Violência de Gênero - Aportes Conceituais e Estratégias de Enfrentamento

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Leônia Cavalcante Teixeira
Leonardo José Barreira Danziato
Danielle Maia Cruz
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Jean-Luc Gaspard
(organizadores)
VIOLÊNCIA DE GÊNERO – APORTES

CONCEITUAIS E ESTRATÉGIAS
DE ENFRENTAMENTO
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem da capa: “Mulheres profanadas”, de Maria do Socorro Montezuma Bulcão
Revisão: Os Autores
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

V795
Violência de gênero – aportes conceituais e estratégias de enfrentamento / Leônia Cavalcante

Teixeira, Leonardo José Barreira Danziato, Danielle Maia Cruz, Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz,
Jean-Luc Gaspard (organizadores.). – Curitiba : CRV, 2022.
248 p.
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-3278-5
ISBN Físico 978-65-251-3277-8
DOI 10.24824/978652513277.8
1. Psicologia 2. Violência de Gênero 3. Violência contra a Mulher 4. Saúde – Políticas

Públicas I. Teixeira, Leônia Cavalcante, org. II. Danziato, Leonardo José Barreira, org. III. Cruz,
Danielle Maia, org. IV. Tomaz, Jerzuí Mendes Tôrres, org. V. Gaspard, Jean-Luc, org. VI. Título
VII. Série.
2022-26852 CDD 362.83

CDU 364.27-055.25
Índice para catálogo sistemático
1. Violência de gênero – mulher – 362.83
ESTA OBRA TAMBÉM SE ENCONTRA DISPONÍVEL EM FORMATO DIGITAL.

CONHEÇA E BAIXE NOSSO APLICATIVO!
2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Alexsandro Eleotério Pereira de Souza (UEL)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Luciene Alcinda de Medeiros (PUC-RJ)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Maria Regina de Avila Moreira (UFRN)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Patrícia Krieger Grossi (PUC-RS)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Regina Sueli de Sousa (UFG)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Solange Conceição Albuquerque
Carmen Tereza Velanga (UNIR) de Cristo (UNIFESSPA)
Celso Conti (UFSCar) Thaísa Teixeira Closs (PUC-RS)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Vinícius Ferreira Baptista (UFRRJ)
Três de Febrero – Argentina)

Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Élsio José Corá (UFFS)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR)
Gloria Fariñas León (Universidade
de La Havana – Cuba)
Guillermo Arias Beatón (Universidade
de La Havana – Cuba)
Helmuth Krüger (UCP)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
às mulheres
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Fundação Edson Queiroz e à Universidade de Fortaleza
que, através da sua Vice-Reitoria de Graduação e Pós-Graduação, financiou
o projeto de pesquisa a partir do qual foi possível produzir a presente obra.
Agradecemos também a todas as autoras e a todos os autores, não só
pela participação com o envio dos seus capítulos, mas também pela parceria
e disponibilidade para o trabalho, desde a participação no curso de extensão
“Capacitação para o Enfrentamento da Violência de Gênero”, que se confi-

gurou como um primeiro passo para a origem deste livro.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
ENFRENTAMENTOS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO UMA
ÉTICA DO CUIDADO�� 15
Danielle Maia Cruz

Jean-Luc Gaspard
1ª SEÇÃO
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E INSTITUIÇÕES
CAPÍTULO 1
DECLINAÇÕES DAS VIOLÊNCIAS E SEUS ENFRENTAMENTOS:
crônica de um (des)caso�� 25
Cristina Moreira Marcos
Edwiges de Oliveira Neves
Bruna Hallak
CAPÍTULO 2
PARADOXOS NA ESCUTA PSICANALÍTICA DE MULHERES EM
SITUAÇÃO DE RUA�� 41
Sandra Djambolakdjian Torossian
Luísa Susin dos Santos
Daniel Araujo dos Santos
CAPÍTULO 3
PSICANÁLISE E JUSTIÇA: articulações sobre uma práxis que se
ocupa do imundo�� 53
Aline Lima Tavares
Sonia Alberti
2ª SEÇÃO
ESTRATÉGIAS SUBJETIVAS, SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS
DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
CAPÍTULO 4
A CONSTRUÇÃO DE UM COLETIVO DE MULHERES QUE
SOFREM VIOLÊNCIA DE GÊNERO: uma escolha política pela vida�� 63
Cláudia Maria Perrone
Rose Gurski

Gabriela Gomes da Silva
Flávia Tridapalli Buechler
CAPÍTULO 5
RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA DE COIBIÇÃO
DA VIOLÊNCIA�� 79
Rafael Kalaf Cossi
CAPÍTULO 6
COMO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO APARECE NO MATERIAL
ONÍRICO E NOS PROCESSOS ASSOCIATIVOS EM UM GRUPO DE
PARTILHA DE SONHOS�� 89
Jaquelina Maria Imbrizi
Jussara de Souza Silva
Gabriela Corrêa Ramos
Luísa Segalla de Carvalho
Juliana Teixeira Gomes
Raquel Baptista Spaziani
CAPÍTULO 7
INSCRIÇÕES SINGULARES E O ESPAÇO DE ESCUTA COMO
FORMA DE ELUCIDAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA
A MULHER�� 105
Leonardo Danziato
Gabriela Ferreira Barbosa
Victor Temoteo Pinto
Luciana Ribeiro Lira
Ana Gabriela Braga Gonçalves Torres
João Pedro Almeida Bezerra
Bruna Estrela Andrade Braga Rocha
3ª SEÇÃO
VIOLÊNCIAS DE GÊNERO, SEXUALIDADE E PATRIARCALISMO
CAPÍTULO 8
A OUTRA: o sujeito não universal do liberalismo�� 135
Ecila Meneses
CAPÍTULO 9
“GÊNERO LOCAL”: retratos da história das mulheres no Ceará e sua
alta intensidade patriarcal�� 149
Daniele Ribeiro Alves

Antônio Cristian Saraiva Paiva
CAPÍTULO 10
“A VIOLÊNCIA CONTRA A VAGINA É DISSEMINADA NO
COTIDIANO”: uma análise dos impactos da violência de gênero na
autopercepção corporal e sexual de mulheres cis�� 163
Marcelle Jacinto da Silva
CAPÍTULO 11
“DORMINDO COM O INIMIGO”: violência de gênero e disponibilidade
psíquica materna�� 177
Ângela Sousa de Carvalho
Karla Patrícia Holanda Martins
4ª SEÇÃO
RACISMO, VIOLÊNCIAS DE GÊNERO E
PERSPECTIVAS DECOLONIAIS
CAPÍTULO 12
VICISSITUDES DOS ESTUDOS DECOLONIAIS E DE GÊNERO NA
CLÍNICA DE URGÊNCIA SUBJETIVA�� 191
Danielle Maia Cruz
Janara Pinheiro Lopes
CAPÍTULO 13
O SUJEITO DAS RELAÇÕES ABUSIVAS E SUAS SUJEIÇÕES�� 209
Ana Carolina B. Leão Martins
Anne Beatriz Nogueira Saraiva
Vanessa Cunha Santiago
CAPÍTULO 14
MULHERES E TRABALHO DOMÉSTICO NA PANDEMIA
RACIALIZADA “À BRASILEIRA”: (re)encontros narrativos�� 223

Luciana Martins Quixadá
Jaileila de Araújo Menezes
Lisandra Espíndula Moreira
ÍNDICE REMISSIVO�� 237
SOBRE AS/OS AUTORAS/ES�� 241

APRESENTAÇÃO
ENFRENTAMENTOS À
VIOLÊNCIA DE GÊNERO COMO
UMA ÉTICA DO CUIDADO
Essa obra é mais um produto oriundo de uma pesquisa intitulada “Vio-
lência de gênero no contexto da pandemia do covid-19: uma proposta de inter-

venção em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade
e risco” realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e
Subjetividades (LAEpCUS), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Essa pesquisa foi iniciada em agosto de 2020 e terá continuidade até mea-
dos de 2023. Como parte das atividades do projeto de pesquisa acima citado,
no segundo semestre de 2021, realizamos um curso de extensão intitulado
“Capacitação para o enfrentamento da violência de gênero”, no qual contamos
com a participação de vários colegas de todo o território nacional, bem como
da França, que gentilmente se prontificaram a participar. A repercussão em
nível nacional do curso, a qualidade das falas e a contundência das críticas
políticas, culturais e discursivas transmitidas, fizeram com que pensássemos
na publicação de uma obra que documentasse e demarcasse os efeitos desse
ensino. A partir daí, convidamos esses mesmos colegas que participaram do
referido curso e mais alguns outros para compor o presente livro.
O livro em destaque apresentará uma série de experiências de enfrenta-
mento à violência de gênero, sejam elas produzidas por pesquisas acadêmicas
ou práticas institucionais. Obviamente que os saberes envolvidos e produzidos
por essas experiências devem servir como aportes conceituais que nos per-
mitam pensar, enfrentar e dissolver as práticas e os discursos que sustentam
esse fenômeno devastador que é a violência de gênero.
Para melhor organizar seu conteúdo, subdividimos os capítulos em qua-
tro seções assim nomeadas: Violência de gênero e instituições; Estratégias
subjetivas, socioculturais e políticas de enfrentamento à violência de gênero;
Violências de gênero, sexualidade e patriarcalismo; Racismo, violências de
gênero e perspectivas decoloniais.
A primeira seção, intitulada “Violência de gênero e instituições”, é com-
posta por três capítulos que discorrem sobre o caráter crônico e paradoxal da
violência de gênero, tal como se apresenta em espaços institucionais.
O primeiro capítulo intitulado “Declinações das violências e seus enfren-
tamentos: crônica de um (des)caso”, de autoria de Cristina Moreira Marcos,
16
Edwiges de Oliveira Neves e Bruna Hallak, tematiza a violência como intrín-

seca à civilização e discute o seu caráter atemporal, o que coloca impasses
para reconhecer as especificidades das formas extremas que ela adquire na
atualidade. Embora muitas conquistas tenham sido realizadas, o enfrenta-
mento da violência, em suas mais diversas formas, é um desafio cotidiano
para as instituições públicas e privadas e o papel do Estado é imprescindível
neste processo. Tecendo um diálogo entre psicanálise e assistência social, a
violência estrutural e de gênero é abordada a partir do acompanhamento de
um caso no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Famílias e

Indivíduos – PAEFI, buscando interrogar o lugar possível para o psicanalista
nas instituições, e como se poderia promover a invenção de estratégias de
enfrentamento da violência.
“Paradoxos na escuta psicanalítica de mulheres em situação de rua”,
texto escrito por Sandra Djambolakdjian Torossian, Luísa Susin dos Santos
e Daniel Araujo dos Santos, parte de uma leitura de Judith Butler e Françoise
Vergès, para situar a violência de gênero como eixo de um estado global de
violências, no qual o próprio Estado protagoniza violações de direitos e vio-
lências. O capítulo propõe interrogar a ideia de proteção ofertada às mulheres
em situação de rua, além de direcionar o olhar para os impasses e paradoxos
que se apresentam no processo de escuta nesses cenários. Apresenta, pois,
um caso atendido em conjunto por um “Centro de Atenção Psicossocial” e
um “Consultório de Rua”, o que permite pensar as possíveis “repetições de
desistência” frente à situação de violência contra a mulher, quando se atra-
vessa uma lógica institucionalizada. Além disso, adverte acerca do perigo das
próprias tentativas e estratégias traçadas de proteção sucumbirem à lógica
hegemônica. Conclui, contudo, que mesmo no campo dos paradoxos da escuta
e das repetições, constroem-se estratégias de enfrentamento e deslocamentos.
“Psicanálise e Justiça: articulações sobre uma práxis que se ocupa do
imundo” de autoria de Aline Lima Tavares e Sonia Alberti, com base em
dados de relatórios oficiais que apontam o Brasil como um dos países com
maior desigualdade social e de renda no mundo, problematiza como tal quadro
estrutural se reflete cotidianamente nos processos que tramitam nos diver-
sos Tribunais de Justiça do país. Como profissionais inseridas na interface
entre Psicologia e Justiça, especificamente nas Varas da Infância e Juven-
tude, as autoras argumentam que parte importante das adoções de crianças
e adolescentes no Brasil é consequência da violência estrutural brasileira,
das desigualdades sociais e de gênero. Portanto, mostram o quanto situações
de miserabilidade, ausência de direitos e vulnerabilidade social expõem de
forma aguda alguns sujeitos, desde a infância, a situações de violência e
desamparo, levando por vezes a processos de destituição do poder familiar
e, posteriormente, de adoção. O capítulo traz o poder público para a cena do
debate, afirmando que viver em um país cujo Estado não protege os seus não
CONCEITUAIS E ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO 17
é sem efeito, pelo contrário, gera efeitos mortíferos que atravessam gerações.
A partir de um caso clínico, a discussão das autoras apresenta a escuta clínica
como uma ação política, uma vez que possibilita a escuta do sujeito em sua
singularidade, impedindo-nos de tomar aqueles que atendemos como meros
objetos à mercê da letra da lei e de sua aplicação burocrática.
A seção “Estratégias subjetivas, socioculturais e políticas de enfrenta-
mento à violência de gênero” é composta por quatro capítulos. O enfoque recai
sobre diferentes possibilidades de enfrentamento subjetivas, socioculturais e
políticas de enfrentamento à violência de gênero, apontando que em vista dos
casos crescentes e alarmantes de violência contra mulheres é crucial que sur-

jam formas múltiplas, criativas e efetivas de enfrentamento a este fenômeno.
“A construção de um Coletivo de Mulheres que sofrem violência de
gênero: uma escolha política pela vida” é o título do capítulo escrito por Cláu-
dia Maria Perrone, Rose Gurski, Gabriela Gomes da Silva e Flávia Tridapalli
Buechler. Este escrito tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre a
demanda de escuta apresentada por um Coletivo de mulheres periféricas da
cidade de Porto Alegre/RS e sua luta por direitos. A narrativa central deste
grupo de mulheres se situa em torno do significante violência. A violência con-
tra mulheres e crianças na comunidade torna-se uma questão norteadora para
a organização política do coletivo. O núcleo é uma ação conjunta de docentes
do Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura e do Programa
de Pós-graduação da Faculdade de Educação, ambos PPGs da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cuja produção teórica se sustenta
nos pressupostos da teoria psicanalítica e suas implicações para a dimensão
ética e política da escuta no laço social. Partindo destas questões, o objetivo
deste escrito é apresentar a experiência de um coletivo de mulheres periféri-
cas que organizou a invasão de um prédio público. A partir da experiência de
violência na vida dessas mulheres, o coletivo identifica todas aquelas que se
aproximam do coletivo, o que inclui identidades cis, trans, lésbicas e todas
aquelas que se sentirem convocadas a romper o silêncio do corpo maltratado.
As discussões gravitam em torno da politização do sofrimento singular e da
capacidade coletiva de ação, sem que as instituições figurem no papel central.
De Rafael Kalaf Cossi, o capítulo “Reconhecimento como categoria
de coibição da violência” sustenta a hipótese da existência possível de uma
modalidade de reconhecimento capaz de refrear a violência. Num primeiro
momento, aborda a noção de agressividade em Lacan – tendência inescapável
do narcisismo e da dialética das identificações, que participa da formação do
Eu. O autor estaca que a elaboração da teoria do Estádio do Espelho também
contempla o desenvolvimento hegeliano da dialética do senhor e do escravo,
concomitante com a luta por reconhecimento. A posterior ênfase dada por
Lacan ao registro do simbólico permite considerar o desprendimento da rela-
ção imaginária dual, e uma modalidade de reconhecimento que leve em conta
18
o terceiro excluído. Finalmente, afirma que o reconhecimento da diferença

deve ir além do horizonte de tolerância, na direção da transformação dos
agentes implicados.
“Como a violência de gênero aparece no material onírico e nos processos
associativos em um grupo de partilha de sonhos” intitula o texto de Jaque-
lina Maria Imbrizi, Jussara de Souza Silva, Gabriela Corrêa Ramos, Luísa
Segalla de Carvalho, Juliana Teixeira Gomes e Raquel Baptista Spaziani.
Estas apresentam a Roda de Sonhos como uma proposta de trabalho em
grupo que visa o acolhimento e o cuidado mútuo entre os estudantes diante

do contexto pandêmico que assola o país. O objetivo do capítulo é apresentar
como as violências de gênero, tão presentes na vida cotidiana de mulheres, vão
além da vida de vigília e estão figuradas na produção onírica e nos processos
associativos grupais. Como método de trabalho apresenta o funcionamento
da Roda de Sonhos, utilizando como autores de referência Sigmund Freud
e René Kaës. O foco da problematização é analisar uma narrativa onírica e
a cadeia associativa disparada no grupo. A análise dos dados se baseou em
autoras feministas que têm subsidiado a crítica à naturalização da violência
contra a mulher como Luce Irigaray, bell hooks, Judith Butler e Lia Machado.
Em “Inscrições singulares e o espaço de escuta como forma de elucida-
ção da violência de gênero contra a mulher”, os autores Leonardo Danziato,
Gabriela Ferreira Barbosa, Victor Temoteo Pinto, Luciana Ribeiro Lira, Ana
Gabriela Braga Gonçalves Torres, João Pedro Almeida Bezerra e Bruna Estrela
Andrade Braga Rocha, discutem o que consideram três dimensões fundamen-
tais da violência de gênero: a) a tradição patriarcal e a dominação masculina:
tolerância e invisibilidade da violência de gênero; b) o ódio ao feminino; c) a
cultura da inferioridade feminina: identificações e subversões. Estas encami-
nham a discussão a partir de uma primeira conclusão da pesquisa intitulada
“Violência de gênero no contexto da pandemia de covid-19: uma proposta
de intervenção em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnera-
bilidade e risco”, realizada em parceria com a Defensoria Pública do Estado
do Ceará (DPCe) e o Núcleo de enfrentamento à violência contra a mulher
(NUDEM). Utilizam-se de recortes dos relatos dos atendimentos realizados,
para ilustrar e debater como essas três dimensões se apresentam na prática em
urgência subjetiva, mas também para constatar como esse espaço de escuta
possibilitou a invenção de falas e inscrições singulares, assim como novas
significações e deslocamentos diante das situações traumáticas de violência
sofridas por essas mulheres.
A seção “Violências de gênero, sexualidade e patriarcalismo”, composta
por quatro capítulos, gravita em torno de problematizações sobre violências
de gênero, sexualidade e patriarcalismo. Aponta para práticas corporais e de
gênero historicamente situadas com potentes desdobramentos na atualidade.
Tensiona ainda uma lógica cisheteronormativa que fixa os órgãos sexuais como
demarcadores de gênero. Nesse sentido, interroga práticas discriminatórias

machistas, sexistas e misóginas.
Em “A outra: o sujeito não universal do liberalismo” Ecila Meneses
apresenta, em seu capítulo, pontos centrais de debate quando se pensa a luta
de mulheres diante do cenário de enfrentamento do avanço do projeto anti-
civilizatório do Capitalismo Tardio. Chama a atenção sobre a imprecisão da
face do novo sujeito histórico-político que surge no século XXI, pois este
pode ter diversas orientações sexuais e ser de diversas etnias. Aponta para a
importância do olhar atento que se precisa ter para a periferia do mundo, pois
este desvela a feição não universal de um sistema que, mesmo diante de crises
e calamidades, sempre se portou de forma insensível diante dos vulneráveis.
Argumenta, portanto, que o Estado Moderno Liberal Burguês traz, em suas
linhas institucionais, uma interdição da mulher como sujeito, sedimentando
e perpetuando séculos de desigualdade, de enclausuramento e de hostilidade.
O texto encaminha, desta forma, uma discussão que questiona sobre os cami-
nhos de alcance da igualdade universal e a inclusão de todas, todos e todes no
sentido de que sejam pessoas vistas como sujeitos detentores de direitos, no
qual o respeito ao meio ambiente seja também entendido como um respeito
a si mesmo e à condição de um ser da natureza.
“‘Gênero local’: retratos da história das mulheres no Ceará e sua alta
intensidade patriarcal” de Daniele Ribeiro Alves e Antônio Cristian Saraiva
Paiva é um texto que se origina de diversas reflexões a respeito do conceito
de gênero, a partir de uma perspectiva local. Para alcançar o objetivo preten-
dido, utiliza-se a pesquisa qualitativa, com o auxílio de buscas bibliográficas
e documentais a respeito do modo cultural particular do Ceará, dando ênfase
a representações literárias e processos judiciais de diferentes épocas. Diante
disso, atenta-se para as práticas corporais e de gênero historicamente situadas.
Nos resultados apresentados, observa-se que o exacerbar do ideal de provedor
masculino, no cumprimento das obrigações quanto à proteção e à honra da
família e o corpo feminino como campo de disputa são significantes que se
entrecruzam e estão explícitas na tessitura social do Ceará. Nesse sentido, é
essencial refletir sobre gênero de forma localizada, ou seja, compreendê-lo
nas suas múltiplas interseccionalidades, entendendo-se que o peso da raça
e da classe é gerador de inúmeras opressões, portanto, de alta intensidade
patriarcal no Ceará.
“‘A violência contra a vagina é disseminada no cotidiano’: uma análise
dos impactos da violência de gênero na autopercepção corporal e sexual de
mulheres cis” é de autoria de Marcelle Jacinto da Silva e Antônio Cristian
Saraiva Paiva, na esteira do que chamamos de “debate incômodo”. O texto
tem como destaque o recorte de uma pesquisa doutoral que objetivou pro-
blematizar o trinômio mulher-vagina-feminino, no sentido de tensionar a
lógica cisheteronormativa que enquadra órgãos sexuais como demarcadores
20
de gênero, e problematizar narrativas cujo enfoque recaiu sobre a estética

ideal do que é socialmente entendido como “genital feminino”. Em diálogo
com um corpus teórico e empírico que discute a importância da problemati-
zação de práticas discriminatórias machistas e sexistas, o texto discute o tabu
social que envolve a “vagina” e que impacta significativamente a autoper-
cepção corporal e sexual de mulheres cis, sustentado cotidianamente através
da linguagem, entendida aqui enquanto tecnologia social heteronormativa
que expressa um tipo de violência direcionada a essa população, mas que se
estende a outros sujeitos e subjetividades cujos corpos escapam à matriz de

inteligibilidade cisheteronormativa.
Ângela Sousa de Carvalho e Karla Patrícia Holanda Martins apresentam
o capítulo “‘Dormindo com o inimigo’: violência de gênero e disponibilidade
psíquica materna”. Neste texto, relata-se a escuta psicanalítica efetuada no
decurso de uma pesquisa de doutorado que teve como questão central inves-
tigar possíveis reverberações da violência conjugal vivida pela mulher em sua
disponibilidade psíquica para o maternar. Verifica-se que as dores emocionais
provocadas pelas violências psicológicas são intensas e, segundo o relato,
mais significativas do que propriamente as violências físicas, confirmando os
achados de pesquisas anteriores. O texto encaminha uma discussão importante
sobre como as violências sofridas por mulheres levam a um sentimento de
desvalia e humilhação que afeta diretamente a disponibilidade psíquica para
o maternar.
A seção “Racismo, violências de gênero e perspectivas decoloniais”
reúne três capítulos elaborados em torno de discussões que entrelaçam temas
como racismo, violências de gênero e perspectivas decoloniais, trazendo para
o debate diversas formas de relações abusivas, seja no âmbito amoroso, no
laço social e ainda nas relações que envolvem o mundo do trabalho.
O escrito “Vicissitudes dos estudos decoloniais e de gênero na clínica de
urgência subjetiva” das autoras Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz, Danielle Maia
Cruz, Leônia Cavalcante Teixeira, Janara Pinheiro Lopes e Luciana Ribeiro
Lira discute, a partir de um caso clínico, os desdobramentos das violências
impetradas contra a mulher desde o passado colonial do Brasil e os efeitos
perversos remanescentes na construção das subjetividades destes sujeitos na
contemporaneidade. Deve-se mencionar que a escuta clínica em urgência
subjetiva não constitui o foco deste capítulo, porém, assinala a importância
da análise sobre as vicissitudes dos estudos decoloniais presentes na clínica.
“O sujeito das relações abusivas e suas sujeições”, de autoria de Ana
Carolina B. Leão Martins, Anne Beatriz Nogueira Saraiva e Vanessa Cunha
Santiago, tem por tema os sujeitos do gênero e da raça nos relacionamen-
tos abusivos, em suas respectivas sujeições. O termo ‘sujeito’ é tomado na
dupla acepção: agente da ação e também assujeitado (ao Outro), ambivalên-
cia produtora de subjetividade. Assim, a duplicidade do sujeito nas relações
heterossexuais e nos contextos racializados, em diálogo com a psicanálise e

os estudos feministas e decoloniais, é o tema do escrito. Nas conclusões, são
apontados os desdobramentos do debate em direção ao tratamento analítico,
situando o sujeito como efeito de seu discurso, para além de pontuações
moralizantes e superegoicas.
“Mulheres e trabalho doméstico na pandemia racializada ‘à brasileira’:
(re)encontros narrativos” de Luciana Martins Quixadá, Jaileila de Araújo
Menezes e Lisandra Espíndula Moreira consiste em um texto que se cons-
trói a partir da memória de cenas reais e ficcionais do contexto brasileiro.
Objetiva-se pensar, nesta escrita, sobre os impactos da pandemia para as

mulheres brasileiras, tomando como questões centrais o trabalho doméstico
e o racismo. As histórias de Mirtes Renata, Cleonice Gonçalves, Madalena
Gordiano, Raiane Ribeiro, Maria e Natalina, mulheres que permitem pensar
interseccionalmente as marcas das relações coloniais no modo como foi cons-
truído e permanece funcionando o trabalho doméstico, constituem espaços
onde a solidariedade de gênero se anula e funcionam, mais fortemente, as
hierarquias de classe e raça.
É nosso desejo que as produções aqui divulgadas fertilizem discussões
e embasem fazeres em espaços plurais, contribuindo para a construção de
sociedades menos desiguais, injustas e segregatórias. Intenta-se, em consonân-
cia com os ideais democráticos, iluminar e problematizar, a partir do espaço
acadêmico, temáticas relacionadas às violências, particularmente de gênero.
Sabe-se que tal posicionamento configura-se como um ato de resistência
contra governos antidemocráticos, contra a colonização contemporânea de
subjetividades e de corpos. Em tempos de política de morte de pessoas, comu-
nidades e sociedades, tomar posição que faça frente a este cenário coloca-se
como uma inescapável exigência política e ética.
Fazer trabalhar a psicanálise em seus litorais diz da escuta do sofrimento
como sociopolítico, na perspectiva de uma ética do cuidado e do bem dizer.
Assim, convidamos nossos/as leitoras/es a desdobrarem e fertilizarem tais
discussões tendo como mote a escrita presente neste livro.

Danielle Maia Cruz
Jean-Luc Gaspard
1ª SEÇÃO
E INSTITUIÇÕES
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
CAPÍTULO 1
DECLINAÇÕES DAS VIOLÊNCIAS
E SEUS ENFRENTAMENTOS:
crônica de um (des)caso1

Bruna Hallak
Considerações iniciais
Nas últimas décadas, a política de Assistência Social tornou-se campo

obrigatório de inserção do psicólogo e espaço fértil para a atuação do psica-
nalista, visto que, a partir da instituição do SUAS – Sistema Único de Assis-
tência Social – e sua concepção de vulnerabilidade e risco, considera-se que
é preciso intervir junto a condições materiais de uma família ou indivíduo e,
também, nos aspectos subjetivos de enfrentamento das mesmas. Corroborando
com esta ideia, Bronzo (2009) afirma que:
Vulnerabilidade relaciona-se, por um lado, com a exposição ao risco e, por

outro, com a capacidade de resposta, material e simbólica que, indivíduos,
famílias e comunidades conseguem dar para fazer frente ao risco ou ao
choque (que significa a materialização do risco). As políticas e os progra-
mas [da Assistência Social] inserem-se nesse campo como elementos que
podem fortalecer a capacidade de resposta das famílias e de seus membros
e reduzir-lhes a vulnerabilidade (p. 173).
Tendo sido incluído o campo subjetivo nas diretrizes do acompanhamento

familiar, apostamos que a articulação entre psicanálise e assistência social
se sustenta a partir de seu viés clínico. Dentre os diversos serviços ofertados
pelo SUAS, nossa pesquisa teve como recorte o PAEFI – Serviço de Proteção
e Atendimento Especializado à Família e Indivíduos – cujo público-alvo é
composto por famílias e indivíduos que vivenciam violações de direitos por
ocorrência de: violência física, psicológica, sexual, negligência/abandono,
afastamento do convívio familiar devido à aplicação de medidas judiciais,
1 Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação da PUC Minas
com o apoio da CAPES/PROSUC.
26
tráfico de pessoas, situação de rua e mendicância, vivência de trabalho infantil,

discriminação em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia, entre outros.
A análise de um caso atendido no PAEFI durante doze anos nos permitirá
interrogar o lugar do analista na instituição partindo da verificação das dife-
rentes posições que o sujeito pode ocupar no laço social. A escolha do caso
pela equipe teve como marca a sua cronicidade e os impasses colocados aos
encaminhamentos dados. São considerados como crônicos os casos que, a
despeito de inúmeros encaminhamentos e de anos de acompanhamento, não
superam a situação de vulnerabilidade e, ainda, sofrem com agravamento das

situações de violência intrafamiliar. A questão se formulava para a equipe do
seguinte modo: porque a despeito de todos os encaminhamentos, de toda ten-
tativa de atender às demandas do usuário, de todo o esforço para a promoção
de direitos, a violência permanece? Inferimos que os casos crônicos são casos
que não foram “escutados”: há o acesso ao universal do direito, mas não se
sabe nada do sujeito em questão. Enquanto não se oportuniza o espaço para
sua crônica, o sujeito se apresenta como um caso crônico.
Explicitação do método
A partir de Viganó (1999, p. 50-51), compreendemos que “a cronicidade

é uma adesão a um programa de vida imposto, decidido de fora de qualquer
expressão subjetiva. [...] a respeito dessa perspectiva, proponho a construção do
caso clínico”. Segundo ele, o trabalho da construção do caso clínico deve pre-
ceder ao ato clínico e constituir-se como pré-condição à abertura, no indivíduo,
de uma demanda de tratamento. Esse trabalho é análogo a uma arqueologia,
pois é no cavar e desenterrar as informações e os relatos de cada técnico da
equipe responsável pelo caso que será possível localizar a atividade fantasmá-
tica na qual o sujeito em questão foi estratificando seus modos de satisfação
pulsionais. Nesse sentido, a construção se refere à irredutibilidade do objeto
psíquico, que permanece e que será reconstituído pelas vozes de vários acerca
das diversas fases do trabalho com o usuário e da sua permanência no serviço.
Para Freud (1937/1996), a noção de “construção” é extremamente valiosa na
condução de um caso clínico e se diferencia da interpretação. Vorcaro (2014)
propõe tomarmos a noção de “construção”, tal como Freud a desenvolve, como
um ensinamento de um método não somente de tratamento mas também de
investigação dos processos inconscientes. Podemos nos valer desse método
para estabelecer um dispositivo de construção do caso clínico junto às equipes
responsáveis pelo tratamento do usuário e que se encontram embaraçadas diante
dos obstáculos encontrados na condução do caso (cf. Marcos & Motta, 2016;
2019). Para tanto, Viganó (1999) orienta que é preciso juntar as narrativas dos
protagonistas dessa rede social, a fim de encontrar seu “ponto cego”, que diz de
uma falta de saber e por isso é o lugar do sujeito. Trata-se de um movimento
dialético, em que há uma inversão das partes: a rede social coloca-se em posição
discente e, o paciente, na posição de docente.
Isto posto, nosso primeiro passo metodológico consistiu em mapear os
casos que colocavam um impasse para a equipe e produziam um embaraço
em relação à sua condução através da repetição insistente de uma certa relação
com o Outro que os marcavam com o qualificativo de crônico. A partir desse
levantamento, elegeu-se, junto à equipe, o caso a ser construído. O recolhimento
dos dados clínicos se fez a partir de leituras de prontuários, entrevistas com

aqueles que acompanharam o caso e a participação em reuniões de supervisão.
Buscamos assim sustentar a interrogação acerca dos impasses encontrados,
visando recolher, destacar e estabelecer junto a cada profissional as estratégias
empreendidas e seus pontos de limite: falas, frases, observações, registros. Parti-
mos do princípio de que o caso não se limita ao paciente, ele inclui o paciente e
seu tratamento pela equipe. Nesse sentido, o caso e a equipe são indissociáveis.
A cronicidade de um caso clínico aponta para a insistência de um modo
próprio do sujeito de fazer laço social, desconhecida para ele e enigmática para
o Outro. Esse não-saber escapa ao simbólico como uma incidência do real que,
no entanto, pode facilmente ser tomado imaginariamente pela dimensão social
colocada como causa da impotência. Viganó (1999) afirma a importância de
se ultrapassar essa impotência. A construção do caso junto à equipe é um
trabalho que tende a esclarecer a relação do sujeito com o seu Outro. Dessa
forma, o que se trabalha é o discurso, um diagnóstico de discurso. Não se trata
de introduzir uma interpretação e um sentido psicanalítico ali onde o saber
falta. Se assim o fizéssemos estaríamos ressaltando um saber e uma ficção que
não é a do sujeito em questão. Não visamos a interpretação dos relatos, mas
antes o assinalamento das diferenças de posição indicadas pelos relatores do
caso. É nesse sentido que a construção do caso em grupo tende a esclarecer
a relação do sujeito com seu Outro, o que ele fala deste Outro e como ele se
situa em relação ao Outro. Daí afirmarmos que fazemos um diagnóstico de
discurso. Viganó (1999) nomeia essa torção de autoridade clínica do caso
que se desenrola não a partir da impotência da assistência mas a partir de um
vazio de saber que possa acolher a palavra daquele que sofre e permitir uma
orientação para o caso que se encontrava petrificado na repetição.
O caso e a instituição
No ano de 2006, o Conselho Tutelar realizou o primeiro encaminhamento

da família ao CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência
28
Social. À época, Maria, 36 anos, imigrante nordestina, faxineira, desempre-

gada, semi-alfabetizada, era mãe de sete filhos: Liliane (14 anos), João (12
anos), Benício (11 anos), Joyce (10 anos), Tatiane (07 anos), Sílvia (05 anos)
e Douglas (02 anos). Os cinco filhos mais velhos são fruto do relacionamento
com o Everaldo, 38 anos, de quem se separou em 1999. Do Antônio, 42 anos,
com quem teve os dois filhos caçulas, ela estava separada há pouco tempo.
Em 2019, Maria estava se relacionando com um novo parceiro, Frederico,
quinze anos mais jovem que ela, com quem teve seu oitavo filho, Edgard,
com 06 anos de idade. Os ex-companheiros têm, em comum, o uso de álcool

e de outras drogas e o envolvimento com o tráfico de entorpecentes, além de
diversas passagens pelo sistema prisional.
As violações de direitos identificadas como critério de inclusão no acom-
panhamento psicossocial, em 2006, foram: negligência, evasão escolar, traba-
lho infantil e exploração sexual. Posteriormente, são identificadas as violências
física e psicológica contra as crianças e adolescentes. Destacamos que, embora
ambos os genitores fossem extremamente negligentes, os relatos de agressões
físicas referiam-se apenas a atos cometidos por parte da mãe. Liliane, em
seus atendimentos, relatou as surras que levava da mãe e que a motivaram a
morar com o pai. Em uma de suas gestações, Liliane contou que sofreu uma
tijolada desferida por Maria contra seu ventre, na tentativa de provocar um
aborto na adolescente.
Maria também foi encaminhada pela Delegacia de Proteção à Mulher, em
2007, como vítima de violência doméstica, por parte do Antônio ao CREAM
– Centro de Referência Especializado de Atenção à Mulher, unidade de aten-
dimento do SUAS que também se insere na Proteção Social Especial de
Média Complexidade.
O Conselho Tutelar foi acionado em 2006 porque Liliane, então com
13 anos, estava no Estado do Rio de Janeiro, acompanhada de uma amiga,
já maior de idade, prostituindo-se, fazendo uso de drogas e cometendo
atos infracionais, tendo sido apreendida pela Polícia Rodoviária Federal
naquele Estado e recambiada para Minas Gerais. Em entrevista com pro-
fissional do Serviço, foi relatado que, no Rio de Janeiro, a adolescente
sofreu violência sexual, “com requintes de muita crueldade” [sic] e teve
seus cabelos raspados.
Ainda em 2006, seis dos sete filhos estavam fora da escola. Apenas Joyce
(10 anos), encontrava-se matriculada e frequente no sistema regular de ensino
por passar a semana como “interna” de uma ONG que acolhia crianças e
adolescentes do sexo feminino em situação de vulnerabilidade social, estando
com a mãe apenas aos finais de semana. Segundo a mãe, “esta sim que é filha”
[sic], pois estudava, respeitava-a e a auxiliava nos afazeres domésticos.
Para Maria, Benício (11 anos) é um bom menino. Todos gostam dele.
Já João (12 anos), é agressivo e se faz de “sonso” [sic]. Liliane, a filha mais
velha da prole, para a mãe “sempre foi fora de nós” [sic], “só arruma problema/
confusão” [sic],”não leva desaforo pra casa” [sic], “puxou o pai” [sic], mas,
“não é porque ela é desse jeito que vou jogar ela fora” [sic]. A vinculação da
primogênita de Maria com as ruas começou cedo. Desde criança, Liliane é
vista circulando na cidade, catando recicláveis, procurando comida nas lixeiras
e, ao entrar na adolescência, “fazendo programa” [sic].
Em suas narrativas, Maria afirmava não saber o que acontecia com os
filhos adolescentes. Eles passavam muito tempo nas ruas e, segundo vizinhos,
praticavam furtos. Ora moravam com o pai, ora moravam com a mãe. Liliane
e João ficavam a maior parte do tempo com o pai, indo para a casa da mãe
quando tinham conflitos com ele e/ou com a madrasta – Sra. Sônia. O mesmo
ocorria com Benício, Joyce e Tatiane em relação à mãe: as brigas com ela é
que faziam com que eles fossem para a casa de Everaldo. Assim, os filhos
circulavam nas casas de ambos os genitores.
Sobre os vínculos de seus filhos com o pai, Maria fazia uma distinção:
Liliane e João adorariam o pai. Benício e Joyce “não são muito chegados a
ele” [sic]. Já, Tatiane (07 anos), gostava do pai. Estes cinco filhos recebiam
tratamento diferenciado por parte do Everaldo porque o mesmo só “reconhe-
ceu” a paternidade de Liliane (14 anos), João (12 anos) e de Tatiane (07 anos)
e duvidava de ser pai de Benício (11 anos) e Joyce (10 anos).
Segundo Maria, Everaldo era o responsável pelo mau comportamento
dos filhos, incentivando-os aos delitos e às drogas, seja praticando na frente
deles, seja os acobertando quando o fazem. Entretanto, ela não conseguia
impedi-los de frequentar a casa do pai e mesmo os mandava pra lá quando
entrava em conflito com eles. Embora Maria afirmasse que “lá, comida não
falta” [sic], a casa de Everaldo era um barracão de madeirite, em terreno
invadido, com características de população de rua, devido ao seu histó-
rico de rua.
João (12 anos) e Benício (11 anos), em 2006, também encontravam-se
em trabalho infantil: vigiavam e lavavam carros, catavam recicláveis, traba-
lhavam em uma fábrica de peças de gesso, trabalhavam para o tráfico. Quase
sempre, acompanhados do pai.
Maria era frequente aos atendimentos no CREAS, comparecendo sema-
nalmente, com poucas ausências, trazendo os documentos que lhe eram solici-
tados e indo aos locais da Rede para onde era encaminhada. Entretanto, volta
e meia, a situação dos filhos se agravava, com vários episódios de ameaça de
morte e institucionalização dos mesmos (e, futuramente, dos netos). Vários
“técnicos de referência” acompanharam o caso ao longo dos anos e parecem
30
ter se esforçado para deixar claros os motivos de sua inclusão no acompanha-

mento e chamá-la à responsabilidade materna.
Sobre a maternidade, ela afirmava que “Liliane só entenderá quando
tiver um filho” [sic]. Em muitos momentos, Maria dizia que tinha “cabeça
vazia”, “cabeça fraca”, “mente vazia”, “depressão”, “ficar perdida”, apon-
tando sua dificuldade de ser mãe de oito filhos e de ter que comparecer em
vários órgãos do Sistema de Justiça. Sobre o acompanhamento, avaliava que
“é bom pra distrair a cabeça”, mas, se ela falta, o Conselho Tutelar “pega
no pé” [sic].

Ao longo dos dez primeiros anos de acompanhamento do caso, com
algumas interrupções, Liliane e João seguiram os passos do pai, tanto no
envolvimento com drogas e crimes, quanto morando nas ruas. Everaldo teve
outras companheiras e com elas outros filhos – também negligenciados. Liliane
teve quatro filhos e perdeu a guarda de todos. Diversas foram as passagens
pelo sistema prisional. O consumo de crack também era frequente.
João e Benício também se tornaram pais, sendo que Benício iniciou a
vida conjugal aos 15 anos, com uma mulher cerca de 18 anos mais velha
que ele, com a qual permanecia no ano da pesquisa. João estava ora preso,
ora em liberdade. A mãe de seu filho era uma jovem com trajetória de vida
nas ruas e de dependência química, não tendo a guarda da criança, que
foi criada e cuidada pela avó materna. Joyce e Tatiane, posteriormente,
também entraram na prostituição como a irmã mais velha. Suspeitava-se
que a senhora Maria fosse “aliciadora”, beneficiando-se com a exploração
sexual das filhas.
Everaldo, em disputa de ponto de venda de drogas ilícitas com um des-
conhecido, levou um tiro e ficou paraplégico. Em 2019, recebia aluguel-so-
cial do município e estava morando com a filha Joyce (sob seus cuidados)
e uma neta, filha da mesma. Antônio, que supostamente abandonou o vício
e os crimes a partir da religião, requereu e adquiriu a guarda de Sílvia (05
anos) e Douglas (02 anos), após os mesmos terem sido institucionalizados por
“abandono de incapaz”. Porém, após algum tempo, eles também retornaram
para o convívio de Maria. Maria chegou a ir embora do Estado na companhia
de um namorado, deixando todos os filhos para trás, durante um período de
tempo que não conseguimos determinar.
Liliane enveredou-se por caminhos que apontam para a pulsão de morte
– tentou suicídio, fazia uso abusivo de drogas ilícitas, se envolveu com com-
panheiros agressivos e encontrando-se constantemente em risco. A despeito do
que supunha sua mãe, Liliane não (re)significou a maternidade ao engravidar
e os conflitos entre ambas ainda perduravam até o momento em que o caso
esteve em acompanhamento e estudo pela pesquisa.
Em 2016, Maria retornou ao serviço com outros filhos negligenciados –

Sílvia (15 anos), Douglas (12 anos) e Edgard (06 anos) – e incomodada com
a possibilidade de Sílvia ser homossexual.
Na ocasião, tendo em vista o histórico da família no Serviço, o caso foi
levado a uma supervisão interna, quando foi sugerido que se perguntasse a
Maria sobre sua história. Assim, foi depois de dez anos de acompanhamento
que Maria pôde contar que saiu da terra natal com aproximadamente três
anos de idade, na companhia dos pais e de dezesseis irmãos para viverem da
lavoura em uma pequena cidade mineira. O pai, homem violento, alcoolista,
abusou sexualmente dela e de uma das irmãs. A mãe não acreditou nas filhas,
nomeando-as de “safadas”. Aos 12 anos de idade fugiu de casa, com Everaldo.
Pouco tempo depois, a família interrompeu seu acompanhamento no
serviço. Maria e Liliane passaram a culpabilizar os profissionais e a insti-
tuição por Liliane ter perdido a guarda do quarto filho e o mesmo ter sido
encaminhado para adoção. Meses depois, espontaneamente, Maria retornou
demandando que a Assistência Social acompanhasse os filhos mais novos,
que estavam se colocando em risco, repetindo a trajetória dos irmãos mais
velhos. É neste momento, que a equipe volta a se perguntar sobre a condução
do acompanhamento psicossocial.
Podemos, então, constatar que a violência já se insere no caso a partir
dos seus determinantes sociais, na medida em que a situação de precariedade
vivida pela família e pela usuária já sinalizavam toda uma privação de recur-
sos materiais e simbólicos produzindo efeitos disruptivos na vida do sujeito.
Entre os anos de 2006 e 2016, os vários profissionais que atenderam o
caso preocuparam-se mais em registrar os aspectos da realidade objetiva da
família do que em escutar os aspectos subjetivos de Maria, seus filhos e (ex)
companheiros. Apuravam-se as “faltas” e colocava-se a rede em funciona-
mento com o objetivo de atender às demandas de Maria, encontrando para
cada falta um objeto correspondente: matrícula escolar, cesta-básica, segunda
via de documentos pessoais, materiais de construção, vestuário, cobertores,
entre outros.
A violência e a repetição evidenciam um modo de regulação do gozo na
relação com o Outro. Se compreendemos que todo vínculo entre as pessoas
está pautado em um discurso, a teoria dos discursos em Lacan busca dar conta
das relações intersubjetivas. Soueix (1997) afirma que o matema do discurso
escreve uma lógica coletiva. Por que ele nos interessa para pensar o caso clí-
nico? O matema do discurso permite ultrapassar uma oposição estéril entre
ordem política e ordem subjetiva. O sujeito é determinado pelo Outro e um
discurso é uma regulação do gozo, é a maneira como o sujeito se situa em
relação ao seu ser. Dito de outro modo, o discurso é a tentativa do sujeito de
32
regular as formas do gozo com o simbólico. A instituição coloca no comando

o significante-mestre e responde à demanda com o Discurso do Mestre.
Quando o CREAS é acionado pela Rede, o SGD – Sistema de Garan-
tia de Direitos – quer que o caso seja solucionado, que a família funcione,
demandando o atendimento especializado: o saber está do lado do CREAS.
Temos o discurso do mestre.
Agente => outro

Verdade // produção
S1 => S2
$ // a
SGD => CREAS

Família ideal // Caso crônico
A verdade que sustenta os encaminhamentos é a família ideal e o sin-

toma que se produz é a cronificação do caso, uma vez que o ideal nunca
será atingido.
Por sua vez, o CREAS parece tomar a família como objeto (de inter-
venção), fazendo o uso de protocolos para solucionar, através dos recursos
materiais que a rede dispõe, as demandas da família. Temos o discurso uni-
versitário, com o saber no lugar de agente.
Agente => outro

Verdade // produção
S2 => a
S1 // $
CREAS =>Família
Legislação // Caso crônico
Novamente, o saber está do lado do CREAS, agora, como agente. Ele

identifica as carências materiais, na expectativa de que solucionando as faltas,
a família funcionará melhor. Aqui há o apoio legal tanto no que se refere aos
direitos que a família pode acessar, quanto aos deveres que deve cumprir para
livrar-se da “mira” do SGD.
Em entrevista feita pela pesquisadora, uma técnica da equipe co-relaciona
a cronificação dos casos com as “deficiências” [sic] do Serviço e da Rede:
Eu acho que tem uma parcela que é da própria família, né? Que é da
forma como a família cuida, que é da história dos cuidadores, né? Mas
eu acredito, assim, muito, que existe uma parcela que é do serviço. E aí,
eu não acho que é só do serviço da Assistência Social. Eu acho que é dos
serviços da rede. [...] Eu fico sempre pensando nisso, assim, né? Eu acho
que tem a história da família, tem uma história que tem que ser rompida
mesmo, né? de não cuidado, mas eu acho que a nossa impotência também
de favorecer com que a família dê conta de romper com tudo isso e que
faz esse casamento que gera os casos cronificados, sabe? [sic]
Sobre a articulação da rede, Toniolo et al. (2016), ao relatarem sua expe-

riência de construção de caso clínico em supervisão dos CREAS da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, afirmam que “foram trazidos também casos
atendidos por muitos e escutados por ninguém, ou seja, uma “rede” deveras
presente, mas de um modo que favorece a repetição, tanto do sujeito quanto
das instituições” (Toniolo et al., 2016, p. 210).
No que se refere à “mira”, estes autores afirmam que a família fica “sob
a mira” das políticas, sentenciada como culpada pelos processos vivenciados
e pelas eventuais situações de violação e que a construção do caso clínico
deve permitir que a culpabilização seja substituída pela responsabilização,
apontando que é preciso escutar como cada sujeito se vê frente à violação que
sofre ou comete, servindo-se da palavra, mas, não apenas dela.
Se, do ponto de vista jurídico, responsabilizar-se é prestar obediência à
norma e/ou ser punido em caso de desobediência, do ponto de vista da psi-
canálise, responsabilizar-se “não significa assentimento passivo à ordenação
social, nem a culpabilização automática por ter transgredido os chamados
deveres do cidadão” (Rosa & Prudente, 2014, p. 77). Responsabilizar-se diz
de um pacto entre sujeito e sociedade. Pacto que só é possível a partir do
reconhecimento do outro enquanto semelhante para o sujeito e vice-versa,
pois, se o campo social não reconhece a alteridade nos sujeitos, ele os violenta
em nome (supostamente) da moral e dos bons costumes.
E acrescentam: “aderir à lei não é condição suficiente para garantir a
responsabilidade do sujeito pela ação, assim como sua desobediência não
34
implica no inverso, ou seja, que o sujeito não se responsabilizou, pois pode

estar referido a outra versão de lei” (Rosa & Prudente, 2014, p. 81), uma vez
que a lei, pura e simples, não é garantia de ética ou justiça. Muitas vezes, a
responsabilidade é tomada pelos “trabalhadores do social” – utilizando os
termos de Donzelot, citado por Romagnoli (2015) – como atributo subjetivo,
característica pessoal que se pode ou não ter, reduzindo-se, no exercício das
políticas sociais, a mero instrumento de gestão de massas.
Do ponto de vista jurídico, o caso é encaminhado ao CREAS por se
tratar de uma situação de violência de pais contra filhos e, depois, de ex-com-

panheiro contra a mulher. Nas situações de violência, é comum a dicotomia
vítima/agressor, a qual pode eclipsar as particularidades do um a um. Embora
crianças, adolescentes, mulheres, idosos e pessoas com deficiência, para citar
alguns exemplos, sejam tomados como o polo frágil desta relação – e não
negamos tal condição – cada um, em cada situação, se posicionará de um modo
específico frente à violência que sofre. Se assim não fosse, bastava criar um
protocolo de condutas e todos os casos seriam solucionados. A partir de tais
considerações, talvez, com a construção do caso clínico, a instituição possa se
perguntar: “Que posição este sujeito assume na cena de violência/negligência
que motivou sua inclusão no serviço?”
Cerruti e Rosa (2009) nos lembram que o discurso jurídico é o Discurso
do Mestre, portanto, avesso ao Discurso do Analista. A psicanálise admite
como próprio da linguagem a variação dos sentidos e, por isso, compreende
que os lugares de vítima e agressores/culpados não podem ser estabelecidos a
priori, não podem ser definidos antes da escuta do caso a caso e, portanto, não
se tratam de lugares generalizáveis e estanques. Assim, “o discurso jurídico
acaba por excluir o caráter enigmático do desejo” (Cerruti & Rosa, 2008,
p. 1069). Não que ele devesse incluí-lo, mas cabe à psicanálise re-introduzir
a dimensão do desejo, da palavra, como uma estratégia possível ao enfrenta-
mento dos impasses de casos cronificados, por exemplo.
Para fazer vacilar a certeza dos lugares de vítimas e agressores – pré-
-definidos pelo discurso jurídico – é preciso fazer o sujeito falar. Caso não
introduzamos a dúvida, os sujeitos envolvidos na cena não encontrarão outras
saídas, não poderão construir outro posicionamento no laço social, uma vez
que “essa certeza, do ponto de vista da psicanálise, perverte o circuito pulsio-
nal, pois a satisfação inalcançável deixa de funcionar como causa que coloca
o desejo em marcha” (Cerruti & Rosa, 2008, p. 1072). As autoras também
advertem os “operadores da lei” de uma armadilha: “poderem se acreditar
aptos a fornecer condições que podem promover a sutura de um sujeito estru-
turalmente dividido” (p. 1071).
É preciso atentar-se para o risco de a Assistência Social reproduzir/atua-
lizar o discurso do capitalista, fazendo dos “direitos” – projetos, programas,
serviços e benefícios – objetos para suturar a falta.
$ S2
S1 a
Caso crônico Rede

Família ideal Encaminhamentos
Com isto, não estamos dizendo que as ofertas não devam ser feitas, mas,
que elas não tenham como objetivo completar o sujeito. Não pretendemos
desresponsabilizar o Estado, nem mesmo propor um “Estado mínimo”, mas
apontar para a insuficiência das “garantias jurídicas” para tratar um desamparo
que é estrutural. Para isto, é preciso, também, que os profissionais suportem
as faltas do sujeito quando fazem seus encaminhamentos, para que o mesmo
possa desejar, como nos exemplifica a seguinte fala de um técnico da equipe:
“Eu acho que a gente é... muitas vezes... esconde atrás da não adesão da famí-
lia é... para esconder um pouco as nossas deficiências do acompanhamento,
né?” [sic]
Talvez a questão seja não confundirmos um “abandono concreto” com
um desamparo radical e nos perguntar: Qual amparo é possível de ser cons-
truído levando em conta nossa castração? O que é possível apesar de nossas
“deficiências”? Como os encaminhamentos podem provocar algum desloca-
mento nos processos de sofrimento presentes nas situações de violência e,
não apenas, obturar a angústia – muitas vezes do próprio profissional, que,
ao encaminhar para o outro, sai de cena?
Embora reconheçamos que exista uma assimetria entre os discursos
jurídico e analítico, não pretendemos excluir o primeiro e substituí-lo pelo
segundo e, menos ainda, “pregar que apenas a psicanálise está habilitada a
enfrentar a questão da violência [...]. Trata-se de enfatizar a importância de que
seja realizado um trabalho interdisciplinar” (Cerruti & Rosa, 2008, p. 1072).
Considerações finais: qual laço para o sujeito entre o abandono

e a violência?
Qual o lugar de Maria em uma prole de dezesseis filhos, cujos pais

possuem poucos recursos materiais e simbólicos e, ainda, são negligentes e
violentos? Quais são os impactos na constituição da subjetividade quando os
36
sujeitos estão expostos a um contexto de abandono material (pobreza extrema

e miséria) e a inúmeras formas de violência (visíveis e invisíveis)? A que Outro
ela pôde se dirigir para minimizar seu desamparo? Que tipo de acolhimento
ela recebeu?
Segundo Viganó (2010), a construção de um caso é a construção de um
ato. Tomamos o ato no sentido que lhe dá Lacan ao defini-lo como ponto de
descontinuidade a partir do qual se estabelece um antes e um depois. Ou seja,
o ato designa um deslizamento do sujeito em relação à sua posição no início
do tratamento, não no sentido de uma ruptura com o campo do Outro como as

tentativas de suicídio, as auto e heteroagressões, mas sim de um deslocamento
em direção a um bem dizer, um ato de construção de um discurso.
Sendo assim, quando convidamos a equipe a falar, quando escutamos
como se registram os movimentos do usuário do serviço, como se recolhem
as passagens subjetivas que elucidam uma diferença que se apresenta na repe-
tição, estamos construindo o caso. Uma simples pergunta no espaço coletivo
da conversação clínica ou da supervisão pode abrir uma brecha na insistência
do mesmo, na repetição de certo modo de fazer laço social tanto por parte do
sujeito, quanto por parte da equipe que o acompanha. Em uma supervisão,
por exemplo, recolhemos a seguinte fala:
“[...] comento sobre a falta de raízes da família, vista na perambulação

da mesma entre os Estados, entre bairros da cidade, entre casas, entre
as ruas.... Esse dado não me parece ser apenas por causa da luta pela
sobrevivência, pois não observamos nenhum laço entre eles, mesmo ela
sendo oriunda de uma família tão numerosa (a mãe teve 16 filhos). Não
vemos nenhuma anotação, desde que é atendida no CREAS, de que existe
um parente que a apoie nessa vida. Na última página do relatório, leio
que ela se queixa à técnica que lhe atendeu, de sempre ter se sentido
sozinha...” [sic]
Qual a posição de Maria no laço social? O que esta dificuldade em estabe-

lecer vínculos nos aponta? Se a psicanálise aposta em uma causa subjetiva do
sintoma e da sua repetição, não podemos deixar de considerar que no campo
analítico a dialética do sujeito jamais é individual. A oposição individual/
coletivo é ultrapassada na perspectiva da psicanálise na medida em que o
desejo que buscamos decifrar é sempre desejo do Outro. Por se constituir como
discurso do Outro, o inconsciente revela-se como um laço social diferente a
cada momento civilizatório. Tratar as questões do sujeito significa também
poder ler os efeitos da civilização nos modos como os sujeitos constroem seus
sintomas e modos de gozo.
Considerar a causa subjetiva interligada aos fenômenos psicossociais
significa interrogar-se acerca do modo como se articulam as relações entre o
sujeito, seu sintoma e as questões às quais o mundo a sua volta o confronta.

Tanto o pai, como a mãe, a tomaram como mulher: tanto do ponto de vista do
abusador que a tomou como objeto de sua lascívia, quanto da genitora que a
interpretou como sua concorrente. De que forma Maria responde à segregação
e à violência às quais ela foi sempre exposta? De que modo ela responde à
errância familiar, ao abuso e ao abandono? Embora proveniente de uma família
numerosa, Maria parece não pertencer, nem à sua família, nem aos homens que
ela encontra, nem aos filhos gerados. Sua resposta à violência e à segregação
parece ser sua própria solidão e desgarramento, assim como o exercício da
violência sobre o outro. De objeto largado, abandonado e abusado pelo Outro,

ora ela passa a encarnar o Outro que abusa, que faz dos filhos objetos de uso
e gozo, ora ela desvela uma propensão ao abandono, a deixar para trás seus
homens, seus filhos, sua casa. Embora persistam os pontos de desconexão,
não há uma ruptura absoluta com Outro. Maria continuou a retornar ao PAEFI
onde era bastante frequente e, embora não exerça a maternidade tal como ela é
prescrita pelos diversos discursos jurídicos e sociais, os filhos a ela retornam.
Apesar da sua assiduidade no serviço, pouco se sabe de Maria. Seu
primeiro marido, Everaldo, a acusa, quando Liliane engravida pela primeira
vez, de a filha ter “aprendido isso” [sic] com a mãe, ao ser levada por ela
aos forrós, onde conheceu o atual companheiro. Também Everaldo duvida
da paternidade de uma parcela dos filhos. De onde vem esta dúvida? Quando
Adão estava reivindicando a guarda dos filhos abrigados, Maria resolve dizer
que ele não era o pai de Sílvia... E, finalmente, Maria poderia estar “geren-
ciando” um ponto de prostituição. Talvez possamos relacionar tais pontos
com o significante “safada”, enunciado pela mãe de Maria.
“Ser safada” seria a resposta de Maria? Parece-nos que Maria ficou
“colada” no significante ofertado pelo Outro materno, ocupando uma posição
de objeto de gozo do Outro. Poderia Maria se inscrever no mundo por outro
traço? Parece-nos que, se há alguma chance de Maria questionar-se sobre sua
posição em relação aos filhos, bem como as escolhas que faz como mulher,
escolhendo homens violentos, é escutando-a como sujeito, entendendo que o
sujeito feminino é dividido entre a mãe e a mulher e que para além do desejo,
há o gozo.
Se Maria foi devastada enquanto filha ela é também uma mãe devasta-
dora. Liliane é a filha mais identificada a este lugar, repetindo a história. Para
que haja alguma chance de fazer vacilar este lugar de objeto de gozo, é preciso
que, no acompanhamento do PAEFI, as mães consideradas negligentes sejam
tomadas enquanto sujeitos femininos, sujeitos de uma história. Nesse sentido,
o PAEFI poderia constituir-se como um terceiro termo, outro Outro que, consi-
derando a inexistência da equivalência mãe-mulher, pudesse sustentar o hiato
38
necessário entre tais lugares para que Maria e seus filhos tenham a chance
de não serem devastados, rompendo a insistência da repetição da violência.
Concordamos que é primordial a oferta de um serviço que acompanhe
os casos de pessoas em situação de violência(s), mas, também, que “o reco-
nhecimento da condição de vítima não se esgota em si mesmo: é apenas o
início de um percurso [...]” (Cerruti & Rosa, 2008, p. 1072).
Este caso nos mostra que sem uma escuta que vise à implicação do
sujeito, o caso não pode avançar, exaurindo tanto os profissionais, quanto
os recursos materiais disponíveis, despotencializando o acompanhamento.

Somente escutando sua história, podemos compreender como o sujeito se
relaciona com o Outro e interpreta o mundo.
É a partir da construção do caso clínico que se pode operar o deslo-
camento do sujeito em um discurso, desde que a equipe possa suportar um
vazio de saber, que dê espaço para acolher a palavra do usuário. É a fala do
sujeito que orientará a equipe na condução do caso – cabe aos profissionais
rastrear a relação do sujeito com o Outro e com o seu sintoma, para que assim
uma intervenção possa incidir. Desse modo, o que está em jogo quando se
oportuniza a ética da psicanálise em uma instituição, é um saber a posteriori,
extraído a partir do paciente e das invenções oferecidas por ele, tomadas como
singulares e não como efeitos de uma dimensão normativa e moral. Ainda é
preciso acrescentar que escutar o sujeito é também escutar os profissionais
envolvidos no caso, que dele se ocupam, seja por meio de conversações, seja
através das supervisões. A circulação da palavra entre a equipe abre a pos-
sibilidade de outros olhares às patologias e às estratégias de enfrentamento.
REFERÊNCIAS
Alberti, S. (2000). Psicanálise: a última flor da medicina. In S. Alberti
& L. Elia (orgs.), Clínica e Pesquisa em Psicanálise (pp. 37-56).
Rios Ambiciosos.
Andrade, R. D. R. (2005). Discussão x Construção do caso clínico. Mental

(Barbacena), 2(4), 45-58.
Cerruti, M. Q., & Rosa, M. D. (2008). Em busca de novas abordagens para

a violência de gênero: a desconstrução da vítima. Revista Mal-estar e Sub-
jetividade (Fortaleza), 8(4), 1047-1076. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482008000400009.
Galesi, Z. A. (2005). Nome-do-Pai e foraclusão generalizada. [Trabalho

apresentado]. VII Jornada de Cartéis da Escola Brasileira de Psicanálise;
VI Colóquio “Os Nomes-do-Pai”, Paraná, Brasil. http://www.ebp.org.br/
biblioteca/pdf_biblioteca/2007/65Zelma_Galesi_Nome_do_Pai_e_foraclu-
sao_generalizada.pdf
Marcos, C. M., & Motta, J. M. (2016). Uma questão metodológica: A pes-

quisa Anorexia e Sexuação Feminina. In C. M. Marcos & J. M. Motta (orgs.),
A parceria Universidade e Hospitais de Ensino: Os caminhos da pesquisa
clínica em psicanálise (pp. 53-64). CRV.
Marcos, C. M., & Motta, J. M. (2019). O método clínico freudiano como nor-
teador da pesquisa psicanalítica. In B. D. Gonçalves, C. Fior & V. P. Oliveira
(orgs.), A pergunta e os métodos e psicologia (pp. 149-162). CRV.
Porge, E. (2009). O relato de caso em Freud. In E. Porge, Transmitir a clínica

psicanalítica: Freud, Lacan, hoje (V. Veras & P. de Souza, trad.) (pp. 17-25).
Editora da Unicamp.
Quinet, A. (1997). Conceitos. In A. Quinet, Teoria e clínica da psicose (pp.

3-77). Forense Universitária.
Quinet, A. (2000). As 4+1 condições da análise (8. ed.). Jorge Zahar Ed.
Quinet, A. (2006). Psicose e laço social. Jorge Zahar.

40
Romagnoli, R. C. (2015). Problematizando as noções de vulnerabilidade e

risco social no cotidiano do SUAS. Psicologia em Estudo, 20(3), 449-459.
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/PsicolEstud/article/view/28707.
Rosa, M. D. (2017). A psicanálise lacaniana e a dimensão sociopolítica do

sofrimento. Revista Cult: Edição Especial – Jacques Lacan: além da clínica,
20(8), 22-24.
Rosa, M. D., & Prudente, S. E. L. (2014). RESPONSABILIZ(AÇÃO): o sujeito

entre a responsabilidade e o dever jurídico. Dialnet: Revista brasileira de
ciências criminais, (109), 75-90. https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/393005
Skriabine, P. (2006). A clínica diferencial do sinthoma (C. Drumond, trad.).

Quarto 86, L´invention sinthomatique, 58-64.
Soueix, A. (1997). O discurso do capitalista. In R. Goldenberg (org.), Goza

(pp. 40-48). Agalma.
Toniolo, L. B. et al. (2016). A metodologia de construção do caso clínico

na cidade: um saber para além dos protocolos e seus efeitos no trabalho da
Assistência Social. Textos & Contextos, 15(1), 196-211.
Val, A. C., & Lima, M. A. C. (2014). A construção do caso clínico como forma
de pesquisa em psicanálise. Ágora, 17(1), 99-115.
Viganó, C. (1999). A Construção do Caso Clínico em Saúde Mental. Curinga,

(13), 50-60.
Viganó, C. (2002, 11 set.). Trabalho em equipe na rede: a enfer-

meira e a instituição parceira [Conferência]. Conselho Regio-
nal de Enfermagem (COREN). http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?pid=S1983-60072007000300002&script=sci_abstract.
CAPÍTULO 2
PARADOXOS NA ESCUTA
PSICANALÍTICA DE MULHERES
EM SITUAÇÃO DE RUA

Em face a uma crise sanitária sem precedentes no país, o cenário de desi-

gualdades sociais, negacionismos e proliferação de discursos de ódio acaba
por trazer indicadores importantes referentes à dimensão econômica, social e
política do contexto brasileiro, reiterando que se trata aqui de diferentes crises.
Paralelo a isso, pesquisas de determinados órgãos governamentais (como
pareceres de defensorias públicas, Poder Executivo, da Fundação Oswaldo
Cruz e da Organização das Nações Unidas) apontam que a violência contra a
mulher apresentou índices crescentes no que tange à letalidade, feminicídio e
agravamento das situações, enquanto o número de registros policiais diminuiu
durante a pandemia.
O documento “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Bra-
sil – 2021”, encomendado pelo Fórum Nacional de Segurança Pública para
o Datafolha no ano passado, constatou que a aparente redução da violência
contra a mulher representada pela queda nos registros policiais tradicionais
é confrontada com o aumento da violência letal e das chamadas em canais
oficiais de ajuda, como o 190. A pandemia mostrou-se como um período
significativo de exacerbação da violência contra a mulher, em função do
maior convívio junto ao possível agressor e da consequente influência física
e psicológica sobre a mulher, além das dificuldades de deslocamento e acesso
a instituições e redes de proteção.
Os dados aqui relatados tangenciam o que muitos espaços vêm chamando
de aumento da violência doméstica. O termo violência doméstica é amplo,
uma vez que delimita relações que acontecem no ambiente majoritariamente
familiar e que podem dizer de violências contra idosos ou crianças, por exem-
plo. Paralelo a isso, a definição de violência de gênero ou violência contra
mulher complexifica a questão da violência doméstica, aproximando-se do que
se configura enquanto violência no Brasil. Afinal, não é apenas no ambiente
doméstico que as mulheres acabam por vivenciar situações de violência e,
42
mais do que isso, não se trata de uma questão apenas do âmbito privado. Ao
contrário, poder localizar a atuação do Estado e a relação da violência contra
a mulher no âmbito público são fundamentais para elaborar estratégias. Este
trabalho parte da apresentação de um caso atendido em conjunto por um
Centro de atenção psicossocial (CAPS) e um Consultório de rua (CR) para
problematizar o processo de escuta de mulheres em situação de violência,
destacando alguns paradoxos na transferência.
Márcia2

Márcia, mulher de aproximadamente 30 anos, foi atendida pelo consul-
tório de rua, a primeira vez sob um viaduto. Ela estava sentada, falando várias
frases que aparentam não ter sentido algum. Aos poucos, foi-se percebendo
que eram letras de músicas. Enquanto a equipe a atendia, seu companheiro
Cláudio chegou. Ele se apresentou e rapidamente questionou o que estávamos
fazendo por ali. Percebemos que ele era a pessoa responsável pela venda de
drogas naquele território e que a pergunta foi por ter pensado que também
estávamos no comércio. Quando respondemos que éramos do Consultório de
Rua, ele enuncia que Márcia precisava de ajuda.
Alguns dias depois, Cláudio levou Márcia até o CAPS do Município,
contando que o CR a havia atendido e que ela precisava de ajuda “porque
estava usando muita droga”. Márcia não queria ficar em acolhimento noturno
no CAPS, como lhe foi proposto, mas esse contato possibilitou o estabeleci-
mento de um vínculo com ela e com seu marido/companheiro/Cláudio. Nesse
primeiro encontro, Cláudio parecia estar de fato cuidando dela, afinal, dizia
estar preocupado com sua situação de vulnerabilidade, explicando que quando
ela ficava em situação de rua, se colocava em risco. Márcia teve muitas idas e
vindas pelo CAPS e foi acordado pela equipe que ela sempre seria acolhida,
visto as questões de violência que sofria.
Com o passar do tempo, Márcia se vincula tanto ao CAPS quanto ao CR.
Conta-nos, então, que Cláudio a agredia e, muitas vezes, abusava sexualmente
dela. Começa a solicitar ajuda, em especial à equipe do CAPS. Ele sempre
aparecia no CAPS, aparentando ser um companheiro cuidador e preocupado
com ela. Em uma das noites de atendimento do CR, no mesmo viaduto que
a encontramos pela primeira vez, estava lá com Cláudio. Ele, muito irritado
com ela, dizia que ela o fazia passar vergonha, porque se prostituía. Conta
que muitas vezes ele a deixou trancada dentro de casa para protegê-la. Diante
desta fala, foi realizada uma intervenção abordando a questão da violência com
2 Todos os nomes mencionados no caso são fictícios.

Cláudio, situando que ele poderia se complicar e afirmando o erro de agressão

contra a mulher. A isso, ele responde de imediato em um tom ameaçador, que
jamais havia pronunciado: “olha aqui se eu for preso eu caio grandão. Eu
tenho um nome para zelar, ela faz eu passar vergonha, porque ela é minha
mulher e está me colocando corno”. Na sequência, interveio-se questionando
se não seria melhor ele se afastar dela, já que a vergonha era muita. Nesse
momento, pensou-se que se Cláudio não a procurasse mais, seria possível
ofertar outros cuidados e outras intervenções para a usuária, afinal, o que se
revela nessa cena era o quanto ela vivenciava o cárcere – sendo muitas vezes
um cárcere psíquico. No primeiro momento, a intervenção não teve o efeito

esperado; mas o vínculo com ele não se rompeu e com ela se mantinha cada
vez mais estreito. Sempre que ela julgava ser necessário, recorria ao CAPS,
muitas vezes durante a madrugada. Esse ciclo de violência se repetiu por
muitas vezes.
Passado algum tempo, Cláudio vai ao CAPS e procura a equipe para
dizer: “larguei ela de mão. Não tem mais condições. Vocês tentem ajudá-la,
porque eu desisti.” A equipe, então, acaba por incentivar essa atitude, pen-
sando poder cuidar dela. Foi nesse momento que ela ficou acolhida no CAPS
e acabou mudando-se de município onde teria familiares. Márcia sofria muitas
violências: além do companheiro, o filho dele também era violento com ela,
tendo chegado ao limite de quase matá-la. Certo dia, disse à equipe: “eu ia
matar ela viva no poço que tem lá em casa”.
O caso de Márcia ilustra o trânsito entre o ir e vir da rua e do ambiente
doméstico – este interpretado pelo seu companheiro enquanto uma estraté-
gia de proteção, já que ele referia estar cuidando da mulher ao levá-la para
sua casa. Este caso nos coloca questões importantes no que tange à proteção
ofertada para as mulheres que desenham trajetórias pelas ruas: Que proteção
é ofertada?
Muitas mulheres em situação de rua relatam se aproximar e intensificar
relações com homens na rua para estarem protegidas de outros riscos que a
própria exposição na rua pode acarretar – como abusos, estupros e confli-
tos. Nesse cenário, representantes do Estado também acabam por assumir
uma postura repreensiva no tratamento destas mulheres ao encontrá-las
pelas ruas. Profissionais da saúde e da assistência social que acabam por
acolher e acompanhar estes casos, também vivenciam impasses no que
tange à atuação junto às mulheres. Este trabalho, portanto, se propõe a
interrogar essa ideia de proteção ofertada às mulheres em situação de rua,
seja pelas redes de apoio ou pelas políticas estatais, além de direcionar
o olhar para os impasses e paradoxos que se apresentam no processo de
escuta nesses cenários.
44
A política de situação de rua

Em dezembro de 2009 é assinado o Decreto nº 7.053, instituindo a Polí-
tica Nacional para a População em Situação de Rua. O decreto traça princípios,
diretrizes, critérios para implementação e define a população em situação
de rua como:
o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza

extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a ine-

xistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros
públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de
forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória.
Já a estratégia Consultório na Rua foi instituída pela Política Nacio-

nal de Atenção Básica em 2011, visando ampliar o acesso da população em
situação de rua aos serviços de saúde. O Consultório na Rua é composto por
equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde frente às
necessidades dessa população. Elas devem realizar suas atividades de forma
itinerante e, quando necessário, desenvolver ações em parceria com as equipes
das Unidades Básicas de Saúde do território.
O caso apresentado neste capítulo foi atendido pela equipe do Consul-
tório de Rua de um município do estado do Rio Grande do Sul. Essa equipe
possui algumas particularidades que a diferencia de outras no país. A equipe
é composta por profissionais que trabalham na rede saúde do município e
fazem horas extras na equipe do consultório de rua. Assim, quando se sai a
campo para o atendimento, não são todos os componentes da equipe que estão
presentes. A equipe é composta por técnicos de enfermagem, enfermeiro,
psicólogo e redutores de danos. Além disso, tanto os técnicos de enferma-
gem como os redutores de danos possuem outras formações. Os técnicos
de enfermagem possuem formação de enfermagem e psicologia; enquanto
os redutores de danos possuem formação de psicologia e serviço social. Os
redutores de danos são os únicos profissionais que são próprios e exclusivos
do Consultório de Rua, e esses são terceirizados. Especificamente no caso
descrito, a usuária referida era atendida por duas redutoras de danos e um
técnico de enfermagem, sendo que no caso das redutoras uma era psicóloga
e a outra assistente social e o técnico de enfermagem também era psicólogo.
Mulheres na política de situação de rua
Alguns anos depois da implementação da Política Nacional para a Popu-

lação em Situação de Rua, em 13 de outubro de 2020, a Resolução nº 40 do
Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) dispõe sobre as diretrizes

para promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situa-
ção de rua. Com a finalidade de evitar a criminalização e culpabilização das
pessoas pela situação de rua em que se encontram, os programas, projetos,
serviços e todo tipo de atendimento direcionados para esta população devem
considerar que este fenômeno social inclui fatores estruturais que marcam a
sociedade brasileira como a desigualdade social, o desemprego, a insuficiência
de renda, a falta de moradia e o racismo; os quais são potencializados pelo não
acesso aos direitos e políticas sociais (art. 6). Além disso, a artigo 7º afirma
que as políticas públicas devem considerar a heterogeneidade da população

de rua (art. 7).
O Capítulo VIII desta Resolução é dedicado à relação entre população de
rua, direitos humanos e direitos das mulheres. De acordo com o Artigo 130:
o poder público deve garantir a proteção das mulheres adultas e adoles-

centes em situação de rua vítimas de violência, garantindo atendimento
integral e intersetorial com articulação institucionalizada entre o sistema de
justiça, os demais serviços da rede de atendimento, conselhos de direitos
e sociedade civil organizada.
§ 1º O Estado deve ter especial atenção à violência no contexto doméstico
e familiar da qual podem ser vítimas mulheres em situação de rua, em
qualquer fase da vida, devendo garantir estratégias adequadas de prevenção
e proteção, considerando suas especificidades.
A resolução reitera que as mulheres (cis ou trans), adultas, adolescentes e

crianças em situação de rua devem ter seus direitos humanos protegidos, sendo
a elas garantida uma vida livre de violência (art. 123). Além disso, traz sobre o
dever do Estado em garantir o acesso à moradia permanente prioritariamente
às mulheres em situação de rua e suas famílias; e garantir o eventual acolhi-
mento das mulheres em situação de rua e suas famílias (art. 124; art. 125).
Também é importante o destaque dado às demandas de saúde desta popu-
lação, desde a oferta de absorvente, contraceptivo, acompanhamento gineco-
lógico, até o acompanhamento obstétrico no pré-natal, no parto e pós-parto.
Além disso, ressalta-se o acompanhamento de forma articulada e intersetorial
com o SUAS, com o objetivo de garantir o cuidado integral ao recém-nas-
cido e à mãe. A rede de atenção à saúde deve garantir que os direitos à saúde
das mulheres adultas e adolescentes em situação de rua não se restrinjam
aos direitos reprodutivos, sendo a elas garantido o direito à saúde de forma
integral conforme é preconizado no SUS. Estes são alguns direcionamentos
e apontamentos de estratégias estatais para enfrentamento da violência contra
às mulheres em situação de rua. Dada a complexidade das demandas referente
à esta população, olhar para a violência de gênero implica considerar toda a
46
estrutura social, política, econômica que incide sobre os sujeitos e seus corpos;
e que vai desde a violação de direitos e necessidades básicas, até os efeitos
para a constituição e existência no mundo.
A violência de gênero: delimitando um caminho
Não é à toa que o texto inicia retratando o cenário político brasileiro e

abordando, em números, os impactos da pandemia na agenda da violência
contra a mulher e suas variações em termos de judicialização da questão,

principalmente na comparação entre o antes e depois da pandemia. Recorrer
ao documento citado, Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil
– 2021, nos coloca duas questões disparadoras para uma análise teórica: 1) De
qual mulher se fala no relatório exposto e quais são as mulheres que recorrem
a registros policiais? 2) Como o cenário econômico, sanitário, político e social
impacta a violência de gênero?
A cientista política Françoise Vergès em seu livro Um Feminismo Decolo-
nial (2020) rejeita o termo feminismo civilizatório: aquele que levanta pautas
sobre a igualdade entre homem e mulher, mas de forma universalista no que
tange à categoria mulher. Ela acrescenta ainda que este feminismo opera
à serviço do capitalismo. A obra da autora amplia a questão sobre qual é a
mulher de que se fala no feminismo, ou melhor, nos feminismos – no plural.
É a partir da problematização acerca do trabalho que as mulheres racia-
lizadas no Sul global desempenham (como a limpeza e os serviços gerais),
que a autora ilustra que “todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres
negras, racializadas, abrem a cidade. Elas limpam os espaços que o patriarcado
e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar” (Vergès, 2020, p. 12). Ao
situar as condições de trabalho destas mulheres (um trabalho perigoso, mal
pago, sem reconhecimento de qualificação, com produtos químicos tóxicos
e prejudicial à saúde), ela levanta questões relacionadas às intersecções, mas
também aos corpos do capitalismo, ao extrativismo, à exploração das pessoas
e à economia do esgotamento (Vergès, 2020). Enquanto a mulher branca ocupa
o lugar de sucesso e hiperprodução no capital – como o corpo que trabalha
até tarde no escritório, malha e cuida da saúde – o corpo da mulher negra é
invisibilizado, mesmo sendo aquele que organiza estruturas do cotidiano para
que esta mulher branca trabalhe enquanto alguém cuida de seus filhos e de
sua casa. Este recorte, de modo algum, anula a vivência de mulheres brancas
do machismo cotidiano; mas decompõe a ideia da mulher universal. Mais do
que apontar interseccionalidades, demonstra relações que ainda se sustentam
na lógica da exploração, colonialidade e racismo.
Assim, o feminismo civilizatório é aquele que oferece ao neolibera-
lismo e ao imperialismo uma política dos direitos das mulheres que serve a
seus interesses. Como um contraponto, tem-se o Feminismo Decolonial, que

denuncia a dimensão colonial e racial de um feminismo europeu convencido
de ter escapado das ideologias racistas da escravatura e do colonialismo (Ver-
gès, 2020). Françoise Vergès, então, defende que o caminho seria através do
enfrentamento da colonialidade do poder que, mesmo após a formalização
da independência de territórios colonizados, persiste como legado da moder-
nidade, do racismo e do capitalismo.
Judith Butler, em Problemas de Gênero (2018), também questiona a
suposta universalidade e unidade do sujeito do feminismo, situando que estas
definições são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em

que funcionam. Por conseguinte, sobre a noção de especificidade do feminino
diferenciada do masculino, a autora acrescenta:
A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclu-

siva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo
a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente descontextua-
lizada, analítica e politicamente separada da constituição de classe, raça,
etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem a
“identidade” como tornam equívoca a noção singular de identidade (p. 18).
Essa discussão se mostra relevante não por estimar qual é a mulher

que sofre mais ou menos, mas para localizar uma perspectiva da violên-
cia de gênero que se enraíza para além da oposição entre homem agressor/
mulher vítima. Na sequência do pensamento de Françoise Vergès, em sua
última produção chamada Uma Teoria Feminista da Violência (2021), ela
retoma o feminismo decolonial para embasar uma análise da violência como
componente estruturante do patriarcado e do capitalismo, e não como uma
especificidade masculina e individual do homem. Com efeito, não é possível
retratar a violência contra a mulher de maneira isolada de um estado global
das violências, como:
o suicídio maciço de crianças nos campos de refugiados/ as, o uso maciço

do estupro por policiais e militares nos conflitos armados, o racismo sis-
têmico, o exílio de milhões de pessoas devido à multiplicação de zonas
de guerra e às condições econômicas e climáticas que tornaram a vida
impossível, os feminicídios, a precarização ininterrupta (p. 6).
Concomitante com a leitura de Vergès, a respeito um estado global das

violências, as considerações epistemológicas e ontológicas de Butler sobre o
reconhecimento e a precariedade situam os motivos pelos quais certas popu-
lações são insistentemente expostas às violações, às violências e à morte. Ao
48
trabalhar com o conceito de reconhecimento, Butler (2015a; 2015b) argumenta

como a dimensão social da normatividade condiciona qualquer troca entre o
eu e o outro, governando a cena do reconhecimento. Essas normas funcionam
por estarem contextualizadas socialmente e excederem a díade eu-outro. No
momento em que reconhecemos o outro, estamos submetidos a uma norma
de reconhecimento, tornando-nos instrumento de ação daquela norma. Nesse
movimento, o outro só aparece se há um quadro de referência dentro do qual
pode ser visto e apreendido em sua separabilidade e exterioridade. Portanto,
a capacidade de discernir e nomear o “ser” depende dessas normas que dão

parâmetro para o reconhecimento (Butler, 2015a; 2015b).
Butler ressalta que esta é uma questão ontológica, que faz da ontologia
do corpo uma ontologia social. Ou seja, é a historicidade das organizações
sociais e políticas que atribuem a diferença no grau de precariedade para
alguns em relação aos outros. Os corpos estão expostos a forças do âmbito
social e político, que tornam a subsistência do corpo possível (Butler, 2015a).
Segundo Butler (2015a), não há como pensar uma vida como não precária,
vidas são por definição precárias. Mas a condição precária diz respeito à con-
dição politicamente induzida de certas populações, que sofrem de redes de
apoio deficientes e ficam expostas às violações, à violência e à morte. Essas
são populações mais expostas a doenças, pobreza, fome, deslocamentos e
violência sem nenhuma proteção.
Assim, os corpos que se situam no âmbito social, se encontram em uma
condição compartilhada de precariedade, visto que são constitutivamente
sociais e interdependentes. Nesse encontro onde os corpos estão potencial-
mente ameaçados por outros corpos, a condição precária produz formas de
dominação e não reconhecimento, e consequentemente, uma exploração espe-
cífica de certas populações. São as vidas que são consideradas destrutíveis e
não passíveis de luto. Essas populações assumem um caráter de sacrificáveis,
precisamente porque são ameaçadoras e não necessitam de proteção contra a
violência ilegítima do Estado (Butler, 2015a).
Notas sobre a proteção
Toda sociedade organiza formas de proteção. Nessa linha, o próprio

Estado acaba por configurar distinções entre quem tem direito à proteção
e quem não tem. Tanto Vergès, quanto Butler, alertam sobre as populações
que recorrem ao Estado em busca de proteção, enquanto o próprio Estado é
precisamente aquilo do que elas precisam ser protegidas, ou seja, o próprio
Estado acaba por ser violentador. Na obra Quadros de Guerra, Butler defende
a raridade de casos contemporâneos de violência não terem relação com essa
forma política (Butler, 2015a). Já em Uma Teoria Feminista da Violência,

Vergès não questiona a estatização da proteção ou sua burocratização, milita-
rização e marginalização, mas propõe questionamentos para pensar a proteção
fora da repressão, da vigilância, da prisão e do paternalismo desenvolvimen-
tista (Vergès, 2021). Nesse sentido, há uma crítica de recorrer à polícia e à
judicialização dos problemas sociais.
Como bem destacado por Vergès, não é paradoxal a proliferação de
medidas, leis e declarações voltadas para a proteção de mulheres e crianças
em paralelo com a precarização, vulnerabilização e o aumento da violência
contra mulheres e crianças. Logo, é o que resulta de certas escolhas políticas

que delimitam fronteiras entre:
as mulheres que têm direito à proteção e aquelas que são excluídas, entre
as crianças que têm direito à infância tal como a concebe a psicologia
moderna (isto é, a salvo da violência dos adultos ou policial) e as crian-
ças cuja infância é criminalizada–as crianças que a polícia e o tribunal
apreendem como adultas, que são excluídas do sistema educacional; os
adolescentes que precisam provar sua idade para serem considerados
menores; as meninas racializadas cuja sexualidade ou prática religiosa
é objeto de zombaria, de desprezo. Quando a proteção está submetida a
critérios raciais, de classe, de gênero e de sexualidade, ela contribui, por
sua lógica e sua implementação, para a dominação (p. 38).
Na edição 78, de julho, agosto e setembro de 2021, o Jornal Boca de Rua3

traz uma reportagem retratando a violência contra a mulher, seguida de três
entrevistas sobre o assunto: com a Maria da Penha, com uma aromaterapeuta
e com representantes da Casa Mulheres Mirabal, em Porto Alegre. O Jornal,
que existe há 20 anos, registra a experiência do povo da rua do município
de Porto Alegre e traz questões e opiniões da população em situação de rua.
As integrantes do jornal, portanto, são mulheres com trajetória nas ruas. Na
reportagem “Nos agridem e nos culpam”, as mulheres contam sobre experiên-
cias que tiveram ao recorrer à órgãos da justiça, como a Delegacia da Mulher:
Quando estive na Delegacia da Mulher eu tinha sido agredida pelo meu

companheiro, mas o delegado me tratou super mal, como se eu fosse cul-
pada pelo que tinha acontecido. Não sei se era porque estava alcoolizada
ou ele tava de mau humor (p. 2).
3 O Jornal Boca de Rua é feito há 20 anos por um grupo de pessoas em situação de rua e risco social na
cidade de Porto Alegre – RS. A receita obtida com os exemplares vendidos é revertida para os integrantes do
grupo e tem supervisão da Alice, Agência Livre para Informação e Cidadania e Educação. O jornal também
é filiado ao International Network of Street Paper (INSP).
50
Apontar algumas pistas sobre a noção de proteção ofertada é reconhecer

que os mecanismos e discursos estatais de “proteção” dissimulam muito mal
as lógicas de racialização que os subjazem e apontam uma política de pro-
teção cega à raça, à misoginia e ao capitalismo (Vergès, 2021). Mesmo que
algumas teorias se mostrem um tanto descrentes na atuação deste Estado que
judicializa e marginaliza, entendemos que é importante reconhecer os avanços
em termos jurídicos referente à população em situação de rua e à violência
contra a mulher. É a partir destas leis que é possível enfatizar a necessidade
de criação e investimentos em políticas públicas. Além disso, estar advertidos

deste lugar que o Estado ocupa na reprodução da violência, nos permite pen-
sar em estratégias enquanto representantes do Estado na escuta à população.
O lugar do Estado e os paradoxos da escuta
A situação de rua por si só já trata de uma ruptura com aquilo que estaria
estabelecido socialmente e normativamente para o reconhecimento de certas
vidas. Como desenvolvido anteriormente, este é um efeito do encontro entre
corpos potencialmente ameaçados por outros corpos. A população de rua
encontra-se, então, na condição precária que Butler (2015a) conceitua, sendo
consideradas vidas não passíveis de luto e vidas destrutíveis a partir da lógica
do não reconhecimento. Essa é a lógica que justifica incessantes violações de
direitos, violências e mortes, inclusive pelo Estado. Esta também é a lógica
que determina quais vidas devem ser protegidas ou não.
O Estado que deveria proteger e garantir direitos, acaba por violentar e
corrobora com a produção de desigualdades e violações de direitos. A ponto
de algumas mulheres precisarem tomar a rua como local de moradia. Nesse
sentido, a torção enquanto representantes do Estado exige um reposiciona-
mento da condição de reconhecimento. Também é necessário que estratégias
de reconhecimento e proteção se desenhem a partir de cada caso e longe da
repressão, da vigilância, da prisão e do paternalismo desenvolvimentista, como
bem situa Vergès (2021). Na lógica estatal de institucionalização das mulheres
como via de proteção, acontece uma inversão: a proteção acaba por aprisionar
justamente quem passou por situações de violência, e consequentemente,
paralisa possibilidades de circulação na cidade e produção de novos caminhos.
O caso apresentado serve como um disparador para abordar que a pro-
teção ofertada pelo Estado às mulheres em situação de rua não está livre de
paradoxos. Congruente a esta premissa, o próprio processo de escuta está
submetido à ressonância dos dilemas e ambiguidades de assumir o cuidado e
escuta destas mulheres em cenários como os Centros de Atenção Psicossocial
e os Consultórios de Rua. É importante estarmos advertidos disso enquanto
profissionais. Dentre os paradoxos do caso apresentado, tem-se as próprias

tentativas e estratégias traçadas para proteger, que por vezes entram na lógica
hegemônica e machista de tratamento às mulheres ou de tutela e controle de
seus corpos. Por exemplo, no caso de Márcia, ela sai da casa de Claudio, vai
para a rua, faz uso de drogas, vai se divertir, vai viver sua sexualidade; escolhas
que, por vezes, não são reconhecidas como legítimas ou são problematizadas,
como se fosse necessário repreendê-las.
Outro paradoxo, é a recorrente tendência das equipes de desistir frente à
situação de violência contra a mulher, repetindo uma lógica institucionalizada.
Márcia circula pelas ruas, sai sozinha, mas na sequência, procura o CAPS
e procura o próprio Cláudio. Nessas procuras, profissionais que atendem e
acompanham as escolhas da paciente mostram-se impacientes ao testemunhar
a repetição do ciclo de violência, alegando que a paciente “não muda”.
Freud, em “Recordar, repetir e elaborar” (1914/2010), situa a impor-
tância de poder repetir para elaborar e, assim, produzir deslocamentos. Para-
doxalmente, em certas circunstâncias para as equipes o efeito transferencial
por vezes é o enunciado da desistência, principalmente quando, por diver-
sos motivos institucionais, a repetição parece ser tomada sempre do mesmo
lugar, sem olhar a diferença que nela se produz. Caso a intervenção fique no
plano do que é enunciado, sem haver uma escuta das lógicas institucionais e
enunciativas que atravessam o trabalho de quem escuta, o cenário acabaria
por reproduzir novamente a violência, fixando a mulher no impossível da
superação da situação.
No caso de aqui apresentado o paradoxo entre a ancoragem para a elabo-
ração e a possibilidade de desistência faz-se presente. A equipe se via diante
de dilemas, testemunhando a ambivalência das relações e a repetição dos
circuitos de violência. Ainda assim, encontraram-se saídas diante das repetidas
situações entre Márcia e Cláudio, abrindo a possibilidade de elaboração. Cada
nova abordagem produziu um deslocamento a ponto de Márcia procurar o
CAPS, para além de ser escutada no viaduto. Ou a ponto de o próprio Cláudio
endereçar um pedido de ajuda à equipe, deixando Márcia no CAPS e no lugar
da desistência, encontra-se uma combinação de acolher Márcia sempre que
ela se apresentasse e em quaisquer condições.
Assim, no desenrolar desses paradoxos, desenham-se possibilidades de
efetivamente articular a escuta das mulheres com recursos disponíveis para a
construção de estratégias de enfrentamento, uma tarefa longe de ser simples
ou fácil. Mas há o momento em que algo novo se produz: com Cláudio se
distanciando de Márcia, a equipe do CAPS assume a articulação de acionar
as redes de proteção extensivas de Márcia, como as relações familiares, com-
pondo um novo cenário.
52
REFERÊNCIAS
Brasil. (2009). Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política
Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Presidência
da República.
Brasil. (2020). Resolução nº 40 de 13 de outubro de 2020. Dispõe sobre as

diretrizes para promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas
em situação de rua. Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Bueno, S., Martins, J., Pimentel, A., Lagreca, A., Barros, B., & Lima, R. S.
(2021). Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil [Relatório].
Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Butler, J. (2015a). Introdução: vida precária, vida passível de luto. In J. Butler,

Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? (pp. 13-57). Civiliza-
ção Brasileira.
Butler, J. (2015b). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Autên-

tica Editora.
Butler, J. (2018). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.

Civilização Brasileira.
Freud, S. (2010). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Obras Completas

(vol. 10, pp. 147-162). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado
em 1914).
Jornal Boca de Rua (julho, agosto e setembro de 2021). Nos agridem e nos
culpam, 78. 15 p.
Vergès, F. (2020). Um feminismo decolonial. Ubu Editora.
Vergès, F. (2021). Uma teoria feminista da violência: por uma política antir-
racista da proteção. Ubu Editora.
CAPÍTULO 3
PSICANÁLISE E JUSTIÇA: articulações
sobre uma práxis que se ocupa do imundo
Aline Lima Tavares
Sonia Alberti
Introdução
De acordo com o Relatório sobre as Desigualdades Mundiais para 2022,

baseado no trabalho de mais de 100 pesquisadores em todo o mundo e publi-
cado conjuntamente por pesquisadores da Escola de Economia de Paris e da
Universidade da Califórnia4, o Brasil permanece um dos países com maior
desigualdade social e de renda no mundo, quadro estrutural que se reflete
cotidianamente nos processos que tramitam nos diversos Tribunais de Jus-
tiça do país.
Especificamente nas Varas da Infância e Juventude, enquanto profissio-
nais inseridas na interface entre Psicologia e Justiça, testemunhamos o quanto
situações de miserabilidade, ausência de direitos e vulnerabilidade social
acabam por expor alguns sujeitos, desde a infância, a situações de violência
e desamparo, o que por vezes culmina em processos de destituição do poder
familiar e posteriormente de adoção. Considerando esta perspectiva, é pos-
sível pensar uma parte importante das adoções de crianças e adolescentes no
país como consequência da violência estrutural brasileira, das desigualdades
sociais e de gênero.
Em seu texto sobre o narcisismo, Freud (1914/2008) já havia nos aler-
tado sobre a importância do investimento libidinal dos pais sobre os filhos,
que decorre da possibilidade de se identificarem com estes, condição para
protegê-los. Em Luto e melancolia, o autor observou a semelhança da relação
entre os pais e a pátria. O que então esperar de uma nação cuja maioria dos
dirigentes não se identifica com os cidadãos? Viver em um país cujo Estado
não protege os seus não é sem efeitos, pelo contrário, gera efeitos mortíferos
que atravessam gerações.
Partindo de um caso clínico, objetivamos apontar, conforme indicam
Chagas, Oliveira e Moretto (2021), a escuta clínica enquanto ação política,
4 Chancel, L., Piketty, T., Saez, E., & Zucman, G. (orgs.). (2022). Word inequality Report 2022. https://wir2022.
wid.world/chapter-5/
54
uma vez que possibilita a escuta do sujeito em sua singularidade, impedindo-

-nos de tomar aqueles que atendemos como meros objetos à mercê da letra da
lei e de sua aplicação burocrática. Ressaltar a dimensão supracitada mostra-se
fundamental uma vez que, frequentemente, diante da situação de extrema
vulnerabilidade a que crianças, adolescentes e suas famílias estão expostas,
muitos profissionais, inclusive da área psi, não conseguem escutá-los, o que
potencializa o risco da submissão do sujeito e sua fixação na posição de não-
-responsabilização (Elia, 2016).

Em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, Lacan (1968-69/2008)
já havia destacado a contribuição que enquanto analistas podemos oferecer à
história, às instituições: seria mostrar, através de uma série de exemplos, uma
articulação pela qual o círculo da repetição histórica pode se abrir.
O sentido do sintoma é o real: o que nos ensina Ramon
Ramon5 é um menino de sete anos que foi acolhido institucionalmente

sob alegações de negligência e maus tratos praticados contra ele por sua mãe.
Considerando que a criança já havia sido acolhida anteriormente por alguns
meses, o Ministério Público abriu ação propondo a destituição do poder fami-
liar de Luanda, genitora do infante.
Foi designada atuação do Setor de Psicologia da Vara da Infância e Juven-
tude e, ao estudar os autos, observamos que um outro processo, que versava
sobre “medidas de proteção” a Ramon, fora encerrado há apenas três meses.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, medidas de
proteção devem visar o fortalecimento de vínculos familiares e auxiliar na
superação de vulnerabilidades com “intervenção das autoridades competentes
logo que a situação de perigo seja conhecida” (Brasil, 1990). Neste contexto,
chamou nossa atenção o encerramento do processo de medidas de proteção
a Ramon, pois o último relatório da psicóloga da rede municipal relatava
dificuldades da mãe na lida com o filho, sinalizando textualmente “a situação
é de elevado risco”. A psicóloga transmitia ao poder judiciário os pedidos de
ajuda de Luanda, que afirmava que, para não bater no filho (que se comportava
de modo excessivamente agitado), passou a permitir que o mesmo passasse
longos períodos pelas ruas do bairro.
A situação mostrava-se ainda mais complexa à medida em que os serviços
da rede municipal sinalizavam que, possivelmente, Luanda era paranoica,
apresentando delírios de conteúdo religioso relacionados ao filho. A mãe de
Ramon não aderia voluntariamente ao tratamento ambulatorial oferecido
5 Os nomes foram alterados.
pelo CAPS, que não considerava a possibilidade de realizar “busca ativa” à

possível paciente.
Se Luanda não sabia como auxiliar o filho, tampouco a rede de serviços
sabia como auxiliá-los, o que culminou no agravamento da situação de vul-
nerabilidade da família, resultando no acolhimento institucional de Ramon
e no processo que sugeria destituição do poder familiar, trazendo à tona o
círculo da repetição.
Em seu Discurso aos psiquiatras, Lacan (1967) afirma que se os médicos
não se sentem concernidos na presença do louco, isto se dá porque utilizam
certos procedimentos que visam salvaguardá-los da angústia que a clínica

da loucura necessariamente provoca: “eles interpõem entre ele e o louco um
certo número de barreiras protetoras [...]. Uma ideia que os separa do louco,
rotulando-o como uma espécie entre outras, de coleóptero, da qual se trata
de dar conta em estado natural” (Lacan, 1967, p. 5). Levantamos a hipótese
de que o status quo com que nos defrontamos em nossa clínica no campo
jurídico aponta para algo semelhante: muitos profissionais erigem barreiras
para se defender da angústia. Ao taxionomizar as situações, institucionaliza-se
o mesmo funcionamento que Lacan denuncia em relação à psiquiatria.
Em A terceira, Lacan (1974) define a angústia como sintoma típico
do advento do real e enfatiza a importância de que, enquanto analistas, nos
ocupemos daquilo que “é o que não caminha”, que não cessa de se repetir
para entravar a marcha, atravessando o caminho da carruagem do discurso
do mestre. Nesse momento de seu ensino, estabelece uma distinção entre o
que funciona e o que não funciona: “o que funciona é o mundo. [...] O mundo
caminha, gira em círculo, é sua função de mundo” (Lacan, 1974/2003, p. 63).
O que não funciona é aquilo que faz “com que o mundo seja imundo” e com-
porta a dimensão da pulsão de morte em sua articulação com o real, sendo
desta dimensão que o analista deve se ocupar (Lacan, 1974/2003).
Em função da atual pandemia de covid, durante alguns meses o Tribunal
de Justiça funcionou de forma exclusivamente remota, motivo pelo qual, num
primeiro momento, não conseguimos atender Luanda. Possuíamos o contato
telefônico de uma tia materna de Ramon, que transmitiu à irmã que a procu-
rávamos. Luanda, contudo, nunca retornou nosso contato. A partir da suposta
inércia de Luanda em reverter o acolhimento do filho, o Ministério Público
opinou pelo acionamento do cadastro de adotantes, sugestão acolhida pelo juiz.
Embora considerássemos a decisão dos operadores do Direito precipitada,
não nos cabia questioná-la, função exercida pela Defensoria Pública6 que
representava Luanda. O que nos cabia era ouvir Ramon, verificar a existência
6 Como a Defensoria também operava apenas remotamente, nunca havia conseguido falar com Luanda,
trabalhando por negatória geral.
56
de laços entre ele e a mãe, se havia possibilidade de acionamento do cadastro

de adotantes, uma vez que não existia indicação para colocação da criança
na família extensa.
É neste momento que faz toda diferença se somos psicanalistas ou buro-
cratas. Para um analista, é impossível trabalhar sem escutar o sujeito. Um
burocrata aciona o cadastro de adotantes sem “querer saber de nada”, o que
por vezes resulta, meses ou anos depois, na “devolução da criança” ao serviço
de acolhimento.
No atendimento realizado com Ramon, ele demandou, sem cessar, con-

tato com a mãe e a irmã. Questionou que, se podia falar conosco pelo com-
putador, poderia, da mesma forma, falar com a mãe. Perguntava se tínhamos
o telefone dela, se poderíamos fazer contato, pois acreditava que a genitora
não podia lhe visitar devido ao coronavírus.
Explicamos que estávamos com dificuldades para falar com a mãe dele,
mas que verificaríamos com o juiz o melhor modo de avaliar o pedido que
estava nos formulando.
Quando contatamos a equipe técnica da instituição de acolhimento, essa
pontuou que a criança não lhe perguntava acerca da família biológica. Parale-
lamente, porém, o psicólogo afirmou que, com certa frequência, Ramon dizia
que gostaria de ser menina, fala que interpretava a partir da história de vida
dele: a mãe da criança foi capaz de se responsabilizar e manter consigo apenas
a filha que é do sexo feminino. Desse contato que fizemos com a equipe do
acolhimento concluímos que Ramon dizia, sim, sobre sua família biológica,
contudo, ninguém parecia lhe dirigir perguntas que poderiam permitir-lhe
continuar a falar.
Em conjunto com a assistente social judiciária, elaboramos um primeiro
relatório no qual indicamos impossibilidade de acionamento imediato do
cadastro de adotantes: havia importantes questões subjetivas que precisavam
ser elaboradas. Solicitamos autorização para atender Ramon semanalmente,
referindo ser necessário acompanhá-lo no percurso que havia começado a
delinear. O Ministério Público e o juiz acataram nossas sugestões.
Ramon continuou a demandar por sua mãe e passou a perguntar sobre
uma tia materna. A equipe técnica da instituição de acolhimento mostrava-se
contrária a qualquer contato entre a criança e a família biológica, deman-
dando que não fornecêssemos o telefone da tia para o infante, que o pedia
sem cessar, com uma caneta na mão: “você conseguiu falar com a minha tia?
Me fala o telefone dela?”. Na opinião da equipe do acolhimento, se Ramon
seria encaminhado para uma família substituta, era melhor que os laços com
a família biológica fossem cortados. Além disso, tratava-se de uma família
que, segundo os colegas da rede de serviços, pouco ou nada teria a oferecer ao
menino, motivo pelo qual consideravam, a despeito dos pedidos de Ramon,

que evitar o contato com a família significava “protegê-lo”.
Em certa ocasião, trouxe um brinquedo com o qual construiu um revólver.
Ao perguntarmos para quem estava apontando a arma, disse que para a avó
materna, a qual gostaria de matar, pois já havia “judiado” muito dele.
Em reunião com a equipe do acolhimento, pontuamos que não era possí-
vel dizer para Ramon, diante de seus pedidos reiterados de contato com a mãe
e com a tia, para “esquecer delas” ou “esquecer destas ideias e focar em seu
futuro”. Advertidos dos efeitos do recalque, não só sob um sujeito, mas tam-
bém sob uma cultura, como trabalhar visando o recalcamento da subjetividade?

No último atendimento realizado com Ramon antes do prazo de confec-
ção de um segundo relatório, o único ocorrido de forma presencial, a criança
apresentou-se em frangalhos. Encolhido sob a cadeira, a chorar, dizia que
queria sua mãe. Também continuava a demandar que lhe permitíssemos falar
com a tia, mesmo sabendo que esta havia sinalizado a impossibilidade de
assumir sua guarda.
Naquele momento, com o fim do trabalho exclusivamente remoto, a
ausência de Luanda havia se tornado mais concreta. Dissemos para Ramon
sobre nossas tentativas de contato com sua mãe, que não respondia nossas con-
vocações. Apesar da discordância da equipe do acolhimento, realizamos uma
videochamada entre a criança e a tia. Ao desligar o telefone, após ouvi-la dizer
que não poderia se responsabilizar por ele, voltou a falar que queria a mãe.
Tentamos explicar para Ramon os motivos de seu acolhimento a partir do
que estava narrado nos autos. A criança, porém, justificava todas as atitudes
maternas, explicou que a mãe nunca “judiou” dele, somente a avó e o tio.
Levantamos como hipótese que Ramon tem dificuldades em ver a mãe
como não protetora pois considera que ela lhe salvou daquilo que é seu maior
do horror: a casa da avó. De acordo com os relatórios encartados nos autos,
o infante vivia com um irmão mais velho, um tio e a avó materna. Há dois
anos, sua genitora, que encontrava-se cumprindo pena no sistema prisional,
retornou para casa da família e passou a defender Ramon das frequentes agres-
sões sofridas por parte da avó e do tio. No primeiro acolhimento de Ramon,
inclusive, Luanda afirmou que “esqueceu o filho na escola porque estava com
problemas em casa” e sabia que no colégio ele estaria protegido. Posterior-
mente, passou a morar com Ramon e a filha que acabara de nascer numa casa
“emprestada” pelo pastor da igreja. Foi no momento em que precisou deixar
esta casa diante do fim do auxílio emergencial pago pelo governo federal na
pandemia, que os problemas entre a criança e a mãe se intensificaram.
É importante registrar que a recusa da equipe do acolhimento acerca
do contato de Ramon com a família biológica decorre do horror que
testemunharam ao realizar visitas à casa da família extensa da criança. De
58
acordo com os relatos, Ramon vivia, com a avó, em situação análoga a cár-
cere privado.
A complexidade deste caso nos levou a discuti-lo em supervisão. Cons-
truímos como hipótese que Luanda não comparece às entrevistas nem demanda
contato com o filho por saber que não possui condições de protegê-lo, assim
como sabe que o Estado não irá ampará-la.
A partir de então, concluímos que, de algum modo, seria preciso transmi-
tir a Ramon que sua mãe deseja que ele seja adotado, não com um abandono,
mas como uma aposta em seu futuro.

Após o atendimento em que permitimos que Ramon falasse por telefone
com a tia, a equipe do acolhimento reportou que a criança passou a se compor-
tar de modo rebelde e agressivo na instituição, além de ter passado a demandar
pela mãe também para eles, o que antes não fazia. Na leitura dessa equipe, o
“comportamento rebelde” de Ramon decorreu da chamada de vídeo com a
tia. Na ocasião, pontuamos que o “comportamento rebelde” não decorreu do
breve contato telefônico, mas que do fato de que, pela primeira vez, Ramon se
deu conta da necessidade de separar-se da mãe que ele ama por tê-lo salvado
das terríveis humilhações a que estava submetido pela avó e o tio materno.
Algumas semanas depois, pela primeira vez, Ramon começou a perguntar
quando iríamos procurar por uma nova família.
A disjunção entre saber e poder operada a partir da psicanálise
Ao escrever sobre o mal-estar na cultura, Freud assinalou que o passo

decisivo para a constituição da civilização foi a substituição do poder de um
sujeito – derivado de sua força física – pelo poder da comunidade, estabelecido
como ‘direito’: “a vida em comum só se torna possível quando se reúne uma
maioria mais forte do que qualquer sujeito isolado e que permanece unida
contra qualquer pessoa isoladamente” (Freud, 1930[1929]/2008, p. 115). Res-
saltou, então, a importância da justiça, de leis que regulem os relacionamentos
sociais garantindo que cada membro contribua igualmente com sua quota de
sacrifício pulsional.
Não escapou a Freud, contudo, a relação entre o direito e a violência.
Advertido sobre os paradoxos da constituição pulsional humana, em carta a
Einstein, destacou que quando o grupo se uniu, deixando de valer a lei do mais
forte, substitui-se a violência de uma pessoa pela violência da comunidade
pois, sendo esta composta por elementos de força desigual (homens e mulhe-
res, pais e filhos, senhores e escravos), sua justiça passou a exprimir os graus
desiguais de poder nela vigentes. Freud escreve textualmente: “as leis são fei-
tas por e para os membros governantes, havendo pouco espaço para os direitos
daqueles que se encontram em estados de sujeição” (Freud, 1933[1932]/2008,

p. 248) e ainda “estaremos fazendo um cálculo errado se desprezarmos o
fato de que a lei, originalmente, era força bruta e que, mesmo hoje, não pode
prescindir do apoio da violência” (Freud, 1933[1932]/2008, p. 251).
Também Foucault (1973/2013), ao traçar uma genealogia das práticas
jurídicas no Ocidente, demonstrou que a Justiça, tal qual a conhecemos hoje,
não surgiu em função de uma pretensa humanidade ou do desejo de igualdade
entre os homens, mas de relações de poder, jogos de força política.
De acordo com o supracitado autor, a partir do surgimento do capitalismo
e da necessidade de proteger a riqueza que passou a se acumular em forma

de mercadoria armazenada, uma série de poderes laterais à Justiça (polícia,
escolas, hospitais, fábricas) foi criada com objetivo de disciplinar e controlar
os corpos: tornou-se imperativo exercer uma vigilância constante sobre os
cidadãos por alguém que exerce sobre eles um poder – professor, médico,
assistente social, psicólogo, diretor de prisão – e que, enquanto exerce esse
poder, constrói sobre aqueles que vigia um saber. Nesse contexto, Foucault
ressaltou o quanto poder e saber estão enraizados, indicando a importância
de questionar as ciências humanas: “se minha análise é exata, não podemos
situar as ciências do homem no mesmo nível de uma ideologia que seja pura e
simplesmente o reflexo e a expressão na consciência dos homens das relações
de produção” (Foucault, 1973/2013, p. 123).
Em O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, Lacan (1968-69/2008)
assinalou que a disjunção entre saber e poder pode e deve ser articulada
a partir de Freud, isto é, através da psicanálise, uma vez que Freud leu os
efeitos da disjunção entre saber e poder nos sintomas das histéricas e tentou
fazer frente a eles, o que culminou na criação da psicanálise.
No mesmo sentido, em seu Discurso aos psiquiatras, Lacan (1967) refe-
riu que é possível ter algo a dizer sobre os efeitos da segregação, desde que
“não estejamos dormindo”. Indicou, então, o caminho cujas pistas tentamos
seguir em nossa práxis para fazer frente à segregação: “saber como as coisas
se produzem”, pois é o que permite “certamente lhes dar uma forma diferente,
uma guinada menos brutal e, se quiserem, mais consciente do que quando não
se sabe a quê se cede” (Lacan, 1975, p. 19). Eis onde se encontra a importância
da escuta clínica, ferramenta política do psicanalista na instituição.
60
REFERÊNCIAS
Brasil. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990.
Chagas, L., Moreira, J., & Moretto, M. L. (2021). A força política da escuta
clínica de mulheres em situação de violência. In L. Danziato, L. Teixeira, &
J. Gaspar (orgs.), Violência de gênero e ódio ao feminino. CRV.

Elia, L. (2016). Responsabilidade do Sujeito e Responsabilidade do Cuidado
no Campo da Saúde Mental. Academus Revista Científica da Saúde, 3(4).
Foucault, M. (2013). A verdade e as formas jurídicas. Nau. (Trabalho original

publicado em 1973).
Freud, S. (2008). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Obras completas

(vol. 12). Cia. das Letras. (Trabalho original publicado em 1914).
Freud, S. (2008). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas (vol. 12).

Cia. das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).
Freud, S. (2008). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas

(vol. 18). Cia. das Letras. (Trabalho original publicado em 1930[1929]).
Freud, S. (2008). Por que a guerra?. In S. Freud, Obras completas (vol. 18).
Cia. das Letras. (Trabalho original publicado em 1933[1932]).
Lacan, J. (1967). Pequeno discurso de Jaques Lacan para os psiquia-

tras. Inédito.
Lacan, J. (1974). A terceira. Inédito. Circulação interna da Escola

Letra Freudiana.
Lacan, J. (2003). O triunfo da religião. In J. Lacan, O triunfo da religião prece-

dido de Discurso aos católicos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1974).
Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 16: de um outro ao Outro. Zahar. (Tra-

balho original publicado em 1968-69).
2ª SEÇÃO
ESTRATÉGIAS SUBJETIVAS,
SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS
DE ENFRENTAMENTO À
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
CAPÍTULO 4
A CONSTRUÇÃO DE UM COLETIVO DE
MULHERES QUE SOFREM VIOLÊNCIA
DE GÊNERO: uma escolha política pela vida
Rose Gurski
Introdução
A julgar pelos dados da chamada violência de gênero contra as mulheres

é premente desenvolver novas estratégias e alianças no enfrentamento deste
fenômeno social. Trata-se de uma conflitiva que se complexifica ao considerar
as diferenças sexuais, a identidade sexual e a relação entre natureza e cultura
que ganham renovadamente novas nuances no laço social. Tal movimento
alimenta e move os nossos modelos explicativos e propositivos que, em muitas
situações, apresentam-se como insuficientes. Entendemos que esta questão
deve ser revisada em todas as áreas das Ciências Sociais e Políticas e não
somente na psicanálise, pois a violência contra as mulheres e de gênero se
manifesta nas relações históricas, políticas, culturais e subjetivas.
A violência contra as mulheres e a violência de gênero abrange tantos
aspectos que a possibilidade de conceituá-la e defini-la torna-se um desafio
(MacDowell Santos & Pasinato Izumino, 2005). A tarefa envolve relações
de convivência, tanto em espaços privados como públicos; suas manifesta-
ções são diversas e abrangem a ação física, sexual, patrimonial ou formas
silenciosas, simbólicas e invisíveis, mas não menos destrutivas. A violência
decorre, sobretudo, de relações de poder, da histórica dominação masculina
e da condição de subalternização das mulheres, em contextos relacionais
sustentados pelas estruturas hierárquicas do patriarcado.
A psicanálise tomou caminhos diversos na discussão tanto sobre o gênero
como sobre a violência. Se é certo que a psicanálise está presente nas con-
dições de possibilidade do feminismo (Silveira, 2021), é certo também que
nela coexistem ideias conservadoras e libertadoras (Van Haute & Geyskens,
2016). Se considerarmos a psicanálise como uma teoria crítica que emerge
num contexto histórico e geopolítico determinado que compreende o sujeito
64
como sujeito (dividido) do inconsciente e, ao mesmo tempo, enraizado em

relações de poder e dominação historicamente situadas, ela tem muito a dizer
sobre as formas de dominação e de emancipação.
Partindo destas questões, o objetivo deste escrito é apresentar a expe-
riência de um coletivo de mulheres periféricas que organizou a invasão de um
prédio público. Importa dizer que tal prédio abrigou, em tempos anteriores,
uma escola estadual. Neste enlace com a educação, o Coletivo demandou uma
parceria de trabalho com o NUPPEC7. Tal demanda veio ao encontro do traba-
lho de decolonização da produção teórica que o Núcleo vem desenvolvendo.

Temos trabalhado com a premissa de que a experiência sempre é passível de
fazer furo na teoria (Mannoni, 1996) deste modo considerar as experiências, as
vozes e elaborações de mulheres subalternizadas, torna possível “criticalizar”
as nossas teorias pós e decoloniais (Allen, 2016).
O coletivo de mulheres
No século XX, a psicanálise foi uma das disciplinas que esteve mais
próxima de problematizar a dominação masculina, pois reconheceu que a
sociedade patriarcal fez das mulheres objetos e dos homens sujeitos de ação
e desejo. A antropóloga Gayle Rubin (2017, p. 36) afirmou que os textos
freudianos podem ser lidos como a descrição da realidade da opressão das
mulheres no início do século XX. A psicanálise como corpo teórico e prática
terapêutica marcou o pensamento da modernidade com a discussão sobre
a sexualidade e os debates acerca da diferença sexual, realizando um giro
na clínica médica ao apostar nas relações absolutamente articuladas entre
o psíquico e o social, isso é claro corroborando a noção freudiana de que a
psicologia individual é simultaneamente social (Freud, 1921/2013).
Segundo Dunker (2017), foi deste modo que a boa clínica passou a ser
também uma aposta nas transformações sociais. Esse entendimento da clínica
psicanalítica tem inúmeras implicações, especialmente se considerarmos a dis-
cussão sobre a violência contra as mulheres e de gênero. Esse tipo de violência
ocorre em todas as sociedades capitalistas, em diferentes países, em todas
as classes sociais e grupos étnico-raciais, evidenciando um fato estrutural,
ainda que assumindo formas diversas nos seus diferentes contextos, como já
7 O Núcleo é uma ação conjunta de docentes do Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura
e do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação, ambos PPGs da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Participam do Núcleo professores, pesquisadores e bolsistas. Para mais informa-
ções, ver: site (www.ufrgs.br/nuppec); Facebook (www.facebook.com/nuppec); Instagram (@nuppec.eixo3) e
YouTube (https://www.youtube.com/channel/UCy1bVPZH5HUz8a4HHtp1uBg). O Eixo 3, coordenado pelas
Professoras Rose Gurski e Claudia Perrone, se dedica aos estudos da Psicanálise, Educação, Intervenções
Sociopolíticas e Teoria Crítica.
referido. A violência de gênero reflete também uma forma de discriminação,

pois afeta desproporcionalmente as mulheres.
Na análise dos dados de 2019, no Brasil, vimos que, a cada hora, 526
mulheres foram vítimas de agressão física (4,7 milhões de mulheres ou
9%); 27,4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum
tipo de violência nos últimos 12 meses (16 milhões de mulheres); 21,8%
foram vítimas de ofensa verbal, como insulto, humilhação ou xingamento;
8,9% foram tocadas ou agredidas fisicamente por motivos sexuais (9 por
minuto – 4,6 milhões); 3,9% foram ameaçadas com faca ou arma de fogo
(1,7 milhão); 3,6% sofreram espancamento ou tentativa de estrangulamento

(3 por minuto – 1,6 milhão); 42,6% das mulheres de 16 a 24 anos afirmaram
ter sofrido violência nos últimos 12 meses; sendo que 28,4% das vítimas
eram pretas, 27,5% eram pardas e 24,7% eram brancas (ONU, 2020). Estes
dados assustadores acerca do volume de violências na direção de mulheres
precisam ser analisados.
A historiadora feminista Silvia Federici em seu livro Calibã e a Bruxa:
mulheres, corpo e acumulação primitiva (2019) investiga como a divisão do
trabalho consiste, no âmbito do desenvolvimento capitalista, no estabeleci-
mento de hierarquias sexuais como um projeto de dominação. A partir disso,
compreende como o trabalho não remunerado das mulheres foi condição para
a exploração do trabalho assalariado. Nesse sentido, o quadro de referência
histórica que aborda é o da caça às bruxas no começo da Era Moderna, no
sentido de compreender que essa guerra contra as mulheres destrói o controle
sobre a função reprodutiva e que isso configura uma estratégia de acumulação
primitiva do capital.
[...] na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica

é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua
exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi
apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um
meio para a reprodução e acumulação de trabalho. Nesse sentido, é bem
merecida a importância que adquiriu o corpo, em todos os seus aspectos –
maternidade, parto, sexualidade – tanto dentro da teoria feminista quanto
na história das mulheres... (Federici, 2019, p. 34).
O capital não remunera esse tipo de trabalho e, não apenas isso, quem
realiza esse trabalho ocupa um lugar de subordinação. Conforme a autora,
na sociedade capitalista, a organização da reprodução se baseia no gênero,
depende dos papéis de gênero e é mantida devido à opressão e à dominação
de gênero.
66
A espoliação e violência dos corpos feminilizados aumentam na medida

em que o caráter destrutivo do capitalismo avança, especialmente na sua
forma atual de neoliberalismo. As taxas de feminicídio crescem com o estado
de guerra da nossa sociedade. A violência contra corpos feminilizados não
se traduz em episódios isolados, mas em situações continuadas, nas quais a
seriedade da violência não deve ser medida somente pela severidade do dano
físico causado, mas também pelo grau de vulnerabilidade e isolamento que
impõe àquelas que a sofrem (Campos, 2014, p. 46). Mesmo formas menos
graves de agressão, no contexto de violência privada e de subordinação da

mulher, adquirem uma gravidade que não apresentariam em outro contexto,
pois “atos de violência, que não são severos por eles mesmos, podem se tor-
nar severos e debilitantes se eles induzem um contínuo ambiente de medo e
controle do qual a mulher é incapaz de escapar” (Bernardes, 2014, p. 336).
A violência doméstica segue, de alguma forma, invisível; seja porque estas
formas de violência são tão normalizadas e naturalizadas, seja porque são tão
extremas que a palavra daquela que a sofreu é denegada.
Da mesma forma, a intimidade com o agressor, que em geral costuma
ser o pai, marido, companheiro ou namorado, torna mais difícil ainda a com-
preensão de que ela está em uma relação de violência e, por conseguinte,
dificulta o rompimento de tal estado de coisas.
Não raro, essas mulheres são economicamente dependentes daquele que
agride e sentem-se pressionadas a continuar na relação abusiva pela família
ampliada (pais, sogros, cunhados etc.), por seus filhos ou mesmo por suas
próprias referências acerca do seu papel social feminino (Machado et al.,
2015, p. 11). Além disso, o elemento da intimidade facilita a percepção dessa
situação como problema privado, no qual a sociedade não deveria envolver-se.
Por estas razões, a intimidade entre vítima e agressor expande o papel
que os estereótipos de gênero desempenham na dinâmica de naturalização e
justificação da discriminação e violência contra um corpo feminino. Em alguns
casos, por causa dos estereótipos de gênero, aquela que sofreu violência de
gênero é levada a crer que é responsável pela violência que sofreu e, muitas
vezes, acredita que o agressor está correto em exercer o poderio sobre ela.
Essa problematização da violência estrutural de gênero exige um desdo-
bramento crítico diante da violência que sofre o sujeito periférico. O poder na
periferia é regido pelo poder estatal, religioso e, é claro, pelo poder do crime.
O poder estatal é fragilizado e diante de grupos fortemente marginalizados,
assume uma função de criminalização para pessoas em situação de rua, usuá-
rios de drogas, prostitutas, entre outras. Quando se olha do ponto de vista dos
marginalizados, esses regimes atuam juntos na produção de violência. Em
relação às mulheres periféricas, cabe lembrar ainda a violência das relações
patriarcais impostas pela colonialidade, pela escravidão e pelo racismo que

se somam aos modos de colonialidade moderna (Segato, 2012, p. 124).
A periferia também implica uma espécie de orgulho de ser morador das
margens em resposta ao estigma que acompanha essa condição. No entanto,
essa passagem do estigma ao orgulho só se torna possível com a percepção
de que a situação urbana e social de um morador de periferia é absolutamente
distinta de outras situações urbanas e sociais. Entendemos que a superação
do estigma para essa população passa pela necessidade de reconhecimento
de suas trajetórias, através da transformação de sua realidade pela via do
agir político. O agir político implica uma ação que visa a transformação da
realidade, seja incidindo nas condições de moradia, de saúde, de educação,
de segurança, de transporte e cultura. Pois foi nesta direção que o Coletivo
de mulheres procurou o NUPPEC/UFRGS, realizando um movimento ativo
a partir da cultura da periferia.
Um coletivo feminino contra a violência
A proposta do Coletivo de Mulheres é lutar pelos direitos do povo da

periferia. O Coletivo estruturou-se para realizar a ocupação dos prédios da
principal escola de ensino médio da comunidade, uma instituição de ensino
com 50 anos, fechada em 2018. Segundo a Secretaria Estadual de Educação,
a justificativa para o fechamento foi a grande queda do número de matrículas.
A escola estava localizada entre o Posto de Saúde de emergência, que
atende todo o município de Porto Alegre e uma escola municipal de educação
infantil, constituindo um perímetro de serviços públicos da vila. Um ano após
o fechamento da escola, os prédios foram ocupados pelo tráfico e utilizados
como “quartel”, motel com serviço sexual e moradia para usuários de drogas.
Os prédios foram depredados e vários materiais como portas de salas, caixa
d’água, luminárias etc. foram levadas pela população. A escola infantil ao
lado da antiga escola foi assaltada diversas vezes, além da constante presença
de pessoas armadas no prédio que ameaçavam a segurança das crianças e do
posto de saúde.
Importa destacar que as fundadoras da ocupação são ex-alunas desta
escola estadual e uma agente de saúde aposentada, que diz conhecer “toda a
comunidade”, “vi todos nascerem” e o nome do coletivo é uma homenagem a
essa “Tia”, marcando também o respeito à ancestralidade, elemento importante
da cultura afro. O marco para iniciar a ocupação dos prédios da ex-escola foi
o aparecimento de um corpo morto nesse espaço. Não ficou claro se ocorreu
um crime ou se o corpo foi abandonado ali, mas o fato é que aquele cadáver
movimentou questões na comunidade.
68
A organização desse Coletivo de Mulheres operou ao redor do signi-

ficante violência, mulheres e crianças. Em torno desse ponto, as mulheres
moveram a violência confinada à vida privada para uma questão de vida
pública, para pensar e organizar uma política de vida contra as políticas de
morte do capitalismo neoliberal.
O neoliberalismo capitalista é um sistema que se caracteriza pelo apaga-
mento do cidadão, que será recoberto pelo significante consumidor. Aqueles
que ficam à margem do sistema são submetidos a situações de angústia e
desamparo, muitas vezes, literalmente em situação de rua, sem direitos e

despojados simbolicamente de condições de enfrentamento da violência, pois
a privatização do Estado também significa o desmonte da solidariedade social
e corrosão da democracia.
Neste sentido, o Coletivo tem um diagnóstico muito apurado sobre a
voracidade do momento neoliberal que provoca uma queda nos referentes
simbólicos que produzem o desarranjo dos diques que sempre impediram
a violência explícita e feroz que vem tomando a cultura. De todo modo,
precisamos escutar que o estado de violência e ódio se materializou para as
mulheres dessa comunidade com a presença de um cadáver no espaço de
articulação entre três significantes, violência, mulheres e crianças. Podemos
pensar que tal articulação produziu a construção de um saber coletivo com
efeitos de um saber singular sobre a dimensão sociopolítica do sofrimento
psíquico (Debieux, 2016).
A “Tia”, uma das mulheres, relatou que uns dias após este fato, em 2019,
elas estacionaram uma Kombi na frente do portão do prédio e com mais duas
mulheres solicitaram a presença de um chaveiro, conseguindo desta forma
entrar. Em seguida, elas iniciaram uma negociação com o tráfico que cercou
os prédios da escola. Elas explicaram que sabem “falar a língua deles” por
isso conseguiram estabelecer a negociação da retirada, ao mesmo tempo em
que iniciaram a limpeza do prédio e instalação de portas. Porém, abandonar
um “quartel” com negócios do tráfico não é algo comum. Elas prontamente
concordaram, mas “além de falar a linguagem deles”, disseram que foi impor-
tante insistir na segurança das crianças da comunidade. Ainda que nem todas
as famílias possam estar juntas no espaço do Coletivo, devido à guerra dos
diferentes grupos do tráfico, era preciso criar um espaço seguro para as crian-
ças da comunidade a fim de que elas pudessem brincar, ter biblioteca, lazer
etc. Alegando então que os filhos de toda a comunidade teriam um lugar
seguro para ficar o acordo foi estabelecido e o tráfico se retirou e passou a
cuidar da “segurança” do prédio, sem que nenhuma ocorrência de violência
ou depredação dos prédios tenha ocorrido novamente.
Outras mulheres fundadoras do Coletivo falam da importância da escola
nas suas vidas, do espaço da escola como um lugar simbólico de segurança
e do caráter insuportável do aparecimento de um corpo morto no interior

do prédio. “Nos conhecemos aqui. A mãe da T era a merendeira da escola
e cuidava da comida que, para muitos, era a comida do dia”. Emocionada,
uma delas relata que a escola “era meu porto seguro”. “Não sei o que seria da
minha vida sem a escola. As professoras inventaram um contraturno, que não
existia ainda, porque uma vez uma delas viu o roxo na minha perna e enten-
deu tudo. Minha mãe apanhou muito do meu padrasto e é assim, a violência
começa na mulher e termina nos filhos, que invariavelmente apanham junto.
Então a escola nos protegia. A violência na minha casa só acabou porque meus
irmãos cresceram e ele começou a apanhar, até que desapareceu. Mas não era
só eu, eram muitas crianças. E era sempre isso, a violência terminava com as
crianças apanhando. Essa escola salvou vidas e a briga hoje é por educação,
é por um lugar seguro.”
A psicanálise pensa o processo de constituição dos laços sociais a partir
das dinâmicas de identificação e estas dinâmicas ajudam a entender a dimen-
são produtiva do poder, ou seja, o modo como o poder produz vida psíquica
e aponta para formas de pensar os processos de dominação. A identificação
das mulheres entre si, articuladas pela significação da escola como espaço de
segurança emocional, demonstra claramente a ideia de Lacan (1936/1988),
desenvolvida a partir da noção do estádio do espelho, ou seja, identificar-
-se com uma imagem é internalizar o princípio do desenvolvimento que ela
contrai, é constituir-se no interior da história que ela representa. Em outras
palavras, a identificação é um exercício de poder, mas não necessariamente
de relações de dominação.
Nesse sentido, é importante pensar em uma discussão realizada por Vla-
dimir Safatle (2015) sobre o desamparo como um afeto político decisivo. A
história desse Coletivo de Mulheres passa exatamente pela identificação ao
desamparo, pelo lugar feminino como um lugar de submissão e inferioridade.
Trata-se da experiência social de desamparo. A psicanálise entende o desam-
paro como a reação a um objeto, ou a um acontecimento, como se deu com o
Coletivo; o Coletivo de mulheres rompeu o sistema de representações porque
não conseguiam mais representar de maneira adequada aquilo que aparecia
como objeto do afeto, o que pode levar ao desabamento da ação, por um lado,
mas, por outro, leva também o sujeito a uma redescrição e a implicação afetiva.
Safatle (2015) defende que o desamparo é uma experiência ontológica
porque nos define a partir de uma insegurança existencial, que será constitutiva
da experiência existencial. E o autor relembra que, para Freud, o desamparo
não se cura, não se trata de constituir figuras de amparo, mas se trata de afir-
má-lo, de permitir a circulação do desamparo. O autor estabelece uma rela-
ção entre corpo político, desamparo e a necessidade de um questionamento
70
radical da autonomia individual para que se possa abrir espaço de criação

para o comum.
A proposta de Safatle (2015) coloca como revolucionário a troca do afeto
do medo, que circula como o principal afeto político, pelo afeto do desam-
paro, proposta que dialoga com a condição de precariedade de Judith Butler
(2015; 2019; 2020). O desamparo do corpo político mostra precariedade, mas,
é preciso atentar que tal condição de precariedade é também o que torna sua
força política potente e capaz de assumir a vida e o desejo.
Pensamos que este é um ponto fundamental para pensar o trabalho do

coletivo, pois permite a circulação do desamparo e a sua proposição de potên-
cia de criação e resistência a partir da vulnerabilidade. Entendemos que as
políticas de morte dos governos neoliberais, as formas de gestão das vidas
humanas vêm trabalhando para regular a dimensão do sofrimento sociopolítico
a fim de que os sujeitos e os laços permaneçam fora do campo da política.
Basta pensar no Brasil, onde as políticas de direitos humanos gradualmente
estão sendo extintas, ou permanecem sem verbas para a sua realização.
O Coletivo de mulheres entendeu o desamparo e a vulnerabilidade como
operadores políticos e organizou campanhas na comunidade para angariar
fundos e reformar o primeiro prédio, que já tem banheiros, internet, salas
organizadas, biblioteca e aulas de defesa pessoal para mulheres e crianças,
festas em datas comemorativas, aulas de capoeira, um curso pré-vestibu-
lar comunitário e assessoria jurídica para a comunidade. Segundo uma das
participantes do Coletivo, a conversa com o NUPPEC iniciou porque elas
entendem que os “psicólogos conversam com as pessoas”. A proposta de que
a conversa seja em um espaço coletivo foi recebida de modo favorável pelo
grupo, ainda que permaneça a dúvida se não deveria ocorrer conversas na
“salinha, com uma pessoa”.
Além das questões colocadas até aqui, identificamos uma preocupação
com a geração de renda para as mulheres, com a saúde das crianças e adoles-
centes que não estão recebendo vacinas de doenças evitáveis e com a criação
de uma cozinha coletiva onde as mulheres possam preparar alimentos. Devido
à crise econômica do país e a impossibilidade de adquirir um botijão de gás,
há o aumento de incêndios nas casas e situações de queimaduras em mulheres
e crianças, já que as famílias utilizam modos de cozimento perigosos.
Uma das falas do Coletivo acerca da expectativa com relação ao laço com
o NUPPEC é de que os psicólogos possam “ouvir as mulheres, elas sofrem
muito. Elas ficam por aqui, vem trazer as crianças para aulas, para brincar,
ficam por aqui”, indicando também um estado de solidão das mulheres.
Ao falar das políticas de morte, Mbembe (2018) afirma que elas incidem
nos corpos, praticamente reduzidos ao caráter extrativo do trabalho produzido
por estes corpos, que habitam territórios estabelecidos por fronteiras bem
definidas, produzindo os mundos de morte. Para os propósitos deste texto,
de pensar políticas de vida como fundamentais para o enfrentamento da vio-
lência contra as mulheres e de gênero e com adensamento dessa discussão
na psicanálise, a questão dos corpos é fundamental no Coletivo. Não apenas
com o ato simbólico de ocupação de um espaço de morte, mas com trabalho
de ressignificar emoções inscritas no corpo, tais como vergonha, humilhação,
ansiedade, culpa. Contra o poder de morte, destacamos a conexão estabelecida
pelo Coletivo entre corpo-maternidade-território. A negociação do território,
realizada pela “Tia” com o tráfico, ocorreu porque ela “fala a linguagem deles”
e porque “ela viu todos nascerem”. Essa discussão é longa e não poderia ser
desenvolvida neste artigo, mas é preciso salientar que, nesse território de
morte, a reabilitação dos afetos relativos à maternidade e segurança, propiciou
o que Mbembe (2019) chama de reabilitação dos afetos que as estruturas de
poder buscam apartar e excluir. Nos territórios de morte é permitido a circu-
lação apenas da violência e do medo.
Judith Butler, em seu livro Corpos que importam (2020), fez a proposição
de um ponto de partida para a vulnerabilidade como produção de uma contra-
narrativa de dominação: o corpo. Em seu texto, Butler respondeu as críticas
que recebeu em Problemas de gênero, ao colocar no centro de seu trabalho a
materialidade dos corpos, pois, para muitos, ela buscava produzir um corpo
inteiramente discursivo. Ela reafirmou seu entendimento da vulnerabilidade
a partir da compreensão radical dos corpos e de suas ações. A apreensão da
vulnerabilidade das vidas não pode, entretanto, ser um mantra invocado para
se distanciar do individualismo clássico segundo o qual o indivíduo é uma
substância ou identidade separada. É precisamente para contrariar qualquer
ideia de um eu/indivíduo que o argumento da vulnerabilidade é apresentado
por Butler. Assumindo a etimologia de vulnerabilidade como exposição à
lesão (vulnus), Judith Butler sublinhou o quanto nossas vidas dependem de
outras vidas que tem o poder de ferir.
Trata-se, portanto, de atentar para as condições interrelacionais, sociais
e econômicas que fazem e destroem vidas, as sustentam ou invalidam, as
asseguram ou as tornam precárias. O argumento da vulnerabilidade vem para
recapturar todas essas condições, obrigando-nos a pensar a vida como sendo
sempre uma vida condicional. O risco, porém, nesse ponto de virada da vul-
nerabilidade, é justamente substituir um discurso geral sobre a vulnerabilidade
de todas as vidas, como condição humana compartilhada, por um discurso
sobre o ser da vida. É precisamente para combater esse risco que Butler se
esforça para diferenciar os níveis de vulnerabilidade.
Em Quadros de guerra (2015) Butler pensa na vulnerabilidade como uma
dimensão geral da vida humana tomada fora de suas contingências históricas:
72
o risco é, então, ocultar as condições históricas de sua emergência, bem como

os modos de resistência que ela suscita, segundo a ideia de Foucault para quem
o lugar do poder é também o lugar de resistência. Já em Corpos que importam
(2020) é possível pensar em um segundo sentido, contrariando parcialmente
o primeiro, a vulnerabilidade refere-se a modos específicos de percepção de
grupos considerados mais frágeis, devido às condições que lhes são impostas.
A vulnerabilidade decorre de uma operação de identificação das populações
que, assim designadas, podem se beneficiar de proteção e cuidados adequa-
dos. O risco de tal identificação é criar um grupo de pessoas vulneráveis e,

portanto, privá-las antecipadamente de qualquer capacidade de agir em seu
nome, ou mais exatamente em seu próprio poder, dando continuidade ao
discurso assistencialista.
Essa dificuldade foi apontada pelas mulheres do coletivo, pois, muitas
vezes, elas recebem propostas de “ajuda” que descaracterizam o que elas
entendem como sua função. Há críticas a políticos que tentam “apadrinhar”
o Coletivo. Os processos de tomada de decisão pertencem ao Coletivo, assim
como a responsabilidade de produzir a sustentabilidade do Projeto. A “ajuda”
ou o apadrinhamento são compreendidos como tentativas de restabelecer
hierarquias sociais, raciais e de gênero. As periferias são entendidas pelas
mulheres como territórios híbridos, que reproduzem opressões, mas que
podem contraditoriamente estabelecer outras dinâmicas comunitárias, que
não sejam nem regressivas nem capitalistas. São políticas de aliança com a
comunidade seja o tráfico, homens (“pois pais não existe aqui”), as instituições
públicas e religiosas.
Por outro lado, também é possível pensar, a partir da obra de Butler, a
vulnerabilidade como uma exposição a formas extremas de dominação que
devem ser entendidas como dominações de classe, mas também de gênero
(como revelam os feminicídios) e de raça. A característica dessa vulnerabili-
dade, engendrada pela dominação, incluindo uma provação violenta que pode
levar ao risco de morte, é que ela dá origem a uma espécie de terror psíquico
daqueles que estão expostos à dominação e que assim se veem, mesmo que ele
ou ela não seja atingida diretamente, lançada em um estado de preocupação
generalizada ou difusa com sua própria sobrevivência.
Nada é, portanto, mais obtuso do que se referir à vulnerabilidade como
fragilidade, isto porque a designação pode se tornar mortal, violenta e, como
já referido, privar os sujeitos designados vulneráveis de
todo e qualquer poder
efetivo. Também é importante considerar questões relativas ao lugar do Estado
na compreensão da vulnerabilidade e na luta para o combate. O Estado é cons-
tantemente apresentado como o pai de família atento à proteção dos filhos.
Mas qual é o estatuto exato desta crítica do Estado no neoliberalismo

contemporâneo? O Estado apresenta-se enfraquecido, senão vulnerabilizado,
por toda uma série de iniciativas de desregulamentação que tendem a destruir
as instituições da sociedade de proteção e desfazer antecipadamente o sentido
de autonomia do mundo do cuidado, reduzindo-o aos imperativos do mer-
cado. Nesse sentido, as mulheres do coletivo estão sob o medo da violência,
mas não somente delas, elas temem pelos filhos. Não querem perder seus
filhos para o tráfico, para a violência de estado, por doenças evitáveis. Esse é
outro elemento comum entre as mulheres, sejam elas hétero, homo ou trans.
No coletivo, medo e insegurança precisam ganhar sentido em um projeto de

futuro, pois estes são sentimentos que vinculam uns aos outros, em sonhos
que conseguem ir além de nós mesmos.
Outra questão importante do coletivo é o que podemos pensar sobre a
invasão do espaço da escola. O desafio para nós, psicanalistas implicados com
a dimensão ética e política da escuta no campo social, é articular os conceitos
fundamentais da psicanálise e a compreensão de regimes de normatividade
inscritos nas condições sociais. No próprio ato de invasão, há uma infração
das normas sociais que, no entanto, são expressões singulares de autonomia
e liberdade. Em princípio, a psicanálise entende que o sujeito se inscreve
a partir de sua divisão, que somos atravessados pelo estranho que também
nos habita, o que coloca a imprevisibilidade e apresenta implicações para o
campo político. Precisamos, sobretudo, sublinhar que não podemos esquecer
a opressão que se faz presente no cotidiano das vidas destas mulheres, ou
seja, precisamos enunciar que existem opressões gênero-específicas e que as
posições nas relações sociais de homens e mulheres são diversas, ainda que
ambos estejam em uma condição de precariedade.
Longe de retomar uma ontologia de indivíduos distintos em essência,
devemos, ao contrário, ir mais longe na reflexão sobre o que fragiliza a vida,
sobre o que chamaremos de vida não soberana sobre a qual a vulnerabilidade
incide. O que é uma vida não soberana? Uma vida situada fora de si mesma,
pelas redes de apoio e cuidado que a sustentam e a contêm, mas também
pela exposição à violência a que está sujeita e da qual não pode se esquivar
antecipadamente. Reconhecer a vulnerabilidade de toda a vida equivale, por-
tanto, a reconhecer que as vidas não são soberanas, mas que, não perderam
a sua capacidade de ação. Compreender como o poder de viver procede da
vulnerabilidade, não para se libertar dela ou para superá-la, como se os atos
pudessem surgir da vulnerabilidade para torná-la uma vulnerabilidade viável,
para que o poder de viver subsista como o poder de ser afetado.
Da perda de um emprego à perda de um lar, do terror de certas mulheres
submetidas à violência de certos homens à extrema precariedade de exilados
74
que fugiram de países onde reina o terror, não é fácil reconstituir a estrutura
social. E essa é, sem dúvida, a principal virtude de prestar atenção à vulne-
rabilidade: ela nos obriga a reconsiderar o social na multiplicidade de suas
formas de vida e considerá-lo na medida em que as afeta, mas também na
medida em que se manifestam no social. A vulnerabilidade não deve dar
origem a um governo que venha a conduzi-la ao seu desfecho final, que seria
um retorno à normalidade, ela deve ser apresentada como tal pelos corpos,
pelas palavras. Entendemos que o convite realizado ao NUPPEC de ouvir
as mulheres é a aposta na circulação pública da palavra, que torne possível

golpear os enquadramentos estabelecidos da violência e que torne possível a
circulação de afetos capazes de manter o Coletivo.
Considerações finais
O coletivo que apresentamos nesse texto se organizou a partir da expe-

riência de violência na vida dessas mulheres. Como mulheres, o coletivo iden-
tifica todas aquelas que se aproximam do Coletivo, o que inclui identidades,
cis, trans, lésbicas e todas, aquelas que se sentirem convocadas.
O Coletivo emergiu, com força intempestiva, denunciando o abuso
sexista de um corpo que é usado, objetificado e subjugado, talvez morto.
Romperam o silêncio do corpo maltratado e avançam desconcentrando o
monopólio naturalizado da palavra e do poder masculino. A novidade é que
não se trata de um pedido às instituições para que reconheçam a igualdade de
gênero, mas de uma decisão coletiva que, sem pedir licença, coloca um novo
pacto social: nunca mais ser tomado como objeto de uso e abuso do poder
masculino. Elas politizaram o sofrimento singular e, uma a uma, assim como
coletivamente, as mulheres saíram da condição de minorização conseguindo
encarregar-se de um desejo emancipatório e assumindo o compromisso de
cuidar umas das outras.
A crítica ao poder é signo de uma nova solidariedade: sem hierarquias,
baseada na liberdade de dizer e pensar, submetendo a palavra exclusivamente
à verificação coletiva. A política feminina aparece no campo social irrom-
pendo como um desejo ativo, uma inteligência comum e uma força produtiva
comunitária. As mulheres têm um valor político emancipatório em que o
“tornar-se mulher” se apresenta como um componente fundamental que se
incorpora à vida.
O significante do coletivo é a violência sofrida pelas mulheres e por seus
filhos e filhas. Elas criaram uma política de paz/vida diante das políticas de
guerra/morte presentes no Brasil. Elas não reivindicam políticas públicas
contra a violência de gênero, pois sabem que o Estado mais e mais se afasta
das periferias. Elas possuem apenas seus corpos, o frágil corpo humano.
Longas discussões das teorias feministas são resolvidas com a enorme

disponibilidade que elas têm para manter a vida. Ao serem questionadas sobre
quem são as mulheres que compõe o Coletivo, elas sustentam: “aquelas que
chegarem aqui”. Elas não desejam respostas, elas contam com o comparti-
lhamento de nosso desejo de comunidade, de um comum de mulheres: “as
mulheres andam por aqui, com seus filhos, elas sofrem muito. Vocês querem
ouvir esse sofrimento?” Com a construção do Coletivo, como uma escolha
política pela vida, elas interrogam a nossa própria escolha pela psicanálise
como uma escolha política, como se nos perguntassem: “vocês partilham
conosco o desejo de ouvir as mulheres periféricas que sofrem muito?” Elas

não querem mais perder seus filhos e filhas para a covid, para o tráfico, para a
violência de estado e para a desesperança. Elas querem um futuro feito de vida
e criação. Querem escutadoras que façam comunidade, que acompanhem os
rastros das memórias das múltiplas censuras e apagamentos da colonialidade
e da opressão.
76
REFERÊNCIAS
Allen, A. (2016). The end of progress: decolonizing the normative foundations
of Critical Theory. Columbia University Press.
Bernardes, M. N. (2014). Violência doméstica, opressão de gênero

e justiça social: uma análise da Lei 11340/06 a partir do princípio da
paridade de participação (pp. 334-357). In Anais do XXIII Encontro

Nacional Conpedi.
Butler, J. (2015). Quadros de guerra. Civilização Brasileira.
Butler, J. (2019). Vidas precárias: os poderes do luto e da violência. Autêntica.
Butler, J. (2020). Corpos que importam. N-1/Crocodilo.
Campos, C. H. (2014). Lei Maria da Penha: desafios para a integração de

novos sujeitos de direitos. In S. Stevens, S. R. de Oliveira & V. Zanello
(eds.), Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas (pp. 490-
504). Mulheres.
Debieux, M. (2016). A clínica psicanalítica diante da dimensão sociopolítica

do sofrimento. Escuta.
Dunker, C. (2017). Teoria da Transformação em Psicanálise: da clínica a

política. Revista Psicologia Política, 17(40), 569-588.
Federici, S. (2019). Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação pri-

mitiva. Elefante.
Freud, S. (2013). A psicologia das massas e análise do eu. L&PM. (Trabalho

original publicado em 1921).
Lacan, J. (1988). Estágio do Espelho como formador da função do eu. In

J. Lacan. Escritos. Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1936).
MacDowell Santos, C., & Pasinato Izumino, W. (2005). Violência contra as

Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil.
Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, 16(1). http://eial.

tau.ac.il/index.php/eial/article/view/482
Machado, M. R. A. et al. (2015). A violência doméstica fatal: o problema do

feminicídio íntimo no Brasil. Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma
do Judiciário.
Mannoni, M. (1996). O que falta a verdade a ser dita. Papirus.

Mbembe, A. (2018). Necropolítica. N-1.
Mbembe, A. (2019). O poder brutal, resistência visceral. N-1.
ONU Mulheres Brasil (2020). Una-se pelo fim da violência contra as mulheres
2020: colocar em destaque as causas e consequências da violência contra
as mulheres e meninas em sua diversidade no Brasil. 2020. https://www.
onumulheres.org.br/noticias/una-se-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulhe-
res-2020-colocar-em-destaque-as-causas-e-consequencias-da-violencia-con-
tra-mulheres-e-meninas-em-sua-diversidade-no-brasil/
Rubin, G. (2017). Políticas do Sexo. Ubu.
Safatle, V. (2015). O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e fim

do indivíduo. Cosac Naify.
Scott, J. (1990). El género, una categoría útil para el análisis histórico. In J.

S. Amelang & M. Nash (eds.), Historia y género: las mujeres en la Europa
moderna y contemporánea. Alfons el Magnànim.
Segato R. (2012). Gênero e colonialidade: em busca das chaves de leitura e

de um vocabulário radical. E-Cadernos, 18, 106-131.
Silveira, L. (2021). Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da

mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina. Revista
de Filosofia Aurora, 33(58), 6-29.
Van Haute, P., & Geyskens, T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antro-
pologia clínica da histeria em Freud e Lacan. Autêntica.
CAPÍTULO 5
RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA
DE COIBIÇÃO DA VIOLÊNCIA
Rafael Kalaf Cossi
Pretendemos abordar, neste trabalho, a noção de reconhecimento como

um antídoto para a violência de gênero. Inicialmente, nos voltaremos para
Lacan e sua teoria do estádio do espelho – dela podemos deduzir que a agres-
sividade é inevitável. Num segundo momento, apresentaremos as teses de
Jéssica Benjamim – na leitura de Judith Butler – e Vladimir Safatle, a partir
das quais vislumbramos uma modalidade de reconhecimento que talvez ajude
a conter a violência.
Em “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1966/1998),
Lacan procura elucidar o fenômeno psíquico do narcisismo, intimamente
ligado à formação do eu – a formação do eu depende de um processo associado
à constituição da imagem do corpo próprio. Lacan mostra como o eu irrompe
na criança a partir de uma relação alienante de identificação com o outro. Na
mesma época, Lacan publica “A agressividade em psicanálise” (1966/1998),
que pode ser considerado uma expansão do artigo anterior. Aqui, Lacan afirma
que a agressividade é uma tensão da estrutura narcísica: “a agressividade é a
tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico,
e que determina a estrutura formal do Eu do homem e do registro de entidades
de seu mundo” (Lacan, 1966/1998, p. 112). Este processo está centrado na
dimensão do imaginário.
Com o estádio do espelho, fica evidente que não há autoidentidade (Gar-
cia, 2011). Recorrendo a trabalhos da etologia animal, Lacan sustenta que a
criança adquire a noção de corpo próprio a partir de uma imagem externa,
no caso, a sua própria projeção no espelho. O bebê pode, então, superar a
angustiante vivência de um corpo despedaçado e assimilar uma noção de
unidade corpórea. Isso se dá num momento de prematuridade neuronal para
tanto, daí Lacan apontar que se vai da insuficiência à antecipação – a criança
antecipa a imagem de si enquanto corpo totalizado; o que provoca uma ilu-
são de completude, de unidade do eu. Ou seja, essa mudança acontece pelo
processo de identificação com a imagem especular, processo esse que será a
estrutura de toda constituição de seu eu, dentro do campo subjetivo do ima-
ginário, marcado essencialmente pelo narcisismo.
80
Então, se a noção de eu surge a partir de uma imagem exterior a si, toda

formação da subjetividade será uma alienação. Essa imagem exterior assume
o papel do eu-ideal: imagem edificante ao redor da qual se determina a dialé-
tica das identificações.
Aqui já teríamos como efeito a agressividade: ter que corresponder ao
ideal do eu – uma identidade fixa, ilusória, completa, sem fissuras, um modelo
de conduta – necessariamente exige que se extinga algo inextinguível, no
caso, a imagem de corpo despedaçado correspondente ao corpo pulsional,
fragmentado. Ter de corresponder imaginariamente ao ideal do eu configurado

a partir da repressão da polimorfia pulsional – o que é impossível –, leva à
agressividade. Ou seja: “do efeito jubilatório do seu encontro no espelho,
transforma-se, no confronto com o semelhante, no escoadouro da mais íntima
agressividade” (Lacan, 1960/1998, p. 823).
A internalização desse modelo ideal de conduta, e que pode ser encar-
nado em certas figuras da realidade, é profundamente conflitual. Se por um
lado tendemos a nos conformar a este padrão, a nos alienarmos nessa imagem
ideal, por outro, há um preço a se pagar, a repressão do corpo pulsional – daí
a agressividade contra essas figuras que nos servem de ideal. Também pode-
mos considerar que o encontro com o outro sinaliza a dessemelhança entre
o eu e o ideal de eu, atesta a distância entre eles, o que abala o narcisismo e
leva à agressividade.
Outro modo de interpretar essa situação: tudo que é diferente é uma
ameaça ao eu – a confrontação com um não-eu, não reconhecido como eu,
é um perigo à integridade dessa instância, produzindo agressividade. Por
isso, o diferente perturba nosso eu imaginariamente constituído a partir de
uma ilusão integralidade. Em suma, a identificação à imagem primordial será
sempre exterior e, portanto, com um outro de si mesmo – ideal, alienante –,
implicando uma agressividade interna.
Se a psicologia do desenvolvimento e a etologia servem de base para
Lacan elaborar sua noção de estádio do espelho, essa elaboração se dá arti-
culada à filosofia hegeliana à luz de Kojève – os seminários de Kojève sobre
Hegel foram decisivos para boa parte dos intelectuais franceses da época,
como Bataille, Breton e Merleau-Ponty A discussão da Fenomenologia do
Espírito, em especial a dialética do senhor e do escravo e a questão da luta até
a morte de duas consciências pelo puro reconhecimento, marcou profunda-
mente o pensamento de Lacan. Com base nesse referencial, Lacan demonstra
que é partir da imagem do outro que oriento meu desejo – a imagem mostra
que o desejo do homem é o desejo do outro; não necessariamente é o objeto
do desejo do outro, mas o seu desejo em si, e que não posso reconhecer
como alteridade.
Nesse ponto, façamos um parêntese. A importância da dialética do senhor

e do escravo não costuma ser tão evidenciada quanto a etologia animal na
elaboração teórica do estádio do espelho. Então traremos duas passagens do
próprio Lacan – por sinal, há muitas ao longo de sua obra – que confirmam
sua importância.
Em “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’
de Freud”, Lacan coloca:
[...] a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível mais

envolvente da eficácia do sujeito, obriga-nos a compreender o eu, de ponta

a ponta, no movimento de alienação progressiva em que se constitui a
consciência de si na fenomenologia de Hegel (1954/1998, p. 374).
Ou, em “A coisa freudiana”: “na dialética do senhor e do escravo [...]

podemos reconhecer a emergência simbólica da luta de morte imaginária em
que há pouco definimos a estrutura essencial do eu” (1955/1998, p. 434).
O estádio do espelho deve ser pensando também a partir da dialética do
senhor do escravo – ela traz a dimensão do desejo e do reconhecimento para
essa discussão, numa relação dialética. Temos a alienação do eu em dupla
valência: na imagem do outro; e na luta por ter seu desejo reconhecido pelo
outro. O desejo atua enquanto mediação entre duas consciências – senhor e
escravo. O ponto é: o que se deseja?
A partir de Kojève – em sua leitura de Hegel –, sabemos que o desejo do
homem é o desejo do outro e o fator determinante para a fundamentação da
consciência será a relação intersubjetiva. A luta pelo reconhecimento resultará
na dialética do senhor e do escravo, que marcará o primeiro modo de relação
entre as consciências. Essa luta acontece pela necessidade que uma consciência
tem de se fazer valer frente ao desejo de outra, para que esta reconheça o valor
da primeira enquanto autônoma e livre – logo, temos aqui uma outra figura da
alienação: impor meu reconhecimento ao outro não é outra coisa senão uma
luta de puro prestígio, que aliena a minha condição frente ao desejo alheio.
Neste sentido, Sales afirma:
a simples existência de uma multiplicidade de desejos não garante que

um grupo assim formado ganhe o status de sociedade. [...] se estes dese-
jos, em sua multiplicidade, estiverem todos voltados para objetos dados,
naturais, só conduzirão à formação do sentimento de si, próprio à vida
animal (2003, p. 141).
Para que haja humanização, o desejo é essencialmente “negatividade-

-negadora” (Sales, 2003, p. 141). Para que se produza a consciência de si,
82
é preciso que o desejo seja o desejo de um objeto não natural, para além
do dado. O desejo deve se voltar, portanto, para outro desejo tomado em si
mesmo, como um “nada revelado, um vazio irreal” (Sales, 2003, p. 141).
Desejar este outro desejo significa desejar que o valor representado pelo eu
seja desejado pelo outro. O que está em jogo no processo de humanização é
o desejo de reconhecimento.
Desejar o desejo de um outro é, então, em última análise, desejar que o

valor que eu sou ou que eu “represento” seja o valor desejado por esse

outro: eu quero que ele “reconheça” meu valor como seu valor, eu quero
que ele me reconheça como um valor autônomo. Dito de outra forma, todo
desejo humano, antropogênico, gerador da Consciência de si, da realidade
humana, é, em última instância, função do Desejo de reconhecimento
(Kojéve, 1974, p. 14 apud Sales, 2003, p. 141).
O desejo de reconhecimento dá lugar a uma forma específica de ação, a

luta de puro prestígio, e que conduz a uma relação de dominação. É só nesse
embate com o outro é que o verdadeiro sujeito pode advir. Esse conflito exige
que a negação do dado natural seja levada ao extremo. O ponto culminante
dessa negação é que a própria vida seja posta em risco. Um dos adversários
terá que renunciar ao desejo de se fazer reconhecido e se conformar em
reconhecer o desejo do outro, tornando-se escravo de um mestre que lhe
poupa a vida.
Graças a essa conjectura da negatividade no encontro com o outro, da
luta de puro prestígio que leva à negação do ser de um dos sujeitos envolvi-
dos, é que se viabiliza a elaboração da tese lacaniana de que a agressividade
é consequência da identificação, revelada nessa luta por reconhecimento.
Contudo, segundo Simanke “[...] a ação, a diferença, a ‘negatividade-
-negadora’ dificilmente poderia harmonizar-se com uma teoria centrada na
identidade e na passividade do reflexo especular” (1997, p. 371 apud Sales,
2003, p. 147). Ou seja, temos de avançar para contemplar a diferença. Esse
seria um dos pontos que, de certa forma, começa a exigir a ultrapassagem da
teoria do imaginário em direção ao simbólico, preparando o caminho para
diálogo de Lacan com Lévi-Strauss nos anos 50, como se nota nas conferências
“O Mito Individual do Neurótico” e “Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise”. Passa a ser evidente o relevo consagrado ao simbólico: por
ser o registro que permite a implantação da diferença, ele fornecerá as con-
dições para a superação de alguns dos impasses do imaginário. Vamos do
estádio do espelho – etologia, ótica, dialética do senhor e do escravo – para
a linguística estrutural (Saussure, Lévi-Strauss); ou seja, para o interesse de
Lacan pela linguagem e o universo do significante. A nossa entrada no campo
da linguagem tem como primeiro efeito nos depararmos com a diferença, haja
vista que um significante só existe à medida que se difere de outro.
Mas será que essa roupagem linguística, que transcenderia esse narcí-
sico pequeno outro e alcançaria o grande Outro, a mediação simbólica, e que
determinaria outro modo de desejo, venceria a alienação, protegendo o sujeito
do risco das identificações transitivas entre o eu e o outro? O reconhecimento
que seria inaugurado aqui, “simbólico”, dispensaria a agressividade correla-
tiva ao narcisismo? No fundo, nossa pergunta é: existiria uma modalidade de
reconhecimento não violenta, não circunscrita pela alienação às figuras que
encarnam nosso ideal, que leve em conta uma outra alteridade sem explosões
de antagonismo?
No estádio do espelho, a agressividade aparece quando, ao me defrontar
com o outro, sou avisado de que meu eu não corresponde ao ideal de eu, que
minha identidade imaginária é fraturada – isso fica evidente na violência
dirigida a pessoas LGBTQIA+ por homens que se dizem héteros convictos:
a imagem duma pessoa de gênero ininteligível – na expressão de Butler – me
lembra que minha identidade sexual não é tão plana e coerente assim, me faz
reconhecer que não me reconheço muito bem – consequentemente, dado o
horror que pode ser provocado em alguns, testemunhamos acessos de agressi-
vidade. Com a dialética do senhor e do escravo, temos o imperativo de sermos
reconhecidos pelo valor que gostaríamos que o outro visse em nós. Desejar
o desejo de um outro é desejar que o valor que eu sou ou tenho seja o valor
desejado pelo outro, numa luta de puro prestígio. Em ambos os casos, estamos
imaginariamente (e narcisicamente) imersos numa dinâmica de reconheci-
mento egoica, dual, insuperavelmente alienante e que leva à violência. Com
o ingresso no plano simbólico, em tese superaríamos essa relação imaginária:
da primazia dessa relação do eu com meu ideal de eu, vamos à possibilidade
de reconhecer o outro como outra alteridade, como um outro não-especular,
como diferente. Mas isso resolveria o problema? Teríamos aqui necessaria-
mente uma modalidade de reconhecimento não violenta? Talvez não – há o
risco de que o reconhecimento seja meramente encarado como sinônimo de
tolerância: podemos reconhecer a diferença do outro, aceitá-la como legítima,
mas, mesmo assim, decidir mantê-la longe, distante. E sabemos o que pode
acontecer quando o diferente chega perto demais...
Sustentamos que duas alternativas ou duas possíveis saídas podem ser
extraídas dos trabalhos de Jessica Benjamin – na leitura de Butler – e Vla-
dimir Safatle.
Jessica Benjamin é psicanalista e tem um longo trabalho na interface psi-
canálise e estudos de gênero; é fortemente marcada pela escola de Frankfurt.
Vamos nos referir aqui ao texto de Butler chamado “Longing for Recognition”,
84
que discute a noção de reconhecimento intersubjetivo em Benjamin. Na ótica

butleriana, Benjamin insisti que a intersubjetividade não é o mesmo que as
relações objetais; “intersubjetividade” leva em conta a noção de um Outro
externo – um terceiro, para além da díade sujeito-objeto; para além da ideia
de complementaridade, projeção, pertencimento/separação do pequeno outro.
Benjamim consideraria que não seria a simples apresentação de um
sujeito a outro sujeito que viabilizaria o reconhecimento. Trata-se, antes,
de um processo que se inicia quando o sujeito e o outro entendem que estão
refletidos no Outro, sem que este reflexo resulte em um colapso de um no

outro – através de uma identificação incorporativa, por exemplo, ou da pro-
jeção que aniquila a alteridade do outro. Pelo contrário, o reconhecimento
implica que o outro seja separado, mas que seja estruturado psiquicamente
em formas que são compartilhadas. Nas palavras de Butler, para Benjamim,
O reconhecimento não é nem um ato que se performa nem pode ser lite-
ralizado como o evento no qual cada um “vê” um ao outro e é “visto”.
Ele ocorre por meio da comunicação, principalmente, mas não exclusiva-
mente verbal, na qual os sujeitos são transformados em virtude da prática
comunicativa em que estão engajados (Butler, 2004, p. 132, grifo nosso).
Butler considera que, também para Benjamin, os seres humanos formam

relações psíquicas com os outros com base em uma negação necessária –
seguindo a dialética hegeliana do senhor e do escravo –, mas nem todas essas
relações devem ser destrutivas.
Tendo em conta que a resposta psíquica de dominação faz parte desta
negação destrutiva, essa destruição é precisamente o que precisa ser trabalhada
por meio do processo de reconhecimento. Porque a vida psíquica humana é
caracterizada por desejos tanto para a onipotência quanto para o contato, vacila
entre “relacionar-se com o objeto e reconhecer o [O]utro externo” (Butler,
2004, p. 133). Reconhecer o Outro externo, para além da díade, uma terceira
entidade da qual todos fazemos parte. Se o reconhecimento pressupõe a des-
trutividade, essa destrutividade seria ocasional, pode ser superada. Melhor, “a
destruição continua até que a sobrevivência se torne possível a um nível mais
autêntico” (Benjamin apud Butler, 2004, p. 145). O reconhecimento é o nome
que se dá a este nível autêntico. Butler afirma: “E se não se responde a esse
reconhecimento com agressividade, com destruição onipotente, então alguém
está em posição de reconhecer a diferença como tal [...]” (2004, p. 146).
Benjamim parecer inverter o processo e considera que a agressão consti-
tui uma ruptura no processo de reconhecimento, e não o contrário – devemos
esperar tais rupturas; haverá momentos em que a relação com o Outro recai na
relação com o objeto, mas a relação com o Outro pode e deve ser restaurada.
Tal estimativa parece pressupor a consideração de que a destruição pode ser
abolida, mas isso seria possível para nós humanos? – ficamos nos indagando.
De toda forma, Benjamin, segundo Butler, entende que, ao se deparar com
outra alteridade, o sujeito se transforma, não para retornar a si mesmo, um
estado anterior, mas para se tornar um eu que até então nunca foi. A diferença
o lança em um futuro irreversível. Poderíamos traduzir esta modalidade de
reconhecimento não como a tolerância pela diferença alheia, em que um não
tem contato com o outro, mas como um tipo de reconhecimento que funciona
por implicação: por exemplo, ao entrar em contato com a alteridade de uma

pessoa trans, eu, um homem cis, me transformo, e por quê? Se entendo que
estamos referidos a um terceiro domínio, comum a nós dois, como a categoria
dos humanos, reconhecer que um ser tão diferente de mim também pertence a
mesma categoria altera, alarga o meu entendimento do que é a categoria dos
humanos. Então eu, enquanto humano, me transformo.
Vladimir Safatle, no artigo “Por um conceito antipredicativo de reconhe-
cimento” (2015), parece partir desse entendimento para pensar em estratégias
políticas de reconhecimento, que poderiam ser interessantes no enfrentamento
à violência que as minorias sexuais padecem. Ele afirma:
Falar em “reconhecimento antipredicativo” só faria sentido se pudéssemos

afirmar a necessidade de algo do sujeito não passar em seus predicados,
mas continuar como potência indeterminada e força de indistinção. Como
se aprofundar as dinâmicas de reconhecimento não passasse por aumentar
o número de predicados aos quais um sujeito se reporta, mas que passasse,
na verdade, por compreender que um sujeito se define por portar o que
resiste ao próprio processo de predicação. O que nos deixa com uma ques-
tão fundamental, a saber: como reconhecer politicamente essa potência que
não se predica? Poderíamos pensar lutas políticas cujas encarnações em
demandas particulares nos levasse, necessariamente, ao reconhecimento
do que é radicalmente antipredicativo? (Safatle, 2015, p. 107).
O processo de nomeação (transexuais, transgêneros, travestis, pansexuais,

assexuais, gênero fluido, não binário, queer, intersexuais, dentre outros) é
importante politicamente para dar visibilidade a grupos minoritários vulnerá-
veis à violência, ou seja, é fundamental na luta por direitos e reconhecimento
jurídico – isso não se questiona. Por outro lado, se nos limitarmos à estratégia
de transferir legitimidade às particularidades, se nos limitarmos a uma prática
de edificação das identidades predicativas, corre-se o risco de nos mantermos
no campo de regulação social das diferenças, de conceder ainda mais força aos
86
mecanismos de institucionalização. Talvez seja interessante, acompanhando

Safatle, pensarmos numa modalidade de reconhecimento que vá além das
delimitações predicativas em prol de outra, justamente uma que desative os
nomes, tendo em mira uma diferença impredicável. Neste sentido, indo mais
longe, estaríamos caminhando na direção de uma zona de indiferença cultural
ou desdiferenciação – ou seja, uma modalidade de reconhecimento que não se
restrinja ao particular, mas se volte ao universal que todos temos (como o per-
tencimento à uma categoria comum, o humano, por exemplo). O englobamento
das mais diferentes manifestações da sexualidade no universal transforma o

universal ao qual cada um, todas e todos pertencemos. O reconhecimento
dessa universalidade, assim como o reconhecimento da impossibilidade de
adequação a identidades sexuais fixas e coerentes – impossibilidade que
também é universal –, pode ter a força da não violência.
REFERÊNCIAS
Butler, J. (2004). Longing for recognition. In J. Butler, Undoing gen-
der. Routledge.
Garcia, L. F. B. (2011). Agressividade no espelho de Lacan ou sobre a agres-

sividade como resultado da formação do eu. Humanidades em diálogo, 4(1),
149-163.
Lacan, J. (1998). A agressividade em psicanálise. In J. Lacan, Escritos. Zahar.

(Trabalho original publicado em 1966).
Lacan, J. (1998). A coisa freudiana ou o Sentido do retorno a Freud em psi-

canálise. In J. Lacan, Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1955).
Lacan, J. (1998). Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Ver-

neinung” de Freud. In J. Lacan, Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado
em 1954).
Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J.

Lacan, Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente

freudiano. In J. Lacan, Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1960).
Safatle, V. (2015). Por um conceito “antipredicativo” de reconhecimento.

Lua nova, 94, 79-116.
Sales, L. S. (2003). A filosofia concreta de Alexandre Kojève e a teoria do

imaginário de Jacques Lacan. Paidéia, 12(24), 139-148.
CAPÍTULO 6
COMO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO
APARECE NO MATERIAL ONÍRICO E
NOS PROCESSOS ASSOCIATIVOS EM
UM GRUPO DE PARTILHA DE SONHOS

O que dizer de uma sexualidade feminina ‘outra’ da que foi

prescrita no e pelo falocratismo? Como reencontrar, ou inventar,
a sua linguagem? Como articular, para as mulheres, a questão
de sua exploração sexual com a de sua exploração social? [...]
Quais questões devem elas endereçar ao seu discurso? As suas
teorias? As suas ciências? Como “dizer” a elas para que não
sejam novamente “recalcadas”, “censuradas”? Mas, também,
como já falar (como) mulher? Atravessando o discurso dominante.
[...]. Falando às mulheres. E entre as mulheres. Essa fala (da)
mulher pode ser escrita? Como? (Irigaray, 2017, p. 139)
Introdução
A partir da experiência do projeto de extensão “Arte e Sonho: abordagem

psicanalítica nos modos de cuidar das juventudes” (Imbrizi, 2020) — e de sua
ação de extensão “Roda de Conversa sobre Sonhos” — criado como modo de
acolher estudantes no período de suspensão das atividades acadêmicas devido
às crises sanitária e humanitária que emergiram no contexto da pandemia, uma
questão foi levantada: como a violência de gênero se manifesta nos sonhos?
Foi possível perceber que a violência de gênero apareceu de maneira
camuflada em um sonho compartilhado na Roda, no dia vinte e seis de abril
de 2021. Entretanto, foi emergindo de modo mais explícito nas perguntas, nos
afetos disparados e nos processos associativos produzidos nos componentes
do grupo que ouviram a narrativa onírica. Por incrível que pareça, o conteúdo
90
latente relacionado à violência foi se transformando em conteúdo manifesto no

espaço onírico construído no grupo. Por conseguinte, o objetivo deste capítulo
é apresentar a narrativa onírica de uma estudante do primeiro ano de graduação
do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e os
processos associativos grupais que despertaram a discussão sobre a violência
de gênero. Para atingir o nosso intento, apresentaremos o método de trabalho
na Roda de Sonhos e os autores de referência que subsidiaram a criação do
projeto, tais quais Sigmund Freud, Charlotte Beradt e René Kaës. Em um
segundo momento, exporemos a narrativa onírica e os processos associativos

grupais. A análise do material produzido será inspirada em autoras feministas
que têm subsidiado a crítica à naturalização da violência contra a mulher:
Luce Irigaray, bell hooks, Judith Butler e Lia Machado.
Método de trabalho na Roda de Sonhos
A Ação de Extensão “Roda de Conversa sobre Sonhos” teve a sua criação

e desenvolvimento a partir de encontros da turma XIV do curso de Psicologia
durante os momentos iniciais da pandemia de covid-19, quando estudantes
se sentiam desconectados da universidade e do contexto acadêmico, uma vez
que as aulas estavam suspensas para manter o isolamento social e planejar
o ensino on-line que se daria. A partir da dinâmica de partilha do material
onírico já estabelecida pelo convívio da turma e também inserida no modo
como ocorre o ensino-aprendizagem proposto pelo projeto pedagógico do
curso, foi possível a inspiração das proponentes nos “Círculos de Cultura” de
Paulo Freire (1967). Nesta propositura, as relações são organizadas de modo
horizontal, ou seja, não há supervalorização de títulos acadêmicos. Assim, na
Roda, há ênfase na troca e compartilhamento de experiências oníricas. A cada
encontro, os participantes são convidados para contar sonhos que reverberam
como uma caixa de ressonância em cada integrante, pois o que é valorizado
são os processos associativos estabelecidos no grupo.
Ademais, partindo da obra Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt
(2017), foi possível tratar o material onírico como um sismógrafo que espelha
as oscilações políticas de um determinado contexto histórico. Por conseguinte,
em momento de pandemia causada pelo coronavírus, o material onírico pode-
ria revelar cotidianos desestabilizados e a dimensão sociopolítica do sofri-
mento (Rosa, 2016) em estudantes. Dessa maneira, a angústia sofrida pelo
turbilhão de emoções que discentes manifestavam se refletia em seus materiais
oníricos e precisavam de um local, mais especificamente, um grupo, no qual
esses afetos pudessem ser depositados e compartilhados. Entretanto, para
que a partilha de um conteúdo tão íntimo e, muitas vezes, com significados
desconhecidos para cada sonhante, pudesse acontecer, seria necessário a cria-

ção de um espaço de acolhimento, confiança e escuta livre de julgamentos.
À vista disso, houve destaque para um certo modo de se olhar para o
sonho como o que Freud (1900/2017) propõe em sua obra A Interpretação
dos Sonhos, ao afirmar os sentidos e significados do material onírico, como
também valorizar as cadeias associativas produzidas pelo/pela sonhante em
situação de análise. René Kaës (2004), por sua vez, dá prosseguimento às
ideias freudianas e avança teoricamente ao refletir sobre o sonho, que con-
tado em um ambiente grupal, produz processos associativos polifônicos e
interdiscursivos entre participantes. O grupalista ainda introduz o conceito

de “porta-sonhos”, se referindo a integrantes que captam as angústias e dese-
jos do grupo e sonham por todos — a partir do momento em que o sonho é
relatado, o seu material deixa de ser propriedade da pessoa que o sonhou e
passa a pertencer ao grupo. Nesta evolução da teoria, o espaço íntimo torna-se
político e se abre para o continente grupal e sua dimensão polifônica.
Esta concepção da propriedade coletiva de um sonho traz consequências
para o modo como se dá o manejo das relações pelas coordenadoras da Roda.
Estas não são centradas na sonhante e em suas particularidades, mas sim na
ênfase atribuída aos afetos e cadeias associativas que aquela narrativa des-
perta nos participantes do grupo ali instituído. Outrossim, e em acordo com
a sismografia do sonho em um momento tão angustiante do cenário político
brasileiro negacionista e de extrema direita, além de um luto persistente diante
do elevado número de mortes devido à pandemia, era importante que também
se encontrasse outros propósitos naquele compartilhamento de sonhos. Des-
tarte, foi possível tratar o material onírico como ferramenta para a construção
de uma sociedade antissexista. Todos estes autores e estas autoras de linhagens
diferentes foram utilizados como plano norteador da conversa estabelecida
a cada encontro na Roda.
Apresentação do sonho
Título do sonho: “Uma mancha escura na parede”

Já faz um tempinho que eu sonhei isso, é, só para contextualizar, antes de
entrar na facul [sic] eu era professora de música para crianças, então eu sonhei
que minha chefe me ligava, pois precisava que eu ensaiasse com as crianças
para uma apresentação de final de ano. Ela precisava que eu transmitisse as
atividades para as crianças. Nesse momento, eu estava ali com as crianças,
e eu fui para um canto da sala para que eu ficasse sozinha e refletisse sobre
o que eu ia fazer. E aí eu fui para um canto, onde tinha uma parede branca,
mas também tinha uma mancha, eu não havia reparado, quando eu olhei
92
mais atentamente, eu percebi que era uma mancha escura, bastante escura,
e eu achei aquilo muito estranho. E aí eu me lembro que eu tinha recebido
uma ligação da minha mãe e ela havia falado que meu irmão estava no hos-
pital. Daí quando eu olhei para essa mancha, eu virei para o meu namorado
que estava do meu lado e eu falei: “Ele não está no hospital, né?”. Porque
depois desse contexto, eu percebi que eu estava no meu quarto ensaiando
com as crianças, ou melhor, eu estava num quarto que era do meu irmão e
aí esse buraco na parede, essa mancha, na verdade é porquê ele tinha se
suicidado, então, considerei que era mancha de sangue. Quando eu virei pro

meu namorado e eu perguntei, ele só fez um sinal de não ao balançar com a
cabeça e foi esse o sonho.
Os processos associativos no grupo
Havia trinta e sete pessoas na sala virtual e a portadora do sonho é uma

estudante do curso de Psicologia, que chamaremos aqui de Ana8, em seu pri-
meiro semestre da graduação. Já estávamos completando um ano de pandemia.
A estrutura da narrativa é recorrente na Roda de Sonhos, porque começa
com uma atividade cotidiana e termina suscitando angústia em quem produziu
o material onírico. No caso, o acontecimento corriqueiro é o que acontece
na sala de trabalho de uma professora de música para crianças. Em determi-
nado momento, há um embaralhamento entre os cômodos da casa onde ela
reside com sua família nuclear: o quarto de seu irmão se confunde com o
espaço da sala de aula. Os afetos se transfiguram no material onírico quando
a sonhante percebe uma mancha na parede do quarto e recebe a notícia de
que seu irmão havia morrido em decorrência de um suicídio. Trata-se de seu
irmão mais velho e, assim como o buraco na parede, a diferença de idade
produz a sensação de vulnerabilidade na sonhante – ela revela que há uma
relação de distanciamento, física e emocional, com o irmão. Ela reconhece já
ter naturalizado relações violentas entre os membros de seu núcleo familiar,
inclusive do irmão em relação a ela, além de apresentar outros traumas no
tocante à sua relação com seus familiares.
A sonhante aproveitou a oportunidade para dizer que a situação da pande-
mia destruiu o seu projeto de vida, que era morar em outra cidade, ficar longe
dos pais e exercer a sua profissão de professora de música para crianças; o que
confirma o fato de que a pandemia pode ser considerada “uma máquina de
8 Foram seguidos os cuidados éticos e os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido (TCLE) vinculado ao projeto de pesquisa: Imbrizi, Jaquelina Maria. (2021). Produção Onírica e Arte:
o que sonham juventudes em situação de vulnerabilidade social?. Universidade Federal de São Paulo,
Campus Baixada Santista. CAAE: 42341521.4.0000.5505
moer sonhos das juventudes” (Imbrizi et al., 2021). Ela precisou voltar para
a casa dos pais, pois perdeu o emprego, e assim, viu se esvair a sua liberdade
recentemente conquistada. Ela sente incômodo (Freud, 1919/2021) nas rela-
ções com o irmão e os pais, o mesmo que percebe como o clima presente nas
cenas oníricas finais.
A narrativa onírica causou um mal-estar nos/nas participantes por tratar
do tema da morte, do suicídio. O ponto nodal do sonho é a mancha na parede
que provocará cadeias de associações: mancha escura, buraco na parede,
mancha de sangue, espelho redondo para se olhar, e sensação de vulnerabi-
lidade por conta de uma parede em precárias condições, quase ruindo. São
estabelecidas relações com as mortes na pandemia e com a vulnerabilidade
das crianças. Uma participante afirma: “Então parece que existia um buraco
que torna alguém vulnerável a algum tipo de violência”.
Há associações no grupo sobre as diferentes formas das famílias bra-
sileiras educarem filhos do sexo masculino e filhas do sexo feminino, ofe-
recendo mais liberdade para os primeiros, enquanto as meninas “parecem”
se acostumar com as violações de seus direitos e com os abusos sexuais no
interior das famílias. Houve abertura para falar dos sentimentos ambíguos que
articulam amor/ódio e distanciamento/proximidade afetiva. Em decorrência
destes, a entrada na universidade junto à oportunidade de morar em outra
cidade é considerada por cada estudante como fuga dos espaços opressivos
familiares. Houve a valorização da coragem de Ana em figurar no material
onírico a sua vulnerabilidade enquanto mulher diante das violências sofridas,
como também, da bravura da caloura em compartilhar o material onírico em
um grupo de estudantes que ela acabara de conhecer.
Após as atividades na Roda, extensionistas e a professora-coordenadora
fizeram uma supervisão para discutir o encontro. As extensionistas expressa-
ram um incômodo diante do material compartilhado no grupo: elas se iden-
tificaram com o sofrimento de Ana e revelaram que tinham sofrido violência
sexual perpetradas por pessoas próximas e/ou da família ou que suas amigas já
haviam experimentado algum tipo de relacionamento abusivo com namorados.
Outro aspecto que produziu angústia foi o fato de as extensionistas avaliarem
que não houve atenção e cuidado suficientes para com a sonhadora e que a
relação transferencial não foi manejada a contento. A supervisora explicou que
em espaços grupais a atenção das coordenadoras de grupo é direcionada para
o processo grupal e não para a pessoa singular que contou o sonho. Segundo
Kaës (2004, p. 139):
A situação de grupo obriga pôr em funcionamento uma estratégia da inter-

pretação diferente da análise individual. [...] a interpretação deve visar os
94
processos do grupo e não um participante em particular: proceder de outra

forma seria instaurar uma análise individual em grupo e estabelecer uma
relação privilegiada com um membro do grupo. [...] O princípio é este: as
vias da interpretação estão em ressonância polifônica com os processos
associativos dos membros do grupo.
As propositoras da Roda de Sonhos consideraram este encontro como

emblemático para refletir sobre o manejo do grupo e o cuidado para com seus
participantes, mas também analisaram que outras atividades poderiam ser

ofertadas para que a questão específica da violência de gênero pudesse ser
encampada pelas universidades públicas e que estratégias de enfrentamento
fossem criadas. Assim, outro projeto de extensão foi implantado, “Mulheres,
Arte e Cuidado” (Spaziani, 2021), com este intento e uma de suas ações já foi
publicada em um capítulo de livro (Ramos et al., 2020). Por fim, passamos
agora para a análise do material produzido no encontro que foi inspirada em
autoras feministas que têm subsidiado a crítica à naturalização da violência
contra a mulher.
Análise do material produzido na Roda
Freud no capítulo VI do livro A Interpretação dos sonhos (1900/2017)

trata do tema dos sonhos típicos: aqueles que quase todo mundo sonha da
mesma forma, que vêm das mesmas fontes e que, muitas vezes, possuem sig-
nificados similares. Freud destaca diferentes séries de sonhos típicos, sendo
que nos interessa neste capítulo os referentes às mortes de parentes queridos,
os quais expressam sentimentos ambivalentes: o desejo de que a pessoa morra,
acompanhado de dor ou tristeza.
Os desejos representados no sonho nem sempre são atuais, a teoria do
sonho deduz que em algum momento da infância o desejo existiu, e sobrevive
no inconsciente. Freud (1990/2017, p. 291) analisa, então, a relação infantil
entre os irmãos: “A criança é absolutamente egoísta, vive suas necessidades
com intensidade e busca a sua satisfação sem escrúpulos, sobretudo em relação
aos seus concorrentes, às outras crianças e, em primeira linha, aos irmãos”
(p. 291). Além disso, o psicanalista afirma que a representação da morte
para a criança é diferente do que a de um adulto, pois para elas a morte está
relacionada apenas a uma ausência. Assim, a criança vê o seu irmão ou irmã
como um concorrente do amor e atenção dos pais, de forma a desejar que o
seu oponente desapareça, saia de cena – deseja que ele morra.
Destarte, ao contrário da crença na harmonia e fraternidade presentes
nas concepções de família no senso comum, a inimizade entre irmãos na
infância é algo mais frequente do que se imagina. Nos sonhos típicos, Freud
(1990/2017, p. 295) ressalta o afeto que acompanha o sonho: “[...] a reação
psíquica ao sonho de desejo de morte demonstra que, a despeito de toda a
diversidade no conteúdo, o desejo da criança é, de alguma forma, equivalente
ao desejo do adulto”.
No caso, a sonhante Ana revela que, após sonhar com o suicídio do seu
irmão mais velho, acorda assustada e chorando. Segundo ela, a tristeza não
vinha da morte do irmão em si, mas sim por conta da forma pela qual ela
foi representada no sonho, pois acha o suicídio um tema muito forte. Além
disso, ela também afirma que há uma distância emocional e acontecimentos

traumáticos relacionados ao irmão.
Os processos associativos grupais a respeito do tema da irmandade tra-
tavam-se, em grande parte, do tema da violência, dando enfoque às violações
que partem de um irmão (gênero masculino) mais velho. De tal forma que se
produziu uma reflexão a respeito das famílias patriarcais e normas de gênero,
responsáveis por permitirem que essa violência ocorra: o irmão mais velho
muitas vezes tem a convicção de que sua irmã é propriedade dele, e por isso
trata-a como tal. Assim, as inimizades entre irmãos ganham outro significado,
que vai além da disputa infantil trazida por Freud: estão imbricadas em uma
questão de gênero, em uma cultura patriarcal que violenta os corpos femininos.
A partir do sonho, é possível afirmar que Ana realizou um desejo infantil
de ver seu irmão morto. Ou seja, foi possível realizar um desejo violento a
respeito de quem a violentou na vida de vigília. Cabe ressaltar também outra
importante função do sonho, que é, para além da realização de desejos, a
possibilidade de elaboração do traumático (Freud, 1920/2010; Ferenczi, 2011;
Rudge, 2016). Dessa forma, o sonhar aparece também como uma forma de
lidar com essas violências cotidianas, aquelas com as quais vamos nos adap-
tando e às vezes até esquecemos na vigília.
Assim, Ana, a sonhante corajosa, afirma: “Talvez eu estivesse acostumada
à violência em si, então, para mim, por estar acostumada a essa violência,
talvez eu tenha olhado e sentido que está tudo bem”. Portanto, cabe afirmar
que a violência de gênero invadiu os nossos sonhos. Se acordadas somos
atravessadas por uma série de violências, que ocorrem de modo velado ou
explicitamente, ao sonhar também vivenciamos os seus efeitos, revelando
que a violência de gênero se faz rotina na vida das mulheres. Estaríamos,
então, acostumando-nos à violência, de modo a não ser o aspecto que mais
nos assusta em um sonho?
A cultura do estupro opera de modo a banalizar a violência de gênero,
ao preparar meninas e mulheres para o assédio sexual, bem como ao natu-
ralizar o discurso de que homens possuem um desejo sexual incontrolável e
96
são instintivamente agressivos. Assim, o conceito de cultura do estupro nos

possibilita romper com as análises individualizantes e psicologizantes sobre a
violência de gênero, compreendo-a como uma produção social, fruto das desi-
gualdades de poder (Sousa, 2017; Women’s Center Marchall University, 2017).
Gênero, longe de ser um “destino biológico”, diz respeito à “estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos reiterados no interior de uma estrutura
reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a
aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”, como nos aponta
Judith Butler (2003, p. 59). Nesse sentido, a heteronormatividade regula o

gênero como uma estrutura binária e assimétrica entre feminino e masculino
— assim, no singular, na medida em que maneiras outras de se vivenciar os
corpos, as feminilidades e as masculinidades são consideradas abjetas.
Essa desigualdade de poder tem a possibilidade de se materializar nas
situações de violência de gênero. A centralidade da masculinidade hegemônica
pode legitimar que homens se apropriem dos corpos de meninas e mulheres, na
medida em que se entende que as suas vontades não podem ser contrariadas,
assim como que o seu desejo sexual não é passível de ser contido.
Segundo a pesquisadora Lia Machado (2001), há a representação social
dos homens como os sujeitos da sexualidade tornando, portanto, as mulheres
os seus objetos. Uma situação de violência seria a realização da performance
da anulação da vontade do outro feminino. Do mesmo modo, anunciaria a
única fragilidade permitida aos homens: a “fraqueza sexual”.
Em um estudo que buscou escutar homens encarcerados por estupro,
Machado (2001) notou que eles tinham ciência de que seus atos se configura-
vam como crimes, porém se percebiam como fracos diante de seus impulsos
sexuais de “macho”. Apesar do “não” das mulheres, esses homens compreen-
deram que elas pudessem estar consentindo com o ato sexual. Caso o “não”
fosse entendido em seu real significado, os homens seriam postos à prova em
sua capacidade de sedução e virilidade.
De acordo com Machado (2001, p. 7), “a virilidade supõe, assim, no mais
profundo do impensado, isto é, do que é vivido como natural, a disponibilidade
total para a realização da atividade sexual e está associada ao lugar simbólico
do masculino como lugar de iniciativa sexual”. Já as meninas e mulheres são
representadas como se não fossem sujeitos, mas sim “corpos disponíveis”,
submissas aos homens, tutores de seus corpos, de suas vontades e ações.
Desde pequenas somos consideradas propriedades, sendo a família a
primeira instituição a nos objetificar. Gênero, sexualidade e idade se entrela-
çam e acirram as relações de poder no espaço familiar e, assim, as violências
ocorrem nesse ambiente, naturalizadas e veladas pelas ideias de privacidade
e propriedade. Ao “chefe da família”, bem como aos outros membros do
sexo masculino, é legitimado se relacionar sexualmente quando quiser e

lhe convier, independentemente da relação de parentesco e afetividade com
a menina/mulher.
Machado (1998) aponta que nesse tipo de relação, o sexo com as filhas é
encarado como extensão dos direitos de pai, bem como o papel das filhas como
extensão dos “deveres” da esposa. Além da violência sexual contra meninas,
essa concepção também naturaliza o estupro de suas parceiras íntimas, silen-
ciadas pela representação de que às mulheres cabe ter relações sexuais com
seus companheiros para a manutenção de um suposto bom relacionamento.
A ideologia familista apresenta a família como sagrada e lugar do amor

incondicional. Se tudo o que ocorre nesta instituição é expressão do amor,
a violência também o seria. Nesse sentido, mesmo a família sendo o espaço
com maior ocorrência de violências contra meninas e mulheres, é reverberado
um discurso que borra fronteiras entre amor e dominação: agrediu-se para
melhor cuidar. Do mesmo modo, a cultura do estupro, por meio da noção de
“amor romântico”, justifica os comportamentos agressivos dos homens como
parte de sua natureza, solicitando às mulheres que sejam complacentes e os
aceitem dessa maneira em nome do amor.
Não raramente, meninas e mulheres apresentam dificuldades em reconhe-
cer experiências de violência de gênero, visto que a lógica da família imacu-
lada e patriarcal dificulta a sua nomeação. Assim, sentimentos ambivalentes,
como afeição e ódio passam a se presentificar nas relações familiares. Nas
Rodas de Conversa sobre Sonhos, isso se manifestou pelos relatos de angústia
da sonhante em relação ao medo de que a sua singularidade fosse roubada
novamente ao voltar para a residência do seu núcleo familiar, por conta das
diretrizes sanitárias de distanciamento social durante a pandemia.
A fim de desestabilizar o ideal romântico de amor, que serve tanto à
violência de gênero, bell hooks (2020) nos propõe pensar o amor como uma
ação. Nesse sentido, seria interessante ampliarmos as noções sobre o amor
para além de um sentimento, um rompante, compreendendo-o como um ato
que envolve responsabilidade e comprometimento em nutrir o crescimento
próprio e de outras pessoas, ou seja, uma ética de vida em que o bem comum
é a prioridade. Ainda que sejamos ensinadas a compreender a violência como
um modo de expressar o amor, de acordo com essa perspectiva de análise
se faz necessário confrontar essa ideia, já que amor e violência não podem
coexistir. Ou se for inevitável, que estejamos atentas à ambivalência inerente
às relações humanas e às possibilidades de construir redes de afeto para nos
proteger de um mal maior.
Segundo a autora, relacionamentos em que a violência se faz presente
podem envolver afeição e prazer. Contudo, não o amor, compreendido como
98
uma ética de vida que se expressa por meio do reconhecimento do outro como
sujeito, do respeito, compromisso e confiança – e nunca por sua anulação.
Definir o amor dessa maneira nos permite estranhar a naturalização da vio-
lência de gênero.
Se nós mulheres não somos consideradas sujeitas, ao sermos violenta-
das, seríamos consideradas vidas dignas de preocupação e luto? Uma vida
que pode ser violada, destruída e despossuída de si seria considerada pela
sociedade como ausente de valor (Butler, 2020). De acordo com a filósofa,
a violência ou interrupção de uma vida torna quem a domina uma norma,

fazendo com que a relação de desigualdade dê lugar ao genocídio, expresso
também pela manutenção de um clima de terror. A violência de gênero e o
feminicídio perpetuariam esse clima, reverberando a noção de que qualquer
mulher pode ser assassinada.
A população de mulheres ainda vivas vive, até certo ponto, aterrorizadas

com a prevalência dos assassinatos contra elas. Algumas aceitam a subor-
dinação para evitar esse funesto destino, mas essa subordinação serve
apenas para lembrá-las de que são, em princípio, uma classe assassinável
(Butler, 2020).
Cabe destacar que estamos aqui discutindo a partir de lembranças evo-

cadas em um sonho em meio às normas sanitárias de distanciamento social,
momento em que as meninas e mulheres estiveram mais vulneráveis à vio-
lência intrafamiliar e por parceiro íntimo, com menor possibilidade de fuga e
denúncia. No entanto, em meio à pandemia, ao terror da lembrança ou possi-
bilidade de violência, uma sonhante corajosa falou e, assim, outras mulheres
também puderam partilhar seus medos e dores.
Estamos nos acostumando com a violência? Talvez não. O ato de falar
desses sofrimentos em uma roda de sonhos abre possibilidade para o acolhi-
mento e cuidado. Pode ser, assim, um ato de resistência e enfrentamento contra
todos os silenciamentos, terrorismos e lembranças. Nas Rodas de Sonhos o
amor é verbo e, portanto, atua para desconstruir e desnaturalizar a violência
de gênero.
Em sua pesquisa a respeito da produção onírica dos brasileiros durante a
pandemia de covid, Carla Rodrigues et al. (2021) observaram que a maioria
das pessoas dispostas a compartilhar seus sonhos eram mulheres. Por meio
dessas narrativas e das associações produzidas em situação de entrevistas
individuais, as participantes puderam expressar, direta ou indiretamente, as
vivências de mulheridade e as múltiplas violências que a acompanham. Nesse
sentido, “escutar o sonho das mulheres na pandemia seria também reconhecer
os signos de seus sofrimentos psíquico e social” (Rodrigues et al., 2020, p. 90),

possibilitando sua elaboração, bem como a tecedura de modos outros de se
posicionar em um mundo estruturado por e para homens.
Ao contar um sonho, essas mulheres falam-mulher. O falar-mulher
(parler-femme), conceito criado pela linguista e psicanalista Luce Irigaray
(2017) e que também pode ser traduzido para “falar (como) mulher”, “falar
(da) mulher” ou “fala da mulher”, refere-se a uma linguagem que fale das
mulheres em seus próprios termos, não para defini-las, mas para que possam
expressar-se de modo descolado dos parâmetros masculinos. Entretanto, não
se trata de recorrer a uma simples oposição ou simetria – espelho – da estrutura

sintática dominante, e sim de criar algo novo, polimorfo e fluido.
Notadamente, ao longo do relato, a mancha vista pela sonhante se torna
buraco, significante este que constantemente se repete ao longo das associa-
ções grupais. Ao mirá-lo e depreender o suicídio do irmão, o buraco e mancha
ensanguentada podem remeter à possível ferida da autoquíria, embora não seja
especificado como esta de fato se deu na narrativa onírica. A ferida, por sua
vez, concatena-se etimologicamente ao significado da palavra de origem grega
trauma. Logo, é com o horror do acontecimento traumático que se defronta
Ana ao final do sonho, produzindo um buraco no simbólico assim como faz
a mulher. Na Roda, a sonhante fala-mulher da violência sofrida, mesmo que
irrepresentada, utilizando-se da “língua poética plena de imagens” (Freud,
1901/2021, p. 411) sonial. Ademais, é a fala de uma participante que fornece
pistas para qual seria essa origem:
[...] a violência com ela não é figurada em momento algum no sonho,

tipo diretamente, mas parece que eu me sinto, assumindo o papel dela,
como violentada, eu me sinto violentada quando vejo uma mancha, eu
me sinto violentada quando tentam me calar, parece que esse furo tenta
me furar sabe, essa mancha é minha, esse sangue é do irmão dela, mas
parece que é dela [...]
Em seguida, ela continua seu raciocínio: “Então parece que existia um

buraco que te torna vulnerável a alguma coisa, um buraco que torna alguém
vulnerável a algum tipo de violência”.
Sutilmente aqui é apresentado a suposta vulnerabilidade do órgão genital
feminino, o buraco da vagina, como se a anatomia fosse o destino, o que se
confirma em uma sociedade falocêntrica na qual há a supervalorização do
órgão sexual masculino. E neste sentido, a vagina da mulher é mais reconhe-
cida pela cultura em detrimento da vulva, do clitóris, dos seios e das demais
partes do corpo que são fundamentais também para proporcionarem prazeres
100
plurais nas mulheres. Irigaray (2017) faz uma crítica a esta hierarquização e
estabelece relações com a sociedade patriarcal, que concebe a mulher como
depositária do desejo dos homens, cuja única possibilidade de ser feliz estaria
associada ao ser mãe, e assim, por meio da maternidade, ela conquistaria o seu
próprio falo. Para a psicanalista e linguista, a possibilidade de desconstruir a
ideia de que anatomia é destino de vulnerabilidades, estaria na construção de
novas formas discursivas criadas pelas próprias mulheres. O falar-mulher da
porta-sonhos Ana, ao localizar a naturalização da violência em sua vida e em
sua cultura, abriu espaço para um “falar-entre-mulheres” no qual elas puderam

situar as opressões no ambiente da família nuclear burguesa reforçadas pela
cultura patriarcal. Nas palavras de Irigaray (2017, p. 154):
Pode haver um falar-entre-mulheres que seja ainda um falar-homem, mas

esse pode ser também um lugar no qual se ousa enunciar um falar-mulher.
É certo que com esse mulheres- entre-elas (e essas é uma das apostas dos
movimentos de libertação, quando não são organizadas com o modelo de
poder masculino, ou quando não estão reivindicando a tomada do poder
ou sua derrocada), nesses lugares onde se processa a fala-entre-as-mulhe-
res, enuncia-se algo de um falar-mulher. É isso que explica o desejo ou a
necessidade de não integração: a linguagem dominante é tão poderosa que
as mulheres não ousam falar-mulher fora do contexto de não integração.
Aqui está novamente a referência à coragem de Ana, a nossa portadora

de sonhos que sonhou por todas nós e disparou em cada participante da Roda
a potência de um falar-mulher entre mulheres.
Como pudemos apresentar no decorrer deste capítulo, as violências de

gênero são reavivadas nos conteúdos oníricos e nos processos associativos
grupais. Houve um espaço para as elaborações possíveis do traumático, viven-
ciado no cotidiano de meninas e mulheres. Neste sentido, localizamos o papel
da universidade pública em criar estratégias de enfrentamento às violências
de gênero, e a possibilidade de criação de dispositivos grupais em psicanálise
que propaguem espaços de acolhimento tais como a Roda de Conversa sobre
Sonhos. A partir da teorização de Kaës (2004), com a terminologia de “por-
ta-sonhos”, torna-se o “íntimo” do conteúdo do sonho em “político”, assim
sendo possível incidir na cultura, por meio da crítica à sociedade patriarcal e
falocêntrica, pois abrir brechas para a discussão do político, abre-se também
a possibilidade de que se promovam mudanças na cultura e nas dimensões
simbólicas que perpetuam a estrutura do patriarcado.
Ademais, por se constituir enquanto um espaço aberto, a narrativa onírica

e os processos associativos grupais sobre as violências de gênero que invadem
os sonhos das mulheres, estão acessíveis para serem compartilhados com
quem estiver disposto a ouvir: os homens são presença frequente nas Rodas
e talvez isso também deva ser considerado nos espaços de discussão. Era o
que bell hooks (2018, p. 19) nos dizia quando falava que: “O feminismo é
antissexismo. Um homem despojado de privilégios masculinos, que aderiu às
políticas feministas, é um companheiro valioso de luta, e de maneira alguma
é ameaça ao feminismo”. Destarte, essa participação dos homens no grupo,
especialmente quando um sonho com conteúdo relacionado a questões de

gênero é relatado, abre espaço para que eles mesmos reflitam consigo e jun-
tamente com os demais sobre as dificuldades implicadas em vivenciar uma
sociedade marcada pelo sexismo.
102
REFERÊNCIAS
Butler, J. (2003). Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade.
Butler, J. (2020, 10 jul.). De quem são as vidas consideradas choráveis em

nosso mundo público? El País. https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/
judith-butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mun-

do-publico.html
Beradt, C. (2017). Sonhos no Terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães

depois da ascensão de Hitler. Três Estrelas.
Ferenczi, S. (2011). Reflexões sobre o trauma. In Obras Completas: Psica-

nálise IV. Martins Fontes.
Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras Comple-

tas (vol. 14; P. C. de Souza, trad. e notas). Companhia das Letras. (Trabalho
Freud, S. (2017). A interpretação dos sonhos (vol. I e II; R. Zwick, trad.).

L&PM. (Trabalho original publicado em 1900).
Freud, S. (2021). O Incômodo (Das Unheimliche) (P. S. de Souza Jr., trad.).

Editora Blucher. (Trabalho original publicado em 1919).
Freud, S. (2021). Sobre os sonhos. In S. Freud, Obras Completas (vol. 5;

P. C. de Souza, trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado
em 1901).
Freire, P. (1967). Educação como prática de liberdade [versão digital]. http://

www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/otp/livros/educacao_pra-
tica_liberdade.pdf
hooks, b. (2018). O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras.

Rosa dos Tempos.
hooks, b. (2020). Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Elefante.
Imbrizi, J. M. (2020). Arte e sonho: abordagem psicanalítica nos modos de

cuidar das juventudes. Projeto de Extensão Universitária Unifesp – Baixada
Santista, Santos, SP, Brasil. Aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura

da Unifesp – PROEX em jun. 2020. Código PROEX: 17774. https://www.
unifesp.br/reitoria/proec/siex-frame.
Imbrizi, J. M., Silva, M. D., Lemos, I. M., Teixeira, L. C., & Rosa, M. D.
(2021). “Máquina de moer sonhos”: a pandemia e os sonhos das juventudes.
In C. Dunker, C. Perrone, G. Iannini, M. D. Rosa & R. Gurski (orgs.), Sonhos
confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia? Autêntica.
Irigaray, L. (2017). Este Sexo que não é só um sexo: sexualidade e status

social da mulher. Senac.
Kaës, R. (2004). A polifonia do sonho. Ideias e Letras.
Machado, L. Z. (1998). Masculinidade, sexualidade e estupro: as construções

da virilidade. Cadernos Pagu, (11), 231-273. https://periodicos.sbu.unicamp.
br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8634634
Machado, L. Z. (2001). Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na

sociedade contemporânea. Série Antropológica UNB.
Ramos, G. C., Silva, J. de S., Carvalho, L. S., Gomes, J. T., Spaziani, R. B., &
Imbrizi, J. M. (2021). Roda de poesia: a construção do cuidado entre mulhe-
res. In A. C. Bortolozzi, P. R. M. Ribeiro, F. Teixeira, I. Chagas, T. Vilaça, P.
de O. e S. P. Mendes, S. M. M. de Melo, C. R. Rossi & I. P. Martins (orgs.),
Questões sobre gênero: novos paradigmas e horizontes (vol. 1, pp. 185-195).
Gradus Editora.
Rodrigues, C., Nunes, C. H. O., Pinho, I., Chaves, I. T. L., Werneck, J.,
Tanure, L. M., & Gruman, P. (2021). “Mulheres”: mãe, sonhei com você:
contar o trauma. In C. Dunker, C. Perrone, G. Iannini, M. D. Rosa & R.
Gurski (orgs.), Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos
de pandemia? Autêntica.
Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica

do sofrimento. Escuta/Fapesp.
Rudge, A. M. (2016). Sonhos traumáticos na clínica psicanalítica. Revista

Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental [online], 19(4), 603-615.
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2016v19n4p603.2
104
Sousa, R. F. (2017). Cultura do estupro: prática e incitação à violên-

cia sexual contra mulheres. Estudos Feministas, 25(1), 9-29. https://doi.
org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p9
Spaziani, R. B. (2021). Mulheres, Arte e Cuidado. Projeto de Extensão Uni-

versitária Unifesp – Baixada Santista, Santos, SP, Brasil. Aprovado pela Pró-
-Reitoria de Extensão e Cultura da Unifesp (PROEX) em jul. 2021. Código
PROEX: 20436. https://www.unifesp.br/reitoria/proec/siex-frame

Women’s Center Marchall University. (2017). Rape culture. https://www.
marshall.edu/wcenter/sexual-assault/rape-culture
CAPÍTULO 7
INSCRIÇÕES SINGULARES E O
ESPAÇO DE ESCUTA COMO FORMA
DE ELUCIDAÇÃO DA VIOLÊNCIA
DE GÊNERO CONTRA A MULHER
Leonardo Danziato
Introdução
A violência de gênero contra a mulher é um fenômeno social global e já

era considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das mais
significativas violações no campo dos direitos humanos. Com o isolamento
social exigido por conta da pandemia de covid-19, essa situação de confi-
namento doméstico e convivência forçada teve como um dos efeitos mais
deletérios o aumento da violência doméstica e, mais especificamente, daquela
cometida contra a mulher. Os dados sociodemográficos indicam que houve
um acréscimo da violência de gênero entre 30% a 50% em vários países em
todo o mundo (Mlambo-Ngcuka, 2020).
Obviamente, toda essa situação de confinamento afetou e ainda tem afe-
tado a todas e todos de uma forma muito direta no funcionamento subjetivo e
na saúde mental. No que diz respeito às mulheres em situação de vulnerabili-
dade e risco, esse sofrimento se amplia. De uma forma geral, os atendimentos
realizados às vítimas pelos órgãos responsáveis caracterizam-se por serem de
ordem jurídica e assistencial. Apenas pontualmente encontramos serviços que
oferecem uma escuta psicológica e uma intervenção em urgência subjetiva,
mas ainda assim de uma forma pouco amparada institucionalmente.
A partir dessa constatação, propusemos um trabalho de pesquisa-inter-
venção intitulado “Violência de gênero no contexto da pandemia de covid-
19: uma proposta de intervenção em urgência subjetiva com mulheres em
106
situação de vulnerabilidade e risco”. O objetivo desse trabalho era operar como

uma investigação sobre a violência de gênero no isolamento social, através
do oferecimento de um espaço de “intervenção em urgência subjetiva”, via
atendimento remoto, por parte de uma equipe de profissionais composta por
psicólogos e psicanalistas. Para tanto, estabelecemos uma parceria com a
“Defensoria Pública do Estado do Ceará” (DPCe) e o “Núcleo de Enfrenta-
mento à Violência contra a Mulher” (NUDEM), situados na Casa da Mulher
Brasileira, desde agosto de 2020, onde já funcionam serviços de atendimento
jurídicos e assistenciais a mulheres.

Neste trabalho, discutiremos a função e os efeitos do espaço de escuta
como instrumento de enfrentamento à violência de gênero, fundamentado em
alguns resultados provenientes da nossa pesquisa. Ou seja, vamos desenvolver
uma apreciação dos aspectos clínicos do percurso deste trabalho – a partir dos
relatos dos atendimentos realizados na pesquisa – e de como esse espaço de
escuta possibilitou algum efeito de deslocamento na posição dessas mulheres
no enfrentamento do traumático ao qual estão submetidas.
A urgência subjetiva, enquanto uma metodologia clínica, constitui-se
em um acolhimento aos sujeitos em situação de crise e sofrimento psíquico
emergencial. Esse dispositivo consiste em possibilitar um espaço de escuta
diferenciada dirigida aos casos onde a palavra se encontre subtraída e substi-
tuída pelo risco de passagens ao ato e acting-out (Lacan, 1962-63/2005), bem
como o consequente esmagamento do sujeito. Por conseguinte, essa forma de
atendimento constitui um espaço de circulação da palavra como instrumento
privilegiado para a escuta e o acolhimento, possibilitando uma elaboração
psíquica e a produção de sentidos diante de um evento traumático.
A escuta clínica de narrativas e discursos das mulheres em situação de
vulnerabilidade e risco nos serviram, portanto, para investigarmos como se
situam no que denominamos de “aspectos fundamentais” da violência de
gênero e seus efeitos de subjetivação nessas mulheres, de maneira que nos
permitam observar suas formas de perpetuação, mas também de enfrentamento
e rupturas com esse ciclo repetitivo da violência.
O caráter sistêmico da violência de gênero
A violência de gênero pode ser entendida como uma prática sistêmica,

uma vez que opera como se fosse admissível, e se torna invisível no discurso
corrente, que é patriarcal e misógino. Suas expressões se manifestam em
várias facetas narrativas e culturais – como o sexismo, espancamentos, mutila-
ções, encarceramentos, feminicídios, infanticídios, feticídios, entre outras – e
denunciam um grave problema global. Esses poderiam claramente se situar
nos denominados crimes de ódio (Bodiou & Chauvaud, 2019).
Optamos por sistematizar as narrativas oriundas dos atendimentos, e,

assim, pudemos dar um tratamento metodológico aos relatos das vítimas de
violência atendidas pelas psicólogas e psicanalistas da equipe. Consideramos
os aspectos subjetivos e subjetivantes que se apresentam nos discursos e falas
dessas mulheres, buscando entender os efeitos e as formas de apresentação
psíquica e fantasmática da violência de gênero à qual foram submetidas.
Desse modo, buscamos traçar nosso caminho metodológico a partir
seguintes pontos: dimensões psíquicas e pulsionais das cenas de violência
de gênero para cada uma das mulheres; repetição e subjetivações das cenas
traumáticas infantis; apassivamento subjetivo determinado pelo histórico dos

discursos patriarcais; possibilidades e impossibilidades discursivas de corte
com o ciclo da violência de gênero; padrões de repetições e rupturas. Esses
aspectos se sustentam nas nossas suposições de que as condições narrativas e
discursivas da violência de gênero encontram algum tipo de implicação e ins-
crição singular que só a dimensão clínica dos atendimentos poderá nos revelar.
Para o presente trabalho, guiamos nossa análise a partir de três dimensões
mais amplas:
1. Dimensão 1: A tradição patriarcal e a dominação masculina: tole-

rância e invisibilidade da violência de gênero;
2. Dimensão 2: O ódio ao feminino;
3. Dimensão 3: A cultura da inferioridade feminina: identificações
e subversões.
Vamos discutir essas três temáticas maiores, bem como suas inscrições
e efeitos na condição singular dessas mulheres, a partir dos relatos clínicos
oriundos da pesquisa. Trabalharemos com o conteúdo de 20 relatos, dos quais
dispomos para a pesquisa.
Inscrições singulares das temáticas fundamentais da violência

de gênero
Dimensão 1: A tradição patriarcal e a dominação masculina: tolerância

e invisibilidade da violência de gênero
A dominância pelos ideais
A tradição patriarcal sempre estabeleceu uma dominação masculina e um

lugar para a mulher que implica a sua suposta condição de inferioridade, mas
também um lugar para o corpo feminino como um espaço do usufruto sexual.
108
Em contraponto a isso, a mulher é convidada a ocupar um lugar de ideal (I),

seja de beleza, de pureza, de maternidade, do casamento e da família perfeita.
Sabemos, desde Freud (1915/2010b), que os ideais podem ter um efeito
de danificação narcísica e de injunção superegoica, mal comparando sempre o
“Eu” com os ideais, o que não é propriamente justo. Os efeitos podem ser de
depreciação e inferiorização. Não é justo, por exemplo, exigir de uma mulher
que responda ao Ideal (I) da mãe perfeita, pura e benevolente.
Supomos, portanto, que estamos diante de uma já conhecida “ambiva-
lência” da figura da mulher, que ao mesmo tempo é o alvo de uma idealiza-

ção, mas por outro o objeto de um ódio muito direto. Trata-se do que Lacan
denominou de hainamoration (Lacan, 1972-73/2010), ou seja, uma conjunção
de ódio (haine) e enamoramento. Se considerarmos, ainda com Lacan (1959-
1960/1988c), que o ideal (I) apenas encobre um buraco do real, temos aqui
uma boa explicação para essa rápida e comum passagem de uma idealização
a uma depreciação.
Uma das mulheres atendidas relata que o companheiro diz que a ama,
que ela é a rainha e a mulher de sua vida, que ela é uma mulher forte e de
fibra, uma mulher que se parece com a sua mãe: aceita tudo, pois o amor tudo
suporta (Relato 17). Exatamente como ela tudo suporta – tal como a mulher
“sadiana” (Lacan, 1966/1988a) –, ele pode agredi-la com palavras tais como
“rapariga” e “puta”, justificando que “está podando a árvore para que fique
do jeito que ele quer” [sic] (Relato 17).
O que observamos é que esses ideais parecem funcionar, como disse-
mos, para muitas mulheres como uma “injunção superegóica” (Lacan 1959-
1960/1988c), ou seja, a mulher se culpabiliza e se maltrata moralmente caso
não os atinja. Esse ataque dirigido à mulher e ao seu corpo não provém uni-
camente dessa culpa, mas se origina também das exigências morais e ideais
que provêm dos seus outros no laço social, especialmente dos homens. Por
não responderem a essa expectativa, identificam-se com o lugar da mulher
depreciada e, por isso mesmo, dirigem uma violência ao seu corpo e às suas
posições subjetivas. Catalisam a violência a elas dirigidas e ao seu corpo,
identificando-se com objeto atacado.
Trata-se também de uma “violência estética”, imaginária, que está ali-
cerçada nos ideais de beleza e de pureza do feminino. A “imagem ideal do
corpo” funciona aqui como parâmetro estético, mas também moral, já que
estabelece uma exigência narcísica e impossível: alcançar a imagem do espe-
lho (Lacan, 1966/1998b).
Em um dos relatos, uma mulher comenta que o casamento sempre foi
árduo, pois o marido nunca aceitara o fato de ter se casado com uma mulher
que não era mais virgem (Relato 2). Em outro, diz que por conta do seu
peso sentia-se “complexada por ser gorda”, e que o ex-marido lhe criticava
constantemente, afetando sua autoestima (Relato 10). É como se o corpo
feminino devesse seguir a exigência masculina, servindo apenas de objeto
ao desejo do homem.
Outro ideal patriarcal se apresentou de forma contundente: o ideal do
casamento e da família perfeita. Várias mulheres afirmaram se sentirem culpa-
das com a separação por dissolver a ideia de um casamento e de uma família.
É óbvio que, nesse contexto, as mulheres precisam também aceitar a perda
desse ideal.
Numa determinada situação, uma das atendidas relata que tem um

histórico de vivências de violência perpetrada pelo discurso de dominação
masculina desde a infância, que se inicia com o pai e que se manteve com o
marido. Acreditou que poderia fugir desse ciclo, pois, diante de uma infância
sofrida, estabeleceu o casamento como uma saída: uma “válvula de escape
pra vida” [sic] (Relato 12). Qual a ironia da repetição quando seu marido
passou a agredi-la, tal como o pai. Essa mesma mulher, ainda assim, relata
um sentimento de culpa por ter precisado “sacrificar o casamento e a presença
do pai com a filha” [sic] (Relato 12). Nada mais explícito para ilustrarmos a
“violência dos ideais”.
Em outro atendimento, uma mulher relata que foi abusada, reiterada e
silenciosamente, pelo primo dez anos mais velho que era “pago” pela mãe
para “dormir com” e “proteger” o casal de irmãos. Vale destacar a investidura
e a chancela da mãe concedida ao sujeito que comete o abuso sexual, uma vez
que a ele cabia “cuidar” das crianças. Os abusos começam como “brincadei-
ras” e se estendem a jogos sexuais impostos, penetração forçada e repetidas
ameaças de morte contra a agredida e sua mãe, caso a violentada relatasse o
que estava acontecendo. Deve-se mencionar que, mesmo com as mudanças
de residência, o agressor continuou a exercer, por muito tempo, o papel de
“cuidador” dos parentes menores de idade (Relato 5).
Em outro relato encontramos o incômodo de uma mulher ao afirmar
que se deparou com o que denominou de “tabu da Separação”. Nesse caso,
reclama que mesmo as mulheres ao seu redor não a apoiaram em sua decisão
(Relato 13), sinalizando a exigência, quase uma obrigação, da mulher de
sustentar um casamento ideal, mesmo sendo falido, pagando o preço como
sua própria carne.
Aqui fica muito claro como o discurso tradicional patriarcal estabelece
o lugar da mulher na família e na sociedade: esse lugar de passividade, de
conciliação e de sacrifícios em nome da tradição e manutenção da famí-
lia nuclear. Não é incomum encontrarmos essa posição subjetiva de uma
mulher, postando-se como o objeto do amor e da cura. A aposta romântica
110
na cura pelo amor segue também uma tradição cristã. Como decorrência
disso, advém uma lógica sacrificial na qual algumas mulheres se lançam
(Danziato et al., 2021).
Esse discurso é de tal modo introjetado culturalmente pelas mulheres que,
ao não suportarem mais se manterem nessa posição, sentem-se culpadas. Por
outro lado, existe o controle exercido pelos homens, onde a mulher é dominada
física e simbolicamente. A mulher, de certo modo, aceita a situação, visto
que o que lhe era possibilitado estava atrelado aos mandos e desmandos dos
parceiros, ou seja, orbita numa relação estagnada, num círculo vicioso, onde

o poder e as dominações sobre a mulher imperam (Aboim, 2012).
Num dos relatos encontramos a situação na qual a mulher afirma que
um dos medos que se lhe assombrava era que, ao se separar, seus filhos pas-
sariam fome, pois ela não trabalhava, apenas fazia bicos de cabeleireira e o
valor que ganhava não era suficiente. Então, o companheiro estava sempre
colocando-a para baixo, pois falava que isso não era trabalho, que ela estava
“vagabundando” [sic]. Além disso, sofria violências físicas, verbais, psico-
lógicas e sexuais, sendo traída desde o início do relacionamento, o que ele
deixou sempre claro porque “fazia questão de que eu soubesse disso” [sic]
(Relato 16).
Uma das atendidas afirmou que, ao longo do casamento, ela era proibida
de se aproximar e de falar com outras pessoas, inclusive familiares: “ele
me repreendia como se eu fosse uma filha. Eu era dele como esse paninho
é meu...” [sic]. Apesar de nunca ter ocorrido violência física, as violências
psicológicas eram constantes, como humilhações, brigas, controle, vigilância
etc. (Relato 13).
Em outro caso, vemos todo um processo violento de controle das condi-
ções financeiras da mulher e das suas possibilidades de progresso profissional,
como se esse progresso se apresentasse como uma ameaça ao parceiro. Essa
mulher conta que numa determinada situação de luto pediu que o namorado
gerenciasse todo o seu dinheiro, visto que ela não estava em condições de
resolver nada, e isto resultou no dinheiro dela sendo controlado por ele durante
anos. Toda vez que queria usá-lo, ela tinha que conversar com o ex-parceiro,
e dependia da opinião e do aval deste.
Por outro lado, quando estava prestes a concluir um curso superior, o
ex-companheiro pede para que ela tranque o curso argumentando os limi-
tes das suas condições financeiras, muito embora, os estudos e o progresso
profissional do companheiro nunca tenham sido comprometidos por essas
questões: “sempre era eu que tinha que abrir mão dos estudos” (Relato 14).
Em outro relato a situação é semelhante: a mulher relata que o com-
panheiro impôs várias regras, como se afastar da filha e de sua família, não
conversar com homens e excluí-los de suas redes sociais, não postar fotos
sozinha, permitir que ele visse seu celular, restaurá-lo sempre que achasse
necessário e não sair sozinha, somente com ele. E, que, se ela não os cum-
prisse, ele a agredia. Justifica que não a quer próxima de sua filha pois a
mesma “atrapalha o relacionamento dos dois, colocando coisas em sua cabeça
negativamente e que a assistida tem que se acoplar a ele e não ficar de pescoço
grosso” (Relato 17).
Embora se configurem como tipificações diferentes de violência, em
todos os relatos é possível perceber uma depreciação da mulher, uma tentativa
de diminuí-la, de lhe retirar a condição humana e objetificá-la, em determina-

dos casos até o ponto da abjeção (Butler, 2014). Numa busca de se sobressair
dentro da relação e mesmo dentro do laço social, esses homens inferiorizam
suas companheiras e utilizam os mais diversos tipos de violência para se
mostrarem superiores, de modo que, inúmeras vezes, as próprias vítimas
chegam a assumir esse lugar no discurso, pois acabam sendo persuadidas a
acreditarem-se de fato inferiores. Assim, as configurações familiares aparecem
como uma relação nitidamente desnivelada na qual há uma espécie de senhor
a quem os demais obedecem.
A naturalização, a tolerância e a justificação discursiva da violên-

cia de gênero
Sabemos que uma das justificações ideológicas da violência de gênero

se dá através da naturalização de uma “tipificação ontológica” e binária dos
gênero: os homens funcionam “naturalmente” de uma determinada forma, e
as mulheres de outro. Obviamente que o gênero não pode ser considerado uma
categoria natural ou biológica, já que se trata muito mais de uma construção
histórica, social, simbólica, e política (Butler, 2014). Encontramos essa jus-
tificação em vários extratos dos relatos clínicos que atendemos.
Uma das mulheres relata que tentou por diversas vezes conversar com
o companheiro sobre as agressões e depreciações que sofria, mas ele dizia
que era “coisa da sua cabeça” e que “homens são assim mesmo” [sic]. Nesses
momentos, ele pedia sempre para que ela o compreendesse e o aceitasse, pois
ele teve uma infância e uma adolescência difíceis, já que foi criado em um
bar, começou a beber desde cedo e não tinha um bom relacionamento com
seu pai (Relato 18).
Em outro relato, uma mulher explica que seu ex-companheiro era diag-
nosticado com transtorno bipolar. Ela, inclusive, chegou a pensar que essa
situação causada por ele e a família teria sido devido a uma piora em seu
quadro de saúde, pois, alguns meses antes, ele havia parado sozinho de tomar
112
a medicação e de ir ao psiquiatra (Relato 6). De outra forma, encontramos

uma fala que vai no mesmo sentido: a atendida afirma que só havia sofrido
violência psicológica, e que tinha certeza de que seu marido era diagnosticado
com “psicopatia afetiva”, pois havia estudado sobre, tanto em leituras, como
em vídeos e relatos na internet (Relato 8).
Essa justificação ideológica e discursiva da violência de gênero se dá de
várias formas, seja pela via da patologização e da psicologização, seja pela
naturalização desta tipificação ontológica dos gêneros, seja por uma decor-
rente exigência de uma tolerância que as mulheres deveriam ter com relação

às violações que sofrem.
Em determinado relato encontramos um enunciado que condensa nossas
suposições acima. Uma mulher nos relata que, ao se separar, foi morar com
sua mãe, a qual sempre tinha tomado partido dos ex-companheiros agressores,
inquirindo-a em determinado momento sobre o porquê da sua separação. Esta
mãe, tendo passado também por um relacionamento violento, interroga: “Eu
aguentei. Por que você não pode aguentar?!” (Relato 3).
Esse enunciado denuncia toda a incorporação e o apassivamento que o
discurso misógino e a tradição patriarcal impõe às mulheres e as suas vidas.
Virilismo e colonização
Mbembe (2020) sugere que a violência contra as mulheres advém de um

caráter de colonização, de exploração e apropriação dos bens muito próprio
do discurso colonial. A exploração sexual das mulheres colonizadas é uma
das características do que ele denomina de “virilismo”. Essa tradição colo-
nial, patriarcal e misógina produz também consequências esdrúxulas muito
próprias de masculinidades adoecidas e enrijecidas por um ideal de virilidade,
que seriam patéticas, se não fossem trágicas.
Numa determinada situação, uma das mulheres atendidas relata que
sofreu uma agressão física após seu filho fazer carinho em um gato e o marido
não ter aceitado, pois considerava tal comportamento típico de gay. Não acei-
tava, também, que o filho fosse chamado pelo seu próprio nome, pois ele tem
o mesmo nome do seu pai biológico. Então, todos tinham que chamá-lo de
“rapaz”, “menino”, “garoto”, dentre outros (Relato 18).
Em outra situação muito demonstrativa do caráter colonial da violência
de gênero, encontramos uma mulher negra que, ao se envolver com homem
estrangeiro, oriundo de um dos países colonizadores, vai sofrendo uma ver-
dadeira exploração e expropriação não só do seu corpo mas também dos seus
bens (Relato 4). Visualizamos aqui o par colonizador/colonizado: o estrangeiro
colonizador e a mulher negra colonizada.
Aqui se reencena a presença do europeu “conquistador” que sabe como se

apossar dos bens e dos corpos dos “colonizados”, o que remete ao processo de
colonização das Américas, uma vez que os europeus aqui chegaram solteiros
e sem família, com o único propósito de tomarem posse das riquezas e dos
corpos do Novo Mundo (Schwarcz, 2019, p. 190). Vale mencionar o desequi-
líbrio sexual da população escravizada na época, uma vez que se constituía
de 70% de homens e 30% de mulheres.
Essa figura do homem branco que aparece como alguém que vai salvar
as populações nativas e colonizadas faz parte de nosso imaginário social
desde muito tempo. É mais um discurso criado para estabelecer e demar-

car as dicotomias superior/inferior, civilizado/selvagem, culto/sem cultura,
senhor/escravo; numa tentativa de justificar as violências cometidas contra
essas populações. Seja na literatura ou no cinema, desde Iracema (Alencar,
1865/1991) a Pocahontas (Pentecost et al., 1995), o homem branco aparece
como o salvador da mulher colonizada, que vai livrá-la de uma vida selvagem
tornando-a civilizada. No caso da mulher negra, isso é ainda mais problemá-
tico, pois em geral não era vista como digna de ocupar esse lugar, cabendo a
ela a posição de mulher estritamente sexualizada.
A estrutura biológica e social do nosso país é marcada pelo estupro das
mulheres indígenas e negras. Em outras palavras, o Brasil foi forjado a partir
da violência sofrida, sobretudo, por elas. Nascimento (1978/2016) afirma que
o Brasil herdou a estrutura patriarcal de Portugal e que quem pagou o preço
mais alto dessa herança foi a mulher negra e não apenas durante os anos
de escravização. “Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa da sua
condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo, continua a
vítima fácil, vulnerável a qualquer agressão sexual do branco” (Nascimento,
1978/2016, p. 56).
A invisibilidade e tolerância da violência sistêmica contra a mulher
Como dissemos, a justificação discursiva e ideológica da violência de

gênero produz uma naturalização e, exatamente por isso, uma invisibilidade
e tolerância para com uma violência que se tornou sistêmica (Zizek, 2014).
Essa invisibilidade e tolerância se apresentam não só para as mulheres que
sofrem seus efeitos, mas também se observa nos discursos e práticas nas
instituições jurídicas, e no próprio Estado, através da ausência ou do fracasso
das políticas públicas contra a violência de gênero.
Encontramos a comprovação dessa invisibilidade em vários relatos de
atendimentos. Em um deles, a mulher conta que uma das profissionais do
campo jurídico que estava cuidando do seu caso tentou fazer com que ela
114
desistisse de seguir com o processo, afirmando que, devido à lentidão da

justiça, ela não iria conseguir grandes coisas (Relato 10). Nesse caso, temos
curiosamente uma justificação e aceitação trágica da violência, através da
burocracia estatal.
Em outra situação, nos deparamos com a lentidão das medidas jurídicas
que chegam a demonstrar essa tolerância com a violência. Uma mulher relata
que foram feitos 8 boletins de ocorrência, 6 medidas protetivas e um mandado
de prisão contra seu ex-namorado. Diz ainda que, apesar de tantas queixas
contra o abusador, mesmo assim “sofre com medo” de que algo possa acon-

tecer, pois acha que a justiça se coloca em uma posição passiva diante de tal
barbárie. Afirma que está desacreditada que a justiça dos homens funcione,
pois vive recebendo ameaças, totalizando ligações de 18 números diferentes,
e acredita que seja dele. Por conta disso, chega a fazer aulas de defesa pessoal
e capoeira, para poder se defender. Chega a dizer que a Lei Maria da Penha
talvez não seja tão eficaz assim, como dizem, e que provavelmente não pro-
cure mais ajuda, pois é levada a crer que “a justiça espera que ela apareça
morta” (Relato 1).
Como vimos acima, essa invisibilidade se apresenta também, de forma
muito clara, quando as próprias mulheres não se dão conta que estão sub-
metidas a uma situação de violência. Em vários casos elas só se apercebem
quando dispostas diante da possibilidade de uma outra significação, seja por-
que alguém interpreta a situação para elas, seja porque quando chegam no
campo jurídico operam uma nova significação. Daí a importância de reforçar-
mos uma mudança discursiva na hegemonia do discurso patriarcal e misógino,
de maneira a torná-lo visível e intolerável.
Uma das mulheres nos disse que só descobriu que vivia uma relação
abusiva através das redes sociais em páginas que falavam sobre o tema de
relacionamentos abusivos e violência contra a mulher (Relato 11). Outra diz
que demorou um tempo até ela entender que estava vivendo em uma relação
abusiva (Relato 14). Em outro relato, a mulher entende o seu caso como não
tão grave quanto o de muitas outras, que sofrem agressões e violências físi-
cas. (Relato 6). Nessa mesma lógica, uma delas também afirma que chega
ao Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (NUDEM) por
ter denunciado seu ex-marido, alegando ter sofrido violência psicológica,
“apenas”! (Relato 8).
Além da invisibilidade da violência encontramos também uma tolerância
discursiva, como dissemos, não só por parte das mulheres, mas também das
instituições jurídicas, sociais e políticas. Uma das mulheres atendidas profere
um enunciado que condensa e ilustra toda essa tolerância discursivamente
enraizada. Diz ela: “Olha, eu sempre tive relacionamentos abusivos, já estou
até acostumada” [sic] (Relato 7). A consequência trágica desse enunciado é

que a violência se torna costumeira, banal, invisível e tolerada, mesmo que
não deixe de produzir seus efeitos nefastos.
Uma das mulheres desabafa diante dessa pressão moral e religiosa dos
ideais: “olha, eu estou cansada, as pessoas não entendem, e acabam que-
rendo que eu volte, porque ele mudou, voltou a frequentar a igreja, e diz
ter se arrependido” (Relato 8). Em outro atendimento a mulher relata que o
companheiro pediu por diversas vezes para que retirasse a medida protetiva,
pois isso o “incomodava enquanto homem” [sic]. Porém, após esse período,
a assistida nunca parou de se encontrar com o agressor, o que a fez perder a

medida protetiva por descumpri-la (Relato 17). Em outra situação, a mulher
diz que não tinha pedido a medida protetiva porque não queria “sujar o nome
dele” [sic] e que queria sair desse relacionamento de forma tranquila, pois
ainda existia sentimento e que não queria seu mal (Relato 18).
Não é incomum, contudo, que as mulheres retrocedam e retirem as medi-
das protetivas que conseguiram juridicamente após algum tempo. Entendemos
esse retrocesso como um dos efeitos da incorporação do discurso patriarcal
e misógino, que estabelece uma tolerância a violência, e que opera através
de uma pressão moral, cultural, religiosa e ideal, para a manutenção desses
quadros. Para não abandonar os ideais, elas cedem.
Dimensão 2: O ódio ao feminino
A constância e a obviedade do ódio
A relação da dominação masculina (Bourdieu, 2012) com o feminino,

como dissemos acima, é uma relação ambivalente que podemos denominar, tal
como fez Lacan, como uma relação de hainamoration (Lacan, 1972-73/2010),
de maneira que, de uma forma paradoxal, o feminino é o mesmo tempo idea-
lizado, purificado, através dos ideais da beleza e da castidade, e por outro,
quando não responde a esses ideais – já que o desejo e o sexo inevitavelmente
se apresentam para uma mulher – o feminino suscita o ódio.
Em outro momento também discutimos a violência de gênero que sua
correlação com o ódio ao feminino (Danziato et al., 2021), mas não retoma-
remos aqui a discussão lá desenvolvida. Interessa-nos no momento ilustrar
como a dominação masculina e o ódio ao feminino se apresentaram nos relatos
de nossa pesquisa.
Obviamente que as mulheres que a nossa pesquisa atendeu, através de
um espaço de escuta em urgência subjetiva, estavam todas numa situação
limite de vulnerabilidade por conta da violência a qual estavam submetidas.
116
Por isso pode parecer óbvio dizer que na maioria dos casos as agressões,
as destituições, as depreciações, e até mesmo os espancamentos, não eram
incomuns. Queremos ressaltar, contudo, a obviedade do ódio, de maneira que
isso funcione como uma denúncia. Queremos dizer com isso que nenhuma
justificativa pode recusar a manifestação óbvia do ódio dirigido à mulher e
ao feminino. Se a violência física ou psicológica, ou ambas, não comprovam
isso, não sabemos mais o que poderia comprovar.
Em um dos atendimentos, ao falar sobre a relação que tinha com o
agressor, a mulher conta que vivia uma forte dependência emocional: “eu tive

que me acostumar com a ideia de viver sem ele...” [sic]. De acordo com ela,
o ex-marido, que sempre se achava perfeito, vivia procurando um culpado
para os problemas dele e, na grande maioria das vezes, era ela que ocupava
esse lugar, sendo por ele xingada e humilhada. Além disso, ele a criticava
constantemente por conta do seu peso (Relato 10). Outra mulher relata ter
sofrido agressões físicas, psicológicas, traições e ameaças, além de ter sido
demitida do antigo trabalho por conta das exigências feitas pelo ex-marido.
Era proibida de sair sozinha e diz que ainda se sente presa “nesse tormento
psicológico” [sic]. Após o término, o agressor criou um “Instagram fake” para
lhe vigiar. Ela conta ainda que ao longo desse período engordou 6 kg e que
não sabe mais o que a faz feliz (Relato 11).
Ao falar das violências sofridas, outra mulher afirma que o ex-marido
lhe xingava quando estava desconfiado: “eu era manipulada de todas as for-
mas, eu nem me conheço” [sic]. Sob o efeito de bebida alcoólica, ele já
tentou enforcá-la, além de lhe jogar no chão, esmurrar e cortar sua pele com
uma faca, quando ele soube que ela havia olhado o seu celular. Ao final das
agressões ele dizia: “olha só o que você fez eu fazer...” [sic], culpabilizando-a
pelo ocorrido (Relato 11). Em outro caso, uma mulher que foi casada por 15
anos descreve esse relacionamento como uma “prisão psicológica” [sic], onde
sofria com agressões verbais, medo, desrespeito, ciúmes doentios e pressão
psicológica. De acordo com ela, a violência emocional é pior que a física,
porque “não sara” [sic]. Ao lembrar um dos episódios que a marcou, relata a
cena do ex-marido lhe mostrando um vídeo de um homem espancando uma
mulher. Após isso ele dizia: “você só está viva por causa da sua filha” [sic]
(Relato 12).
Violências sexuais
Outro aspecto da violência de gênero que queremos ressaltar é a cons-

tância pela qual ela se dá na vida de uma mulher. Várias mulheres relataram
violências e abusos sexuais, físicos ou psicológicos desde a infância. Estamos
aqui diante de uma cruel repetição fundada na lógica patriarcal e misógina

que suscita um ódio ao feminino, à diferença que ele implica, e ao desejo de
uma mulher.
Uma das mulheres atendidas relatou várias histórias de abusos sexuais
que sofreu durante a sua vida, confirmando que isso a traumatizou desde a
sua infância, de maneira que hoje ela “não suporta ser abraçada por trás”
[sic]. Mesmo sabendo disso, era como seu ex-marido a abraçava sempre,
ou seja, exatamente da forma como se sentia abusada e desrespeitada. Além
disso, conta que seu ex-marido mantinha relações sexuais com ela sem seu
consentimento, onde ela era forçada e diz que engravidou todas as vezes por
conta desses abusos, pois elas nunca foram planejadas, apenas “aconteciam”
(Relato 16). Outra delas conta que vinha de anos de mal-estar em relação ao
seu casamento e ao seu companheiro que a traía bastante, a agredia moral-
mente e sexualmente. Mesmo ela não querendo ter relações com ele – que
passava o dia e noite fora – quando chegava em casa queria relações sexuais.
Ela acabava cedendo, mas não se sentindo bem por ser da forma como era
(Relato 8).
Vimos que numa das situações acima, trata-se muito claramente de um
estupro, o que pode parecer estranho para uma mulher que está num relaciona-
mento formal e consensual. Na violência de gênero de maneira geral e muito
especialmente nos atendimentos que fizemos em nossa pesquisa, a violência
sexual ou estupro não são realizados por desconhecidos, mas, pelo contrário,
estão à espreita no “seio familiar”. Essa constatação que não é propriamente
original, já que várias pesquisas apontam nesse sentido, mas por si só já deve-
ria interrogar o famigerado ideal da família como o baluarte do laço social.
A interrogação sobre o desejo da mulher, que se apresenta sempre como
um enigma, parece funcionar como o causador de uma desestabilização por
parte dos agressores. Como não conseguem controlar o desejo de uma mulher,
nem ter a certeza de como elas desejam, ou qual é seu objeto, e quais as suas
fantasias sexuais, os homens fazem suas suposições geralmente paranoicas.
A partir daí buscam um controle e uma vigilância cujo traço fundamental não
deixa de ser paranoico.
Uma das mulheres relata que buscou a delegacia da mulher após seu
ex-marido invadir a sua casa, em um momento em que ele foi lá para pegar
as crianças e levá-las para a sua casa. Ao invadir, alegou que fez isso porque
ela estava tendo relações sexuais com seu namorado na frente de seus filhos.
A partir desse momento, decidiu abrir um “boletim de ocorrência” contra seu
ex-marido, pedindo a medida protetiva e dando entrada no divórcio. Relata
que sofria violências físicas, verbais, psicológicas e sexuais, sendo traída
desde o início do relacionamento, e que ele sempre relatou essas traições:
“fazia questão de que eu soubesse disso” [sic] (Relato 16).
118
Em outra situação a mulher relata que no início do relacionamento o

companheiro impôs várias regras, como: se afastar da filha e de sua família,
não conversar com homens e excluí-los de suas redes sociais, não postar
fotos sozinha, deixar ele ver o seu celular e restaurá-lo sempre que achasse
necessário e não sair sozinha, somente com ele. Se ela não cumprisse, ele a
agredia. Justifica que não a quer próxima de sua filha pois a mesma “atrapalha
o relacionamento dos dois, colocando coisas em sua cabeça negativamente e
que a assistida tem que se acoplar a ele e não ficar de pescoço grosso” [sic]
(Relato 17).

Outra mulher relata que o agressor a molestava com agressões físicas
e verbais, intimidações e assédio nas redes sociais (Facebook), bem como
ameaçava desaparecer com o filho de ambos. Conta que foi obrigada e que
viveu período enclausurada. Nesse momento, diz que foi tomada por intensa
angústia e vergonha de gritar, de pedir ajuda, vergonha de não ter identificado
o real caráter do ex-companheiro (Relato 4).
Em certas situações as mulheres precisam lidar com crimes explícitos
dos seus parceiros. Em um relato, a mulher convivia com um homem que
dopava e roubava mulheres, pois pelo menos oito mulheres lhe contaram o
que aconteceu com elas. Essa atendida disse que não irá mais se envolver com
ninguém após a separação, até tudo isso passar, pois acredita que ele possa
descobrir e fazer algo. Diz ainda que hoje só sente medo (Relato 1).
A violência e ódio dirigido ao feminino, portanto, mantém as mulheres
numa condição de inferioridade e de tutela das suas vidas e dos seus desejos
diante dos seus parceiros. Os efeitos de infantilização e de inferiorização
podem vir a ser devastadores para uma mulher como, por exemplo, o apas-
sivamento subjetivo que pode ficar como um marcador de uma posição psí-
quica durante toda a vida. Isto aponta para um problema estrutural da nossa
sociedade, já que a mulher ainda é posta em uma posição de opressão sob o
“chicote invisível” do opressor.
Uma das mulheres relata que escutava com frequência que “tinha outros
machos”, “dava para o primo e o tio”. Logo passou a ter o celular controlado
e a saída de casa proibida. Várias vezes o agressor a expulsava de casa e a
deixava na rua, sem dinheiro e sem o celular e depois mudava de ideia e a
trazia de volta. Ela acreditava que ele poderia, verdadeiramente, se arrepender,
mudar de comportamento e, por isso, voltava para casa até que as agressões
recomeçassem (Relato 3).
As “traições” naturalizam-se nos discursos e, por consequência, apresen-
tam-se como formas de controle, resultando, assim, na violência, destruição,
aniquilamento, bem como extermínio do outro – o que justifica o fato de, mui-
tas vezes, a mulher decidir não denunciar e tentar resgatar o relacionamento.
Desse modo, pratica-se o chamado exercício de agressividade atrelado a um

desejo de poder, que amordaça e imobiliza o outro.
Dimensão 3: A cultura da inferioridade feminina: identificações

e subversões
Apassivamento subjetivo
O apassivamento subjetivo produzido pela imposição dos discursos

patriarcais e misóginos é sustentado por uma cruel e paradoxal identificação

por parte das mulheres a um lugar de inferioridade que lhes é oferecido.
Estamos aqui diante de um “processo de subjetivação” que impõe a essas
mulheres um espaço de identificação paradoxalmente idealizado e depreciado.
Lembramos como Freud (1910/2013) descreve essa divisão entre o objeto do
desejo e o objeto sexual, como uma divisão tipicamente masculina. Como
consequência dessa identificação, o que observamos foi um inevitável efeito
de apassivamento subjetivo na maioria das mulheres atendidas. Esse apassiva-
mento, que na verdade é histórico e secular, se apresenta individualmente de
várias formas: seja na aceitação tácita de uma situação de violência recheada
de agressões, seja na não percepção de que estão vivenciando uma situação
de violência, seja pela naturalização de uma violência de gênero que lhes
é imposta.
Numa passagem trágica que utiliza o amor como sustentação, uma
mulher relata que o companheiro diz que a ama, que ela é a rainha e a
mulher de sua vida, que ela é uma mulher forte e de fibra, uma mulher que
se parece com a sua mãe: aceita tudo, pois o amor tudo suporta. (Relato
16). A idealização estabelecida para o feminino como o objeto do amor se
apresenta aqui de uma forma traiçoeira. O amor, em sua condição narcísica
de fazer “Um” (Lacan, 1975-76/2007) sempre pende para a aniquilação, ou
devastação da mulher
Com uma frase trágica, uma mulher resume a situação: “Olha, eu sem-
pre tive relacionamentos abusivos, já estou até acostumada” [sic] (Relato 7).
Aqui, vemos toda uma tolerância da mulher com a violência que sofre, como
se fosse algo já colocado como costumeiro, da ordem da repetição, determi-
nando, assim, o lugar de apassivamento e aceitação do seu “trágico destino”.
Nessa mesma lógica da tolerância, outra mulher faz uma comparação,
situando o “seu caso”, como um caso não tão grave, como o caso de muitas
outras que sofrem agressões e violências físicas (Relato 6). Aqui, a mulher
não percebe o constrangimento, a dor e a violência psicológica como algo
mais grave, já que não se tratava de agressão física. Além da tolerância com
120
a violência, há também uma “falsa medida” em considerar a agressão física

algo mais grave.
Culpa, vergonha e medo
Observa-se aqui um apassivamento e uma condescendência com esse

lugar de sujeição, muito própria das relações de poder: uma lógica da subje-
tivação pela sujeição (Butler, 2017). Numa outra perspectiva, podemos dizer
que os afetos que rondam a subjetividade dessas mulheres são da ordem da

culpa, da vergonha, do medo, mas também de uma tentativa de operar uma
reparação seja no próprio casamento, seja para com os filhos.
Em um dos relatos, uma atendida disse que decidiram se casar após
um momento que tiveram na igreja que frequentavam e o pastor falou que
já era a hora deles se casarem, então, ela se sentiu “obrigada e pressionada
a casar” [sic] (Relato 17). Em outra situação, a vergonha se apresenta como
afeto primordial: uma das mulheres atendidas diz que, quando engravidou
pela primeira vez, escondeu dos pais por sentir-se envergonhada de morar em
casa. Ressalta, várias vezes, a palavra vergonha. Seu pai descobriu por tê-la
visto no posto de saúde fazendo o pré-natal (Relato 18).
Bem sabemos que a vergonha e a culpa são afetos que se dirigem ao
corpo, mas fundamentalmente à condição sexualizada do corpo (Lacan, 1988).
A gravidez, por mais que situe a mulher no âmbito do ideal materno, por outro
lado, se apresenta como uma denúncia da atividade sexual da mulher. Se por
um lado temos uma idealização do lugar materno, por outro constatamos uma
depreciação e vergonha moral diante dos efeitos da sexualidade.
Uma das mulheres passou a se queixar bastante nos atendimentos de
dificuldade para dormir a noite e um forte sentimento de culpa por acreditar
ter sido ela quem permitiu tudo isso acontecer, afirmando que: “minha cabeça
não para, pensando no que eu poderia ter feito. Ele me desmontava, me tirava
as respostas. Como me permiti ser tão dominada se eu não sou assim?” [sic]
(Relato 10).
Outra das mulheres atendidas relembra com frequência da época em que
vivia com a mãe: “nunca pude conversar com ela, tudo era feio e imoral. Saí
de um cativeiro para entrar em outro...” e completa: “se eu me libertei desse
homem, não faz sentido voltar pra minha mãe” [sic]. Com relação a isso, conta
que passou a vida inteira ouvindo da mãe que ninguém gostava dela e que seu
corpo não era o ideal, diferente da irmã que respondia e retrucava as provo-
cações, ela se calava e consentia com as palavras ditas pela mãe. Sobre isso
relata que: “eu queria ter sido minha própria mãe” [sic]. Essa mesma mulher,
diz se sentir culpada por ter aguentado e se acomodado nessa relação durante
tantos anos. Além disso, ressalta o tabu que gira em torno da separação, pois
algumas mulheres ao seu redor não lhe apoiaram em sua decisão (Relato 13).
Essa posição observada por algumas mulheres sinaliza, como dissemos,
uma pseudo-obrigação social da mulher diante da sustentação do ideal de
um “casamento falido”, mas também ilustra todo esse processo de alienação
nesse lugar de sujeição a uma posição patriarcal, que situa a mulher no lugar
de inferioridade e depreciação. Esses relatos indicam ainda que as práticas de
constrangimento e de violência dirigidas às mulheres iniciam-se desde cedo.
Ainda crianças, elas sofrem não só o constrangimento moral, mas também
e paradoxalmente, abusos e traumas sexuais, originados no “seio familiar”.

A posição de inferioridade implica também uma depreciação imaginária
e narcísica do corpo. Como a mulher e seu corpo são postos nesse lugar de
objetos do usufruto sexual – muitas vezes através da violência e do estupro –,
quando disposta diante de um envelhecimento, ou da condição de já ter parido
seus filhos, a mulher teme não mais ser desejada. O imperativo do ideal da
beleza padrão, que constrange tanto as mulheres, aqui se faz presente.
Uma das mulheres afirma que ela se permitia estar em tal situação de
vulnerabilidade com o marido, que ela afirma já não amar mais, por medo
de que ninguém mais fosse querer ela, por já ser mãe de três filhos e não ter
mais o corpo e a beleza de antes (Relato 8).
Dimensões psíquicas e pulsionais das cenas de violência de gênero
Obviamente que o apassivamento subjetivo oriundo da imposição dos

discursos patriarcais, assim como a identificação das mulheres com o lugar
de inferioridade e passividade, implica as dimensões psíquicas e pulsionais
dessas mulheres com a situação de violência, aprisionando-as num circuito
paradoxal da repetição.
Essas dimensões pulsionais mobilizam aspectos psíquicos e corporais,
ou seja, as identificações, mas também o corpo e o campo do gozo. Não custa
lembrar que a noção de “gozo” em psicanálise não pode ser confundida com
sua acepção comum, já que se define como uma satisfação pulsional (Lacan,
1988c; Freud, 2010a). Chamamos a atenção para o caráter paradoxal dessa
“satisfação”, que implica não só a lógica do prazer freudiana, mas também a
radicalidade do sofrimento. Vamos observar de forma constante e contundente
esse paradoxo do gozo nos relatos que analisaremos.
Vale ressaltar que, como desenvolvemos em outro lugar (Danziato et al.,
2021), nenhum elemento desses relatos permite confirmar uma interpretação
equivocada de que essas mulheres seriam “masoquistas”. Entendemos que essa
posição de submissão e apassivamento é decorrente não de um “masoquismo
122
feminino”, mas de um processo de subjetivação que impõe essa condição

deteriorada de inferioridade para a identificação dessas mulheres.
Em um dos relatos escutamos de uma mulher não entender o porquê
permitiu que chegasse onde chegou, já que passou muito tempo não sendo
ela mesma, e que hoje sente-se cansada, com medo, angustiada, sem saber
o que fazer e como agir, que não tem mais forças para lutar e que só está
fazendo isso por conta da filha (Relato 15). Outra mulher diz que se vê como
um passarinho preso, que mesmo que a porta esteja aberta, ela não consegue
sair (Relato 17). Ou ainda encontramos a esperança ingênua de uma mudança,

quando uma das mulheres afirma que entende que ele não deveria ter feito
isso. E que espera que ele fique bem. E que aceitaria ele de volta, pois além
de gostar dele, não queria ter que criar um outro filho só e sem a presença do
pai. Mas espera que ele reconheça o que fez e que também se retrate, pois só
assim o aceitaria (Relato 6).
Obviamente que as implicações afetivas, amorosas e fantasmáticas cons-
truídas na história dessas mulheres estão envolvidas nas suas participações
subjetivas nas situações de violência. Como dissemos no livro produzido por
essa pesquisa (Danziato et al., 2021), não podemos desconsiderar os compro-
missos pulsionais e fantasmáticos dessas mulheres com a cena de violência.
A abordagem clínica se tornaria estéril se não colocássemos em pauta, na fala
dessas mulheres, essas implicações inconscientes. A inflexão que estamos
propondo é considerar que esses compromissos pulsionais originam-se na
lógica discursiva no laço social, fundando-se na forma como discursivamente
se trata o feminino e a mulher. O lugar discursivo que o feminino e a mulher
ocupam, determinam essa tolerância e invisibilidade dos ataques coléricos-
-fálicos por parte de alguns homens, e até mesmo de várias mulheres (p. 199).
Observamos a participação desses aspectos em relatos como o de uma
das mulheres que relatou várias histórias de abusos sexuais que sofreu durante
a sua vida e que isso a traumatizou desde a sua infância, onde hoje ela “não
suporta ser abraçada por trás” [sic] e, mesmo sabendo disso, era como seu
ex-marido a abraçava sempre, onde ela afirma que se sentia desrespeitada.
Vamos muito obviamente a implicação de uma cena traumática infantil retor-
nando na cena de violência atual. Essa mesma mulher confessa que sente falta
de seu pai e que gostaria de ser amada por um homem assim como seu pai
que a amava e cuidava (Relato 17).
Lembramos que Freud (1930-36/2010c) afirma que os determinantes da
escolha objetal feita pela mulher são, muitas vezes, tornados irreconhecíveis
pelas circunstâncias sociais. Quando a escolha daquela se mostra de forma
livre, encontra-se de acordo com o ideal narcísico do homem, que a menina
havia desejado se tornar. O autor ressalta ainda que, se a menina permanecer
ligada ao pai no Édipo, é provável que ela escolha um parceiro de acordo

com o tipo paterno.
A lógica da repetição como um paradoxo do gozo se apresenta de forma
muito clara em vários atendimentos. Uma mulher afirma que sempre teme
ser abandonada, mas que, curiosamente, sempre se relaciona com pessoas na
qual sabe que não irá dar certo. Entende a falta que sentia do ex companheiro
deveria ser por causa disso: ele sempre a correspondia, e acrescenta: “olha,
novo, gostando de sexo, e sabendo fazer, o que mais eu queria?” (Relato 6).
Outra constata que a forma como vive hoje é algo que sempre viveu, que os
homens sempre a maltratam e sempre atraem (Relato 7). Numa sessão uma
das mulheres se dá conta de que estava em uma repetição, pois outra vez que
chegou a separar do marido, tinha sido porque o filho tinha ficado doente, e
o “ex” se aproximou para ajudar, e ela mais uma vez, vulnerável, aceitou que
ele voltasse para casa para apoiá-la (Relato 8).
Tomando essas questões da repetição por outro lado ou seja, como uma
repetição de situações traumáticas inscritas na história do sujeito, também nos
deparamos com fato de que muitas dessas mulheres, viveram em suas infân-
cias e nas suas histórias situações de violência de todas as espécies, dentro do
ambiente familiar, de forma que se estabelece uma perpetuação da violência.
Some-se a isso, em muitos casos, uma situação econômica dramática, cujas
condições de vida eram muito precárias.
Numa frase emblemática, uma mulher declara: “O primeiro abuso que
sofri foi da minha mãe. Os homens foram uma continuidade”. Ao longo das
sessões, essa mulher relata a presença de uma mãe, na infância, “difícil” e
ausente, que trabalhava durante o dia e parte da noite e, nos fins de semana,
abusava do consumo de álcool e também se ausentava de casa para estar com
as amigas. Ela e o irmão eram cuidados pela avó materna que, para garantir
a sobrevivência dos netos, pedia esmola no centro de Fortaleza. Com o pai
teve pouco contato, uma vez que os genitores se separaram quando a assistida
tinha um ano de idade, e este sempre se mostrou fragilizado, doente e também
alcoólatra (Relato 3). Outra mulher afirma que presenciara situações abusivas
em sua infância, abusos esses que seguiram seu curso de vida. Recordou que o
pai era alcoólatra e costumava cercear suas saídas, sempre com muito rigor e
inflexibilidade. Além disso, a relação com a madrasta também era conflituosa.
Apesar da dificuldade relacional com a mulher do pai, sofreu ao presenciar
a violência psicológica que o genitor praticava contra a madrasta (Relato 5).
Na descrição da trama familiar de uma das atendidas, pode-se identificar
um núcleo parental várias vezes recomposto, com a seguinte invariância:
uma mãe desatenta que “trabalha a noite e dorme de dia”, um pai/padrasto
raramente nomeado e um irmão mais novo, muitas vezes bode expiatório
124
da irmã agredida. A fragilidade das relações parentais e o esboroamento da

função paterna e da função materna destacados pela psicanálise vinculam-
-se, neste caso, ao espaço físico no qual a família em destaque viveu, desde
o nascimento: eles habitaram várias casas de múltiplos cômodos, onde cada
família morava em um quarto e “usufruíram” da convivência, muitas vezes
forçada, de tios, tias, primos, primas, avôs e avós (Relato 5).
Apesar dos nossos atendimentos em “urgência subjetiva” serem limi-
tados do ponto de vista clínico, já que trabalhamos com apenas seis sessões
para cada uma das mulheres, ainda assim, pudemos constatar a implicação

das dimensões psíquicas, pulsionais e fantasmáticas dessas mulheres, o que
indica a importância dos efeitos dessas situações implicam para a saúde men-
tal. Algumas delas conseguem elaborar e ultrapassar os efeitos traumáticos
dessas situações de violência e vulnerabilidade, mas nem todas. Para algumas,
essas situações tornaram-se devastadoras em todos os aspectos da sua vida. A
recomposição a partir daí se impõe como uma tarefa de longo prazo.
Subversões: possibilidades e impossibilidades discursivas de corte com

o ciclo da violência de gênero
Como se tratava de uma pesquisa-intervenção, nossos objetivos esta-

vam além da mera constatação fenomenológica dos fatos. Oferecemos um
espaço de escuta em urgência subjetiva, cuja intenção clínica era reposicionar
as mulheres atendidas diante das situações de vulnerabilidade e risco, mas
também diante dos traumatismos que sofreram. Por isso, apesar de sabermos
e considerarmos os limites de um atendimento em urgência subjetiva – já
que oferecemos no máximo seis sessões para cada uma das mulheres aten-
didas – ainda assim, tínhamos a pretensão de pelo menos reposicioná-las
discursivamente diante dessas situações traumáticas. Para além da posição de
vítimas – sem desconsiderar que juridicamente realmente o são – tentávamos
encaminhá-las para o passo seguinte, que seria o que fazer a partir de uma
possível ultrapassagem da situação traumática.
Constatamos, por outro lado, que as próprias mulheres já haviam feito um
primeiro movimento no sentido de se deslocar dessa situação de vulnerabili-
dade e risco, iniciando um processo de resistência contra a condição discursiva
e ideológica de submissão, apassivamento e inferioridade. A própria procura
por uma instituição jurídica e social para denunciar a situação de violência
já pode ser considerada um primeiro movimento. Sabemos contudo que não
é suficiente, já que o deslocamento desse lugar que lhes é imposto desde o
nascimento, exige um trabalho de elaboração que demanda mais tempo. Mas
é importante constatar que em algum momento algo mobiliza essas mulheres
para que operem esse movimento de busca de uma ajuda no laço social.
Numa situação, uma mulher, por saber que era traída, tinha muito medo
de contrair uma doença sexualmente transmissível. Então estava sempre indo
ao médico para fazer exames, até que o médico pediu para que ela parasse
de ir, pois ela estava bem e que não havia a necessidade de ir várias vezes
durante o mês (Relato 16). Ora, não podemos supor que essas idas constan-
tes ao médico poderiam ser interpretadas como um pedido de socorro e uma
tentativa de denúncia, mesmo que velada?
Em outros casos, a busca por ajuda e o movimento de tentar sair da
realidade vivida em situações de abuso e violência aparecem de formas mais
diretas. Uma das mulheres, por exemplo, relatou que após uma das situações
de violência passou a sentir muita vergonha, tristeza e medo, o que fez com
que procurasse ajuda psicológica por não saber até onde esse relacionamento
a levaria (Relato 15). Outra mulher declara que se sente uma vitoriosa, pois
está enfrentando o seu maior medo: o de que seus filhos passassem fome
após o término do seu relacionamento, mas isso não está acontecendo, porque
está conseguindo administrar isso com a sua família e que agora, finalmente,
poderá começar uma nova vida com seu atual namorado, conseguir um novo
emprego ou até mesmo investir em sua profissão e que essa sensação era
maravilhosa e única (Relato 16). Outra mulher relata que num determinado
dia fez tudo que ele queria, mas no outro dia foi a delegacia e deu parte dele.
Pois já não queria mais saber dele, das falas que ele ia melhorar, porque “eles
sempre falam isso, mas nunca mudam, e eu só aceitei ter relações sexuais com
ele, porque ele estava com a faca, e eu tive medo dele me matar” (Relato 7).
Podemos observar, contudo, alguns retrocessos bastante “justificáveis”
por conta dos temores dos atos de violência e das ameaças por parte dos agres-
sores. Uma das mulheres contou que quando ocorreu a primeira audiência com
a controladoria foi um momento em que ela se sentiu livre, sem peso. Mas
logo toda essa sensação passou, pois lhe assomou um medo pela própria vida,
a vida de seus filhos e de seus familiares, já que teme que ele se vingue por
ter perdido o emprego. Ele está sempre a ameaçando, principalmente quando
ela tenta falar sobre terminar o relacionamento: “se você me deixar, já tem
uma ordem para te matar, você só sai desse relacionamento morta” [sic]. Por
esses motivos, não dará continuidade no processo (Relato 17).
O caráter dramático e violento desse relato não é incomum nas suas con-
dições de vida. Ele denuncia o trágico aprisionamento discursivo, ideológico,
social, político, e subjetivo a que estão submetidas, e a consequente impotência
que experienciam. Os aparatos jurídicos e de assistência social, assim como
a nossa pesquisa com seus atendimentos em urgência subjetiva, busca se não
sanar definitivamente – o que seria uma ingenuidade – pelo menos oferecer
vias possíveis para possibilitar alguns deslocamentos nessas condições.
126
No final do atendimento, no total de oito sessões, uma das assistidas

sustenta que deseja resgatar a estilista que há em si, a mulher que é capaz
de criar novas coisas. Não por acaso, começa a acessar arquivos relativos
ao divórcio, numa clara alusão aos conteúdos inconscientes, local onde se
encontram informações valiosas que podem ajudá-la na sua luta por justiça.
Ao afirmar: “Eu e o Brasil nos equiparamos. Quem ataca o Brasil ataca a
mim”, essa mulher demonstra, no encadeamento de sua fala, um processo de
identificação maciça com seu país (Relato 4).
Rompimentos com situações históricas de violência, que ilustram uma

repetição de uma dinâmica familiar, também puderam ser observadas. Em um
dos relatos uma mulher conta, sempre muito emocionada, que a vivência com
a maternidade da filha de 16 anos, é perpassada por cumplicidade, parceria,
respeito e intimidade. “Eu me sinto fraca, mas ela me vê forte. É minha fuga”
[sic]. Diz ainda que apesar de se sentir culpada pelo afastamento do ex-marido
da filha adolescente, pensa que houve uma geração de mulheres infelizes no
casamento, presentes em sua família, e que, por isso, decidiu romper com
essa repetição. Afirma: “não quero que a minha filha naturalize um relacio-
namento assim...” [sic] (Relato 13). Outra mulher encaminha sua demanda
de atendimento A partir do desejo de ser escutada, de falar para alguém o que
nunca ninguém quis ouvir, sem medo de julgamento. Diz que talvez existam
no mundo pessoas boas, capazes de não maltratarem o outro. Quem sabe,
assim, não seja preciso delegar a um homem ciumento, a segurança da sua
vida. Acredita que, um dia, seja capaz de garantir a própria segurança e alargar
seus horizontes afetivos. Declara, na última sessão do atendimento, o desejo
de dar continuidade ao processo terapêutico, noutro tempo e lugar (Relato 5).
No final de um atendimento, a mulher atendida revela que está muito satisfeita
em voltar a estudar e que se tornou líder da turma: “Agora eu posso falar e
as pessoas vão me escutar”. Sonha com sua independência econômica que
pode alçá-la a uma posição de autonomia para escolher, livremente, quando
e com quem estar (Relato 3).
A separação
Observamos que a separação não é um processo simples nem fácil para

nenhuma das mulheres atendidas. Entendemos a separação aqui não só como
processo jurídico, mas também como um processo cíclico, que implica supor-
tar uma perda, seja dos ideais de família, de maternidade, de segurança, mas
também da perda de um determinado lugar subjetivo e a aceitação de uma
convocação para construir uma outra posição diante do seu desejo. Por toda
essa complexidade o processo pode ter idas e vindas, decisões e retrocessos.
Uma das mulheres relata que o ex-marido sempre pedia perdão para o
filho e para ela, insistia para que eles voltassem a ser uma família novamente
e que eles podiam até casar-se mais uma vez. Porém, a ela afirma que mesmo
dependendo financeiramente dele e estar sentindo falta da “segurança” [sic]
que ele lhe trazia, sabe que não pode voltar, pois ele a machucou muito e sabe
que ele não mudará, uma vez que ele continuava com os mesmos compor-
tamentos persecutórios de “vigiá-la” (Relato 18). Em outro caso a atendida
explica que não se separou antes porque ele sempre pedia desculpas, chorava
muito, falava que iria mudar e que se ela o deixasse ele cometeria suicídio
(motivo esse que fazia com que ela tivesse pesadelos quase todas as noites,
sonhava com ele morto e sua família dizendo que ela quem o tinha matado).
Além disso, ela tinha medo também de deixá-lo e seus filhos passarem fome,
já que não trabalhava, apenas fazia bicos de cabeleireira e o valor que ganhava
não era suficiente (Relato 16). Outra mulher afirma, durante o nosso último
atendimento, que gostaria de se curar desse amor, pois se considera doente,
pois está sempre usando uma máscara, uma maquiagem, para que possa supor-
tar tudo o que está passando e enfrentando (Relato 17).
Quando consegue efetuar a separação o que se observa é por um lado a
sensação de culpa e de insegurança, geralmente por terem “destruído o lar”,
mas por outro se apresenta um grande alívio de uma sensação de liberdade
pelo rompimento com o circuito da repetição.
No último atendimento, a atendida relatou que estava se sentindo bem,
que havia feito um bazar para arrecadar dinheiro e ajudá-la a pagar as contas,
que estava se sentindo feliz, livre e tranquila, “como se tivesse tirado a tor-
nozeleira eletrônica” [sic], que a energia da sua casa tinha melhorado muito
e que tudo está fluindo. Hoje, mesmo com o sentimento de medo de encon-
trá-lo por aí – após esses acontecimentos, afirma que está pensando em pedir
uma medida protetiva –, está saindo mais vezes e que suas amigas voltaram
a falar com ela e a visitá-la também. Ressalta que, mesmo tudo isso sendo o
básico para as outras pessoas, para ela trata-se de uma conquista diária e que,
por isso mesmo, gostaria de ajudar outras mulheres que passaram ou passam
pelo mesmo que ela passou (Relato 18). Outra atendida diz que não irá mais
se envolver com ninguém até tudo isso passar, pois acredita que ele possa
descobrir e fazer algo. Expressa ainda que quando o deixou, parou de gostar
dele e hoje só sente medo, medo dele aparecer armado (Relato 1).
Ao longo dos encontros, uma das mulheres contou que decidiu se separar
fisicamente do cônjuge, muito embora o processo de divórcio já estivesse
em andamento. Apesar do distanciamento físico, ainda trabalham juntos: ela
preparava os salgados; ele fazia as vendas. Sentia-se aprisionada à relação,
pois gostaria de estar fazendo outra atividade, e não ter mais contato com o
128
ex. Ambos não se falavam, e a filha do meio quem fazia a intermediação entre
os pais. Muitas vezes acreditava que estava sendo vigiada, perseguida pelo
antigo parceiro (Relato 2).
É muito interessante ressaltar um laço entre mulheres que curiosamente
se estabelece de uma forma um tanto periférica, mas que é da ordem de um
“amparo”. Parece até que as mulheres sabendo o que sofrem diante de um
mundo hostil patriarcal e misógino, se reconhecem e se disponibilizam para
uma ajuda mútua no laço social. Podemos até supor que se trata de um laço
de resistência que muitas vezes não é percebido pelo mundo dos homens.

Podemos retirar daqui uma indicação da importância de um trabalho coletivo
ou grupal na assistência e escuta junto às mulheres em situações de vulnera-
bilidade e risco.
O Outro (A) Jurídico: um campo de significação
Consideramos importante ressaltar um aspecto que não estava recortado

diretamente nas categorias que propusemos, que é a função do espaço jurídico
e assistencial oferecido para as mulheres em situação de vulnerabilidade e
risco. Para além dos serviços jurídicos e assistenciais propriamente ditos,
constatamos a importância da delimitação desse espaço público de acolhi-
mento e assistência, especialmente porque ele se configura como um espaço
de significação, ou de novas significações.
Um dos primeiros aspectos que se ressalta nos relatos é a importância
do acolhimento por parte dos equipamentos jurídicos, tais como a delegacia
da mulher, a defensoria, e o NUDEM. Como dissemos, mais do que um mero
acolhimento – o que não é pouco –, esses equipamentos parecem funcionar
como um “campo de significação” que permite a mulher dar um outro sentido
às narrativas, e assim, perceber a situação de violência na qual se encontra
e socializar seus sofrimentos. A título de esclarecimento, não foi incomum
encontrarmos mulheres que não se davam conta de que experienciavam uma
situação de violência. Esse campo de significação permite, portanto, a pro-
dução de novos sentidos para a situação pela qual está passando. Por isso
mesmo consideramos que o campo jurídico funciona como um Outro (A),
no sentido lacaniano do termo, que possibilita o encaminhamento de novas
significações, assim como um campo de reconhecimento.
Uma das mulheres atendidas afirma que “a orientação dos policiais, a
experiência com o oficial da medida protetiva lhe possibilitou sentimentos de
“assistência, segurança e justiça” (Relato 13). A partir daí e escutando o relato
de outras mulheres ela chega à conclusão: “todo mundo pode refazer sua vida”.
Essa rede de apoio, que é inicialmente jurídica, se amplia oferecendo
possibilidades do campo assistencial e psicológico, que permitem “espaços de
fala” e trocas de experiências cruciais para o processo de elaboração subjetivo

dessas situações traumáticas. Sabemos que a criação das delegacias focadas
no atendimento a essas mulheres se deu em um cenário em que as comuns
apresentavam um maior índice de práticas discriminatórias, humilhantes e
desestimulantes aos registros das queixas (Bandeira, 2014). Entretanto, na
referida rede de apoio, não é o que acontece. Diante de um espaço de acolhi-
mento amparado pelo Estado de outro modo, acreditamos ser possível que
os episódios de violência – bem como seus desdobramentos – possam ser
abordados de maneira adequada e com o menor abalo possível para a mulher.
Conclusão: o espaço de escuta como enfrentamento da violência

de gênero
Nossos serviços de atendimento em “urgência subjetiva” vieram se somar

a esses espaços já oferecidos, mas possibilitando um lugar de escuta onde
a singularidade e a intimidade puderam ser relatadas e elaboradas. De todo
modo, entendemos que essa “rede de apoio” funciona como uma importante
“suplência” (Lacan, 1972-73/2010) (mais do que meramente correcional) ao
fracasso das relações simbólicas, sejam no âmbito social, ou pessoal, que se
manifestam na forma da violência de gênero. Entendemos, assim, a importân-
cia de que o campo jurídico possa manter e ampliar uma interlocução com os
serviços assistenciais e de psicologia, onde a subjetividade dessas mulheres
seja considerada, escutada e elaborada.
Podemos constatar com satisfação alguns desses movimentos, que não
foram possibilitados unicamente pelas nossas intervenções, mas que certa-
mente elas contribuíram para tal. Certamente são “atos” que as mulheres con-
seguem cometer para se separarem da situação de violência. Por isso mesmo
o mérito é todo delas. Mas o espaço de escuta permite que elas constatem e
signifiquem a mudança que operaram. Esse reconhecimento não deixa de ter
uma grande importância para o reposicionamento dessas mulheres na vida.
Numa última sessão em um dos atendimentos, uma das mulheres aten-
didas relatou que está há 1 ano e 2 meses em um novo relacionamento, que
está se sentindo muito feliz, amada, protegida, respeitada e que finalmente
está em um relacionamento que ela pode ser ela mesma, em que pode fazer
os esportes que ama, curtir as músicas que gosta, ou seja, que finalmente está
podendo ser ela mesma (Relato 15). Outra afirma que estava iniciando uma
mudança de pensamento sobre si mesma, tinha voltado a trabalhar. Algo que
o marido não deixava antes. E que agora sorri (Relato 8). Outra atendida diz
que nos últimos dois meses a família vinha experimentando a “paz total”,
pois não havia mais desentendimentos após a saída do agressor. A única
130
queixa apresentada é que a filha mais velha tinha aversão ao pai e a família
paterna. Relatou que tiveram diversas discussões, inclusive porque ela quer
o ex-companheiro presente na vida das filhas, todavia não na sua (Relato 2).
Seguindo essa mesma linha, outra mulher, quando explicado sobre a pes-
quisa e se ela aceitaria participar, mostrou todo entusiasmo e disse ter gostado
muito da proposta da pesquisa, e que quando finalizada, gostaria de poder ler
sobre. Acredita que é uma excelente forma de amparar muitas mulheres que
são violentadas (Relato 6).
Assim, compreendemos a importância de uma rede de apoio ampliada

à mulher que sofre violência doméstica. Para além dos serviços jurídicos, é
fundamental que essas vítimas tenham amparo psicológico para que possam
elaborar e dar um novo sentido às suas vivências. Além disso, não podemos
prescindir de direcionarmos nossos olhares e nossos saberes para a violência
vivida por mulheres, algo que está na base estrutural psíquica e também cul-
tural de nossa sociedade. Sendo assim, o número cada vez maior de pesquisas
sobre o tema da violência de gênero pode ser um fator importante para lançar
luz e dar voz a mulheres tantas vezes silenciada.
REFERÊNCIAS
Aboim, S. (2012). Do público e do privado: uma perspectiva de gênero sobre
uma dicotomia moderna. Revista estudos feministas, 20(1), 95-117.
Alencar, J. de (1991). Iracema (24. ed.). Ática (Bom Livro). (Trabalho original
publicado em 1865).
Bandeira, L. M. (2014). Violência de gênero: a construção de um campo teó-

rico e de investigação. Sociedade e Estado [online], 29(2), 449-469. https://
doi.org/10.1590/S0102-69922014000200008
Bodiou, L., & Chauvaud, F. (2019). Féminicides, féminicides e violences de

genre. In L. Boudiou, F. Chauvaud, L. Gaussot, M.-J. Grihon, L. Laufer, & B.
Santos (orgs.), Assassinats de femmes. Le féminicide. Histoire et actualités.
Hermann Éditeurs.
Bourdieu, P. (2012). A dominação masculina. Bertrand Brasil.
Butler, J. (2014). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade

(R. Aguiar, trad.). Civilização Brasileira.
Butler, J. (2017). A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição (R. Bettoni,

trad.). Autêntica.
Danziato, L., Teixeira, L., & Gaspard, J-L. (org.). (2021). Violência de gênero
e ódio ao feminino. CRV.
Freud, S. (2010a). Os instintos e seus destinos. In S. Freud, Obras Completas

(vol. 12, pp. 51-81). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado
em 1915).
Freud, S. (2010b). Introdução ao narcisismo. In S. Freud, Obras Completas (vol.

12, pp. 13-50). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).
Freud, S. (2010c). Sobre a sexualidade feminina. In O mal-estar na civilização,

novas conferências introdutórias à Psicanálise e outros textos (P. C. Souza,
trad.). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930-1936).
132
Freud, S. (2013). Sobre um tipo especial de escolha de objeto pelo homem.

In S. Freud, Obras Completas (vol. 7). Companhia das Letras. (Trabalho
Lacan, J. (1998a). Kant com Sade. In J. Lacan, Escritos (pp. 776-803). Jorge
Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).
Lacan, J. (1998b). O estádio do espelho como formador da função do eu. In

J. Lacan, Escritos (pp. 96-103). Jorge Zahar Ed. (Trabalho original publicado

em 1966).
Lacan, J. (1988c). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. (A. Quinet,

trad.). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960).
Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia. (V. Ribeiro, trad.). Jorge
Zahar Editora. (Trabalho original publicado em 1962-1963).
Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Jorge Zahar. (Trabalho

original publicado em 1975-1976).
Lacan, J. (2010). Encore (Seminário 20). (A. T. Ribeiro, trad.). Escola Letra
Freudiana. (Trabalho original publicado em 1972-73).
Mbembe, A. (2020). Brutalisme. La Découverte.
Mlambo-Ngcuka, P. (2020). Violência contra as mulheres e meninas é pan-

demia invisível, afirma diretora executiva da ONU Mulheres. Onu Mulheres
Brasil. http://www.onumulheres.org.br/noticias/violencia-contra-as-mulheres-
-e-meninas-e-pandemia-invisivel-afirma-diretora-executiva-da-onu-mulheres/
Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um

racismo mascarado. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1978).
Pentecost, J. (prod.), Gabriel, M., & Goldberg, E. (dirs.). (1995). Pocahontas:

o encontro de dois mundos [Filme]. Walt Disney Animation Studios.
Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. Companhia

das Letras.
Zizek, S. (2014). Violência: seis reflexões laterais. (M. S. Pereira,

trad.). Boitempo.
3ª SEÇÃO
VIOLÊNCIAS DE GÊNERO,
SEXUALIDADE E PATRIARCALISMO
CAPÍTULO 8
A OUTRA: o sujeito não
universal do liberalismo
Ecila Meneses
Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o

Universo. Reconhece teus direitos. O poderoso império da
natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismos,
de superstições e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou
todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem
escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer
às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se
injusto em relação à sua companheira (Declaração dos Direitos
da Mulher e da Cidadã, Olympe De Gouges, 1791).
Introdução: a negação e a resistência da mulher no espaço

da sociedade
Mas, por quê? Esta é a pergunta que as mulheres fazem diante da violên-
cia. Os nomes, as situações, o tempo e a intensidade mudam, mas o que não
muda é a sanha perversa, desgovernada e histérica do agressor.
A história da violência e de seus enfrentamentos vem de longe, e saber
dela é também saber das várias formas de enfrentá-la, de curar as feridas, de
acalmar as frustrações e de projetar e construir um futuro sem crimes e sem
criminosos. E, para isso, é importante uma postura investigativa. À pensadora
e ao pensador desta temática oferecemos algumas perguntas, a saber: quando
se inicia uma ação violenta contra uma mulher? Onde estão as raízes des-
tes crimes? Qual a responsabilidade do Estado no incentivo desta opressão?
Quando o Estado foi ou é a própria mão violenta? Qual o papel do Estado e
da sociedade no enfrentamento à violência?
A luta das mulheres por direitos iguais e para superar a sua invisibilidade
na história da humanidade é longa e persistente (Wollstonecraft, 2015). Mas,
somente nos últimos séculos foi que este movimento ganhou mais força, por
meio de sua organização política e de uma formulação teórica mais acurada
e extensa (Federici, 2017).
Hoje, a luta pelos direitos das mulheres tem sido destaque na pauta
política do mundo. O resultado disto é a conquista de espaços na política
136
institucional, tanto nos Estados quanto nas Organizações Internacionais; é

o surgimento de órgãos criados para cuidar especificamente dos direitos da
mulher; é a maior presença das mulheres no gerenciamento e na chefia de
corporações e empresas privadas; e, o aumento de lideranças femininas em
movimentos sociais populares e culturais. É como se hoje, a humanidade
tivesse muito mais faces que em outros tempos (Holanda et al., 2020).
No enfrentamento de uma das mais importantes crises sanitárias da
humanidade dos últimos séculos, isto é, a pandemia de covid-19 causada
pelo SARS-CoV-2, as mulheres têm estampado os noticiários e os meios

digitais na condição de cientistas, estadistas, profissionais da saúde, comuni-
cadoras e lideranças políticas. Mesmo diante de um dramático retrocesso no
reconhecimento da mulher como detentora de direitos, fruto de campanhas
protagonizadas por grupos e governos reacionários e até fascistas, as mulheres
são a nova face desta nossa época, e uma das importantes agentes políticas do
século XXI. Mas, o que nos chama atenção e que destacamos aqui, é o caráter
antissistêmico das ações e das conquistas feministas, sua dimensão fragmen-
tária e a dificuldade de interpelar os fundamentos patriarcais do Estado.
Em função da hierarquização de gênero no Estado Burguês, fruto de sua
estrutura social excludente, a luta pela igualdade entre homens e mulheres, se
for pensada em sua radicalidade, será, obrigatoriamente, uma luta libertária
da humanidade.
A semântica legitimadora da modernidade: a liberdade, a

igualdade, a fraternidade, o mercado e a máquina
A Era Moderna trouxe para a humanidade muitos movimentos teóricos,

políticos e culturais importantes, mais precisamente processos relacionados
à reconstrução racional, secular das instituições. O Humanismo conduziu
com maior radicalidade o humano para a centralidade da história e da vida,
resgatando, inclusive, outros movimentos e reflexões já vivenciadas na Anti-
guidade (Kant, 2019).
As teorias contratualistas defendiam que a criação do Estado era fruto de
uma ação humana, resultado de um pacto entre os indivíduos autônomos, livres
na fruição de seu juízo sobre o mundo externo. A ênfase recai na subjetividade
criadora da ordem que, a despeito dos imensos contributos trazidos para o
desenvolvimento da humanidade, padecia de terríveis silenciamentos de múlti-
plos sujeitos, interditados pelas relações de força profundamente assimétricos.
No caso específico de gênero, devemos lembrar aqui que as teorias da
época foram escritas por pensadores do sexo masculino, em sua esmagadora
maioria. Às mulheres não era dada a oportunidade de se letrarem minimamente
e nem de formularem qualquer teoria. Apesar de algumas exceções, como

Hipatia, Hildegard Von Bingen e Cristina de Pizzano, que eram intelectuais,
sábias e muito respeitadas em seus tempos, as mulheres eram vistas como
seres incapazes de discernimento, tal como uma criança, e estavam fora das
escolas e círculos científicos e filosóficos.
As análises históricas e conjunturais e as teorias de formulação política
foram escritas sem um compromisso de olhar a totalidade da sociedade, pois
não havia o cuidado com a inclusão das mulheres. Desta feita, podemos afir-
mar que as teorias do contratualismo moderno compreendiam que a superação
do Estado de Natureza para a concórdia foi um acordo estabelecido entre

homens racionais, dotados de propriedade.
Se nas ideias liberais e nas legislações dos Estados surgidos das Revo-
luções oitocentistas, não percebemos nem a voz, nem a escrita e nem as
reivindicações das mulheres da época, é cabível o entendimento de que a
mulher não pertence à “universalidade” moderna burguesa, e que o sujeito
moderno burguês é um tipo particular, marcado pela dimensão excludente,
ainda que não declarada, oculta, pois ele tem um rosto, um corpo, um sexo,
uma cor e uma classe social.
Paradoxalmente a esta conjuntura, percebe-se que, ao mesmo tempo
que é dado ao homem-sujeito a capacidade de decisão sobre a construção
das estruturas de poder, não é dado a ele a licença para construir a si próprio,
mesmo porque este homem abstrato sofre intensos condicionamentos materiais
em sua constituição e florescimento que o travam em suas potencialidades.
Afora a moldura cultural que forceja por estabelecer apenas um tipo social
para simbolizar a identidade da humanidade e do cidadão, o que termina por
gerar uma intolerância para com os que não são reconhecidos como tal.
A personalidade de uma pessoa adulta, mesmo que ela seja um homem,
deve obrigatoriamente obedecer aos modelos pré-concebidos e aceitos pelas
estruturas tradicionais patriarcais e úteis aos controles sociais e estatais. Por-
tanto, a liberdade era e é para o sistema, e não para o indivíduo.
O grande pensador e ideólogo burguês e pai do Liberalismo, John Locke,
traz em sua obra a matriz do conceito do sujeito moderno. Para Locke (1994),
as decisões da política e do Estado devem estar nas mãos daqueles que têm a
capacidade de assumir responsabilidades, ou seja, dos homens livres na acep-
ção de possíveis objetivadores da própria vontade. E, por homem livre, ele
compreende ser aquele que não tem nem um senhor e nem um patrão, isto é, o
proprietário, que, por sua vez, submete outros despossuídos a seus desígnios.
Podemos concluir que a cidadania, para Locke, é um instituto para dar
poderes, direitos e liberdade de ação para um senhorio masculino. Isto é
devidamente corroborado quando olhamos a situação jurídica, econômica,
138
social e política em que as mulheres se encontravam no século XVII e per-

maneceram nos séculos seguintes, mesmo após a Revolução Gloriosa e as
Revoluções Burguesas.
A mulher e sua natureza: a floresta, os domínios sobre a realidade
Com a modernidade veio a centralidade do poder, ou seja, a soberania

do Estado aos moldes da soberania de um Deus uno, homogeneizador de
identidades, de línguas, de formas e de expressões culturais. Isto teve como

consequência a eleição de uma única referência legislativa, e nenhuma tole-
rância para com as normatividades que conviviam com certa harmonia na
Idade Média. Agora, estas normas eram tidas como estranhas, estrangeiras e
até inimigas da nacionalidade oficial e do Estado e bloqueadoras da confor-
mação do mercado de trabalho, da subordinação dos trabalhadores ao Capital
(Castro, 2008).
A referência da territorialidade para medir a eficácia de uma norma, pas-
sou a ter mais importância do que antes, mais especificamente de um espaço
medido, aferido pela lógica dos circuitos econômicos mercantis. Uma certa
variação na história, pois lembremos que os povos nômades que passaram por
grandes migrações em massa, mesmo estando em locais diferentes de suas
origens, não deixaram de obedecer ao ordenamento ancestral de sua etnia e
cultura. Agora, a terra não era mais um simples existir da natureza, mas era
o espaço para o exercício do poder, e formadora do tripé da construção do
Estado-Nacional: território, povo e nação (Barroso, 2015).
Com ou sem gente, cada palmo do chão passou a ser governado e disci-
plinado pela lógica do Estado e pelo interesse da burguesia, ainda que tangido
pela aparência da impessoalidade do metabolismo da mercadoria. E, a fim
de conseguir o cumprimento da ordem estatal, isto é, da norma legal, fez-se
necessário o estabelecimento de um poder bélico sobre toda a terra.
O território marcado e vigiado, perdeu a sua antiga liberdade, pois as
florestas livres, encantadas e comuns, passaram para a condição de objeto
de uso e lucro, para a condição de uma propriedade de senhores, ou seja,
tornam-se mercadoria suscetível à apropriação privada. Se a razão desencan-
tou o mundo, libertando-o da manipulação fanática e do medo místico, ela
própria se traiu, ou foi traída, ao se deixar servir de argumento para um novo
culto, o culto ao lucro, e ser instrumentalizada para adorar um novo Deus, o
deus Mercado, que tudo coisifica e torna passível de ser comprado (Marx &
Engels, 2008). De florestas assombradas e encantadas com suas moradoras e
frequentadoras em tempos de fome e fertilidade, estas naturezas abundantes
passaram a ser propriedades.
O fim das florestas como áreas livres trouxe um brutal empobrecimento

da classe trabalhadora, que não podia mais colher direto da natureza os meios
para a sua sobrevivência e sustento. E as mulheres foram as mais penali-
zadas deste processo, pois não lhes foi mais permitido colher algo para se
alimentar ou para obter algum ganho; elas ficaram ainda mais reféns de seus
pais e maridos. Antes da interdição das florestas, recorrer à natureza era uma
alternativa e um meio de sobrevivência, diante de situações de privação,
pois de lá as mulheres pobres, muitas vezes abandonadas por seus maridos
ou viúvas, retiravam o alimento de suas famílias, a matéria-prima para fazer
remédios e até algo para vender nas feiras. Das florestas livres provinham o
sustento e a sabedoria.
As florestas eram grandes ventres verdes. Além do alimento e da maté-
ria-prima para medicamentos e para fazer produtos para venda, as florestas
eram lugares onde havia a liberdade para os cultos pagãos e para os festejos
proibidos pelo disciplinamento estatal e eclesiástico. Lembremos, aqui, de
Sonho de uma Noite de Verão. A peça de William Shakespeare (1985) ilustra
uma antiga tradição de se adentrar na floresta para festejos diversos, e para
encontros amorosos e sexuais. Enquanto as religiões cristãs se reuniam den-
tro dos muros das cidades e dos castelos, as florestas viraram templos das
religiões pagãs, até por terem uma conexão com a natureza maior do que as
religiões abraâmicas.
Os desmatamentos e “desbravamentos” de florestas não só arrancaram
árvores, vegetação rasteira e mataram a fauna; eles também retiraram a dimen-
são encantada das florestas. Junto com a perda da magia, foram também
expulsas as personagens metafísicas, as sacerdotisas, as mulheres curandeiras
e as bruxas. Em seu livro Caliban e a Bruxa, Silvia Federici (2017) traz um
cuidadoso estudo deste processo de reconfiguração social da mulher através
da nova demarcação dos espaços, outrora públicos e livres, agora privados
e cercados.
A transformação das florestas em espaços de propriedade retira tam-
bém a voz da mulher como interlocutora e reveladora da natureza, da vida
e de seus mistérios. Esvaziada de seu poder social, político e espiritual, as
mulheres, assim como as florestas, foram cortadas e queimadas. Ao contrário
do que muito se imagina, a perseguição mais brutal e misógina às mulheres
aconteceu em plena Era Moderna e não na Idade Média, propriamente dita.
Enquanto no Medievo, a mulher era respeitada como um ser mágico e miste-
rioso, detentor dos segredos da vida e da morte, na Modernidade, a ciência e o
desencantamento do mundo desacreditaram e esvaziaram este poder feminino
(Weber, 2004). Apesar das religiões patriarcais serem predominantes, havia
uma resistência pagã, que em função da pulverização do poder político no
Feudalismo, sobrevivia na penumbra da sociedade da época.
140
Foi no início da Era Moderna que as mulheres sofreram um genocídio

que ficou historicamente conhecido como Caça às Bruxas. Este exercício de
poder e morte, perverso e sangrento se iniciou no século XV e ceifou as vidas
de muitas mulheres pelos séculos XVI, XVII e XVIII. Cabe aqui a lembrança
da publicação do livro Malleus Maleficarum, ou como é mais comumente
conhecido, “O Martelo das Bruxas” ou “O Martelo das Feiticeiras” (Kramer
& Sprenger, 2015). Este manual de horror, embora tenha sido desaconselhado
pela Igreja Católica, mesmo sendo escrito por dominicanos, foi fartamente
usado pelos Protestantes Calvinistas na Europa Central e na Inglaterra.

A Caça às Bruxas, ou o genocídio das mulheres, foi um disciplinamento
cultural, social e político feito a partir da metodologia do terror. Toda esta
estrutura de perversidade e perversão foi construída dentro da parceria Estado
e Igrejas Cristãs, mas, em especial com a Igreja Católica. O processo corria
nas dependências do Santo Ofício, onde as mulheres eram processadas, jul-
gadas e condenadas.
O processo em si já era um tipo de penalidade desumana e cruel, pois
nesta época, a tortura fazia parte dos procedimentos ordinários de investigação
e dos interrogatórios. Era nas dependências beatas da Igreja Católica onde
ocorria o processo, mas a execução da sentença de condenação ocorria na
praça pública, e esta ficava a cargo da mão de ferro e fogo do Estado, a quem
era atribuído a função de cumprir a pena, pois a Igreja, como uma corporação
bem disciplinada que é, respeitava as normas dos dez mandamentos, espe-
cialmente o quinto que diz: “Não matarás”.
Com o crescimento expansionista da visão de mercado, onde tudo é
coisificado, as florestas passaram de bem comum, ou espaço sagrado e natural
para o domínio e propriedade de um senhor, que mesmo sem habitá-la, ou
sequer conhecê-la, fazia-se onipresente pelos olhos e armas de seus servos
e comandados.
Arrastados para a vida na cidade e para a condição de trabalhadores
assalariados, os outrora camponeses se viram mergulhados numa dependência
econômica até maior que antes. O seu novo patrão, que era o que detinha a
propriedade da fábrica, ou como foi elaborado por Marx e Engels (2008), a
propriedade dos meios de produção, pagava-lhe apenas um mísero salário
conquistado em péssimas condições de trabalho e de vida, pois as cidades eram
uma concentração de gente amontoada em moradias insalubres e pútridas.
O capitalismo vai limitando as possibilidades de modelos de vida para a
classe trabalhadora, internalizando socialmente uma nova hierarquia social.
No caso específico das mulheres, a situação foi mais dramática, porque ficou
circunscrito a elas a condição de procriadoras de novos trabalhadores. Assim
como René Descartes (2009). compara o corpo humano a uma máquina, em
seu devoto estudo da anatomia humana, a família vai aos poucos assumindo
uma organização empresarial, no qual há o patrão e chefe, que é o pai-pro-
vedor, aquele que tutela a vida de todos, isto é, quem decide sobre a vida de
todos os parentes, os seus comandados e os seus dependentes. Apesar de o
Liberalismo pregar a liberdade ao homem livre, as mulheres não estavam
na sua contabilidade. E até para as mulheres filhas de famílias abastadas, a
dependência ao pai e ao marido era destino certo e consolidado, dentro da
racionalidade Estatal burguesa (Castro, 2008).
Da invisibilidade à punição exemplar: violência política de gênero
Além das condições de criação de uma mulher como provedora de si

e de sua família serem dificultadas e impedidas, às mulheres não era dado
reconhecimento de sua capacidade civil para contratar e, muitas vezes, até
para receber heranças. Portanto, para uma mulher se constituir e ser aceita
como sujeito, na Era Moderna e Liberal era quase impossível.
A não inclusão das mulheres na igualdade burguesa revolucionária não
era percebida como uma contradição política, mas apenas seguimento natural
da ordem das coisas. A própria Declaração Universal dos Direitos dos Homens
e do Cidadão (1789) revela, já em seu título e em seus artigos, o destaque
social e o real compromisso político dos Revolucionários de 1789. Desta feita,
ficou dedicado às mulheres a recatada invisibilidade doméstica.
Um importante fato histórico e político a ser sempre lembrado como
representativo da violência política contra uma mulher protagonizada pelo
próprio Estado, foi a luta de Olympe De Gouges, que formulou a Declara-
ção dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, e a propôs à Assembleia
Nacional da França. Desta vez, não houve nem silêncio e nem invisibilidade.
Olympe foi exemplarmente guilhotinada como traidora e mulher desnaturada.
A Declaração de De Gouges (1791) era um furo na pretensa universa-
lidade da racionalidade liberal moderna, na qual os sujeitos da história não
são todos. Se as mulheres não podem estar no título da norma, é porque elas
não podem estar em seu conteúdo, no seu espírito e na sua efetivação. E não
estarem contempladas em seu conteúdo, significa que não possuem direitos
e por isso, não são sujeitos. A negação política pública de Olympe De Gou-
ges e de sua proposta é a negação da mulher como sujeito, pois só somos
verdadeiramente sujeitos quando temos capacidade para assumirmos nossas
decisões, e quando a sociedade também reconhece esta capacidade. Abaixo
trazemos para conhecimento o preâmbulo e alguns artigos desta declaração:
A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções

sociais só podem ser baseadas no interesse comum. (artigo 1º).
142
A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo aquilo que pertence a

outros, assim, o único limite ao exercício dos direitos naturais da mulher,
isto é, a perpétua tirania do homem, deve ser reformado pelas leis da
natureza e da razão. (artigo 4º).
A lei deve ser a expressão da vontade geral. Todas as cidadãs e cidadãos
devem concorrer pessoalmente ou com seus representantes para sua for-
mação; ela deve ser igual para todos. Todas as cidadãs e cidadãos, sendo
iguais aos olhos da lei devem ser igualmente admitidos a todas as digni-
dades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem

outra distinção a não ser suas virtudes e seus talentos. (artigo 6º).
O Estado Moderno entra para a história consolidando um rebaixamento

social e imagético da mulher que, apesar de muitas contradições, mesmo na
antiguidade eram detentoras de uma respeitabilidade, e de uma sabedoria que
ao mesmo tempo fascinava, causava respeito e medo. Exemplo disto é que a
liderança mística e mágica das mulheres está presente em várias religiões e
culturas ao redor do mundo, a exemplo de Thêmis e Dike, as deusas da Jus-
tiça nas mitologias clássicas; Maat, deusa egípcia da Justiça; e Pachamama, a
grande mãe terra da cultura Andina. Toda a sabedoria repassada de mãe para
filha pelas mulheres foi descredenciada como um saber importante, relegada à
condição de crendice e superstição, valorada como uma tolice desnecessária.
A violência política de gênero tem sido denunciada por muitas parla-
mentares e mulheres ocupantes de cargos do Executivo. Este tipo de agressão
pode ser de vários formatos e gravidades, como uma punição severa e injusta
da mulher em destaque, um tratamento desrespeitoso, sua ridicularização e
depreciação moral, e até mesmo a morte, como foi o caso da vereadora da
cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco. A violência serve tanto para tirar
uma mulher de sua atuação como uma liderança e articuladora de uma agenda
política quanto para intimidar outras mulheres de ingressarem na política. E
esta tentativa de intimidação tem também a função de fazer calar a voz femi-
nina em todas as esferas de sua vida social, desde a vida privada familiar,
passando pelo trabalho, escola e vida em comunidade.
A vontade opressora é de descredenciar a sua fala, desencorajar a sua ação
de denúncia e luta por uma reivindicação feminista, e minar a sua resistência
diante de uma vontade criminosa masculina da cultura patriarcal. É por isso
que quando há o silêncio diante da violência política de gênero, indiretamente,
libera-se o infrator para o cometimento de outros crimes contra a mulher,
mesmo que estes outros sejam de natureza diversa daquele.
O direito político do indivíduo cidadão significa a institucionalização da
vontade da pessoa comum, e de uma vontade especial, que é a vontade que
pensará e executará a organização de toda a sociedade. O reconhecimento
e a efetividade da cidadania plena é, antes de mais nada, a oficialização e a

valorização da vontade de quem é cidadã e cidadão. E para o direito, o sujeito
plenamente capaz é toda aquela pessoa que tem capacidade para decidir e para
arcar com as responsabilidades e consequências de suas decisões.
Mas, mesmo com tantas histórias de violências política de gênero, cada
vez mais as mulheres disputam e conquistam espaços nas instituições estatais
de poder, nos movimentos sociais e Organizações Internacionais (Holanda
et al., 2020).
Se, no início do século XX, o Brasil viu o Senado Federal cassar a
primeira mulher a ocupar um cargo no executivo em toda a América Latina,

como foi o caso da cassação da prefeita eleita da cidade de Lages, Rio Grande
do Norte, a senhora Alzira Soriano, em 1930, em 2016 tivemos outro golpe
institucionalizado contra uma mulher, como foi o caso do impeachment contra
a Presidenta Dilma Rousseff, já em seu segundo mandato. Além destas usur-
pações de poder contra estas duas políticas pioneiras, a violência de gênero
foi amplamente usada contra estas mulheres nos discursos, imagens e na
argumentação durante os dois processos.
O que nos chama atenção é que tanto em 1930 quanto em 2016 as pala-
vras “corrupção”, “família” e “mulher” foram usadas e instrumentalizadas
nos discursos de seus opositores. E, no caso do Golpe de 2016, houve uma
campanha misógina bastante agressiva ao usar a imagem do corpo da Pre-
sidenta Dilma como espaço para punição cruel, simulando estupro, além de
xingamentos e gritos histéricos e obscenos em arenas esportivas por uma
plateia abastada, acanalhada, bem-nascida e mal-educada.
Diante deste contexto, cabem as perguntas: como o Estado e a socie-
dade brasileira assistiram a todas estas violências com tolerância, e deixaram
que elas acontecessem sem punição? Qual a repercussão destas agressões na
cabeça do brasileiro comum? Estas perguntas são importantes, pois devemos
lembrar que as violências morais e políticas sofridas pela Presidenta Dilma,
ocorreram enquanto ela ainda estava em perfeita posse de seu cargo, ou seja,
ela era uma das pessoas de grande poder no país. Mesmo assim, ela foi rebai-
xada à condição de uma pessoa vulnerável, condição tão comum às mulheres,
e estranha para uma pessoa que ocupa o cargo de maior importância dentro
das estruturas de poder de uma República Presidencialista. E se a mulher de
maior destaque do país é agredida de forma vulgar e obsessiva, como ficou a
situação das mulheres comuns, e em especial das mulheres pobres e pretas? Os
índices de violência de gênero e de feminicídio contra as mulheres periféricas
aumentou assustadoramente nestes últimos anos, desde o golpe de 2016, e
em especial nos últimos três anos (Agência Senado, 2021).
Além do desrespeito contra uma mulher, também foram desrespeitadas
todas as pessoas que confiaram, apostaram e escolheram uma mulher para
144
exercer o mais alto cargo no governo brasileiro. De tal forma que a imagem
construída pelo golpe de 2016 foi a de que escolher uma mulher é uma escolha
falida e desrespeitável.
Então, a realidade de dor, temor, tragédia e inseguranças das mulhe-
res é fruto de várias dinâmicas, tanto sociais e familiares, como políticas
e institucionais. O Estado e a Sociedade têm a sua responsabilidade neste
sangue derramado.
A imagem maculada para condicionar a mulher à função de serva

do patriarcalismo e de suas perversões
Para a construção dos Estados Nacionais era preciso eleger uma cultura
que fosse conveniente para este projeto de poder; daí surge a necessidade
da construção de uma cultura única e centralizada, surge, então, a cultura
nacional. Se estas culturas nacionais sedimentaram importantes expressões
culturais por um lado, por outro sufocaram manifestações de vários povos,
que geralmente sobreviviam nas práticas cotidianas e ancestrais das mulhe-
res em resistência cultural a tal centralidade etnocêntrica, heteronormativa
e autoritária. Isto fez com que muitas tradições ancestrais de vários povos
fossem criminalizadas, e reprimidas até a sua extinção.
Ao retirar a conexão com suas culturas de origem, tais como Africanas,
Indígenas, ou mesmo Celtas ou Árabes, as mulheres também eram esvaziadas
de sua construção como sujeito, pois não restava a elas nem função social,
nem saber tradicional e nem autoridade nenhuma. Desta forma, na sociedade
moderna liberal, só sobra para a mulher um lugar privado: vivendo na clau-
sura do mundo doméstico e familiar, a mulher não se constrói como sujeito,
nem politicamente, nem socialmente, e nem psicologicamente, uma vez que,
o existir em si dos seres humanos, necessariamente, é um existir diante do
outro, é um existir público e dialógico.
Como a mulher carrega em si a imagem arquetípica da vida e do pri-
meiro amor do(a) filho(a) para com a mãe, a desconstrução deste patrimônio
imaterial cultural e afetivo, ajudou também a desqualificar as culturas vin-
culadas a estas mulheres mães. Além disso, a narrativa opressora construída
para consolidar uma imagem de vulgaridade das mulheres ciganas, negras ou
árabes, no caso da colonização Ibérica nas Américas, por exemplo, cumpria
também o propósito de quebrar vínculos afetivos e sociais que são fundamen-
tais para se construir uma unidade política de um povo, e a resistência contra
os reinados colonizadores e expansionistas. Afinal, lembremos, que a ideia
de nação cumpre justamente este papel, o de dar umbilicalidade ao indivíduo
para com este novo Estado.
E da mesma forma que a ideia de desbravamento da terra, da dominação

da natureza e de escravização de povos, tidos como inferiores e selvagens,
era interpretada como sinônimo de força, potência, virilidade e grandeza mas-
culina, o domínio das mulheres e o seu enclausuramento numa condição de
servidão, também o era (Janblonka, 2021). Um homem de verdade e coragem
domina a natureza e a mulher. A partir desta concepção a vontade da mulher
é compreendida como capricho e uma intransigência. E qualquer sinal de não
aprovação e de discordância deve ser devidamente disciplinado e corrigido.
A fala ou o pensamento de uma mulher é interpretado como crendice, igno-
rância ou tolice infantil.

Portanto, à mulher cabe servir a vontade de seu homem, já que ela mesma
não tem capacidade para ter vontade. E, ao se obrigar a atender a vontade
masculina, muitas vezes a mulher não consegue ver a violência, embora sofra
terrivelmente com ela. Desta feita, muitas mulheres perpetuam uma cultura de
tolerância à violência, e ainda chegam a colocar outras mulheres em condição
de vulnerabilidade ou de vítima.
Com o desencantamento da imagem e da autoimagem da mulher e do
feminino na Era Moderna, e a sua consequente depreciação renovada, a violên-
cia contra a mulher nas Luzes liberais vai ser perpetuada e atualizada. Mesmo
vivendo num momento histórico de energia política libertária, a liberdade,
esta palavra feminina, não chega às mulheres.
Conclusão
Somada à luta das mulheres temos também outras personagens que fazem
coro ao enfrentamento do avanço do projeto anticivilizatório do Capitalismo
atual. Por isso, podemos dizer que a face no novo sujeito histórico-político que
surge no século XXI é imprecisa, pois pode ter diversas orientações sexuais e
ser de diversas etnias. Mas, o que grita aos nossos olhos é a face da periferia
do mundo, estampada nestas múltiplas identidades, mostrando a feição não
universal de um Sistema que, mesmo diante de suas crises e calamidades,
sempre se portou de forma insensível aos vulneráveis. Portanto, o Estado
Moderno Liberal Burguês traz em suas linhas institucionais uma interdição da
mulher como sujeito, sedimentando e perpetuando séculos de desigualdade,
de enclausuramento e de hostilidade.
Numa postura pró-ativa, o patriarcalismo do Estado burguês, atualiza-
-se, faz um upgrade, e sai de sua forma artesanal e manufaturada, para um
formato industrial, financeiro, virtual, qualidade ISO. E, para que tenhamos
um enfrentamento realmente radical, substantivo e efetivo da desigualdade
de gêneros é fundamental o enfrentamento deste sistema. Só conseguiremos
146
a igualdade universal e a inclusão de todas, todos e todes se estruturarmos

relações sociais, econômicas e culturais, para que as pessoas sejam concebi-
das como sujeitos detentores de direitos, no qual o respeito ao meio ambiente
seja também entendido como um respeito a si mesmo e à nossa condição de
um ser da natureza. Por isso, é necessário a superação da coisificação das
pessoas, de seus fazeres e da natureza; da hierarquização social de pessoas;
e, da instrumentalização das relações pessoais, políticas, sociais e de trabalho
(Fromm, 1970).
Se hoje o mundo excluído grita por universalidade de direitos e conse-

gue pautar esta demanda como um tema importante na sociedade, até mesmo
assumindo-a institucionalmente, isso só foi possível após muito tensionamento
social e acirramentos das lutas de classes. Mesmo tendo nascido questionando
o antigo sistema medieval hierarquizado, o qual era legitimado por uma fun-
damentação mística e natural, o Capitalismo não foi fiel às suas palavras de
ordem que iluminaram os seus momentos revolucionários. Neste sentido, a
disputa que precisamos enfrentar é contra-hegemônica, de tal forma a deixar
evidente a perspectiva conservadora da liberdade burguesa; a não universa-
lidade de sua igualdade, bem como, a sua dimensão classista da fraternidade.
Apesar destas importantes e até trágicas contradições da modernidade
e do liberalismo, ele abriu as portas do claustro. E foi justamente esta cir-
cunstância política de liberdade que fez o olhar e a mente se esticarem para
depois do horizonte, e verem que a igualdade é o fundamento da fraternidade
e da liberdade.
Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso

ter sonho sempre. Quem traz na pele essa marca possui
a estranha mania de ter fé na vida. (Música “Maria
Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant)
REFERÊNCIAS
Agência Senado. (2021). Violência contra a mulher aumentou no último ano,
revela pesquisa do DataSenado. https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
rias/2021/12/09/violencia-contra-a-mulher-aumentou-no-ultimo-ano-revela-
-pesquisa-do-datasenado
Barroso, L. R. (2015). Curso de direito constitucional contemporâneo: os

conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Saraiva.
Bercovici, G. (2008). Soberania e constituição: para uma crítica do consti-

tucionalismo. Quartier Latin.
Castro, F. L. (2008). História do direito geral e Brasil. Editora

Lumen Juris.
Declaração Universal dos Direitos dos Homens e do Cidadão. (1789). https://

www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf
Descartes, R. (2009). O mundo ou Tratado da luz e O homem. Unicamp.
Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação Primi-

tiva. Elefante.
Fromm, E. (1970). Conceito Marxista do Homem. Zahar Editores.
Gouges, O. (1791). Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. https://

www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/DeclaraDirMulherCidada-
1791RecDidaPESSOALJNETO.pdf
Holanda, A. C. P., Albuquerque, N. M., & Correia, D. C. (2020). As Mulheres

e a Política. Lumen Juris Direito.
Janblonka, I. (2021). Homens justos: do patriarcado às novas masculinida-

des. Todavia.
Kant, I. (2019). Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Edições 70.
Kramer, H., & Sprenger, J. (2015). Malleus Maleficarum – O Martelo das

Feiticeiras. BestBolso.
148
Locke, J. (1994). Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a ori-
gem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Vozes.
Marx, K., & Engels, F. (2008). Manifesto do partido comunista. Expres-

são Popular.
Shakespeare, W. (1985). Sonho de uma noite de verão. Nova Fronteira.
Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Com-

panhia das Letras.
Wollstonecraft, M. (2015). Reinvindicação dos direitos das mulheres. Edipro.

CAPÍTULO 9
“GÊNERO LOCAL”: retratos da
história das mulheres no Ceará e
sua alta intensidade patriarcal
Introdução
Como pensar diferentes modos de ler o gênero?9 Esta pergunta é o

guia para trilhar reflexões neste texto a respeito do conceito de gênero, a
partir de uma perspectiva local, isto é, entendendo o modo cultural par-
ticular de conhecimento do Ceará e sua alta intensidade patriarcal, com
relações sociossexuais marcadas por fortes assimetrias de gênero. Para isso,
direcionamos o olhar para práticas corporais e de gênero historicamente
situadas, a partir de algumas representações de mulheres cearense e, por
fim, situamos as normas e discursos que afetam as mulheres em termos de
violência de gênero.
O material empírico em que se amparam nossas reflexões foi produ-
zido a partir de pesquisa de natureza qualitativa, com o auxílio de buscas
bibliográficas e documental a respeito do assunto em questão, com ênfase em
representações literárias, discursos e alguns processos judiciais, em Fortaleza,
do século XX, entre 1900 a 1950, do Arquivo Público do Estado do Ceará.
Para esta incursão, propomos “a importância político-epistemológica de um
‘saber localizado’ se aproximando da realidade, sem encaixar o conceito na
realidade” (PELÚCIO, 2012, p. 404). Discutindo, assim, as relações sociais
de gênero no Ceará.
A ideia, no decorrer deste texto, é refletir sobre gênero de forma locali-
zada, ou seja, não pensar tal categoria como homogênea, universal e centrada
no conhecimento iluminista e heteronormativo, mas compreendê-la nas suas
múltiplas interseccionalidades, no contexto do Ceará.
Portanto, comungamos com Donna Haraway no seu famoso texto Gênero
para um dicionário Marxista (2004), que suscita reflexões em torno de teo-
rias próprias dos feminismos dos países ditos periféricos, num saber situado.
9 Este texto é fruto de reflexões travadas no Curso de Capacitação para o Enfrentamento da Violência de
Gênero-UNIFOR e da tese de doutorado de Alves (2021), que contou com o apoio de bolsa da CAPES.
150
Strathern (2006) também nos move a pensar sobre como construir outros
modos de pensamento e alcances analíticos, repensando categorias e conhe-
cimentos sobre gênero. Ela tem revisitado as ideias clássicas do feminismo e
da antropologia, no sentido de refletir sobre conceitos e referências imersas no
imaginário ocidental do gênero e os seus modos de conhecimento. A grande
questão para Strathern é que tais pressupostos operam dicotomias clássicas
e são aplicados a “outros” sistemas simbólicos contextualizados. Assim, é
preciso problematizar esses “encaixes”. Com Segato (2012) também apren-
demos que é preciso situar o campo e a sua linguagem para tecer as próprias

reflexões sobre as relações de gênero.
Gênero: situando teoricamente
O corpus teórico do trabalho situa-se nas interfaces entre gênero, alta

intensidade patriarcal e história do Ceará. É oportuno frisar que são categorias
imbricadas em uma costura analítica que tensiona representações, narrativas
sobre a constituição das feminilidades no Ceará.
Nesta perspectiva, é importante apresentar algumas definições de
gênero10. Tal categoria trouxe outra epistemologia para pensar subjetivida-
des e hierarquias sociossexuais, abandonando a noção de essencialidade e
binarismo na diferença sexual entre o feminino e o masculino.
Nestes termos, discorrer sobre gênero, então, é enfatizar analiticamente
o sujeito plural, heterogêneo e contingente. Priorizamos, pois, a análise his-
tórica, cultural e política, devido ao caráter variável, transversal e relacional
do próprio conceito, podendo ser apenas compreendido contextualmente.
Sob este aspecto, o pensamento de Butler (2000) é extremamente válido
para as reflexões aqui. Para a autora, gênero é uma fabricação e os sujeitos são
produzidos por performances, atos e gestos, que são reiterados e encenados
em relação à expectativa já alicerçada da existência do gênero, sendo, deste
modo, reiterado nas suas vivências. Desta forma, os corpos pesam normas e
esquemas regulatórios, através de sujeição psíquica e de tecnologias de gênero.
Vamos, então, pensar a história do Ceará através de discursos e ima-
gens sobre corpos, gêneros e sexualidades, tratando de entender as ques-
tões sociais e culturais , especialmente, do século XX, e as formações de
masculinidades e feminilidades, mediante códigos hegemônicos de gênero,
em contexto ocidental/colonial e heteronormativo. Como as fontes falam
das mulheres?
10 Apenas para contextualizar, devemos destacar que essa categoria analítica emerge no Ocidente, paralela-
mente à eclosão da fase contemporânea do feminismo, especialmente, na Europa pós-1968 e nos Estados
Unidos, com a efervescência dos novos movimentos sociais (feminista, negro, LGBTT...) (Scavone, 2008).
No Brasil, surge na década de 1980 (Louro, 1997).
Retratos da história do Ceará e sua alta intensidade patriarcal
O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais,

políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente,
construções imagético-discursivas, constelações de
sentido (Albuquerque Junior, 2006, p. 307).
Abrir reflexões sobre o Nordeste brasileiro é entrar num campo panta-

noso, pois é cheio de discursos e imagens, em que muitos se propuseram a
homogeneizar a região, numa estereotipização. Nessa direção, por exemplo,

com Euclides da Cunha em Os Sertões, temos que o “sertanejo é, antes de
tudo, um forte”. A problemática desta colocação é a constituição de um terreno
deslizante e falacioso, em que se universaliza uma representação. Por outro,
tal prática discursiva é dotada de relações de poder, porque tornou-se legítimo,
de alguma forma, ao se falar das invenções do Nordeste.
O “cabra-macho”, em que se articula virilidade e masculinidade, por
exemplo, é uma edificação discursiva regionalista. Emerge, no século XIX,
na década de 1820, com a questão do nacionalismo. O sentido, neste período,
era criar uma identidade, em que se procuravam símbolos na produção ima-
gético-discursiva, para cada região (Albuquerque Junior, 2006).
Ora, destacamos, neste texto, que a colonização do Brasil11 mudou radi-
calmente a organização social e uma das esferas afetadas foi a dimensão das
relações entre os sexos. As relações entre homens e mulheres sofreram total
influência do modelo ibérico importado que foi apregoado nas famílias. Anun-
ciava-se a ideia da mulher como um bem pertencente ao homem, através de
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas e jurídicas, numa noção
de fixidez, dando sentido, portanto, à representação binária de gênero.
Não foi diferente com a colonização no Ceará, século XVII, em que as
missões católicas tiveram papel primordial de expandir uma ideologia do ser
homem e ser mulher. Tal sistema de ideias tem implicações fortíssimas no
feminicídio atual.
Abrindo uma janela, mostramos ao leitor um panorama bem geral deste
lugar. Tomamos, inicialmente, cenas que marcam nossa história. Em 1770, o
Ceará já estava colonizado, com a criação de vilas pelo sertão e a “pacificação”
11 A moralidade cristã, a superioridade patriarcal e a ideia de família foram impostas, no sentido de se confor-
marem ao controle da economia e da autoridade. Desta forma, houve todo o processo de desumanização
das mulheres indígenas e negras ainda mais (justificadas pelo discurso católico de corpos sem almas),
afetadas pelo colonialismo e patriarcado (sistema de posições rígidas e duais que dominava a família colonial,
de modelo eurocêntrico). Tais fatos trouxeram efeitos nefastos que estruturam nossa sociedade ainda hoje,
numa colonialidade do ser.
152
das tribos indígenas12. A ocupação se deu de modo tardio, na busca de expan-

dir arraiais pelo sertão, ocupação esta realizada, todavia, pelo extermínio
da população indígena e pela expansão pecuarista. A lavoura canavieira e a
criação de gado movimentaram economicamente e socialmente o Ceará. Estas
atividades começaram a ter sua decadência no século XVIII, mas tornaram-se
uma marca nas relações sociais e econômicas da região.
Em 1799, houve a separação do Ceará de Pernambuco, ganhando a capi-
tal, Fortaleza, ares de urbanidade com sua autonomia. Tínhamos, então, o
artesanato, o comércio, a pecuária e o algodão como atividades econômicas

da vida urbana, especialmente, nas vilas como Fortaleza e Aracati. Nesta
paisagem, entre 1780-1850, dão-se a ascensão e decadência da pecuária, a
efetivação da colonização, as crises e as guerras políticas.
Em seguida, houve a República do Crato (1817), a Rebelião do Fidié
(1823), a Revolta de 1824, a Pinto Madeira (1831) e o Levante de Sobral
(1840). Foram algumas das revoltas que se espalharam pelo Ceará, motiva-
das pela Independência do país, num cenário de instabilidade política. Neste
momento, a violência e a luta pelo poder de grupos familiares “abastados”
faziam parte do cotidiano da região. Já chegando de forma rápida, no século
XIX, a partir dos anos 1940, o Ceará ganha um novo ciclo pelo algodão, esta-
belecendo a chamada Belle Époque em Fortaleza, sobre a qual falarei a seguir.
Tem-se aqui uma breve reconstituição do Ceará, com todas as faltas
ou deslizes possíveis quando descrevemos de forma rápida séculos de uma
história. É imaginável ainda outras derrapagens, pois estamos diante da ine-
gável diversidade deste povo, com seus costumes, religiosidades e tradições.
Implicando, contudo, num debate de difícil construção, no sentido de não cair
em generalizações identitárias.
Além disto, a proposta de abrir janelas é proposital aqui, pois fizemos
enquadramento de uma realidade muito mais ampla e dinâmica, em que opta-
mos por alguns cenários. A reflexão perseguida é no nível do artesanal e
do micro. Olhando, pois, nas brechas destas janelas, as relações de gênero,
ofuscadas na história “oficial”.
Nesta direção, abrimos outra janela para pensar as relações familiares em
meio à dinâmica econômica, às secas e aos conflitos políticos. Começamos,
então, refletindo sobre a vinda da coroa portuguesa para a capitania Siará
Grande. Este episódio foi um fato decisivo para as doações de sesmarias e,
12 Toda discussão no que se remete a fatos e episódios da história do Ceará foi embasada no livro de Vieira
Júnior (2004). Adoto o método de trazê-lo como material de trabalho, no sentido construir um texto com
os enunciados e imagens do que é o Ceará, em um determinado contexto histórico. Faço, porém, reelabo-
rando e tecendo junto o texto, numa hermenêutica da suspeita, ou seja, ordenando com um outro olhar, na
perspectiva de gênero, junto à história contada pelo autor.
como consequência, houve sangrentas batalhas entre fazendeiros e moradores

nativos, em que os primeiros buscavam proliferar fazendas de gados e de
vilas. “A expropriação das terras, a morte sob aleivosia feita a “sangue frio”, a
escravidão dos filhos e o roubo de mulheres eram elementos que compuseram
o cotidiano da violência contra o índio nos primeiros anos de colonização
pastoril do Ceará” (Vieira Júnior, 2004, p. 32).
Porém, o fato é que grupos familiares que se formaram neste período esta-
vam implicados em questões de poder e hierarquias de gênero. A colonização,
no seu processo econômico, cultural e político “ditou” a centralização do poder
na figura do homem, gerando, assim, estereótipos racistas e sexistas. No Ceará,

foi aflorada tais questões, pelo exacerbar do ideal de provedor masculino, no
cumprimento das obrigações, quanto à proteção e à honra da família; pelos
grandes latifúndios, pelo poder ilimitado dos coronéis e pelo corpo feminino
como campo de disputa. É isso, que chamo de alta intensidade patriarcal no
Ceará. Discorremos sobre essa ideia, com fatos históricos a seguir.
Relatos de viajantes estrangeiros, é óbvio, cheios de etnocentrismo, como
diz Vieira Júnior (2004), não deixam de trazer elementos importantes para
pensar o feminicídio. A violência, de forma geral, no Ceará, foi um meca-
nismo de negociações das tensões na Colônia e na formação do Império.
Estiveram presentes neste jogo: as secas, a luta pela posse de terra, a disputa
por poder político, os assassinatos e agressões intrafamiliares na imposição
de valores morais.
A honra, a violência e a vingança são palavras que se entrecruzam e
estão explícitas na tessitura social do Ceará, à medida que se destacaram na
construção da memória coletiva cearense. Estamos falando, pois, dos crimes
de morte como sentimento de honra, bastante relatados em diferentes épocas.
O uso da violência era uma das estratégias de resolução dos conflitos.
Pesa a fragilidade da administração pública da Justiça, ainda mais em
tal contexto, em que os interesses pessoais se sobressaiam, naturalizando a
violência. Além disso, agrava-se ainda mais os fatos, pois havia a manipulação
da Justiça, conforme os poderes sociais e econômicos, bem como, a exposição
das autoridades a morte a qualquer momento, por vingança.
Com a ausência do Estado português e o poder instituído como secun-
dário, a família alcançou o grande poder de colonizar, de expulsar índios e
de obter cargos judiciais, policiais e militares, numa espécie de troca. Assim,
a negociação era entre manter cargos, fazer ocupação com gado e acatar as
normas da metrópole.
Tratavam-se de famílias abastadas, em que o coronel era a figura do poder
e, muitas vezes, contrariava as ordens da metrópole. Eram proprietários de
grandes terras, nas quais disputavam à “faca” a criação de gado, concedidas
154
em sesmarias do governo colonial. Desta forma, o processo de guerras por

terras era comum entre as famílias. O capitão-mor era também uma figura de
destaque, que informava os acontecimentos da vila ao governador. Ele ainda
prendia e expulsava pessoas. Interessante é que uma das principais caracte-
rísticas para tal cargo era ser nobre e cristão, ou seja, o poder e o catolicismo
andavam de mãos dadas.
Porém, quem mais sofria com estas disputas eram os sujeitos pobres
afetados pelas agruras das secas, martirizadas pelos grandes latifúndios e
pelo poder ilimitado dos coronéis13. Portanto, eram vozes provavelmente não

ouvidas, no que se refere ao poder instituído. Aqui, a mulher como “proprie-
dade” o peso da raça, da classe e do gênero era gerador de inúmeras opressões,
portanto, de alta intensidade patriarcal.
O gênero local: algumas representações de mulheres cearenses
Neste exercício de aproximação da história política e cultural do Ceará,

no interesse analítico de um olhar de gênero, temos que mencionar a questão
da proteção patrimonial e moral, e aí, o uso da violência impõe-se como um
fator a ser considerado. Nas famílias pobres, roubar qualquer mercadoria ou
instrumento de trabalho era um agravante maior. Eram comuns, nos séculos
XVIII e XIX, nas querelas criminais, os furtos aos roçados, as disputas por
ferramentas de trabalhos, os defloramentos de moças pobres e as brigas entre
vizinhos. No século XX, entre 1900 a 1950, encontramos no Arquivo Público
do Estado do Ceará vários processos em Fortaleza com estas tipificações. Tri-
lhamos, portanto, algumas querelas, para analisar a violência perpetrada em
relação às famílias pobres e compreender valores e costumes de uma época.
Como se compunham as hierarquias entre homens e mulheres?
Era perceptível o ideal de provedor masculino nas querelas criminais
que folheamos. Na justificativa de suas ações, estava sempre o cumprimento
das obrigações, quanto à proteção e à honra da família. Além disso, apesar
da miséria, da fome, da baixa produtividade agrícola e de poucos recursos, as
13 Não podemos deixar de mencionar o retrato do sol escaldante, com cenas de migrações e secas tão
recorrentes nesta região, enquanto fenômeno climático e social. São marcantes as imagens da morte pela
fome, em que inúmeras pessoas, especialmente dos sertões, viviam no limite da sobrevivência. Neste
cenário, olhar para o céu, pedindo aos santos uma chuva e um bom inverno, era uma constante dentro de
um catolicismo barroco que se enfatizava, como diz Miranda (2011, s.p.) “a temática sobre a batalha entre
o bem e o mal ou entre deuses e demônios; sobre o sacrifício e o sofrimento, é permanentemente reforçado
pelas condições de vida da gente nordestina”.
Deste modo, pedir aos seus “santinhos”, que os livrai da fome, da seca e da vida árdua diária, num amon-
toado de “santos do povo” e “oficial” em sua casa, fazia parte do modo de vida sofrida daquelas pessoas.
Tais invenções eram a busca da proteção “sobrenatural”, usando-os de forma particular.
famílias pobres buscavam proteger, muitas vezes, seus escassos patrimônios à

custa de sangue, pois era uma questão de sobrevivência e de respeitabilidade.
Eram comuns roubos de simples ferramentas de trabalho serem moti-
vações para brigas e agressões a facas ou pauladas, no sentido de manter a
subsistência do material de seu grupo. Função esta que ficava com o chamado
provedor/homem da família. Isto não quer dizer que as mulheres estavam
ausentes deste papel, pelo contrário, diante do número reduzido de unidades
familiares, todos deveriam estar nos roçados. Assim, havia a presença ativa
da mulher no trabalho e na proteção de sua lavoura e de seus bens.
Destacamos o auto criminal abaixo, descrito no livro de Vieira Júnior

(2004), para perceberem como as mulheres eram retratadas. Na Taíba, loca-
lidade pertencente à Vila de Fortaleza, em outubro de 1822, aconteceu um
episódio de proteção ao patrimônio familiar que requer uma análise.
O capitão Domingos Souto, proprietário de terras, entrou numa querela

contra os ditos pardos Serafina Marques e seu filho Manuelino. O capitão
apresentou-se como branco e casado, destacando que: por uma lavoura não
estar cercada devidamente, seus bois entraram na plantação de Serafina,
em que foi recebido a tiros e facadas, o que gerou a incapacitação dos
seus bois para o trabalho. Serafina foi apresentada como solteira e mãe, o
que poderia tornar-se um agravante na sua respeitabilidade social. Além
disso, o capitão procurou Theotonio, que era “mancebo e patrono” de
Serafina. Theotonio chamou o capitão para ver a destruição do roçado da
família. Logo, porém, lá chegando, “ao entrar no dito roçado foi agredido
por Serafina, que lhe deu uma cutilada, rasgou-lhe o chapéu e feriu-o a
testa” (Vieira Júnior, 2004, p. 258).
Mesmo diante de status sociais diferentes (briga entre rico e pobre), há

uma ênfase neste processo: as moralidades distintas. O homem é descrito
como casado e branco e a mulher solteira e mãe. Raça, classe e gênero eram
fatores que deveriam ser levados em consideração em um processo criminal,
pois eram indícios de uma conduta.
Sem dúvida, é preciso levar em consideração que tais fatos eram nar-
rados pelo denunciante, que tinha a estratégia de agravar os fatos. Porém, o
que chama atenção neste caso são famílias pobres chefiadas por mulheres,
sem temer ações de proteção aos seus bens familiares, já que as empreitadas
defensivas de patrimônio eram feitas, na sua maioria, por homens. Entretanto,
o feminino também tinha o potencial de repostas violentas a invasores da
propriedade da família, comandando-a.
A proteção da posse era algo comum nas famílias cearenses. A grande
diferença estava no poder aquisitivo. Enquanto as famílias pobres tinham
156
parcos recursos financeiros, materiais e de proteção do Estado; as famílias

abastadas tinham cargos policiais, judiciais, proteção bélica de sua “cabroeira”
e grande quantidade de terras. Porém, a simbologia da honra, associada à
moralidade de um grupo, é forte em qualquer grupo familiar.
Nota-se que não deixa de haver a participação das mulheres em qualquer
estamento social. Entretanto, nas famílias mais ricas, havia um quantitativo
maior de homens na proteção à disposição do grupo familiar. Todavia, diversas
mulheres, com distintas posições sociais assumiam funções de “mando”, sem-
pre, porém, por conta da ausência do patriarca, seja pela morte do marido ou

ausência em viagem. Elas, contudo, administravam filhos, escravos e negócios.
Podemos citar Bárbara de Alencar, Federalina de Lavras da Mangabeira
e Marica Macedo, todas pertencentes à região do Cariri ‒ CE14, em que tinha
grande poder de mando e liderança, seja em assuntos domésticos ou em relação
às questões políticas, culturais e econômicas (Sousa, 2015).
Há ainda figuras importantes, numa espécie de gênero local, em várias
representações ficcionais na literatura, como a ideia da mulher-macho, mulher
valente, matrona, presente, por exemplo, em Maria Moura15, Luzia Homem16,
mulher valente e brava, como em Dona Guidinha do Poço17, mulher incon-
formada, como em Dôra, Doralina18...
Apesar de estar falando em termos de violência, honra masculina, mulhe-
res chefes de família e que quebram normas instituídas, não defendemos
um status universal para tais conotações, com vistas a fortalecer a aparência
14 Para saber mais, ler Matriarcas do Ceará: D. Federalina de Lavras, de Rachel de Queiroz e Heloisa Buarque
de Hollanda (1990).
15 Memorial de Maria Moura (1992), de Rachel de Queiroz (1910-2003), descreve o rompimento do ideal
feminino de mãe e esposa, numa representação de uma mulher que se insere no âmbito público da guerra
e da busca pelo poder.
16 Obra do escritor Domingos Olímpio publicada no ano de 1903, cujo cenário é na cidade de Sobral-CE. Vejam
as descrições do autor desta mulher: “Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços forrados de pelúcia
crespa e entonos de força, com ares varonis, uma virago, avessa a homens, deverá ser um desses erros da
natureza, marcados com o estigma dos desvios monstruosos do ventre maldito que os concebera”. “Sentia-se
incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da função da mulher no amor, a
passividade pudica... da fêmea submissa ao macho, forte e dominador, como aprendera na intuitiva lição da
natureza. [...] Não; não fora destinada à submissão. Não era mulher como as outras” (Olímpio, 2005, p. 77).
17 Em 1853, em Quixeramobim, a matrona Maria Francisca de Paula Lessa mandou assassinar o próprio
esposo, o Coronel o coronel Domingos Vítor de Abreu e Vasconcelos, por amores a um sobrinho deste. Tal
mulher foi condenada a duras penas. Um episódio real que inspirou Manoel de Oliveira Paiva a escrever
Dona Guidinha do Poço. Para saber mais ler «“Os 150 anos do crime de Marica Lessa”, texto de Fernando
Câmara publicado em 2003.
18 Narra a história de Maria das Dores protagonista do romance Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz. Dôra,
Doralina é uma personagem que tem traços da emancipação feminina. Ela abandona a condição de filha
de fazendeira, de família tradicional, para morar numa pensão na capital cearense e atuar numa trupe de
teatro mambembe.
identitária da mulher e da família pobre cearense. Esta discussão faz sentido

para que possamos, na verdade, compreender algumas experiências femininas.
Os exemplos citados, porém, não esgotam a diversidade de práticas e vivências
de mulheres, em diferentes regiões e épocas, no Ceará.
O interessante é que, para refletir a respeito do feminino, não há como
dissociá-lo de classe, raça, gênero19 e outros eixos de relações de poder na
família. Não há como negar a herança escravocrata, classista e patrimonial da
nossa sociedade e de como ela afeta, de forma diferenciada, as mulheres. O
papel de mãe, dona de casa e esposa não era para todas. Ser mulher já havia
uma representação de inferioridade, na época. Ser mulher, pobre e negra era

ser inexistente, socialmente e juridicamente, enquanto pessoa.
Normas e discursos que afetam as mulheres cearenses em termos

de violência de gênero
O controle da sexualidade e dos corpos femininos pela Igreja, pelo Estado

e pela Justiça, tão largamente analisado nos estudos na área, também se faz
presente na realidade cearense. A ideia do homem protegendo a honra das
mulheres, como filhas, irmãs e mães é uma realidade apresentada na literatura
a respeito da história do Ceará. Iremos aqui ilustrar tal afirmação, pensando
representações do que é família no Ceará, em determinados períodos histó-
ricos, dialogando com Fausto (1984), Queiroz e Hollanda (1990) e Vieira
Júnior (2004).
Cada um destes textos se propõe a pensar múltiplos discursos, os quais
são resultados de experiências sócio-históricas de uma época. São diferentes
pontos de vista, que tornam ainda mais complexa a escrita da história cearense.
A interação com estes autores é no sentido de “suporte” para a fabricação de
um conhecimento local, pouco ou quase não pensado, em termos de relações
de gênero.
A família no Ceará, entre 1780 e 1850, era um movimento de criação e
(re) criação no processo de estruturação das relações sociais, diante da própria
dinâmica cotidiana estabelecida pela movimentação de pessoas alheias, por
conta das intensas migrações e comercializações. Não necessariamente, havia
uma relação entre família e coabitação. De um lado, o domicílio era espaço
de trabalho, onde se recebia pessoas para negociar. Muitas vezes, era local
em que se hospedavam migrantes, fosse no rancho, na casa de farinha ou na
varanda. É possível ainda destacar que, mesmo nas casas mais pobres, não
19 Ângela Davis (2016) e Djamila Ribeiro (2017) são autoras primordiais para entender a intersecção entre
classe, raça e gênero.
158
se rejeitava o abrigo, local de circulação de várias pessoas, de sociabilidades

e da presença de escravos (estes, para as famílias ricas) (Viera Júnior, 2004).
Em outro extremo, apesar dessa ideia de permissão no espaço doméstico,
havia uma regulação silenciosa do acesso de “estranho” aos domicílios, pois
a morada integrava a respeitabilidade social da família e, em especial, do
pater familiae. O que acontecesse dentro da casa, como o delito, adultério,
assassinato ou defloramento, era um agravante maior, pois havia a ideia do
teor sagrado deste espaço. Tanto que nos textos criminais, a palavra “casa”
era usada com o “c” maiúsculo para chamar atenção, como espaço de vida

familiar (Vieira Júnior, 2004).
Porém, a representação da casa como espaço de recolhimento do femi-
nino não se encaixava para as mulheres pobres e viúvas. Elas costumavam
receber cliente para resolver negócios ou sair de casa em busca do sustento,
com vendas e trabalhos domésticos. Nas famílias pobres, as representações
do “lar” eram reinventadas cotidianamente. Os conflitos entre famílias menos
abastadas eram resolvidos entre eles, sendo possível saber sobre tais conflitos
em notas de jornais e relatos de viajantes. Já nas famílias de elites eram menos
visíveis os relatos (Vieira Júnior, 2004).
A família, de forma geral, jamais é um todo coesa, sendo apenas uma
referência para múltiplas possibilidades de relações, desde a ideia de proteção,
até lugar também de estupro e violências. No decorrer da história, são criados
e recriados sentidos para ela, além do parentesco.
Não podemos deixar de mencionar aqui a forte influência no Nordeste,
no período colonial, da família extensa, com pai, mãe, filhos, escravos e
parentes. Os sujeitos, daquele momento, tendiam a seguir as representações
de uma época: a família patriarcal20. Era um modelo importado da coloniza-
ção ibérica em que se buscava adestrar a sexualidade feminina e assegurar os
bens pelo sistema de herança. Este ideal ganhou sentido tanto para as famílias
pobres como paras as ricas, a partir das suas realidades. Sem dúvida, foi se
reconfigurando ao longo dos tempos e adaptando-se a cada época e família21.
Para as famílias pobres era uma ficção, sem dúvida, a família patriar-
cal, pois na concretude vivida na época, as mulheres saiam para trabalhar e
20 Como destaca Carvalho (1999) a família é uma referência simbólica fundamental nas relações sociais
no Ceará, principalmente, pelas relações de poder estabelecidas. O pertencer é uma marca de distinção
simbólica muito forte na nossa realidade. “As mulheres eram “as damas, ‘dona fulana’, ou apenas donas,
eram categorias primeira; em seguida, ser papira, ou cunhã ou roceira, e, finalmente, escrava” (p. 82).
21 Com a família nuclear moderna, vinda do seio burguês europeu, no século XIX, a divisão hierárquica de
papéis da família patriarcal funde-se com o controle da sexualidade feminina e a procriação da prole do
modelo burguês. Isto era corroborado com os diversos discursos, como da Igreja Católica, de médicos e de
moralistas, o que tornava o feminino dotado de características biológicas e morais condizentes com a função
materna e com as atividades domésticas. É evidente, que essa imagem não foi aceita tranquilamente, mas
com resistências ao longo dos tempos (Del Priore & Bassanezi, 1997; Nunes, 2000).
muitas eram “mães solo”. No entanto, essa ficção vem de uma colonialidade
de gênero, que, de uma certa forma, não deixava de comandar tentativas de
enquadramento nesse modelo.
Na perspectiva decolonial, essa é uma grande narrativa que não dá conta
dos pormenores e das experiências racializadas de classe e de gênero. Traze-
mo-la, muito mais no sentido ilustrativo para pensar a submissão feminina.
No entanto, o ideal de submissão, em que a mulher está protegida no âmbito
domiciliar, sendo a principal cuidadora dos filhos, tem uma enorme plastici-
dade22, quando se fala de classe social, raça e localização geográfica.
No Ceará, a figura materna não expressava apenas a “santa mãezinha”,

mas aquela que poderia também exercer ações violentas contra pessoas exter-
nas ao seu grupo familiar. Segue um relato sobre Dona Federalina23, nascida
em Lavras da Mangabeira, no sertão do Cariri:
Vingança pior aguardava a dupla de assassinos. A velha Fidera despachara

o seu estranho exército com a incumbência de lhe trazer as orelhas de
cada um dos assassinos do neto. Não era à toa que se dizia nas Lavras
que a velha do Tatu rezava toda noite num rosário feito das orelhas de
seus inimigos mortos: queria aumentar a coleção (Queiroz & Hollanda,
1990, s. p.).
Estas análises e exemplos constituem apenas um dos fios do cenário

plural cearense, no qual a mulher não era um todo passivo na linguagem
da violência. Além disso, aqui está apenas uma pincelada da formação da
moralidade familiar, no sentido de compreender como vão se constituindo
os sujeitos e as influências de discursos, que afetam as mulheres em termos
de violência de gênero.
Ao finalizar essa tentativa de produzir um olhar sobre diferentes práti-

cas corporais entrelaçando com o gênero local e a alta intensidade patriar-
cal, pensamos nas relações sociossexuais marcadas por fortes assimetrias de
gênero no Ceará.
De um lado, ao pensar a formação da masculinidade e feminilidade cea-
renses, geralmente, se entrevê a noção do homem vinculado à autoridade e a
mulher à passividade, porém, este é um jogo rígido erroneamente construído.
22 Del Priore (1997) discute essas representações no período colonial. Del Priore, M. (org.), & Bassanezi,
C. (coord.) (1997). História das Mulheres no Brasil. Contexto.
23 Nascida em 1832, em Lavras, batizou-se por Federalina, graças aos entusiasmos republicanos provocados
pelos movimentos revolucionários no Nordeste no Levante de 1817 e na Confederação do Equador em 1824.
160
Ao estudar a história das mulheres cearenses, percebemos a plasticidade des-

tes corpos, tornados expressivos, no que se refere ao não encaixe no sujeito
passivo, seja por resistência ou por necessidade. Elas trabalhavam fora de
casa, utilizavam o espaço público para divertimento e diziam não ao poder
do mando masculino.
Por outro lado, eram corpos relegados à condição de vidas suscetíveis
à morte, isto porque estavam mais vulneráveis à violência, seja por conta
da pobreza estabelecida e a potencialização dos conflitos conjugais, por não
terem como sustentar os filhos; seja porque estavam na linha de frente, muitas

vezes, do sustento financeiro da casa, sofrendo discriminações por circularem
em espaços públicos.
Apesar da violência ocorrer em diversas circunstâncias, o principal alvo
da violência de gênero eram mulheres. Portanto, seja como for, eram corpos
que pouco importavam. Sem direitos civis, políticos e sociais, agravados pelas
questões acima. Nesse sentido, portanto, é extremamente válido problematizar
a categoria gênero, no contexto cearense relacionando-as a outros marcadores
sociais, especialmente, pela invisibilidade da história das mulheres.
REFERÊNCIAS
Albuquerque Junior, D. M. de (2006). A invenção do Nordeste e outras artes
(3. ed.). Cortez.
Alves, D. R. (2021). O gênero da devoção: corpo feminino, sofrimento e

testemunho na devoção a Isabel Maria, a Santa Protetora das Mulheres
Agredidas [tese de doutorado]. Universidade Federal do Ceará.
Butler, J. (2000). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.

Carvalho, B. (1999). De que família você é? A “família cearense”: distinção,

símbolos e poder. Revista de Ciências Sociais, 30(1/2), 75-87.
Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe (H. R. Candiani, trad.). Boitempo.
Del Priore, M., & Bassanezi, C. (1997). História das mulheres no Bra-
sil. Contexto.
Fausto, B. (1984). Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo. 1880-

1924. Brasiliense.
Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o femi-

nismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41.
Haraway, D. (2004). “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual

de uma palavra. Cadernos Pagu, (22), 201-246.
Miranda, J. (2011, 6 abr.) A invenção do sagrado. O Povo. http://www.

opovo.com.br/app/opovo/cadernosespeciais/santificadosiii/2011/06/04/
noticiasjornalsantificados3
Nunes, S. A. (2000). O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha:

um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Civiliza-
ção Brasileira.
Pelúcio, L. (2012). Subalterno quem, cara pálida? Apontamento às margens

sobre pós-colonialismos, feminismo e estudos queer. Contemporânea, 2(2),
395-418.
162
Queiroz, R. de, & Hollanda, H. B. de (1990). Matriarcas do Ceará – D. Fede-

ralina de Lavras. Papéis avulsos, (24), 1-16. http://www.heloisabuarquedehol-
landa.com.br/matriarcas-do-ceara-d-fideralina-delavras
Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento. (Coleção: Feminis-

mos Plurais).
Scavone, L. (2008). Estudos de gênero: uma sociologia feminista? Estudos

Feministas, 1(16), 173-185.

Scott, J. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade, 20(2), 71-99.
Segato, R. L. (2012).Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e

de um vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos CES, 18, 1-5.
Sousa, K. S. de (2015). Bárbara de Alencar: Relações de Gênero e Poder no

Cariri Cearense [dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Ceará.
Strathern, M. (2006). O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e

problemas com a sociedade na Melanésia. Editora UNICAMP.
Vieira Júnior, A. O. (2004). Entre paredes e bacamartes: história da família

no Sertão da pecuária (1780-1850). HUCITEC, Edições Demócrito Rocha.
CAPÍTULO 10
“A VIOLÊNCIA CONTRA A VAGINA É
DISSEMINADA NO COTIDIANO”24: uma
análise dos impactos da violência de gênero na
autopercepção corporal e sexual de mulheres cis

Introduzindo um debate incômodo
Quando iniciei, em 2015, o doutorado em Sociologia na Universidade

Federal do Ceará, sob orientação do professor doutor Cristian Paiva, me pro-
pus a realizar um estudo sobre os imaginários sociais sobre o que seria, em
nossa sociedade contemporânea ocidental, uma “vagina perfeita”25, movida
por um incômodo que me acompanhou desde o primeiro contato que tive
com o texto “Autoestima vaginal: como anda a sua?” (Laranjeira & Stopa,
2013), publicado na Revista Glamour em julho de 2013.
[...] a matéria publicada em julho daquele ano no site da “Revista Gla-

mour” [...] falava sobre a “ditadura da beleza” ter chegado “até nossas
vaginas”. Na ocasião, a matéria informava que as mulheres brasileiras
estavam lotando os consultórios de cirurgiões plásticos em busca de um
tipo específico de estética intima: o de “estrelas pornôs”. A estética genital
das atrizes desse segmento fílmico é apontada nesse texto como em outros
que compõem o corpus empírico desta pesquisa como o “ideal de vagina
perfeita”, cuja aparência, ainda de acordo com o referido texto, consiste
em “nenhum pelinho pra contar história, coloração rosada, grandes lábios
gordinhos, pequenos lábios discretos e clitóris escondido, apenas com a
pontinha à mostra”. O modelo de “vagina perfeita”, nesse sentido, faria
com que as outras aparências não fossem “normais” nem desejáveis. O
24 Trecho de “Vagina”, de autoria de Eliane Brum (2013), publicado no site El País Brasil. Recuperado de:
https://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/09/opinion/1386595765_588331.html.
25 Todos os trechos que aparecem grafados em itálico e entre aspas compõem o corpus empírico da pes-
quisa, cujo relato completo pode ser encontrado em Silva (2019). Por se tratar de textos publicados em
sítios na internet, são referenciados sem número de página, sendo identificados apenas a autoria e o ano
de publicação.
164
texto da matéria ressalta ainda que é a existência desse padrão que tem
levado as mulheres a “optarem cada vez mais pela depilação total e recor-
rerem com frequência às cirurgias plásticas íntimas”, especialmente no
Brasil (Silva, 2019, p. 17-18).
Para mim, se tratou de um incômodo porque, até então, nunca havia

pensado sobre o assunto e não havia espaço ali para corpos que não estives-
sem em conformidade com o trinômio mulher-vagina-feminino, isto é, com
a lógica cisheteronormativa. A curiosidade inicial foi, então, transformada

em objeto de pesquisa no doutorado, quando deparei-me com um universo
empírico expressivo e que apontava para uma experiência familiar, enquanto
mulher cis26, para além da minha percepção enquanto pesquisadora, que era a
existência de um tabu envolvendo órgãos e funções sexuais, enfatizado recor-
rentemente nos corpus empírico e teórico da pesquisa, assim como no fato
de que eu desconhecia grande parte das informações que passei a conhecer
durante esse processo, o que representou para mim, inclusive, uma ausência
de informação sobre aspectos do meu próprio corpo.
Na tese, debrucei-me sobre um material coletado, entre fevereiro de
2015 e junho de 2018, que consistia em conteúdo de sites e blogs nacionais
e estrangeiros, de jornais, revistas e periódicos e de páginas e perfis no Ins-
tagram e no Facebook, que tinha como foco a “estética ideal da vagina”,
mas também, narrativas, em formato de relatos, fotografias e depoimentos,
de mulheres cis sobre como se sentiam sobre seus corpos e em seus relacio-
namentos afetivo-sexuais, em sua maioria, heterossexuais. Esse universo
empírico, ao qual me refiro aqui também como corpus empírico, reproduzia
a lógica cisheteronormativa de que a presença de uma vagina define o corpo
de um ser humano como uma mulher cisgênero, pressuposto que constitui
o ideal de normalidade hegemônico essencialista e determinista da biologia.
No entanto, se fazia fundamental apreender os elementos constituintes dessa
história, a fim de identificar os impactos da violência de gênero sobre a auto-
percepção corporal e sexual dessas mulheres.
Naomi Wolf (2013), Liv Strömquist (2018) e Marcelle Silva (2019)
discutem sobre como estratégias de controle de corpos e subjetividades, parti-
cularmente da mulher cis, são mobilizadas quando o assunto é sexualidade, na
26 Cis ou Cisgênero, de acordo com Jesus (2012, p. 14-15), é um conceito “‘guarda-chuva’ que abrange as
pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento”, e é utili-
zado em oposição a transgênero, conceito “‘guarda-chuva’ que abrange o grupo diversificado de pessoas
que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que
lhes foi determinado quando de seu nascimento” e a transexual, que por sua vez, consiste em um termo
“genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de
seu nascimento”.
sociedade contemporânea, precisamente, como saberes sobre a “vagina” são

deslegitimados e/ou ocultados dessas mulheres, considerados menos impor-
tantes e proibidos, associados à pornografia, transformados em um “segredo”.
Esse também é o argumento explorado por Eve Ensler em “Os monólogos da
vagina” (2000, p. 18):
Eu digo a palavra porque acredito que aquilo que não dizemos nós tam-
bém não vemos, não reconhecemos ou lembramos. O que não dizemos
se transforma num segredo, e segredos, muitas vezes, criam vergonha,
medos e mitos. Eu digo a palavra invisível porque quero dizê-la um dia

sem sentir vergonha ou culpa. Quero dizê-la com tranquilidade.
Silva (2019), pontuando o que as autoras supracitadas afirmam, argu-

menta haver um tabu vaginal na cultura ocidental contemporânea, respon-
sável pela forma como as mulheres cis percebem e se relacionam com seu
corpo e, consequentemente, com sua intimidade. Existiriam, de acordo com
a autora, estratégias discursivas de poder que são causa e efeito desse tabu,
e um exemplo para ilustrar esse argumento seriam os “palavrões, sinônimos
e falas populares” abordados por Eliane Maio (2011), os quais recorremos
em nossas falas cotidianas, conforme nos diz a autora, para nos referirmos
a essa parte da anatomia humana, sem que seja feita uma referência direta a
ela. Esse argumento, corroborado no corpus empírico de minha tese (Silva,
2019), configura um tipo de expressão de violência de gênero direcionada
às mulheres cis, revelando a multifacetada face sexista e machista de nossa
sociedade, ao mesmo tempo em que se estende a outros sujeitos e subjetivi-
dades cujos corpos escapam à matriz de inteligibilidade cisheteronormativa,
reproduzindo outras formas de opressão como transfobia, racismo, capacitismo
dentre outras.
De acordo com essa perspectiva, a linguagem teria o poder de mate-
rializar a cisheteronormatividade – já que, de acordo com Monique Wittig
(1980, p. 5), esta é “ao mesmo tempo, intimamente ligada ao campo polí-
tico, onde tudo o que concerne a linguagem, a ciência e o pensamento se
refere à pessoa enquanto subjetividade e à sua relação com a sociedade”
– e, consequentemente, os efeitos do tabu social em relação às palavras que
são usadas popularmente sobre a “vagina” que, de acordo com Wolf (2013,
p. 210), “criam ambientes que afetam diretamente o corpo das mulheres” e
que “mudam, para melhor ou para pior, o que elas implicam ou descrevem”
a respeito de si mesmas.
Esse tabu “vaginal” desenha os contornos de uma “zona de assun-
tos-que-não-devem-ser-falados” (Ribeiro, 2018), criando uma “cultura da
166
vergonha”27: “vergonha do seu corpo, vergonha de mencionar a palavra

vagina, vergonha de falar com a sua mãe, vergonha de ficar nua na frente
de um cara, vergonha de ir ao ginecologista” (Aronovich, 2014), ainda que
possamos observar o crescimento do mercado do embelezamento íntimo, à
exemplo das informações veiculadas na narrativa de Laranjeira e Stopa (2013),
possibilitando que as mulheres cis tenham à sua disposição uma quantidade
cada vez maior de produtos e técnicas cirúrgicas e não cirúrgicas especiali-
zadas no aperfeiçoamento de suas vulvas e vaginas.
Introduzido o debate, a discussão que se segue é uma provocação para

pensarmos as violências cotidianas que todos nós estamos passíveis de repro-
duzir; o tópico a seguir, apresenta o que queremos dizer quando falamos em
“palavrões, sinônimos e falas populares” no que diz respeito aos imaginários
socioculturais hegemônicos sobre vulvas e vaginas, onde também compartilho
minha experiência pessoal em diálogo com os corpus teórico e empírico da
pesquisa. Na sequência, desenvolvemos nosso enfoque na linguagem como
uma tecnologia social heteronormativa que contribui ativamente na manu-
tenção e reprodução de violências de gênero cotidianas para, logo adiante,
finalizarmos com mais algumas provocações acerca do debate.
Palavrões, sinônimos e falas populares: uma história comum

entre mulheres cis (?)
Em “Vulva, precisamos falar mais esta palavra”, Patrícia Gosálvez

(2017) comenta que: “Muitas de nós, desde meninas, crescemos com pudor
anatômico e linguístico em relação aos nossos órgãos genitais externos”.
Enquanto mulher cis, vivenciei algo parecido. Em algum momento da minha
infância, meus pais sentiram a necessidade de nomear minha genitália. Por
conta disso, cresci “barata” por parte de pai e “xibirico” por parte de mãe.
Outras palavras foram usadas com a mesma finalidade e, eventualmente,
circulavam em meu ambiente familiar, mas essas duas foram marcantes. Tal-
vez, esse ato nominativo de meus pais tenha me alertado para essa parte do
meu corpo que era nomeada de uma forma diferente do meu braço que se
chamava braço, do meu pé que se chamava pé e do meu joelho que sempre
se chamou joelho. Talvez, esse ato de nomeação tenha me tornado consciente
daquilo que eu tinha entre as pernas, ao ponto de eu ter notado o surgimento
dos primeiros pelos pubianos, novidade que recebi com preocupação. Ouvia
27 Para Wolf (2013, p. 161), “a concepção ocidental ‘moderna’ da vagina, tal como a conhecemos hoje”, carre-
gada de vergonha e hiperssexualização, foi desenvolvida no século XIX, apontado como sendo o século do
controle “medicalizado da sexualidade em geral”. Mas é importante lembrar que os mesmos mecanismos de
controle social sobre a mulher-vagina são também utilizados para o controle e produção de homem-pênis.
também as mulheres da minha família se referirem às vulvas umas das outras

como “bicho”: era o “bicho cabeludo”, e isso me apavorava.
Três palavras para designar a genitália feminina aparecem aí, mas lembro
de que “buceta” e “priquito” eram muito comuns. Nunca “vagina”, nunca
“vulva”. Cedo pude perceber que essa é uma parte do corpo “evitada já no
discurso”, que se tratava de uma palavra “metaforizada e escondida em dimi-
nutivos que não crescem com o passar do tempo”, tal qual afirma Mariana
Lazari (2018) em “Força na vagina”. Ainda que minha experiência com
palavrões, sinônimos e falas populares não se resuma a isso, no entanto,
esse episódio evidencia o incômodo que é nomeá-la, não apenas meu ou da

minha família.
Béjin (1983, p. 239) relata que ‘[...] muitas vezes, com efeito – nota
Gilberto Tordjman – quando se trata de órgãos e de funções sexuais, as
pessoas recorrem a um vocabulário infantil ou voluntariamente de gíria. A
verdade é que se tem medo das palavras’. Por essa afirmação confirma-se
a dificuldade (expressa nas palavras) que as pessoas apresentam ao se
referirem às partes do corpo relativas aos genitais e a algumas práticas
sexuais. Parece que há a necessidade de se modificar a linguagem, como
garantia de uma proteção psíquica e até social, para que possa ser mais
bem aceita socialmente, como também para interiorizar uma maior tran-
quilidade (Maio, 2011, p. 83, grifo da autora).
Cresci com uma curiosidade misturada ao pudor e ao medo do que tinha

entre as pernas; a repulsa também visitou meu imaginário, afinal, a presença
do “bicho” era recorrente. “Será que não dizemos – vagina – porque não que-
remos ou porque somos ensinados a ignorar uma coisa que está ali presente
no nosso corpo?”, questiona Regiane Arruda (2012) em “Vagina: motivo de
se envergonhar?”, reflexão que dialoga com o que relata Stephanie Ribeiro
(2018), em “O que fazer com nossas vaginas?”:
“Não à toa, essa conversa remete à minha infância, quando eu nem sabia
nomear o “elemento” no meio das pernas, mas que minha avó me ensi-
nava em tom de piada a chamá-la de “perseguida”. Não parece haver
nome melhor para definir essa parte do nosso corpo, ainda perseguida
pela santa inquisição da “moral e dos bons costumes” misóginos. Da
forma como fui criada, parecia que ter vagina era um fato vergonhoso:
Esconde isso. Não fala disso. Não toca nela! Para um número consi-
derável de mulheres, essa é uma história comum.” (grifo da autora).
A despeito do nome usado, “muitas de nós crescemos sem uma pala-

vra compartilhada para falar de nossa vulva, o que acrescenta ao pudor
168
anatômico, o linguístico”, conforme Patrícia Gosálvez (2017). Tanto quanto

as metáforas infantilizantes já mencionadas, os apelidos que remetem ao
tamanho, ao cheiro e ao formato da vulva e da vagina contribuem na formação
de uma imagem negativa que as mulheres cis têm de si mesmas, ridicularizan-
do-as e inferiorizando-as, pois, ao escutar esses nomes desde cedo “A gente
vai crescendo e entendendo que é suja, que deve esconder nossos cheiros,
mesmo que sejam naturais para todas as mulheres”, de acordo Ananda Hilgert
(2015). Aprendemos também “que peixe podre e vagina tem o mesmo odor”,
que, eventualmente, “Carregamos um túnel ‘malcheiroso’ no meio das pernas,

motivo de piada, medo, objeto de controle”. Parece uma “piada” inofensiva,
“mas carregam um peso muito maior que uma comédia boba. Muitas mulhe-
res realmente acabam tendo nojo de si mesmas, não conhecem suas próprias
vaginas, não tocam em si mesmas”, continua Ananda.
Em “A vagina como ela é”, Carol Patrocínio (2015) comenta que “A
vagina tem mais de 4 mil apelidos (des)conhecidos”, informação que me
causou espanto pois os nomes que eu conheci na infância, acrescidos dos
que passei a conhecer no decorrer da vida adulta, não chegavam perto dessa
quantidade. O texto intitulado “Deslistas: Nomes populares para a vagina”28
disponível no site Desciclopedia reiterava essa informação, onde são apresen-
tados aproximadamente 4 mil nomes e expressões conhecidos para designar
a genitália feminina, apenas no Brasil. Ao digitar “nomes populares para a
vagina” na ferramenta de busca do Google, podemos encontrar centenas de
textos que prometem elucidar essa curiosidade, mas esta foi a lista mais longa
eu encontrei, na época de elaboração da tese, entre 2015 e 2019.
Em duas das fontes bibliográficas com as quais a tese dialoga, encontrei
mais duas outras listas. Na pesquisa de Eliane Maio (2001), ela identificou 494
nominações, enquanto Gérard Zwang (2000) identificou aproximadamente
165 nomes/expressões diferentes. A particularidade destas duas listas, além de
corresponderem a textos acadêmicos, é que ambos os autores empreenderam
classificações a respeito dos tipos de expressões simbólicas que envolvem
esses nomes. Maio (2001, p. 156-161) categoriza-as em: nomes/expressões
que evocam força, violência e vergonha; diminutivos (que também demons-
tram fraqueza, inocência); nomes próprios que apresentam “propensão para o
deboche, como também busca trazer proximidade do órgão à pessoa” (p. 160);
alimentos, “o que releva que a vulva é algo para ser ‘comido, experimentado,
deliciado’ (BLACKLEDGE, 2004, p. 79), principalmente para o prazer mas-
culino” (Maio, 2011, p. 161); e, por fim, nomes de animais e receptáculos.
Zwang (2000, p. 234 – 257), por sua vez, organiza os apelidos em sete
categorias: “os nomes que não o são” (coisa, coiso, lá embaixo, por exemplo);
28 Recuperado de: https://desciclopedia.org/wiki/Deslistas:Nomes_populares_para_a_vagina.
“a situação geográfica” (meio, miolo); metáforas relacionadas às “caracte-

rísticas anatômicas” (associação do monte de vênus, parte da anatomia, com
a proa de um navio); “as afinidades geométricas” (círculo, triângulo); “as
características funcionais” (umidade, odor); “imagens e nomes do clitóris”
e, por fim, “a afinidade profunda” (mais metáforas, desta feita, a associação
com os mistérios das profundezas do mar). Como podemos observar, essas
são categorias que se referem ao formato, cor, ao tamanho, ao cheiro e a res-
peito da presença ou não de pelos no local, os quais acionam simbologias que
giram em torno de referências a animais, flores, alimentos, diminutivos que
infantilizam, dentre outros, que variam entre pronúncias e dicções tanto no

masculino como no feminino, e também gírias, neologismos, estrangeirismos e
regionalismos que, de acordo com Maio (2011, p. 82) são produto e produtoras
de repressões e proibições, especialmente na cultura brasileira: “as palavras
carregam consigo as proibições, as exigências e as expectativas que são aceitas
ou interditas de acordo com determinado momento histórico-cultural”.
Tanto em Schimitt (2014, p. 12-13) como em parte do corpus empírico
que acessei, o incômodo em nomear a genitália feminina é considerado um
obstáculo na experiência corporal e afetivo-sexual das mulheres cis, chegando
até a ser comparado a uma forma de anulação não só das palavras, mas do
órgão em si e da subjetividade dessas mulheres, além de dificultar a identifi-
cação de doenças ginecológicas por falta de informação adequada. Schimitt,
atenta a essa questão, afirma que:
[...] mesmo na literatura especializada, autores optam por se referirem à

genitália feminina apenas como “vagina”, esquecendo-se que a vagina
em si engloba apenas o orifício que inicia no hímen e vai até o colo do
útero, de acordo com a literatura médica. Dessa maneira, ao se referirem à
genitália feminina apenas fazendo alusão ao canal vaginal, reproduz-se a
ideia da anatomia da sexualidade feminina apenas como receptáculo
(grifo da autora).
Ecoa aqui a persistência do modelo galênico de sexo único, segundo o

qual o corpo masculino é tomado como matriz de inteligibilidade para pensar
a diferença sexual, tal como analisado por Thomas Laqueur (2001), produ-
zindo-se invisibilidade e desconhecimento sobre o corpo feminino. E por que
será que são usados tantos sinônimos, questiona Eliane Maio (2011, p. 31) em
seu livro “O nome da coisa”. A hipótese da autora é a seguinte:
Talvez por serem recursos extremamente válidos e criativos para prover

o vocabulário de expressões que traduzem nossos sentimentos. No caso
dos “palavrões” proferidos em relação à sexualidade, podem servir para
170
mascarar, agredir ou aliviar sentimentos relacionados à temática. Como

este assunto é permeado por mitos e tabus, talvez o eufemismo sirva
mesmo para suavizar, polir a palavra, numa ideia de substituição, para
driblar ou se adaptar aos preconceitos sociais, historicamente construídos.
Ou, ainda, porque esse, de fato, “não é um assunto encarado com natura-
lidade”, como sugere Adriana Terra (2017) em “Toque, olhe, pense, fale”. De
acordo com Stephanie Ribeiro (2018), “As questões inerentes ao sexo feminino
passam a ser consideradas indignas de serem entendidas e tratadas com a

devida naturalidade”, sendo também “rapidamente colocadas na caixinha
dos tabus”, transformando-se em palavrões. O palavrão, em muitas situações
cotidianas, é socialmente entendido como algo que se refere de forma sim-
bólica ao campo da sexualidade, portanto, visto como sensual e libidinoso29.
Fazer uso de palavras que não correspondem a essas categorias parece mais
aceitável, eis que a necessidade faz com que sejam criados sinônimos e que
estes, sendo popularizados, se tornam falas populares30. Esse processo acon-
tece, de acordo com Eliane Maio (2011, p. 85), “principalmente pela repressão
que permeia essa atividade humana”.
Mais do que “meras palavras”: a linguagem como uma tecnologia

social heteronormativa
Naomi Wolf (2013, 209) recorda que o filósofo John Austin, em How
to Do Things with Words, fala sobre os “enunciados performativos”, isto é,
palavras ou expressões que causam efeitos físicos concretos, que transformam
a realidade e que, frequentemente, são usadas como forma de controle social.
“A repressão da pronúncia das palavras é antiga e violenta”, como assinala
Eliane Maio (2011, p. 58), porque denota posicionamentos políticos e culturais
que dizem muito sobre as normas de sexo e papéis de gênero na sociedade.
Com o pênis, por exemplo, as coisas são diferentes, tendo em vista que “A
auto-imagem e a auto-estima do homem continuam dependente da sua empa-
tia com o pênis” (Maio, 2011, p. 89), e as mulheres cis “não têm a mesma
amizade por suas vaginas e vulvas, sem dúvida, porque é preciso fazer um
29 “Os autores [Masters e Johnson] complementam que os sentimentos que algumas pessoas têm sobre as
partes sexuais do corpo, assim como sobre práticas sexuais, são refletidos nas palavras que empregam
para falar sobre elas. Observam que algumas palavras são consideradas ‘[...] ‘boas’ e ‘adequadas’, enquanto
outras são ‘feias’ ou ‘grosseiras’. Essa diferenciação é devida à maneira como interpretamos as palavras,
não a uma propriedade inerente às palavras em si’ (MASTERS; JOHNSON, 1988, p. 31)” (Maio, 2011, p. 80).
30 “Também é importante indagarmos, como diz Barbosa (1984), a razão pela qual acabamos por transgredir
as normas, criando palavras, ‘palavrões’, sinônimos e falas populares para exprimir aquilo de que temos
vergonha, pudor ou nojo de expor socialmente (a sujeira, o escárnio, improbidades) e o que não podemos
esquecer, o desejo” (Maio, 2011, p. 86).
esforço para enxerga-las. É difícil ficar amiga de quem não se consegue ver’”
(Maio, 2011, p. 160). Não é por acaso, portanto, que o pênis recebe apelidos
que remetem ao seu formato que não são pejorativos, tais como “cenoura,
nabo, cano, anaconda, espeto e tantos outros mais” (Hilgert, 2015), enquanto:
“[...] à vagina direciona-se outro tipo de apelido, muito mais pejorativo,

como: bacalhau; carne mijada; nugget de peixe; marisco; suvaco de coxa;
túnel cheiroso; suadinha. A vagina e seus perseguidos odores! Fedor de
peixe, suor, mijo. A vagina é nojenta, tem mau cheiro. Tudo que o homem
hétero quer é que sua estaca crave esse marisco, mas sem abrir mão de
rebaixar essa pobre carne mijada ao seu devido lugar” (Hilgert, 2015).
Citando o livro “A história da V: abrindo a Caixa de Pandora”, de Cathe-

rine Blackledge, Eliane Maio (2011, p. 95) “afirma que as palavras para
designar essa parte corporal feminina, são compreendidas como perturbadoras,
e assim são mais difíceis de serem verbalizadas”. Nesse sentido, “mesmo
falar ‘vagina’ ou ‘vulva’, que são nomes científicos, continua uma questão
contemporânea, seja no público ou no privado” (Terra, 2017). A “dificuldade
de falar vagina” (Pereira, 2014) parece, em nossos tempos, considerado um
“problema sério” e internacional, conforme afirma Nina Lemos (2014) em
“Libera a vagina!”. O desconforto com as palavras revela, portanto, um
incômodo com tudo o que diz respeito ao órgão feminino, além de causar
“estranhamento e até mesmo nojo, como se estivéssemos falando de algo sujo
ou que devesse continuar escondido” (Pereira, 2014).
É importante enfatizar que algumas palavras trazem consigo um juízo

de valor quanto ao seu uso. E falar de sexualidade empregando novas
palavras que designam as partes genitais e algumas práticas sexuais traz
uma variante ainda mais própria, mais íntima, para a discussão, pois elas
podem criar confusões e até diferenciações em seu entendimento (Maio,
2011, p. 82).
Marie-France Dépêche (2008, p. 209) nos lembra da importância das

palavras na construção das coisas. A linguagem, diz-nos a autora, “é uma
máquina simbólico-ideológica”, “uma instituição instável, um lugar de exer-
cício do poder, de confronto entre forças adversas e, portanto, potencialmente
violenta, principalmente quando define, a partir dos corpos, os lugares de
fala e de inserção sócio-política”. Em uma sociedade regida pelo “sistema
patriarcal eminentemente polarizado masculino/feminino, a linguagem se
coloca a serviço da ideologia ambiente, fazendo a apologia da força para
impor o poder de um sobre o outro”. Esse poder, reforçado constantemente
nesse sistema, não precisa se manifestar através de uma violência física para
fazer-se presente, e nem sempre é manifestado de forma explícita, já que pode
172
ser expressa em forma de “brincadeira” ou “piada”. A autora acrescenta que

“Entre representação e intervenção, a linguagem se encaixa nos sistemas de
opressão, mas de maneira sutil, a ponto de não ser tomada a sério, como se
fosse branda em relação às agressões físicas” (Dépêche, 2008, p. 212).
Do ponto de vista da linguagem enquanto uma instituição social, pode-
mos observar que práticas discriminatórias machistas, transfóbicas e racistas
podem se manifestar em forma de apelidos e usos de metáforas que configuram
intimidação e insultos sexuais, invasão de privacidade e violação da intimi-
dade, e violam o que para o feminismo é fundamental: a propriedade de si,

que Biroli (2014, p. 112) assinala como algo que “foi codificada de maneiras
distintas para homens e mulheres”. Os exemplos que menciono são algumas
das formas mais sutis de violência cometidas contra as mulheres cis, e é no
cotidiano que elas se manifestam, que são naturalizadas, já que “O quotidiano
permite sentir de perto as agressões ‘benignas’ da linguagem, que resvalam
para a agressão física” (Dépêche, 2008, p. 216), hierarquizando e assujeitando
os corpos das pessoas.
“Não é motivo de espanto, consequentemente, parece sempre haver algo

errado com a nossa vagina — se odiar é um processo importante para
manutenção dessa sociedade doente, onde o repúdio de tudo que está
associado à mulher ou ao feminino é uma constante. Nos ensinam desde
muito cedo que tocar nas nossas vaginas é feio, enquanto alguns que têm
pênis crescem fazendo campeonatos de ejaculação mesmo em espaços
públicos sem serem repreendidos” (RIBEIRO, 2018).
Penso que vulvas e vaginas são transformadas pelos nomes atribuídos

a elas, mas também pelos sujeitos e lugares sociais que os acionam. O poder
que existe no ato de nomear algo ou alguma coisa é um poder de fazer existir,
um ato inaugural – assim como poder de silenciar e apagar, gerando, assim,
desconhecimento por um lado, e tabus, ao mesmo tempo, isto é, mais violên-
cias. Essa ideia coaduna com o que Roxane Gay (2017) fala acerca de como
as pessoas costumam rotular o que ela chama de “corpos indisciplinados”,
sendo o corpo da mulher cis um dos mais vigiados e controlados dentre os
corpos que constituem a matriz de inteligibilidade heteronormativa, a qual tem
como base, instituída como normalidade, o binarismo homem-pênis-masculino
e mulher-vagina-feminino.
Um tabu em desconstrução
As formas de evitação de vulvas e vaginas pressupõe um “silenciamento

silenciosamente imposto”, de acordo com Anna Clara Carvalho (2017). Em
“O nosso sexo”, Rebeca Ávila (2013) corrobora essa afirmação observando
que “Evitamos qualquer menção ao nosso sexo, especialmente na frente dos

homens, porque a vulva é sempre suja ou pornográfica – o que pode dar
na mesma. Insinua-se o mal cheiro, a presença abominável de pelos e as
anatomias depreciáveis”. Há, ainda, queixas de mulheres cis sobre a grande
quantidade de nomes disponíveis, que faz parecer que a “vagina” está passando
por uma “crise de identidade”. Como nos aconselha Eliane Rose Maio (2011,
p. 77-78), é importante lembrarmos que:
[...] o valor semântico das palavras não é estático, mas certas evoluções
históricas, bem como regionais, sociais, políticas e culturais influenciam a

sua transmutação ou a pluralidade de seus significados. Do mesmo modo,
muitas palavras (neologismos, estrangeirismos etc.) são integradas à lin-
guagem em sua forma original, antes de sofrer uma possível transformação
ou adaptação pelas regras que regem o idioma de acolhimento.
Como, então, lidar com esse tabu que não é apenas linguístico? Há nar-
rativas de ativistas – conforme explicito na tese (Silva, 2019) –, por exemplo,
que reivindicam o uso de determinados termos – porque são considerados e
ressignificados como palavras fortes, empoderadoras – ou que os rejeitam
– porque são consideradas pejorativos e ofensivos, embora Rebeca Ávila
considere que “todos os nomes possíveis nos constrangem”, porque parece
que há sempre uma associação com o “obscuro, ao desconhecido – à intimi-
dade e ao segredo”. Mas, conforme Naomi Wolf (2013, p. 237) e parte do
corpus empírico da tese supracitada, “As mulheres estão tentando ‘responder’
ou ‘retribuir o xingamento’” apropriando-se desses palavrões, sinônimos e
falas populares.
Considero, assim como Eve Ensler (2000), e consciente de minhas limi-
tações enquanto mulher cis, que uma maior familiaridade com essa parte de
nossa anatomia – para além dos problemas que também aparecem nas narra-
tivas aqui apresentadas, as quais reproduzem o trinômio mulher-vagina-femi-
nino, de modo que invisibilizam as experiências de pessoas trans e travestis,
por exemplo –, nos ajuda a identificar uma série de problemas que entendemos
como pessoais, mas que são coletivos; além disso, entender que gênero, corpo,
sexualidade e as noções hegemônicas que conhecemos sobre o que é uma
vagina e um pênis são construções sociais e culturais que aprendemos, desde
muito cedo, a considerarmos como sendo “naturais” e como tendo endereço
fixo (vide o sistema já mencionado: o binarismo homem-pênis-masculino e
mulher-vagina-feminino), nos auxilia, ainda que de forma parcial, nos enfren-
tamentos cotidianos das diversas violências que são direcionadas aos sujeitos
que protagonizam esse debate, o qual desejamos que seja incômodo no sentido
de sensibilizar nossos olhares cada vez mais não só para palavras, sinônimos
e falas populares, mas para as práticas discriminatórias que os acompanham.
174
REFERÊNCIAS
Aronovich, L. (2014). Vergonha da minha parte íntima. Escreva Lola escreva.
http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2014/05/vergonha-da-minha-par-
te-intima.html
Arruda, R. (2012). Vagina: motivo de se envergonhar?. Blogueiras Feministas.

http://blogueirasfeministas.com/2012/05/vagina-motivo-de-se-envergonhar/

Avila, R. (2013). O nosso sexo. Re, escreva e reescreva. https://reescreva.
me/2013/03/31/o-nosso-sexo/
Biroli, F. (2014). Autonomia, dominação e opressão. In L. F. Miguel & F.

Biroli (orgs.), Feminismo e política: uma introdução. Boitempo.
Brum, E. (2013). Vagina. El País Brasil. https://brasil.elpais.com/bra-

sil/2013/12/09/opinion/1386595765588331.html
Dépêche, M-F. (2008). Reações hiperbólicas da violência da linguagem

patriarcal e o corpo feminino. In C. M. T. Stevens & T. N. Swan. (orgs.), A
construção dos corpos: perspectivas feministas. Ed. Mulheres.
Ensler, E. (2000). Os monólogos da vagina. Bertrand Brasil.
Gay, R. (2017). Fome: uma autobiografia do (meu) corpo. Globo Livros.
Gosálvez, P. (2017). Vulva, precisamos falar mais esta palavra. El País. https://
brasil.elpais.com/brasil/2017/08/02/cultura/1501690142_000166.html
Jesus, J. G. de. (2012). Orientações sobre a população transgênero: conceitos

e termos. Autor.
Laranjeira, L., & Stopa, B. (2013). Autoestima vaginal: como anda a

sua?. Revista Glamour. http://revistaglamour.globo.com/Amor-Sexo/noti-
cia/2013/07/autoestima-vaginal-como-anda-sua.html
Laqueur, T. W. (2001). Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud.

Relume Dumará.
Lazari, M. (2018). Força na vagina. Jornal O Povo. https://www.opovo.com.

br/jornal/cienciaesaude/2018/01/forca-na-vagina.html
Lemos, N. (2014). Libera a vagina! Revista Trip. https://revistatrip.uol.com.

br/tpm/libera-a-vagina
Maio, E. R. (2011). O nome da coisa. UNICORPORE.
Patrocínio, C. (2015). A vagina como ela é. Revista Galileu. https://revista-

galileu.globo.com/Revista/noticia/2015/12/vagina-como-ela-e.html
Pereira, L. da V. (2014). A dita cuja. Revista Trip. https://revistatrip.uol.com.

br/tpm/a-dita-cuja
Ribeiro, S. (2018). O que fazer com nossas vaginas?. Plano Feminino. https://
planofeminino.com.br/o-que-fazer-com-nossas-vaginas
Schimitt, M. (2014). Sinus Pudoris: Conformação de um padrão estético

de genitália feminina através de cirurgias plásticas. https://lume.ufrgs.br/
handle/10183/107917
Silva, M. J. da. (2019). “Ame seu corpo, inclusive sua vagina”: estudo socio-
lógico da produção discursiva sobre a “autoestima vaginal” e “empodera-
mento feminino” nas mídias digitais [Tese de doutorado]. https://repositorio.
ufc.br/handle/riufc/43744
Strömquist, L. (2018). A origem do mundo: uma história cultural da vagina

ou a vulva vs. o patriarcado. Quadrinhos na Cia.
Terra, A. (2017). Toque, olhe, pense, fale. Tab Uol. https://tab.uol.com.br/

vagina#toque-olhe-pense-fale
Wittig, M. (1980). O pensamento hétero. https://we.riseup.net/assets/134062/

Wittig,+Monique+O+pensamento+Hetero_pdf.pdf
Wolf, N. (2013). Vagina: uma biografia. Geração Editorial.
Zwang, G. (2000). O sexo da mulher. Editora UNESP.

CAPÍTULO 11
“DORMINDO COM O INIMIGO”31: violência
de gênero e disponibilidade psíquica materna
Introdução
A violência contra a mulher apresenta-se, enquanto um problema de
saúde pública, com altos índices estatísticos e efeitos psicossociais negativos
de extrema relevância. Em 2015, o Brasil estava na 5ª posição entre os países
que mais matam mulheres no mundo (Ipea, 2015). Houve um aumento de 21%
nos homicídios de mulheres de 2012 para 2015, estando as regiões Norte e
Nordeste com uma média cinco vezes maior de homicídio de mulheres que
as regiões Sul e Sudeste do país. Ainda de acordo com os dados desse levan-
tamento, 71,9% dos assassinatos ocorrem no ambiente doméstico e 67,2%
são cometidos por parceiros ou ex-parceiros da mulher.
Neste momento, faz-se necessário pontuar que a pandemia do corona-
vírus (covid-19) deflagrou aumentos significativos de casos de violência não
letais contra a mulher e de feminicídios em todo o mundo. O Brasil registrou
648 feminicídios no primeiro semestre de 2020, 1,9% a mais que no mesmo
período de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
(2019). Pesquisas já demonstram que o isolamento social amplificou os casos
de violência contra as mulheres e crianças (Vieira et al., 2020). No decorrer
desta pesquisa, em parte realizada no início da pandemia, já foi possível obser-
var os efeitos do isolamento na incidência da violência na vida das mulheres
pesquisadas. Diante do exposto, passa-se ao relato do caso escolhido.
Caso Simone: quando as palavras fraturam a alma

Simone tem 32 anos, três filhas com idades de 2, 7 e 14 anos. A mais
velha é fruto do primeiro casamento e não mora com Simone. As duas mais
novas são filhas do atual marido e residem com o casal. Heloísa, de 2 anos,
31 Este caso remeteu-nos a um filme de suspense psicológico americano de 1991, chamado “Sleeping with
the enemy”, que retrata a história de uma mulher que foge de um relacionamento abusivo.
Pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Ceará (UFC) intitulada “Violência contra a mulher e disponibilidade psíquica materna: uma análise psi-
canalítica”, em junho de 2021, e sob orientação da profa. dra. Karla Patrícia Holanda Martins.
178
é atendida pela instituição32 em que foi realizada esta pesquisa. A coordena-

dora da instituição avisou sobre o interesse de participação de uma mãe que
soube dos atendimentos e da pesquisa, a partir da roda de conversa realizada,
e adiantou que se tratava de um caso grave, com agressões físicas constantes
por parte do marido e ameaças de morte. Simone e Heloísa tinham faltas
recorrentes na instituição, e o contato por telefone com Simone era muito
difícil, pois ela não possuía um número próprio, tendo apenas o marido como
ponte com o mundo externo. Foram muitas tentativas até conseguir marcar
o atendimento de Simone, e a coordenadora da instituição relatava que não

conseguia contato com ela, pois, ao ligar, somente seu marido atendia e não
era possível nem deixar recado para ela.
Desde o início do contato com esse caso, percebeu-se uma espécie de
“blindagem” em relação ao acesso à Simone: ela era quase incomunicável
e dependia-se da autorização ou não do seu marido para marcar algo com
ela. Suas idas à instituição eram muito breves, apenas para deixar e buscar a
pequena Heloísa, não participando das atividades voltadas às mulheres/mães,
como cursos profissionalizantes, rodas de conversa, dias de beleza etc.
No primeiro atendimento, após ser convidada a falar, Simone diz:
A minha vida tá sendo assim... um pouco estressante, né? É que meu

marido... [chorando], ele é assim muito estressado, muito estressado, né?
E ele tá desempregado, fica em casa e aí tem dia que ele chega... Tem dia
que ele tá bem, mas tem dia que ele tá, né? Estressado demais! E aí, isso
me estressa também! Mas, não é nem tanto a questão assim de me bater,
é assim de falar, coisas assim, que machuca, né? Que eu acho, eu acho
que ele não pensa assim antes de falar... Aquela coisa assim sem pensar.
E aí, isso vai me estressando. Aí, tanto me estressa, quando estressa as
filhas, né?
Simone já inicia o atendimento chorando e falando diretamente o que se

passa com o marido em relação às violências sofridas. Entretanto, percebeu-se,
em sua fala, uma tendência a justificar os atos do esposo, quando ela diz que
ele está estressado pelo fato de ficar o dia em casa por conta do desemprego
momentâneo. Compreende-se, com o auxílio de Ferenczi (1992), o conceito de
identificação com o agressor, que explicita a tentativa de preservar o vínculo
com o agressor e de justificar seus atos de violência, colocando em jogo fortes
mecanismos de negação. Referindo-se às violências sofridas, relata: “Mas,
32 A pesquisa foi realizada no Serviço de Atendimento Integral às Mulheres e suas Crianças: Amor de Tia,
que consiste em uma proposta da Prefeitura Municipal de Teresina, executada pela Secretaria Municipal de
Políticas Públicas para Mulheres (SMPM), com o objetivo de atender às mulheres que vivenciem situações
de vulnerabilidade social e situações de violência doméstica e familiar.
não é nem tanto a questão assim de me bater, é assim de falar, coisas assim,
que machuca, né?”, retratando com essa fala a realidade de que a palavra dói
mais do que a pancada física, fato esse já apontado pela maioria das pesquisas
que tratam do tema (Guimarães & Pedroza, 2015; Miranda & Ramos, 2014;
Silva et al., 2009; Sisconeto & Silva, 2014).
A palavra, enquanto violência psicológica, provoca fraturas morais, danos
à autoestima e à autoconfiança difíceis e mais demorados no processo de
“cicatrização”. Quanto a essas violências psicológicas, Simone comenta: “Às
vezes, ele fica mais, assim falando, mais com palavras, né? ‘Que tu é burra,
que tu não sabe de nada’. Assim, palavras assim pra machucar...”. Simone
fala dos efeitos subjetivos dessas palavras que machucam, fazendo-a se sentir
sem força e incapaz, perdida diante da educação das filhas e da própria vida e
escolhas. Segundo Freud (1914/2006a), é a partir de seu próprio narcisismo
que os pais investem narcisicamente nos filhos (Freud, 1914/2006a). Seguindo
essa direção, pode-se afirmar a matriz narcísica que constitui a relação mãe e
bebê. Simone fala de sua dor e feridas e de todos os impasses que essas fra-
turas criam para o investimento afetivo com as filhas. Assim, ela prossegue:
“E aí, tudo isso machuca. Aí, tipo assim, se eu brigar com minhas filhas, ele
diz assim: ‘Ah, briga com as meninas, não! Não bate nas meninas, não’. Não
sei o quê...”. E ainda: “Porque, ele vai tirando minha autoridade... Porque,
assim, ele gosta muito das filhas dele, dá atenção e tudo, mas ele tira minha
autoridade com elas. Então, isso me machuca muito”. Simone fala de uma
sensação de desautorização vivenciada com as filhas, pois o marido, além de
ser violento física e psicologicamente com ela, não a deixa colocar limites
às filhas, trazendo uma intrincada relação entre violência e desautorização.
Questiona-se: como uma mulher/mãe pode sustentar sua autoridade junto aos
filhos numa relação com o parceiro em que se sente desautorizada, humilhada
e desvalorizada?
Simone fala de uma desvalorização por parte do seu companheiro, não
apenas quanto à sua dimensão como esposa/mulher, mas como mulher/mãe.
Importante lembrar com Winnicott (1962/1979/1983, p. 67) que “a mãe pre-
cisa estar suficientemente bem para se entregar à maternidade.”. Simone traz
em sua fala constantes sentimentos de desvalia, fragilidade, falta de apoio
e sustentação por parte do marido e pai das filhas. A maternagem que se
exerce sozinha pode vir a carecer de um esteio para sua autoridade (Winnicott,
1964/1982). Sobre isso, Simone relata:
Então, eu sinto que elas tão ficando assim, tipo, estressada também, vio-
lenta, estressada, não querem me obedecer. Tira minha autoridade com
elas... Há um mês atrás, chegou até a eu sair de casa, porque ele quis me
180
agredir... Então, isso elas presenciaram, né? Tudo isso... Aí eu tive que
sair de casa, porque eu fiquei com medo. Porque ele sempre foi assim, um
pouco agressivo, mas nunca assim... Há muito tempo atrás até que ele me,
me batia, vinha em cima de mim e tudo... Aí depois que eu tive elas, ele
mudou o jeito dele, assim... Era mais, né? Às vezes, ele fica mais, assim
falando, mais com palavras, né?
Simone traz de forma tímida um dos muitos episódios de violência física

e ameaça de morte por parte do marido. A forma como ela se expressa e a

entonação de sua voz demonstram uma tentativa de tamponar a gravidade
das violências. Refere-se a um “mês atrás” como se fosse muito tempo e que,
ultimamente, o marido a ameaça mais com palavras. Na sua fala, transparece
a percepção de como essa relação violenta com o marido repercute nas filhas
e em seus comportamentos, quando diz que elas estão mais estressadas e vio-
lentas. Observa-se um ciclo de violência, uma tendência a repetir a violência
de modo horizontal e vertical entre as gerações. Em outro momento, Simone
fala que a menor, de 2 anos, só quer “tudo do jeito dela”. Como a criança vai
internalizar o limite em um ambiente em que eles estão todos embaciados?
Com um pai que agride sem limites uma mãe desautorizada e humilhada
perante as filhas e a si mesma?
Quando questionada se o marido impõe limites às filhas, Simone expõe:
Ele briga... Até que dele, elas têm mais medo. Chega o ponto delas dizer
assim, quando eu vou brigar assim ou bater assim, elas dizem assim: ‘eu
vou dizer pro meu pai!’. Tudo delas é ‘eu vou dizer pro meu pai’. Como
quem diz assim: ‘se eu dizer pro meu pai, ela vai ficar quieta, ela vai ficar
com medo, né, de brigar comigo e ele dizer alguma coisa’. Aí aquilo ali
vai me machucando.
Winnicott (1964/1982, p. 129), pontuando acerca do papel do pai na

família, explicita que “quando o pai entra na vida da criança, como pai, ele
assume sentimentos que ela já alimentava em relação a certas propriedades
da mãe e, para esta, constitui um grande alívio verificar que o pai se comporta
de maneira esperada”. O que se depreende da escuta de Simone é que esse
pai, além de não dar o suporte para que Simone exerça seu papel, também
não sustenta sua posição de apoio à autoridade materna. Pelo contrário, sua
violência também se faz presente em forma de desautorização, desqualificação
de Simone enquanto detentora de autoridade junto às filhas. Esse posicio-
namento do marido traz grandes sofrimentos para Simone em seu exercício
da maternagem.
Simone prossegue relatando os episódios de violência:
E já chegou até o ponto de uma vez ele dizer que ia me matar, então eu
fico com medo, assim, eu tenho medo assim, né? Quem é que não tem
hoje em dia? Do jeito que as coisas tá! E ele já tem, né? O hábito de
violência e aí eu tenho medo, não vou mentir... Aí as outras dizem assim:
‘a mulher, tu não deixa ele porque tu não quer!’. Eu não tenho mais mãe,
eu não tenho mais pai. Minha mãe morreu eu tinha 17 anos. Eu já sofri
muito na minha vida! Muito mesmo! Sofri morando de aluguel com minha
filha pequena. Porque quando minha mãe morreu, eu me separei do meu
primeiro marido e fiquei só com uma filha... Aí fui trabalhar pra sustentar,
aí tudo foi sofrimento... aí conheci ele, no começo tudo bom né? Mas aí,
do meio pro fim, começou a mostrar que ele não era aquela pessoa que
eu pensava que era, né...
Simone relata que após perder sua referência familiar primordial, a mãe,
sofreu muito morando de aluguel com a filha mais velha, fruto do primeiro
casamento, no qual também sofreu violência doméstica. Com esse primeiro
marido, Simone passou menos tempo casada e, após ele queimar todas as
suas roupas em um ato de ciúme e violência patrimonial, decidiu pela separa-
ção. Referindo-se ao episódio das roupas queimadas, descreveu que naquele
momento pensou:
Eu não vou aguentar essa vida! Nesse tempo, eu era mais nova, né?
Eu tinha 18 anos, aí foi o tempo que minha mãe morreu... Aí, eu entrei
quase em depressão, também, né? Porque, meu ponto, assim, meu ponto
era minha mãe... Aí, depois que minha mãe morreu, ele começou fazer
coisa assim, judiar comigo... Como quem diz assim, ‘ela não tem mais
mãe, não! Vou judiar com ela! Vou dizer as coisas com ela, vou fazer o
que eu quiser com ela’
Pontua-se o valor que a própria mãe passa a ter depois da violência.

Simone fala da sua perda de referência com a morte da mãe quando tinha
17 anos, em que para ela a mãe era seu “ponto”, seu porto seguro. O pai
de Simone faleceu quando ela tinha apenas 8 anos, e ela não guarda quase
nenhuma lembrança dele, pois refere-se a ele como uma pessoa distante e
pouco participativa.
Percebe-se, até aqui, que nos dois casamentos de Simone a violência
doméstica se fez presente. Os dois homens com quem constituiu família, o
ex-marido e o atual, são agressores e violentos. Suas falas expõem um tipo
de vínculo em que a amálgama está entre aquele de quem se depende e se
demanda amor e aquele de quem se pode esperar apenas ausência e dor. A
metodologia adotada não permitiu aprofundar os móbeis em jogo na sua
182
repetição (Freud, 1920/2006b), nem mesmo pensar as questões referentes ao

caráter do traumático e à repetição entre as gerações, podendo compreender
as situações que envolvem “a transmissão de conteúdos não metabolizados,
negativizados através das gerações.” (Garcia & Penna, 2010, p. 73).
Como será visto melhor mais adiante, Simone foi proibida pelo marido
de frequentar os atendimentos, deixando inclusive de levar Heloísa para as
atividades da instituição. Simone relatou que tem irmãos e uma irmã, mas
não tem qualquer contato com eles, sentindo-se totalmente apartada dos
vínculos familiares de origem, desligamento que se traduz em desamparo

e vulnerabilidade.
Assim, refere-se ao ex-marido contando que, apesar de agressor e exces-
sivamente ciumento, sempre levava coisas para casa, dava dinheiro para os
mantimentos e as necessidades dela e da filha. Já o atual marido, além de
violento e de não dividir as tarefas domésticas com ela nem a criação das
filhas, costuma sair continuamente com os amigos para beber e jogar, deixan-
do-a trancada em casa. Além disso, também controla a questão do dinheiro,
conforme expõe Simone:
E também, eu fico mais em casa, fico em casa fazendo as coisas, cuidando

de menino. Eu não tenho, assim, lazer, assim, de ir pra um lugar. Tem,
assim, as pessoas, as colegas, nem todas as colegas que eu converso, num
tem? Aí, tudo vai mexendo comigo... Aquele peso de tá só dentro de casa,
fazendo aquelas mesmas coisas todo dia! Enquanto, ele vai, conversa com
os amigos, se diverte. Ele gosta muito, assim, de briga de galo, de jogar
bola. Então, tudo isso... Ele se diverte e eu fico em casa, com aquele peso!
Só com as filhas, né? Porque ele não é aquele pai de dar uma volta com
as filhas... É que ele nunca foi homem, assim, de dizer assim: ‘Simone,
pega esse dinheiro pra tu comprar uma roupa, pra tu comprar um chinelo,
assim...’. Não! Sempre eu me virei, assim, pra comprar as coisas pra
mim, assim, o básico... só botava, assim, o básico, pra pagar um talão,
um talão de água, um talão de luz, botava o de comer em casa... mas o
resto, tudo era eu que tinha que me virar, entendeu? Aí, eu acho que aquilo
ali, também, foi mexendo, assim, comigo... ‘Poxa, eu tenho marido, eu
não trabalho e eu tenho que?’. Né? Assim me arcar comigo, com minhas
filhas, assim, questão de roupa, vestir, essas coisas, né... Aí eu ficava assim
pensando: ‘Poxa! Por que que ele não me dá, assim...? Num tem aquela
consciência, assim, de...’. Porque, eu nunca fui, assim, de andar pedindo,
assim, de: ‘me dá uma roupa, um calção’, uma coisa assim... Às vezes,
me doía, porque ele dizia assim: ‘vou em tal loja comprar uma roupa’.
Aí levava a filha e não trazia uma calcinha! Aí eu dizia: ‘Ave Maria! Tu
não trouxe uma calcinha pra tua filha? Isso quer dizer que só você que
se veste? Nós também tem que se vestir, nós também tem que se calçar!’.
Aí, eu acho que aquilo tudo, vai, assim, me desgastando...
Seu relato traz sua extrema impotência diante do vivido, assim como
a dificuldade em nomear e entrar em contato com a realidade do sofri-
mento vivido.
Violência, repetição e efeitos na disponibilidade psíquica para

o maternar
Simone traz em sua fala o significante “peso” ao referir-se à materni-

dade e aos cuidados diários com as filhas. Winnicott (1962/1979/1983, p. 68)
esclarece que “para desempenhar bem seu papel, a mãe necessita de apoio
externo; habitualmente o marido a protege da realidade exterior e assim a
capacita a proteger seu filho de fenômenos externos imprevisíveis, aos quais a
criança reagiria”. Explicando e tentando entender as razões de um dos últimos
episódios de agressões físicas, ela relata que o marido bateu nela de forma
imprevisível, pois estava com raiva pelo fato de ela estar frequentando aulas
profissionalizantes de costura na instituição:
Chegou a me agredir, não agrediu muito, mas chegou assim a me dar

tapa! Assim, uma coisa assim, que você tá aqui e você não espera. Eu não
esperava que ele ia assim em cima de mim. Porque, sabe né, a mulher não
tem força, por mais que você queira, não tem força... Aí, eu saí de casa,
justamente por causa das filhas, né? Eu digo: ‘minhas filhas vê isso, não
dá certo!’. Aí eu saí de casa.
Simone descreve que saiu de casa após esse episódio, pois não supor-
tava mais as desconfianças do marido, já que era constantemente vigiada,
proibida de ir aos lugares e sair de casa, e percebia que as filhas estavam
ficando agressivas e estressadas de tanto presenciar esses episódios de brigas
e violências. Entretanto, retornou após alguns dias, após pedidos insistentes
de desculpas por parte do marido e por não aguentar “ficar de favor na casa
dos outros com as filhas”.
Freud (1926/2006d) discorre sobre como a função de proteção do Eu fica
comprometida pelo caráter imprevisível e de susto do trauma, não permitindo
que o sujeito se prepare para lidar com o ocorrido através da angústia sinal.
Assim, o traumático é justamente o que chega de surpresa, gerando uma angús-
tia automática e constituindo-se enquanto excesso, superior à capacidade de
tratamento/metabolização por parte do aparelho psíquico. Simone vivia em
184
constante sobressalto, sobrecarregada, aprisionada em casa e em sua função de

mãe; entretanto, não tinha condições emocionais de exercer tal função materna,
afinal, o ambiente que deveria proporcionar-lhe apoio e continência para tal
exercício era o mesmo ambiente que lhe tirava essas condições. Assim, narra
o sentimento de exaustão diante da maternidade, a falta de paciência com as
filhas, a sensação constante de frustração e insatisfação com a própria vida e
a realidade. Ou seja, justamente a dimensão de sua disponibilidade psíquica
para investimento e cuidado com as filhas mostra-se prejudicada diante da
realidade de vida e da relação conjugal de Simone com o marido.

Em outro momento, ela mesma começa a questionar e tentar explicar as
razões de permanecer nesse casamento. Simone observa que, após o primeiro
casamento, foi acolhida e apoiada por uma amiga de sua mãe, passando a
morar com ela, enquanto a ajudava com as coisas da casa.
Aí, com o tempo, né, eu conheci uma pessoa que era vizinha, muito amiga
da minha mãe. Aí eu fui fazer faxina na casa dela, né? E aí, nós pegamos
uma amizade, e aí, como eu morava só com minha filha, né... de aluguel,
ela disse: ‘Simone, mulher, gosto tanto de tu e da tua filha, por que tu não
vem pra cá? Vem morar aqui comigo!’. Aí, eu fui embora morar com ela...
E na verdade, ela nem queria que eu namorasse com esse rapaz que eu
sou casada agora, mas sabe quando a gente é nova, né? A gente conhece
uma pessoa assim, a gente pensa, né... ‘Mulher, esse homem não é homem
pra ti, não dá certo!’. Ela me estimulava a estudar, fazer curso e tudo...
mas eu não queria, fiquei cega! Sabe quando a gente é nova, assim, que
a gente conhece uma pessoa, que a gente fica cega? Pois foi... eu fiquei
cega! Aí, eu sei que ela ainda lutou pra mim não juntar, né... Que não
era bom eu me juntar, que não dava certo eu morar com esse rapaz, mas
eu queria, né...?
Freud (1921/2006c, p. 122) pontua sobre os mecanismos de idealização

envolvidos no enamoramento, esclarecendo que, quando se está amando,
“uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto”.
Todavia, como refere Freud (1921/2006c), o estado de estar amando é também
uma forma de servidão e fascinação.
Em outros momentos dos relatos de Simone, ela volta a usar o significante
“cega”. Ficou “cega” e não viu quem era o futuro marido, apesar de saber por
toda a vizinhança do histórico dele, que era envolvido com gangues e crimes.
Aí foi que foi o sofrimento, porque todo mundo dizia que ele já tinha, que
ele era homem assim de andar em reggae, né... Ele era homem, assim,
de curtir demais com os amigos, negócio de gangue, essas coisas... Aí o
povo me dizia: ‘Tu tem coragem, hein? Porque esse homem aí ninguém
pode mexer com ele, não!’. Aí, eu dizia: ‘Ah, mas comigo ele nunca fez
nada! Isso é com quem mexe com ele, né...’. Aí, foi indo, foi indo, e eu
fui vendo que ele era aquela pessoa, né, que a pessoa não podia tirar a
autoridade dele, ali, todo mundo tinha medo dele. As pessoas, assim, que
sabia o jeito que ele era, já tinha medo dele. Mas eu não tinha!
Simone flertava com o perigo e com a transgressão, assim como o namo-

rado e futuro marido? Apesar dos avisos e dos acontecimentos, como a prisão
do companheiro por assassinato em uma briga de gangues, Simone apenas
nomeia que estava “cega” e que não tinha “medo” do companheiro. Entre-
tanto, não demorou muito para que o padrão violento dele se manifestasse
também para com a esposa. Percebe-se o forte mecanismo da negação presente
novamente a partir do discurso de Simone, cegueira/negação. A cegueira não
seria em relação ao outro, e sim em relação ao Eu, que simplesmente não
pode ser visto?
Ainda relatando sobre a escolha de permanecer e constituir família com
o então namorado, expõe:
E aí todo mundo dizia assim: ‘mulher, tu não tem medo não, mulher!
Gente que já matou gente, pode matar tu também, porque...’. Ele nunca
me atingiu assim pra fazer sangue, né... com faca, assim, alguma coisa...
Mas a gente tem aquele medo, assim, mas não vai demonstrar... Porque o
inimigo é assim, ele quer que a gente demonstre que tem medo, e eu não
demonstrava ter medo...
O vínculo afetivo de Simone com o marido seria baseado no binômio

amor/medo? Simone chega a utilizar o significante “inimigo” para nomear
seu pensamento em relação ao companheiro e ao medo que ele provoca não
apenas nos outros, mas nela mesma. Entretanto, ela justifica que o importante é
não demonstrar o medo. Marido ou inimigo? Marido e inimigo? Sabe-se, pela
psicanálise, que as escolhas afetivas/conjugais são determinadas prioritaria-
mente de forma inconsciente a partir do amor infantil e das primeiras relações
com os pais. Infelizmente, não houve a oportunidade de escutar Simone mais
vezes, pois seu marido a proibiu de continuar com os atendimentos, fazendo-a
abandonar a instituição, bem como retirar sua filha das atividades diárias. A
instituição tentou várias vezes contato com Simone para orientar o retorno de
Heloísa às atividades, assim como o de Simone, no entanto, todas as tentativas
foram sem sucesso.
A escuta de Simone esteve marcada pela presença de violências físicas
e psicológicas por parte do marido e por todo o mal-estar advindo dessa
186
vivência. As dores emocionais provocadas pelas violências psicológicas apa-

recem como intensas e mais significativas do que propriamente as violências
físicas, confirmando achados de pesquisas anteriores. As violências sofridas
geravam em Simone um sentimento de desvalia que afeta diretamente sua rela-
ção com as filhas pequenas. Sentia-se desautorizada pelo marido, as filhas não
lhe obedeciam. Sentia-se sobrecarregada com as responsabilidades maternas e
domésticas, pois o marido era ausente e não dividia essas responsabilidades.
Em vários momentos Simone colocou em palavras os efeitos negativos dessas
vivências difíceis e violentas em sua disponibilidade psíquica para cuidar das

filhas. Sentia-se estressada e percebia que as filhas também estavam. Já havia
recebido relatos das professoras da instituição acerca dos comportamentos
agressivos da mais nova. A repetição de relacionamentos abusivos se fez
presente nesse caso, pois Simone já havia tido um primeiro casamento onde
a violência conjugal era presente. Quanto a esse atual e segundo casamento,
apesar das violências constantes e ameaças de morte, não conseguia pôr um
fim nessa relação, mas tentava encontrar justificativas para os comportamen-
tos violentos do marido, traduzindo os movimentos de identificação com o
agressor e os mecanismos de negação atuantes. Assim, a escuta de Simone
descortinou importantes compreensões acerca dos mecanismos da repetição e
seus efeitos subjetivos envolvidos na dinâmica de relacionamentos abusivos,
bem como suas consequências na saúde mental da mulher, especialmente em
sua disponibilidade psíquica para o maternar.
A escuta desse caso produziu efeitos contratransferenciais, como, por
exemplo, sentimentos de impotência e insuficiência diante da escuta e do
testemunho das cenas relatadas por Simone. Seu pedido de ajuda era claro, ela
mesma quis ser atendida e procurou a coordenação para tal, fazia formulações
e questionamentos acerca de suas escolhas e de sua posição subjetiva; de forma
ambivalente tentava tamponar, negar, justificar e naturalizar as situações de
violência e sofrimento que vivia. Simone foi levada a interromper os atendi-
mentos, proibida, coagida, deixando suspensas questões importantes no seu
processo de fala e de escuta.
REFERÊNCIAS
FBSP (2019). Violência doméstica durante a pandemia de covid-19. Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. https://forumseguranca.org.br/wp-content/
uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf.
Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In S.

Ferenczi, Obras completas: Psicanálise IV (pp. 97-106; A. Cabral, trad.).
Martins Fontes. (Obra original publicada em 1933).
Freud, S. (2006a). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, A história

do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos
(vol. 16, pp. 74-108). Imago. (Obra original publicada em 1914).
Freud, S. (2006b). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Além do princípio

de prazer (vol. 18, pp. 11-75). Imago. (Obra original publicada em 1920).
Freud, S. (2006c). Psicologia de grupo e a análise do ego. In S. Freud, Além

do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (vol. 20, pp.
78-154). Imago. (Obra original publicada em 1921).
Freud, S. (2006d). Inibições, sintomas e ansiedade. In S. Freud, Um estudo

autobiográfico, inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e outros traba-
lhos (vol. 20, pp. 80-171). Imago. (Obra original publicada em 1926).
Garcia, C. A., & Penna, C. M. O. A. (2010). O trabalho do negativo e a trans-

missão psíquica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 62(3), 68-79.
Guimarães, M. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Violência contra a

mulher: problematizando definições teóricas, filosóficas e jurídicas. Psi-
cologia & Sociedade, 27(2), 256-266. https://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0102-71822015000200256&script=sci_arttext
Ipea. (2015). A violência contra a mulher. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. https://www.
ipea.gov.br/retrato/pdf/190215_tema_d_a_violenca_contra_mulher.pdf
Miranda, C. E. S., & Ramos, J. S. (2014). Uma mulher é espancada: a violência

doméstica contra a mulher a luz da psicanálise. ECOS – Estudos Contempo-
râneos da Subjetividade, 4(1), 35-49.
188
Silva, A. M. et al. (2009). Maus-tratos na infância de mulheres vítimas de

violência. Psicologia em Estudo, 14(1), 121-127. https://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S1413-73722009000100015&script=sci_arttext&tlng=pt
Sisconeto, F. D. A., & Silva, N. A. (2014). A constituição do vínculo conjugal

violento: estudo de caso. Vínculo, Revista do Nesme, 11(1), 1-15.
Vieira, P. R., Garcia, L. P., & Maciel, E. L. N. (2020). Isolamento social

e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Revista

Bras. Epidemiol., 23, E200033, 1-5. https://www.scielo.br/j/rbepid/a/
tqcyvQhqQyjtQM3hXRywsTn/?format=pdf&lang=pt
Winnicott, D. (1983). A integração do ego no desenvolvimento da criança.

In Winnicott, D. O ambiente e os processos de maturação (pp. 55-61). Artes
Médicas. (Obra original publicada em 1962 e 1979).
Winnicott, D. (1982). A criança e o seu mundo. LTC Ed. (Obra original

publicada em 1964).
4ª SEÇÃO
RACISMO, VIOLÊNCIAS DE GÊNERO
E PERSPECTIVAS DECOLONIAIS
CAPÍTULO 12
VICISSITUDES DOS ESTUDOS
DECOLONIAIS E DE GÊNERO NA
CLÍNICA DE URGÊNCIA SUBJETIVA
Danielle Maia Cruz

Introdução
A Organização dos Estados Americanos (1994), na Convenção de Belém

do Pará, como ficou conhecida, define que a violência de gênero contra a
mulher consiste em “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que causa
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como privado”. Este fenômeno toma como alvo, historica-
mente, a condição feminina e provoca efeitos severos, tanto físicos quanto
psicológicos, em âmbito individual e coletivo.
A violência contra a mulher deixa marcas severas, levando ao sofrimento
psíquico com inúmeros desdobramentos nas trajetórias de todos os envolvi-
dos. Desde os anos 1990, a Organização Mundial de Saúde – OMS trata a
violência contra mulheres como uma questão de saúde pública, fazendo um
alerta para a implementação de políticas públicas de saúde que se detenham
a preveni-la (WHO, 2005).
No ano de 2020, no contexto da pandemia da covid-19, o Brasil regis-
trou, no primeiro semestre, o acréscimo de 1,9% no número de feminicídios
que no mesmo período de 2019, conforme aponta o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública – FBSP (2020b). De acordo com o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública de 2020 (FBSP, 2020a), houve no Brasil, se comparado ao
ano anterior, um aumento de 3,8% das ligações telefônicas para os serviços
de utilidade pública da polícia militar relatando casos de violência doméstica,
especialmente contra a mulher.
O Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade
– LAEpCUS, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade de Fortaleza – UNIFOR realizou, em parceria com o Núcleo
192
de Enfrentamento à Violência contra a Mulher – NUDEM da Defensoria

Pública do Estado do Ceará, a pesquisa-intervenção denominada ‘Violência
de Gênero no contexto da pandemia de covid-19: uma proposta de intervenção
em urgência subjetiva com mulheres em situação de vulnerabilidade e risco’,
no período de junho de 2020 a fevereiro de 2022, na cidade de Fortaleza,
Ceará, Brasil (Lopes et al., 2022). Um dos objetivos principais deste projeto
foi possibilitar um espaço de escuta do sofrimento psíquico de mulheres em
situação de violência doméstica, sem deixar de lado os aspectos psicosso-
ciais, uma vez que a violência de gênero se desdobra nos níveis individual,

relacional/familiar, comunitário, societal e estrutural.
Os atendimentos às mulheres foram realizados por psicanalistas e psicó-
logas orientadas pela psicanálise, especialmente no que tange à urgência subje-
tiva. Nesta clínica, o sofrimento psíquico é marcado pela irrupção da angústia
e de manifestações relacionadas ao ato, o que caracteriza um momento de
crise, expresso comumente por ansiedade, pânico, tentativas de suicídio, com-
pulsões, fenômenos corporais, dentre outras (Barros, 2012; Maron, 2012).
A clínica que se inicia com situações de urgência subjetiva exige o manejo
da angústia e a aposta na implicação do sujeito em seu sofrimento, para que
possa por ele se responsabilizar (Rodrigues et al., 2012).
O acento deste texto recai na discussão do sofrimento como sociopolítico
(Rosa, 2016), o que exige, do psicanalista, uma práxis questionadora do pro-
jeto moderno de colonização, da escravização e da xenofobia, por exemplo.
Não nos parece possível trabalhar com mulheres em situação de violência sem
considerar aspectos estruturais na constituição das subjetividades.
Fanon (2008) afirma que o sujeito da razão é o branco, então, o Ocidente
apresenta a ideia do branco como expressão da humanidade. Neste sentido,
o colonialismo reifica o negro, o corpo negro como objeto para o gozo do
outro. Nossa história do Brasil é construída a partir do sangue de indígenas,
africanos e miscigenados que não eram europeus.
Na esteira desta breve introdução, o propósito deste escrito é problema-
tizar questões sobre a violência de gênero, mostrando como os marcadores
sociais da diferença provocam formas de exclusão, subordinação e sofrimento
psíquico significativamente mais acentuados em mulheres negras, em situação
de pobreza e situadas em países periféricos, como o Brasil.
Comprometidas com interrogações sobre o quanto a clínica psicanalítica
e seu manejo carecem de contextualizações culturais, políticas e éticas que não
compactuam com o genocídio e epistemicídio, assumimos que a discussão de
um caso clínico de uma mulher em situação de violência tem a possibilidade de
refletir sobre as permanentes atualizações das marcas do projeto colonizador
europeu nas relações amorosas entre estrangeiros e mulheres brasileiras, nota-

damente nas negras e oriundas de situação de pobreza.
A discussão reforça que desigualdades estruturais devem ser pensadas
de forma interseccional, conforme apontam Collins (2017), Davis (2016)
e hooks (2014), uma vez que, de forma imbricada, marcadores como raça,
classe, gênero, sexo, nacionalidade, geração, entre outros, produzem distin-
tas formas de opressão que se manifestam em fenômenos como o racismo,
xenofobia e, também, com o feminicídio.
A construção do caso clínico de Malinche, nome fictício da paciente
atendida, primeiramente, no projeto de intervenção em urgência subjetiva

no contexto da pandemia de covid-19 e, depois, encaminhada a um processo
de atendimento psicoterápico institucional, constitui a matriz a partir da qual
determinantes sócio-históricos, políticos e econômicos aqui comparecem.
Como recorte metodológico, discussões clínicas, diagnósticas e de manejo
terapêutico não constituem objeto de análise neste texto, embora intrinseca-
mente constituintes da práxis psicanalítica e de seus efeitos para o sujeito.
Malinche: da posição de assistida à de implicada com suas escolhas
Malinche é o nome fictício atribuído a M. B. Malinche. Seu nome, em

espanhol, carrega o sentido de tradutora, traidora, nomeação que tem como
referência a amante do conquistador europeu Hernán Cortés na invasão e con-
quista do México. Neste sentido, Malinche diz, ao mesmo tempo, de alguém
que traduz, interpreta e trai, já que toma partido.
A construção do caso clínico de Malinche tem como pontos o amor como
tragédia, a relação complexa entre a cultura brasileira e europeia e uma mulher
que, entre imaginários distintos, assume uma tomada de posição.
Malinche tem 50 anos, é negra, natural de uma cidade do nordeste do
Brasil, oriunda de situação de pobreza. Reside atualmente em um bairro de
classe média baixa com a família em uma capital do país, com intervalos
de residência em outra capital. Tem nível superior completo em estilismo,
tendo estudado outros cursos de nível superior, porém não concluídos. Viveu
por quase uma década na Europa onde trabalhou como estilista e conheceu
o segundo ex-marido e também agressor. Ele trabalhava como profissional
liberal e, após um ano de namoro, sem quaisquer recursos financeiros, veio
para o Brasil morar com Malinche, onde viveram juntos durante três anos.
Malinche tem três filhas, frutos de seu primeiro casamento, que durou por
mais de dez anos, sendo interrompido pela morte do seu companheiro.
Atualmente, Malinche não trabalha devido ao intenso sofrimento psíquico
que desenvolveu ao longo do relacionamento com o agressor, ou seja, seu
194
segundo marido, e ao processo de divórcio litigioso por ela iniciado. Merece

menção que Malinche já foi encaminhada para atendimento hospitalar de
urgência e emergência devido a ingestão de alguns medicamentos, o que lhe
causou uma intoxicação exógena.
Malinche foi encaminhada para atendimento psicanalítico por intermédio
da Casa da Mulher Brasileira, após fazer denúncia de violência doméstica
na Delegacia de Defesa da Mulher e se submeter a exame de corpo delito.
A procura por estas instituições se deu após ela conseguir fugir de um cár-
cere privado, no contexto da pandemia, no qual era mantida pelo ex-marido

e agressor.
Malinche aguarda as audiências do divórcio com muita ansiedade e
com sintomas de fobia devido ao medo de se deparar “face a face” com o
perpetrador da violência doméstica. Deste modo, com receio de que possa
acontecer algo que comprometa ainda mais sua saúde física e mental, ela
solicita às autoridades competentes que as audiências, mesmo on-line, sejam
feitas em horários diferentes para que não ocorra nenhum tipo de contato
com o ex-marido.
Em decisão conjunta entre a assistida e a psicanalista, os seis primeiros
atendimentos ocorreram por chamada de áudio, com regularidade de dia e
horário. Ao todo, foram realizados oito atendimentos.
Ao longo de oito sessões, Malinche apresenta uma fala infantilizada,
entrecortada por momentos de choro, mas com um bom repertório de fala e
capacidade de elaboração simbólica das questões por ela apresentadas. Identifi-
ca-se um vínculo transferencial satisfatoriamente estabelecido, o que viabiliza
a urdidura de uma narrativa que entremeia aspectos culturais, econômicos,
jurídicos, de gênero e íntimos.
Na descrição de sua trama familiar, ela identifica um núcleo parental
que a elege como a filha rica, poderosa, empresária de sucesso, aquela que
começou a trabalhar aos catorze anos e, por mérito próprio, montou uma
empresa e viveu na Europa como estilista bem-sucedida. Acrescente-se a isto
a figura de um pai que se colocava como um ideal masculino de perfeição,
fortalecendo o ideal romântico da busca de um ‘homem ideal’ que protege a
mulher da dureza da vida e cuida dos negócios, aliado a uma mãe terrífica que
sempre cobrou muito dos filhos e nunca admitiu que eles cometessem algum
erro. Merece menção que toda a família de Malinche se deixou encantar pelo
europeu, um homem branco e gentil, e que se apresentou com muita retidão
de caráter diante dos parentes da esposa dos trópicos.
A paciente relata que, após um ano de convivência com o ex-marido,
começou a observar o comportamento dele no sentido de assumir o controle
da empresa através da demissão de pessoas da sua confiança, do controle do
fluxo das finanças, dos cheques e cartões de crédito e, por fim, veio o período
de isolamento social como medida de biossegurança para o bloqueio da trans-
missão do coronavírus.
Malinche passou a não ir mais para o local de trabalho e a diluir os con-
tatos com colegas, familiares e as próprias filhas. É digno de nota que este
isolamento se refletiu na escolha do espaço físico no qual o casal passou a
morar, ou seja, numa casa isolada, de muros altos, em uma rua que terminava
em uma reserva ecológica. Nesta fase, o ex-marido já controlava o celular de
Malinche e foi desativado o telefone residencial.
Ela ficou proibida de fazer contato com qualquer pessoa e passou a viver
em um quarto isolado, com janelas gradeadas pelo lado de fora e através das
quais recebia as suas refeições. Este momento de clausura é descrito como
absolutamente pavoroso, no qual ela é tomada por intensa angústia e vergo-
nha de gritar, de pedir ajuda, vergonha de não ter identificado que o marido
não a amava. Começou a vivenciar um sentimento de clivagem psíquica:
pensava como poderia a mulher de currículo brilhante ser reduzida a uma
pessoa aprisionada, sem condições de se libertar. Durante este período, eram
frequentes a assinatura de papéis de empréstimos, compra e venda de bens e
ameaças de morte caso o agressor fosse denunciado, assim como violências
simbólicas com fortes desqualificações sobre o Brasil enquanto nação, bem
como de mulheres com tal nacionalidade.
A fuga do cárcere privado se deu com a ajuda de trabalhadores da resi-
dência vizinha que ouviram os seus apelos, comoveram-se com a situação de
aprisionamento, removeram as grades da janela e colocaram uma escada por
meio da qual ela conseguiu se evadir. Malinche fugiu, simplesmente, com a
roupa do corpo, sem nenhum documento, e foi buscar ajuda na Delegacia da
Mulher. A partir deste momento, ficou três meses afônica, literalmente sem
fala, foi medicada por um psiquiatra e passou a morar com a mãe em uma
outra cidade do país durante um ano. Concomitantemente, em Malinche se
instala o medo das pessoas, dos lugares, crises de enxaqueca, dormência nas
pernas, sensação do estômago “congelado”, vivência de um medo paralisante.
Violências coloniais e relações amorosas: Malinche entre

traduções e traições
A narrativa de Malinche revela uma trama complexa que coloca em cena

várias perspectivas diretamente imbricadas entre si. Ao passar mal durante as
entrevistas do NUDEM, percebe que sua doença não se origina no corpo, mas
está relacionada com as várias vivências traumáticas que atravessou. De ordem
individual, a cada sessão, a assistida expressa sua aposta na possibilidade de
um deslocamento subjetivo.
196
No decorrer das sessões, Malinche sustenta que deseja resgatar a estilista

que há em si, a mulher criativa que é capaz de criar coisas novas, como a
tessitura de outras trajetórias de vida. Não por acaso, ela começa a acessar
os arquivos relativos ao processo de divórcio, no qual se encontram infor-
mações valiosas que podem ajudá-la na sua luta por justiça contra seu agres-
sor e também no deslocamento da posição de sujeito vitimizado, ou seja, a
possibilidade de construção de uma outra travessia em direção à posição de
sujeito do desejo. A mulher em situação de violência passa à posição de sujeito
implicado com seu desejo, o que rompe com o lugar de passividade, isto é,

a posição subjetiva de vítima. Contudo, o sujeito não se aparta sobremaneira
de sua condição estrutural.
A relação que culturalmente se estabelece entre o masculino e o feminino
e que pode adquirir inúmeras facetas é identificada, na narrativa de Malinche,
no desenho de uma relação violenta estabelecida entre um europeu e uma
mulher do dito “terceiro mundo”. Logo, as escolhas individuais e possibilida-
des de uma mulher em desafiar a ordem social, sobretudo mulheres negras, em
situação de pobreza e localizadas em países periféricos, precisam ser pensadas
em diálogo com o tempo histórico e os contextos estruturais que atravessam
sua vida. Sabe-se que a violência de gênero, em diferentes partes do mundo,
devido sua expressiva prevalência, se configura como um problema social
que urde por medidas jurídicas e implementação de políticas públicas que
abarque a complexidade do fenômeno.
O contexto avassalador de violência vivenciado por Malinche desvela
graves questões em torno do sofrimento psíquico, bem como complexas tra-
mas sobre a formação da sociedade brasileira, cujas marcas das violências do
projeto colonizador ainda se fazem presentes no laço social e no âmbito das
instituições do país. A este respeito, Dussel (1993) escreve que
o processo de dominação ou violência sobre outras culturas é ocultado,

pois o sentido emancipador se sustenta na ideia de superioridade e infe-
rioridade entre os povos, recorrendo à barbárie, à dominação e à ação de
vitimizar e culpar o Outro (p. 297)
Ainda que, desde os anos 1980, medidas políticas tenham sido adotadas
no país visando o enfrentamento da violência contra a mulher, somente nos
anos 2000, a partir de uma política, estruturada com base em duas leis, a
Lei 11.340 (Brasil, 2006) e a Lei 13.104 (Brasil, 2015), ações institucionais em
rede foram implementadas no Brasil com foco no acolhimento, atendimento e
encaminhamento institucional de mulheres em situação de violência. Um dos
exemplos destas medidas foi a inauguração, em diferentes cidades brasileiras,
da Casa da Mulher Brasileira. Em Fortaleza, este equipamento abriga o

NUDEM e, que encaminhou Malinche para o atendimento psicanalítico.
Apesar da conquista dos marcos legais supracitados, violências diversas
contra a mulher não cessam. No contexto da pandemia de covid-19, dadas
as exigências sanitárias de isolamento social, milhares de mulheres ficaram
com seus agressores em situação de convívio domiciliar obrigatório e exte-
nuante, experienciando diversas formas de violência doméstica, inclusive
o cárcere privado, conforme ocorreu com Malinche. Por motivos variados,
como impossibilidade de acesso às tecnologias, ausência de entendimento
sobre direitos assegurados às mulheres em situação de violência, suspensão

de atendimentos em serviços de proteção institucional, além de aspectos de
ordem psicológica, configurou-se um cenário, em diferentes localidades do
Brasil, sobretudo no momento inicial da pandemia, de redução de notificações
e aumento dos casos de feminicídio.
De acordo com a publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
sobre violência contra mulheres, estima-se que 2.451 mulheres foram assassi-
nadas desde o início da pandemia pela sua condição de mulher. O último rela-
tório do Atlas da Violência, de 2021, corrobora dados anteriores ao apontar que
o assassinato de mulheres negras, no Brasil, ocorre com mais frequência. Afir-
ma-se que 66% das mulheres assassinadas no Brasil são negras. Em 11 anos,
o número de mortes desta população aumentou cerca de 2% (FBSP, 2021).
Com o álibi da situação sanitária imposta em virtude da pandemia de
covid-19, é possível que a assistida Malinche, assim como milhares de outras
mulheres, tenha sido impedida pelo seu agressor de qualquer tipo de convívio
social, privando-a de liberdade e pleno vigor de sua existência.
Um ponto importante de análise que emerge na narrativa de Malinche
é o modus operandi dos sistemas de opressão/dominação nos quais muitas
mulheres, ainda hoje, encontram-se sujeitas, o que remete uma reflexão sobre
temas tantas vezes já tratados em pesquisas acadêmicas que abordam o encon-
tro do colonizador europeu com mulheres brasileiras negras e em situação de
pobreza, marcado muitas vezes por idealizações, violências e erotizações do
corpo feminino. Conforme mostra Schwarcz (2019), já na carta de Pero Vaz
de Caminha, escrita em 1500, o escrivão afirma que todos andavam nus, sem
roupa alguma e, “era a beleza e a falta de roupa dos indígenas, e sobretudo
das nativas, que logo atraíam os primeiros colonizadores” (p. 188-189).
As narrativas do estrangeiro colonizador sobre o encontro com o novo
continente no século XVI promoveram imaginários sobre o Brasil que circu-
laram pela Europa por meio de cartas, relatos de viagem, desenhos e gravuras.
Trata-se de imagens que evidenciam narrativas do feminino associadas ao
exótico, selvagem e erótico, ressaltando sempre a imagem de um corpo nu
198
sem pudor e em oferecimento ao invasor. Schwarcz (2019), ao interpretar a

gravura apresentada abaixo, aponta que a cena é construída no sentido em
que a indígena se coloca em uma posição que “estende um dos braços na
direção ao conquistador, como se desejasse a ‘invasão’ e o convidasse para
esta” (p. 189).
Figura 1 – Theodor Galle, America, c. 1580
Nota: Gravura baseada no desenho de Jan Van der Straet (Stradamus), Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
c. 1575. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
Como afirma hooks (2014), no contexto do projeto colonizador, o corpo

negro, feminino e colonizado é apresentado silenciado, como se fosse um
objeto, ou seja, destituído de subjetividades, cuja existência se reduz à satis-
fação do prazer do invasor. Isto pode ser percebido não somente nos relatos,
documentos e gravuras do século XVI dos viajantes estrangeiros sobre as
indígenas brasileiras.
Um rápido olhar no acervo das artes visuais do Brasil do século XIX mos-
tra a continuidade da dinâmica da violência e erotização dos corpos femininos
a partir de representações de mulheres negras escravizadas feitas por pintores
brancos europeus. A partir da produção destes primeiros conteúdos imagéticos
sobre a nação é possível apreender como vão sendo instauradas as relações de
poder, feições e dinâmicas das inúmeras violências que assolavam as mulheres
no contexto colonial escravocrata e que ainda se atualizam em vivências de
violência e apropriação do corpo e da vida de mulheres pela violência.
Com Adriana Varejão e sua arte, os efeitos da colonização sangrenta

se inscrevem no imaginário social brasileiro, pelo apagamento da alteridade
presente na ideia de raça, de inferioridade. Vale apreender a complexidade
das vicissitudes da colonização desta obra.
Figura 2 – Terra Incógnita. Comida, de Adriana Varejão (1992)

Decerto, o passado colonial brasileiro, marcado pela existência do sis-

tema escravocrata com vigência de mais três séculos no país, sedimentou
discursos, ideologias e estereótipos que ainda promovem formas de segre-
gação que afetam a população negra, promovendo sofrimento psíquico de
ordens diversas. Não se pode perder de vista, ainda, que a manutenção do
racismo está associada aos interesses da lógica do capitalismo e, neste sen-
tido, à exploração de classe. Sobre isso, a intelectual e feminista negra Lélia
Gonzalez (1982/2020), já nos anos 1980, apontava que a “discriminação de
200
sexo e raça faz das mulheres negras o seguimento mais explorado e oprimido
da sociedade brasileira, limitando suas possibilidades de ascensão” (p. 160).
Ainda pensando sobre as atualizações do racismo no Brasil, no final do
século XIX, com a chegada das instituições científicas no Brasil e a produção
de narrativas influenciadas por teorias evolucionistas, um forte sistema de
classificação racial categorizava o negro como um ser biologicamente inferior
(Schwarcz, 1993). Isto chama a atenção, conforme aponta Schwarcz (2019),
para as bases da cultura do estupro na sociedade brasileira, apontando que
vinculado ao projeto europeu colonial, mulheres negras escravizadas, além

de consideradas como produtoras de riqueza, isto é, utilizadas na agricultura,
casa-grande, nas cidades e mineração, eram também violentamente estupra-
das, sendo seus corpos utilizados para prazer e gozo do colonizador que aqui
chegava sem família e com o propósito de se apoderar do Novo Mundo, das
riquezas materiais e dos corpos das colonizadas.
Ora, o fenômeno da colonização violenta, evidenciado nas formas de
apropriação da terra, no genocídio dos povos indígenas, assim como nos
assédios e estupros de mulheres, sobretudo das negras escravizadas, não ficou
retido aos tempos coloniais. O passado nos legou uma marca indelével, de
forma que o trato nas relações sociais, fatos jornalísticos, pesquisas aca-
dêmicas e dados estatísticos evidenciam cotidianamente valores racistas e
sexistas herdados do passado colonial, escravocrata e regido pelos moldes
da família patriarcal.
Todo o contexto em tela, ganha força na narrativa de Malinche ao men-
cionar, no decorrer dos atendimentos, algumas das frases reiteradas de seu
agressor: “O Brasil é para ser explorado, a gente sabe que aqui a polícia e
a justiça podem ser compradas. Aqui só tem mulher tola, boba”. A narrativa
revela uma trama complexa sobre a formação da sociedade brasileira, atra-
vessada por impunidades, violências e banalização das atrocidades cometidas
pelo colonizador europeu contra mulheres, sobretudo as negras.
O processo de colonização do Brasil forjou um jogo perverso de desi-
gualdades, de forma que os valores da família patriarcal ganham força na
organização social, diante da ausência do estado. A centralidade adquirida pela
família patriarcal, confere-se, por um lado, notoriedade à figura do homem
branco provedor e colonizador, e, por outro lado, uma lógica de submissão das
mulheres, ainda que atos de revolta, fuga e subversão feminina tenham ocor-
rido naquele período histórico por iniciativas de mulheres negras escravizadas.
As violências marcantes ocorridas no encontro do colonizador europeu
do Velho Mundo com nações colonizadas do Sul global continuam sendo
atualizadas na contemporaneidade nas mais diversas formas de relação. A
relação amorosa de Malinche com um estrangeiro, perpassada por violências
extremas e de toda ordem, como cárcere privado, desqualificações subjetivas

e violação de sua identidade pessoal e profissional é um entre tantos outros
casos que ainda ocorrem na atualidade.
No campo jurídico e social, os legados da violência do processo de colo-
nização se acentuam quando se verifica a impunidade dos crimes do agressor
de Malinche, que estabeleceu com facilidade sua residência no Brasil, e ainda
transita por algumas cidades brasileiras onde vem estabelecendo moradia.
Trata-se de um tema que, no campo jurídico, vem sendo estudado recente-
mente, sendo o crime designado como ‘estelionato afetivo’, isto é, quando a
vítima tem seus bens patrimoniais assenhorados, notadamente por relações

extorsivas, em decorrência do afeto que o parceiro lhe destina de forma frau-
dulenta. O termo não está posto no Código Penal, mas vem sendo debatido
nos tribunais sob a argumentação do crime de estelionato, estabelecido no
artigo 171 (Gennarini, 2020).
Ainda que a situação vivenciada por Malinche tenha guarida do Poder
Judiciário, sendo cabível um processo judicial contra o agressor, um dos
aspectos que convoca a atenção é a fala reiterada do agressor sobre a impu-
nidade da justiça brasileira. Isto possivelmente se ancora nos diversos imagi-
nários historicamente construídos sobre o Brasil, assim como nos percursos
da conformação da administração pública brasileira, marcados por traços de
pessoalidade, autoritarismo, mandonismo, coronelismo, clientelismo e, por
longo período, com total ausência de garantias dos direitos das mulheres, vista
por séculos como um objeto ao dispor das ordens dos homens.
A fim de não permitir que esta previsão de seu agressor acerca da impu-
nidade do judiciário brasileiro se confirme, Malinche ajuíza contra ele não
um, mas cinco diferentes processos. Contudo, depara-se com a necessidade
de se autodefender em uma das audiências, visto que sua defensora pública,
recém designada, não teve oportunidade de ler o processo, estudar com afinco
o caso, orientá-la e até mesmo não permitir que o ex-marido lhe direcionasse
novas ofensas e provocações. Desta feita, percebe-se mais uma vez a natu-
ralização, invisibilidade e tolerância para com a violência contra a mulher,
haja vista que os discursos e práticas das instituições jurídicas do país ainda
se valem de um apassivamento diante do agressor, fracassando, portanto, no
seu dever de romper com a hegemonia do discurso patriarcal, colonizador
e misógino.
Os conflitos de ordem subjetiva de Malinche estão enredados em uma
trama que faz pensar sobre questões estruturais em que, por meio da elabora-
ção psíquica, ela faz emergir: “é como se a pessoa do currículo não fosse a
mesma que está aqui”. Assim como, “é difícil saber que é possível chorar”.
Afirma, ainda, com muita convicção: “eu e o Brasil nos equiparamos. Quem
202
ataca o Brasil ataca a mim!”. Estas falas de Malinche apontam as perpetrações

do passado colonizador em um país do terceiro mundo.
Sabe-se que no decorrer dos séculos, diversas formas de violência con-
tra a mulher, em consonância com o projeto colonizador da modernidade,
ganharam fôlego. Importante destacar que, no início do século XX, teorias
evolucionistas biologizantes sobre o negro que o tomavam como ser inferior
e animalizado foram questionadas. Porém, a construção da miscigenação
nos anos 1930, atualizou novamente violências pela narrativa do exotismo e
lascívia que emanam da mulata brasileira.

Na literatura, nas letras de canções musicais, nas artes plásticas e visuais,
e ainda nas festas populares como o Carnaval, a mulata se apresenta como
objeto de desejo. Conforme afirma Corrêa (1996), no curso do processo his-
tórico, os discursos de críticos literários, de historiadores, de médicos e ainda
de literatos serviram de “lastro para a construção dessa figura mítica, a mulata
é puro corpo, ou sexo, não ‘engendrado’ socialmente” (p. 40).
É com os discursos em torno da miscigenação nos anos 1930 que a
mulher negra se insere em outros jogos de classificação social: “da mulata
‘animal’, passando pela mulata ‘vegetal’, chegamos à mulata tal e qual, agora
visualmente bem definida e aparentemente aceita no imaginário social como
personagem com estatuto próprio” (Corrêa, 1996, p. 49).
A mulata brasileira como atualização da colonialidade de gênero
Construída como uma categoria ambígua, situada nas fronteiras, de forma

não fixada, nem lá, nem cá, a figura da mulata deflagra uma série de questões
importantes que põem em xeque a ideia de uma democracia racial, de forma
que o racismo e o sexismo se evidenciam nas desigualdades que estruturam as
relações entre brancos e não brancos, sobretudo quando se pensa nas mulheres,
notadamente as negras.
É ainda em torno da figura da mulata que se revela “a rejeição que essa
encarnação esconde: a rejeição à negra preta” (Corrêa, 1996, p. 50). É a
imagem de uma mulher mítica, encarnada na figura da mulata desejosa que
estampa as capas de revista, sobretudo no período do Carnaval, festa brasileira
com forte repercussão internacional.
Por sua vez, Maria Lugones (2008, 2014) destaca que a colonialidade de
gênero, configura a compreensão de gênero a partir de uma perspectiva dico-
tômica e hierárquica, de forma que tanto gênero quanto raça são informados
pela ótica dominante. Portanto, a difusão do imaginário da mulata brasileira
que se intensifica com os fluxos transnacionais promovidos pela globalização
não se descola do projeto colonizador.
Nos anos 1990, a circulação de pessoas entre diferentes fronteiras ganha

força, possibilitando o trânsito de brasileiros para diferentes continentes, como
ocorreu com Malinche ao partir para a Europa em busca do alargamento dos
seus horizontes. Cabe observar que fatores de extrema pobreza têm colaborado
para o deslocamento de milhares de meninas para outros continentes na busca
por outras formas de sobrevivência econômica, além do sonho idealizado do
casamento com o estrangeiro, historicamente encarnado na figura do homem
branco, provedor e civilizado.
Com a força da globalização, a circulação de textos midiáticos e campa-
nhas publicitárias que acentuam a erotização dos corpos femininos, sobretudo

da mulata brasileira, promoveram também a vinda para o Brasil de estrangeiros
em busca de apropriação, exploração e/ou compra de terras de comunidades
tradicionais, como quilombolas, além, como bem aponta Piscitelli (2008,
2013), do tráfico de meninas e mulheres e o turismo sexual, ocasionando
diversas violências.
Como se vê em todo o contexto em tela, são fortes as formas de opera-
cionalização da dominação que configuram relações amorosas heterossexuais
tendo a mulher na posição de opressão, estando a negra diante de todos os
desafios que questões interseccionais a colocam. Ao tratar das relações amoro-
sas de mulheres com homens, Fanon (2008) traz os impasses acirrados nestes
relacionamentos, uma vez que a força da dominação colonial entra em cena,
sobretudo quando se pensa a posição da mulher negra.
Gonzalez (1982/2020), ao falar sobre a mulher negra nas relações raciais
diz que ser negra e mulher no Brasil é “ser objeto de tripla discriminação,
uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e sexismo a colocam no
nível mais alto de opressão” (p. 58). Ela prossegue afirmando que a mulher
negra é vista pela sociedade brasileira a partir de dois tipos de qualificação
profissional, isto é, doméstica e mulata: “atualmente, o significante mulata
não nos remete apenas ao significado tradicionalmente aceito (filha de mes-
tiça de preto/a com branca/o), mas a um outro, mais moderno: ‘produto de
exportação’” (p. 59).
As reflexões de Gonzalez (1982/2020) tratam de um processo de aliena-
ção imposto pelo sistema que objetiva sexualmente o corpo de mulheres negras
e busca silenciar suas subjetividades. Ela nos aponta que as representações
racistas se atualizam permanentemente, como a ideia de “preta pra cozinhar,
mulata pra fornicar e branca pra casar” (p. 59).
Desta forma, os apontamentos assertivos de Gonzalez convocam uma
reflexão sobre os efeitos de um passado colonial que ainda atravessa as rela-
ções na sociedade brasileira, e provoca reverberações perversas nas mulheres,
sobretudo nas negras. Os efeitos do projeto colonizador e do passado colonial
204
escravocrata se acentuam ainda mais quando se pensa em relações amorosas

entre mulheres negras, pobres e periféricas com homens europeus, como
ocorreu com Malinche.
Isto tudo mostra que os modos de sujeição feminina precisam ser pensa-
dos em perspectiva interseccional. Estas questões foram levantadas por Angela
Davis (2016) e bell hooks (2016), autoras negras de suma importância da
terceira onda do movimento feminista, ao evidenciarem as intersecções, entre
raça, classe e gênero, além de outros marcadores de diferença para o entendi-
mento de uma prática comprometida com a luta antirracista. De igual modo,

Patrícia Collins e Sirma Bilge (2021) apontam a interseccionalidade como
uma ferramenta analítica importante para compreensão de problemas sociais.
Ocorre que se por um lado não se pode questionar o vívido sistema de
dominação operante quando se pensa as relações de gênero no Brasil, por outro
lado, também é crucial exaltar as contribuições de Gonzalez (1982/2020) ao
explicitar não somente as opressões vivenciadas pelas mulheres negras, mas
suas formas de resistência e, neste sentido, experiências que uma perspectiva
de análise colonial não abarca. Note-se as múltiplas trajetórias de vida de
mulheres negras, pobres e oriundas do Nordeste do Brasil invisibilizadas a
partir das narrativas do projeto colonizador.
(In)conclusões necessárias
O caso de Malinche mobiliza uma reflexão sobre várias questões da

sociedade brasileira. Note-se que ela não foi protegida por seu marido estran-
geiro, nem pelo pai provedor, ideia fortemente presente quando se pensa na
função masculina no cerne da família patriarcal. Como diversas mulheres
em situação de pobreza, na região Nordeste do Brasil, a trajetória de vida de
Malinche subverte a lógica da mulher passiva, protegida pela família cujo
destino se reduz aos cuidados do marido, do lar e dos filhos.
A exemplo de outras mulheres negras, ainda que seja em minoria, ela
conquistou um diploma de curso de ensino superior e se inseriu no mundo do
trabalho, o que subverte a lógica colonial que confere centralidade à figura
masculina. Decerto, em alguma medida, esta perspectiva colonial se repõe,
uma vez que Malinche só ocupa a posição de ‘heroína’ para sua família quando
retorna da Europa casada com o europeu e com seus próprios recursos pro-
venientes de sua força de trabalho.
Conforme aponta Quijano (1992), tomar o eurocentrismo como pers-
pectiva de conhecimento implica uma forma de conhecer a realidade em
uma longa tradição científica. Os efeitos disso são, entre outras coisas, a
disseminação de um saber científico que silencia e oculta as mais diversas
experiências de vida de mulheres negras, conferindo-lhes sempre o lugar da

opressão e não da resistência. Daí a importância em operacionalizar um saber
acadêmico que subverta esta lógica.
Nesta perspectiva, Gonzalez (1982/2020) e Carneiro (2003), feministas
negras brasileiras, chamam a atenção para o imbricamento entre racismo e
sexismo que na reprodução da lógica racista e sexista se faz presente nas rela-
ções amorosas, nas produções acadêmicas, nas empregabilidades e escolhas
profissionais, dentre tantos outros aspectos.
Malinche está sendo atendida em um serviço público de acompanha-
mento psicoterápico e, para tanto, sustentou subjetivamente que do lugar de

queixosa das agruras de sua vida, um movimento de reposicionamento frente à
sua história seria necessário para que se implicasse nas suas escolhas futuras.
206
REFERÊNCIAS
Barros, R. R. (2012). Urgência, um novo tempo. In G. Maron & P. Borsoi
(orgs.), Urgência sem emergência? (pp. 65-87). Subversos.
Brasil. (2006). Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da

União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/
l11340.htm

Brasil. (2015). Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Diário Oficial da União.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm
Carneiro, S. (2003). Mulheres em movimento. Estudos Avançados, 17(49),

117-132.
Collins, P. H. (2017). Se perdeu na tradução? Interseccionalidade e Política

Emancipatória. Parágrafo, 5(1), 6-17.
Collins, P. H., & Bilge, S. (2021). Interseccionalidade. Boitempo.
Corrêa, M. (1996). A invenção da mulata. Cadernos Pagu, 6/7, 35-50.
Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. Boitempo.
Dussel, H. (1993). 1492: O encobrimento do outro – a origem do mito da

modernidade/Conferências de Frankfurt. Vozes.
Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2020a). Anuário Brasileiro de

Segurança Pública de 2020. https://forumseguranca.org.br/wp-content/
uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2020b). Nota técnica: Violência

doméstica durante a pandemia de covid-19. https://forumseguranca.org.br/
wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-ed03-v2.pdf
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2021). Atlas da Violência/2021.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. https://www.ipea.gov.br/atlasvio-
lencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf
Gennarini, J. C. (2020). O Estelionato sentimental, amoroso ou afetivo: ilí-

cito penal ou apenas ilícito civil? Revista de Direito Penal e Processo Penal,
2(2), 57-65. https://revistas.anchieta.br/index.php/DireitoPenalProcessoPenal/
article/view/1737/1543
Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar. (Obra

original publicada em 1982).
hooks, b. (2014). E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo.

Rosa dos tempos.
Lopes, J. P., Tomaz, J. M. T., Cruz, D. M., Teixeira, L. C., Rocha, B. E. A.

B., & Danziato, L. J. B. (2022). Atendimentos psicanalíticos em urgência
subjetiva: mulheres em situação de violência doméstica em tempos de covid-
19. Cadernos ESP, 16(1), 66-74. https://doi.org/10.54620/cadesp.v16i1.578
Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, 9, 73-101. https://

www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf
Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas,

22(3), 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
Maron, G. (2012). Urgência sem emergência? In G. Maron & P. Borsoi (orgs.),

Urgência sem emergência? (pp. 14-28). Subversos.
Organização dos Estados Americanos (1994). Convenção Interamericana

para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher/Convenção de
Belém do Pará. http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm
Piscitelli, A. (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e expe-

riências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, 11(2), 263-274.
Piscitelli, A. (2013). Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do

sexo. Editora da UERJ/CLAM.
Quijano, A. (1992). Colonialidad y modernidad-racionalidad. Perú Indígena,

13(29), 11-20.
Rodrigues, J. A, Dassoler, V. A., & Cherer, E. Q. (2012). A aplicabilidade do

dispositivo clínico-institucional urgência subjetiva no tratamento da toxico-
mania. Mental, 10(18), 69-88.
208
Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da

dimensão sócio-política do sofrimento. Escuta/Fapesp.
Schwarcz, L. M. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e

questão racial no Brasil. Cia das Letras.
Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. Companhia

das Letras.

World Health Organization [WHO]. (2005). WHO multi-country study on
women’s health and domestic violence against women: initial results on pre-
valence, health outcomes, and women’s responses. World Health Organization.
https://www.who.int/reproductivehealth/publications/violence/24159358X/en/
CAPÍTULO 13
O SUJEITO DAS RELAÇÕES
ABUSIVAS E SUAS SUJEIÇÕES
Introdução
Entre os anos de 2017 e 2019, o estado do Ceará registrou expressivo

aumento do número de casos de feminicídio e de violência contra a mulher
na capital e no interior, de acordo com os dados do Instituto Maria da Penha
(2021). No entanto, a partir de 2020, com o início da pandemia, os gráficos
curiosamente indicam acentuada queda no número de registros, apontando
para o grave problema das subnotificações e/ou da invisibilidade dos casos
de feminicídio, registrados como homicídios comuns. É nesse cenário de
agravamento e de silenciamento da morte de mulheres – em sua maioria
negras, periféricas e de baixa escolaridade – que desejamos retomar o tema
das relações abusivas, em uma perspectiva clínica e política, tensionando a
articulação da psicanálise com os estudos feministas e decoloniais.
Diante de estatísticas alarmantes, há sempre a suspeita de que abuso fun-
cione como uma espécie de sinalizador, primeiro indício, anunciando o risco
que algumas mulheres correriam no convívio com seus parceiros. E justo no
ponto em que as políticas públicas não acolhem as sinalizações – diante da
falta de dados e de planos governamentais –, crescem as reações difusas de
grupos de mulheres (organizadas ou não em movimentos sociais) que se utili-
zam das redes e de outros meios de comunicação para partilhar suas histórias
e experiências. Numa rápida pesquisa pelo Facebook e pelo Instagram, não
é difícil encontrar ‘manuais’ com o intuito de ajudar mulheres a se protege-
rem e a se reconhecerem como alvo de uma situação de abuso: seu parceiro
reclama da sua roupa? Não te deixa sair com os amigos? Desqualifica tudo
o que você pensa/diz? Te chama de gorda, louca, feia e te faz acreditar que
é o único capaz de te querer?, são algumas das perguntas que circulam em
páginas dedicadas ao assunto.
O tema do abuso assim se populariza, gerando uma onda de denúncias
que estarrece os profissionais que acolhem os sujeitos da/à violência: será
mesmo que toda situação identificada como abuso implica em agressão e/ou
210
morte? A recíproca dessa pergunta não parece ser verdadeira, e os casos que
terminam mal muitas vezes já envolviam abusos contínuos e frequentes, gri-
tos e humilhações públicas, que só depois vêm à tona, nos relatos de amigos
e familiares. Manter em perspectiva esse contexto, de uma violência real
voltada às mulheres, torna-se necessário para introduzir questões delicadas,
que nortearão o desenvolvimento do nosso artigo: será que as mulheres são
sempre as vítimas das relações abusivas? E os homens? Seriam eles sempre
os abusadores? E quais seriam as relações entre o abuso e a racialização dos
corpos de homens e mulheres?

A formulação dessas e de outras perguntas requerem o cuidado de não
desqualificar violências já existentes, vulnerabilizando ainda mais aqueles
que já se encontram em posição de vulnerabilidade. Que mulheres morram,
que elas sejam em sua grande maioria racializadas e vitimadas por parceiros
homens, isso é um dado da realidade, incontestável. Mas há aí um outro pro-
blema, de ordem discursiva, relacionada a uma explosão de narrativas que
parecem associar diretamente a posição feminina com o lugar da vítima, da
passividade, daquela que escolhe suportar a violência, de preferência calada,
sem se queixar. E, no outro polo, temos o homem posicionado como o agente
da agressão, ativo, viril, o que faz sofrer, e que jamais sofre.
É nesse ponto que o tema das relações abusivas interroga a fixidez das
relações de gênero na nossa cultura, e nos fazem pensar sobre como essa
trama binária articula categorias que não são da mesma ordem: mulher-ví-
tima-passiva de um lado, e homem-agressor-ativo de outro. Equação que
se complexifica quando adicionamos os marcadores raciais, que associam
a mulher negra à submissão irrestrita ao sexo, “um corpo que fornece
prazer e é superexplorado sexualmente” (Gonzalez, 1979/2020, p. 170), e
o homem negro a noções de uma agressividade e virilidade pré-humanas,
“o Negro é um ‘homem’ que nem é verdadeiramente um entre nós nem é
como nós. Se o homem se opõe à animalidade, este não é o seu caso, pois
conserva, ainda que de modo ambíguo, a possibilidade animal” (Mbembe,
2014, p. 63).
Há, aqui, outro problema adicional: o debate sobre as relações abusivas
ainda está muito restrito ao contexto da matriz heterossexual, sem problema-
tizar as disputas de poder e as situações de violência entre casais lésbicos,
gays, trans, bissexuais etc. Como ficaria, então, a ideia de que a feminilidade
se associa à posição da vítima-passiva quando a violência envolve duas mulhe-
res? Será que uma delas se identificaria com a equivalência viril-agressivo
na relação com sua parceira? Nesse caso, apenas os homens ou as mulheres
virilizadas seriam violentos/as e agressivos/as? E as pessoas trans? Como elas
se localizam em meio às repartições binárias do tipo homem/mulher, culpado/
vítima, abusado/abusador?
Desejamos, portanto, interrogar os sujeitos das relações abusivas, no

duplo sentido dado à palavra: o sujeito como o agente da ação, mas também
o sujeito como aquele que ‘se assujeita’, que sofre a sujeição. Essas duas
acepções não são contraditórias: é bem possível constituir-se como um sujeito,
no sentido ativo da palavra, e ao mesmo tempo ‘estar assujeitado’, em uma
perspectiva passiva, de subordinação. No primeiro tópico, percorremos a
duplicidade do estatuto do sujeito no eixo das relações heterossexuais, temati-
zando as sujeições das mulheres nas parcerias com os homens, no enlace entre
o amor e o poder. No segundo, avançaremos na discussão sobre violência e
amor a partir das questões raciais. Por fim, traremos algumas indicações clí-
nicas a partir da psicanálise, que tocam na direção do tratamento dos sujeitos
e de suas sujeições.
Uma mulher sujeita ao amor de um homem
A sujeição das mulheres nas parcerias amorosas com homens é tema cor-
rente na tradição teórica de autoras feministas, as quais, não sem fundamento,
fizeram a denúncia da lógica de dominação que atravessa o ideal romântico/
burguês, a fixar significações do feminino em torno das funções maternas e
matrimoniais. No clássico livro O Segundo Sexo, Beauvoir (2016) avança na
problematização do imaginário de uma identidade feminina forjada no campo
do fazer, do cuidar, do maternar – e do quanto culturalmente as mulheres se
acham sujeitas a caírem nessas armadilhas identitárias. De outro modo, ao
romper com essa lógica, é a própria feminilidade que se acha em questão,
como se elas fossem lidas enquanto menos mulheres, menos femininas, menos
amorosas. Assim, Beauvoir (2016, p. 186 e 187), ao falar da mulher casada,
afirma que:
ambos os sexos são necessários um ao outro, mas essa necessidade nunca

engendrou nenhuma reciprocidade; nunca as mulheres construíram uma
casta estabelecendo permutas e contratos em pé de igualdade com a casta
masculina. [...] O encargo que a sociedade impõe à mulher é considerado
como um serviço prestado ao esposo.
Não é difícil constatar, portanto, uma teia enunciativa que articula vio-
lência e gênero nas relações heterossexuais, historicamente traçada na cul-
tura ocidental e, nessa perspectiva, como bem aponta bell hooks (2021), “a
masculinidade patriarcal exige que meninos e homens não só se vejam como
mais poderosos e superiores às mulheres, mas que façam o que for preciso
para manter sua posição de controle.” (p. 71). Sob tal prisma, não haveria a
212
menor possibilidade de estabelecimento de parcerias entre homens e mulheres

higienizadas do fator-poder, a expressar-se em um amplo leque de situações
de dominação:
Muitas pessoas acreditam que homens podem dominar mulheres e crian-

ças, e ainda assim serem amorosos. [...] Fale com qualquer grupo de
mulheres a respeito de seus relacionamentos com homens, independen-
temente de raça ou classe, e você ouvirá histórias sobre desejo de poder,
sobre o modo como homens se valem da mentira, o que inclui omitir

informações, como forma de controlar e subordinar (hooks, 2020, p. 71).
Esse quadro de alienação do sujeito-mulher ao parceiro masculino à

primeira vista reflete certa posição de desalento das mais variadas teoriza-
ções feministas diante do amor heterossexual, o qual, no contexto da matriz
heteronormativa, inevitavelmente carregaria uma conotação abusiva, pelo
atravessamento das relações de poder entre os sexos. Não à toa, o feminismo
lésbico de Monique Wittig (2019) propõe a “recusa em se tornar heterosse-
xual” (p. 86) como um ato revolucionário por excelência, o único que teria
efeitos reais na desmontagem da dominação masculina e patriarcal: “para uma
lésbica isso vai mais além do que a recusa do papel de “mulher”. É a recusa
ao poder econômico, ideológico e político do homem (Wittig, 2019, p. 86).
Sem entrar na questão do quanto as parcerias homossexuais também
podem reproduzir a lógica heteronormativa, reiterando as dissimetrias de
posições de poder, as estratégias de problematização das relações abusivas
centradas na bipartição dominado/dominador parecem deixar escapar dois
pontos importantes: 1. o caráter vital da demanda de amor para todo e qual-
quer ser falante, que os coloca de partida em uma relação de dependência
aos cuidados do Outro; 2. a subordinação constitutiva do desejo à coação do
significante, no caso, ao significante fálico, em suas consequências para a
normativa social dos sexos.
Sobre esses pontos, que desenvolveremos a seguir, restam obscuras as
implicações políticas da psicanálise de tradição freudo-lacaniana no atual
debate sobre gênero e violência: ou bem nossa tradição teórica promove um
desvelamento da problemática subordinação da posição feminina ao poder
patriarcal ou bem ela a reduplica, deixando as mulheres sem saída quanto aos
destinos fálicos de suas sexualidades. Como bem indicou Gayle Rubin (2017):
[...] desejar salvar a psicanálise de suas próprias motivações de repressão

não se faz em proveito da reputação de Freud. [...] (a psicanálise é) uma
teoria da sexualidade na sociedade humana. E o mais importante é que a
psicanálise oferece uma descrição dos mecanismos pelos quais os sexos
são divididos e modificados, de como as crianças andrógenas, bissexuais,

são transformadas em meninos e meninas. A psicanálise é uma teoria
feminista que não chegou a se configurar plenamente como tal (p. 36)
Vale lembrar, portanto, que não há nada na teoria psicanalítica em-si que
nos proteja de interpretações machistas e preconceituosas diante das queixas
de mulheres em situações de violência: caberia, então, a cada analista a tomada
de posições singulares, politicamente implicadas, em releituras de Freud e de
Lacan condizentes com a escuta das subjetividades do nosso tempo. É por
essa via que retomamos a articulação entre amor, poder e desejo sob o eixo
da constituição do sujeito no campo do Outro, lá onde a escuta analítica teria
algo a contribuir aos enfrentamentos políticos dos movimentos feministas.
Se a articulação entre amor e poder se reedita historicamente sob a
égide das normativas coloniais e patriarcais, podemos indicar, com Freud
(1933/1996), o quanto a demanda de amor se apresenta primordial e estrutu-
ralmente enlaçada ao poder, mais especificamente, à potência do Outro, e isso
para todo e qualquer ser humano. A situação irremediável de desamparo na
qual somos primordialmente lançados no mundo coloca a todos, sem exceção,
em uma relação de dependência aos cuidados do Outro, ao seu poder de aten-
der ou não aos apelos da criança, questão de vida e de morte. Na constituição
da subjetividade, portanto, não há como escapar à experiência de assujeita-
mento aos caprichos de um Outro onipotente, e às expectativas de, por ele,
fazer-se amar, para melhor ser acolhido em um mundo humanizante. Para
Freud (idem), no ingresso à sociedade, o amor assim apresenta sua faceta civi-
lizatória, em que o horizonte de sua perda torna-se a origem dos sentimentos
morais e éticos, contribuindo à educação dos que recém chegam ao mundo:
A criança é educada no sentido de conhecer os seus deveres sociais

mediante um sistema de recompensas carinhosas e punições; é-lhes ensi-
nado que sua segurança na vida depende que seus pais a amem e de que
eles possam acreditar que a criança os amem (Freud, 1933/1996, p. 160).
Assim, a relação entre amor e violência, freudianamente falando, mani-

festa-se pela via da negatividade: é no limiar da perda do amor que a violên-
cia poderá emergir, conforme corroboram as fantasias de espancamento no
clássico artigo “bate-se numa criança” (1919/1996): “depressa se aprende
que ser espancado, mesmo que não doa muito, significa uma privação de
amor e uma humilhação” (p. 202). Mas o que a escuta de mulheres abusadas/
violentadas nos apresenta é uma nuance um tanto quanto diferente do caráter
punitivo/violento da perda de amor: como poderia o amor, longe de conter
214
e de apaziguar a pulsão de destrutividade, tornar-se, ele próprio, um índice

que a reedita, alimentando o circuito da violência? Para algumas mulheres,
não são raras as interpretações da violência conjugal como um signo – não
da ausência – mas da presença do amor, seja em ato – nas manifestações de
ciúmes, por exemplo – seja em expectativa - na promessa do amor futuro, o
qual sucederá a explosão da violência. Em todos esses casos, há de se inves-
tigar a vertente do ‘amor à sujeição’, que nem de longe minimiza a existência
(preocupante) da violência real, mas que reorienta o manejo da transferência
em nossa escuta.

Como bem indicou Butler (2020), o amor à sujeição é uma face impor-
tante do exercício do poder, o qual, em sua dimensão produtiva, constitui o
sujeito, destinado a emergir nas dobras psíquicas da experiência de sujeição.
Butler, inspirada pelas leituras foucaultianas, adota a concepção de um poder
externo, “imposto ao sujeito” (p. 11), mas “que o pressiona à subordinação,
assume uma forma psíquica que constitui a identidade pessoal do sujeito”
(p. 11). O sujeito carrega, portanto, em sua própria constituição, uma posição
ambivalente, de duplicidade, ativo e passivo ao mesmo tempo, assujeitado
ao Outro, porém capaz de dar um passo adicional, de dele vir a separar-se.
No entanto, o traço de sujeição, que se imprime precoce e universal-
mente aos falantes em razão do desamparo estrutural, não é ultrapassável,
persistindo em maior ou menor grau para uns e outros. Persistência explícita
que se expressa sob a fórmula “eu prefiro existir na subordinação do que não
existir” (Butler, 2017, p. 16), “em que o risco de morte também é possível”
(p. 16). Nesse ponto, uma questão resta em suspenso: se o assujeitamento é
uma condição estruturante, por qual razão seriam as mulheres mais suscetíveis
a essa modalidade de amor que violentamente confere um sentido ao ser?
Certa tradição de analistas optou por responder a essa pergunta sob o
ponto de vista – não do sujeito –, mas do objeto, associando a posição femi-
nina ao masoquismo, conforme bem indica Soler (2005): “[...] os psicanalis-
tas com dificuldade de captar a essência da feminilidade forjaram a tese do
masoquismo feminino. Como se lhes parecesse inconcebível que um sujeito
pudesse oferecer-se como objeto [...] sem ser masoquista” (p. 58).
Se, com as contribuições lacanianas sobre a sexualidade feminina, a
máxima do senso comum ‘elas gostam de apanhar’ foi definitivamente aban-
donada, a perspectiva de que a legítima saída à feminilidade implica em con-
sentir à fantasia masculina, fazendo-se de objeto, ainda permanece como uma
importante chave interpretativa: nas palavras do próprio Lacan (1974/2003),
“A mulher não ex-siste. Mas o fato de não ex-sistir não impede que se faça
dela o objeto do desejo. Muito pelo contrário, daí o resultado” (p. 536).
Esses extratos demonstram a produção do desejo feminino por uma via
coercitiva, na subordinação à ordem do discurso, no que ela se deixa reger
pela normativa fálica. Nessa perspectiva, o falo, enquanto significante da

diferença sexual, incide violenta e inevitavelmente sobre o sujeito-mulher,
subordinando-as à fantasia masculina que faz, delas, um objeto fetiche para
seus parceiros. Mas, se a significação fálica produz o desejo feminino ao preço
de uma violação de suas posições de sujeito, vale lembrar que essa operação
deixa um resto, e aqui “convém indagar se a mediação fálica drena tudo o
que se pode manifestar de pulsional na mulher” (Lacan, 1960/1998, p. 739).
Na vertente do sujeito-mulher, dessa alteridade radical, não-toda subme-
tida à ordem fálica do discurso, é que saídas singulares ao circuito amor-vio-
lência podem ser vislumbradas. Mas cabe ainda acrescentar os marcadores

raciais à equação otimista das saídas ‘não-todas’ fálicas, interseccionando
gênero e raça no contexto das relações abusivas. Ponto que redimensiona a
articulação amor/poder no eixo da matriz heteronormativa.
Racialidade e sujeição: (im)possibilidades no amor
Permitir o debate das querelas do amor e das violências tem sentido para
além dos antagonismos (amor-ódio, cuidado-violência etc.), pois possibilita
a abertura de espaços para o questionamento de noções rígidas e opresso-
ras constituintes de uma estrutura social. Nessa perspectiva, apresentamos a
seguinte interpelação: em uma sociedade de base racista e sexista, pode-se
afirmar que o amor supera a reprodução da violência?
Alain Badiou em seu diálogo com Nicolas Truong, registrado no livro
Elogio ao amor (2013), propõe o amor enquanto uma construção, que se inicia
com o encontro de diferenças e idiossincrasias, e que se torna um rearranjo
de Dois pelo duro desejo de durar. Ele postula que pelo amor se tratar, fun-
damentalmente, de uma disjunção é que ele não pode ser uno, contrariando
a perspectiva da existência de uma unidade ou fusão nas relações amorosas,
que como ele bem aponta, “não raro leva à morte” (p. 25).
Dos desdobramentos desta proposição, pode-se dizer que a potenciali-
dade desta está justamente em pautar a viabilidade de uma reconstrução ou
uma reinvenção do amor, como o próprio Badiou (2013) vai pontuar, já que
este se trata de uma construção inventiva, e pode-se pensar, de caráter social
e política. Outrossim, no que diz respeito à dimensão do encontro, há de se
considerar uma parcela destrutiva do outro, do desencaixe e, por conseguinte,
de disputa e de manutenção de uma individualidade, que se parece conjuntural
do encontro. Por esta lógica, se questiona: qual o limite entre consonância
das diferenças, no que concerne a raça, e reproduções de violências, no esta-
belecimento das relações amorosas?
Seguindo esta linha, entende-se as contribuições de Frantz Fanon (2008),
em relação às questões raciais, suscitadas no contexto da Martinica, enquanto
216
alicerce para pensar nesse limite entre amor-encontro e violências nas rela-
ções inter-raciais. Ao relatar a trama da mulher negra martinicana que deseja
e espera o amor de um homem branco europeu, ele indica a impossibilidade
de estabelecimento de uma relação de amor autêntica, justificando-a no senti-
mento de inferioridade da pessoa negra, fruto da colonização e de um processo
de estigmatização e alienação da individualidade do povo preto. Fanon (2008)
pontua então que o que está sendo almejado nessa situação de amor-encontro
entre a mulher negra e o homem branco, na realidade, é a branquitude, tor-
nar-se branca para ser admitida no mundo branco, é a “tentativa de aquisição

por interiorização de valores originalmente proibidos” (p. 66).
Para além disso, faz-se válido enunciar que durante todo o segundo capí-
tulo de Pele negra, máscaras brancas (2008) nos é explicitado a existência
de relações amorosas e sexuais entre essas mulheres e os homens brancos e
que no entanto, não são elas a assumirem o título de companheira e de amor
desses homens, introduzindo de forma tímida uma queixa que envolve a
opressão interseccionada em gênero e raça. Tanto que Fanon (2008) afirma:
No dia em que o branco declarou seu amor à mulata, algo de extraordi-

nário deve ter acontecido. Houve reconhecimento, integração em uma
coletividade branca que parecia hermética. A menos-valia psicológica,
este sentimento de diminuição, e seu corolário, a impossibilidade de ter
acesso à limpidez, desapareceram totalmente (p. 65)
Do mesmo modo, ao retratar a história de amor entre um homem negro,

Jean Veneuse, e uma mulher branca, Andrée Marielle, Fanon (2008), apesar
de reiterar a assunção de uma posição neurótica por Veneuse como condição
para a não materialização da relação, durante toda narrativa são resgatadas
falas de pessoas em comum à história, que indicam uma violência racial, de
apagamento da história e da raça de Veneuse como condicionante para a rea-
lização do amor: não se pode falar que ele é um homem negro, afinal depois
dos anos de estudos e moradia na França, ele é um europeu, ele pensa como
um e, portanto, é branco.
Categoricamente, as discussões de Frantz Fanon (2008) nos demonstram
como se reproduzem opressões de gênero e, especialmente, de raça nas formas
de relacionamentos amorosos, ainda que através do par homem-mulher. Ele
aposta na marca da impossibilidade de relações amorosas que perpassam por
violências coloniais, considerando que o que aparece com nome de amor é o
ganho da patente da branquitude, uma relação de poder que propõe o apaga-
mento da subjetividade negra.
Encaminhando a discussão para um contexto brasileiro, no qual paira
o mito da democracia racial (Gonzalez, 1983/2020), entendemos que alguns
dados são fortes indicadores de como, nas relações amorosas, violências de
gênero e de raça se dão em nosso país. No censo de 2010, segundo fontes

da Empresa Brasil de Comunicação (2012), 70% dos casamentos ocorreram
entre pessoas da mesma cor, e as mulheres negras representavam os 7% da
população brasileira, que menos se casavam. Em contrapartida, em material
do Instituto de Pesquisa Economia Aplicada (2020), foi apontado que as
mulheres negras jovens são o perfil de mulheres mais vitimadas por ameaças
ou agressão, por pessoas conhecidas, no período de 2006 a 2009.
Analisando o assustador preconizado nas informações acima, entende-
mos que estes precisam ser lidos como indicadores da existência, no Brasil,
de corpos mais passíveis de serem amados e corpos mais violentados do que

outros. Nesta perspectiva, como já alertado por Gonzalez (1983/2020), as
mulheres negras se constituem como ponto nodal da opressão de sexo e raça,
e no que diz respeito ao amor, esta condição não é distinta. Prova disso é o
ditado popular “negra pra cozinhar, mulata pra fornicar e branca pra casar”
(Gonzalez, 1982/2020, p. 59) que ela já reivindicava como indicativo da
posição em que a mulher negra brasileira está posta, desejada enquanto objeto
sexual, e não como sujeito passível de ser amada.
Seguindo a discussão sobre a objetificação da mulher negra e de sua
sexualidade, com o auxílio de Butler (2019) em sua análise do romance Pas-
sing de Nella Larsen, duas questões são levantadas: a primeira adverte sobre
o silenciamento e o não reconhecimento da negritude da mulher negra que ao
se relacionar amorosamente com o homem branco precisa performar uma não
marcação, uma vez que “corpos sem marcação constituem a moeda corrente
da branquitude normativa” (p. 286); e a segunda, diz sobre o sustentáculo da
branquitude se constituir, além da manutenção de uma ambiguidade racial
(marcado e não marcado), da fetichização das mulheres negras, de modo que
nas relações amorosas inter-raciais, como é o caso do romance de Larsen, a
masculinidade branca “procura garantir sua branquitude, produzindo mulhe-
res negras como objetos de desejo necessários e impossíveis, como o fetiche
em relação ao qual sua própria branquitude é ansiosa e persistentemente
garantida” (p. 291).
Por fim, ao conceber o amor a partir de marcadores interseccionados em
gênero e em raça, resulta-se na acepção de relacionamentos mais ou menos
vulneráveis a violações de direitos de existência. Similarmente, ainda que
Fanon (2020) descredibilize uma relação genuína de amor onde se tem opres-
sões, não podemos negar que esta é uma realidade vigente e, estando ela
patente, temos que estar atentos às violências sistêmicas, frutos do processo/
projeto colonial, que perpassam as relações amorosas, em suas diversas confi-
gurações, não de modo a naturalizar tais situações, mas sim, ao estamos adver-
tidos de tal perpetração, buscar desmantelar definições e práticas opressoras.
Do mesmo modo, nos aparece enquanto indicação, a perspectiva de
uma escuta dessas mulheres, como garantia do direito delas de existirem e
218
de se dizerem como quiserem. Estas que, por vezes, ao serem englobadas na

categoria monolítica de mulher e, por outras, em condição indiferenciada de
subalternidade (Spivak, 2010), ficam irredutíveis ao campo da figura da mulher
negra sexualizada e/ou não amada. A escuta aparece como indicativo de que
essa mulher possa falar, mesmo que essa equação não seja simples como
parece, incorrendo ao perigo de fazê-la sujeito do assujeitamento (Spivak,
2010), nossa aposta é de reinvenção e não silenciamento.
Conclusões: pontuações clínicas

Quem quer que se disponha a acolher a queixa das relações abusivas
cedo ou tarde se depara com o problema do porquê alguns/as demoram tanto
para romper com suas parcerias, tamanha a dificuldade de quebrar o ciclo
repetitivo – e perigoso – da violência.
Nesses casos, a experiência ensina que não há nada mais sem efeito do
que a tentativa de convencer a vítima a deixar o agressor. Mais ainda: alguns
sujeitos não apenas se prendem à situação de abuso como inacreditavelmente
se sentem ‘culpados’ pela agressão que eles próprios sofrem (!), nas mais
variadas manifestações de culpa. Há quem se cale diante do cotidiano de
insultos, desistindo de contra-argumentar, de se defender, mesmo coberto/a
de razão. Outros entram em uma espécie de autovigilância contínua, procu-
ram incessantemente aquilo que ‘fizeram de errado’, o que contribuiu para
despertar a fúria do parceiro (para onde eu estava olhando? o que tinha a
minha roupa?). E há também aqueles que cortam os laços, deixam de encontrar
os amigos e a família, criam uma profunda dependência com o parceiro/a,
fechando-se no inferno das cenas de violência/humilhação.
Esses exemplos nos parecem indicar uma perspectiva bem diferente
daquela comumente veiculada, a de que há um agente do abuso, fixo, um
opressor externo que encarna o poder em si. Na contrapartida, concordamos
com Butler (2017) ao afirmar que o poder não está fora dos sujeitos, ele se
ramifica, se internaliza, tem uma vida psíquica. Em outros termos, o poder
produz subjetividade. Não é exato, portanto, dizer que as mulheres são vítimas
passivas, docilizadas; também é impreciso insinuar que elas ‘gostem’ de suas
sujeições, escolhendo ativamente permanecer nas relações abusivas. Qualquer
vertente da psicologia – ou da psicanálise – que enverede por essa chave
interpretativa incorre no grave erro de responsabilização dos sujeitos pelos
seus próprios sofrimentos, estratégia bem arriscada, clinicamente falando.
Pois, ao sinalizar para o sujeito que ele “escolhe” ativamente sua própria
subordinação, o que se desencadeia aí, na maioria dos casos, é a resistên-
cia contra o próprio tratamento. É o próprio Freud (1925/2007) quem nos
demonstra essa estrutura da resistência do analista, advertido que estava dos
abusos de poder nas relações transferenciais: ao tentar impor ao analisando
interpretações suas, depara-se com as mais variadas formas de recusa, dentre

elas, “uma aceitação apenas intelectual do recalcado, o essencial do recal-
que permanece intocado” (p. 178). De modo análogo, a responsabilização,
vinda do alto da autoridade do psicólogo/analista, na melhor das hipóteses,
permanece sem efeitos, não toca o consentimento inconsciente ao próprio
desejo. Na pior, as tentativas de responsabilização somam-se à produção
superegoica da culpa, aumentando os níveis de angústia, e contribuindo para
interromper o tratamento. Assim, tanto o convencimento (“separe-se!”) quanto
à responsabilização (“você permanece porque quer”) mostram-se estratégias
ineficazes para a direção do tratamento, embora amplamente divulgadas nas

redes sociais e nas práticas psicológicas.
Nesses casos, como em todos os demais, a direção do tratamento segue
os mesmos princípios éticos que fazem, da psicanálise, uma experiência única
de enfrentamento à lógica do poder abusivo: cabe ao analista deixar-se investir
pelo poder que lhe é imputado pela transferência para, em seguida, fazer-lhe
a recusa, abrindo mão de iniciativas de aconselhamento e de sugestão. Ou,
como bem indicou Lacan (1958/1998): “o psicanalista certamente dirige o
tratamento [...] e não deve de modo algum dirigir o paciente” (p. 592). Nesse
manejo, torna-se possível escutar de que modo as relações abusivas produ-
zem os sujeitos e as suas sujeições, deslocando-se da polarização da vítima
e do culpado.
Algumas perguntas restam a serem trabalhadas, na singularidade de cada
caso: como se constitui uma concepção de feminilidade a partir da subordi-
nação? Ou como a virilidade se constrói reiterando práticas de dominação?
Para algumas mulheres, é como se elas não soubessem existir para além da
relação com os seus parceiros/as, sejam eles/as abusivos ou não. E, de modo
semelhante, os homens também se afirmam enquanto tais em suas parcerias,
é lá que eles reiteram e fixam a crença em suas próprias virilidades. Decorre
daí uma questão que se repete, em maior ou menor grau, nas situações de
crise, de divórcio, de separação: o que eu sou para além do outro com que me
relaciono? A máxima ‘antes só do que mal acompanhada’ aqui se desdobra:
antes existir como mulher em uma má companhia, do que não se reconhecer
mais como mulher na própria solidão.
Para concluir, deixamos indicada a potência da experiência de análise
para o acolhimento e o encaminhamento dos pontos apresentados. O trabalho
de fala, a associação livre, traz a grande vantagem de não posicionar o sujeito
em anterioridade ao seu próprio discurso, sempre pensando-o como um efeito,
como um porvir. Assim, o percurso de análise possibilita reinventar as for-
mas de se dizer homem/mulher no mundo, no amor, na política, produzindo
efeitos sobre o corpo.
Uma grande aposta sem dúvida.
220
REFERÊNCIAS
Badiou, A., & Truong, N. (2013). Elogio ao amor. Martins Fontes.
Beauvoir, S. (2016). O segundo sexo: a experiência vivida. Nova Fronteira.
Butler, J. (2019). Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. N-1

edições; Crocodilo Edições.

Butler, J. (2020). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Autên-
tica Editora.
Empresa Brasil de Comunicação. (2012, 17 de outubro). Pesquisa mostra

que raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais. https://
memoria.ebc.com.br/2012/10/pesquisa-mostra-que-raca-e-fator-predominan-
te-na-escolha-de-parceiros-conjugais
Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas (R. da Silveira,

trad.). EDUFBA.
Freud, S. (1996). A Questão de uma Weltanschauung. In S. Freud, Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas (J. Salomão, trad.; vol. 22, pp.
155-181). Imago Ed. (Originalmente publicado em 1933).
Freud, S. (1996). Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da

origem das perversões sexuais. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas (J. Salomão, trad.; vol. 17, pp. 185-193). Imago Ed. (Ori-
ginalmente publicado em 1919).
Freud, S. (2007). A Negativa. In S. Freud, Escritos sobre Psicologia do Incons-

ciente (L. A. Hanns, trad.; vol. 3, pp. 145-159). Imago Ed. (Originalmente
publicado em 1925).
Gonzalez, L. (2020). A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem

político-econômica. In Gonzalez, L. Por um feminismo afro latino americano.
(pp. 49-64). Zahar. (Originalmente publicado em 1982).
Gonzalez, L. (2020). Mulher negra: um retrato In L. Gonzalez, Por um femi-

nismo afro latino americano (pp. 173-179). Zahar. (Originalmente publicado
em 1979).
Gonzalez, L. (2020). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In L. Gonzalez,

Por um feminismo afro latino americano (pp. 75-94). Zahar. (Originalmente
publicado em 1983).
hooks, b. (2021). Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante.
Instituto de Pesquisa Economia Aplicada. (2020). A violência contra a mulher.

https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/190215_tema_d_a_violenca_contra_
mulher.pdf
Instituto Maria da Penha. (2021). Boletim Trimestral de Conjuntura da Violên-

cia contra a Mulher no Ceará (CVCM). https://www.institutomariadapenha.
org.br/assets/downloads/ boletim_primeiro_trimestre_2021.pdf
Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In J.

Lacan. Escritos (pp. 591-653). Zahar Ed. (Originalmente publicado em 1958).
Lacan, J. (2003). Televisão. In J. Lacan. Outros Escritos (pp. 508-544). Jorge

Zahar Ed. (Originalmente publicado em 1974).
Mbembe, A. (2014). Crítica da razão negra. Antígona.
Rubin, G. (2017). O tráfico de mulheres. In Políticas do Sexo (pp. 9-63).

Ubu Editora.
Soler, C. (2005). O que Lacan dizia das mulheres (V. Ribeiro, trad.). Zahar.
Spivak, C. G. (2010). Pode o subalterno falar? Editora UFMG.
Wittig, M. (2019). Não se nasce mulher. In Pensamento feminista: conceitos

fundamentais (pp. 83-95). Bazar do tempo.
CAPÍTULO 14
MULHERES E TRABALHO DOMÉSTICO
NA PANDEMIA RACIALIZADA “À
BRASILEIRA”: (re)encontros narrativos

Introdução
Entendemos que em nosso contexto atual de existência, marcado por uma

crise sanitária, econômica e política, as desigualdades sociais estruturantes de
nossa nação estão cada vez mais agudizadas. O solo comum da experiência de
um tempo atravessado por um vírus de alto contágio como o Sars-CoV-2 tem,
cotidianamente, revelado a cisão local e global. Norte e Sul estão cada vez
mais distantes pelas lentes estatísticas da morte e da proporção de população
vacinada. Sob uma ótica biopolítica (Foucault, 2010), a faixa que divide os
que devem viver e os que são deixados à morte está cada vez mais nítida.
As medidas sanitárias para contenção do vírus também nos fizeram olhar
para as possibilidades e as consequências do distanciamento e isolamento
social em termos das relações de gênero, classe e raça. Um dos primeiros
casos de covid-19 registrado em nosso país vitimou Cleonice Gonçalves, uma
empregada doméstica no Rio de Janeiro, provavelmente, contaminada pela
patroa recém chegada de uma viagem à Europa.
Na cidade do Recife, no auge da primeira onda da pandemia, o filho de
outra empregada doméstica foi abandonado pela patroa de sua mãe dentro
de um elevador do mais famoso prédio de luxo da cidade. Mirtes Renata, a
mãe do menino Miguel Otávio, de 5 anos, não foi dispensada do trabalho e
quando escutou o barulho do corpo de seu filho contra o chão estava próximo
ao local cuidando da cadela de sua patroa.
O que esses dois casos nos informam sobre violência de gênero no Brasil?
“Envolvendo pelo menos quatro mulheres e uma criança, poderiam ilustrar um
filme de terror, mas falam de uma realidade cotidiana e sinalizam que gênero,
enquanto categoria de análise, não funciona desconectado de outros marca-
dores de poder” (Moreira et al., 2020, p. 7). Ambos se articulam a partir da
problemática do trabalho doméstico que continua sendo um ponto de atenção/
224
tensão no campo feminista, colocando em relevo os limites e as possibilidades

de articulação entre mulheres e também a relevância da interseccionalidade
como modalidade de análise fundamental ao entendimento das dinâmicas de
dominação e privilégios em funcionamento no Brasil.
O trabalho doméstico não é apenas herança da escravidão, mas reatua-
liza formas análogas ao trabalho escravo. Compondo ainda essas cenas da
realidade brasileira, podemos elencar também duas terríveis histórias que
vieram a público no período pandêmico: 1) Madalena Gordiano foi resgatada
em novembro de 2020 de uma casa onde trabalhava por 38 anos, desde seus

8 anos de idade, vivendo num cômodo sem janelas e sem receber salário;
2) A segunda história é de Raiane Ribeiro, babá de 25 anos, que em agosto
de 2021 pulou do terceiro andar de um prédio em Salvador para escapar do
cárcere privado e das agressões da patroa. Um salto que, neste caso, foi um
ato desesperado em busca de liberdade e da denúncia de sua situação. Na
investigação, foram encontradas gravações das agressões sofridas.
Conceição Evaristo (2015), em primoroso texto sobre a grafia-desenho
de sua mãe, conta-nos um procedimento-ritual feito por sua genitora e que
consistia em escrever o sol no chão, com a intenção de espantar a chuva e
garantir a secagem das roupas “lavadas para fora”. Em várias passagens de
suas obras a escritora nos remete a essas mulheres negras que se ocupam
de limpar, passar, cozinhar, dar de comer, fazer ninar as crias das patroas
brancas, esse quadro sugere uma perversa continuidade das desigualdades
de raça e gênero que impacta na vida das negras mulheres em diferentes
tempos históricos.
O trabalho doméstico e suas implicações para a formação cultural do
povo brasileiro é narrado tanto na sociologia de Gilberto Freyre (1961) como
na de Darcy Ribeiro (1995), decerto com algum distanciamento temporal e
diferença crítica significativa. Podemos, ainda, encontrar uma narrativa per-
verso-romantizada e cômico-trágica do trabalho doméstico da mulher negra
na literatura de Monteiro Lobato (2009). O enredo em torno da personagem
“tia Nastácia”, assim como de outras figuras emblemáticas da nossa literatura
infanto-juvenil, segue impactando a formação cultural de muitas crianças
(Menezes & Silva, 2021; Quixadá & Silva, 2021), com rebatimentos que
favorecem o apaziguamento/acomodação ao racismo estrutural que delineia a
sociedade brasileira e acarreta tantos fenômenos de violência de gênero, raça
e classe. Necessário denunciar a falsa integração das trabalhadoras domésti-
cas como parte das famílias, pois esse movimento esconde ou tenta anular o
vínculo empregatício, sem garantir, em contrapartida, os direitos decorrentes
de relações afetivas e familiares, invisibilizando “as relações de poder: o
uso de uniformes, a superexploração, a utilização de ambientes diferentes, a
linguagem utilizada para se referir tanto às empregadas quanto aos/às empre-

gadores/as” (Moreira et al., 2020, p. 6).
Lélia Gonzalez (1984) encontra muito bem descrita essa articulação his-
tórica entre a empregada doméstica – uma das principais inscrições das mulhe-
res negras na sociedade brasileira – e o período da escravidão na seguinte
passagem de June E. Hahner (1978)
[...] a escrava de cor criou para a mulher branca das casas grandes e das
menores, condições de vida amena, fácil e de maior parte das vezes ociosa.
Cozinhava, lavava, passava a ferro, esfregava de joelhos o chão das salas

e dos quartos, cuidava dos filhos da senhora e satisfazia as exigências do
senhor [...] (González, 1984, p. 229).
A doméstica “à brasileira” tem (com licença da ironia) uma clara referên-

cia racial e se dedica à “prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga
que carrega sua família e a dos outros nas costas” (González, 1984, p. 230). O
que Lélia destaca em várias passagens de seu texto é a necessária articulação
entre divisão sexual e racial do trabalho para uma leitura atenta ao racismo que
opera no Brasil desde a escravidão e que naturaliza as diversas formas de vio-
lência e violação de direitos perpetradas à população negra até os dias de hoje.
Tendo como mote o trabalho doméstico, o texto está organizado em uma
seção que aborda as desigualdades sociais instituídas em torno do trabalho
doméstico e as polêmicas que foram instauradas em tempos de pandemia,
acerca do caráter de essencialidade deste trabalho. No último tópico, abordamos
os aprendizados coloniais que perpetuam relações de poder entre mulheres de
classe e raça distintas, o que convoca a luta feminista contra todas as formas de
opressão. Nas considerações finais ressaltamos o necessário enfrentamento ao
racismo e sexismo a partir dos dispositivos de fazer escutar as vozes das mulhe-
res negras, quebrando as máscaras de silenciamento historicamente imposto.
Trabalho doméstico e violência interseccional na pandemia
DaMatta (1997), ao se debruçar sobre as diferenças e aproximações entre a

casa e a rua na sociedade brasileira, compreende que a ética da vida doméstica
costuma ser entendida como pré-política, pautada por um código distinto do
“[...] código da rua (que está aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à his-
tória linear e ao progresso individualista)” (DaMatta, 1997, p. 45). Ao mesmo
tempo, esse autor denuncia que “O mundo diário pode marcar a mulher como
o centro de todas as rotinas familiares, mas os ritos políticos do poder ressaltam
apenas os homens [...]” (DaMatta, 1997, p. 36). Nessa perspectiva, a mulher,
assumindo o lugar de centralidade no espaço doméstico, estaria privada da vida
226
política ou teria um acesso reduzido a esta, fato característico de sociedades

patriarcais como a nossa. Analisando esses opostos como casa/rua e mulher/
homem, bem como outros, tais como adultos/crianças e centro/periferia, Da
Matta (1997) propõe pensar as complexidades entre eles e o quão profundas
são suas vinculações. Ou seja, definindo essas duplas de opostos ele considera
alguns marcadores de opressão e exclusão e ressalta as relações de poder que
sustentam essas oposições e quais polos são silenciados e invisibilizados.
A lógica da invisibilização e silenciamento se torna evidente quando se
questiona a associação da pandemia com um cenário de guerra enquanto uma

prática masculina (Moreira et al., 2020). No caso da pandemia de covid-19,
observamos a forte presença das mulheres em diferentes frentes de batalha
mesmo fora do âmbito doméstico, especialmente, nos postos de trabalho da
área da saúde e nas práticas de cuidado, mas permanecem em muitos contex-
tos, afastadas dos espaços de tomada de decisão.
Nessa perspectiva, Butler (2018), convida-nos a pensar acerca do “direito
de aparecer” (Butler, 2018, p. 35), sobre a performatividade enquanto estra-
tégia de resistência, através da visibilidade pública de corpos com vidas
precarizadas, no campo da política. Enquanto corpos que compõem a cena
social, reconhecemos que embora o movimento feminista tenha impulsionado
conquistas significativas na vida das mulheres, nossa existência ainda segue
profundamente imbricada com o espaço doméstico, mesmo quando possuímos
uma carreira profissional fora dele.
Com a pandemia, o aprisionamento à casa se aprofundou e, em home
office, as mulheres que em situação regular exercem atividade laboral fora da
residência passaram a acumular ainda mais trabalho entre as demandas pro-
fissionais e domésticas, de acordo com o relatório da pesquisa “Sem Parar: o
trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, desenvolvido pela Sempreviva
Organização Feminista (2021). Sem esquecermos que os primeiros meses
de isolamento social foram marcados por uma redução nas notificações de
violência doméstica contra mulheres (muito provavelmente em decorrência
das dificuldades das mulheres em acessar os serviços públicos de assistência e
proteção), porém, com um aumento nos casos de feminicídio, segundo dados
apresentados no artigo de Nunes et al. (2021). Esse é um debate bem impor-
tante e que merece ser aprofundado em articulação com dados estatísticos e
comparativos de período pré-pandemia, pois no caso da cidade do Recife,
“grande parte da ocupação das mulheres que procuraram a Vara de Violência
Doméstica tem relação direta com a atividade doméstica, na sua casa ou na
casa de terceira pessoa” (Melo, 2020, p. 259).
Podemos dizer, então, que o “fique em casa”, tão necessário como enfren-
tamento ao vírus, especialmente, antes das vacinas e da produção de saberes
científicos sobre a covid-19, trouxe prejuízos ainda maiores para as mulheres
que já estavam, historicamente, mais afastadas dos lugares de poder ocupados

pelos homens. Desse modo, os silenciamentos se ampliaram, exceto, talvez,
para aquelas que puderam acessar as redes sociais e usufruir deste território
para a performatividade política, para um dar-se a ver. No contexto brasileiro,
entretanto, vimos na pandemia uma escancarada exclusão digital de parte
da população, o que coloca o direito à comunicação como uma importante
bandeira política para os movimentos sociais, em especial o feminista que
defende a ampla denúncia das situações de violência (sofrida e/ou presenciada)
contra as mulheres. Não calar diante as situações de violência passa por ter
condições para se fazer ouvir!

Nosso texto propõe a problematizar o corpo das mulheres de modo inter-
seccional, trazendo à baila sua marcação também racial e de classe. O con-
ceito de interseccionalidade, cunhado a partir das reflexões desenvolvidas por
feministas negras norte-americanas, tais como Patrícia Hill Collins, Angela
Davis, bell hooks (Assis, 2019), sistematizou o fato sociológico resultante
da intersecção entre diversos marcadores e sistemas sociais de exclusão e
opressão, pautados no gênero, na raça, na classe social, e também no per-
tencimento geracional. Não por acaso, esse conceito nasce das ideias revo-
lucionárias de mulheres negras, cujos corpos configuram a própria noção de
interseccionalidade em uma sociedade, hegemonicamente, branca e patriarcal
como a americana.
Em solo brasileiro, Lélia González percebeu que a luta das mulheres era
desigual e atravessada por aspectos de raça e classe (Ratts & Rios, 2010).
O feminismo negro não é o mesmo que o defendido por mulheres brancas,
porque aquele traz outras “afetações” (Quixadá & Menezes, 2021, p. 193), é
uma militância com outros contornos e conteúdos, na medida em que nossa
sociedade é marcada por um racismo estrutural com implicações em diversos
níveis, inclusive, no movimento feminista.
Ao pensarmos na violência, que atinge, primordialmente, alguns corpos,
precisamos, portanto, considerar não somente o marcador de gênero em um
sistema de dominação masculinista, mas sim trazer à superfície outras iden-
tidades sociais, que se situam à margem do sistema de garantias de direitos.
Especialmente, tendo em vista o que ocorre, cotidianamente, nas políticas
públicas e nas vivências pessoais e coletivas na sociedade brasileira em um
cenário de pandemia, por exemplo.
Quando uma crise se instaura a desorganização que lhe é decorrente
pode fazer emergir diversos fenômenos que, até então, estavam encobertos
por uma ordem já estabelecida. Essa experiência, no entanto, pode servir para
transformarmos o que estava posto. Desse modo, vemos as violências e desi-
gualdades que eclodiram no cenário pandêmico brasileiro, mas que sempre
228
aconteceram na nossa história colonial e patriarcal, como fatos sociais que

devem ser problematizados na tentativa de vocalizar vivências silenciadas e
de pensarmos outros modos de vida comum, pautados na justiça social.
O que a pandemia revelou sobre as práticas com resquícios escravagistas
que perduram nos intramuros das casas grandes do Brasil? Desde 2013, com
toda a polêmica em torno da aprovação da PEC das domésticas, a pauta do
trabalho exercido por estas profissionais não ganhava tanta notoriedade quanto
os holofotes que lhe foram lançados para discutir a sua classificação como
“essencial” em contexto pandêmico. Em função das medidas sanitárias neces-

sárias para a contenção do vírus uma série de decretos foi expedido para fins
de estabelecer o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.
Marília Mello (2020) cita os decretos no. 10.282, de 20 de março de 2020 e
outros dois que o sucederam (10.292; 10.329) que não incluíram o trabalho
doméstico como essencial. A autora chama atenção que o Supremo Tribunal
Federal (STF) assegurou aos governos locais adoção ou manutenção de medi-
das restritivas durante a pandemia e em referência ao Estado de Pernambuco
o decreto no. 48.809, também emitido no mês de março de 2020, não incluiu
os serviços das trabalhadoras domésticas como essencial.
Marília Mello (2020) observa que justamente quando a situação do
avanço de casos se tornou mais crítica na primeira onda, vários estados
expediram decretos intensificando as medidas restritivas e justamente neste
período de ascensão da curva de disseminação da covid-19 houve um alarga-
mento das modalidades de trabalho doméstico entendidas como essenciais e
“Dessa forma, as trabalhadoras domésticas foram postas em risco ou mesmo
em situação de confinamento na casa dos seus patrões, fora de suas casas,
para manter atividades domésticas de outras famílias em funcionamento”
(Mello, 2020, p. 270). Para garantir sua circulação nas ruas desertas por
conta do lockdown, as trabalhadoras precisavam apresentar uma declaração
onde constavam suas informações e as de sua patroa. O que chama atenção,
particularmente, continua essa autora, é que o decreto emitido pelo Estado de
Pernambuco praticamente convoca ao trabalho as “babás” e as “cuidadoras de
idosos”, ou seja, modalidade de trabalho doméstico de contato direto, mas não
estabelece em seus incisos como seria solucionada a questão dos familiares
destas trabalhadoras caso elas viessem a adoecer.
Sabemos que o trabalho doméstico no Brasil tem cor e a pandemia tor-
nou mais forte a chama do racismo e do sexismo que estrutura as relações
sociais em nosso país fazendo-nos pensar nos abismos entre classes sociais,
na divisão sexual do trabalho, nos limites da sororidade e na intensidade da
dororidade. As mulheres de classe média, profissionais autônomas, acadêmi-
cas, trabalhadoras do espaço público tiveram que experienciar a intensidade
de um cotidiano de produção e produtividade em meio às demandas da sala,

da cozinha, do banheiro, dos/das filhas e companheiros/as. As denúncias des-
sas sobrecargas, feitas como novidade no contexto da pandemia, elucidam o
quanto a realidade de exploração anterior à pandemia de boa parte das mulhe-
res trabalhadoras não estava sendo escutada. O caráter de essencialidade da
trabalhadora doméstica demonstrou a face cruel de uma sociedade capitalista
e sexista (homofóbica, machista e misógina) – para dizer o mínimo, neste
momento – , o que chama atenção para a essencialidade da pauta do trabalho
doméstico para um movimento feminista que se queira referenciado na jus-
tiça social. Uma reflexão bem importante aberta pelo texto de Marília Mello
é sobre a articulação entre trabalho doméstico e violência doméstica, pois
A pandemia nos evidenciou as inúmeras formas de violência que podem

sofrer as trabalhadoras domésticas em seu local de trabalho, pois exercem
suas atividades dentro do ambiente doméstico. Para essas trabalhadoras,
muitas vezes, não faz sentido o aumento da violência doméstica, porque
elas, mesmo na quarentena, passaram mais tempo no seu ambiente de
trabalho, pois grande parte delas não teve direito à quarentena em suas
próprias casas, e continuaram trabalhando e vivenciando, ainda de forma
mais intensa, a violência doméstica em outras famílias e as formas de
violência doméstica experimentadas por ela também nas suas casas (Mello,
2020, p. 275).
Luiza Bairros (2020) chama atenção para a observação feita por bell
hooks acerca da luta contra o sexismo como o que de fato as mulheres, em
toda a sua diversidade, podem compartilhar. Sexismo e racismo tem raízes
patriarcais e capitalistas que sustentam sistemas de opressão pautados na infe-
riorização, desqualificação e descarte desumano do/a outro/a. Na condição de
mulher negra e empregada doméstica, Mirtes Renata experienciou a barbárie
em um dos prédios mais luxuosos da cidade do Recife, no cumprimento do
seu turno de trabalho na casa do prefeito da cidade de Tamandaré. Vale trazer
para a análise deste caso, com várias camadas de violência colonial, o fato de
Mirtes e sua mãe figurarem como funcionárias do município governado pelo
seu patrão, o que caracteriza crime de improbidade administrativa, com uso de
dinheiro público para pagamento de serviços prestados em âmbito particular/
doméstico. A elite brasileira é de fato um escracho, pois torpe e cruel, esta-
belece pontes de perversão entre as esferas pública e privada, entre a casa e a
rua, e deixa um rastro de sangue como chancela de tantos crimes históricos.
Vilma Piedade (2017) nos lembra que “A palavra Dor, tem origem no
latim, dolor. Sofrimento moral, mágoa, pesar, aflição, dó, compaixão” (p. 17).
Parte da elite brasileira levou a palavra ao pé da letra e tem se beneficiado do
230
trabalho doméstico de modo sádico, pautado na concepção racista de que as

pretas são mais resistentes à dor. Em um país onde o racismo é crime – pelo
menos desde 1989 conforme a Lei no. 7.716, mas onde praticamente não há
registros desta natureza – pois por algum motivo se alivia a dor do racista
denominando seu crime como “injúria racial” – é preciso que muitas vozes se
ergam para denunciar as várias camadas de racismo que conduziram à morte
de tantas crianças negras como Miguel Otávio.
A patroa: uma pequena colonizadora

De onde viria esse sadismo, essa violência infligida de uma mulher
para outra? Qual a relação entre esse fenômeno e nossa estrutura colonial
e patriarcal? Por que o espaço doméstico parece ser também aquele onde
essa violência mais se manifesta? Na tentativa de elucidarmos essas ques-
tões poderíamos arriscar dizer que, no cenário do racismo estrutural brasi-
leiro, “a patroa” muito se assemelha ao que Memmi (2007) descreve como
“pequeno colonizador”:
[...] o pequeno colonizador geralmente é, de fato, solidário dos colonos e

defensor obstinado dos privilégios coloniais. Por quê? [...] Se o pequeno
colonizador defende o sistema colonial com tanta firmeza, é porque é mais
ou menos beneficiário dele. [...]. Pois o privilégio é relativo: em maior
ou menor grau, todo colonizador é privilegiado, na medida em que o é
comparativamente ao colonizado, e em detrimento dele (Memmi, 2007,
p. 44-45).
Diante da empregada doméstica, habitante da periferia e negra, a patroa

branca ocupa um lugar de privilégio, embora, diante do marido, do pai ou
do chefe não. Pela análise apresentada por Memmi (2007), esse pequeno
privilégio pode funcionar como brecha para uma posição de opressora, para
o exercício de um desejo de poder que, de outro modo, ela não alcançaria.
Débora Diniz e Giselle Carino (2020) chamam atenção para a insuficiência
explicativa do feminismo latino-americano embranquecido pela colonialidade
do poder para pensar a crueldade da pandemia que cruza as fronteiras dos
privilégios e vulnerabilidades interseccionais. Assim, patroa e empregada
funcionam como alegorias para refletirmos sobre essas relações de poder.
Trata-se da imposição de uma violência entre mulheres, onde uma se sobrepõe
violentamente à outra, como resultado de um contexto escravocrata moderno
e institucionalizado a partir de papéis socialmente aceitos.
De algum modo, podemos dizer que para uma mulher negra entrar como
empregada doméstica no território privado da casa de uma família de classes
média e alta no Brasil é, muito provável, que, cedo ou tarde, ela seja rasgada
na carne e na alma, tal como o chicote sangrava a pele dos escravos negros
no Brasil colonial, tamanha é a proximidade que ainda temos com as estrutu-
ras que o sustentavam. Como nos lembram Paula Gonzaga e Viviane Cunha
(2020), o trabalho doméstico é expressão da colonialidade e se constitui “pela
exploração de mulheres consideradas inferiores por se distanciarem do marco
da branquitude [...] No Brasil, a figura da empregada doméstica é considerada
um emblema da suposta superioridade das classes abastadas” (Gonzaga &
Cunha, 2020, p. 6).
Conceição Evaristo (2016), ao fazer uso da sua proposta de “escrevivên-

cia”, narra na ficção cenas cotidianas de mulheres negras em seus amores,
dores, trabalhos, sonhos e fomes. Conta, por exemplo, a volta para a casa
depois de um dia de trabalho de Maria.
No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava
para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a
mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora.
Estava feliz apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa boa hora. Os
dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e
aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma
lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca
tinham comido melão. [...].
A palma de uma de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio,
enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca a laser corta até
a vida! (Evaristo, 2016, p. 39-40).
Uma escrevivência que carrega a história de muitas mulheres. Preta

rara, rapper e arte-educadora, autora do livro “Eu, empregada doméstica”,
em entrevista a Massuela (2017) contou de situação semelhante em que as
patroas colocaram em sacos de lixo comidas que não teriam onde armazenar,
para que ela levasse para casa: “Cheguei em casa com muita raiva, abri o saco,
joguei tudo no meio da sala e falei para o meu ex-marido que a gente ia jantar
o lixo da casa das minhas patroas.” (Massuela, 2017).
Em outro conto Evaristo (2016) nos fala da personagem Natalina (nome
próprio para quem faz nascer!), que serviu de barriga de aluguel para a patroa
que “[...] queria um filho e não conseguia. Estava desesperada e envergonhada
por isso. Ela e o marido já haviam conversado. Era só a empregada fazer um
filho para o patrão.” (Evaristo, 2016, p. 47). Coube, pois, à Natalina todo o
mal-estar de gerar um filho alheio.
Esses contos nos revelam uma permanência material e simbólica da vida
de mulheres negras na Casa-grande, tal como canta Gilberto Gil na música
“A mão da limpeza”:
232
Mesmo depois de abolida a escravidão/ Negra é a mão/ De quem faz a

limpeza/ Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/ Negra é a mão/
É a mão da pureza/ Negra é a vida consumida ao pé do fogão/ Negra é a
mão/ Nos preparando a mesa/ Limpando as manchas do mundo com água
e sabão/ Negra é a mão/ De imaculada nobreza [...] (Gil, 1984).
O que pretendemos com esses trechos narrativos é problematizar o limiar

da empatia e sororidade entre mulheres, quando o fato social do trabalho
doméstico na sociedade brasileira se mantém nas mãos de mulheres negras,

majoritariamente, enquanto as mulheres brancas trabalham em atividades
economicamente mais reconhecidas e rentáveis fora do espaço doméstico,
ainda que durante a pandemia muitas delas possam ter acumulado as duas
atividades. Reconhecemos, portanto, que o fenômeno da empregada doméstica
negra não é absoluto mesmo no Brasil, mas ele ocupa muito mais espaço nas
vidas de mulheres negras. Além disso, na pandemia os episódios de violência
nessa modalidade de trabalho que vieram à tona prejudicaram, eminente-
mente, essas vidas, como resultado do racismo estrutural que ainda nos rasga
a carne e a alma.
Vozes das mulheres negras: por uma virada decolonial

Não espere os tempos calmos chegarem, aprenda a
atravessar as marés altas. (Marques, 2019, p. 178)
Em seu célebre estudo Mulheres, Raça e Classe, Ângela Davis (2016)

adverte-nos de que o avanço das mulheres negras e de minorias étnicas sempre
refletirá em mudanças para todas as mulheres, pois quando a base da pirâmide
se move a condição de todas nós pode se alterar. Esse é um chamamento, uma
convocação que uma situação de múltiplas crises (como as que vivenciamos
no atual momento de nossas existências) demanda-nos.
A visibilidade da vida/adoecimento/morte de mulheres em tempos de
pandemia reatualiza o necessário debate sobre a nossa diversidade, pluralidade
e desigualdades. Em uma perspectiva das epistemologias feministas muito
importante é o debate sobre a produção de saberes localizados, encarnados
e em tempos de pandemia (e das múltiplas violências que ela descortinou) a
produção de uma ciência comprometida com a vida das mulheres subalterni-
zadas precisa ser um dos motores fundamentais da nossa existência política.
Enquanto outsider within (Collins, 2019) as mulheres negras ocupam uma
posição privilegiada para a compreensão das complexas dinâmicas da vida
social. Como nos diz Angela Figueiredo (2017), as empregadas domésticas
em especial são as que traduzem bem os códigos interacionais das famílias

burguesas sem que sejam parte dela. “Essa condição permitiu e permite que
as trabalhadoras domésticas possam ver a elite de uma outra perspectiva, não
acessível a mulheres e homens brancos, nem a homens negros” (p. 4).
Essa produção de conhecimento sobre a elite brasileira precisa ser escu-
tada a partir das vozes dessas mulheres que continuam a sofrer com dores que
lhe são impostas. A solidão da mulher negra é reiterada em nossa sociedade,
tal como a perda do direito à maternidade que foi imposta à mãe do menino
Miguel Otávio abandonado à própria sorte/morte em um elevador, o que fere
todos os princípios humanitários de cuidado direcionado a uma criança.

Mirtes Renata, a mãe de Miguel, segue empenhada na busca por justiça.
Nesse longo caminho encontrou uma rede de apoio social e afetivo que tem
colaborado para seu fortalecimento pessoal e profissional e engajamento em
pautas de luta por direitos. Atualmente, está estudando advocacia, ocupando
o espaço de visibilidade que a academia oportuniza, e assim acompanha de
modo mais qualificado os desdobramentos do caso de seu filho, que acabou
se tornando o caso de muitas mulheres negras engajadas na luta por justiça
social feminista e antirracista.
Outras mulheres aqui evocadas através das personagens de Conceição
Evaristo ecoam vozes de muitas vidas negras que se encontram em posição
de opressão em um Brasil que segue colonial, embora sob outras vestes. Ao
fazer ecoar essas narrativas, a autora nos oferece, através da artesia certeira
das palavras, o desconforto do encontro com a injustiça. Esse é o poder da
literatura: mover-nos de lugar. Trata-se de uma escrita que atua descortinando
nossa colonialidade e que pode provocar em nós uma decolonialidade.
Girar com as palavras, fazer o mundo girar, fazer os ouvidos doerem,
denunciar, refletir, constantemente, sobre a colonizadora que há em nós e
produzir as alianças necessárias a um feminismo antirracista. A urgência
está no agora!
234
REFERÊNCIAS
Assis, D. N. Conceição de. (2019). Interseccionalidades. UFBA.
Bairros, L. (2020). Nossos feminismos revisitados. In H. B. Hollanda, Pen-

samento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Bazar do Tempo, 2020.
Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma

teoria performativa da assembleia. Civilização Brasileira.
Collins, P. H. (2019). Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência

e a política do empoderamento. Boitempo.
DaMatta, R. (1997). A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no

Brasil. Rocco.
Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
Diniz, D., & Carino, G. (2020, 20 de março). Patroas, empregadas e coronaví-

rus. Nós, mulheres da elite, lamentamos a difícil tripla jornada de trabalho com
filhos na casa. Muitas já vivem essa cruel realidade há tempos. El País. https://
brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-21/patroas-empregadas-e-coronavirus.html
Evaristo, C. (2015). Da grafia desenho de minha mãe, um dos lugares de

nascimento da minha escrita. Revista Z Cultural, Programa avançado de
cultura contemporânea, 15.
Evaristo, C. (2016). Olhos d’água. Pallas; Fundação Biblioteca Nacional.
Figueiredo, A. (2017). Somente um ponto de vista. Cadernos Pagu, 51.
Foucault, M. (2016). Em defesa da sociedade. WMF Martins Fontes.
Freyre, G. (1961). Casa-grande e senzala. José Olímpio Editora.
Gil, G. (1984). A mão da limpeza. In Raça Humana [LP]. Warner Music Brasil.
Gonzaga, P. R. B., & Cunha, V. M. (2020). Uma pandemia viral em contexto de

racismo estrutural: desvelando a generificação do genocídio negro. Psicologia:
Ciência e Profissão [online], 40. https://doi.org/10.1590/1982-3703003242819
Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências

Sociais Hoje, 223-244.
Lobato, M. (2009). Reinações de narizinho. Editora Globo.
Marques, G. (2019). Quando os olhos são livres, nenhum conto é

pequeno. Karuá.
Massuela, A. (2017). Rapper e arte-educadora, Preta Rara faz do descon-

forto seu motor criativo. Revista Cult. https://revistacult.uol.com.br/home/

preta-rara-faz-do-desconforto-seu-motor-criativo/
Mello, M. M. P. (2020). As trabalhadoras domésticas e a dupla face da vio-

lência doméstica em tempos de pandemia. RDP, 17(96), 251-278.
Memmi, A. (2007). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do coloni-

zador. Civilização Brasileira.
Menezes, J. de A., & Silva, K. B. da. (2021). Exercícios de localização: sobre

Mafalda e Minosse ou o que podemos aprender quando fincamos pés e cabelos
no chão. In L. R. de Castro. (2021). Infâncias do Sul Global: experiências,
pesquisa e teoria desde a Argentina e o Brasil. EDUFBA.
Moreira, L., Alves, J. S., Oliveira, R. G., & Natividade, C. (2020). Mulheres em
tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psi-
cologia & Sociedade, 32. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240246
Nunes, L. F., Cavalcante, L. F., Lavor Filho, T. L. de, Barros, J. P. P., &
Miranda, L. L. (2021). Violência contra mulheres no Ceará em tempos de
pandemia de covid-19. Revista Feminismos, 9(1). https://periodicos.ufba.br/
index.php/feminismos/article/view/42340
Piedade, V. (2017). Dororidade. Editora Nós.
Quixadá, L. M., & Menezes, J. de A. (2021). (In)Segurança no campo da

extensão universitária: micropolíticas das afetações com crianças na peri-
feria. Revista de Psicologia, 12(2), 188-197. https://doi.org/10.36517/
revpsiufc.12.2.2021.14
Quixadá, L. M., & Silva, K. B. da. (2021). Atravessamentos raciais na subjeti-

vação de crianças: rupturas mediadas pela literatura infanto-juvenil decolonial.
236
In Anais do V Simpósio Luso Brasileiro de Estudos da Criança. https://vsl-

bec20.eventqualia.net/pt/inicio/
Ratts, A., & Rios, F. (2010). Lélia González: retratos do Brasil negro. Selo
Negro Edições.
Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. Com-

panhia das Letras.

Sempreviva Organização Feminista. (2021). Sem parar: o trabalho e a vida
das mulheres na pandemia [Relatório de pesquisa]. https://mulheresnapande-
mia.sof.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf
ÍNDICE REMISSIVO
A
Abandono 25, 30, 35, 36, 37, 58
Abordagem psicanalítica 89, 102
Assimetrias de gênero 149, 159
Autopercepção 19, 20, 163, 164
C
Caráter sistêmico 106
Caso clínico 17, 20, 26, 27, 31, 33, 34, 38, 39, 40, 53, 192, 193
Coletivo feminino 17, 63, 64, 67, 69
Consultório de Rua 16, 42, 44, 242
Covid-19 15, 18, 90, 105, 136, 177, 187, 191, 192, 193, 197, 206, 207, 223,
226, 228, 235
Cultura 15, 17, 18, 57, 58, 63, 64, 67, 68, 90, 95, 96, 97, 99, 100, 103, 104,
107, 113, 119, 138, 142, 144, 145, 165, 169, 174, 191, 193, 200, 207, 208,
210, 211, 221, 234, 235, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247
D
Desigualdade social 16, 41, 45, 53, 223, 225
Disponibilidade psíquica 20, 177, 183, 184, 186
Dominação masculina 18, 63, 64, 107, 109, 115, 131, 212
E
Enfrentamento da violência 9, 15, 16, 17, 18, 45, 61, 68, 71, 85, 106, 114,
129, 135, 149, 192, 196, 245
Escravo 17, 80, 81, 82, 83, 84, 113, 135, 224
Espaço de escuta 18, 105, 106, 115, 124, 129, 192
Estudos decoloniais 20, 191
Ex-marido 109, 114, 116, 117, 122, 126, 127, 181, 182, 193, 194, 195,
201, 231
238
F
Feminismo 46, 47, 52, 63, 101, 102, 131, 150, 161, 172, 174, 207, 212, 220,
221, 227, 230, 233, 246
Feminismo afro-latino-americano 207
Fórum Brasileiro de Segurança Pública 52, 177, 187, 191, 197, 206
H
Heteronormatividade 20, 96, 144, 166, 170, 172, 212, 215

História das mulheres 19, 65, 149, 159, 160, 161
I
Impactos da violência 19, 163, 164
Inferioridade feminina 18, 107, 119
Intensidade patriarcal 19, 149, 150, 151, 153, 154, 159
L
Liberalismo 19, 135, 137, 141, 146
M
Máquina 92, 103, 136, 140, 171
Maternar 20, 183, 186, 211
Mercado 73, 136, 138, 140, 166, 225
Miserabilidade 16, 53
Mulheres cis 19, 20, 163, 164, 165, 166, 168, 169, 170, 172, 173
Mulheres em situação de rua 16, 41, 43, 45, 50
Mulheres negras 46, 112, 113, 192, 196, 197, 198, 200, 202, 203, 204, 205,
207, 210, 216, 217, 218, 220, 224, 225, 227, 229, 230, 231, 232, 233
O
Ódio ao feminino 18, 60, 107, 115, 117, 131
P
Palavrões 165, 166, 167, 169, 170, 173
Pandemia 15, 18, 21, 41, 46, 55, 57, 89, 90, 91, 92, 93, 97, 98, 103, 105, 132,
136, 177, 187, 191, 192, 193, 194, 197, 206, 209, 223, 225, 226, 227, 228,
229, 230, 232, 234, 235, 236
Processos associativos 18, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 100, 101
Psicanálise 15, 16, 17, 21, 25, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 53, 58, 59, 63, 64,
69, 71, 73, 75, 76, 77, 79, 82, 83, 87, 100, 102, 121, 124, 131, 132, 185, 187,
191, 192, 208, 209, 211, 212, 213, 218, 219, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247
Psicologia 15, 16, 39, 40, 44, 49, 53, 54, 64, 76, 80, 90, 92, 129, 177, 187,
188, 191, 218, 220, 234, 235, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247
R
Racialidade 215
Racialização 21, 223
Relação sociossexual 149, 159
Relações abusivas 20, 66, 114, 209, 210, 211, 212, 215, 218, 219
Representações de mulheres 149, 154, 198
Respeito 19, 26, 47, 48, 67, 95, 96, 98, 105, 126, 142, 146, 149, 157, 165,
166, 168, 169, 171, 196, 212, 215, 217
Risco 15, 18, 25, 30, 31, 34, 40, 42, 49, 54, 71, 72, 82, 83, 85, 105, 106, 124,
128, 192, 209, 214, 228
Roda de sonhos 18, 90, 92, 94, 98
S
Segurança pública 41, 52, 177, 187, 191, 197, 206
Situação de violência 16, 26, 34, 35, 38, 41, 42, 50, 51, 53, 60, 96, 114, 119,
121, 122, 123, 124, 125, 128, 129, 178, 186, 192, 196, 197, 207, 210, 213, 227
Situação de vulnerabilidade 15, 18, 26, 28, 42, 55, 92, 105, 106, 121, 124,
128, 192
T
Tabu 20, 109, 121, 164, 165, 170, 172, 173
Trabalho doméstico 21, 223, 224, 225, 228, 229, 230, 231, 232
Tradição patriarcal 18, 107, 112
U
Urgência subjetiva 15, 18, 20, 105, 106, 115, 124, 125, 129, 191, 192, 193, 207
240
V
Violência contra a mulher 16, 18, 41, 42, 46, 47, 49, 50, 51, 90, 94, 106, 114,
145, 147, 177, 187, 191, 192, 196, 201, 202, 207, 209, 221, 243
Violência de gênero 3, 9, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 39, 41, 45, 46, 47, 60,
61, 63, 65, 66, 74, 76, 79, 89, 90, 94, 95, 96, 97, 98, 105, 106, 107, 111, 112,
113, 115, 116, 117, 119, 121, 124, 129, 130, 131, 143, 149, 157, 159, 160,
163, 164, 165, 177, 191, 192, 196, 223, 224
Violência doméstica 28, 41, 66, 76, 77, 105, 130, 178, 181, 187, 188, 191,

192, 194, 197, 206, 207, 226, 229, 235
Violência estrutural 16, 53, 66
Violência interseccional 225
Violência política de gênero 141, 142
SOBRE AS/OS AUTORAS/ES
Aline Lima Tavares

Mestre e Doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo PGPSA-
-UERJ. Psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo. Participante de For-
mações Clínicas do Campo Lacaniano – RJ.

Psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica – UFRJ, professora adjunta do
curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará, e do
mestrado em Psicologia e Políticas Públicas UFC – Sobral. Coordenadora
do GT Psicanálise, Política e Cultura – Anpepp. E-mail: carolinablmar-
tins@gmail.com

Graduada em Enfermagem pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR); Gra-
duanda em Psicologia na Universidade de Fortaleza (UNIFOR); Bolsista de
Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e
Subjetividade (LAEpCUS) da UNIFOR.

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (Campus
Sobral) e bolsista de Iniciação Científica (UFC) na pesquisa Fronteiras do
discurso analítico. E-mail: annebeatrizns22@gmail.com

Professora Adjunta de Psicopatologia da Universidade Estadual do Piauí
(UESPI) e doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mail: angelasousa@ccs.uespi.br

Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (2004). Pós-Douto-
rado em Sociologie et Anthropologie, na Université de Strasbourg, France. É
pesquisador de Produtividade em Pesquisa (PQ 2-CNPq), Docente do Depar-
tamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará.

Graduanda do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza – Unifor.
Membro e bolsista de Iniciação Científica do LAEpCUS – Laboratório de
242
Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade pelo Programa de Pós-

-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
Bruna Hallak
Graduada em Psicologia pela PUC Minas. Mestranda pelo Programa de Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC Minas. E-mail: brunamhal-
lak@gmail.com

Psicóloga e Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA). Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Gra-
duação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail: claudia.perrone@ufrgs.br

Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Universidade de
Paris 7. Professora Adjunto IV da Faculdade de Psicologia da PUC Minas.
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Pesqui-
sadora Mineira FAPEMIG. E-mail: cristinammarcos@gmail.com

Psicólogo e Psicanalista. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psi-
canálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Especialista em Educação Permanente
em Saúde (UFRGS). Membro do Laboratório de Estudos em Psicanálise,
Literatura e Política (LEPLIP/UFRGS). Membro associado do Centro de
Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Atua como Psicólogo e Psicanalista
em consultório particular e como Téc. de enfermagem e redutor de danos no
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas e no Consultório de
Rua, ambos de Caxias do Sul/RS.
Danielle Maia Cruz

Professora efetiva da Universidade de Fortaleza – UNIFOR e membro do
Programa de Pós-Graduação em Direito e Gestão de Conflitos – UNIFOR.
Mestra e Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC.
Pós-doutora em Avaliação de Políticas Públicas/UFC. Graduanda em Psico-
logia/UNIFOR. Membro efetiva da Associação Brasileira de Antropologia
– ABA. Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Violência contra
Mulheres, Meninas e Minorias – LEVIM, do Centro de Ciências Jurídicas/
UNIFOR. E-mail: dmaiacruz7@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-1639-1547, Lattes: http://lattes.cnpq.br/2625425396891600

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Bacharela em
Serviço Social pela UECE e em Ciências Sociais pela UFC. Pesquisadora
do Observatório da Violência Contra a Mulher – OBSERVEM /UECE e do
Núcleo de Estudos sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade – NUSS-UFC.
Ecila Meneses
Atriz, professora e feminista.

Graduada em Psicologia pela PUC Minas. Especialista em Clínica Psica-
nalítica nas Instituições de Saúde pela PUC Minas. Mestre em PUC Minas.
E-mail: edwigespsique@yahoo.com.br

Psicóloga e Psicanalista. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). E-mail: flaviatbuechler@gmail.com

Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de São Paulo –
Campus Baixada Santista. Estagiária no projeto “Escuta e análise do subjetivo:
abordagem psicodinâmica”, vinculado ao Serviço Escola de Psicologia da
Unifesp. Membra do Laboratório de Psicanálise, Política, Arte e Sociedade.

Mestre em História e Culturas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE);
graduada em História pela Universidade Estadual do Ceará; graduanda em
Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR); bolsista de Iniciação
Científica no Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetivi-
dade (LAEpCUS), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade de Fortaleza.

Psicóloga e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise:
Clínica e Cultura (UFRGS). E-mail: gabriela.gs2011@gmail.com

Docente do Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais do Cen-
tro de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFPE.
Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos sobre Poder, Cultura e Práticas
Coletivas (GEPCOL). E-mail: jaileila.araujo@gmail.com
244

Professora do curso de Graduação em Psicologia da Universidade de Forta-
leza – UNIFOR. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/
UNIFOR. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal do Ceará – UFC. Especialização em Psicologia Hospitalar pela
Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI, do Espírito Santo. Membro
do Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade – LAEp-
CUS/UNIFOR. Psicóloga clínica e psicanalista. E-mail: janarapinheiro@
unifor.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1212-5025, Lattes: http://lattes.

cnpq.br/4344172246417931

Professora Associada III da Universidade Federal de São Paulo – Campus
Baixada Santista. Atua na graduação e nos Programas de Pós-Graduação
“Ensino em Ciências da Saúde” (modalidade profissional) e “Interdisciplinar
em Ciência da Saúde” (mestrado acadêmico).
Jean-Luc Gaspard
Psicanalista, Professor Universitário de Psicopatologia.Université Rennes II

Professora Associada da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Doutora
em Letras e Linguística – UFAL e Pós-Doutora pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Psicóloga e
Psicanalista. Membro do Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura
e Subjetividade-LAEpCUS/UNIFOR.
E-mail: jerzuitomaz@hotmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
9885-5773, Lattes: http://lattes.cnpq.br/0642903869243215

Graduando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor); bolsista
de Iniciação Científica do Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura
e Subjetividade (LAEpCUS).

Campus Baixada Santista. Extensionista em dois projetos.

Campus Baixada Santista. Extensionista em três projetos, membro cadastrada
no Diretório de pesquisas do CNPq Laboratório de Psicanálise, Política, Arte e

Sociedade da UNIFESP e pesquisadora na área de psicologia social e criminal.

Professora Associada da Universidade Federal do Ceará, Pós-doutora em
Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade
do CNPq. E-mail: kphm@uol.com.br
Leonardo Danziato
Prof. Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade

de Fortaleza (Unifor); Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Psica-
nálise, Cultura e Subjetividade (LAEpCUS); Psicanalista.

Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universi-
dade de Fortaleza – UNIFOR. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, com pós-doutorado em Psicologia/
CAPES na Universidade Aberta de Lisboa. Psicóloga e psicanalista. Membro
do LAEpCUS – Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetivi-
dade; do GT Psicanálise, política e clínica da ANPEPP; da Rede Internacional
Coletivo Amarrações – Psicanálise & Políticas com Juventudes; e, do MCVI
– A universidade na prevenção e no enfrentamento da violência no Ceará.
E-mail: leonia.ct@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4997-
5349, Lattes: http://lattes.cnpq.br/0037242106948921

Doutora em Psicologia pela UFSC, mestre em Psicologia Social e Institucional
pela UFRGS, graduada em Psicologia pela UFRGS e professora adjunta da
Universidade Federal de Minas Gerais, onde é vinculada ao Departamento de
Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia/FAFICH. E-mail:
lisandra.ufmg@gmail.com

Pós-doutora pela UFPE, doutora em Educação pela UFC, mestre em Psico-
logia pela UnB, graduada em Psicologia pela UFC e professora adjunta da
Universidade Estadual do Ceará, onde é vinculada ao Curso de Psicologia e
ao Programa de Pós-Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde.
E-mail: lucianaquixada@gmail.com

Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Graduanda
em Psicologia/UNIFOR. Bolsista de Iniciação Científica no Laboratório de
246
Estudos Sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade – LAEpCUS/UNIFOR.

E-mail: lucianaribeirolira@gmail.com, ORCID: http://orcid.org/0000-0001-
7059-2556, Lattes: http://lattes.cnpq.br/8818578226641897

Campus Baixada Santista. Extensionista em dois projetos e membro cadastrada
no Diretório de pesquisas do CNPq Laboratório de Psicanálise, Política, Arte
e Sociedade da UNIFESP.

Psicóloga e psicanalista em formação. Mestranda no Programa de Pós-gra-
duação em Psicanálise: Clínica e Cultura, (UFRGS). Especialista em Saúde
Mental Coletiva (UFRGS). Membro do Laboratório de Estudos em Psicaná-
lise, Literatura e Política (LEPLIP/UFRGS). Atua em consultório particular
e no Centro de Prevenção às Violências de Canoas/RS

Professora substituta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Doutora em Sociologia pela UFC (2019). Pesqui-
sadora do Núcleo de Pesquisas sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade
(NUSS/UFC). E-mail: marcelle.silva.cs@gmail.com
Rafael Kalaf Cossi

Psicanalista; psicólogo, mestre, doutor e pós-doutorando pela USP; Membro
do LATESFIP e do AGE. Autor de “Lacan e o feminismo” (2020, Zago-
doni); organizador de “Faces do sexual: fronteiras entre gênero e inconsciente”
(2019, Aller).

Professora adjunta da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada
Santista, e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação
Sexual da Unesp Araraquara (modalidade profissional).
Rose Gurski
Psicóloga e Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA). Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Gra-
duação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul; docente do Programa de Psicologia Clínica da USP. E-mail:
rosegurski@ufrgs.br

Psicanalista. Professora do Instituto de Psicologia UFRGS, Departamento de
Psicanálise e Psicopatologia e do Programa de pós-graduação em Psicaná-
lise: clínica e cultura. Coordenadora do LEPLIP: Laboratório de estudos em
Psicanálise, Literatura e Política/UFRGS. Membro do GT ANPEPP- Psica-
nálise, política e clínica, da REDIPPOL – Rede interamericana de pesquisa
em Psicanálise e política e do Coletivo Amarrações: Psicanálise e políticas
com juventudes.
Sonia Alberti
Professora Titular no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Procientista da UERJ e Pesquisadora do CNPq. Membro
de Formações Clínicas do Campo Lacaniano (FCCL-RJ).

Psicóloga, psicanalista e mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC-
-Sobral). E-mail: vanessacunhasantiago@gmail.com

Graduado em Matemática Industrial pela Universidade Federal do Ceará
(UFC); graduando em Psicologia na Universidade de Fortaleza (UNIFOR);
bolsista de Iniciação Científica no Laboratório de Estudos Sobre Psicanálise,
Cultura e Subjetividade (LAEpCUS), vinculado ao Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

Violência de Gênero - Aportes Conceituais e Estratégias de Enfrentamento

Enviado por

Dados do documento

Título original

Direitos autorais

Formatos disponíveis

Compartilhar este documento

Compartilhar ou incorporar documento

Opções de compartilhamento

Você considera este documento útil?

Este conteúdo é inapropriado?

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

Violência de Gênero - Aportes Conceituais e Estratégias de Enfrentamento

Enviado por

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização