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IDENTIDADE E SEXUALIDADE:
Reformando nossa visão de conceitos
fundamentais
Pedro Dulci
Copyright © 2020, de Pedro Dulci
1ª edição, 2020
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R
Conseguem perceber, caros leitores, o tipo de abordagem
que estamos fazendo? Não estamos virando para um adolescente
que está tendo sua primeira percepção afetiva e dizendo “isso aí
que você está sentindo e querendo é do Diabo!”. Além de insensível
e desonesta, essa forma de conversar sobre identidade e
sexualidade é absolutamente errada do ponto de vista bíblico. É
exatamente o mesmo raciocínio do apóstolo Paulo que Allbery nos
lembrou. Quando o apóstolo fala alerta seus leitores em 1 Coríntios
6.9-11 quanto a uma série de atos que eles cometiam antes de estar
em Cristo e de fazer parte da igreja e os orienta a não voltar ao
antigo modo de vida, podemos compreender, sem desrespeitar a
Bíblia, que o apóstolo está sugerindo que ainda existe entre eles o
desejo de voltar à prática desses hábitos característicos da vida sem
Jesus. Entretanto, Paulo não condena esse desejo. É algo que eles
precisam reconhecer, rejeitar e resistir. Da mesma forma que
acontece como o nosso adolescente com desejo homoafetivo,
aquelas pessoas em Corinto estavam lutando contra o desejo de
voltar a mentir, roubar e também de ter relações sexuais de uma
maneira que não glorificava a Deus. Esse desejo permanecia, mas
em Cristo já não somos mais quem éramos e buscamos satisfazer
nossas carências, desejos de pertencimento e marcas definidoras
da nossa identidade de uma forma que evidencie que estamos sob
a influência do Espírito de Cristo que produz em nós as virtudes que
são fruto da obra consumada de Jesus aplicada a nossos corações.
Tão somente assim conseguiremos reconhecer a mobilidade
estrutural e direcional que têm nossa sexualidade e como isso deve
ser abordado de uma maneira que não comprometa o processo, que
o Espírito Santo iniciou em nosso coração, de restaurar a imagem e
semelhança divina em nossa nova identidade em Cristo.
Acredito que lidar honestamente dessa forma com as
perguntas honestas das pessoas que sofrem com confusões dessa
natureza não será apenas de grande valor. Antes, um
aconselhamento dessa forma, com o poder do Espírito Santo, tem
condições de libertar para sempre um indivíduo das cadeias da
culpa, do medo e da incerteza que o pecado produz em nós. É um
feito incrível para a saúde emocional e espiritual não permitir que
um indivíduo que está percebendo, pela primeira vez na vida, uma
atração homoafetiva presuma, a partir disso, que agora esse desejo
determinará sua identidade para o resto da vida. Desassociar
atração, afeição e sexualidade de identidade é uma necessidade
urgente, e o raciocínio de estrutura e direção nos ajuda muito nessa
tarefa. Não podemos permitir que nossos amigos, nossos filhos,
nem nós mesmos, transformemos variações, tentações e desejos
direcionais em marcas estruturais de nossa identidade. Quem diz
quem nós somos, o que nos qualifica e nos fornece a estrutura de
nossa identidade não é nosso gênero, nem nosso sexo, nem nossa
sexualidade. Antes, é nossa nova aliança com Cristo!
1
3. A sexualidade humana foi totalmente afetada
pelo pecado
O
Vou me valer, uma vez mais, das contribuições de Albert
Wolters:
A queda de Adão e Eva em pecado não foi apenas um ato
isolado de desobediência, mas um acontecimento de
significado catastrófico para a criação como um todo. […]
Biblicamente falando, o pecado não anula a criação nem se
identifica com ela. Criação e pecado permanecem distintos,
mas intimamente entrelaçados em nossa experiência. A
prostituição não elimina a bondade da sexualidade humana.
[…] Podemos dizer que o pecado e o mal têm sempre o
caráter de uma caricatura — ou seja, de uma imagem
distorcida que contém certas características reconhecíveis.[33]
Já falamos bastante a respeito de estrutura e direção, mas
agora o exemplo que Wolters dá sobre a prostituição nos ajuda a
materializar o raciocínio abstrato. Novamente, a pergunta não é “a
prostituição é boa ou má?”, mas, em vez disso: “o que é estrutural e
o que é direcional na prostituição?”. Algumas pessoas podem
estranhar a forma dessa pergunta, pois pressupõe que existam
coisas boas (estruturais) na prostituição. E isso é verdade, ainda
que os evangélicos não estejam acostumados a pensar assim. Até
na prostituição existem aspectos que apontam para a boa criação
de Deus — podemos pensar, simplesmente, nos relacionamentos
interpessoais, nas relações sexuais e no prazer. Tudo isso é
estrutura criacional e está presente de alguma forma nas
experiências de prostituição. Entretanto, como todas as dinâmicas
da criação foram afetadas pelo pecado, nada escapa ao seu poder
deformador — nem nossa sexualidade. É aqui que surgem os
aspectos direcionais de nossa sexualidade que podem acabar em
prostituição, por exemplo: a objetificação de quem se prostitui, a
mercantilização de quem se prostitui, a vituperação da pessoa
humana, o vício, o tráfico e tudo de degenerado e disfuncional que
está envolvido na prostituição.
O que precisa ficar claro é que ter uma compreensão robusta
dos efeitos do pecado na realidade vai nos ajudar a analisar toda a
criação de uma maneira muito mais precisa. Ainda que estejamos
concentrados em questões de gênero, sexo e sexualidade, essa
maneira de enxergar o mundo vale para tudo: para a arte, para a
política, para a ciência e tecnologia, e assim por diante.
Albert Wolters está nos ajudando a entender que o pecado, a
forma de vida pecaminosa, o abuso da criação, sempre tem uma
natureza caricatural. Isto é, o modo como o pecado opera está mais
próximo a uma caricatura. Geralmente, quando querem produzir a
caricatura de alguém, os cartunistas aumentam alguma
característica que já é uma marca chamativa de quem está sendo
representado — uma orelha, um nariz, uma boca. Mesmo que a
gente olhe e veja que se trata de uma caricatura, também
conseguimos reconhecer a quem ela se refere. Com o pecado
acontece exatamente o mesmo. Quando olhamos para a
prostituição, por exemplo, conseguimos enxergar sexualidade,
relacionamento, desejo, mas algumas características desses
elementos de nossa experiência foram desfigurados pelo pecado,
gerando a caricatura: a prostituição. A prostituição, bem como todas
as outras desordens sexuais e de gênero, são meras caricaturas
das intenções originais de Deus para nossa vida. São experiências
de estruturas boas que foram hipertrofiadas pelo pecado, de forma
que produziram uma representação deformada do que era a
imagem e semelhança divina.
Nesse sentido, podemos compreender melhor o que o
pecado faz quando afeta totalmente nossa sexualidade. Ele dá
dimensões equivocadas a aspectos bons da nossa identidade e
sexualidade e, por isso, não consegue produzir vida, uma vez que
não tem as dimensões adequadas, as condições apropriadas para
satisfazer as expectativas criacionais dos seres humanos. É por isso
que o salário do pecado é a morte, nunca a vida. Buscar na
prostituição, ou em qualquer outra orientação sexual que subverta
os desígnios originais de Deus, a satisfação de nossos anseios
relacionais, físicos e emocionais é tentar matar a sede com Coca-
Cola. É pecaminoso esperar de alguma coisa — seja nossa vida
sexual, seja nossa identidade — mais do que esta pode oferecer. O
pecado não consegue suprir nossos anseios.
D H
Você já ouviu falar da Dona Hermínia? É a protagonista de
uma peça de teatro, que posteriormente se tornou um filme de longa
metragem, chamada Minha mãe é uma peça (2013). Trata-se de
uma comédia engraçadíssima cujo roteiro foi escrito por Fil Braz e
pelo ator Paulo Gustavo, que interpreta a dona Hermínia. Essa
personagem é uma mulher de meia idade, divorciada do marido,
que a trocou por uma mulher muito mais jovem. Diante disso,
Hermínia concentra-se em ser uma mãe presente, que não larga o
pé dos filhos — mesmo quando estes já são jovens adultos. Toda a
comédia do filme é a própria personalidade hiperativa de Hermínia
que nos faz rir com muitas falas, gestos e atitudes típicas de muitas
mães brasileiras.
O contrassenso que existe nessa história — e que ilustra o
meu argumento sobre a moralidade sexual de muitos evangélicos —
é que Hermínia foi concebida e interpretada pelo talentoso ator
brasileiro Paulo Gustavo, que não esconde sua orientação sexual
homoafetiva e sua união estável com o dermatologista Tales Bretas.
Ou seja, apesar de uma orientação absolutamente distinta da
personagem que criou, Paulo Gustavo conseguiu levar milhões de
pessoas ao teatro e ao cinema justamente porque sua personagem
consegue nos remeter aos usos e costumes das mães mais
desajeitas e conservadoras que conhecemos. Por meio de um clichê
sobre as mulheres brasileiras de meia-idade, Paulo Gustavo
conseguiu criar uma ponte perfeita com os costumes e preconceitos
mais tradicionais da cultura brasileira — a mãe que cria dois filhos
sozinha, que foi deixada por um marido de práticas heterossexuais
descontroladas, cheia de sexismos e preconceitos em suas falas
com os filhos, parentes, etc.
A minha hipótese é que muito do que se chama de
moralidade cristã no Brasil é semelhante à Dona Hermínia:
humanismos seculares pagãos travestidos de costumes
conservadores heterossexuais. Dito de outra maneira, moralismo
humano travestido de virtude sexual cristã. Essa é a maior tragédia
no interior das nossas comunidades cristãs. Não somos atentos o
suficiente para perguntar se nossos hábitos, pensamentos e
padrões morais de sexualidade são fruto da cultura ou do
discipulado bíblico. Não estamos preocupados em entender quem
nos forma moralmente na sexualidade.
Essa deformação em nossas práticas morais se manifesta de
formas muito sutis em nossas famílias, escolas e igrejas. Quando
pegamos um livro, como esse que você tem em mãos, sobre
homoafetividade, teoria queer e subversão das identidades sexuais
cristãs, imediatamente pensamos: “Isso é pecado! As Escrituras
condenam esses raciocínios da Judith Butler! Precisamos
reconhecer os desvios morais que existem nas relações
homoafetivas!”. No entanto, as mesmas pessoas que são velozes
para fazer a crítica teológica e cultural desses temas são aquelas
que têm um filho ou uma filha, menino principalmente, e o vestem
de uma forma bem bonita, passam perfume e, então, quando
alguém vem fazer um elogio do tipo “Nossa, como está cheiroso,
hein!”, nós batemos em suas costas e declaramos: “Sim! Ele está
mal intencionado com as meninas!”. Você consegue reconhecer
esse tipo de situação, caro leitor? Já presenciou ou mesmo
protagonizou um comentário dessa natureza? Você sabe o que é
isso? Chama-se lascívia. É pecado!
Infelizmente, muitos membros de nossas comunidades que
se identificam com a fé cristã reproduzem esses hábitos
diariamente. Condenamos a homossexualidade, mas celebramos a
lascívia heterossexual. Condenamos o feminismo, mas celebramos
expressões culturais sexistas. Quando pais são chamados para uma
conversa em que será relatado algum incidente envolvendo os seus
filhos, com namoros precoces ou pornografia, é recorrente
ouvirmos: “Graças a Deus meu filho gosta de mulher, né, pastor?”,
ou “Pelo menos ele não é gay, não é, pastor?”. Esse tipo de alívio
vem de pais desesperados, que não sabem mais como contribuir de
maneira genuinamente cristã para a formação da identidade e da
sexualidade de seus filhos. Não podemos celebrar a
heterossexualidade a qualquer custo. Uma sexualidade construída à
base de pornografia, abusos infantis e sexismos culturais, mesmo
que seja hétero, está longe dos padrões morais bíblicos para a
sexualidade humana. De onde as nossas meninas retiraram seus
padrões morais e aprenderam a ser mulher? Das Escrituras ou dos
videoclipes da Anitta? Com quem os nossos meninos estão
aprendendo a ser homens? Com o apóstolo Paulo ou com o
Neymar? Isso é moralismo humano travestido de virtude sexual
cristã. Não existe nada mais distante da proposta de Cristo para
uma nova vida segundo os valores do Reino de Deus.
A
Wesley Hill, professor da Trinity School for Ministry in
Ambridge, na Pensilvânia, é um dos mais importantes teólogos
norte-americanos e tem sido certeiro na edificação da igreja com
seus escritos sobre discípulos de Jesus que lutam a vida toda por
causa de sua orientação sexual e sua identidade em Cristo. Junto a
Sam Allbery, Rosaria Butterfield e outros nomes importantes no
diálogo contemporâneo sobre questões de sexualidade e
identidade, Hill nos ajuda principalmente a enriquecer nosso
vocabulário teórico com conceitos esquecidos pela igreja evangélica
— tais como castidade, celibato e continência. Infelizmente, na
busca de construir nossa identidade protestante em oposição às
formas de vida católico-romanas, renunciamos a uma série de
conceitos que são próprios à fé cristã e que nos auxiliariam muito na
resistência à revolução sexual. Wesley Hill é um testemunho vivo de
como uma existência vivida em fidelidade ao Senhor, e não aos
nossos desejos, glorifica muitíssimo o nome de Jesus — que era um
homem completo, com desejos, hormônios e tentações, mas que
nunca se casou e nem por isso foi menos homem ou tinha menos
plenitude da divindade. O matrimônio fala de uma união mística
qualitativamente diferente daquela que conseguimos ter com nosso
cônjuge. Quando mencionava sua espera pelas bodas e pela sua
noiva, Cristo falava no sentido mais profundo que o casamento pode
apontar: para nossa aliança mística de pertencimento a Cristo —
que relativiza todo o resto de nossa existência temporal.
Em um artigo intitulado “Homossexualidade, a Bíblia e a
Igreja” (2016), Wesley Hill nos leva a pensar um pouco sobre o que
realmente está envolvido na rejeição de valores morais seculares e
no cultivo de uma moralidade genuinamente cristã. Veja o que ele
diz:
Nós também podemos nos perguntar se a compreensão
bíblica do casamento e da sexualidade nos convida a
questionar alguns de nossos pressupostos mais básicos
acerca do que constitui a identidade humana. O argumento de
Robert Song lida com a noção de que há uma classe de
pessoas — “pessoas gays e lésbicas” — cujos desejos sexuais
são mais ou menos permanentemente dirigidos a membros do
mesmo sexo e que, consequentemente, vivenciam a si
mesmos como chamados a expressar esse desejo sexual ao
formar relacionamentos de fidelidade semelhantes ao
casamento tradicional. [...] Tudo isso representa, quase
indiscutivelmente, o triunfo do movimento pelos direitos gays e
lésbicos na era moderna. Antes do triunfo cultural desse
movimento, o que recebia atenção ética na tradição cristã
eram os atos sexuais entre pessoas de mesmo sexo.[37]
O que está em questão no argumento de Hill é justamente a
necessidade de desconectar a construção de nossa identidade
pessoal dos nossos desejos e orientações sexuais. Quando
aceitamos os termos da discussão pública contemporânea e
vinculamos desejos e orientações sexuais à nossa identidade,
perdemos de vista a proposta cristã para a compreensão de quem
realmente somos com e sem Cristo. O surgimento de uma
identidade como “pessoas homossexuais” ou até mesmo “pessoas
trans” é a maior prova do triunfo da revolução sexual e de seus
conceitos em nosso imaginário social. Falar disso há 100 anos em
qualquer parte do globo era, simplesmente, impensável.
A moralidade cristã não vincula a nossa orientação sexual à
nossa identidade. Era muito difícil alguém ser chamado de
homossexual só porque sentia atração por pessoas do mesmo sexo
ou, até mesmo, porque praticava relações sexuais com pessoas do
mesmo sexo. Nossa identidade é bem maior que nossas práticas.
Novamente, o raciocínio do apóstolo Paulo nos ajuda a entender
como os autores do Novo Testamento encaravam essas questões e
construíram uma moralidade que não limitava nossa identidade aos
nossos sentimentos e afetos. Quando o apóstolo dos gentios faz
uma lista de práticas de indivíduos que não herdarão o reino de
Deus, além de tratar de maneira igual mentirosos e homossexuais,
ele deixa claro: “assim foram alguns de vocês” (1Co 6.11a), mas a
identidade de vocês foi mudada; “vocês foram lavados, foram
santificados, foram justificados, no nome do Senhor Jesus Cristo e
no Espírito de Deus” (1Co 6.11b). A identidade de vocês agora não
está atrelada ao que faziam ou continuam desejando fazer. Vocês
morreram, e agora a sua identidade está escondida com Cristo em
Deus (Cl 3.3). Essa forma de enxergar nossa identidade e
sexualidade é libertadora.
Infelizmente, estamos muito desabituados a pensar
biblicamente na hora de construir nossas orientações morais e
éticas. Qualquer adolescente de nossas famílias, escolas e igrejas
rapidamente chega à conclusão oposta à do texto bíblico. Qualquer
experiência incipiente de atração por pessoas do mesmo sexo ou
desejo sexual desordenado, eles já concluem: “descobri que sou
gay”, ou, então, como já ouvi de um adolescente de 11 anos, “eu
sou bissexual”. Eu sou? O que é isso? A primeira pergunta que
sempre faço é: “O que é isso, ser gay?”. Que pacote é esse que
você comprou para sua identidade? Minha orientação pastoral mais
básica para todos que se encontram em uma situação semelhante,
de ouvir de alguém uma identificação tão direta e sem fundamento
entre sexualidade e identidade, é: diga que não entendeu e peça
que expliquem! O desconforto será visível depois de alguns
segundos, quando se perceber que essa entidade chamada “pessoa
gay” não existe como um universal bem estabelecido em torno do
qual podemos construir toda a nossa identidade. Depois que o
absurdo ficar evidente, ajude a pessoa a entender que é
insustentável compreender-se a partir de uma pequena parte de si.
Ainda que nossos desejos e atrações sejam importantes, eles nunca
podem ser os critérios definitivos para estabelecer nossa identidade
— especialmente a de um cristão.
Essa guerra de imaginários e cosmovisão sexual é muito
sutil. O que acontece no coração de um adolescente, tal como
mencionei acima, é que ele realmente está vivenciando uma nova
experiência afetiva (a parte genuína com a qual devemos ser muito
cautelosos ao lidar), mas, ao mesmo tempo, faz parte de uma
cultura que diz que quando você é atraído de uma determinada
forma ou quando se sente de determinada maneira com o seu
corpo, só há um caminho: identificar-se como homossexual,
bissexual ou como alguém que precisa subverter seu gênero. É um
pacote muito estreito que é assimilado rapidamente. Mesmo sem
nunca ter encostado em ninguém, um adolescente se identifica com
uma entidade chamada “bissexual”, seja lá o que isso signifique
cotidianamente.
Além disso, as consequências religiosas também são
igualmente sutis e velozes. Após ser informado pela cultura de que
agora tem uma nova identidade, esse mesmo adolescente constrói
um argumento lógico muito simples em sua mente:
Premissa 1: Na igreja só se pode desejar e fazer sexo de
uma forma X;
Premissa 2: Eu não desejo dessa forma;
Conclusão: Logo, não posso mais me manter na igreja.
O raciocínio é simplório, mas fatal para um adolescente que
está se descobrindo enquanto ser desejante, sexualizado e
espiritual. Em um silogismo básico, de duas premissas e uma
conclusão, a gente perde esse jovem para sempre. É claro que não
estou defendendo aqui que Cristo não possa alcançar quem ele
quiser, da forma como quiser. O calvinismo me liberta dessa
preocupação. O que estou querendo mostrar aqui é que
precisamos, urgentemente, melhorar nossos conceitos para
conseguirmos ser uma presença fiel na esfera pública e também
alívio e renovação espiritual para quem está sexual e
identitariamente confuso.
O ?
D
Séculos mais tarde, Sam Allberry, agora em linguagem
contemporânea, explica um pouco mais sobre a necessidade de
sermos criativos ao pensar conceitos alternativos para nos
referirmos às nossas questões sexuais e identitárias. Veja o que ele
diz sobre suas próprias preferências:
Usei o termo “atração por pessoas do mesmo sexo”, porque o
desafio imediato é a descrição de mim mesmo. Na cultura
ocidental de hoje, o termo óbvio para alguém com sentimentos
homossexuais é “homossexual”. Todavia, na minha
experiência, ele muitas vezes se refere a muito mais que à
orientação sexual de alguém. O termo descreve uma
identidade e um estilo de vida.
… Essa descrição é uma forma de reconhecer que o tipo de
atração sexual que experimento não é fundamental para a
minha identidade.[39] É parte do que sinto, mas não é quem
sou, no nível mais básico. Eu sou muito mais que a minha
sexualidade.
Tomemos outro tipo de apetite. Eu amo carne. Considero que
haja algo de errado quando vejo um prato sem o pedaço de
um animal. Contudo, meu amor à carne não significa que eu
gostaria de ser definido por alguém pela principal categoria de
“carnívoro”. [40]
As opções de Allbery são muito inteligentes. Ao dar nomes
corretos para questões diferentes, ele desarticula uma série de
conflitos que poderiam ser enfrentados sem necessidade. O desafio
de quem sente atração por pessoas do mesmo sexo é diferente do
desafio de encontrar em Jesus o paradigma de sua identidade. É
claro que o segundo transforma totalmente o primeiro; entretanto,
mesmo relacionados, são diferentes. Desvincular apetites de
identidades é uma das maiores necessidades de nosso tempo —
pense, por exemplo, nos juristas que precisam conceituar família e
uma de suas grandes lutas é mostrar que vínculos afetivos não são
suficientes para constituir a identidade familiar.
A capacidade de libertação e significado que essa separação
entre apetite e identidade traz é muito grande. Quando formos
honestamente ao encontro de nossos amigos que estão lutando
sinceramente com as necessidades mais diversas na ordem sexual,
podemos auxiliá-los muito dizendo: “Pera aí, você não é isso. Você
é muito mais do que você sente, você não é seu descontrole
emocional. Você não é seu descontrole libidinal. Você é bem mais
que isso”. Uma moralidade bíblica tem condições de libertar nossas
estruturas identitárias das pressões direcionais da cultura marcada
pela rebeldia e pela apostasia.
Vale lembrar, por fim, que esse trabalho de dar nomes
diferentes às entidades específicas é uma das ordenanças primeiras
que Deus nos deu. A primeira tarefa que Adão recebeu no jardim foi
nomear os animais. Essa distinção no interior da cultura é
fundamental para o testemunho cristão. Não podemos continuar
chamando de cachorro o que é uma raposa. Ainda é mandamento
divino para nós darmos nomes específicos para entidades
diferenciadas na cidade-jardim que estamos cultivando para a volta
do Noivo.
1
5. Negar a si mesmo não é sinônimo de rejeição
psicológica
[1]
Gordon H. Clark, The Trinity (Unicoi, Tennessee: The Trinity
Foundation, 2010), p. 10.
[2]
Alerta de spoiler: em breve pela Monergismo!
[3]
A Escritura é clara a esse respeito, como em Pv 6.16-19: “Seis
coisas o Senhor aborrece, e a sétima a sua alma abomina: “olhos
altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente,
coração que trama projetos iníquos, pés que se apressam a correr
para o mal, testemunha falsa que profere mentiras e o que semeia
contendas entre irmãos”. Uma das primeiras coisas que deveríamos
fazer é proibir sumariamente que tolices sejam ensinadas às nossas
crianças por meio de músicas como “Pecado, pecadinho, pecadão,
isso não!”.
[4]
Pergunta 150: “São todas as transgressões da lei de Deus
igualmente odiosas em si mesmas à vista de Deus?”. R: “Todas as
transgressões da lei de Deus não são igualmente odiosas; mas
alguns pecados em si mesmo, e em razão de diversas
circunstâncias agravantes, são mais odiosos à vista de Deus do que
outros. Ed 9.14; Sl 78.17,32,56; Hb 2.2,3”. Cf. também a pergunta e
resposta 151.
[5]
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
Identity (New York: Routledge, 1990).
[6]
Kathy Keller, Jesus, justiça e papéis de gênero: mulheres no
ministério (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019), p. 8-11.
[7]
Para esse trabalho intelectual de análise e crítica das idolatrias
políticas, recomendo fortemente a obra do cientista político David T.
Koyzis, Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das
ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014). Koyzis
faz parte de uma tradição intelectual chamada reformacional, que
conta com outros autores e publicações importantes para
reformarmos nossa visão de mundo e de vida. Sugiro
entusiasticamente a leitura de Herman Dooyeweerd, J. M. Spier,
Hans Rookmaaker, entre outros. Todos estes publicados pela
Editora Monergismo.
[8]
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em
2018 — e diz não temer críticas. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acesso em: 12 jul.
2019.
[9]
Steve Turner, Engolidos pela cultura pop: Arte, mídia, e consumo:
uma abordagem cristã (Viçosa/MG: Ultimato, 2014), p. 27.
[10]
James K. A. Smith, Você é o que você ama: o poder espiritual do
hábito (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 193.
[11]
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em
2018 — e diz não temer críticas. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acessado em: 12
de jul de 2019.
[12]
Charles Sherlock, A doutrina da humanidade (São Paulo: Cultura
Cristã, 2007), p. 174.
[13]
Cordelia Fine, Testosterona Rex: sexo, ciência e sociedade (São
Paulo: Editora Três Estrelas, 2018), p. 103.
[14]
Para uma leitura mais conservadora dessa análise de dados
genéticos e suas implicações para os debates sobre gênero e
sexualidade, veja Leonard Sax, Por que gênero importa? (Rio de
Janeiro: LVM Editora, 2019).
[15]
Quanto à origem e ao significado do conceito em uma
perspectiva não cristã, recomendo a leitura de Guacira Lopes Louro,
Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Belo
Horizonte: Editora Autênica, 2007).
[16]
Michel Foucault, A história da sexualidade: a vontade de saber,
vol 1 (São Paulo, SP: Paz e Terra, 2011), p. 111.
[17]
Paco Vidarte, Ética bicha. (São Paulo: N-1 Edições, 2019).
[18]
Uma das pesquisas teológicas mais significativas no Brasil é do
teólogo e professor André S. Musskopf. Em um artigo recente
escrito para a Revista Cult ele explica a relação entre experiência e
teologia queer: “embora não haja necessariamente uma relação
direta e seja possível tecer diversos questionamentos em termos de
teologia e organização, a emergência de grupos cristãos ou igrejas
com perspectivas diversas/dissidentes com relação a questões de
gênero e diversidade sexual — bastante conhecidos como grupos
e/ou igrejas “inclusivas” — é também evidência de perspectivas não
hegemônicas no campo da religião. Essas iniciativas tanto se
alimentam de movimentos políticos e culturais quanto subsidiam ou
poderiam subsidiar outras discussões e ações no campo da política,
da cultura e da própria religião como a conhecemos. O que todas
elas parecem ter em comum é a utilização da experiência de
dissidência de gênero e sexualidade como ponto de partida para
suas construções no campo da teologia e da prática eclesiástica.
Essa forma de pensar e praticar religião emergiu no contexto de
amplos questionamentos sobre a reflexão teológica e a vida da
igreja nas últimas décadas, particularmente no que se tornou
conhecido como teologias da libertação (incluindo as teologias
feminista, negra, indígena, camponesa)”. Cf. André Musskopf, Por
mais viadagens teológicas (Revista Cult, Junho de 2015), p. 32.
[19]
Tamsin Spargo, Foucault e a Teoria Queer: seguido de Ágape e
êxtase: orientações pós-seculares (Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017), p. 13.
[20]
Editorial (Revista Cult, 205, 2015), p. 2,
[21]
Decerto há aqui uma referência à obra de uma das precursoras
do moderno movimento feminista, a filósofa francesa Simone de
Beauvoir, que, em seu livro O segundo sexo (1949), popularizou a
ideia de que ninguém nasce mulher, mas torna-se uma.
[22]
Tamsin Spargo, Foucault e a Teoria Queer, p. 33-34.
[23]
David T. Koyzis, Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica
cristã das ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova,
2014), p. 18.
[24]
Para entender esse desafio hermenêutico, sugiro Kevin J.
Vanhoozer, Há um significado nesse texto? (São Paulo: Editora
Vida, 2009).
[25]
J. Butler, “A filósofa que rejeita definições” (Revista Cult, Edição
185, 2013), p. 23.
[26]
Cf. Francis Schaeffer, O Deus que se revela (São Paulo: Cultura
Cristã, 2018), p. 90.
[27]
J. Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade (Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003), p. 59.
[28]
J. Gresham Machen, Christianity and Culture (Princeton
Theological Review, 11, 1913), p. 6.
[29]
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 98.
[30]
Ibidem, p. 118.
[31]
Ibidem, p. 120.
[32]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 49.
[33]
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 67-68.
[34]
Lisânias Moura, Cristão homoafetivo? Um olhar amoroso à luz da
bíblia (São Paulo: Mundo Cristão, 2017), p. 67.
[35]
O raciocínio de Estrutura e Direção foi enriquecido por outros
dois intelectuais reformados de primeira importância para nossa
tradição, a saber: o professor de filosofia da Universidade Livre de
Amsterdã, Sander Griffioen, e o teólogo norte-americano Richard J.
Mouw. Além de pensar em termos de Estrutura e Direção, eles
também colocaram a ideia de “contexto”. Foge ao espaço e aos
propósitos do presente livro apresentar detalhadamente essa
contribuição dos dois autores, mas eu já reconstruí sua
argumentação em outro lugar. Para quem tiver interesse em
aprofundar-se nessas questões, recomendo a leitura de Pedro Dulci,
Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade
cristã (Viçosa, MG: Ultimato, 2017), p. 101 ss.
[36]
Charles Taylor, Imaginários Sociais Modernos (Lisboa: Edições
Texto & Grafia, 2005).
[37]
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In:
Preston SPRINKLE (org.), Two views on Homosexuality, the Bible
and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 143.
[38]
Agostinho, Confissões (São Paulo: Paulus, 2014), p. 49-50.
[39]
Há uma mudança importante na terminologia empregada: ao
falar de atração por pessoas de mesmo sexo, em vez de
homossexualidade, Allbery enfatiza que a fonte de nossa identidade
é o relacionamento com Cristo, não o tipo de atração que sentimos.
[40]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 14-15.
[41]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 47.
[42]
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In:
Preston SPRINKLE (org.), Two views on Homosexuality, the Bible
and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 124.
[43]
A. Hoekema, “A Perspectiva Reformada”. In: S. Gundry (org.),
Cinco perspectivas sobre santificação (São Paulo: Editora Vida,
2006), p. 69.
[44]
Ibidem, p. 70.
[45] Hannah Arendt, “Reflexões sobre Little Rock”, Responsabilidade
e julgamento (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), p. 261.
[46] Hannah Arendt, “Reflexões sobre Little Rock”, p. 264-65.
[47] Wesley Hill, Christ, Scripture, and Spiritual Friendship. In: Two