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“MULHER É BICHO ESQUISITO”:

AS MULHERES NAS COMPOSIÇÕES DE RITA LEE


1970-2000
Autor: Pedro Oscar Valandro
Orientadora: Profa. Ms. Viviane Maria Zeni

INTRODUÇÃO fato de que na década de 1970, as muitas mulheres brasileiras haviam


iniciado uma liberação comportamental e a condição feminina de certa
As inquietações motivaram a eleger como objeto de pesquisa a maneira sinalizava uma ruptura com aos arquétipos estabelecidos até
compositora Rita Lee e suas composições, deu-se em primeiro lugar então. A baliza final são os 2000, uma vez que somente em 2003 o Novo
por acreditar que a música é capaz de fornecer um objeto de pesquisa Código Civil, brasileiro estabeleceu a equidade entre os gêneros.
consistente e em segundo por entender que seria interessante tecer Para tecer as análises recorreu-se a três principais teóricos: Roger
análise sobre como uma mulher personifica o próprio gênero feminino Chartier quanto conceito de representações, Pierre Bordieu no que se
em suas composições. Desta maneira, buscou-se, estudar as fontes com refere ao poder simbólico e à dominação masculina e Bronislaw Baczko
o objetivo de investigar quais representações femininas emergem e, em para trabalhar com o imaginário social.
que medida, estas representações relacionam-se com o imaginário da As indicações de Roger Chartier forneceram as bases para analisar
sociedade brasileira sobre o feminino; ou seja, que arquétipo de mulher de que maneira o universo das representações sociais se forma, ganha
é apresentado por Rita Lee e quais as possíveis inferências que se pode corpo e termina por se sedimentar, determinado os papeis que serão
delinear sobre essas mulheres/sujeitos históricos. Sempre procurando representados pelos atores socais.
compreender o contexto da compositora, com base em duas biografias A utilização do conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu
e em depoimentos da própria artista. propiciou que se buscasse identificar de que forma esse poder
É importante salientar, que todas as poesias são de autoria de Rita aparentemente ilusório, tem capacidade de influenciar nas permanências
Lee, eventualmente, é possível que algum parceiro tenha opinado sobre e transformações que ocorrem nas mentalidades, as quais, muitas
palavras que soassem mais adequadamente, ou a própria Rita, opinado vezes, encontram-se personificadas em ações sociais inconscientes, ou
na melodia, para encaixar-se na poesia. seja, o poder que os símbolos têm nas formas de agir das pessoas.
Partindo desses pressupostos, este estudo, procurou composições de De Bronislaw Baczko, seguiu-se as indicações no que concerne a
Rita Lee, com temáticas femininas, produzidas entre as décadas de 1970 imaginação social, como apoio para análise dos estereótipos femininos
e 2000. Estas temporalidades não são aleatórias e se justificam, pelo que emergiram do decorrer do estudo, além de colaborar sobre

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maneira para identificar como as próprias mulheres se apropriaram de relacionar a sua trajetória com os outros aspectos evidenciados no
dessas imagens capítulo.
É possível dizer que Chartier ao tratar das representações sociais O segundo capítulo debruçou-se sobre as fontes selecionadas
estabelece de certa forma, um diálogo com Baczko quando este último buscando analisar as personagens das composições e ao mesmo tempo
debruça-se sobre o imaginário social. Uma vez, de acordo com Baczko, fazer um link com os itens evidenciados nos três subtítulos do primeiro
para os seres humanos qualquer poder está envolto de representações capitulo, para, a partir daí compreender como as lutas, conquistas e
coletivas que têm como célula embrionária a imaginação social. transformações femininas emergem das poesias. E, por fim, inferir qual
Além das indicações teóricas, recorreu-se igualmente a historiografia mensagem Rita Lee pretendeu transmitir às mulheres brasileiras.
sobre a história das mulheres, tais como, Maria de Fátima Cunha,
Carla Bazanezzi, ressaltando que se elegeu como espinha dorsal os
1 “O QUE QUER A MULHER1”?
estudos de Raquel Soihet. No que tange aos estudos relacionados à 1.1 Mulheres brasileiras na segunda metade do
música brasileira, as leituras transitaram por várias autores, dentre eles século XX: um breve panorama
Jairo Severiano, Zuza Homem de Mello, Paulo César Araújo, Nelson
Mota, mas, principalmente serviu-se das obras do historiador Marcos A historiografia durante muito tempo debruçou-se sobre os grandes
Napolitano. acontecimentos, como por exemplo, as guerras e as conquistas, ou seja,
Com base nos referencias teóricos e historiográficos, levantou-se uma história masculina e elitista, que ao ser escrita desprezou o que
dentre as inúmeras composições de Rita Lee as que tivessem a temática pensavam, o que queriam, o que fizeram e como viveram as mulheres.
feminina, para que dentre estas, fossem pinçadas algumas que Essa forma de ver e escrever a história, desprezando a mulher enquanto
considerou-se representativas para a construção do estudo sujeito, perdurou até meados do século XX.
Após apropriar-se dos conceitos teóricos e de inteirar-se da A história das mulheres no Ocidente presenciou entre o final
bibliografia relacionada ao tema e do conjunto documental, este do século XIX e início do século XX a formação da primeira grande
estudo monográfico foi divido em dois capítulos. O primeiro capítulo, onda feminista; foi naquele momento que as mulheres, cientes de sua
apresenta uma breve análise sobre o papéis atribuídos aos gêneros na condição de agentes históricos alijados, passaram a reivindicar direitos
sociedade brasileira daquele período, e as mudanças comportamentais civis, tais como, direito ao voto, a educação e ao trabalho, ou seja,
resultantes, principalmente da liberação sexual feminina. Atrelado a isso alguma igualdade, entretanto preservando as diferenças.
e dentro do contexto, o próximo passo buscou apresentar como o cenário O segundo movimento por direitos femininos se deu entre os anos
cultural e musical brasileiro se colocava perante as transformações que 60 e 70 do século passado. O episódio mais emblemático ocorreu em
o corriam em outros setores da sociedade. Ainda dentro do primeiro 1 ( Was wil das Wieb?)- a pergunta de Freud, em carta a Marie Bonaparte. ap.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque.
capítulo traçou-se, uma breve biografia da compositora com a intenção 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 15.

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1968 em Altantic City nos Estados Unidos da América-EUA, ficando mais atuar extra-lar, deixando de ser uma prostituta doméstica”3. No decorrer
conhecido como se nele houvera uma queima de sutiãs, fato este não das décadas 1930 e 1940 as mulheres brasileiras obtiveram algumas
concretizado. Em sete de setembro daquele mesmo ano enquanto em um conquistas no que tange a direitos sociais como por exemplo, o direito
teatro era eleita a Miss América, do lado de fora mulheres protestavam a votar e ser eleita e a regulamentação do trabalho fora do lar, este
carregando elementos evocativos da feminilidade, dentre eles o sutiã, último, embora carregasse em si um fator econômico de certa maneira,
que foram depositados em uma lixeira para serem queimados, o que foi permitiu a saída do ambiente doméstico; entretanto, as tarefas que
impedido pelas autoridades. lhes eram destinadas encontravam-se muito próximas das praticadas
no ambiente privado. Mesmo com alguns avanços conseguidos após
A sociedade estadunidense encontrava-se em um momento de
a Segunda Grande Guerra, com a industrialização, urbanização e
fragilidade, por conta da Guerra do Vietnã e do assassinato de Martin
modernização a maioria das mulheres brasileiras, adentraram aos
Luther King, assim, idéias racistas, e belicistas deveriam ser combatidas
anos 1950 ainda se pautando pelo modelo “rainha do lar” próprio da
como raízes de um mal a ser expurgado. Foi, portanto, naquele contexto
sociedade tradicional brasileira.
que o movimento feminista espalhou suas sementes e encontrou solo
Os papéis femininos e masculinos eram nítidos e distintos; as regras
fértil para germinar, não contra os homens, mas par a par com eles.
morais permitiam o exercício da sexualidade masculina, enquanto o
Embora já houvesse mulheres nas Universidades, sua inserção ideal feminino era da pureza e o trabalho da mulher considerado um
intensificou-se, sendo que a partir desse momento a História das Mulheres, apêndice do masculino. Na família brasileira nesse período, o homem
mesmo que maneira ainda incipiente buscou dar voz às mulheres com exercia o papel de chefe, provedor e autoridade já à mulher caberia a
estudos voltados principalmente às marginalizadas; privilegiou-se, maternidade, a educação dos filhos o bem estar do marido e do lar.4
portanto, a história de mulheres vítimas ou heroínas, visto que, havia uma As relações dentro das famílias eram políticas e de poder nas quais o
necessidade de valorizar a mulher, pois a luta era deveras acirrada. lugar reservado às mulheres era determinado pela estrutura familiar
Mais tarde, já com as primeiras conquistas efetivadas, teve início cujo poder encontrava nas mãos dos homens.5
uma reflexão mais aprofundada sobre o estudo da história das mulheres. seu falecimento em 1976 atuou politicamente fundando diversas instituições
Adveio um momento de calmaria, no qual emergiram muitas estudiosas que reivindicavam os direitos femininos, integrou e promoveu eventos em
que se discutiam a condição mundial e brasileira da mulher no século passado.
da história das mulheres que se distanciaram da história política DICIONÁRIO HISTÓRICO Biográfico Brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio de Janeiro:
encaminhando-se para a história das relações de gênero. Ed. FGV, 2001 Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies /AEraVargas
1/biografias/berta_lutz. Acesso em : 6 de jul. 2010.
No Brasil pode-se inferir que, ainda de maneira menos acelerada, o 3 SOIHET, Rachel. Feminismo e antifeminismo. Mesa Redonda Gêneros da
processo também se deu, pois segundo Rachel Soihet algumas mulheres História. Curitiba: FCC/UFPR, 2010. Palestra Proferida no Memorial de Curitiba-
Teatro Londrina em 14 mai. 2010.
entre elas “Bertha Lutz2 já em 1918 afirmavam que a mulher deveria 4 BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary (org.),
2 Zoóloga brasileira nascida em São Paulo 1894. Foi uma das primeiras BASSANEZI, Carla (coord.) História das mulheres no Brasil. 4. ed. São Paulo:
mulheres a conquistar cargos no funcionalismo público em 1919, quando Contexto, 2001, p. 667-639.
tornou-se secretária do Museu Nacional do Rio de Janeiro. A partir de então até 5 ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. (coord.).A mulher, a Cultura

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Ao referir-se à família, vale salientar que, para investigá-la renunciaram a separação entre o público e o privado tentando uma
eficazmente é necessário saber distinguir os papéis destinados a cada ruptura com o padrão dominante. A tarefa demonstrou-se difícil,
gênero buscando compreender o qual deles cabe à mulher no cerne das visto que, de certa maneira, grande parte das representações sobre a
estruturas que sustentaram e ainda sustentam a sociedade brasileira e mulher permanecia atrelada aos modelos anteriores; pois, de acordo
que tem como célula mater o sistema patriarcal; entendendo que esta com Rachel Soihet, na década de 1960 enquanto muitas mulheres
célula se sustenta pelo poder simbólico e este, por sua vez, está envolto de brasileiras reivindicavam o direito ao trabalho e igualdade de salários,
representações coletivas, ou seja, representações sociais. Cabe lembrar várias revistas publicavam textos que ridicularizavam o movimento e
que as representações sociais são oriundas das percepções do social destruíam completamente a capacidade feminina de pensar; uma vez
que produzem estratégias e práticas visando impor uma autoridade, que, para alguns periódicos da época as mulheres que pensavam eram
legitimar um projeto ou justificar escolhas e condutas. Nesse sentido, arquetipadas como feias e destinadas à solteirice.7 Contudo, as fissuras
a posição social do indivíduo definirá o seu lugar, papel e forma de ocorridas no modelo tradicional da sociedade brasileira possibilitaram
exercê-lo nas estruturas que sustentam a sociedades. 6 que um novo perfil feminino se esboçasse.8
Com base nessas indicações, pode-se perceber que o papel A maioria dos estudos sobre o último quartel do século XX evidencia
atribuído aos gêneros determinava às mulheres um comportamento que a revolução dos costumes do final dos anos 60, principalmente
ilibado. Elas deveriam cuidar da aparência, serem bonitas e insinuantes, em relação à sexualidade, foi preponderante para a emancipação
mas não poderiam tomar qualquer iniciativa de aproximação com os feminina e dentro disto o advento da pílula anticoncepcional que
homens; estes por sua vez, teriam que demonstrar virilidade, valentia, libertou a mulher fisicamente do aborto e suas consequências. A partir
independência e força. Tais características os tornariam atraentes um disso, o exercício da sexualidade poderia acontecer sem o risco da
para o outro. Nesse arranjo ideal imaginado pela sociedade, a mulher gravidez, assim, pode-se perceber, mesmo que de maneira incipiente,
sempre buscaria um homem que fosse bonito, potente, forte, protetor um direito adquirido pela mulher sobre seu próprio corpo podendo ser
e capaz de oferecer segurança a ela e à sua prole, ele por seu lado sexualmente mais ativa quer fosse nas relações conjugais ou mesmo
esperaria dela delicadeza, passividade, docilidade e servidão. sem a necessidade destas. Em suma, proporcionou “à sexualidade
Estudos sobre a condição das mulheres na sociedade brasileira feminina a possibilidade de busca exclusiva do prazer, plenamente
demonstram que entre as décadas de 1960 e 1970, não obstante as desvinculada da procriação”.9 Por outro lado, havia uma dualidade no
constantes reações adversas às suas infiltrações/inserções em outros 7 SOIHET, Rachel. Feminismo e antifeminismo. Mesa Redonda Gêneros da História.
papéis sociais além daquele que lhes era destinado, muitas delas Curitiba: FCC/UFPR, 2010. Palestra Proferida no Memorial de Curitiba- Teatro
Londrina em 14 mai. 2010.
e a Sociedade. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1979. ( Coleção: o Mundo, hoje; v. 8 BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE. op. cit . 4. ed.
31). p. 27. São Paulo: Contexto, 2001, p. 667-639.
6 CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de 9 CUNHA, Maria de Fátima da. Homens e mulheres nos anos 1960/1970: um
Janeiro: Bertrand Brasil, Lisboa: DIFEL, 1990. modelo definido. História: questões & debates. Curitiba: UFPR, v. 18, n. 34, jan./

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comportamento feminino, tendo em vista que, uma parte relevante das Redemocratização, das Diretas Já ou o do Impeachment, quando saíram
mulheres era contrária as mudanças que estavam ocorrendo no modelo às ruas em várias cidades do país pedindo eleições diretas, direitos
que haviam apreendido da geração anterior. iguais ou a saída do então Presidente, Fenando collor de Mello.
Nas décadas seguintes, em que pese o período repressivo da Umas das questões centrais da democracia almejada pelos
ditadura militar, as idéias plantadas pelas gerações anteriores deram brasileiros, consistia nos direitos relativos à cidadania, entretanto,
os primeiros frutos e as mulheres começaram a se organizar em várias no que concerne às mulheres, os primeiros governos eleitos no país
frentes de movimentos e a participar mais pública e abertamente da vida pós periodo ditatorial, pouco fizeram efetivamente para assegurar
social do Brasil, não apenas no que dizia respeito às próprias mulheres; suas conquistas. Devido a isso, as mulheres continuaram lutando por
mas também nas questões relacionadas à sociedade de maneira geral. legislações e políticas públicas que eliminassem as desigualdades entre
Desta forma surgiram no meio urbano e rural brasileiro, organizações de os gêneros, tanto na esfera privada quanto na pública. Fato esse que
caráter feminino sem, no entanto, serem necessariamente feministas10, só ocorreu em 2003, quando entrou em vigor o Novo Código Civil11 e
que lutavam pelos direitos civis das mulheres, como também procuravam a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres-SPM, criada no ano
reivindicar e influenciar nas decisões no sentido de promover mudanças anterior, foi alçada ao status de Ministério subordinando-se diretamente
no destino da nação. Muitas dessas organizações eram independentes à Presidência da República. Isto possibilitou às mulheres renunciarem
de partidos políticos e mesmo quando neles inseridas tinham suas a separação entre o público e o privado, e deixarem evidente “que
próprias reivindicações. as relações dentro das famílias eram relações políticas e de poder
As questões femininas foram inseridas nas discussões de vários [...]”.12 No aspecto legal isso efetivamente aconteceu, entretanto cabe
setores e classes da sociedade brasileira dentre elas as universidades, as
11 O Novo Código Civil rompeu com o legado discriminatório previsto no texto
organizações políticas e a Igreja. As articulações dos objetivos passaram de 1916. A Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor em 11 de
a ser praticadas de forma coletiva, unindo diversas organizações em janeiro de 2003, quando a legislação civil brasileira passou, finalmente, a se
adequar aos parâmetros constitucionais e internacionais no que se refere a
torno de um mesmo direito ou mesma proposta, como por exemplo igualdade de gênero. O seu texto “[...] Introduz avanços significativos no que
denunciar as torturas e assassinatos de opositores ao regime militar, se refere à proteção dos direitos civis da mulher, sob a perspectiva da igualdade
avaliar as condições da mulher no mercado de trabalho ou ainda entre os gêneros. Elimina, assim, as normas discriminatórias até então vigentes,
como as referentes à chefia masculina da sociedade conjugal; à preponderância
lutar por uma proteção mais eficaz para as mulheres nas relações paterna no pátrio poder e à do marido na administração dos bens do casal,
sociais de caráter privado e público. As mulheres estiveram presentes inclusive dos particulares da mulher; à anulação do casamento pelo homem,
caso ele desconheça o fato de já ter sido a mulher deflorada e à deserdação de
em movimentos determinantes para o destino do Brasil, como o da filha desonesta que viva na casa paterna [...]”. PIOVESAN, Flavia. Direitos civis
políticos: a conquista da cidadania feminina. O progresso das mulheres no Brasil.
jun. 2001. ISSN 0100-6932. p. 204.
Disponível em: www.mulheresnobrasil.org.br/. Acesso em 29 fev. 2008. p. 49.
10 Procurando manter o foco e não esvaziar o estudo, não serão apresentados nomes
das organizações, pois que todas, a sua maneira, foram importantes para a história 12 SOIHET, Rachel. Feminismo e antifeminismo. Mesa Redonda Gêneros da
das mulheres no Brasil; Nem tampouco serão nominadas ativistas de qualquer área História. Curitiba: FCC/UFPR, 2010. Palestra Proferida no Memorial de Curitiba-
para não cair da armadilha da subjetividade ao lhe conferir importância. Teatro Londrina em 14 mai. 2010.

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questionar se as conquistas para além dos aspectos jurídicos e legais aspectos ocorreram mudanças substanciais, afinal, atualmente o Brasil
estenderam-se para as práticas comportamentais. As leis alteram as tem uma mulher como Presidenta da República, o que demonstra que
regras para convívio em sociedade, no entanto nem sempre têm a houveram avanços, visto o cerceamento político que lhes era imposto
mesma eficácia sobre os comportamentos, pois estes são determinados até a década de 1930.
pelo imaginário e pelas representações, que por sua vez, não mudam
de acordo com as legislações, nem tampouco, sofrem alterações
1.2 Cultura e música popular brasileira:
abruptas. Os elementos sociais constitutivos do campo simbólico/
1950-1970
imaterial têm uma dinâmica de movimento diferente daquela adotada Entre 1950 e início de 1970, o Brasil passou por
pelo o que se encontra no universo real/material. Bronislaw Baczko, transformações  políticas, econômicas e culturais, que marcaram
ao tratar sobre o imaginário social indica que este não é um simples indelevelmente a história do país. Dentro desse contexto, neste estudo,
adorno da vida material/real; pelo contrário, o imaginário é o procurou-se direcionar um olhar mais criterioso para as transformações
sustentáculo do poder simbólico, e este último por sua vez, não é ocorridas nos aspectos culturais, mais precisamente nas artes e dentro
“ilusório” por ser abstrato, pois, se materializa toda vez que consegue delas na Música Popular Brasileira.
persuadir, dominar e subjugar. Para Baczko todas as sociedades de Compartilhando das indicações de Marcos Napolitano, entende-se
uma maneira ou de outra aderem a baluartes providos de dispositivos neste trabalho, a Música Popular Brasileira- MPB como uma instituição
técnicos de manipulação que possibilitem salvaguardar as suas cultural forjada a partir do debate estético-ideológico ocorrido nos anos
representações ou símbolos.13 Seguindo as indicações de Baczko, 60 na cultura brasileira: Logo, não se trata de um gênero específico, visto
pode-se questionar, em que medida, o imaginário da sociedade que aglutina e legitima componentes musicais diversos da musicalidade
brasileira na segunda metade do século XX conseguiu romper com popular brasileira com elementos oriundos do rock e do jazz.14
os conceitos e estereótipos sobre os gêneros e particularmente sobre Cabe lembrar que, a MPB está ligada a vida de todos os brasileiros e
o feminino. Teriam as mulheres realmente conseguido a igualdade tem como a sua maior qualidade a diversidade de ritmos e estilos. Além
que almejavam? O gênero masculino estaria preparado para conviver disso, é o melhor produto de exportação do país, sendo aceita em várias
com a nova mulher que é “igual” a ele, pelo menos perante a lei? partes do mundo por público e crítica, pois expressa sentimentos que
Será que os comportamentos realmente mudaram? São perguntas vão da alegria à tristeza, da comédia ao drama, do lúdico ao lúgubre,
cujas respostas não estão postas de forma concreta neste momento, além de contar, nesse caso específico, o desenrolar da história do Brasil
pois o processo ainda está em andamento e as lutas por conquistas e como os sentimentos de brasilidade percebem cada momento dessa
femininas permanecem. Porém, é possível inferir que em alguns história.

13 BACZKO Bronislaw: A Imaginação Social. In: Enciclopedia Einaudi. Antropos- 14 NAPOLITANO, Marcos. O conceito de “MPB” nos anos 60.  In: História: questões
homem. v. 5. Lisboa: ImpresaNacional/Casa da Moeda, 1985, p. 307. & debates. Curitiba, v. 16, n. 31, jan./jun. 1999. p.13. ISSN 0100-6932.

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Nos anos 1950, fora do Brasil o rock ´n` roll15 já estava em evidência, destoava dos “vozeirões” e seus malabarismos apresentados como as
mas aqui não teve a mesma aceitação, por vários motivos, dentre eles principais características das músicas cantadas até então.
a indumentária pesada (calça e jaqueta de couro) e o comportamento A Bossa Nova virou moda e todos a usavam para tudo, a publicidade
que não combinava com Copacabana e o mar.16 e a mídia da época se apropriaram de seu sucesso para vender carros,
Há que se contextualizar, visto que o Brasil não se restringia naqueles apartamentos e roupas; o presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira
idos e nem tampouco se restringe hoje ao mar de Copacabana; foi tema de uma canção de Juca Chaves, com o título Presidente
entretanto o Rio de Janeiro foi e ainda é, um dos pólos de efervescência bossa-nova, enfim, até a polêmica e conservadora União Democrática
cultural, ou seja, o nascedouro de manifestações políticas e culturais Nacional-UDN tinha uma bancada Bossanovista.
que influenciaram grande parte do país. Assim como a Bossa Nova marcou o país na área musical,
O primeiro movimento MPBista que se pode citar é o da Bossa no aspecto político/econômico a marca do final do governo
Nova, que surgiu no final de década de 1950 e se tornou o marco desenvolvimentista de JK, foi a alta inflacional e a elevação do custo de
fundador da Moderna Música Brasileira. Era a música da juventude vida, que gerou instabilidade no campo da política; conduzindo parte
da época, aliás, mais que música, era um estado de espírito. Em 1958 da sociedade brasileira a desejar uma participação mais efetiva nas
esse estilo musical teve a sua origem com a música Chega de Saudade decisões que norteariam o destino do país. Os estudantes universitários
interpretada por João Gilberto cuja melhor tradução é a batida e os intelectuais, por exemplo, buscaram influenciar os operários e a
singularíssima do violão e a forma contida na emissão dos vocais, que classe estudante agindo por meio dos Centros Populares de Cultura;
15 Na metade dos anos 1950 Nora Ney lançou a música Roda das Horas, os operários mobilizaram-se por intermédio dos movimentos sindicais
uma versão em ritmo de fox de Rock Around the Clock, marcando o início do
rock no Brasil. A primeira música considera rock nacional foi Rock and Roll em e os agricultores organizados nas Ligas Camponesas passaram a exigir
Copacabana, de autoria de Miguel Gustavo, gravada por Cauby Peixoto em 1957. Reforma Agrária.
Durante o período da Bossa Nova o rock brasileiro continuou se desenvolvendo.
Em 1959 Cely Campello gravou as versões Estúpido Cupido e Banho de Lua, Os problemas econômicos originados na gestão de Juscelino
que no ano seguinte se transformaram em grandes sucessos. Em seguida Ronnie Kubitschek se intensificaram, gerando tensões políticas. Estas
Cord lançou Rua Augusta, ensaiando uma apologia à transgressão que acabou
influenciando a rebeldia comedida da Jovem Guarda. A Tropicália propiciou
culminaram na renúncia do presidente udenista Jânio Quadros em
uma revolução na música, trouxe consigo as guitarras elétricas para executar agosto de 1961, substituído pelo seu vice, o petebista João Goulart.
ritmos genuinamente brasileiros. Na década de 1970 rock passou por período
No período do governo Jango, a crise econômica tornou-se mais grave
de marginalização, mas suas sementes estavam plantadas, assim, nos anos 1980
muitas bandas brasileiras de rock se formaram, fizeram sucesso e embalaram a e os conflitos políticos e sociais se acirraram. Assim, em primeiro de
geração “coca-cola”. SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no abril 1964, as Forças Armadas aliadas aos setores conservadores da
tempo. 85 anos de músicas brasileiras. v. 2: 1958-1985. 3. ed. São Paulo: Ed.
34, 1998. p. 15-18. Ver mais em: ROCK BRASIL 1 — 1955-1984. A revolução, sociedade, deram um golpe de Estado para depor João Goulart. E sob
de Nora Ney a Bete Balanço. http://cliquemusic.uol.com.br/br/Generos/Generos. o pretexto de combater a corrupção e a subversão impuseram ao Brasil
asp?Nu_Materia=31. Acesso em: 18 mar. 2008.
16 MOTTA, Nelson. Palestra. Diálogos Universitários. Curitiba, 13 mar. 2008. p. irreg. um regime ditatorial e autoritário.

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No que concerne a “intelligensia” brasileira o ano de 1964 jovens, que propunham a fusão de elementos da tradição com
elementos da modernidade[...]. No âmbito do mercado musical,
marcou o início de tempos duros e difíceis; para a área cultural não foi
esta segunda vertente parece ter triunfado, constituindo as bases sui
diferente, embora também tenha sido profícuo, pois propiciou inúmeras generis de uma canção nacionalista e engajada no Brasil.18
atividades como as desenvolvidas nas artes plásticas, no teatro, no
Diante de um cenário político conturbado, para alguns jovens
cinema e na música. Nesse período, uma parte dos bossanovistas,
compositores não havia mais clima para a música leve e delicada, o
influenciados pelas idéias do Centro Popular de Cultura - CPC17
momento apresentava-se mais propício para uma música sintonizada
iniciaram uma aproximação com os sambistas dos morros cariocas,
com o que a sociedade vivenciava e devido a isso as letras e melodias
buscando a valorização da cultura popular e nacional; os barcos, o
deveriam expressar os sentimentos das camadas mais deserdadas da
mar e as garotas que predominaram no cenário poético da primeira
população. Era necessário buscar, “uma Bossa Nova nacionalista ou
geração da Bossa Nova, foram cedendo espaço a personagens como
uma canção engajada, no sentido amplo da palavra”.19 O engajamento
os operários urbanos, os camponeses ou os moradores dos morros do
político despertado em vários segmentos culturais, redefiniu o conceito
Rio de Janeiro.
de Música Popular Brasileira uma vez que, entrou em cena a MPB
De acordo com o historiador Marcos Napolitano para a Bossa
renovada, comprometida com projetos culturais de conscientização
Nova esse momento:
social, que incorporou elementos da Bossa Nova dentre os quais os
Foi uma linha divisória de um debate entre aqueles que a viam
como “entreguismo” musical e cultural [...] e reafirmavam um
arranjos musicais e a forma de cantar além de artistas como Nara Leão,
“neofolclorismo” que preservasse a música dos “negros e pobres”, Sérgio Ricardo, Carlos Lyra, Edu Lobo.
e um outro tipo de nacionalismo, geralmente defendido pelos mais O movimento em busca do nacional-popular se expandiu, e nas
17 O CPC –Centro Popular de Cultura, era o braço cultural da União Nacional artes plásticas materializou-se na exposição Nova objetividade brasileira
de Estudantes- UNE, foi criado em 1961, no Rio de Janeiro e congregava artistas de Hélio Oiticica, realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna no
das mais diversas procedências, tais como: teatro, música, cinema, literatura,
artes plásticas etc. A linha principal do projeto do CPC se baseava na tentativa
Rio de Janeiro, cuja proposta era demonstrar um estado da arte de
de construção de uma cultura nacional popular e democrática por intermédio da vanguarda no Brasil. Um dos seus elementos era a instalação da obra
conscientização das camadas populares. A idéia central do projeto coadunava-se
Tropicália, que de certa maneira sintetizava o que Oiticica e outros
com uma noção arte popular revolucionária, pensada como recurso da revolução
social. A idéia era defender o caráter coletivo e didático da obra de arte e do artistas queriam transmitir naquele momento. Ou seja, travar um diálogo
papel engajado e militante do artista; isto impulsionou uma série de iniciativas, tais entre o arcaico e o moderno, entre a vanguarda e a tradição popular
como encenar peças de teatro em portas de fábricas, favelas e sindicatos; publicar
cadernos de poesia que eram vendidos a preços populares, e, por fim, realizar 18 NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1790-
filmes com financiamento próprio. GARCIA, Miliandre. A questão da cultura 1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. Artcultura:
popular: políticas culturais do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional Revista de História, Cultura e Arte. Uberlândia, v. 8, n. 13, jul.-dez. 2006. p. 137.
dos Estudantes (UNE). Revista Brasileira de História. v. 24, n. 47. São Paulo: ANPUH, 19 NAPOLITANO, Marcos. A cultura a serviço da revolução (1960-1967).
2004. p. irreg. Disponivel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102- In: _____. Cultura brasileira. Utopia e   massificação (1950-1980). São Paulo:
01882004000100006&script=sci_arttext. Acesso em: 30 jun 2009. Contexto, 2001, p. 41.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 388 | História | 2012


brasileira. É importante destacar que essas experiências estéticas, nas “mau-gosto” como parte dos procedimentos de vanguarda”.22 José Celso
artes plásticas, funcionaram como a mola propulsora para que o propunha de forma debochada denunciar a história brasileira como farsa,
movimento denominado Tropicalista se expandisse para outras áreas a sociedade como teatro e as idéias da elite intelectualizada e burguesa
da cultura brasileira.20 como mistificadoras da história, encobrindo-lhe a verdadeira face.23
O golpe civil militar de 1964, ocupou-se inicialmente em perseguir Concomitantemente o movimento do Cinema Novo brasileiro já
os ativistas políticos e desmantelar organizações populares, entretanto vinha se desenvolvendo desde o início dos anos 1960 com os filmes
descuidou-se dos artistas e intelectuais ou considerou-os pouco de Ruy Guerra e Glauber Rocha, cuja inspiração era a nouvelle vague.
perigosos naquele momento. Isso possibilitou produções teatrais como A sua principal característica era a propor um cinema autoral fora dos
o espetáculo musical Opinião, escrito de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo grandes estúdios, nos quais cenários, diálogos e personagens seriam
Pontes e Armando Costa. O Opinião estreou em 1964 tendo como mais próximos possível do natural; ou seja, fazer cinema fora dos
protagonistas Nara Leão, Zé Ketti e João do Vale. A escolha dos artistas padrões hollywoodianos.
principais deixa transparecer a sua tendência aglutinadora de vivências, A linguagem do Cinema Novo procurava estabelecer uma relação
idéias, culturas, sentimentos e expectativas das classes média e popular com o público, por meio de uma narrativa inspirada na cultura popular,
urbana com rural /sertanejo. As canções do espetáculo também sua proposta era apresentar a real sociedade brasileira e seus conflitos
traduziam a idéia de uma frente única nacionalista reagindo contra sociais utilizando como temática principal o sertão nordestino e as favelas
o regime político. Além do Opinião, outros espetáculos teatrais foram cariocas. Duas produções de Glauber Rocha foram representativas do
encenados no período que compreende 1964 a 1966 procurando, por movimento do Cinema Novo: Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) que
meio da música demonstrar os dramas e expressar as críticas sociais, de acordo com alguns estudiosos “foi o maior impacto cinematográfico
como por exemplo, os produzidos pelo Teatro de Arena com Arena do ano e um evento transformador na vida de tantos que estavam
Conta Tiradentes, Arena Conta Zumbi.21 na pré-estréia no cinema Ópera na praia de Botafogo”24 e Terra em
Outro evento marcante na área teatral, foi a montagem em 1967, Transe (1967) que inspirou Caetano Veloso impulsionando-o rumo ao
pelo grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correa de O Tropicalismo.
Rei da Vela de Oswald de Andrade. Muitos elementos que mais tarde Nos anos finais da década de 1960, as garras da ditadura militar
seriam incorporados pela estética Tropicalista já se evidenciavam no tornaram-se mais ameaçadoras e a censura escureceu o cenário
programa, na montagem e encenação da peça, entre elas a “estética do 22 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: relíquias do
Brasil em debate. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH. v. 18, n. 35
20 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: relíquias do 1998, p. 62. ISSN 0102-0188.
Brasil em debate. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH. v. 18, n. 35 23NAPOLITANO, Marcos. A cultura a serviço da revolução (1960-1967). In:
1998, p. 61. ISSN 0102-0188. _____. op. cit.,, p. 60.
21NAPOLITANO, Marcos. A cultura a serviço da revolução (1960-1967). In: 24MOTTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio
_____. op. cit., p. 50-51. de Janeiro: Objetiva, 2009, p.66.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 389 | História | 2012


político/cultural brasileiro. Por conta disso, pode-se inferir que no Cabe salientar, que a banda Os Mutantes da qual Rita Lee era
campo cultural muitas formas de manifestações foram cerceadas, integrante será melhor analisada e contextualizada no decorrer do
embora os Festivais de Música Popular25, que ocorreram entre 1966 e próximo tópico deste trabalho. Porém, mesmo de maneira sintética é
1968, tenham proporcionado de forma substancial, a sobrevivência de oportuno dizer que assim como os Tropicalistas, Os Mutantes eram
um ideário, tornando-se relevantes para a consolidação da MPB. irreverentes e debochados e faziam um rock que misturava influências
As músicas dos Festivais tornaram-se porta-vozes do que não musicais anglo-americanas com elementos e ritmos da musicalidade
era possível falar e fazer, o que de alguma maneira, transformou os brasileira. O hibridismo e qualidade das canções, o comportamento
palcos em espaços para acontecimentos políticos que não poderiam contestador, as performances com arranjos musicais inovadores, foram
acontecer no espaço próprio da política. As manifestações políticas elementos determinantes para que Os Mutantes, fosse considerada
estavam cerceadas e na impossibilidade de votar em candidatos ou na cena musical como uma das mais importantes bandas da MPB; e
partidos políticos, o público votava em músicas. O que acontecia no apontada por muitos como a primeira banda de rock genuinamente
país naquele período era ouvido, visto e sentido por meio dos festivais, brasileiro. 26
pois, uma parcela considerável dos cantores e do público opunha-se No ano seguinte o cenário musical brasileiro foi balançado pelos
ao governo ditatorial. tropicalistas com o lançamento do LP-manifesto Tropicália ou Panis et
O III Festival de MPB, da Record de 1967 foi emblemático, Circensis. Em maio, tiveram início as gravações do álbum, do qual
pois nesse evento que Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes, participaram artistas como Caetano Veloso, Gilberto, Gil Gal Costa,
lançaram no meio musical as bases do movimento Tropicalista. Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, além dos poetas Capinan e Torquato
Influenciado pelo Manifesto Antropofágico o movimento Tropicalista Neto e do maestro Rogério Duprat, responsável pelos arranjos.
sofreu influências de Oswald de Andrade, que propunha a deglutição O lançamento, em agosto daquele mesmo ano, foi um grande
de elementos culturais aparentemente opostos, como: rural/urbano, acontecimento, pois o LP serviu como ponto de convergência entre os
industrial/manual e arcaico/moderno, assim, o movimento Tropicalista, baianos e a vanguarda paulista, sintetizando o movimento musical que
propunha uma manifestação cultural nova e sintetizante de influências iria revolucionar a MPB, ao propor uma colagem de sons, gêneros e
desiguais. ritmos populares, tanto nacionais quanto estrangeiros.27 Não eram
somente as músicas que compunham o manifesto, as imagens da capa
25 Os Festivais de música foram promovidos pelas redes de televisão entre 1965
a 1985. A TV Excelsior, fez o I Festival de MPB em 1965. Nos próximos anos e contracapa, originadas de criações coletivas, também estavam repletas
as televisões Record, Rio e Globo fizeram festivais simultâneos. No ano de 1968
aconteceram quatro Festivais: I Bienal do Samba e IV Festival da MPB da Record, o 26 WORMS, Luciana Salles; COSTA, Wellington Borges. Brasil século XX: ao pé da
Festival Universitário da Canção Popular da Tupi e III Festival Internacional da Canção letra da canção popular. Curitiba: Nova Didática, 2002. p. 100-102.
da Globo. Este último é o mais polêmico de todos e será discutido no decorrer deste 27 NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: relíquias do
estudo. WORMS, Luciana Salles; COSTA, Wellington Borges. Brasil século XX: ao pé da Brasil em debate. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH. v. 18, n. 35
letra da canção popular. Curitiba: Nova Didática, 2002. p. 95-104. 1998, p. 67. ISSN 0102-0188.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 390 | História | 2012


de representações e referências tropicalistas. Enfim, Panis et Circensis foi das flores de Geraldo Vandré, cuja letra retratava o sentimento de parte
uma manifestação contestatória à xenofobia radical representada por da juventude brasileira em relação ao contexto do regime ditatorial.
parte da juventude politizada e, ao mesmo tempo, contra a submissão A letra da música pregava reação enquanto denunciava desmandos,
ao imperialismo cultural que determinava os comportamentos. Ou seja, questionava diferenças sociais e posições políticas. Era um lamento
de alguma maneira apresentava uma síntese do Tropicalismo como que se misturava a uma miscelânea de princípios e perspectivas que
movimento político existencial que propunha a transgressão como traduziam o quadro político, social e econômico do Brasil. Em suma,
crítica, o comportamento anárquico e o desbunde como contracultura.28 por traduzir os anseios da maioria da sociedade e sintetizar o espírito
É importante esclarecer que o termo contracultura pode ser entendido dos Festivais como mediador dos desejos por liberdades políticas e
como uma rebeldia contra as ideias, valores e visão de mundo da cultura direitos sociais foi a escolhida pelo público, mas não pelo júri.
dominante, cultura esta que é sentida como uma forma de opressão, Posteriormente foram promovidos outros Festivais, mas suas canções
de cerceamento a liberdade e a autonomia pessoal. A ideologia da não tiveram cabedal para transformar a música brasileira, o que não
contracultura coloca o homem social em constante tensão, tendo de significa dizer que foram infrutíferos, pelo contrário, o saldo dos Festivais
um lado o imaginário e suas representações já internalizados pela sua foi uma renovação na Moderna Música Popular Brasileira.
vivência em sociedade e do outro, a sua própria condição de ser singular Nesse período, outros compositores como Raul Seixas, Walter
e portador de uma liberdade que lhe é intrínseca.29
Franco, Sérgio Sampaio, que optavam por criar ao invés de canções
Além do Tropicalismo, o ano de 1968 também assinalou o
de protesto músicas debochadas ou de conteúdo lisérgico/filosófico,
final simbólico da “Era dos Festivais”. O III Festival Internacional da
cujas letras narravam experiências, atitudes e indagações marcando
Canção- FIC, promovido naquele ano pela Rede Globo de televisão,
significativamente parte da juventude daquele período, especialmente
foi emblemático e revelou os impasses da criação no âmbito musical
no que se refere a transformação de valores ocorridos em fins da
brasileiro, pois, dele saiu vencedora a música Sabiá de Tom Jobim e
década de 60 na sociedade brasileira.
Chico Buarque, uma espécie de canção do exílio que de alguma forma
Por conta da repressão instaurada no país, muitos artistas e intelectuais
antecipava o que viria acontecer no Brasil após o Ato Institucional número
engajados ou não, haviam deixado o país; alguns espontaneamente,
5- AI-5 . Entretanto a preferida do público era Pra não dizer que não falei
30
outros a “convite” do Governo. As músicas com temas políticos foram
28 NAPOLITANO, Marcos. A cultura a serviço da revolução (1960-1967). In:
cedendo espaço às canções com letras mais debochadas, no entanto
_____. op. cit., p. 37-62.GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo
letras, comentadas pelo compositor. (org. ) RENÓ, Carlos. São Paulo: Cia das a temática política/social não se extinguiu. Na década de 1970 a MPB
letras, 1996. p. 80. passou por um período que se pode chamar de “criptográfico”. As
29 CAPELLARI, Marcos Alexandre (Catálogo USP) O discurso da contracultura
no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel (c. 1970), p. 212. In: pelo então presidente Arthur da Costa e Silva e marcou o início do período mais
Biblioteca Digital-Teses e Dissertações. Disponível em: http://www. Teses .usp .br / duro da ditadura militar, possibilitando ao Regime uma série de poderes para
teses / disponíveis.Acesso em: 9 jan. 2010. reprimir de forma “contundente” seus opositores, quaisquer que fossem eles e as
30 O Ato Institucional número 5, foi editado no dia 13 de dezembro de 1968 suas frentes de atuação: política, cultural ou ideológicas.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 391 | História | 2012


metáforas e os subterfúgios se infiltravam e escoavam pelas brechas principais nomes do estilo no país: Raul Seixas e Rita Lee. O primeiro,
da censura, ou seja, censores um tanto descuidados com o seu mister, misturando Elvis Presley com Luiz Gonzaga, esoterismo e provocação
eram ludibriados pelos compositores quando estes pretendiam tocar em letras aparentemente desprovidas de cunho ideológico político
em assuntos proibidos ou fazer denúncias contra o regime político. ou social, tornou-se um referencial para os roqueiros das próximas
Neste momento também, entrou no cenário musical um novo gerações. A segunda, egressa dos Mutantes, turbinou seu som com
“gênero”: a música “cafona”, que misturava o bolero, o samba e a a banda Tutti Frutti virando a grande dama do rock e a titia - hoje
balada romântica, cujas letras tinham como temática as grandes vovó - dos roqueiros brasileiros. Os Mutantes e os Novos Baianos
dores de amor e de maneira geral traduziam as vivências das classes filhos diretos do Tropicalismo permaneciam trilhando a meta de unir a
populares, das quais seus componentes eram oriundos. Essa vertente música brasileira ao rock. E, ainda na década de 1970 o Brasil, entre
da canção romântica, teve como expoentes Nelson Ned, Odair José, estupefato e incrédulo, viu surgir um fenômeno meteórico, nem por isso
Paulo Sérgio, Waldik Soriano, Agnaldo Timóteo, Cláudia Barroso e a menos avassalador, chamado Secos & Molhados.
dupla Dom & Ravel, que compôs e cantou Eu te amo meu Brasil, trilha Entretanto, toda essa força roqueira seria dizimada a partir de
sonora oficial da época do Brasil ame-o ou deixe-o.31 1977, com a massificação nas rádios brasileiras do fenômeno da
Em que pese o período repressivo, a MPB dos anos 70 não estava em discoteque, que passou como um rolo compressor. Já que fazer dançar
estado de inércia. Os Festivais continuaram acontecendo, patrocinados não era uma das grandes qualidades do rock daquela época, muitos
e monopolizados pela Rede Globo; outros movimentos musicais roqueiros embarcaram na onda disco, Rita Lee foi um deles que com o
como o Movimento Artístico Universitário- MAU ou Clube da Esquina LP Babilônia deu início a uma carreira de alta rentabilidade.32
ganharam terreno numa época de repressão devido a originalidade de
seus compositores e contribuiram para a expansão da música popular
1.3. De Rita Lee Jones a Santa Rita de Sampa
brasileira. Desses Festivais e movimentos surgiram nomes expressivos Ainda não havia para mim Rita Lee
da MPB, como, por exemplo, Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc, João A tua mais completa tradução
(Caetano Veloso). 1983.33
Bosco e Milton Nascimento.
Na década de 1970 quando o Brasil submergiu aos anos mais Rita Lee Jones, nasceu em 31 de dezembro de 1947 na cidade
duros do período ditatorial e passada a revolução promovida pelos paulista de Americana.34 Filha caçula do imigrante estadunidense
Tropicalistas e Os Mutantes, o rock adquiriu uma posição marginal no 32 WORMS, Luciana Salles; COSTA, Wellington Borges. op. cit., p. 121-126.
cenário musical brasileiro entrando em estágio de pupa. Entretanto, 33 Disponível em: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/41670/. Acesso em:
21 ago. 2010.
não foi uma década perdida, já que neste período surgiram os dois 34 Seu nome é resultado de duas homenagens: À Santa Rita de Cássia de
quem Chelza era devota e ao General Lee, a quem Charles admirava. Aliás a
31ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não. música popular cafona e homenagem ao General também já havia sido incorporada ao nome das suas
ditadura militar. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 15-24. irmãs mais velhas Mary e Virginia

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Charles Fenley Jones, um maçon e anticatólico fervoroso e da da média da maioria do brasileiros do período, o que de certa maneira
descendente de italianos Romilda Padula, uma pianista, católica de propiciaria à prole um bom nível de formação cultural.
carteirinha, catequista e conselheira da vizinhança. Charles, nas Na adolescência, Rita à noite fingia ir para a cama dormir e fugia
segundas-feiras quando retornava das reuniões da Maçonaria, de casa pela janela do quarto para tocar em festas de escolas, até que
“gostava de arrasar a Igreja Católica [...] trazendo artigos que deixavam em 1963 formou com Jean e Beatrice, suas amigas do Liceu Pasteur, as
Cheza35 horrorizada”, afinal, “Cheza tinha uma coleção de santinhos Teenage Singers, que mais tarde juntou-se ao trio masculino Wooden
de fazer inveja ao Vaticano”36, o que deixava Charles extremamente faces. Elas, boas de vocais e fracas de acompanhamento, eles, muito
“contrariado”. bons músicos, porém, fracos no vocal. A junção, quase natural, deu
Pode-se inferir que, se dependesse das representações sociais origem ao Six Sided Rockers que mais tarde se chamaria O´Seis que
apresentadas na formação de seu núcleo familiar, Rita Lee teria em sua chegou a gravar a música O Suicida em um compacto nunca lançado.
vida influências culturais variadas, e sua trajetória seria, provavelmente Com o entra e sai no conjunto o número de componentes foi
imprevisível e porque não dizer contraditória, pois pelas “crenças” reduzido a três: os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias e Rita, a mais
de seus pais essas diferenças culturais se evidenciam. Entretanto, espevitada das “meninas”. Nascia assim, O Kojunto, que logo depois
exatamente o improvável propiciou que Rita fosse educada e criada da seria Os Bruxos, aliás, o nome mudava a cada dia até que enfim, por
forma mais “ versátil” possível. sugestão de Ronnie Von adotou o nome de Os Mutantes. Em suas
Na infância, a pequena Rita queria ser veterinária ou atriz apresentações televisivas e nos shows que realizavam o grupo cantava
cinematográfica, embora sempre direcionasse o seu olhar para a em inglês, principalmente as músicas dos Beatles. Os Mutantes não
música. Foi aluna da pianista Madalena Tagliaferro, brincava de formar tinham parada, pois não se satisfaziam em fazer apenas apresentações,
trios vocais com as irmãs e ouvia deliciada as polcas tocadas pela mãe eles queriam sair para a estrada e estavam abertos as experiências que
ao piano. Como suas irmãs, estudou no tradicional Liceu Pasteur. Em o caminhar pudesse oferecer. Naquele contexto, provavelmente “não
casa o inglês era a língua comumente falada, mas um inglês diferente, eram diferentes de ninguém. De um pote de maconha, anfetaminas,
aprendido por Charles com descendentes dos escravos do avô. Rita,
bebida e muita farra, sorviam sofregamente, numa alucinação
mais tarde começou a cursar Comunicação Social na Universidade de
salvadora. Nem sabiam em qual cidade estavam para fazer shows”.37
São Paulo mas acabou desistindo, pois a música sempre falou mais
Certa ocasião, em 1966, quando em estúdio com Nana Caymmi,
alto. O contexto sócio/econômico/cultural da família Jones era acima
para quem faziam backings na música Bom dia, conheceram
35 Como era conhecida Romilda. “A matriarca dos Jones era a chefona da máfia Gilberto Gil, então marido de Nana, que os convidou para que lhe
do harém de Charles, todas muito cúmplices”. BARTSCH, Henrique. Rita Lee mora
ao lado. Uma biografia alucinada da rainha do rock. 1. ed. São Paulo: Panda acompanhassem no Festival da Record no próximo ano. E assim, em
Books, 2006, p. 19. 1967, Os Mutantes fizeram a sua primeira apresentação no III Festival
36 BARTSCH, Henrique. Rita Lee mora ao lado. Uma biografia alucinada da
rainha do rock. 1. ed. São Paulo: Panda Books, 2006, p. 19 37 id. ibib. p. 99.

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de Música Popular Brasileira da TV Record, acompanhando o baiano FIGURA 1- OS MUTANTES- 1969

que consagrou a música Domingo no Parque, obtendo o segundo lugar.


Os Mutantes, como já citado, integraram o núcleo de fundadores do
Tropicalismo, juntamente com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa,
Tom Zé, Rogério Duprat e outros artistas de peso.
Junto com Os Mutantes, Rita marcou presença e imagem forte nos
Festivais de música, pois o grupo em pouco tempo ficou conhecido por
sua irreverência e deboche. Durante uma apresentação em 1969, a
“espevitada” vestiu-se de noiva grávida entre os dois irmãos, de toureiros
e no final apareceu com a criança já nascida no colo, representada
por um boneco negro. Pura ironia e subversão de valores, em pleno
processo do regime ditatorial. Cabe lembrar que um dos baluartes da
ditadura militar no Brasil, centrava-se na defesa da moral e dos bons
costumes. Logo, em um período no qual a noiva deveria ser virgem (se
não fosse, pelo que menos que fingisse ser), Rita apresentou-se grávida
e para a suprema afronta, deu à luz a um filho fruto de uma relação
interracial e sem consolidar o casamento, pois ainda estava vestida de Fonte: Disponível em: http://www.papolog.com/upload/60 /images/ 7366.jpg. Acesso em:
noiva quando voltou ao palco. O público mais tradicional sibilou entre 13 dez. 2010.

os dentes: “Era só o que faltava! Mãe solteira”. Brincadeira juvenil ou rasgaram a certidão de casamento. “Logo após o casamento, com a
uma afronta ousada aos valores da época, não importa, a “magrela”38 desculpa de que as casas ainda não estavam prontas, Rita continuou
sardenta de olhos azuis não tinha sossego, estava sempre fazendo das morando na casa dos pais [...]. Ela e Arnaldo continuariam mantendo
suas.39 vida conjugal em residências separadas”.40 Eles comportavam-se de
Em outro episódio “subversivo”, Arnaldo e Rita que já namoravam, forma transgressora em relação aos costumes estabelecidos, pois
resolveram casar-se no civil no mesmo dia em que fariam uma rasgaram o documento oficial que lhes declarava legalmente casados e
apresentação no programa da já experiente Hebe Camargo. E assim não foram coabitar como era esperado.
o fizeram, mas para o espanto de todos, ao vivo, diante das câmeras, Em 1970, Rita Lee começou a desenvolver carreira solo, lançando
38 Adjetivo usado várias vezes por Bárbara Farniente para referir-se à Rita Lee. Build Up um disco produzido por Arnaldo Baptista. Em 1972, ano
BARTSCH. op. cit do último disco dos Mutantes, Rita lançou outro álbum solo, também
39 LEE, Rita Biografia. Disponível em: http://www.ritalee.com.br/camarim/
carreira.asp. Acesso em: 09 mai. 2007. 40 BARTSCH, op. cit., p. 117.

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contando com a participação dos demais integrantes da banda. Pouco mudou-se com instrumentos e integrantes para Ibiúna no interior
depois, saiu do grupo por divergir dos novos rumos que os outros paulista. Foi com essa banda, que em 1975, Rita Lee lançou o LP Fruto
integrantes queriam dar à banda, valorizando mais a parte instrumental Proibido e consagrou canções como clássicos do seu repertório, entre
do que a voz acanhada da vocalista. De acordo com Bárbara Farniente, elas: Agora Só Falta Você, Esse Tal de Roque Enrow, Miss Brasil 2000,
personagem fictício e protagonista de “Rita Lee mora ao lado” que Jardins da Babilônia e Ovelha Negra, que, aliás, é uma grande galhofa,
relata fatos inventados e verídicos, o fim dos Mutantes deu-se assim: uma invenção e mais uma das ironias próprias de Rita, pois Charles
Rita chegou no final da tarde [...] pronta para o ensaio. Arnaldo jamais chamaria a filha predileta de ovelha negra e nem a expulsaria
olhou direto para ela e tomou a palavra: de casa, o que ele queria era a filhinha por perto, é mais provável que
- Rita, é o seguinte: tivemos uma reunião [...] e ficou decidido que
fosse ela própria aos vinte e oito anos de idade se dando conta de que
a partir de hoje você está fora dos Mutantes. Nós queremos fazer
um som progressivo, e como você não tem técnica suficiente em estava na hora de “assumir e sumir”.43
nenhum instrumento e nem a voz poderosa, não há espaço para Nesse período, Roberto de Carvalho, o Zezé44 que acabara de
você continuar com a gente.41
voltar dos Estados Unidos da América foi tocar com Jorge Mautner e
Depois desse impacto a depressão atormentou-lhe a vida por uns com os Secos & Molhados. Zezé e Rita se conheceram formalmente
tempos. A cantora e compositora pensou em interromper a carreira; em um show de Ney Matogrosso. Do show para a casa de Rita foi um
durante algum tempo trancou-se em casa, período em que compôs passo, mesmo que a estratégia montada por ela fosse um jantar para
muitas das músicas do trabalho que lançaria a seguir. Em 1973, todos da Banda de Ney. No “fritar dos ovos”, desse jantar Rita saiu
montou o grupo Tutti-Frutti, para uma série de apresentações no Teatro grávida de Roberto dando início a uma parceria e cumplicidade tanto
Ruth Escobar. Por sugestão da gravadora Som Livre, que queria lançar musical quanto afetiva que seria muito frutífera.
a cantora como estrela nacional de seu elenco, o grupo passou a se Em agosto de 1976, aos três meses de gravidez, Rita que havia se
chamar Rita Lee & Tutti-Frutti. afastado das drogas, foi presa em casa, sob acusação de portar um
Foi o início de um trabalho carregado de identidade pessoal, no quilo de maconha que segundo a cena descrita pela sua arquiinimiga
qual Rita, gravou discos como Fruto Proibido, considerado por muitos
Bárbara Farniente, foi “plantado” pelos policiais que invadiram a
críticos musicais como o melhor LP de rock nacional de todos os tempos.
casa: “- Aqui, chefe, achei! Milagrosamente, aparecera o quilo de
No mesmo ano o Tutti-Frutti, realizou também as primeiras turnês
maconha”.45
para grandes públicos, percorrendo o Brasil com grande aparato de
Rita protestou, apelou para a gravidez, tentou suborno, mas
produção, som, luz e cenografia. Nos intervalos das viagens o grupo
os policiais sabiam que nem Rita nem seu pai “americano” tinham
para ter mais liberdade de criação, ou seja, “para que a chapação
rolasse sossegada, sem a interferência [...] das autoridades policiais”42 43LEE, Rita Biografia. Disponível em: http://www.ritalee.com.br/camarim/
carreira.asp. Acesso em: 09 mai. 2007.
41 id. ibib. p. 121-122. 44 Apelido de Roberto de Carvalho.
42 id. ibib. p. 140. 45 BARTSCH. op. cit, p. 147.

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fundos suficientes que justificassem iniciar uma negociação. O melhor principal do programa era demonstrar o papel da mulher na sociedade
seria empurrar o troféu no camburão e depois fazer uma procissão brasileira, por intermédio de entrevistas e canções com temáticas
“exibindo-o” nas delegacias; Rita foi presa às cinco horas da manhã, femininas. Entre as entrevistadas encontravam-se as intérpretes das
mas só chegou ao Departamento de Investigações Criminais - DEIC à canções e mulheres que se destacavam naquele momento, em outros
tarde quando toda a imprensa já estava a postos aguardando. Apesar setores da sociedade e, além disso, havia a presença anônimas.
da esqualidez física da cantora a caçada valera à pena. No próximo ano compôs Cor de Rosa Choque, tema do programa
Ela passou um mês entre o DEIC e o Presídio do Hipódromo e depois matutino TV Mulher veiculado pela Rede Globo. A letra da canção
gerou controvérsias e a censura tentou suprimir um dos versos que diz
foi condenada a regime de prisão domiciliar por um ano. Com um
“mulher é bicho esquisito, todo o mês sangra”.47 O TV Mulher, como já
guarda na frente da porta só podia sair para fazer shows, porém antes
diz o título, tratava-se de um programa feminino, mas com um formato
tinha que ir ao DEIC para obter autorização. O fato se transformou
diferente dos que haviam até então. Os temas eram tão variados
em escândalo nacional, mas, se a intenção era forjar uma imagem
quanto os apresentadores que pertenciam a todos sexos. A atraçao
negativa de Rita, o tiro saiu pela culatra. Nessa época, a compositora
tinha como público alvo a “moderna” mulher brasileira dedicada aos
lançou em compacto o mega hit Arrombou a Festa, em parceria com
afazeres domésticos, quer fosse em sua casa ou como doméstica na
Paulo Coelho. Uma sátira bem-humorada e contundente do panorama casa das “dondocas em extinção”.48
da Música Popular Brasileira de então, que se transformou em um
1979 e 1980. A concepção era de Daniel Filho, influenciado pelo filme Uma
sucesso polêmico. mulher descasada, de Paul Mazursky. A protagonista era Maria Lucia, uma
socióloga, que já no primeiro episódio estava em processo de separação por
Após sua saída da prisão, foi convidada por Elis Regina para não aceitar as agressões verbais e físicas praticadas pelo marido. É possível
participar de um especial de final de ano para a TV Bandeirantes, quando inferir que a escolha da “namoradinha do Brasil”, Regina Duarte para o papel,
não se deu de maneira aleatória, uma vez que a atriz sempre representava nas
gravaram juntas a música Doce de Pimenta, que Rita compôs para suas atuações a “mocinha” arquetipada como modelo do gênero feminino. A
Elis. Elas nunca se apreciaram muito por conta das suas divergências mensagem que se evidencia é que a “mocinha” havia se casado, separado, tinha
uma profissão, era independente e “pagava para ver”. A trajetória de Malu não
musicais, mas Elis havia tentado visitá-la na prisão do DEIC e para dar era fácil, uma vez que ela inverteu papéis: Saiu de casa levando consigo a filha
mais dramaticidade à cena levou João Marcelo, o filho de quatro anos; adolescente necessitando prover o sustento das duas. O seriado teve problemas e
constantes rusgas com a censura, pois, apresentava temas ousados para a época,
a criança, como era de se prever, passou mal por conta do ambiente e como orgasmo, aborto, pílula anticoncepcional, virgindade e violência contra a
a visita não aconteceu. Mesmo assim, repercutiu na imprensa e ajudou mulher. O primeiro orgasmo feminino da televisão brasileira foi protagonizado
por Regina Duarte num dos episódios de Malu Mulher. Ver mais em: MOTA,
abreviar a permanência de Rita no xilindró. Manoel Santos. Malu Mulher: o feminino em cena e em pauta, onde o pessoal foi
Em 1979 Rita Lee participou do especial da Rede Globo Mullher também político. In: Verbo21 – cultura e literatura. ISSN 2177-3173. Disponível
em: www.verbo21.com.br. Acesso em: 30 nov. 2010.
80. O programa elaborado e dirigido por Daniel Filho a partir da 47 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Rita Lee e Roberto
trilha sonora de Malu Mulher46, seriado teliviso que dirigia. O objetivo de Carvalho Tipo de disco: LP Lado: B Faixa: 3 Nº de Referência (Catálogo):
403.6266 Ano de lançamento: 1982 Gravadora: Som Livre (Sigla)
46 O seriado Malu Mulher, foi apresentado pela Rede Globo de Televisão entre 48 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Rita Lee e Roberto

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 396 | História | 2012


Em pleno regime militar, em um Brasil ainda dominado pelo leucemia. Não titia, eu não tô com leucemia não....”.50 Reza a lenda
conservadorismo a sexóloga, Martha Suplicy foi alvo de muitos protestos que a titia personagem da letra seria Ezequiel Neves que há algum
por falar, no período vespertino, sobre o orgasmo da mulher e por dizer tempo andava de olho em Roberto de Carvalho e teria espalhado o
e repetir a palavra vagina. As ideias da Tradição, Família e Propriedade boato.
-TFP49 e a censura ainda ainda imperavam. Os protestos contra a “nova” Em 1986, a “magrela” voltou à cena e passou a comandar o
mulher não partiam apenas da parcela masculina da população. Um programa Rádioamador; a princípio somente pela rádio paulista 89FM,
dos grupos que mais protestaram foi o das Senhoras de Santana. Essas mas logo a seguir também pela Rádio Cidade do Rio de Janeiro. O
passaram a exigir a retirada do ar do quadro de Martha. Assim, pode-se Rádioamador transmitido ao vivo, era uma verdadeira esculhambação
perceber que, enquanto alguns setores abriam-se a discussões sobre os e contava com a participação dos ouvintes, além de misturar raridades
novos costumes e comportamentos, outros permaneciam encastelados de colecionadores com fitas demo de bandas de garagem. Nesse
e atrelados a um imáginário calcificado em suas respresentações. Isso programa “eram dadas receitas culinárias, discutia-se filosofia, novelas,
evidencia que as rupturas nos modelos sociais constituídos, mesmo colunismo mundano, concursos, espaços culturais [...]”.51 Tinha quase
quando beneficiam um grupo específico de indivíduos, nem sempre de tudo, menos Rita Lee; pois Lita Ree, a apresentadora do programa
contam com o apoio dos próprios beneficários; muitas vezes por estes e um dos muitos personagens criados pela cantora, tinha horror a Rita
não compreenderem o que está ocorrendo, outras por não estarem
Lee, por isso, além de usar o microfone para espinafrá-la também não
preparados para a mudança.
tocava suas músicas.
Em 1982, na turnê de lançamento do LP Rita Lee e Roberto
No final de 1986 ao findar seu contrato com a Som Livre, gravadora
de Carvalho, a cantora começou a ter sérios problemas de saúde,
da Rede Globo, Rita preferiu mudar para EMI, pois era comum as
chegando a desmaiar no palco no meio de um show no Morro da Urca.
gravadoras elaborarem “ um habitual leilão para incrementar, reciclar e
Além do ritmo alucinante da turnê, Rita estava abalada por problemas
higienizar seus plantéis e a EMI deu um lance altíssimo por um produto
pessoais. Há dois anos havia perdido Mary sua irmã mais velha e logo
de qualidade, mas um tanto prejudicado. A aposta foi de risco e a
em seguida a sua, agora grande amiga, Elis Regina. E por fim o seu
expectativa era grande”.52 A partir de então, por motivos óbvios, na
pai, que estava muito doente e faleceu pouco depois. Não demoraram
Rede Globo o “casal” passou a ser persona non grata o que, de certa
a surgir boatos de que ela estaria com leucemia, Rita saiu de cena,
maneira, influenciou para que nos próximos anos a imprensa tecesse
recolheu-se; mas rebateu com a canção de 1984 intitulada Não Titia
duras críticas ao casal e à pessoa de Rita particularmente.
cujo refrão sintetizava sua indignação: “Não titia, eu não tô com
Em 1987, havia uma grande expectativa em relação ao seu novo
de Carvalho Tipo de disco: LP Lado: B Faixa: 3 Nº de Referência (Catálogo):
403.6266 Ano de lançamento: 1982 Gravadora: Som Livre (Sigla) trabalho, mas o disco Flerte Fatal fez Rita entrar em rota de colisão
49 Tradição, Família e Propriedade (TFP) é uma organização católica conservadora 50 Disponível em: http://letras.terra.com.br/rita-lee/254245/. Acesso em 28 ago. 2010.
e tradicionalista, fundada em 1960, por Plinio Correia de Oliveira que defendia a 51 BARTSCH. op. cit, p. 180.
ordem social e pregava anticomunismo. 52 MOTTA, Nelson. Palestra. Diálogos Universitários. Curitiba, 13 mar. 2008. p. irreg.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 397 | História | 2012


com a imprensa. O jornalista e crítico musical do jornal O Estado de surpreendente que os integrantes do fã-clube de Raul que assistiam
São Paulo, Luís Antônio Giron, fez críticas dizendo que Rita estaria as filmagens ficaram estupefatos. Depois dos três dias de filmagem
em menopausa criativa. “Ao abrir o caderno de variedades, logo na o personagem Raul demorou mais alguns para deixar a “atriz” Rita,
capa uma enorme caricatura de Rita com cara de rato [...]. O título da os trejeitos e sotaque baiano que a princípio foram engraçados
matéria era: “Rita Lee está morta e não sabe”.53 Ela que nunca havia e bem aceitos por todos, começaram a cansar e mais tarde a
respondido as críticas dessa vez reagiu. Depois de ameaças e brigas de preocupar. O que fazer para se livrar de Raulee? Ninguém sabia
ambas as partes, a guerra foi declarada e Rita ficou por muito tempo e nem poderia, porque, essa foi, provavelmente, mais uma das
sem dar entrevistas. Não se pode esquecer que: estripulias e subterfúgios que Rita sempre lançou mão, para se
[...] a magrela também havia feito quarenta anos. Isso era prato desvencilhar de uma situação, para criticá-la ou quem sabe, para
cheio para os críticos de plantão, que viviam insinuando que roqueiro apenas por “gaiatagem” se divertir com o constrangimento gerado,
bom morre logo, por isso iam tentando matá-la a canetadas. Sendo que habitualmente leva as pessoas a ficarem sem ação. De qualquer
assim, ela deixou de dar entrevistas ao vivo. Agora só responderia
por escrito, para não ser distorcida. E quem garantiria? Problema maneira, fosse o que fosse lhe rendeu o prêmio de “melhor ator”56
dela.54 conferido pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.
Ainda como atriz participou das novelas Top Model e Vamp,
Nesse ínterim, depois da experiência radiofônica ela partiu para
onde fazia o personagem Lita Ree e como apresentadora comandou
a “carreira” de atriz cinematográfica e junto com Roberto atuou no
durante três meses seu próprio programa, TVLeezão, versão para a
filme Fogo & Paixão. Em seguida, contracenou com Marília Pêra
MTV de Rádioamador.
em Dias Melhores Virão, dirigido por Cacá Diegues. O filme foi
Na área musical, entre 1988 e 1990, Rita lançou três discos:
muito bem recebido no Festival de Cannes e se tornou o preferido
Zona Zen em 1988, Pedro e Lobo em 1989 e Rita Lee e Roberto
da imprensa especializada. Na Europa, Rita ganhou o seu primeiro
de Carvalho em 1990. Todos severamente atacados pela crítica e
prêmio como atriz revelação no Festival de Denzer de 1990.
imprensa especializada; nem poderia ser diferente, pois ela havia
Em 1993 Rita Lee atuou como Raul Seixas no curta-metragem
se atrtitado com ambas desde 1987. Em 1990, Rita anunciou o fim
Tanta Estrela por Aí..., que reproduzia uma situação verídica. “Um
da dupla com Roberto de Carvalho e os boatos também divulgavam
dia que Raul Seixas foi fazer um show, e foi tomado como um cover
o fim do casamento. Por essa época resolveu experimentar outras
de si próprio [...]. Acabou indo preso por causa disso e demorou
áreas e em 1991, partiu para o bem sucedido projeto Bossa n’ Roll,
para provar que ele era ele mesmo e sair livre”. 55 A interpretação
caindo na estrada com o show que seria considerado o de maior
de Rita foi impagável e a caracterização e incorporação foi tão
receptividade de público do ano seguinte. Aproveitando a excelente
53 BARTSCH. op. cit, p. 187. 56 Teria Rita atravessado a barreira imposta pelo gênero? Além dela apenas o
54 id. ibib., p. 190-191. travesti Rogéria, Prêmio Mambembe como “melhor atriz” em 1979, recebeu um
55 id. ibib., p. 205. prêmio que ultrapasse essa categoria de classificação criada pela sociedade.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 398 | História | 2012


recepção, Rita decidiu transformar o show em CD lançando no Brasil Ideia amadurecida e casamento reatado, Rita e Roberto partiram
a febre dos discos acústicos. Nesse CD fez uma releitura de vários para realizar turnês pelo Brasil com um show que foi exitoso de
sucessos de sua carreira em formato banquinho e violão, junto com público e do qual foi lançado um CD ao vivo. Ambos, turnê e CD,
canções selecionadas do repertório de outros artistas. A roqueira ganharam vários prêmios da crítica especializada e do público a
estaria vencida? Qual nada. Em 1993 lançou o CD Rita Lee, dando ovação e um bom aporte financeiro para o “novamente” casal, que
uma guinada em direção a um rock que retomava, em relação ao viria oficializar a união legalmente em dezembro de 1996. Neste
estilo e linguagem as suas raízes; o destaque desse trabalho foi a mesmo ano, a cantora tornou-se a primeira mulher e figura do pop
canção Todas as Mulheres do Mundo. a receber o Prêmio Shell da Música Brasileira. No início de 1997,
Os primeiros meses de 1995 no Brasil foram marcados pela
foi a vez do Prêmio Sharp de Música homenagear Rita em uma
contagem regressiva para o show que os Rolling Stones fariam no
festa de gala no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
país. O vocalista, Mick Jagger resolveu convidar Rita para fazer a
Retomados, casamento e parceria o casal, agora com um
abertura do evento. O convite foi aceito e ela convocou Roberto de
aspecto mais representativo de unidade familiar tradicional, uma
Carvalho para reger a banda. No entanto, poucas semanas antes da
vez que, havia incorporado o filho Beto Lee à banda, saiu em turnê
apresentação, Rita foi internada e os boatos davam conta de uma
para divulgar o CD Santa Rita de Sampa. Em 2000 Rita mais uma
tentativa de suicídio, que a roqueira mais tarde explicou como um
leve acidente à base de chá de Trombeta.57 Rita passou alguns dias vez retomou as guitarras características do rock and roll e usou
internada, chegando a ficar em estado de coma, o que preocupou influências da música eletrônica no disco e show 3001, produzido
os seus fãs e princip almente a produção dos Stones. Mas no palco, por Roberto de Carvalho; em novembro de 2001 o trabalho foi
ela mostrou que estava completamente recuperada do que chamou contemplado com o Grammy Latino na categoria melhor disco de
de “um exagero de fim de ano” e fez um grande show. rock.
Dessa rápida apresentação, que marcou a volta de Roberto de Paralelamente, à sua produção musical, continuou as suas
Carvalho ao comando da banda e ao casamento com Rita, resultaram atuações televisivas. E em 2002 integrou por algum tempo o elenco
apresentações realizadas nos estádios do Pacaembu em São Paulo e do programa feminino Saia Justa, do canal de TV a cabo GNT e em
no Maracanã no Rio de Janeiro, semeando a ideia do que viria ser 2005 passou apresentar ao lado do marido, o programa Madame
o show A Marca da Zorra. Ao mesmo tempo, “aproveitando o auê Lee. No final desse mesmo ano, nasceu a primeira neta, Izabella,
do show com os Stones, os Carvalho, aos poucos foram começando filha de Beto Lee e Rita começou desempenhar o papel de avó.
uma reaproximação sentimental [...]. Mas Rita continuava morando Desta maneira, Rita Lee chegou aos anos 2000 no patamar de
no sítio e tomando tudo a que tinha direito”.58 uma artista de carreira sólida, cujo passado respeitável, mas não
57 Adjetivo usado por Rita para a overdose de cocaína.
irretocável, que se mistura com a própria história do rock no Brasil;
58 BARTSCH. op. cit, p. 210.

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conquista novos fãs a cada novo disco, reafirmando a relevância 2 O FEMININO NAS COMPOSIÇÕES DE RITA
cultural de sua obra e mantendo a essência de sua personalidade LEE: TODAS AS MULHERES DO MUNDO
irreverente. Respeitada pelos críticos, admirada pelos artistas mais
novos, ocupa um espaço único dentro do universo da música 2.1 1970 a 1980: Ovelha Negra com o Pé Na
popular brasileira. Possui talento como letrista/compositora, Estrada: “É Hora de Assumir e Sumir”
que brinca de ser séria e leva a sério a brincadeira 59, tem uma
versatilidade que transcende as barreiras do rock. Com uma filha Nos anos 60, havia um monte de razões para as mulheres
queimarem seus sutiãs no meio da rua. De lá para cá, o discurso
legítima do Tropicalismo, Rita Lee Jones continua ousando a cada
feminista foi virando um porre. Daqui para frente eu sempre hei de
novo álbum desfilando sem pudores pelas mais diversas avenidas esperar delas menos reclamação e mais ação.63 (Rita Lee)
musicais, desde o rock pauleira até as bossas, baladas românticas,
Por muito tempo, no Brasil e mundo, as novelas, os romances e os
com a atitude de uma eterna  roqueira  e a competência de uma
filmes, de maneira geral, utilizaram de forma contumaz do estereótipo
artista completa. E, ainda, pode-se dizer que a própria vida de Rita
dicotômico e maniqueísta que põe lado a lado dois modelos femininos:
Lee possui relevância para a história cultural brasileira; porque,
a mocinha quase sempre sonhadora que no decorrer da trama é alvo
“Rita Lee, pelos ditames da lei, é uma assassina” uma vez que “[...]
da maldade da antagonista, inescrupulosa e cruel. A luta entre as
vem matando as Amélias de tempos em tempos”;60 afinal, segundo
duas pelo amor de um homem não é justa, mas no final a mocinha
a magrela “as meninas boazinhas são chatas”. 61
é redimida de todos os sofrimentos ao casar-se com o “príncipe
O improvável aconteceu: a menina espevitada, a adolescente
encantado”. O modelo de mulher adotado é quase sempre o judaico-
indomável, a roqueira lisérgica sobreviveu no corpo de uma avó cristão: De um lado Maria, de outro Eva. A primeira virgem, imaculada,
“babona” e “quase” careta que faz sapatinhos de tricô para a neta. a esposa obediente e fiel e por fim a mãe resignada; a segunda,
“Meus meninos queridos... bem, cabelos brancos eu os tenho, sedutora, pecadora que ao satisfazer seus curiosos desejos em relação
só que pintadinhos de vermelho. Tricotar também tricoto, só que ao fruto proibido, acabou por expulsar todos os Homens do Éden. Fora
não na cadeira de balanço... contar historinhas para minha neta da ficção essas características, muitas vezes e por muito tempo foram
também conto, só que os vilões são sempre os mais legais”. 62 atribuídas ao sexo feminino.
59 Como ela própria disse na canção Me Recuso de 1987: “Brinque de ser Entretanto, Rita Lee parece não se aproximar muito da imagem
sério e leve a sério a brincadeira”. Disponível em: http://letras.terra.com.br/rita- arquetipada da mulher brasileira e a anti-heroína transparece nas
lee/253104/. Acesso em: 28 ago. 2010.
60 BARTSCH. op. cit., p. 251. representações criadas para as personagens de suas composições.
61 AOS 60, Rita Lee Radiografa sua vida e carreira. Folha de São Paulo. São
Paulo, E 6 ilustrada, 6 mai. 2007. Entrevista. 63 AOS 60, Rita Lee Radiografa sua vida e carreira. Folha de São Paulo. São
62 http://www2.uol.com.br/ritalee/60anos.htm. Acesso em : 8 nov. 2010. Paulo, E 6 ilustrada, 6 mai. 2007. Entrevista.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 400 | História | 2012


Aos 28 anos, após o casamento e desquite, Rita Lee Jones, ainda homem. Especialmente quando o pai lhe sugere para assumir e sumir.
morando na casa dos pais compôs, segundo os críticos musicais a Mas o que levaria a filha a ser adjetivada como tal? Pode ser que entre
“balada dos adolescentes”; intitulada Ovelha Negra. os fatores, estaria o fato de querer ser independente. Provavelmente
Ovelha Negra o universo psicológico dessa moça estaria povoado de angústias ou
Rita Lee sentimentos de rejeição. Na segunda estrofe, a personagem demonstra
um grande desconforto; Encontrava-se em busca de sua identidade
Levava uma vida sossegada
Gostava de sombra e água fresca pessoal, mas de pronto percebeu que não tinha mais quem recorrer,
Meu Deus, quanto tempo afinal “não adianta chamar” e tampouco esperar. A única opção que
Eu passei sem saber?
lhe restava seria deixar o espaço privado do lar para se lançar na
Foi quando meu pai me disse: “Filha
Você é a ovelha negra da família aventura ou na realidade do universo público, se responsabilizar pela
Agora é hora de você assumir própria vida e decidir o seu destino. A letra traduz uma constatação,
E sumir!”
sem lamentação de nenhuma das partes. Uma conversa séria, mas
Baby, baby
difícil, entre pai e filha; as ações das personagens estão envolvidas
Não adianta chamar pelo contexto dos anos 1970. Ele, porque, de certa maneira, libera
Quando alguém está perdido
Procurando se encontrar a filha para concretizar a ânsia de experienciar a vida; ela porque
Baby, baby entende que chegara o seu momento e que o mesmo deveria ser
Não vale a pena esperar aproveitado. A situação exposta na canção, não indica que naquele
Tire isso da cabeça
Ponha o resto no lugar
período, tal comportamento fosse comum entre as famílias brasileiras.
Ovelha negra da família Embora a liberação feminina estivesse dando os seus primeiros passos,
Não vais mais voltar a mulher solteira morava com os pais e a casada tinha “sua” casa. Rita
Não!64
Lee não! Pode-se acreditar que, nesta canção a compositora estaria
A primeira vista a letra parece referir-se àquele filho que destoa questionando a si mesma sobre o que relevaria o fato de ser casada
dos demais e ainda não assumiu a própria vida, portanto, o pai precisa e morar com os pais: transgressão ou puro comodismo? É possível
alertá-lo para isso. Entretanto logo na primeira estrofe chama a atenção presumir que exista um traço autobiográfico e possivelmente haja, uma
o gênero feminino da personagem: A filha ovelha negra da família; o vez que e a maior parte da letra está primeira pessoa65, mas há também
que significaria na década de 1970, para uma mulher ser a ovelha 65 Michel Foucaut em Ditos e ecritos ao tratar da escrita de Si, indica que o texto
negra da família? Possivelmente muito mais impactante do que para um escrito é uma forma de exposição de si mesmo; ou seja, é uma maneira de
se desvendar ao olhar do outro. De acordo com Foucault, quem escreve, fala
64 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Fruto Proibido sobre o que viveu e sentiu, mesmo que isso esteja apenas na subjetividade do
Tipo de disco: LP Lado: B Faixa: 4 Nº de Referência (Catálogo): 410.6006 Ano de texto. Escrever é dar forma, registrar e tornar acessível ao outro o interior de Si.
lançamento: 1975 Gravadora: Som Livre (Sigla). FOUCAULT, Michel. 1983. Ética, sexualidade, política. A escrita de Si. In: _____.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 401 | História | 2012


um sujeito indefinido “alguém” que dilui o foco do discurso para um FIGURA 2- LUZ DEL FUEGO

impessoal; a despeito disso, não só para Rita, mas como para todas as
suas contemporâneas, ser pública, tinha suas adversidades.
Na década de 1970 houve no Brasil uma mudança acentuada de
costumes. O uso da pílula anticoncepcional, por exemplo, propiciou
para muitas mulheres uma maior liberdade para atividade sexual, tendo
como consequência outras formas de relacionamentos, delas para com
os homens e desses para com elas. Já era possível para as mulheres ter,
dar e falar de prazer sexual. Enfim, já estavam mais donas de si e de
seu corpo. Provavelmente as mudanças não foram generalizadas, pois,
nem todas as mulheres sentiram-se confortáveis para aderir aos novos
comportamentos.
Algumas dessas questões que estão na psique coletiva e permeiam o
universo das representações, possivelmente motivaram as composições
de Rita Lee, uma vez que emergem na voz de muitas personagens.
Em outra faixa do mesmo LP a construção da mensagem encontra-se
na primeira pessoa e faz referência a uma mulher brasileira que no Fonte: Disponível em: http://www.google.com.br/images Acesso em: 27 out. 2010.

período em que viveu, desviou-se em diversos momentos dos modelos irmãos Alfredo e Mozart Teixeira Dias como forma de vingança por tê-
comportamentais femininos predeterminados pela sociedade. los denunciado à polícia, pelos seus atos criminosos. Dora teve uma
Vivendo sob aquele contexto conturbado de repressão, Rita Lee adolescência traumática, marcada pela morte do pai, por romances
na canção Luz del Fuego expressa uma essência feminina marcada turbulentos e internações em instituições psiquiátricas. No início da
pelo medo, pela submissão, mas também pela coragem, iniciativa vida artística atuou como bailarina circense e depois de ter passado
e subversão. Existe um combate entre a tradição - entendida nesse um período na Europa começou a se apresentar seminua com cobras
momento como a defesa da moral e bons costumes - e o moderno - enroladas em seu corpo. Criou o primeiro clube naturista de dieta
entendendo como a emancipação feminina e social. vegetariana do Brasil, na ilha Tapuama de Dentro, no Rio de Janeiro,
Luz del Fuego, ou melhor, Dora Vivacqua, nascida em 1917 em onde vivia e que rebatizou de Ilha do Sol. Na década de 1950, foi
Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo foi assassinada em 1967, pelos candidata a Deputada Federal pelo Partido Naturalista Brasileiro, do
qual também foi fundadora.66
Ditos e escritos. MOTTA, Manoel Barros da. (org.). v. 5, Rio de Janeiro: Forense
Universitária 2004, p. 145-219. 66 Disponível em: http://rabiscosdabere.blogspot.com/2010/04/luz-del-

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 402 | História | 2012


Luz del Fuego Eu hoje represento o segredo
Rita Lee Enrolado no papel
Como Luz del Fuego não tinha medo
Eu hoje represento a loucura Ela também foi pro céu, cedo!
Mais o que você quiser
Tudo que você vê sair da boca Na segunda estrofe os motes segredo e medo pode ser vistos, o
De uma grande mulher, porém louca! primeiro como uma referência a algo que não pode ser revelado e
O que está presente nesta mulher que constitui o núcleo essencial o segundo à ausência de um sentimento que é capaz de preservar,
de sua ação? O que ela representa? É possível inferir que a compositora impulsionar ou paralisar a vida. Os segredos femininos nas palavras
ao escolher a protagonista, estaria chamando atenção para as ideias da própria Rita Lee, “podem e devem ser mostrados, mas nunca serão
misóginas sobre a insensatez mental feminina, bem como, e para os relevados. Só mulher sabe o que é ser mulher!”.67 Quais segredos
estereótipos criados pela sociedade e por meio dos quais esses conceitos escondia essa mulher? Pode-se inferir que naquele momento o
se personificam e são reforçados. segredo a ser revelado estaria ligado ao desejo de libertar-se, que,
Logo na primeira estrofe aparece a loucura. A falta de lucidez mesmo timidamente, envolvia o imaginário de vários grupos sociais e
que credencia a personagem para dizer o que quiser, afinal qualquer neste caso específico os representativos das mulheres.
indivíduo considerado louco é legalmente inimputável e pode “brincar” Porém, desenrolar o segredo demonstraria ausência de certa
de ser o que melhor lhe aprouver, delatando todos os segredos prudência, que o medo possibilita, em outras palavras, essa falta de
escondidos nas farsas da vida em sociedade. As mulheres que ousam cautela levaria o indivíduo a correr riscos demasiados ao forçar os
subverter a ordem estabelecida comumente são consideradas loucas. limites para além do convencionado; ou seja, revolucionando o já
E as “loucuras” femininas há muito são alvo de estudiosos e tidas por ordenado. No Brasil dos 1970 esta atitude seria passível de punição
muitos, como responsáveis pelo descontrole que eventualmente afeta com a eliminação física para o restabelecimento da ordem. Deve-se
as mulheres mexendo no equilíbrio das relações sociais, seja no âmbito perceber que o momento da história brasileira no qual a compositora
público ou privado. No entanto, as loucuras que saem das bocas dessas enviava a mensagem foi um dos mais duros com transgressores das
mulheres, talvez representem o desejo calado de se libertar. Mas quais normas políticas ou sociais, neste período muitos jovens de ambos os
libertações estariam no imaginário das mulheres dos anos 1970? Pode-
sexos, foram mortos por exigir mudanças.
se, acreditar que a liberação sexual feminina seria uma delas; o direito
Na terceira estrofe a autora desvia o foco dos sentimentos para
da mulher sobre seu corpo e aliando a isso libertação da opressão
tratar de outras representações não menos importantes na construção
embutida no direito masculino sobre a vida sexual das mulheres.
da sociedade cristã Ocidental: O trinômio Eva, maçã e pecado.
fuego.html. 28 ago. 2010. e Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ 67 COR DE ROSA CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio de
luzdelfuego/luzjb.htm. 28 ago. 2010. Janeiro: Biscoito Fino, 2007. 1 DVD.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 403 | História | 2012


Eu hoje represento uma fruta Eu hoje represento a cigarra
Pode ser até maçã Que ainda vai cantar
Não, não é pecado, só um convite Nesse formigueiro quem tem ouvidos
Venha me ver amanhã, mesmo! Vai poder escutar, meu grito!

A fruta traz a semente que é a possibilidade do porvir; mas não A cigarra inconsequentemente rompe as regras prometendo cantar,
é a maçã representativa do pecado original herdado de Eva. Essa enquanto a formiga ordeira se dedica à labuta. Metaforicamente
mulher já se absolveu dos pecados, está pronta e não tem medo de a primeira estaria dando voz às suas buscas e lutando com outras
ser “saboreada” pelo homem. Portanto, fica o convite para ser vista alternativas que não aquelas da submissão à ordem preestabelecida.
amanhã, possivelmente depois de amadurecer espalhar suas sementes A analogia à formiga68, levar a crer tratar-se de uma representação do
e germinar. país ou de parte da sociedade brasileira, que naquele momento não
Nos próximos versos os motes folclore e metrô sugerem uma conseguia ouvir o que estava sendo dito. Ou seja, ninguém via nem
contraposição entre a cultura popular e o desenvolvimento tecnológico, ouvia, apenas seguia na função que lhe era destinada na hierarquia
porém também podem representar uma convivência desses dois da construção social; talvez por adaptação às regras impostas ou ainda
elementos no espaço emaranhado das metrópoles. por absoluto temor do porvir.
Eu hoje represento o folclore
No último verso o mote da “pergunta” e o “amanhã”, acenam
Enrustido no metrô para um futuro idealizado e possivelmente diferente do presente que a
Da grande cidade que está com pressa personagem vivenciava.
De saber onde eu vou, sem essa!
Eu hoje represento a pergunta
Percebe-se referências as ideias da contracultura no embate entre a Na barriga da mamãe
tradição do folclore e da velocidade moderna e apressada das grandes E quem morre hoje, nasce um dia
Pra viver amanhã, e sempre!69
cidades e seus metrôs. Diante de um mundo dicotômico que busca a
modernidade por meio do milagre econômico, que influenciou milhares Tal como um embrião esperando o nascimento, a personagem se
de brasileiros a uma corrida desenfreada em busca dos velozes centros mostra interrogativa sobre uma realização em plenitude que poderá
metropolitanos, a compositora lança mão do recurso da cultura popular/ acontecer em um mundo novo que não está na razão, mas no desejo,
folclore; o que pode sugerir uma busca, um olhar ou uma denuncia ao não está no trabalho, mas no amor. Fazendo desta maneira, um
que subrepticiamente permanece nas estruturas sociais e que por sua vez contraponto entre a loucura ou o avesso da razão da primeira estrofe;
nem sempre por ser arcaico ou tradicional necessariamente seja ruim. a pressa da quarta, e o trabalho da quinta.
Na próxima estrofe aparecem duas personagens e a utilização 68 As formigas são isentos surdos e quase cegos e guiam-se por odores.
do expediente das fábulas infantis que modelam as condutas sociais, 69 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Fruto Proibido
Tipo de disco: LP, Lado: B Faixa: 3 Nº de Referência (Catálogo): 410.6006 Ano
entretanto, usado às avessas. de lançamento: 1975 Gravadora: Som Livre (Sigla).

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 404 | História | 2012


Além disso, fica a afirmativa: Se um sonho de libertação morre Lá vem ela!
Miss Brasil 2000!
hoje, outro nascerá amanhã. Vale lembrar que ao referir-se a
racionalidade, labuta e sonhos de libertação, esses processos devem Nasceu no litoral, de Porto Alegre a Natal
ser analisados coletivamente, pois que, nada consegue um individuo Trabalha em São Paulo, tira férias no Rio
Verão em Salvador e Curitiba no frio
solitariamente. Desejar, sonhar e reivindicar individualmente é um
Miss Brasil 2000!
encargo possivelmente fadado ao fracasso, visto que no mundo das
representações sociais o coletivo se sobrepõe ao individual. Cresceu em BH, mas mora em Macapá
Estuda em Fortaleza e vai curtir no Xingú
Na década de 1970 as alterações comportamentais no Brasil foram
Casar com João Pessoa, onde já se viu?
significativas, entretanto, algumas estruturas sociais permaneceram Miss Brasil 2000!
atreladas aos comportamentos das gerações anteriores. É interessante
Será que ela vai continuar uma tradição?
perceber que as composições de Rita Lee daquele período, não trazem
Será que ela vai modificar uma geração?
somente os questionamentos sobre os arquétipos femininos, mas
Lá vem ela!70
refletem também, a esperança de mudança no modelo feminino, o que
foi prognosticado pela compositora em Miss Brasil 2000. A narradora apresenta a personagem miss Brasil antecipando
em duas décadas o fato e as possíveis representações sobre o gênero
Miss Brasil 2000
Rita Lee - Lee Marcucci feminino na sociedade brasileira.
A despeito das lutas anteriores no final de década de 1970, ser
E atenção meus amigos, do Brasil para todos os planetas do
Sistema Solar, a grande final do show da beleza universal. A miss ainda era algo almejado por muitas jovens moças. Os concursos
primeira Miss Brasil do século XXI. tinham um “glamour” herdado dos anos 50 e 60 fazendo com que
Senhoras e senhores, Miss Brasil 2000! muitas moças aspirassem ser coroadas; ao mesmo tempo fazia muitas
Eu vou apresentar pela primeira vez mulheres ficarem em frente à TV para torcer por esta ou aquela
Ela que vai ser pra todos vocês candidata, por este ou aquele motivo. Muitas das concorrentes tinham
Uma senhorita que nunca se viu
como lema de “professora a miss”, pois estes seriam, no imaginário
Miss Brasil 2000!
dos setores mais tradicionais da sociedade brasileira daquele período,
Um corpo de veludo, as pernas de cetim os modelos adequados de “boa moça” ou de “moça de família”.
A boca de cereja e os dentes de marfim
Um beijo envenenado, onde já se viu? Normalmente as concorrentes necessitavam de autorização do pai, do
Miss Brasil 2000! namorado ou do noivo para inscrever-se no certame.
70 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Babilônia Tipo
Será que ela vai continuar uma tradição? de disco: LP Lado: A Faixa: 1 Nº de Referência (Catálogo): 403.6149 Ano de
Será que ela vai modificar uma geração? lançamento: 1978 Gravadora: Som Livre (Sigla).

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 405 | História | 2012


É interessante esclarecer que a miss era uma representação sexual; talvez ela nem fosse virgem, o que há poucos anos atrás seria
estereotipada da mulher da sociedade patriarcal. Mas, de qualquer condição sine qua non para ser considerada “miss” ou “ senhorita”.
forma, ao vivo ou pela televisão o concurso transformava-se em um Ela já havia passado pela cosmetologia chegando com um “corpo de
grande evento para o público feminino; quer fossem para as que veludo e pernas de cetim, boca de cereja e dentes de marfim”. Mulher
lotavam os locais dos eventos em torcidas organizadas munidas independente exerceria suas atividades na cidade símbolo do trabalho,
de faixas ou para aquelas que assistiam de casa; a capacidade de São Paulo; mas passaria férias na cidade símbolo do turismo, o Rio de
comoção gerada seria comparável ao que ocorria com os homens em Janeiro, os meses quentes em Salvador e nos nem tanto em Curitiba.
relação ao futebol. A própria compositora em seu depoimento comenta Ela aglutinaria vivências e culturas, seria de todos os lugares do país,
que “a feitiçaria corria solta em frente à TV: Olha aquela! Sei lá é meio o que não significa dizer que teria rompido com as tradições. Traria
gordinha! Ah, mas tem um traje lindo! Não sei, não. Espere, vamos em si a contradição das culturas regionais do Brasil, nesse aspecto ela
ver de maiô!”.71 Pode-se inferir que, nas mentalidades os arquétipos poderia ser mais uma síntese das representações femininas, do que
femininos permaneciam atrelados ao modelo no qual a mulher solteira uma revolucionária.
ideal seria virgem, doce e submissa; e caso trabalhasse, devia dedicar- Entretanto, outra estrofe, permite pensar que no ano 2000 algo
se a ofícios mais próximos das atividades domésticas. Em que pese os se quebraria no arranjo da sociedade familiar; pois, “casar com João
movimentos, as lutas e conquistas de grande parcela das mulheres, as Pessoa72, onde já se viu” leva a supor que esta “mocinha” dos anos
representações arquetipadas ainda se faziam presentes no imaginário 2000, não aceitaria a antiga prática afirmativa de masculinidade e
de muitas delas. virilidade da sociedade patriarcal de manter relações efetivas com outra
E ainda, pela fala de Rita Lee, que fazia parte uma parcela mais mulher além da esposa. Fato esse, que vale lembrar ainda era muito
esclarecida ou de vanguarda feminina, esse imaginário permeava a comum na década de 1970, pois muitas mulheres desempenhavam o
sociedade brasileira, indistintamente dos aspectos sócios/econômico/ papel de “boa esposa” que se submetiam para o bem da família. A miss
culturais, corroborando a tese de que as estruturas do imaginário social Brasil 2000 seria a antítese do ideário da senhorita dos anos 1970.
não sofrem rupturas instantâneas. O exemplo de reunir as mulheres Rita antevê uma mulher brasileira e lança a problemática: Ela
da casa para assistir e torcer pelas misses; demonstra que muitas as manterá a tradição ou modificará sua geração?
permanências ocorrem e são capazes de gerar ações efetivas, mesmo Mas em que medida ela conseguirá romper com o tradicional e o
quando os sujeitos não tenham racionalmente avaliado e planejado-as. arcaico das representações que mantêm o poder simbólico do gênero
Mas como seria a jovem dos anos 2000? A poesia delineava masculino sobre o feminino? Uma vez que, de acordo com Pierre
uma nova mulher, “uma senhorita que nunca se viu”; possivelmente Bordieu, o poder simbólico é caracterizado pela sua invisibilidade, e
não mais no sentido biológico, pois com as pílulas e a liberação
72 Uma referência ao político paraibano João Pessoa, assassinado por João
71 COR DE ROSA CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio de Dantas seu adversário na vida política e amorosa, na qual ambos mantinham um
Janeiro: Biscoito Fino, 2007. 1 DVD. relacionamento com a professora Anaíde Beiriz.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 406 | História | 2012


seu exercício depende da conivência de quem a ele está submetido bem com o sair de casa, enveredando-se pela busca da autocompreensão,
como, de quem o detém. Ou seja, assemelha-se a liderança, uma vez culminando com o ato de assumir-se como “mulher”; cujo resultado
que não pode ser ditatorialmente imposto, pois deverá antes de tudo, estaria, de certa maneira, ligado a sua liberação sexual paralelamente
ser aceito como legítimo por quem dele for alvo. 73 a tomada do poder sobre seu próprio corpo.
Pode-se ainda, comparar o poder simbólico a um jogo tácito no Fora do universo das composições, no real cotidiano das mulheres
qual a principal regra trata-se de fazer de conta que não há regras brasileiras a situação não parecia ser diferente. Ao mesmo tempo
e nem disputa. Mas para que o jogo surta efeito e chegue ao final é em que uma parcela se organizava em grupos diversos de modo a
necessário que todos os jogadores se submetam às regras subliminares. garantir os direitos conquistados outra permanecia atrelada ao
Entretanto, vale ressaltar, que não há perdedores nem ganhadores já modelo “mocinha sonhadora”, demonstrando assim, que as rupturas
que, em seu cerne existe uma cumplicidade implícita cujo objetivo é acontecem de forma lenta. As conquistas femininas foram ampliando e
uma troca de interesses e favores entre os partícipes, fornecendo assim as mulheres chegaram aos anos 1980 ocupando um espaço maior na
as amarras necessárias para a manutenção das estruturas do universo sociedade brasileira.
social.74 É possível argumentar que as representações, o imaginário e
o poder simbólico são capazes de forjar comportamentos e legitimar
2.2 1980 a 1990: é Cor de Rosa Choque:
valores, uma vez que, os indivíduos foram moldados para atitudes e
o Desabrochar da Maturidade
lugares sociais predeterminados. Romper a malha dessa estrutura, que
“Cor de Rosa Choque foi o começo, a primeira [canção] com essa
para além de física é psicológica, não é um fenômeno social que se consciência de falar dos segredos e tabus, mas sem revelar os mistérios
concretiza rapidamente. femininos, talvez Ovelha Negra já tivesse um pouco disso”.75 ( Rita Lee)
Nas composições de Rita Lee dos anos 1970 a 1980, as personagens
A partir da década de 1980 o Brasil entrou no que se pode chamar
ora reproduzem o modelo preestabelecido, ora apresentam uma
de “período de redemocratização”. O AI-5 havia sido extinto em 1978,
ousadia no comportamento. E outros momentos apontam para uma
a Lei da Anistia foi editada em 1979, dando início a uma abertura
mulher moldada e projetada para a vida nos anos 2000, todavia
que permitiu mesmo, de forma lenta maior liberdade de expressão.
calcada no modelo feminino de “miss” que era combatido pelos
Em grande parte dos movimentos políticos e sociais daquele início de
movimentos sociais femininos dos anos 1970. Emergem mulheres que
década, as mulheres estiveram presentes e atuantes, e por consequência,
tendem a traçar trajetórias múltiplas. Trajetórias estas, que têm início
passaram a estar em maior evidência. Com o afrouxamento da
73 BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 1989. censura, assuntos até então proibidos começaram a ser explorados
74 SILVA, Juremir Machado da. A ciência do real. Entrevista com Pierre Bourdieu. pelas produções culturais e no meio musical não foi diferente.
Revista Espaço Acadêmico. ano 1, n. 10, mar. 2002. ISSN 1519.6186. Disponível
em: http://www. Espaco academico.com.br/010/10bourdieu01.htm. Acesso em: 75 COR DE ROSA CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio de
29 jan. 2008 Janeiro: Biscoito Fino, 2007. 1 DVD.

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Em 1980 Rita Lee compôs a música Cor de Rosa Choque, para que almeja. Fato este que emerge no próximo verso, pois: se “nem só
ser tema do programa TV mulher da Rede Globo. Nessa canção a de cama vive a mulher”, é possível dizer que ela buscaria um modelo
compositora apresenta uma mulher enigmática e “misteriosa” nas masculino que além de proporcionar prazer sexual, também fosse
“duas faces de Eva. capaz de ser companheiro. Os atributos relativos à virilidade já não são
Cor de Rosa Choque os únicos a exercer fascínio, agora ela quer outros predicados.
Rita Lee - Roberto de Carvalho O estribilho usa a metáfora da cor e da flor idealizadas pelo
imaginário social como femininas, mas acrescentou o “choque”, que
Nas duas faces de Eva
A bela e a fera intensifica a cor e ainda, pressupõe um atrito intenso em caso de sofrer
Um certo sorriso de quem nada quer... provocações.
Sexo frágil, não foge à luta
Questões como a menstruação aparecem logo a seguir entre o
E nem só de cama vive a mulher...
deboche e a seriedade. A mulher seria um ser racionalmente impossível,
Por isso não provoque uma vez que sangra e não morre. Como uma fênix ressurge das cinzas
É cor de rosa choque
ela renasce da cada “regra”. Durante toda sua vida fértil a mulher, terá
Mulher é bicho esquisito que lidar com essa manifestação biológica, que para algumas não tem
Todo mês sangra maiores consequências, mas que, para outras representa um grande
Um sexto sentido maior que a razão
infortúnio permeado por transtornos físicos e psicológicos. Se por um
Gata borralheira, você é princesa
Dondoca é uma espécie em extinção lado revela a sua capacidade gerar novas vidas, por outro tempo
dificulta o exercício da sua sexualidade de maneira mais livre, pois há o
Por isso não provoque
eventual risco da gravidez. A contradição dá tônica na vida feminina.
É cor de rosa-choque76
A intuição sobrepõe à razão; a mulher não seria conduzida apenas
A dubiedade de faces apresentada nos dois primeiros versos, revela pela racionalidade, ela utilizaria outras parcelas do cérebro nas
uma mulher que, de certa maneira, seria uma simbiose da dicotomia elaborações de suas ações dando espaço para essas manifestações
dos modelos femininos. As antagonistas se unificam num só rosto psíquicas, que, aliás, fazem parte das mais diversas culturas humanas e
enigmático que, mostra mas não revela, como de uma Mona Lisa ou uma muitas vezes são capazes de pressentir ameaças e elaborar estratégias
esfinge. Logo após anuncia uma das características que o imaginário de solução mais eficientes do que o lado racional do ser humano.
elegeu como próprias do universo feminino: a fragilidade; ao mesmo No verso “gata borralheira, você é princesa” percebe-se a
tempo em que alerta que essa faculdade não lhe impedirá de lutar pelo referência ao romantismo dos contos de fadas e nesse especificamente
76 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Rita Lee e Roberto em que a trajetória da protagonista remete a uma espécie de arquétipo
de Carvalho Tipo de disco: LP Lado: B Faixa: 3 Nº de Referência (Catálogo):
403.6266 Ano de lançamento: 1982 Gravadora: Som Livre (Sigla) fundamental, traduzindo o anseio natural da psique humana, neste

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 408 | História | 2012


caso a feminina, em ser reconhecida como especial e levada a uma Nas canções de Rita Lee, há referências mais explícitas às
existência melhor. Em outras palavras, o desejo de toda mulher seria que representações dos contos de fada, um exemplo disso é a canção
a considerassem única e especial. Quanto “as dondocas em extinção” Cinderela Aparecida, na qual é possível perceber uma abordagem mais
pode-se inferir tratar-se de um recurso de alerta às mulheres que têm profunda, nem por isso menos irônica, desse aspecto quase invisível da
uma vida baseada na alienação ou na vivência no universo irreal das formação das mentalidades e dos comportamentos humanos.
futilidades uma vez que, no contexto dos anos 1980, muitos segmentos da Cinderela Aparecida
sociedade brasileira reprovavam essa forma de comportamento. Ou seja, Rita Lee - Roberto de Carvalho

dentro de toda mulher há uma princesa, e ela pode e deve assumir sua Abracadabra, vou rogar uma praga
Tira esse vestido micho
realeza, porém não deve transformar esse ato em uma vida sem sentido Joga o avental no lixo
para ela mesma ou para a sociedade. A melodia, é interessante ressaltar, Dá-lhe, Cinderela
Mostra com quantas belas se faz uma fera
é uma balada que envolve o ouvinte transportando-o para um universo A bordo de um tomara-que-caia
de efetividade e desta maneira coadunando-se com a mensagem forte, À la Sarita Montiel
Um rabo-de-saia
porém, sem a provocação quase agressiva transmitida pela poesia. Brinco, broche, pulseira, colar e anel
Nos contos de fada, os conteúdos geralmente traduzem em Abracadabra, não mexe com a cabra
Adeus, escrava do tanque
descrições imagéticas os conceitos e princípios que norteiam o Alô, baronesa punk
inconsciente, lançando as bases para que do homo sapiens seja Dá-lhe, Cinderela
Mostra com quantas feras se faz uma bela
construído um ser humano. Quase sempre estas histórias percorrem um Que tal uma princesa chique
roteiro cujo ponto de partida é um reino distante e perfeito. Um lugar Caroline, Lady Di
Ou a filha do cacique
onde reina a harmonia que é quebrada pela chegada da madrasta Venerável, honorável gueixa chá-de-Xangai
ou o aparecimento de dragões e bruxas. A partir deste momento o Cida, Cida, Cida
Cinderela Aparecida
sofrimento e as lutas da alma permeiam a trajetória dos protagonistas. Falado:
De um lado, elas injustiçadas e ludibriadas e do outro, eles enfrentado - Vem cá menina! Você precisa se empinar um pouco, peito
pra frente, bunda pra trás!
diversos obstáculos buscam-na incessantemente. Quando ambos se - O que uma fada-madrinha não faz?
encontram deparam-se com o conflito da dualidade ao perceberem que - Um jeitinho no cabelo, uma overdose de organdi, aqui e
ali!
o “outro” é parte deles mesmos. Entretanto, ao casarem-se, o Príncipe - Ai, meu Deus, que coisa romântica!
Encantado e a Princesa tornam-se um ser “único” e “inteiro”; assim, Cida, Cida, Cida
Cinderela Aparecida, você tá demais!
tudo volta ao “normal” e eles viverão felizes para sempre, até que outro Falado:
evento similar volte a retirar os sujeitos da zona de conforto.77 - Ficou bom mesmo, não? Ótimo!78
77 CUNHA, Martha Teixeira da. SANTOS, José Mauro dos. A arte de contar 78 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE. Disco de origem: Não gravada
histórias. Curitiba: [s. n.], 2010. p. 7-8. em disco. Ano de lançamento: 1986. Observações: Esta música foi tema do

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 409 | História | 2012


Aparecida, o nome da cinderela é muito comum no Brasil, portanto, jovens em outros países, estava em efervescência principalmente nas
portanto, pode-se inferir que a mensagem destine-se as mulheres grandes cidades brasileiras. Entendendo o movimento como transgressor
brasileiras, pois, além disso, se refere à padroeira da nação e a única aos padrões estabelecidos, é possível dizer que a mensagem transmitida
representação brasileira de Maria mãe de Jesus, cultuada pela da Igreja pela compositora, seria a da capacidade feminina manter uma aura de
Católica. Ou seja, uma cinderela genuinamente “tupiniquim”. nobreza, que tem intensos laços com a tradição e ao mesmo tempo em
FIGURA 3 - NOSSA SENHORA APARECIDA que, distendendo e rompendo limites consegue ligar-se à modernidade.
As referências mais diretas a tradição se encontram nos nomes de
“Caroline e Lady Di”, princesas européias representantes do bastião
do poder simbólico de uma classe, ambas hipotética, midiática
e calculadamente transgressoras e “desmioladas”. Seguindo as
indicações de Pierre Bordieu pode-se inferir que esse modelo feminino
provem do poder simbólico da classe dominante. Classe esta, que é
compartimentada em escalas hierárquicas que exercem seus micro
poderes baseando-se no acúmulo de riquezas e os legitimam o por
meio das produções simbólicas; Estas produções são emanadas dos
setores formadores de opinião e estes, por sua vez pertencem uma
Fonte:Disponível em: http://rosamulher. Word press.com/2010/10/12/viva-nossa-senhora-
parecida/ Acesso em: 25 nov. 2010.
parcela dominada no seio da classe dominante.79 Portanto, é possível
dizer que essas princesas representam uma parcela feminina da
No primeiro verso a narradora faz referência a uma praga que
classe dominante que, da mesma maneira em que é subordinada às
funcionaria ao contrário, transformando a mulher comum, das tarefas
hierarquias do lócus ao qual pertence, exerce influencia nas ações e
domésticas, cuja indumentária seria um “vestido micho” e “ avental” no
comportamentos de mulheres das outras camadas da sociedade. Em
ícone da “cinderela”, mas que em vez de sapatinho de cristal traz outros
outras palavras, o poder simbólico se ramifica para o alto e para baixo,
artefatos como “brinco, broche, pulseira, colar e anel” possivelmente
enredando a todos independente das classes econômico-sociais. Pois,
bem mais representativos dos símbolos de feminilidade e da sua
como delineia Pierre Bourdieu o efeito da:
capacidade de sedução.
Chama atenção também a “baronesa punk”, pois, na década de [...] dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura,
de língua etc) se exerce não na lógica pura das consciências
1980 o punk movimento contracultural que já havia cooptado muitos
79 SILVA, Juremir Machado da. A ciência do real. Entrevista com Pierre Bourdieu.
Especial “Cida, a Gata Roqueira”, exibido na TV Globo, pela primeira vez, em 29 Revista Espaço Acadêmico. ano 1, n. 10, mar. 2002. ISSN 1519.6186. Disponível
de agosto de 1986. Este Especial contou com a participação de RITA no papel da em: http://www. Espaco academico.com.br/010/10bourdieu01.htm. Acesso em:
fada-madrinha Sunda Morgana. 29 jan. 2008 e

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 410 | História | 2012


cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de madrasta ou da bruxa má. Às vezes é representada por uma “senhora”
avaliação e de ação que são constitutivos dos ‘habitus’ [...].80
que surge no decorrer da história, tendo a missão vitalícia de proteger
É necessário salientar que, neste estudo adota-se o conceito de os protagonistas nos momentos mais difíceis de suas trajetórias. A fada
habitus e campo desenvolvidos por Bourdieu segundo o qual, habitus não vela somente as princesas, mas também as mulheres “comuns”,
seria uma atividade desenvolvida pela sociedade sobre os indivíduos portanto, pode-se inferir que ela seja a personificação do feminino
no sentido de dominar e inculcar uma identidade social, que resultaria que atingiu a maturidade e a sabedoria capazes de modificar a
no conhecimento, aceitação e incorporação de todos. O habitus, seria história dando-lhe um novo contorno. Normalmente ela representa a
complementado pelo campo, lembrando que este último, constitui-se esperança, seja de mudança, de realização dos desejos não atendidos
em um espaço social, com um dinamismo e leis próprias, no qual os ou da concretização dos amores impossíveis.
indivíduos, grupos ou estruturas se relacionam.81 Um aspecto interessante de ressaltar é que na década 1980, há nas
No verso “Cinderela Aparecida”, a narradora retoma a personagem composições de Rita Lee uma recorrência ao tema do amor romanesco.
título chamando atenção para a eterna luta da boa moça que sofre Na canção Xuxuzinho de 1987, reaparece o modelo do amor romântico
agruras até encontrar um varão que possa restituir-lhe a sua verdadeira e muitas vezes dramático, dos casais ou pares apaixonados, que por
essência. E ainda, a batalha entre a protagonista e as antagonistas para algum motivo, em dado momento de suas trajetórias se cruzam e a partir
serem reconhecidas por um homem como mulheres especiais e dignas dai têm suas vidas ligadas para sempre. A partir dessa constatação e
da sua atenção. O que leva a inferir que o seu lugar social depende da fazendo uma ligação com sua biografia, pode-se dizer que a própria
anuência masculina. A gata borralheira pertence ao espaço privado/ compositora estivesse vivenciando essa experiência e, talvez, procurasse
lar, já a cinderela transita entre público e o privado, porém dentro enviar uma mensagem as demais mulheres, sobre a possibilidade de
dos limites concedidos pelo homem. É interessante lembrar que nos efetivar mudanças comportamentais e concomitantemente permanecer
contos de fadas não existe uma determinação temporal, espacial ou acreditando, em que pese as dificuldades e riscos, na possibilidade da
geográfica, portanto são utilizados por várias culturas para reforçar a união afetiva, entre os gêneros.
ideia e o modelo ideal de mulher. Xuxuzinho
Na parte falada aparece a fada-madrinha que em suma é quem tem Rita Lee - Roberto de Carvalho
Falado:
poder de modificar o estado das coisas, mesmo que este (poder) esteja
Procuro um gato, nesse mundo cão
limitado às 24 badaladas. Nos contos de fadas essa personagem parece Um candidato à vaga do meu coração!
transpor o estereótipo dicotômico da mocinha “boa” e “ingênua” e da Não precisa ser rico, basta me amar
Mas se tiver alguns dólares, não vou chorar!
80 BOURDIEU. ap. RODOVALHO, Marli. A dominação do outro sobre o outro.
Teses de Pierre Bourdieu. Disponível em: http://www.coladaweb.com/sociologia/ Cantado:
dominacao.htm. Acesso em 23 fev. 2008. p. irreg. Papai do Céu, me dá um namorado
81BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 1989. Lindo, fiel, gentil e tarado

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 411 | História | 2012


Xuxu, xuxuzinho de maneira ingênua, como uma menina rezando à noite antes de
Par de vaso
dormir. Esse modelo masculino é idealizado, por isso, raras vezes todas
Minha uva, meu vinho
as qualidades estarão presentes em um único homem, Quem sabe
Um piquenique numa ilha rezando, seja possível encontrá-lo.
Hulla-hulla, maravilha
O foco da poesia aparece em seguida na citação a casais
Sem telefone, sem ninguém
You Tarzan, Me Jane históricos ou imaginários. O que chama atenção nestes versos é que
Um anel no dedo a protagonista aparece na primeira pessoa assumindo sua busca e
Um marido na mão
ao colocar-se com o par ela vem em primeiro lugar. Isto parece não
Eu Dalila, ele Sansão
Josefina e Napoleão ser apenas uma coincidência sem nenhuma intencionalidade da
Eu Isolda, ele Tristão compositora, pois no Brasil daquele período, muitas mulheres, mesmo
Maria Bonita e Lampião
não tendo o amparo legal para exercer a chefia da família, há alguns
Eu a mina, ele o rei Salomão
Eu Cosme, ele Damião anos vinham assumindo esse papel. Muitas vezes tomando para si a
responsabilidade de criar e educar os filhos, prescindindo da presença
Xuxuzinho, xuxuzinho
de um modelo masculino ou paterno, em outras tomando a frente de
Minha uva, meu vinho.82
prover o sustento da família, aí incluindo o próprio marido. Outro fator
O que a princípio pode parecer um deboche com o comportamento importante é que no final dos anos 1980 muitas mulheres brasileiras
das mulheres que sonham com uma união impulsionada pela paixão passaram a receber mais informações e proteção legal nas questões
e pelo amor, pode por outro lado, estar se referindo e reafirmando a relativas ao planejamento familiar. O que leva a crer que, mesmo de
eterna busca feminina pelo homem do imaginário idealizado, que lhe maneira simbólica, a colocaria como detentora de um poder que nunca
ame verdadeiramente. É interessante perceber que alguns dólares são lhe fora conferido.
bem-vindos, portanto esta protagonista não é alienada do contexto em Encontra-se logo mais, referência as representações das alianças
que se encontra, onde um aporte financeiro exerce uma boa dose de estabelecidas entre os casais e ao poder simbólico do anel utilizado
fascínio. para “ amarrar” e “segurar” um herói mitológico ou real. O que de
A canção tem início com a fala da compositora da forma certa maneira proporciona à mulher um determinado controle sobre o
infantilizada com o objetivo de garantir a percepção da ironia contida companheiro, quer seja por intermédio de jogos sensuais de sedução
nas entrelinhas. Além disso, faz o elo com a primeira estrofe, na qual ou por se mostrar submissa ou ainda demonstrar uma personalidade
o pedido por um namorado que reúna os adjetivos sonhados é feito firme e determinada.
82 Referência: RITA LEE Gravada por: RITA LEE Disco de origem: Flerte Fatal Tipo Tarzan e Jane personificam o mito do homem forte, destemido,
de disco: LP Lado: B Faixa: 5 Nº de Referência (Catálogo): 31C 064 422971
Ano de lançamento: 1987 Gravadora: EMI-Odeon. corajoso e ao mesmo tempo, ingênuo e gentil e da mulher frágil, de

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boas maneiras e esclarecida que delicadamente o “adestra”; ensinando alienante, mas, igualmente, construir um recurso que lhes permitam
deslocar ou subverter a relação de dominação. 83
comportar-se de acordo com os códigos da sociedade dos humanos.
No casal Josefina e Napoleão evidencia-se uma aliança amorosa O último “casal” Cosme e Damião não entrarão na presente
entremeada de objetivos de ordem financeira e política. O amor entre análise, mas demonstra outras parcerias que não ficam limitadas à
ambos existia, mas para a refinada viúva balzaqueana o casamento diferença dos gêneros.
também representava uma garantia de bem estar para si e seus filhos. Entre os anos 1980 e 1990 o Brasil passou por mudanças
Mesmo após tê-lo traído, Napoleão a perdoou e a corou Rainha da fundamentais nas estruturais políticas e sociais com a abertura e
França; contudo, como tinha o hábito de traí-la de maneira sistemática, redemocratização que foram fomentadas pela intensa atuação dos
acabou trocando-a por outra que lhe desse herdeiro. Em Isolda e Tristão movimentos sociais e sindicais. As mulheres dos anos 80 e 90 do
surge uma dúvida, ou melhor, novamente a mulher com duas faces e um século passado estiveram presentes na maioria das manifestações que
único nome. A primeira pela qual Tristão de apaixona perdidamente, não pediam o fim do Regime Ditatorial no Brasil e em tantas que outras,
lhe é acessível, pois já está comprometida. A segunda Isolda, com quem reivindicavam direitos civis e sociais. Os assuntos femininos começaram
ele se casa, parece resignada com a sina de não ser amada, mas acaba a ocupar um maior espaço nas mídias bem como os questionamentos
por vingar-se o levando a morte. Sansão e Dalila apresentam a face mais sobre a nova visão imagética feminina que se sedimentava; ou seja,
ardilosa da mulher, capaz de seduzir, manipular e destruir o ser amado, uma mulher que já podia se assumir como dona de seu corpo e em
neste caso por questões políticas. Maria Bonita e Lampião apresentam parte de si mesma. Mesmo com todos os preconceitos, poderia ser
a parceria formada pela admiração mútua, companheirismo e ideais “divorciada” não mais “separada” e estabelecer uma nova relação
comuns, que tornam alguns casais inseparáveis mesmo após a morte. amorosa assumindo-a publicamente. O espaço público, mesmo que,
Enfim, a canção mostra mulheres que souberam à sua maneira, utilizar ainda de maneira restrita, pôde ser ocupado pelas mulheres, porém a
seus atrativos quer fossem de sedução ou de aparente submissão para questão principal neste período foi a emancipação feminina em relação
conquistar e manipular homens cujos poderes poderiam ser usados ao seu próprio corpo e sua relação com homem. Esses perfis femininos
se delineam nas composições que Rita Lee produziu neste período.
para satisfazer os seus interesses.
Por esse motivo, é possível dizer que se tornam autobiográficas, pois
Essas manifestações de facetas femininas encontradas nesta
a compositora, em sua vida pública esteve em grande exposição na
canção, possibilitam traçar uma análise sob a perspectiva indicada
mídia ocupando um lugar de destaque no cenário musical brasileiro.
por Roger Chartier ao tratar do binômio dominaçãomasculina/
No universo particular, que não era restrito às esferas do lar, uma
submissãofeminina evidencia que o ato de submeter-se não é excludente
vez que muitos aspectos se tornavam públicos, Rita Lee firmou uma
do ato manipular.
83 CHARTIER, Roger.  ap. SOIHET, Rachel.  História das mulheres e história de
O que significa que a aceitação das mulheres de determinados
gênero - um depoimento. Cadernos Pagu. Trajetórias do gênero, masculinidades....
cânones não significa, apenas, vergarem-se a uma submissão
(11.) Campinas: Unicamp, 1998, p. 85.

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parceria profissional e uma relação afetiva com Roberto de Carvalho Ao findar do século XX novos comportamentos femininos e
que naquele momento mostrava-se muito estável. Esses fatores são masculinos entraram em evidencia. Rita Lee na canção as mulheres
possíveis de serem entrevistos nas suas composições. Todas as Mulheres do Mundo84 mostra a um universo feminino permeado
por heterogeneidade de facetas, escolhas e ações.
2.3 De 1990 a 2000: Nem Toda Brasileira é
Todas as Mulheres do Mundo
Bunda: Meu Buraco é Mais em Cima Rita Lee

No Brasil e no mundo, a última década do século XX, foi profícua Elas querem é poder!
para afirmação das mulheres como cidadãs e sujeito históricos, Mães assassinas, filhas de Maria
mesmo que muitas das práticas misóginas ancestrais tenham Polícias femininas, nazijudias
Gatas gatunas, kengas no cio
permanecido, pode-se dizer que o espaço da mulher na sociedade Esposas drogadas, tadinhas, mal pagas
assumiu uma dimensão não alcançada anteriormente. Certamente Toda mulher quer ser amada
essas conquistas foram resultado das lutas das décadas anteriores, Toda mulher quer ser feliz
Toda mulher se faz de coitada
no entanto, os direitos femininos conquistados muitas vezes não Toda mulher é meio Leila Diniz
foram respeitados, portanto, as mulheres precisaram permanecer
organizadas e reivindicando. Um dos eventos importantes que se Garotas de Ipanema, minas de Minas
Loiras, morenas, messalinas
pode citar aconteceu no Rio de Janeiro, durante a Conferência das Santas sinistras, ministras malvadas
Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento/ECO 92. Imeldas, Evitas, Beneditas estupradas
Na ECO92, as mulheres brasileiras estiveram presentes no Fórum das
[...]
Organização Não Governamentais -ONGs por meio da Tenda das Paquitas de paquete, Xuxas em crise
Mulheres ou Planeta Fêmea. Este espaço foi organizado por entidades Macacas de auditório,velhas atrizes
feministas para ser um local destinado ao debate de questões Patroas babacas, empregadas mandonas
Madonnas na cama, Dianas corneadas
relativas à mulher e acabou sendo transformado no palco de reuniões
e discussões políticas e de atividades culturais das quais resultaram 84 O título da canção é homônimo ao do filme de 1966 dirigido por Domingos
de Oliveira e estrelado por Leila Diniz, na análise não foi possível perceber
Agenda 21 das Mulheres. similiridades entre as personagens da música e as do filme. Visto que, a película
Na medida em que as mulheres ocuparam mais espaço, sua trata mais propriamente da escolha que um homem solteiro necessita fazer ao
exposição pública aumentou e junto a isso a apropriação de sua encontrar a moça que seria o modelo do gênero feminino, daquele período.
A personagem principal, Maria Alice, a noiva do amigo, é o arquétipo ideal
imagem pelas das mídias como moeda de troca para comercialização de mulher para casar. A jovem moça de boa família e professora formada,
dos mais diversos produtos. Ao que parece, no centro púlpito havia um arrebata-lhe o coração e por ela ele deverá abdicar de “todas as mulheres do
mundo. Disponível em: http://www.filmesbrasileiros.net/todas-as-mulheres-do-
cadafalso. mundo/. Acesso em 28 ago. 2010.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 414 | História | 2012


[...] “Elas querem é poder!”. A frase inicial já fornece um fértil objeto
Socialites plebéias, rainhas decadentes
de análise, pois encerra em si um leque de anseios que não se limitam
Manecas alcéias, enfermeiras doentes
Madrastas malditas, superhomem sapatas apenas estar no poder e sim exercê-lo. Mas que espécie de poder
Irmãs La Dulce beaidetificadas querem essas mulheres? Se os poderes femininos forem entendidos “[...]
[...] 85 como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que
O ritmo é um rock and roll pesado e a gravação finalizada com instituem a dominação masculina, contra seu próprio dominador”88,
Rita Lee citando uma série de nomes de brasileiras que não constam pode-se inferir que elas almejam o mesmo poder conferido aos homens,
do encarte do CD: mas com uma releitura feminina.
A imagem do filicídio na frase “mães assassinas” se contradiz com
Nossa Senhora Aparecida, Dercy Gonçalves, Clarice Lispector,
Marília Gabriela, Carmem Miranda, Hebe Camargo, Lilian “filhas de Maria”. E, talvez seja, se não a menos provável, pelo menos
Witfibe, Normal Bengel, Bibi Ferreira, Princesa Isabel, Joice a mais incompreensível; uma vez que o amor materno faz parte do
Pascowith, Zélia Gatai, Ângela Diniz, Daniela Perez Claudia arquétipo construído sobre o papel da mulher. Imagina-se que uma
Lessin, Ayda Cury, Luz Del Fuego, Bruna Lombardi, Vânia
Toledo, Silvia Popovick, Laura Zen, Madalena Tagliaferro, Regina fêmea, independentemente da espécie, mesmo que, apenas por
Casé, Elis Regina, Sonia Braga, Rita Camata, Rita Cadilac, questões genéticas, não aniquile o futuro que a sua prole representa.
Maria Bonita, Liége Monteiro, Lucinha Araújo, Virginia Lane, As teorias biológicas deterministas diriam que no ser humano, o gênero
Pagu, Rebordosa, Dora, Pia, Anita Malfati, Tomie Otake, Tisuka
Yamazaki, Fernanda Montenegro, Mathilda Kovak, Dona Canô, feminino é propício à histeria, à emoção e à falta de controle; aliado a
Claudete e Ione, Dora, Danusa Leão, Nara Leão, Wanderléia, isso a psiquiatria lhe atribuiu representações como, louca, estranha e
Luiza Erundina, minha mãe, Roberta Close e eu”.86 perigosa, uma vez que é imprevisível. Possivelmente, nos tempos atuais
Nesta canção optou-se por analisar alguns fragmentos da poesia, com o desenvolvimento dos estudos da psique e com o conceito de
certamente, o fato de selecioná-los é uma apropriação de uma depressão pós-parto já seja permitido, mesmo que num evento pontual,
particularidade específica e atípica, mas esta particularidade é apenas uma possibilidade à mulher manifestar os sentimentos contraditórios
que permeiam a maternidade.
o ponto de partida, para uma análise que busca o significado desses
O desvio contra a ordem pode ser percebido nas “Kengas no
excertos examinando-os como parte de um todo que se relaciona a um
cio”, mulheres sexualizadas que exercem uma audaciosa e improvável
contexto histórico específico.87
subversão à dominação masculina,89 são pagas para satisfazer alguém
85 LEE, Rita. Todas as mulheres do mundo. Composta em 1993.Gravada por:
RITA LEE. COR DE ROSA CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio 88 CHARTIER, Roger. ap. SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de
de Janeiro: Biscoito Fino, 2007. 1 DVD. gênero - um depoimento. Cadernos Pagu.Trajetórias do gênero, masculinidades....
86 A transcrição não manteve a ordem e nem a totalidade dos nomes citados na (11.) Campinas: Unicamp, 1998, p. 85.
gravação. 89 Bourdieu indica que a dominação masculina resulta do que é definido por
87 LEVI, Giovani. Sobre a Micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da história ele como violência simbólica, a qual tem o poder de fazer os indivíduos sentirem
( novas perspectivas). 3. ed. São Paulo: Unesp, 1992. p. 148. os valores que foram forjados pelo cultural, como se fossem um fato natural.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 415 | História | 2012


e não propriamente para se satisfazerem, mas subvertem a lógica dominação dado aos homens e a reapropriaram (a linguagem de
imaginária masculina. Pois, de acordo Chartier, muitas vezes o gênero dominação masculina) para sinalizar resistência.95
feminino age, com “[...] uma tática que mobiliza para seus próprios No verso “Madonas na cama e Dianas corneadas” é possível
fins, uma representação imposta – aceita, mas desviada contra a ordem perceber, mais duas faces de Eva. A primeira uma Lilith96, audaciosa,
que a produziu. 90 explícita, vigorosa e agressiva, a segunda etérea, dissimulada,
“Ministras malvadas, Imeldas, Evitas, Beneditas91 estupradas”. Neste frágil, doce e aparentemente submissa, como convém à imagem
verso encontramos as “Damas de Ferro”92 de tailler, as fúteis larápias e estereotipada de uma princesa. Mulheres singulares, distantes do
cotidiano da maioria das pessoas e ao mesmo tempo tão próximas, na
seus sapatos93, as populistas “mães do povo”94 e redentoras da pátria
medida em que, a mídia expõe suas privacidades e elas, por seu lado,
e, por fim as anônimas que sofrem violência simbólica tanto no espaço
habilmente utilizam-na e exercitam por meio dela (mídia) o seu poder
público quanto no privado. Pode-se considerar que estas mulheres ao
simbólico publicamente; enquanto as indefectíveis “patroas babacas”
assimilarem elementos da linguagem masculina, souberam utilizar
e “empregadas mandonas” fazem do recinto doméstico o seu lugar
as fendas existentes no tecido sociocultural que recobre o poder de
de poder.
O exercício da dominação masculina tem como pilar a violência simbólica e E por fim, a compositora apresenta as “socialites plebéias97,
se estabelece a partir do momento em que ambos, dominador e dominada a
aceitam. Entretanto, não há nesse processo uma ação consciente, ele decorre
manecas alcéias98, superhomem sapatas99” e as “Irmãs La Dulce
gradativamente do que se pode definir como uma lenta introjeção. E, ainda, beaidetificadas”.100
esta violência simbólica não ocorre a partir de mecanismos conscientemente
elaborados pelos homens para exercer poder sobre as mulheres, mas deriva de 95 CHARTIER, Roger. ap. SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de
um gradativo processo que socializa o biológico e torna o biológico social. Este gênero - um depoimento. Cadernos Pagu. Trajetórias do gênero, masculinidades...
(11). Campinas: Unicamp, 1998.
processo está organizado a partir de categorias que têm o homem como centro 96 Ser mitológico feminino, que estaria presente no Jardim do Éden antes mesmo
e se expressa por meio das formas de falar, de pensar e se comportar, as quais, de Eva aparecer. Por não aceitar submeter-se a Adão foi expulsa do Paraíso tendo,
por sua vez, irão produzir efeitos corporais e mentais nos indivíduos. BOURDIEU, segundo alguns, se transformado em Serpente, a fim de representar o papel de
Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. demônio tentador.
90 CHARTIER, Roger. ap. SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de gênero 97 As “novas” ricas ainda não foram institucionalizadas pelas representações
- um depoimento. Cadernos Pagu. Trajetórias do gênero, masculinidades....(11.) sociais, têm aporte, mas não têm appprocah nem estirpe. Muitas delas são
Campinas: Unicamp, 1998, p. 85 repudiadas nas “altas rodas” pelas socialites “quatrocentonas”, que muitas vezes,
matem, apenas a tradição, porque os recursos já se exauriram.
91 Possivelmente uma referência a carioca Benedita Souza da Silva uma “pobre e 98 Sugestivamente uma referência às top models bulêmicas, anoréxicas e
favelada”, que foi primeira a negra a eleger-se senadora no Brasil em 1994. esquálidas que entram no jogo da indústria cultural impondo um ideal de beleza
92 Fica evidente a referência à Margareth Thatcher que foi a primeira mulher a feminina excepcional, discutível e quase inatingível para a “mulher comum”. E à
ocupar o cargo de primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Permaneceu no poder de bruxa Alcéia, personagem que aparece nas histórias (Quadrinhos da Luluzinha)
1979 a 1990. da “Pobre Menininha” sempre tirando proveito dela.
93 Imelda Marcos foi “primeira-dama” das Filipinas de 1986 a 1992. Ela e seu 99 Como seriam estas mulheres? Possivelmente, seres mitologicamente
marido dilapidaram os cofres filipinos. Enquanto Imelda tinha 3.000 pares de andróginos, que teriam se apropriado de características dos dois gêneros. Quiçá
uma representação do poder que transita entre o masculino e feminino. “Fêmea/
sapato milhares de filipinos morriam na miséria. macho” “macho/fêmea”, sem contornos nítidos.
94 A ex-primeira-dama da Argentina que por meio do casamento, saiu da 100 Religiosa baiana, falecida em 1992, que se dedicou às causas de caridade,
condição de Maria Eva Duarte, filha ilegítima, desprezada e pobre para a do recolhendo doentes das ruas de Salvador, dentre eles, os portadores do vírus
mito Evita Perón. HIV. Seu processo de beatificação ainda tramita na Congregação das Causas dos

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 416 | História | 2012


Mas afinal, além de poder o que almejam as mulheres? No refrão FIGURA 4 - PAGU

da música, Rita Lee diz que elas querem ser amadas, felizes, que se
precisar se fazem de coitadas, encobrindo a Leila Diniz que trazem em
si, capaz de quebrar tabus mostrando a barriga prenhe em público e
proferir impropérios e palavrões impublicáveis.
A próxima canção foi composta no início do ano 2000, em cujo
contexto, as muitas mulheres brasileiras haviam concretizado suas
reivindicações e assegurado várias das suas conquistas. Entretanto,
pelo mote da poesia a mensagem de Rita Lee, seria de alerta as
mulheres, pois, enquanto muitos dos estereótipos permaneciam, novos
comportamentos misóginos se delineavam, tornando dessa forma, em
parte, inócuas as ações afirmativas do gênero feminino das décadas
anteriores. Por esse motivo pode-se inferir que a compositora tenha
escolhido para o título e nominado no decorrer da poesia, uma mulher
brasileira real e específica: Patrícia Galvão.101
Santos do Vaticano. Dizia ela: “minha política é a do amor ao próximo”.
101 Musa do modernismo e militante de causas sociais, Patrícia Galvão conquistou
espaço na memória política e cultural do Brasil. “[...] A biografia de Patrícia Rehder
Galvão, a Pagu, causa encanto em leitores e estudiosos pela sua intensidade. [...]
Fonte:Disponível em: A MARCA de Pagu.Revista E.n.110.http://www.sescsp.org.br/sesc/
Desde o dia em que se entendeu por gente, nos seus 52 anos de vida, impôs a si
revistas/ revistas_link. cfm? Acesso em: 15 jan. 2010.
mesma o dever de mudar o mundo. E não poupou esforços para isso. Foi ousada,
corajosa, moderna e, sobretudo, humanista, desde antes de acertar o foco social
e político de suas lutas. [...] Sua luta contra a ditadura de Getúlio Vargas, iniciada Pagu
na década de 30 quando tinha apenas 21 anos, foi dura e tortuosa, pontuada Rita Lee - Zélia Duncan
por prisões - mais de 20 - e torturas. [...] Ela foi jornalista, crítica de letras, artes,
televisão e teatro, poeta-desenhista, romancista, incentivadora cultural, mulher Mexo remexo na inquisição
precursora e revolucionária. Soube também ser dissidente política, quando rompe Só quem já morreu na fogueira
com o Partido Comunista e volta a ser apenas Patrícia, defendendo um socialismo
Sabe o que é ser carvão
libertário, pacífico, democrático e espiritualista. [...] Para Geraldo Galvão Ferraz,
Eu sou pau pra toda obra
filho do segundo casamento de Pagú, ela foi, sobretudo, alguém com uma vida
que fez diferença. Desde o exemplo de rebeldia e irreverência da adolescência ao Deus dá asas à minha cobra
engajamento no tempo modernista para, em seguida, começar seu envolvimento Minha força não é bruta
político. E, enfim, no importante papel de divulgadora das vanguardas estéticas Não sou freira nem sou puta
dos anos 40 e 50”. Disponível em: A MARCA de Pagu. Revista E. n. 110. http:// Nem toda feiticeira é corcunda
www.sescsp.org.br/sesc/ revistas/ revistas_link.cfm? Acesso em: 15 jan. 2010. Nem toda brasileira é bunda

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 417 | História | 2012


Meu peito não é de silicone serpente e mulher se coadunam, a primeira com seus ardis a segunda
Sou mais macho que muito “home”
com sua desobediência e curiosidade, “manchando” para sempre a
Sou a rainha do meu tanque existência humana.
Sou Pagu indignada no palanque O próximo fragmento, “sou a rainha do meu tanque/sou Pagu
Fama de porralouca, tudo bem
indignada no palanque” indica em primeiro lugar a mulher rainha
Minha mãe é Maria Ninguém
Não sou atriz-modelo-dançarina do lar, aquela “Amélia” que cura suas dores físicas e psicológicas
Meu buraco é mais em cima lavando um tanque de roupas. Mas, analisando mais amiúde desponta
uma “rainha” que parece não se envergonhar de ter como reino um
Nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda tanque de roupas que, neste contexto é uma analogia ao ambiente
Meu peito não é de silicone doméstico, locus do feminino e da formação dos cidadãos. Todavia,
Sou mais macho que muito “home”.102
na frase seguinte, “Pagú indignada no palanque” encontra-se uma
Na primeira estrofe a imagem de remexer a inquisição, pode revelar mulher que além de ter sido uma “dona de casa”, a despeito de todas
um desejo de busca pelos motivos reais que no decorrer da história, as represálias, foi para o espaço público, lócus do masculino. Para ali
levaram tantas mulheres à condenação e às mais variadas formas reivindicar direitos seus e de outrem, expor suas idéias, experienciar
de “morte”. Vale lembrar que, Pagu, a personagem título, foi visitada a vida e enfrentar um regime que cerceava a tudo e a todos, enfim,
pela “inquisição” do Governo Vargas por conta de seu posicionamento uma “porralouca” como diz a compositora em outro verso da mesma
político e sua liberdade de ação. canção.
A frase, “eu sou pau pra toda obra/Deus deu asas à minha cobra”, No verso “atriz-modelo-dançarina”, Rita Lee aponta para uma
sugere a princípio uma referência ao ditado popular, por meio do qual personagem que é criada, digerida e reposta rapidamente pelas
são adjetivados aqueles que estão disponíveis para tudo. Ao mesmo mídias contemporâneas. São as aspirantes a celebridade instantânea,
tempo em que contradiz o outro ditado, que alerta para o perigo de que trazem no pacote os inconfundíveis seios siliconados, um derirère
municiar o inimigo de aparatos que lhe possibilitam ir além do que devidamente avantajado e o objetivo de ser rainha de bateria no
originalmente poderia. A referência a serpente, faz lembrar que próximo carnaval para depois disso, posarem nuas na grande vitrine da
para a religiosidade judaico-cristã, ela é a responsável pela mazelas mulher/objeto: a revista Playboy. Contudo, não é possível afirmar que
do Homem. Pois, transmutado nela o diabo induziu Eva a comer do elas estejam equivocadas ao fazerem esta escolha, pois, se há mercado
fruto proibido e, portanto, ao pecado tendo como consequência a é porque certamente há procura. Percebe-se que a compositora
sua expulsão e a de Adão do Paraíso. Assim sendo, neste momento, desaprova este estereótipo físico e comportamental, já na próxima
102 LEE, Rita. Pagu. Composta em 2000. Gravada por: RITA LEE. COR DE ROSA frase quando diz “meu buraco é mais em cima”; para a personagem
CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio de Janeiro: Biscoito Fino,
2007. 1 DVD. da música, há outras formas de se fazer vista, ou seja, expressar-se

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 418 | História | 2012


pela palavra, dizer quem é e o que deseja por meio de ações que E por fim, a compositora encerra a música apresentando a frase
transcendam a sexualidade, ou seja, utilizar de seus dotes “intelecto/ “sou mais macho que muito “home” e abrindo ao mesmo tempo uma
verbais” em vez dos atributos físicos. discussão para o estudo do gênero masculino. O que é ser macho? O
Em “nem toda feiticeira é corcunda”, encontra-se uma imagem que é ser homem?
afirmativa de que a bruxa moderna nem sempre tem narigão com Por mais conquistas que as mulheres tenham conseguido, há um
verruga na ponta, não usa vassoura e tem um riso sinistro. Rita pode aspecto ainda por discutir mais profundamente, a utilização imagem
estar fazendo uma referência ao seriado televiso que relatava a vida de da feminina na publicidade como isca de consumo para os mais
uma família de classe média estadunidense nos anos sessenta do século variados produtos. O corpo exposto da mulher brasileira é utilizado
passado. A feiticeira no caso era Samantha Stephens, a esposa, uma para vender, pacotes de turismo sexual embutidos em muitas viagens
dona de casa comum, dedicada ao ambiente doméstico, interpretada ditas “culturais”, bebida alcoólica, carros, roupas entre outros itens
pela atriz Elizabeth Montgomery. A representação do estereótipo da bruxa disponíveis no mercado consumidor. Seus atributos físicos são realçados
sofreu alterações, ela pode ser perigosamente dócil e inofensivamente de modo a reificá-la, ou seja, estabelecer uma relação direta entre o
linda e extremamente astuta. produto e a mulher, alvos do desejo masculino.
A frase seguinte “nem toda brasileira é bunda”, é emblemática por A mulher-objeto, fruto da manipulação das clínicas de estética e
ser uma clara negativa à imagem vendida pelos anúncios de viagens
da mídia que disponibilizam no mercado produtos de embelezamento,
turísticas/sexuais. Ou seja, a mulher brasileira vendida pela “bunda”. Ou
aparelhos de ginásticas, emagrecedores, dietéticos e medicina
quiçá Rita Lee queira chamar atenção para o fato de haver um comércio
especializada, é apresentada como desprovida de sentimentos, idéias
que gira em torno desta imagem. Citando apenas um exemplo: Há
próprias, valores e projetos de vida. O seu físico e sua sensualidade
mulheres que ao se valerem de seus atributos físicos (naturais ou não),
estão em primeiro lugar; requebrar bem enquanto dança sobrepõe-se
gravam discos e fazem shows, nos quais dizem “cantar”. Esse fenômeno
ao saber pensar, e a ausência de adiposidades e celulites importa mais
ocorre na indústria cultural brasileira pelo menos desde a década de
que as qualidades morais e intelectuais que possa ter.
1970, mas na atual fase do culto ao corpo, houve uma proliferação
Outro segmento da mídia brasileira que vem utilizando a mulher
deste modelo fonográfico.
de maneira a inferiorizá-la são os programas humorísticos e os tão
Em “meu peito não é de silicone”, percebe-se novamente referência
propagados realities shows televisivos.103 Em geral esses programas
a “atriz-modelo-dançarina” e a “brasileira/bunda” já que uma prótese
apresentam uma imagem imbecilizada das mulheres, reforçando um
de silicone é um dos atributos exigidos para obtenção dos referidos
machismo ancestral e favorecendo a violência contra elas, seja física ou
títulos. A compositora também pode estar não só sendo irônica, ou
quem sabe apontando para a artificialidade de algumas mulheres moral, que é mais comum.
atuais que se evidencia no seu corpo, mas que, entretanto se aloja no 103 Embora, neste formato de programa, muitas vezes, os dois gêneros sejam utilizados
de maneira depreciativa e pejorativa, a exposição corporal feminina é quase uma
seu psicológico. constante, normalmente interpretando seminua o papel da “gostosa”e “burra”.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 419 | História | 2012


O que diria Pagu, para as mulheres brasileiras do século XXI? é uma mulher que não é a anti e nem a heroína, é singular, plural e
Principalmente para aquelas que fugiram ao modelo “rainha do lar”, múltipla.
e não aderiram causa nenhuma, caindo no alçapão de não ter uma Algumas recorrências, evidenciam-se nas poesias de Rita Lee,
atividade definida. Quem sabe Rita Lee tenha respondido por Pagu ao dentre elas pode-se citar uma preocupação com o futuro, sempre
dizer que “nem toda brasileira é bunda”. questionando como as mulheres podem e devem se posicionar na
sociedade atual; o recurso aos contos de fadas também é lançado mão
CONSIDERAÇÕES FINAIS frequentemente, para traduzir alguns arquétipos femininos que estão
Um projeto historiográfico como o próprio nome já identifica, é arraigados na imaginação das sociedades. A sexualidade aparece
realmente um projeto, as fontes dirão que encaminhamento será dado comumente levantando questões e demonstrando de que maneira as
a ele. As intenções não se traduzem concretamente em ações. Há mulheres utilizam o poder adquirido seu próprio corpo. As questões
encruzilhadas múltiplas neste caminho a ser percorrido e a direção a relativas à família, também se apresentam da forma contumaz, uma vez
ser tomada é indicada pelas fontes. que, inevitavelmente as transformações nos comportamentos femininos
As fontes realmente cochicham, falam e até gritam. Elas entram nos têm uma influência direta nesta instituição societária. Também são
sonhos, invadem o inconsciente e lá executam literalmente uma dança recorrentes os motes que se referem à feitiçaria, aos ofícios femininos
de sedução, na qual insinuam-se entre véus e brumas, porém não se e as lutas travadas pelas mulheres para se fazerem respeitar e firmar
mostram inteiras; elas exigem uma proximidade sensorial e um olhar direitos como sujeitos históricos.
mais meticuloso por vezes até afetuoso para começarem o seu processo O que foi possível perceber, que existem três momentos bem
de entrega. No entanto, quando este estágio é atingido, umas não delineados. O primeiro expõe as mulheres como sujeitos que se
querem ser relegadas em detrimento das outras. E daí vem o grande colocam individualmente e diferente dos homens, portanto, capaz
dilema do historiador. O que selecionar? Quem e o que legitimará a de se identificar como mulher sem necessariamente ter que trilhar os
escolha feita? Dando-se por vencido, ao estudioso não resta senão caminhos ditados pelas tradições sociais. Ou seja, um certo desacato
entregar-se à subjetividade que as fontes lhe oferecem, entretanto, não à autoridade masculina. O segundo momento evidencia uma mulher
se olvidando de ter como guia a objetividade da teoria e da metodologia que se assume seu corpo e concomitantemente uma relação efetiva/
próprias do metier da historiografia. romântica na qual partilha o seu corpo com o homem amado. “Não
Trabalhar com a letras musicais de Rita Lee mostrou-se uma labuta sou gostosa, mas sei expressar a sexualidade de mulher gostosa”.104
instigante, e ao mesmo tempo onerosa, porque nas entrelinhas de quase O terceiro momento, pode-se inferir que aglutina os dois anteriores,
todas as fontes havia uma característica que é própria da compositora, evidenciando que, para a compositora o estereótipo da mulher submissa
ou seja, deboche e ironia e, que, portanto torna difícil inferir em que
104 COR DE ROSA CHOQUE. Rita Lee. Direção de Kati Almeida Braga. Rio de
medida ela pode estar falando sério ou brincando; pois a compositora Janeiro: Biscoito Fino, 2007. 1 DVD.

Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná 420 | História | 2012


não é mais possível de se manter, ou seja, esvaziou-se, e ainda, aparece http://rosamulher. Word press.com/2010/10/12/viva-nossa-senhora-
a mulher romântica um tanto quanto decepcionada e se colocando de parecida/ Acesso em: 25 nov. 2010.
forma mais contundente. Percebe-se uma busca desta mulher por ela http://www.google.com.br/images. Acesso em: 27 out. 2010.
mesma dentro de uma sociedade que lhe permitiu isso. “Não gosto http://www.lastfm.com.br/music/Rita+Lee/+images. Acesso em: 13 dez.
de mulher que reclama, mulher tem que agir [...] Parar de se fazer de 2010.
coitada. Vá ver se o salário que você ganha é igual aos dos homens, vá http://www.letras.com.br/rita-lee. Acesso: em 25 jun. 2010.
lá cobrar isso. Pare de reclamar.”105 http://www.memoriaviva.com.br/luzdelfuego/luzjb.htm. 28 ago. 2010.
Diante dessas considerações pode-se concluir que as composições http://www.papolog.com/upload/60 /images/ 7366.jpg. Acesso em: 13
de Rita Lee mostram um caleidoscópio que apresenta mulheres públicas dez. 2010.
e privadas, mesquinhas e caridosas, autênticas e mentirosas, vítimas http://www2.uol.com.br/ritalee/60anos.htm. Acesso em: 8 nov. 2010.
e algozes, mas, sobretudo “mulheres humanas” e, por conseguinte
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