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IDENTIDADE E SEXUALIDADE:
Reformando nossa visão de conceitos
fundamentais

Pedro Dulci
Copyright © 2020, de Pedro Dulci

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato
Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Revisão: Fabrício Tavares de Moraes e William Campos Cruz


Capa: Bárbara Lima Vasconcelos

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.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Versão Almeida Revista e Atualizada (ARA),
salvo indicação em contrário.
Conteúdo
Prefácio
Introdução
1. Bem-vindo à era das questões de gênero, sexo e sexualidade
2. A sexualidade humana como estrutura e direção
3. A sexualidade humana foi totalmente afetada pelo pecado
4. Nossa moral sexual precisa proceder das Escrituras
5. Negar a si mesmo não é sinônimo de rejeição psicológica
6. A possibilidade do celibato e do casamento para quem luta com
atração pelo mesmo sexo
Conclusão
Prefácio

Escrevendo na década de 1970, certo teólogo lamentou que,


num período de 30 anos, visitando diversas igrejas, de variadas
denominações, em dezenas de cidades dos Estados Unidos, jamais
ouvir nem sequer um único sermão sobre a Trindade. Se uma
doutrina cardinal como essa, que é “a base indispensável para a
doutrina da Expiação”,[1] pode ser ignorada de tal forma, não é de
estranhar que outros temas tampouco ocupem nossos púlpitos. Um
desses temas, ausente não somente nos sermões mas em livros
teologicamente sadios, é a homossexualidade.
Por certo existem inúmeros livros, artigos e pregações que
demonstram que a prática homossexual é um pecado grave aos
olhos de Deus. Não é aqui que reside a nossa carência. A despeito
dessa abundância de materiais (nem todos biblicamente fiéis,
desnecessário dizer), não há praticamente nada acerca, por
exemplo, de como um cristão deve lidar com os desejos
homossexuais, aparentemente por causa de uma pressuposição
(por vezes oculta) de que tal coisa não existe. Em outras palavras,
um cristão lida com muitos desejos pecaminosos, mas não com
esse tipo específico.

Peter Hubbard, no livro Love into Light,[2] constata o seguinte:

Tenho falado com dezenas de homens e mulheres que estão


há anos adorando a Deus numa igreja, enquanto lutam
sozinhos contra a atração por pessoas do mesmo sexo. Eles
tinham pavor de contar a alguém, e estavam convencidos de
que, se outros cristãos soubessem do seu segredo, seriam
marcados e descartados. Imagine o trauma de acreditar que
sua luta é diferente de qualquer outro pecado. O pregador faz
aplicações em seus sermões sobre mentira, roubo ou egoísmo
conjugal. E periodicamente um homem pode testificar sobre a
sua luta com a lascívia heterossexual. Ou uma mulher pode
pedir oração por causa da sua ansiedade. Mas esses pecados
parecem normais, compreensíveis. E há esperança e ajuda
para que a mudança ocorra. Mas a homossexualidade parece
diferente. Quando ela é mencionada na igreja, em geral está
associada com abominação, ativismo ou antagonismo.

Você, leitor, talvez já tenha ouvido muitos sermões ou aulas


sobre a Trindade. Afinal, em anos recentes tem havido um resgate
da importância da bendita doutrina da Santíssima Trindade. Livros
como Deleitando-se na Trindade, de Michael Reeves, são um
testemunho dessa renovação. Contudo, você alguma vez ouviu uma
aplicação durante um sermão destinada àqueles que lutam contra o
pecado da homossexualidade? Algum ensino ou admoestação
aplicado àqueles que, a despeito de crerem em Jesus, a despeito de
acreditarem no que a Escritura afirma sobre a homossexualidade,
permanecem tendo desejos que não deveriam estar ali?
Infelizmente, suponho que não.
Este livreto do jovem pastor Pedro Dulci lida exatamente com
essa questão. Dulci, juntamente com outros autores que têm se
dedicado ao tema, nos ajuda a entender que o pecado da
homossexualidade não é tão diferente de outros pecados, como
costumamos presumir. É claro que há diferença de grau[3] nos
pecados que cometemos contra Deus e contra o próximo, conforme
nos lembra o Catecismo maior de Westminster.[4] Além disso, Paulo
claramente demonstra a singularidade do pecado sexual: “Fugi da
impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora
do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o
próprio corpo. Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do
Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e
que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço.
Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo” (1Co 6.18-20).
Contudo, não existe nenhum respaldo bíblico para supor que
um crente regenerado será tentado em várias áreas da vida, exceto
no que diz respeito à atração por pessoas do mesmo sexo. Da
mesma forma que um homem piedoso pode lutar contra desejos
heterossexuais desordenados durante toda a vida, alguém
genuinamente alcançado por Cristo pode travar uma batalha intensa
contra desejos impróprios por pessoas do mesmo sexo. Ou seja,
não existe diferença entre os pecados nesse sentido, pois todos
eles podem ser a “fraqueza” de determinado cristão.
Também não podemos dizer algo como: “Um crente de
verdade não lutaria contra isso; isso é coisa de réprobo”. Ora, por
causa do pecado original, a diferença entre um cristão e um
incrédulo não é o desejo em si, mas o que fazemos com tais
sugestões malignas (da nossa carne, do mundo e do diabo). Um
ímpio dará vazão aos seus desejos mais vis, enquanto aquele que
teme a Deus lutará, na força do Espírito Santo, para mortificá-los. É
claro que Deus nos transformará ao longo da caminhada, mas isso
não significa que estaremos totalmente imunes às tentações. Aliás,
esse é um dos motivos pelos quais uma comunidade da fé se torna
vital, pois é o ambiente onde poderemos exortar e encorajar uns aos
outros.
Como cristãos, precisamos entender urgentemente que
nossas batalhas e pecados específicos podem ser diferentes, mas
nosso coração é o mesmo: coração de criatura, caída, carente da
graça e da assistência divina. Todos nós, com ou sem atração por
pessoas do mesmo sexo, precisamos diária e igualmente da graça
de Jesus. Não há acepção de pessoas aqui!
De forma alguma estamos minimizando o pecado, mas
apenas reconhecendo que nossa santificação é progressiva e
independe dos pecados que mais nos assediam. Espera-se que dia
a dia sejamos mais semelhantes à imagem de Cristo, mas isso
dificilmente acontecerá numa comunidade cristã que negue ou
ignore as tentações e dificuldades que seus membros
experimentam. Logo, este livreto não é uma discussão abstrata,
mas tem relevância imediata para a saúde espiritual do povo de
Deus, individual e coletivamente.
O texto de Dulci é controverso em alguns pontos, mas trata-
se de algo quase inevitável quando abordamos temas ignorados ou
pouco explorados. Esta obra é um convite à reflexão e ao debate,
para que, juntos, levando nosso pensamento cativo a Cristo,
cheguemos a uma visão bíblica da sexualidade.
E não se engane o leitor. Este livro é para todo cristão, visto
que a solução para o problema da atração por pessoas do mesmo
sexo é a mesma para qualquer outro tipo de pecado. Uma vida de
santidade não será possível sem que nossas afeições sejam
redimidas, e aqui reside uma necessidade de todos nós. Devemos
trocar os nossos amores menores por Deus. Precisamos, como diria
Thomas Chalmers, do poder expulsivo de uma nova afeição. Afinal,
como já dissera Agostinho, “ama-te menos aquele que, ao mesmo
tempo que a ti, ama alguma coisa, que não ama por causa de ti”.
Sejam quais forem as nossas tentações ou nossas
dificuldades, de ordem sexual ou não, o que devemos buscar e o
que Deus nos oferece no Evangelho é a redenção dos nossos
desejos. Ai de nós se negarmos essa esperança àqueles que foram
alcançados pelo sangue de Cristo! E ai de nós se não servimos de
amparo e socorro para aqueles que amam a Cristo, mas estão com
as mãos descaídas e os joelhos trôpegos na luta contra o pecado!
Como editor, alegro-me em ter o nome de Pedro Dulci como
autor da Monergismo. Como cristão, oro para que este livro seja
usado por Deus para que muitos mancos não se extraviem, mas,
antes, sejam curados (Hb 12.12).

— Felipe Sabino de Araújo Neto


Brasília, 18 de julho de 2019
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Introdução

Existem muitas formas de abordar a chamada “ideologia de


gênero” ou “identidade de gênero”. De fato, na própria maneira de
colocar o nome da questão já ficam explícitos os pressupostos de
nossa abordagem. Aqueles que optarem por chamar de “ideologia”
as questões de gênero, sexo e sexualidade estão deixando claro o
viés político que esses tópicos assumiram contemporaneamente —
e vou explicar por que isso aconteceu no primeiro capítulo.
Minha opção foi abordar as questões de sexualidade em sua
relação com a nossa identidade. Originalmente, o conteúdo deste
livro foi uma série de palestras que proferi em variados contextos —
igrejas, seminários teológicos, escolas de ensino fundamental etc.
Ele tinha um nome mais provocativo — Problemas de gênero — e
era uma clara referência ao livro da filósofa norte-americana Judith
Butler, que se tornou uma referência incontornável para quem
procura compreender e discutir sexualidade, feminismo e subversão
das identidades hoje.[5]
Assim como os ambientes em que proferi essa série de
palestras foram distintos, as reações ao conteúdo deste livro
também foram as mais díspares. Alguns me disseram que se tratava
da melhor abordagem já ouvida sobre esses tópicos espinhosos de
nossos tempos. Outros me acusaram de utilizar relativismos
filosóficos e teológicos para anestesiar a consciência dos meus
ouvintes. As diferentes reações foram muito instrutivas para mim.
Recebi críticas e elogios de todos os lados do espectro ideológico
que a discussão pode assumir — e isso, para mim, é um excelente
sinal! Apesar da minha satisfação com o conteúdo que estou
apresentando, caro leitor, muitas pessoas identificaram minha
palestra como uma tentativa insidiosa de fazer meus ouvintes
aceitarem que a atração por pessoas do mesmo sexo é um pecado
como outro qualquer — chegando ao cume de comparar as
tentações sexuais a que qualquer heterossexual está sujeito com as
tentações oriundas da atração por pessoas de mesmo sexo. Ora,
que absurdo!
Particularmente, as críticas não afetaram minhas convicções
teológicas e filosóficas, que estou certo de que fazem parte de uma
longa trajetória intelectual cristã reformada. Na verdade, pude
compreender como se sentiam outras pessoas que também se
posicionaram publicamente sobre esse assunto, por exemplo, Kathy
Keller. Escrevendo sobre seu ministério ao lado de seu esposo, o
conhecido pastor Timothy Keller, ela compartilhou a luta de ser
alguém profundamente envolvida com as questões sobre papéis de
gênero:

A questão não é acadêmica para mim. Eu lutei profundamente


e pessoalmente com esse assunto como uma mulher que já
esteve em preparação para ser ordenada na United
Presbyterian Church. Em todos os lugares nos quais tenho
ministrado, sinto-me como uma mulher sem país. Em alguns
deles, sou vista com suspeição, como uma “louca feminista”,
porque encorajo mulheres a ensinar e liderar, e eu mesmo o
faço. Em Nova York, tenho sido chamada de “odiosa” ou pior,
porque continuo a acreditar que Deus nos deu um bom
presente quando criou papéis complementares para homens e
mulheres. […] Subjacentes a tais questões pessoais estão
mágoas profundas e frustrações causadas por igrejas e
pessoas que têm marginalizado mulheres e seus dons dados
por Deus, tornando-as membros de segunda classe do corpo
de Cristo. Isso também revela lugares em que suposições
mundanas têm moldado atitudes tanto em homens quanto em
mulheres, deturpando o ensinamento das Escrituras com
tradições subculturais ou individualismo pós-moderno. [6]

Essas mágoas pessoais, frustrações antigas e,


principalmente, deturpações no ensino bíblico é que tornam as
questões de gênero, sexo e sexualidade tão complicadas — seja em
Manhattan ou em Goiânia. Entretanto, foi um exercício intelectual
muito interessante observar como um conteúdo tão atrativo pode ser
assimilado e aparelhado pelas ideologias preferidas de cada
ouvinte. Nesse sentido, as questões de identidade e sexualidade
apontam para outra fragilidade da formação intelectual da igreja
evangélica brasileira: a ausência de lentes bíblicas para enxergar
toda a realidade. Enquanto não for feito um trabalho profundo de
análise e crítica das nossas idolatrias políticas, muitas discussões
no interior da cristandade, bem como na esfera pública, estarão
profundamente prejudicadas.[7]
Diante de tudo isso, acredito que o mérito deste livro é,
justamente, estimular os leitores a reformar alguns dos
pressupostos mais bem estabelecidos que a cultura ocidental
sustenta a respeito de nossa identidade e sexualidade. Não
podemos nos envolver no debate público, nem tentar contribuir em
situações privadas, com a caixa de ferramentas conceituais da
cultura moderna. Nesse sentido, temos aqui a necessidade de um
trabalho de reformador. Não tenho nenhuma pretensão de que meu
raciocínio esgote as questões que orbitam o núcleo dessa
discussão. Entretanto, busquei ser bastante preciso nos pontos mais
básicos que devem ser levados em estreita consideração quando
formos abordar a sexualidade humana de um ponto de vista
genuinamente cristão.
Aproveito para agradecer imensamente à Editora
Monergismo, na pessoa de Felipe Sabino de Araújo Neto, que
prontamente acreditou neste projeto e recebeu meu primeiro
trabalho nessa distinta editora com um tema tão polêmico. Poucos
editores teriam essa coragem. Também gostaria de agradecer ao
João Marcos de Morais Oliveira e ao Daniel Estevão de Brito, que
me incentivaram e me ajudaram a transformar as palestras em um
texto publicável. A Deus a glória pela vida desses amigos!
Boa leitura!
— Pedro Dulci
1
1. Bem-vindo à era das questões de gênero, sexo
e sexualidade

Em 2018, a BBC Brasil publicou uma reportagem sobre o


cantor brasileiro Pabllo Vittar. A reportagem falava da preparação do
novo álbum do artista e de como a produção desse material tinha
um público bem específico: os adolescentes. Na época, eu
trabalhava como coordenador de ensino religioso em uma escola
presbiteriana, e a reportagem me chamou muito a atenção. Vejam o
que diz um trecho da reportagem:
Os empresários da cantora drag queen (expressão artística
que envolve a construção de um personagem, geralmente do
sexo oposto) de 23 anos estão terminando de formatar uma
turnê, ainda sem nome, voltada ao público menor de 18 anos,
para o segundo semestre deste ano. “A Pabllo tem um público
adolescente grande, tem até crianças, que acompanham ela e
não podem ir ao show. É um público sedento, engajado e que
forma a base de fãs. Serão poucos shows e não ficaremos no
eixo Rio-SP, queremos fazer em várias regiões do Brasil”,
adianta à BBC Brasil o empresário da cantora, Yan Hayashi.
[…] Hayashi diz que a cantora e toda a equipe estão
preparadas para eventuais ataques por parte de
conservadores ou até para possíveis tentativas de impedir as
apresentações de Pabllo. E que isso não os fará desistir do
projeto. “Não temos medo de ataques. Nessa sociedade em
que vivemos não tem como fugir disso. O conservadorismo
está crescendo e as pessoas com as redes sociais acabam
ampliando essa voz, esse discurso conservador. Mas antes de
tudo a Pabllo e nós pensamos muito nos fãs. Tem garotos que
estão crescendo e começando a entender a identidade de
gênero e se espelham na Pabllo. Então, a mensagem que
queremos passar para eles é: podemos ser o que quisermos”,
diz. “E temos que mostrar que é preciso aceitar as diferenças,
o caráter, os valores não mudam por causa do gênero, opção
sexual. Independentemente do que venha de ataques, vamos
segurar a barra como seguramos o tempo todo”.[8]
Gostaria de destacar como uma produção cultural, de caráter
bem popular, não só está inteirada do assunto, mas também tem um
viés muito específico. Os produtores dizem que têm uma mensagem
muito clara e querem passá-la adiante. No caso específico, o núcleo
da produção desse artefato cultural é: “nós podemos ser o que nós
quisermos”. Existe aqui uma lição muito importante sobre arte,
política e cultura pop. Muitas vezes, somos muito mais flexíveis com
nossos valores do que as pessoas que estão na linha de frente da
produção cultural. Quem nos ensina isso didaticamente é Steve
Turner, no livro Engolidos pela cultura pop:

Ouço pessoas justificando o consumo acrítico a partir da ideia


de que o que estão assistindo, lendo, jogando ou ouvindo é
apenas “para relaxar” ou “não deve ser levado a sério”. Acham
que avaliar o que estão consumindo envolve muito esforço e
vai contra o espírito do entretenimento. Dizem que não querem
ser sérias demais ou muito “rígidas”. Essa atitude subestima
seriamente a inteligência e a motivação daqueles que
produzem a cultura popular. Esses profissionais não são
crianças brincando com giz de cera. Predominantemente, são
pessoas treinadas com um profundo conhecimento de sua
forma de arte e de sua história. Eles tendem a ser pessoas
bastante inflexíveis com relação à visão de mundo que querem
expressar.[9]

Não existe diagnóstico mais preciso da condição de muitas


pessoas em nossos tempos: foram engolidos por sua cultura. Nossa
ingenuidade cultural nos fez ser arrastados pelo espírito do tempo. E
não se enganem: até mesmo adolescentes crescidos nas
programações de nossas igrejas e que vão regularmente aos cultos
todos os fins de semana conhecem Pablo Vittar e sabem cantar
algumas canções. Enquanto confundirmos entretenimento
evangélico com formação cristã, não conseguiremos obter
resultados melhores nessa disputa da cultura pela lealdade de
nossos corações. Quem nos alerta enfaticamente quanto a isso é
James K. A. Smith, filósofo canadense e professor do Calvin
College:
Manter nossos jovens entretidos no prédio da igreja não é de
modo algum sinônimo de formá-los como membros dinâmicos
do corpo de Cristo. O que se entende por ministério para
jovens muitas vezes não é uma forma séria de formação cristã,
mas, sim, um esforço pragmático e desesperado de manter os
mais jovens como membros de carteirinha de nosso clube
evangélico. Temos confundido manter os mais jovens dentro
dos prédios com mantê-los “em Cristo”. Em muitos casos, já
cedemos sua formação às liturgias seculares precisamente
quando importamos essas liturgias para dentro da igreja sob a
bandeira da relevância sentida. Assim, apesar de os jovens
estarem presentes em nossos eventos dirigidos a eles, estão
na verdade participando de algo veladamente relacionado a
visões rivais de boa vida. A própria forma das práticas de
entretenimento em torno das quais esses eventos são
montados reforça um narcisismo e um egoísmo profundos, que
são o oposto de aprender a negar a si mesmo e a tomar a
cruz.[10]

O , ?

Assim prossegue a reportagem da BBC Brasil sobre Pablo


Vittar:

Pabllo, que nasceu Phabullo Rodrigues da Silva, em São Luís,


no Maranhão, e vive em Uberlândia (MG), muitas vezes usa o
pronome masculino quando fala de si mesma, apesar de ser
uma drag mulher. E diz que as pessoas podem chamá-la de
ela ou ele, como queiram. “Contanto que seja com respeito”,
diz ela, que é gay e se define como sendo de gênero fluido, se
identificando tanto com o masculino quanto com o feminino. O
fato de ser drag, diz Pabllo, não é o que a fez se tornar um
sucesso. “Minha carreira se sobressai a isso. Não é só por ser
drag, é porque a música é boa. E quando é boa, meu amor,
todo mundo gosta”.[11]
Sem dúvida, esse é um bom paradigma retirado da cultura
pop. Seja como for, ao lermos essas declarações é indiscutível
concluir: bem-vindos à era das questões de gênero, sexo e
sexualidade. Cada um desses conceitos é uma entidade distinta.
Explicaremos a classificação que vem sendo usada pela grande
mídia quando aborda esse tema. Embora eu não concorde com os
pressupostos nem com os desdobramentos de alguns desses
conceitos, vou utilizá-los para que tomemos consciência das
categorias em uso e possamos compreender o debate público sobre
essas questões.
Gênero tem a ver com a maneira como a pessoa se enxerga,
identificando-se com os padrões de comportamento masculino ou
feminino — ou ainda oscilando entre um e outro, o que costuma ser
classificado como gênero fluido — esperados por uma determinada
sociedade. Para algumas pessoas, essa identidade de gênero
corresponde a seu sexo biológico (são pessoas cisgênero); para
outras, não existe essa correspondência (são os transgêneros).
Nesse caso, podemos concordar com o teólogo australiano
Charles Sherlock quando diz que: “gênero é um assunto complexo;
ele pode referir à identidade de gênero (tentativas de descrever as
diferenças entre homens e mulheres), as relações de gênero (os
padrões de força, normas, costumes e papeis que governam a vida
de homens e mulheres), ou as representações de gênero (as formas
pelas quais os conceitos de gênero ajudam a organizar ideias sobre
cultura, natureza, conhecimento e perspectivas sociais)”. [12]
Sexo, por sua vez, diz respeito apenas ao corpo masculino
ou feminino — em especial, à genitália —, podendo também
contemplar exceções como os intersexuais (por serem
hermafroditas). Ou seja, trata-se de uma referência estritamente
biológica e física. Vale dizer aqui que, apesar dessa concessão a
respeito dos intersetais sempre ser mencionada, ela nunca pode
perder de vista o seu caráter absolutamente excepcional. Até
mesmo pesquisadores bastante progressistas no que diz respeito a
sua aderência às teorias de gênero concordam que a regra biológica
básica ainda é o binômio masculino e feminino. Um exemplo disso é
o reconhecimento de Cordelia Fine, uma importante pesquisadora
que ganhou o mais notável prêmio da Royal Society de ciências
naturais pelo seu livro Testosterona Rex (2017) onde podemos ler o
seguinte: “cerca de 98-99% da população ou possui cromossomos
XY e órgãos genitais masculinos (testículo, próstata, vesículas
seminais e um pênis), ou possui cromossomos XX e genitais
femininos (ovários, trompas de Falópio, vagina, grandes e pequenos
[13]
lábios e clitóris)”. Muitas vezes os casos excepcionais — como
os raros mosaicos genéticos XX/XY — são utilizados como
fundamentação biológica para a argumentação de fluidez dos sexos.
Isso não pode ser interpretado assim. A única função que as
exceções têm é a de confirmar a regra.[14]
Por fim, sexualidade ou orientação sexual pode ser
compreendida como o que fazemos tanto com o nosso corpo quanto
com o nosso gênero. Isto é, refere-se à vida sexual de uma pessoa,
tanto em seu lado subjetivo, na atração que sente, quanto em seu
lado objetivo, como a prática sexual em que está envolvida. A
orientação homossexual pode referir-se tanto à relação quanto à
atração por pessoas do mesmo sexo. É importante ressaltar que
comumente se faz uma distinção entre sexualidade e gênero, uma
vez que não estão, necessariamente, relacionados. Uma pessoa
trans pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Reparem
em como a reportagem apresenta Pabllo Vittar: ele não fez nenhum
tipo de cirurgia, então sua genitália é masculina; no entanto, veste-
se como mulher — ou seja, uma drag mulher ou cross-dresser. Já
sua identidade de gênero é fluida, compreendendo-se tanto como
homem quanto como mulher.
Alguns leitores podem ter sentido certo mal-estar ou algum
tipo de vertigem com tantas variações e com a complexidade de um
assunto que parecia ser tão mais simples. Realmente, o tempo em
que vivemos é marcado por uma sensibilidade superaguçada em
relação a essas questões — o que as transforma em objeto de
crises pessoais, culturais e até políticas. Seja como for, a
compreensão desses conceitos básicos, à revelia de nossa
concordância, é fundamental para nos situarmos nos jogos de
linguagem em circulação hoje em dia. Na forma como uma notícia é
veiculada, um estudo acadêmico é publicado, entre outras
produções de artefatos culturais, gênero é tratado como diferente de
sexo, e este é tratado como diferente de orientação sexual. O
conjunto de pesquisas e publicações que descreve,
contemporaneamente, o interesse nesses assuntos recebeu o nome
de queer studies — ou, simplesmente, teoria queer.

O ?

Queer é uma palavra que em inglês significa “estranho”,


“esquisito” ou, simplesmente, “inadequado” e começou, pois, a ser
usada como adjetivo pejorativo. Tratava-se de uma crítica quando
alguém era chamado de queer! No entanto, o movimento LGBTI+
apropriou-se dessa palavra e assimilou-o como conceito para
instalar-se como um conjunto de iniciativas “inadequadas” ao padrão
social que queria questionar — a heterossexualidade como norma.
Tudo que era heteronormativo passou a ser questionado pelas
performances e pessoas queer.[15] Essa maneira de apropriar-se de
uma construção cultural pejorativa e a transformá-la em uma
metodologia de militância é chamado de “discurso de reação” e,
desde que foi explicado por Michel Foucault, tornou-se uma
ferramenta muito utilizada na política por diversos grupos
identitários. Veja como o filósofo francês explora essa ideia:
Ora, o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na
jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de
discursos sobre as espécies e subespécies de
homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo
psíquico” permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos
controles sociais nessa região de “perversidade”; mas também
possibilitou a constituição de um discurso “de reação”: a
homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar
sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro
do vocabulário e com as categorias pelas quais era
desqualificada do ponto de vista médico. [16]

É dessa forma que diversos grupos sociais utilizam suas


experiências pessoais e concretas de vida para produzir um
vocabulário que possa ser utilizado como um saber estratégico tanto
para afirmar publicamente sua identidade, como também resistir o
preconceito e a resistência cultural às suas práticas. As ofensas que
termos como bichas ou vadias carregavam são ressignificados e
tornam-se motes de orgulho na esfera pública — como a marcha
das vadias ou a ética bicha.[17] Em síntese, subjetivação e sujeição
formam, assim, um dispositivo duplo de poder e resistência,
conforme a análise foucaultiana.
Tudo isso fez com que, hoje em dia, os queer studies se
tornasse uma espécie de “guarda-chuva” de pesquisas e disciplinas
acadêmicas que se ocupam dos diversos modos de análise que
gênero, sexo e sexualidade podem assumir na realidade. São
estudos que englobam uma série de disciplinas, como biologia,
psicologia, sociologia, filosofia, ciência política, antropologia e, com
certeza, teologia.[18] Quem nos ajuda a entender um pouco mais é a
escritora e historiadora cultural Tamsin Spargo:
A teoria queer não é um arcabouço conceitual ou
metodológico único ou sistemático, e sim um acervo de
engajamentos intelectuais com as relações entre sexo, gênero
e desejo sexual. Se a teoria quer é uma escola de
pensamento, ela tem uma visão profundamente não ortodoxa
da disciplina. O termo descreve uma gama diversificada de
práticas e prioridades críticas: interpretações da
representação do desejo entre pessoas do mesmo sexo em
textos literários, filmes, músicas e imagens; análise das
relações de poder sociais e políticas da sexualidade; crítica do
sistema sexo-gênero; estudos sobre identificação transexual e
transgênero, sobre sadomasoquismo e sobre desejos
transgressivos.[19]
Veja, por exemplo, o editorial da Revista Cult de novembro de
2015. A revista Cult é uma das mais bem elaboradas e difundidas
publicações brasileiras sobre diversos temas do espectro político
progressista. Nesse aspecto, é um dos veículos de massa que
melhor consegue fazer circular discussões a respeito de feminismo,
teoria queer e identidade de gênero — tornando-se, assim, uma
fonte de pesquisa indispensável para todo aquele que se interessa
nesses assuntos. E não seria diferente a postura que assumiram
quanto à teoria queer:

Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa


que aconteça num só golpe; antes, implica uma construção
que, efetivamente, nunca se completa […] a Cult se sente
muito orgulhosa de ter se transformado em uma grande
divulgadora da cultura queer no Brasil.[20]

É possível acompanhar o raciocínio na primeira parte do


editorial. Tornar-se homem ou mulher, um sujeito feminino ou
masculino, é encarado como algo que não acontece em um golpe
só. Ou seja, há um rompimento com a ideia tradicional de que
identificamos um sujeito masculino ou feminino de uma vez só,
quando, por exemplo, o ultrassonografista ou o obstetra diz “é
menino!” ou “é menina!”, conforme a presença do órgão genital
masculino ou feminino. Claramente, o que está em questão aqui,
outra vez, é a dissociação entre gênero, sexo e sexualidade. A
teoria queer tem como pressuposição o fato de que ser mulher, por
exemplo, é algo construído, não uma estrutura estática.[21] Além
disso, pode ser que essa construção nunca se efetive por completo.
Ou, ainda, pode acontecer também que a identidade de gênero ou a
sexualidade se construa de uma forma que em dado momento da
vida deixe de fazer sentido e, então, venha a ser desconstruída e
reconstruída de outra maneira. Uma das características dos estudos
queer é justamente sua fluidez, que faz com que antigas estruturas
estáveis dissolvam-se e escorram por entre os nossos dedos. Do
ponto de vista teórico, os queer studies retiram da filosofia pós-
estruturalista essas marcas. Conforme explica, mais uma vez,
Tamsin Spargo:
A teoria queer emprega várias ideias da teoria pós-
estruturalista, entre elas os modelos psicanalíticos de
identidade descentrada e instável de Jacques Lacan, a
desconstrução de estruturas conceituais linguísticas binárias
de Jacques Derrida e, claro, o modelo de discurso, saber e
poder de Foucault. Como seria de esperar, a teoria queer não
tem origem em um momento isolado, mas,
retrospectivamente, costuma-se dizer que seu início se
cristalizou a partir de uma série de conferências acadêmicas
que, nos Estados Unidos, no fim dos anos de 1980,
abordaram a relação de questões gays e lésbicas com as
teorias pós-estruturalistas. Os estudos que, em conjunto, são
chamados de teoria queer situam-se predominantemente no
campo das humanidades, na história, nos estudos literários e
culturais e na filosofia, embora os temas incluam o discurso
científico, o jurídico e outros. Seus autores costumam
compartilhar o interesse comum na política da representação,
e uma formação na análise da cultura escrita e visual, desde
literatura e filmes até discursos políticos.[22]

No interior dessa discussão, as questões de identidade e


sexualidade deixam de assumir contornos minimamente estruturais
e passam a figurar na esfera pública com a reivindicação de
construir sua identidade para além do sexo de nascimento. Ou,
ainda, segundo a formulação inspirada na obra da filósofa norte-
americana Judith Butler: é a reivindicação de poder construir sua
identidade para além do seu gênero de nascimento. Fica evidente,
portanto, que, no interior das pesquisas e publicações dos queer
studies, não há ligação necessária entre o sexo de nascimento, a
genitália, e os papéis de gênero que você assumirá na sociedade,
nem com a forma como você se orientará sexualmente. Uma vez
mais, ressoa o veredito do empresário de Pabllo Vittar: “Você pode
ser quem você quiser”.
P
?

Agora, por que as questões de identidade e gênero


assumiram facetas ideológicas? Por que algumas pessoas hoje
insistem em falar na famigerada ideologia de gênero? Qual é a
conotação política e ideológica que a teoria queer assumiu
contemporaneamente? Quem explica esse processo de polinização
e ideologização de um aspecto da vida é o cientista político
canadense David T. Koyzis. Em Visões e ilusões políticas, Koyzis
desenvolve um raciocínio que liga as antigas idolatrias religiosas às
ideologias políticas modernas. Basicamente, ele diz que todas as
vezes que uma ideologia política surge no interior de nossas
sociedades contemporâneas, ela tem a mesma estrutura básica do
que a Bíblia descreve como o processo de idolatria religiosa. Em
linhas gerais, trata-se de erigir um elemento da criação em um falso
deus e atribuir a ele o lugar que somente o Deus verdadeiro pode
ter. Veja como o próprio Koyzis descreve esse processo:
O que é, afinal, uma ideologia? Quero deixar claro desde já
que vejo as ideologias como tipos modernos do fenômeno
perene da idolatria, trazendo em seu bojo suas próprias teorias
sobre o pecado e a redenção […] Como as idolatrias bíblicas,
cada ideologia se fundamenta no ato de isolar um elemento da
totalidade criada, elevando-o acima do resto da criação e
fazendo com que esta orbite em torno desse elemento e o
sirva. A ideologia também se fundamenta no pressuposto de
que esse ídolo tem a capacidade de nos salvar de um mal real
ou imaginário que há no mundo.[23]
Descrição interessantíssima de como o processo de
constituição de um ídolo pode ser elucidativo para compreendermos
como surgem nossas ideologias. Pense nas idolatrias bíblicas.
Como é que a adoração à deusa Astarte ou Astarote surgiu? Os
fenícios elegeram um elemento da boa realidade criada por Deus —
a saber, a fertilidade, ou mesmo a sexualidade — como aquele que
controlaria todos os processos da sociedade em que viviam. Astarte,
filha de Baal, era a principal deusa dos fenícios porque era a deusa
da fertilidade, da sexualidade, da guerra e, por sua personificação,
carregava os aspectos da realidade mais importantes para aquela
cultura. Evidentemente, isolaram esse elemento dos outros e
disseram “este é o nosso deus, que legisla sobre todos os outros
aspectos da realidade”. Além disso, qualquer outra entidade que
queira usurpar seu lugar será julgada como um agente do mal ao
qual temos de resistir.
É assim que as idolatrias funcionam e é assim também que
funcionam as ideologias políticas. Quando um idólatra político, ou
um ideólogo, recorta (abstrai) do campo social um aspecto dessa
trama e o transforma no principal elemento avaliador de todos os
demais aspectos da realidade — dizendo que todo o resto tem
menos valor ou está em oposição ao verdadeiro desenvolvimento
que uma sociedade pode alcançar — ele gera uma ideologia
política. Por exemplo, quando alguma expressão dos socialismos
elege para si uma parte da realidade criada por Deus — que é a
sociedade ou as atividades comunitárias — e diz que esse é o fim
supremo de todos os esforços não só políticos, mas da existência
temporal humana, estamos diante de uma formulação perfeita de
idolatria política em forma ideológica. Não é de assustar que, para a
ideologia socialista, a iniciativa privada seja um grande mal social a
ser combatido — pois qualquer entidade ou dinâmica social que
ameace a estabilidade do ídolo deve ser combatida.
O mesmo acontece com o liberalismo, quando elege para si a
iniciativa privada como o aspecto privilegiado da realidade criada
por Deus e se opõe a tudo que faça frente a seu desenvolvimento
sem limites; com o nacionalismo, que transforma a nação em um
ídolo político; com o conservadorismo, que toma a tradição como
um bem intocável de uma sociedade, e assim por diante. Koyzis
trabalha detalhadamente cada uma dessas expressões idolátricas,
respondendo-lhes com uma perspectiva genuinamente cristã de
ação política e de presença fiel na sociedade. Entretanto, a despeito
de detalhes que não exporemos aqui, o que precisa ficar evidente
para nós é como as discussões de gênero, sexo e sexualidade
podem ser cooptadas e aparelhadas ideologicamente na sociedade
contemporânea. Compreender por que as questões de gênero se
tornaram uma ideologia é compreender o processo de idolatria que
engoliu nossa identidade e sexualidade.
O que aconteceu com os estudos queer foi exatamente a
mesma coisa. Escolheram um âmbito da experiência temporal, que
é um âmbito bom e criado por Deus, ou seja, um aspecto da criação
importante para nossa vida — as nossas relações com outras
pessoas e com nós mesmos, o entendimento sobre quem somos, a
identidade que temos, como lidamos com nossa economia afetiva e
libidinal — e o transformaram no principal assunto da vida, isto é, no
elemento definidor de nossa existência. As lutas e conflitos sociais,
agora, são todos medidos unicamente pelos critérios da
sexualidade, do gênero e do sexo — mesmo que vários outros
fatores estejam envolvidos em cada uma das circunstâncias. Além
disso, qualquer outro âmbito da sociedade que toque nessas
questões está tocando no Bezerro de Ouro, no ídolo — o que
justificaria a agressividade e violência contra qualquer tentativa de
profanar essa divindade.
É precisamente por isso que as discussões públicas sobre
esses temas são sempre viscerais e carregadas de paixão. Um
comentário ou crítica sobre esses âmbitos soa como um sacrilégio.
As reações são agressivas porque envolvem afetos religiosos. Por
exemplo, quando a família tenta dizer o que devo fazer com meu
corpo, ou quando a igreja tenta dizer o que devo fazer com meu
desejo sexual, ou, ainda, quando escola e o Estado tentam legislar
sobre meus afetos. Nada disso é bem-vindo, pois o lema é “meu
corpo, minhas regras”. Assim como toda ideologia política, também
quando as questões de gênero são idolatradas, uma palavra de
ordem passa a evidenciar o caráter ideológico de minha visão sobre
o assunto.
A J B

Assim como os queer studies são amplos e envolvem várias


disciplinas acadêmicas diferentes, eles também têm pesquisadores
e representantes de correntes intelectuais diversas. No entanto, um
nome se destaca nos últimos anos por sua capacidade de
popularizar ideias fundamentais para a teoria queer e o feminismo: a
filósofa norte-americana Judith Butler. Professora do departamento
de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia, em
Berkeley, Butler também ministra seminários na cátedra Hannah
Arendt de Filosofia no European Graduate School (EGS), na Suíça.
Escritora prolífera, ficou conhecida mundialmente com seu livro
Problemas de gênero (1990), obra em que aplica os princípios
gerais do pós-estruturalismo francês ao feminismo e à identidade de
gênero. Sob forte influência de Michel Foucault e Jacques Derrida,
Butler apropria-se dos desafios que esses filósofos fizeram à
hermenêutica e à teoria literária e constrói uma teoria de subversão
da identidade e da sexualidade. Sem exageros retóricos, trata-se de
uma versão corporal da desconstrução textual de Derrida. Da
mesma forma que o filósofo franco-argelino buscava superar o
logocentrismo insistindo em uma hermenêutica dos textos que
dispensasse a intenção autoral e os significados únicos,[24] Butler
também busca ultrapassar construções sexuais heteronormativas e
identidades de gênero fixadas por princípios estruturantes.
Em uma entrevista recente à Revista Cult, Butler explicita em
sua própria condição pessoal o significado e os desdobramentos de
sua filosofia:

É por isso que, apesar de ser chamada de lésbica, e de


chamar a mim mesmo assim (embora não diariamente e não
em todas as circunstâncias), relutaria em instalar o lesbianismo
na ordem do ser. Isso não porque as lésbicas não existam —
estamos em toda parte. É porque devemos ser cuidadosas
sobre aquilo que queremos expressar com o termo, deixando-o
ser um campo de contestação e deixando-o como parte de
uma situação histórica na qual ele se efetiva. Isso é diferente
da ontologia, e a desconstrução nos ajuda a percebê-lo.[25]

Em outras palavras, Judith Butler está em uma condição de


silêncio, que caracteriza as visões de mundo não cristãs
contemporâneas.[26] Ela não pode se declarar nada porque, se
assumisse alguma identidade minimamente estável, cairia em
contradição com a fluidez da filosofia que propõe. O que seu
raciocínio nos oferece, portanto, é apenas uma filosofia do silêncio,
uma filosofia que impede os indivíduos de falar quem somos e o que
queremos com nossa identidade e sexualidade.
Judith Butler é um paradigma intelectual porque sua proposta
de subversão feminista de identidades é muito diferente do
feminismo “velha guarda” de Simone Beauvoir, por exemplo. A
filósofa francesa, ainda que seja um ícone perpétuo das lutas
feministas europeias, almejava algo bem diferente de Butler.
Quando Beauvoir escreveu O segundo sexo (1949), seu propósito
era pensar o que significava ser mulher em radical diferença do ser
homem. Entretanto, ela não negava a estabilidade dessas duas
categorias. Ou seja, não estava preocupada em desconstruir o “ser”
das identidades estabilizadas, como propõe Judith Butler. Na teoria
queer de Butler, “ser mulher” ou mesmo “ser lésbica” já é uma
violência de gênero e algo que não deve ser instituído na ordem do
ser.
O resultado dos esforços de Judith Butler para recolocar o
feminismo em uma chave de total desconstrução e subversão da
identidade e da sexualidade é a sua definição de gênero, tomada
como modelar para os queer studies:
Gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos
repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência
de uma substância, de uma classe natural de ser.[27]

Podemos compreender melhor o que ela está argumentando


se pensarmos em um exemplo prático. Pense o que é ser homem: é
uma estilização, é um jeito de ser e de se vestir, de falar e de querer,
de cultivar um corpo, repetindo uma série de ações no interior de
uma estrutura reguladora muito rígida — essa estrutura reguladora é
um padrão cultural sobre o que homem faz, pensa e sente. Isto é,
“ser homem é usar roupa desse jeito, dessa cor, falar dessa forma,
gostar disso, colocar a mão naquilo, poder fazer isso e nunca querer
fazer aquilo…”.
A construção de uma identidade de gênero e de uma
sexualidade masculina é um processo que se estende por tanto
tempo que se cristaliza com o passar dos dias, produzindo uma
aparência de substância, uma aparência de estrutura masculina. No
entanto, não existe em substância, não possui nenhuma estrutura
que diz o que é ser homem. Afinal, se eu quiser mudar esses atos e
quiser começar a construir o meu gênero de outra forma, eu posso,
mudando as roupas, o jeito de falar, o jeito de organizar a vida
sexual e assim por diante.

E , ?

Diante dessa situação, fica a pergunta: qual é a melhor


abordagem cristã para lidar com essas questões? Não podemos
permanecer superficiais aqui. Existe uma tendência na igreja
evangélica brasileira a tentar lidar com essas questões sem fazer o
trabalho intelectual sério de repensar categorias e conceitos
fundamentais.
Não podemos ser ingênuos e pensar que essa batalha está
no começo e que ainda há tempo de reagir. Nesse aspecto, sou
mais pessimista. A igreja demora muito para discernir o Zeitgeist
[espírito de seu tempo]. Estamos continuamente envolvidos com a
luta contra o marxismo cultural — algo que foi, com certeza, um
grande problema para a igreja cristã na década de 1980 no Brasil,
mas que hoje simplesmente não faz mais nenhum sentido para
nossos jovens e adolescentes assediados pela fluidez pós-
estruturalista. Como estudante e pesquisador da faculdade de
filosofia de uma universidade federal durante dez anos, tive apenas
2 aulas sobre Karl Marx. Na filosofia elas não eram ministradas. Já
não havia interesse nisso. No entanto, pergunte-me: a quantas
aulas de pós-estruturalismo você assistiu? Quantos seminários
sobre Michel Foucault? E sobre pós-marxismo? Sobre a escola de
Frankfurt? Dezenas! Centenas de publicações, congressos,
seminários e minicursos.
Quando a Igreja evangélica descobrir o pós-estruturalismo,
daqui a 50 anos, será tarde demais. Não porque estaremos
intelectualmente defasados, mas porque teremos perdido uma
geração inteira para os padrões intelectuais deste século. Conforme
nos ensinou o brilhante teólogo norte-americano J. Gresham
Machen:

O que hoje é uma questão de especulação acadêmica,


amanhã moverá exércitos e derrubará impérios. Nesse
segundo estágio, já foi longe demais para ser combatida; o
tempo de impedi-la era o tempo quando ainda era uma
questão apaixonadamente debatida. Dessa forma, como
cristãos, devemos tentar moldar o pensamento do mundo de
tal maneira que a aceitação do cristianismo seja vista como
algo mais do que um absurdo lógico.[28]

Minha maior preocupação, abstraindo de questões teóricas e


pensando nas pessoas, é responder: como podemos honestamente
oferecer aconselhamento e ajuda cristã a quem sofre com questões
de gênero, sexo e sexualidade? Que alternativa estamos
apresentando aos adolescentes que cresceram vendo e ouvindo
Pabllo Vittar? Como a grande tradição teológica e filosófica
reformada pode esclarecer essas questões? Tenho algumas
sugestões.
1
2. A sexualidade humana como estrutura e
direção

A primeira reforma que precisa acontecer no interior de nossa


caixa de ferramentas conceitual é compreender que a sexualidade
humana é tanto estrutural quanto direcional. Essa lição é muito
importante! Se você tiver de abandonar a leitura deste livro sabendo
uma única coisa, que seja esta: a sexualidade humana deve ser
compreendida, ao mesmo tempo, como estrutura e como direção. O
que isso quer dizer? Essa não é meramente uma forma de pensar
identidade e sexualidade. Na verdade, pensar a partir de estrutura e
direção é o primeiro passo para construir uma maneira de enxergar
toda a realidade. Significa que temos de olhar para todas as coisas
na realidade buscando enxergar sua estrutura, bem como a direção
para onde essa estrutura aponta.

Quem conseguiu explicar muito bem e popularizar essa ideia foi o


teólogo canadense Albert Wolters, em A criação restaurada, livro
que todo cristão deveria ler. Nesse “livraço”, curto e direto ao ponto,
Wolters apresenta os rudimentos da maneira como os discípulos de
Cristo devem enxergar, compreender e pensar todas as coisas — ou
seja, a cosmovisão cristã. Em determinado momento, Wolters diz o
seguinte a respeito dessa tarefa cristã:
Devemos argumentar que em todos os casos a tarefa do
cristão é discernir estrutura e direção. Como já observamos, a
estrutura denota a “essência” de algo criado, o tipo de criatura
que é pela virtude da lei criacional de Deus. A direção, em
contraste, refere-se a um desvio pecaminoso dessa ordenança
estrutural e à conformidade a ela renovada em Cristo. Uma
análise reformada de cada área da vida aplicará essa distinção
bíblica de modo consistente e colocará uma ênfase igual na
criação (estrutura) e na antítese espiritual (direção) que
penetra toda a criação.[29]

O que Wolters está argumentando aqui é que toda a


realidade tem um aspecto duplo. Quando criou todas as coisas por
sua Palavra, Deus deu leis à realidade — incluindo nossa
sexualidade — que podem ser compreendidas como uma estrutura
inegociável do mundo real. Ou seja, quando falamos de estrutura,
temos um jogo de soma zero, não há possibilidade de variação.
Como Deus criou o ser humano, e a sexualidade, e a sociedade e o
trabalho cultural, cada uma dessas esferas da existência temporal
assume um caráter estrutural — essas ordenanças estruturais
vindas da divindade foram chamadas pelos teólogos da Reforma de
leis criacionais. A ordem criacional é o primeiro pilar da visão cristã
de mundo e define a estrutura essencial de todos os aspectos da
realidade a partir do Logos divino.
Entretanto, “criação” é só o primeiro elemento da forma cristã
de enxergar o mundo. A narrativa bíblica também diz que a “Queda”
do ser humano no pecado introduziu um novo elemento em nossa
consideração da realidade. A partir de então, passamos a enxergar
todos os entes da realidade como criação de Deus, mas uma
criação afetada pelo pecado. No pensamento cristão, o pecado não
é visto como algo que conseguiu destruir a boa criação de Deus. Na
verdade, o que ele fez foi colocar as boas estruturas criacionais de
Deus em uma direção apóstata, isto é, em uma direção rebelde. Em
outras palavras, isso significa que a doutrina da Queda do ser
humano no pecado fez com que as boas estruturas de Deus fossem
colocadas em oposição a Deus — em uma direção de antagonismo
e alienação.

Essa é a forma cristã de enxergar toda a realidade em seu


sentido mais amplo. Agora pense, por exemplo, em nosso tema
específico: a sexualidade humana. A sexualidade é uma boa
estrutura criada por Deus para sua glória. Ou seja, somos seres
estruturalmente sexualizados e fomos feitos assim para viver nossos
relacionamentos, sexualidade e afetividade de uma determinada
forma. Entretanto, a nossa história contém outro elemento, que é
igualmente definidor de nossa identidade e de nossa sexualidade: a
presença do pecado. Este é real, ainda que não destrua nossa
sexualidade. Sendo incapaz de destruir as estruturas criacionais de
Deus, ele pode deturpá-las e colocá-las para operar em uma direção
totalmente oposta aos desígnios eternos de Deus. O pecado coloca
nossa sexualidade em uma direção contrária e faz com que ela saia
de um estado de ordem para a total desordem — afetando,
consideravelmente, quem nós somos, isto é, nossa identidade.
É esse o raciocínio que fundamenta a compreensão da
sexualidade humana como estrutura e direção. Albert Wolters
argumenta sobre isso um pouco mais:

O desafio para os cristãos é abrir um caminho entre o falso


dilema que dá origem aos extremos. Mais uma vez, a questão
não é “a sexualidade é basicamente boa ou má?”, mas “O que
é estrutural e o que é direcional na sexualidade humana?”. Se
estrutura e direção são os termos de referência, é possível ao
mesmo tempo afirmar sinceramente a sexualidade humana e
opor-se às suas perversões com igual convicção e vigor.[30]

Segundo essa importante descrição de Wolters, podemos


compreender basicamente que o que é estrutural conserva as
características da boa criação de Deus e que o que é direcional
aponta para o pecado e revela a marca do pecado na criação de
Deus. A partir dessas lentes, que foram retiradas do grande drama
narrado nas Escrituras (criação, queda e redenção), temos a
possibilidade de reformar a maneira como enxergamos, pensamos e
agimos em toda a criação. Deixamos de fazer perguntas tolas e
erradas — se a sexualidade é boa ou má, se homoafetividade é algo
do bem ou do mal, e assim por diante — e passamos a fazer
perguntas biblicamente orientadas. Essa é a primeira grande lição
que aprendemos para abordar honestamente as questões de
gênero, sexo e sexualidade de maneira minimamente orientada pela
visão cristã de mundo. Trata-se de fazer perguntas da seguinte
maneira: “o que é estrutural e o que é direcional na
homossexualidade?” ou, ainda, “o que que é estrutural nas questões
de gênero e o que que é direcional?”. Em vez de insistir em uma
polarização reducionista e empobrecedora que enxerga tudo como
uma infinita luta de bem e mal, passamos a pensar biblicamente
todas as questões que nos tangenciam de alguma forma. Isso
porque, se acreditamos que visão de mundo cristã retirada das
Escrituras — de Criação, Queda e Redenção — é uma espécie de
óculos através dos quais podemos enxergar tudo, é indispensável
que todo discípulo de Jesus procure discernir a estrutura e a direção
de todas as coisas. Se tudo foi criado por Deus e se a queda no
pecado afetou todas as coisas, então em tudo existe a boa estrutura
de Deus que foi redirecionada segundo os padrões rebeldes do
pecado.
Quando essa forma de enxergar o cosmo é aplicada às
questões de gênero, sexo e sexualidade, temos uma maneira muito
mais rica e honesta de abordar tais questões. Deixamos de pensar
em algumas práticas e condições pessoais como a atração por
pessoas do mesmo sexo e até mesmo conflitos pessoais de gênero
e sexualidade como intrínseca e totalmente maus, para pensá-los
como, simultaneamente, reflexos das boas estruturas de Deus e das
corrupções do pecado. Mais diretamente, em outras palavras, isso
significa que no desejo homoafetivo existe tanto estrutura boa
quanto direção apostata. Que nos desejos de subversão das
identidades de gênero, nos descontroles afetivos dos
heterossexuais e até mesmo nas reivindicações feministas existem
manifestações das boas estruturas de Deus — que não podem ser
silenciadas — misturadas com as desordens e disfuncionalidades
do pecado. Essa, e tão somente essa, é a forma cristã de tratar tais
fenômenos que nos tangenciam tão direta e pessoalmente.
P

É urgente que a igreja evangélica brasileira contribua para o


enriquecimento das discussões públicas sobre gênero, sexo e
sexualidade com a introdução de novos termos que sirvam de
quadros referenciais para repensarmos e reformarmos nossa visão
da identidade e da sexualidade humanas. Se estrutura e direção são
termos de referência, é possível afirmar a sexualidade dos seres
humanos de todo o coração, ao mesmo tempo que também nos
opomos, de todo coração, às suas perversões. Com igual convicção
e vigor, a fé biblicamente orientada afirma e celebra nossos corpos,
nossos desejos, nossa vontade de pertencer uns aos outros, de nos
relacionarmos e de nos completarmos na intimidade uns dos outros,
ao mesmo tempo que reconhece, rejeita e resiste às desordens e
disfuncionalidades que o pecado trouxe às nossas relações, aos
nossos desejos e até mesmo aos nossos corpos. Essa maneira de
pensar, além de enriquecer nosso vocabulário, também nos liberta
do medo de ter em nós algum elemento — como um desejo, uma
afeição ou uma parte do nosso corpo — que seja totalmente impura
ou abominável ao Senhor. Esse tipo de entidade totalmente
pecaminosa não existe, ainda que seja um elemento que tenha sido
afetado pelo pecado.
A contribuição que essa maneira de pensar traria não só para
a igreja, mas para toda a sociedade brasileira, é imensa. Trata-se de
uma maneira de colocar velhos problemas sob novas perspectivas,
de um modo mais fiel à revelação de Deus, sem permanecermos
presos e limitados pelos clichês da nossa cultura. Nas palavras do
próprio Wolters:
A fertilidade da distinção estrutura e direção não se encontra
tanto em dar respostas (fáceis ou não), mas em sugerir
perguntas biblicamente embasadas. Estrutura-direção não é
uma fórmula fácil para produzir a solução cristã correta para os
problemas éticos e culturais; em vez disso, fornece um
caminho de discussão, um modo de investigar de acordo com
a perspectiva revelada do Criador a respeito das coisas. Na
nebulosa área da ética sexual, então, não devemos desistir de
procurar o caminho no qual o Senhor quer que andemos nem
declarar que as questões envolvidas são eticamente
indiferentes ou neutras.[31]

Outro nome importante para nos auxiliar a reformar nossa


compreensão da identidade e da sexualidade humanas é o do
teólogo anglicano Sam Allberry. Ele é um dos editores do site The
Gospel Coalition e um dos pastores da Igreja Anglicana St. Mary,
em Maidenhead, no Reino Unido. Além de conferencista de
dimensões internacionais, Allberry também é autor de um pequeno
— mas poderoso — livro intitulado Deus é contra os homossexuais?
(2013). Trata-se de uma obra em que ele apresenta argumentações
bíblicas preciosas sobre a visão cristã da atração por pessoas do
mesmo sexo, ao mesmo tempo que nos dá testemunho de sua
própria trajetória. É um livro fininho e em parte autobiográfico. Entre
seus argumentos, ele também fala um pouco sobre estrutura e
direção:
É importante entender que a sexualidade não é
necessariamente algo estático. Nossos desejos em uma fase
do desenvolvimento podem não ser os mesmos em outra.
Talvez isso seja especialmente verdadeiro na puberdade,
quando as atrações sexuais mudam de forma considerável.
[…] É muitíssimo importante que alguém que sinta essa
atração pela primeira vez não presuma que ela consista agora
na “orientação” com que viverá pelo resto da sua existência.[32]

Talvez uma das coisas mais importantes que aprendi no


tempo em que trabalhava diariamente com crianças em uma escola
tenha sido ensinar os meninos a não cristalizarem (transformarem
em uma estrutura irrevogável) expressões direcionais de sua
identidade e sexualidade. Isso é algo muito fácil de perceber em
nossos filhos ou crianças ao nosso redor. Geralmente, quando eles
são pequenos, as polarizações entre meninos e meninas é muito
forte. Os meninos simplesmente não querem saber das meninas,
não brincam com meninas, não querem nada atrelado a elas e não
há nada mais ofensivo a um menino pequeno que chamá-lo de
menininha. Claro, essa polarização acontece quando eles são bem
pequenos, pois, quando o tempo passa, de repente, parece que eles
se descobrem e passam a se enxergar de uma nova forma — e aí
todas as novidades típicas da adolescência começam a borbulhar.
Com isso, somando-se à argumentação de Allberry acima, estou
querendo defender que nossa identidade e os elementos
constitutivos de nossa sexualidade são muito dinâmicos e
complexos. Nossas percepções do mundo, afeições e desejos vão
sofrendo não só as mudanças típicas de nossas fases de
desenvolvimento, mas também são influenciados pelo pecado que
constantemente nos assedia. Nesse contexto de natureza dinâmica
de nossa sexualidade, é muitíssimo importante ajudarmos os mais
novos e imaturos a lidar com essas transformações estruturais e
pressões direcionais.
Vamos pensar em alguns exemplos bem práticos. Quando
um adolescente de 10 ou 11 anos se abre conosco e diz que, pela
primeira vez, está sentindo atração por alguém do mesmo sexo,
precisamos ajudá-lo a discernir o que é estrutural e o que é
direcional na experiência que ele está vivenciando. De certa forma,
é bom (estrutural) ele se descobrir afetiva e sexualmente. Fomos
criados para isso, e Deus é glorificado quando sentimos atração
sexual. Entretanto, é necessário ensiná-lo que uma relação afetiva
com outro menino não conseguirá satisfazer suas expectativas de
complementação física, afetiva e significativa. De uma forma que
esteja ao alcance do raciocínio de nossas crianças — sem
menosprezar suas capacidades, pois a cultura não os encara como
incapazes de compreender tais questões —, precisamos ajudá-los a
entender que a prática homossexual, por exemplo, nunca
conseguirá ser compatível com as expectativas cristãs para a
identidade e para a sexualidade do ser humano.

R
Conseguem perceber, caros leitores, o tipo de abordagem
que estamos fazendo? Não estamos virando para um adolescente
que está tendo sua primeira percepção afetiva e dizendo “isso aí
que você está sentindo e querendo é do Diabo!”. Além de insensível
e desonesta, essa forma de conversar sobre identidade e
sexualidade é absolutamente errada do ponto de vista bíblico. É
exatamente o mesmo raciocínio do apóstolo Paulo que Allbery nos
lembrou. Quando o apóstolo fala alerta seus leitores em 1 Coríntios
6.9-11 quanto a uma série de atos que eles cometiam antes de estar
em Cristo e de fazer parte da igreja e os orienta a não voltar ao
antigo modo de vida, podemos compreender, sem desrespeitar a
Bíblia, que o apóstolo está sugerindo que ainda existe entre eles o
desejo de voltar à prática desses hábitos característicos da vida sem
Jesus. Entretanto, Paulo não condena esse desejo. É algo que eles
precisam reconhecer, rejeitar e resistir. Da mesma forma que
acontece como o nosso adolescente com desejo homoafetivo,
aquelas pessoas em Corinto estavam lutando contra o desejo de
voltar a mentir, roubar e também de ter relações sexuais de uma
maneira que não glorificava a Deus. Esse desejo permanecia, mas
em Cristo já não somos mais quem éramos e buscamos satisfazer
nossas carências, desejos de pertencimento e marcas definidoras
da nossa identidade de uma forma que evidencie que estamos sob
a influência do Espírito de Cristo que produz em nós as virtudes que
são fruto da obra consumada de Jesus aplicada a nossos corações.
Tão somente assim conseguiremos reconhecer a mobilidade
estrutural e direcional que têm nossa sexualidade e como isso deve
ser abordado de uma maneira que não comprometa o processo, que
o Espírito Santo iniciou em nosso coração, de restaurar a imagem e
semelhança divina em nossa nova identidade em Cristo.
Acredito que lidar honestamente dessa forma com as
perguntas honestas das pessoas que sofrem com confusões dessa
natureza não será apenas de grande valor. Antes, um
aconselhamento dessa forma, com o poder do Espírito Santo, tem
condições de libertar para sempre um indivíduo das cadeias da
culpa, do medo e da incerteza que o pecado produz em nós. É um
feito incrível para a saúde emocional e espiritual não permitir que
um indivíduo que está percebendo, pela primeira vez na vida, uma
atração homoafetiva presuma, a partir disso, que agora esse desejo
determinará sua identidade para o resto da vida. Desassociar
atração, afeição e sexualidade de identidade é uma necessidade
urgente, e o raciocínio de estrutura e direção nos ajuda muito nessa
tarefa. Não podemos permitir que nossos amigos, nossos filhos,
nem nós mesmos, transformemos variações, tentações e desejos
direcionais em marcas estruturais de nossa identidade. Quem diz
quem nós somos, o que nos qualifica e nos fornece a estrutura de
nossa identidade não é nosso gênero, nem nosso sexo, nem nossa
sexualidade. Antes, é nossa nova aliança com Cristo!
1
3. A sexualidade humana foi totalmente afetada
pelo pecado

Após entendermos bem o aspecto geral da forma cristã de


enxergar todos os elementos da realidade a partir de sua estrutura e
direção, podemos caminhar para o segundo passo necessário na
reforma de nossas ideias sobre a identidade e a sexualidade
humanas. Diferentemente da primeira, essa lição é mais específica.
Trata-se de compreender que, além de ser estrutural e direcional,
todos os aspectos da sexualidade humana foram totalmente
afetados pelo pecado. A queda radical do ser humano no pecado foi
compreendida pelos teólogos reformados como a depravação total
da boa criação de Deus. A “totalidade” dessa depravação é um
conceito horizontal e vertical. Isto é, não só toda a criação de Deus
foi depravada (horizontalmente), mas a profundidade dessa
depravação (verticalmente) é total.
Essa é uma das realidades mais fáceis de perceber em
nossa experiência temporal. Estamos muito acostumados a falar da
graça comum de Deus — que derrama chuva sobre bons e maus,
sobre justos e injustos —, mas a desgraça também é comum,
afetando todos os entes da criação e afetando-os totalmente. Em
suma, o pecado não diz respeito apenas à vida de algumas poucas
pessoas nem afeta somente os aspectos religiosos da vida. Antes,
atingiu toda a criação, colocando-a numa direção contrária a Deus,
e isso inclui nossa sexualidade.

O
Vou me valer, uma vez mais, das contribuições de Albert
Wolters:
A queda de Adão e Eva em pecado não foi apenas um ato
isolado de desobediência, mas um acontecimento de
significado catastrófico para a criação como um todo. […]
Biblicamente falando, o pecado não anula a criação nem se
identifica com ela. Criação e pecado permanecem distintos,
mas intimamente entrelaçados em nossa experiência. A
prostituição não elimina a bondade da sexualidade humana.
[…] Podemos dizer que o pecado e o mal têm sempre o
caráter de uma caricatura — ou seja, de uma imagem
distorcida que contém certas características reconhecíveis.[33]
Já falamos bastante a respeito de estrutura e direção, mas
agora o exemplo que Wolters dá sobre a prostituição nos ajuda a
materializar o raciocínio abstrato. Novamente, a pergunta não é “a
prostituição é boa ou má?”, mas, em vez disso: “o que é estrutural e
o que é direcional na prostituição?”. Algumas pessoas podem
estranhar a forma dessa pergunta, pois pressupõe que existam
coisas boas (estruturais) na prostituição. E isso é verdade, ainda
que os evangélicos não estejam acostumados a pensar assim. Até
na prostituição existem aspectos que apontam para a boa criação
de Deus — podemos pensar, simplesmente, nos relacionamentos
interpessoais, nas relações sexuais e no prazer. Tudo isso é
estrutura criacional e está presente de alguma forma nas
experiências de prostituição. Entretanto, como todas as dinâmicas
da criação foram afetadas pelo pecado, nada escapa ao seu poder
deformador — nem nossa sexualidade. É aqui que surgem os
aspectos direcionais de nossa sexualidade que podem acabar em
prostituição, por exemplo: a objetificação de quem se prostitui, a
mercantilização de quem se prostitui, a vituperação da pessoa
humana, o vício, o tráfico e tudo de degenerado e disfuncional que
está envolvido na prostituição.
O que precisa ficar claro é que ter uma compreensão robusta
dos efeitos do pecado na realidade vai nos ajudar a analisar toda a
criação de uma maneira muito mais precisa. Ainda que estejamos
concentrados em questões de gênero, sexo e sexualidade, essa
maneira de enxergar o mundo vale para tudo: para a arte, para a
política, para a ciência e tecnologia, e assim por diante.
Albert Wolters está nos ajudando a entender que o pecado, a
forma de vida pecaminosa, o abuso da criação, sempre tem uma
natureza caricatural. Isto é, o modo como o pecado opera está mais
próximo a uma caricatura. Geralmente, quando querem produzir a
caricatura de alguém, os cartunistas aumentam alguma
característica que já é uma marca chamativa de quem está sendo
representado — uma orelha, um nariz, uma boca. Mesmo que a
gente olhe e veja que se trata de uma caricatura, também
conseguimos reconhecer a quem ela se refere. Com o pecado
acontece exatamente o mesmo. Quando olhamos para a
prostituição, por exemplo, conseguimos enxergar sexualidade,
relacionamento, desejo, mas algumas características desses
elementos de nossa experiência foram desfigurados pelo pecado,
gerando a caricatura: a prostituição. A prostituição, bem como todas
as outras desordens sexuais e de gênero, são meras caricaturas
das intenções originais de Deus para nossa vida. São experiências
de estruturas boas que foram hipertrofiadas pelo pecado, de forma
que produziram uma representação deformada do que era a
imagem e semelhança divina.
Nesse sentido, podemos compreender melhor o que o
pecado faz quando afeta totalmente nossa sexualidade. Ele dá
dimensões equivocadas a aspectos bons da nossa identidade e
sexualidade e, por isso, não consegue produzir vida, uma vez que
não tem as dimensões adequadas, as condições apropriadas para
satisfazer as expectativas criacionais dos seres humanos. É por isso
que o salário do pecado é a morte, nunca a vida. Buscar na
prostituição, ou em qualquer outra orientação sexual que subverta
os desígnios originais de Deus, a satisfação de nossos anseios
relacionais, físicos e emocionais é tentar matar a sede com Coca-
Cola. É pecaminoso esperar de alguma coisa — seja nossa vida
sexual, seja nossa identidade — mais do que esta pode oferecer. O
pecado não consegue suprir nossos anseios.

Uma das mais importantes modificações que essa


compreensão do pecado traz para nossa discussão sobre gênero,
sexo e sexualidade é a percepção de que devemos abandonar outra
tendência equivocada: a de reduzir as discussões sobre identidade
e sexualidade a uma conversa sobre homossexualidade versus
heterossexualidade. Esse é um empobrecimento muito grande do
testemunho da igreja na esfera pública, como também uma
ausência total de compreensão bíblica da questão. Quando
afirmamos que o pecado afetou horizontal e verticalmente toda a
sexualidade humana, as orientações heterossexuais não podem
ficar de fora. Não podemos pensar, nem por um segundo, que a
marca do pecado na sexualidade se restringe às orientações
homoafetivas, bissexuais, transexuais e assim por diante. Não é o
indivíduo com atração homoafetiva que está em rebeldia contra
Deus, é o ser humano! Todos nós temos em nossa experiência
temporal as marcas do pecado. Além de desonesto e insensível,
seria biblicamente incorreto não reconhecer as marcas do pecado
nas várias experiências heterossexuais.
Infelizmente, testemunhamos da parte dos cristãos muito
combate contra a teoria queer e a guerra cultural contra o
movimento LGBTI+, mas não vemos a mesma indignação com os
abusos e as caricaturas pecaminosas que existem em muitas
práticas heterossexuais celebradas no interior da comunidade cristã.
Somente uma compreensão biblicamente orientada do pecado tem
condições de fornecer a capacidade de questionar práticas
heterossexuais comuns em nosso meio que são igualmente
pecaminosas e apontam da mesma forma para a depravação de
alguma área da nossa vida.
Lisânias Moura, pastor da Igreja Batista do Morumbi, em São
Paulo, escreveu um livro interessante intitulado O Cristão
Homoafetivo? (2017) que, na verdade, é uma série de conversas,
em tom de aconselhamento, que ele teve e transformou numa
narrativa ficcional — em que ficcionais são só os nomes das
pessoas, pois as situações descritas são absolutamente reais. Em
linhas gerais, a trama gira em torno de um indivíduo que se
identifica genuinamente com a fé cristã, entende que Jesus
realmente o alcançou, mas, ainda assim, luta com a atração por
pessoas do mesmo sexo. Veja um trecho importante de sua
argumentação:
Existe uma luta no interior de quem quer honrar a Deus com o
corpo e a mente. O desejo em si mesmo, seja do homoafetivo
em relação ao seu igual, seja do heterossexual pelo sexo fora
o casamento, não é pecado. O heterossexual não possui um
botão mágico que desliga nele o sentimento de atração sexual
por outra mulher quando está longe da esposa. Deus nos fez
pessoas sexuais. Para o homoafetivo, esse desejo sexual foi
direcionado para a pessoa do mesmo sexo. No entanto,
enquanto a questão se restringe à tentação, a batalha não foi
perdida.[34]
Essa é mais uma forma de reiterar o núcleo do argumento
que está sendo apresentando aqui. O que é estrutural em nós?
Dentre muitas outras coisas, a nossa sexualidade, com certeza.
Agora, o que é direcional? Sem sombra de dúvidas, o nosso
descontrole referente a essa sexualidade. Uma terceira pergunta
que poderia ser feita é: o que é contextual?[35] Ou seja, como essa
estrutura e essa direção se manifestam em contextos específicos?
Bem, aqui vem aquele refinamento necessário para as discussões
cristãs: em relações heterossexuais, esse descontrole se mostra de
certos modos; em relações homoafetivas, de outros. Seja como for,
nenhum de nós tem um botão em si que, ao ser acionado,
automaticamente nos faz parar de desejar — ou quando nos
casamos, ou quando somos batizados, ou quando entramos para o
ministério e “Pronto! Parei de sentir aquela atração”. Isso não
acontece com ninguém, pois a santificação — ou o processo que os
indivíduos que estão em Cristo experimentam, no poder do Espírito,
de reordenar todos os aspectos que foram desordenados pelo
pecado — não trabalha dessa forma.
Vamos falar mais sobre santificação no último capítulo. Por
hora, o que é necessário deixar claro aqui é que distinções que não
reconhecem as marcas do pecado em toda sexualidade humana —
inclusive nas experiências heteronormativas — precisam ser
descartadas pelos cristãos. Para a renovação de nossa visão sobre
identidade e sexualidade, não podemos manter esses clichês da
cultura predominante na igreja evangélica brasileira que só
enxergam pecaminosidade em certas práticas e orientações
sexuais, enquanto outras formas de vida são encaradas como livres
de direcionamento rebelde contra Deus. Não é isso que a visão de
mundo retirada da narrativa bíblica nos orienta. Ademais, pensar
dessa forma apenas alimenta uma condescendência com certos
tipos de pecado. Se a santificação e a glória de Cristo são nossos
objetivos, o lugar onde vigora o erro e o pecado precisa passar pelo
processo purificador da verdade e do arrependimento.
1
4. Nossa moral sexual precisa proceder das
Escrituras

Toda a argumentação que está sendo construída é uma


trajetória em que cada passo leva ao próximo. Nesse sentido, os
dois capítulos anteriores necessariamente me levam, agora, para o
terceiro aspecto necessário para reformar nossa visão de
sexualidade e identidade. A terceira compreensão basilar que
precisamos assumir é que nossa ética sexual deve ser retirada das
Escrituras. Sabendo que nossa sexualidade é tanto estrutural
quanto direcional e sabendo que ela foi totalmente afetada pelo
pecado, inevitavelmente precisamos de parâmetros éticos e morais
para nos reordenarmos sexualmente. Nessa altura, a pergunta que
surge é: de onde a gente tira esses parâmetros? Se nosso interesse
é construir uma ética genuinamente cristã, precisamos extrair tais
parâmetros da revelação do Senhor em sua Palavra. Parece
simples e óbvio, mas não é.
No imaginário social brasileiro, para falarmos com Charles
Taylor,[36] muitos usos e costumes arraigados na cultura ou práticas
retiradas da família tradicional brasileira são confundidos com
moralidade cristã. Talvez nenhum erro seja o maior responsável pelo
crescente descrédito público das virtudes cristãs do que sua
associação com moralismos humanos. Costumo usar uma ilustração
para clarear esse ponto.

D H
Você já ouviu falar da Dona Hermínia? É a protagonista de
uma peça de teatro, que posteriormente se tornou um filme de longa
metragem, chamada Minha mãe é uma peça (2013). Trata-se de
uma comédia engraçadíssima cujo roteiro foi escrito por Fil Braz e
pelo ator Paulo Gustavo, que interpreta a dona Hermínia. Essa
personagem é uma mulher de meia idade, divorciada do marido,
que a trocou por uma mulher muito mais jovem. Diante disso,
Hermínia concentra-se em ser uma mãe presente, que não larga o
pé dos filhos — mesmo quando estes já são jovens adultos. Toda a
comédia do filme é a própria personalidade hiperativa de Hermínia
que nos faz rir com muitas falas, gestos e atitudes típicas de muitas
mães brasileiras.
O contrassenso que existe nessa história — e que ilustra o
meu argumento sobre a moralidade sexual de muitos evangélicos —
é que Hermínia foi concebida e interpretada pelo talentoso ator
brasileiro Paulo Gustavo, que não esconde sua orientação sexual
homoafetiva e sua união estável com o dermatologista Tales Bretas.
Ou seja, apesar de uma orientação absolutamente distinta da
personagem que criou, Paulo Gustavo conseguiu levar milhões de
pessoas ao teatro e ao cinema justamente porque sua personagem
consegue nos remeter aos usos e costumes das mães mais
desajeitas e conservadoras que conhecemos. Por meio de um clichê
sobre as mulheres brasileiras de meia-idade, Paulo Gustavo
conseguiu criar uma ponte perfeita com os costumes e preconceitos
mais tradicionais da cultura brasileira — a mãe que cria dois filhos
sozinha, que foi deixada por um marido de práticas heterossexuais
descontroladas, cheia de sexismos e preconceitos em suas falas
com os filhos, parentes, etc.
A minha hipótese é que muito do que se chama de
moralidade cristã no Brasil é semelhante à Dona Hermínia:
humanismos seculares pagãos travestidos de costumes
conservadores heterossexuais. Dito de outra maneira, moralismo
humano travestido de virtude sexual cristã. Essa é a maior tragédia
no interior das nossas comunidades cristãs. Não somos atentos o
suficiente para perguntar se nossos hábitos, pensamentos e
padrões morais de sexualidade são fruto da cultura ou do
discipulado bíblico. Não estamos preocupados em entender quem
nos forma moralmente na sexualidade.
Essa deformação em nossas práticas morais se manifesta de
formas muito sutis em nossas famílias, escolas e igrejas. Quando
pegamos um livro, como esse que você tem em mãos, sobre
homoafetividade, teoria queer e subversão das identidades sexuais
cristãs, imediatamente pensamos: “Isso é pecado! As Escrituras
condenam esses raciocínios da Judith Butler! Precisamos
reconhecer os desvios morais que existem nas relações
homoafetivas!”. No entanto, as mesmas pessoas que são velozes
para fazer a crítica teológica e cultural desses temas são aquelas
que têm um filho ou uma filha, menino principalmente, e o vestem
de uma forma bem bonita, passam perfume e, então, quando
alguém vem fazer um elogio do tipo “Nossa, como está cheiroso,
hein!”, nós batemos em suas costas e declaramos: “Sim! Ele está
mal intencionado com as meninas!”. Você consegue reconhecer
esse tipo de situação, caro leitor? Já presenciou ou mesmo
protagonizou um comentário dessa natureza? Você sabe o que é
isso? Chama-se lascívia. É pecado!
Infelizmente, muitos membros de nossas comunidades que
se identificam com a fé cristã reproduzem esses hábitos
diariamente. Condenamos a homossexualidade, mas celebramos a
lascívia heterossexual. Condenamos o feminismo, mas celebramos
expressões culturais sexistas. Quando pais são chamados para uma
conversa em que será relatado algum incidente envolvendo os seus
filhos, com namoros precoces ou pornografia, é recorrente
ouvirmos: “Graças a Deus meu filho gosta de mulher, né, pastor?”,
ou “Pelo menos ele não é gay, não é, pastor?”. Esse tipo de alívio
vem de pais desesperados, que não sabem mais como contribuir de
maneira genuinamente cristã para a formação da identidade e da
sexualidade de seus filhos. Não podemos celebrar a
heterossexualidade a qualquer custo. Uma sexualidade construída à
base de pornografia, abusos infantis e sexismos culturais, mesmo
que seja hétero, está longe dos padrões morais bíblicos para a
sexualidade humana. De onde as nossas meninas retiraram seus
padrões morais e aprenderam a ser mulher? Das Escrituras ou dos
videoclipes da Anitta? Com quem os nossos meninos estão
aprendendo a ser homens? Com o apóstolo Paulo ou com o
Neymar? Isso é moralismo humano travestido de virtude sexual
cristã. Não existe nada mais distante da proposta de Cristo para
uma nova vida segundo os valores do Reino de Deus.
A
Wesley Hill, professor da Trinity School for Ministry in
Ambridge, na Pensilvânia, é um dos mais importantes teólogos
norte-americanos e tem sido certeiro na edificação da igreja com
seus escritos sobre discípulos de Jesus que lutam a vida toda por
causa de sua orientação sexual e sua identidade em Cristo. Junto a
Sam Allbery, Rosaria Butterfield e outros nomes importantes no
diálogo contemporâneo sobre questões de sexualidade e
identidade, Hill nos ajuda principalmente a enriquecer nosso
vocabulário teórico com conceitos esquecidos pela igreja evangélica
— tais como castidade, celibato e continência. Infelizmente, na
busca de construir nossa identidade protestante em oposição às
formas de vida católico-romanas, renunciamos a uma série de
conceitos que são próprios à fé cristã e que nos auxiliariam muito na
resistência à revolução sexual. Wesley Hill é um testemunho vivo de
como uma existência vivida em fidelidade ao Senhor, e não aos
nossos desejos, glorifica muitíssimo o nome de Jesus — que era um
homem completo, com desejos, hormônios e tentações, mas que
nunca se casou e nem por isso foi menos homem ou tinha menos
plenitude da divindade. O matrimônio fala de uma união mística
qualitativamente diferente daquela que conseguimos ter com nosso
cônjuge. Quando mencionava sua espera pelas bodas e pela sua
noiva, Cristo falava no sentido mais profundo que o casamento pode
apontar: para nossa aliança mística de pertencimento a Cristo —
que relativiza todo o resto de nossa existência temporal.
Em um artigo intitulado “Homossexualidade, a Bíblia e a
Igreja” (2016), Wesley Hill nos leva a pensar um pouco sobre o que
realmente está envolvido na rejeição de valores morais seculares e
no cultivo de uma moralidade genuinamente cristã. Veja o que ele
diz:
Nós também podemos nos perguntar se a compreensão
bíblica do casamento e da sexualidade nos convida a
questionar alguns de nossos pressupostos mais básicos
acerca do que constitui a identidade humana. O argumento de
Robert Song lida com a noção de que há uma classe de
pessoas — “pessoas gays e lésbicas” — cujos desejos sexuais
são mais ou menos permanentemente dirigidos a membros do
mesmo sexo e que, consequentemente, vivenciam a si
mesmos como chamados a expressar esse desejo sexual ao
formar relacionamentos de fidelidade semelhantes ao
casamento tradicional. [...] Tudo isso representa, quase
indiscutivelmente, o triunfo do movimento pelos direitos gays e
lésbicos na era moderna. Antes do triunfo cultural desse
movimento, o que recebia atenção ética na tradição cristã
eram os atos sexuais entre pessoas de mesmo sexo.[37]
O que está em questão no argumento de Hill é justamente a
necessidade de desconectar a construção de nossa identidade
pessoal dos nossos desejos e orientações sexuais. Quando
aceitamos os termos da discussão pública contemporânea e
vinculamos desejos e orientações sexuais à nossa identidade,
perdemos de vista a proposta cristã para a compreensão de quem
realmente somos com e sem Cristo. O surgimento de uma
identidade como “pessoas homossexuais” ou até mesmo “pessoas
trans” é a maior prova do triunfo da revolução sexual e de seus
conceitos em nosso imaginário social. Falar disso há 100 anos em
qualquer parte do globo era, simplesmente, impensável.
A moralidade cristã não vincula a nossa orientação sexual à
nossa identidade. Era muito difícil alguém ser chamado de
homossexual só porque sentia atração por pessoas do mesmo sexo
ou, até mesmo, porque praticava relações sexuais com pessoas do
mesmo sexo. Nossa identidade é bem maior que nossas práticas.
Novamente, o raciocínio do apóstolo Paulo nos ajuda a entender
como os autores do Novo Testamento encaravam essas questões e
construíram uma moralidade que não limitava nossa identidade aos
nossos sentimentos e afetos. Quando o apóstolo dos gentios faz
uma lista de práticas de indivíduos que não herdarão o reino de
Deus, além de tratar de maneira igual mentirosos e homossexuais,
ele deixa claro: “assim foram alguns de vocês” (1Co 6.11a), mas a
identidade de vocês foi mudada; “vocês foram lavados, foram
santificados, foram justificados, no nome do Senhor Jesus Cristo e
no Espírito de Deus” (1Co 6.11b). A identidade de vocês agora não
está atrelada ao que faziam ou continuam desejando fazer. Vocês
morreram, e agora a sua identidade está escondida com Cristo em
Deus (Cl 3.3). Essa forma de enxergar nossa identidade e
sexualidade é libertadora.
Infelizmente, estamos muito desabituados a pensar
biblicamente na hora de construir nossas orientações morais e
éticas. Qualquer adolescente de nossas famílias, escolas e igrejas
rapidamente chega à conclusão oposta à do texto bíblico. Qualquer
experiência incipiente de atração por pessoas do mesmo sexo ou
desejo sexual desordenado, eles já concluem: “descobri que sou
gay”, ou, então, como já ouvi de um adolescente de 11 anos, “eu
sou bissexual”. Eu sou? O que é isso? A primeira pergunta que
sempre faço é: “O que é isso, ser gay?”. Que pacote é esse que
você comprou para sua identidade? Minha orientação pastoral mais
básica para todos que se encontram em uma situação semelhante,
de ouvir de alguém uma identificação tão direta e sem fundamento
entre sexualidade e identidade, é: diga que não entendeu e peça
que expliquem! O desconforto será visível depois de alguns
segundos, quando se perceber que essa entidade chamada “pessoa
gay” não existe como um universal bem estabelecido em torno do
qual podemos construir toda a nossa identidade. Depois que o
absurdo ficar evidente, ajude a pessoa a entender que é
insustentável compreender-se a partir de uma pequena parte de si.
Ainda que nossos desejos e atrações sejam importantes, eles nunca
podem ser os critérios definitivos para estabelecer nossa identidade
— especialmente a de um cristão.
Essa guerra de imaginários e cosmovisão sexual é muito
sutil. O que acontece no coração de um adolescente, tal como
mencionei acima, é que ele realmente está vivenciando uma nova
experiência afetiva (a parte genuína com a qual devemos ser muito
cautelosos ao lidar), mas, ao mesmo tempo, faz parte de uma
cultura que diz que quando você é atraído de uma determinada
forma ou quando se sente de determinada maneira com o seu
corpo, só há um caminho: identificar-se como homossexual,
bissexual ou como alguém que precisa subverter seu gênero. É um
pacote muito estreito que é assimilado rapidamente. Mesmo sem
nunca ter encostado em ninguém, um adolescente se identifica com
uma entidade chamada “bissexual”, seja lá o que isso signifique
cotidianamente.
Além disso, as consequências religiosas também são
igualmente sutis e velozes. Após ser informado pela cultura de que
agora tem uma nova identidade, esse mesmo adolescente constrói
um argumento lógico muito simples em sua mente:
Premissa 1: Na igreja só se pode desejar e fazer sexo de
uma forma X;
Premissa 2: Eu não desejo dessa forma;
Conclusão: Logo, não posso mais me manter na igreja.
O raciocínio é simplório, mas fatal para um adolescente que
está se descobrindo enquanto ser desejante, sexualizado e
espiritual. Em um silogismo básico, de duas premissas e uma
conclusão, a gente perde esse jovem para sempre. É claro que não
estou defendendo aqui que Cristo não possa alcançar quem ele
quiser, da forma como quiser. O calvinismo me liberta dessa
preocupação. O que estou querendo mostrar aqui é que
precisamos, urgentemente, melhorar nossos conceitos para
conseguirmos ser uma presença fiel na esfera pública e também
alívio e renovação espiritual para quem está sexual e
identitariamente confuso.

O ?

Um exercício histórico pode nos ajudar muitíssimo nessa


tarefa. Quando pensamos que há 150 anos era inconcebível uma
pessoa atrelar sua identidade às suas práticas sexuais ou
desejantes, fica mais fácil ultrapassar nosso próprio tempo e pensar
de maneira extemporânea. Para não falarmos só sobre a
moralidade bíblica — nosso padrão imutável — pense, por exemplo,
em como Sócrates, Platão ou Aristóteles compreendiam identidade
e sexualidade. Apesar da pederastia dominante em sua época,
nenhum deles se apresentava como tal. Não era distintivo, não
constituía o paradigma de sua identidade. Ou passe os olhos pela
obra de Friedrich Nietzsche. Veja o que ele fala de identidade,
transvaloração dos valores e sexualidade. Nem a atração nem a
orientação sexual são fundamentais para a constituição da figura
identitária fundamental de sua filosofia, o Übermensch [Super-
homem].
Pense, por outro lado, em como a abordagem de vários
teólogos importantes da igreja de Cristo era bem distinta dessa
assimilação sexual pela identidade. Quanto lidou com a questão dos
atos sexuais incompatíveis com a moralidade cristã, Tomás de
Aquino, o Doutor Angélico da igreja romana, o fez sob a rubrica da
luxúria. Esse termo que, para muitos evangélicos, não significa
nada, servia como um guarda-chuva para Aquino lidar com diversas
práticas imorais — como relações sexuais fora do casamento,
prostituição, homossexualidade etc. Dessa forma, ele mantinha a
discussão no plano em que ela deve ficar: dos vícios e virtudes
morais, de fruto da carne ou do Espírito, e não no nível de nossa
identidade pessoal. É luxúria, ou seja, é uma direção equivocada da
estrutura sexual que Deus nos deu. Não é preciso criar um tipo de
identidade para descrever esse aspecto da nossa experiência
temporal.
E eu poderia multiplicar imensamente os exemplos aqui em
toda a história do pensamento ocidental. Não é necessário, pois o
que quero mostrar é que não precisamos submeter nossos
raciocínios às categorias recentíssimas de identidade e gênero.
Todas as vezes que caímos nesse erro, nos tornamos escravos de
uma série de processos e artefatos culturais que apenas complicam
nossa vida em sociedade. Pense em toda a indústria cultural por
traz das políticas de identidade sexual: uma nova linguagem, roupas
para vestir, lugares para frequentar, preferências ideológicas,
práticas éticas, e assim por diante. Cristãos sem discernimento da
história se complicam, pois procuram afirmar a diferença moral
cristã com base em aspectos que são absolutamente relativos e
frutos dessa indústria cultural — tal como declarações infantis sobre
“menino usar azul e menina rosa” quando, na verdade, luxúria e
todos os aspectos do fruto da carne são combatidos com
mortificação, disciplina espiritual e cultivo do fruto do Espírito. Se foi
a onda cultural da chamada Revolução Sexual que lançou uma
batalha para o reconhecimento da existência de algo como uma
classe de “pessoas gay”, então precisamos questionar por que a
moralidade Bíblica não atrela a nossa sexualidade à nossa
identidade. Até mesmo intelectuais não cristãos já descobriram o
poder titânico da afirmação do apóstolo Paulo de que a nossa
identidade está em Cristo e que, por isso, não existe mais homem
ou mulher, escravo ou livre, judeu ou gentio (Gl 3.28) — ou seja,
distinções étnicas, distinções culturais e até mesmo as famigeradas
distinções de gênero, em Cristo, foram relativizadas, pois ele é tudo
em todos!
Essa é uma lição fundamental para a igreja evangélica
brasileira. Nossa moral sexual precisa ser retirada da tradição cristã
que foi fundada sobre as Escrituras. Isso vai mudar até mesmo a
forma como nós mesmos tratamos nossas lutas e dilemas de ordem
afetiva e sexual. Um dos exemplos de que mais gosto dessa
mudança vem de um gigante da teologia: Agostinho, bispo de
Hipona. Em um trecho belíssimo das suas Confissões, ele ora a
Deus confessando seus próprios pecados. Veja como ele enxergava
a si mesmo e tratava seus pecados:
Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções
da minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar,
ó meu Deus. E por amor ao teu amor que retorno ao passado,
percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. [...]
Desde a adolescência, ardi em desejos de me satisfazer em
coisas baixas, ousando entregar-me como animal a vários e
tenebrosos amores! Desgastou-se a beleza da minha alma e
apodreci aos teus olhos, enquanto eu agradava a mim mesmo
e procurava ser agradável aos olhos dos homens. Quem
desembaraçará este nó assim tão complicado e emaranhado?
E uma ação indigna; nela não quero pensar, não a quero
analisar. Eu quero a ti, ó justiça, ó inocência, ó beleza que atrai
o olhar dos virtuosos, que em ti se satisfazem sem jamais se
saciar. Junto de ti existe paz profunda e vida imperturbável.
Quem mergulha em ti, entra no gozo do seu Senhor, não terá
mais receio, e permanecerá sumamente bem no Bem
supremo. Desandei longe de ti, meu Deus, e na minha
adolescência andei errante sem teu apoio, tornando-me para
mim mesmo um antro de miséria.[38]
É incrível como Agostinho não usa nenhum dos termos que
se tornaram cotidianos de nossa época para falar sobre sexualidade
e, mesmo assim, seu discurso é muito mais rico do que o nosso.
Não existe aqui nenhuma associação de sexualidade com
identidade. Na verdade, é justamente a consciência sólida de
Agostinho de que sua identidade está alicerçada em sua relação
com Deus que lhe permite encontrar auxílio e perdão em oração.
Mais do que isso: nem mesmo os seus pecados ocupam muito de
sua atenção. Ele se concentra menos nas práticas em si mesmas —
para onde olhou, o que desejou, onde colocou a mão, etc. — do que
nas suas motivações. Seu interesse e a razão de sua confissão é
que ele reconhece que seu coração, por muito tempo, ficou dividido
por amores antagônicos — o amor a Deus e o amor a si mesmo.
Essa percepção é fundamental para toda a filosofia de Agostinho,
não só em termos antropológicos, mas até mesmo políticos, como
podemos ver em A Cidade de Deus. Agostinho ensinou para o
Ocidente que as motivações mais profundas dos corações humanos
determinam quem somos. Nossas práticas, desejos e crenças são
reflexos dos nossos amores — que formam duas cidades,
alicerçadas em dois amores distintos. Essa antropologia agostiniana
tem muito potencial para transformar, de cima a baixo, não só nossa
compreensão identitária, como também nossa visão da politização
da sexualidade.

D
Séculos mais tarde, Sam Allberry, agora em linguagem
contemporânea, explica um pouco mais sobre a necessidade de
sermos criativos ao pensar conceitos alternativos para nos
referirmos às nossas questões sexuais e identitárias. Veja o que ele
diz sobre suas próprias preferências:
Usei o termo “atração por pessoas do mesmo sexo”, porque o
desafio imediato é a descrição de mim mesmo. Na cultura
ocidental de hoje, o termo óbvio para alguém com sentimentos
homossexuais é “homossexual”. Todavia, na minha
experiência, ele muitas vezes se refere a muito mais que à
orientação sexual de alguém. O termo descreve uma
identidade e um estilo de vida.
… Essa descrição é uma forma de reconhecer que o tipo de
atração sexual que experimento não é fundamental para a
minha identidade.[39] É parte do que sinto, mas não é quem
sou, no nível mais básico. Eu sou muito mais que a minha
sexualidade.
Tomemos outro tipo de apetite. Eu amo carne. Considero que
haja algo de errado quando vejo um prato sem o pedaço de
um animal. Contudo, meu amor à carne não significa que eu
gostaria de ser definido por alguém pela principal categoria de
“carnívoro”. [40]
As opções de Allbery são muito inteligentes. Ao dar nomes
corretos para questões diferentes, ele desarticula uma série de
conflitos que poderiam ser enfrentados sem necessidade. O desafio
de quem sente atração por pessoas do mesmo sexo é diferente do
desafio de encontrar em Jesus o paradigma de sua identidade. É
claro que o segundo transforma totalmente o primeiro; entretanto,
mesmo relacionados, são diferentes. Desvincular apetites de
identidades é uma das maiores necessidades de nosso tempo —
pense, por exemplo, nos juristas que precisam conceituar família e
uma de suas grandes lutas é mostrar que vínculos afetivos não são
suficientes para constituir a identidade familiar.
A capacidade de libertação e significado que essa separação
entre apetite e identidade traz é muito grande. Quando formos
honestamente ao encontro de nossos amigos que estão lutando
sinceramente com as necessidades mais diversas na ordem sexual,
podemos auxiliá-los muito dizendo: “Pera aí, você não é isso. Você
é muito mais do que você sente, você não é seu descontrole
emocional. Você não é seu descontrole libidinal. Você é bem mais
que isso”. Uma moralidade bíblica tem condições de libertar nossas
estruturas identitárias das pressões direcionais da cultura marcada
pela rebeldia e pela apostasia.
Vale lembrar, por fim, que esse trabalho de dar nomes
diferentes às entidades específicas é uma das ordenanças primeiras
que Deus nos deu. A primeira tarefa que Adão recebeu no jardim foi
nomear os animais. Essa distinção no interior da cultura é
fundamental para o testemunho cristão. Não podemos continuar
chamando de cachorro o que é uma raposa. Ainda é mandamento
divino para nós darmos nomes específicos para entidades
diferenciadas na cidade-jardim que estamos cultivando para a volta
do Noivo.
1
5. Negar a si mesmo não é sinônimo de rejeição
psicológica

A última contribuição que gostaria de trazer com esse


material será de grande valia, principalmente para pessoas que
lidam diretamente com o sofrimento pessoal causado por desordens
sexuais e, por conseguinte, identitárias. Trata-se da defesa da ideia
de que o imperativo bíblico de rejeitar o pecado que afetou toda a
sexualidade humana não é sinônimo de negar a si mesmo enquanto
rejeição psicológica de si. Novamente, é fundamental fazer
distinções aqui para não chamar raposa de cachorro.
O cuidado com essa diferenciação não é meramente teórico.
Talvez seja o que tem consequências mais imediatas e danosas
para quem sofre de maneira pessoal com as questões de gênero,
sexo e sexualidade. A incompreensão dessa distinção entre o
imperativo bíblico e uma reação psicológica doentia de rejeição de si
mesmo pode levar desde à automutilação até ao suicídio.

A própria cultura pop tem dado sinais de incapacidade de


distinguir o que está em jogo nessas situações. O recente filme Girl:
Trans-formação (2018) é uma excelente peça da cultura que nos
ajuda a entender alguns aspectos da pressão psicológica envolvida
nos procedimentos de formação e deformação sexual e identitária. A
narrativa do filme conta a história de Lara, uma adolescente
transexual que aparece já no início do filme com todo o fenótipo
feminino — e uma grande aceitação da comunidade em que está
inserida, como seu pai, médicos e psicólogos. Não existe jornada de
descoberta até aquele ponto da sua vida. A película já se inicia com
o estado de coisas estabelecido. Entretanto, a virada do filme, que o
deixa interessante, é que o diretor Lukas Dhont propõe o caminho
inverso dessa trajetória de descoberta: tudo que estava indo bem
percorre o sentido contrário. Cena após cena, a situação fica mais
complexa e angustiante. Vou parar por aqui para não dar spoiler,
mas toda a discussão que o filme levanta é a carga física e
emocional pesadíssima que um adolescente naquela circunstância
enfrenta para “estabelecer a correta relação entre sua sexualidade e
sua identidade”. É justamente do que acontece no interior do
coração de um indivíduo em situações semelhantes à do
protagonista de Girl que o presente capítulo se ocupa.
Quanto a isso, quem nos ajuda a compreender um pouco
mais o estado emocional de alguém que enxerga a si mesmo como
“inadequado”, “estranho” e, por que não, “queer” é, uma vez mais,
Sam Allberry:
Conheci vários cristãos que disseram que suas experiências
de atração por pessoas do mesmo sexo fizeram-nos sentir-se
profunda e espiritualmente impuros. Alguns mencionaram
sentir-se como “produtos danificados” (eu vim com erro de
fábrica), como se estivessem além do reparo e fossem
desagradáveis a Deus para sempre.[41]
Quando um indivíduo nessas circunstâncias emocionais
escuta em nossas igrejas um conselheiro bíblico ou mesmo um
sermão sobre “negar a si mesmo” ou “rejeitar o pecado”, de maneira
automática ele ligará isso aos seus conflitos sexuais e,
consequentemente, à sua identidade. Dificilmente alguém que não
esteja familiarizado com o linguajar teológico ou com as imagens
bíblicas associarão a rejeição e a mortificação da carne com o
processo de santificação. Como filho daquela cultura
contemporânea que não consegue desassociar sexualidade e
identidade, ele entenderá o imperativo bíblico da seguinte forma:
“Tenho que negar tudo, quem eu sou, toda a minha identidade”. Só
que, na verdade, mais uma vez estamos falando do pecado – da
rejeição ao pecado –, não da rejeição de si mesmo enquanto
identidade consolidada. Aliás, é o contrário. Com um conselho
bíblico ou com a pregação do evangelho, queremos que as pessoas
parem de olhar para si mesmas e de se acharem totalmente
impuras, absolutamente fora de conserto ou mesmo sem salvação.
Já dissemos que, por mais rebeldes que possamos ser, existem
estruturas em nós que são boas e também que, apesar da direção
rebelde que essas estruturas tenham assumido, o Evangelho é
poderoso para reordenar a direção do nosso coração.
Talvez um testemunho pessoal nos ajude a sair um pouco da
abstração teórica e a ancorar nossa abordagem na experiência
temporal ordinária. Para isso, vou me valer do testemunho de
Wesley Hill, que conta sua trajetória pessoal e nos mostra como
essas questões estavam latejando em seu coração:
Quando tinha cerca de 13 anos, comecei a perceber que
aquilo que meus amigos estavam sentido por meninas — um
deleite vertiginoso, um anseio emocional e físico comumente
chamado de “atração romântica”, “ter um crush” ou, mais
seriamente, “estar apaixonado” — eu sentia por meninos, por
homens. Encontrava-me observando-os de uma forma que eu
nunca havia feito antes. [...] Ao mesmo tempo, também sabia
que eu era cristão — e que queria viver minha vida tanto
quanto possível em agradecida obediência ao presente de
Deus que é Jesus Cristo, cuja vida, morte e ressurreição
alcançou para mim o perdão dos pecados e a promessa da
vida eterna. E, à medida que ficava mais velho, ambas as
realidades começaram a mostrar-se mais centrais no
desenvolvimento da noção de quem eu era. [...] Como um
homem ou mulher gay deveria viver, como uma pessoa com
atração por pessoas do mesmo sexo como eu deveria
expressar sua sexualidade, em vez de simplesmente reprimi-la
ou de tentar negar sua existência?[42]
Sempre que leio o relato de Hill, lembro-me da janela 4x14,
uma janela missionária que não é geográfica, mas etária. É incrível
quantas experiências formativas acontecem durante esses dez anos
da nossa vida. Estatísticas dizem que mais de 80% das conversões
à fé cristã ocorrem nesses anos — como aconteceu com Hill.
Imagino que também seja uma fase importantíssima para toda sorte
de questões sexuais e seus reflexos na formação de nossa
identidade. Seja como for, veja que Hill lidou com essas duas
dimensões simultaneamente. Na mesma época que percebeu que
se sentia atraído por pessoas do mesmo sexo, ele também
compreendeu que Cristo o alcançou. À medida que crescia, essas
duas realidades mostravam-se competindo pela lealdade de seu
coração; então ele levantou uma série de perguntas que,
infelizmente, não são respondidas em muitas comunidades de fé
que conhecemos. Ele queria saber como um homem ou mulher com
atração sexual por pessoas do mesmo sexo deveria viver de forma
que glorificasse a Deus — sem que essa pessoa precisasse
reprimir, negar ou tentar rejeitar o que estava experimentando.
A

Imagine que situação terrível para um adolescente. É


fundamental encontrar pessoas com sensibilidade suficiente para
ouvir nossas queixas e dúvidas sinceras e que tratem nossas
carências com honestidade. Isso pode livrar a muitos de fins
trágicos. Sendo assim, é urgente perceber como uma doutrina
robusta do pecado — conforme apresentamos anteriormente —
precisa caminhar junto com uma compreensão igualmente
encorpada de santificação. Somente as distinções que as Escrituras
apresentam para a nova vida daqueles que estão em Cristo têm
condições de nos livrar desse peso desmedido de culpa e
inadequação.
Quanto a isso, acredito que a tradição que melhor
sistematizou os ensinamentos bíblicos é, uma vez mais, a teologia
reformada. Anthony Hoekema, teólogo e professor do Calvin
Theological Seminary, pode contribuir de maneira muito especial
nesse assunto. Apresentando o que seria a compreensão reformada
de santificação, ele explica como o ensino bíblico está longe da
mera repressão psicológica de si:

Podemos definir santificação como a ação graciosa do Espírito


Santo – que implica nossa participação responsável –
mediante a qual Deus liberta a nós, pecadores justificados, da
contaminação do pecado, renova toda a nossa natureza
conforme a sua imagem e nos permite viver de forma a
agradá-lo.[43]

Esse é um trecho bem técnico, mas existem muitas lições


condensadas aqui. Veja que a santificação é uma obra do Espírito
de Deus por meio da qual Deus nos liberta da contaminação do
pecado. Isso ele faz renovando a nossa natureza conforme sua
imagem — ou seja, aquelas estruturas criacionais que
mencionamos anteriormente, que estavam em uma direção rebelde,
são redirecionadas pelo Espírito para apontarem outra vez para a
imagem e semelhança divina à qual fomos criados. É como se o
Espírito Santo nos despertasse para enxergar esse direcionamento
equivocado e nos dissesse: “É para cá, nessa direção, que você vai
caminhar agora… e eu vou te ajudar!”.
É por isso que Hoekema diz que, na santificação, Deus não
nos concede novos poderes ou capacidades diferentes das que
tínhamos anteriormente. As estruturas são as mesmas.
Continuamos desejando, amando, querendo da mesma forma. A
diferença é que agora tenho a condição de possibilidade (o Espírito
Santo operando em nosso coração) de sentir e querer de uma
maneira que glorifique a Deus. Não nascem asas angelicais em
nossas costas, nem uma auréola dourada sobre nossa cabeça. As
estruturas permanecem, mas a direção é alterada segundo a
eficácia do poder do Espírito, que nos redireciona e começa em nós
a obra da redenção. Conforme Hoekema continua explicando:

Além disso, a santificação realiza uma renovação de nossa


natureza, ou seja, faz-nos mudar de direção, em vez de
transformar nossa essência. Santificando-nos, Deus não está
nos concedendo poderes e capacidades totalmente diferentes
dos que já tínhamos. Antes, ele nos permite usar de forma
correta, não de forma pecaminosa, os dons que nos concedeu.
A santificação nos capacita a pensar, desejar e amar de forma
que glorifique a Deus, isto é, a pensar no que Deus pensa de
si mesmo e a fazer o que se harmoniza com sua vontade.[44]

A santificação nos capacita a pensar, desejar e amar de


forma que glorifique a Deus, isto é, a pensar no que Deus pensa de
si mesmo e a fazer o que se harmoniza com sua vontade. Ficar
reprimindo a pessoa para que não tenha determinado
comportamento, não se vista assim ou assado ou não reproduza
determinadas falas é farisaísmo e apenas simula a vida em
verdadeira santidade, que é obra do Espírito. Santificação não é
aquele discurso superficial de moralidade travestido de paixão pela
pureza. É algo que Deus está fazendo, e nós devemos reconhecer
tal processo à medida que o Espírito nos dá condições de entender
que ele nos criou como seres desejantes, seres sexualizados, mas
agora sob o reinado de Cristo. Qualquer outra proposta é mera
caricatura. Tão somente assim não precisarei mais me mutilar ou
até mesmo me matar por não ser agradável a Deus. O Espírito
Santo regenera-nos o coração e aplica a nós a obra consumada de
Cristo, fazendo com que sejamos novamente agradáveis a Deus,
independentemente de capacidade para isso. Essa formulação
graciosa da doutrina da salvação tem condições privilegiadas de
fornecer alívio, misericórdia e amparo a quem sofre de todo tipo de
angústias — incluindo as que envolvem gênero, sexo e sexualidade.
1
6. A possibilidade do celibato e do casamento
para quem luta com atração pelo mesmo sexo

Uma breve história de um congresso universitário de militança


LGBTI+

Em minhas peregrinações em busca de


pessoas, palestras, leituras e argumentos para
ampliar a visão genuinamente cristã sobre as
questões de gênero, sexo e sexualidade eu me
deparei com um caso que vale a pena ser citado. Foi
uma palestra na universidade em que faço
doutorado, promovida pela Faculdade de Filosofia,
com um dos maiores militantes LGBTI+ do Brasil. O
auditório estava lotado — nunca havia acontecido
isso em nenhum congresso de filosofia — e todos
estavam ansiosos para assistir a conferência.
Quando o destacado militante apareceu nos
corredores, foi ovacionado com gritos de guerra e
palmas. A palestra em si mesma foi simples, e, em
alguns pontos, bem ruim. O militante, apesar de todo
seu carisma, era superficial nos temas que tinham
sido discutidos na mesa — em que os outros dois
professores que compunham o painel mostraram-se
muito mais eruditos.
Nesse dia, fui muito impactado pelos efeitos da
liderança carismática daquele líder. Fiquei me
perguntando: por que eu não conseguia demonstrar
a mesma paixão pelas causas do evangelho e
arrastar a multidão comigo? Entretanto, não foram
apenas os meus conceitos de liderança que foram
atualizados naquele dia. Também ouvi da boca
desse militante uma estratégia que ele utilizou para a
causa LGBTI+ que foi muitíssimo interessante e
instrutiva.
Ele contou que no início de sua carreira política
no Brasil, seu principal tema era a criminalização da
homofobia. Ele havia sido eleito deputado federal
com essa pauta e tornou-se uma das figuras mais
conhecidas em nosso país sob essa bandeira. No
entanto, ele mesmo disse que se sentia
internamente contraditório com essa palavra de
ordem, porque ao mesmo tempo que enfatizava a
necessidade da criminalização da homofobia, ele era
contrário aos discursos de encarceramento
tradicionais e ao aumento da população carcerária
no Brasil. No interior de seu pacote político
progressista, parecia não fazer sentido defender, por
um lado, a adoção de penas alternativas à
tradicional prisão e, por outro lado, a penalização do
crime de homofobia. Foi quando ele teve uma virada
em seu pensamento lendo uma obra da filósofa
alemã Hannah Arendt. Trata-se do ensaio filosófico
“Reflexões sobre Little Rock”, publicado em 1959,
que tinha em vista o questionamento sobre o papel
das escolas nos Estados Unidos da América no
período de segregação negra. A própria Arendt
começa seu texto dizendo o motivo que a fez
escrever o pequeno ensaio:

O ponto de partida das minhas reflexões foi uma


fotografia nos jornais que mostrava uma menina
negra saindo de uma escola recém integrada a
caminho de casa: perseguida por uma turba de
crianças brancas, protegida por um amigo
branco de seu pai, a face dando um testemunho
eloquente do fato óbvio de que ela não estava
precisamente feliz. A fotografia revelava a
situação em poucas palavras, porque aqueles
que nela apareciam foram diretamente afetados
pela ordem do tribunal federal, as próprias
crianças. A minha primeira pergunta foi: o que
eu faria, se fosse uma mãe negra?[45]

É interessante pensar como o exercício teórico


que Arendt faz e que seria absolutamente
impensável reproduzir hoje — uma mulher branca,
europeia, privilegiada, começar a se perguntar o que
faria se estivesse no lugar de uma mãe negra? Os
teóricos do “lugar de fala” teriam que desarticular
imediatamente esse texto arendtiano. Entretanto,
como essas críticas são sempre seletivas, essa
mulher branca passou e tornou-se uma referência
não só para a militança identitária negra, como
também no caso LGBTI+ do deputado federal que
ouvi na universidade.
O grande valor no ensaio de Arendt para o
militante brasileiro em questão foi a observação da
estratégica mudança que ocorreu no interior da
militância negra às leis segregacionistas. Em vez de
continuarem insistindo apenas na dissolução das leis
de segregação, eles passaram também a levantar a
pauta da possibilidade de casamento entre negros e
brancos — que também era legal e culturalmente
reprimido. Com essa manobra política brilhante o
intuito era desarticular as questões de segregação
não só no âmbito jurídico, mas de toda uma cultura
que, em poucos anos, teria várias famílias formadas
e ativas na cultura dos EUA. O discurso e as práticas
da segregação simplesmente não seriam mais
condizentes no imaginário popular, pois essa
realidade já havia se dissolvido dentro de casa. Nas
palavras da própria Arendt:

Perguntei a mim mesma: o que distingue


exatamente o assim chamado modo de vida
sulista do modo de vida americano em relação à
questão da cor? E a resposta, claro, é
simplesmente que, embora a discriminação e a
segregação sejam a regra em todo o país, elas
são impostas pela legislação apenas nos
estados sulistas. Por isso, quem desejar mudar
a situação no Sul não pode deixar de abolir as
leis do casamento, nem de intervir para tornar
efetivo o livre exercício do direito de voto. Essa
não é em absoluto uma questão acadêmica. É
em parte uma questão de princípio
constitucional que, por definição, está além das
decisões da maioria e dos assuntos práticos; e
também envolve, é claro, os direitos dos
cidadãos, como, por exemplo, os direitos
daqueles aproximadamente vinte e cinco
rapazes negros do Texas que, durante o seu
tempo no exército, se casaram com moças
europeias e, portanto, não podiam voltar para
casa, porque aos olhos da legislação texana
eram culpados de um crime.
A relutância dos liberais americanos em mexer
na questão leis do casamento, a sua presteza
em invocar razões práticas e deslocar a base do
argumento ao insistir em que os próprios negros
não têm interesse nessa questão, o seu
embaraço quando são lembrados daquilo que
todo mundo sabe ser o item de legislação mais
abusivo do todo o hemisfério ocidental, tudo isso
faz lembrar a primeira relutância dos fundadores
da República em seguir o conselho de Jefferson
e abolir o crime da escravidão. Jefferson
também cedeu por razões práticas, mas ele,
pelo menos, ainda tinha bastante senso político
para dizer depois da luta vencida: “Tremo
quando penso que Deus é justo”. Ele não tremia
pelos negros, nem mesmo pelos brancos, mas
pelo destino da República, porque sabia que um
de seus princípios vitais fora violado bem no
início. Não é a discriminação e a segregação
social, qualquer que seja a forma em que se
apresentarem, mas a legislação racial que
constitui a perpetuação do crime original na
história deste país.[46]

Foi essa leitura que fez o militante LGBTI+


brasileiro também alterar sua estratégia política. Em
vez de continuar insistindo na cristalização da
homofobia, sua estratégia passou a ser positiva:
defender o status jurídico da união homoafetiva — o
que ficou conhecido como casamento gay. Seu
ponto era o mesmo do de Arendt, deslocar o olhar à
homoafetividade, entendendo-a só como uma
questão negativa de direitos (criminalizando a
discriminação), para começar a enxergá-la de um
ponto positivo: a afirmação do direito de união
jurídica e culturalmente estável. Essa mudança
determinou os rumos da militância LGBTI+ no Brasil
e ainda é pauta de acalorados debates.

Refinamentos no conceito de homoafetividade na


visão de mundo cristã

Gostaria de abordar essa mudança aplicada às


estratégias cristãs de lidar com o casamento de
pessoas que lutam com atração pelo mesmo sexo.
Caso você fique incomodado de eu ter tirado essa
manobra intelectual da caixa de ferramenta de um
militante não cristão, tenho uma boa notícia para
você. Ele não foi o primeiro a pensar nisso. Na
verdade, de uma forma muito mais cuidadosa e
coerente com a visão de mundo bíblica, isso foi feito
pelo teólogo e diácono episcopal Wesley Hill. Em
seu artigo Christ, Scripture, and Spititual Friendship,
que é um capítulo do livro Two Views on
Homosexuality, the Bible and the Church, ele coloca
a questão da seguinte maneira:

Retornando ao começo, o que os gays cristãos


devem fazer, positivamente, à luz de tudo isso?
Seja lá o que for, nós devemos dizer que a
resposta dessa questão precisa insistir que
cristãos gays são chamados — como todos os
outros cristãos — a amar e serem amados.[47]

Parece óbvio a colocação de Hill, mas não


devemos desconsiderar que ela luta contra vários
tipos de obstáculos que ainda se colocam diante de
pessoas que lutam contra a atração pelo mesmo
sexo dentro da igreja. Em específico, Hill está aqui
pensando em termos positivos de como cristãos que
são tentados com a atração pelo mesmo sexo
podem ser amados de uma forma genuinamente
cristã — sem fazer qualquer dicotomia entre sua
identidade e seu corpo, incorrendo em um
gnosticismo sexual dentro da igreja.

Quanto a isso, é importante mencionar aqui que,


apesar de Wesley Hill e outros bons autores cristãos
sobre esses temas utilizarem a nomenclatura “gay
cristão”, acredito que o conceito de “atração pelo
mesmo sexo” nos auxilia a não só fazer justiça à
antropologia bíblica, como também a ultrapassamos
esses obstáculos remanescentes. Isso porque,
quando definimos uma identidade tal como a de
“gay” e acrescentamos a diferença especifica
“cristão” carregamos conosco toda a carga
ideológica com que a identidade gay foi
instrumentalizada na esfera pública. Nesse aspecto,
estou junto com Michel Foucault que, mesmo sendo
alguém que mantinha relações sexuais com homens,
sempre defendeu que não existia essa “entidade”
chamado homossexual. Acredito que a igreja ganha
muito em termos analíticos e pastorais quando livra-
se da tentação de identificar trejeitos, vestimentas,
linguagens e práticas cotidianas que podem ser
rotuladas como “gays”. Na maior parte dos casos, o
que acontece é preconceito travestido de moralidade
cristã — como já vimos nos capítulos anteriores.

Nesse sentido, vale citar uma vez mais Tamsin


Spargo, que é relevante em explicar esse processo
de transformação que muitas vezes passa
desapercebido aos olhos cristãos:

Uma das afirmações mais provocativas de


Foucault, e que certamente serviu de catalisador
para o desenvolvimento da teoria queer, foi a de
que a origem da homossexualidade moderna é
relativamente recente. Muitos historiadores e
historiadoras da homossexualidade tendem a
traçar conexões e continuidades entre
comportamentos e identidades homossexuais do
século XX e de períodos anteriores. Foucault,
por sua vez, insistiu que a categoria do
homossexual surgiu de um contexto específico
nos anos de 1870 e que, como a sexualidade
em geral, deve ser vista como categoria
construída do saber, e não como identidade
descoberta. Foucault não sugeriu que as
relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo
não existiam antes do século XIX. No período da
Renascença [que também foi o período da
Reforma], por exemplo, práticas sexuais como a
sodomia eram condenadas pela Igreja e
proibidas por lei, tanto entre dois homens quanto
entre homens e mulheres. Mas a diferença
crucial ente essa forma antiga de regulação das
práticas sexuais e aquela do fim do século XIX
está na pretensão desta última de identificar o
que Foucault chama de “espécie”, um tipo de ser
humano anômalo definido por uma sexualidade
perversa. Assim, enquanto homens e mulheres
do século XVI podiam ser conclamados a
confessar que haviam cedido a práticas sexuais
vergonhosas e contrárias às leis de Deus e da
terra, o homem do fim do século XIX que se
envolvesse em uma relação sexual com outro
homem era visto como “homossexual” e
encorajado a se ver como tal.[48]

A própria Tamsin Spargo, mesmo não sendo


cristã, reconhece que quando retrocedemos na
história da sexualidade humana vamos encontrar
uma diferença nítida entre a forma como a igreja no
período da Reforma lidava pastoralmente com o
pecado da relação sexual. Em vez de identificar e
catalogar indivíduos de “trejeitos” e hábitos
estranhos — o famigerado queer — ela colocava
tudo sob a rubrica de pecado, que deveria ser
arrependido, confessado e não mais praticado. Não
passava a existir um rótulo ideológico de declarar “o
Fulano é homossexual!”, o que, inclusive, faria com
que o próprio indivíduo tentado nessa área passasse
a se enxergar assim.

Quando as igrejas evangélicas brasileiras


renunciam a essa busca infrutífera de identificar nos
gestos, roupas e falas uma essência homossexual,
elas abrem um horizonte de possibilidades para
ajudar pastoralmente homens e mulheres que lutam
contra a tentação pelo mesmo sexo. Mais do que
isso, conseguimos, inclusive, desarticular os
discursos de política identitária que cada vez mais
adentram as comunidades cristãs. Isso porque,
quando desvencilhamos prática sexual homoafetiva
de identidade homossexual voltamos ao cenário de
poder aconselhar pastoralmente homens e mulheres
que confessam serem tentados ou praticarem tais
relações sexuais, ao passo que, no caso identitário
que se tornou a regra a partir do século XIX, a
ênfase deixa de recair sobre ações contrárias à
vontade de Deus e passa a destacar uma condição
cientificamente determinada do indivíduo — que não
consegue se livrar da sua “alma homossexual”.

Nesse ponto, Wesley Hill retoma a


argumentação e nos fornece as reais possibilidades
de aconselhamento e encaminhamento pastoral de
irmãos que lutam contra atração pelo mesmo sexo:

Mas de que forma pode o amor pelo mesmo


sexo ser algo bom? Sem dúvida, existem muitas
possibilidades de responder essa questão. No
meu próprio caso, eu tenho cada vez mais
chegado ao entendimento que meu chamado é
o de um cristão gay que será um “amigo
espiritual”. Em contraste com relacionamentos
por conveniência ou comprometimentos
mínimos, em que a autonomia pessoal e
habilidade de mover-se para quem é valorizado
acima de todos os outros, eu tenho aprendido a
perseguir profundamente tipos mais
permanentes de vínculos com meus amigos do
mesmo sexo (e do sexo oposto), em que todos
têm mantido o meu comprometimento com a
abstinência sexual (ou, como eu prefiro, “o
celibato”). Dessa forma, acredito que eu mesmo
estou em uma tradição cristã venerável.[49]

Wesley Hill traz uma contribuição preciosa para


o imaginário social evangélico que é tão arredio aos
conceitos que, de alguma forma, carregam “cheiro”
do catolicismo romano. Um deles é o de celibato.
Não conseguimos articulá-lo de uma forma séria no
meio protestante porque parece que
automaticamente está ligado à orientação vocacional
dos padres romanos serem celibatários. Entretanto,
fora desse círculo de discussão, o celibato é uma
disciplina espiritual importantíssima para ampliarmos
e renovarmos as possibilidades que homens e
mulheres têm na jornada de fé. Sam Allberry, outro
importante pastor e teólogo reformado mostra como
a consideração honrosa do celibato pode auxiliar
cristãos a lidarem com o assunto:

As pessoas para quem o casamento não é uma


perspectiva realista precisam ser afirmadas no
chamado ao celibato. Os irmãos precisam
defender e honrar o celibato como um dom e
tomarem cuidado para não falar mal dele sem
pensar. Não se deve pensar nos solteiros ou
comentar a respeito deles como se fossem
pontas soltas que precisam ser amarradas. Nem
se deve pensar que todos os solteiros foram
muito preguiçosos para procurar pelo cônjuge.
Lembro-me de conhecer um pastor que, ao
descobrir que eu era solteiro, insistiu para que
eu me cassasse e passou a descrever os
passos imediatos a tomar para corrigir isso. Ele
era muito direto e só parou quando explodi em
lágrimas e disse-lhe que estava lutando contra a
homossexualidade. Não era uma admissão que
eu precisaria fazer. É preciso respeitar que o
celibato não é necessariamente sinal de quem
adia crescimento.[50]

Muitas vezes, através de gracejos e piadas de


mal gosto dentro das igrejas, desonramos o celibato
como uma alternativa séria para cristãos que lutam
ou mesmo que não lutam contra a atração pelo
mesmo sexo. Ser solteiro dentro das igrejas
evangélicas é um drama, pois as pessoas nessa
condição são encaradas como uma subclasse de
crentes que falharam em uma das marcas mais
indiscutíveis do que chamo de teologia da
prosperidade afetiva. Nos discursos atuais de defesa
da família tradicional cristã, o casamento
monogâmico e heterossexual aparece com o cume
da prosperidade afetiva. Ao que parece, em algumas
igrejas ninguém consegue ser realizado
afetivamente fora dessa configuração matrimonial.
O que muitos não percebem é como essa visão
influenciou o movimento LGBTI+ a também
considerar o casamento uma conquista social
importante. Se a prosperidade afetiva está alinhada
necessariamente ao matrimônio, ele se torna um
direito fundamental — mesmo que eu não seja
cristão, seja gay, trans ou o que quer que seja. O
que a Bíblia chama de vocação e chamado
específico para alguns, foi transformado em nossa
sociedade em uma garantia inalienável de
prosperidade afetiva. E isso gera consequências
imensas para a agonia de muitas pessoas —
principalmente os solteiros e cristãos que não têm
vocação para o matrimônio.
Quando ficamos na ânsia de casar todo mundo,
além de ensinarmos para a cultura não cristã que ela
também deve buscar esse arranjo afeito, também
rebaixamos outras formas de amar — como a
amizade e o celibato. Ninguém investirá tempo e
energia em outras formas de relacionamentos
porque são maneiras menores de amar. Ao
exigirmos do casamento o que ele não pode nos dar
(algo típico de uma dinâmica de idolatria), retiramos
a possibilidade de encontrar genuína comunhão
cristã nas amizades e relações não sexuais entre
pessoas.
Sam Alberry nos lembra que: “quando Jesus fala
sobre a alternativa ao casamento, ele não menciona
a coabitação, a parceria sexual com alguém do
mesmo sexo, ou qualquer outro tipo de relação
sexual. Ele menciona os eunucos — o celibato
(Mateus 19.10-12)”.[51] Ademais, o próprio Senhor
Jesus nunca se casou, permanecendo celibatário
por toda sua vida e mantendo-se tão humano e
divino quanto se esperava do Messias. Com isso,
queremos dizer que o celibato é uma alternativa
honrosa e piedosa ao casamento. Apesar de celibato
e castidade terem caído em desuso no vocabulário
evangélico, eles fazem parte da caixa de ferramenta
conceitual da teologia reformada para a sexualidade.
A Bíblia nunca apresentou o casamento como
“o” lugar de realização afetiva. É uma das formas,
legítimas e ordenadas por Deus, mas não é a única.
Se continuarmos insistindo nessa teologia da
prosperidade afetiva vamos, ao mesmo tempo,
prestar o desserviço no testemunho público à
comunidade LGBTI+, como também estrangular as
possibilidades de desenvolvermos amizades
espirituais igualmente abençoadoras no Reino de
Deus. Não reduza suas amizades a uma mera
parada de descanso antes de voltar à verdadeira
vida familiar. Existe muita vida e satisfação afetiva
em amizades espirituais que encontram em Cristo —
e não em um ideal idólatra de casamento — as
condições de possibilidade para nossas realizações
pessoais.

E quando o casamento é uma possibilidade?

Minha pergunta final é: e quanto às pessoas


para quem o casamento é uma perspectiva realista,
mesmo lutando contra a atração pelo mesmo sexo?
Toda minha reconstrução do episódio envolvendo o
militante LGBTI+ brasileiro visava introduzir aqui
essa estratégia de afirmação positiva do casamento
de pessoas que lutam contra a atração pelo mesmo
sexo como um meio de desarticular essa crise em
nossas igrejas.
Quem me ajuda a pensar nas condições dessa
possibilidade é, mais uma vez, Sam Alberry. Com a
precisão e sensibilidade que lhe são características
ele diz:

Já vimos que a Bíblia proíbe qualquer atividade


sexual fora do casamento heterossexual. É
possível que alguns cristãos que sentem atração
por pessoas do mesmo sexo se casem. Isso
pode ocorrer por terem passado por alguma
mudança em seus desejos sexuais, ou então
porque consideram que, apesar da tentação
homossexual vigente, são capazes de desfrutar
de um casamento feliz com alguém do sexo
oposto. Penso em uma série de mulheres e
homens que conheço e para quem esse foi o
caso. O desejo deles permanece
predominantemente homossexual, mas eles
ainda assim encontram companheirismo
profundo e suficiente química sexual (se não “de
cair o queixo”) no casamento heterossexual.[52]

Com essa citação, não busco estabelecer uma


nova regra para ser instituída em todo
aconselhamento cristão de pessoas que sofrem com
a tentação pelo mesmo sexo. Isso seria tão
inadequado e cruel como os outros exemplos que
demos anteriormente. A questão aqui, no entanto, é
chamar a sua atenção para o fato de que, em muitos
casos, a atração pelo mesmo sexo é uma tentação
que dificulta o casamento de algumas pessoas, mas
não o impossibilita. Na verdade, a aliança
matrimonial é um dos lugares privilegiados em que
essa luta pessoal pode ser travada com o auxílio do
cônjuge. A ligação psicológica, emocional, física e,
especialmente, a espiritual que caracteriza o
matrimônio cristão precisa ser forte o suficiente para
auxiliar irmãos que lutam nessa área. Isso porque
todos os outros casamentos entre pessoas do sexo
oposto também precisam lidar com as tentações que
a atração pelo sexo oposto traz consigo. Essas têm
condições de se tornarem igualmente pecaminosas
e inviabilizar casamentos que pareciam subscrever
todos os pontos da teologia da prosperidade afetiva.
Precisamos reformar nossos conceitos e
estereótipos de casamento e celibato de tal forma
que eles se conformem apenas com a Bíblia e não
com a cultura ao nosso redor. Ajudar cristãos
genuínos a pensar na possibilidade de se casarem,
mesmo sofrendo com a tentação pelo mesmo sexo,
pode ser um horizonte de possibilidade que nunca
foi pensado, mas se torna viável. Mais do que isso,
ensinar nossos jovens e adolescentes que não
sentem atração pelo mesmo sexo, mas que podem
envolverem-se e apaixonarem-se por indivíduos que
sofrem. Eles precisam ter as virtudes necessárias
para transformar as expectativas que temos sobre os
casamentos. Em vez de uma aliança que é desejada
simplesmente para me realizar e me fazer
afetivamente próspero, tornar-se um genuíno
processo de amadurecimento e transformação
pessoal à imagem do Deus triúno. Deixar pai e mãe
e se unir a uma mulher ou a um homem são as
condições para nos tornarmos um novo tipo de
pessoa — unidos em um vínculo que encontra
apenas na relação de Cristo com sua noiva um
paradigma semelhante.
1
Conclusão

Provando agora do banquete que será completo


na glória

Existem muitos aspectos que ainda poderíamos tratar aqui.


Acredite, deixei alguns assuntos mais polêmicos para depois. No
entanto, gostaria de terminar esse pequeno livro da forma como
todas as nossas conversas deveriam terminar. Ainda que boa
teologia e filosofia sejam fundamentais para nossa vida enquanto
discípulos de Jesus, existe algo que é o mais profundo diferencial da
fé cristã em nossa experiência temporal: o fato de que nossa
esperança não se limita à nossa experiência temporal. Ainda que
habitantes da Cidade dos Homens, somos mesmo cidadãos da
Nova Jerusalém. Essa perspectiva deve regular toda a nossa
compreensão dos afetos, desejos e pensamentos.
Lidar de forma escatológica com nossas experiências
pessoais significa transformar nossa vida agora à luz de toda a
certeza quanto aos eventos que nos aguardam no futuro.
Especificamente falando sobre sexualidade e identidade, quem nos
lembra de tudo isso é o pastor Sam Allberry:

Na eternidade, seremos mudados para sempre a fim de


sermos como Cristo. Essa é a esperança inabalável do cristão.
Mas e nessa vida? É possível que Deus mude nossos desejos
sexuais antes de alcançarmos a nova criação? Acredito na
possibilidade de mudança; no entanto, a Bíblia jamais promete
a mudança completa da orientação sexual. Não há dúvida de
que Deus pode mudar nossos desejos sexuais, e há
numerosos relatos de que ele o fez. Precisamos nos lembrar
de que, como cristãos, vivemos entre duas realidades.
Recebemos uma nova identidade (Ef 4.24). Entretanto, ainda
não recebemos a plenitude da nossa salvação como povo de
Deus. Por essa razão, Paulo diz que gememos (Rm 8.23) e,
portanto, a desejamos em toda a sua plenitude. Algo como
receber uma colher para experimentarmos uma refeição
deliciosa que está sendo preparada e, de imediato,
percebermos o tamanho da fome e quão maravilhoso será se
sentar à mesa e comer até não poder mais.[53]

Em se tratando dos desafios que envolvem nossa


sexualidade e dos desdobramentos disso em nossa identidade,
nenhuma conclusão poderia ser melhor. A eternidade é invocada
aqui como aquele último aspecto de toda a ordem de nossa
salvação — a glorificação de nossos corpos com Cristo. Por mais
difícil que sejam os desafios que enfrentamos, as dores que
sentimos e os conflitos que vivenciamos, não podemos ter outra
esperança que não esta: as bodas do Cordeiro, a celebração final
do nosso casamento cósmico com Cristo!
Por outro lado, essa esperança última precisa orientar e
transformar nossa vida penúltima, isto é, nossa experiência temporal
no presente. Nesse aspecto, ainda é relevante perguntar se
pessoas com subversões profundas de gênero, ou indivíduos com
atração por pessoas do mesmo sexo, podem experimentar uma vida
transformada desde já. Isso significa a transformação do nosso
desejo? Deixar de sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo e
passar a ser atraído por pessoas do sexo oposto? Junto com
Allberry, acreditamos que é possível. Deus pode fazer isso.
Entretanto, precisamos dizer: não sabemos se ele vai fazer isso com
todos. Uma pessoa legitimamente alcançada por Jesus pode passar
a vida toda lutando com sua atração por pessoas do mesmo sexo.
Por mais doloroso que seja, isso não é uma exclusividade dos
cristãos homoafetivos. Os indivíduos heteroafetivos que são
alcançados por Cristo também têm aspectos do pecado que serão
lutas constantes até o encontro final com Jesus. Assim como o
hétero não se liberta de uma vez por todas de seus conflitos de
ordem sexual quando é convertido à fé bíblica, quem luta contra o
desejo homoafetivo também não o será.
Além disso, veja que Allberry faz uma segunda diferenciação
muito esclarecedora e importante para nossos objetivos. Ele mostra
a diferença abismal que existe entre aquele que sente atração por
pessoas do mesmo sexo, mas não efetiva os seus desejos, e
aqueles que vivem na prática do pecado. No núcleo dessa
diferenciação existe a convicção teológica de que ser tentado não é
pecado! É uma luta, e o próprio Senhor Jesus, que habitou entre
nós, até o fim também teve de lidar com tentações. Nossa
cristologia afirma que Jesus era verdadeiramente Deus e, ao
mesmo tempo, verdadeiramente homem. A doutrina da dupla
natureza de Cristo nos ajuda muitíssimo a lidar com nossas
tentações e lutas sexuais. Jesus era homem igual a todos os que
você conhece: sentia desejos, tinha hormônios, órgão genital, etc.
Não existe nada na revelação bíblica que nos faça duvidar de que
Jesus sentia os mesmos desejos e carências que nós. Assim como
sentia fome, tristeza e alegria, ele também deveria sentir atração e
desejo. A diferença é que Jesus estava livre do pecado, que distorce
e põe a estrutura sexual numa direção rebelde. Ainda assim, ele não
se casou e, portanto, não pôde efetivar de maneira legítima esses
desejos numa relação temporal. No entanto, a solteirice de Jesus
não o fez menos humano do que eu e você. Ele continuava
plenamente humano. Tudo isso precisa nos ajudar a compreender
melhor o que Deus quer para nós, enxergando em Jesus um
exemplo de alguém que, apesar de tentado, nunca pecou.
Precisamos, então, enquadrar melhor nossos problemas para que
não tenhamos um olhar viciado ao pensar em nossas dores e
desafios como coisas difíceis demais de enfrentar. Temos um sumo
sacerdote que conhece a condição humana e tem muito o que nos
dizer e nos ajudar.
É precisamente por tudo isso que a imagem que Alberry usa
de “provar um pouco da refeição que será servida em breve” é muito
significativa. Talvez você já tenha experimentado isso na infância.
Sabe quando estamos famintos à beira do fogão no qual alguém
está cozinhado e, então, essa pessoa nos dá só uma colherada
para experimentar? Quando provamos aquela pequena porção,
imediatamente percebemos o tamanho de nossa fome: “Meu Deus,
que coisa maravilhosa! Você pode me dar mais?”. Geralmente a
pessoa nos diz: “Espere mais um pouco, porque ainda não está na
hora do almoço”.
Não é sem motivo que o Novo Testamento usa a analogia
dos alimentos para comunicar dimensões da vida com Deus. Essa
é, com certeza, uma das melhores formas de entender uma
experiência escatológica do “já e ainda não”. Assim como acontece
à beira do fogão, já provamos da nova vida com Jesus e como isso
afeta nossa identidade e sexualidade. No entanto, “ainda não é hora
do almoço”. Precisamos esperar um pouco mais, até que o Noivo
venha nos buscar e então provemos daquilo que é perfeito!

[1]
Gordon H. Clark, The Trinity (Unicoi, Tennessee: The Trinity
Foundation, 2010), p. 10.
[2]
Alerta de spoiler: em breve pela Monergismo!
[3]
A Escritura é clara a esse respeito, como em Pv 6.16-19: “Seis
coisas o Senhor aborrece, e a sétima a sua alma abomina: “olhos
altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente,
coração que trama projetos iníquos, pés que se apressam a correr
para o mal, testemunha falsa que profere mentiras e o que semeia
contendas entre irmãos”. Uma das primeiras coisas que deveríamos
fazer é proibir sumariamente que tolices sejam ensinadas às nossas
crianças por meio de músicas como “Pecado, pecadinho, pecadão,
isso não!”.
[4]
Pergunta 150: “São todas as transgressões da lei de Deus
igualmente odiosas em si mesmas à vista de Deus?”. R: “Todas as
transgressões da lei de Deus não são igualmente odiosas; mas
alguns pecados em si mesmo, e em razão de diversas
circunstâncias agravantes, são mais odiosos à vista de Deus do que
outros. Ed 9.14; Sl 78.17,32,56; Hb 2.2,3”. Cf. também a pergunta e
resposta 151.
[5]
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
Identity (New York: Routledge, 1990).
[6]
Kathy Keller, Jesus, justiça e papéis de gênero: mulheres no
ministério (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019), p. 8-11.
[7]
Para esse trabalho intelectual de análise e crítica das idolatrias
políticas, recomendo fortemente a obra do cientista político David T.
Koyzis, Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das
ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014). Koyzis
faz parte de uma tradição intelectual chamada reformacional, que
conta com outros autores e publicações importantes para
reformarmos nossa visão de mundo e de vida. Sugiro
entusiasticamente a leitura de Herman Dooyeweerd, J. M. Spier,
Hans Rookmaaker, entre outros. Todos estes publicados pela
Editora Monergismo.
[8]
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em
2018 — e diz não temer críticas. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acesso em: 12 jul.
2019.
[9]
Steve Turner, Engolidos pela cultura pop: Arte, mídia, e consumo:
uma abordagem cristã (Viçosa/MG: Ultimato, 2014), p. 27.
[10]
James K. A. Smith, Você é o que você ama: o poder espiritual do
hábito (São Paulo: Vida Nova, 2016), p. 193.
[11]
Lígia Mesquita, Pabllo Vittar quer mirar público adolescente em
2018 — e diz não temer críticas. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42513721. Acessado em: 12
de jul de 2019.
[12]
Charles Sherlock, A doutrina da humanidade (São Paulo: Cultura
Cristã, 2007), p. 174.
[13]
Cordelia Fine, Testosterona Rex: sexo, ciência e sociedade (São
Paulo: Editora Três Estrelas, 2018), p. 103.
[14]
Para uma leitura mais conservadora dessa análise de dados
genéticos e suas implicações para os debates sobre gênero e
sexualidade, veja Leonard Sax, Por que gênero importa? (Rio de
Janeiro: LVM Editora, 2019).
[15]
Quanto à origem e ao significado do conceito em uma
perspectiva não cristã, recomendo a leitura de Guacira Lopes Louro,
Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer (Belo
Horizonte: Editora Autênica, 2007).
[16]
Michel Foucault, A história da sexualidade: a vontade de saber,
vol 1 (São Paulo, SP: Paz e Terra, 2011), p. 111.
[17]
Paco Vidarte, Ética bicha. (São Paulo: N-1 Edições, 2019).
[18]
Uma das pesquisas teológicas mais significativas no Brasil é do
teólogo e professor André S. Musskopf. Em um artigo recente
escrito para a Revista Cult ele explica a relação entre experiência e
teologia queer: “embora não haja necessariamente uma relação
direta e seja possível tecer diversos questionamentos em termos de
teologia e organização, a emergência de grupos cristãos ou igrejas
com perspectivas diversas/dissidentes com relação a questões de
gênero e diversidade sexual — bastante conhecidos como grupos
e/ou igrejas “inclusivas” — é também evidência de perspectivas não
hegemônicas no campo da religião. Essas iniciativas tanto se
alimentam de movimentos políticos e culturais quanto subsidiam ou
poderiam subsidiar outras discussões e ações no campo da política,
da cultura e da própria religião como a conhecemos. O que todas
elas parecem ter em comum é a utilização da experiência de
dissidência de gênero e sexualidade como ponto de partida para
suas construções no campo da teologia e da prática eclesiástica.
Essa forma de pensar e praticar religião emergiu no contexto de
amplos questionamentos sobre a reflexão teológica e a vida da
igreja nas últimas décadas, particularmente no que se tornou
conhecido como teologias da libertação (incluindo as teologias
feminista, negra, indígena, camponesa)”. Cf. André Musskopf, Por
mais viadagens teológicas (Revista Cult, Junho de 2015), p. 32.
[19]
Tamsin Spargo, Foucault e a Teoria Queer: seguido de Ágape e
êxtase: orientações pós-seculares (Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2017), p. 13.
[20]
Editorial (Revista Cult, 205, 2015), p. 2,
[21]
Decerto há aqui uma referência à obra de uma das precursoras
do moderno movimento feminista, a filósofa francesa Simone de
Beauvoir, que, em seu livro O segundo sexo (1949), popularizou a
ideia de que ninguém nasce mulher, mas torna-se uma.
[22]
Tamsin Spargo, Foucault e a Teoria Queer, p. 33-34.
[23]
David T. Koyzis, Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica
cristã das ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova,
2014), p. 18.
[24]
Para entender esse desafio hermenêutico, sugiro Kevin J.
Vanhoozer, Há um significado nesse texto? (São Paulo: Editora
Vida, 2009).
[25]
J. Butler, “A filósofa que rejeita definições” (Revista Cult, Edição
185, 2013), p. 23.
[26]
Cf. Francis Schaeffer, O Deus que se revela (São Paulo: Cultura
Cristã, 2018), p. 90.
[27]
J. Butler, Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade (Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003), p. 59.
[28]
J. Gresham Machen, Christianity and Culture (Princeton
Theological Review, 11, 1913), p. 6.
[29]
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 98.
[30]
Ibidem, p. 118.
[31]
Ibidem, p. 120.
[32]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 49.
[33]
A. Wolters, Criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), p. 67-68.
[34]
Lisânias Moura, Cristão homoafetivo? Um olhar amoroso à luz da
bíblia (São Paulo: Mundo Cristão, 2017), p. 67.
[35]
O raciocínio de Estrutura e Direção foi enriquecido por outros
dois intelectuais reformados de primeira importância para nossa
tradição, a saber: o professor de filosofia da Universidade Livre de
Amsterdã, Sander Griffioen, e o teólogo norte-americano Richard J.
Mouw. Além de pensar em termos de Estrutura e Direção, eles
também colocaram a ideia de “contexto”. Foge ao espaço e aos
propósitos do presente livro apresentar detalhadamente essa
contribuição dos dois autores, mas eu já reconstruí sua
argumentação em outro lugar. Para quem tiver interesse em
aprofundar-se nessas questões, recomendo a leitura de Pedro Dulci,
Fé cristã e ação política: a relevância pública da espiritualidade
cristã (Viçosa, MG: Ultimato, 2017), p. 101 ss.
[36]
Charles Taylor, Imaginários Sociais Modernos (Lisboa: Edições
Texto & Grafia, 2005).
[37]
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In:
Preston SPRINKLE (org.), Two views on Homosexuality, the Bible
and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 143.
[38]
Agostinho, Confissões (São Paulo: Paulus, 2014), p. 49-50.
[39]
Há uma mudança importante na terminologia empregada: ao
falar de atração por pessoas de mesmo sexo, em vez de
homossexualidade, Allbery enfatiza que a fonte de nossa identidade
é o relacionamento com Cristo, não o tipo de atração que sentimos.
[40]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 14-15.
[41]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 47.
[42]
Wesley Hill, “Christ, Scripture and Spiritual Friendship”. In:
Preston SPRINKLE (org.), Two views on Homosexuality, the Bible
and the Church (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2016), p. 124.
[43]
A. Hoekema, “A Perspectiva Reformada”. In: S. Gundry (org.),
Cinco perspectivas sobre santificação (São Paulo: Editora Vida,
2006), p. 69.
[44]
Ibidem, p. 70.
[45] Hannah Arendt, “Reflexões sobre Little Rock”, Responsabilidade
e julgamento (São Paulo: Companhia das Letras, 2004), p. 261.
[46] Hannah Arendt, “Reflexões sobre Little Rock”, p. 264-65.
[47] Wesley Hill, Christ, Scripture, and Spiritual Friendship. In: Two

Views on Homosexuality, the Bible and the Church (Grand Rapids:


Zondervan Academics, 2016), p. 144.
[48] Tamsin Spargo. Foucault e a Teoria Queer: seguido de Ágape e

êxtase: orientações pós-seculares (Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2017), p. 18-19.
[49] Wesley Hill, Christ, Scripture, and Spiritual Friendship, p. 145-
146
[50] Sam Alberry, Deus é contra os homossexuais? (Brasília, DF:

Monergismo, 2018), p. 71-72


[51] Sam Alberry, Deus é contra os homossexuais?, p. 53
[52] Sam Alberry, Deus é contra os homossexuais?, p. 52.
[53]
Sam Allberry, Deus é contra os homossexuais? A
homossexualidade, a Bíblia e a atração pelo mesmo sexo (Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2018), p. 50-51.

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