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Resumo
A história de Bertha Lutz ainda é relativamente pouco conhecida, inclusive no meio
diplomático brasileiro. Apesar de não ter sido diplomata de carreira, Lutz teve partici-
pação ativa na história da política externa brasileira. Seu prestígio político no âmbito
doméstico rendeu-lhe designação para ser delegada brasileira na Conferência de São
Francisco, em 1945. Seu protagonismo na Conferência pode ser considerado o auge de
uma carreira política construída sobre bases sólidas. No ensaio, destaca-se a participação
de Lutz em três grandes conferências de naturezas distintas: a Conferência de Baltimore
(1922), a partir da qual se consolida a perspectiva de Lutz sobre a questão dos direitos
das mulheres; a Conferência Interamericana de Montevidéu (1933), que inaugura a exitosa
participação de Lutz em conferências oficiais – resultando na aprovação de duas de suas
propostas; e, finalmente, a Conferência de São Francisco (1945), ocasião em que Lutz,
com apoio de Minerva Bernardino (delegada da República Dominicana), fez prevalecer a
perspectiva brasileira sobre a questão dos direitos das mulheres, vencendo resistências
das delegadas de Estados Unidos e Reino Unido.
Palavras-chave: Lutz; feminismo; diplomacia; direitos fundamentais.
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CADERNOS DE POLÍTICA EXTERIOR
2 Bertha Lutz foi aprovada em concurso do Museu Nacional. Sofreu resistência entre os candidatos, tendo
um deles enviado carta ao diretor do Museu, dizendo que a participação de uma mulher contrariava as
normas da moral e da família. Lutz classificou-se em primeiro lugar no certame e assumiu o cargo em
1919 – não sem precisar do parecer de um homem, o Dr. Raul Penido. A primeira mulher a integrar o serviço
público foi Maria José de Castro Rebello Mendes, aprovada em concurso para 3º oficial da Secretaria de
Estado das Relações Exteriores, em 1917, com parecer de Rui Barbosa (BESSE, 1999, p. 164).
3 Trecho do artigo “Educação, associação, organização”, escrito em 1919, sob o pseudônimo de Gilberta Lutz,
para o Rio Jornal. O texto está integralmente transcrito em apêndice da obra de Yolanda Lôbo, de 2010.
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Bertha Lutz e a posição brasileira sobre os direitos das mulheres na Conferência de São Francisco
Feminismo no Brasil
Bertha Lutz referia-se ao movimento feminista O primeiro […] foi liderado pela profes-
como “feminismo” – assim mesmo, no singular. sora Leolinda Daltro, caracterizado pela
Isso não significa, no entanto, que desconhecesse acomodação ao sistema político vigente
ou ignorasse as diferentes vertentes feministas e pela ênfase na demanda de educação. O
que compunham o cenário político de seu tempo. segundo modelo, liderado por Bertha Lutz,
Rachel Soihet e Teresa Cristina de Novaes Marques combinava a busca de igualdade jurídica
identificam, nessa afirmação de uma unidade com a reforma das instituições públicas, es-
política feminista que certamente nunca exis- pecialmente com respeito à forma de con-
tiu, uma tática de enfrentamento das possíveis tratar servidores e à elaboração de políticas
resistências à luta pelos direitos das mulheres públicas com alcance universal. O terceiro
(SOIHET, 2013, p. 59-60; MARQUES, 2013, p. 938). modelo, liderado por Natércia, valia-se de
Assumir que houvesse divergências no seio do uma política mais à esquerda, capaz de
movimento feminista poderia enfraquecer a responder às inquietações das mulheres
posição das mulheres diante de instituições, na- trabalhadoras, sem, no entanto, pleitear a
quele momento, predominantemente masculinas. revolução social. O discurso da Aliança en-
As divisões, no entanto, eram bastante claras. fatizava a palavra trabalho e vinha combi-
Teresa Cristina de Novaes Marques identifica, na nado à prática do auxílio mútuo dentro do
primeira metade do século XX, pelo menos três grupo. Tal proposta não era propriamente
tendências de movimentos feministas. Essas ten- uma novidade no campo do feminismo, es-
dências, que Marques denomina como “modelos” pecialmente na Europa, onde a palavra era
de feminismo, foram resultado das “diferentes entendida por muitos como uma forma de
experiências do ativismo das mulheres, fossem mutualismo, mas abalou a posição política
elas autoproclamadas feministas ou não” (2016, ocupada pela federação, onde tais práticas
p. 12) e da forma como as líderes compreendiam não eram usuais (MARQUES, 2016, p. 33).
a vida pública, as atribuições do estado e as Interessante notar que existem textos que
dinâmicas internas de cada grupo político. situam Bertha Lutz como “sucessora” de Leo-
Marques descreve esses diferentes “modelos”: linda Daltro4 quando, na verdade, as duas líderes
4 Essa menção é encontrada no verbete correspondente à biografia de Bertha Lutz no CPDOC/FGV (dispo-
nível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/berta_lutz>, acesso em: 21 ago.
2021) e em diversos artigos de jornais (O Globo: <http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/bertha-
-lutz-uma-historia-de-luta-conquistas-de-direitos-da-mulher-no-brasil-20102421>, acessado em: 21 ago.
2021; Diário da Manhã: <http://www.dm.com.br/cotidiano/2017/02/voto-feminino-completa-85-anos-no-
-brasil.html>, acesso em: 21 ago. 2021.
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feministas tinham estilos, táticas e mesmo Com Natércia da Silveira, Bertha Lutz dis-
convicções diferentes. É bem verdade que a pro- putou o protagonismo do movimento feminista,
fessora Leolinda Daltro inaugurou um movimento sobretudo depois da criação da Aliança Nacional
sufragista importante, além de ser entusiasta de Mulheres, em 1931, que passou a rivalizar com
da educação feminina. As semelhanças entre a FBPF (MARQUES, 2016, pp. 32-33; SOIHET, 2000,
as duas, no entanto, parecem terminar por aí. p. 102). Entre elas, Bertha Lutz era a que mais se
Leolinda não partilhava da visão de longo prazo destacava no meio político e diante da imprensa,
de Bertha. Agia de modo reativo e de maneira, e muito dessa visibilidade deve-se aos contatos
muitas vezes, “errática”. Havia ocasiões em que que estabeleceu ao longo da vida, no Brasil e no
buscava o apoio dos políticos da época, pedindo, exterior. A brasileira buscou instrumentalizar
por exemplo, manifestações a favor do voto fe- essa visibilidade em favor de seus pleitos e teve
minino, e havia ocasiões em que os questionava êxito, como se verá adiante.
e enfrentava publicamente. Envolveu-se, ainda, Todo esse cenário, é importante notar, compõe
em diversos episódios de certo modo cômicos, aquela que pode ser considerada como a primeira
que ficaram notórios e a tornaram, muitas vezes, onda feminista no Brasil – caracterizada sobretu-
alvo de chacota. Foi figura frequente das crônicas do pelo movimento sufragista. A segunda onda
de Lima Barreto, que a satirizava por meio de teria início na década de 1970, com demandas
personagens de nome parecido – ora Deolinda, relacionadas, principalmente, à valorização do
ora Florinda (MARQUES, 2016, p. 21). trabalho das mulheres e aos direitos sexuais. Já
O estilo de Bertha Lutz era outro. Discreta a terceira onda seria deflagrada na década de
e de postura conservadora, buscou alianças 1990, a partir do questionamento de paradigmas
políticas tanto no Brasil quanto no exterior. de gênero, ampliando-se o debate em torno de
Acreditava ser necessário persuadir os homens, categorias transversais.
não necessariamente enfrentá-los.
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Bertha Lutz e a posição brasileira sobre os direitos das mulheres na Conferência de São Francisco
política das mulheres. Criou-se, então, a League Carrie Catt torna-se próxima de Margery
of Women Voters, constituída pelas mesmas Ashby, líder da International Alliance of Women,
integrantes. Uma parte da antiga entidade, no no Reino Unido. É também o grupo de Carrie Catt,
entanto, constituiu a dissidência que criou o a League of Women Voters, que patrocina a ida
National Woman’s Party. As feministas deste de Bertha Lutz a Baltimore, para participar da
último grupo continuaram exercendo pressão Conferência de 1922, a qual foi preparada pela
sobre o Congresso, para aprovar outra emenda própria Carrie Catt (LÔBO, 2010, p. 36).
constitucional6, com a intenção de eliminar SegundoYolanda Lôbo (2010, p. 37), “a Confe-
toda forma de desigualdade de gênero no país rência de Baltimore proporciona a Bertha estreitar
(MARQUES, 2013, p. 932). Vem daí a designação laços de sociabilidade com expressivas figuras
“igualitarista”, identificada com o que foi percebido públicas do campo científico e literário e, sobre-
como certo extremismo à época. tudo, do círculo diplomático”. Entre essas figuras,
Os grupos divergiam quanto às estratégias destaca-se o diretor da União Pan-Americana,
de atuação política e tinham afinidades com os Leo Stanton Rowe, com quem mantém contato
principais partidos políticos norte-americanos. por correspondência.
As feministas da League of Women Voters eram A influência de Carrie Catt, em particular,
mais próximas do Partido Democrata, enquanto fez-se notar após a visita desta ao Brasil, como
as feministas do National Woman’s Party se convidada do I Congresso Internacional Femi-
aproximavam mais do Partido Republicano. nista, poucos meses depois da Conferência de
Essas afinidades se construíram por relações Baltimore. Na ocasião, Bertha Lutz dispôs-se a
políticas, mas também em razão da origem das colaborar com o embaixador dos Estados Unidos
afiliadas e de suas relações pessoais. Todas, no para promover o pan-americanismo no Brasil. Foi
entanto, negavam a filiação a partidos políticos nesse contexto que se celebrou, em 1925, pela
(MARQUES, 2013, p. 932-933). primeira vez, o Dia Pan-Americano, no Clube de
Para as integrantes da League, a igualdade Engenharia. Estiveram presentes, além das femi-
absoluta entre os sexos poderia ameaçar a nistas da FBPF, o embaixador norte-americano e
proteção garantida às mulheres trabalhadoras os ministros de Relações Exteriores da Venezuela
– ficaram, por isso, conhecidas como “feministas e do Paraguai. O evento se repetiu de maneira
sociais”. Já as feministas do NWP, em sua maioria discreta nos anos seguintes, até que, em 1938, o
profissionais liberais7, acreditavam ser possível Dia Pan-Americano foi celebrado nos salões do
suprimir todas as desigualdades de gênero que Itamaraty (MARQUES, 2013, p. 934).
persistiam em muitos estados pela via constitu- A América Hispânica e o Brasil não podem
cional e, então, as mulheres teriam livre acesso ser, no entanto, vistos como área de influência
ao mercado de trabalho (MARQUES, 2013, p. 933). natural dos grupos feministas norte-americanos.
Tanto um grupo quanto o outro sabia que A adesão dos grupos locais às propostas vindas
eventual projeção internacional poderia forta- do Norte não foi automática. Houve, na verdade,
lecê-lo internamente. Ambos buscavam, assim, muita discussão e muitos embates. Em Monte-
atuar junto aos círculos diplomáticos e estabelecer vidéu e em São Francisco, as divergências foram
relações com agrupamentos feministas em outros claras e abalaram as relações pessoais entre as
países, para fazer prevalecer suas convicções. envolvidas (MARQUES, 2013, p. 928; 934).
6 A referida emenda é, ainda hoje, objeto de discussão nos Estados Unidos. Foi redigida por Alice Paul e
apresentada ao Congresso, pela primeira vez, em 1923. Seu texto original é: Men and women shall have
equal rights throughout the United States and every place subject to its jurisdiction. Disponível em: <ht-
tps://www.nytimes.com/2017/03/25/opinion/sunday/pumping-life-into-the-equal-rights-amendment.ht-
ml?mcubz=1>; <www.alicepaul.org>. Acesso em: 20 ago. 2021.
7 SOIHET informa que “Bertha não só atraiu para a Federação mulheres profissionais, das quais dependia
verdadeiramente a campanha, mas também escritoras renomadas, como Maria Eugênia Celso e Júlia Lo-
pes de Almeida, ao lado de esposas de líderes políticos, na busca de alianças de prestígio e poder para a
causa que defendia” (2013, p. 64).
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8 INMAN (1965, p. 49) usa o termo yankee-phobia, que remete também à obra do uruguaio José Enrique
Rodó, Ariel, de 1900.
9 A Convenção de Montevidéu sobre os direitos e deveres dos estados estabelece os requisitos para que um
estado seja considerado sujeito de direito internacional, além de tratar da existência política do estado e
do instituto do reconhecimento. Foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto
nº 1.570, de 13 de abril de 1937, junto da Convenção sobre Asilo Político, que altera a Convenção de Havana
e dá outras providências.
10 Para Stanley Hilton, o chanceler brasileiro Afrânio de Melo Franco aproveitou o contexto da Conferência de
Montevidéu para tentar reforçar a influência brasileira na região e junto aos países beligerantes: “Visando
pôr fim à luta sangrenta e também melhorar a posição estratégica do Brasil no coração do continente,
Melo Franco acenou com programas de cooperação bilateral. A Bolívia há tempos mostrava-se interes-
sada em estreitar vínculos com o Brasil, e, devido à profunda dependência econômica do Paraguai em
relação à Argentina, havia setores influentes também naquele país que sonhavam com maiores opções
internacionais. Baseando-se no progresso modesto realizado por governos anteriores a 1930 no sentido
ambicionado, o chanceler aproveitou a VII Conferência Interamericana, realizada em Montevidéu em de-
zembro de 1933, para retomar o assunto.” (HILTON, 2013, p. 459-450).
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Bertha Lutz e a posição brasileira sobre os direitos das mulheres na Conferência de São Francisco
A defesa dos direitos das mulheres no mostrar a proatividade das mulheres dos países
continente compunha uma parcela da di- latinos. Não aceitaram figurar como “meras
plomacia cultural norte-americana desen- expectadoras [sic] das iniciativas das norte-a-
volvida nos anos 1920, com boa resposta mericanas” (MARQUES, 2013, p. 935).
dos meios diplomáticos e da opinião públi- Durante os trabalhos, a líder do NWP, Doris
ca. Apoiadas pelos republicanos, ainda que Stevens, mostrou-se, por diversas vezes, con-
relutantes em admiti-lo, as feministas do trariada pela posição autônoma das mulheres
National Women’s Party (NWP) alcançaram latino-americanas e, também, por representantes
grande sucesso na conferência de Havana, norte-americanas ligadas a Carrie Catt, a quem
em 1928, quando propuseram e aprovaram considerava como rival. Foi o caso de Sophonisba
a criação da Comissão Interamericana de Breckinridge. Stevens chegou a insultar Bertha
Mulheres. […] A emergência da Comissão Lutz e Breckinridge, chamando-as de “animais
guarda relações com a política externa dos desprezíveis” (MARQUES, 2013, p. 938). Ainda
governos republicanos, especialmente pela assim, os relatos de Bertha Lutz à imprensa bra-
ênfase no igualitarismo, tese defendida no sileira omitiam as divergências ocorridas durante
partido nos anos 1930 e ainda durante a a conferência. Lutz entendia que as diferenças
guerra (MARQUES, 2013, p. 930). internas não deviam ser compartilhadas com o
Embora tenha havido continuidade da orien- grande público, sob o risco de minar a respeita-
tação quanto à defesa dos direitos das mulheres bilidade do movimento feminista.
pela delegação norte-americana, não houve Apesar de todas as dificuldades enfrenta-
homogeneidade na execução dessa defesa. Em das, duas das propostas12 de Bertha Lutz foram
Montevidéu, repetiu-se a cisão que existia domes- aprovadas, com apoio da delegação brasileira.
ticamente entre as feministas norte-americanas Primeiro, o compromisso de que os governos
– e entre estas e as latino-americanas. indicariam, para as próximas conferências, de-
Não é possível dissociar as ações individuais legadas plenipotenciárias para atuar junto com
das feministas presentes à reunião da política os delegados13. Além disso, foi aceita a proposta
externa de seus respectivos países. O que se viu em de reformulação dos estatutos da Comissão
Montevidéu foi uma verdadeira “batalha paralela” Interamericana de Mulheres, para que esta as-
(MARQUES, 2013, p. 932) à Conferência, refletindo sumisse caráter executivo, podendo fiscalizar as
embates domésticos. A postura a ser adotada na condições de trabalho das mulheres nas Américas
arena internacional era debatida internamente, (MARQUES, 2013, p. 939).
ao passo que se travavam alianças pessoais O jornal O Diário da Noite noticiou, em 16 de
entre as feministas, de modo transnacional. A dezembro de 1933 (p. 1):
complexidade dessas relações refletiu-se em […] A Comissão dos Diretores da Mulher
debates acalorados ao longo do encontro. aprovou também a proposta apresenta-
Durante a conferência, Bertha Lutz apresentou da pela delegação brasileira relativa à
projeto semelhante ao que havia sido proposto nacionalidade da mulher e à concessão
pela delegada uruguaia, Sofía Alvarez Vignoli de da igualdade de direitos, bem como ao
Demicheli – tratava-se de projeto de unificação prosseguimento dos trabalhos da Comissão
dos direitos civis e políticos das mulheres nas Interamericana de Mulheres.
repúblicas americanas, com destaque para a O sr. [sic] Bertha Lutz propôs que se envi-
capacidade jurídica da mulher casada (assunto asse uma moção de felicitações aos go-
muito estudado por Lutz11), e também questões vernos de cujas delegações fazem parte
relativas ao pátrio poder e direitos de viúvas e representantes femininas. A proposta foi
de companheiras. As duas esforçaram-se para aplaudidíssima.
11 Bertha formou-se em Direito na Faculdade do Rio de Janeiro, em 1933, meses antes da conferência.
12 Entre os temas discutidos em Montevidéu, esteve o da preservação do patrimônio cultural dos países,
em relação ao qual Lutz apresentou proposta que abordava a questão dos monumentos e riquezas natu-
rais. Na mesma linha, em sua atuação como deputada, em 1936, propôs a emenda nº 22 ao projeto de lei
nº 595/1936, que criava a Universidade do Brasil, com a finalidade de criar o Serviço de Patrimônio Natural
e Biológico, que teria atuação em todo o território nacional (LÔBO, 2010, p. 17).
13 Carlos Chagas e Afrânio de Melo Franco defenderam a proposta contra os ataques que esta sofreu em
plenário.
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Embora tenha integrado a delegação brasilei- conselheira técnica. Ainda assim, atuou em pé de
ra, Bertha Lutz não chegou a assinar a Convenção14. igualdade com as delegadas de outros países15.
Isso porque sua atuação se deu na condição de
14 Pelo Brasil, assinam o documento Afrânio de Melo Franco, Lucílio A. da Cunha Bueno, Francisco Luiz da
Silva Campos, Gilberto Amado, Samuel Ribeiro e Carlos Chagas. Este último foi amigo do pai de Bertha
Lutz, o cientista Adolpho Lutz. Foi também amigo e aliado político de Bertha.
15 Sophonisba P. Breckinridge, pelos Estados Unidos, Sofia A. V. de Demicheli, pelo Uruguai, e Maria F. Gonza-
lez, pelo Paraguai, assinaram a Convenção.
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Bertha Lutz e a posição brasileira sobre os direitos das mulheres na Conferência de São Francisco
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artigo 8 da Carta da ONU20 foi uma contribuição to claim rights for themselves and that their
da América Latina – ou melhor, das mulheres presence at the Conference was proof posi-
da América Latina que lutaram por sua inser- tive that women were already in full status
ção. Elas enfrentaram a resistência de Virginia in the organisation. The Canadian woman
Gildersleeve e de outras mulheres presentes à did not quite share that view as there were
conferência, as quais afirmavam que a igualdade so few women present at the Conference as
de direitos estava bem estabelecida em seus delegates. The American delegate took the
países e julgavam a inserção do artigo 8 uma view right through that she was not there as
atitude vulgar e desnecessária. a woman but as an expert. The British wom-
As pesquisadoras contam, ainda, que a defesa en maintained that as they were Ministers
veemente de Bertha Lutz em relação à emenda women had no further vindications in Brit-
do texto lhe valeu o apelido “Lutzwaffe”, em ain21 (LUTZ, 1945).
referência à Luftwaffe alemã. Ao observador de hoje, o texto da Carta pode
Segundo o relatório de Bertha Lutz: parecer corriqueiro. Deve-se ter em consideração,
The American and the Canadian women no entanto, que explicitar esse princípio e fazer
wished to repeat the article put into the constar que a principal organização internacional
Covenant of the League of Nations where- do pós-guerra não faria discriminação entre ho-
by women could occupy any positions in mens e mulheres em seus quadros é uma vitória
the Secretariat. The Latin American and que transcende o contexto imediato. O texto
Australian women wanted a more general dotou de legitimidade a defesa dos direitos das
statement, including all positions of any mulheres em todo o mundo. As mulheres tinham,
kind, meaning those of plenipotentiary del- agora, no âmbito doméstico, um forte argumento
egates as well as jobs. They also wanted a para embasar suas demandas.
general statement recognizing full equali- Ademais, o fato de as delegadas latino-a-
ty of men and women before the law. This mericanas terem-se contraposto às delegadas
group was headed by the Brazilian Dele- e representantes dos Estados Unidos e do Reino
gate. The women delegates from the United Unido demonstra a autonomia dessas mulheres
States and Britain took the view that it was em dois sentidos: como feministas e como
unnecessary - even undignified – for women representantes dos governos de seus países.
Considerações finais
A visão política feminista de Bertha Lutz foi dade, o fez – no Brasil, com as propostas para a
construída com base em um constante intercâm- Constituição de 1934; no exterior, nas conferências
bio de experiências domésticas e internacionais. de que participou.
Embora tenha sido, sim, influenciada por movi- As escolhas de Bertha Lutz foram coerentes
mentos norte-americanos e europeus, não se com a leitura do ambiente político-institucio-
pode afirmar que Bertha Lutz tenha escolhido se nal que fazia naquele momento. Seus cálculos
filiar a um ramo igualitarista ou reformista do levaram em consideração o estreitamento de
feminismo ou que se tenha deixado levar pela alianças com seus contatos estrangeiros e as
simples adoção de ideias exógenas. Seu contato possibilidades abertas pela visibilidade que
permanente com as tendências mundiais foi teria na imprensa. Soube instrumentalizar as
sempre acompanhado de julgamento crítico e do notícias de compromissos assumidos perante
reconhecimento da realidade brasileira. a comunidade internacional como mecanismos
Adotou postura conciliadora e buscou alianças de pressão da opinião pública, para garantir a
importantes entre homens e mulheres. Quando atenção do governo aos problemas levantados
houve oportunidade para reformas, as propôs. pelas feministas.
Quando surgiram ocasiões para afirmar a igual-
20 “Artigo 8. As Nações Unidas não farão restrições quanto à elegibilidade de homens e mulheres destinados
a participar em qualquer caráter e em condições de igualdade em seus órgãos principais e subsidiários”.
21 O relatório está disponível em: <http://lhs.unb.br/bertha/wp-content/uploads/2013/02/San-Francisco-
-Conference-Report.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2021.
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Bertha Lutz e a posição brasileira sobre os direitos das mulheres na Conferência de São Francisco
Referências bibliográficas
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