necido um banho narcísico composto pelas fantasias de seus pais a respeito
do que virá-a-ser. Essa alienação é a base sob a qual se solidificará seu eu
ideal, no qual se encontra seu reservatório libidinal. No caso de Caio, ele é
recoberto pela fantasia de que ocupará o lugar do pai. Justamente por isso, é
levado à análise pelo temor que sua mãe tem de que ele será como o pai, pois
ela percebia que ele vinha se tornando cada vez mais explosivo. Já Camila
silencia-se a respeito do ocorrido, e é aí que seu corpo começa a falar, no
roer das unhas, na evitação do assunto. Percebemos então que, diante do ato
violento presenciado pela família, cada um dos filhos lidou com a situação a
40

partir de uma posição própria, o que permite pensar sobre as diferentes manei-
ras que as situações de violência incidem sobre cada integrante da família.
Nesse sentido, faz-se necessário questionar as dinâmicas familiares cujas
manifestações infantis são interpretadas sempre à luz do referencial das figuras
de cuidado. No caso dos irmãos, Camila e Caio, desde o primeiro contato com
a mãe destes, as coordenadoras escutaram a preocupação dela em divorciar-se
para que os filhos não se sentissem compelidos a repetir a dinâmica familiar:
“Me divorciei para que meu filho não se torne um homem que normaliza
bater em mulheres, e para que minha filha saiba que ela não pode tolerar
violências como essa”. Contudo, parece que justamente procurando evitar
tal destino fatídico, a família acaba por traçar uma profecia autorrealizadora,

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ou seja, parece comunicar que o caminho natural do filho seria tornar-se um
homem violento como o pai, bem como o da filha seria tornar-se uma mulher
submetida e impotente como a mãe (diante do pai).
Já na segunda situação clínica, a vivência de situações similares dá a
possibilidade às crianças de interrogarem seus papéis de “ficar no lugar da
mãe” cuidando dos irmãos. Elisa e Joel são mais diretamente questionados
em suas dinâmicas agressivas, como quando dizem que Elisa é muito “estou-
rada”, ou quando apontam para Joel que ele precisa ser mais cuidadoso em
suas brincadeiras (brandindo a espada, ou arremessando a boneca), pois pode-
ria machucar alguém. Tais cenas são importantes para que ambos percebam
reproduzindo comportamentos violentos.
Ocorrem múltiplas identificações dos pais para com as crianças, e vice-
-versa. Entre esses avessos, os pais projetam seus desejos, idealizações e
também suas heranças não elaboradas, que atravessam transversalmente o
passado, o presente e o futuro. Segundo Maria Cristina Ortiz et al, (2015):

A criança, ao nascer, é inserida em seu universo familiar desejante que é


portador das histórias das gerações anteriores. O sujeito a advir se insere
em uma cadeia de filiação, sendo ao mesmo tempo leitor e personagem
de uma narrativa de ficção escrita por seus pais, que traçam para ele certo
ideal situado no futuro (p. 163).

Nessa narrativa, o que os pais buscam transmitir nem sempre corres-


ponde ao que encontram como possibilidade real, pois, por vezes, também
são atravessados pelo que lhes foi transmitido inconscientemente. O sintoma
da criança passa então a ser porta-voz desses conflitos. Dolto (1988) afirma
que a criança, através de seu sintoma, encarna e presentifica os efeitos que
decorrem de um conflito que permanece vivo no bojo familiar, sendo parte
dos fantasmas dos pais que não puderam ser elaborados. Sendo porta-vozes do
sintoma familiar, denunciam as identificações que estão sobrepostas, e podem
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PARA AS FILHAS E OS FILHOS 41

fixá-las numa determinada posição. A ameaça de castração que vivenciam


mediante a separação os coloca numa recusa em separar-se ou se diferenciarem
dos pais, pois há uma dificuldade em elaborar as perdas e o luto do ocorrido.
Para a elaboração dessa separação, as crianças têm de entrar em contato com
as marcas que a violência doméstica deixou na história familiar.
Nos grupos, essas marcas podem ser vistas em diferentes momentos.
No caso de Elisa, apesar de não ter falado diretamente disso com as outras
crianças, acaba sendo porta-voz da violência doméstica que sofre. Identifica-se
com sua mãe agressora a partir do ser “brava” e “estourada”, nomes estes que
parecem tentar dar conta de um padrão de violência dirigida aos outros, mas
também a si mesma, por meio do cortar-se.
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Para Caio isto se manifesta num estrangulamento de sua raiva, o que fica
evidente quando relata para uma das coordenadoras que tem medo de sentir
raiva. Há, portanto, uma tentativa de isolar os afetos para proteger-se de seu
estranho familiar, a raiva, que inclusive já tomou seu pai algumas vezes. E
no caso de Camila, vê-se que ocorre uma regressão a uma posição na qual
já esteve mais protegida, ao enunciar no grupo seu desejo de retornar ao
útero, lugar que dá contorno e faz continente para a sua angústia. Assim, na
composição das histórias dos casos citados, os grupos oferecem lugar para
que os conflitos em relação aos ocorridos possam aparecer, com a raiva então
ecoando no grupo como um emergente grupal.
A intervenção clínica grupal visa propiciar essas outras trilhas que passam
a ser concebidas entre pares que reeditam a gramática dos acontecimentos
conforme a singularidade do sujeito. Aquilo que fora introjetado por meio do
olhar, das falas, e dos intervalos entre um silêncio e outro, aludem às identifi-
cações que são parciais, e que, portanto, não contemplam uma totalidade. Na
navegação pelas moções pulsionais, é possível observar para onde o desejo
se dirige para que o sujeito delineie outras rotas, podendo desse modo se
diferenciar daquilo que é “predestinado” para ele.
Além disso, o que é transmitido consciente ou inconscientemente pelas
gerações que o antecede constituem o eu por via das identificações, que ocor-
rem na linguagem por meio de alusão. No entanto, dessas heranças, vê-se o
que vai e o que permanece como marca. A questão que fica para a mãe dos
irmãos Camila e Caio é de que ao se processarem essas identificações, restarão
transmissões psíquicas que se referem aos impactos da violência doméstica
que foi testemunhada.
A violência doméstica vivida por Elisa de forma excessiva, ou traumá-
tica, é transmitida no corpo, e deixa marcas que reverberam até o presente
momento, sobretudo num tipo de desconforto que é muito abordado pela
menina e a leva a mutilar-se. Segundo Ferenczi (1931/2011) a “consequência
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imediata de cada traumatismo é a angústia. Esta consiste num sentimento de


incapacidade de adaptar-se à situação de desprazer” (p. 110) que parece ser
demonstrado, nesse caso, na dificuldade por sua parte de encontrar ou tentar
outras maneiras de lidar com esse sentimento que aparecia. Em outro momento
(1932/2011) o mesmo autor explica “O desprazer cresce e exige uma válvula
de escape. Tal possibilidade é oferecida pela autodestruição, a qual, enquanto
fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo” (p. 127),
ressoando amplamente com a sensação de alívio que Elisa tem ao se cortar.
No grupo familiar, a transmissão psíquica consiste na pré-história do
sujeito, e no que lhe será feito ou o que fará com aquilo do que é legatário.
Podendo haver um enclausuramento numa determinada narrativa, ou ainda,

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uma recomposição a partir daquilo que recebe e que o antecede. Segundo
Granjon (2000), existem duas formas de transmissão psíquica entre gerações:
a intergeracional e a transgeracional. A primeira envolve uma mudança no que
é transmitido de uma geração para outra, enquanto a transgeracional se refere
a uma forma de transmissão em que não ocorrem alterações, sendo marcada
pelo conteúdo que não pôde ser processado pelas gerações que o precedem.
Entretanto, a transmissão é constantemente ressignificada a partir daquilo
que o sujeito pode sustentar em seu psiquismo, e esta não ocorre apenas de
maneira passiva. O temor que a mãe dos irmãos vivencia em sua fantasia é
que essa transmissão opere através de uma repetição ao reproduzirem tais
violências, ficando assim inertes ao ocorrido. Em contrapartida, não necessa-
riamente aquilo que está sendo dito vai ser internalizado, mas também aquilo
que é dito pode adentrar a cadeia significante na qual o sujeito se encontra
no elo entre um significante e outro que o compõe. Segundo Kaës (1998), “o
que se transmite é preferencialmente aquilo que não se contém, aquilo que
não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a vergonha, o
recalcamento, os objetos perdidos, e ainda enlutados” (p. 14).
À vista disso, o conflito incide num ponto de inflexão entre o que é
esperado que seja herdado, e aquilo que se é transmitido mesmo quando não
é dito. A identificação é constitutiva, mas não é definitiva de uma destina-
ção inadvertida, justamente por conta do que é apontado pela transmissão
psíquica. A condição de herdeiro precede o sujeito como elo entre uma
geração e outra, podendo ele ser beneficiado ou submetido aos ocorridos
que lhe antecedem, uma vez que também é possível criar algo novo com o
que ad-veio em seu vir-a-ser.
Em ambos os grupos, de crianças pequenas e maiores, apareceram tam-
bém seus respectivos grupos familiares, que se cruzam no que reverbera nos
atendimentos grupais. De acordo com Pichon-Rivière (1983), grupo operativo
e grupo familiar dialogam com proximidade:
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 43

Para nós, grupo operativo e grupo familiar são suscetíveis de uma mesma
definição: conjunto de pessoas reunidas por constantes de tempo e espaço,
articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe, implícita
ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade (p. 216).

A tarefa do grupo é, portanto, elaborar os resquícios daquilo que é temido,


ainda que não seja sabido de antemão, o que será internalizado e os modos de
como isso ocorre. O grupo funciona então como uma caixa de ressonância,
amplificando a propagação das narrativas que passam a ser recontadas, construí-
das, e desconstruídas entre os membros que o compõem. Os discursos emitidos,
consciente ou inconscientemente, vão aparecer no grupo através das repetições,
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ou mesmo na percepção daquilo que é estrutural. A contribuição grupal visa legar


um lugar de alteridade. A enunciação do que emerge no grupo ocorre mediante
a implicação com a tarefa, como efeito da transferência com o analista. Tem-se
assim um ponto de inflexão entre as fantasias inconscientes e os diferentes
papéis e lugares sociais contidos entre seus membros (Pichon-Rivière, 1998).
Nesse ínterim, o que ecoa no grupo interpela os ruídos propagados pelo
que ressoou como marca da violência doméstica, uma vez que, ao esta ser
atuada, foi experienciada de modo singular por cada um. A violência doméstica
se repete diariamente em muitos lares, originando impactos como desamparo,
dor, sentimento de impotência, medo, frustração, raiva, vergonha, sendo estes
emergentes que apareceram nos grupos e puderam denunciar o modo como
as crianças foram marcadas por tais excessos. As intervenções visaram dar
contorno às angústias que transcorreram nos atendimentos grupais, oferecendo
lugar para que pudessem marcar sua alteridade em relação ao outro por meio
da elaboração de suas próprias marcas, ao construir uma narrativa própria,
para metabolizar os excessos que atravessaram suas histórias familiares.

Apontamentos finais

A criança, atravessada pela linguagem, ocupa na análise um lugar de


sujeito, elabora algo a respeito de um saber inconsciente por meio do brincar.
Freud (1908/2015) em O escritor e a fantasia, alvorece a relação entre o poeta
e a criança, através de uma função poética estabelecida na gramática do brincar
e do fantasiar, vistos também na escrita. Ambos se pautam na realidade para
imaginariamente deslocar lugares, papéis, situações, afetos e saberes. O faz de
conta é tomado a sério para a criança, brinca-se com afinco ao gastar montantes
de afeto em suas construções e desconstruções da realidade. Segundo o autor:

A ocupação mais querida das crianças é a brincadeira. Talvez possamos


dizer que toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário,
44

pois constrói para si um mundo próprio, ou, mais exatamente, arranja as


coisas de seu mundo numa ordem nova, do seu agrado (p. 327).

Rearranjando suas próprias narrativas, as crianças brincam com as palavras


que utilizam para dizer o que lhes ocorre. O que se passa no imaginário é então
figurado em representações que buscam se ligar aos afetos a serem elabora-
dos. A angústia é encenada em inquietações e conflitos que manifestam como
estão sendo sentidos os ocorridos da realidade. Não obstante, no brincar podem
escolher de que modo irão sentir ativamente os efeitos das provocações que os
afetam. As fecundantes manifestações das fantasias e de elaborações dos desejos
inconscientes podem na brincadeira furar discursos enrijecidos pelos mecanis-

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mos de defesas, como as identificações que se processam de modo sintomático.
Nos dois grupos, percebe-se um importante aspecto da problemática
da violência doméstica a partir da repetição dela mesma, com os padrões
agressivos sintomáticos se perpetuando nas crianças que inicialmente sofre-
ram as agressões. Sobretudo, há o risco de que, por meio dos mecanismos
de identificação e transmissão psíquica, ocorra a reatualização das dinâmicas
familiares vivenciadas pelas crianças, dessa vez no lugar de atores de uma
violência inicialmente experimentada ou observada na posição de vítima: então
Elisa fica estourada como a mãe e Caio pode se tornar agressivo como o pai.
Nesse sentido, a potência do grupo de crianças como dispositivo terapêutico,
para além da elaboração das vivências excessivas, consiste numa possível
prevenção da repetição dessas dinâmicas em atos violentos, por meio de sua
simbolização em palavras e no brincar.
Para tanto, é necessário um campo grupal que escute esse sofrimento
endereçado a partir de um lugar de suporte afetivo, constituindo-se como
espaço de confiança. Nas palavras do Ferenczi (1932/2011) “essa confiança é
aquele algo que estabelece o contraste entre o presente e um passado insuportá-
vel e traumatogênico” (p. 114). Um grupo que, em seus modos de acolhimento
passa a se chamar de amigos, constitui uma “atmosfera de confiança um pouco
mais sólida”, segundo as palavras do autor, muito relacionada à possibilidade
de o sintoma aparecer, de forma a poder ser utilizado pelo sujeito para for-
talecer ainda mais as reconstruções realizadas até aí, ou a sua simbolização.
No decorrer de sua construção narrativa, marcada por elementos que
foram ficcionados, e outros que se pautaram em aspectos concretos da rea-
lidade, Caio ilustra claramente a importância de transitar entre esses pólos,
utilizando as brincadeiras e a palavra como ponte entre esses espaços. Ele
manifesta a ambivalência de afetos em relação ao pai, ora vilão, ora herói;
busca demarcar o que é justo ou injusto, além de dar-se conta da impotên-
cia da guerra, da impossibilidade de vencê-la, pois todos saem machuca-
dos, desmembrados.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 45

No caminho entre o expressar e o narrar, onde se encontra a escuta, o


dispositivo grupal mostrou seu potencial no atendimento de crianças que
passaram por situações de violência, direta ou indiretamente. No caso de
Elisa, presenciamos uma situação na qual a palavra não podia se inscrever, e,
portanto, o corpo manifestava a dor de forma bastante concreta. Inicialmente
pede-se que as marcas e cicatrizes sejam vistas e reconhecidas pelo grupo,
para que o testemunho ofereça uma alternativa à invisibilização da violência,
e esta deixe de operar como um conteúdo insuportável que não cessa em se
remarcar na história familiar. Nas palavras de Estivalet Broide:

Coordenar grupos é uma obra de arte. Trata-se de fazer advir as narrativas


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associativamente e com isso contornar o furo, o ponto cego, aquilo que


não foi escutado no que já foi dito. Diz respeito a aguentar a angústia
da suspensão do sentido e sustentar o trabalho clínico consigo próprio.
Sustentar o trabalho a partir da tarefa e do enquadre do grupo, para que
possa surgir no grupo aquilo que escapa da fala corriqueira e não adere
à fórmula de fixação do gozo na queixa. Caso o coordenador preencha o
sentido do dito do integrante do grupo, fixa o gozo no jogo da queixa. Ele
tem a responsabilidade de deixar ressoar os ditos, possibilitando a cons-
trução de uma trama que constitui um comum; de partir de um conjunto
de afetos e pensamentos para captar o entredito presente e permitir que
algo novo possa advir. Não se trata de inventar, ou acrescentar sentidos ao
que é dito no grupo, e dar significados às falas dos seus integrantes, mas,
a partir do que foi dito, recuperar a densidade da palavra, a sonoridade da
palavra, a sua cadência (Broide, 2022, p. 79).

O analista, coordenador dos grupos, tem a tarefa de dar o peso às pala-


vras, de devolvê-las enquanto questões, ao invés de respostas, de fazê-las
ressoar e reverberar, a fim de que o afeto da implicação seja devolvido à cena
e as relações familiares. Nesse processo, faz-se a passagem do testemunho à
escuta clínica, que devolve o sujeito em sua dimensão desejante.
46

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Martins Fontes.
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UM MENINO FILHO
DA VIOLÊNCIA CONTRA SUA MÃE:
sobre os possíveis do manejo clínico
em uma oficina terapêutica
Leônia Cavalcante Teixeira10
Ana Claudia Coelho Brito11
Bruna Estrela Andrade Braga Rocha12
Luciana Ribeiro Lira13
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Cimara Bandeira de Sousa Caldas14

Introdução

O presente trabalho teve sua origem por conta da participação do Labo-


ratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS), o
qual é vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza

10 Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.


Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, com pós-doutorado
em Psicologia/ CAPES na Universidade Aberta de Lisboa. Psicóloga e psicanalista. Membro do LAEpCUS
– Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade; do GT Psicanálise, política e clínica
da ANPEPP; da Rede Internacional Coletivo Amarrações – Psicanálise & Políticas com Juventudes; e, do
MCVI – A universidade na prevenção e no enfrentamento da violência no Ceará. E-mail: leonia.ct@gmail.
com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4997- 5349, Lattes: http://lattes.cnpq.br/0037242106948921
11 Professora da graduação do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza.
Doutoranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
Mestre em Educação pela Universidade Internacional de Lisboa.
Membro do LAEpCUS – Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade.
Psicóloga do hospital Instituto Dr José Frota. E-mail accbrito@unifor.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
9839-775X Lattes: http://lattes.cnpq.br/0142878056256086
12 Psicóloga clínica, mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – Bolsista FUNCAP, psicóloga
extensionista do PRONUTRA e voluntária de pesquisa no Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura
e Subjetividade (LAEpCUS). Lattes: https://lattes.cnpq.br/9396849771756580
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4269-7315
13 Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR em 2008.2. Advogada inscrita na
OAB/CE No 21.741. Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR em 2022.2. Psicóloga
inscrita no CRP 11/19537. Membro do Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise Cultura e Subjetividade
(LAEPCUS) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNIFOR. E-mail: lucianaribeirolira@gmail.
com ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7059-2556.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8818578226641897
14 Psicanalista, com graduação em Psicologia, docente do Ensino Superior (professora temporária na
Universidade Regional do Cariri URCA). Pós-graduada em Teoria Psicanalítica e em Ciências da Educação e
Docência do Ensino Superior e mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5157568528327341
50

(UNIFOR), como membro da rede internacional de pesquisa Milo – Réseau


universitaire pluridisciplinaire de recherches sur les violences et trauma (Milo
– Rede universitária pluridisciplinar de pesquisa sobre as violências e trauma.
Assim, tomando como base o referido interesse, em agosto de 2020,
demos início a uma primeira pesquisa intitulada “Violência de gênero no
contexto da pandemia do covid-19: uma proposta de intervenção em urgên-
cia subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade e risco”. Nesse
momento, psicólogas e psicanalistas se disponibilizaram a atender de forma
remota mulheres em situação de violência encaminhadas pelo Núcleo de
Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM), em parceria com
a Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCe). Foi utilizado nos atendi-

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mentos o aparato da escuta clínico-institucional e intervenção subjetiva deno-
minado urgência subjetiva, possibilitando que a condição de singularidade de
cada mulher pudesse ser escutada dentro do contexto das políticas públicas,
cenário no qual as violências de gênero ainda são tratadas como homogêneas
e universais (Danziato, Teixeira, & Gaspard, 2021).
Como desdobramento desse espaço de escuta oferecido às mulheres,
deparamo-nos com a contundente preocupação das assistidas em relação às
implicações da violência de gênero sobre os seus filhos. Nesse sentido, é
sabido que a violência contra a mulher pode deixar marcas graves, causar
sofrimento psíquico e trazer inúmeras consequências na trajetória de todos
os envolvidos, inclusive dos filhos (Lopes et al., 2022).
No intuito de abraçar essa demanda, ampliamos nossas investigações
e intervenções para um espectro mais amplo que incluísse outros ângulos
e aspectos envolvidos no fenômeno-cena da violência de gênero, como os
efeitos da violência doméstica sobre os filhos. Assim, outra abrangência da
pesquisa foi proposta, aceita e executada: uma pesquisa-intervenção que além
de oferecer um espaço de escuta em urgência subjetiva às mulheres vítimas
da violência de gênero também opera junto aos seus filhos proporcionando
um espaço de escuta qualificada para crianças de 5 a 11 anos, denominado
de oficina terapêutica.
A citada oficina terapêutica com filhas e filhos de mulheres em situação
de violência doméstica visou, portanto, construir um espaço clínico de acolhi-
mento de crianças encaminhadas pelo NUDEM, a partir de um recrutamento
prévio feito pela equipe psicossocial daquela instituição. Podemos citar como
objetivos da oficina terapêutica realizada: acolher e intervir junto às crianças
vítimas de violência doméstica; possibilitar estratégias terapêuticas de ate-
nuação da angústia gerada pela situação de violência doméstica; promover
a elaboração das situações traumáticas; possibilitar a construção de recursos
simbólicos para o enfrentamento da violência; promover reposicionamento
subjetivo desculpabilizando a criança pela situação de violência.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 51

Como se observa, a oficina terapêutica em comento consistiu no aten-


dimento clínico grupal com crianças que apresentaram sofrimento, expresso
em sintomas como não adaptação à escola e a grupos sociais, dificuldades
de aprendizagem, medos e comportamentos fóbicos, dificuldades em relação
à alimentação e ao sono, além de sintomas e inibições tal como nos ensina
a psicanálise. Como um modo diverso de abordagem da clínica psicológica
individual, trabalhamos na oficina a fim de buscar a expressão das crianças
através da fala e da criação, acolhendo as formas que este sujeito dispõe até
então e através das quais pode se apresentar.
Deste modo, a oficina terapêutica visou propiciar o enquadramento clí-
nico no qual a atenção à criança e a sua família não se restringe ao reco-
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nhecimento e remissão dos sintomas, mas ao oferecimento de um lugar de


escuta e subjetivação no qual os sujeitos envolvidos – pacientes, familiares e
terapeutas – vivenciem possibilidades de elaboração do mal-estar através da
produção, da criação e do fazer. As formulações de Figueiredo (2004; 2000),
Onocko (2013) e Rinaldi (2008) elucidam que a psicanálise contribui através
da construção do caso clínico, comparecendo no sentido de fazer questões,
enigmas aos entraves da escuta clínica em situação de grupo, convocando
tanto a equipe quanto o próprio sujeito a construir um saber sobre aquilo que
lhe atravanca o caminho.

A oficina terapêutica como dispositivo clínico-institucional

A oficina terapêutica contou com o total de 20 encontros, sendo 16 deles


destinados ao trabalho com as crianças e 4 deles para entrevistas, acompa-
nhamento e devolutiva com os responsáveis. Inicialmente, cumpre destacar
que o Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (NUDEM) pré-
-selecionou internamente 20 mulheres que manifestaram interesse em levar
seus filhos para as oficinas propostas.
Em junho e julho de 2022, a equipe responsável entrou em contato por
telefone com as mulheres interessadas na oficina terapêutica para os filhos
e marcou entrevistas presenciais com cada uma no local onde iriam ser rea-
lizados os encontros da oficina. Nesse primeiro contato, sem a presença dos
filhos, as mulheres trouxeram inquietações que abarcavam as preocupações
com a exposição dos filhos às cenas de violência, os sintomas das crianças,
dúvidas quanto aos atendimentos na oficina, entre outras questões. Foram
passadas informações como o início do grupo com as crianças, os horários
e orientações quanto a importância da presença e delimitação da quantidade
de faltas para a eficácia do trabalho.
52

Alguns desafios foram enfrentados pela equipe nesse primeiro momento.


Mesmo mediante seleção prévia efetuada pelo NUDEM e em posse da lista de
mulheres interessadas com os seus respectivos números de telefone, a equipe
não conseguiu contato com algumas mulheres. Em relação às mães que foram
contactadas, nem todas se fizeram presentes nas primeiras entrevistas mesmo
sendo remarcadas várias vezes e em diversos horários. Também foi percebido
em algumas dessas entrevistas iniciais que nem todas as crianças estudavam
em um turno compatível com o horário de realização dos encontros, o que
impossibilitou a participação na oficina.
Para incluir as crianças no estudo, alguns critérios precisavam ser aten-
didos. As crianças precisavam ser encaminhadas pelo NUDEM; apresentar

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sofrimento psíquico grave e persistente; ser filhos de mulheres em situação
de violência doméstica; ter a assinatura da Carta de Anuência para Realização
da Pesquisa pelo responsável e ter idade entre 5 e 9 anos.
Os critérios de exclusão do estudo foram: não ter interesse em participar,
mesmo que indicado pelos profissionais da instituição; não estar envolvido
em situações de violência doméstica; a não assinatura da Carta de Anuência
para Realização da Pesquisa pelo responsável; apresentar sofrimento psíquico
grave que necessite de acompanhamento individual por outros profissionais,
como psiquiatra ou terapeuta ocupacional; não ser acompanhada aos aten-
dimentos da Oficina Terapêutica por um adulto responsável; e faltar, sem
justificativa, duas sessões consecutivas.
Ao todo, 8 mulheres foram entrevistadas, tendo sido selecionadas 6
crianças com idades entre 5 a 9 anos para compor o grupo. E, ao longo dos
encontros ocorridos no período de 01/08/2022 a 28/11/2022, 5 crianças se
fizeram presentes.
As atividades da oficina terapêutica foram realizadas em uma sala de
grupo do bloco F de Psicologia e Farmácia da Universidade de Fortaleza.
A sala escolhida contava com amplo espaço para que as crianças pudessem
expressar-se livremente nas brincadeiras.
Os materiais utilizados foram: diversos tipos de papel e de cartolina,
lápis de cor, giz de cera, canetinhas, pastas, rolo de lã, cola, tesoura sem
ponta, massa de modelar, jogos infantis, brinquedos, caixa de som, músicas,
vídeos, livros infantis.
Nos primeiros encontros, cada criança recebeu uma pasta e foi solicitado
que fizessem um desenho para colar nela como se fosse uma capa, assim
eles poderiam guardar nas suas pastas desenhos, colagens e outras produções
feitas na oficina. Dentre as atividades desenvolvidas na oficina podemos citar
desenhos individuais e em grupo, mediação de leitura de contos, modelagem,
escuta de músicas, brincadeiras diversas.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 53

Com a ênfase na contação de histórias (Bettelheim, 1996; Gutfriend,


2003; Mengarelli, 1998; Rodino, 2003; Santos, 1997; Teixeira, 1991), no
desenhar e no brincar livre, o fantasiar foi priorizado na oficina terapêu-
tica e pôde ser experienciado sem ameaças da culpabilidade paralisante,
desagregação e aniquilamento, abrindo espaço para mudanças de posição
quanto ao que afeta o sujeito na sua infância (Dolto, 2003; Mannoni, 1999;
Winnicott, 1975).

À escuta de Ugui

Ugui, no decorrer da oficina terapêutica, leva consigo um boneco de


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pelúcia que é o vilão de um jogo de celular. O menino explica que o seu


boneco “não é malvado, pois é fofo e dá para abraçar”, acrescenta que dorme
com ele e que levaria o boneco para todos os lugares se pudesse, até para a
escola. Na oficina, nomeia o seu boneco de Ugui-Ugui, e Ugui, nome fictício
escolhido para ele, faz alusão a tal objeto.
No primeiro dia da oficina, foi possível observar a preocupação de Ugui
quanto à alimentação. Pergunta para as facilitadoras onde é a cantina, se está
numa escola e se vai almoçar no lugar da oficina. Informa: “não comi nada,
pois estou com uma dor na perna” e aponta para a perna. Em outros encontros,
ele chega na sala dizendo não estar bem e aponta uma manchinha vermelha
no rosto, parecida com uma picada de inseto.
Nos encontros, Ugui falava alto, gritava, percorria todos os lugares da
sala, invadindo o espaço dos outros e incomodando as outras crianças da
oficina que chegavam a tapar os ouvidos e pedir para ele parar. Ele também
não aceitava participar das brincadeiras propostas pelos colegas. A dificuldade
de Ugui em fazer laço social era evidente.
Certo encontro, as crianças foram convidadas a fazer um desenho na
mesma cartolina e, enquanto todas faziam seus desenhos em uma parte da
cartolina, dando espaço para que os outros desenhassem, Ugui fez o seu
desenho no centro, tomando quase todo o espaço da cartolina, passando por
cima dos desenhos dos colegas.
Em outro momento da oficina, foi proposta uma brincadeira na qual as
crianças fariam uma cabana com lençóis. Nesse dia, Ugui chegou atrasado,
entrou na cabana feita pelo colega, ficou em pé dentro dela, deslocando os
lençóis, que foram sendo tirados por ele aos poucos. Depois levou uma caixa
grande de brinquedos para a cabana já destruída e foi tirando todos os objetos
que lá estavam. A outra criança pedia para ele não destruir o que tinha feito,
mas Ugui parecia não ouvir o colega.
Ugui interrompia várias brincadeiras em conjunto com os demais porque
não aceitava “perder”. Nas ocasiões, ele cruzava os braços, fechava a cara,
54

fazia bico, não conseguia mais voltar a brincar, repetindo várias vezes “tô com
raiva!”. Recusando-se a fazer qualquer coisa com o grupo ou individualmente,
sentava-se de costas para todos, expressando-se com bastante indignação:
“Não gosto de perder o tempo todo!” Dado momento, ele pega lápis de cor e
papel e começa a desenhar. Mostra o desenho e diz que fez vários corações
quebrados, porque estava com raiva. Também mostra no desenho um “coração
intacto” que, segundo ele, não está quebrado, mas está preso. Tal “coração
intacto” encontrava-se atrás de grades desenhadas por ele.
Os corações aparecem em outros momentos da oficina. Ao vê-lo dese-
nhar novamente corações quebrados e intactos, as facilitadoras perguntam
para Ugui onde está o coração e ele responde: “O coração está na cabeça.

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Eu pesquisei no Google”. Perguntam novamente: “E onde está o coração
quebrado?” Ugui responde: “O coração está em todo lugar”.
Com a ajuda das profissionais, Ugui passou a pedir ajuda para reproduzir
algumas formas com a massinha. Mais uma vez, repetiu sua preferência por
corações e solicitou auxílio para que um coração de massinha fosse feito.
Quando a psicóloga fez o citado coração para o menino, imediatamente, ele
quebrou a forma ao meio e frisou: “o coração está partido”.
Esse movimento de quebrar/partir se repete também na brincadeira da
casinha de madeira. Os membros do grupo puderam brincar com uma casinha
de bonecos que era feita de madeira e possuía móveis como fogão, mesa,
cadeiras, sofá, televisão, camas, guarda-roupas, entre outros, que compunham
cada cômodo da casa. Os bonecos, também feitos de madeira, eram usados
pelas crianças nas suas brincadeiras e personificavam as suas fantasias.
Enquanto as outras crianças brincavam entre si com os bonecos, Ugui
focava nos bonecos de madeira que tinham todos os membros ligados por um
elástico. A sua brincadeira consistia em tentar quebrar os bonecos. Chegou
a perguntar mexendo em um deles: “Será que a cabeça pode ser no lugar da
perna?” Partiu para outro boneco, mais frágil, e conseguiu quebrar a cabeça.
Em outro momento, ele vai para a árvore de madeira com uma boneca e
começa a brincar com um balanço segurado por uma corda. Ugui tentou que-
brar a corda várias vezes e, tal hora, enrolou a corda no pescoço da boneca e
a deixou pendurada com a corda no pescoço.
Em outra sessão, o menino abria os dois lados da casa, colocava um boneco
no meio, fechava com força os dois lados da casa contra o boneco e via se a casa
conseguia quebrá-lo ou não. Também fez isso com o seu boneco de pelúcia,
dizendo que ele tinha quebrado o braço. Logo após fez o Ugui-Ugui chorar.
Depois pegou outro boneco e tentou arrancar a cabeça dele com a casa. Se ques-
tiona: “Como pode? Ele é indestrutível!” Essa mesma criança também brincava
com as almofadas, subia em cima delas e fingia cair e “quebrar os ossos”.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 55

A expressão corporal das crianças também era um meio de manifestação


dos vínculos e dos conflitos em que emergiram atitudes agressivas, como tapas,
gritos, arremesso e quebra dos objetos e, em um contexto específico, Ugui
ameaçou quebrar o dedo de uma das psicólogas. Quebrar, despedaçar, separar
estavam sempre presentes em suas brincadeiras e formas de se expressar.
Em uma das oportunidades, foi interessante perceber que, conforme as
manifestações inconscientes do menino iam aparecendo por meio de dese-
nhos e brincadeiras, ele também se utilizou do Ugui-Ugui para abraçar uma
facilitadora do grupo, dizendo: “ele tava com saudade”. Depois, emprestou-se
também da pelúcia para fazer carinho no rosto da psicóloga, o que indicava
o início da relação transferencial.
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Aos poucos, foi possível perceber algumas mudanças nas crianças, em


decorrência dos efeitos da transferência e das intervenções. À medida em
que os corpos das facilitadoras do grupo eram oferecidos às crianças nas ses-
sões, elas começaram a abraçar, a se jogar sobre os corpos, ora afastando as
facilitadoras nas brincadeiras, ora as inserindo, constituindo o vínculo. Ugui
passou a desenhar “corações intactos” nos braços das profissionais dizendo
que eram tatuagens. Vez ou outra, dava pequenas lambidas nas profissionais
em momentos em que estava aparentemente alegre.
Ugui era a única criança da oficina que não desenhava a sua família e
evitava falar sobre ela, principalmente sobre o pai. Em momento pontual,
do lado de fora da sala em que ocorria a oficina, o menino viu a foto de um
cachorro no celular de uma das psicólogas e soltou: “tem um cachorrinho
como esse na casa do meu pai”. Imediatamente após o comentário, a criança
levou as mãos à boca tampando-a, aproximou-se do ouvido da facilitadora
dizendo: “não pode falar do pai”.
No decorrer dos atendimentos, Ugui desenhou uma família de peixes repre-
sentando o peixe que era o pai, o peixe que era a mãe, e os dois peixes que
eram os filhos, pedindo para que as facilitadoras o ajudassem a pintar o mar. Ele
dizia que a pintura do mar deveria ser pintada por pedaços, de pouquinho em
pouquinho com tons diferentes de azul, nunca com traços longos e ininterruptos.
Também vale ser ressaltado o momento no qual as crianças foram con-
vidadas a fazer desenhos na lousa presente na sala de atendimento. Ugui con-
seguiu esperar os colegas e fazer o seu desenho de forma que não invadisse o
desenho dos outros, diferente do início da oficina. Ele se desenhou no quadro
e, junto dele, desenhou as facilitadoras da oficina.
Esses momentos foram importantes marcadores dos efeitos do trabalho
terapêutico, uma vez que Ugui, quando chegou na oficina, tinha uma enorme
dificuldade de fazer laço social, apresentava entraves com relação a simboli-
zar a própria família e começou a estabelecer conexões com as facilitadoras e
com os outros membros da oficina. Vale salientar inclusive que Ugui, quase
56

no final da oficina, pediu para ir fazer xixi no banheiro, disse que aguentava
segurar o xixi até chegar no ônibus e, com alegria, expressou que não estava
mais usando fraldas.

Entrevistas preliminares com os pais

As particularidades da psicanálise voltada para crianças derivam das for-


mas de comunicação utilizadas pela criança e do lugar dos pais atravessando os
dispositivos da clínica (Pechberty, 2000). Por esta razão, a oficina terapêutica
contou com alguns momentos dedicados à escuta dos pais das crianças que
compuseram o grupo. Como ser filho(a) de uma mulher vítima de violência

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doméstica era um critério de inclusão no grupo formado, entramos em contato
tanto com as mães quanto com os pais das crianças, tomando os devidos cuida-
dos para que os atendimentos com os homens não colocassem a integridade das
mulheres e das crianças em perigo. Os atendimentos com a mãe de Ugui eram
realizados presencialmente, mas os atendimentos com o pai se deram por celular.
O propósito dessas sessões era fornecer um espaço seguro para que os
pais pudessem expressar suas preocupações em relação às necessidades dos
filhos, bem como ouvir suas expectativas, incertezas e sentimentos relacio-
nados à oficina terapêutica em questão.
A mãe de Ugui explica que ela e o companheiro tiveram pouco tempo de
relacionamento, mas tinham o desejo em comum de ter um filho. Assim, eles
“combinaram de fazer o menino”. Não tiveram um relacionamento longo, se
separavam e voltavam várias vezes e, em uma dessas voltas, tiveram outra
filha. A mulher fala do pai das crianças com muito ressentimento, diz que é
hipocondríaco e que está passando os sintomas dele para o filho. Explica que
todas as vezes que o filho volta da casa do pai, ele chega com alguma doença,
“dizia que estava com febre sem estar” ou “falava que estava com dor”. É
importante destacar que nesse momento a mãe da criança revela: “Eu notei
que eu rejeitava as crianças quando elas voltavam da casa do pai”.
Também relata se preocupar com a alimentação do filho e supõe que
ele tenha algum “distúrbio alimentar”. Diz que tenta fazer com que ele se
alimente bem, mas não consegue. Além dessa suposição, a mulher também
questiona se o filho tem autismo e informa que já o levou em vários médicos,
mas nenhum fechou o diagnóstico.
O pai de Ugui, por sua vez, relata que o filho sempre chega na sua casa
“doente, desnutrido, com as unhas grandes e sujas”. Acrescenta que a ex-com-
panheira maltrata os seus filhos, grita, bate neles e explica que os filhos “dão
escândalo” quando voltam para a casa da mãe. Informa que tenta convencer o
filho a comer, dizendo o quanto é importante, e o menino responde: “Pai, eu
não consigo engolir”. Nos atendimentos, o homem dizia que a ex-companheira
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 57

queria afastar os filhos dele e expressava a sua raiva e preocupação quanto a


isso. Relata que a ex-companheira dizia para o filho coisas como: “Sabe por quê
ele não está aqui? Porque ele não quer ser pai”. Informa que ela faz alienação
parental e que já entrou na justiça contra ela algumas vezes e ganhou em todas.
O pai de Ugui acrescenta: “faz 5 meses que ele vem doente para a minha
casa”. Diz que foi ao hospital onde o filho é atendido e confirmou nos pron-
tuários que todo mês ele vai ao hospital levado pela ex-mulher. Afirma que
“ela automedica as crianças”. Quanto a essa questão, notamos no decorrer dos
encontros, que Ugui estava indo de fraldas para a oficina e a mãe explicou
que o filho estava com “incontinência urinária por causa dos antibióticos” que
estava lhe dando para tratar “as alergias”. Em alguns momentos, o menino
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aparentava sentir vergonha por estar de fraldas. Na mesma fala, a mãe de Ugui
revela: “Estou torcendo para que aconteça alguma coisa para que Hugo não
vá para casa do pai”. Ao esclarecer o que havia acabado de falar, se corrige
dizendo querer que o ex-companheiro precise trabalhar no fim de semana para
não ficar com os filhos. Ela parece não se dar conta de que o seu desejo para
que “aconteça alguma coisa” abrange as doenças do filho.
Lacan (1969/2003, p. 369) afirma que o sintoma da criança se acha em
condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar,
podendo representar, em alguns casos, a verdade inconsciente do casal parental.
Nesse caso específico, sustentamos a hipótese de que diante da relação dos pais
aos pedaços, de dois desejos inconciliáveis de ter um filho, o menino expressa
no seu brincar o seu despedaçamento, a falta de unidade, também refletida na
preponderância das pulsões orais, manifestadas pelas dificuldades na alimen-
tação e nas lambidas, e excretórias, abrangendo a incontinência urinária.
Diante da análise de uma possível hegemonia do gozo do Outro na rela-
ção da mãe com seu filho, considera-se relevante para o caso situar o conceito
da economia de gozo e a constituição do sujeito em Lacan. Discernindo entre
o gozo do Outro, o gozo fálico e o gozo outro.
O conceito de gozo, para Lacan, deriva da perspectiva abordada por Freud
em Os Chistes e sua relação com o inconsciente (1905) e em Mais Além Do
Princípio Do Prazer (1920), que concebia como gozo uma atividade pulsio-
nal prescindível e repetitiva subordinada à linguagem. Em gênese, o gozo
já se assentava ao significante, como um prazer desprazeroso, um estranho
desarranjo (BRAUNSTEIN, 2007).
Mais adiante, ao desfalcar a supremacia do significante, Lacan (1981)
passa a compreender o gozo tanto como barreira quanto como produto do
significante. Assim, nas diferentes modalidades de gozo em Lacan, partimos
de três posições que situam sua economia: o gozo do vivo, o gozo do Outro,
o gozo fálico e o gozo outro (Valas, 2001).
58

Em absoluto desamparo, o rebento humano vem ao mundo com o gozo


do vivo, que, ao se deparar com a experiência de servir de objeto de satisfa-
ção, se desenvolve pela via do gozo do Outro que além de retirá-lo do gozo
do vivo, limita-o, em seguida, pelo gozo fálico, marcado pela instauração
fálica no Édipo.
Há, ainda, uma outra estrutura de gozo apontada por Lacan no Seminário,
Livro 20, Mais, Ainda, (1972-1973) o gozo feminino ou gozo outro, posicio-
nado longe da estrutura de linguagem, no mais-além do falo, uma forma de
gozo suplementar em que o sujeito em posição feminina, põe-se como objeto,
amparando o gozo do Outro.
A dissidência entre o gozo do Outro e do gozo outro consiste na concepção

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de que um está aquém e o outro além do Complexo de Édipo. O gozo fálico, gozo
do ser falante, opera uma barreira à pulsão sexual oral do gozo do Outro, agindo
para que não haja prejuízo dos excessos de gozo do Outro ou da assujeição à
devoração do gozo outro na constituição do sujeito (Campanário & Pinto, 2011).
Desde o início, portanto, o sujeito adquire sua imagem doravante o campo
do amparo constitutivo do outro. O estágio do espelho, “[...] fabrica para o
sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se
sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua
totalidade [...]” (Lacan, 1998, p. 97). Ontologicamente constitutivo e estrutu-
rante, o estádio do espelho possibilita à criança localizar no olhar materno uma
imagem unificada do seu corpo, isto é, as coordenadas para a sua subjetivação
enquanto sujeito. No entanto, a priori, essa imagem é condicionada à projeção
do desejo materno em relação à criança (Cabassu, 1997).
Encarnando a condição de Outro primordial doador de significantes, ao
dispor um lugar no seu desejo, a mãe assegura ao filho o encontro com os
significantes que o representem no mundo, inserindo-o numa “rede significante
intertextual da qual ela mesma faz parte como sujeito desejante” (Ravasio &
Vitorello, 2015, p. 435).
Assim sendo, se, em gênese, é basilar a fusão entre mãe-filho, ulterior e
impreterivelmente é necessário um terceiro ator para desonerar a criança do
aprisionamento ao desejo materno. A função paterna é responsável por operar a
castração, que ao simbolizar a interdição fundamental, introduz a lei simbólica
incumbida pela interdição do incesto e desarticulação da criança da posição
de objeto do gozo materno (Braunstein, 2007). Dessa forma, ao desejar algo
para além do seu bebê e se deparar com sua estruturação enquanto sujeito da
falta, a mãe permite a entrada do pai na díade, movendo na criança a vivência
do complexo de Édipo.
A entrada da função paterna na relação mãe-filho é fundamental no
decurso psíquico da criança, pois a falência da metáfora paterna pode oca-
sionar prejuízos estruturais para o desenvolvimento da criança quando criança
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 59

satisfaz a mãe na condição de objeto fálico. Por sua impotência, no começo


da vida, o pequeno fica completamente assujeitado à fantasia materna.
Pontuando um fim na fantasia da mãe de ter o falo, e na do filho que
acredita sê-lo, a função paterna é encarregada em instituir uma fenda na posi-
ção de objeto de gozo materno em que a criança é colocada, para que assim,
possa alçar-se como sujeito do desejo. Nessa tessitura, o Desejo de Mãe (DM)
deve outorgar lugar ao Nome do Pai (NP), limitando pela metáfora paterna,
o desejo de fazer Um entre mãe-criança.
Lacan compara a expressão do gozo materno em analogia a um grande
crocodilo, em cuja boca a criança fica ameaçada de ser devorada, engolida. O
desejo materno tem o predicado de propelir o sujeito para a vida ou condená-lo
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a ser um “filho rolha” que tampona a falta mãe (Lacan, 1981).

O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo


que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre
estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão – a mãe é isso.
Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra. O
desejo da mãe é isso (Lacan, 1969-1970/1992, p. 118).

O desejo da mãe sempre causa estragos (podendo a criança estar sub-


metida ao pior desse desejo), de forma que o bebê destinado a ser suporte
do desejo materno passa a ser reduzido a um objeto: eis o “fator letal” que a
alienação comporta, podendo tomar forma de um gozo sem limites (Lacan,
1964/2008). A “mãe insaciável” está empenhada em devorar (Lacan, 1956-
1957/1995) e, ao manter seu filho capturado e assujeitado as suas significações,
ela não o deixa despontar enquanto sujeito, pois ele se torna objeto de gozo
na boca prestes a fechar desse grande crocodilo.
Há, porém, algo que emperra a bocarra, algo que a retém e põe a salvo o
sujeito: eis o falo; e este não é um frágil graveto, mas, nos diz Lacan (1969-
1970/1992), um potente rolo de pedra “[...] que lá está em potência, no nível
da bocarra, e isso retém, isso emperra. É o que se chama falo. É o rolo que
põe a salvo se, de repente aquilo se fecha.” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 118).
E se a voracidade for de fato, satisfeita, e essa boca vier a se fechar,
quando não há o potente rolo de pedra fálico que põe a salvo o sujeito, o tão
iminente perigo das afiadas presas maternas pode expressar-se no sofrimento
da criança, decorrendo justamente desta posição subjetiva assumida pela mãe
em relação ao filho. A mãe fálica toma a criança como objeto do seu gozo
mortífero marcado pela incapacidade de diferenciação.
No caso Ugui percsupõe-se algo da operação da alienação da criança
ao gozo materno em vários momentos engrendrados na oficina terapêutica.
Como quando a criança representa nos desenhos de “corações partidos” e nos
60

movimentos de quebrar e partir essa assujeição materna, donde nem se quer


era permitido falar do pai. Algo inclusive ostensivo no discurso da mãe “Estou
torcendo para que aconteça alguma coisa para que Ugui não vá para casa do pai”

Considerações finais

O caso Ugli nos convida a pensar sobre os efeitos imprevisíveis ligados


à condição da mãe e a assustadora e perigosa função de uma mãe adaptar-se
além ou aquém das necessidades de um filho ainda mais quando as relações
familiares são marcadas pela violência.
O menino parece ser situado como objeto entre os pais que ainda riva-

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lizam, mesmo que já separados e com o dispositivo da medida protetiva em
vigor. Mesmo com a judicialização incidindo sobre filhos, mãe e o pai de
Ugli, não há proteção quanto a riscos para a constituição psíquica, já que mãe
e pai encontram-se enredados entre eles e o processo judicial da separação e
da guarda dos filhos.
Muito se discute no Brasil acerca da alienação parental, do quão com-
plexo é o processo e do quanto plurais aspectos devem ser considerados.
Quando crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade psíquica estão
envolvidos em processos mediados pela justiça, como no caso de Ugli, mais
ainda se torna complicado o processo.
Importante e necessário considerar que as situações de violência, como
a evidenciada na história de Ugui e sua família, precisam ser analisadas a
partir da múltiplos aspectos, sempre na proteção dos direitos da mulher e de
seus filhos, vítimas de violência. Assim, vale complexificar as causalidades
inconscientes na os quadros de sofrimento e, nunca, cair nas armadilhas hege-
mônicas de explicações lineares e totalizantes.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 61

REFERÊNCIAS
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nário, Livro 5. As formações do inconsciente. Zahar.

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blante. Zahar.

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freudiano. In Escritos. Jorge Zahar.

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Escritos. Jorge Zahar.

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psicanálise. Jorge Zahar.

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DSM-5 / [American Psychiatric Association ; tradução: Maria Inês Corrêa
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Nascimento... et al.] ; revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli ... [et al.].
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Ravasio, M., & Vitorello, A. P. (2015). A “mãe-toda” e a alienação parental:


uma abordagem Freudo-Lacaniana. Pensar, 20(2), 430-450.

Valas, P. (2001). As dimensões do gozo: Do mito da pulsão à deriva do gozo.

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Jorge Zahar.

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síndrome de Münchausen por procuração). Psicologia em Revista, 8(12),
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SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E SEXUAL:
possíveis efeitos na vida das crianças
Marjorie Machado15
Karoline Bones Dill16
Luciane De Conti17
Rafael de Siqueira Fredi18
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De onde falamos

Nesse capítulo, pretendemos alinhavar, em palavras, o que restou da escuta


e, com efeito, como traços de memória, de nossas passagens no campo das
políticas públicas, em específico, de Saúde e de Assistência Social. O que
compartilhamos aqui como escrita está intimamente relacionado aos ecos do
trabalho de oferta da escuta realizado em dois serviços que compõem a rede de
assistência de um município do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Nessa
cidade do interior, duas das autoras trabalharam, em 2018, na época em diferen-
tes tempos de formação em Psicologia, sendo uma com vinculação acadêmica

15 E-mail: marjorie.psique@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1572645042258768
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8574-904X
Psicóloga pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Campus de Santo
Ângelo. Mestranda do PPG Psicanálise, Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS e membro do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Infâncias – NEPIs/UFRGS
16 ORCID: https://orcid.org/0009-0001-7730-389X
E-mail: karolpsi.b@gmail.com
Lattes:http://lattes.cnpq.br/5754786951499207
Psicóloga pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI Campus de
Santo Ângelo.
17 E-mail: luciane.conti@ufrgs.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1172756538624937
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6022-9259
Docente e pesquisadora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise, Clínica
e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do NEPIs – Núcleo de
Estudos em Psicanálise e Infâncias, UFRGS.
18 E-mail: rafael.fredii@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5266522653331502
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-6777-2035
Psicólogo e especialista em Psicologia Clínica pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Realizou percurso em psicanálise pela Associação Psicanalítica de
Porto Alegre – APPOA.
64

e outra já após a graduação, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e no


Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), respectivamente.
Nesses serviços, as autoras se depararam com diferentes situações de
exclusão social e de violência, marcadas também pelo desamparo social e
discursivo. Como sinaliza Rosa (2016, p. 47), o desamparo discursivo ocorre
“... quando certos discursos sociais fazem valer seu poder ao se equipararem
ao campo simbólico da cultura e da linguagem e, desse modo, são fragilizadas
as estruturas discursivas que regem a circulação dos valores, ideais e tradi-
ções de uma cultura, resguardando o sujeito da angústia traumática, do real”
(Rosa, 2016, p. 47). Como efeito deste desamparo, o sujeito silencia, pois não
tem no coletivo o reconhecimento de sua fala, seus valores, suas referências.

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Para fins desse texto, destacou-se os efeitos da escuta realizada a uma
dessas famílias acompanhadas pelas duas autoras, cuja trajetória de vida foi
marcada por repetidas situações de violência doméstica e sexual. Como sabe-
mos, o Brasil possui altos índices de violência doméstica e sexual, porém estas
muitas vezes seguem sendo ‘normalizadas, naturalizadas’. O desenvolvimento
da Lei nº 11.340/2006, nomeada como Lei Maria da Penha, buscou resgatar a
dignidade e a cidadania femininas. Segundo Penna (2019), foi por meio dessa
lei que se tornou possível conceituar a violência doméstica:

Considera-se violência doméstica as agressões no âmbito da unidade


doméstica que, conforme explica a lei, compreende “o espaço de con-
vívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas” (Lei Maria da Penha, 2019); no âmbito da
família, ou seja, indivíduos unidos por laços naturais de parentesco, por
afinidade ou por vontade expressa; e em qualquer relação íntima de afeto
independente de coabitação (Penna, 2019, p. 42).

De acordo com Penna (2019), a Lei Maria da Penha considera violência


contra a mulher qualquer ação ou omissão, que possa causar lesão, sofrimento
sexual, físico, moral, psicológico, patriarcal ou levar à morte. De acordo
com o art. 5º da referida lei, violência doméstica e familiar contra a mulher
é “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Já a
violência sexual, considerada crime para quem for o autor, pode ser definida
como toda ação na qual uma pessoa, numa relação de poder, por meio de força
física, coerção, sedução ou intimidação psicológica, obriga a outra pessoa a
praticar ou submeter-se à relação sexual (Labronici, Fegadoli & Correa, 2010).
A lei Maria da Penha foi criada para prevenir e coibir atos de violência
doméstica contra a mulher. A partir de sua promulgação, foi criado o Juizado
de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (JVDFMs) e, de acordo
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 65

com Penna (2019), passaram a ser adotadas medidas protetivas, entre elas
determinar o afastamento do agressor do lar, vedar seu contato com a família,
encaminhar a vítima e seus filhos para um espaço seguro. Com a criação dessa
lei, a violência contra a mulher deixou de ser considerada de menor potencial
ofensivo. Dessa forma, foram criadas as Delegacias da Mulher, para que a
mulher se sinta mais acolhida e busque realizar a denúncia. Também houve
a implementação de políticas públicas e a integração do Poder Judiciário,
Ministério Público e Defensoria Pública nas áreas de assistência social, saúde,
instituições de segurança, educação, habitação e trabalho.
É a partir desse contexto, delimitado por violências de diferentes ordens
e de violação de direitos, que se deu o trabalho de escuta aqui compartilhado.
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No período em que se passou o acompanhamento da família, as duas autoras


estavam atuando a uma quadra de distância, cada qual fazendo o seu papel na
rede de assistência. No ano seguinte, foi possível trabalharem em conjunto
na Coordenadoria Municipal da Mulher, construindo novos saberes teóricos,
práticos e reflexivos sobre a violência de gênero e seus efeitos na família. Esses
encontros e desencontros possibilitaram, atualmente, realizar esta construção
textual em diálogo com os outros dois autores, os quais cumpriram a função
de alteridade a isto que ecoava como resto, próximo ao não simbolizável, da
experiência de escuta a essa família marcada pelas violências doméstica e sexual.
Para dar forma ao que visamos realizar nesse manuscrito, a saber, dar
contornos e nomeações possíveis aos ecos da oferta de escuta a essa família,
nos apoiamos em recortes de falas – construídos a partir dos registros dos
atendimentos realizados à família pelas duas autoras –, nos quais temos uma
pessoa contando o que outra pessoa vivenciou, com narrativas sobrepostas
e, muitas vezes, entrecortadas, o que pode inicialmente gerar desconforto no
leitor dada a ‘crueza’ dos relatos e sua aparente não coerência temporal em
relação aos acontecimentos vivenciados. Essa insistente nebulosidade parece
fazer parte do trabalho de escuta realizado junto a sujeitos que se encon-
tram em situações sociais críticas (Broide, 2009), em especial em contextos
de extrema violência, pois como apontamos em outro texto (De Conti, Fél,
Machado & Graña, 2023), nessas situações a escuta realizada pelas equipes de
saúde e assistência social é demarcada pelo emaranhamento decorrente das:

...várias lacunas que vão se apresentando ao longo do relato dos casos, o que
gera, na equipe, várias interrogações e angústias. Mas, nesse movimento de
idas e vindas acerca do caso, a equipe tenta montar o quebra-cabeça, con-
figurando uma narrativa “coerente” acerca dos acontecimentos. Em todas
essas narrativas, repetem-se significantes que apontam para um mal-estar
acerca da dificuldade em entender o caso, das relações entre os eventos,
dos motivos de alguns acontecimentos. A angústia que a “confusão” e a
66

“nebulosidade” acerca da “ordem das coisas” gera na equipe é evidente, o


que exige um longo trabalho de elaboração narrativa na tentativa de compor
uma versão possível para enredos aparentemente diversos, heterogêneos,
não entrelaçados. (De Conti, Fél, Machado & Graña, p. 164, 2023)

Mas, pensamos que essa forma de narrar faz parte da construção do caso
em equipe, em que os narradores sempre fala(va)m pela dor do outro. E tal-
vez seja essa busca por uma certa elaboração disso que se deu no campo das
práticas em equipe, disso que restou como efeito da escuta, que configuramos
nosso escrito nesse capítulo. Para isso, vamos inicialmente situar o caso e, na
sequência, apontar alguns significantes que, na nossa leitura-escuta, se destacam

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nos diferentes movimentos delineados pelas crianças envolvidas nas situações
de violência em suas tentativas de dar bordas a isso que se passou. Outro ponto
importante a ressaltar é que, nesse texto, temos a intenção de explorar algumas
inquietações às quais este caso nos convoca. Advertidos, no entanto, de que
a complexibilidade do caso não nos permite esgotar todas as possibilidades
associativas neste trabalho, principalmente no que abordamos aqui: efeitos da
violência doméstica na vida das crianças.

Fragmentos do caso

Ana Sofia, Ana Clara e Pedro, as crianças, eram filhos da atual com-
posição de casal de Ana Beatriz com Pedro Paulo. Eles foram casados por
12 anos; ele conheceu a filha mais velha, Ana Sofia, proveniente da relação
anterior de Ana Beatriz, quando ela ainda era um bebê, e nos relatos da mãe
ele a criou como sendo sua filha. Aqui indicamos que, em nossa leitura-escuta
do caso, o pronome possessivo “sua” parece denunciar algo da objetificação
dessa filha, o que parece estar presente neste caso.
Primeiramente, gostaríamos de ressaltar que para manter o sigilo dos
sujeitos envolvidos no relato foram escolhidos nomes fictícios. Essa escolha
refere a transgeracionalidade da violência, em que os efeitos do abuso ficam
pulverizados em todos da família, fato esse que associamos a muitas realidades
de famílias brasileiras. Três integrantes dessa família nuclear, representantes
do gênero feminino, de diferentes formas passaram por violência sexual.
Sendo assim, de modo simbólico, escolhemos representar essa transgera-
cionalidade por meio dos nomes: Ana Beatriz (a mãe), Ana Sofia (a filha
adolescente) e Ana Clara (filha com idade ainda condizente à infância). Todas
vivenciaram abuso sexual do marido, do padrasto e do pai, respectivamente.
Porém, já indicamos que a violência também teve seus desdobramentos na
vida do filho Pedro, embora que, para fins desse texto, iremos desenvolver
com mais detalhes os efeitos na vida das duas filhas, Ana Clara e Ana Sofia.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 67

Após os acontecimentos de violência sexual contra a filha Ana Sofia, Ana


Beatriz desejava se separar de Pedro Paulo e, por isso, a família migrou de
uma cidade da serra gaúcha, escolhendo a cidade do interior porque era onde
a avó materna das crianças residia. Pareciam fugir de um pai/padrasto/marido,
mas buscavam uma vó/mãe, o que pode ser demonstrativo da necessidade de
apoio e fortalecimento de laços familiares e afetivos, nos quais procuravam
amparo. A família escolheu uma casa pequena que ficava exatamente em
frente à escola onde as crianças estudavam, próximo à casa da avó materna. A
residência também estava localizada próximo ao CRAS e à UBS. Era uma rua
calma, onde os barulhos mais frequentes eram das crianças na saída da escola.
Na UBS, uma das autoras realizava seu estágio acadêmico, tanto de práti-
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cas institucionais quanto de atendimentos clínicos. Tais práticas lhe permitiram


se inserir em diversos espaços daquele território: UBS, clube de mães, escola
e em algum momento o CRAS. Nesse serviço, a família chegou de forma
espontânea. Inicialmente foram a mãe, Ana Beatriz, e a filha mais velha, Ana
Sofia, que conversaram com a enfermeira-chefe, que em seguida bateu à porta
da estagiária de psicologia. A enfermeira relatou, diante da mãe e da filha,
que ficaram em silêncio, que a menina havia sido abusada sexualmente pelo
padrasto e que por isso se mudaram para a cidade, onde agora buscavam ajuda.
A mãe, em algum momento do percurso, aceitou iniciar psicoterapia e, mais
do que isso, tornar-se paciente da unidade, onde buscava auxílio toda semana.
Houve a construção de uma rede para o acompanhamento dessa família, e
cada qual exerceu a sua função dentro das suas possibilidades.
No CRAS, outra das autoras realizava a função de coordenar a equipe
desse serviço. A partir do exercício dessa função, foi possível participar de
reunião na escola do bairro em que o CRAS estava localizado para iniciar o
trabalho em rede e acompanhar essa família. Ainda aqui, a equipe do CRAS
não tinha conhecimento de que a UBS já estava atendendo esse grupo familiar.
A escola em que as crianças e adolescente da família em questão estavam
matriculadas solicitou esse momento de interlocução com a referida equipe
da Assistência Social para juntos montarem um plano de trabalho para a
família e viabilizarem o acesso aos benefícios socioassistenciais. Passamos,
assim, pela experiência da atuação em rede de acolher e escutar a equipe da
escola em que três crianças de uma mesma família estavam matriculadas e
apresentando diariamente o que tomaremos, neste texto, hipoteticamente,
como efeitos das violências vivenciadas no núcleo familiar.

Narrativas do abuso sexual no CRAS

ANA CLARA, preta, 8 anos, cresceu na periferia. Fraturou o pé enquanto


estava no parquinho da escola e precisou fugir do “homem da capa preta”,
68

sem rosto, que apenas ela podia ver. Ele a perseguia. Assombrava seus dias e
noites. Referia que estava quase sempre com ela. Gerava medo e pânico. As
professoras não o enxergavam. Pediram ajuda à equipe do CRAS.
No CRAS, Ana Beatriz, mãe de Ana Clara, relatou que passara a morar
nessa cidade há poucos meses. Ana Clara e os outros filhos, Pedro, 6 anos,
e Ana Sofia, 12, moravam com ela. Tinha familiares neste local. O genitor
das crianças menores ficou na metrópole. Ana Beatriz tinha medida protetiva
contra ele, que era extensiva às crianças.
Ainda na cidade de onde vieram, em uma noite qualquer, o genitor che-
gou em casa, de madrugada, alcoolizado. Trabalhava à noite em um frigorífico.
Foi até o quarto das meninas. Ana Clara estava acordada e, diante do que

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assistia, ficou calada, silenciada pelo horror. Paralisou. O homem, assustador,
tapava com sua mão a boca de Ana Sofia, sua enteada, enquanto a despiu e a
estuprou. Ana Beatriz, a mãe, dormia no quarto ao lado. Havia ingerido seus
soníferos para dormir.
Já no município do interior, onde a família havia encontrado exílio, o
ex-marido ligava para Ana Beatriz e comunicava que iria visitar os filhos.
Ana Beatriz confessou, no CRAS, chorando muito, que sabia que seria for-
çada a satisfazer os desejos sexuais dele. Ana Sofia se mudava para a casa
do namorado até que recebesse a informação de que era seguro retornar ao
convívio dos irmãos e da mãe. A dor calada de Ana Sofia inscrevia-se nos
cortes provocados por ela em seu próprio corpo.
Ana Clara, ao ficar sabendo da visita, imediatamente, começava com
os relatos, desesperados, de sua alucinação visual: ver o “homem da capa
preta”. À noite, gritava, chorava, pedia ajuda à mãe. O irmão acordava com
o alvoroço. O sol nascia e o dormir fez-se impossível à família. Ana Clara e
Ana Sofia foram inseridas nos atendimentos do Centro de Atenção Psicossocial
Infância e Adolescência II.
A família mudou de endereço da noite para o dia. Não retomaram con-
tato com as equipes da rede pública. Não deixaram vestígios. Meses depois,
tem-se a notícia da morte de Ana Beatriz.

Narrativas do abuso sexual na UBS

A mãe apresentava-se confusa; Ana Sofia, a filha de 12 anos, chorava.


Quando a mãe falou, seu pedido era de que a estagiária de psicologia falasse
em particular com a filha, “quem sabe ela conte pra você como foi que acon-
teceu”, disse Ana Beatriz. Ela não contou, mas foi possível ouvir da filha mais
nova, Ana Clara, que estava presente quando o abuso aconteceu e que, de
acordo com a mãe, não cessava de contar, repetidamente, em qualquer lugar.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 69

Ana Clara está ao lado da mãe e Pedro ao lado da estagiária, conversando


sobre algo que passava na televisão no momento.
Após um longo tempo, Ana Beatriz se volta para a estagiária e diz: “Já
que você está aí eu vou te contar”. Ana Clara, a filha mais nova, inclina-se e
olha a estagiária em silêncio ouvindo a mãe falar. “Essa aqui (aponta com a
cabeça para Ana Clara) viu tudo acontecer, tudo, e ela conta o tempo todo,
para todo mundo, na escola, em casa, na rua, eu não aguento mais.” “Ela diz
bem assim: ‘Mãe, eu vi quando o pai entrou no quarto de noite, e ele virou
a mana e tapou a boca dela, fez tudo com ela, depois ele juntou um pano do
chão e limpou ela.’ Ela diz que a Ana Sofia só chorava e agarrou a mão dela
e apertou bem forte chorando.”
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A mãe faz uma pausa e volta a falar: “Eu digo: mas porque não me
chamou? Porque não gritou? Mas eu penso que ela devia estar com muito
medo na hora, medo dele fazer o mesmo com ela.” Ana Beatriz para de falar
e volta a sua atenção para a televisão, em seguida o médico nos chama para
fazer o encaminhamento.
Posteriormente, Ana Beatriz vai à unidade e conta como foi a Páscoa.
O ex-marido veio ver os filhos, a filha mais velha estava na casa da avó e os
filhos mais novos ficaram em casa com os pais. Ela conta que o ex-marido
tentou ter relações sexuais com ela, o que provocou uma briga física entre
eles. Então ele contou para ela como foi que violentou a filha e alegou que ela
se insinuou para ele. Isso fez Ana Beatriz perder o controle e expulsar ele de
casa. Ana Beatriz relata que “Ele (o pai) disse que ela sentou no colo dele e
pediu que ele desse mais atenção para ela, porque ele estava muito distante.
Mas, de onde eu vou acreditar que a minha filha ia pedir uma coisa dessas pra
ele? Eu acredito nela, acredito na minha filha. Quando ela me contou eu nem
sei, fiquei em choque.”
Aqui podemos aludir ao conceito de desmentido, de Ferenczi (2011):
desmentido como um descrédito é algo que envolve o outro. No caso em que
ocorre o desmentido, o adulto que ratifica o desmentido afirma que o abuso não
existiu (Canavêz & Verztman, 2021). Porém, Ana Beatriz dá crédito à denúncia
da filha Ana Clara, reconhecendo a denúnica, e conta como foi levar a filha
Ana Sofia para fazer os exames que comprovaram o abuso e em seguida para
a delegacia para prestar queixa. “Sinto que isso não acabou ainda, eu queria
fazer alguma coisa”. “O quê?”, perguntam-lhe. E ela responde: “Matar ele.”

Tessituras possíveis das marcas da violência pelas crianças

Os recortes dos fragmentos do caso compartilhados acima narram as repe-


tidas situações de violência doméstica e sexual vivenciadas e testemunhadas
pelo grupo familiar. E nessa roda da vida, cada um fez o que pode com isso
70

que lhe aconteceu, a partir de seus recursos psíquicos, de sua singularidade... O


impacto que a violência vivenciada impôs na vida de cada uma, de cada um de
seus membros é único e diverso. E a partir destes recursos e, se possível, com o
amparo de outros que possam dar testemunho e, quiçá, reconhecer o sofrimento
decorrente disso, nomear e (res)significar o que decanta do que se passou.
Na sequência, procuramos apontar, a partir de nossa leitura-escuta, os
caminhos que Ana Clara e Ana Sofia e, também, brevemente Pedro, conse-
guiram compor nas suas tentativas de tecer bordas, nomeações, significações
aos efeitos que a situação traumática de violências lhes provocou.

Ana Clara: cortes na realidade

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A filha do meio, Ana Clara, é quem apresenta a narrativa dessa vio-
lência, não cessando de narrar em todos os ambientes que frequenta. E é
devido à sua narrativa que a mãe fica sabendo do abuso, que a escola rea-
liza uma intervenção e que o caso chega até o CRAS e a Coordenadoria da
Mulher. Assim, pretendemos explorar alguns aspectos concernentes a Ana
Clara, e os efeitos da violência por ela anunciada/denunciada. Pensamos
que os pontos de articulação possíveis aqui são: este não cessar de narrar, a
alucinação com o homem da capa preta e o lugar de objetificação que Ana
Clara testemunha sobre a irmã.
Vemos que sobre o não cessar de narrar, de alguma forma, Ana Clara
parece estar presa em algo do autômaton, termo tomado por Lacan do voca-
bulário de Aristóteles para situar algo do retorno, da compulsão à repetição, da
insistência dos signos, e indica a relação com o real que está vigente (Lacan,
2008). O real como sendo algo que sempre escapa, ele é “apresentado na forma
do que nele há de inassimilável, na forma do trauma” (Lacan, 2008, p. 60). À
noite, as Anas dormiam, e eram despertadas por algo inesperado, despertadas
não pelo pai, mas pela angústia trazida pelo homem da capa preta.
Acordadas pelo real do trauma, pois como diz Lacan (2008, p. 60): “O
real pode ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, a pouca-realidade,
que testemunha que não estamos sonhando”. Hipoteticamente, nos parece
que aquilo que Ana Clara repete sem cessar em todos os lugares que passa
seria essa uma tentativa de contornar esse rompimento da realidade, isso que
excede o nomeável, o possível, o excesso daquilo que norteia nosso pacto
civilizatório, o laço social e que, por isso, insiste em se fazer representar.
Outro ponto possível de articulação dessa repetição constante da narra-
tiva que Ana Clara esboça é a apresentação de alguns traços que nos levam
a pensar na fala característica da psicose. Contudo, advertimos o leitor que
nosso intuito, neste ponto, não é o de indicar uma estrutura psicótica em Ana
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 71

Clara, visto que as estruturas na infância, como assinala Bernardino (2004),


ainda não podem ser definidas.
Em seus estudos sobre Lacan, Lacet (2004) analisa a linguagem na fala
psicótica e afirma que uma falha na função significante irá resultar em marcas
no funcionamento da linguagem. Dessa forma, palavra e coisa irão se confundir,
as palavras vão ganhar textura e se tornam coisas que afetam, invadindo o corpo
e o transpassando. Quando a palavra se torna uma coisa, ela perde a sua função
como símbolo e não possui mais o sentido ou a função que possuía antes. Sendo
assim, podemos pensar que Ana Clara não consegue significar o ocorrido, não
através das palavras, e as usa para barrar o pensamento, pois quando a palavra
perde o sentido ela se torna um signo, que requer uma outra interpretação. A
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fala psicótica pode gerar uma verborragia, palavras que não cessam de se com-
plementarem, em uma narrativa contínua que nunca satisfaz o sujeito narrador,
sendo uma tentativa de afastamento da angústia trazida pelo trauma.
No seminário intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan (2008) fala sobre a incidência de uma certa homeostase subjetivante
orientada pelo princípio do prazer, que buscará o tamponamento daquilo que
é da ordem do trauma. Ou seja, a tentativa que o psiquismo faz para manter
uma certa estabilidade, dada a aparição do Real do trauma, desvelado, sem
o tamponamento da fantasia. O psicanalista situa, ainda, que o lugar do Real
vai do trauma à fantasia; sendo assim, trata-se da operação psíquica de tentar
cobrir aquilo que é da ordem do inassimilável.
A fantasia pode solucionar um problema no Real? As narrativas de Ana
Clara, as quais ela não consegue simbolizar, assemelham-se a um conto, no
qual existe um vilão. Como ela não consegue concebê-lo, transforma-o e
projeta-o para fora de si. Maria Rita Kehl (2006), na introdução de Fadas no
Divã, salienta a capacidade dos contos, sejam eles clássicos ou modernos, de
auxiliar a criança a simbolizar e resolver conflitos psíquicos inconscientes; e
aponta, ainda, que a fantasia pode auxiliar na construção da identidade e na
criação de espaços psíquicos.

Como a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o ima-


ginoso, entre o verdadeiro e o verossímil (fronteiras estabelecidas, em parte,
pelo recalque das representações inconscientes), todas as possibilidades da
linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela
necessita para abordar os enigmas do mundo e do desejo (Kehl, 2006, p. 15).

Assim, pela via dessas duas operações, vemos que o medo do próprio
pai se projeta para fora do corpo, personifica-se em uma figura escura, ocul-
tada por uma capa preta, que perseguia, assustava e estava sempre presente,
principalmente à noite, impossibilitando que Ana Clara pudesse dormir e
72

fazendo com que seu choro acordasse a todos na casa. Além disso, Ana Clara
não permite o oculto, ela conta para a mãe, para a escola e para quem quiser
saber sobre o abuso da irmã; assim como não permite que o homem da capa
seja uma visão particular, ela o denuncia, como denunciou o pai. Portanto,
podemos ler a repetição da narrativa, juntamente com a alucinação manifes-
tada por Ana Clara, como uma forma de tentar recobrir, criar, produzir algo
da fantasia para situar o horror do trauma.

O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que fantasia


nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro,
de determinante na função da repetição – aí está o que precisamos demar-

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car agora (Lacan, 2008, p. 64).

Partindo para outro momento desse recorte, uma parte da narrativa de


Ana Clara sobre o abuso nos chama atenção e denuncia a desumanidade da
posição de objeto em que este “pai” coloca a filha que criou como sua. Como
já dito antes, a criança estava presente no momento da violência, e quando se
fazia possível ouvir a narrativa de Ana Clara, a frase final era sempre a mais
impactante, na qual ela acentua o ocorrido: “ele fez tudo com ela [a irmã Ana
Sofia], depois pegou um pano do chão e limpou ela”.

Ana Sofia: cortes no corpo

A violência vivida por Ana Sofia perpassa o corpo psíquico da irmã e da


mãe, causando uma dor que se propaga pela família, afetando o irmão e a avó,
adoecendo cada um de uma forma diferente. Na obra Psicologia de grupo e
análise do ego, Freud (1921/1980) aborda a intersubjetividade e destaca que o
desenvolvimento de cada sujeito está entrelaçado com o de Outros. A subjeti-
vidade da criança se constrói por meio da relação com objetos e afetos, através
de experiências reais, simbólicas e imaginárias; dessa forma, mostra-se possível
uma transmissão psíquica, de traços de subjetividade e de adoecimentos tam-
bém, fenômeno de identificação imaginária. Para Kaes (1998), o inconsciente
carrega a “marca” de outros sujeitos, que se manifesta na sua estrutura e nos seus
conteúdos. A história de uma família, mesmo uma história não contada, princi-
palmente uma história adivinhada ou silenciada, é passível de ser transmitida
entre gerações e ser atualizada em vivências das novas gerações. Aquilo que
se transmite é aquilo que não pode ser dito (vergonha, medo, decepção, luto).
Ana Beatriz viveu em matrimônio com o pai de Ana Sofia, mas rom-
peu o relacionamento quando esta era bebê. Em pouco tempo, casou-se de
novo, com o pai de Ana Clara e Pedro. De acordo com a mãe, ele se dedicou
à enteada “como se fosse dele” e viveu essa relação familiar por doze anos.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 73

Ainda conforme Ana Beatriz, “ele era um ótimo pai e marido, até que a filha
relatou o abuso”.
Após saber do ocorrido, Ana Beatriz sentiu-se na responsabilidade de ir
a médicos para periciar a filha e foi à delegacia registrar ocorrência, comparti-
lhando o sofrimento psíquico de suas filhas, ambas vítimas na situação do abuso
sexual, sendo Ana Clara quem testemunhou o abuso do pai com a irmã dela.
O atendimento a Ana Sofia foi a pedido da mãe, “quem sabe ela conte
pra você como foi que aconteceu”. A mãe só tinha escutado por meio da
narrativa de Ana Clara, que foi testemunha visual do abuso, de modo que a
confidência de toda a violência estava nas palavras dela. Ana Sofia se recusava
a falar a respeito. Ao falarem com ela, mantinha-se em silêncio; quando lhe
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perguntavam sobre a escola e sobre as aulas, era possível ouvir sua voz. Ao
brincar com ela sobre as aulas de matemática também não serem as favoritas,
ela sorria; no entanto, não chegava a falar sobre o abuso.
Sabemos, pela narrativa de Ana Clara, que após o abuso a irmã segurou
a sua mão com força e chorou, não buscou a mãe, mas fechou-se sobre si
mesma. Quando a mãe, Ana Beatriz, descobre o crime, vai com a filha até a
delegacia e a hospitais, buscando ajuda. Nessa movimentação, as palavras
são da mãe. Quando elas chegam até a UBS, o pedido da mãe para que a
estagiária de psicologia falasse com Ana Sofia ilustra essa posição, mas Ana
Sofia não consegue contar, assim como não conta na escola. E novamente
quem assume essa fala é Ana Clara, por cuja narrativa, que não cessa de
se repetir, buscando significantes, a direção da escola se torna ciente sobre
o caso e intervém, entrando em contato com a Coordenadoria Municipal
da Mulher.
Ana Sofia, após ter sofrido a violência, manteve-se calada e assumiu
essa posição para si. Porém, o silêncio de Ana Sofia falava de algo, era um
silêncio gritante. Após algum tempo, tem-se a informação de que Ana Sofia
estava se automutilando, realizando cortes nos braços e nas coxas com uma
lâmina. Através do acting out19, a adolescente fala sobre a sua dor sem precisar
dizer verbalmente; por meio do fazer ela elucida a sua dor, as suas perdas e
os seus medos.
O acting out se manifesta na necessidade que Ana Sofia tem de nomear
o ocorrido, de dar bordas ao excesso sofrido na carne, no corpo, de falar –
embora não verbalmente –, pois estava inserida em uma família, em uma
escola, em instituições que sabiam da violência que sofreu, espaços onde
todos falavam sobre isso, de diversas posições, seus familiares, amigos, pro-
fessores, profissionais de saúde, e ela era a única que não podia se narrar, que
19 O termo remete à técnica psicanalítica e designa a maneira como um sujeito passa inconscientemente ao
ato, fora ou dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança
recalcada e para se furtar à transferência. No Brasil também se usa “atuação” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 5).
74

não encontrava espaço subjetivo para a sua fala, e sucumbe a outros meios de
responder à angústia. Ana Sofia vivia uma angústia indizível e encontrava o
seu desamparo de modo escancarado. Os cortes aliviariam algo da angústia
e da dor, ao mesmo tempo que a lembravam de que estava viva. De acordo
com Lacan (2005), a angústia se manifesta quando não temos a falta do objeto
que caracteriza o desejo, ou seja, quando a falta falta.

Lacan define o acting out como um subir à cena do objeto, enquanto a


passagem ao ato seria um deixar-se cair ou um sair de cena. A diferença
entre os dois “é que no segundo haveria um curto-circuito do objeto com
o sujeito, sendo o sujeito” quem cai, enquanto no primeiro haveria uma

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subida à cena do objeto, mas agora endereçado ao Outro. Desse modo
Lacan irá dizer que o acting-out é uma transferência selvagem e que cabe
ao analista, mediante seu ato, restituir ao objeto o seu lugar de causa de
desejo (Calazans & Bastos, 2010, p. 248).

Pinho (2002) define o acting out e a passagem ao ato como o agir, o


colocar em prática ou em ato as pulsões, ou seja, os transbordamentos pul-
sionais também podem aparecer através da passagem ao ato e do acting out.
A passagem ao ato é um agir inconsciente, um ato não simbolizável que leva
o sujeito a uma condição de ruptura integral, no qual encontra-se em uma
identificação absoluta com o objeto a, o objeto excluído de qualquer quadro
simbólico. Ele não é um ato dirigido a alguém, é uma queda no vazio. A
passagem ao ato aponta para a dimensão do traumático, para o campo do
irrepresentável. O acting out, por sua vez, é algo que é mostrado na conduta
do sujeito, orientado para o Outro. Ele é dirigido ao Outro para ser decifrado,
é uma demanda de simbolização, ele precisa que o outro decifre e interprete
sua conduta, não é uma queda no vazio, é uma convocação ao Outro, uma
busca de ajuda. E o nosso trabalho como psicanalistas é ajudar este sujeito a
tomar posse também da sua voz (Carissimi, 2017).
O acting out é uma tentativa de evitamento da angústia, ele não pode ser
dito por falta de simbolização, não consegue colocar em palavras o que sente.
Dinamarco (2011) menciona que o sujeito ao realizar as marcas no corpo,
está procurando o seu lugar no mundo e que pode ser a única possibilidade
em curto prazo que ele possa se perceber como um ser diferenciado do outro.
Refere que os cortes podem funcionar como um ato de autoproteção ou preser-
vação, porque dão a possibilidade de criar uma nova identidade, anteriormente
aniquilada pelo olhar do outro, pois as marcas são a tentativa de inscrição de
uma borda física entre o eu e o outro. Quando o outro vê a marca, ela causa
algum afeto entre ele e o sujeito, mesmo que o significante não seja revelado,
a imagem do sujeito é presa pelo outro através desta marca.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 75

Dessa forma, podemos pensar que Ana Sofia endereçou seu pedido de
ajuda através dos cortes em seu próprio corpo e usou a sua pele como perga-
minho na tentativa de fazer sua escritura, na tentativa de tomar o que é seu de
direito e conquista, ou seja, seu corpo, seus limites, seus desejos e sua vida.

Pedro

Como já dito anteriormente, a violência parece perpassar por todos os


membros dessa família, porém de forma singular em cada caso. Vemos que
Pedro parece reagir de um modo particularizado em relação às Anas, expres-
sando que o sofrimento também o atinge, mas de uma outra posição. Sobre
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Pedro, escolhemos pontuar brevemente o aspecto da possível identificação


com o pai, via endereçamento da violência ao feminino.
É sabido, a partir da psicanálise, que a infância tem grande relevância na
constituição da subjetividade e marca a construção da identidade pela qual o
sujeito pode situar sua posição no mundo. Pedro parece escolher uma forma
de expressar sua dor por meio de atos violentos, seja na escola ou no ambiente
familiar, atirando objetos na mãe e nas irmãs, repetindo de alguma forma a
posição do pai. Hipoteticamente, podemos pensar na relação de identificação ao
caráter de objetificação das mulheres que o pai de Pedro lhe transmite, marcado
pela posição violenta.
Partindo disso, pensamos que é na constituição psíquica para o menino,
como resultado do final do conflito edipiano, que poderá se dar a introdução
da autoridade paterna no Eu. “A partir da organização desta nova instância, o
menino toma de empréstimo a severidade do pai – o que assegurará a proibição
do incesto” (Bonfim, 2022, p. 91). Desse modo, a operação realizada por esse
complexo, juntamente com o discurso do Outro, tem papel demarcador quanto
aos modelos, normas e semelhantes que participam de um ordenamento das
relações entre os sexos e na indicação de uma posição subjetiva. Portanto, um
dos resultados do conflito edípico poderá ser a identificação (Freud, 2011).
No caso relatado neste trabalho, no que tange a Pedro, podemos ver
que a presença do pai é sentida de forma diferente por ele em relação ao que
as irmãs e a mãe sentem. Em algumas passagens dos relatos, vemos que o
menino demonstra sentir falta do pai e se alegra com a possibilidade de sua
visita, pois ele demonstrava querer a visita do pai, principalmente devido ao
que declarava como promessa esperada: ‘ele vai trazer brinquedos na Páscoa’.
O que demonstrava que conversava ao telefone com o pai.
O pai é aquele que traz presentes e que parece referenciar sua posição
subjetiva. De alguma forma, as insígnias paternas chegam a Pedro, que parece
ter o pai em lugar de idealização. Ele repete o traço violento direcionado
ao feminino, seja por uma via de manutenção do pai internalizado, seja por
76

manifestação de sua dor. O significante20 “violência direcionada ao feminino”


circula nesse lar e no discurso de Pedro.

Desfechos do caso

Pensar sobre o desfecho desse caso, coloca-nos diante de muitas interro-


gações. Ele parece remeter mais uma vez ao não simbolizável, que permeia
toda a narrativa, pois, assim como a família chega até a Rede, também se evade
dela. Como dito no relato, eles vêm em busca de amparo, vêm para próximo
de familiares e procuram a rede em diferentes esferas da política pública.
O sumiço da família se deu da noite para o dia. Na UBS, havia sido mar-

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cada uma visita domiciliar. Após Ana Beatriz não retornar para a psicoterapia,
as agentes comunitárias de saúde, ao chegarem na casa, depararam-se com ela
fechada e souberam pelos vizinhos que a família havia se mudado. Do mesmo
modo ocorreu na visita técnica domiciliar da assistente social do CRAS.
Mudaram para onde? Ninguém sabia. Não deixaram rastros. No contato com
a Coordenadoria Municipal da Mulher em busca de informações, descobre-se
que para eles a situação também é um mistério. Na escola, nenhuma informa-
ção. Aguardou-se que a mãe de Ana Beatriz, a avó das crianças, comunicasse
o que havia ocorrido, mas ela também não se fez mais presente.
Em meio a esse sumiço, veio a notícia, à equipe do CRAS, de que este
seria fechado, que o município não teria condições financeiras de custear
a manutenção dos três CRAS em pleno funcionamento. Esse CRAS era o
mais novo fundado no município de aproximadamente 80 mil habitantes e
o único que não tinha sede própria. Em trinta dias, o CRAS estaria fechado
e a dissolução de tudo que ali estava envolvido aconteceria nesse prazo.
A equipe foi dividida entre as outras unidades da política de assistência
do município, assim como as mobílias e eletrônicos. Todas as famílias
foram encaminhadas a outras instituições, à exceção da família em questão
nesta proposta de escrita, pois não tínhamos informação de endereço ou
telefone dela. O não simbolizável aqui se reinscreve: surge, meses depois,
a informação da assistente social que acompanhava a família no CRAS de
que chegou para ela (no momento, vinculada ao CREAS do município)
documento de benefício eventual de auxílio funeral, em nome de Ana
Beatriz, que havia morrido. Muito se especulou sobre as condições da
morte, mas certezas não se tem.

20 “Retomado por Jacques Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante
transformou-se, em psicanálise, no elemento significativo do discurso (consciente ou inconsciente) que
determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 708).
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 77

A perda do contato com a família culmina com o desmonte da equipe


do CRAS, em um contexto de esvaziamento dos investimentos públicos nas
políticas de assistência. Poderíamos nos interrogar sobre outra forma de vio-
lência que perpassa essa família, uma violência da perda do espaço e do auxílio
que Ana Beatriz buscava para si e para seus filhos? Pois parece estar nítida a
demanda de assistência e de amparo que a mãe endereçava à rede em função
da sua fragilidade em dar conta dessa situação traumática. Isso fica situado
desde a escolha do imóvel, muito próxima à UBS e ao CRAS, e por suas idas
constantes até a UBS.
Outras evidências do vazio que essa narrativa nos coloca é que após
o desmonte da equipe houve algumas tentativas de contatar a família para
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os devidos encaminhamentos, porém sem sucesso. Esta foi a única família


atendida pela equipe do CRAS que não foi possível contatar; seus integrantes
desapareceram da Rede. Sendo assim, não sabemos sobre a morte da mãe,
não sabemos sobre o paradeiro e o destino das crianças. Eles se foram, tão
rapidamente quanto vieram.
Quando se trabalha com o Outro, estamos à mercê dos seus movimentos
no mundo. O sumiço repentino da família não era algo cogitado e quando
aconteceu nos deparamos com uma falta, o vazio. Pensamos que esse senti-
mento que nos acompanhou após os últimos contatos com a família e durante
essa escrita também irá afetar o leitor. Não sabemos o destino das crianças e
não temos mais informações sobre as circunstâncias da morte da mãe, fica a
angústia, fica o vazio, e é assim mesmo, precisa ficar, quando nos deparamos
com esse desfecho é preciso que se falte algo.
Apesar do desfecho que nos lança no vazio, na falta, pensamos que as
escolhas realizadas pela família nos indicam a procura pelos fios que pode-
riam ajudar o grupo familiar a sustentar sua existência física e psíquica, que
permanece, mesmo após os encontros, no decorrer da vida, o que nos remete
à ideia de ancoragem. De acordo com Broide e Broide (2016, p. 31),

... ancoragens não é um conceito propriamente dito, mas um termo que


nos permite estruturar uma metodologia de trabalho baseada na escuta
qualificada e na consideração da relação transferencial estabelecida entre
o técnico e a pessoa que ele atende. Leva em consideração o compromisso
ético e o rigor clínico. Esse atendimento adquire uma especificidade em
relação ao trabalho realizado no consultório, pois é necessário operar na
urgência social dominada pelo desamparo, pela violência, pelo caos e,
muitas vezes, pela morte iminente. Podemos dizer que esta metodologia
de trabalho busca sempre, seja onde for, por meio de uma escuta clínica, os
fios que amarram o sujeito à vida. É a escuta que nos permite mapear estes
fios que se embrenham pelo território físico e psíquico. Vamos puxá-los,
78

amarrá-los, articulá-los na rede do desejo através de atendimentos na


comunidade, na instituição, na família, e com o nosso atendido.

E nos parece exatamente que as equipes que acompanharam essa


família tentaram, no tempo em que foi possível, se organizar a partir da
metodologia das ancoragens, cumprindo uma função de suporte, mesmo
que provisório, aos sofrimentos decorrentes das situações de violência
vivenciadas por este grupo familiar. Gostaríamos que as histórias aqui
compartilhadas pudessem ter tido outros desfechos, mais alentadores tal-
vez. Mas, o que decanta dessa escrita como tentativa de elaboração do que
insistia em se fazer representar como efeito do trabalho realizado com essa

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família, é que o tempo da escuta possibilitou às crianças e à mãe, pequenos
movimentos de respiro, de amparo e de reconhecimento das histórias por
elas narradas. Nossa esperança é que o nosso testemunho a isso que foi por
elas contado tenha reverberado em suas vidas e lhes permitido dar outros
rumos às marcas de desamparo e de violência vivenciadas.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 79

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A ESCUTA DE VIDAS
DE ADOLESCENTES E MULHERES
NEGRAS:
a violência de gênero e a transmissão
de uma fábrica de dor
Rose Gurski21
Dieine Mércia de Oliveira22
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Bruna Flores Bayer23


Bruna Ferreira de Oliveira24
Julia Dias Torman25
Jéssica Michelle dos Santos Silva26

Desde 2021, o NUPPEC/UFRGS – Eixo 327 vem estreitando laços com o


Coletivo Preta Velha28, um Coletivo de Mulheres da Periferia de Porto Alegre/
21 Psicóloga e Psicanalista. Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia UFRGS; Professora
do PPG Psicanálise: clínica e cultura UFRGS e do PPG Psicologia Clínica USP. Pesquisadora CNPq.
Pesquisadora do PSOPOL/USP. Coordenadora do NUPPEC - Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação
e Cultura UFRGS. Pós-doutora em Psicologia Clínica USP. E-mail: rosegurski@ufrgs.br.
22 Psicóloga, Mestra pelo PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Doutoranda pelo PPG em Psicologia Clínica
(USP). Pesquisadora Vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS)
e ao Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL/USP). E-mail: oliveiradieine@yahoo.com.br.
23 Psicóloga. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura e Pesquisadora Associada ao Núcleo de Pesquisa
em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: brunafloresbayer@gmail.com
24 Psicóloga pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo
(USP). Pesquisadora Vinculada ao NUPPEC/UFRGS e ao PSOPOL/USP. E-mail: psi.brunafoliveira@gmail.com.
25 Graduanda em psicologia, acompanhante terapêutica e membro do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise,
Educação e Cultura (NUPPEC) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Email:
juliadiastorman@gmail.com.
26 Psicóloga, Mestranda em Psicanálise: Clínica e Cultura e Pesquisadora Associada ao Núcleo de Pesquisa
em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da Universidade Federal de Rio Grande do Sul e-mail:
jessicamichelle.psi@gmail.com.
27 O Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura – Eixo Psicanálise, Educação, Intervenções
Sociopolíticas e Teoria Crítica (NUPPEC/UFRGS – Eixo 3) consiste em investigar o laço social atual e suas
reverberações, enfatizando o tema da adolescência em situação de vulnerabilidade. O Núcleo é composto por
docentes, discentes da pós-graduação, da graduação e pesquisadores associados. Mais informações podem
ser obtidas nos links: www.ufrgs.br/nuppec, www.facebook.com/nuppec e www.instagram.com/nuppec.eixo3.
28 O NUPPEC – Eixo 3 tem realizado projetos de pesquisa e extensão junto à comunidade da Vila Cruzeiro
do Sul, em Porto Alegre, especificamente com as mulheres e meninas do Coletivo Preta Velha. As ações
de pesquisa e intervenção atuais são: Escuta-flânerie em um coletivo de mulheres da periferia (2022/2023);
Adolescentes da periferia e a violência contra a mulher no Brasil: efeitos do dispositivo da escuta-flânerie
(2023) e As rodas de sonhos com adolescentes da vila cruzeiro: a oniropolítica e sua função no campo da
saúde mental (2023).
82

RS. O Coletivo foi estruturado por mulheres da comunidade da Vila Cruzeiro29,


sobretudo mulheres negras que possuem uma posição de liderança no território.
A organização deste espaço nasceu do desejo de transformação por melhores
condições de vida para os moradores daquela comunidade, especialmente, para
as filhas e filhos, mulheres e mães que habitam o território. Buscaremos, por-
tanto, apresentar alguns fragmentos do trabalho que temos desenvolvido junto
a este Coletivo por meio da escuta das narrativas das mulheres do território que
circulam pelo espaço do Coletivo.
Na medida em que fomos avançando no trabalho de escuta com essas
mulheres, nos aproximamos da produção de Lélia Gonzalez. Lélia, no texto A
importância da organização da mulher negra no processo de transformação

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social (2020), destaca a relevância da união de mulheres negras em projetos
cujo objetivo seja pautar diálogos acerca de modos de resistência à exclusão
no espaço social. A autora sublinha que as mulheres, em geral, mas, espe-
cialmente, as negras, precisam reivindicar seu lugar na sociedade, lutando
contra a subordinação racial e sexual: “nosso lema deve ser: organização já!”
(Gonzales, 2020, p. 270).
Ao conhecermos melhor as formas de organização e de luta pelos direitos
sociais básicos do Coletivo, percebemos que as falas continham algo único,
um traço que se repetia em vários discursos. As expressões a que nos refe-
rimos, circulam pelos seguintes fragmentos: eu sou uma fábrica de filhos;
vida sofrida, minha filha; nossa lei não é matar; balé não é coisa de menina
preta; é preciso conhecer a realidade da comunidade.
Na medida em que notamos a recorrência da “dor” contida tanto nas pala-
vras como nos sentidos enunciados, passamos a nos questionar se não havia
nisso uma marca da experiência dessas mulheres negras de vidas precarizadas
do país. Escutamos nessas, e em outras enunciações, também, uma possi-
bilidade de que tal dor fosse uma transmissão de mãe para filha, de mulher
para mulher. Passamos a nos interrogar como afinal se constitui a dor e o
sofrimento na experiência dessas mulheres? Será que a experiência com
o racismo e o sexismo seria uma espécie de “fábrica de dor” transmitida
às filhas adolescentes?
Frente a tais indagações, encontramos o conceito de dororidade cunhado
por Vilma Piedade (2019), professora, ativista e feminista negra. O termo,
trazido pela autora, dialoga com o conceito de sororidade já explorado pelo
Movimento Feminista. Porém, o que Piedade (2019) sublinha com a dorori-
dade é justamente a especificidade da vivência-dor das mulheres negras, onde
o centro da questão é a pretitude da mulher preta.

29 A Vila Cruzeiro do Sul é uma região de intensa vulnerabilidade social do munícipio de Porto Alegre que
apresenta taxas altas de tráfico e violência.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 83

A proposta de ampliação do termo, realizado por Piedade (2019), aposta


no alargamento das bordas do conceito de sororidade. A professora e ativista
afirma que essa designação parece não representar a pretitude presente na
experiência das mulheres negras. Para Piedade (2019), o termo dororidade
localiza e identifica um lugar de pertencimento para falar a respeito da
vivência singular de mulheres pretas, de uma dor que: “contém as sombras,
o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo. E essa
Dor é Preta” (Piedade, 2019, p. 18). Ao ouvirmos as mulheres negras do
Coletivo Preta Velha, acrescentamos ainda que essa dor é do corpo preto
da mulher preta.
Para termos uma noção dessa vivência através de dados, só no ano de
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2019, 66% das mulheres que foram vítimas de feminicídio eram mulheres
negras (IPEA, 2021). Outra estatística que se junta a essa realidade é a da taxa
de homicídios de mulheres não negras, o qual foi de 2,5%, enquanto que, para
as mulheres negras foi de 4,1%, do total de feminicídios ocorridos naquele ano.
Ou seja, identificamos nestes índices que o risco de uma mulher negra ser vítima
de homicídio é quase 2% maior do que o de uma mulher não negra. Trazer essas
estatísticas ajuda a compreender melhor como se materializa as constantes vio-
lências que a mulher preta e periférica sofre. Com estes dados ilustramos ainda
um pouco das narrativas trazidas pelas mulheres do Coletivo, enfatizando as
inúmeras dores provocadas pelo lugar de invisibilidade do corpo preto mediante
a discriminação de classe, gênero e raça no Brasil (Carneiro, 2017).
O Coletivo está situado em uma zona periférica da capital gaúcha pau-
tada pela violência e pela falta de recursos políticos e humanos. Já referimos
acima que há uma ausência de políticas que viabilizem acesso aos próprios
direitos básicos dos cidadãos e cidadãs da comunidade. Assim, é por meio da
proposta de um espaço de acolhimento das dores, lutas e violências diárias,
sofridas por essas mulheres, adolescentes e crianças moradoras da região que
se apresentou a iniciativa de construção do Coletivo.
Entendemos que o surgimento do Coletivo se deu com o intuito de fazer
despertar a luta pela cidadania e pela garantia de direitos. Um dos direitos
caros e valorizados por essas mulheres é a garantia de acesso à educação
integral para seus filhos e netos.
Ora, a educação no Brasil, apesar de constituir um direito social assegu-
rado pela Constituição Federal de 1988, nem sempre é honrada pelas políticas
públicas educacionais. A demanda por uma educação e formação de qualidade
para as crianças e jovens da Comunidade foi uma das pautas que conduziu
às ações coletivas e reivindicações políticas deste grupo. Ações essas que
se movimentam no contrafluxo dos discursos hegemônicos atuais, especial-
mente, porque estas mulheres, negras e periféricas, construíram um projeto
84

que reintegra a acelerada decomposição da solidariedade e da capacidade de


ação coletiva dos subalternizados (Marques & Gonçalves, 2021).
O Coletivo Preta Velha nasceu do fechamento e abandono pelo Governo
Estadual de uma escola pública da comunidade da Vila Cruzeiro em 2018.
Com o abandono do prédio e a ausência do Estado, acabou por ocorrer a
invasão de lideranças do tráfico e de usuários de drogas no espaço.
Importa sublinhar que foi do (des)aparecimento de um corpo, nesse caso,
um corpo encontrado morto na frente da escola mencionada – corpo que até
hoje não teve reconhecimento e tampouco identificação – que essas mulheres
decidiram dar um basta nessa violência, reunindo forças para ocupar o prédio
da Escola – atual Sede do Coletivo Preta Velha.

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A indiferença com relação a esse corpo encontrado em frente à escola é mais
um capítulo da história de vidas que não importam para as cidades e para o país.
Judith Butler (2009/2020), filósofa e ativista norte-americana, que nos acompanha
nas pesquisas e intervenções sociopolíticas que realizamos, comenta que algumas
vidas recebem o status de vidas precárias e não vivíveis. Isso nos leva ao que a
autora trabalha em relação às políticas de identidade, as quais, não obstante, pela
inexistência de um “fundamento” identitário único, leva o sujeito ao apagamento.
Butler teoriza o conceito de vida precária, problematizando o modo como
algumas vidas não são passíveis de luto. Ela comenta que certas vidas possuem
direito ao luto, pois são reconhecidas, já a outros corpos tal direito é negado,
pois são vidas que justamente não “merecem” ser vividas (Butler, 2004/2019;
Butler 2009/2020). A autora também refere que existem vidas “que não são pre-
servadas por nenhuma consideração, por nenhum testemunho, e que não serão
enlutadas quando perdidas” (Butler, 2009/2020, p. 33). Portanto, quando uma
vida é perdida, sem ser sentida, é como se ela não tivesse de fato existido na vida
social e política. Pois, se não ocorreu luto por aquela vida, ela não contou.
A escuta das mulheres e meninas no território acima referido está sendo
feita através do dispositivo da escuta-flânerie, uma vez que através dele se
considera “as condições sociopolíticas dos sujeitos com os quais trabalha-
mos, sem negligenciar o rigor dos fundamentos psicanalíticos – dentre eles,
os aspectos éticos e políticos ligados à realidade social brasileira” (Gurski &
Oliveira, no prelo). Entendemos que a escuta-flânerie no território possibilita
a escuta das singularidades dessas mulheres e meninas, em meio ao espaço
coletivo da comunidade.
Lado a lado com a posição do flâneur – de sustentar uma temporalidade
e uma cadência diferente das condições oferecidas no dia a dia, apostamos
que, enquanto mulheres escutadoras – flâneuses30, escutamos com as mesmas

30 Lauren Elkin (2016) aposta na criação do termo Flâneuse – conceito feminino fundamentado pela ideia
benjaminiana de flâneur. A autora acrescenta o sufixo euse em francês – o qual pressupõe o gênero
feminino aos substantivos da língua francesa. O conceito de Flâneur e Flâneuse se mantém o mesmo,
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 85

premissas da ética da psicanálise, pois consideramos a dimensão da trans-


ferência e o recolhimento de cenas, lugares e pessoas que poderiam passar
despercebidas.
Quando escolhemos acompanhar o ritmo dessas mulheres, sobretudo
mulheres pretas, sob viés da flânerie no território, nos propomos a construir
uma aliança enquanto pesquisadoras-psicanalistas-flâneuses junto às mulheres
negras, às ruas, à comunidade, aos seus direitos e às suas histórias de vidas.
Acreditamos na possibilidade de transformação social colocando-nos também
como mulheres que reconhecem sua posição de branquitude31, mas que ainda
assim marcham na luta contra a discriminação sexista e racial enraizada não
apenas no território em que o Coletivo tem sede, mas no país como um todo.
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À contrapelo de um destino “comum”: a realidade da comunidade


e a escuta-flânerie territorializada

Importa dizer que o dispositivo da escuta-flânerie surge do encontro da ética


psicanalítica com os efeitos ético-metodológicos da posição do flâneur em Walter
Benjamin. No decorrer das nossas experiências de pesquisa e extensão com a
escuta-flânerie, encontramos a força que a escuta psicanalítica presentificada e
materializada através da presença do pesquisador-psicanalista pode apresentar em
outros lugares da cidade que não o consultório do psicanalista. Compreendemos
que essa construção metodológica assume um caráter disruptivo e transformador,
à vista disso, aproxima-se do desejo ético-político de transformação social das
fundadoras do Coletivo Preta Velha. Nesse sentido, temos identificado na escu-
ta-flânerie um modo bastante interessante da escuta do sujeito estar presente no
campo social por meio da territorialização da escuta psicanalítica.
Através da escuta-flânerie e dos diários de experiência32, construídos ao
longo da experiência no campo, passamos a nos interrogar acerca do lugar da

porém, a autora considera importante essa especificidade para que enquanto mulheres, possamos resistir
à misoginia, conquistando espaços nos territórios, perambulando e refletindo pela/na cidade, desfiando as
visibilidades e invisibilidades geográficas estabelecidas pelo machismo. Importa dizer que o caminhar a
esmo pela cidade foi historicamente um direito dos homens.
31 De acordo com Cida Bento (2022), a branquitude pressupõe um fenômeno de invisibilização de pessoas
negras de forma velada, como um pacto silencioso, em que naturaliza algumas posições sociais. Um exemplo
disso, são as instituições e empresas compostas por funcionários, majoritariamente, brancos e do sexo
masculino. A autora afirma que esse é um modo de funcionamento que existe para manter os privilégios de
uma classe, que também sustenta competições entre si, mas é uma competição entre semelhantes.
32 Os diários de experiência (Zachello, Paul & Gurski, 2015, Gurski, 2017, Gurski & Strzykalski, 2018) foram
construídos pelo grupo de pesquisa a partir da necessidade de narrar a experiência no campo, com o que
desdobramos um modo próprio de registro. Os diários são caracterizados como um compilado escrito feito
pelas pesquisadoras acerca de suas vivências, experiências e reflexões fundadas nos encontros. Essa é
uma ferramenta metodológica que considera a dimensão da impossibilidade, na medida em que não se
trata de transpor para a escrita uma descrição linear e concreta do que aconteceu nas intervenções. O
86

mulher preta na Vila Cruzeiro e no laço social. As escritas dos diários, inva-
riavelmente, nos levavam ao encontro de traços comuns da mãe de periferia,
fosse ela jovem ou não: o Estado ausente, a falta de estrutura social e as dores
vividas. Nessa cadência de repetições, passamos a nos perguntar sobre os
efeitos traumáticos produzidos pelo sofrimento das mulheres pretas para as
novas gerações de meninas e adolescentes, especialmente, pelas situações de
violências e discriminações vividas e narradas.
A escuta da dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016) das
mulheres e meninas do Coletivo, através da escuta-flânerie territorializada,
proporcionou o recolhimento de algumas falas que mostram a importância de
conhecermos, de perto, os sujeitos que vivem nas realidades que pesquisamos.

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A posição do pesquisador-flâneur ou da pesquisadora-flâneuses inclui a pre-
sença física e o corpo do(a) pesquisador(a), tornando-nos implicadas de forma
literal com o território e com o que acontece nele durante o tempo da escuta. Ao
nos deslocarmos até a Comunidade da Vila Cruzeiro e nos depararmos com a
realidade de negligência do Estado e de violência que permeia o Coletivo, nos
deixamos guiar pelas mulheres que escutávamos. Tia Ana33, a mulher preta,
que nasceu já na comunidade, foi para nós uma espécie de guia durante as
flâneries pela Vila.
A posição de escutadora-flâneuse possibilita participar um pouco do coti-
diano dessas mulheres de forma que, através da transferência e da fala em
associação livre (Freud, 1914/2010), elas passam a narrar suas realidades. Em
um dos momentos da intervenção, uma das fundadoras do Coletivo comentou
que o Grupo de Capoeira, oferecido às crianças e adolescentes do Coletivo
por um voluntário, fora encerrado. Indagamos sobre o motivo do encerra-
mento e ela disse “o professor não conhece a realidade da comunidade”.
Essa frase ecoou em nossos ouvidos, e então, decidimos seguir escutando o
que mais estava contido nessa afirmação da moradora do território. Acontece
que o professor criou uma regra para o funcionamento do grupo, apenas as
crianças e os adolescentes que tivessem a presença dos pais e/ou responsáveis
poderiam participar das aulas de capoeira. Isso faz alusão à fala de Tia Ana
previamente referenciada, a qual diz respeito à realidade de que essas crianças
e adolescentes, na grande maioria das vezes, não têm o acompanhamento dos
adultos responsáveis.
Outra ocasião foi quando participamos de uma ação proposta em par-
ceria com o Coletivo, no mês de março de 2023, em virtude do 8M – Dia

dispositivo foi construído justamente alicerçado às premissas da ética psicanalítica a fim de tornar a pesquisa
em psicanálise o mais fiel possível aos efeitos de seu objeto, o inconsciente.
33 Usamos o pseudônimo de Ana a uma mulher chamada de “Tia” pela Comunidade, a qual foi escutada pelas
pesquisadoras flâneuses.
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PARA AS FILHAS E OS FILHOS 87

Internacional das Mulheres. A atividade foi escutar os sonhos daquelas que


desejassem compartilhar conosco suas experiências oníricas34. Por meio dessa
intervenção, conhecemos Dona Maria, que, ao escutar sobre o nosso traba-
lho, disse:

É disso que eu preciso, eu preciso falar, conversar. [...] minha depressão


só vai sarar se eu contar sobre a minha vida. Vida sofrida, minha filha.
(Recolhido do diário de experiência de uma pesquisadora, março 2023)

A fala de Dona Maria se aproxima do que Djamila Ribeiro (2021) escre-


veu em seu livro Cartas à minha Avó, no qual ela relata sua vivência como
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mulher negra:

Em geral, as pessoas não se interessam em nos perguntar onde e como


dói, pois acreditam que já conhecem o antídoto para a dor, ou que sim-
plesmente não há necessidade de senti-la. Numa das poucas vezes que me
abri e falei da minha dor, ouvi de uma vizinha que ‘a vida é dura para
quem é mole’ (2021, p. 10).

O que se repete nas experiências dessas mulheres é a necessidade de falar


sobre suas vidas e suas realidades. Entendemos que coletivizar as experiências
de dor e sofrimento pode funcionar como um ato de resistência ao apagamento
e desvalorização de suas existências.
Quando aproximamos a escuta-flânerie desses dois fragmentos da expe-
riência, percebemos a importância de uma escuta territorializada que, de
alguma forma, também, pode ser chamada de escuta de caráter decolonial.
Nos referimos tanto à escuta territorializada como decolonial, pois temos
como direção fundamental o protagonismo do saber do sujeito que vive e
conhece as entranhas do seu território psíquico e geográfico. Para David
(2018), a construção desta escuta é imprescindível na medida em que nos
deparamos com os efeitos pregnantes da colonização e de suas produções,
principalmente, no que é relativo ao gerenciamento do sofrimento psíquico.
Quando a Tia Ana fala sobre o professor, é como se ela nomeasse, mesmo
sem saber, o papel do colonizador. Afinal, de que realidade essas mulheres
falam? Quais atravessamentos da realidade social, vivenciadas por elas,
produz a vida sofrida expressa em suas palavras?

34 A ação foi ofertada através do Projeto de Extensão “Rodas de Sonhos com adolescentes da Vila Cruzeiro:
a Oniropolítica e sua função no campo da saúde mental”. O projeto possibilita, por meio do conceito de
oniropolítica, a escuta da dimensão sociopolítica dos sonhos, a partir de uma perspectiva não só individual,
mas coletiva e política.
88

Temos compreendido que, um dos efeitos gerados pelo racismo, pelo


sexismo e pelo capitalismo na vida das mulheres negras é o apagamento de
suas realidades e histórias, bem como, de suas dores. Segundo Ribeiro (2021),
a imagem da mulher negra e forte seria uma das tantas violências que essas
mulheres sofrem. Ocorre uma naturalização do ser mulher, especialmente,
ser mulher preta, associada à garra e à luta de modo que não se abre espaço
para a presença da fragilidade. A autora, em suas construções, sustenta que
“[...] restituir a humanidade também é assumir fragilidades e dores próprias
da condição humana. Somos subalternizadas ou somos deusas” (Ribeiro,
2021, p. 9-10). A manutenção do silenciamento dos sofrimentos, muitas vezes,
aparece como uma estratégia política da sociedade a fim de que essas vidas

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pretas não se movimentem no laço social.
Além dessas interrogações iniciais, a escuta tangenciou o tema da
transmissão geracional da dor e do apagamento entre mulheres/mães/avós/
filhas(os) e netas(os) – tal questão será trabalhada posteriormente a partir de
uma expressão utilizada por Bia35 ao referir-se às mulheres da comunidade
como “fábrica(s) de filhos”36.
Em nossas idas ao Coletivo, a questão da maternidade sempre se fez
presente. Parece que, para essas mulheres, falar de si está intimamente ligado
ao cuidado com o outro, e neste caso, aos seus filhos e filhas. Escutamos,
frequentemente, em suas narrativas o quanto compartilham o cuidado das
crianças na Vila, como se entendessem mais de coletividade do que de indi-
vidualidade (Gonzalez, 2020).
Uma das histórias contadas por Tia Ana passa por um caso de abuso
infantil. O fato se refere à violência sexual de uma menina de 4 anos de
idade, a qual chamaremos de Sol. Ao narrar essa situação, Tia Ana fala sobre
a angústia que sentiu quando escutou sobre o caso e a sensação de impotência
que a assolou naquele momento.
Tia Ana conhece Sol desde seu nascimento. A menina faz parte de uma
família que vive em uma situação de extrema vulnerabilidade e negligência
na comunidade. Por sua vez, Sol não aguenta mais viver nessas condições e
enxergou, nos líderes do tráfico da região, uma saída a fim de que pudesse
interromper a violência que vinha sofrendo. Ela decide, então, ir até a liderança
do tráfico e contar sobre o que estava passando. Os chefes da facção procuram
Tia Ana e disseram que matariam os abusadores, mas antes, pedem a opinião
da mulher e líder comunitária sobre como proceder. Tia Ana intervém e diz:

35 O nome Bia será usado como pseudônimo para referência a uma mulher, mãe e filha, que reside na
Comunidade e que foi escutada pelas pesquisadoras flâneuses.
36 Recolhido de um diário de experiência.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 89

“nossa lei não é matar”, precisamos que o abuso seja denunciado de acordo
com as leis que protegem os direitos da criança e do adolescente.
A intervenção aponta para a possibilidade da descontinuidade do ciclo de
violência. Tia Ana recusa o punitivismo do tráfico, porém, também questiona
a lei do Estado. Quer dizer, ela pontua que não podemos pensar pela lente
punitivista que é uma das mais antigas maneiras de manutenção da estrutura
colonial racista.
Portanto, propomos uma leitura que vá além da uma oposição entre a lei
do Estado e as normas do tráfico. Reconhecemos na intervenção de Tia Ana,
junto ao tráfico, a reivindicação do próprio Coletivo às políticas de vida e à
construção e elaboração de novas saídas e possibilidades a fim de acolher tanto
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as dores como as novas formas de luta para esses corpos, essas vidas.

Lugar social da mulher preta: silenciamento, apagamento e abandono

Lélia Gonzalez, filósofa, antropóloga e ativista do movimento negro


apresenta uma vasta produção sobre a mulher preta e o seu papel na socie-
dade brasileira. A autora sustenta, em sua obra, que a mulher preta no Brasil
é vítima de diferentes formas de discriminação, uma vez que repetidas vezes
é alvo de atos racistas e sexistas, o que as colocam no nível mais grave de
opressão (Gonzalez, 2020). Dessa maneira, Gonzalez (2020) questiona, acima
de tudo, a forma como a mulher negra é situada no discurso social, frente ao
que ficou conhecido como o mito da democracia racial.
Lélia critica a noção difundida a partir da década de 1930 de que o Brasil
era um país que vivia uma democracia racial. Para ela, o tal mito ocultava
muitas violências raciais na direção do povo negro. Lélia, consequentemente,
compreende que o lugar que situa a mulher negra determina a interpretação
sobre a dupla segregação, o racismo e o sexismo, tendo efeitos violentos e
endereçados às mulheres negras.
Um conceito que auxilia na reflexão das interlocuções entre raça e gênero
é o da interseccionalidade. Se trata de uma sensibilidade analítica de que o
racismo, o capitalismo e o patriarcado existem juntos e de maneira inseparável.
A teoria interseccional foi consolidada pela ativista dos direitos humanos e
intelectual afro-estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw (1989) e adensada
por outras feministas negras, tais como Carla Akotirene (2019). Aliado as suas
experiências enquanto mulheres negras, elas não se sentiam pertencentes a
algumas pautas do feminismo branco, assim como por alguns movimentos
antirracistas sustentados por homens negros.
A interseccionalidade surge da crítica feminista negra às leis anti-
discriminação para mulheres vítimas do racismo patriarcal e oferece uma
90

instrumentalização teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do


racismo, cisheteropatriarcal e o capitalismo neoliberal (Akotirene, 2019). Sis-
temas estes que juntos produzem “avenidas identitárias” (Akotirene, 2019, p.
19) em que, majoritariamente, as mulheres negras são atravessadas pela sobre-
posição de gênero, raça e classe em novos e modernos formatos coloniais.
Os estudos publicados por Crenshaw demarcam o diálogo do feminismo
negro com intervenções políticas e letramentos jurídicos sobre as condições
que o racismo e o sistema patriarcal impõem. A autora entende que o racismo,
o sexismo e a violência se sobrepõem e todos acabam por discriminar as
mulheres negras.
Deste modo, a teoria interseccional dá luz à problemática que se coloca

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com o apagamento e desconsideração do racismo enraizado nas relações
sociais, isso ocorre como estratégia política para perpetuar a inscrição de
pessoas pretas na rede discursiva decorrente do passado escravagista, o que
mantém as relações de poder e naturaliza a exclusão e exploração do sujeito
negro (Mussati-Braga, 2021). Nessa lógica, interrogamos a responsabilidade do
Estado frente à violência sofrida pelas mulheres, adolescentes e meninas negras.
Conforme já mencionado, o Coletivo nasceu a partir da inconformi-
dade com o abandono das políticas educacionais do Estado, explicitando
uma problemática antiga: a falta de vagas em creches para as crianças que,
consequentemente, dificulta o retorno das mães ao trabalho, logo, muitas
adolescentes mães acabam ficando fora da escola. No território, a maior parte
das mulheres que voltam para suas rotinas laborais contam com uma rede de
apoio de outras mulheres, vizinhas, avós, tias, mães, amigas que cuidam dos
seus filhos, ainda que muitas levem seus filhos para os ambientes de trabalho.
Por conseguinte, entendemos que o nascimento do Coletivo é um ato
ético e político que politiza as posições das mulheres do território. Como
afirma Gonzalez (2020), a mulher negra é o foco, por excelência, da perversão
do sistema socioeconômico capitalista, sob a lógica de dominação da branqui-
tude. Por isso, a história das mulheres pretas é construída com muitos atos de
resistência e de luta por espaços dignos para si e para seus filhos.
Para melhor compreensão da condição social das mulheres e meninas
negras e periféricas, resgatamos a tese de doutorado Significações do corpo
negro (1998), de Isildinha Nogueira, pesquisadora negra, que estuda questões
da constituição do aparelho psíquico à luz do racismo.
Segundo Isildinha (1998), a criança passa por um processo de ver os
pais como provedores de todo o conhecimento, abrindo o campo das identi-
ficações dos filhos com os pais. Aos poucos, as crianças fazem críticas aos
provedores, isso aparece nas brincadeiras e nas fantasias de que os seus pais
são substituídos por outros melhores (Nogueira, 1998).
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 91

Para a criança negra, esses períodos são associados à pele negra, ocor-
rendo o que, Isildinha (1998) denomina de ideal da brancura. Esse ideal é
percebido pela criança em seus pais, pois ela se confronta com o fato de seus
genitores representarem figuradamente uma autoridade e perfeição fragiliza-
das: “A criança negra é aquela cujos pais aparecem, desde sempre, para ela,
como fragilizados pelo desejo inacessível da brancura” (Nogueira, 1998, p.
109). Isto é, a criança negra se identifica com a fragilização que os pais pas-
sam, ou seja, a discriminação afeta a criança negra antes do laço social, pois
já é inscrita na psique de seus pais.
A própria noção de família para a criança negra fica vaga, já que na
condição de escravos, não foi possível consolidar a ideia de pertencimento
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a uma linhagem. A criança desconhece quem foram seus antepassados – há


uma ruptura, um vazio, uma falta (Nogueira, 1998). A autora aponta que, para
a criança negra, a experiência da falta é marcada pela ausência da brancura
(Nogueira, 1998).
Em um dos nossos momentos no Coletivo, a fala de Bia aparece no diário
de uma pesquisadora:

Bia fala que foi bailarina. Diz que sua família foi contra sua entrada no
balé. Sua avó falava que balé não era coisa de preto, que ela ia embran-
quecer. Bia disse que ia fazer balé mesmo não tendo apoio. Naquele
período, ela tinha 11 anos de idade, e, por ser pequena, conseguia passar
por baixo da catraca do ônibus, e assim, conseguir se deslocar até o local
das aulas. (Recolhido do diário de experiência de uma das pesquisadoras).

No fragmento acima, sublinhamos a preocupação da família de Bia ao


ver sua filha realizando uma atividade que culturalmente era dissociada de sua
realidade, para eles, ela iria aproximar-se do ser branco. A brancura delineia
a possibilidade de ser igual aos demais, por isso, a falta para o sujeito negro
é uma falta corpórea, de um objeto simbólico (Nogueira, 1998). Fazer balé,
então, pode não ser uma coisa de preto, mas também não vai suprir aquilo
que falta. Como produzir identificações com aquilo que não se pode ter
acesso? (Backes, 2002).
As brechas ao redor deste tema podem permitir que o balé não seja uma
atividade só para brancos, pois quando uma menina negra faz balé, ela não
está se embranquecendo, ela está fazendo outra coisa. Bia com sua fala,
evocou sacrifícios que muitas meninas estão acostumadas a fazer: passar por
baixo da catraca do ônibus. Tomamos como significante (Lacan, 1964/2017)
esse ato subversivo enquanto um modo de enfrentamento frente às formas de
enunciação impostas à Bia pelo laço social. Considerando que, para ela, a fim
de participar dessa atividade cultural, foi necessário se desdobrar para acessar
92

geograficamente e psiquicamente o solo do balé. Esse feito “transgressor” se


aproxima de um movimento constituinte do campo singular do sujeito, em
que Bia estava fazendo algo oposto ao que era oferecido a ela: resistindo à
realidade segregatória, classista e racista.
Quando ela sustenta sua posição e seu desejo, realiza o que Tiburi (2017)
chama de “ético-política do feminismo e do antirracismo” (s/p), isso quer
dizer, sustenta uma luta que “é potente quando se trata de uma ação conjunta
em nome de um ideal maior, de melhores condições de vida para todos aqueles
que lutam (e também os que não lutam e que se beneficiam da luta)” (Tiburi,
2017, s/p). À vista disso, de que forma as meninas negras, como Bia, sobre-
vivem em meio à dura realidade que lhes são impostas?

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Retomemos Gonzalez (2020) quando afirma que coube à mulher negra
a função de doar força moral para seus filhos, seus irmãos e seus companhei-
ros. A autora sublinha que a revolta dos negros escravizados e a criação de
novas possibilidades de vida – quando o negro deixa de ser escravo e passa
a ser quilombola – atravessou toda a organização do povo negro pela via da
sabedoria da mãe preta.
No texto “Democracia racial? Nada disso!”, Gonzalez (2020) discute
o lugar de imponência que as mulheres negras ocupavam nos antigos reinos
e impérios africanos. A valorização das mulheres pelas diferentes culturas
negro-africanas vinha do exercício da função materna, culturalmente com-
preendida de forma ampla: a função das mães, das tias, das avós, todas tinham
alta importância. Com o advento da colonização e a chegada do europeu na
África, as mulheres foram afastadas do convívio de seus filhos, filhas e de suas
famílias. Em síntese, foram transformadas em mercadorias e foram vendidas
para trabalharem nas Casas Grandes. Essas mulheres eram dirigidas para dois
tipos de trabalho: eram escravas, ocupando-se das plantações, ou, mucamas,
encarregando-se dos afazeres domésticos, incluindo, muitas vezes, a função
de ama de leite, conhecidas como mães pretas37, dos filhos das Senhoras.
É sabido que todo o processo de escravidão gerou uma série de violência
para as mulheres, não obstante, Gonzalez (2020) sublinha que as africanas,
por serem muito valorizadas como mães, quando chegaram ao Brasil lutaram
para manter alguma dignidade da função materna, mesmo não se tratando de
maternar seus próprios filhos.

37 Agier (1996) traz que a Mãe Preta é designada pelos parâmetros: “trabalho, maternidade e tradição” (p. 196).
Ainda nessa linha, Lélia Gonzalez (2020) afirma que a Mãe Preta foi uma função que deu subsídios de resistência,
em virtude de sustentar que são elas quem vão “dar uma rasteira na raça dominante” (Gonzalez, 2020, p. 235),
notadamente, porque elas transmitem o ‘pretuguês’, que é o termo com o qual a autora nomeia o português
africanizado. Operam nessa função duas ideias: a de que a língua é um veículo privilegiado da transformação
cultural e a de que a Mãe Preta executa essa transformação de um modo que pode não ser reconhecido.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 93

Adolescência na periferia e a dor como transmissão do feminino

Ao longo da intervenção e, pela via da transferência, fomos capturadas


pelos efeitos produzidos pela transmissão das mães para as suas filhas. Escutar
as mães, tias e avós nos fez atentar para as meninas adolescentes negras que,
desde muito cedo, são convocadas a se ocupar da construção de estratégias
de sobrevivência. À mulher preta, cabe uma tripla exploração, haja vista ela
exercer funções sociais vitais, tais como mãe, empregada doméstica, traba-
lhadora do campo e da cidade – que apesar de muito relevantes são as funções
mais desvalorizadas do ponto de vista social (Pereira, 1988).
Ao ver toda essa realidade, Bia revela nunca ter sonhado em gestar. Embora
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ela mesma possua muitos filhos adotivos – mais ou menos sete crianças adota-
das, talvez uma espécie de “fábrica de filhos” como ela mesma disse -, optou por
não engravidar. De qualquer forma, Bia exerce a maternidade. De que maneira a
função materna se apresenta para Bia? Sabemos que o lugar materno, atribuído
às mulheres pretas no Brasil, foi também herança do sistema escravocrata,
quando a mãe preta amamentava a prole do Senhor das terras. Na época, a ama
de leite era agregada à casa grande, mas colocada à deriva da estrutura familiar
(Agier, 1996), ela estava ali, mas não pertencia àquele local.
Como explicita Cida Bento (2022), dor e violência marcaram a história
de descendentes do período escravocrata, seja de forma simbólica ou con-
creta: “trata-se da herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não
é reconhecida publicamente” (Bento, 2022, p. 15). Ainda muito jovem, Bia
teve que assumir as responsabilidades contidas nas atividades adultas. Em
suas narrativas, ela demonstra um certo ressentimento por não ter experien-
ciado o período da adolescência de outra maneira. Bia lamenta esse “destino
comum” das meninas adolescentes pretas e periféricas e se pergunta, afinal,
quais meninas adolescentes têm direito de adolescer?
Frente a algumas das narrativas que escutamos, entendemos a neces-
sidade de constituir um espaço para as adolescentes meninas, que circulam
pela comunidade, falarem de si. Isso surgiu especialmente após uma reunião
em que a Presidenta do Coletivo falou sobre a preocupação com as jovens,
especialmente pela situação de banalização da violência de gênero e das ges-
tações precoces.
Em outro momento, quando o projeto de intervenção com as adolescentes
começou a ganhar contorno, a pesquisadora deixou Bia falar:

Acho que podemos deixar aberta a idade, aqui as adolescentes são dife-
rentes, muitas são mães, tu vai ver. E elas são espertas, 10, 11 anos e já
estão voando [...]. Bia segue falando: “diferentes dos adolescentes no
94

geral, elas são espertas, sabem mais que a gente (Recolhido do diário de
experiências de uma das pesquisadoras, abril, 2023).

Importa fazermos um pequeno recorte sobre esse complexo processo da


passagem adolescente. Sabemos que o termo adolescência não é um conceito
propriamente psicanalítico e não foi utilizado por Freud, nem por Lacan.
Porém, a psicanálise lacaniana fez importantes considerações sobre o tema,
especialmente após a década de 1980, quando surgiu a noção da adolescência
como operação psíquica (Rassial, 1997).
Ao experienciar as mudanças corporais e psíquicas da puberdade, o
adolescente vive um certo reposicionamento em suas relações familiares e

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sociais. Do ponto de vista da passagem adolescente é preciso perceber que ela
guarda a possibilidade de o sujeito reinventar um lugar para si no laço social,
fazendo uma versão sua daquilo que recebeu do Outro. Momento em que a
dimensão de totalidade do Outro entra em pane e o sujeito tem a chance de
refazer sua posição na relação com o que, na infância, tinha o caráter de total.
Nesse sentido, o despertar da adolescência pode ser visto como um ato que
carrega um efeito ético-político capaz de inscrever o singular do sujeito e, ao
mesmo tempo, a dimensão coletiva dessa inscrição (Gurski & Perrone, 2021).
Sendo assim, perguntamo-nos como as meninas da periferia podem (re)
construir suas histórias, considerando o contexto sociopolítico brasileiro que
as oprime e as colocam nas margens da sociedade? Como criar condições de
inscrição no laço social, de outro modo que não desde o “destino comum”
imposto a elas?
A palavra tem que ser dita38, aponta uma mulher do Coletivo, marcando a
potência em que a narrativa de vida das envolvidas circule de maneira tal que
possa dialogar com a elaboração de sintomas atuais que produzem mal-estar
na sociedade (Strzykalski, & Gurski, 2020), entre eles, a violência de gênero.
A palavra expressa pode dar contornos ao sofrimento, de forma seme-
lhante ao que aconteceu com as primeiras mulheres escutadas por Freud (1893)
que deram origem ao surgimento da talking-cure, a cura pela palavra. Talvez
possamos observar, futuramente, outros modos de existir e outras transmissões
às novas gerações de meninas e adolescentes negras. Como bem coloca Cida
Bento (2022), é urgente desvendarmos o que está velado, reconhecendo os
desdobramentos da história brasileira e assim, nos responsabilizando por ela,
porque, afinal, a vida das mulheres e meninas negras importam!

38 Recolhido de um de um dos diários de experiência das pesquisadoras.


DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 95

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Aline Lima Tavares39
Sonia Alberti40

Em seu texto sobre o mal-estar na cultura, Freud (1930[1929]/2008) enu-


merou três principais fontes de sofrimento para o homem: o poder superior da
natureza, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras;
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a fragilidade de nosso corpo, “condenado à decadência e à dissolução”; e os


relacionamentos humanos. Alertou-nos para o fato de que costumamos aceitar
com resignação as duas primeiras fontes de sofrimento, acreditando que “trata-se
de nos submeter ao inevitável”, esquecendo-nos de que em nossa constituição
psíquica também há uma “parcela de natureza inconquistável”, relacionada
à pulsão, motivo pelo qual as regras que buscam ajustar os relacionamentos
sociais mostram-se sempre inadequadas.
Freud (1930[1929]/2008) nos adverte sobre a complexidade da tarefa civi-
lizacional, que carrega um quê de impossível, pois sendo o homem movido pela
pulsão, força constante, acéfala, que exige permanente satisfação, a imposição a
que cada membro renuncie a uma quota de satisfação, necessariamente malogra
sempre de alguma forma. Esse conflito, unheimlich, inquietante, infamiliar, que
torna impossível o mandamento “amar ao próximo como a ti mesmo”, está
presente em todo sujeito, assim como no corpo social e, consequentemente,
nas instituições jurídicas.
Considerando os paradoxos da constituição pulsional humana, no presente
trabalho questionamos os efeitos do quadro estrutural de desigualdade social
no Brasil sobre o Sistema de Justiça. Em nossa práxis, realizada na interface
entre Direito e Psicologia, testemunhamos o quanto a Justiça brasileira se torna
violenta quando, partindo da premissa genérica de que “todos são iguais perante
a lei”, recalca as profundas desigualdades sob as quais este país se constituiu e
que continuam a ter efeitos para seus cidadãos.
Mais especificamente em relação às Varas da Infância e Juventude, onde
trabalhamos em um Setor de Psicologia, observamos que embora o Estatuto da
Criança e do Adolescente estabeleça como prioridade a criação e educação de
crianças em suas famílias de origem, estabelecendo medidas de proteção que

39 Mestre e Doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo PGPSA-UERJ. Psicóloga do Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo. Participante do Fórum do Campo Lacaniano – RJ.
40 Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do
CNPq. Membro do GT: Psicanálise, política e clínica da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação
em Psicologia (ANPEPP) e A.M.E da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
100

devem ser aplicadas quando o direito à convivência familiar estiver ameaçado


(Brasil, 1990), na prática, dependendo do contexto social e econômico, há um
empuxo à adoção, medida considerada excepcional e irrevogável. Trabalhar
efetivamente as complexas condições de vida – objetivas e subjetivas – de
inúmeras famílias brasileiras é tarefa muito mais difícil que julgá-las como
incapazes de cuidar dos seus.
Uma lacuna, contudo, apresenta-se entre a eficácia jurídica da adoção e
os efeitos subjetivos que surgem a partir desta medida. Algumas vezes, quando
esses efeitos subjetivos “inesperados” não são trabalhados, culminam no retorno
da criança e/ou adolescente para a instituição de acolhimento meses ou anos após
o início da convivência com a família que dizia ser capaz de adotar. As chama-

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das “devoluções” de crianças e adolescentes, embora não previstas na lei, não
são exceção no Brasil, em algumas localidades são até, ao contrário, a norma.

A paixão da ignorância no sistema de justiça

Maria, Pedro e João41 são três irmãos que contam 13, 11 e 10 anos de
idade. Um ano atrás, o Ministério Público abriu uma ação cujo objetivo era
apurar as condições em que estavam vivendo com a família que os adotou
e com a qual residiam há dois anos, pois haviam fugido daquela casa e se
recusavam a voltar.
O processo atual foi distribuído no Setor de Psicologia da Vara da Infân-
cia para nossa atuação e, consultando o sistema de processos, verificamos
que existiram, de 2017 a 2019, outras onze ações que versavam sobre a vida
destas crianças, na época acompanhadas por uma colega. Narraremos a seguir
o que pudemos apreender da leitura dos processos anteriores, que acaba
por testemunhar o que nos ensina Lacan (1974): “não é de modo algum do
analista que depende o advento do real. O analista tem por missão opor-se
a ele” (Lacan, 1974, p. 8).
Em resumo, em 2018, Maria, Pedro e João (que à época contavam 10, 8
e 7 anos, respectivamente) foram acolhidos institucionalmente sob denúncias
de maus-tratos, negligência e abuso sexual no âmbito familiar. Já haviam sido
acolhidos no ano anterior, tendo retornado para o convívio materno. Diante da
nova institucionalização, equipes técnicas concluíram que “havia um histórico
de violação de direitos das crianças pela família biológica”, motivo pelo qual
consideraram a destituição do poder familiar como medida mais favorável ao
desenvolvimento delas.
Nos diversos processos, encontramos pouquíssimas informações sobre
a mãe biológica das crianças. Janete, como vamos denominá-la, é descrita

41 Nomes fictícios.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 101

como usuária de drogas que se ausenta por longos períodos de casa, “o que
leva as crianças a perambular pelas ruas, algumas vezes comendo lixo”.
Porém, quem é Janete? Qual é sua história? Como era a relação de Janete
com a própria mãe? Que marcas carrega que a impedem de se responsabi-
lizar pelos filhos? Encontramos uma pista em um dos documentos, talvez o
único que trouxesse um pouco da história dessa mulher: é mãe de seis filhos.
Os três primeiros, fruto de relacionamento com o próprio pai, isto é, Maria,
Pedro e João possuem três irmãos mais velhos que viviam com a genitora,
na mesma casa que eles, e cujo pai é também o avô. Lê-se ainda no pro-
cesso que Janete relatou que o relacionamento com seu pai, extremamente
violento e controlador, só terminou quando ele foi preso. Após a prisão, “ele
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me deixou em paz”.
Dos relatórios, depreende-se que na primeira institucionalização das
crianças, Janete se empenhou para obter novamente a guarda dos filhos. Na
segunda, pouco se movimentou. Contudo, como se movimentou o poder
público para auxiliá-la quando do retorno dos filhos para casa, considerando
o contexto de vulnerabilidades em que vive? Esta questão não formulada
nos autos mostra-se fundamental, pois é ao não querer saber sobre seus furos
que o Estado brasileiro torna-se tão violento. Culpabiliza-se a família por sua
própria miséria, subjetiva e objetiva, para velar a precariedade em que fun-
cionam os serviços públicos no país, incapazes de efetivamente acompanhar
as famílias que dizem atender. A esse respeito, Zamora (2016), ao estudar
as práticas dos conselhos tutelares no Brasil, conclui que as famílias pobres
seguem sendo julgadas por aquilo que deveriam ser e não compreendidas em
suas possibilidades reais de existência.
Estudando os autos, verificamos que após a sentença que destituía Janete
do poder familiar, Maria, Pedro e João foram inseridos em duas diferentes
famílias substitutas. Tendo sido devolvidos pela primeira durante o estágio
de convivência42, foram depois adotados pela segunda. Dois anos após a
concretização da adoção, no entanto, um novo processo foi aberto, momento
em que entramos no caso.
A absoluta ausência das palavras de Maria, Pedro e João nos diversos
processos que tratam sobre suas vidas denuncia algo da paixão da ignorân-
cia. Como foi para cada uma destas crianças separar-se da família biológica?
Como foi para cada uma a ida para a primeira família substituta? Como se
encontravam, do ponto de vista subjetivo, na ocasião da “devolução” reali-
zada pela primeira família substituta? Como era para Maria ser filha de seus

42 Quando a aproximação inicial entre uma criança e o(s) candidato(s) a pai(s) é positivamente avaliada pelas
equipes técnicas da instituição de acolhimento e Vara da Infância, inicia-se o estágio de convivência. Neste,
o infante fica sob os cuidados do(s) pretendente(s) por 90 dias.
102

novos pais? E para Pedro? E João? Era hora de escutar ao menos uma dessas
crianças. Optamos por escutar Maria, que passou a fugir reiteradamente da
casa da família adotiva.

“Saber como as coisas se produzem”

Em seu Discurso aos psiquiatras, Lacan (1967) afirma que é possível


ter algo a dizer sobre os efeitos da segregação desde que “não estejamos
dormindo”. Indicou, então, o caminho cujas pistas tentamos seguir em nossa
práxis: “saber como as coisas se produzem”. Pois é o que permite “lhes dar
uma forma diferente, uma guinada menos brutal e, se quiserem, mais cons-

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ciente do que quando não se sabe a quê se cede” (Lacan, 1967, p. 19).
Desde que começamos a escutar Maria, ela nos falava de sua família
biológica: sobre os longos cabelos cacheados de sua mãe, “muito bonitos”,
“será que meu irmão ainda trabalha no mercado?”. Inicialmente, também
falava de uma vontade imensa de comer carne, significante, código, fronteira
geográfica, sua maneira de nomear algo que havia na família biológica e que
nunca havia encontrado na adotiva: “eu saía para comer espetinho de carne
com minha mãe. Lembro de quando ela fazia linguiça. Com eles [pais adoti-
vos], não pode comer carne. Eles não comem e não deixam a gente comer”.
Aos poucos, Maria foi conseguindo dizer o que pudemos interpretar como
uma denúncia de que na família adotiva não havia espaço para sua singulari-
dade, para ser quem era. Além disso, a adolescente sentia-se profundamente
inadequada por não corresponder ao que esperavam dela.
Desde o início, implorava: “quero voltar para o abrigo, quero morar lá,
não quero ter família”. Às boas lembranças com a mãe biológica mesclavam-se
lembranças desta no bar e de saírem para procurar comida do lixo. Na família
adotiva parecia não haver pais no sentido definido por Lacan (1969/2003)
em Nota sobre a criança, isto é, na transmissão de um desejo que não fosse
anônimo, capaz de sustentar a vida para além da satisfação das necessidades,
razão inicial de suas fugas.
Tendo sido devolvida aos pais adotivos após sua primeira fuga, Maria pas-
sou a fugir reiteradamente numa tentativa desesperada de se fazer ouvir. Quando
a escutamos pela primeira vez, já havia fugido três ou quatro vezes e antes que
houvesse um segundo atendimento, os adotantes permitiram que ela voltasse a
morar na instituição de acolhimento. Também João, seu irmão de 10 anos, retor-
nou para o abrigo, separado, contudo, da irmã, que foi encaminhada de forma
burocrática, em função de sua idade, para a instituição destinada a adolescentes.
Em um dos atendimentos à mãe adotiva de Maria, ela assinalou um
detalhe que retornava insistentemente à sua cabeça. Durante as entrevis-
tas psicológicas que visavam chancelar (ou não) a adoção, Maria e João
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 103

haviam verbalizado que não desejavam ser adotados. Como justificativa,


apresentaram um motivo que pareceu banal demais à psicóloga que acom-
panhava o processo: “na casa deles não tem piscina”, o que a levou a
ignorar a fala das crianças.
Contudo, o que Maria e João estavam tentando nomear, com a palavra
piscina, sobre um impossível na relação com os pais adotivos? Lacan (1967)
destaca a importância de escutar as dimensões simbólica e real do incons-
ciente, uma vez que a verdade deste situa-se nas entrelinhas. Ao longo de sua
obra ressaltou, cada vez mais, a importância do não sentido:

Se há algo que cabe à psicanálise destacar, enfatizar, certamente não é o


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sentido, no sentido de que, de fato, as coisas fazem sentido, ou que acre-


ditamos comunicar um sentido, mas, sim, marcar em quais fundamentos
radicais de não-sentido e em quais lugares os não-sentido decisivos existem
e sobre os quais se fundamenta a existência de um certo número de coisas
chamadas fatos subjetivos. É muito mais no balizamento da não-compreen-
são e pelo fato de dissiparmos, apagarmos, soprarmos o terreno da falsa
compreensão que alguma coisa vantajosa pode se produzir na experiência
analítica (LACAN, 1967, p. 3).

Que coisa vantajosa poderia ter surgido se tivesse havido um interesse


em investigar o que a falta da piscina representava no discurso das crianças?
Foi para tentar escutar, na contramão da falsa compreensão, que decidimos
passar a acolher Maria no consultório quando nos ausentamos do Tribunal de
Justiça. Ela seguia morando na instituição de acolhimento, “o melhor lugar
que já morou”, dizia. Comparecia aos atendimentos animada, arrumada com
seus cabelos cacheados trançados e roupas estilosas, muito diferente do modo
como se apresentava quando estava com os pais adotivos. Poderíamos dizer
que, naquela época, Maria estava viva-morta. Suas roupas, sua voz, seu modo
de andar denunciavam “morte invadindo o domínio da vida, vida invadindo o
domínio da morte” (Lacan, 1959-60/2008).

O brilho de Maria.

Quando escreve sobre Antígona, tragédia de Sófocles, Lacan (1959-


60/2008) destaca um trecho que intrigara Goethe e diversos outros comen-
tadores. Para justificar suas ações, Antígona diz que não teria desafiado a lei
por um marido ou um filho a quem tivessem recusado a sepultura, pois “se eu
tivesse perdido um marido, poderia arrumar outro, assim como se eu tivesse
perdido um filho com o marido, poderia ter outro filho com outro marido”,
contudo, tratava-se de um irmão e seus pais estavam mortos, isto é, “não
há nenhuma chance de que irmão algum jamais nasça”. Para o psicanalista
104

francês, essa justificativa de Antígona sempre deixou as pessoas vacilantes


e, “por seu caráter de escândalo”, deve nos reter.
Retomemos a tragédia. Após o exílio de Édipo, seus dois filhos homens
passam a lutar pelo trono, o que acaba numa luta mortal para ambos. Creonte,
tio de Antígona, assume o trono e decreta que um dos sobrinhos, Etéocles, será
enterrado com honras, ao passo que o outro, considerado traidor, terá o cadáver
insepulto. O decreto prevê ainda que quem ousar desobedecê-lo, será apedre-
jado até a morte. Desde o início da peça, Antígona mostra-se decidida a enterrar
o irmão, “jamais o trairei”, “Ele [Creonte] não pode impor que eu abandone
os meus”, “será belo morrer cumprindo esse dever” (Sófocles, 1990, p.203).
Ao fazer sua análise da tragédia, Lacan (1959-60/2008) destaca o bri-

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lho da heroína, que decorre do fato de ela não ceder do seu desejo diante
do conflito imposto por uma lei que se apresenta, em nome da comunidade,
como justa. Segundo Lacan, Antígona denuncia a identidade primeira da lei:
“o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas
consequências fatais nos adverte a tragédia” (Lacan, 1959-60/2008, p. 306).
Se o discurso de Creonte representa a lei que em nome da comunidade
“quer o bem de todos”, o discurso de Antígona fascina pelo brilho do desejo.
Presa ao drama que dá origem à linhagem dos Labdácidas, diante da morte
da mãe e do exílio do pai, Antígona cresce na casa do tio Creonte, submetida
à sua lei, a qual não pode mais suportar. Diante de uma vida que não vale a
pena ser vivida, no ponto limite que representa o decreto do tio, a heroína
passa a recusar a posição do escravo, lançando-se em direção ao que visa o
desejo, ainda que para isso seja preciso arriscar a morte.
Para Lacan (1959-60/2008), no horizonte das ações de Antígona está
uma relação estrutural, que só existe a partir da linguagem:

a partir do momento em que as palavras e a linguagem e o significante


entram em jogo que algo pode ser dito, que se diz como se fosse assim
– meu irmão ele é tudo o que quiserdes, o criminoso, ele quis arruinar os
muros da pátria, [...], mas enfim, ele é o que é, e o que está em questão
é prestar-lhe as homenagens funerárias. [...] Para mim, essa ordem com
a qual vós ousais intimidar-me não conta nada, pois, para mim, em todo
caso, meu irmão é meu irmão (Lacan, 1959-60/2008, p. 328).

Ao retomar o paradoxo que reteve o pensamento de Goethe, Lacan (1959-


60/2008) explica que o que liga Antígona ao irmão é o que está para além da
relação humana, o que tem “essa coisa de ter nascido na mesma matriz”, de
estar ligado ao mesmo pai criminoso: “Antígona representa por sua posição
esse limite radical que, para além de todos os conteúdos, de tudo o que Polini-
ces pôde fazer de bem e de mal, de tudo o que lhe pôde ser infligido, mantém
o valor de seu ser” (Lacan, 1959-60/2008, p. 330), ou ainda, “Antígona se
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PARA AS FILHAS E OS FILHOS 105

apresenta como pura e simples relação do ser humano com aquilo que ocorre
de ele ser miraculosamente portador, ou seja, do corte significante, que lhe
confere o poder intransponível de ser o que é, contra tudo e contra todos”
(Lacan, 1959-60/2008, p. 333).
Por levar até o limite a efetivação de seu desejo, Antígona foi recobrir o
corpo insepulto do irmão com uma fina camada de poeira, que cobre o suficiente
para que seja velado à vista, pois “não se pode deixar ostentando na cara do
mundo essa podridão onde os cães e os pássaros vêm arrancar os retalhos para
levá-los para os altares, no âmago das cidades, onde vão disseminar o horror e
a epidemia” (Lacan, 1959-60/2008, p. 312).
Assim como Antígona, Maria vive o conflito dilacerante entre uma lei que
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se apresenta em nome da comunidade, uma lei que ultrapassa um limite e nem


se dá conta de que transpõe esse limite, e o campo das leis não escritas, do Outro.
Ao longo dos atendimentos, soubemos que durante a primeira tentativa
de inserção de Maria em uma família substituta, quando os “candidatos a pais”
saíam de casa para trabalhar, ela e seus irmãos fugiam para roubar comida em
um supermercado próximo. Na família substituta, não havia mais fome, escas-
sez. Contudo, Maria, Pedro e João continuavam a ir ao supermercado furtar
comida, prática que haviam aprendido com a mãe biológica.
Considerando que essas crianças não eram escutadas pelos profissionais
que as atendiam, podemos levantar a hipótese de que, com seus atos, diziam
da saudade da mãe, recobriam o corpo dela com fina camada de poeira, denun-
ciando a podridão do mundo jurídico que, com suas sentenças, ostenta na cara
do mundo que dirige-se às periferias, aos miseráveis, para arrancar-lhes seus
retalhos, seus rebentos, os quais exibem no âmago das cidades, em redes sociais,
sob a legenda “adote um boa noite”43.
Quando um mensageiro informou a Creonte que o morto havia sido sepultado,
ele ordenou que descobrissem o autor do feito. Os guardas retiraram a camada de
poeira que recobria o corpo e passaram a vigiá-lo até a chegada de uma tempestade
de vento, momento em que precisaram fechar os olhos. Ao abri-los, avistaram
Antígona, que gritava como um pássaro amargurado ao ver deserto o ninho. Mais
uma vez, ela cobriu o cadáver e proferiu maldições contra quem deixara seu irmão

43 Referência à campanha criada pelo TJ SP em 2019 com objetivo de estimular a adoção tardia no país. No
site institucional, foram disponibilizadas fotos de crianças e frases simples sobre o que gostam de fazer,
junto à mensagem “adote um boa noite”. No mesmo ano, o TJ RS elaborou o “adote um pequeno torcedor,
Tchê”, que consistia em divulgar vídeos e fotos de crianças e adolescentes aptos à adoção nos estádios de
futebol durante o intervalo dos jogos de competições oficiais no Estado. No Mato Grosso, promoveu-se a
ação “adoção na passarela” em um shopping da capital.
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/adoteumboanoite
Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/cij/projetos/adote-um-pequeno-torcedor-tche/
Disponível em: extra.globo.com/noticias/brasil/desfile-pretendia-promover-adocao-conscientizar-sobre-
direitos-das-criancas-diz-shopping-que-sediou-evento-23685932.html
106

insepulto. À aproximação dos guardas, não ofereceu resistência. Responsabilizan-


do-se por seus atos, os acompanhou para apresentar-se ao tio.
Do mesmo modo que Antígona, Maria recobria o corpo materno/familiar
a cada vez que a Justiça ou seus pais adotivos tomavam decisões que tentavam
desumanizá-lo, apagá-lo.
Assim, tendo sido inserida em uma segunda família substituta, a qual
veio a adotá-la juridicamente, continuou a tentar dizer sobre seus laços
com a família biológica. Exemplificou a situação ao nos contar sobre seus
pensamentos acerca de um de seus irmãos mais velhos. Tendo esse irmão
se associado ao tráfico, Maria sofria, algumas vezes até chorava, se pergun-
tando, “será que ele está morto?”. Pontuou que, ao falar sobre essas questões

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com sua mãe adotiva, um dia ouviu dela: “esqueça o fulano. Ele está morto”.
Maria acreditara na afirmação materna, calara-se e passara a pensar cada
vez mais nesse irmão. Certo dia, numa sessão, conseguiu enunciar: nunca
tendo deixado de pensar na família biológica, ao perceber que não havia
espaço para falar dessa, “começou a aprontar”.
Segundo os pais adotivos, não só Maria, também Pedro e João, furtavam
lanches e outros pequenos objetos dos colegas na escola. Além disso, comiam
em demasia, os adotantes se queixavam: “não é fome, é outra coisa. Eu posso
fazer compras hoje, amanhã não haverá nada na geladeira, eles comem até aca-
bar”. Por este motivo, passaram a trancar os armários da cozinha e a dispensa.
A partir de então, as crianças só podiam comer no horário das refeições ou se
pedissem autorização. Como consequência, Maria, Pedro e João passaram a
“furtar comida” em sua própria casa.
Segundo Lacan (1957-58/1999), quando um bebê é inserido na dimensão
da linguagem, o sistema das necessidades é totalmente remodelado, isto é, o
grito do bebê se depara com a resposta do Outro e o que é significado passa a
estar além da necessidade bruta, entra em cena o campo pulsional. A partir de
então, fome nunca mais será apenas fome. A necessidade biológica associa-se
à palavra, à cadeia significante, tornando-se demanda: “desde o começo, o
que entra na criação do significado não é uma pura e simples tradução da
necessidade, mas uma retomada, reassunção, remodelagem da necessidade,
criação de um desejo outro que não a necessidade. É a necessidade mais o
significante” (Lacan, 1957-58/1999, p. 95).
Nessa perspectiva, é possível compreender que Maria, Pedro e João
estavam em curto-circuito pulsional. Não podendo dizer simbolicamente o
que lhes atravessava, o expressavam por suas condutas, consideradas incom-
preensíveis para seus pais adotivos, que tentavam dar conta delas via “reforço
e recompensa”, o que não apresentava resultados. O casal afirmava ter enca-
minhado as crianças a psicólogos clínicos, sem êxito.
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PARA AS FILHAS E OS FILHOS 107

Retomando a tragédia de Sófocles, Creonte, ao saber dos atos de Antí-


gona, mostrou-se intransigente quanto a fazer valer seu decreto, ainda que
a moça fosse, além de sua sobrinha, noiva de seu filho Hêmon. Quando
finalmente decidiu ouvir Tirésias, o adivinho, que viera adverti-lo das con-
sequências nefastas que poderiam resultar de sua deliberação, era tarde. No
momento em que tentara revertê-la, Antígona já havia se enforcado. Hêmon,
chocado com a cena, tentou ferir o pai que, ao desviar e recuar, o fez trans-
passar a espada em seu próprio corpo. Ao saber da morte do filho, Eurídice,
esposa de Creonte, também se mata.
Em seu último comentário sobre Antígona, Lacan (1959-60/2008) afirma
que o desfecho da peça poderia ter sido diferente se o corpo social tivesse
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aceitado perdoar, esquecer o decreto e cobrir tudo com honras funerárias: “é


na medida em que a comunidade se recusa a isso que Antígona deve fazer
o sacrifício de seu ser para a manutenção desse ser essencial que é a Até44
familiar – motivo, eixo verdadeiro, em torno do qual gira toda a tragédia”
(Lacan, 1959-60/2008, p.334).
É interessante observar esse comentário de Lacan, proferido justamente
no seminário sobre a ética da psicanálise, quando estava a nos ensinar que
razão e necessidade são insuficientes para apreciar o campo do gozo, que se
apresenta como “satisfação de uma pulsão”. Ao escrever sobre o mal-estar
na cultura, é sobre a dificuldade de o corpo social operar harmonicamente
que Freud (1930[1929]/2008) nos adverte. Eis onde acreditamos residir a
dificuldade implicada no trabalho em qualquer contexto institucional.

44 Lacan (1959-60) define que a Até provém do campo do Outro.


108

REFERÊNCIAS
Brasil (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990.

Freud, S. (2008). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras comple-


tas (vol.18, p.10-90). Cia das Letras. (Trabalho original publicado em
1930[1929]).

Lacan, J. (1967). Pequeno discurso aos psiquiatras. Inédito.

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Lacan, J. (1974). A terceira. Inédito. Circulação interna da Escola Letra
Freudiana.

Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Zahar


Ed. (Originalmente publicado em 1957-58).

Lacan, J. (2003). Nota sobre a criança. In J. Lacan. Outros Escritos (p.369-


370). Zahar Ed. (Originalmente publicado em 1969).

Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Zahar Ed. (Ori-


ginalmente publicado em 1959-60).

Sófocles (1990). Antígona. In. Sófocles. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo
em Colono, Antígona. Zahar Ed. (Peça original representada em 441 a. C.)

Zamora, M.H. (2016). Conselhos tutelares: defesa de direitos ou práticas de


controle das famílias pobres? In. E. Brandão (org.). Atualidades em Psicologia
Jurídica. Nau Ed.
ENTRE A VIDA E A MORTE
– VIOLÊNCIA, DESTINO E
DISCURSO ANALÍTICO
Nina Silva Prado Lessa45
Angélica Bastos46

Introdução
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Na escuta psicanalítica em clínica-escola e nos serviços públicos de


saúde, destaca-se o relato de situações de violência, que não raramente cul-
minam na morte. Não seria possível minimizar a frequência e a intensidade
da violência sofrida ou exercida pelos sujeitos que buscam atendimento. É
próprio da violência envolver ou resultar em passagens ao ato que deixam nos
sujeitos marcas psíquicas indeléveis em busca de leitura na clínica.
Nas narrativas a que temos acesso, as manifestações de violência assu-
mem as mais diversas e dramáticas formas: violência doméstica, violência
sexual contra a criança, contra a mulher, contra pessoas trans, violência racial,
contra portadores de deficiência ou necessidades especiais, violência urbana
e policial, violência de Estado, em um crescendo que multiplica o número
de vítimas e as consequências nos sujeitos. Atingindo de modo privilegiado
determinados grupos ou populações, essa série mortífera evoca o termo necro-
política (Mbembe, 2018b), que não corresponde simplesmente a manifesta-
ções da pulsão de morte, assim como o biopoder descrito por M. Foucault
não coincide com a pulsão de vida. Conforme veremos, ambas as pulsões se
reúnem na satisfação pulsional denominada gozo, o qual é objeto das formas
de gestão do laço social e interpela o psicanalista.

45 Psicanalista. Psicóloga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Mestre em Teoria
Psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica – PPGTP-UFRJ. Doutoranda em
Teoria Psicanalítica no PPGTP-UFRJ.
Email: ninasplessa@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6391810677205124
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5032-4391
46 Psicanalista. Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da
Associação Mundial de Psicanálise.
E-mail: angelicabastosg@gmail.com
Lattes: https://lattes.cnpq.br/2336468690216198
ORDCID: https://orcid.org/0000-0003-4764-2660
110

As queixas e relatos de pessoas que foram alvo de palavras e atos discri-


minatórios e cruéis são recorrentes e a pandemia deflagrada em 2020 expli-
citou a política mortífera que banalizou o extermínio de seres humanos. Não
estamos em posição de asseverar que a violência aumentou, especialmente
se isso sugerir que insultos, atos agressivos e crimes contra a vida eram mais
raros anteriormente. Testemunhamos na fala dos pacientes os ecos do acir-
ramento de tensões e manifestações violentas, agressões físicas e verbais, o
que, afinal, é diuturnamente veiculado na mídia e na literatura especializada.
Uma senhora traz o neto de dois anos para tratamento, pois a criança
presenciou o assassinato da mãe, perpetrado pelo próprio pai. Uma mulher
jovem vem falar da violência impingida durante anos pelo padrasto a sua mãe

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e a ela própria, vendo no filho que a agride hoje o herdeiro de seu algoz. Uma
pessoa adulta relata, em meio a grandes dificuldades para situar-se na cadeia
das gerações, que seu pai assassinara a mãe. Outra relata o desaparecimento
precoce da mãe e a compreensão gradual, ao longo da adolescência, de que
esta foi vítima de feminicídio.
As mulheres que sofrem violência por parte de seus cônjuges e com-
panheiros possuem filhos sobre os quais se abate a tragédia. A Organização
Mundial da Saúde (OMS, 2002) define a violência como o uso intencional da
força ou poder sob forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra
pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades
de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, mau desenvolvimento ou privação.
Do ponto de vista da psicanálise, a morte não constitui, em si, o trágico
da vida. A experiência freudiana situa a morte na vida, fazendo dos guardiães
da segunda os lacaios da primeira (Freud, 1920) e valendo-se da tragédia grega
para abordar a inscrição da vida pulsional no inconsciente. O ensino de J. Lacan,
por sua vez, retoma a tragédia que atravessa a cadeia geracional para encontrar
seu ápice no desejo, considerando a tensão entre a presença de uma alteridade
inassimilável e a responsabilidade do sujeito por seu ato e destino. Nosso obje-
tivo no presente trabalho consiste em articular violência e tragédia, para daí
extrair linhas de abordagem psicanalítica para os sujeitos a elas submetidos.

As marcas da violência e seu apagamento

Na “Interpretação dos Sonhos”, Freud registra o relato de um paciente


que se ocupava com o “tema da violência” [Thema der Gewalttat]. O sujeito
sonhava repetidamente que “um homem com uma machadinha o estava per-
seguindo; ele tentava correr, mas parecia estar paralisado e não conseguia sair
do lugar” (Freud, 1900, p. 612). Suportada como uma invasão proveniente
do exterior, como uma machadinha implacável, a violência incide sobre o
campo do sujeito, passa a habitá-lo e a produzir seus efeitos desde o interior do
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 111

corpo. A violência enlouquece, silencia, emudece; às vezes produz verborragia,


necessidade de falar sem parar. Como ruptura ou como borrão, infiltra-se na
língua (Mbembe, 2018), leva a um despedaçamento da linguagem. Encurrala
o sujeito na zona-limite entre a vida e a morte. “A violência abole o exterior,
condena a existir dentro dos limites que traça” (Louis, 2020, p. 111). Às expen-
sas do desejo e da fantasia, sempre singulares, o sujeito encontra-se capturado
numa situação sem saída, paralisado, brutalmente reduzido à dimensão de
dejeto do gozo do Outro (Macêdo, 2014). A experiência traumática de ver-se
reiteradamente confrontado com uma espécie de “machadinha”, de viver em
um “estado de injúria” (Mbembe, 2003), dá lugar a dor, tristeza, impotência,
desespero, desejo de morrer ou “começar do zero uma vida melhor” – como
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afirmou um sujeito escutado no serviço público de saúde.


A violência é um fato coletivo (Assoun, 2008) e, enquanto tal, está estru-
turalmente ligada ao laço social. O aparecimento de determinados atos como
“violência” tem lugar tão somente no espaço estruturado pelo discurso. Em
“Psicologia das Massas e análise do eu”, Freud (1921) parte da premissa
de que a oposição entre a psicologia individual e a psicologia social perde
sua nitidez se examinada a fundo. A psicologia individual, que perscruta os
caminhos pelos quais as moções pulsionais buscam alcançar satisfação, não
pode desconsiderar as relações do sujeito com os outros. “Na vida psíquica
do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como modelo, como objeto,
como auxiliar e como adversário” (Freud, 1921, p. 137). Se não há vida psí-
quica sem o campo do Outro, se há um enlace do sujeito e suas modalidades
de gozo aos fenômenos sociais que marcam uma época, a interrogação sobre o
estatuto da violência na conjuntura em que se situa o desejo do analista ganha
relevância. O caráter fronteiriço da violência – entre o sujeito e o Outro, entre
pulsão e laço social – permite colocar em discussão questões cruciais a nossa
época que atravessam a clínica.
Nas vésperas de seu aniversário de 15 anos, uma adolescente chega ao
serviço de pré-natal de um hospital ao final de uma gestação, prestes a dar à
luz um bebê. Tem o rosto, pescoço, seios e braços tomados por cicatrizes de
uma queimadura que sofreu dois anos antes. “Foi minha mãe que jogou fogo
em mim”, é uma das poucas frases que diz. Uma tia a acompanha durante o
atendimento com a equipe multiprofissional. Relata que a mãe era usuária de
drogas e fazia tratamento psiquiátrico irregularmente. Conta que a adoles-
cente não conhecia o pai. Após a queimadura – episódio que descortina todo
um pano de fundo de violência e desamparo que invade a relação entre mãe
e filha –, a primeira foi presa e a segunda passou a vagar pelas ruas, a trocar
sexo por comida. Fica meses sumida, longe de casa. Não frequenta a escola.
Um dia, descobrem que ela está grávida. Em sua barriga, exibe cicatrizes de
cortes que faz em seu próprio corpo.
112

Tomamos como ponto de partida uma consideração de ordem ética. Ao


escrever Moisés e o monoteísmo, Freud (1939[1934-1938]) nota que, na defor-
mação de um texto, assim como em um assassinato, “a dificuldade não está em
perpetrar o ato, mas em livrar-se de seus traços [Spuren]” (p. 55). No interior
desse grande trabalho sobre a ética da psicanálise e sobre a questão de sua
transmissão (Fuks, 2014), a passagem citada tem o efeito de revelar, na força
do traço, um ponto de fracasso no desígnio de destruição. Que a irredutibi-
lidade do traço possa levar, não à carreira sem limite que caracteriza o ódio
(Lacan, 1953-54), exigindo sempre um passo a mais no desaparecimento do
Outro, mas a uma leitura que subverta o destino engendrado pela violência,
esta nos parece ser a posição da psicanálise. Apostar em um ponto de fracasso

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da violência concerne à função do analista, em seu ato. Partimos do traço para
sustentar a possibilidade de uma leitura da violência, em um duplo sentido:
como ato teórico – leitura de suas marcas nos textos de Freud e Lacan – e
como ato que instaura um percurso de análise, isto é, um trabalho de leitura
das marcas inscritas das experiências de cada um.
Freud, que não chegou a fazer da violência um conceito, salienta o termo
na célebre carta a Einstein. Vale lembrar a ocasião em que a correspondência
ocorre. Convidado pela Liga das Nações47 para estabelecer debate com uma
pessoa de sua escolha, Einstein (1932) endereça àquele que descreve como
“o grande conhecedor da vida pulsional” a questão que lhe parecia a mais
importante da civilização: haveria um caminho capaz de libertar os seres
humanos da fatalidade da guerra? Dirigida ao psicanalista, e não a um esta-
dista, a questão suscita o problema da prevenção contra a guerra, tendo em
vista o campo das pulsões. Mas cabe ressaltar a marca trágica presente em
sua formulação, pois a tentativa de conquistar liberdade diante da fatalidade
– tarefa do herói – encontra seu limite na força avassaladora do destino. Fatal
é o destino inescapável, a desgraça para a qual prevenção não há. Conforme
veremos adiante, a experiência analítica comporta uma dimensão fundamen-
talmente trágica (Lacan, 1959-60)
Ante a fatalidade da guerra e no interior de uma retomada da teoria das
pulsões, encontramos a introdução, por Freud, do termo “violência” – na
dobradura entre guerra e pulsão, entre o campo social e o campo do sujeito.
Em sua resposta a Einstein, o psicanalista toma como ponto de partida a
relação entre o direito e o poder, presente na carta a ele endereçada, mas
interroga: “posso substituir a palavra poder [Macht] por violência [Gewalt],
uma palavra mais intensa e mais dura?” (Freud, 1932, p. 427). No texto de
um autor sempre tão preciso no que se refere ao emprego de significantes, a
substituição de uma palavra por outra merece destaque.

47 A Liga das Nações, precursora da ONU, foi uma organização concebida após a Primeira Guerra Mundial,
com o objetivo de assegurar a paz.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 113

Contudo, a tradução de Gewalt por violência exige alguma precaução


(Derrida, 1994). Gewalt, que provém do arcaico walten, evoca imperar, reinar,
ter poder sobre. Designa tanto violência quanto o domínio ou a soberania do
poder legal48. Uma discussão aprofundada acerca do termo ultrapassaria os
objetivos deste artigo, mas cabe mencionar que Gewalt parece comportar
justamente a complexidade que interessa a Freud registrar, a saber, o fato de
direito e soberania não excluírem a violência. A preocupação por estar tratando
de algo conhecido e reconhecido por todos – ou pelo menos por aqueles que
veiculam, na língua, a zona de indistinção entre violência e poder – não o faz
recuar ante a responsabilidade de escrever e de desvelar a violência ali onde
se poderia esperar a pacificação dos conflitos entre os seres falantes.
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Sabemos que, para abordar a origem da cultura, Freud recorreu à inven-


ção de um mito. Sua presença insiste nas entrelinhas da carta de 1932. “No
início, há o Ato”, afirma ao concluir “Totem e Tabu” (Freud, 1913). Na família
primitiva, apenas o pai gozava da liberdade de impulsos eróticos e agressivos;
os demais, filhas e filhos, viviam em opressão escrava. O mito freudiano conta
que, certo dia, os irmãos se reúnem para matar e devorar o pai, colocando
assim um fim à horda patriarcal. O parricídio é o ato que instaura um antes e
um depois, entre a violência deste que ocupava o lugar de exceção e o poder
que constitui o direito. No entanto, se a violência parece dividir-se entre o pai
tirânico e os filhos assassinos, queremos aqui enfatizar o fato de Freud (1913)
reservar o termo Gewalt ao pai da horda, que descreve como um “fazedor de
violência” [Gewalttätiger] (Assoun, 2008). Inscritos na estrutura e articula-
dos um ao outro, a violência do Um – arbitrariedade imposta como ordem
natural – e o crime de parricídio – ato de transgressão à tirania que funda o
laço social – devem ser distinguidos.
Lembremos que, após o crime, há a canibalização do corpo morto, o
que mostra a tentativa dos filhos de identificação ao pai. Para além do ódio
que dirigem a essa figura da violência, há o amor e a admiração. Os filhos
queriam ser como o pai, visavam ocupar seu lugar de exceção e usufruir do
gozo ilimitado. Da incorporação de seus restos, surge o ponto essencial em
que algo da violência do Um torna-se suscetível de retornar. Há um “resto
da personalidade originária não domado pela cultura” (Freud, 1930, p. 345),
passível de se fazer presente na história como hostilidade cultural49. Esse resto
não domado, fundamento da instância superegoica, segue ordenando o gozo
sem limites e incitando à violência originária do Um.

48 Gewalt participa da formação de algumas palavras, compondo, por exemplo, os termos “onipotência”
[Allgewalt], “poder estatal” [Staatsgewalten] e “estupro” [Vergewaltigung] – presentes da obra de Freud.
49 Frutos do populismo alimentado pelo ódio, os atos de destruição e terrorismo que ocorreram em Brasília
no último 8/1 concretizam a formulação de Freud.
114

Um estado de tranquilidade em que a violência estaria erradicada só é


concebível teoricamente (Freud, 1932). Sob o manto da benevolência e do dis-
curso do bem comum, o direito encobre a violência, que lhe é imprescindível.
A cultura inclui elementos de poder desigual, edifica-se sobre a desigualdade da
distribuição dos bens; não caminha em direção à ordem e ao progresso. As leis são
feitas por e para os dominantes, que buscam reiteradamente se elevar acima das
restrições que são válidas para todos, mas talvez não para eles. O direito vigora,
assim, sob o risco de deslizar para a violência da união dos irmãos, pronta para
se voltar contra os não irmãos, que se tornam estrangeiros, oponentes, inimigos.
Ou simplesmente resto invisível, dejeto cujo destino já não importa.
Às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, Freud (1939 [1934-

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1938]) registra seu espanto ao constatar que o progresso sela um pacto com a
barbárie. Essa formulação se faz ecoar quando lemos, em “Políticas da inimi-
zade” (Mbembe, 2020), que a violência mais ou menos velada das democracias
volta à tona em nossa época. Mbembe coloca que “talvez as democracias
tenham sido sempre comunidades de semelhantes” (p. 75), círculos de sepa-
ração e indiferença em relação à fabricação de toda uma série de pessoas que
vivem no limite da vida. Nessa direção, assinala que nossa era se define pela
segregação, pelos movimentos de ódio, pela hostilidade e, sobretudo, pela
luta contra o inimigo (Mbembe, 2020).
Nossa época descortina que não há tempo de paz. No entanto, a fatalidade
da violência não pode servir como álibi para dispensar uma tomada de posição.
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. A frase de
Goethe, citada por Freud (1913) quando este examina o que se transmite de
uma geração a outra e o modo como essa transmissão se articula, marca uma
orientação. Sustentar o lugar do sujeito ali onde a violência vigora, conde-
nando a existir dentro dos limites que engendra, concerne à ética que anima
o discurso analítico. Diante da violência, que compõe a herança do falante,
a psicanálise dá lugar a uma leitura singular e a um trabalho de escrita que
funcione como borda ao gozo mortífero.

Antígona entre a vida e a morte


Sobre a antiga casa dos labdácidas – percebo – penas dos que partiram
pendem sobre penas,/sem que de nenhuma geração/venha refrigério a
outra (Sófocles, 1999, p. 47).

Tal como manifesto desde Freud, que em inúmeras ocasiões recorre


ao texto de Sófocles, reconhecendo na força avassaladora de “Édipo Rei” a
verdade do desejo inconsciente, a tragédia está presente no primeiro plano
da experiência analítica (Lacan, 1959-60). Não pela catarse – termo que
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 115

testemunha a presença desse gênero dramático na raiz da descoberta freu-


diana –, mas sim pela posição na qual se situam os heróis, na tensão entre a
presença de uma alteridade inassimilável e a responsabilidade por seu ato.
No Seminário 7 (1959-60), Lacan retoma a tragédia de Antígona (Sófocles,
1999) como um ponto de virada na interrogação sobre a ética da psicanálise.
Na última peça da trilogia tebana, acompanhamos a posição inquebrantável
dessa filha da união incestuosa de Édipo e Jocasta diante das consequências
dos inumeráveis crimes que atravessam a história de sua família, os Labdá-
cidas, selando o destino das gerações sucessivas. Recordemos o enredo, as
cadeias significantes que precedem nossa heroína.
Conforme os versos de Sófocles e a narrativa de Vernant (2000), Édipo é
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filho de Laio – o desajeitado –, neto de Lábdaco – o manco. Quando Lábdaco,


então rei de Tebas, morre assassinado, Laio, com apenas um ano, é obrigado a se
exilar. Já na idade adulta, refugia-se em Corinto, onde o rei Pélope gentilmente lhe
oferece hospitalidade. Longe de corresponder à amizade daquele que o acolheu,
Laio tenta estuprar Crísipo, jovem filho de Pélope. Após esse episódio, Crísipo se
suicida. Pélope lança então a Laio uma maldição: Laio será assassinado por seu
próprio filho e toda sua descendência estará fadada ao desaparecimento. Por essa
razão, quando do nascimento de Édipo, Laio e sua esposa Jocasta não hesitam
em comandar o assassinato imediato de seu desafortunado filho.
Mas Édipo sobrevive e cresce em Corinto, acreditando ser filho do rei
Pólibo e da rainha Peribéia. Tentando escapar do terrível destino que lhe revela
o oráculo de Delfos – “Matarás teu pai, deitarás com tua mãe”, sina traçada
pelo crime paterno – , acaba por matar Laio, sem saber que este era o rei de
Tebas e, principalmente, sem saber que era seu pai biológico. Na entrada de
Tebas, Édipo soluciona o enigma que lhe propõe a Esfinge; como recompensa,
assume o trono de Tebas e casa-se com a viúva de Laio, Jocasta, sem saber que
esta era sua mãe. Após alguns anos de fertilidade e alegria, uma peste abate-se
sobre Tebas, dizimando e enlouquecendo seus cidadãos. O oráculo de Delfos
é novamente consultado e anuncia que o mal não cessaria enquanto o assas-
sinato de Laio não fosse vingado. Incansável, o Rei Édipo parte em busca da
verdade acerca da morte de Laio. “Onde estão os culpados?”, pergunta-se até
descobrir-se ele próprio o responsável pelo crime e pela desgraça que assola o
seu reinado. Sua investigação vai até esse ponto, deixando encoberto o crime
paterno e a tentativa de assassinato que sofrera ainda bebê.
A descoberta do casamento incestuoso tem como consequência o suicídio
de Jocasta e o ato de Édipo de furar os olhos. “Melhor seria não ter nascido”,
afirma Édipo. Já cego, seus filhos Etéocles e Polinices o tratam de modo tão
indigno que ele lhes lança uma maldição: jamais irão se entender, ambos bus-
carão exercer a soberania e, em combate, morrerão um pela mão do outro. A
maldição paterna se concretiza e os dois irmãos acabam se odiando. Decidem
116

ocupar o trono de Tebas em alternância, ano após ano. No entanto, chegado o


momento da substituição, Etéocles anuncia ao irmão que não deixará o poder.
Indignado, Polinices tenta reconquistar a soberania, organiza uma invasão à
cidade e destrói Tebas. No combate final, um irmão mata o outro. Assume o
trono o irmão de Jocasta, Creonte.
Em Antígona, o rei Creonte, apoiado no princípio segundo o qual não se
pode igualmente honrar defensores e inimigos da pátria, glorifica Etéocles e
cobre de infâmia Polinices, recusando a este o direito à sepultura. Polinices
deve ser “abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro das aves,
que o espreitam famintas” (Sófocles, 1999, p. 8). Polinices representa a vida
que se vai sem direito ao luto. Irmã dos fratricidas, Antígona está decidida a

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transgredir o arbítrio do soberano, ciente de que a consequência de seu ato será
a morte. A peça coloca em cena a zona entre a vida e a morte em que se localiza
a filha de Édipo, condenada ao suplício de ser enterrada viva em uma tumba.
Os espectadores acompanham “o destino de uma vida que vai confundir-se
com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte invadindo o
domínio da vida, vida invadindo a morte” (Lacan, 1959-60, p. 295).
Submetidos à tirania de Creonte, Polinices e Antígona – o primeiro, morto
indigno de luto; a segunda, “nem viva, nem morta” (Sófocles, 1999, p. 65)
– trazem à tona a problemática do poder soberano de ditar quem pode viver
e quem deve morrer. Em seu comentário ao texto grego, Lacan faz notar
que, à morte biológica do corpo, que sobrevém à comunidade dos viven-
tes, acrescenta-se para o falasser a possibilidade de uma segunda morte.
A respeito desta, interessa-nos demarcar duas acepções presentes em seu
ensino. Embora radicalmente distintas, ambas estão referidas à incidência
da linguagem. A primeira acepção ressalta a mortificação engendrada pelo
significante, que comporta um fator letal. Nenhum sujeito aparece no real
senão pela entrada imperativa do significante, da qual decorrem tanto a
emergência do sentido, quanto, “em alguma parte”, a afânise, o desapare-
cimento do sujeito (Lacan, 1964).
Já a segunda acepção, colocada em cena pelo decreto de Creonte, traz à
tona a tentativa de exterminar o que restou de um sujeito já morto, a morte do
nome. Tirésias adverte o tirano: “Detém-te ante o morto. Não queiras matar/
quem já morreu. Que bravura há em exterminar um cadáver?” (Sofócles,
1999, p. 76). Sobre a questão da segunda morte, nessa acepção tão pertinente
ao nosso tempo, Lacan coloca:

Não se trata de acabar com quem é homem como se faz com um cão.
Não se pode acabar com seus restos esquecendo que o registro do ser
daquele que pôde ser situado por um nome deve ser preservado pelo ato
dos funerais (Lacan, 1959-60, p. 329).
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 117

Embora a primeira acepção destacada envolva todo um léxico violento


– “fator letal”, “mortificação”, “decepação” –, queremos marcar uma dife-
rença crucial em relação à segunda acepção. Se o fator letal do significante
humaniza, a morte do nome visa produzir seu oposto radical. O desígnio de
aniquilação do traço – evocado na frase de Freud que trouxemos anterior-
mente: “Em suas implicações, a deformação de um texto assemelha-se a um
assassinato: a dificuldade não está em perpetrar o ato, mas em livrar-se de
seus traços” – coloca em xeque a possibilidade de leitura e elaboração, sob o
risco de produzir as consequências mais monstruosas no laço social. A esse
respeito, lembramos o leitor da brutalidade das ações da polícia do estado do
Rio de Janeiro. Um ano após a Chacina do Jacarezinho, em 2021, moradores
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e lideranças locais inauguraram um memorial em homenagem às 28 pessoas


mortas pela polícia. Menos de uma semana depois, policiais foram ao local
e destruíram o memorial a marretadas. “A polícia mata e depois destrói a
memória. É o genocídio casado ao memoricídio: o assassinato da memória
de nossa violência social”, afirma a deputada Renata Souza50.
Em sua posição, Antígona representa o limite radical, o corte que a pre-
sença da linguagem instaura na vida do homem (Lacan, 1959-60). A despeito
do julgamento que se possa fazer da conduta de Polinices, este fora marcado
por um significante, possuindo um valor de linguagem que é indestrutível. A
peça mostra que golpear o inimigo já morto ultrapassa as prerrogativas do sobe-
rano, advertindo acerca das consequências fatais de um excesso que pode ficar
encoberto pelo discurso do bem comum – “o fruto mortal que Creonte recolhe
de sua obstinação e de seus mandamentos insensatos é o filho morto que ele
tem em seus braços” (Lacan, 1959-60, p. 327). Fazendo vigorar esse limite, o
texto de Sófocles mostra Creonte desfeito. Eis sua fala final: “Ai de mim, / já
não sei o que fazer, / para quem olhar. / Tudo que tenho nas mãos vacila, / e
sobre minha cabeça / a fatalidade desaba, insuportável” (Sófocles, 1999, p. 96).
Seguindo um “método implacável de comentário de significantes” (p.
299), Lacan (1959-60) traça uma linha divisória entre a hamartia, isto é, o
erro de julgamento, o engano que caracteriza a posição de Creonte, e a Até,
“palavra insubstituível” que destaca para situar o lugar de Antígona. A Até
não é a falta ou o erro, não é fazer uma besteira, mas a colocação em jogo
do limite, proveniente do campo do Outro, que a vida humana não poderia
transpor por muito tempo. No caso de Antígona, a Até está ligada à desgraça
da família dos Labdácidas, que acomete todos os níveis dessa linhagem. A
heroína é aquela que, por seu desejo, viola os limites da Até. “Para além dessa
Até, só se pode passar um tempo muito curto, e é lá que Antígona quer ir”
50 Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2022/05/11/policia-civil-do-rj-destroi-com-caveirao-placa-em-homenagem-
a-mortos-na-chacina-do-jacarezinho. Acesso em: 3 abr. 2023.
118

(Lacan, 1959-60, p. 311). Ou seja, a maldição herdada não a exime de uma


tomada de posição. A personagem não cede de seu lugar de sujeito ali onde
vigoram os limites engendrados pela desgraça que acomete sua família.
O texto de Sófocles coloca em cena temas fundamentais para uma reflexão
crítica sobre a posição da psicanálise no século XXI. O morto indigno de luto
e a situação do herói numa zona-limite entre a vida e a morte remetem à fabri-
cação, nos dias de hoje, de toda uma série de pessoas que vivem no limite da
vida (Mbembe, 2020, p. 68). No entanto, é preciso cuidado com aproximações
apressadas, pois uma diferenciação fundamental se impõe. Segundo a “Poética”
de Aristóteles, a tragédia caracteriza-se por representar fatos que despertam temor
e piedade – isto é, respeito para com os mortos (Lauxerois apud Vorsatz, 2013) –,

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tendo por objetivo final a purificação, a catarse, das paixões. Quanto a esse ponto,
Lacan destaca o fato de que são as paixões do Coro – e não as do herói trágico –
que estão em jogo na purgação. O herói seria um redentor do Coro (Freud, 1913).
A propósito do efeito da tragédia sobre o campo do Outro, Freud (1900)
interroga a origem da comoção que sobrevém ao espectador diante de “Édipo
Rei”. Esse efeito não decorreria do contraste entre o destino implacável e as vãs
tentativas do herói de escapar do mal que o ameaça, como se poderia pensar, mas
do reconhecimento, por parte do espectador, de que esse fim poderia ser o seu.
“Seu destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso – porque o orá-
culo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele”
(Freud, 1900, p. 289). A tragédia tem o impacto de uma advertência (Freud, 1900).

Um avesso para a vida e a morte na necropolítica

Quanto à vida supérflua fabricada pelo poder da soberania na atualidade,


espécie de vida cujo valor está fora da economia, Mbembe (2020) afirma
que seu único equivalente é o tipo de morte que lhe pode abater: “Em vista
desse tipo de vida ou desse tipo de morte, ninguém sente nenhum senso de
responsabilidade ou justiça. O poder necropolítico opera por uma espécie de
reversão entre a vida e a morte, como se a vida não fosse outra coisa senão o
veículo da morte” (Mbembe, 2020, p. 68).
Na contracorrente da banalização das vidas humanas e da morte que não
parece concernir aos poderes que deveriam representar a pressão da civiliza-
ção, o psicanalista não se exime de reagir. Enquanto a necropolítica prima por
visar à eliminação da diferença entre meios e fins, permanecendo indiferente às
explosões de crueldade e violência, à psicanálise cumpre, a seu modo, aliar-se
à “tarefa de constituição daquilo que bem se poderia chamar de reservas de
vida” (Mbembe, 2018a, p. 312),
Se a biopolítica e o biopoder descritos por M. Foucault (1970-71/2004)
exigem um avesso (Laurent, 2016), o mesmo se impõe em relação à
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 119

necropolítica. A biopolítica se desenvolveu a partir do século XVIII como


forma de racionalização das problemáticas impostas à prática governamental
no âmbito da saúde, higiene, segurança, raça, natalidade, longevidade. Para
ela, a psicanálise pode oferecer um avesso, dando vez ao que há de mais
singular em cada um.
Aos olhos da necropolítica, indiferente aos sinais da crueldade, “o crime
constitui parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos é, em
princípio, desprovida de qualquer simbolismo. Uma morte assim não tem nada
de trágico” (Mbembe, 2020, p. 68). Antes tivesse, diríamos, daí a necessidade
de propor um avesso para o necropoder que estabelece, não simplesmente
probabilidades díspares de viver ou morrer, mas uma multidão de humanos
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condenados à vida e à morte as mais violentas.


O luto e o desamparo, recorrentemente experimentados pelos sujeitos
que acorrem a nossos serviços, são vividos em meio à profunda vulnerabi-
lidade social, precária assistência à saúde, gravíssima violência policial em
comunidades e um sem número de perdas de toda ordem. As formas atuais de
gestão da vida e da morte de acordo com poderes letais logram a destruição
de vidas humanas condenadas a uma morte que se naturaliza de uma geração
a outra, se uma leitura não é feita na fala daqueles que sobrevivem em estado
de sursis, ou seja, de suspensão condicional, talvez temporária, da pena, mas
não da ameaça de violência e morte.

Para concluir

O ensino de Lacan nos familiarizou com a ideia de que discurso é laço


social e de que um discurso pode ter em outro seu avesso. Embora essa relação
entre direito e avesso se estabeleça entre o discurso do mestre e o do analista,
entendemos que o necropoder, a exemplo da guerra, não está para além do
discurso, mas sustentado por ele.
A psicanálise, que situa a tragédia no primeiro plano da experiência
que inaugura, apresenta-se contra a tendência de minimização da dimensão
trágica da violência e de banalização da morte. Considerando a tensão entre
o inassimilável da violência e a responsabilidade do sujeito por seu destino,
o dispositivo analítico, ao fazer falar o sujeito e dar lugar a uma leitura sin-
gular, pode estabelecer uma distância entre os limites traçados pela violência
e os trilhamentos pulsantes de uma vida, marcados pelo desejo de ir além dos
limites, como vimos em “Antígona”. Oferecer a escuta psicanalítica a sujeitos
cuja vida se encontra atravessada pela violência, em muitos casos inseparável
da necropolítica, parece ser o afazer que compete aos psicanalistas, especial-
mente quando consideramos que os efeitos da violência se propagam de uma
geração a outra, minando as forças da vida.
120

REFERÊNCIAS
Aristóteles. (2008). Poética. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Assoun, P. L. (2008). Freud e as ciências sociais. Psicanálise e teoria da


cultura. Edições Loyola.

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“TÃO PEQUENA E UM
PRONTUÁRIO TÃO GRANDE”:
intervenções psicanalíticas com crianças
pequenas afetadas por violência doméstica
Elenice Cazanatto51
Sandra Djambolakdjian Torossian52
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A violência doméstica é a principal causa de feminicídio no Brasil e no


mundo. De acordo com dados do Monitor da Violência (Velasco et al., 2023)
e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (n.d), em 2022 foram registrados
1,4 mil feminicídios, o maior número desde que a Lei 11.340, Lei Maria da
Penha, entrou em vigor em 2015. Entre 2016 e 2021, a quantidade de femini-
cídios cresceu cerca de 44,3%, passando de 929 casos, em 2016, para 1.341,
em 2021. O Brasil tem uma das mais altas taxas de feminicídio do mundo,
ocupando a quinta posição.
No Rio Grande do Sul, em 2022, também tivemos um número recorde de
feminicídios em relação aos últimos 10 anos. Contabilizaram-se 107 femini-
cídios consumados. Ou seja, a cada 3,4 dias uma mulher foi vítima. O Mapa
dos Feminicídios, estudo realizado pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul
(2023), mostra que 89 das mulheres mortas eram mães; delas, 43 tinham filhos
com o autor do feminicídio. Três vítimas estavam grávidas. No total, foram
219 pessoas que perderam suas mães em decorrência do feminicídio, sendo

51 Psicóloga Clínica. Psicanalista. Mestranda no PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Membro
da Escola de Estudos Psicanalíticos. Especialista em Psicologia Clínica: Abordagem Psicanalítica do
Sujeito Contemporâneo (UCS). Especialista em Intervenção psicanalítica na clínica com crianças e
adolescentes (UFRGS).
Filiação Institucional: Programa de Pós graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura UFRGS
E-mail: nicecazanatto@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6590930688970954
ORCID: 0000-0001-8696-0915
52 Psicanalista, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)- Departamento de
Psicanálise e Psicopatologia e do PPG em Psicanálise: clínica e cultura. Coordenadora do Laboratório de
estudos em psicanálise literatura e política- LEPLIP. Membro do GT ANPEPP- Psicanálise, política e Clínica,
participa da REDIPPOL, e do Coletivo Amarrações: psicanálise e políticas com juventudes e compõe o
conselho consultivo da REDUC- Rede brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: djambo.sandra@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2022735757785516
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9189-6994
124

que 10% das crianças tinham menos de quatro anos de idade. Em 2021, houve
96 feminicídios, deixando 129 órfãos no estado.
Considerando que os psicanalistas precisam estar atentos e intervindo
nas problemáticas do seu tempo, nos perguntamos: O que pode a Psicanálise,
mais especificamente a escuta psicanalítica, perante essa realidade? Quais as
intervenções psicanalíticas possíveis com crianças pequenas afetadas pela
violência doméstica?
Conforme nos ensina Rodulfo (1990), a história de uma criança começa
muito antes de ela nascer. Existe uma pré-história que remete às gerações
anteriores, à história de sua família, de seu folclore, do meio social e cultu-
ral em que está inserida. O autor afirma: “Para entender uma criança ou um

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adolescente (de fato, inclusive um adulto), temos que retroceder onde ele
ainda não estava” (p. 17). A criança retira significantes do seu mito familiar,
das histórias narradas e dos fragmentos de não ditos, “esquecidos”. A criança
extrai significantes de onde ela vive.
No entanto, Rodulfo (1990) salienta que, para que algo seja promovido
à categoria de significante, é preciso algo ou alguém que o ofereça. Não é
qualquer palavra, gesto ou ato que se transforma em significante: é necessário
haver um investimento desejante para tal. A criança buscará os significantes
primeiros no olhar, na fala, nos cuidados corporais.
Rodulfo (1990) afirma, ainda, que a criança retira do mito familiar os
significantes que vão torná-la humana porque é ali que ela vive. Mais adiante, o
mesmo autor pergunta-se onde habita a criança, ampliando o contexto familiar
para outros espaços pelos quais os pequenos circulam (por exemplo, a escola).
Assim, ele questiona: como a criança é falada nos lugares que ela habita?
Além do contexto familiar no qual a violência se faz presente, então,
podemos ampliar a pergunta para outros locais por onde a criança circula:
Como a criança é falada nos espaços de proteção e atendimento por ela habi-
tados quando sofre violência doméstica? Afinal, de tais cenários ela poderá
também retirar alguns significantes que compõem a sua vida psíquica.
Nesse ponto, Rodulfo (1990) destaca ser função do psicanalista extrair os
significantes que representam o sujeito quando estes estão associados somente
às funções superegóicas dos representantes do Outro. Ou seja, quando não
permitem ao sujeito um lugar para viver. “Conseguir um lugar para viver
depende dos significantes que se encontra”, afirma Rodulfo (1990, p. 34). É
função do psicanalista de crianças produzir uma mudança de rumo na cadeia
significante, permitindo a emergência de outros significantes nos quais o
sujeito possa se alojar.
Seguindo esses questionamentos e buscando as possíveis intervenções
no cenário de serviços que trabalham com violência doméstica – nos quais se
escutou a frase que abre o título deste capítulo: “tão pequena e um prontuário tão
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 125

grande” –, trabalharemos a partir de duas cenas de atendimento de crianças que


atravessam a primeira infância. Uma delas ocorre em um ambulatório público do
Rio Grande do Sul. Nesse ambulatório, não se trabalhava com crianças pequenas
por considerar-se que elas não conseguiriam falar e, assim, não seriam capazes
de expressar seu sofrimento. A outra se dá em um contexto escolar.
Desse modo, um dos objetivos dessa escrita é apresentar as possibilidades
de intervenção com crianças pequenas cuja infância inicia em contextos de
violência. O estudo clínico será nossa ferramenta de escrita – o qual, segundo
Rodulfo (2004), é um gênero de contar e pensar o trabalho psicanalítico no qual
são ressaltados os fluxos e refluxos não lineares, mais associados a uma atitude
do que a um método. O estudo clínico caracteriza-se, ainda, pela sinuosidade,
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evitando pautar-se no modelo de um ir-e-vir de perguntas e respostas. Evita,


sobretudo, a existência de um molde teórico aplicado ao material clínico. A
conceitualização se dá a partir de um processamento dos materiais, semelhante
ao processo de amassar; não ao de aplicar um molde sobre uma massa. Segundo
o autor: “a cena não é, então, expressiva; nela, coisas se fabricam e acontecem
– pela primeira vez, inclusive” (Rodulfo, 2004, p. 64).

Cena I: Elsa

Elsa53, dois anos e seis meses, é filha de uma mulher que sofreu violên-
cia doméstica, inclusive agressões físicas durante a gravidez, por parte do
ex-companheiro, pai de Elsa. No momento em que a criança foi encaminhada
para o atendimento psicológico, devido a suspeita de maus tratos pela família
paterna, a mãe e o companheiro estavam separados. No entanto, a mãe ainda se
sentia ameaçada por ele e tinha medo de perder a guarda da filha, pois naquele
momento estava afastada do trabalho por conta de sintomas depressivos.
A criança estava retornando de um período de férias com o pai. Ela tinha
passado quinze dias na casa do pai sem que a família paterna permitisse o
contato, nem telefônico, com a mãe. Essa violência – a interrupção da relação
mãe-filha aos dois anos de idade por parte do pai – fragilizou ainda mais a
saúde da criança, que sofria de infecções respiratórias recorrentes. Elsa cho-
rava quando a família paterna a buscava e adoecia em quase todas as visitas.
Foi em uma dessas consultas que uma profissional interveio, orientando a
mãe a fazer uma denúncia.
Elsa foi encaminhada ao ambulatório pelo Conselho Tutelar. A criança
foi recebida aos prantos, aninhada no colo da mãe, pouco interagindo e não
estabelecendo contato visual com os profissionais do serviço. A mãe contou
que, depois do retorno das férias, Elsa não queria sair do seu quarto. Ficava

53 Os nomes utilizados neste trabalho são fictícios.


126

ali, quietinha, fazendo uso do bico e mexendo nos seus brinquedos (sem
estruturar uma brincadeira como fazia antes). Quando tentavam tirá-la do
quarto, chorava e reagia agressivamente.
Em um dos primeiros atendimentos, Elsa estava aninhada no colo da
mãe. Primeiro, olhou para as bonecas que estavam na prateleira. Em seguida,
olhou para a profissional que estava lhe atendendo e, novamente, voltou a
olhar para as bonecas. A psicanalista, então, foi até a prateleira para buscar
a boneca e lhe entregar. Há ali, nessa intervenção, um olhar compartilhado,
que comunica e reconhece a presença do outro. Atendendo ao seu “pedido”,
lhe foi entregue a boneca. Transitivando com ela (Bergès & Balbo, 2002),
a psicanalista lhe falou o quanto aquela boneca e ela estavam sofrendo e

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precisando de cuidados. Elsa continuava aninhada no colo da mãe e, agora,
aninhava a boneca em seu próprio colo.
Nos primeiros atendimentos, Elsa comparecia e permanecia no colo da
mãe, embora já tivesse adquirido a função da marcha. Quando passou a se
locomover sozinha durante os atendimentos, apresentava um pequeno sinal
de instabilidade na sustentação. Sendo descartadas possíveis causas orgânicas,
tal sinal poderia nos indicar uma certa dificuldade de sustentação psíquica
do próprio corpo. Como sair do colo/corpo da mãe se o que ela encontrava
além dele era a violência?
No decorrer das sessões, Elsa brincava: fazia comidinha, alimentava as
bonecas, organizava a casinha. Dirigindo-se à psicanalista e às bonecas, ela
questionava se as bonecas estavam com fome ou com frio. Elsa também se
utilizava da maletinha de primeiros socorros e seguia construindo narrativas
de cuidado e proteção com as bonecas.
Em algumas sessões, ela cantava: “Uma florzinha, pequenininha, maravi-
lhosa, da cor de rosa, quero pra mim, eu quero sim…”. Mais tarde, ao resgatar
a letra completa dessa canção infantil, deparamo-nos com a seguinte história:
“Uma florzinha, pequenininha, maravilhosa, da cor de rosa, quero pra mim,
eu quero sim. Não me atrapalhe, seguro o galho e sem demora arranco fora,
na mesma hora a planta chora. E a florzinha que era minha logo murchou.
Outra florzinha, pequenininha, maravilhosa, da cor de rosa, quero pra mim,
eu quero sim… Fico com medo que murche cedo, mas tanto eu quero que não
espero, arranco fora e levo embora. Mas a florzinha que era minha também
murchou. Outra florzinha [...] quero pra mim, mas penso assim: não adianta
tirar da planta, pois a beleza da natureza só é sentida quando tem vida. Toda
florzinha é melhor deixar no mesmo lugar.”
Passados alguns meses, como direção do tratamento, pensava-se que
era importante que Elsa pudesse também encenar algo de sua agressividade,
entendendo que esta é muito importante, nestes casos, como função psíquica
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 127

protetiva para as crianças. Como referiu Freud (1920): brincando a criança


pode representar ativamente o que sofreu passivamente.
Certo dia, ela chegou ao serviço com um brinquedo de leão, olhou em
direção à psicanalista e fez um rugido. Nas sessões, passou a construir uma
cena em que animais ferozes rondavam a casinha e ela fechava a casinha para
proteger as pessoas. Na alternância entre papéis, ela se colocava às vezes
como quem protegia, às vezes como os animais que tentavam atacar. No
desenrolar das cenas, em que ela imitava o grito dos animais e a reação de
espanto e medo das pessoas, foram sendo construídas narrativas a partir dos
questionamentos da psicanalista: Será que as pessoas estão bem protegidas?
Esses animais são muito ferozes? Será que vão invadir a casa? Onde mais as
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pessoas podem buscar ajuda?


Elsa passou a circular livremente pelo espaço do serviço, conseguindo
permanecer sem a presença da mãe na sala de atendimento, utilizando as
palavras para se comunicar, cantando, brincando de faz de conta, construindo
narrativas e fazendo planos sobre o retorno para a escola. No decorrer dos
atendimentos, os relatos sobre o medo das ameaças e das agressões foram
dando espaço para os planos para o futuro e as conquistas de Elsa.
Podemos levantar a hipótese de que a intervenção ocorreu a partir da
operação transitivista (Bergès & Balbo, 2002) da psicanalista. Desse modo,
permitiu-se à mãe o resgate e a sustentação da função de atribuição e transiti-
vismo, conforme propõe Crespin (2004; 2022), tendo como efeito a retomada
da capacidade da criança de falar, de brincar e de fazer elaborações.

Cena II: Tobias

No contexto de uma escola de educação infantil, foi solicitado atendi-


mento para um bebê de sete meses que chorava muito. Quando era colocado
em decúbito ventral, ele chorava. Ainda não rolava, apenas se mantinha dei-
tado ou sentado, rígido, sempre na mesma posição. Aos cinco meses, esse
bebê havia caído do bebê conforto, deslocando a clavícula. Ele também sofria
de constipação. Existia a suspeita de que sofria maus tratos e negligência.
Tobias morava com a mãe e um irmão de cinco anos. Os pais estavam
separados quando ele foi concebido, em um encontro ocasional. O pai ficou
sabendo da gravidez no oitavo mês e, inicialmente, disse que a mãe teria engra-
vidado de propósito, com a intenção de forçá-los a ficarem juntos. Depois,
afirmou que aceitaria a gravidez e cuidaria da criança.
O pequeno paciente era o terceiro filho dessa mãe, sendo o segundo
dessa relação, permeada por brigas, idas e vindas. Nas palavras do casal,
quando estão juntos, “parece que explode”. Ao saber que estava grávida, a
128

mãe considerou a possibilidade de um aborto. Quando falava sobre isso, ela


chorava, dizia estar arrependida e justificava-se, afirmando que teria sido um
ato de desespero por sentir-se sozinha e incapaz de cuidar de duas crianças.
Afirmava que amava muito seus filhos.
Durante os atendimentos, a mãe pôde resgatar a sua história, permeada
pelo abandono e pelo desamparo. Trouxe queixas da relação com a sua mãe:
quando criança, ela teria sido negligenciada, abandonada, cuidada sempre por
outros membros da família e sofrido violências. Ela não teve contato com o
pai, porque, até um certo período da vida, não sabia quem ele era. Soman-
do-se a todas essas dificuldades, quando teve o primeiro filho, ela perdeu a
guarda, pois a própria mãe alegou que ela não conseguiria cuidar dele. Naquele

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momento, essa criança, irmã de Tobias, vivia com a avó materna.
Localizamos, no discurso da escola sobre Tobias, uma repetição dos sig-
nificantes da história materna. Aos nove meses, observou-se que o bebê estava
em uma situação de parada no crescimento/desenvolvimento, o que colocou
todos em alerta. Nenhuma causa orgânica havia sido localizada. Esse cenário
nos fez levantar a hipótese de que o bebê estaria em sofrimento psíquico.
Sabe-se que, quando um bebê não consegue estabelecer um diálogo
tônico postural coerente com aquele que faz a função materna – no enlace
corporal, afetivo e simbólico –, esse bebê pode estar em sofrimento, o que
pode representar um entrave para a sua constituição psíquica. Tobias não se
aconchegava no colo daquela que exercia a função materna – seja a genitora,
seja a cuidadora. O grito/choro foi tomado como uma demanda endereçada,
uma montagem pulsional, um pedido de ajuda. Preocupava-nos a fixidez
dessa montagem pulsional e que não estivesse endereçada em um circuito de
prazer com o outro.
As intervenções ocorreram com a mãe e o bebê; com o pai e o bebê; e,
mais tarde, com os irmãos, com a avó materna, com a escola e com a cuida-
dora. Trabalhamos a possibilidade de que as intervenções também ocorres-
sem no ambiente escolar pois este era o lugar onde a criança passava o dia
todo, sendo um espaço de grande importância para o processo de constituição
psíquica. Nas intervenções com o bebê e com a mãe (que foi quem mais se
engajou e estabeleceu laço transferencial com a psicanalista), foi possível ouvir
e acolher a história dessa família. Às vezes, os atendimentos eram individuais,
quando ela podia falar dos detalhes das suas vivências. Outras vezes, a nar-
rativa ia sendo construída junto com a criança, quando, a partir do manhês e
do transitivar, enlaçamos Tobias em um circuito pulsional, sustentando suas
aquisições e propondo novas.
De acordo com Catão (2009), Crespin (2022) e Szejer (2016), o manhês
trata-se de uma forma particular de falar com os bebês, que acontece de
maneira espontânea em todas as culturas. O manhês consegue captar o bebê,
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 129

caracterizando-se pelos picos prosódicos, por uma fala melodiosa e simpli-


ficada e pela repetição das palavras e das expressões – por isso, é também
conhecido como “canto da sereia”. Essas modificações na voz geralmente
são acompanhadas por um diálogo tônico postural, com expressões faciais
exageradas, contato olho a olho, sorrisos, movimentos rítmicos do corpo e
ajustes posturais, tais como pegar a criança no colo e aproximá-la do rosto.
A mãe se mostrou bastante competente no que dizia respeito ao manhês,
que fisgava Tobias. Ambos foram se apresentando cada vez mais disponíveis
a esse diálogo tônico postural. Pôde-se observar, inicialmente, que a mãe
se mostrava bastante angustiada – angústia que se manifestava como uma
inquietação no corpo, movimentando-se de forma bastante particular, com
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uma certa rigidez.


Em dada ocasião, aos onze meses, quando o bebê já havia retomado as
aquisições esperadas para o desenvolvimento, a mãe contava sobre o que ela
tinha percebido nas últimas semanas: ele estava se mostrando mais ativo,
movimentando mais seu corpo e balbuciando “mama”, “papa”, “da”. Enquanto
ouvia a fala da mãe, a psicanalista observava também o bebê, que estava
atento ao que se passava. Em pouco tempo, ele começou a chamar atenção da
mãe, sorrindo e balbuciando, mas isso não foi o suficiente para convocá-la.
Então ele se virou em direção a ela e se arrastou. Esse movimento provocou
a vibração da profissional e da mãe, que respondeu imediatamente. Em um
atendimento posterior, com a presença do irmão, Tobias e ele brincavam de
“cuco-achou”, demonstrando prazer e cumplicidade nessa brincadeira. Nesse
período, Tobias convocava quem estava ao seu redor, mostrava-se apetente
simbolicamente, fazia-se ver, fazia-se ouvir e demonstrava sentir prazer na
relação com o outro – o que nos fazia pensar que ali estavam sendo retomadas
as condições de constituição psíquica para esse pequeno sujeito.
De acordo com Crespin (2022), a apetência simbólica é a relação com
a linguagem já inscrita no recém-nascido, que o torna apetente da relação
simbólica com o outro, independentemente da satisfação de suas necessidades
primordiais. Tal relação está presente desde o nascimento, no bebê saudável,
e constitui o caminho aberto, a “via régia” do estabelecimento do laço com
o outro da relação neonatal. Essa apetência do recém-nascido é chamada de
simbólica porque ela visa a uma pura troca relacional, uma pura satisfação na
troca recíproca, sem referência alguma à satisfação das necessidades, embora
tão presentes no início da vida.
Sobre os atendimentos com o pai, pode-se dizer que ele se mostrava
defensivo na transferência, mas se fazia disponível para Tobias, que ficava
bastante à vontade com a presença dele, convocando-o com o olhar e sendo
por ele acolhido. As crianças geralmente passavam o final de semana sob
os cuidados do pai. Pôde-se perceber que o casal ainda estava ligado
130

afetivamente. Em certa ocasião, ele pôde dizer que, embora tivesse algumas
divergências com a mãe, reconhecia que ela estava sendo uma boa mãe e
tinha muito amor pelas crianças. Entendeu-se que esse movimento foi muito
importante para o trabalho com Tobias.
Após o período de férias escolares, Tobias havia adquirido a marcha e
estava falando algumas palavrinhas.
Além das intervenções com os familiares, cabe considerar os possíveis
efeitos das intervenções com a educadora e o bebê, pois os significantes
familiares circulavam, também, no ambiente escolar. Nos encontros com a
educadora e com Tobias, eram lançadas estratégias para que ele pudesse se
movimentar. Às vezes, um brinquedo de seu interesse era colocado a uma

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pequena distância, sendo possível alcançá-lo se ele fizesse algum movimento
com o corpo. Outras vezes, a educadora fazia brincadeiras corporais, como
brincar de aviãozinho ou de balanço. Sabe-se da importância dessas brinca-
deiras, que ativam um circuito de prazer e de satisfação no contato com o
outro. A educadora também se mostrou muito competente no manhês, na fala
com entonação, emoção e melodia, que captava o pequeno sujeito e a qual
ele respondia com balbucios.
É imprescindível fazermos uma ressalva quanto à capacidade psíquica e
à disponibilidade da cuidadora – que se engajou no tratamento e que, de fato,
exercia com Tobias uma função muito importante, de cuidados, atributiva e
transitivista. Brandão e Kupfer (2014) nomeiam como “função maternante” tal
capacidade do educador de dar continuidade às funções maternas, garantindo o
seguimento do processo de constituição psíquica. Por outro lado, Ferrari e Rosa
(2021) questionam a ideia de colocar a função das educadoras como semblante
das funções maternas e paternas. As autoras perguntam se não estaria na hora
de iniciar um debate sobre os aspectos centrais e complementares do materno e
do paterno em Psicanálise. Nessa direção, Rodulfo (2012) problematiza o tema
do substituto em Freud, quando se refere às funções dos e das educadoras: os
professores e professoras como substituto do materno. Diz o autor que preci-
samos pensar essas funções não como substitutivas, mas como suplementares.
Feito este parêntese e sem poder aqui entrar mais afundo nesse debate
(porém acreditando contribuir com ele a partir de nossa experiência), apon-
tamos que, nos intervalos criados quando a fala circula, as questões levan-
tadas pela educadora eram acolhidas. Pode-se pensar que a intervenção
psicanalitica no ambiente escolar permitiu um deslocamento de significantes,
possibilitando que outras marcas fossem se inscrevendo nos cuidados com
essa criança. Levantou-se a hipótese de que os significantes mortíferos que
circulavam em todos os espaços – aborto, queda, negligência, maus tratos
– faziam marcas no corpo da criança. Aqui, vale destacar uma virada no
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 131

discurso: não se tratava mais de uma questão de negligência e maus tratos


que ocorria de fato, mas, sim, da violência do significante, de como essa
criança estava sendo tomada no discurso.

O transitivismo na intervenção psicanalítica

Nas cenas aqui desenvolvidas, o transitivismo se constituiu como uma


operação sustentadora das intervenções. A operação transitivista está presente
no diálogo que a psicanalista inicia com as crianças que, por questões de
imaturidade ou impossibilidade de dado momento (efeitos de uma situação
de violência, por exemplo), não conseguem utilizar a linguagem verbal para
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se expressar. Também está presente nas narrativas que vão sendo construídas,
no brincar e nas intervenções com os pais.
Cabe considerar que não falamos do transitivismo clássico, mas da pro-
posta de Bergès e Balbo (2002), os quais situam o transitivismo como uma
ação que passa de um sujeito a outro. Trata-se de um golpe de força que ante-
cipa e, a saber, impele o outro a sentir dor. Pelo golpe de força transitivista,
se a criança se machuca, a dor é sentida primeiro por quem supõe um saber
na criança. Nesse caminho, os autores salientam que o transitivismo é um
processo que passa necessariamente pelo corpo, uma vez que se trata de algo
experienciado que afeta o corpo de um outro modo. Lê-se o corpo como um
lugar de receptação, através do qual o mundo toma forma e consistência para
o bebê. Corpo que é também de linguagem, significantes e letras.
Bergès e Balbo (2002) destacam, ainda, que essa operação não se refere
a transitivar apenas a dor, mas uma ação – no sentido gramatical que possui
o verbo transitivo. Trata-se de transitivar a ação que passa de um sujeito a
seu objeto complementar. Nesse caso, a psicanalista opera essa forçagem e
a criança identifica o discurso. Essa forçagem na gramática deixa claro que
a criança não se identifica ao discurso, mas identifica o discurso – de modo
ativo, em um movimento de incorporação, que passa pelo corpo, constituin-
do-se em um enunciado simbólico. Na operação em que o sujeito se identifica
ao discurso do outro (como se esse discurso fosse um objeto qualquer ou
como se um objeto pudesse valer como discurso), observa-se uma operação
intransitiva, passiva, em que o sujeito não se incorpora de nada.
No contexto de intervenções com crianças que sofreram e foram testemu-
nhas de situações de violência, podemos pensar que o psicanalista opera uma
forçagem transitivista: refere-se a um discurso que encarna a dor, ao mesmo
tempo limitando a violência e inscrevendo um corpo. Com Elsa, a capacidade
de transitivar estava obliterada pelo sofrimento da mãe e pela violência do pai,
aqueles que ocupavam para a criança as funções parentais. Podemos pensar,
a partir disso, na formulação proposta por Bergès e Balbo (2002):
132

O pai maltrata a mãe. O filho, tomando por sua conta a dor que supõe ser
aquela da mãe violentada pelo pai, transitiva e repete essa dor: a cena pri-
mitiva é para ele uma erotização fantasmática secundária, que lhe permite
manter sempre inscrita, na e pela repetição, a lembrança ou o significante
do transitivismo originário que o causa. Pode-se compreender melhor a
violência e a emergência desse fato graças ao transitivismo dessa cena
diversamente atualizada (p. 25).

Nesse caso, a violência se produz a partir de um não dito, de uma ação sem
fala. Nessa identificação ao sofrimento do outro, a criança repete sem cessar a
cena da violência. Ficando fixada nessa cena, é um erotismo que não desliza.

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Se alguém sofre uma violência ou qualquer forma de abuso, e essa violência
não tem o reconhecimento e a nomeação que permitem o acesso ao simbólico,
produz-se um efeito de repetição: a cena violenta se repete incessantemente.
Pode-se dizer que, nas intervenções com Elsa, há o reconhecimento e a
nomeação tanto da violência sofrida pela mãe e testemunhada pela criança
quanto da violência sofrida pela própria criança. No brincar e na fala da psi-
canalista – quando, por exemplo, entrega a boneca para Elsa –, ocorre uma
nomeação da dor e da dúvida sobre a possibilidade de proteção. A partir de
uma forçagem transitivista, de uma fala endereçada, que levanta hipóteses
de saber na criança, Elsa pode sair do colo/corpo da mãe para falar, brincar
e construir narrativas.
No caso de Tobias, pode-se pensar que a operação transitivista permitiu
a passagem de bastão da psicanalista para a mãe e a educadora, e, finalmente,
destas para o bebê. Em uma das cenas, quando a psicanalista vibra com o
movimento de Tobias, sendo surpreendida por ele, a manifestação de surpresa
(ou poderia ser de espanto), passa de um sujeito a outro: da psicanalista para
a mãe, da psicanalista para o bebê e da mãe para o bebê. É possível que pala-
vras de surpresa – “Oh, que lindo!”, “Olha, você está se movimentando...”
– tenham acompanhado a ação. Trata-se de um momento da autenticação no
simbólico. Se uma criança conquista algo, diz ou faz algo surpreendente, e
ninguém se afeta, isso pode não se inscrever. Levantamos a hipótese, então,
de que a operação transitivista, no caso de Tobias, é o que força o desloca-
mento: a torção na cadeia significante e, assim, a saída da imobilidade para
a mobilidade do corpo.

Brincar, elaborar, deslocar…

De acordo com Rodulfo (1990), a criança não brinca por brincar; não
brinca somente para preencher o tempo, para se divertir; também não se trata
apenas de uma descarga fantasmática, uma atividade regulada pelas defesas ou
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 133

uma formação do inconsciente. O ato de brincar tem uma função estruturante


no psiquismo da criança. Colocar o corpo em cena, na brincadeira, se refere à
constituição libidinal do próprio corpo, da corporalidade de seres desejantes,
base de apoio para a constituição psíquica. Em outras palavras: brincando,
as crianças se constituem sujeito. Não há nenhuma atividade significativa
no desenvolvimento da simbolização da criança que não passe pelo brincar.
Ao observarmos as brincadeiras de Elsa percebemos que ela produz e
simboliza a realidade, tratando-se de uma tentativa de desvendar os enigmas
que o mundo vai lhe apresentando. Quando constrói uma ficção, a criança cria
o mistério que ela mesma vai desvendando. Elsa, quando brincava com seus
medos, podia falar deles e experimentar a angústia. O faz-de-conta torna-se
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uma ficção que a defende da violência que ela teria sofrido.


Ao brincar, inventar histórias e cantar, podemos considerar que Elsa fala
de sua própria história. A canção infantil que ela entoa lhe serve de superfície
de inscrição (Rodulfo, 2004) para falar de si e de seu sofrimento. A letra da
música constitui-se como uma narrativa de sua história. Rocha e Rodrigues
(2022), a partir de seu encontro com Rodulfo, dizem que, ao oferecer uma
superfície de inscrição às crianças, as histórias permitem um modo de escutar
a dor, tornando-se um instrumento que sustenta o convite para contar de si. Ao
narrar, os pequenos podem elaborar seus conflitos. Narrando, em um contexto
de violências reais e simbólicas, abre-se uma nova margem, de modo que as
histórias podem ser compreendidas como um trabalho clínico e de caráter
político. Dessa forma, a literatura infantil funciona como um alicerce, per-
mitindo escutar o desamparo discursivo que a violência produz. Adentrando
na discussão das histórias como uma superfície-narrativa, ampliam-se os
horizontes e os caminhos, reais e simbólicos.
Fazendo uso do brincar, das canções e da construção de narrativas, Elsa
encontrou possibilidades de elaboração psíquica das violências sofridas pas-
sivamente: o afastamento da mãe pelo pai e pela família paterna. Em uma
tentativa de proteger-se, ela não queria sair do quarto, assim como não queria
sair do colo da mãe durante os primeiros atendimentos. Como Elsa tão bem
metaforizou: Uma florzinha, pequenininha, quando é arrancada da planta,
chora e murcha, quando se quer e não se espera. Por isso, “Não adianta tirar
da planta, pois a beleza da natureza só é sentida quando tem vida”. Não basta
arrancar a criança do corpo materno quando ela ainda não tem condições de
se sustentar psiquicamente sem a presença da mãe.
No trabalho pulsional de construção de corpo pelo significante, con-
forme Rodulfo (1990) propõe, nos questionamos onde vivia o bebê Tobias.
A rigidez de sua posição corporal nos faz levantar uma hipótese: ficava onde
o colocavam. Essa imobilidade, bem como o sintoma compartilhado com a
134

mãe (que também sofria de constipação), nos fez pensar que ele ainda vivia no
corpo materno, em uma indiferenciação deste corpo marcado pela violência.
Durante muitos anos, em Psicanálise, convencionou-se que, aos 18 meses,
se inaugurava a função do brincar – tomando a referência do Fort-da, o jogo
de aparecimento e desaparecimento, como sendo a primeira manifestação da
atividade lúdica. Trata-se da encenação de uma brincadeira e da construção
de narrativas, tal como acontece nas intervenções com Elsa. Atualmente, no
entanto, sabemos que os jogos de presença e ausência são perceptíveis desde
o nascimento do bebê, podendo ser observados, por exemplo, nos ritmos de
sono e vigília; no intervalo entre as mamadas; na fala de quem faz a função
materna com o bebê (já que o som da voz aparece e desaparece). Trata-se

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aqui do brincar e não do brinquedo, visto que, no início, o bebê brinca com
partes de seu corpo e com o corpo do outro, sendo o seio considerado um dos
primeiros brinquedos (Rodulfo, 1990).
O brincar, no primeiro ano de vida, refere-se ao processo de constitui-
ção do sujeito em andamento, com seus elementos mais primordiais e mais
arcaicos, demonstrado principalmente em dois jogos: o extrair-esburacar e a
reversibilidade entre continente e conteúdo. Tão logo nasce, o bebê dedica-se
abundantemente a colocar seus dedos em qualquer orifício: seja a orelha e a
boca, seja o nariz e os olhos daquele que faz os cuidados corporais. O primeiro
extrair-esburacar produz a construção de superfície, do envoltório, de continui-
dade. As primeiras funções do brincar consistem nesse processo de extração
de materiais para fabricação do corpo enquanto superfície; ainda sem a noção
de volume, de dentro e fora, trata-se da lambuzeira do bebê. É com os olhos
e com a boca, órgãos de incorporação, antes que com as mãos, que se dá essa
extração. Nessa etapa, não há distinção entre interior e exterior, corpo e não
corpo, eu e outro. Rodulfo (1990) ressalta que a primeira coisa que se constrói
ao brincar é uma película em fita contínua, uma superfície sem buracos.
No segundo momento de estruturação do corpo, o bebê passa a construir
a relação continente/conteúdo. Rodulfo (1990) nos adverte para não tomarmos
equivocadamente esse segundo momento como uma separação entre o dentro
e o fora, o pequeno e o grande, o corpo do Outro materno e o corpo do bebê.
Trata-se antes de um esquema chamado de inclusões recíprocas, que pode retor-
nar em fantasias de devoração quando, por exemplo, nas brincadeiras infantis,
não é sempre o grande que devora o pequeno, mas também o contrário. Essa
reversibilidade das relações entre continente e conteúdo, tanto espacial quanto
temporal, permite o desenrolar de fantasias – cujas operações encontram-se na
base daquilo que denominamos onipotência no imaginário infantil.
No processo de aquisição da fala e da marcha, Tobias passou do primeiro
tempo aqui descrito, extraindo, esburacando e constituindo superfície, em uma
tentativa de diferenciação do corpo materno marcado pela violência, para o
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 135

segundo tempo, delimitado pelas brincadeiras de devoração e pelo brincar


funcional (como fazer comidinhas e alimentar as bonecas). Também se pode
pensar que os significantes do Outro – do mito familiar e dos que circulavam
no contexto escolar –, que faziam corpo e causavam sofrimento (os chamados
significantes do superego), sofreram uma certa torção, um descolamento.
Possibilitou-se, assim, que esse bebê fosse tomado em um outro discurso, em
um circuito de filiação e de desejo.

Considerações finais

Rodulfo (1990) refere que a chegada das crianças na Psicanálise não foi
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sem efeito: bagunçou o setting psicanalítico e, por consequência, os seus desen-


volvimentos teóricos. Atualmente, podemos dizer que as crianças pequenas têm
bagunçado o que diz respeito às políticas públicas, forçando os profissionais a
outras leituras, que considerem a constituição psíquica e os sinais de sofrimento
apresentados por bebês e crianças pequenas. No que concerne às situações de
violência, sabemos que se trata de um problema complexo e multifatorial, que
contempla questões sociais, econômicas, culturais e políticas. A complexidade
dessa problemática exige a articulação de medidas nas áreas da segurança,
da educação, da assistência, da saúde, entre outras, com a manutenção de um
diálogo permanente entre as políticas públicas e o poder judiciário.
Propomo-nos aqui a tomar o problema a partir de um fio: um pequeno fio
que, entrelaçando-se com outros, permite tecer uma rede de proteção a esses
pequenos sujeitos. Trata-se do fio do atendimento ou, mais especificamente,
da clínica psicanalítica com crianças que sofreram situações de violência.
Nossa proposta se sustenta nos pressupostos de que a criança pequena sofre,
comunica e é sensível aos significantes que encontra nos espaços de tratamento
e/ou proteção por onde ela circula.
A clínica com crianças pequenas afetadas por situações de violência tam-
bém interroga a Psicanálise, na medida em que nos deparamos com os efeitos
da exposição à violência – que, não raro, aparecem também na clínica com
adolescentes e adultos. São histórias de vida marcadas por violências que se
repetem e se atualizam incessantemente. A partir dos fios do transitivismo e do
brincar, noções nada novas em Psicanálise, propomos um outro enodamento,
na esperança de contribuir para que, no que concerne às situações de violência
que assolam nosso país, outros deslocamentos sejam possíveis.
136

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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
ressonâncias traumáticas e seus
efeitos no desempenho escolar
Paloma Rodrigues Martins54
Luciana Gageiro Coutinho 55

Introdução
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A violência doméstica é um grave problema que tem sido enfrentado por


diversas sociedades ao longo da história. Mesmo sendo uma prática que ocorre
no âmbito familiar, traz atravessamentos que repercutem bem além dessa
esfera, nas saúde individual e coletiva. Essa situação se agravou ainda mais,
no mundo todo, diante do confinamento adotado como medida de combate a
covid-19, que acarretou aumento dos números de casos de agressão familiar
(Vilela, 2020). Nesse sentido, para estudar esse tema e suas consequências
faz-se necessário analisar suas raízes e mecanismos.
Através de encaminhamentos dos conselhos tutelares, das escolas ou
de pessoas que pertencem ao ciclo social familiar chegam aos ambulató-
rios públicos de saúde, crianças, adolescentes, familiares e/ou responsáveis
com histórico de violência intrafamiliar. Nota-se, que as solicitações por
atendimentos, na maioria dos casos, são devidas à agressividade e à difi-
culdade de relação com os pares, professores e a comunidade escolar. Além
disso, verifica-se frequentemente um impasse no que se refere ao processo
de aquisição de conhecimento de acordo com o recomendado para faixa
etaria do educando.
Neste estudo, iremos investigar, a relação das vivências traumáticas que
crianças e adolescentes presenciam ou presenciaram em seu ambiente familiar,
como algo excessivo para o aparelho psíquico, e que pode levar a efeitos sin-
tomáticos sobre a aprendizagem no contexto educacional. Este tema, apesar
de ser de extrema importância, ainda conta com pouca produção acadêmica.
Frente a este cenário,a elaboração de estudos capazes de pensar quais seriam
as ferramentas necessárias a fim de amenizar e tratar as gravidades e as com-
plexidades da violência contra crianças e adolescentes são um grande desafio
para a pesquisa, a clínica e a educação no mundo contemporâneo.

54 Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.


55 Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia pela PUC- Rio, Professora Associada da Faculdade de
Educação e do PPG em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
140

A violência no campo social e na psicanálise

Violência é um vocábulo que, de acordo com o dicionário, indica ato de


violentar; qualidade de violento; ato violento (Ferreira, 2010). A violência em
si pode se dar de múltiplas formas; dirigida mais diretamente a um ou mais
indivíduos, mas repercute em toda a sociedade. Gomes, Diniz, Araujo e Coelho
(2007) situam as violências como fenômeno oriundo de uma herança comum,
arraigado na história de todas as classes sociais. Como descreve Fagundes
(2002), as histórias, os mitos, os ensinamentos nos falam como aspectos
agressivos, destrutivos e diabólicos são intrínsecos ao ser humano, mas é sua
desmedida que pode levar à violência. Sendo assim, é possível entender, com

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Patou-Mathis (2020), que a violência não está atrelada ao DNA humano, como
algo intrínseco à espécie, mas advém de causas e conceitos históricos e sociais.
Portanto, a violência é um espólio que advém dos processos civilizatórios, se
tornando um elemento compositor da organização das sociedades e que dela
participa de diversas maneiras.
Na perspectiva da lei, nem todo acontecimento violento é criminal e
nem toda ação criminal é violenta. Como observam Ribeiro e Leite (2018), a
violência é um produto que emerge do ímpeto de cada ser humano, tornando
necessária a atuação dos representantes do poder legislativo na regulamen-
tação das responsabilidades impostas ao ator do ato violento e na canaliza-
ção da atenção à vítima. Nessa perspectiva, o art. 5º da lei Maria da Penha
(Brasil, 2006) considera que a violência no âmbito doméstico é percebida
como aquela que acontece no “espaço de convívio permanente de pessoas,
com ou sem vínculo familiar, incluindo as esporadicamente agregadas”,
tomando o âmbito familiar como “a comunidade formada por indivíduos que
são ou se considerem aparentados, unidos por laços naturais, por afinidades
ou por vontade expressa”.
De acordo com os canais da Ouvidoria de Direitos Humanos, no período
entre os anos de 2020 e 2021, 81% dos casos de denúncia de violência con-
tra crianças e adolescentes aconteceram dentro dos domicílios. Os registros
assinalam que mais de 93% das denúncias são contra a integridade física ou
psíquica, além disso, são recebidas também notificações sobre a restrição de
direitos básicos das crianças e adolescentes, como: a liberdade; direitos sociais
e direitos individuais. (Brasil, 2022). É importante salientar e identificar tam-
bém os dados de violência que competem a toda conjuntura familiar, já que
mesmo nos casos de violência que envolvem somente os adultos, verifica-se
ressonâncias do conflito nas crianças e nos adolescentes que compõem a trama
familiar. Como verificam Barros e Freitas (2015), a exposição à violência
doméstica pode desencadear diversos aspectos negativos para o desenvolvi-
mento físico, emocional, cognitivo e social das crianças e adolescentes.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 141

Sendo assim, para essa pesquisa, entender a prevalência dos casos de


violência doméstica é fundamental para pensar sobre as reverberações que
podem acontecer na vida das crianças e dos adolescentes. O Fórum Brasileiro
de Segurança Pública – FBSP –, diante dessa conjuntura, procurou investigar
e entender os casos de violência doméstica no Brasil e como a pandemia da
covid-19 incidiu sobre esses casos. Sendo assim, três notas técnicas foram
realizadas com o objetivo de unificar de forma quantitativa os dados oficiais
que permeiam o país sobre essas demandas. Entre os meses de abril a junho
de 2020, as notas técnicas, descreveram uma diminuição dos registros poli-
ciais de lesão corporal dolosa, porém a forma de violência letal apresentou
um crescimento relevante, neste período.
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Bueno et al. (2022) destacam a queda expressiva no que diz respeito


aos crimes de caráter letal contra as mulheres, porém a violência dirigida
às mesmas não sofre uma diminuição. Percebe-se, no contexto de violência
doméstica, que as denúncias nos casos de lesão corporal dolorosa, chamadas
de emergências solicitando intervenção da polícia militar e os casos de noti-
ficação de ameaças sofreram um aumento significativo durante a pandemia.
Entre 2020 e 2021, vimos um acréscimo significativo de 23 mil novas cha-
madas de emergência para o número 190 das polícias militares solicitando
atendimento para casos de violência doméstica, com variação de 4% de um
ano para o outro (Bueno, 2022).
Segundo a pesquisa: Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no
Brasil, realizada em de 2021, depois de 1 (um) ano do começo da pandemia
no Brasil, as diversas formas de violência no Brasil aumentaram, sendo per-
meadas por altos níveis de desemprego, pela diminuição na renda média e,
consequentemente, pelo retorno da população brasileira à faixa da extrema
pobreza. Outro fator mencionado é o fato de as crianças não estarem frequen-
tando as escolas, aumentando os riscos de sofrerem violência doméstica, a
carga doméstica de trabalho e o estresse no ambiente familiar.
Dito isso, como pensar sobre a presença da violência nas relações huma-
nas e familiares a partir da psicanálise?
Em 1932, Sigmund Freud escreve uma carta a Einstein sobre o que seria
possível fazer para livrar os homens da guerra. Ele descreve que os conflitos
de interesse muitas vezes se resolvem pelo emprego da violência, assim como
é no reino animal de modo geral, de modo que não há chances do ser humano
se excluir de tal reino. Freud (1932d / 2010) intui que é fácil direcionar os
homens para a guerra, e justifica isso através da concepção da pulsão de morte
que muitas vezes se expressa como ódio e destruição. Assim, apresenta uma
nova teoria pulsional (Freud, 1920b/2010), em que propõe uma nova duali-
dade pulsional, que se apresenta na tensão entre a pulsão de vida e a pulsão de
morte. Enquanto a primeira atuaria no sentido de conservar e unir, exatamente
142

no sentido de Eros, no Banquete de Platão; a segunda tenderia a destruir e


matar, apresentando-se de forma repetitiva e desvinculada da representação.
Podemos pensar numa transfiguração teórica da oposição entre amor e ódio,
mas é importante não se colocar na lógica bem ou mal, porque, segundo ele,
ambas são indispensáveis já que é “na atuação conjunta ou contrária de ambas
que surgem os fenômenos da vida” (Freud, 1932d/2010, p. 244).
Nesse sentido, Freud observa que não há como eliminar a pulsão de
morte, mas sim neutralizá-la em seus efeitos destrutivos através das ligações
com Eros. Voltando a Freud em sua carta a Einstein, ele escreve que considera
uma ilusão pessoas viverem felizes e em paz. Como recurso a não uso da
guerra “[...] não se trata de eliminar completamente as tendências agressivas

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humanas; pode tentar desviá-las a ponto de não terem em que se manifestar na
guerra” (Freud, 1920b/ 2010, p.246). A partir da psicanálise, podemos pensar
então a violência como uma manifestação extrema da agressão humana. “[...]
a agressão é uma ação que provoca dor, humilhação ou dano ao outro ou a si
mesmo” (Fagundes, 2004, p. 29), e que pode ser experimentada por alguns
sujeitos como um disparador potencialmente traumático (Hofius, 2013).
Neste ponto, é possível salientar a relação que as experiências violentas
possuem com o traumático, definido na obra freudiana como “uma ruptura
numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acon-
tecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio
em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em
movimento todas as medidas defensivas possíveis” (Freud, 1920b /1977,
p. 20). Já no escrito Esboços para uma comunicação preliminar de 1893
(1940-1941e/1990), Sigmund Freud e Breuer explicam que, devido à grande
intensidade dispensada de emoções que não conseguiram ser expressas por
condições adversas, poderá haver como conseqüência uma dissociação entre
a memória e o afeto, que fica atravancado no psiquismo. Por estar, segundo
Freud, “estrangulado” no psiquismo, torna-se algo desprazerozo e impróprio
para a homeostase do aparelho psíquico. Assim, como ressalta Hofius “O
trauma psíquico designava até então a ocasião em que uma ideia se tornou
patológica ou, em outras palavras, uma ocasião em que ocorreu uma cisão
psíquica durante a assimilação da experiência” (HOFIUS, 2013, p.c53) e
“apenas quando a memória do trauma volta a integrar-se às demais, a disso-
ciação é desfeita e a lembrança do trauma torna- se consciente a ponto de as
emoções serem manifestadas corretamente” (Hofius, 2013, p. 52).
Ainda que superada essa primeira teoria freudiana do trauma, podemos
notar que as questões referentes à memória ainda hoje se apresentam na clínica
do traumático. A partir da mudança teórica caracterizada pela segunda tópica,
o trauma aparece em referência ao excesso pulsional não ligado, intensidades
que surpreendem um psiquismo despreparado, ou seja, desinvestido, não se
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 143

constituindo como lembranças de fato. O trauma demanda, assim como a


pulsão, um trabalho de captura do pulsional, um trabalho de ligação, daí sua
relação com as repetições e com a cisão, pela impossibilidade de registro de
uma experiência (Freud, 1920b /1977). Sobre a cisão psíquica, Mello e Herzog
(2012 citam Figueiredo, 2003), que correlaciona este conceito como cortes
que ocorrem na dimensão psíquica, tanto no sentido horizontal quanto vertical.
O âmbito horizontal refere-se a partes da história do sujeito que foram elimi-
nadas da consciência, o que podem influenciar a percepção das questões da
realidade objetiva ou subjetiva por meio de barreiras verticais. Assim, o corte
horizontal se dá pelo recalque, isto é, há representações que são desligadas
dos afetos e ficam fora da consciência. Já as verticalizações, interrompem as
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conexões psíquicas sob a forma de clivagem (Mello & Herzog, 2012). Nessas
condições, inviabiliza-se a integração entre as experiências psíquicas, criando
áreas separadas, paralelas e incomunicáveis. (Mello & Herzog, 2012)
Na situação traumática advinda da violência, ocorre que o aparelho psí-
quico não está preparado para ela (Fagundes, 2004) de forma que, dada a
impossibilidade de elaboração, o trauma pode permanecer ativo, porém cli-
vado, sob uma forma de dor que pode resultar em somatização de excitações
e/ou outras formas de repetição sintomáticas. Como produto da experiência
traumática vivenciada, o que se nota é uma precariedade das possibilidades de
elaboração psíquica do sujeito violentado. Consequências como: dificuldades
de elaboração, de representação e de simbolização são notadas na clínica.
Assim, “o sujeito torna-se inabilitado psiquicamente, destituído da sua sub-
jetividade, seu desejo e sua singularidade” (Fagundes, 2004, p. 29).
Desta forma, ainda que o trauma possa fazer com que componentes
ausentes voltem à cena, sob a forma de repetições, Cidade e Zornig (2016),
explicam que ele não comporta sentido em si, e seu destino vai depender de
uma série de fatores complementares que dizem respeito tanto às possibilida-
des subjetivas daquele que foi impactado pelo traumático quanto à potência
do trauma a partir do encontro com o outro.

O efeito do traumático em dois tempos no psiquismo

Quando a criança vive em um ambiente violento, muitas vezes marcado


por uma família com dificuldades para colocar os conflitos em palavras e
oferecer referências simbólicas, é provável que a situação violenta possa ter
um efeito traumático. Diante dessa conjuntura, é importante pensar sobre o
que está em jogo quando uma situação violenta torna-se traumática e pode
se manifestar como um entrave no desempenho escolar de uma criança ou
adolescente. Para isso, iremos retornar o conceito de trauma, a partir do arca-
bouço teórico de Sándor Ferenczi.
144

O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, publicou em 1934, o texto deno-


minado como as Reflexões sobre o trauma, no qual descreve o evento traumá-
tico semelhante a um choque, que traz como consequência uma “equivalente
aniquilação de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa
de si mesmo” (Ferenczi, 1934c/1922, p. 109). Ferenczi (1934/1922) elucida
que para o sujeito o trauma é sentido como um choque e, desse evento, decorre
uma comoção psíquica. A comoção psíquica é definida pelo autor como algo
que advém de um desmoronamento do psiquismo, ou seja, a perda de sua
forma própria. O autor ainda conceitua a comoção psíquica como algo que
surge sem uma preparação, que vem precedida pelo sentimento de estar seguro
de si, porém diante dos eventos o sujeito sentiu-se decepcionado.

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Ao vivenciar um choque, Ferenczi descreve que a sensação de segurança
em si mesmo se extingue ou diminui consideravelmente. Outro ponto impor-
tante na concepção do autor é o efeito surpresa atrelado ao evento traumático,
que tem como consequência a irrupção da angústia, definida como “[...] um
sentimento de incapacidade para adaptar-se à situação de desprazer” (Ferenczi,
1934c/1922, p. 110). Diante da ação psíquica do trauma, a forma que os adul-
tos irão reagir em relação à criança traumatizada fará parte da maneira que a
ação irá se incorporar ao psiquismo.

Eles dão, em geral, e num elevado grau prova de incompreensão aparente.


A criança é punida, o que, entre outras coisas age também sobre a criança
pela enorme injustiça que a representa. [...] Ou então os adultos reagem
com uma violência de morte que torna a criança tão ignorante quanto se
lhe pede que seja (Ferenczi, 1934c/1922, p. 111).

No trecho acima Ferenczi já anuncia uma de suas teses mais importantes


sobre o traumático. Implicando os adultos no modo pelo qual o trauma será
vivido pela criança, ele explica que a atitude de ignorância e/ou de não denún-
cia pela criança da violência sofrida deve-se à cena violenta mesma qual ela se
encontra submetida. Sobre isso, Ferenczi (1933b/1992), se refere também às
situações de abuso sexual que ocorrem entre um adulto e uma criança. Em suas
palavras, enquanto o primeiro utiliza a linguagem da paixão, a segunda está
inserida na linguagem da ternura. Diante da violência despendida do adulto
para a criança, que não possui recursos psíquicos para entender a linguagem
do adulto, Ferenczi aponta uma confusão de línguas, na qual a criança reagirá
com medo intenso do adulto.

Contudo, entendemos que a noção de “confusão de línguas” ultrapassa seu


sentido literal de ser um choque entre o erotismo violento e passional do
adulto e o erotismo terno e lúdico da criança. É uma confusão, do ponto
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 145

de vista da criança, entre o que ela espera e precisa do adulto e a surpresa


pelo imprevisto. A criança não pode mais ter segurança e confiança no
adulto, porque este não respeita suas necessidades infantis de ternura
(Lejagarra, 2008, p. 119-120).

Como observa Lejarraga (2008), no trecho acima, não é apenas a vio-


lência praticada pelo adulto que provocará um efeito traumático. A autora
retorna ao conceito ferencziano do desmentido e esclarece que se trata da
inviabilidade da criança elaborar o acontecido. Assim, quando, na tentativa
de compreender o que houve, a criança procura outro adulto e a resposta é o
silêncio, a negação do abuso ou a desautorização das impressões infantis, ela
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não pode, com seus precários recursos psíquicos, construir uma significação
para a experiência vivida.
Dando continuidade ao legado ferencziano que atribui ao ambiente um
lugar fundamental na constituição do psiquismo infantil, Winnicott (1983b)
enfatiza que, nos estágios iniciais do seu desenvolvimento, a criança depende
integralmente da relação com o outro. O psicanalista inglês descreve em
sua teoria que, ao nascer, o ser humano possui uma tendência inata para
o desenvolvimento e necessita de um ambiente facilitador para crescer de
maneira saudável. Se esse ambiente falha na sua adaptação, o bebê reage de
forma intrusiva, podendo perder sua espontaneidade e continuidade do ser.
O trauma, para Winnicott, se constitui em uma ´ruptura na continuidade da
vida, de modo que defesas primitivas agora se organizaram contra a repetição
da “ansiedade impensável’ ou contra o retorno do agudo estado confusional
próprio da desintegração da estrutura nascente do ego” (1971a/1975).
Portanto, o trauma não diz respeito apenas ao episódio, mas sim à impos-
sibilidade de contar com recursos psíquicos para atribuir sentido ou signifi-
cado à experiência vivida, de modo que o cuidado oferecido pelo adulto tem
o significado mais profundo de possibilitar ao sujeito sentido a sua vida, isto
é, estabelecer ligações, dar formas e sequência aos acontecimentos vividos.
Nesse sentido, a noção do trauma está ligada a um certo “embaralhar do
tempo” presente neste conceito, de forma que não só o traumático passa a
ser possível de se instaurarem um momento tardio, mas também a própria
elaboração do evento traumático (Cidade & Zornig, 2016). Assim, o excesso
vivido, devido à não integração das memórias a ele vinculadas, permanece
apartado do psiquismo e impossibilitado de simbolização, até que seja possível
sua ressignificação. Hofius (2013) descreve dois tempos do trauma, que têm
como intervalo o período de latência, mostrando que a constituição do trauma
atinge toda trama psíquica e ocorre no momento‘a posteriori`. A autora explica
que esse processo a partir do paradigma da sedução, que ajuda a pensar nos
casos de violências sexuais sofridas na infância:
146

No primeiro, que ocorre na infância, o sujeito sofre uma tentativa de


sedução por parte de um adulto. No segundo tempo, que por sua vez
usualmente acontece na puberdade, algum evento evoca a primeira cena,
que agora pode ser compreendida em seu caráter disruptivo e só então
surge o sintoma histérico. Nesse caso, a sedução infantil não teria efeitos
imediatos, mas ‘só depois’, com a puberdade, quando vinculada à obri-
gatoriedade de uma experiência atual que fizesse a libido (energia sexual
que impulsiona a vida) eclodir. (Hofius, 2013, p. 53-54)

No “só-depois”, é sabido que as diversas formas de violência doméstica


podem comprometer vários aspectos da vida das crianças e adolescentes.

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Existe ainda uma predisposição em minimizar seus efeitos quando estes não
são de ordem física – como na maioria dos casos, pois os impactos sofridos
desapareçam no decorrer do desenvolvimento infantil. Isso pode ocorrer no
âmbito educacional: a dificuldade de aprender pode não ser compreendida
como uma conseqüência do trauma vivenciado. Assim, pode se perpetuar um
ciclo de não ditos onde “o pior é realmente a negação, a afirmação de que não
aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado
e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou
dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico”
(Ferenczi, 1931a/1992, p. 79).
Por outro lado, mesmo diante da conjuntura familiar em que uma criança
é violada e/ou agredida, o trauma pode vir a ser, em um momento posterior,
elaborado. Devemos dar à devida atenção a forma que o adulto irá ouvir
e agir diante de um pedido de ajuda da criança, pois o reconhecimento do
sofrimento que ele irá atribuir será fundamental para que a garantia de uma
integração psíquica. Quando há viabilidade de recorrer aos processos de sim-
bolização, pela palavra, é possível a simbolização do traumático. Assim tam-
bém, o ambiente escolar pode favorecer a possibilidade do desenvolvimento
das relações cognitivas e afetivas com seus pares e com os adultos. Nessa
acepção, o educar tem como objetivo construir o princípio realidade, isto é,
“é permitir ao indivíduo, submetido ao princípio do prazer, a passagem de
pura satisfação das pulsões para um universo simbólico, que faz referência a
uma lei, a lei da castração” (Pedroza, 2010, p. 82)
É notável que algumas crianças demonstrem resistência ao ato de apren-
der, mesmo recebendo suporte de diversas áreas, como a médica e a educa-
cional. Nesses casos, os problemas de escolarização tornam-se inevitáveis.
Quando os diversos campos do saber se deparam com seus limites, a psica-
nálise pode ser convidada. Porém, a psicanálise não trabalha com a ideia de
um indivíduo, mas a consideração de um sujeito subordinado ao inconsciente,
de modo que, assim, o “desejo de saber” se inscreve no desejo mais amplo
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 147

de conhecimento do mundo, que tornaria possível o aprendizado da criança


(Souza, 2018). A partir disso, a psicanálise aponta como uma das hipóteses
para o ato de não aprender a fundação de um trauma de base, que impossibilita
o pensamento associativo necessário a arrefecer o excesso pulsional permi-
tindo satisfações substitutivas e interpolações entre necessidade e desejo, que
permitam o adiamento que supõe o trabalho mental.

Violência doméstica: efeitos no desempenho escolar

Considerando-se a família como o primeiro grupo social com o qual


sujeito irá se relacionar e como um microssistema em que cada membro
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tem sua função definida (Gomes et al., 2007), a violência doméstica deve
ser situada no contexto da formação estrutural e funcional da família. Nesse
sentido, a violência doméstica frequentemente se torna um comportamento
difuso e natural dos atores ali envolvidos. Sabemos também que as situações
de abuso e violência doméstica muitas vezes vêm acompanhadas de um não
dito sobre elas que impera no ambiente familiar e tem efeitos sobre todos os
envolvidos. A violência, nesse sentido, muitas vezes surge na trama familiar
como algo imperceptível, dificultando, assim, a formulação de instrumentos
específicos para identificá-la e tratá-la (Ribeiro & Leite, 2018)
Por isso, as crianças em situação de violência doméstica podem sofrer
múltiplas e severas consequências. Problemas no desenvolvimento emocional,
comportamental, social, sexual, cognitivo são encontrados na revisão de litera-
tura realizada pelos autores. Também é observado que pode ocorrer um impacto
significativo no desenvolvimento acadêmico desse grupo (Barros & Freitas,
2015). De acordo com José e Coelho (2006), é ao fator emocional que o ato de
aprender é subordinado. Ou seja, a forma que a criança é amparada pelo meio
interfere de maneira concisa no seu processo de aprendizagem. Diante disso,
não devemos separar a inteligência do “funcionamento intelectual, cognitivo e
consciente das emoções, dos conflitos inconscientes e das influências dos meios”
(Souza, 2018, p. 30). As crianças podem experimentar a angústia que surge da
falta de capacidade dos seus responsáveis em se relacionar com ela e em nomear
sentimentos e conflitos. Além disso, situações vivenciadas no ambiente como
separação dos pais, luto, drogas e doença de algum membro, podem se ligar a
angústias associadas à aprendizagem escolar. (Souza, 2018, p. 30).
Vale a pena retomar aqui também a tese de Mannoni (1999) a respeito
das manifestações sintomáticas das crianças, incluindo as dificuldades esco-
lares, sempre atreladas aos laços com aqueles que ocupam um lugar de
referência para elas, e que tem uma implicação fundamental nos destinos
do traumático para elas.
148

O fator traumatizante, tal como é possível vislumbrar em uma neurose,


não é nunca um acontecimento real por si só, senão o que dele tem dito ou
calado aqueles que estão ao seu redor. São as palavras, ou sua ausência,
associadas com a cena penosa, as que dão ao sujeito os elementos que
impressionarão sua imaginação (Mannoni, 1999, p. 37).

A concepção de Mannoni, reafirma, como já foi dito, que é nesse campo


relacional atravessado pela linguagem que a violência pode ser vivida como
uma experiência traumática, de modo que o trauma pode ser definido como
um efeito de um ou de vários acontecimentos que se inscrevem na organiza-
ção psíquica dos sujeitos. Para isso, deve-se considerar a história pregressa,

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e a interpretação do sujeito e daqueles que o cercam sobre o que aconteceu.
Quando o sujeito passa pela experiência de violência, o que pode ocorrer é
uma desestruturação profunda do sentido de realidade e uma impossibilidade
de reorganização interna. Este funcionamento ocorre porque o trauma leva ao
sujeito impressões que são percebidas como conteúdo impossível de serem
compreendidos por um eu que se encontra impossibilitado de dar um destino
a ele devido à carência de contribuição significativa.
Sobre o não aprender articulado ao traumático podemos também recorrer
à noção de debilidade descrita por Cordié (1996), quando se refere a uma
limitação das faculdades intelectuais e de uma dificuldade de aprender que, no
entanto, não pode ser pensada fora de uma dimensão relacional. Nas palavras
da autora: "é o que faz a criança desde o primeiro dia de vida: ela estabelece
laços entre as coisas, religa as informações que lhe chegam de todas as partes,
seja através da percepção, da sensação ou da palavra" (Cordié, 1996, p. 128).
Sendo assim, desde o início da vida inúmeros são os estímulos linguísticos
endereçados à criança e que a permitem sair e dominar o caos primitivo. A
criança em seus primeiros estágios de vida percebe o que é comum nas diver-
sas estruturas da linguagem. A autora descreve que

no sujeito humano [...] para manter uma coerência no discurso em um


querer dizer permanente, o sujeito opera, a cada instante, uma seleção entre
os significantes que se apresentam. Entretanto, aquilo que é eliminado, não
retido, aparentemente esquecido, não desaparece totalmente. Esses restos
vão constituir uma reserva, um estoque sempre vivo, pronto a interferir,
sem o conhecimento do sujeito em todas as operações do pensamento
(Cordié, 1996, p. 129).

A partir disso, ela nos lembra que “a linguagem não é somente fala, ela
é constituinte da estrutura mesma do sujeito”, e é dela que decorre a possibi-
lidade do pensar e do aprender. Nesse sentido, a aprendizagem, se dá numa
relação estrutural ao Outro que possui o saber. Todavia, percebe-se na análise
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 149

de crianças um número significativo de queixas relacionadas a uma dificuldade


de aprendizagem, que introduzem outras vicissitudes na relação do sujeito ao
saber, nos conduzindo para um desdobramento da problemática desse estatuto
do saber no Outro, no acesso ao ato de aprender (Corrêa, 2015).
Sabemos que o lugar do Outro no aprender pode ser de abertura, quando
há transmissão do desejo de saber e uma aposta no sujeito- aluno, ou, pelo
contrário, pode reforçar uma situação de objetalização e alienação do apren-
dente, quando não é possível sustentação a dimensão do impossível inerente
ao educar. Isso decorre, muitas vezes, pela busca de uma educação plena e
de um saber sem furos, mas que muitas vezes acaba por produzir um ensino
impessoal e desafetado. Para a psicanálise, no entanto, não há transmissão
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sem sujeito, e, portanto, o saber inconsciente tem uma participação inevitável


nesse processo, com seus furos e tropeços na linguagem.
As contribuições de Fernandez (1991) sobre a aprendizagem ganham aqui
um lugar fundamental, sobretudo no que se refere à problemática dos segredos
e não ditos presentes nas relações familiares. Fernandez reafirma a centralidade
do lugar do adulto e da palavra no tratamento das experiências traumáticas,
que podem estar na base de diversos problemas de aprendizagem. Retomando
a ideia do desmentido trazida por Ferenczi, Fernandez adverte, porém que,
para além da consequência intrapsíquica relativa à ruptura do eu – uma parte
reconhece e aceita a realidade, enquanto que a outra parte a desmente; tal
situação pode ter como consequência à extensão do desmentido para todo
processo de aquisição de conhecimento. Mimetizando o que se passa com a
criança, “já que tenho que fazer que não sei o que os outros sabem e fazem
ver que não sabem, estendo esta atitude para todo conhecimento e não posso
aprender. Me transformo num oligotímico” (Fernandez, 1991, p. 102). Nesse
sentido, a autora observa que, muitas vezes, ao querer sepultar uma informação
aprendida, em geral a criança arrasta muito do desejo de conhecer, já que fica
culpabilizada. A partir de uma dificuldade na simbolização e ressignificação,
costuma aparecer nestes casos uma inibição cognitiva, que dificulta mais as
possibilidades de pensar que os aspectos figurativos do pensamento.
Podemos chamar de inibição intelectual os embaraços encontrados por
crianças e adolescentes em demonstrar a aprendizagem adquirida. “A inibição
intelectual faz parte de um processo de inibição psíquica mais abrangente, envol-
vendo movimentos inconscientes, ou seja, de natureza intrapsíquica” (Souza,
2018, p. 29). Freud (1926c/1977), na sua obra Inibições, sintomas e ansiedade,
descreve uma diferenciação entre inibição e sintoma. “A inibição concerne à
redução das potencialidades da ação de um sujeito e tem uma relação especial
com as funções do ‘eu’, diferentemente do sintoma” (Ferreira, 2019, p. 75).
Assim, a inibição possui uma relação com a função, o que não implica em
patologia. O sintoma diz respeito a um processo patológico e a inibição pode
150

advir de um sintoma. Freud (1926c/2014) descreve que as inibições servem


como autopunição, como nos casos de masoquismo. O que acontece, para
o autor, é que, para não entrar em conflito com o supereu, o eu não permite
atividades que resultam em algum êxito. A “inibição aparece, principalmente,
ligada aos distúrbios de inteligência dos neuróticos, nos quais as inibições e
as soluções de compromisso (os sintomas) substituiriam o prazer ligado ao
uso da inteligência” (Rennó, 2019, p. 86).
Ao final desse percurso, abre-se uma questão que merecerá investigações
posteriores: seria a inibição intelectual um dos destinos do traumático para
algumas crianças que sofreram algum tipo de violência doméstica?

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Conclusão

Observa-se, de modo geral, que crianças e adolescentes são frequente-


mente trazidos aos serviços de psicologia e psiquiatria infanto-juvenil por
algum responsável por conta de encaminhamentos feitos pela escola, por
apresentarem comportamentos que extrapolam o que é esperado pelo meio
escolar e/ou pelo meio social. Em nossa sociedade medicalizada, tais condutas
frequentemente são correlacionadas rapidamente a diagnósticos psiquiátricos
como: depressão, agressividade, falta de atenção, compulsões, sentimento de
tédio e dificuldade na interação com seus pares. Entretanto, na maioria das
vezes não se toma consideração os múltiplos fatores familiares, escolares e
sociais nos quais as crianças e os adolescentes estão inseridos.
Nota-se que a violência doméstica é um fenômeno social que incide e
gera efeitos bastante nocivos a todos que compõem a trama familiar. Ainda
assim, o aparato social é bastante empobrecido, no que se refere a tomar
medidas efetivas para que haja um trabalho com os atores da agressão, bem
como o acolhimento e o suporte aos que sofrem a violência, sobretudo em
se tratando de crianças e adolescentes. Sendo assim, é possível que diante da
dificuldade de elaboração simbólica que os sujeitos experimentam, a violência
pode transformar suas vivências em traumas psíquicos. Entretanto, podemos
afirmar que a amplitude e a dimensão do traumático decorrente das experiên-
cias da violência doméstica não é passível de previsão e/ou generalização.
De acordo com os estudos já realizados e as demandas que chegam aos
atendimentos clínicos, pode-se afirmar que a situação violenta leva o aparelho
psíquico a um excesso de excitação, para a qual ele não encontra recursos para
lidar. Em decorrência da situação traumática que crianças e adolescentes pre-
senciaram em seu ambiente familiar, que tem como efeito a perda do sentido da
experiência da continuidade de si e da autenticidade de suas percepções sobre
o mundo, levantamos como hipótese que esse elevado grau de excitação pode
acarretar efeitos sintomáticos sobre a aprendizagem no contexto educacional.
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PARA AS FILHAS E OS FILHOS 151

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sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Artes Médicas.
DUPLO DESAMPARO:
crianças em condição de orfandade por
covid-19 e pela ausência (quase total)
de proteção pelo poder público
Ângela de Alencar Araripe Pinheiro56

A tomada de conhecimento da orfandade por covid-19: um


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grande espanto

Sabíamos de uma ou outra situação de morte por covid-19 de alguém, que


era o(a) cuidador(a) principal de uma criança ou um adolescente, fosse pai, mãe,
pai ou mãe, e também da avó, do avô, tia, madrinha, vizinha, enfim, de quem sig-
nificava, para a criança ou o adolescente, o sustento material e ou suporte afetivo.
Em julho de 2021, começou a circular o artigo Global minimum esti-
mates of children affected by covid-19-associated orphanhood and deaths
of caregivers: a modelling study. Trata-se de estudo, coordenado por S. D.
HILLS, publicado em uma das mais acreditadas revistas científicas do Mundo
Científico, The Lancet, envolvendo pesquisadores de três entidades do Reino
Unido, e uma dos Estados Unidos. O seu conteúdo contribuiu para tirar da
invisibilidade, no mundo acadêmico, talvez a consequência mais trágica da
pandemia da covid-19, iniciada em março de 2020! As estimativas feitas57
nos chegaram como um soco no estômago e na alma: com base em dados
entre março de 2020 e abril de 2021 – portanto, um pouco mais de um ano de
Pandemia, os números eram assustadores: estimativas apontam que, durante
esse período 1,5 milhão de crianças e adolescentes ficaram órfãos de pai e ou
mãe. Para o Brasil, o estudo aponta, no mesmo período, 113 mil crianças e
adolescentes órfãos de pai e ou mãe; ao incluir apenas os avós com custódia
legal, o número subia para 130 milhões. Reparem que não foram incluídos
outros cuidadores, como tia, madrinha, irmã(o) mais velho, que ocorrem em

56 Professora Associada da UFC. Integrante do NUCEPEC-UFC (Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas


sobre a Criança) e da AOCA (Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por covid-19).
a3pinheiro@gmail.com.
57 O estudo levou em conta parâmetros para construir as estimativas do número de crianças e adolescentes em
condição de Orfandade por covid-19, em 21 países, nos quais se deram os maiores números de óbitos: taxas
de mortalidade por covid-19 em cada faixa etária de cinco em cinco anos, e taxas de fertilidade femininas e
masculinas, entre os anos de 2002 a 2020; dados sobre óbitos foram posteriormente separados por sexo e
idade. O estudo não contemplou famílias em que ambos os pais são do mesmo gênero (HILLS et al, 2021).
156

muitos rearranjos familiares no Brasil. Tomando por base os dados do estudo


de Hills et al. (2021), o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentá-
vel do Nordeste (CONSÓRCIO NORDESTE, 2021b), através de sua Câmara
Temática da Assistência Social estimou que, em nossa Região, haveriam 23.500
órfãos menores de idade, e, no Ceará, 5.610, lançando o Programa Nordeste
Acolhe58. Atualizando os dados, podemos estimar que, no Ceará, devem existir
entre 8 a 10 mil crianças e adolescentes em condição de Orfandade por covid-
19. O Programa prevê benefício de R$ 500 aos órfãos bilaterais ou de família
monoparental, até a idade de 21 anos. Cada Governador dos nove Estados da
Região, comprometeu-se a encaminhar à respectiva Assembléia Legislativa,
Projeto de Lei, criando o programa. Levantamento feito por nós, dá conta que,

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até novembro de 2022, o programa havia sido implantado em seis Estados.
Passados um ano e oito meses, ou seja, até final de abril de 2023, o Governo
do Ceará não cumpriu o compromisso assumido em julho de 2021.
Diante disso, integrantes do NUCEPEC59, movidos pela gravidade e urgência
da pauta, começamos a nos mobilizar em duas direções: concretizar busca por
mais dados e estudos sobre a Orfandade por covid-19; e dar início a incidências
públicas que favorecessem debates para aprofundamento da pauta e a consecução
de trato público dessas crianças e adolescentes, que estavam vivenciando condição
duradoura, delicada e complexa. Vivenciamos, então, o nascimento da Articulação
em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19 (AOCA).

O contexto da pandemia de covid-19: o descaso com a vida no Brasil

A Pandemia da covid-19 no Brasil, durante os anos de 2020 a 202260,


enfrentou dificuldades para além dos malefícios do vírus, diante da gestão
desastrosa do Governo Federal à época. Estudos apontam elevado número

58 O Nordeste Acolhe (CONSÓRCIO NORDESTE, 2021a).


59 O NUCEPEC – Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança – é um programa de extensão
da UFC, criado em 1984, com reflexões e ações voltadas basicamente para a defesa de direitos de crianças
e adolescentes. Nossas iniciativas se voltam para: estudos e pesquisas, tomando crianças e adolescentes
como nossos interlocutores; formação interna e externa; manutenção de acervo especializado na área;
ações diretas com crianças e adolescentes; incidências técnicas e políticas, na cena pública, que remontam
à nossa participação na construção de propostas para o texto da Constituição Federal de 1988, Estatuto
da Criança e do Adolescente, Constituição Estadual do Ceará de 1989 e Lei Orgânica do Município de
Fortaleza. O NUCEPEC vem sendo integrado por estudantes, servidores e professores da UFC e de outras
unidades de ensino, bem como profissionais que veem no Núcleo um espaço de engajamento na defesa
da vida, da dignidade e da justiça social. O Eixo Políticas Públicas e Controle Social integra a formação
básica recomendada para todos os integrantes do NUCEPEC, trazendo para o debate a relação direta
entre direitos de crianças e adolescentes, políticas e orçamentos públicos, em termos de noções básicas,
finalidade, formulação, execução e instâncias de controle social.
60 A OMS declarou o início da Pandemia de covid-19 em 11.03.2020. Temos clareza que não houve, até agora,
25.04.23, a declaração pelo OMS, do fim da Pandemia de Covid-19. O que temos observado é o decréscimo
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 157

de mortes evitáveis como uma das consequências mais nefastas dessa gestão.
Houve retardos significativos no início da vacinação no País, contrastando
com a tradição conquistada por nós de cumprir as coberturas vacinais. Exem-
plo nefasto: em junho de 2021, o Professor e Epidemiologista Pedro Hallal61
declarou à CPI da covid-19, realizada pelo Senado Federal, em 2021, que 4
em cada cinco mortes no Brasil “estão em excesso”, ou seja, ficamos muito
acima da média mundial de óbitos. Por essa constatação epidemiológica,
já àquela época, 400 mil mortes por covid-19 poderiam ter sido evitadas
no País. Importante que se diga que, em 29.06.2021, somávamos a elevada
cifra de 516.11962. Atingimos a inaceitável marca de 700 mil mortes em
28.03.23, o que, certamente, eleva a quantidade daquelas que poderiam ter
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sido evitadas63.
No período aludido, vivenciamos o aprofundamento da fome e inse-
gurança alimentar, de pobreza e da miséria. Um dado alarmante: 83% de
crianças e adolescentes estão submetidos a algum tipo de insegurança ali-
mentar (Tosi, 2023). A propósito, Campanha da Fraternidade 2023 da Igreja
Católica traz como tema, pela terceira vez, a fome (Arquidiocese de Fortaleza,
2023). Traz um texto bíblico – Dai-lhes vós mesmo de comer (Mt 14:16)
e a adoção do lema Fraternidade e Fome. Em seu material de divulgação,
constam também números estarrecedores sobre a insegurança alimentar,
que assola o País: 125,2 milhões de brasileiros nunca sabem quando terão
a próxima refeição; no Ceará, 2,4 milhões de pessoas estão passando fome,
correspondendo a 26,3% da nossa população; e são 81,9% das famílias no
Estado que enfrentam algum tipo de insegurança alimentar. Os dados reve-
lam a inexistência ou elevada insuficiência de políticas públicas, no Brasil e
no Estado do Ceará, para o enfrentamento ou acabar com a fome, que tanto
contribui para a não consecução do bem viver das populações vulnerabili-
zadas. E enfatizo: crianças, adolescentes e idosos são as maiores vítimas da
fome e da insegurança alimentar.
Ademais, seguidos cortes orçamentários e de sofrimento das populações
mais vulnerabilizadas – dentre as quais, estão crianças e adolescentes, apon-
tam para desmonte crescente dos Sistemas de Saúde e da Proteção Social
(Silveira, 2022).

do número de mortes. Por outro lado, sequelas significativas continuam em processo, entre as quais está
a Orfandade de Crianças e Adolescentes (OXFAM, 11.03.2023).
61 Professor Associado da Universidade Federal de Pelotas, mestre e doutor em Epidemiologia pela mesma
Universidade. Coordena o EPICOVID-19, considerado o mais amplo trabalho epidemiológico sobre o tema
no Brasil. (https://www.abc.org.br/membro/pedro-rodrigues-curi-hallal/ – Consulta em: 24 abr. 23)
62 (https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/06/29/brasil-registra-1917-mortes-por-covid-em-
24-horas-total-passa-de-516-mil.ghtml – Consulta em: 25 abr. 23)
63 https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/brasil-chega-a-marca-de-700-mil-mortes-por-
covid-19 – Acesso em: 25 abr. 23)
158

Crianças e adolescentes estão entre os Grupos mais vulnerabilizados.


Alguns indícios complexificam ainda mais os efeitos da Orfandade por Covid-
19 no estado do Ceará, como a manifesta elevação de suas presenças nas ruas,
cenário constante de trabalho infantil, além de outros espaços sociais em que se
pode verificar, inclusive a exploração sexual desses atores sociais, considerada
pela OIT como um dos mais graves nessa modalidade; aumento vertiginoso
(cinco vezes mais, nos anos de 2020 e 2021) de crianças e adolescentes em
condição de Acolhimento Institucional (Viana, 2022); mais recentemente, O
Ministério da Saúde (Brasil, 2023) vem veiculando o aumento de internações
hospitalares de crianças por desnutrição grave. Em 2022, 70 crianças menores
de um ano foram hospitalizadas no Ceará, por desnutrição, sequelas da des-

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nutrição e deficiências nutricionais. O Ministério alerta para as consequências
devastadoras da desnutrição, que incluem a altas taxas de mortalidade.
São rastros perversos do descuido com esses sujeitos sociais; são con-
sequências, que poderiam ser evitadas, se houvesse trato público adequado
à defesa de seus direitos, devidamente garantidos na legislação nacional, e
mesmo internacional.
A quase total inexistência de berçários públicos é uma realidade no
Estado do Ceará. Apenas em agosto de 2021, portanto, muito recentemente,
a PMF vem anunciando a criação de berçários públicos nos novos Centros de
Educação Infantil (Fortaleza, 2021). Mesmo assim, faltam vagas em creche
e educação infantil: são muito aquém das demandas e significam violação do
direito à educação de crianças pequenas.
Família acolhedora é medida protetiva prevista no ECA, Art. 101 (Brasil,
1990), que antecede o acolhimento institucional, devido a uma série de obstá-
culos que esse último inclui, em geral, à construção de vínculos duradouros, às
sociabilidades e à construção de subjetividades. No Ceará, a LEI Nº 16.703, DE
20.12.18 (D.O. 21.12.18) INSTITUI, no Estado, o Serviço de Acolhimento em
Família Acolhedora, que visa a propiciar “O Acolhimento Familiar de Crianças
e Adolescentes afastados do convívio familiar por Decisão Judicial” (Ceará,
2018). Além disso, apenas no ano de 2022, a Lei foi regulamentada pelo Decreto
Nº 34664/2022 do estado de Ceará. São, respectivamente, 28 anos e 32 anos,
após a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente. Na prática cotidiana
do trato público de crianças e adolescentes, a implantação tardia dessa Medida
de Proteção tem favorecido a escolha por acolhimento institucional. De fato,
entre 2020 e 2021, quintuplicaram-se medidas de acolhimento institucional do
estado do Ceará (Viana, 2022). A propósito, será de grande valia um estudo
aprofundado sobre a dinâmica da aplicação de medidas de proteção, no Ceará
e em seus municípios, verificando a existência ou não de programas de família
acolhedora, número de vagas, e as decisões para acolhimento institucional, que,
em termos de complexidade, sucedem as primeiras.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 159

Orfandade: condição de desamparo e profunda tristeza

Quem são as crianças e adolescentes em condição de orfandade? Quantos


são? Onde estão? Como estão (sobre)vivendo?
Desde o início de nossas incidências, temos nos guiado por essas perguntas
e seus desdobramentos, que deveriam ter sido respondidas, por iniciativas con-
cretas de mapeamento desses sujeitos sociais, sob a responsabilidade do Poder
Público, desde os primeiros dias da Orfandade por covid-19. Lamentavelmente,
até hoje, 25/04/23, continuamos a dispor tão somente de algumas estimativas,
conforme exposto anteriormente, e mapeamentos parciais, que não dão conta
da totalidade de crianças e adolescentes nessa condição, em nível Federal, do
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Estado do Ceará e do Município de Fortaleza. Vale registrar recente estudo


efetivado pela UFMG e a Fiocruz (Szwarcwald et al., 2022), que se apresenta
com muita consistência metodológica, e suas conclusões estão nos limites de
uma pesquisa voltada para formular estimativas – no caso, algumas sobre a
Pandemia da covid-19, no Brasil; e outras sobre crianças e adolescentes que
ficaram em condição de orfandade, em decorrência da morte da mãe por covid-
19, no período de 2020-1. Cabe-nos levar em conta esse propósito do estudo
e que não foi estimado o número de crianças e adolescentes em condição de
orfandade, em decorrência da morte do pai por covid-19 – lembremo-nos que
as mortes de homens por covid-19 foi 31% mais elevada do que entre mulheres.
E mais: o estudo não aborda a “orfandade” pela morte por Covid-19 de outros e
outras cuidadoras primárias, a começar pelas avós! Finalmente, consideremos
o período do estudo, qual seja, os anos 2020 e 2021. Sabemos, portanto, que
não foram incluídos óbitos maternos referentes ao ano de 2022, no qual ocorreu
mais uma onda de contaminação pelo vírus. Resta, dessa forma, a necessi-
dade da concretização de estudos considerando também essas “orfandades”.
Ressaltemos, ainda, que o estudo é extremamente atento a dimensões da atual
conjuntura brasileira, e dos despropósitos da gestão da Pandemia pelo Governo
Federal até 31.12.22, resultando em tantas mortes evitáveis.
Em cenário tão devastador, foram muitas as razões para o surgimento,
em julho de 2021 da ARTICULAÇÃO EM APOIO À ORFANDADE DE
CRIANÇAS E ADOLESCENTES POR COVID-19 (AOCA). Certamente,
há efeitos materiais e psicológicos importantes frente à perda de um vínculo
afetivo tão fundamental. Em muitos casos – podemos supor até na maioria, há
riscos quanto às condições de segurança alimentar em que vivem ou sobrevi-
vem essas crianças e adolescentes. Temos buscado sensibilizar instituições e
pessoas, para que sejam conquistadas e garantidas condições adequadas, nos
aspectos sócio emocional, educacional, jurídico (regulamentação da represen-
tatividade legal), de segurança material e alimentar, de saúde física e mental,
para essas crianças e adolescentes. Nossas incidências têm se dado junto
160

principalmente a instâncias públicas e forças sociais, para a definição de polí-


ticas e elaboração de programas que visem a atender, condignamente, as inú-
meras necessidades dessas crianças e adolescentes. Uma de nossas principais
demandas é ter a dimensão, mesmo que aproximada, do número de crianças e
adolescentes órfãos da covid-19; saber a situação em que se encontram, consi-
derando a precariedade do levantamento desses dados por parte das instâncias
públicas, e da necessária busca ativa. Buscamos intensamente contatos com
entidades, coletivos da sociedade civil e das mídias, para apresentar algumas
informações básicas para ampliar a visibilidade acerca da Orfandade por
covid-19, e contribuir para a imprescindível sensibilização – técnica, política
e humana e comprometimento; e também nos disponibilizarmos para diálo-

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gos, encontros virtuais e troca de conhecimentos e vivências; desde março de
2022, temos protocolado sucessivas correspondências para os Governadores
Camilo Santana, Izolda Cela e Elmano de Freitas, bem como para o Prefeito
de Fortaleza, Sarto Nogueira. Até o final de abril de 2023, nenhum deles nos
recebeu. Vale ressaltar que em alguns desses Ofícios, constaram a adesão de
mais de 640 pessoas físicas e mais de 205 coletivos – nacionais, estaduais e
locais, de diversificadas inserções na vida social e política. Nem esse respaldo
de forças sociais até agora foi suficiente para iniciarmos diálogo com os Chefes
do Poder Executivo Estadual e Municipal. Perseveramos em nossas incidên-
cias, no sentido de enfrentarmos, coletivamente, esse gravíssimo problema
social do contexto atual brasileiro, e buscarmos encaminhamentos voltados
às necessidades e aos direitos dessas crianças e adolescentes, com a urgência
que a Orfandade por Covid-19 exige. Prioridade absoluta está prevista em lei.
Ao longo do período de atividades da AOCA, temos produzido diversos
documentos: em forma de artigos publicados em jornais e sítios eletrônicos
(Pinheiro, 2021; Pinheiro, 2023); subsídios à Relatoria da CPI do Senado
Federal sobre a Pandemia de covid-19 (ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE O
PEQUENO NAZARENO et al) -; como sugestões para Planos de Governo
(Estadual e Federal – AOCA et al., 2022; NUCEPEC/UFC et al, 2022 ); Nota
Técnica conjunta AOCA e OAB-CE (2022); texto provocativo de diálogo com
integrantes do mundo acadêmico e coletivos e movimentos sociais (Pinheiro
& Carvalho, 2023).
Ademais, mantemos, desde junho de 2022, perfil no Instagram (@aoca.
ce). Como poderá ser verificado na construção desses documentos acima refe-
ridos, há uma preferência nossa por trabalhos com a força dos coletivos: à
exceção de artigos publicados em jornais e sítios eletrônicos, os demais refletem
a conjunção de esforços e reflexões de diversificados atores sociais.
Os princípios humanitários igualmente apontam para a prioridade no trato
público de crianças e adolescentes em condição de Orfandade. As providências
seguem ritmo moroso, ou mesmo nem são iniciadas, muito embora a urgência
e gravidade da pauta apontem que as iniciativas sejam para antes de anteontem.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 161

É inacreditável que ainda não tenha sido construída uma campanha edu-
cativa, que trate dessa pauta com a abrangência e clareza que ela requer. Há
sempre recursos garantidos, em cifras vultuosas, para publicidade e propa-
ganda governamental. Por que, até hoje, não foi feita?
Em síntese, são providências necessárias: a campanha acima aludida;
mapeamento de crianças e adolescentes nessa condição, dando conta das
perguntas básicas: Quem são as crianças e adolescentes em condição de
orfandade? Quantos são? Onde estão? Como estão (sobre)vivendo?; previsão
e execução orçamentárias para garantia de auxílio financeiro e ampliação de
serviços e equipamentos do SUAS, SUS, e do sistema escolar público, com
especial atenção aos berçários e creches públicas e auxílio financeiro até a
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maioridade; implantação do serviço de família acolhedora, evitando, dessa


forma, a institucionalização desses sujeitos sociais, última das medidas de
proteção, com seu caráter provisório e excepcional.

Qual é o outro que nos importa

Por enquanto, estamos vivenciando um descaso, que vem se dando ao


arrepio da Lei, posto que são inúmeras as normativas nacionais e internacio-
nais que sustentam, na lesgislação, o reconhecimento da prioridade absoluta
para o trato público de crianças e adolescentes, seja em termos de previsão e
execução orçamentarias, seja pela disponibilidade necessária (e não viável...)
de serviços, equipamentos e benefícios que sejam sustentáculos para sua vida
digna e bem viver. Se não bastassem essas normativas, lembremo-nos de que
a situação em que se encontram essas crianças e adolescentes, há mais de três
anos (de março de 2020 até abril de 2023), fere frontalmente princípios huma-
nitários e (até) mesmo podem afrontar o velho bom senso (Pinheiro, 2023).
Acompanha-nos o pressuposto de que, mais e mais, precisamos romper
com a representação social de crianças e adolescentes em condição de orfan-
dade como objetos da benemerência social e ou religiosa, e reconhecermos,
de uma vez, que são eles sujeitos de história e de direitos, de presente e de
futuro, de sonhos e de desejos, de escolhas e de projetos de vida.

Aoca na cena pública: congregação de atores sociais, incidências


políticas e propostas para o trato público de crianças e
adolescentes em orfandade por covid-19

O trato público digno para crianças e adolescentes em condição de orfan-


dade inclui providências que envolvem os três Poderes da República, uma
vez que é imprescindível considerar:
162

- no sistema de Justiça, estivemos, em de 2022, com a então Presidenta


do Tribunal de Justiça do Ceará e com o Corregedor Geral da Justiça do Ceará,
abordando a regulamentação da representatividade legal e a implantação e
acompanhamento de programas de acolhimento familiar, esse último em arti-
culação com o Poder Executivo;
- no Poder Legislativo, há que ser debatido, aprovado e implantado o
teor de Projeto de Lei, advindo do Poder Executivo, que verse sobre Plano de
Atendimento dessas crianças e adolescentes. Por envolver despesas orçamentá-
rias, tal Projeto é prerrogativa do Poder Executivo. Já tramitam na Assembléia
Legislativa do Ceará e na Câmara Municipal de Fortaleza Projetos de Indica-
ção sobre a pauta, esses sim prerrogativas dos respectivos Parlamentares, e

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funcionam como sugestões ao Poder Executivo. Até agora, não houve acata-
mento pelos respectivos mandatários – Governadores64 e Prefeito. Além disso,
houve Audiência Pública, nas duas Casas Legislativas aludidas, com enfoque
na Orfandade por covid-19, para as quais foram convidados representantes da
Prefeitura e do Governo. Encaminhamentos foram construídos, junto a forças
sociais presentes. Desconhecemos, até agora, iniciativas significativas de seus
teores. AOCA conta, desde o início de suas atividades, com o apoio robusto
e contínuo da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da ALECE e da
Mandata Nossa Cara (CMF);
- ao Poder Executivo, cabe efetivar ampliação de serviços da Assistência
Social, Saúde e Educação, para falar do mínimo, que resulte no fortalecimento
do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social, além
do sistema educacional, visto que em todos eles é possível detectar defasa-
gens entre a demanda e a oferta de serviços, equipamentos e benefícios. Há
igualmente defasagem nas políticas de moradia, saneamento, alimentação,
esporte, cultura, lazer, profissionalização e proteção no trabalho – garantias
legais para crianças e adolescentes. Ademais, no Ceará 83% de crianças e
adolescentes enfrentam algum tipo de insegurança alimentar (TOSI, 2023)65,
revelando dificuldades na área, e tornando ainda mais complexo o trato, pelo
Poder Público, desses sujeitos sociais
Ainda sobre o Poder Executivo, temos nos dirigido, insistentemente,
através de Ofícios devidamente protocolados, aos dois últimos governadores
(Camilo Santana e Izolda Cela) e ao atual (Elmano de Freitas66), bem como

64 A expressão Governadores é aqui utilizada no plural, uma vez que são dois ex-Governadores (Camilo
Santana e Izolda Cela), e o atual, Elmano de Freitas. Na Prefeitura, Sarto Nogueira está na gestão desde
2021, ano em que demos início às nossas incidências, coordenados pela AOCA.
65 A autora da reportagem se baseia em estudo feito pelo UNICEF, denominado As Múltiplas Dimensões da
pobreza na infância e na adolescência no Brasil, a partir da dados da PNAD Continua.
66 Buscamos diálogo com o atual Governador do Ceará, desde quando ele era ainda candidato. Após a sua
eleição, fizemos diversas tentativas de diálogo com integrantes da Equipe de Transição. Além de não
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 163

ao Prefeito Municipal de Fortaleza (Sarto Nogueira), sem que até hoje, tenha-
mos sido recebidos por algum deles. Nos dois níveis, Governo do Ceará e
Prefeitura de Fortaleza, embora tenhamos tido audiência com algum de seus
auxiliares diretos, parecia haver uma blindagem em torno daqueles Chefes
do Executivo, mesmo que se trate, sem qualquer sombra de dúvida, de pauta
de extrema prioridade, de prioridade absoluta, como assegurado por Lei67.
Dessas seguidas negativas, surgiu um questionamento, a nos acompanhar e
a ser compartilhado em nossas falas e postagens em redes sociais, bem como ser
tema de encontro com diversificados atores sociais68. Nossa pergunta intrigante:
O que faz com que gestores estaduais e municipais, no Ceará, se recusem
a dialogar sobre a pauta com forças expressivas da sociedade civil?
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Difícil – quase impossível – aquilatar os impactos que já estão aconte-


cendo na (sobre)vida dessas crianças e adolescentes. Temos alguns exem-
plos, que têm nos chegado, ao longo das incidências da AOCA, por meio de
depoimentos de familiares e trabalhadoras(es) com atuação no trato público de
crianças e adolescentes – de OGs e de ONGs. Eis alguns desses depoimentos:
- adolescentes portadores de diabetes, que precisam aderir a tratamentos
e prevenção, com a ruptura de vínculo, por óbito da mãe ou de outro cuidador
principal por covid-19, tentaram suicídio. O motivo informado foi a continui-
dade do tratamento, sem a presença da mãe, que dava apoio e acompanhava
as idas à unidade de saúde para o devido acompanhamento;
- com o falecimento da mãe por covid-19 e já sem contar com a presença
paterna, adolescente passou a cuidar de três irmãos com idade inferior a dez
anos. Recebia suporte, inclusive alimentar, de rede de apoio da comunidade
próxima, que também incluía a presença de integrante dessa rede, que acom-
panhava a situação com zelo. A família, que passou a ser chefiada pelo ado-
lescente (irmão mais velho), mudou para local distante, impossibilitando a
continuidade desse suporte. O adolescente chegou a cometer pequenos furtos.

sermos atendidos, até hoje não tivemos acesso ao Relatório construído pela referida equipe, dando conta
das condições em que se encontrava o Estado, ao final de 2022, bem como ao Plano de Governo. São
oportunidades perdidas de diálogo com forças sociais, congregadas em torno de pauta tão sensível e
urgente, como a Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19.
67 O texto da Constituição Federal de 1988 traz a expressão absoluta prioridade uma única vez, no artigo 227,
no qual estão assegurados todos os direitos a todas as crianças e adolescentes (vida, saúde, alimentação,
educação, lazer, cultura, profissionalização, liberdade, dignidade, convivência familiar e comunitária), bem
como sua proteção contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão. E são designados os responsáveis: Estado, Sociedade e Família.
68 Em fevereiro último, como tarefa do Estágio Posdoutoral desta autora, realizamos (Professora Supervisora e
eu) Roda de Debate, a partir de texto provocativo (PINHEIRO & CARVALHO, 2023) com oito participantes,
seis, portanto, além de nós duas: dois integrantes de coletivos sociais (Artigo 227 e Orçamento na Luta);
uma integrante da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e três integrantes de entidades
relacionadas à Assistência Social (dois de Secretaria Municipal de Assistência Social; uma, de instância do
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome).
164

Ao ser perguntado porque estava fazendo isso, ele alegou que tinha que levar
o sustento para a casa. Uma das avós, de uns tempos para cá, está se fazendo
presente e apresentando suporte;
– a garota M.C. ficou órfã de mãe, quando estava com 12 ou 13 anos.
O pai já não era presente em sua vida há muitos anos. M. C. é a caçula. Suas
irmãs mais velhas têm cuidado de M.C. Essas informações me foram passadas
por moradora do mesmo bairro;
- dois adolescentes e um jovem em condição de orfandade de pai (faleci-
mento anterior à Pandemia) e de mãe (por covid-19). Quando do falecimento
da mãe, seus três filhos – uma adolescente de 14 anos; uma adolescente de 17
anos; e um jovem de 23 anos, passaram a ser cuidados pela avó materna – já

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tem perto de 80 anos. Tem havido previsíveis dificuldades no novo arranjo
familiar, com demandas tão distintas. Uma das tias maternas das adolescentes
e do jovem tem prestado suporte. Em encontro presencial, a avó relatou sua
dificuldade de lidar, por exemplo, com a vontade de sua neta mais nova em
sair para encontrar amigos. A avó está com suporte psicológico, através de
atendimento de psicoterapeuta;
- adolescente morava com a mãe, avô e avó maternos. O avô vem enfren-
tando dificuldades de memória há alguns anos, recebendo cuidados em unidade
de saúde, e tomando medicações regulares. A mãe e a avó faleceram de covid-
19. De repente, o adolescente se viu diante do seu luto, da falta de suas duas
principais referências afetivas – mãe e avó, e tendo que desempenhar tarefas de
cuidados com o avô. Tudo isso contribuiu sobremaneira para que o adolescente
fosse levado a sofrimento psíquico e, de consequência, a tentativa de suicídio.
Um de seus colegas de escola soube, ficou muito tocado, e comentou com sua
família – pai, mãe e quatro filhos. Os pais resolveram, então, convidar o ado-
lescente a residir com eles. A regulamentação da guarda está em andamento.

Mais de três anos de orfandade, mais de três anos de omissão


(quase) completa do poder público

A nós, AOCA e tantas forças sociais que temos conseguido aglutinar,


resta-nos prosseguir, buscar novas estratégias, com finalidade clara, e sabendo
que estamos em uma via de mão dupla, do aprender e do atuar: construção
de plano de atendimento a crianças e adolescentes em condição de Orfan-
dade por covid-19, que, conforme temos detalhado em nossas incidências
e em documentos por nós já construídos (ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE
O PEQUENO NAZARENO et al, 2021)69. Necessário que o Plano inclua,
69 Para maiores detalhamentos, sugerimos consultar o documento aludido, que foi construído coletivamente e
encaminhado à Relatoria da CPI da Covid-19, no início de outubro de 2021, pelo Deputado Estadual Renato
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 165

a princípio: Medidas de visibilidade, sensibilização e comprometimento do


poder público e da sociedade; Localização e caracterização dos órfãos da
covid-19; Elaboração de um plano estratégico e operacional que envolva a
segurança alimentar, psicossocial, educação e o direito ao convívio familiar;
Criação de marco legal em nível nacional para articular entes da federação
em prol das transferências financeiras, delimitação de competências para
execução do planejamento operacional estratégico.
A propósito dos dois primeiros itens, estão em curso, neste final do mês
de abril de 2023, a Campanha Abraçar e os preparativos do Mutirão para
Regularização da Guarda para Crianças e Adolescentes com enfoque na
Orfandade, que será concretizado em maio de 2023, pela Defensoria Pública
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do Ceará, AOCA e Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia


Legislativa do Ceará. Durante dois dias, Defensores farão o atendimento com
essa finalidade. Simultaneamente, integrantes da AOCA faremos escuta de
familiares, crianças e adolescentes que se dirijam ao Mutirão – são eles que
mais podem nos dizer o que está se passando, para que possamos orientá-los
na busca de serviços voltados a atendimento psicossocial, demanda que, sem
o devido cuidado, deixa marcas indeléveis em que está enfrentando condição
tão delicada, como o luto profundo, o desamparo e a falta de proteção, que a
Orfandade acarreta, particularmente em crianças e adolescentes70.
Enquanto se dão os encaminhamentos para o Mutirão, compreendemos
que nossas incidências são processuais, que a orfandade é condição de extensa
duração e que, quanto mais se retardam as providências que cabem ao Poder
Público, mais se aprofundam as sequelas objetivas e subjetivas no estar no
mundo de crianças e adolescentes atingidas pela Orfandade por covid-19 e
por tantas outras causas.
Assim, seguimos:
- reiterando aos gestores municipal e estadual, que, apesar das seguidas
negativas ao diálogo, mantemos com a nossa disposição em contribuir, efetiva-
mente, com a pauta da Orfandade por covid-19, com escala nunca vivenciada
pela humanidade, desde o término da II Guerra Mundial. Assim, voltaremos
a protocolar ofícios a essas autoridades, em tempo muito breve;
- ampliando nossos contatos com forças sociais, entre as quais se incluem
entidades religiosas; conselhos profissionais e setoriais, como o são os de
assistência social;
- prosseguindo as tratativas para incluir a Orfandade por covid-19 como
pauta na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Federal,

Roseno, Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Ceará,


que fez a entrega pessoalmente.
70 Para maiores detalhes sobre o Mutirão, sugerimos consultar os perfis no instagram: @defensoriaceara e
@aoca.ce; @defensoriaceara; www.defensoria,ce.def.br
166

atualmente presidida pela Deputada Luizianne Lins, na Comissão de Direi-


tos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, presidida pelo
Senador Paulo Paim, assim como na Frente Parlamentar Mista de Promoção
e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, no Congresso Nacional,
presidida pela Deputada Federal Maria do Rosário;
- mantendo contatos com representantes de mídias sociais e tradicionais,
que possam construir caminhos, em conjunto com a AOCA e forças sociais
que agregamos, para ampliar, sempre e sempre, a visibilidade, a sensibilidade
e o comprometimento de atores sociais e públicos, para a concretização dos
“direitos que são direitos”71 dessas crianças e adolescentes.
No tempo já transcorrido de atuação do AOCA – de julho de 2021 a abril

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de 2023, temos nós mesmos vivenciado as mais distintas emoções – desde o
espanto inicial de nos depararmos com a sequela talvez mais dramática, até a
profunda indignação que nos habita, diante de tamanha omissão (quase) com-
pleta de tantos gestores públicos, a quem cabe proteger crianças e adolescentes
em condição de orfandade por covid-19, diante da vulnerabilização material
e emocional em que se encontram esses sujeitos sociais, que não estão sendo
tratados como sujeitos, e sim como objetos, com providências adiadas, não
sabemos até quando.
Nossas emoções, contudo, não se resumem ao espanto e à indignação.
Temos vivenciado também a força que o trabalho coletivo, interna e exter-
namente à AOCA; essa força se manifesta, por exemplo, através da adesão,
desde o início, da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assem-
bléia Legislativa do Ceará e da Mandata Nossa Cara, Vereança Municipal
de Fortaleza concretizadas na realização de Audiências Públicas nos dois
Parlamentos; da profícua parceria com a Defensoria Pública do Estado do
Ceará. Foi a Defensoria que lançou campanha, esclarecendo que mesmo
cuidadores, com guarda informal, poderiam efetivar a matrícula escolar e
vacinação de crianças e adolescentes; além do Mutirão para regulamentação
da guarda desses sujeitos sociais.
Sim, sujeitos sociais, com direitos garantidos, em documentos vigentes,
de caráter nacional (como a CF 1988 e ECA) e internacional (como a Conven-
ção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança72). São sujeitos de pro-
teção integral, para quem estão assegurados todos os direitos para todos eles,
o respeito à sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, e como

71 Utilizo aqui uma paráfrase da afirmativa cunhada pela filósofa Hannah Arendt – o direito de ter direitos,
que nos remete a que o usufruto de direitos requer, necessariamente, o responsável por esse usufruto,
seja um Estado Nacional, entidades da sociedade em geral, da comunidade próxima ou a família do sujeito
desses direitos.
72 Trata-se do instrumento mais aceito da nossa história universal. Foi ratificado por 196 países, entre os quais
não se incluem os Estados Unidos e a Somália (ONU, 1989).
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 167

prioridade absoluta. Esse tripé de princípios compõem a Doutrina da Proteção


Integral, presentes desde a CF 1988. Eis uma base fundante de nossa atuação,
posto que, dessa forma, crianças e adolescentes são sujeitos do passado, do
presente e do futuro, sujeitos da história e de história, de sonhos e desejos.
Se sua condição de sujeito do presente está sendo violada – no caso em
análise, Crianças e Adolescentes em Condição de Orfandade por covid-19
– as normativas no País estabelecem os responsáveis, e, mais do que isso, é
preciso urgência urgentíssima nas ações do Poder Público, para restaurar, de
imediato e mesmo para antes de anteontem, as violações já concretizadas, e
fazer valer a sua condição constitucional de sujeitos de direitos.
Sim, guardamos com muito esmero a força que vem da adesão às nossas
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reivindicações neste sentido. A força de mais de 205 coletivos de muita diver-


sidade e de mais de 700 pessoas físicas, com mais de 100 distintas ocupações.
Estranhamente, nem isso foi suficiente para que tenhamos sido recebidos pelos
Chefes do Poder Executivo Estadual e Municipal.
Temos contado, igualmente, com a receptividade de muitos profissionais
de comunicação e formadores de opinião. Em jornais, blogs, sítios eletrô-
nicos, assessorias de comunicação, programas de rádio e de televisão, em
redes sociais, temos levado a nossa reflexão, nossos questionamentos, nossas
propostas. Tais compartilhamentos crescem de importância, diante da ausên-
cia de campanhas informativas e educativas por parte dos Poderes Públicos.
Tudo isso é extremamente animador para prosseguirmos.
É o que faremos.

FONTES DE CONSULTA

DEPOIMENTOS DE ATORES SOCIAIS COM PROXIMIDADE COM


A PAUTA: Crianças e Adolescentes em Condição de Orfandade por covid-19;
Órfãos Adultos, Familiares, Técnicos, Integrantes de ONGs.
168

REFERÊNCIAS
AOCA et al. (2022) Recomendações para Defesa dos Direitos de Crian-
ças e Adolescentes: Ao Candidato Elmano de Freitas. Fortaleza: AOCA et
al. (mimeo)

AOCA & OAB-CE (2022). Nota Técnica nº 01-2022: Proteção Social de


Crianças e Adolescentes em Condição de Orfandade por Covid-19. Fortaleza:
AOCA e OAB-CE.

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ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE O PEQUENO NAZARENO et al. (2021).
Órfãos da Covid-19: Plano Estratégico-Operacional para seu Cuidado e Pro-
teção Imediatos. Contribuições para Relatório da CPI da Pandemia no Senado
Federal. Fortaleza (mimeo).

Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:


Câmara dos Deputados;

Brasil (1990). Lei Federal nº8069/1990 – Estatuto da Criança e do Adoles-


cente. Brasília: Senado Federal.

Brasil. Ministério da Saúde (2023). Ceará registrou 70 inter-


nações de crianças com menos de um ano em 2022. https://
www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/suporte-aos-estados/ceara/
ceara-registrou-70-internacoes-de-bebes-menores-de-um-ano-em-2022.

Ceará (2018). Lei Estadual nº 16703 Institui o Serviço de Família Acolhedora.


Ceará: Diário Oficial do Estado.

Ceará (2022). Decreto Nº 34664/2022 do Estado de Ceará: Regulamenta o


Serviço de Acolhimento Familiar Provisório de Crianças e Adolescentes em
Situação de Privação Temporária do Convívio com a Família de Origem,
Denominado Família Acolhedora, Instituído pela Lei Nº 16.703, de 20 de
Dezembro de 2018.

Consórcio Nordeste, 2021a. Resolução nº 03, de 19 de julho de 2021. Teresina:


Diário Oficial do Estado do Piauí, p. 12-3.

Consórcio Nordeste, 2021b. Governadores do Nordeste lançam Programa


Nordeste Acolhe, que prevê benefício de R$500 reais aos órfãos da Covid-19.
Natal: Consórcio Nordeste, 27.08.2021.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 169

Fortaleza, Prefeitura Municipal (2021). Prefeitura inaugura primeiro Centro


de Educação Infantil com atendimento de berçário. https: //www.fortaleza.
ce.gov.br/noticias/prefeitura-inaugura-primeiro-centro-de-educacao-infantil-
-com-atendimento-de-bercario

Hills, S. D. et al (2021) Global minimum estimates of children affected by


COVID-19-associated orphanhood and deaths of caregivers: a modelling
study. London, The Lance. 398, july, 31 2021, 391-402.

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PARA NOSSA REFLEXÃO E DEBATE: Orfandade de Crianças e Adolescentes
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tes em acolhimento cresce 5 vezes no Ceará. Fortaleza: Diário do Nordeste,
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-pobreza-numero-de-criancas-e-adolescentes-em-acolhimento-cresce-5-ve-
zes-no-ceara-1.3191861 (acesso em 16.02.22)
170

SITIOS ELETRÔNICOS

https://www.oxfam.org.br/noticias/que-nao-mais-se-repita/?utm_campaig-
n=newsletter_-_base_geral_-_marco23&utm_medium=email&utm_sour-
ce=RD+Station

https://agencia.fiocruz.br/observa-infancia-brasil-tem-mais-de-40-mil-or-
faos-da-covid-19

https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/
marco/brasil-chega-a-marca-de-700-mil-mortes-por-covid-19

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DEVIR FEMINISTA:
por um comum que não a violência
Cláudia Maria Perrone73
Juliana Martins Costa Rancich74
Gabriela Gomes da Silva75
Flávia Tridapalli Buechler76

Introdução
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A violência doméstica se apresenta como um fenômeno social composto


por diversos elementos, que podem ser analisados por diferentes ângulos
teóricos. Elegemos discutir criticamente essa temática a partir da psicanálise
e dos feminismos, pensando sobre a violência desde a perspectiva de quem
a vivencia no cotidiano. Para tal, partimos da escuta de mulheres em um
Coletivo, realizada através de um projeto de extensão universitária77, em uma
periferia da cidade de Porto Alegre.
O Coletivo de mulheres78 surgiu como uma ação política, uma aposta na
construção conjunta de um espaço seguro, em meio a um território marcado
pela violência, tanto urbana, como estatal e doméstica. A violência é um sig-
nificante que reúne as mulheres ao redor de um comum, pois todas de alguma
maneira já vivenciaram ou vivenciam os efeitos da violência em suas múltiplas
apresentações. Podemos citar diversas dessas apresentações: a violência de
gênero e o racismo imbricados interseccionalmente, a violência decorrente

73 Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura na


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do LITORAIS: Laboratório de Estudos e Pesquisas
em Psicanálise e Cultura (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: claudia.perrone@ufrgs.br.
74 Psicóloga e Psicanalista. Mestranda do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Pesquisadora do LITORAIS: Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Cultura
(UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: julianamartinscosta@gmail.com.
75 Psicóloga e Mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Pesquisadora do LITORAIS: Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Cultura (UFRGS),
Sapiranga, RS, Brasil. E-mail: gabriela.gs2011@gmail.com.
76 Psicóloga, Psicanalista e Professora. Mestra em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Doutoranda do Programa de Pós- Graduação em Psicologia na Universidade Federal
Fluminense. Pesquisadora do LITORAIS: Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Cultura
(UFRGS), Balneário Camboriú, SC, Brasil. E-mail: flaviatbuechler@gmail.com.
77 Projeto de extensão Escuta-flânerie em um coletivo de mulheres da periferia do LITORAIS: Laboratório de
Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
78 Vale ressaltar que tanto para o Coletivo quanto para o nosso Laboratório de Pesquisa, o termo “mulheres”
se refere a todas aquelas que assim se reconhecem, sem uma pretensão de tomar a categoria mulher como
um universal, mas sim, como um significante.
172

da guerra pelo tráfico de drogas, a morte precoce de jovens, os altos índices


de encarceramento de moradores da periferia, as expulsões do território tanto
por desapropriações feitas pelo Estado, quando por facções criminosas, a
fome, a falta de vagas em escolas e creches, a ausência de espaços de lazer,
a falta de gás, de luz e de água, a impossibilidade de circulação no território
por delimitações das zonas de facções, entre outras opressões vivenciadas
diariamente. Como afirma Lorde (1983), não há hierarquia de opressões,
mas não podemos perder a perspectiva interseccional apontada por Crenshaw
(1989), de que as opressões operam em sobreposição, e que muitas questões
que afetam especificamente mulheres negras ficam fora da agenda feminista.
Essa é a conhecida realidade das periferias brasileiras, usualmente discu-

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tida sob a análise dessas populações como vulnerabilizadas, traumatizadas e
demandantes de soluções do poder público. No entanto, o Coletivo de mulhe-
res que são em sua maioria mulheres negras, vem propondo uma aliança que
caracteriza essas mulheres como potentes, e não como vulneráveis. Essa é
uma proposta decolonial e subversiva, que coloca em outro lugar simbólico,
histórico e político todas as mulheres envolvidas. Assim, atravessadas pelo
acompanhamento, testemunho e escuta destas vidas, nos deparamos com a
questão: que outros significantes podem reunir essas mulheres em torno de
um comum, que não o da violência?

O enfrentamento da violência a partir de um feminismo popular


que advém da periferia

O Coletivo vem criando alternativas frente às violências, como espaço


de acolhimento, capacitação e formação política com as mulheres. Muitas
delas são chefes de família e por vezes as únicas responsáveis pelo sustento
de crianças e idosos. Fato que coloca em evidência que as configurações
da família brasileira não cabem no modelo tradicional/europeu de família,
representada pelo casal heterossexual e filhos. A violência tem papel impor-
tante nessas configurações, uma vez que incide diretamente sobre os laços
sociais e laços familiares, rompendo ou fragilizando-os. O que contam essas
mulheres é que elas, seus filhos e netos, não partilham de um sentimento de
pertencimento no corpo social de nosso país, pois não são vistos, pensados e
tampouco protegidos em um âmbito coletivo.
De acordo com o mapa da violência (Waiselfisz, 2015), o Brasil é o 5º
país, em um grupo de 83 países, que mais mata mulheres, e essa é uma questão
de saúde pública e uma questão política. Nesse sentido, a violência domés-
tica não pode ser tomada no campo do particular, intrafamiliar, estritamente
doméstico. Para tanto, o Coletivo trabalha a fim de produzir desalienação,
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 173

fazendo das mulheres protagonistas das transformações de suas realidades, seja


no contexto familiar, seja no contexto social, considerando a lógica moebiana
que opera nessa distinção que é antes didática que factual.
Acerca do que os feminismos na América Latina têm produzido, ressal-
tamos que ao mesmo tempo em que é antagônica à imagem do proprietário
individual que requer a posse de algo, ao passo que privilegia as relações de
interdependência entre os sujeitos, a leitura feminista através da extensão cor-
po-território (Gago, 2020a), dimensão que conferimos ao Coletivo, estabelece
a inversão do confinamento doméstico, comumente associado às mulheres.
“Tomamos as ruas e delas fazemos uma casa feminista” (Gago, 2020a, p.
128), e isso não exige um rechaço ao doméstico, mas torná-lo político e fora
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dos parâmetros do marido-proprietário. Dessa forma, o Coletivo de mulheres


inaugura também um outro território (não apenas geográfico) possível para
as mulheres da comunidade, no qual elas podem ser acolhidas, escutadas e,
principalmente, encorajadas a ocupar novos espaços, assumir novos lugares
enunciativos e conquistar experiências emancipatórias.
Através do fortalecimento e autonomia das mulheres, elucidando a lógica
moebiana entre privado e público, criam-se condições para uma consciência
política que permite, entre outras coisas, ampliar a discussão sobre as violên-
cias que atravessam os corpos feminizados. Trata-se de uma medida estraté-
gica que oportuniza pensar, avaliar e agir coletivamente frente às diferentes
violências que, através de sua simultaneidade e inter-relação, formam o chão
para o aumento de casos de feminicídio (Gago, 2020b). Tal como refere a
autora, conectar e pluralizar as diferentes violências que sustentam a violência
de gênero “se desloca de uma única definição de violência (sempre domés-
tica e íntima, portanto, confinada) para entendê-la em relação a um plano de
violências econômicas, institucionais, laborais, coloniais, etc.” (Gago, 2020b,
p. 73). Desse modo, produzir sentido para essa trama de explorações lança
essas mulheres à um novo leque de experiências emancipatórias e as retira da
posição de apenas vítimas, lugar que carrega traços de uma passividade que
interessa ao patriarcado, visto que as mantém sob sua tutela e assistencialismo,
confinando sua potência criativa.
Somos e continuaremos sendo potência! dizem estas mulheres, dizer-ato
(Prates, 2018) que se materializa, por exemplo, na viabilização da horta e
da cozinha coletiva que estão sendo criadas para responder às necessidades
básicas para uma vida digna na comunidade. O ato envolvido por uma preo-
cupação direta com sanar a fome é acompanhado de um lugar de enunciação
que se compromete para além da ação de cessar a necessidade. Nesse sentido,
o Coletivo mobiliza um dizer-ato que inaugura, desperta as mulheres para
a ocupação de um outro lugar possível na cena social, não subsumido aos
lugares predeterminados de vítimas da violência e da pobreza.
174

O feminismo popular, como definiu uma das participantes, é aquele que


se ocupa do que se vive todos os dias na periferia. Se um dos principais efeitos
da violência é a segregação e o sofrimento psíquico pelo esgarçamento dos
laços, a contraofensiva feminista através de um levante feminista em território
periférico é a resposta que busca tecer redes comunitárias, de pertencimento
e alianças contra todas as formas de opressões.
Kendall (2022) problematiza a diferença entre um feminismo indivi-
dualista e um feminismo coletivo. Enquanto o feminismo individualista se
apoia na ideia de que o indivíduo luta e ignora realidades econômicas e raciais
que algumas mulheres enfrentam, o feminismo coletivo propõe uma aliança,
na qual deve se unir e trabalhar junto, enfrentando o discurso da superação

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individual. Essa perspectiva do feminismo coletivo é capaz de apresentar
uma oportunidade para a realização de laços comunitários e sentimento de
pertencimento, precisamente por se basear no compartilhamento de recursos,
economia distributiva territorial que almeja reparar os danos das desigual-
dades decorrentes dessa contracultura que é o individualismo liberal (Chaui,
2018; hooks, 2022). Nesse sentido, a aposta no feminismo popular nomeado
por estas mulheres moradoras da periferia se revela como uma aposta na
coletividade, aposta que é capaz de representar “uma cultura do lugar, de ser,
existir, reexistir e resistir” (hooks, 2022, posição 172).
Nas ações de enfrentamento às incontáveis violências que as mulheres
do Coletivo vivem e presenciam testemunhamos um agir ético que busca
“refundar a possibilidade humana da convivência em um mundo com dilemas
sócio-políticos gigantescos” (Souza, 2022). De acordo com o autor, ética
não é teoria, é agir político desde uma reflexão sobre o lugar e sua dimensão
relacional. Nestes termos, se compreendemos que “política é a capacidade
de conceber e criar uma estrutura ética de convivência que permita a cada
ser relacionar-se o mais saudavelmente possível com cada outro ser” (Souza,
2022, p. 300), como não considerar o que o Coletivo apresenta de possibili-
dade e experiência emancipatória? Tal como sinaliza Périvier (2023), embora
plural a questão feminista não diz respeito aos movimentos identitários, a
questão feminista trata antes da experiência social das mulheres. Trata-se,
portanto, de uma questão que deve ser tão ampla quanto a experiência de
vida dos corpos femininos, negros e periféricos que historicamente são alvo
de violência Estatal e doméstica.

Violência doméstica: ressonância de outras violências

Para esta seção, apresentamos uma discussão dos efeitos da violência a partir
da experiência clínico-política de escuta no território do Coletivo de mulheres que
ora apresentamos, escuta realizada através do projeto de extensão universitária
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 175

mencionado no início deste trabalho. Para tanto, ressaltamos que não temos
a pretensão de dar conta teoricamente de todos os aspectos desse complexo
fenômeno que é a violência, e sim, sublinhar algumas questões que permitem
problematizar as suas estruturas, bem como o modo que estas atravessam histo-
ricamente determinados corpos e territórios no Brasil (Ribeiro 2019; Gonzalez &
Hasenbalg, 2022). Destacamos alguns elementos sobre os efeitos das múltiplas
violências, tomando como ponto de partida a hipótese de que a violência domés-
tica é também ressonância de outras violências que atravessam o laço social,
como o racismo, a misoginia, o machismo e a segregação que abandona e mata.
A primeira questão é o efeito da violência nas configurações familiares e
a importância de tentar compreender esses efeitos a partir do encarceramento
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da população periférica, predominantemente masculina, mas também femi-


nina. O encarceramento como política Estatal de enfrentamento à violência,
seja em situações de violência doméstica, ou prática de outros crimes que
envolvem violência, embora necessária, se mostra insuficiente para a produção
de segurança e paz. Ademais, no que tange ao encarceramento da população
periférica, tal estratégia que pretende combater a violência, pode ser questio-
nada por meio do fomento e reprodução de ações que incorrem, sobretudo,
na violência do racismo, tal como apontam as estatísticas que caracterizam
o perfil da população que mais é encarcerada no Brasil. Ao passo que solu-
ções penais são muitas vezes as únicas medidas disponíveis, não é exagero
afirmar que há gerações de crianças e jovens brasileiros que crescem sem a
proximidade com seus pais e mães.
Ante estas considerações, não pretendemos relativizar a necessidade de
medidas jurídicas no enfrentamento à violência, mas, sim, iluminar alguns
pontos: quem passa a se encarregar destes filhos e filhas que tem seus pais
encarcerados? ou ainda, de que maneira as mulheres terão outra condição
de vida após o afastamento de seus agressores? Em nossas idas ao território,
temos escutado uma geração de avós que ocupam o lugar de mães, quando
suas filhas, não raro sozinhas, tentam dar conta de trabalhar para sustentar os
filhos. As configurações familiares vão se dando por efeito da violência e isso
não é sem consequências sociais, econômicas e psíquicas. Netos que chamam
a avó de mãe, avós que chamam netos de filhos, cenário de um reordenamento
dos lugares familiares que nem sempre fica claro para as crianças, e que geram
efeitos para todos os envolvidos.
A violência também efetiva o rompimento de vínculos. “Adoções” irre-
gulares, paralelas às adoções geridas pelo Estado previstas em lei, também
acontecem com alguma frequência, precisamente por iniciativas comunitárias
para tirar as crianças de situações de violência. Para ilustrar o que temos nos
dedicado a problematizar, eis um fragmento de escuta: a comunidade envol-
veu-se com a situação de uma família na qual o casal era usuário de crack, com
176

uma relação de violência constante, sendo o homem suspeito de cometer abuso


sexual. O menino, filho desta mulher, sem registro de nascimento, aos cinco
anos vivia em péssimas condições sanitárias e educacionais, foi recebido por
uma família vizinha e registrado como filho de um de seus novos irmãos de
criação, seguindo sem o registro do nome da mãe na certidão de nascimento.
Claramente uma manobra para acolher uma criança quando as vias legais não
davam conta. Essa mulher, atualmente ainda na comunidade, segue em con-
tato com esse filho, embora sem condições de criá-lo. Ainda em uma relação
conjugal violenta, ela avalia que precisa ser internada para tratar a dependência
química, mas teme perder sua casa se dali se ausentar, pois seria saqueada ou
invadida, tal como geralmente acontece em residências não habitadas nestes

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territórios. No momento da escuta, essa mulher tinha em mãos um boletim de
ocorrência policial e uma intimação para uma audiência, na qual era ré por ter
batido no marido, ao que complementa: “ele é o João da Penha”.
Segundo ponto: na trama dessas violências, é comum que a dependên-
cia financeira de companheiros impeça o rompimento de relações abusivas,
muito mais do que motivos que poderiam receber uma leitura psicologizante,
por exemplo, a interpretação de que seria algo de ordem sintomática o que
acontece nas ocasiões de retorno ao cenário de violência. Nesse sentido,
apontamos que uma escuta que se pretenda não violenta precisa considerar
que a violência doméstica faz parte de um sistema que oprime mulheres: o
patriarcado. Assim, ao lado de leis de proteção às mulheres, é preciso que
enquanto sociedade nos ocupemos de outras estratégias de enfrentamento
a esse sistema, tal como as saídas propostas pelo Coletivo têm se mostrado
como alternativas possíveis, capazes de articular uma rede discursiva e a
prática de ações que possibilitam saídas efetivas às mulheres da condição
de violência: oficina de costura, brechó solidário, cursos de culinária, horta
comunitária, mutirão por vaga em creches, são algumas ações do Coletivo que
dão condições de autonomia às mulheres. Há no coletivo uma preocupação
com a categoria do cuidado com as mulheres, cuidado que é uma estratégia
ético-política de enfrentamento às estruturas de violência.
O terceiro ponto se refere ao sofrimento psíquico que resulta das expe-
riências de violência, tanto para as mulheres, quanto para seus filhos. Escu-
tamos uma mulher de quase 70 anos, atualmente ela é mãe e avó, mas foi no
lugar de filha que viveu as consequências da violência doméstica. Maria79 se
apresenta como tendo depressão e ansiedade e desde os 29 anos faz uso de
medicação psiquiátrica. Conta que seus pais eram alcoolistas e sofreu muito na
infância por causa disso. O pai era agressivo, ofendia sua mãe, e a mãe batia
nele. Maria pequena já cozinhava, pois não tinha quem fizesse a comida. Seu
79 Nome fictício.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 177

irmão mais velho lhe agredia. A mãe pedia que ela não contasse isso ao pai,
pois o pai mataria seu irmão. Por medo, Maria não contava. Sabemos que o
silenciamento também é uma forma de violência, mas hoje Maria pode contar.
Ela saiu de casa mudando-se para outra cidade ainda adolescente, e aos 18
anos casou-se, como forma de sobreviver. Logo teve filhos e sentia-se depri-
mida. Sem rede de apoio, Maria não tinha com quem deixar os filhos para ir
a consultas nas quais pudesse ser acompanhada em seu quadro de sofrimento
psíquico intenso, em vista disso passou a se automedicar com amostras de
remédios doados por um conhecido que trabalhava na indústria farmacêu-
tica. Maria se envolveu em um casamento com um homem violento, mas na
época não sabia que violência psicológica era uma forma de violência. Hoje,
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já separada e em outra relação, na qual dispõe de uma posição crítica sobre


a violência que sofreu como filha e como esposa, Maria consegue oferecer
aos descendentes outra possibilidade de laço, ocupando-se dos sofrimentos
que a violência causa e percebendo outras camadas da violência doméstica e
intrafamiliar que são efeitos das violências estruturais. Nesse sentido, Maria
relata que atualmente consegue perceber que o sofrimento de seu neto, por
não ser aceito pelos pais em sua sexualidade, que é homossexual, não é uma
questão particular de sua família, mas que o machismo é uma forma de vio-
lência que organiza as relações sociais e parametriza as relações de gênero.
Ante os pontos expostos e as reflexões feitas, compreendemos que o
engajamento ético-político do Coletivo de mulheres com a comunidade está
norteado por um eixo comum no qual o enfrentamento da violência ocorre a
partir do reconhecimento de que transformar as experiências de sofrimento de
cada uma se dá através da transformação das possibilidades de vida de todas.
O efeito da violência, para além do trauma, pode ser elaborado coletivamente
pela via de um despertar, a partir de uma posição crítica sobre a violência, que
a consciência política que o feminismo popular destas mulheres da periferia se
propõe a construir. Assim, por meio de um saber-fazer que temos testemunhado
nessa experiência de escuta, podemos afirmar que o enfrentamento da violência
deve ser, a um só tempo, particular e coletivo, privado e público, considerando
a lógica moebiana que opera na disposição topológica destes espaços.

Considerações finais

Importante retomarmos que a origem do feminismo no século XIX se


deu junto com a luta abolicionista e com outros movimentos e fenômenos
que ansiavam por transformações sociais, como a psicanálise, inclusive. Está
em sua matriz original o devir transformativo, ainda que sejam inúmeras
suas fragmentações e o risco de sua captura pela discursividade neoliberal e
178

capitalista. Como ressalta Márcia Tiburi (2023)80, é essencial que o feminismo


não se apresente como correntes, fragmentado, e nem unificado, mas disposto
a enfrentar um inimigo comum, que são os agentes do patriarcado.
A política afetiva que faz funcionar o patriarcado é o ódio, e o devir femi-
nista, em suas diversas possibilidades de articulação e lutas, é a possibilidade
de produção de novas configurações de mundo, a partir do enfrentamento da
visão tanática e necropolítica do patriarcado. Ainda hoje todas as mulheres
seguem na mira da violência. No entanto, é por meio da consciência das
estruturas de violência inscritas no território e no laço social brasileiro que
surge o desejo de transformação e a possibilidade de um outro comum, para
além do comum da violência sofrida.

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Circunscrever a violência doméstica à dimensão conjugal faz parte das
artimanhas do patriarcado e tal estratégia de poder está entranhada na lingua-
gem, tal como nos mostra o dito popular de que em briga de marido e mulher
“ninguém mete a colher”. A escuta clínico-política de mulheres que vivenciam
violências que se cruzam contra seus corpos e desejos, nos aponta que o espaço
doméstico é um espaço político, e o enfrentamento destas violências se faz ao
criar outras gramáticas e movimentos que coletivizam a questão.

80 Comunicação oral realizada em 24 de abril de 2023, na ocasião do curso “Feminismos”, ofertado e ministrado
pela autora.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 179

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A CRIANÇA E O CASAL
PARENTAL ENTRE A TUTELA
E A PROTEÇÃO ESTATAL
Eduardo Ponte Brandão81

No presente ensaio, propomos uma releitura das relações interpessoais


entre ex-parceiros amorosos que se atormentam judicialmente com os filhos em
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comum. A judicialização dessas relações resultam frequentemente no prolonga-


mento do sofrimento psíquico dos membros familiares, sobretudo, da criança
que ocupa um lugar peculiar em meio à dialética de desejo e de gozo do casal
familiar em litígio. Em vez da leitura ofertada pelo Direito, lançaremos mão da
noção de casal parental/familiar encontrada no célebre manuscrito de Lacan,
Nota Sobre a Criança (1969/2003), por meio da qual revisitaremos alguns
conceitos essenciais que possam apontar para a criança enquanto sujeito em
meio à tutela estatal que a própria família invoca sobre si própria.

Tutela e proteção nas famílias contemporâneas

Sabemos que a família se transformou vertiginosamente desde a segunda


metade do século XX, podendo ser destacado que, na definição dos laços de
parentalidade, as relações de consanguinidade cederam lugar para o registro da
socio afetividade. Outro aspecto importante de mudança foi a substituição do
pátrio poder pelo princípio de coparentalidade, através do qual a “autoridade
deve ser compartilhada entre o pai e a mãe no que se refere à educação do
filho” (Safouan & Hoffmann, 2016, p. 65).
Na tentativa de regular as obrigações e os direitos das relações familiares,
o direito de família procura moldar-se às novas configurações. Nesse contexto
de discussão, Vilardo (2019) assinala que novas leis vêm sendo promulgadas na

81 Psicanalista. Psicólogo Tribunal de Justiça/ RJ. Pós-Doutor em Psicanálise, saúde e sociedade/Universidade


Veiga de Almeida. Doutor em Teoria Psicanalítica/ UFRJ. Mestre em Psicologia Clínica/ PUC-Rio. Graduado
em Psicologia / UFRJ. Coordenador do curso de especialização em Psicologia Jurídica e de graduação em
Psicologia (em processo de aprovação) – UCAM. Organizador do livro “Psicanálise e Direito; subversões
do sujeito no campo jurídico” (ed. Nau), “Atualidades em Psicologia Jurídica” (ed. Nau), coorganizador do
livro “Psicologia Jurídica no Brasil” (ed. Nau) e autor do livro “Sexualidade e Aliança na Contemporaneidade:
Nem Édipo, nem Barbárie” (ed. Juruá).
Filiação Institucional: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ RJ) / Universidade Cândido Mendes (UCAM)
E-mail: eduardopbrandao@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2985708382633200
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3773-6575
182

tentativa de normatizar as situações familiares que continuam a se multiplicar


de forma célere no cenário contemporâneo. A exemplo disso, a autora cita
casais do mesmo sexo que querem constar na filiação as crianças concebidas
por técnicas de reprodução assistida ou, ainda, a inclusão do nome materno
por razões socioafetivas sem exclusão do nome da mãe biológica, ou seja, uma
dupla maternidade no registro do nascimento.
Entretanto, ao dar ênfase à dimensão afetiva, o direito de família procura
normatizar algo que se mostra refratário à racionalidade presente na doutrina
jurídica. Miranda Júnior e Marcos (2022) indicam que, apesar de o afeto ser
considerado essencial pelo direito para legitimar as relações familiares con-
temporâneas, há uma grande dificuldade em conceituá-lo. Assim, os autores

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sugerem que a psicanálise tem muito a contribuir para esse campo na medida
em que situa o afeto para além de sua dimensão imaginária, relacionando-o
com a demanda, o desejo e o gozo. A orientação psicanalítica permite, assim,
o trabalho de escuta do sujeito pelo(a)s psicólogo(a)s que assessoram os ope-
radores do direito, para além dos direitos e dos deveres dos jurisdicionados:

No campo do tratamento das relações familiares em termos judiciários, o


direito e suas instituições acionam outras ciências e conhecimentos para
auxiliá-lo e comumente se busca a psicologia e o trabalho do psicólogo. Fica a
cargo desses profissionais dizer sobre a veracidade do afeto [...]. Tarefa inter-
minável se não se puder, de algum modo, considerar na família o desejo e a
sua contingência, que não têm possibilidade de mensuração e não se orientam
pelo ideal de justiça (Miranda Júnior, H. C. & Marcos, C. M., 2022, p. 526)

Podemos acrescentar que a tentativa de normatizar as alianças familiares


através dos afetos pode resultar numa tutela punitiva sobre os pais, filhos e
outros familiares. Em que pese a intenção do juiz de Família de proteger a
criança e/ou o adolescente em seu direito inalienável à convivência familiar,
o seu ato decisório pode ter como efeito a desagregação dos vínculos entre os
membros familiares e a ampliação do sofrimento psíquico entre as gerações.
Seguindo esse raciocínio, Nunes e Penna (2019) apontam para o fato de que
o princípio do melhor interesse da criança serve de instrumento legal para
separar, remodelar ou até mesmo agrupar uma nova família (por exemplo,
nos casos de adoção). No entanto, ao se indagarem se a intervenção judicial
pode ou não produzir uma família, os autores concluem:

As intervenções judiciais não teriam em si o efeito de inscrever psiqui-


camente as funções parentais — algo que só pode ser balizado na escuta
do caso a caso. O que não quer dizer que a sentença judicial seja sem
efeitos. Ao se deparar com a delimitação de uma família pela via jurídica,
o sujeito é confrontado com um real com o qual terá que se haver e que
lhe convocará à invenção de uma resposta. (Nunes e Penna, 2019, p. 99)
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 183

Ainda segundo os autores, a escuta analítica é aquela que permitirá o


sujeito buscar o singular de sua constituição familiar, assumindo a sua implica-
ção na cadeia genealógica, cuja tarefa não é atributo exclusivo da intervenção
judicial e estatal.
Nas situações de litígio familiar, a tutela estatal é evocada por ao menos um
de seus membros que, ao demandar a intervenção do judiciário, espera resolver
os impasses quanto ao exercício da parentalidade, atribuindo tais embaraços ao
ex-parceiro(a) amoroso(a). Uma vez formalizada a demanda dirigida ao Judi-
ciário, surge a equação espinhosa entre a tutela estatal e a proteção integral dos
direitos da criança e do adolescente, de um lado e de outro, a autonomia que se
espera da família para solucionar as suas próprias dificuldades.
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Tal dilema é exposto por Montezuma, Pereira e Melo (2017) na abor-


dagem sobre um dos temas atualmente mais centrais do direito de famí-
lia brasileiro, a saber, a alienação parental. Senão vejamos. No Brasil, a lei
12.318/2010 (alterada pela lei 14.340/2022) dispõe sobre a alienação parental,
definindo-a, em seu artigo 2o, como “a interferência na formação psicológica
da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores,
pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autori-
dade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”. Trata-se de um tema
controverso, sem consenso entre os operadores do direito e os profissionais
que os assessoram, cuja base epistemológica é bastante frágil e que, portanto,
costuma gerar diversas formas de entendimento, boa parte delas carregadas
de preconceito e julgamento moral.
Embora a alienação parental não seja o foco deste ensaio, a discussão
suscitada pelos autores nos é importante haja vista o seguinte questionamento:
quando a interferência estatal se faz necessária diante da violação do direito
da criança e do adolescente à convivência familiar, “como proteger o indiví-
duo da violência doméstica, sem, entretanto, incorrer no âmbito da violência
institucional por meio da medicalização e da dominação do Estado?” (Mon-
tezuma; Pereira e Melo, 2017, p. 1207). A solução encontrada pelos autores
não é outra coisa senão responsabilizar os sujeitos em seus atos como forma
de resolução dos conflitos judiciais. Para tanto, sugerem como instrumento
“a mediação e a nova lei da GC [Guarda Compartilhada], juntamente com
abordagens clínicas como as de orientação psicanalítica” (Montezuma; Pereira
& Melo, 2017, p. 1220-21).
Observamos o consenso entre todos os autores acima de que a psica-
nálise oferece importantes contribuições para o direito de família, sobre-
tudo, no que tange às intervenções do Estado frente às situações de litígio.
As famílias avocam a tutela estatal e a intervenção judicial sobre os seus
próprios membros, havendo da parte do direito uma grande dificuldade em
184

contornar os afetos e o sofrimento psíquico que tais conflitos induzem. O


enfrentamento desse dilema está conectado à dificuldade de equacionar os
registros da tutela, proteção e autonomia, cujo desequilíbrio pode acarretar
uma desagregação dos laços familiares em vez de promover a tão desejada
convivência entre a criança e seus pais.

O casal, o pai e a criança

Os sujeitos que recorrem ao poder judiciário são frequentemente desig-


nados no contexto jurídico como partes litigantes, ou seja, oponentes em torno
de um conflito legal, de modo geral referente à guarda e/ou à convivência

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dos filhos em comum. No entanto, o que mais se destaca ao escutá-los é o
sofrimento psíquico, pouco importando se é o autor ou réu da ação, com a
particularidade de se tratar de um sofrimento enredado com questões judiciais.
Em vez de interpretar os conflitos subjetivos e interpessoais através da
semântica do direito, daremos importância à noção de ‘casal familiar’, termo
utilizado por Lacan em Nota Sobre a Criança (1969/2003), visando descor-
tinar outros vieses de leitura para o mal-estar presente na disputa do casal,
separado, em torno da criança e/ou do adolescente. Nesse contexto, a criança
ocupa uma posição muito especial em meio à dialética de desejo e gozo do
casal familiar que, uma vez rompido o laço amoroso, se atormenta através
de disputas judiciais que se eternizam e se mostram refratárias às decisões
tomadas pela autoridade judicial.
A noção de casal familiar articula ao mesmo tempo as funções simbó-
licas materna e paterna, bem como as posições sexuadas de gozo masculino
e feminino, não necessariamente representadas respectivamente por mães/
fêmeas e pais/machos.
Segundo Geocze et al. (2016), o uso do termo “casal parental/familiar”
por Lacan refere-se às posições necessárias para que uma transmissão sim-
bólica se opere no nível da família, trazendo a marca da questão sexual na
constituição do sintoma da criança. Conforme os próprios autores observam,
o texto da Nota... é contemporâneo ao seminário O Avesso da Psicanálise
(1969-1970), de tal forma que Lacan contou com o desenvolvimento de con-
ceitos importantes em seu ensino, sobretudo, o objeto a e o registro do Real.
Com a formalização desses conceitos, pode-se dizer que a verdade do casal
familiar é que ele não funciona bem e que claudica: “A claudicação do sexo
é consequência do fato que não há relação sexual; apesar disso, há um casal
familiar que se relaciona com o sintoma da criança” (Geocze et al., 2016, p.
115). Onde os autores concluem que, em vez da (não) relação sexual, advêm
os filhos e sintomas.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 185

Para Lacan, a família corresponde a um resíduo indispensável para a


constituição subjetiva, além ou aquém dos aspectos imaginários que, vale
dizer, comumente encontramos nos processos judiciais de guarda e convivên-
cia e que são utilizados amiúde para se atacar um ao outro: a mãe “negligente”,
“alienadora”, o pai “abusivo”, “ausente” etc.
A função residual da família, constitutiva da criança enquanto sujeito,
é veiculada por “um desejo que não seja anônimo”, sendo o que articula ao
mesmo tempo a função materna, isto é, “um interesse particularizado, nem
que seja por intermédio de suas próprias faltas”, e a função paterna, “vetor de
uma encarnação da Lei no desejo” (Lacan, 1969/2003, p. 369).
O pai corresponde a um significante designado como Nome do Pai, sendo
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aquele que interdita a relação incestuosa entre a mãe e a criança, permitindo com
que esta última é seja inserida no circuito da demanda e das trocas simbólicas.
Tal significante paterno é veiculado através do desejo materno que valoriza
a palavra daquele(a) que representa a lei simbólica. Para tanto, é aberta uma
hiância entre o Outro materno e o bebê que, apesar de seu empenho para se
colocar como falo imaginário, extraindo satisfações poderosas de sua mamãe,
ainda assim não consegue tamponar o seu desejo. Alienada ao desejo do Outro,
a criança vê-se às voltas com a falta de significante que responda por pelo seu
ser. Logo, ela interpreta que o desejo da mãe está dirigido a um terceiro que
será aquele que representará a metáfora paterna. Desse modo, a força motriz de
entrada da metáfora paterna é o desejo materno, não sendo forçado por algo exte-
rior a esse Outro primordial da criança, pois depende exclusivamente do desejo.
Safouan e Hoffmann (2016) acrescentam que o futuro do desejo para a
criança depende não apenas do peso que a mãe confere ao nome do pai, mas
ainda do modo como este último lida com a lei, ou seja, como alguém que
dela se autoriza e à qual ele próprio é submetido. Todo pai, do ponto de vista
de seu valor simbólico, é inferior a seu ofício, ou seja, à função que se espera
dele, havendo um hiato estrutural e irresolvível entre a pessoa do pai real e
a figura simbólica do pai.

A função paterna nos dias de hoje

Embora o pai permaneça em uma posição degradante, de insuficiência,


Pombo (2018) ressalta que Lacan não associa essa característica da função
paterna a uma crise do patriarcado na família, mas a condições estruturais.
Tal observação é importante na medida em que a concepção de Pai presente
no Édipo tornou-se alvo das críticas feministas que influenciaram a crise mais
geral do patriarcado na década de 60.
Nesse contexto, Pombo (2018) assinala que, no cenário psicanalítico fran-
cês, ocorreu uma cisão entre duas vertentes opostas. A primeira associa a crise
186

do patriarcado à crise da função paterna, acreditando que esta última dependa


da hierarquia entre o pai e a mãe, inclusive no campo das leis, capaz de legi-
timar a autoridade paterna para mediar a relação entre a mãe e a criança. Por
sua vez, a segunda tendência compreende que a função paterna corresponde
a certo contexto sócio-histórico, de tal maneira que boa parte de seus pressu-
postos podem ser revisados em face das mudanças culturais. Tal perspectiva
considera a primeira vertente como aquela que, ao fazer uso de uma versão
a-histórica dos conceitos psicanalíticos, não visa senão reforçar a moralidade
e a ordem predominante, além de criar modalidades de desvio na atualidade.
Numa linha de raciocínio diferente, Zenoni (2007) aponta que o questio-
namento contemporâneo das hierarquias e desigualdades tende a considerar a

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questão do pai como uma preocupação ultrapassada, principalmente se houver
a tentativa de validar ou de restaurar certa concepção de poder. Donde o autor
pergunta: “a contribuição da psicanálise sobre a noção e a função do pai pode
ainda ser pertinente, nesse contexto de questionamento de tudo que evoque
as noções de hierarquia e de diferença?” (Zenoni, 2007, p. 16).
A partir desse questionamento, Zenoni aponta para o deslocamento feito
por Lacan em seu ensino sobre o pai. Em vez do Nome-do-pai, universal,
alicerce da ordem simbólica e portador da interdição, Lacan elabora em seus
últimos seminários uma versão do pai ligado ao campo ao gozo, contingente
e histórico, sendo aquele que se multiplica à exceção da lei em tantos nomes
quantos forem os suportes à sua função. Há vários Nomes-do-Pai na medida
em que nenhum deles é absoluto, ao contrário, são todos semblantes que, em
última instância, vela a inconsistência do Outro. Em suma, o Nome-do-Pai
desloca-se no pensamento de Lacan do fundamento da Lei simbólica para a
multiplicidade de suplentes que têm papel de fundamento da lei.
Nesse contexto, Lacan chama esse modo de se dirigir ao pai de “pai-ver-
são” [père-version, em francês, homônimo de perversion], como relação do
filho com o pai, no qual o primeiro se priva do gozo por amor ao segundo.
Donde ele define o pai como aquele que “tem direito ao respeito, senão ao
amor”, a partir do desejo cuja causa é uma mulher (Lacan, 1974-1975, p.
107-108). Dito de outro modo, um pai deve a sua existência por enfrentar a
questão do gozo de uma mulher e feito dela o objeto a que causa seu desejo.
Em vez do universal da lei, trata-se do “um por um” dos sujeitos que se dizem
pais, ou seja, da exceção que qualquer um pode fazer para que a “função da
exceção se torne modelo” (Lacan, 1974-1975, p. 107). É, portanto, a dimensão
de gozo que define o pai, cuja perversão está surpreendentemente no fato de
ter como causa de seu desejo uma mulher que é mãe de seus filhos.
O objeto a, compreendido como objeto causa de desejo e, depois, como
mais-gozar, é o que define a paternidade. Por meio do um por um que cada pai
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 187

realiza como homem em relação a uma mulher, o Nome-do-Pai pluraliza-se na


mesma medida em que enoda os três registros do real, simbólico e imaginário.
A partir dessas considerações, podemos deduzir que a aproximação entre
lei jurídica e função paterna que associe esta última diretamente aos atos deci-
sórios do juiz e a incidência do interdito no Outro materno, pode incorrer num
equívoco grosseiro, quando não numa tentativa sorrateira de restaurar a ordem e
a moralidade preponderante. Em vez disso, é importante destacar que a inscrição
da função paterna ocorre pela via do desejo, cuja opacidade abre uma hiância
entre a criança e a mãe. Ou seja, não ocorre por imposição externa da lei jurídica,
muito embora esta não seja sem efeito subjetivo. Além do mais, é necessário
incluir a dimensão do gozo na formulação do que seja o Pai para o sujeito criança.
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Famílias em conflito, o gozo e as leis

Como observam Safouan e Hoffmann (2016), o gozo é subordinado ao


direito, de tal maneira que ser proprietário de um objeto é ter o direito de gozar
dele. É exatamente como Lacan desenvolve no seminário 20 como sendo a
função do direito, a saber, “repartir, distribuir, retribuir o que diz respeito ao
gozo” (Lacan, 1972-3/1985, p. 11). Tal gozo está relacionado ao usufruto
do objeto, do qual “podemos gozar de nossos meios, mas que não devemos
enxovalhá-los” (idem). Em outras palavras, podemos usufruir a posse e gozar
do objeto desde que não seja achincalhado, desprezado, humilhado. Seguindo
esse raciocínio, no contexto judicial de família, o direito de família tem como
função repartir o gozo sobre a criança desde que ela não seja enxovalhada por
aqueles que avocam as funções parentais.
Sauret (2017) assinala que, no cenário contemporâneo, há uma recusa dos
pais em assumirem as funções parentais. Dessa maneira, ele observa em sua
experiência clínica a existência de homens e mulheres cujos filhos são vistos
como rivais, estorvos, amigos, cúmplices ou até mesmo objetos sexuais. Por sua
vez, as coisas se apaziguam somente quando esses adultos abandonam o lugar de
filhos, consentindo na perda de objeto que eles são para o Outro. Dito de outro
modo, a ascensão do sujeito para as funções parentais passa pelo viés da castração.
Quando ocorre a ruptura do ninho familiar, há sempre o risco de o outro
familiar se ausentar. Tal demissão “educativa” exigirá da criança um esforço
subjetivo. Com efeito, ela responderá com seu sintoma ou através de outras
formas de sofrimento psíquico, denunciando que, como vimos acima, algo não
vai bem no laço conjugal-familiar e que faz indagar sobre a sua falta-a-ser.
O que poderia ser interpretado como a denúncia inconsciente da criança a
respeito da divisão do casal familiar, cuja falha é estrutural, acaba ganhando os
contornos do direito num contexto de judicialização. Com efeito, um ou outro
ex-parceiros amorosos recorrem à instância jurídica como forma de suplência
188

ao Nome-do-Pai. O sintoma que a criança manifesta, cuja verdade representa


a verdade do casal familiar, ganha a partir de então nuances do Direito.
A família recorre às ficções ofertadas pelo Direito como forma de suplên-
cia. Conforme diz Lacet (2004), embora noutro contexto de discussão, “a
suplência é uma tentativa de manter unidos R, S, I, [Real, Simbólico, Ima-
ginário] a partir de um quarto termo, que Lacan identifica como sendo o
Nome-do-Pai, aquele que diferencia e, ao mesmo tempo, mantém unidos os
três registros” (Lacet, 2004, p. 16)
Todavia, quando observamos os argumentos que compõem os litígios
familiares, deparamo-nos frequentemente com o logro imaginário que nor-
malmente obedece a seguinte lógica: o sujeito responsabiliza o outro pelo

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“fracasso” da vida amorosa e pelos impasses estruturais da função parental
que ocupa em relação à criança, ao mesmo tempo em que esta última é colo-
cada como vítima por não usufruir dos atributos narcísicos com os quais ele
próprio se infla. Obviamente estamos descrevendo um fenômeno que não
retrata a totalidade dos casos, nem tampouco estamos menosprezando a justa
reinvindicação do direito à convivência familiar.
Sem dúvida central, há aquelas situações nas quais a criança é afastada
da convivência de familiares de referência por pressão daquele(a) que exerce
o poder sobre ela, causando a ela sofrimento psíquico e prejuízo ao seu desen-
volvimento. É bastante perturbador quando a criança visivelmente reproduz
os ditos que ela ouviu a respeito de seu pai ou de sua mãe, tomando-os como
alguém que a tivesse agredido ou violado, que a ameaça, que a odeia e, por
isso, devesse ser também objeto de seu ódio, sem que, contudo, nada disso
pareça corresponder à realidade. Não obstante, as razões que presidem uma
situação dessas são complexas e amiúde de caráter multifatorial, devendo ser
investigado invariavelmente o caso a caso.
Em sendo assim, os conceitos pertencentes à doutrina jurídica atendem às
necessidades dos operadores do direito. Estes últimos visam solucionar os confli-
tos que são interpretados de acordo com uma semântica própria que se afasta do
sofrimento experimentado por aqueles sujeitos que buscaram a intervenção e a
tutela estatal. Assim, passa-se ao largo dos apontamentos que deveriam promover
a retificação subjetiva diante do conflito familiar - conjugal no qual cada um se
atormenta e, sobretudo, com o qual o sujeito goza no cenário de sua fantasia.
Tais apontamentos seriam decorrentes de uma escuta analítica que permiti-
ria, assim, aos pais desprenderem-se da fascinação e dos logros imaginários que,
inclusive, as próprias ações judiciais promovem. Há o predomínio do imaginário
desde a demanda que o sujeito dirige ao judiciário, como se escuta p. ex. que a
intenção da ação judicial foi fazer com que o(a) ex-companheiro(a) “mudasse”
ou “entrasse na linha”. Como se não bastasse, tal primazia do imaginário costuma
percorrer todo o processo litigioso, no qual uma das partes se eleva ao patamar de
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 189

“pai” e “mãe” ideal para acusar o outro que, então, é rebaixado como uma pes-
soa absolutamente nociva e perigosa para os filhos. Por fim, é também o mesmo
registro que parece prevalecer quando juiz profere a sentença como se fosse uma
fórmula mágica capaz de solucionar o conflito e o sofrimento familiar, quando
p. ex. decide que nas duas primeiras semanas, o pai visitará o filho aos sábados e
domingos de tal a tal hora, e que nas semanas seguintes os horários serão amplia-
dos até conseguir finalmente haver o pernoite com as crianças, além dos feriados
e das férias escolares. Há nisso tudo um cálculo imaginário que, uma vez calcado
num ideal de harmonia familiar, em nada dialoga com as consequências da ine-
xistência da relação sexual – no sentido da psicanálise – entre o casal parental.
Não basta aplicar a lei, pura e simplesmente, sem escutar os sujeitos
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mergulhados no sofrimento judicial, e sem tampouco considerar o lugar ocu-


pado pela criança em meio à dialética do casal familiar que se atormenta com
ela. No entanto, as decisões monocráticas da autoridade judicial acabam,
frequentemente, se apoiando em punições contra aquele(a) que supostamente
impede a convivência familiar.
Certamente a força coercitiva da lei pode ser estruturante em alguns conflitos
familiares, entretanto, em outras situações pode ter o efeito de prolongar infini-
tamente o litígio. Há casos em que a criança se vê forçada, como uma pressão
externa, a conviver com aquele(a) que é objeto de seu ódio ou temor, uma vez
não terem sido identificados pelo Juiz nem pelas equipes técnicas motivos con-
cretos e razoáveis para justificar tamanho repúdio. Não obstante, é importante
lembrar que estamos lidando com sujeitos do inconsciente, bem como com o
caráter inercial de gozo. Com efeito, nessas situações os atos decisórios parecem
tão somente intensificar os afetos de hostilidade da criança, no sentido contrário
da “boa vontade” dos operadores do direito em solucionar a dor familiar.
O inconsciente corresponde a um furo no campo dos significantes orga-
nizados pela ordem social, através do qual o sujeito advém e subverte as
identidades que a sociedade busca para representá-lo (Elia, 1999). Portanto,
diante da resistência a obedecer aos ordenamentos judiciais, é preciso escu-
tarmos o sujeito do inconsciente em vez de ser simplesmente avaliar e julgar
sua conduta como um capricho egoísta ou uma birra infantil.
Por mais que os atos decisórios da autoridade judicial pertinentes à criança
sejam orientados pela concepção doutrinária de que ela é um sujeito de direitos,
na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, isso não significa que
ela esteja sendo escutada e acolhida como sujeito de desejo. Assim, as práticas
judiciais acabam tomando-a, paradoxalmente, como objeto, sem que ela tenha
verdadeira oportunidade de ser escutada ao invés de simplesmente ser falada
pelos operadores do direito, pelas equipes técnicas e por seus familiares.
Elia (2016) observa que a captura da criança como objeto esvazia o seu
potencial de responsabilidade, o que não ocorreria caso fosse tomada como
190

sujeito. Entretanto, não se trata de uma equação simples, pois o direito e a


psicanálise possuem concepções distintas de responsabilidade. Com efeito, o
ato de implicar a criança na responsabilidade de sua posição subjetiva ultra-
passa a tutela protetiva do Estado:

“A relação sujeito/Estado só pode ser apropriadamente concebida, do


ponto de vista psicanalítico [...], se o real em jogo nela, nessa relação, for
incluído. O sujeito – no caso o sujeito-criança – jamais poderá ser inteira-
mente recoberto por qualquer operação do Estado – sejam suas políticas
públicas para a infância, sejam suas medidas protetivas, sejam as concep-
ções adotadas pelo Estado para nortear suas ações” (Elia, 2016, p. 170).

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O autor conclui que haverá sempre um hiato intransponível e uma tensão
irremediável entre a tutela estatal e o discurso psicanalítico. Nem por isso a
psicanálise deixa de dar importantes contribuições para a proteção estatal, haja
vista que a criança terá suporte no laço social mediante o seu reconhecimento
como sujeito do inconsciente, e não apenas de direito (Elia, 2016).

Conclusão

O difícil equilíbrio entre tutela e proteção estatal nas situações de con-


flito e sofrimento judicial de famílias divorciadas que se atormentam com a
guarda e a convivência de seus filhos esbarra em algumas dificuldades, entre
os quais, o predomínio com o que o registro imaginário preside não só o modo
como cada pai ou mãe se coloca na cena judicial, bem como nas decisões
que magistrados tomam na tentativa de solucionar o conflito. No entanto, é
preciso levar em conta o real da não relação sexual frente ao qual cada sujeito
poderá assumir outra posição subjetiva em relação à situação de conflito e de
sofrimento do qual tanto se queixa, em vez de culpabilizar o ex-parceiro(a)
amoroso(a) pelos fracassos conjugais e impasses da parentalidade.
Nesse cenário de disputa judicial, a criança costuma manifestar sinto-
mas ou outras formas de sofrimento que denunciam algo que não vai bem
e claudica no casal familiar. Embora trate-se de algo de ordem estrutural, a
judicialização das relações interpessoais acaba dando os contornos da semân-
tica do Direito ao que poderia ser interpretado à luz do inconsciente.
Cabe ao Direito repartir e distribuir o gozo sobre a criança sem que, com
isso, aqueles que avocam as funções parentais a violem, a violentem, a humi-
lhem. No entanto, é necessário que os pais abdiquem de seu gozo de modo a
permitir a inscrição da criança como sujeito no laço social. Somente por essa
via é que acreditamos que a tutela estatal possa dar lugar para a autonomia
dos sujeitos que compõem a família.
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 191

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ÍNDICE REMISSIVO
A
Adolescentes 23, 60, 81, 82, 83, 86, 87, 90, 93, 94, 97, 100, 102, 105, 123,
135, 139, 140, 141, 146, 149, 150, 151, 153, 155, 156, 157, 158, 159, 160,
161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169
Apoio 17, 24, 67, 90, 91, 133, 154, 155, 156, 159, 162, 163, 177
Aprendizagem 51, 139, 147, 148, 149, 150, 151, 153, 154
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B
Brasil 3, 18, 24, 28, 46, 60, 64, 73, 79, 81, 83, 89, 92, 93, 99, 100, 101, 105,
108, 121, 123, 137, 140, 141, 151, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 162,
168, 170, 172, 175, 180, 181, 183, 197

C
Cidadania 64, 83, 162, 165, 166
Covid 50, 139, 141, 152, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164,
165, 166, 167, 168, 169, 170
Crianças 23, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 50,
51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 60, 63, 66, 67, 68, 69, 76, 77, 78, 83, 86, 88, 90,
93, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 123, 124, 125, 127, 128, 129, 130, 131,
133, 135, 137, 139, 140, 141, 146, 147, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155,
156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 172,
175, 182, 189, 191
Cultura 19, 38, 49, 63, 64, 81, 95, 99, 107, 113, 114, 120, 123, 162, 163,
174, 179, 197

D
Dialética 36, 79, 181, 184, 189

E
Estatuto 37, 99, 108, 111, 149, 156, 158, 168
Estudos 18, 24, 25, 49, 63, 71, 90, 123, 136, 139, 150, 154, 155, 156, 159, 197

H
Humanos 17, 18, 35, 83, 89, 99, 110, 112, 119, 123, 140, 154, 162, 165,
166, 169
194

L
Lei 4, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 39, 58, 64, 65, 79, 82, 89, 99,
100, 103, 104, 105, 108, 120, 123, 140, 146, 151, 156, 158, 160, 161, 162,
163, 168, 175, 183, 185, 186, 187, 189
Lei Maria da Penha 17, 18, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 64, 79, 123, 140, 151

M
Mãe 30, 31, 32, 33, 34, 36, 39, 40, 41, 42, 44, 49, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62,
66, 67, 68, 69, 70, 72, 73, 75, 76, 77, 78, 82, 86, 88, 92, 93, 100, 101, 102,
104, 105, 106, 110, 111, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133,

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134, 136, 137, 155, 159, 163, 164, 175, 176, 177, 181, 182, 185, 186, 187,
188, 189, 190
Manifestação 21, 55, 76, 80, 132, 134, 142
Morte 17, 19, 64, 68, 76, 77, 103, 104, 107, 109, 110, 111, 114, 115, 116,
117, 118, 119, 141, 142, 144, 155, 159, 172
Mulheres 18, 19, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 40, 50, 51, 52, 56, 75, 81, 82, 83,
84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 92, 93, 94, 95, 110, 123, 141, 151, 159, 171, 172,
173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 187

O
Orfandade 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167,
168, 169

P
Pai 31, 32, 36, 39, 40, 41, 44, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 66, 67, 69, 70, 71, 72,
73, 75, 80, 101, 104, 107, 110, 111, 113, 115, 125, 127, 128, 129, 131, 132,
133, 155, 159, 164, 176, 177, 181, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192
Pandemia 50, 110, 141, 152, 154, 155, 156, 159, 160, 164, 168
Pequeno 59, 94, 105, 108, 126, 127, 129, 130, 134, 135, 160, 164, 168
Psicanálise 4, 29, 46, 49, 51, 56, 61, 63, 71, 75, 76, 79, 80, 81, 85, 86, 94,
95, 96, 103, 107, 108, 109, 110, 112, 114, 115, 118, 119, 120, 121, 123, 124,
130, 134, 135, 140, 141, 142, 146, 147, 149, 151, 152, 153, 171, 177, 181,
182, 183, 184, 186, 189, 190, 191, 192, 197
Psicológicas 80, 96, 102, 120, 136, 152
Público 65, 100, 101, 111, 125, 155, 156, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164,
165, 167, 172, 173, 177
DESTINOS TRÁGICOS EFEITOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PARA AS FILHAS E OS FILHOS 195

R
República 25, 26, 27, 161, 168

S
Silêncio 33, 35, 41, 46, 67, 69, 73, 145
Sociedade 19, 24, 81, 82, 88, 89, 94, 120, 140, 150, 160, 163, 165, 166, 176,
181, 189
Sofrimento 17, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 42, 44, 50, 51, 52, 59, 60, 64, 70, 73,
75, 80, 82, 86, 87, 94, 97, 99, 125, 128, 131, 132, 133, 135, 146, 157, 164,
174, 176, 177, 181, 182, 184, 187, 188, 189, 190
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Subjetividade 49, 72, 75, 93, 143, 197

V
Vida 18, 20, 24, 31, 59, 63, 64, 66, 69, 70, 75, 77, 79, 82, 84, 87, 88, 89, 92,
94, 95, 100, 102, 103, 104, 109, 110, 111, 112, 114, 116, 117, 118, 119, 124,
126, 128, 129, 133, 134, 135, 141, 142, 145, 146, 148, 156, 160, 161, 163,
164, 173, 174, 175, 177, 188
Violência 3, 4, 7, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 33,
34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 47, 49, 50, 51, 52, 56, 60, 63, 64,
65, 66, 67, 69, 70, 72, 73, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 86, 88, 89,
90, 92, 93, 94, 95, 96, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 117, 118, 119, 121, 123,
124, 125, 126, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 139, 140, 141, 142, 143, 144,
145, 146, 147, 148, 150, 151, 152, 153, 154, 163, 171, 172, 173, 174, 175,
176, 177, 178, 180, 183, 191, 197
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DADOS DE AUTORAS E AUTORES

Leônia Cavalcante Teixeira


Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Uni-
versidade de Fortaleza (UNIFOR). Dra. em Saúde Coletiva (UERJ) com
pós-doutorado em Psicologia na Universidade Aberta de Lisboa. Psicóloga
e psicanalista. Membro do LAEpCUS – Laboratório de Estudos sobre Psi-
canálise, Cultura e Subjetividade; do GT “Psicanálise, política e clínica”
da ANPEPP; da Rede Internacional Coletivo Amarrações – Psicanálise &
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Políticas com Juventudes; e do MCVI – “A universidade na prevenção e no


enfrentamento da violência no Ceará”. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: leonia.
ct@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0037242106948921.
OrcID: https://orcid.org/0000-0002-4997-5349

Leonardo Danziato
Prof. Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
de Fortaleza (Unifor); Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Psica-
nálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS); Psicanalista.

Ana Cláudia Coelho Brito


Professora da graduação do Curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza.
Doutoranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
Mestre em Educação pela Universidade Internacional de Lisboa.
Membro do LAEpCUS – Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura
e Subjetividade.
Psicóloga do hospital Instituto Dr José Frota.
E-mail accbrito@unifor.br
OrcID: https://orcid.org/0000-0002-9839-775X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0142878056256086

Jean-Luc Gaspard
Psicanalista, Professor Universitário de Psicopatologia.Université Rennes II
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SOBRE O LIVRO
Tiragem Não Comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

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