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Laura Cristina Eiras Coelho Soares

Renata Ghisleni de Oliveira


Fernanda Hermínia Oliveira Souza
Organizadoras

Psicologia
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Social Jurídica
Resistências no
Sistema de (In)Justiça
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Laura Cristina Eiras Coelho Soares
Renata Ghisleni de Oliveira
Fernanda Hermínia Oliveira Souza
(Organizadoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA:


resistências no sistema de (in)justiça

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

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P974

Psicologia social jurídica: resistências no sistema de (in)justiça / Laura Cristina Eiras


Coelho Soares, Renata Ghisleni de Oliveira, Fernanda Hermínia Oliveira Souza (Organizadoras)
– Curitiba : CRV, 2023.
192 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5590-6
ISBN Físico 978-65-251-5589-0
DOI 10.24824/978652515589.0

1. Psicologia 2. Psicologia jurídica 3. Psicologia social 4. Interseccionalidade 5. Violência


I. Soares, Laura Cristina Eiras Coelho, org. II. Oliveira, Renata Ghisleni de, org. III. Souza,
Fernanda Hermínia Oliveira, org. IV. Título V. Série.

CDU 316.6 CDD 340.73


Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia jurídica – 340.73

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
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Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................ 9
Laura Cristina Eiras Coelho Soares
Renata Ghisleni de Oliveira
Fernanda Hermínia Oliveira Souza

PREFÁCIO...................................................................................................... 13
Lisandra Espíndula Moreira
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O CAMPO PSI-JURÍDICO: uma perspectiva transversalista e fronteiriça .... 19


Maria Cristina G. Vicentin

POLÍTICAS DE CUIDADO E INTERSECCIONALIDADES NO


CAMPO PSI-JURÍDICO ................................................................................ 31
Luciana Arbeli Bernardes

ITINERÁRIOS DE CUIDADO E INTERSECCIONALIDADES NO


CAMPO PSI-JURÍDICO: resistências e criação de possíveis ....................... 45
Gabriela Gramkow
Gabriela Nakabayashi Ivan
Giovanna Arruda Savoy
Julia da Paixão Mota
Renata Marques de Souza

QUANTO MAIS NOVA, MAIS DISPONÍVEL: a importunação sexual em


transportes públicos ........................................................................................ 65
Juliana Maria Duarte Marques
André Luiz Machado das Neves

(DES)CONTINUIDADES POSTAS À PSICOLOGIA NO SISTEMA


PRISIONAL: produzindo saúde e outro(s) direito(s)? .................................... 81
Erick da Silva Vieira
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

CONSTELAÇÕES FAMILIARES NO SISTEMA DE JUSTIÇA:


tratamento adequado dos conflitos? ............................................................... 97
Roberta Dornelas Miranda
Renata Ghisleni de Oliveira
Lílian Perdigão Caixêta Reis
CONVERSAÇÕES JURISDICIONAIS E PSICOSSOCIAIS MEDIADAS
POR TECNOLOGIA: o caso do podcast falando de famílias..........................113
Sander Firmo
Lucas Guimarães dos Santos
Ana Cecília Dolzany Araújo
Elisângela dos Santos Cabral
Munique Therense

PERITAS/OS SEM EXPERTISE E MERCADO DE LAUDOS: sobre a


banalização das práticas psicológicas na interface da justiça ...................... 135
Analicia Martins de Sousa
Fernanda Hermínia Oliveira Souza

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A PSICOLOGIA E O DEPOIMENTO ESPECIAL: normatizações sobre
uma prática controversa ................................................................................ 159
Larissa Ferreira Otoni de Paula
Laura Cristina Eiras Coelho Soares

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 181

SOBRE OS AUTORES ................................................................................ 185


APRESENTAÇÃO
A presente obra é fruto da organização dos encontros do Núcleo de
Pesquisa em Psicologia Jurídica, grupo de pesquisa cadastrado no CNPq. O
NPPJ reúne pesquisadoras(es), docentes e profissionais pertencentes a dife-
rentes estados brasileiros que desenvolvem ações de ensino, pesquisa e prática
profissional, tendo como objetivo abordar questões relacionadas à Psicologia
Jurídica, segundo a vertente que dialoga com a Psicologia Social. O Núcleo
possui produções no campo que denominamos de Psicologia Social Jurídica.
Uma concepção que tem como marca o compromisso social e ético político
da Psicologia, a partir de uma perspectiva não tecnicista que compreende a
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atuação na interface com a Justiça para além da perícia psicológica, conside-


rando aspectos históricos, econômicos, culturais, sociais, políticos e intersec-
cionais como relações étnico-raciais, de gênero, de sexualidade, entre outros
marcadores sociais de diferença.
O NPPJ foi criado em 2015 e, desde então, realiza eventos anuais. Ini-
cialmente, a proposta era que sua oferta ocorresse de forma a oferecer even-
tos itinerantes, a fim de permitir uma capilaridade em âmbito nacional dos
debates e conhecimentos produzidos pelo grupo. Então, no período de 2015 a
2019, os encontros foram realizados em Belo Horizonte (2015, 2016 e 2018),
Florianópolis (2017) e Manaus (2019). Em 2020, a intenção era organizar o
evento na região Nordeste, porém tivemos o advento da pandemia de covid-
19, impossibilitando a reunião presencial dos integrantes. Desta forma, o
caminho que encontramos para não descontinuar os encontros foi a mudança
para o formato online.
A proposta desta escrita partiu da experiência de coordenação de três
eventos no formato online, realizados nos anos de 2020, 2021 e 2022. Os
encontros de 2020 e 2021 foram organizados pela coordenação do NPPJ
em parceria com os integrantes do NPPJ pertencentes ao eixo Nordeste. O
encontro de 2022 buscou dar destaque às produções de membros e convidados
do estado de São Paulo. Cabe pontuar que em 2022, as atividades já haviam
retomado quase em sua totalidade para o presencial, porém nas edições de
2020 e 2021 tivemos como respostas dos inscritos em formulário de avaliação
do evento o pedido de que as próximas edições fossem online em função da
possibilidade de acesso por estudantes e profissionais residentes em diferentes
cidades brasileiras. A diversidade regional dos integrantes do NPPJ reflete
em um alcance amplo do evento e, portanto, conseguimos identificar inscri-
tos de diversas partes do Brasil. O uso de tecnologias, que já encontravam
em expansão, foi catalisado pela necessidade provocada pela pandemia e o
NPPJ encontrou no formato virtual do evento uma possibilidade de expandir
a divulgação e o alcance da produção para outros espaços.
10

Assim, este livro apresenta o registro de contribuições e de reflexões


apresentadas por participantes, mediadores e organizadores dos encontros
de 2020, 2021 e 2022. Essa produção tem como público discentes, docentes
e profissionais interessados no campo da Psicologia Jurídica que busquem
adotar uma postura crítica, política e ética diante das demandas do Direito.
A obra inicia com três capítulos que tensionam o campo psi-jurídico,
denotando a complexidade da construção do trabalho na articulação entre
Psicologia e Direito. O primeiro capítulo intitulado O campo psi-jurídico:
uma perspectiva transversalista e fronteiriça de Maria Cristina G. Vicentin,
a autora percorre sua trajetória profissional a fim de elucidar a perspectiva
transversalista e desdisciplinar que propõe no encontro psi-jurídico, convo-
cando os leitores a assumirem riscos na reflexão crítica e em sua prática: a

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Psicologia no front. O segundo capítulo de Luciana Arbeli Bernardes, deno-
minado Políticas de cuidado e interseccionalidades no campo psi-jurídico,
apresenta reflexões sobre o cuidado no campo psi-jurídico. No texto escrito
em primeira pessoa, uma escolha ético-estética-política, a autora propõe a visi-
bilizar a branquitude que atravessa e constitui os saberes e fazeres no Sistema
de Justiça, lançando mão de certas experiências como psicóloga na Defensoria
Pública paulista, Luciana destaca a necessidade de pensar o cuidado atrelado à
escuta e à perspectiva interseccional. O texto promove análises fundamentais
sobre a racialização dos profissionais que atuam no campo da justiça e dos
direitos, sobre o desafio de sustentar a escuta da diferença e sobre a produção
do sofrimento como condição sociopolítica.
A última escrita dessa parte inicial do livro foi elaborada por Gabriela
Gramkow, Gabriela Nakabayashi Ivan, Giovanna Arruda Savoy, Julia da Pai-
xão Mota e Renata Marques de Souza, cujo título é Itinerários de cuidado e
Interseccionalidades no campo psi-jurídico: resistências e criação de possí-
veis e apresenta desdobramentos de uma pesquisa realizada no contexto da
socioeducação e gênero, visando cartografar os itinerários de cuidado das
trajetórias de vida de três adolescentes privadas de liberdade e usuárias de
um Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil – CAPS IJ. O texto dá
visibilidade para a potência do cuidado que tensiona as práticas menoristas,
manicomiais e das violências de gênero, tão presentes nos sistemas de saúde e
justiça, ressaltando a importância do encontro entre a saúde e a socioeducação
para a garantia dos direitos e de cidadania das adolescentes.
Os capítulos que se seguem abordam violência(s) e convocam a Psi-
cologia para reflexão e atuação nesse debate. Juliana Marques e André Luiz
Neves no capítulo Quanto mais nova, mais disponível: a importunação sexual
em transportes públicos analisam de forma bastante sensível experiências de
importunação sexual sofridas por usuárias de transportes públicos coletivos na
cidade de Manaus. Trazendo um debate necessário para a Psicologia e para o
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 11

Direito sobre a importunação sexual contra a mulher considerando a intersec-


cionalidade, a violência de gênero, o racismo e a transfobia. No capítulo de
autoria de Erick da Silva Vieira e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho intitulado
(Des)continuidades postas à psicologia no sistema prisional: produzindo
saúde e outro(s) direito(s)? utilizaram-se da cartografia para traçar as (im)
possibilidades da Psicologia nesse espaço a partir da análise da previsão legal
da Psicologia em Equipes de Atenção Primária Prisional, no âmbito da Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no
Sistema Prisional (PNAISP), instituída em 2014; e a (temporária) extinção do
Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis
à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei, realizada em 18 de
maio de 2020, por meio de portaria do Ministério da Saúde.
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A última parte do livro reúne produções sobre uso de novas ferramentas


tecnológicas no campo da psicologia jurídica e suscita o debate ético e técnico
sobre a assimilação pelo Judiciário. No capítulo, Constelações familiares no
sistema de justiça: tratamento adequado dos conflitos?, escrito por Roberta
Dornelas Miranda, Renata Ghisleni de Oliveira e Lílian Perdigão Caixêta Reis,
são apontadas diversas problemáticas relacionadas à prática, evidenciando que
as constelações familiares, apesar de estarem ao lado dos métodos autocomposi-
tivos, ferem pressupostos básicos da Política Nacional de tratamento adequado
de conflitos no âmbito do Poder Judiciário. Por fim, são sinalizadas pistas para
a construção de uma política pública que promova a emancipação dos sujeitos
e a transformação da cultura de resolução e manejo de conflitos no Brasil, tais
como o compromisso com o cuidado, a interdisciplinaridade, a atuação em rede
e a participação popular.
No capítulo Conversações jurisdicionais e psicossociais mediadas por
tecnologia: o caso do podcast falando de famílias, Sander Firmo, Lucas dos
Santos, Ana Araújo, Elisângela Cabral e Munique Therense apresentam uma
ferramenta inovadora de prestação de serviço aos jurisdicionados desenvol-
vida no cenário da Pandemia da covid-19, no Estado do Amazonas, o podcast
falando de famílias.
Os autores descrevem de que modo a equipe Psicossocial do CEJUSC,
das Varas de Famílias do Tribunal de Justiça do Amazonas, desenvolveu o
podcast como instrumento viabilizador da promoção da autonomia e da psi-
coeducação ante alterações familiares decorrentes da pandemia que gerou
modificações significativas na comunicação e no exercício da coparentalidade
em famílias com diferentes configurações e regime de guarda.
Em Peritas/os sem expertise e mercado de laudos: sobre a banalização
das práticas psicológicas na interface da justiça, Analícia Martins de Sousa e
Fernanda Hermínia Oliveira Souza propõem um ensaio sobre a perícia psico-
lógica e o suposto mercado que teria se estabelecido em torno da produção de
12

documentos psicológicos. As autoras analisam os aspectos que têm favorecido


a banalização do saber e das práticas psicológicas, a precarização do trabalho
profissional e a judicialização da Psicologia. Destacando a necessária da divul-
gação de pesquisas científicas da Psicologia Social Jurídica, da apropriação dos
debates acerca das práticas psicológicas no âmbito da justiça, da relevância
de capacitação permanente de qualidade, da importância da atualização e a
ampliação do debate sobre as novas demandas e políticas judiciárias, que vêm
implicando não somente o trabalho das psicólogas que atuam no judiciário,
mas também as práticas psicológicas em âmbito privado. Por fim, o livro
encerra-se com o texto A Psicologia e o depoimento especial: normatizações
sobre uma prática controversa, de Larissa Ferreira Otoni de Paula e Laura
Cristina Eiras Coelho Soares que abordam o tema do depoimento especial

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(DE) a partir da análise de documentos que dispõem sobre o DE e sua rela-
ção com a Psicologia (notícias, divulgações científicas, cartilhas e relatórios)
encontrados em sites de tribunais brasileiros, bem como se debruçaram no
estudo de normativos indicados por psicólogas vinculadas às instituições e que
atuam diretamente com o DE. As autoras indicam similaridades e diferenças
na condução do depoimento especial em cada tribunal e sinalizam para a
necessária continuidade da análise crítica sobre tal prática, que foi instituída
a despeito dos intensos debates no campo da Psicologia. Finalizamos essa
apresentação desejando que a presente obra auxilie na formação continuada
no campo da Psicologia Social Jurídica, permitindo a construção ética, técnica
e política dos debates e na atuação profissional.

Laura Cristina Eiras Coelho Soares


Renata Ghisleni de Oliveira
Fernanda Hermínia Oliveira Souza
PREFÁCIO

Psicologia jurídica: encontros e tensões


foi com meus pais que eu descobri a magnitude de um processo judicial,
se você está desesperadamente com raiva de alguém, ou não consegue
sentir mais nada, as duas hipóteses cabendo juntas no mesmo caso con-
tra Madalena, nada mais eficiente que abrir um processo que vai lenta-
mente sugar e arrogar para si as desavenças e traduzi-las numa língua
que quase não é a sua e por isso a sensação de que agora não há mais
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como intervir, agora a briga segue automaticamente, dentro de um meca-


nismo, não somos nós, são os nossos problemas que estão brigando numa
mesa imensa e com plateia, somos personagens, é uma delícia virar só
um personagem, uma história como qualquer outra, depois dessa tem a
audiência das quinze e trinta e das dezesseis e quarenta e cinco e depois
a das dezessete e trinta (CARRARA, 2022).

Quando falamos em Psicologia Jurídica, o que significa a adjetivação


da Psicologia? O que entendemos como jurídico? Um espaço de trabalho
de profissionais da Psicologia? Jurídico seria aquilo que está elencado num
processo? Seria o jurídico “uma língua que quase não é a nossa”? Ou seria ele
um mecanismo que toma para si as desavenças, concentra-se em problemas
e faz com que sujeitos virem personagens?
Utilizo como citação inicial deste texto um trecho do livro “Não fos-
sem as sílabas do sábado”, de Mariana Salomão Carrara (2022) em que a
personagem, interessada em mover um processo por danos morais após a
morte de seu marido, retoma as memórias do processo de divórcio dos pais,
quando tinha catorze anos e acompanhou a audiência. Nas lembranças da
personagem, as figuras que ocupavam a sala de audiência se assemelhavam
a animais, “enfim éramos uma família definitivamente rompida, lavrada por
um processo…agora eu era também uma visita, uma visita regulamentada,
mas ele sorria satisfeitíssimo e calmo, tudo tinha acabado e estava certo, era
isso que era estar bem” (CARRARA, 2022). Será?
Escrevo este texto/prefácio iniciando meu décimo sexto semestre minis-
trando a disciplina de Psicologia Jurídica no curso de Direito da UFMG.
Sendo uma professora com formação em Psicologia, inserida especificamente
na perspectiva da Psicologia Social e sem a formação jurídica, a sala de aula
tem sido um espaço de constantes questionamentos no encontro com dis-
centes do Direito em formação. Pensando no clássico texto de Esther Aran-
tes sobre os mal-estares entre Psicologia e Direito, seria possível elencar os
14

questionamentos da Psicologia em relação ao Direito e vice-versa. Entretanto,


considero relevante aqui, para além dos tensionamentos entre os campos,
que não são poucos, pensar nos questionamentos que partilhamos e que são
possíveis de serem nomeados no encontro entre esses dois campos.
No currículo do curso de Direito da UFMG, esta disciplina é obrigatória
e está na grade do terceiro período. Assim, geralmente essas e esses discentes
estão entrando no segundo ano da graduação. Talvez o próprio momento per-
mita o surgimento de alguns dilemas com a formação, um certo tensionamento
entre as expectativas iniciais e a realidade do percurso.
Assim, penso em algumas cenas desses encontros de sala de aula e de
corredores. Na primeira aula de cada turma e em cada semestre cumprimos o
protocolo da apresentação de todas, todos e todes que estão na sala. Costumo

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pedir que escolham alguns tópicos de apresentação. Num dos semestres, a
sugestão, dentre outras curiosidades, foi que as pessoas dissessem se fazem
ou não terapia. Por um momento, considerei que talvez a pergunta fosse
invasiva, mas como qualquer outra informação, havia a possibilidade de não
responder. Entretanto, no andamento das apresentações, era possível perceber a
tranquilidade com que alguns falavam sobre o processo terapêutico e, de outro
lado, alguns quase pedindo desculpas por não fazer. Essa cena me inquietou.
Que lugar está colocada a prática, nesse caso a prática clínica, da psico-
logia e como ela habitaria a construção desses encontros? Seria a psicologia
o espaço de alívio, salvação e cura? Uma pista aparece em alguns momentos
ao longo do semestre, quando diante de dilemas jurídicos, a psicologia passa
a ser vista como o saber que poderia auxiliar a prática jurídica: houve abuso?
Qual o dano psicológico produzido em certa violência? Existem mentes intrin-
secamente perigosas? Como delimitar se alguém pode responder ou não por
suas ações? Como saber se alguém está mentindo ou contando a verdade?
Assim, esses questionamentos lançados ao campo da Psicologia jurídica
se atualizam a cada semestre. A disciplina de Psicologia jurídica está orga-
nizada em três unidades, sendo a primeira, como um começo de conversa,
uma noção geral da Psicologia. Na segunda unidade, está a articulação entre
a Psicologia e o Direito, levando em consideração a construção da noção de
indivíduo perigoso e na terceira estão alguns temas delicados da Psicologia
Jurídica. Diante de uma Psicologia jurídica comprometida em tensionar a
instrumentalização do nosso fazer (MOREIRA; SOARES, 2019, p. 137), o
caminho na sala de aula tem sido aprofundar no debate a partir de questões
transversais e estruturais, que tensionam ambos campos de saber e de fazer.
Nesse sentido, o trecho do livro de Carrara (2022) pode ser pensado a par-
tir das questões de gênero e do debate sobre noções de família. Assim, como
podemos pensar na lógica bélica e judicializante que nos atravessa socialmente.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 15

Madalena naquele dia falava de acordo e ficou muito claro pra mim que
ela não entendia qual o verdadeiro propósito de um processo. É preciso
que eu tenha o meu advogado e você o seu e então nós botamos os dois
para brigar feito uma rinha de cães, é preciso que eles escrevam atrocida-
des, saiam de cada combate com as gravatas mordidas rasgadas, degola-
dos, enquanto nós vamos nos apaziguando nesse exagero, acendemos um
cigarro cada uma sob uma árvore murcha na porta do fórum, e estamos
resolvidas (CARRARA, 2022).

Quando ela conta sobre o processo de danos morais que moveu contra
uma mulher, ambas envolvidas numa cena trágica, a personagem vai tensionar
as resoluções jurídicas envolvidas nos mecanismos de mediação ou de litígio.
Mas em um dado momento, ambas emocionadas enquanto advogados usavam
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palavras duras, a personagem desiste do processo.


Entender os dilemas que estão colocados nos processos jurídicos é ques-
tão para ambos campos de saber e de fazer. Também nos debates de sala de
aula outras questões sociais se fazem presentes como desigualdades estruturais
que vão produzir dilemas em ambos os campos. Chamo atenção especialmente
para as questões raciais. Falar da construção da noção de indivíduo perigoso,
tema ainda tão presente em alguns debates da psicologia jurídica, como no
caso do exame criminológico, exige que se coloque em questão o racismo
científico presente nos primórdios da criminologia.

As pessoas que te mataram ainda estão soltas. E não sei por quanto tempo
elas continuarão livres. Mas elas nunca saberão nada sobre o que você
tinha antes da pele. Jamais saberão o que você carregava para além de
uma ameaça. Por isso, sigo recontando a tua vida, que também é um pouco
da minha. Investiguei os teus afetos através dos meus. Eu ainda não sei
o que fazer com essa descoberta. Não sei o que fazer com essa verdade
inventada. É inventando que consigo ser honesto. Sei que ninguém quer
morrer da maneira que você morreu. um fuzilamento. Sem chance de
defesa. Você não teve a mesma chance de Dostoiévski, não é mesmo? Não
houve nenhum salvo-conduto. Nada. Nenhum czar para te salvar. Mas sei
que durante a vida você passou por essas tentativas de fuzilamento. A sua
grande obra foi continuar levantando, dia após dia. Apesar de tudo você
continuou desafiando a possibilidade de morrer. No sul do país, um corpo
negro sempre será um corpo em risco (TENÓRIO, 2020).

Nesse trecho, Jeferson Tenório (2020) no livro “O Avesso da Pele” mostra


a reflexão do personagem principal do seu livro ao dialogar com o pai morto
numa abordagem policial. O livro todo se constrói no diálogo do filho com
esse pai, remontando sua história e a tragédia de sua morte. Aqui, o debate do
jurídico se dá no confronto com noção de suspeição e de justiça atravessada
diretamente pela questão racial.
16

Os embates raciais estão cotidianamente presentes nos encontros de sala


de aula. A ocupação diversa da sala de aula conquistada com muita luta do
movimento negro, ainda que tardia por força dos pactos institucionais da bran-
quitude, tem se mostrado uma realidade e produz importantes deslocamentos
e tensões. Em algumas aulas da disciplina, especialmente quando trabalha-
mos o debate da segurança pública, essas questões vêm com força, mas não
apenas nessa aula. Esses pontos se atravessam em vários momentos, pois se
tratam de questões estruturais. Como Psicologia e Direito vão se posicionar
na construção de saberes e práticas em relação ao debate racial?
Percorro essa reflexão para dizer da importância das produções do NPPJ
e da forma como ao longo do tempo de existência desse núcleo e do anda-
mento dos encontros, os temas permanecem se transformando conforme a

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necessidade de reflexões críticas nos diferentes pontos de conexão entre
Psicologia e Direito. Interessa-nos permanecer analisando criticamente o
campo jurídico, atentas e atentos ao modo como as questões estruturais se
apresentam e são atualizadas, sendo nosso compromisso a luta contra as
desigualdades e (in)justiças.

Lisandra Espíndula Moreira


PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 17

REFERÊNCIAS
Arantes, E. M. M. Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem
discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. C. Coimbra, L. Ayres, & M.
L. Nascimento (org.), Pivetes: Encontro entre a psicologia e o judiciário (p.
131-148). Curitiba: Juruá, 2008.

Carrara, Mariana Salomão. Não fossem as sílabas do sábado. São Paulo:


Todavia, 2022.

Moreira, L. E., & Soares, L. C. E. C. . Psicologia Jurídica: Notas sobre um


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Novo Lobo Mau da Psicologia. 2019. Psicologia: Ciência e Profissão,


39(spe2), e225555. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225555

Tenório, Jeferson. O avesso da Pele. São Paulo: Editora Schwarcz, 2020.


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O CAMPO PSI-JURÍDICO: uma
perspectiva transversalista e fronteiriça
Maria Cristina G. Vicentin1

Introdução
Esse texto resulta de uma dupla injunção. A primeira, a provocação feita
pelo Núcleo de Pesquisa em Psicologia Jurídica (NPPJ) no seu VIII Encontro
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Nacional com o tema “Resistências no Sistema de (In)Justiça: O que pode a


Psicologia Social Jurídica?”. A provocação era para pensarmos uma psicologia
social jurídica numa perspectiva orientada pelos direitos humanos, quando,
sabemos, o próprio sistema de justiça é fonte de muitas iniquidades e de muitas
violências. A segunda, minha própria participação nesse campo que atravessou
diferentes momentos históricos da relação entre a Psicologia e o Direito e das
transformações advindas do compromisso mesmo do fazer psi com as lutas
democráticas no Brasil. De fato, já contamos, no Brasil, com uma reflexão
consistente sobre a prática profissional da psicologia junto às instituições do
direito e sobre as mudanças que aí têm ocorrido, principalmente a partir da
década de 1980, quando, após longo período de regime militar, intensifica-se
a discussão sobre a cidadania e os direitos humanos (ALTOÉ, 2001). Como
bem sistematizou Oliveira (2015), com base em Arantes (2004) e Brito (2004),
constituiu-se assim uma perspectiva crítica à chamada Psicologia Jurídica,
problematizando sua hegemônica utilização a favor do controle social, quando
o psicólogo se constitui em agente acrítico de processos de exclusão social.
Tais problematizações e críticas têm se dado em diversas direções: por uma
insatisfação com o seu próprio fazer, restrito às atividades avaliativas (com
questionamentos éticos sobre sigilo e o que significa fazer “perfis” psicoló-
gicos para a utilização de terceiros); em torno da fragilidade epistemológica
do seu próprio campo de conhecimento (levando-o a constantes indagações
sobre o objeto, método e técnicas da psicologia jurídica); em torno da falta de
autonomia profissional (dada a subordinação hierárquica, real ou imaginária,
ao magistrado). Tem havido, por exemplo, uma preocupação, antes pratica-
mente inexistente, com a promoção de saúde mental dos que estão envolvidos
em causas junto à Justiça, como também na criação de condições que visem
a eliminar a opressão e a marginalização dos sujeitos (p. 54-55).

1 A pesquisadora Maria Cristina G. Vicentin contou com o apoio de bolsa produtividade CNPq processo
n.314659/2021-8.
20

Compondo esse grupo de profissionais e pesquisadores na afirmação


de uma outra Psicologia, seguimos as pistas de Michel Foucault (2010) em
sua análise sobre o sistema de direito nas sociedades ocidentais. O sistema
de direito seria o veículo permanente de relações de dominação e de técnicas
de sujeição; ou, dito de outro modo, o discurso e a técnica do direito tiveram
essencialmente como função dissolver o elemento da dominação, para fazer
com que aparecessem duas coisas: os direitos legítimos de soberania e a
obrigação da obediência.
De fato, nas práticas profissionais no sistema de justiça constatamos a
criminalização do modo de vida das pessoas pobres, a legitimação de tec-
nologias coercitivas/normalizadoras, preconceitos e estigmas, que definem
padrões de normalidade e anormalidade, e acionam as redes de subjetivação

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moral, individualizando as questões sociais. Os parâmetros de normalidade
que orientam o sistema de justiça, via de regra, não apenas desconhecem outras
formas de vida como também as desqualificam, produzindo, principalmente
no caso da infância/adolescência, sob a forma da proteção, a própria condição
de vulnerabilidade. (VICENTIN; OLIVEIRA, 2012).
Michel Foucault (2010) sugere que a questão é como “curto-circuitar”
esse problema fazendo com que apareça, no lugar da soberania e da obediên-
cia, o problema da dominação e da sujeição; e como abrir, nas práticas jurídi-
cas, outras experiências de ação que trabalhem na perspectiva da sustentação
do conflito e do dissenso e não de sua pacificação. que recusem as demandas
de caráter instrumental e apostem na experiência radical de (re)invenção da
justiça como bem público e potência de luta.
Daí nossa tomada de posição também em relação ao campo psi-jurídico
como um campo de sustentação de diferenças e dissenso entre o psi e o jurí-
dico e não de assujeitamento de uma lógica a outra (as psicologias jurídicas,
forenses...). Do mesmo modo, pensamos que um encontro interdisciplinar
psi-jurídico não deve ser algo a ser conquistado, já que a operação “em rede”
– psicologia, psiquiatria, serviço social e direito – pretende fixar os indivíduos
em um aparelho de normalização e produção e ligar o indivíduo a um processo
de formação ou correção (FOUCAULT, 1977). O que nos interessa nesse
encontro é exatamente a emergência de modos de fazer menos disciplinares
ou até mesmo desdisciplinares (RODRIGUES, 1998; OLIVEIRA, 2015),
bem como a capacidade de assumir riscos para pensar e atuar. Adotamos uma
perspectiva transversalista (GUATTARI, 1987), isto é, privilegiamos o fazer
comum e não a especialidade; a interferência criativa e as fronteiras e não a
integração; as possíveis conexões, os dissensos e os conflitos que nos enca-
minham na direção de evitar a redução da pluralidade ao unitário e uniforme
(VICENTIN; OLIVEIRA, 2012).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 21

Nesse texto, que toma como objeto de reflexão minha própria trajetória
nas fronteiras psi-jurídicas, busco apresentar algumas inflexões que vivi como
profissional e pesquisadora que possibilitam visibilizar e afirmar essa pers-
pectiva transversalista e uma direção ético-política fronteiriça para o trabalho
sempre em devir nesse campo.
Os que nos formamos e nos engajamos na vida profissional no período
da redemocratização de nosso país – ingressei na universidade em 1977, ano
de intensa mobilização no movimento estudantil, da construção das eleições
diretas para a presidência, da emergência de novos atores políticos e movi-
mentos sociais e das lutas pela democratização do país – experimentamos
uma dupla tarefa: trabalhar pelo desmonte das instituições da violência e da
exclusão e construir saberes e fazeres para uma sociedade cidadã numa pers-
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pectiva ético-política. Engajei-me nessas duas tarefas em dois grandes âmbitos


de atuação, que se desdobraram em experiências acadêmicas, profissionais e
ativistas quanto: aos processos de subjetivação jurídico-política2 de crianças
e adolescentes e das muitas interfaces psi-jurídicas daí derivadas; ao campo
da reforma antimanicomial em saúde mental, com especial atenção para a
relação saúde mental, justiça e direitos humanos.
O campo psi-jurídico, como preferimos nomeá-lo para sinalizar certa
disposição “fronteiriça” ou “transversalista” à Psicologia e ao Direito, foi
um eixo transversal a estes dois âmbitos ao longo da minha trajetória. Com-
preendemos, na esteira da discussão proposta por Foucault que o direito não
é um “universal”; o que há positivamente são práticas jurídicas particulares:
práticas normativas, práticas de coerção, práticas de sanção social. Ou seja,
o direito designa uma multiplicidade de objetos históricos possíveis. Todo
sistema jurídico está imerso na história e as práticas jurídicas tendem cons-
tantemente a modificar e a escapar do tipo de jurisdição do qual dependem
(EWALD, 1993). Como sinaliza Arantes (2004), nas sociedades ocidentais
modernas as fronteiras entre a regra jurídica e a norma psicológica imbricam-
-se, agenciam-se, colonizam-se, e, de outro lado, sustentam tensões e disputas
na área, favorecendo o avanço ora de uma ora de outra posição.
Destaco neste texto alguns momentos dessa trajetória nas interfaces
psi-jurídicas em que colocamos o agir psi na direção de enfatizar a justiça
presente na luta e na resistência dos sujeitos e não de tomar ou se aliançar ao
direito como forma de enquadrar ou codificar as lutas ou as forças instituintes.

2 Subjetivação jurídico-política, conforme a pista de Melo (2021), porque se toma o direito como um campo
privilegiado de análise das relações de poder e as crianças e adolescentes como objetos privilegiados destas
práticas para a análise quanto aos modos de produção de verdade, de relações de poder e de cuidados,
assim como quanto às relações de “sujeição” ou de “subjetivação”, ou seja, de formação de uma relação
de si a si, de condições de problematização de si e do mundo”.
22

O que a violência de estado ensina ao campo psi-jurídico?

É impossível passar pelo sistema Febem3 e por outras tantas instituições


letais, como os manicômios, as prisões ou outros territórios da exclusão,
sem que nos posicionemos ética e politicamente de forma muito intensa. De
certo modo, desde meu primeiro contato com a Febem-SP (ainda quando
estagiária, em 1979) não parei de experimentar uma necessidade de rebelião:
rebelião contra as práticas institucionais de controle e de esmagamento de
toda expressão de dissidência ou de diversidade, rebelião contra os sabe-
res, principalmente os psi, que só faziam patologizar os jovens em conflito
com a lei (e, por extensão, todos os adolescentes). Não parei também de
experimentar uma atenção e uma sensibilidade para os temas da violência

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e da violação de direitos, sejam estas expressas na sua dimensão aberta (a
violência física) ou na sua dimensão “doce” (os crimes da paz, como dizia
Franco Basaglia, 1982).
Estive, de 1985 a 1987, à frente da implantação e coordenação das ati-
vidades técnicas de unidades de internação de adolescentes autores de ato
infracional na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor-SP (Febem-SP).
Nesse período, em pleno processo de democratização, a Febem, assim como
outras instituições “totais”, passava por experiências de desinstitucionalização
das violências, quando trabalhávamos na perspectiva da instituição explodida
(MANNONI, 1986) e da produção de lugares de vida (MANNONI, 1976),
como experiência coletiva (MAKARENKO, 1986). É importante assinalar que
estávamos ainda sob a égide do Código de Menores e da doutrina da situação
irregular, que considerava os “menores” objetos da intervenção jurídico-social
do Estado sob a ótica correcional-repressiva, mas já a caminho da formulação
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) – o qual
introduziu no direito infanto-juvenil brasileiro a doutrina da Proteção Integral
das Nações Unidas, proposta pela Convenção Internacional dos Direitos da
Criança – e de sua utopia ativa de “todos os direitos para todas as crianças”,
perspectivando a criança e o adolescente como sujeitos de direitos.
Estávamos, então, comprometidos com o que chamávamos de “desmeno-
rização”: o processo de desmonte das práticas sociais de objetivação, controle
e captura de crianças, adolescentes e trabalhadores desse campo recortado
socialmente como da “menoridade”. Daí nossa forma de nomear o campo: a
menor-idade, para demarcar que se tratava de um território minoritário (e não

3 Endossamos a nomenclatura Sistema Febem, apesar da mudança para Fundação Casa, para ressaltar
a similaridade de funcionamento presente em grande parte da política de atendimento aos adolescentes
em conflito com a lei em nosso país e as dificuldades de superação do modelo segregador-repressivo que
estiveram na origem da constituição da Fundação do Bem-Estar do Menor e seguem se reproduzindo a
despeito das novas nomenclaturas adotadas.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 23

“menor” no sentido de “desqualificado” ou “assujeitado”) e que demandava


atitudes de compromisso do mundo adulto na construção da utopia ativa do
“criançar o descriançavel” (VICENTIN; GRAMKOW, 2018).
No entanto, a legislação garantista de direitos no campo da infância se
constitui no contexto de extrema desigualdade em nosso país, agudizando a
necessária tomada de posição ético-política de não aceitação tácita da supres-
são ou subalternização dos direitos das crianças em condições especialmente
precárias ou vulneráveis (MARCHI; SARMENTO, 2017). Assim, nossa utopia
ativa de todos os direitos para todas as crianças nos convoca a pensar também
e necessariamente a persistência da violência e do racismo de estado.
Foi por meio do tema do adolescente em conflito com a lei e das ins-
tituições da violência que me conectei de forma mais aguda ao campo dos
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direitos humanos e às fronteiras psi-jurídicas, principalmente por meio da


problematização das trajetórias juvenis que interrogam a ordem social (em
especial os jovens em conflito com a lei) e cujos atos são patologizados e/ou
criminalizados nas clássicas objetivações da “sociopatia” e da periculosidade
como um modo de gestão da conflitualidade.
No Mestrado (VICENTIN, 1992), eu me ocupara da análise crítica de
uma instituição de guarda e controle da juventude dita “infratora”, a Casa de
Custódia e Tratamento de Taubaté, misto de prisão e de hospital-psiquiátrico, e
que conjugava as duas tecnologias de controle social: a penal e a psiquiátrica.
A pesquisa buscou, de um lado, acompanhar os modos e a função que cumpria
a aliança, naquele momento, entre justiça e psiquiatria; de outro, analisar a
constituição de uma figura da psicopatologia psiquiátrica – os psicopatas,
fronteiriços ou insanos morais, mapeando as razões de seu aparecimento
bem como os vínculos entre suas propriedades discursivas e os problemas
institucionais de administração dos desviantes. No Doutorado (VICENTIN,
2005), coloquei-me a tarefa de não apenas discutir os mecanismos de controle,
exclusão e dominação que atravessam os jovens, mas também fazer saírem da
“clandestinidade” os dispositivos através dos quais os corpos juvenis subver-
tem a ordem programada. Era fundamental construir a história das linhas de
fuga, da resistência empreendida por esses jovens perspectivando as “rebeliões
da juventude” em sua dimensão estratégica de criação de outras ordenações
sociais. Em pesquisa sobre os sentidos das rebeliões dos internos da Febem-SP
(1999-2001), pudemos constatar o paradoxo em que estão colocados. De um
lado, como resposta às injunções institucionais, como resposta às contínuas
humilhações e torturas, numa espécie de desobediência devida, não há outro
modo de viver senão rebelando-se, o que reafirma a ‘periculosidade’ dos
jovens. De outro lado, naquelas condições em que a vida é suprimida ou
tomada como objeto, as rebeliões são a afirmação da potência de viver, são
24

desobediências de-vida, revestindo-se de múltiplos sentidos: são insurgência


corporal quando os constrangimentos são insuportáveis; são contrapartida
de adrenalina e desabafo frente ao isolamento e à solidão; são “atitude” de
resistência; são movimento disruptivo, irradiador. Nessa fronteira entre a
insubmissão e a captura institucional, vimos que os jovens constroem um
peculiar modo de subjetivação, uma importante estratégia de combate ao
seu aniquilamento, um poder de inventar a si mesmos numa linha de fuga da
proposta genocida social. Processo de subjetivação que reposiciona também
as fronteiras entre violência e protesto, entre luta por direitos e sublevação,
contribuindo para arguir o imaginário social em torno da juventude.
Entre 2004 e 2005, no projeto de pesquisa “Interfaces psi-jurídicas: o

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caso da psiquiatrização dos jovens em conflito com a lei”, buscamos examinar
criticamente as formas que vinham assumindo a interface direito/psicologia
no campo da execução das medidas socioeducativas. A pesquisa focalizou as
relações entre as práticas jurídicas e as de saúde mental dirigidas ao adoles-
cente em conflito com a lei, interrogando a predominância do argumento e da
prática “psi” na gestão dos conflitos que setores da juventude vêm impondo ao
campo social, como era o caso da proposição de medidas de segurança para os
adolescentes “perigosos”, alterando o disposto no ECA. A pesquisa trabalhou
também em torno das consequências dessa “psiquiatrização”: de encobrir ou
desconsiderar as múltiplas forças em jogo, impedindo a leitura complexa dos
processos de exclusão e vulnerabilização e de produzir o jovem “intratável”,
que é colocado “fora” do laço social. Por meio da análise de itinerários insti-
tucionais de adolescentes, buscamos mostrar a produção do “intratável” e do
“perigo” como um efeito institucional de gestão dos resíduos institucionais
(LEONARDIS, 1998); estes que são produzidos pelas respostas seletivas,
codificadas e fragmentárias dos serviços em que as demandas de controle
social se somam às vulnerabilizações, numa espiral de cronificação. Também
buscamos problematizar a ideia de um estado naturalizado de enfermidade ou
de um atributo intrínseco de um sujeito em si mesmo. É pela psiquiatrização (e
tendo como base a imprevisibilidade, incompreensibilidade e intratabilidade
de certos comportamentos juvenis) que vemos prevalecer os argumentos da
proteção como legitimação de formas de coerção e de restrição arbitrária de
liberdade dos adolescentes (VICENTIN, 2006).
Nessa perspectiva, traçamos uma pauta ético-política para os profissio-
nais psi que inclui: a) a problematização do campo psi quando este opera
como fator de criminalização ou de legitimidade para as tecnologias puniti-
vas; b) a necessária construção de conceituações e práticas quanto à subjeti-
vidade/sociabilidade juvenil que pensem o jovem no paradigma do conflito
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 25

e não no da patologia; c) a implementação de táticas orientadas estrategi-


camente à realização dos Direitos Humanos ou à redução de suas violações
(VICENTIN; OLIVEIRA, 2012).
A produção contínua do inimigo a ser eliminado, na forma preferen-
cial do jovem preto, periférico, que transforma as periferias em campos de
extermínio, se apoia na construção e propagação dos discursos legitimadores
da dor e da morte e na construção da indiferença social, implicando a todos
nós. Por isso, é necessário politizar as violências. Por isso, é necessário,
sempre e em primeiro lugar, utilizar nossos saberes e práticas para reduzir a
vulnerabilidade dos adolescentes ao sistema de justiça e aos mecanismos de
segurança como um todo, aumentando a margem de riscos e as responsabili-
dades das instituições. Por isto, é necessário trabalhar para a ampliação dos
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componentes solidários da vida em comum, com base numa concepção de


“segurança” que signifique estar seguro em relação ao desfrute dos direitos
humanos fundamentais (ANITUA, 2005).
As práticas de violência bem como a impunidade são regras para os cri-
mes praticados pelos agentes do Estado no Brasil e não produzem desastres
apenas privados, mas também catástrofes sociais, políticas e jurídicas, autori-
zando a existência de territórios esvaziados de direitos, legitimando políticas
genocidas de controle social, naturalizando formas de tratamento degradantes.
As diversas expressões de sofrimento (nas crianças e adolescentes e suas
famílias) não se dão apenas quanto ao impacto das mortes (ou mortificação)
de jovens por agentes de Estado, mas pela experiência de viver nos territórios
periféricos e de viver existências não reconhecidas ou proscritas. Tais terri-
tórios configuram espaços de distribuição calculada da morte e da punição
dirigida às populações consideradas “não cidadãs” como forma política de
controle territorial, forjando outras dimensões da violência estatal.
O Brasil está assentado numa cultura negacionista dos efeitos mortíferos
da necropolítica (MBEMBE, 2018), instalada em todo o seu tecido social. O
debate crescente sobre o racismo estrutural e sua relação com a violência de
Estado tem finalmente adentrado com força a universidade. As práticas de
criminalização e patologização que pesquisamos, com foco nos adolescentes e
jovens, que produzem a negação ao direito à vida e o dilaceramento dos laços
sociais, são práticas necropolíticas, isto é, distribuídas de forma racializada e
desigual. Nesse processo de habituação à morte do outro (MBEMBE, 2018),
a necropolítica e sua relação com o processo histórico da escravidão no Brasil
produz lesões e marcas profundas de segregação, revigorando o trauma social
e impedindo o fazer comunidade. Por isso, a luta contemporânea pelos direitos
de crianças e adolescentes e o campo psi-jurídico exige o combate à máquina
necropolítica que atravessa o Estado e uma ruptura com a herança escravista.
26

Considerações finais: saberes fronteiriços

Posso dizer que minha primeira e mais aguda experiência formativa


se deu no encontro com os internos da Casa de Custódia e Tratamento, o
hospital prisão, em 1979: pelo gesto dos que “não se deixavam aprisionar”,
pela sua recusa ao silêncio, ou pela adoção de um silêncio estratégico, pelas
inúmeras insurreições invisíveis ou espetaculares, pelas suas possibilidades
de subjetivação em meio a um bombardeio de codificações e mandatos de
sujeição. Eles, chamados “fronteiriços”, me ensinaram algo sobre uma dis-
posição fronteiriça que compõe hoje o que entendo ser parte de um saber psi
interessado pelos direitos humanos:

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• grande interesse pelas grupalidades e coletivos e pelos processos de
produção de autonomia, autoanálise e autogestão que disparam a
potência de transformação e criação;
• uma indagação quanto aos modos “dissidentes” ou minoritários
de subjetivação;
• permanente análise de nossa implicação, isto é, de nossas referên-
cias institucionais e dos diferentes lugares que ocupamos em nossas
práticas, inclusive do nosso lugar de enunciação.

Encontramos a disposição fronteiriça também na perspectiva do Pensa-


mento da Fronteira (GROSFOGUEL, 2016) como uma redefinição/subsunção
da cidadania, da democracia e dos direitos humanos para lá das definições
impostas pela modernidade eurocêntrica, a partir das cosmologias e epistemo-
logias do subalterno. Concordando com Guattari (1987), tratamos as teorias
como “instrumento de combate” e de inter-(entre)-venção. Posicionamos
assim a Psicologia como uma Psicologia no front, assumindo a polifonia desse
termo: espaço de batalha, espaço de invenção de fronteira, espaço difuso,
não totalmente delimitado. De fato, como já nos dizia Guattari (1987), todos
aqueles cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro estão
numa encruzilhada política fundamental. As encruzilhadas são lugares potentes
para a produção de desvios e invenções.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 27

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POLÍTICAS DE CUIDADO E
INTERSECCIONALIDADES
NO CAMPO PSI-JURÍDICO
Luciana Arbeli Bernardes

Desejamos profundamente que o mundo como nos foi


dado acabe. E que ele acabe discretamente, no nível das
partículas, na intimidade catastrófica deste mundo destituído
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de mundo, este mundo que até a própria terra rejeita.

(Jota Mombaça, 2021, p. 100)

Abordar o cuidado no campo psi-jurídico implica, primeiramente, em um


esforço por definir o que, a princípio, pode parecer óbvio. O que é o cuidado?
E em que posição estamos quando assumimos essa função na vida de alguém?
Penso que a palavra cuidado, em terras coloniais, demanda também cui-
dados, sobretudo quando as supostas ações que lhe dizem respeito incidem em
espaços institucionais. E ainda mais, quando as pensamos a partir da interface
com o Direito, esse campo de saber-fazer privilegiado para capturas e para o
controle bio e necropolítico da população.
Cuidar, da perspectiva aqui adotada, não alude a uma relação marcada
por assimetrias onde, de um lado, há uma existência em falta e do outro, uma
existência plena. Não pressupõe relações de autoridade e sujeição. E, princi-
palmente, envolve uma genuína disposição para a escuta, que deduz, por sua
vez, que assumamos uma posição de não saber.
Quem está disposto a escutar, precisa estar disposto a admitir o seu desco-
nhecimento e a sua pequenez ante o mistério, a imensidão e a diferença que é o
outro; precisa estar disposto a calar, a suportar o silêncio e a resistir ao impulso
de preencher os vazios da comunicação com sentidos próprios, com tudo o
que já é sabido, repetido, prognosticado, colonizado. Escutar implica em se
deixar habitar por quem nos diz, se deixar habitar pelo imponderável das ver-
dades que não são necessariamente as nossas. Implica, fundamentalmente, em
descontrole: onde há controle não há encontro (DUNKER, THEBAS, 2019).
Para tanto, é preciso renunciar à pressa desse tempo histórico, coloni-
zadora de nossos corpos, pois é justamente na passagem do tempo que as
singularidades se apresentam e as transformações são possíveis. É preciso
ser paciente para cuidar.
32

A esfera manicomial nas operações do cuidado se institui independentemente


da estruturação asilar do modelo (NADER, 2019). Trata-se de uma lógica de
aprisionamento e de segregação mediada por formulações discursivas totali-
zantes – discursos da verdade – que silenciam a pluralidade da vida. Assim
como o sexismo e o racismo são estruturais, o manicômio, como modo de
funcionamento social, também apresenta uma dimensão estrutural. Processos
radicalmente democráticos só podem ser sustentados quando percebemos de
que modo e com que força tal dimensão habita nossos pensamentos e práticas.
Isso é condição para a efetiva escuta do outro, a experimentação da alteridade
e o compartilhar das decisões que dizem respeito à oferta de cuidados.
Assim, adoto aqui a perspectiva de que a escuta é pressuposto basilar
do cuidado. E de que cuidar não tem a ver com poder. Só que o poder, em

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contrapartida, se relaciona intimamente com o que chamamos sistema de
justiça. E então, que escuta é possível dentro desse sistema? Somos capazes
de, verdadeiramente, escutar?
A cena se complexifica quando nos atentamos à perspectiva interseccio-
nal. A interseccionalidade vai justamente nos colocar diante das diferenças,
dos sistemas hierárquicos que decretam as valências do humano no mundo.
A interseccionalidade é uma ferramenta crítica, analítica e, principalmente,
prática que busca entender as desigualdades sociais a partir de uma trama intri-
cada que envolve as categorias de raça, gênero, orientação sexual, capacidade,
etnia, faixa etária, dentre outras. É a partir dessas categorias que nos definimos e
que somos definidos socialmente. A interseccionalidade é um modo de entender,
explicar e atuar sobre a complexidade do mundo, das pessoas e das relações em
sociedades marcadas pela diversidade (COLLINS, BILGE, 2016).
Enquanto conceito organizado, a interseccionalidade advém justamente do
campo jurídico, sendo sistematizada como operador conceitual pela advogada
Kimberly Crenshaw. Buscando implodir a ideia de mulher como categoria uni-
versal, Crenshaw, mulher negra, trabalhou mais intensamente na dinâmica da
intersecção gênero e raça, denunciando o reducionismo que essa noção carrega
e enfatizando as especificidades que determinam as experiências concretas das
mulheres, no plural, que são geradoras de oportunidades e interdições.
Assim, facilmente compreendemos que a vida de uma mulher negra e
pobre é muito diferente da vida de uma mulher branca de classe média ou
alta. É através da lente interseccional que se torna possível compreender, em
termos históricos, culturais, sociais, políticos, as dinâmicas que permitiram
que uma criança negra despencasse do nono andar de um edifício luxuoso em
Recife enquanto sua mãe, doméstica no mesmo edifício, levava para passear os
cachorros da patroa branca que, por sua vez, deveria estar cuidando da criança.4

4 Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-se-fosse-o-inverso/. Acesso em: 3 mar. 2023.


PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 33

O uso proposital da primeira pessoa neste texto tem o intuito de desfazer


a coreografia da branquitude, reverter a sua lógica de preservação. O Oci-
dente resiste em enunciar o corpo como parte do processo de conhecimento.
Descolonizar é, portanto, dar visibilidade ao corpo. Corpos marcados são
justamente aqueles tornados objetos, a marcação cria o outro. A colonização
empenhou-se em marcar, distanciar, coisificar e desumanizar, criando um
lastro para se pautar livremente o corpo negro, enquanto o corpo branco
conserva-se imperturbável, oculto. A branquitude, enquanto expressão da
condição humana, é essa estrutura brutal contra a qual poucos se insurgem.
Por essas razões, me descrevo e apareço: sou uma mulher cis, branca,
que atua como psicóloga na Defensoria Pública de São Paulo desde 2010.
Para deixar evidente o lugar a partir do qual eu vou me expressar, o lugar a
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partir do qual eu cuido escutando, e o lugar de quem eu busco escutar e cuidar,


explico: a Defensoria Pública é uma instituição, prevista pela Constituição
de 1988, implantada em São Paulo no ano de 2006, que presta atendimento
jurídico, gratuito e integral à pessoa pobre.
Segundo pesquisa do IBGE divulgada em 2022, o rendimento médio
mensal das pessoas brancas é praticamente o dobro do rendimento dos negros
e essa distância se amplificou em 2021 no Brasil. A comparação é entre os
anos de 2020 e 2021, e os dados são da segunda edição do estudo Desigual-
dades por Cor ou Raça.5
Logo, trago fortes indícios, desde a pele que habito, de que não vou
precisar ser atendida pela instituição onde atuo. E isso não é exatamente
uma coincidência.
Também não é uma coincidência a realidade da unidade onde me encon-
tro lotada, onde, de um lado, uma equipe majoritariamente branca, formada por
defensores públicos, psicóloga, assistente social e oficiais de administração,
sejam profissionais concursados (com estabilidade, progressões, promoções e
outras garantias trabalhistas), e de outro, trabalhadores da segurança (equipe
composta em sua maioria por homens negros) e trabalhadoras da limpeza
(todas mulheres negras), ocupam cargos terceirizados, vivendo sob uma per-
manente insegurança em seus direitos como trabalhadores.
A terceirização tem cor, classe social, território. A pobreza tem cor. Pro-
blematizar e desnaturalizar essa desigualdade na estrutura institucional é já
fazer uso da lente interseccional. Interseccionalizar é conseguir perceber essa
discrepância, essa iniquidade. É dar a essa realidade, tal qual está posta, um
sentido histórico e político.

5 Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101972.


Acesso em: 25 mar. 2023.
34

De acordo com Silvio Almeida (2018), o racismo não se define em ter-


mos de patologia social (concepção individualista) nem tampouco como des-
compasso institucional (concepção institucionalista). O autor considera que
processos individuais e institucionais são decorrentes de uma sociedade que
faz do racismo não um erro ou uma exceção, mas a sua regra. É da ordem da
normalidade, sendo a marca que baliza as relações em suas dimensões política,
econômica e subjetiva (concepção estrutural).
O Brasil é um país colonial. Sua história revela que o sequestro, a explo-
ração, a expropriação e o extermínio das populações negra e indígena foram as
sistemáticas adotadas para sua fundação. Tecnologias, ancoradas na insígnia
racial, empregadas para o avanço de seu desenvolvimento, ou daquilo que
foi compreendido enquanto tal. Isso, por um lado, produziu insegurança e

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miserabilidade para esses povos e, por outro, incontestes vantagens sociais
para pessoas brancas. Esse encadeamento desastroso de práticas institui a
profunda desigualdade social que ainda caracteriza o país. Desigualdade que
a Defensoria Pública pretende combater ou minimizar; a mesma que faz
com que eu me torne menos propensa a precisar ser atendida pela instituição
Defensoria. Ser branca é, assim, ser herdeira de uma história de privilégios.
Minha opção por enfatizar as relações raciais em um trabalho que discute
a escuta e o cuidado operados no âmbito da Defensoria Pública de São Paulo se
justifica pela relação constitutiva entre raça e classe, um elo indiscutível (embora
ainda haja quem insista em discuti-lo). E porque a temática das relações raciais
permanece relegada, mantida em um lugar de pouca problematização e confronta-
ção no campo institucional, o que favorece a naturalização da desigualdade racial.

O racismo institucional, tal como o definem Silva et al. (2009), não se


expressa em atos manifestos, explícitos ou declarados de discriminação
(como poderiam ser as manifestações individuais e conscientes que mar-
cam o racismo e a discriminação racial, tal qual reconhecidas e punidas
pela Constituição brasileira). Ao contrário, atua de forma difusa no fun-
cionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma
diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e oportunidades aos
diferentes segmentos da população do ponto de vista racial. Ele extrapola
as relações interpessoais e instaura-se no cotidiano institucional, inclusive
na implementação efetiva de políticas públicas, gerando, de forma ampla,
desigualdades e iniquidades (LÓPEZ, 2012, p. 127).

Imprescindível também assinalar que meu interesse em sublinhar o tema


das relações raciais não provém de uma epifania, mas é fruto de um intenso,
obstinado e incontornável trabalho intelectual de pessoas negras e indígenas,
tanto através da luta política quanto por suas inserções no campo da produção
de conhecimentos. Não se trata, portanto, de uma feitura individual, mas de
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 35

uma pungente construção coletiva. Meu processo de racialização é efeito


desse contato, consequência direta dessa afetação.
É isso o que tem me movido a pensar sobre as condições do atendimento
que prestamos enquanto equipe. Se entendo cuidado como algo relacionado
à escuta e escuta como algo relacionado à fala, outra importante questão se
apresenta: quem está autorizado a falar, tendo a garantia de ser escutado?
Grada Kilomba (2019) discorre sobre a máscara de silenciamento, um
artefato de metal empregado para evitar que pessoas escravizadas comessem
cana de açúcar ou cacau enquanto eram exploradas através do trabalho nas
plantações. Plantation foi um sistema de exploração colonial, instalado prin-
cipalmente no interior das colônias europeias nas Américas.
Muito além de impedir a ingestão da cana ou do cacau, a máscara era um
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símbolo do regime de silenciamento e do exercício do controle sobre os escravi-


zados; símbolo da tirania colonial. Refletindo sobre as razões e os efeitos desse
dispositivo de cala, a autora indaga: “O que poderia o sujeito negro dizer se não
tivesse sua boca tapada? E o que o sujeito branco teria de ouvir?” (ibidem, p. 41).
Este é um questionamento que se tornou recorrente em meu cotidiano
profissional. Fico buscando saber onde, na estrutura institucional, as pessoas
que atendemos são submetidas ainda hoje à violência simbólica dessa máscara.
Onde o seu uso se remodela e atualiza.
Fico tentando escutar o que cada mulher em situação de violência domés-
tica ou em processos de destituição do poder familiar tem, nas entrelinhas, a
me dizer. É o que tento escutar a cada atendimento que presto a pessoas em
centros de acolhida ou em situação de rua, de miséria, de uso prejudicial de
drogas. A cada corpo que sofre na minha frente de um sofrimento que não
deriva exatamente de uma cena familiar, mas de uma condição sociopolítica.
Um corpo que, na maioria dos casos, não se parece com o meu, que padece
de uma condição sociopolítica que tampouco é a minha – e que não é a con-
dição de quase ninguém que o atende nas políticas públicas, especialmente
as ligadas ao dito sistema de justiça.
Em uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constatou-se
que apenas 12,8% (1.534) dos magistrados são negros no país, contra 85,9%
(10.256) de brancos. O levantamento sinaliza que, se o cenário continuar como
está, a igualdade racial só será atingida entre 2056 e 2059. Os dados foram
levantados nos tribunais no início de 2020, mas o estudo só foi concluído
e divulgado em setembro de 2021.6 Ou seja, neste país, quem julga, quem
decide, quem define as histórias, as vidas, os destinos, são as pessoas brancas.
Pessoas brancas atendem, pessoas negras são atendidas.

6 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judicia-


rio-150921.pdf. Acesso em: 5 abr. 2023.
36

Retomemos a pergunta que orienta esta reflexão: que escuta é possível


dentro dessas instituições? E dentro daquilo que nos concerne – nós, essa
maioria branca e não formalmente constatada7, atendendo um público negro
-, que marcas compõem esse encontro? De que posição nós partimos para
exercer essa escuta? Em que pontos ela nos interpela?
Ana Gebrim (2021) aborda as tensões presentes em sua atuação como
psicóloga clínica junto a pessoas migrantes. Analisa as marcas produzidas no
encontro entre ela, mulher branca, e corpos outros, levantando as seguintes
questões: de que modo um analista branco escuta um paciente negro? Como
sustentar a escuta da diferença?
Suas conclusões vão anunciando que, ao mesmo tempo em que há dife-
renças evidentes nas posições de existência, é preciso retomar os pontos de

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aproximação, o lugar em que as histórias se cruzam, já que uma posição está,
lamentável e imperiosamente, referida à outra.
A autora elabora o conceito de transtraumático como sendo essa conexão
necessária: a passação entre dois, o cruzamento, a encruzilhada. O trauma
de um que interpela as dimensões traumáticas do outro. O espaço fronteiriço
na História, que faz com que as histórias se cruzem, precisa ser evidenciado,
tocado. É o encontro da Grande História com as pequenas histórias. Ambos,
paciente e analista, estão inscritos no mesmo tempo histórico, ainda que posi-
cionados de formas radicalmente diferentes na trama social. O inconsciente
colonial seria uma espécie de rastro de uma vida psíquica da História, que
produz marcas psíquicas transgeracionais. Logo, a escuta da guerra dos outros
nos diz respeito porque interpela as nossas próprias guerras.
Podendo essa herança ser identificada, segundo Gebrim, a diferença racial
encontrará percursos para ser tratada em palavras. Podemos, desse modo, nos
responsabilizar pelo quinhão que nos cabe enquanto corpo branco favorecido,
enquanto corpo branco que perpetra e perpetua a violência para manter suas
prerrogativas. Quando silenciado, o racismo pode ser presentificado na relação
e a pessoa branca, poupada de suas implicações. É como se ela simplesmente
não tivesse qualquer pertença racial.
Isso define a branquitude, que é uma construção ideológica forjada no
século XIX que localiza o sujeito branco em uma posição de privilégio a
partir de uma ideia de superioridade moral, estética, intelectual, civilizatória.
A branquitude, segundo Lia Vainer Schucman (2014), é um lugar de posse
simbólica produtor de subjetividade e, consequentemente, de sofrimento.
Uma lente utilizada para perscrutar, marcar, nomear e limitar os outros, mas

7 A coleta do quesito raça-cor, de modo geral, não é realizada no âmbito das instituições do sistema de justiça
e na Defensoria Pública de São Paulo isso não é diferente – o que, por si só, já é um dado, uma expressão
da branquitude.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 37

que não enxerga a si própria. Paralelamente, corpos não brancos são, através
do racismo, os depositários de todas as contradições sociais.
A marcação racial para negros e indígenas precede os sujeitos singulares
que as portam. Primeiro são associados ao seu grupo racial, carregado de
perspectivas negativas e estereotipadas, para só depois serem vistos como
sujeitos. São eles, portanto, os representantes da ideia de raça. A não mar-
cação da identidade branca é justamente o que confere a ela o sentido e o
poder de se constituir como referência da humanidade, ponto a partir do qual
todos os demais diferem.
Considerando o que Ana Gebrim traz como contribuição conceitual,
penso que há enlaces muito factíveis entre a sua localização na relação com
quem atende no espaço da clínica e a minha localização, ou a de psicólogos
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inseridos no campo sociojurídico. O que ela nos traz é, antes de tudo, um


alerta: precisamos nos incumbir daquilo que é nosso dentro do privilégio
branco para que possamos, de fato, escutar tudo o que nossos antepassados
escravocratas produziram de marcação, exclusão, violência e extermínio. Para
que possamos ter a chance de cuidar dos desdobramentos práticos do que foi
sistematicamente arquitetado como produção de morte e nos esquivarmos
do risco de uma atualização da barbárie em nossas práticas profissionais. É
encarando o processo de racialização do corpo branco, ou seja, inscrevendo
o corpo branco em uma História de guerra, que será possível sustentar, nas
palavras da autora, uma escuta com efeito de fiabilidade e reconhecimento.
Precisamos, com responsabilidade e urgência, olhar para o nosso processo
de subjetivação. É através dele que pessoas brancas se autorizam a desuma-
nizar, a tomar o outro como um corpo que não carrega o mesmo estatuto de
reconhecimento. E nesse processo, é o próprio branco quem se desumaniza,
quem se barbariza, quem se deforma. É necessário o atravessamento desse
processo narcísico para observarmos com crítica e compromisso ético esse
modo a partir do qual, tristemente, nos subjetivamos.

a escravidão seria um fenômeno que diz respeito somente ao negro, auto-


maticamente, resulta no esquecimento do colonizador, do escravizador,
ou mais concretamente, do branco. Além disso, naturaliza o negro como
escravo, ou descendente de escravo, diferente de considerá-lo um humano
que em determinado momento histórico foi escravizado. [...] A lógica de
raciocínio que naturaliza o negro como escravo, ao mesmo tempo, leva de
forma sutil no decorrer do tempo o esquecimento do opressor. O esqueci-
mento é o primeiro passo, o segundo passo é a invisibilização do branco
no papel de escravizador. Por isso, a imediata associação de escravidão à
deformidade do negro, esquecendo-se dos outros “prováveis” deformados
como o branco e o indígena (CARDOSO, 2014, p. 37).
38

O pacto narcísico da branquitude, conceito formulado por Maria Apare-


cida Silva Bento, é um pacto estabelecido entre iguais para o fortalecimento
e a manutenção de imunidades, e a legitimação de sua supremacia econô-
mica, política e social. Ele impõe um rebaixamento valorativo a todos os
grupos raciais não brancos, elegendo o branco como referência de beleza,
competência, intelectualidade, moralidade e civilidade. Seu maior objetivo
é a ocultação do branco como herdeiro da escravidão e sua salvaguarda da
responsabilização pela herança indébita.

Na verdade, o legado da escravidão para o branco é um assunto que o


país não quer discutir, pois os brancos saíram da escravidão com uma
herança simbólica e concreta extremamente positiva, fruto da apropriação

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do trabalho de quatro séculos de outro grupo. Há benefícios concretos e
simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na his-
tória do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não
compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses
econômicos em jogo (BENTO, 2014, p. 27).

Pessoas brancas vivem no Brasil em seu autocentramento, acreditando


em enredos envolvendo mérito pessoal, partindo da presunção caricata de que
as vidas dos brasileiros são todas iguais e de que, para superar adversidades,
basta se esforçar. Esse é o conforto ontológico da branquitude. E são esses
mesmos brancos, com essa mesma alienação, que criam teorias, normas, leis,
protocolos, políticas públicas. Como se fôssemos todos iguais, como se par-
tíssemos todos da mesma experiência e de uma mesma posição na História.
Na Defensoria Pública de São Paulo, ainda lutamos pela obrigatoriedade
do preenchimento do quesito raça-cor nos sistemas internos de registro. A
não demarcação da raça na instituição continua a nos desobrigar de pensar
a dimensão da racialidade, o que favorece o não tensionamento da relação
entre profissionais e pessoas atendidas. O descompromisso com a coleta nos
poupa de nossa própria inserção na cartografia racial das desigualdades, pois
não nos interpela dentro dessa zona de conforto de orbitarmos, nós brancos, o
humano universal, uma abstração que ainda orienta modos de olhar, escutar,
avaliar e escrever sobre o outro. É justamente porque permanecemos atados a
uma história única, como bem diz Chimamanda Adichie (2019), a um enredo
branco europeu, que colocamos em perigo todas as vidas que atendemos.

A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não


é que sejam mentira, mas que são incompletos. [...] É impossível falar
sobre a história única sem falar sobre poder. O poder é a habilidade não
apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua
história definitiva (p. 12-14).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 39

Não é precisamente isso o que fazemos quando somos instados a escutar


e narrar a experiência dos outros que atendemos? Não é a ênfase na história
única dos casais e das famílias, da sexualidade, da infância, das mulheres, da
pobreza, da criminalidade, que baliza nossa escuta e nossa escrita? Não é o
foco na história única que embasa “tecnicamente” decisões judiciais tirânicas,
machistas, racistas e eivadas de preconceitos?

O patriarcado adora falar e escrever, raramente escuta: é um poder que


cria e dissemina as histórias únicas, as mesmas que nos fazem desimaginar
outras vidas e esperanças. Nos espaços legitimados de aparição de fala,
como nos altares das igrejas ou nos assentos da política, há uma mesma
paisagem de corpos – homens, embranquecidos na pele e nos valores,
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encantados com o mandonismo. Há uma urgência em destronar os lugares


de fala estabelecidos (DINIZ; GEBARA, 2022, p. 246).

Jurema Werneck refere que o racismo institucional serve à manutenção


das exclusões por parte de quem justamente deveria combatê-las. Para ela,
quem teria o dever de interromper a marcha da morte, não o está fazendo, ou
está fazendo muito mal.8
Sem que compreendamos que, ao olhar o outro, estamos buscando nele
traços nossos, traços brancos, e que isso, em uma sociedade racista, é impos-
sível, já que para nos mantermos onde estamos na escala dos privilégios,
temos que tirar algo desse outro. Sem que nos percebamos como herdeiros da
história brutal deste país, onde descendentes de escravizados e descendentes
de escravocratas trazem diferentes tipos de herança, estaremos definitivamente
açodando a marcha da morte.
Escutamos uma mulher negra, pobre, desejante de desacolher os filhos
institucionalizados. Ela relata que não tem emprego formal no momento, sua
fonte de renda provém de programas socioassistenciais e mora em área de risco
em um barraco com três cômodos. Enquanto o foco da nossa preocupação,
como profissionais da psicologia, estiver na dúvida sobre se ela leva homens
para casa (outras formas de vivência e expressão da sexualidade não costumam
ser pensadas), em que momento ela tem relações sexuais sem ser flagrada pelos
filhos em um lugar tão pequeno, nós estaremos acelerando a marcha da morte.
Enquanto estivermos firmes nessa disposição perversa de ignorar que
essa mulher sozinha, desempregada, vive em um espaço exíguo, que alaga,
sem rede elétrica, sem saneamento básico ou uma rede de serviços próxima
justamente para que outras pessoas possam gozar de uma vida mansa, nós
estaremos precipitando a marcha da morte.

8 Jornadas Antirracistas, Mesa 2: Racismo estrutural e institucional. Disponível em https://www.youtube.com/


watch?v=kSWl7CPtwbk. Acesso em: 23 nov. 2022.
40

Enquanto não olharmos de perto para essas hipotéticas pessoas de


vida mansa e não nos reconhecermos nelas, estaremos acelerando a mar-
cha da morte.
Sem identificarmos e nomearmos essas mulheres em processos de des-
tituição do poder familiar como mulheres negras, não há como operarmos o
cuidado porque toda a possibilidade de escuta e apreensão da realidade está,
de saída, indisponível. Sem tal identificação, nós continuaremos nos blin-
dando de nosso próprio enredamento nessa trama histórica enquanto partícipes,
enquanto cúmplices. O pacto da branquitude é silente, não há implicação e
transformação possível sem sua quebra.
Para trabalharmos mirando a justiça social e condições de fato mais
igualitárias, precisamos nos racializar no processo de cuidado, em qualquer

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espaço que ele incida. Racializar o corpo branco envolve o enfrentamento
do desequilíbrio de nossa paz porque só assim podemos nos pensar como
problema. A resistência à marcação racial é nada mais do que a resistência a
nos confrontarmos com a nossa própria violência; nós não desejamos olhar
para a brutalidade e o atraso que impusemos ao mundo.

Não tendo como demarcar sua condição racial, demarca-se a do “outro”, e


a não explicitação ou nomeação das razões de uma suposta superioridade
confirma o que se verifica cotidianamente. O silêncio sobre sua própria
racialidade faz exacerbar a racialidade do outro. A neutralidade torna a
raça um dado dispensável. Torna-se, na verdade, uma porta de vidro.
Gera a transparência de um universo que é observado como único, geral,
imutável. São os “outros” que devem mudar. São os “outros” que devem
se aproximar. São os “outros” que são vistos, avaliados, nomeados, clas-
sificados, esquecidos [...] (PIZA, 2014, p. 85).

Finalizarei com uma fórmula poética que consta de um livro recente da


Débora Diniz e da Ivone Gebara intitulado Esperança Feminista, um “ver-
biário”, como as próprias autoras resolveram nomeá-lo. São doze verbos
que implicam em doze ações práticas pensadas para a construção ativa de
caminhos rumo a uma política feminista, a uma desobediência inventiva ao
patriarcado e suas tramas. São verbos que convergem para o objetivo comum
de desmantelamento dos sistemas de opressão.
Não tenho a intenção de me deter em cada verbo, mas achei curioso que
o primeiro deles é justamente ouvir, que no transcorrer da escrita, acaba sendo
propositadamente substituído pelo verbo escutar.
Ouvir, segundo as autoras, remete a algo passivo e impassível, podendo
ser um gesto meramente performático, indiferente ao apelo de quem fala.
Escutar, ao contrário da passividade, é se deixar tocar, permitir que a palavra
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 41

transite pelo corpo. É um exercício ético que pede fresta, treino, flexibilidade,
adjacência. E pode ser incômodo porque demanda deslocamento, responsa-
bilidade e nos convida ao inesperado, ao assombro.
É preciso escutar para imaginar. Imaginar outros modos de ser e estar
através da ampliação dos repertórios, da recusa das abjeções e da criação de
novos recursos éticos e estéticos. Imaginação como forma de preparo para o
encontro com o outro e o desencontro consigo.
E é preciso imaginar para desaprender. Mas desaprender o quê?
Desaprender as histórias únicas, as estereotipias, os perfis, os diagnósti-
cos, as repetições mortíferas. Desaprender as forças da colonialidade que ditam
como as famílias devem se organizar, como as mulheres devem se portar, onde
as pessoas negras devem estar, onde as pessoas brancas devem se manter.
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Forças que continuam a desonrar a diversidade, ignorar encantos, indispo-


nibilizar partilhas, desmerecer autorias, esmagar a pluralidade da existência.
Forças que insistem em estreitar o mundo. Como sabiamente aconselhou o
poeta Manoel de Barros, “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”.
Desaprender para aprender com a diferença. Porque, afinal, mais do que
qualificar os nossos atendimentos, é com a diferença – e apenas com ela – que
aprendemos a viver a vida.
42

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ITINERÁRIOS DE CUIDADO
E INTERSECCIONALIDADES
NO CAMPO PSI-JURÍDICO:
resistências e criação de possíveis
Gabriela Gramkow
Gabriela Nakabayashi Ivan
Giovanna Arruda Savoy
Julia da Paixão Mota
Renata Marques de Souza
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Introdução

As conquistas das últimas duas décadas de políticas públicas para a ado-


lescência no campo da saúde mental, da assistência social, da educação e em
outras áreas inscreveram uma nova concepção de cuidado que forjaram novos
processos de subjetivação de crianças e adolescentes. Essas movimentações
criaram possibilidades de resistência que instauraram no campo jurídico-polí-
tico de nosso país agenciamentos de redes de cuidado dirigidas à sua atenção.
A partir da nomeação e da intervenção na rede de saúde, pelo Sistema
Único de Saúde (SUS/1990), foram criadas novos “Caminhos para uma polí-
tica de saúde mental infanto-juvenil” (Secretaria de Atenção à Saúde, 2005).
Neste fluxo a adolescência foi amparada por princípios éticos-técnicos-
-políticos das redes de atenção psicossocial para cuidado de adolescentes e suas
redes familiares e comunitárias que conclamaram a saúde mental a se integrar ao
Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes – SGDCA/2006,
primordialmente na última década em sua conexão com o sistema de justiça.
Foram inventadas e articuladas redes de cuidado territorializadas, que se
valiam de demandas que ativavam a produção do cuidado para o encontro com
o fora do serviço de referência ao reconhecer a incompletude institucional.
O território da vida, como lugar social do sujeito passa a reconhecê-lo
como sujeito de direitos a ser cuidado em rede enlaçado com sua comunidade
e com os serviços que referenciavam planos individuais de atendimento (PIA)
ou projetos terapêuticos singulares (PTS).
O território é legitimado como o lugar psicossocial do sujeito (SAS, 2005, p.
13) e assim, somente uma clínica ampliada e territorializada permitirá uma cons-
trução apoiada na lógica institucional da rede ampliada de atenção à adolescente.
46

Considerando esses princípios conquistados, desenvolvemos uma pesquisa


que estudou os itinerários de cuidado das adolescentes em medida socioeduca-
tiva de internação, para pôr em análise a proteção integral desta adolescência.
Cartografamos os itinerários de cuidado das trajetórias de vida das adolescentes
em medida socioeducativa de internação e usuárias de um Centro de Atenção Psi-
cossocial infanto-juvenil – CAPS IJ9 de uma cidade grande brasileira, São Paulo.
Mesmo ciente que a despeito de todos os avanços no campo das políticas
públicas para a adolescência, ainda não temos sistemas sociais integrados, nem
mesmo a plena superação da lógica menorista, por isso objetivamos identificar
as tensões nos discursos e nas práticas de experimentação de composição de
rede da relação da rede saúde-justiça, composta por um CAPS IJ e sistema
socioeducativo de internação das adolescentes de referência do território. As

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linhas de cuidado das meninas e os modos como elas eram objetivadas nos
fluxos de encaminhamentos e nos registros permitiram caminhos de análise
sobre as lutas e as relações de resistência dos agenciamentos do cuidado.

A adolescência pobre matável: violências e as políticas de saúde


de cuidado

Nos últimos marcadores do IPEA (2020), um pouco mais da metade


(53,3%) dos homicídios do Brasil ocorreram contra os/as jovens. Apesar dos
dados destacarem a morte predominantemente contra os meninos adolescentes,
quando se compara as taxas de homicídio entre as faixas etárias, conclui-se
que as mortes produzidas contra os jovens, meninos ou meninas marcam a
juventude como alvo permanente.

9 Sabendo que o CAPS é um serviço de portas abertas, pertencente a RAPS (rede de atenção psicossocial)
responsável pelo cuidado em saúde mental da população do território, temos que esse serviço surge em
meio ao movimento da Reforma Psiquiátrica, com a criação de uma rede substitutiva, que permite e aposta
eticamente no cuidado em liberdade, na tentativa de desinstitucionalizar a população internada em hospitais
psiquiátricos, entendidos como sendo espaços promotores de cuidado do sofrimento psíquico e não espaços
de tratamento. A portaria 336/2002 instituiu oficialmente os CAPS, e embora façam parte da RAPS, esta foi
regularizada somente em 2011 com a portaria 3.088. Como os CAPS IJ são serviços da rede voltados para
o cuidado em saúde mental de crianças e adolescentes e contam com uma equipe multidisciplinar que inclui
diversos profissionais da saúde, dispõe o matriciamento dos outros serviços da rede de saúde do território,
ou seja, promove discussões que possibilitem um cuidado compartilhado entre as equipes. Nessa esteira o
CAPS realiza seu cuidado através de diversos dispositivos, como discussões entre a equipe, momentos de
educação continuada e discussões com outros serviços, realização de grupos com os usuários, grupos de
família, visitas domiciliares e atendimentos individuais. Todavia, o direcionamento ético-político da equipe é
crucial para que esse cuidado seja realizado de uma perspectiva de fato antimanicomial, tal como idealizado
no desenho da rede substitutiva de atenção em saúde mental. Isso significa que os diferentes pontos de
vista dentro de uma equipe expressam, mais que a interprofissionalidade, a complexidade política do fazer
CAPS. O que cada um entende como atenção em saúde mental, processos de saúde e doença, papel da
medicação, papel do diagnóstico e meta de seu trabalho influenciam diretamente na qualidade e no impacto
que esse CAPS produz em seu território.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 47

Ainda acompanhamos a emergência de novas-velhas modalidades de


governo da vida para oferecer tratamento em regime de contenção a adoles-
centes considerados periculosos. Trata-se da utilização dos temas da saúde
mental na perspectiva da defesa social: quando as ideias de proteção e do
direito à saúde são pretextos para o controle social de adolescentes. São
lógicas sanitário-penais (ASSIS, 2012) produzindo seu exílio e inabilitação
em nome da proteção social (GRAMKOW, 2012). A aliança psi-jurídica se
conforma para o controle social dos “desviantes” (CASTEL, 1987; FOU-
CAULT, 1977, 1988).
Neste contexto, a adolescência pobre sofre altos níveis de violência
atravessadas por ofertas de políticas de saúde como proteção. Nesta cena, o
discurso que conclama cuidado produz processos de segregação e exclusão
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e, nesta pesquisa, problematizamos a ativação da rede de saúde mental no


percurso socioeducativo de meninas que foram encaminhadas para a rede de
saúde mental para serem atendidas e tratadas.
Esta reflexão abriu espaço para que a discussão não se voltasse a com-
plementar a lógica de saber-poder que trabalha de forma a controlar os corpos
femininos a favor da supremacia masculina com base na binariedade e na
heteronormatividade compulsória, conforme recomenda o estudo de Arruda
(2011) sobre as meninas e a socioeducação na capital do Estado da Bahia. Ela
já afirmava que a execução da internação se assemelhava às medidas previstas
ainda na doutrina da situação irregular com práticas tutelares e de criminali-
zação da pobreza. Não contemplando ainda a dimensão da categoria gênero
para consolidar a cidadania das meninas, esquecidas e colocadas em segundo
plano em uma unidade mista e configurando “a tentativa de normatizá-las e
controlá-las pelo processo de psiquiatrização” (p. 212). Cabe pontuar, que
neste estudo de Arruda, as adolescentes não foram atendidas pela rede de
atendimento de saúde mental mesmo quando encaminhadas.
Situamos que desde 2017 já vigora para as adolescentes privadas de
liberdade o acesso à saúde com atendimento integral nos termos da Política
de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei – PNAI-
SARI, estabelecida por meio da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de
setembro de 2017, seção III, anexo XVI.
Mas encontramos no encarceramento das mulheres conforme o estudo
de Alves (2015) que pesquisou a penitenciária feminina paulistana a marca
da análise de raça e colonialidade da justiça como fatores históricos no Brasil
contemporâneo. A intersecção dos eixos de vulnerabilidades – delineadas com
a classe e gênero – reproduz categorias de indivíduos puníveis.
Em pesquisa realizada especificamente com as meninas em São Paulo
em uma das unidades de internação da capital, a Chiquinha Gonzaga, Grillo
(2018) buscou conhecer as condições que as meninas vivenciam a medida
48

socioeducativa e coaduna com a exposição das opressões vividas e identifica


algumas certas estratégias para suportar esses processos dentro do interna-
mento. Esse estudo marca, junto com Diniz (2017) realizado em Brasília-DF,
o crescimento do aprisionamento das meninas marcado pelo encarceramento
em massa em vinculação com a política de drogas.
Para investigar a vulnerabilidade de meninas no sistema socioeducativo
e testemunhar as necessidades dessas meninas tão invisibilizadas, a nossa
pesquisa reconheceu a Resolução do CONANDA, recentemente aprovada,
como um avanço em prol da proteção integral de meninas em atendimento
socioeducativo, apoiada na Lei 10.216 (2001)10 que afirma que deverão ser
disponibilizadas às adolescentes ações de atenção em saúde mental, tendo em
vista: o sofrimento psíquico decorrente da privação de liberdade; a necessidade

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de tratamento adequado às adolescentes com transtornos mentais; e problemas
decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
Nesta investigação, mapeamos experiência de acompanhamento psicos-
social realizado fora de instituições com caráter asilar, com especial atenção às
questões de gênero, a fim de cartografar a execução de estratégias de cuidado
em articulação com a rede de atenção psicossocial (RAPS) e demais políticas,
preconizando as ações de promoção em saúde mental.
A resolução foi efeito de pactos e acordos após atuação conjunta do
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (MNPCT), do
Comitê Nacional de Prevenção e Combate a Tortura (CNPCT) e do pró-
prio CONANDA após fiscalizações realizadas em unidades socioeducativas
femininas brasileiras nos últimos anos. Em 2018, o Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), criado pela Lei Federal 12.847 de
2013, registrou e denunciou em seus relatórios de visitas a unidades socioe-
ducativas femininas violações de direitos produzidas neste campo. Também
recomendou, ao CONANDA e CNPCT, a elaboração de regulamentação de

10 Esta lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental, vedando a internação em instituições com características asilares:
Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são
assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção
política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução
de seu transtorno, ou qualquer outra. E que são direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I – ter
acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II – ser tratada com
humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação
pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III – ser protegida contra qualquer forma de abuso
e exploração; IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V – ter direito à presença médica, em
qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI – ter livre
acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII – receber o maior número de informações a respeito de
sua doença e de seu tratamento; VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos
possíveis; e IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 49

parâmetros para prevenção à tortura e diretrizes no atendimento socioeducativo


às adolescentes privadas de liberdade11.
Em diversas notas de esclarecimentos entidades de defesa dos direitos das
adolescentes explicitam que a resolução trata das meninas, da socioeducação e
de seus direitos. A resolução regulamenta, por exemplo, sobre ofornecimento
de absorventes, o direito do acompanhamento por agentes socioeducativas
mulheres, veda o videomonitoramento em locais em que haja troca de vesti-
menta das meninas, veda à revista corporal com desnudamento, garantia de
acesso à educação e profissionalização, medidas de promoção à saúde física
e mental, previsão especial a adolescentes gestantes e mães, capacitação de
funcionárias, medidas de enfrentamento ao racismo e discriminação de gênero
e detalha a possibilidade de visita íntima para meninas, já prevista em lei.
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A Resolução do CONANDA em questão foi aprovada e contou com uma


ampla participação social. O documento foi construído por representantes de
organizações não governamentais comprometidas com a promoção, defesa e
garantia de direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens, profissionais
que atuam na execução e/ou gestão de sistema socioeducativo estadual, con-
selhos de classe, servidores da Política Nacional de Saúde, equipes técnicas e
membros de Ministérios Públicos, Defensorias Públicas, Tribunais de Justiça,
além de outros órgãos que integram o Sistema de Garantia de Direitos de
Crianças e Adolescentes (SGD).
Desde 2015 o Conselho Nacional de Justiça já reconhecia dificuldades
e desafios na vida dessas meninas:

“Sabemos pouco ou quase nada de quem elas são porque não há sistema
de informação nacional – o Sipia-Sinase, um Sistema de Informação em
rede de abrangência nacional para a formação de um banco de dados
único, ainda é uma experiência em curso –, sabemos pouco porque os
relatórios sobre sistema socioeducativo costumam não particularizar a
experiência delas e, por fim, porque as pesquisas acadêmicas ainda são
bastante centradas nos adolescentes em conflito com a lei, proporcionando
pouco recorte de gênero” (CNJ, 2015, p. 207).

Cabe demarcar que o estado de São Paulo, segundo o último Levanta-


mento Anual SINASE 2017 (MMFDH, 2019), concentra o maior número de
jovens cumprindo medidas e compõe a maior rede de unidades de internação.
A Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Funda-
ção CASA) apresenta uma estrutura que compreende mais de 145 unidades
de internação no Estado, entre as cidades do interior, da capital e no litoral.

11 Mais informações e acesso aos relatórios e recomendações, acesse: https://mnpctbrasil.wordpress.com/


resolucoes-e-notas/
50

Dentre elas, cinco são destinadas ao atendimento de meninas: quais sejam,


Cerqueira Cesar I e II; Guarulhos, Parada de Taipas e Chiquinha Gonzaga.
De acordo com o Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo
ao Adolescente em Conflito com a Lei em 2017 (MMFDH, 2019) no estado
de São Paulo tinham 6637 meninos em medida de internação e 264 meninas.
Já conforme Boletim Estatístico de 19/3/21 da Diretoria Técnica da Fundação
Casa12, temos no Estado de São Paulo, em meio a pandemia do covid-19, 5197
adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de meio fechado, sendo
4,39% meninas neste cenário, ou seja, aproximadamente 228.
Em estudo desenvolvido por Souza, Teixeira e Gonçalves (2014) que
realizou visitas às unidades de internação das meninas em São Paulo mostrou
a seguinte caracterização: majoritariamente meninas pobres, negras e em

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conflito com o seu processo de escolarização. O estudo concluiu que há uma
cultura de violência institucional, apontada pela falta de políticas públicas para
essas meninas que produzem discriminação, violência de gênero e isolamento
afetivo e familiar, submetendo-as a uma condição de invisibilidade.
Essa referência inicial chama a atenção para que mesmo diante da exis-
tência de uma resolução protetiva para “meninas invisíveis” a qual exige
prescrições regulatórias para a proteção integral dessas adolescentes, foi des-
qualificada, mesmo após o CNJ (2015) apontar que as unidades de socioedu-
cação “não estão preparadas para lidar com questões de gênero que circundam
adolescentes do sexo feminino” (p. 211) e violam direitos humanos.
Notamos um intenso enfrentamento contemporâneo brasileiro que enun-
cia e visibiliza a dita resolução do CONANDA, reduzindo e capturando o
direito à vida das meninas em cumprimento de medida socioeducativa. As
meninas vítimas de violência sexual e de racismo cometido por agentes socioe-
ducativos identificados nos mecanismos de proteção foram desqualificadas em
sua dignidade humana. Temos mais um ataque no jogo de saber-poder-verdade
durante o último governo brasileiro (2018-2022)13.
Buscamos neste estudo identificar os pontos de impasse do SGD a fim de
assegurar o desenvolvimento e cidadania plena e contribuir para os processos
de cuidado das meninas vinculadas à socioeducação.
Nos valemos da aproximação de um agenciamento de coletividades e de
enunciação com meninas na socioeducação, mesmo sabendo que a macropo-
lítica tem se investido da necropolítica (Mbembe, 2018) e ativa a máquina de
produção do sujeito perigoso e neste texto apresentaremos a experimentação

12 Os Boletins estão disponíveis no sítio: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-estat%-


C3%ADstico&d=79, acessado em 30/3/2021.
13 O Conselho Nacional de Saúde explicita o conflito em questão. Leia-se matéria sobre a pauta: http://conselho.
saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1560-cns-soma-se-a-luta-em-defesa-do-conanda-e-das-adolescentes-pri-
vadas-de-liberdade-no-sistema-nacional-de-atendimento-socioeducativo
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 51

desta composição de rede de proteção saúde-justiça, desenvolvida por um


serviço de uma rede de cuidado de meninas durante o cumprimento de medida
socioeducativa de internação do município de São Paulo
A hipótese era que essa conclamação inicial por tratamento das meninas
solicitadas pelo sistema socioeducativo, permitiria instaurar e legitimar estraté-
gias de controle e contenção da vida das adolescentes em suas práticas capilares.

Itinerários de cuidado
O uso dos itinerários terapêuticos visa analisar as redes sociais de cuidado
e de atenção à saúde das meninas em cumprimento de medida socioeducativa
e toma o itinerário terapêutico como um constructo teórico-metodológico
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forjado nos estudos no campo da saúde coletiva (GERHARDT; PINHEIRO;


RUIZ; SILVA JUNIOR, 2016) em suas investigações sobre doenças e seus
sofrimentos: “[...] a abordagem dos itinerários terapêuticos oferece visibilidade
para a pluralidade de saberes, práticas e demandas por cuidado no campo
da saúde, que operam na reafirmação do direito à saúde” (GERHARDT;
PINHEIRO; RUIZ; SILVA JUNIOR, 2016, p. 13).
Por meio dos itinerários, buscamos localizar questões e potencialidades
das redes formais e informais de cuidado, no processo de busca de cuidado
para um sofrimento (SOUZA; ZAMBENEDETTI, 2018) considerando a pro-
moção da saúde do sujeito em sua singularidade, complexidade, integralidade
e inserção sociocultural.
A linha de cuidado constitui, assim, um modo de produção de ações
de saúde que atravessa inúmeros serviços de saúde, cada qual operando
distintas tecnologias. As linhas de cuidado só funcionam em rede no sis-
tema de saúde (MEHRY, 2003). Buscamos mapear com os seus itinerários
os arranjos das formas de atuação para a busca por cuidado como direito
humano à saúde, aqui extrapolando o sistema de saúde e expandindo para
o sistema de garantia de direito – SGD.
A ponderação das pesquisadoras Debieux, Vicentin e Bertol (2020)
reafirma essa prudência na luta e enfrentamento de “[...] uma política para
adolescentes que não considera a sua trajetória, lugar social ou os impactos
do seu sofrimento sociopolítico, gerado nas relações sociais” (p. 266), fabri-
cando uma série de tensões e às vezes de aberrações com práticas opressivas
apoiadas em objetivos inicialmente progressistas.
Essas autoras ao defenderem uma clínica do político e a produção de uma
política com os adolescentes, principalmente quando esses são circunscritos a
uma zona de exceção, discutem a modulação do sofrimento da patologização
dos adolescentes, que isola a experiência do sofrimento, em um discurso social
de aniquilamento e individualização do conflito, vivenciado uma dimensão
de indiferenciação com a vida indigna de ser vivida (AGAMBEN, 2004).
52

Por este aporte, trouxemos a inquietação e questão: Será que escutar


e escrever as trajetórias das meninas, acompanhando suas intervenções no
campo da saúde mental, que persistem desviar de histórias de vidas interrom-
pidas e mortificadas potencializam reconhecimento e testemunho de condições
de possibilidades de vida digna (Instituto OCA, 2017)14?
Em meio ao cenário de práticas de aniquilamento e patologização da
adolescência, partilhamos como horizonte práticas exitosas do CAPS com
promoção de saúde e cuidado em liberdade, para a aposta na orientação de
novos caminhos em direção ao acompanhamento das meninas com resistência
às vidas interrompidas.

Método

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Para mapear como, os itinerários de cuidado da assistência à saúde men-
tal foram enlaçados, compomos uma pesquisa-intervenção (Rocha e Aguiar,
2003) para produzir e acompanhar os efeitos dos itinerários de cuidado agen-
ciados pelo dispositivo CAPS IJ com o Sistema de Garantia de Direito.
A pesquisa foi realizada seguindo a metodologia qualitativa ao carto-
grafar a gestão da adolescência operada pelo CAPS IJ por meio dos seus
itinerários terapêuticos e fomos identificando as resistências às estratégias
de controle social possibilitando uma análise complexa do acontecimento
da violência juvenil.
Por meio de entrevistas com as agentes do CAPS IJ dispomos uma aná-
lise crítica das condições de produção dos saberes e práticas derivados do
encontro psi/direito.
A pesquisa foi uma produção de coletivo e coletiva, com processos de
consulta participativa com cogestão e com produção de um reexistir entre
todas envolvidas na pesquisa (LOURAU, 1993).
Vivenciamos uma pesquisa implicada “[…] não consiste somente em
analisar os outros, mas em analisar a si mesmo a todo instante, inclusive no
momento da própria intervenção. As coisas que dizemos trazem as marcas
das posições políticas, materiais e libidinais que assumimos, dizem respeito
ao lugar que ocupamos nas relações sociais” (LOURAU, 1993, p. 36).
A análise documental ocorreu inicialmente por meio dos prontuários de
três usuárias atendidas entre os anos de 2018 e 2021 identificadas por cinco
profissionais do CAPS IJ.

14 Em pesquisa sobre homicídios contra jovens no Ceará tivemos um mapeamento de histórias de vida de
adolescentes vítimas de homicídio quando identificaram os percursos dos adolescentes nas políticas públicas
e finaliza com recomendações para a prevenção de homicídios na adolescência – veja mais informações no
sítio: https://cadavidaimporta.com.br/wp-content/uploads/2018/03/trajetorias-interrompidas-junho-2017.pdf
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 53

As entrevistas com as cinco profissionais da equipe de referência do


CAPS IJ, desencadeou o ato de entrevistar como “uma forma de desenhar uma
escrita que adentra o território desconhecido do outro” (SOUZA, 2012, p. 85).
Para cartografar a experiência da produção de itinerários terapêuticos, nos
valemos da entrevista com as trabalhadoras para acompanhar os movimentos
de construção discursivas e das práticas, permitindo os alcances dos instantes
de ruptura e dos momentos das falas-narrativas da experiência em análise.
Tomamos o encontro entre entrevistadoras-entrevistadas como
momento de intervenção que produz mudanças e acontecimentos, com
co-engendramentro entre pesquisadora e campo problemático (TEDESCO;
SADE; CALIMAN, 2013).
Esta troca ampliou o campo de análise e conectou a pesquisa com a
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participação das meninas-usuárias do serviço por meio do livro produzido


com a equipe em oficinas de escritas poéticas.
Com a entrevista grupal buscamos o vivido da experiência como conversa
sobre a produção de itinerários de cuidado de meninas fora da lei, quando
junto com as técnicas, as pesquisadoras refletiram sobre suas vivências sobre
o dizer e suas motivações e afetações para construir esse fazer terapêutico
na interface com o sistema socioeducativo e os serviços da rede do sistema
de garantias de direitos e o coletivo de forças que marcam as modulações da
experiência com suas desestabilizações, rupturas e desvios.
O desafio foi o de garantir o protagonismo dos sujeitos envolvidos no
processo investigativo: pesquisadoras da universidade, técnicas do serviço
de saúde mental, documentos – os prontuários clínicos, visando uma análise
da produção de cuidado. As fronteiras da autoria desta pesquisa se mistura-
ram com reconhecimento de uma produção coletiva, pois as entrevistadas
foram “Analistas imersos no cotidiano laboral, investidos dos saberes da
experiência” (p. 383).

Analisadores

Em cartografia, toda análise é uma análise de implicação, o que significa


que não há neutralidade analítica do pesquisador. A partir do método carto-
gráfico, o pesquisador está implicado nas relações que constituem a realidade
que pesquisa. Esse movimento “visa dar visibilidade à dinâmica instituído-
-instituinte que constitui as instituições” (BARROS; BARROS, 2013, p. 376).
As expressões que diferem do instituído são chamadas de analisadores. O
analisador realiza a análise. O pesquisador constrói os analisadores (BAR-
ROS; BARROS, 2013).
54

Práticas de controle: o encontro da saúde com a justiça

Existe um longo percurso histórico que marca o silenciamento e controle


de mulheres e meninas, que se dá pela via do encarceramento e da patologi-
zação. Tais mecanismos de controle operam a partir do aprisionamento e da
medicalização. Os processos de controle incidem sobre a subjetividade das
adolescentes, a partir dos estereótipos de gênero e da perpetuação das relações
capitalistas, racistas e patriarcais.
Os prontuários e itinerários de cuidado das meninas da pesquisa apontam
para histórias que viveram sob a ditadura do controle. Tratam-se de ado-
lescentes que tiveram seu posicionamento subjetivo marcado pelo seu ato
infracional, tendo sua existência aniquilada a partir do encarceramento e de

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etiquetas médicas que as rotulam como “drogadas” e “psicopatas”. A análise
dos prontuários realizada leva em conta a perpetuação de estereótipos de
gênero na penalização das adolescentes, resultando em uma punição dupla.
Nesse sentido, tratam-se de adolescentes que violaram não apenas a lei penal
mas também as “leis de gênero”. De acordo com Arruda (2011), existe no
sistema penal “uma seletividade em razão do gênero que captura sua clientela
também em razão do comportamento considerado inadequado e desviante
do esperado de uma conduta feminina” (p. 72). Assim, ao cometer um ato
infracional, a menina não apenas transgride a lei, mas também transgride o
papel de gênero que é imposto socialmente. Desse modo, o sistema penal e o
sistema socioeducativo desempenham um papel na manutenção da discipli-
narização e na submissão das mulheres e meninas.
As adolescentes desta pesquisa denunciam uma organização social que
se engendra a partir do capitalismo, do racismo, do patriarcado e do controle
e evidenciam os efeitos operantes dessa organização nas linhas de cuidado
ativadas que são marcadas pelo encontro entre a saúde e a socioeducação.
Muitas têm o direito de acesso aos cuidados integrais em saúde – estabelecido
na PNAISARI de 2017 – violado pelo atravessamento da lógica de controle
social, que atua através das questões de gênero, raça e classe. Algumas das
adolescentes são encaminhadas para serviços de saúde mental sob a justifica-
tiva de estarem de alguma forma transgredindo os seus papéis sociais dentro
da unidade, e com a intenção de serem contidas através do diagnóstico e do
medicamento. E quando os serviços não assumem essa mesma lógica de pro-
dução do cuidado, são punidas com a proibição de participarem de atividades
que compõem seu Projeto Terapêutico Singular (PTS).
Nota-se que sob o pretexto do direito ao cuidado em saúde mental, pode-
-se encontrar a intenção velada de punir as adolescentes, duplamente trans-
gressoras, pela via da psiquiatrização de seus atos. De acordo com Vicentin,
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 55

Assis e Joia (2015), é desde a “psiquiatrização, no campo da infância, que


vemos prevalecer os argumentos da proteção como legitimação de formas de
coerção e de restrição arbitrária de liberdade” (p. 36). No campo da socioe-
ducação, novas formas de controle são constantemente efetuadas por meio
da lógica manicomial, que as adjetiva a partir da transgressão e da posição de
gênero como adolescentes “monstro”, “bandidas”, “perigosas”, e impossíveis
de serem reduzidas a uma solução institucional definida (LEONARDIS, 1998,
apud VICENTIN; ASSIS; JOIA, 2015). E encontra a solução para a contenção
de seus corpos na segregação, no diagnóstico e no remédio.
Em contrapartida com o que é previsto no SINASE, dentro da Fundação
CASA a cultura do sigilo e da punição é extremamente presente, complexi-
ficando as relações de poder constituídas nas instituições socioeducativas e
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fragilizando as possibilidades das meninas e demais profissionais de realiza-


rem denúncias frente às violações de direitos que ocorrem. O medo da punição
se transforma em um mecanismo de controle, que além de gerar sofrimento
psíquico nas adolescentes vigiadas todos os dias, respinga nas profissionais
responsáveis pela produção de seus cuidados, cerceando as possibilidades de
atuação da rede protetiva para a garantia do direito à saúde integral.
Para que o cuidado promovido no encontro da justiça com a saúde seja
capaz de produzir vida para as adolescentes em conflito com a lei, é preciso
que não esteja baseado na lógica manicomial-penal, e seja crítico em rela-
ção aos atravessamentos da ordem social. Nesse sentido, a linha de cuidado
desenvolvida pelas trabalhadoras do CAPS-IJ, que atendeu as três meninas
cujos itinerários de cuidado foram analisados, serve como modelo de direção
ético-política na produção do cuidado em saúde mental para adolescentes fora
da lei. O cuidado produzido no CAPS-IJ foi contrário ao controle, abrindo
novos caminhos de produções subjetivas, nas quais as adolescentes puderam
ressignificar suas histórias e desnaturalizar as violências vividas. A partir de
oficinas de escritas e de saraus, foi realizado um cuidado alinhado com uma
política de liberdade. Nas fotos do sarau, há registros das adolescentes lendo
suas poesias frente a uma lousa que diz: “seja o que tu quiser… liberdade de
expressão”. Se na Fundação Casa a caneta não é permitida e o corpo é cons-
tantemente tutelado, no CAPS-IJ a caneta e a voz são uma arma de resistência.
É a partir da liberdade que a escrita possibilita que as meninas narrem seus
pesadelos e ressignifiquem suas vivências, podendo ganhar um novo lugar
social, não à toa, o próprio sarau tem como nome “Tornar-se outro”.
É, portanto, no trabalho de manutenção da garantia dos direitos das
adolescentes, a ponto de «torná-los promotor de alterações na lógica cotidiana
do processo saúde-doença-cuidado, sustentado nas interfaces entre os sistemas
sociais e de justiça” (VICENTIN; ASSIS; JOIA, 2015, p. 40), que o encontro
56

da saúde com a justiça possibilita novos projetos de vida. É no encontro entre


os tensionamentos discursivos, nas contradições e nas ressignificações. É na
coletividade, luta, resistência e rebeldia. E na transgressão da lei manicomial-
-penal e da lei de gênero.

Lutas e resistências

Durante o processo da pesquisa, muito foi refletido a respeito dos marca-


dores sociais que caracterizam o grupo de meninas que cumprem as medidas
socioeducativas. Os relatos que entrecruzam as histórias se repetem: violências
(sexual, de gênero), pobreza, vulnerabilidade social, conflito com processo
educativo, violação de direitos. Adolescentes evidenciadas e vistas apenas após

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cometerem infração, como se nascessem naquele momento. Meninas adultiza-
das desde crianças, seja por questões de necessidade própria para que sobre-
vivessem ao contexto que viviam, seja por conta de assujeitamentos vividos
por elas, como a violencia sexual e a pedofilia. Documentos produzidos pelos
diversos profissionais envolvidos nos casos (juízes, médicos, dentre outros)
carregam palavras de peso, que imprimem às meninas julgamentos e rótulos.
Resistência é descrita no dicionário Houaiss (2009) como “ato ou efeito
de resistir; capacidade de suportar a fadiga, a fome, o esforço; recusa a sub-
meter-se à vontade de outrem, oposição”. A resistência caracteriza a vida das
meninas, que sem ela, não sobreviveriam considerando o contexto que viviam,
em extrema pobreza, bem como às violências e outras vulnerabilidades as
quais foram expostas durante sua jornada. O Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (BRASIL, 1990) declara que as crianças têm direito à proteção à vida e
à saúde, considerando o apoio das políticas públicas que devem garantir seu
desenvolvimento sadio, em condições dignas de existência. Se a lei preconiza
tais direitos, considerando as exposições aqui feitas, as meninas têm diversos
de seus direitos violados durante a infância e a adolescência.
Deve-se atentar ao fato de que as meninas, em alguns casos, só têm
acesso e garantia a direitos como escolarização, alimentação, saúde, dentre
outros, a partir do momento que entram no sistema socioeducativo. Nesse
contexto, muitas vezes, as meninas têm seus direitos vistos como privilégios,
favores ou caridade por parte das figuras de autoridade dentro das unidades,
principalmente por terem cometido algum delito, o que, para essas pessoas,
é motivo para que deixem de ser vistas como crianças/adolescentes e seres
humanos e passem a serem vistas e tratadas como selvagens e monstros.
Ao observar seus itinerários de cuidado, percebe-se a presença de diver-
sos serviços públicos – Conselho Tutelar, SAICA, CAPS IJ II e III, FCASA,
IMESC, UBS, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça – DEIJ e hospitais.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 57

Devemos destacar múltiplos agentes que influenciam o acesso a direitos, tais


quais localização do usuário, acesso a informação, busca ativa pelos serviços,
condições familiares e dinâmicas da vida, dentre outros. Nos caminhos das meni-
nas, destacam-se as ações do SAICA e do CAPS IJ como produtores de saúde e
amparo, além de suportes para a resistência. Através das narrativas, são evidencia-
dos o papel da educação, a presença da arte e a institucionalização como suporte.
Tais agentes garantiram às meninas tempo e espaço para gozar de seu direito à
saúde, educação, moradia, possibilidade de escreverem suas próprias histórias,
a partir do que sentem, do que lhes cabem, com o apoio das políticas públicas.
A educação permite o aprendizado e alimenta a vida social. Permite sonhar
o futuro, sonhar com a vida profissional. Na Fundação CASA, as meninas
tiveram acesso a educação e profissionalização por meio de diversos cursos dis-
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ponibilizados. Algumas delas, vindo de uma realidade de tanta vulnerabilidade,


produziam sentido e aproveitavam tais ofertas, transformando-as em cuidado.
O fazer arte é em suma uma narrativa compartilhada, externalizada por
meio da visão e dos sentimentos de quem as faz e sua realidade. Seu compar-
tilhamento e sua comunicação se tornam mensagens para seus interlocutores,
pois carregam experiências pessoais que possuem, dentre outras possibilida-
des, denúncias e defesa de realidades vividas, elementos que conferem a eles
identificação com os conteúdos. Logo, o poder comunicativo da arte envolve
a resistência. A produção nas oficinas de leitura e escrita não só carregava
suas vivências e denúncias, mas também contribuiu para elaboração desses
acontecimentos, compreensão dos próprios sentimentos, reconhecerem-se
como sujeitos de direitos, lidarem com a própria história e refazerem senti-
dos. Também possibilitou-as a abertura para compartilhar e conversar com
pessoas que também sofrem pelo mesmo, logo, a socialização e coletivização
da narração de tais violências, que são mais comuns do que se imagina.
Destaca-se também a resistência representada e apresentada através do
corpo e da presença de trabalhadoras dos serviços, que resistem junto às meni-
nas, lutando para garantir seus direitos. Foram mencionados diversos impasses
em relação a propostas de cuidado oferecidas pelo CAPS IJ e a lógica disci-
plinar e de controle da Fundação CASA. Nesse contexto, elementos relacio-
nados à disciplina e comportamento na Fundação, eram considerados direitos
fundamentais e cotidiano no CAPS IJ. Ainda que em condições limitantes
e de extremo desconforto e persecutoriedade, a equipe do CAPS IJ seguiu
realizando os atendimentos e buscando acordos que pudessem permitir às
meninas o acesso ao cuidado, direito fundamental da criança e do adolescente
(BRASIL, 1990). Para além disso, é importante destacar que as trabalhadoras
que concordaram em participar desta pesquisa são as 5 pessoas da equipe do
CAPS IJ que se disponibilizam para o atendimento das adolescentes.
58

Estes são movimentos e ações de resistência. São movimentos que carac-


terizam uma clínica política, que reconhece as interseccionalidades de gênero,
raça, geração e classe e as inúmeras violências vividas no corpo e na vida
dessas meninas. Uma clínica que reconhece que a própria atuação dessas
meninas se dá conectada à violência que sempre sofreram, como um grito
final, que é a transgressão. E que, mesmo assim, o fato de serem também
vítimas é colocado em dúvida cotidianamente.
A sociedade tem um destino reservado a pessoas marcadas por esses
aspectos. Chegando marcadas e seguindo marcadas, dentro das unidades
de medida socioeducativas, as meninas seguem resistindo, por meio de sua
inventividade e táticas de produção de vida, que necessitam operar durante
o cumprimento da medida socioeducativa. Essas táticas facilitam e tornam

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menos duro o tempo da internação (Grillo, 2018). Resistem por meio de seus
corpos, de suas ações, de seus sonhos, em movimentos contrários às políticas
de morte e violência que presenciam e vivem em suas peles diariamente, em
uma luta pela vida e o que ela ainda pode ser.

Encurtamento dos itinerários de cuidado

Os encontros e entrevistas deste estudo ocorreram no segundo semestre


de 2021 e desde o último encontro com as trabalhadoras do CAPS-ij, fomos
informadas sobre o cenário atual do atendimento dessas jovens. A respectiva
unidade do CAPS-ij passou por uma mudança de direção e com isso o aten-
dimento das jovens foi encerrado e elas passaram a ser atendidas dentro da
própria unidade de internação.
Retomando a construção do itinerário de cuidado construído pela equipe,
as trabalhadoras contam que os atendimentos com as meninas da Fundação
Casa se intensificaram em 2018, quando elas começaram a receber muitos
encaminhamentos por parte da instituição, principalmente sob uma queixa
de mau comportamento das meninas. Com isso, elas passam a construir os
diálogos com as técnicas da Fundação, com reuniões mensais por quase dois
anos. A oficina de escrita foi realizada nesse mesmo período.
Em 2020, com a pandemia de covid-19 e medidas de distanciamento
social, as atividades no CAPS-ij são restringidas e o diálogo com as trabalha-
doras da Fundação é encerrado. Entretanto, o CAPS continua atendendo as
meninas que cumprem medida pois ainda há uma alta demanda por questões
de saúde mental. No fim de 2021, houve uma troca de direção na unidade de
internação e com isso, outras mudanças foram ocorrendo em concomitância,
uma delas foi o encerramento dos atendimentos do CAPS-ij, restringindo as
meninas a serem atendidas dentro da própria Fundação, muito mobilizado
pela dificuldade em realizar as saídas dessas.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 59

De acordo com Vicentin, Assis e Joia (2015), a estratégia de atendimento


preconizado pela PNAISARI é um marco legislativo importante que impõe
diversos desafios, pois exige, na agenda institucional, encontros intersetoriais
entre profissionais do campo da saúde e da justiça, implicando ambos na
produção de saúde; inclui os jovens nas trajetórias de cuidado; afirma a rede
de atenção à saúde como referência. Nesse sentido, consolida o princípio da
incompletude institucional no campo da infância e adolescência e revela as
dificuldades na composição do trabalho em rede.
O atendimento restrito à unidade de internação vai contra as diretrizes da
PNAISARI e está alinhado a um cuidado que segue a lógica manicomial em
um ambiente de cárcere, dado que as meninas atendidas cumprem medida de
privação de liberdade em uma instituição total, e portanto, têm seus direitos
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de acesso à saúde violados.


A atenção à saúde não basta estar apenas garantida por lei, a legislação
cumpre um papel importante de conquista e asseguramento de direitos,
entretanto, na prática, exigem outros autores para que essa atenção seja
efetivada. “Cuidado real que exige presença, mesmo na ausência, exige
corpo, debate e negociação. Exige compartilhamento real e que esteja
necessariamente disposto a cuidar de vidas” (MANZINI, 2020, p. 191).
O cuidado à saúde necessita de uma atenção concentrada no sujeito e ao
mesmo tempo flutuante, abarcando diversos aspectos da vida, como também
deve ser proximal e permanente.
Diante do sentido terapêutico da saída das meninas da unidade até o
CAPS-ij, as vivências atreladas a essa circulação no serviço e as linhas de
cuidado construídas pelas trabalhadoras, considera-se o atendimento das
jovens dentro da unidade de internação um grande retrocesso a tudo que foi
construído pela equipe técnica.
60

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PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 61

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QUANTO MAIS NOVA, MAIS
DISPONÍVEL: a importunação
sexual em transportes públicos
Juliana Maria Duarte Marques
André Luiz Machado das Neves

Introdução
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O ano era 2015 e a participação de uma menina de 12 anos no programa


de televisão “Masterchef Junior”, da Rede Bandeirantes, cujos participantes
eram crianças, acarretou a onda de publicação de comentários de cunho
sexual feitos por usuários nas redes sociais, o que fez com que os pais
se sentissem obrigados a retirá-la do programa como forma de protegê-la
(BARDELLA, 2021).
O episódio trouxe à tona um lado sombrio da internet em que as pessoas
se utilizam desse campo virtual para ofender, assediar e cometer crimes, acre-
ditando na impunidade e de que não há o alcance da lei. Por outro lado, esse
ambiente também se mostrou um lugar de resistência a essas condutas, tendo
em vista o apoio de diversas usuárias que repudiaram os comentários e, em
resposta, compartilharam também suas próprias histórias de violência sexual
que ocorreram quando mais novas, através da campanha criada pelo coletivo
feminista “Think Olga” com a hashtag “#meuprimeiroassedio”, evidenciando se
tratar de uma violência de gênero (ALMEIDA, 2019; FARIA; CASTRO, 2014).
Por violência de gênero, partimos do solo conceitual trazido por Debert
e Gregori (2008) e Bandeira (2019) que tem por definição a prática danosa,
abusos e lesões a determinadas ações que ultrapassam a concepção biológica
da condição feminina e se interseccionam com outras formas de opressão.
Nesse aspecto, dentre as diversas modalidades de violência de gênero, privi-
legiou-se a importunação sexual contra a mulher em todas as suas formas de
opressão que inclui também o racismo e a transfobia.
Nesse contexto, Almeida (2019) aduz que a popularidade da campanha
“#meuprimeiroassedio” só se tornou visível aos olhos da mídia quando casos
de violência sexual contra crianças foram divulgados, uma vez que a ideia de
violência somente está relacionada quando a vítima tem legitimidade para se
configurar como tal, no caso, estar de acordo com a heteronormatividade e
moralidade sexual, o que condizia com a situação da participante.
66

Tal campanha foi uma de muitas outras que foram criadas por movimen-
tos feministas na década de 2010, em destaque a “Chega de Fiu fiu”, “Não
mereço ser estuprada”, #MeuAmigoSecreto” e #MeuCorpoNãoÉPúblico,
que se utilizaram também do espaço virtual para denunciar uma violência
comum de todas as mulheres e que é negligenciada por autoridades: o assédio
sexual em espaços públicos (ALMEIDA, 2019; BANDEIRA, 2019; FARIA;
CASTRO, 2014; GELEDÉS, 2017; LARA et al., 2016).
Somente em 2017, a partir da repercussão da notícia de que um homem
havia ejaculado no pescoço de uma passageira dentro do transporte público
coletivo na cidade de São Paulo, episódio conhecido como o “caso do ônibus
da Avenida Paulista” que se criou um cenário forte de comoção social para
que houvesse uma mudança na legislação penal brasileira e trouxesse maior

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rigor acerca da prática dessa violência, uma vez que se evidenciava a pouca
gravidade dada pelo ordenamento jurídico vigente (BRASIL, 1941; BUENO
et al., 2019; G1SP, 2017).
Por esta razão, o impulsionamento das redes contribuiu para pressionar
o Congresso Nacional, sendo aprovada posteriormente a Lei 13.718, de 24
de setembro de 2018 que trouxe um conceito jurídico para assédios sexuais
praticados em espaços públicos, qual seja a importunação sexual, prevista no
artigo 215-A, do Código Penal. O novo tipo penal não se limitou às condutas
praticadas apenas em transporte público coletivo e ampliou o significado para
qualquer prática de ato libidinoso contra outra pessoa, sem consentimento e
que tem por objetivo satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro, podendo
ocorrer em qualquer lugar e contra qualquer pessoa (BRASIL, 2018).
Entretanto, segundo os últimos dados divulgados pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (2021), estima-se que 26,5 milhões de brasileiras sofre-
ram assédio sexual no ano de 2020, cujas maiores vítimas foram mulheres
pretas ou pardas de idade entre 16 e 24 anos, mesmo com a vigência da nova
lei, o que se entende que mudanças legislativas não são a linha de chegada no
combate à violência de gênero, mas apenas mais uma etapa desse processo.
Gonzalez (2020) afirma que mulheres pretas estão mais vulneráveis a
sofrerem violência, em razão das opressões de gênero, racial e de classe que
vivem, fruto do processo histórico de colonização de seus corpos. Outrossim,
não há informação se estes dados consideram outras identidades de gênero,
como de mulheres trans e travestis, o que corrobora com o que Nascimento
(2021) afirma sobre o espaço de não existência dentro do feminismo.
Desta forma, saindo da esfera legislativa e jurídica acerca do crime de
importunação sexual, buscou-se, como objetivo geral da pesquisa, analisar
os significados sociais atribuídos à importunação sexual por mulheres que
fazem uso de ônibus na cidade de Manaus, capital do estado do Amazonas. No
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 67

presente estudo, optou-se por evidenciar o resultado das entrevistas realizadas


com onze mulheres, entre elas, mulheres cis, mulheres trans e travestis, no
que tange às suas experiências com essa violência durante as suas rotinas de
usuárias de transportes públicos coletivos, seja como vítima, como alguém
que presenciou ou ouviu relatos de pessoas próximas.
Cumpre mencionar que as expressões “cis” ou “cisgênero” são utilizadas
para definir pessoas que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento,
baseado nas características biológicas, diferentemente das pessoas que se
definem como “trans” ou “transgênero” que são aquelas que não se identifi-
cam com os comportamentos ou papéis sociais que são estabelecidos a elas
ao nascer (JESUS, 2015).
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Ademais, dentro da categoria “trans” estão contemplados travestis,


transexuais, mulheres transgêneras, homens transgêneros, transmasculines e
pessoas não binárias, sendo um termo guarda-chuva que abarca diversas iden-
tidades (JESUS, 2012). Contudo, a insistência em utilizar também a expressão
“travesti”, separada do termo “trans”, tem como finalidade evidenciar uma
política de afirmação a essa categoria identitária que ainda é marginalizada
na sociedade (NASCIMENTO, 2021).
Portanto, este capítulo tem como objetivo analisar experiências de impor-
tunação sexual entre mulheres ainda quando eram crianças ou adolescentes,
com vistas a problematizar por meio da discussão sobre a fetichização de
corpos femininos infanto-juvenis, a ideia da “vítima perfeita” para crimes de
violência sexual e a natureza dessa violência que é marcada pela condição
de identidades femininas.

O caminho metodológico para análise da violência

Tratou-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, em


que foram realizadas entrevistas semiestruturadas e de forma presencial com
mulheres que são usuárias de ônibus na cidade de Manaus, capital do estado
do Amazonas. A técnica de produção de informações utilizada foi a “bola de
neve” e a condução das entrevistas foi feita pela autora principal no período
de dezembro de 2021 a março de 2022.
O roteiro das entrevistas era composto de perguntas sobre informações
gerais para caracterização da entrevistada, experiências vivenciadas por ela
no transporte público coletivo, as táticas empreendidas para prevenir e/ou
reagir à importunação sexual nesse local e recomendações para a prevenção
e combate a esta violência sexual, em consonância com os objetivos especí-
ficos da pesquisa.
68

A busca de participantes se deu por meio de convites publicados nos per-


fis pessoais da pesquisadora principal nas redes sociais Instagram, Facebook,
Twitter e Whatsapp, cujas interessadas em participar entraram em contato
direto com a pesquisadora, a partir do número de telefone disponível ou da
caixa de mensagens privada. Considerando os critérios de inclusão e exclusão,
selecionou-se onze mulheres, entre elas, seis mulheres cis, duas mulheres trans
e as três travestis. É importante destacar o compartilhamento dos convites por
perfis de ativistas de diferentes movimentos sociais e do Programa de Mes-
trado Profissional em Segurança Pública, como imprescindíveis para alcançar,
principalmente, mulheres trans e as travestis que participaram das entrevistas.
Por tratar sobre violência sexual, as entrevistas foram realizadas indi-
vidualmente e na sala para escuta qualificada, disponibilizada pelo Instituto

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Mana, uma organização da sociedade civil que levanta a bandeira feminista,
uma vez que esta atendia ao Termo de Compromisso para Desenvolvimento
de Protocolos de Pesquisa no Período da Pandemia do Coronavírus (covid-19),
isto é, ventilada e com observância ao distanciamento social de, no mínimo,
1,5m entre a participante e a pesquisadora, sem comprometer o sigilo das
informações ali prestadas, sendo disponibilizadas ainda, máscaras (tipo PFF2)
de uso obrigatório durante a entrevista e uso de desinfecção com álcool em
gel entre cada procedimento, a fim de resguardar a saúde e segurança de
ambas as envolvidas.
Encerradas as entrevistas com as participantes e transcritas as grava-
ções com duração média de cinquenta minutos cada, foi adotada a análise de
conteúdo de Bardin (2011), utilizando-se da técnica análise categorial para
organização das categorias que ficaram assim definidas: experiências pessoais,
táticas de prevenção, reação à importunação sexual e recomendações.
O estudo seguiu os preceitos éticos de aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, sob o Registro
CAAE nº. 53692121.6.0000.5016 disponível em 03/12/2021, além do Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado por todas as entrevistadas.
Para a manutenção do sigilo foi utilizada a palavra “PARTICIPANTE” e um
numeral ordinário em ordem crescente e de acordo com a sequência que as
entrevistas foram realizadas (PARTICIPANTE 1, 2, ..., 11).
Por fim, em que pese os resultados encontrados na pesquisa de disserta-
ção, o presente capítulo é um esforço analítico que visou explorar a catego-
ria de experiências pessoais, especificamente sobre os relatos trazidos pelas
participantes acerca do primeiro momento em que se recordaram de terem
vivenciado uma situação de importunação sexual no transporte público, entre
as idades de 12 e 17 anos, o que permitiu a análise dos casos sob a perspectiva
agora de mulheres adultas.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 69

A importunação sexual em transportes públicos

A busca de participantes privilegiou as identidades de gênero, o que


permitiu trazer as experiências sobre a importunação sexual em transportes
públicos de mulheres cis, mulheres trans e as travestis. Contudo, as caracte-
rísticas das participantes também são atravessadas por outros fatores como
idade, grupo étnico e a ocupação, que foram apresentados nesse trabalho em
cada citação, a fim de situar o leitor acerca das características de cada uma e
contribuir para uma discussão mais aprofundada sobre a condição feminina
e os significados sociais desta violência sexual na cidade de Manaus.
No geral, essas características das participantes contam com uma maioria
que se autodeclarara parda e negra, bem como, não possuem cargos de chefia
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ou com remuneração alta. Nesse sentido, quando se trata de mulheres não


brancas, além da questão de gênero envolvida, há também a condição racial
e de classe, o que Gonzalez (2020) reconhece que estão em uma condição de
tripla discriminação, sendo oprimidas e exploradas, em razão do gênero, da
cor e da situação financeira que se encontram.
A pesquisa se propôs a relacionar as respostas de cada entrevistada e fazer
um diálogo entre elas, evitando que sejam tratadas em algum momento como
“a outra”, como critica Nascimento (2021) acerca de estudos sobre gênero que
analisam as experiências de mulheres trans e travestis que também são viven-
ciadas por mulheres cis a parte, isto é, colocando-as na posição de “outras”.
Desta maneira, adotamos um conceito mais abrangente do gênero, tra-
zido por Scott (2019), o qual o entende como um elemento constitutivo das
diferentes relações sociais estabelecidas entre os homens e mulheres, para
compreender que a violência de gênero ultrapassa as concepções biológicas
e adentra outras dimensões do que se reconhece como feminino.
As respostas permitiram compreender o espaço em que se deu a pesquisa,
dentro e fora dos ônibus, a partir da rotina das entrevistadas que envolvem os
terminais de integração, paradas de ônibus e os trajetos das 26 linhas citadas
por elas (001, 002, 035, 125, 203, 207, 214, 217, 223, 227, 352, 415, 443, 446,
448, 450, 457, 515, 517, 540, 541, 604, 640, 650, 652, 678), que percorrem
todas as seis zonas administrativas (leste, centro-oeste, sul, centro-sul, oeste,
norte) na cidade de Manaus, entre os horários das 6h à 00h.
As perguntas iniciais facilitaram o caminho para resgatar as experiên-
cias de importunação sexual vivenciadas por elas quando questionadas sobre
o assunto, cujo resultado alcançado, permitiu que das onze participantes,
quatro relataram terem sofrido esta violência quando ainda eram crianças
ou adolescentes, o que foi compreendido como uma informação relevante
e um resultado além do esperado nessa pesquisa, restando debatê-los nos
subtópicos seguintes.
70

Quanto mais nova, leia-se mais disponível

As idades das onze participantes variaram entre 21 e 48 anos. Ao longo


das entrevistas, elas identificaram um total de trinta e sete episódios de impor-
tunação sexual no contexto do transporte público, isto é, dentro dos ônibus,
dos terminais e paradas na cidade de Manaus, que incluíram experiências pró-
prias, enquanto assediadas ou que viram acontecer, quanto de conversas com
pessoas próximas, que abrangem comportamentos de ter o corpo tocado sem
consentimento, encaradas, cantadas, “encoxadas”, ejaculação e masturbação.
Após cada relato de violência sexual, verificou-se que as ocorrências mais
recentes, considerando a data das entrevistas, eram feitas pelas participantes
mais jovens (1, 2, 3, 5, 6, 7, 9), ao passo que aquelas acima dos 30 anos (4, 8,

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10 e 11), trouxeram em seus discursos memórias mais antigas, não havendo
experiências próximas, apesar do uso contínuo do ônibus.
Outrossim, das quatro participantes que trouxeram relatos de importu-
nação sexual de quando eram crianças ou adolescentes, duas são mulheres
cis e as outras duas travestis, cujo entendimento, trazido pela Participante 9,
uma travesti, parda e de 27 anos, é de que existe uma lógica de fetichização
de corpos mais jovens, partindo da sua própria experiência.

PARTICIPANTE 9: [...] Que amiga, isso era muito pior quando era mais
nova. Dentro da perspectiva. Masculinista. Quanto mais nova tu é, mais,
mais disponível, tu tá. Tá nessa lógica da fetichização. Tá nessa lógica
desse sistema do ninfetinha, sabe, que é horroroso isso (Transcrição par-
ticipante 9-2022, travesti, parda, 27 anos).

As expressões utilizadas pela Participante sobre a lógica da “fetichização”,


seguido por um “sistema da ninfetinha”, distanciam-se do sentido originário
da mitologia grega de “ninfa”, como divindades que habitavam a natureza e
se aproximam das representações, trazidas por clássicos da literatura, como
Presença de Anita (1948), do autor brasileiro Mário Donato, e como Lolita
(1955), do russo Vladimir Nabokov, que retratam um relacionamento entre um
homem adulto e uma menina, na primeira obra de 17 anos e na segunda de 12
anos, havendo uma inversão da responsabilidade em que o homem é lido como
vítima dos desejos e das provocações de uma jovem sedutora (BARROS, 2007).
Em relação à prática de importunação sexual contra crianças e ado-
lescentes, Saffioti (2001) afirma que a sociedade não é apenas androcên-
trica, mas também “adultocêntrica”, uma vez que direciona o combate
à violência de gênero as mulheres de todas as idades, porém, exclui os
homens e meninos que sofrem determinadas violências, principalmente,
quando crianças ou adolescentes.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 71

A visão da participante de que quanto mais nova, mais disponível sexual-


mente, resume o ideário sobre a objetificação de corpos infantis comparti-
lhados por essas obras culturais e que refletem a maneira que muitos homens
ainda enxergam as mulheres. A tal da “lógica desse sistema da ninfetinha” e
fetichização contrariam os estudos feministas, haja vista ser pensada em uma
perspectiva masculina, isto é que responsabiliza meninas.
O desabafo e reprovação do comportamento manifestado pela partici-
pante corroboram com os dados do FBSP (2021) sobre assédio sexual no Brasil
nos últimos doze meses, que inclui a importunação sexual e demonstram maior
incidência contra mulheres pretas e pardas, entre as idades de 16 a 24 anos.
A pesquisa não informa se mulheres trans e travestis estão inclusas dentro
desses números, o que se entende que seguiu uma lógica binária de identidade
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de gênero para mensurar os dados. Essa não informação é o lugar de “não


existência”, no entendimento de Nascimento (2021), sobre a ausência de dados
a respeito de identidades que fogem da cisheteronormatividades. Por esta
razão, a partir das respostas dadas pelas participantes que fazem parte desse
grupo, foi possível compreender que a violência sexual tem as identidades
femininas como a sua principal vítima, não se restringe a fatores biológicos,
e o risco de acontecer ainda na infância é maior (SOUSA, 2017).
Por outro lado, a pesquisa evidencia a questão do grupo étnico negro
como vítimas de maior incidência, o que mostra que a objetificação de iden-
tidades femininas é mais intensificada a depender da cor da pessoa.
No Amazonas, há uma incidência forte de casos de exploração sexual con-
tra crianças e adolescentes, não só em razão das características socioeconômicas
da região norte que está entre as mais pobres do Brasil, como também do pensa-
mento racista-sexista de que todas as mulheres negras, ou nesse caso, mulheres
não brancas, haja vista que a população de Manaus é composta por sua maioria
pardos, estão dentro de uma categoria de objetos sexuais disponíveis, indepen-
dente da circunstância (HOOKS, 2019b; IBGE, 2010; SCHERER; CUNHA;
DOS SANTOS JÚNIOR, 2017; SOUZA; ADESSE, 2005; TCU, 2018).

A “vítima perfeita” e o contexto de “opressão comum”

As cantadas ou comentários desrespeitosos são as formas mais comuns de


assédio praticados contra mulheres, segundo dados do FBSP (2021). Aos 29
anos, a Participante 002, uma mulher cis e parda, resgatou em suas memórias
a primeira experiência de importunação sexual que aconteceu aos 12 anos,
quando um homem tentou dar em cima dentro do ônibus.

PARTICIPANTE 2: Eu nunca vi. Já aconteceu comigo. É.... algumas


vezes, que eu considerei, consideraria importunação sexual. Não sei se vai
ser enquadrado realmente. Seriam duas situações, né, a primeira vez em
72

que não foi uma importunação, foi um homem que chegou a tentar dar em
cima de mim, mas como eu era muito nova, eu acho que eu tinha uns 12
anos e nesse nessa ocasião tava na companhia da minha mãe. Foi minha
mãe que percebeu e chamou a atenção dele, na, dentro do ônibus fez um...
escândalo. (Transcrição participante 2-2021, mulher cis, parda, 29 anos).

Na época, ainda menina, a Participante 002 afirmou que não havia notado
o que estava acontecendo e o que nos chamou a atenção em sua fala atual é
que mesmo depois de adulta, restam dúvidas se aquele comportamento poderia
ser considerado uma importunação sexual ou não, o que parece contraditória
em um primeiro momento, haja vista que o caso mencionado veio de uma
pergunta direta sobre as experiências de importunação sexual.

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Contudo, vislumbra-se que este receio pode se dar em razão da investida
não ter sido física, o que dificulta a compreensão quando está diante de um
comportamento que segue a lógica estabelecida dos papéis sociais do homem
ativo sexualmente (BOURDIEU, 2012), ainda que pareçam menos invasivos,
principalmente, para crianças.
Para uma conduta ser lida como violência sexual, a participante preci-
saria atender aos significados sociais de “vítima perfeita”, trazidos por Sousa
(2017), isto é, ter uma boa reputação e trazer marcas no corpo que atestam a
resistência contra a violência, caso contrário, entende-se que esta foi conivente,
o que, de antemão, não funcionam para os casos de importunação sexual em
transportes públicos como o relato da Participante 002 que traz a figura de
um desconhecido e que não houve contato físico.
Por outro lado, a Participante 10 relembrou, aos 35 anos, ela, uma
mulher cis e preta, do momento do primeiro episódio de importunação sexual
que aconteceu aos 16 ou 17 anos, em um ônibus vazio. Diferentemente
do que aconteceu com a Participante 002 que ainda tinha dúvidas sobre a
situação de violência que vivenciou, a Participante 010 compreendeu anos
depois que havia algo errado.

PARTICIPANTE 10: e eu tinha eu acho que de 16 pra 17 anos, nós


tínhamos ido pra casa da minha vó e no retorno nós pegamos o ônibus
lá no terminal da Constantino e o ônibus tava vazio, mas não tinha lugar
pra sentar e o rapaz começou a se encostar em mim e minha mãe pediu
pra eu me afastar e assim, eu lembro bem que ele nitidamente não estava
embriagado, mas ele fez de propósito. (Transcrição participante 10-2022,
mulher cis, preta, 35 anos).

Tanto o relato da Participante 2 quanto da Participante 10 trazem suas


perspectivas adultas do que aconteceu na época em que eram mais jovens.
Ainda por consequência do que a “cultura do estupro” definiu por vítima
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 73

perfeita, percebe-se também nos seus relatos que elas buscaram elementos
que comprovassem não terem contribuído para o ocorrido, como não estarem
sozinhas no momento e a companhia de suas respectivas mães.
Nesse contexto, acredita-se que se não fossem as intervenções das geni-
toras, seja chamando a atenção do assediador ou retirando-a daquele lugar, a
importunação sexual poderia ter continuado por todo o trajeto e até mesmo
se agravar, haja vista a ausência de interferência de outros passageiros nas
situações relatadas por uma mulher preta e outra parda.
Desta forma, é mister compreender que além dos significados sociais sobre
o perfil da vítima trazidos por Sousa (2017) que questionam o reconhecimento de
uma violência sexual, há de se levantar também a “opressão comum” de hooks
(2019a) que está inserida neles, pois não levam em consideração as diferenças
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de tratamento entre mulheres, cuja construção da imagem de “boa reputação”


da mulher branca foi feita a partir da desvalorização de corpos de mulheres “de
cor” no sentido de que são sexualmente desinibidas e estão disponíveis.
Nessa concepção, não houve movimento para restaurar a dignidade de
mulheres pretas e ainda permanecem na categoria de objeto sexual, indepen-
dente se são casadas solteiras, criança ou adulta, tornando-as mais vulneráveis
a sofrer esta violência (GONZALEZ, 2020; HOOKS, 2019b).
O mesmo ocorre com as experiências de mulheres trans e travestis ou
quaisquer outras que fogem dessa lógica binária cis-heteronormativa e são
invisibilizadas quando discutimos essa “opressão comum”, haja vista que seus
corpos são atrelados à promiscuidade, prostituição, violência policial e HIV/
Aids, entre outras formas de violência ainda quando crianças (CARVALHO;
CARRARA, 2013; NEVES, 2019).
Nascimento (2021) entende que a violência contra mulheres e pessoas
trans e travestis são marcadas pelo gênero, por isso é mister compreender
suas diferenças, a fim de evitar discursos universalizantes. Como travesti, a
Participante 009 acredita que as identidades travesti e de mulheres trans não
são reconhecidas como possíveis vítimas da importunação sexual, uma vez
que não há uma reprovação social em relação ao assediador.

PARTICIPANTE 9: É sim, porque isso, nas nossas experiências, é


constante. Assim, quanto mais nova você for, melhor, né? Você olha
carne nova, alguém que ta num processo de transição, ta descobrindo a sua
mulheridade. Isso dentro dessa perspectiva é masculinista patriarcal. É o
que é atrativo, né? Só é a gente pegar assim, de índice, de, de você observar
de homens e com uma certa idade com meninas muito novas. Caso não
vai longe, né? Do...recente, do cara que tava é, explorando sexualmente
meninas menores de idade. Nesse caso, de 11 a 14 anos, porque? E ele
tinha 46 anos. Pedófilo. E ai, isso? Mas é interessante que esse mesmo. Se
74

a palavra seria mesmo...adjetivo? Adjetivação. Não se dá pra um homem,


é quando tem essa mesma investida pro lado das mulheres trans e travestis,
por exemplo. (Transcrição participante 9-2022, travesti, parda, 27 anos)

A Participante 9 faz uma reflexão sobre o momento de transição não só


como de descobertas, mas também de vulnerabilidade dentro de uma estrutura
de dominação masculina. Os atrativos são as diversas relações de poder que
o assediador pode ter sobre a vítima e a total responsabilização desta última
por quaisquer atos de violência que vier a sofrer, uma vez que sua identidade
não corresponde ao papel social estabelecido e por isso, leia-se que necessita
do reconhecimento do outro para afirmar sua identidade feminina, podendo
vir através da violência sexual.

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Uma violência marcada pela condição de identidades femininas

As experiências trazidas por mulheres trans e as travestis sobre impor-


tunação sexual demonstraram que esta violência está relacionada às identi-
dades femininas, muito além de fatores biológicos. A fala da Participante 5,
23 anos, uma travesti, parda, traz lembranças desta violência anteriores ao
momento de transição, uma vez que sempre foi lida como feminina mesmo
com o “corpinho de boy”, utilizando-se de suas palavras.

PARTICIPANTE 5: [...] Já aconteceu muito comigo isso também,


muito, de ônibus lotado de homens vir roçar em mim. Até muito, isso,
isso, essas coisas acontecem desde antes da minha transição, porque eu
sempre fui feminina. Sempre fui feminina, mesmo quando eu ainda tava
lá no meu corpinho de boy, tudo mais, sempre fui, entendeu? Sempre
fui lida como feminina e isso já me colocava nesse lugar de ser, de ser
assediada, de ser, entendeu? Sempre aconteceu e se eu, se eu se, e, que
eu acho que eu acredito que eu me colocava até mais exposta antes,
entendeu? Antes da minha transição, porque eu ainda me sujeitava muito
também, entende? porque era naturalizado para mim, enquanto constru-
ção masculina ainda, né? São, são recortes, né? (Transcrição participante
5-2022, travesti, parda, 23 anos).

Como se pode analisar, o “corpinho” mencionado por ela está dentro da


fetichização e da lógica da ninfetinha que meninas cis são colocadas, porém
o aspecto trazido pela entrevistada não está relacionado ao biológico e sim
às identidades femininas que a coloca em um “lugar de ser assediada”, não
excluindo o grupo étnico de mulher não branca, a qual faz parte.
Observa-se que apesar de mulheres cis, trans e travestis serem apresen-
tadas a esse tipo de violência ainda com pouca idade, dentro do que estaria
a “boa reputação”, cada experiência trazida pelas participantes, somada aos
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 75

grupos étnicos e identidades de gênero pertencentes, trazem um aspecto dife-


renciado de corpos objetificados sexualmente que as afastam do perfil de
“vítima perfeita”. Esse dado, dialoga com um estudo de Neves (2019), que
reflete criticamente sobre o corpo de pessoas trans, que ainda em tenra idade,
é como se estivesse disponível para ser violentado sexualmente e fisicamente.
Assim, verifica-se a interseccionalidade nas experiências sobre impor-
tunação sexual vivenciadas em transportes coletivos nos relatos das partici-
pantes que as colocam no mesmo lugar de assediada, porém com contextos
que ultrapassam o viés biológico de homem e mulher, evidenciando os
aspectos sociais históricos e não uniformes de seus corpos, cujas vivências
são válidas e fonte de conhecimentos situados (AKOTIRENE, 2019; BAN-
DEIRA, 2019; COLLINS, 2020).
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Collins (2020) define a interseccionalidade como uma categoria ana-


lítica que busca investigar as diferentes relações de poder, que se moldam
mutuamente nas sociedades marcadas por diversidade e que acarretam expe-
riências individualizadas. Por diversidade, a autora considera as categorias
de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia,
faixa etária, como exemplos.
Em consonância, Akotirene (2019) conceitua como um paradigma teó-
rico e metodológico da tradição feminista negra que impede reducionismos
e propõe uma interação estrutural em seus efeitos políticos e legais, a fim de
lidar com as pautas das mulheres negras.
Relacionando os estudos sobre interseccionalidade aos estudos de gênero,
o pensamento de hooks (2019c) sobre gênero que inclui outras formas de
opressão, partindo de um diálogo com as massas acerca da importância polí-
tica do movimento feminista e que se soma ao posicionamento das ativistas
no Brasil na revolução gradual e prolongada das estruturas da sociedade para
combater qualquer forma de opressão.
Assim, mesmo marcadas por essas experiências contra seus corpos desde
jovens, as Participantes continuam utilizando o ônibus como meio de trans-
porte, por ser o meio menos oneroso e acessível de chegar ao destino desejado,
o que torna as importunações sexuais parte de suas rotinas, independente da
vigência da lei.

Considerações finais

Ao analisar as experiências de importunação sexual entre mulheres


ainda quando eram crianças ou adolescentes, apresentadas neste estudo,
mostrou que a relação ao crime de importunação sexual ainda se impera uma
lógica masculinista de fetichização de corpos infantis que responsabiliza
meninas pela violência sexual sofrida e coloca os homens adultos como
vítimas de seus desejos.
76

Nesse sentido, a noção de “vítima perfeita”, trazida por Sousa (2017), que
compreende a boa reputação e marcas de resistência para o seu reconhecimento
enquanto crime sexual, não funciona, uma vez que na maioria das vezes é
praticado por desconhecidos e não deixa marcas, o que dificulta, inclusive,
que a própria sobrevivente o compreenda como tal, mesmo sentindo medo
e constrangimento como qualquer outra vítima de violência dessa natureza.
Ademais, há de se concluir também que a ideia da “vítima perfeita”
ainda se relaciona com a noção de “opressão comum” (HOOKS, 2019b),
uma vez que o perfil da “boa reputação” está voltada para mulheres cis e
brancas, cuja imagem foi construída a partir da desvalorização de mulheres
“de cor” ou que não seguem a lógica cis-heteronormativa, estas últimas, são
colocadas na categoria de objeto sexual, por isso não são reconhecidas ou

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não se veem como vítimas dessa violência, independente se são crianças ou
adultas, casadas ou solteiras.
Por esta razão, a noção de “vítima perfeita” trazida pelo estudo indica
a necessidade de ampliar as formas de reconhecimento e proteção das víti-
mas de violência sexual. A ideia de que apenas mulheres cis e brancas, com
boa reputação e marcas de resistência, são vítimas legítimas desconsidera a
diversidade de experiências e vivências das mulheres e perpetua uma forma
de opressão comum que afeta mulheres de todas as raças, orientações sexuais,
identidades de gênero e classes sociais.
A conclusão apresentada neste estudo tem importantes implicações para a
Psicologia Social Crítica e o Direito. Em primeiro lugar, é fundamental reco-
nhecer que a fetichização de corpos infantis e a culpabilização das meninas
pelas violências sexuais sofridas refletem uma lógica patriarcal e machista
que ainda impera em nossa sociedade. Essa lógica se baseia na ideia de que
os homens têm o direito de exercer poder e controle sobre os corpos das
mulheres, incluindo os corpos das meninas e adolescentes.
Por fim, a interface entre a Psicologia Social Crítica e o Direito pode
contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas e práticas jurídicas
mais sensíveis e efetivas para lidar com as questões relacionadas à violência
sexual. É importante que as vítimas sejam acolhidas e ouvidas sem julga-
mentos e que as investigações e processos judiciais considerem as particu-
laridades de cada caso, levando em conta as múltiplas formas de opressão
que afetam as mulheres.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 77

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2030. Tribunal de Contas da União , 2018.
(DES)CONTINUIDADES POSTAS À
PSICOLOGIA NO SISTEMA PRISIONAL:
produzindo saúde e outro(s) direito(s)?
Erick da Silva Vieira
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Introdução
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Sob uma perspectiva cronológica, a inserção da Psicologia no âmbito


do sistema prisional não é recente. Data de 1984, quando da promulgação
da Lei 7.210 (que instituiu a Lei de Execução Penal), a previsão legal da
presença da/o psicóloga/o enquanto componente da Comissão Técnica de
Classificação (CTC), que teria por responsabilidade a construção do programa
individualizador da pena da pessoa em privação de liberdade. Existente em
cada estabelecimento prisional, a comissão seria presidida pela direção da
unidade e contaria também com, no mínimo, mais quatro componentes, entre
eles chefes de serviço, um psiquiatra e um assistente social (BRASIL, 1984).
Também seria atribuição da CTC a realização do chamado Exame Cri-
minológico, processo de avaliação com o objetivo de obter os “elementos
necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da
execução” (BRASIL, 1984, Art. 8), realizado quando do início do cumpri-
mento de pena em regime fechado e após o período que compreende um sexto
desta. O art. 112 da redação original do dispositivo enfatiza a influência do
Exame Criminológico na avaliação de progressão de regime:

A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com


a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz,
quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime
anterior e seu mérito indicar a progressão.
Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comis-
são Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário
(BRASIL, 1984).

Caberia às psicólogas – vinculadas às Secretarias Estaduais de Admi-


nistração Penitenciária ou congêneres e com remuneração oriunda das dis-
posições orçamentárias deste nível de governo – portanto, participar de um
processo avaliativo interprofissional em vistas de produzir elementos para que
82

o magistrado pudesse tomar suas decisões, tomando como premissas catego-


rias como “periculosidade”, “potencial de reincidência criminal” e, principal-
mente, a ideia de “ressocialização”. Almeida (2014), ao discutir a gênese das
práticas do que se convencionou denominar de Criminologia Clínica, destaca
que essas categorias foram incorporadas pelo direito brasileiro após tensões
entre perspectivas teóricas e ideológicas em torno do fenômeno do crime
ao longo dos últimos séculos, ensejando a mudança de paradigma quanto à
finalidade da pena, ou seja, o caráter estritamente retributivo da perspectiva
do inimigo da ordem supostamente dava lugar ao ideal da ressocialização.
Contudo, no que diz respeito às forças que atravessam essa atuação, o
tempo não é um fator autossuficiente para dirimir os instituídos que marcam
este campo. Os efeitos produzidos a partir do cotidiano das práticas das CTC’s

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ao redor do país ratificam e recompõem uma relação do Direito com outros
saberes que Renata Oliveira, Lisandra Moreira e Cláudia Natividade (2020)
chamam de utilitarista, produzindo demandas “técnicas” cujas soluções devem
ser facilmente providas pela “tecnologia do exame” (p. 24) – e, para tanto,
perspectivas teóricas fundamentadas em uma visão clássica do saber psico-
lógico encontrariam terreno fértil; a questionamentos como “esse sujeito que
cometeu o crime voltará a fazê-lo?”, seria suficiente a afirmação ou negação
e os elementos correspondentes à cada resposta.
Mesmo com a incumbência de determinação da progressão do regime,
constata-se que juízes tomam as produções das CTC’s como instrumentos de
verdade, produzidas de modo evidentemente contrário à ética profissional:
em um contexto de superlotação, superencarceramento e violações de direitos
humanos das mais diversas, a atividade de formulação de planos individua-
lizadores das penas no início de seu cumprimento é preterida às demandas
contínuas e persistentes de exame criminológico (ALMEIDA, 2014). Pro-
fissionais comumente sequer têm contato prévio com as pessoas sobre as
quais são demandados a avaliar, desconsiderando a dimensão ético-política
do compromisso profissional (BICALHO; VIEIRA, 2018); às decisões, são
produzidas provas – e não elementos.
É após a movimentação coletiva de trabalhadores do sistema e conselhos
profissionais em vistas de visibilizar os conflitos éticos ensejados pela prática
exclusiva do exame que, dezenove anos depois, a Lei 10.792/2003 altera a Lei
de Execução Penal para desobrigar médicos, psicólogos e assistentes sociais
de sua realização. Desobrigar, contudo, não significa impedir: as demandas
continuariam sendo feitas, mas o principal efeito positivo da alteração era o
de prover a chance destes profissionais realizarem exercício crítico sobre elas.
Outro efeito esperado consistia na possibilidade do reconhecimento das poten-
cialidades que estes profissionais poderiam significar no desenvolvimento
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 83

de atividades que garantissem efetivamente direitos às pessoas privadas de


liberdade, para além do que uma prática pericial e o Direito poderiam.
Neste sentido, três meses antes da promulgação, a Portaria Interministerial
n. 1.777 instituiu o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP),
resultado de um trabalho colaborativo entre áreas técnicas dos Ministérios da
Saúde e da Justiça e com participação de órgãos como o Conselho Nacional de
Secretários Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária. O Plano, pautado na reorientação de um modelo de atenção
clínico a um epidemiológico, reconhecia o cenário de violação de direitos
característico do sistema prisional e previa a inclusão da população privada
de liberdade (PPL) no Sistema Único de Saúde, a fim de garantir o direito à
cidadania na perspectiva dos direitos humanos (BRASIL, 2005).
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À época em que o regime fechado era a sentença de aproximadamente


210.150 pessoas no país (de acordo com dados do Departamento
Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça de agosto de 2003), foi criado
o Incentivo para Atenção à Saúde no Sistema Penitenciário, um conjunto
de recursos para financiamento de equipes mínimas nas unidades prisionais
compartilhado entre os Ministérios da Saúde (70%) e da Justiça (30%).
Após pactuação celebrada no âmbito de cada Unidade Federativa (UF), o
Fundo Nacional de Saúde procederia com o repasse dos recursos para os
Fundos Estaduais e/ou Municipais de Saúde, para que estes repassassem
aos respectivos serviços executores do Plano.
Entre a composição da equipe mínima – prevista no atendimento de
100 a 500 pessoas –, mais uma vez a Psicologia estava presente, desta vez
com o objetivo explícito de trabalhar de modo multiprofissional em vistas
de produzir cuidado e garantir o direito à saúde da população privada de
liberdade. Em relação aos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
(HCTP), Manicômios Judiciários e Sanatórios Penais, o documento apon-
tava que, em decorrência de suas especificidades, a operacionalização seria
objeto de normas próprias, definidas de acordo com a Política de Saúde
Mental (Lei n. 10.216/2001).
Em que pesem outras definições importantes acerca do PNSSP e de sua
operacionalização, fato é que, após dez anos de sua aplicação, foi constatado
o esgotamento de seu modelo, principalmente no que diz respeito à parcia-
lidade de sua cobertura. Assim, em janeiro de 2014, o Ministério da Saúde
lança a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas
de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), instituída pela Portaria Inter-
ministerial n. 1, com o objetivo de ampliar as ações de saúde do SUS para
a população privada de liberdade, fazendo com que cada unidade básica de
saúde prisional e os serviços prestados fossem visualizados como pontos de
84

atenção da Rede de Atenção à Saúde. A composição das equipes de saúde


continua bastante similar à prevista no PNSSP, com continuidade da profis-
sional de Psicologia15. Que questões essa nova previsão nos coloca em relação
às nossas intervenções? Que fatores se apresentam como relevantes? Seria a
consolidação de uma mudança de paradigma no que diz respeito à concepção
da prática psicológica no sistema prisional?
Assumindo a cartografia como ethos de pesquisa, o que significa acom-
panhar os processos e suas forças em vez de representar os objetos em suas
formas (BARROS; KASTRUP, 2010), o presente texto tem por objetivo dis-
cutir as continuidades e descontinuidades da prática psicológica no âmbito
do sistema prisional. Através das discussões do campo da Psicologia Social
Jurídica, interessa-nos acompanhar que apontamentos estas institucionaliza-

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ções fazem a respeito das possibilidades da prática psicológica neste campo
e que forças os têm agenciado – e por eles têm sido agenciadas.
Para tanto, são analisados dois acontecimentos a partir dos documentos a
eles relacionados: a previsão legal desta profissional em Equipes de Atenção
Primária Prisional, no âmbito da PNAISP, instituída em 2014; e a extinção,
ainda que temporária, do Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medi-
das Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito
com a Lei, realizada em 18 de maio de 2020 por meio da Portaria n. 1.325 do
Ministério da Saúde, à época em que o Brasil era (des)governado pelo então
presidente Jair Bolsonaro.

O acontecimento PNAISP

Entre os princípios, diretrizes e objetivos elencados no ato de sua institui-


ção (BRASIL, 2014a), a PNAISP aponta a “atenção integral resolutiva, contí-
nua e de qualidade às necessidades de saúde da população privada de liberdade
no sistema prisional, com ênfase em atividades preventivas, sem prejuízo dos
serviços assistenciais” (Art. 4, parágrafo II, grifo nosso); e “garantir a auto-
nomia dos profissionais de saúde para a realização do cuidado integral das
pessoas privadas de liberdade” (Art. 6, parágrafo II, grifo nosso). Em relação à
prática exclusivamente avaliativa das CTC’s, os aspectos destacados indicam-
-nos uma possível mudança importante quanto às intervenções psicológicas,
principalmente no âmbito de uma política nacional de corresponsabilização.
A redação também indica que são beneficiárias da PNAISP tanto as
pessoas inseridas no sistema prisional quanto aquelas em cumprimento de

15 No escopo deste texto, evidenciar a relação entre o PNSSP e a PNAISP interessa mais que evidenciar suas
diferenças por meio de uma análise comparativa. Para este fim, mais informações podem ser consultadas
em Brasil (2005).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 85

medida de segurança (art. 7), por meio de equipes de diferentes – mas com-
plementares – composições. De acordo com a Portaria n. 482, de 1 de abril de
2014, a assistência no sistema prisional é ofertada pelas Equipes de Atenção
Básica Prisional (EABP’s)16, com cinco tipos previstos em relação ao número
de custodiados/as em cada unidade e a associação com módulo de Saúde
Mental (SM). A equipe mínima (tipo I), indicada para o atendimento de até
100 pessoas, não conta em sua composição com vaga reservada para a Psi-
cologia17 – e no tipo I com SM, a previsão é de caráter opcional, cabendo ao
proponente selecionar dois profissionais entre as áreas de assistência social,
enfermagem, farmácia, fisioterapia, psicologia ou terapia ocupacional. Já as
equipes de Tipo II, II com SM e III contam necessariamente com a participação
da Psicologia (BRASIL, 2014c)18.
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Já no que diz respeito à assistência às pessoas submetidas à medida de


segurança, ato normativo próprio é encontrado na Portaria n. 94, de 14 de
janeiro de 2014 (BRASIL, 2014b), que institui o Serviço de Avaliação e Acom-
panhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno
Mental em Conflito com a Lei, operacionalizado pelas equipes homônimas
(EAP’s). O serviço seria coordenado pelos gestores estaduais de saúde de
unidades federativas qualificadas tanto ao Plano Nacional de Saúde no Sis-
tema Penitenciário quanto à PNAISP, com suas equipes interdisciplinares
atuando por requisições agendadas e sendo formadas por cinco profissionais,
necessariamente entre eles uma psicóloga/o.
A fim de garantir a assistência nos serviços da rede de atenção à saúde em
decorrência do caráter terapêutico da medida de segurança, as EAP’s teriam
caráter extremamente articulador, com atribuições como:

I. Realizar avaliações biopsicossociais e apresentar proposições fun-


damentadas na Lei 10.216 de 2001 e nos princípios da PNAISP,
orientando, sobretudo, a adoção de medidas terapêuticas, preferen-
cialmente de base comunitária, a serem implementadas segundo um
Projeto Terapêutico Singular (PTS);

16 Na redação dos dispositivos institucionais aqui listados, encontramos a denominação “Equipe de Atenção
Básica Prisional – EABP”, mesmo que a Secretaria responsável pela coordenação da PNAISP no Ministério
da Saúde se refira às equipes como “Equipe de Atenção Primária Prisional – eAPP”. Aqui, trabalharemos
com a expressão original de cada documento apontado; contudo, por entender que não se tratam de
expressões sinônimas já que ensejam perspectivas descontínuas, sugerimos a leitura de Mello, Fontanella
e Demarzo (2009).
17 A única exceção prevista é colocada no Art. 3, § 12: “Em unidades com até 100 (cem) pessoas privadas
de liberdade que assistam preferencialmente pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, é reco-
mendada a habilitação de Equipe de Atenção Básica Prisional tipo II ou Equipe de Atenção Básica Prisional
tipo II com saúde mental” (BRASIL, 2014a).
18 Em setembro de 2021, o Ministério da Saúde publica a Portaria nº 2.298, cujo conteúdo dispõe sobre normas
de operacionalização da política e indica alterações em relação à formação das equipes.
86

II. Identificar programas e serviços do SUS e do SUAS e de direitos de


cidadania, necessários para a atenção à pessoa com transtorno mental
em conflito com a Lei e para a garantia da efetividade do PTS;
III. Estabelecer processos de comunicação com gestores e equipes de
serviços do SUS e do SUAS e de direitos de cidadania e estabe-
lecer dispositivos de gestão que viabilizem acesso e correspon-
sabilização pelos cuidados da pessoa com transtorno mental em
conflito com a Lei;
V. Acompanhar a execução da medida terapêutica, atuando como dis-
positivo conector entre os órgãos de Justiça, as equipes da PNAISP
e programas e serviços sociais e de direitos de cidadania, garantindo
a oferta de acompanhamento integral, resolutivo e contínuo;
VII. Contribuir para a realização da desinternação progressiva de pes-

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soas que cumprem medida de segurança em instituições penais ou
hospitalares, articulando-se às equipes da PNAISP, quando houver,
e apoiando-se em dispositivos das redes de atenção à saúde, assis-
tência social e demais programas e serviços de direitos de cidadania
(BRASIL, 2014b, Art. 4).

Outro aspecto importante diz respeito ao processo de habilitação de


ambas as equipes. Inicialmente, os gestores estaduais precisam assinar o
Termo de Adesão, elaborar o chamado Plano de Ação Estadual para Aten-
ção à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade e encaminhá-los ao Ministério
da Saúde para apreciação (BRASIL, 2014a); quando da aprovação deste e
publicação em portaria específica, as equipes devem ser inseridas no Cadas-
tro Nacional de Estabelecimentos de Saúde para posterior solicitação de
habilitação destas. O repasse do incentivo financeiro do fundo federal para
os fundos estaduais/municipais se dá somente após a publicação da Portaria
de Habilitação (BRASIL, 2014c), ou seja, após a contratação efetiva das
equipes por parte das gestões estaduais, razão que poderia justificar um
lento ritmo de ampliação da cobertura da população privada de liberdade
em estados onde esta é elevada.
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias –
INFOPEN19 de dezembro de 2019 indicam 1.244 psicólogos vinculados à saúde
em suas instituições – entre efetivos, comissionados, terceirizados e temporá-
rios – , 3,4% a menos que no mesmo semestre do ano anterior. Mesmo que os
dados não confirmem se essa vinculação se dá por via da PNAISP, a Tabela 1
organiza a cobertura da população privada de liberdade em cada estado com
relação à quantidade de equipes que contam com a presença de profissionais de
psicologia. Foram contabilizadas 301.120 consultas psicológicas com o público

19 O levantamento exposto compreende o período entre julho e dezembro de 2019. Disponível em: https://
app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMmU4ODAwNTAtY2IyMS00OWJiLWE3ZTgtZGNjY2ZhNTYzZDliIiwidCI6I-
mViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 8 mar. 2021.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 87

masculino (8,31% do total de procedimentos do período, comparado a 9,29%


do ano anterior) e 39.532 com as mulheres presas, representando 10,94% do
total de procedimentos, aproximadamente 4% a menos que em 2018.
É evidente que categorias como “consultas psicológicas” e outras, como
“mortes naturais por motivos de saúde” e “mortes por causas desconhecidas”
– ambas somam 806 mortes no período, acrescidas de 80 suicídios –,
precisam ser tomadas no processo de consideração do modo como esses
dados são catalogados. Eles apontam questões relativas às práticas, mas não
as explicam numa relação de causa e efeito; afinal, uma consulta psicológica
não necessariamente é sinônimo de uma prática preventiva, assim como
as causas das mortes aqui apontadas nos fazem pensar se estas seriam tão
inevitáveis ou desconhecidas quanto parecem, dado o contexto de violações
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diversas de direitos e de execução de uma política penal-prisional que forma


compromissos entre a indiferença e a produção de morte (COSTA; SILVA;
BRANDÃO; BICALHO, 2020).
Tomando os dados não como fim, mas como ponto de partida para a aná-
lise dos processos, acreditamos ser possível conceber, no que diz respeito às
intervenções psicológicas no sistema prisional, a Política Nacional como um
acontecimento. Para Deleuze e Guattari (1997), um acontecimento é carac-
terizado por irrupções ao atual estado de coisas, por seu caráter criador que
tem necessidade do devir, ou seja, estreitamente relacionado a um elemento
não-histórico (DELEUZE, 2010). Para além de uma sucessão cronológica
de políticas, a PNAISP apresenta a potência de deslocar uma prática exclu-
sivamente avaliativa não somente em decorrência do aumento do número de
profissionais desta categoria (em aproximadamente 61% das equipes habi-
litadas), mas de sua previsão e vinculação explícita a práticas de promoção
de direitos; como provocam Oliveira, Moreira e Natividade (2020, p. 25), à
execução de um “Direito autoritário e burguês, contrapomos uma Psicologia
libertária, exterior ao próprio Direito”.

Tabela 1 – Cobertura de População Privada de Liberdade (PPL) pela


PNAISP em relação a composição de Equipes de Atenção Primária Prisional
(eAPP’s) com profissionais de Psicologia por Unidade Federativa (UF)

eAPP’s eAPP’s com


Unidade PPL Cobertura
habilitadas psicóloga/o*
Federativa
N N N % N %
AC 8.414 4 2.439 28,98 4 100
AL 9.161 8 4.112 44,88 8 100
AM 10.890 8 1.059 9,72 4 50
AP 2.750 - - - - -
BA 15.108 4 1.987 13,15 4 100
continua...
88
continuação

eAPP’s eAPP’s com


Unidade PPL Cobertura
habilitadas psicóloga/o*
Federativa
N N N % N %
CE 31.569 18 20.378 64,55 16 88,8
DF 16.586 11 16.824** 101,43** 6 54,5
ES 23.427 19 17.129 73,11 19 100
GO 25.761 34 4.505 17,48 8 23,5
MA 12.346 19 2.547 20,63 8 42,1
MG 74.712 47 17.346 23,21 30 63,8
MT 12.519 4 615 4,91 2 50

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MS 17.423 40 10.933 62,75 15 37,5
PA 20.825 11 6.645 31,9 11 100
PB 13.326 5 701 5,26 3 60
PE 33.641 29 31.515 93,68 26 89,6
PI 4.433 6 1.192 26,88 4 66,6
PR 29.690 6 2.042 6,87 3 50
RJ 50.822 4 4.840 9,52 4 100
RN 10.155 11 6.046 59,53 8 72,7
RO 13.419 7 1.702 12,68 4 57,1
RR 3.688 1 1.529 41,45 1 100
RS 41.189 33 18.187 44,15 28 84,8
SC 23.470 24 12.075 51,44 11 45,8
SE 6.244 - - - - -
SP 231.287 8 8.864 3,83 8 100
TO 4.481 28 2.820 62,93 2 7,1
BRASIL 748.009 389 198.032 26,47 237 60,9

Fonte: Elaboração a partir de dados da Secretaria de Atenção Primária à Saúde20


(Ministério da Saúde) e do INFOPEN (Departamento Penitenciário Nacional),
atualizados, respectivamente, em julho de 2020 e dezembro de 2019.

* As equipes contabilizadas são de Tipo II, II com SM e III, tendo em


vista que reservam necessariamente uma vaga à Psicologia. O número total
é possivelmente maior, se contarmos com as equipes de Tipo I com SM que
optaram pela contratação desta profissional – em decorrência de não ser um
dado disponível, optamos por não as incluir.

20 Disponíveis em: https://aps.saude.gov.br/ape/pnaisp/monitoramento. Acesso em: 8 mar. 2021.


PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 89

** Em decorrência de descompasso na atualização dos dados do


INFOPEN, o número de pessoas atendidas pelas EAPP’s no Distrito Federal
é maior que a população privada de liberdade total deste, o que justifica o
percentual apontado.

O dispositivo-saúde

Acontecimentos rearranjam forças, mas não fazem cessar a produção


dos dispositivos. Com as pistas de Foucault e Deleuze (1996), podemos com-
preender o dispositivo como um nó que produz e é produzido pelas forças
em campo com efeitos de subjetivação; de caráter maquínico, o dispositivo
concentra poder de controlar (CHIGNOLA, 2014). É a partir de um certo
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processo de desnovelamento que essas linhas podem ser observadas e, assim,


melhor acompanhadas as forças que ensejam. Enquanto podemos situar o
acontecimento como aquilo que nos aponta a existência e a posição das coi-
sas ao alterá-las, o dispositivo nos indica o movimento de suas forças e suas
associações (KASTRUP; BARROS, 2015).
Com essas ideias, compartilhamos aqui do entendimento de que o litígio
estratégico e a institucionalização de políticas em letra de lei não são suficientes
para a garantia de direitos humanos, que precisam ser entendidos a partir de uma
dimensão ética e processual, ou seja, na produção de possibilidades concretas
de outros modos de existência, “resultados sempre provisórios das lutas que
os seres humanos colocam em prática” (HERRERA FLORES, 2009, p. 31).
Na discussão que aqui propomos, um evento em 18 de maio de 2020 ganha
relevo: a publicação da Portaria n. 1.325, que extinguiu o Serviço de Avaliação e
Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno
Mental em Conflito com a Lei no âmbito da PNAISP, mantendo por cento e
oitenta dias os repasses dos incentivos financeiros aos estados e municípios que
possuíam equipes EAP habilitadas (BRASIL, 2020) – no mesmo dia em que
se comemora o dia da Luta Antimanicomial no Brasil. A decisão, tomada pelo
ministro -“interino” da Saúde Eduardo Pazuello, baseia-se exclusivamente no
Parecer Técnico n. 4/2019-COPRIS/CGGAP/DESF/SAPS/MS21, cujo conteúdo
se mostra de extrema importância na construção de um importante agenciamento
de forças institucionais e perspectivas profissionais.
Considerando o incentivo financeiro de R$66.000,00 destinado a cada
equipe EAP habilitada, o primeiro argumento elencado pelos gestores diz res-
peito ao fato de apenas quatro a sete equipes terem sido pagas no exercício de

21 Assinado em dezembro de 2019 pela Coordenadora de Saúde no Sistema Prisional e pelo Diretor do Depar-
tamento de Saúde da Família, ambos no âmbito da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Disponível em:
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/ParecerTecnico_N_42019ExtincaoEAPs.pdf.
90

2019 (janeiro a novembro) – de um total de onze habilitadas22 –, o que indicaria


a falta de envio das informações pelo sistema e-SUS AB e, portanto, seu não
funcionamento. Um segundo argumento relaciona-se com o descompasso no
avanço das EAP’s em relação às EABP’s, uma vez que, no período de instituição
da política à época da confecção do documento, 357 EABP’s foram habilitadas.
Soares Filho e Bueno (2016) já indicavam essa baixa procura dos estados
e municípios pela habilitação de equipes deste serviço, apontando que uma
“complexidade conceitual adicionada à falta de um plano de divulgação dessa
estratégia política podem ser interpretadas como os principais fatores” (p.
2108, grifo nosso); distantes de sugerir a extinção do serviço, os autores apon-
tavam a necessidade de criação de uma estratégia bem definida de divulgação
aos membros do judiciário a fim de ampliar sua “sensibilidade” às questões

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do direito à saúde mental quando associada às medidas de segurança. Em
caminho oposto, o parecer sugere a extinção adicionando que

O incentivo financeiro dessa estratégia não possui orçamento próprio,


onerando o mesmo Programa de Trabalho voltado às EABP’s da PNAISP.
É importante frisar que as condições de saúde nas unidades prisionais
podem ser precárias, devido a diversos fatores, como a superlotação, más
condições de higiene, alimentação inadequada, ausência de atividades
físicas, entre outros. Dessa forma, as equipes de atenção à saúde são
muito demandadas intramuros, o que faz com que a gestão priorize a
implantação e financiamento de EABP’s em detrimento das EAP’s. (...) O
monitoramento da produção das EAP’s também é um entrave, uma vez que
essas equipes não são de atenção à saúde e as informações do e-SUS AB
são voltadas a procedimentos realizados, dificultando o acompanhamento
da atuação das EAP’s (grifos nossos).

Acreditamos que a complexidade referida por Soares Filho e Bueno


(2016) se relaciona diretamente com as perspectivas colocadas tanto às Equi-
pes de Avaliação e Acompanhamento quanto às Equipes de Atenção Básica
Prisional no sentido de conceber saúde a partir de um referencial procedimen-
tal, protocolar e como sinônimo de ausência de doença, ou seja, incongruente
com diretrizes de órgãos internacionais, como a Organização Mundial da
Saúde, e de propostas já estabelecidas em letras de lei brasileiras, como a Lei
da Reforma Psiquiátrica e a Política Nacional da Atenção Básica.

A equipe prevista nessa estratégia não é, portanto, uma equipe de aten-


ção à saúde. O papel dessa equipe depende de uma forte articulação

22 Uma em Manaus (AM), três em São Luís (MA), uma em Sidrolândia (MS), uma em Belém (PA), uma em
Recife (PE), três no estado do Piauí e uma na capital de São Paulo.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 91

entre os setores da saúde, administração penitenciária e o poder Judi-


ciário, ou seja, o contexto e os arranjos locais são determinantes para o
funcionamento da EAP.

Quando desse modo referem-se às EAP’s, fica evidente o entendimento


estrito do que é saúde, o direito à saúde e o que é necessário na tarefa de garan-
ti-los. Falta o reconhecimento de que o papel dessas equipes não só depende
de uma forte articulação intersetorial; na verdade, a falta de articulação entre
os setores elencados é exatamente a principal condição de possibilidade do
serviço – e, portanto, o principal argumento em prol de sua existência, não de
sua extinção. Em um contexto de desmonte generalizado das políticas públi-
cas, opera-se na contramão de premissas arduamente consolidadas e ainda se
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põe dois serviços previstos no escopo da mesma política como excludentes


entre si, sob o argumento de que para a consolidação de um se onera o outro.
Nesse contexto, trabalhar com saúde mental torna-se ainda mais problemático,
pois atividades de articulação não são concebidas como do escopo da saúde e
de sua promoção, o que não só interfere nas práticas profissionais no sistema
prisional como também na garantia dos direitos das pessoas custodiadas.

Considerações: as linhas de fuga-luta

Se a garantia de direitos é entendida de forma processual e nunca finali-


zada, cabe-nos destacar e perseguir as linhas de fuga que escapam à captura
dos dispositivos (DELEUZE, 1996). Existe um componente que não se deixa
controlar totalmente, dadas as forças de resistência envolvidas no campo que
se associam diretamente às lutas de diversos agentes; linhas de fuga-luta. No
mapa que tentamos construir ao longo deste texto, constatamos essas linhas
sendo compostas pelas ações dos próprios profissionais da ponta, mas também
de seus conselhos profissionais e de órgãos macropolíticos importantíssimos
para a reversão da tentativa de desmonte, ora em curso.
Mesmo com a existência de um Comitê de Especialistas em Saúde Pri-
sional, instituído com a finalidade de assessorar ações no âmbito da PNAISP
e composto por membros de representações governamentais, científicas e da
sociedade civil (BRASIL, 2017), é do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
de posicionamentos públicos de Conselhos de Profissões Regulamentadas e
da intervenção conjunta de Mecanismos Estaduais e Nacional de Prevenção
e Combate à Tortura (MNPCT/MEPCT-RO/MEPCT-RJ/MEPCT-PE/MEPC-
T-PB) que surgem enunciados marcando expressamente a arbitrariedade e a
necessidade de revogação da portaria.
92

Em texto assinado por seu então presidente23, o CNS marca sua função de
formulação e controle na execução da Política Nacional de Saúde e afirma, em
acordo com parecer anterior da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) de 2011, que “o paciente em
medida de segurança é sujeito da saúde e não da justiça”, o que fundamenta
todos os atos normativos para progressiva extinção dos HCTP’s e destaca a
articulação intersetorial neste processo. As recomendações contemplam não
somente a revogação da portaria que extinguiu o serviço, como também a
garantia do incentivo financeiro federal tanto às EAP’s já habilitadas quanto
a novas equipes a serem implementadas. O documento finda com o destaque
de “que qualquer alteração da Política Nacional de Saúde que afete os direitos

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das pessoas com transtorno mental e a assistência em saúde mental seja ampla-
mente discutida e deliberada pelo Pleno do Conselho Nacional de Saúde”.
Por sua vez, a Nota Técnica Conjunta de Mecanismos brasileiros24 des-
taca a desconsideração das lutas associadas à promulgação da Lei 10.216/2001
e a constatada redução do número de pessoas privadas de liberdade que esta-
vam submetidas a medidas de segurança no período de atuação das EAP’s,
o que corrobora esforços na direção de seu fortalecimento e não extinção.
O documento é finalizado com recomendações tanto ao Ministério da Saúde
quanto aos sistemas distritais, estaduais e federal de justiça, em vistas de
assegurar que os direitos dessas pessoas em seus territórios de competência
não sejam violados como efeito da portaria.
Ao acompanharmos estes processos a partir da perspectiva da atuação da
Psicologia, consideramos que as forças em jogo, micro e macropolíticas, ense-
jam (des)continuidades à sua realização. As análises apontam que as expectativas
de uma prática exclusivamente avaliativa persistem, apesar de dispositivos legais
atestarem sua desobrigação, principalmente na medida em que possibilidades de
atuação interprofissional e colaborativa encontram-se dificultadas em razão de
aspectos como diversidade de vínculos institucionais, financiamento posterior
à habilitação das equipes e entraves de operacionalização da PNAISP – e, com
destaque, às concepções acerca do que é saúde mental e de como promovê-la.
Em um contexto de desmonte generalizado de políticas arduamente
estabelecidas – em um momento histórico recente do país -, apostamos no
exercício crítico tanto das profissionais vinculadas à PNAISP, ampliando

23 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Recomendação n. 044, de 15 de junho de 2020. Recomenda ao Ministé-


rio da Saúde a revogação da Portaria nº 1.325, de 18 de maio de 2020. Disponível em: http://conselho.saude.
gov.br/recomendacoes-cns/recomendacoes-2020/1225-recomendac-a-o-n-044-de-15-de-junho-de-2020.
24 Nota Técnica Conjunta sobre Portaria GM/MS nº 1.325/2020 que extinguiu o Serviço de Avaliação e Acom-
panhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei.
Disponível em: https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2020/07/nota-conjuta-mbpct-portaria-eap.pdf.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 93

procedimentos e possibilidades acerca de como produzir saúde, tanto daque-


les considerados na função de “criminólogos clínicos” (ALMEIDA, 2014).
Que à clássica questão “quais são as causas do comportamento criminoso?”,
continue havendo a provocação em seus textos, pareceres, relatórios e laudos
de “quais são os objetivos da pena de prisão?”. E, assim, que a Psicologia
Social Jurídica atravesse as Políticas Prisionais deste país.
Resistimos e, assim, não permitimos o desmonte do Serviço de Avaliação
e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Trans-
torno Mental em Conflito com a Lei (EAP), no âmbito da Política Nacional
de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema
Prisional. Resistimos às arbitrariedades que ensejavam promover mudanças
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nas políticas de saúde mental em desacordo com o que preconizam as Políticas


Antimanicomiais (Lei n. 10.216/2001), a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto n. 6.949/2009) e o Sistema
Único de Saúde – SUS (Lei n. 8.080/1990).
E que nas próximas páginas da gestão política deste país nunca mais
precisemos segurar com tanta força as mãos uns dos outros. Que as mobi-
lizações produzidas na direção da defesa ética, lúcida e comprometida das
políticas públicas prisionais em diálogo com as políticas públicas anti-
manicomiais fortaleçam a necessária (e urgente) reconstrução do Brasil.
94

REFERÊNCIAS
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com transtorno mental em conflito com a Lei, no âmbito do Sistema Único de
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a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das
Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS). Retirado de: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/gm/2014/prt0482_01_04_2014.html.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 95

BRASIL. Portaria de Consolidação n. 2, de 28 de setembro de 2017. Con-


solidação das normas sobre as políticas nacionais de saúde do Sistema Único
de Saúde. Retirado de: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/
prc0002_03_10_2017.html.

BRASIL. Portaria n. 1.325, de 18 de maio de 2020. Revoga o Capítulo III,


do Anexo XVIII da Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro
de 2017, que trata do “Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas
Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com
a Lei”, no âmbito da Política Nacional de Atenção às Pessoas Privadas de
Liberdade no Sistema Prisional. Retirado de: https://bvsms.saude.gov.br/
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CONSTELAÇÕES FAMILIARES
NO SISTEMA DE JUSTIÇA:
tratamento adequado dos conflitos?
Roberta Dornelas Miranda
Renata Ghisleni de Oliveira
Lílian Perdigão Caixêta Reis

Introdução
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As constelações familiares têm ganhado popularidade nos últimos anos no


Brasil, seja pela sua utilização enquanto ferramenta terapêutica e abordagem de
compreensão dos relacionamentos e conflitos, seja pela repercussão das proble-
matizações quanto a seus métodos, fundamentos, efeitos e riscos. A efervescência
em torno do assunto vai desde debates calorosos na internet, projetos de lei a
favor e contrários à prática, audiência pública para debate do tema, publicações de
artigos científicos com viés crítico a, recentemente, publicação de uma nota téc-
nica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP)25 com posicionamento contrário
ao uso da ferramenta por profissionais da psicologia, entre outros apontamentos.
A despeito deste cenário, as constelações familiares vêm ganhando mais
espaço em serviços públicos e em formações acadêmicas e profissionais, che-
gando aos tribunais de justiça do país, principalmente às Varas de Famílias,
com a validação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sob a justificativa
de enquadre na Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos
conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário26. Diante disso, com
o intuito de responder algumas perguntas sobre as constelações familiares,
de provocar questionamentos sobre a sua adesão pelo sistema público de
justiça e de traçar algumas pistas para uma política pública que promova
um tratamento genuinamente adequado de conflitos, sobretudo familiares,
desenvolve-se o presente capítulo.

25 Nota Técnica CFP 01/2023, que visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação
Familiar, também denominada Constelações Familiares Sistêmicas. Disponível em: Nota Técnica 1/2023
– Visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também denominada
Constelações Familiares Sistêmicas. – CFP | CFP. Acesso em 10 de julho de 2023.
26 Resolução CNJ nº125, de 29 de novembro de 2010. Disponível em: resolucao_125_29112010_23042014190818.
pdf (cnj.jus.br). Acesso em :10 jul. 2023.
98

O texto é fruto de desdobramentos da pesquisa de mestrado realizada por


uma das autoras27 sobre a utilização das constelações familiares como meca-
nismo, supostamente, de resolução de conflitos no âmbito do Poder Judiciário
brasileiro. Como parte das estratégias da pesquisa, foi realizado um estudo de
caso do trabalho com constelações familiares implementado em uma Vara de
Família, Órfãos e Sucessões, localizada na região nordeste do Brasil. As etapas
da pesquisa contemplaram revisão de literatura, análise documental, observação
participante de uma vivência de constelações familiares e aplicação de entre-
vistas semiestruturadas. Dos grupos entrevistados, um deles foi composto por
pessoas com ações judiciais na área de direito das famílias e sucessões, que
já haviam participado de ao menos uma vivência de constelação familiar, e o
outro formado por integrantes da equipe de trabalho envolvida no projeto –

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juiz responsável, assessora e estagiária do gabinete e a conciliadora da Vara.
No decorrer do capítulo será apresentada uma conceituação das constela-
ções familiares, com uma sucinta apresentação das pessoas e instituições cujos
nomes estão atrelados à prática e à chegada da ferramenta no Brasil, bem como
sua entrada nos serviços públicos. Serão abordados alguns desdobramentos
da ampla adesão às constelações familiares no país, como a realização de
audiência pública interativa pelo Senado e a emissão de nota técnica pelo CFP,
comentados a partir de uma leitura crítica e da contextualização do momento
histórico atual marcado pelos efeitos das políticas neoliberais.
Adotando como ponto de partida a provocação quanto ao que sinaliza/(d)
enuncia a ação de constelar as famílias no Sistema de Justiça brasileiro, serão
apontadas problemáticas relacionadas à prática, como a produção de passivi-
dade, alienação e assujeitamento dos usuários do sistema de justiça, a desconsi-
deração de outros saberes já consolidados cientificamente, a atuação centralizada
e centralizadora do Judiciário e a lógica de compulsoriedade da conciliação.
Jà à guisa das considerações finais, será enfatizada a distância existente
entre as constelações familiares e os métodos autocompositivos, em razão da
inobservância da voluntariedade, autonomia da vontade, protagonismo das partes
e escopo emancipatório, entre outras diretrizes que orientam os mecanismos con-
sensuais de resolução e prevenção de conflitos, bem como fundamentam a polí-
tica pública de tratamento adequado de conflitos no âmbito do Poder Judiciário.
Por fim, serão apontadas como pistas para a construção de uma política
pública que ofereça tratamentos adequados à natureza e peculiaridade dos
conflitos, o compromisso com o cuidado enquanto diretriz importante dos

27 Roberta Dornelas Miranda, sob orientação da professora doutora Lílian Perdigão Caixêta Reis. Pesquisa
desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica da Universidade Federal
de Viçosa (UFV), cujo título da dissertação defendida em março de 2020 corresponde a “Constelações
Sistêmicas: uma análise do uso desta ferramenta no tratamento de conflitos judiciais familiares”.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 99

trabalhos, a interdisciplinaridade e a multiprofissionalidade como estruturas


metodológicas, o formato de redes e a participação popular, componentes
capazes de reverberar na emancipação dos sujeitos e na transformação da
cultura de resolução e manejo de conflitos no Brasil.

Constelações familiares e sua entrada nas políticas públicas


brasileiras

Apresentar um conceito preciso para as constelações familiares não é


tarefa fácil, tanto em razão da multiplicidade de termos utilizados nas referên-
cias à prática, quanto das explicações genéricas e contraditórias encontradas,
além do cenário de polarização entre aqueles que a defendem com entusiasmo
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e aqueles que a repugnam. Por si só, este panorama comunica algo importante,
ao enunciar a obscuridade que ronda o assunto, além dos questionamentos,
embates, conflitos de interesses e dilemas éticos existentes.
Ao recorrer-se às referências bibliográficas dentre as obras sobre cons-
telações familiares, depara-se com a pesquisa desenvolvida pela psicóloga
alemã Franke-Bryson, em que a autora esboça uma hipótese de fundamentação
teórica para as constelações familiares, tendo como referência o trabalho de
Bert Hellinger. A partir da compreensão da prática como forma de “resolução
orientada de questões ou terapia sistêmica breve, uma vez que vai do problema
à possível solução em breve intervalo de tempo” (FRANKE-BRYSON, 2019,
p. 27), sugere, enquanto subsídios teóricos, a associação entre a teoria do psi-
codrama, de Jacob Moreno, a escultura familiar e a reconstrução familiar, de
Virginia Satir, e a terapia contextual de Ivan Boszormenyi-Nagy, destacando
a necessidade de estudos científicos que fundamentem sua proposição.
Mediante a leitura dos livros de Bert Hellinger, é possível extrair-se duas
compreensões para as constelações familiares. Em um sentido amplo, seriam um
conjunto de conhecimentos relacionados aos vínculos humanos, entre os quais
estariam o que Hellinger nomeou de “ordens do amor” – condições inconscien-
tes, direcionadas ao pertencimento, ao equilíbrio e à ordem dentro dos sistemas
compostos por indivíduos. Uma vez desordenadas, haveria “emaranhamentos
sistêmicos”, geralmente relacionados a algum acontecimento familiar, o que
levaria a dinâmicas disfuncionais nos relacionamentos, a fracassos pessoais e a
problemas de saúde (HELLINGER, 2015, p. 11). Quando em ordem, estas con-
dições proporcionariam ao sistema paz e estabilidade, permitindo a realização
pessoal dos seus integrantes (FRANKE-BRYSON, 2019, p. 133).
A segunda compreensão para constelações familiares, em um sentido
mais estrito, seria a de um recurso prático, ou seja, uma “ferramenta uti-
lizada para tornar visível a dinâmica normalmente oculta dos sistemas de
100

relacionamento [...]” (HELLINGER; WEBER; BEAUMONT, 2006, p. 15).


Apropriando-se da ferramenta, o papel do(a) constelador(a) seria o de perce-
ber, no curso das vivências – intuitivamente – os emaranhamentos existentes
no sistema familiar de seu cliente, auxiliando-o a tomar consciência das dinâ-
micas ocultas e a retomar ao seu lugar dentro do sistema, desfrutando assim
de leveza, bonança e prosperidade.
Indo um pouco mais adiante em busca de compreender-se a localização
social de Bert Hellinger e as influências que embasam a sua atuação como
terapeuta e formador de outros terapeutas, esbarra-se em uma trajetória de
vida28 com significativa presença da religião católica e com a experiência de
participação na Segunda Guerra Mundial como soldado ao lado das tropas ale-
mãs nazistas. Antes do trabalho com terapias, ele ordenou-se padre e trabalhou

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como missionário católico na África do Sul junto ao povo Zulu por 16 anos, e
ao deixar a igreja, afirma ter estudado psicanálise, gestalt-terapia, análise transa-
cional, terapia familiar, hipnoterapia, programação neurolinguística (PNL), entre
outras referências, passando a atuar com atendimentos particulares e grupais.
Mais adiante em sua vida, Bert Hellinger dedicou-se a seminários de formação
em constelação familiar realizados em diferentes países, dentre eles o Brasil.
Em 1999, sua então esposa Sophie Hellinger fundou uma organização
chamada HellingerShule®, apresentada como uma instituição de ensino cuja
missão seria mostrar as dinâmicas ocultas que adoecem as famílias e impedem
a plenitude dos indivíduos, além de oferecer e transmitir soluções holísticas
para os supostos bloqueios identificados29, por meio de uma “ciência pura”
das constelações familiares. Bert Hellinger manteve vínculo com a Hellinger-
Shule® até o seu falecimento, no ano de 2019, e atualmente a instituição pos-
sui parceria com cursos de pós-graduação em constelação familiar no Brasil.
Em se tratando do contexto brasileiro, pelo que se sabe, a prática chegou
ao país no final da década de 1980, por meio da terapeuta alemã Mimansa
Erika Farny30, que iniciou um trabalho com vivências e treinamentos em
diferentes estados. Conforme noticiado pelo CNJ, a primeira experiência
com constelações familiares no Sistema de Justiça brasileiro se deu em 2012,
“naquele ano, a técnica foi testada com cidadãos do município de Castro

28 Os dados biográficos de Bert Hellinger foram retirados dos sites Obituário de Bert Hellinger – Hellinger e https://
cf-evajacinto.pt/download/bert-hellinger-interviewed-2001/; e, e dos livros “A Simetria Oculta do Amor (2006)”,
“A fonte não pergunta pelo Caminho (2005)”; “Ordens do Amor (2003)” e “O rio nunca olha para trás (2019)”.
29 Site HellingerShule®, disponível para consulta em https://www.hellinger.com/pt/hellinger-schule/a-escola/
Acesso em: 10 fev. 2020.
30 Especialistas defendem regulamentação da profissão de constelador familiar. Agência Senado. 2022.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/16/especialistas-defendem-regu-
lamentacao-da-profissao-de-constelador-familiar#:~:text=Para%20Mimansa%20Erika%20Farny%2C%20
alem%C3%A3,de%20atitude%20para%20sua%20aplica%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 10 maio 2023.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 101

Alves (BA)” (CNJ, 2018)31. Época de abertura a novas práticas no âmbito do


Poder Judiciário, em razão da implementação pelo CNJ da Política Judiciá-
ria Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses (resolução nº
125/2010)32, com o objetivo de garantir a todos os indivíduos a solução de seus
conflitos por meios adequados à natureza e à peculiaridade das controvérsias,
não se restringindo apenas às sentenças judiciais.
As constelações familiares não foram mencionadas na resolução nº
125/2010 e não houve disponibilização pelo CNJ de materiais de apoio téc-
nico e logístico orientando a implementação da prática nos tribunais de justiça
brasileiros, entretanto, como apontam Moreira, Soares e Beiras (2022), por
intermédio das notícias veiculadas no site do CNJ, é possível identificar a
validação da ferramenta, assim como o apoio e o fomento a trabalhos desen-
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volvidos com constelações familiares no âmbito da Justiça. De acordo com


matéria veiculada em 201833, até aquele ano, foram contabilizadas dezesseis
iniciativas em curso em diferentes estados brasileiros e no Distrito Federal
(DF), majoritariamente em Varas de Família, sobretudo nas questões rela-
cionadas a divórcio, guarda de filhos e pensão alimentícia, mas, também,
em casos envolvendo violência doméstica contra mulheres, adolescentes em
cumprimento de medidas socioeducativas e questões no âmbito do sistema
prisional (MOREIRA; SOARES; BEIRAS, 2022).
Em 2021, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) aprovou a
portaria nº 3.923, regulamentando a utilização das constelações familiares
nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) no
estado de Minas Gerais, apontando como embasamento a Política Judiciária
Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos. Atualmente, existem alguns
projetos de lei em curso, de abrangência nacional e estadual, relacionados às
constelações familiares, como o PL nº 4.887/2020, que propõe a regulamen-
tação da profissão de constelador familiar, e o PL nº 293/2023, que proíbe a
prática das constelações nos órgãos públicos em São Paulo, com fundamento
no parecer técnico do CFP, o qual será apresentado no decorrer do capítulo.
Tais movimentos sinalizam que, juntamente à popularização do uso das
constelações familiares em atendimentos privados e principalmente em servi-
ços públicos, surgiram desconfianças, críticas e enfrentamentos à difusão da
prática. Em março de 2022, foi realizada uma audiência pública interativa34

31 Constelação Familiar: no firmamento da Justiça em 16 Estados e no DF. CNJ. 2018: Disponível em https://www.
cnj.jus.br/constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df/. Acesso em: 23 set. 2019.
32 Idem nota nº 5.
33 Constelação Familiar: no firmamento da Justiça em 16 Estados e no DF. CNJ. 2018: Disponível em: https://www.
cnj.jus.br/constelacao-familiar-no-firmamento-da-justica-em-16-estados-e-no-df/. Acesso em: 23 set. 2019.
34 Comissão de Assuntos Sociais debate constelação familiar e cura sistêmica. Senado Federal. 2022. Dis-
ponível em: https://www12.senado.leg.br/tv/plenario-e-comissoes/comissao-de-assuntos-sociais/2022/03/
102

pelo Senado, sob organização da Comissão de Assuntos Sociais (CAS), para


debater o que foi nomeado como “constelação familiar e cura sistêmica”.
Apesar de se tratar de um espaço público de debate, o senador Eduardo Girão
(Podemos-CE) proferiu fala de abertura na qual apresentou o tema e os(as)
convidados(as)35 e deu um testemunho pessoal a respeito de sua experiência
com as constelações familiares, mostrando-se defensor da prática e confe-
rindo tom de explícita parcialidade à audiência. Posicionamento reiterado
em sessão solene realizada pelo Senado ainda naquele ano, em homenagem
às constelações familiares36. Ambos os eventos marcados por falas de cunho
moral-religioso, com menção à “fé raciocinada”, “honrar pai e mãe”, “ajudar
o próximo” e “unir as famílias, que se encontram bagunçadas no Brasil”, e,
também, pela presença de empresários do ramo da educação privada no país.

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Além dos evidentes interesses mercadológicos, nota-se na propagação
das constelações um viés moralizante, em consonância com um movimento
de escalada do conservadorismo no Brasil nos espaços privados e públicos
(KELLER, 2019). Recentemente, diante do cenário apresentado e da pressão
por um posicionamento, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou a
Nota Técnica nº 1/202337, apontando a inconsistência científica e epistemo-
lógica das constelações familiares, além da incompatibilidade com o Código
de Ética38 da profissão e, logo, com o exercício da Psicologia.
Neste documento, destacou-se que a abordagem baseia-se em um enten-
dimento de família que naturaliza o vínculo biológico e desconsidera aspectos
históricos, sociais, culturais e políticos que influenciam a constituição das
famílias na contemporaneidade. Tal perspectiva induz a leituras moralizantes
sobre ruptura de vínculos familiares e à exclusão de uma ampla gama de confi-
gurações familiares que se pautam no afeto como pertencimento e vinculação,
contribuindo para deslegitimar novos modelos de família.
Além disso, o caráter conservador das constelações familiares também
aparece na atribuição de poder ao homem, na condição de marido/esposo e pai,
em relação aos demais membros da família e no lugar atribuído às crianças e

comissao-de-assuntos-sociais-debate-constelacao-familiar-e-cura-sistemica.Acesso em: 27 abr. 2023.


35 Divididos em “favoráveis” e “contrários”, entre eles estavam também Sami Storch (juiz de direito responsável
pelo trabalho com constelações em Itabuna-Ba), Renato Shaan Bertate (médico), Inácio Junqueira (diretor da
faculdade Innovare), Marcelo Takeshi Yamashita e Gabriela Padilha Bailas (físicos), Tiago Tatton (psicólogo)
e Matheus Cavalcanti da França (sociólogo do direito).
36 Especialistas defendem regulamentação da profissão de constelador familiar. Agência Senado. 2022.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/09/16/especialistas-defendem-regu-
lamentacao-da-profissao-de-constelador-familiar#:~:text=Para%20Mimansa%20Erika%20Farny%2C%20
alem%C3%A3,de%20atitude%20para%20sua%20aplica%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 3 maio 2023.
37 Idem nota nº 4.
38 Resolução do CFP nº 010/2005. Disponível em: codigo-de-etica-psicologia.pdf (cfp.org.br). Acesso em 10
de julho de 2023.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 103

adolescentes de assujeitamento em relação aos pais. Nesse sentido, Moreira,


Soares e Beiras (2022, p. 71) também destacam que a obra do terapeuta Bert
Hellinger “parece reafirmar espaços biológicos e uma visão tradicional de
família de base religiosa”.
Pellegrini (2021), ao pesquisar sobre o uso das constelações no âmbito do
Judiciário apoiando-se em referenciais das Ciências Políticas, da Antropologia
e da Sociologia do Direito, aponta o surgimento de uma onda conservadora
aos cenários dos países democráticos regidos por políticas de Estado neoli-
berais, em que se desenvolvem ressentimentos morais entre certos setores da
população, diante das transformações culturais e políticas emergentes com a
globalização, associadas ao cenário de insegurança e precariedade, produtos
também do neoliberalismo. Nesse sentido, a autora sugere que a grande ade-
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são das constelações familiares no sistema público de solução de conflitos


nos últimos anos no Brasil seria uma resposta conservadora à ampliação de
direitos, a partir da Constituição de 1988, de grupos considerados minoritários
e aos avanços de pautas feministas e seus impactos sociais.
Desse modo, percebe-se que o campo denominado Direito Sistêmico,
termo “utilizado para se referir a abordagem do direito sob a ótica das cons-
telações familiares” (STORCH, 2010), desenvolve-se em um contexto de
disputas na seara da Justiça dos sentidos de “conflito/pacificação” e “gênero/
família”, no qual o direito desempenha a função de mantenedor de certo ideal
de família e de regulação e controle social. E, nesse campo de disputas, as
constelações familiares têm avançado rapidamente nos últimos anos.
Observa-se este movimento de ampliação não só no Judiciário brasileiro.
As constelações familiares também adentraram no sistema público de saúde,
passando, desde 2018, a fazer parte da Política Nacional de Práticas Integra-
tivas e Complementares (PNPIC). De acordo com a portaria n° 702/201839,
as constelações correspondem a uma:

[...] abordagem capaz de mostrar com simplicidade, profundidade e pra-


ticidade onde está a raiz, a origem, de um distúrbio de relacionamento,
psicológico, psiquiátrico, financeiro e físico, levando o indivíduo a um
outro nível de consciência em relação ao problema e mostrando uma
solução prática e amorosa de pertencimento, respeito e equilíbrio.
[...] é indicada para todas as idades, classes sociais, e sem qualquer vínculo
ou abordagem religiosa, podendo ser indicada para qualquer pessoa doente,
em qualquer nível e qualquer idade, como por exemplo, bebês doentes
são constelados através dos pais (BRASIL, 2018).

39 BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministério da Saúde. Portaria nº 702, de 21 de março de 2018.
Disponível em: Ministério da Saúde (saude.gov.br). Acesso em: 10 jul. 2023.
104

Nota-se a apresentação simplista e generalizante das constelações familia-


res e o status de panaceia para múltiplas formas de sofrimento, destinado a um
público indiscriminado. Moreira e outros (2022), aproximando-se dos estudos
de Pellegrini (2021), contextualizam o momento histórico atual marcado pelos
efeitos das políticas neoliberais, como terreno propício para a disseminação das
constelações familiares, pois há valorização de caminhos e soluções rápidas,
desqualificação profissional, desvalorização da ciência e precarização das for-
mações em diferentes áreas do conhecimento. Diante desse cenário, coloca-se
o seguinte questionamento: o uso das constelações familiares no sistema de
justiça configura uma forma de tratamento adequado dos conflitos?

Constelando as famílias no Sistema de Justiça brasileiro: o que

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isso nos sinaliza/(d)enuncia?
Os conflitos familiares levados à Justiça, embora demandem soluções na
esfera jurídica, chegam ao Judiciário perpassados por camadas que lhes confe-
rem especial complexidade. Dificuldades relacionadas à convivência familiar,
rupturas e rearranjos dos vínculos, quebras de expectativas, desafios no exer-
cício da parentalidade, ressentimentos, dúvidas e inseguranças com relação
ao futuro são exemplos de dilemas vivenciados por quem aciona as varas de
famílias, além dos diversos atravessamentos sociais e políticos existentes
Nesse sentido, passar por um processo judicial relacionado ao direito
das famílias, geralmente corresponde a um período doloroso e estressante,
e é majoritariamente neste contexto que as constelações familiares têm sido
utilizadas pelo Judiciário (MIRANDA, 2020).
Com base na pesquisa de mestrado de Miranda (2020), destacam-se
problemáticas, a partir dos enunciados de sujeitos da pesquisa. Entre os par-
ticipantes entrevistados ao longo do estudo de caso, nove em um grupo de
dez pessoas envolvidas em conflitos familiares judicializados relataram que,
durante a vivência de constelações não apresentaram os seus conflitos para
serem constelados e, quando interrogados sobre como se deu a participação
ao longo do encontro, indicaram uma postura de inércia e passividade.

Só assisti, fiquei sentadinha lá, só ouvindo (Vanessa, 2019).

[...] eu fiquei como expectador (Neles, 2019).

Eu não tive participação na história ali, né? Mas é comovente ali (Bár-
bara, 2019).

[...] a gente ficou numa sala lá, o homem falando, a gente escutando e
vendo (João, 2019).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 105

De acordo com Miranda (2020), a própria organização do espaço físico


onde ocorrem as vivências favorece a posição dos participantes de receptores
passivos diante das informações compartilhadas, ao se tratar de uma sala do tri-
bunal do júri, com cadeiras fixas, enfileiradas e à frente o piso em nível elevado,
de onde o condutor do encontro fala com auxílio de um microfone. Durante as
entrevistas, foram utilizados termos como “aula”, “palestra” e “espectadores”,
sinalizando as funções desempenhadas de maneira estática e polarizada, com a
existência de um agente responsável pela transmissão do saber e de uma platéia
receptora, com a tarefa de internalizar o conteúdo apresentado.
Outro aspecto percebido nas entrevistas e que possui relação com a posi-
ção de passividade descrita acima, é a falta de informações dos participantes
a respeito das constelações familiares, além dos entendimentos distorcidos
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acerca da prática. Apenas uma das entrevistadas conhecia de antemão as cons-


telações familiares, pois já havia participado de uma vivência em atendimento
particular, sendo que os demais foram ao evento sem saber o que aconteceria
ou com expectativas distorcidas (MIRANDA, 2020).

O juiz convidou. Eu também pensava que era uma negociação, mas quando
cheguei foi uma aula de direito, né? (Walmir, 2019).

Com essa constelação aí, eu não conhecia, eu pensava que era uma audiên-
cia pra uma conciliação, então foi totalmente diferente do que eu pensava
(Valteci, 2019).

Eu nunca tinha visto falar, foi a primeira vez, eu pensei que era uma aula
de psicologia e direito, que ele tava dando ali. Eu fiquei ali assistindo
porque eu gostei, eu pensei que era uma aula (Wilson, 2019).

Eu já tinha ouvido falar, viu, mas na televisão mesmo [...] eu acho que no
dia eu fui assim mesmo para passar o tempo mesmo, eu tinha interesse
mesmo de saber o que era (Renata, 2019).

Pra mim foi novo. O próprio juiz da vara que manda a carta lá convidando
a gente pra assistir. E por ser uma coisa nova, que eu nunca tinha assistido,
aí me despertou a curiosidade, aí eu vim da primeira vez (Vanessa, 2019).

Sendo assim, de que maneira as pessoas poderiam fazer a escolha sobre


aderirem ou não à vivência de constelação familiar, se não tinham conheci-
mento sobre o que é a prática? E mais, as entrevistas sugerem que mesmo
após a participação na vivência, não houve entendimento quanto ao que se
passou ao longo do encontro.
106

Eu só não gostei de uma coisa, da parte do teatro. A palestra toda foi boa,
agora eu só não gostei na parte do teatro... ficou parecendo um teatro
mesmo, sabe? Não ficou parecendo que era família e tal e tal.
[...]
Fui. Eu pensei também que era reconciliação, mas quando eu cheguei,
vi que era uma aula de psicologia e direito, eu gostei do que ele disse, só
não gostei das encenações (Wilson, 2019).

Umas pessoas pra poder fazer insinuações né? (Vanessa, 2019)

Vem a proposta das constelações, aí as famílias entram naquele círculo


representada por personagens, e aí começam a discutir os temas familiares
(Neles, 2019).

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Um dos participantes, interrogado sobre qual foi a postura de seu advo-
gado diante do convite para a participação na vivência, disse

Eu não sabia o que era a constelação [...] Ele me recomendou, foi ele que
me informou mais ou menos o que era. Eu perguntei a ele o que era né?
E aí ele foi e me informou e disse que era uma palestra, disse que era
mediada pelo juiz, que tinha a participação de psicólogos, que posterior-
mente a gente poderia até procurar um deles para um auxílio maior né?
Um auxílio psicológico, ele me instruiu, ele me explicou mais ou menos
o que era. (Juliano, 2019)

Na (des)orientação fornecida pelo advogado, percebe-se uma confu-


são entre a ferramenta utilizada e os serviços psicológicos, bem como a
expectativa da disponibilidade de suporte por um profissional da psico-
logia após a vivência. Durante a realização da pesquisa, foram observa-
das situações em que pessoas se encontravam em condições de fragilidade
sem profissionais para prestarem acolhimento e/ou algum encaminhamento
(MIRANDA, 2020).
Apesar de uma aparente postura de cuidado e de suporte emocional,
notou-se uma exposição a riscos, como sinalizado pelo documento do CFP
“potencial para fazer emergir conflitos de ordem emocional e psicológica
tanto individuais quanto familiares, de modo que pode desencadear ou agra-
var estados emocionais de sofrimento ou de desorganização psíquica [...]”
(2023, p. 8). Cenário que se torna mais delicado em se tratando de situa-
ções envolvendo violência contra mulheres e jovens em cumprimento de
medida socioeducativa, casos com maiores vulnerabilidades (MOREIRA;
SOARES; BEIRAS, 2022).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 107

O oferecimento das constelações familiares no âmbito da justiça produz,


além de assujeitamento40, uma confusão quanto aos papéis do Poder Judiciário e
aos serviços disponíveis às pessoas ao acionarem a Justiça. Além do que, quando
o sistema de justiça legitima o uso das constelações familiares, desconsidera
todo um arcabouço de teorias e técnicas com fundamentação científica oriundas
do campo da psicologia, fortalecendo uma suposta hierarquia entre os saberes.
Moreira, Soares e Beiras (2022) discorrem sobre os tensionamentos existentes
entre as áreas da Psicologia e do Direito e o quanto, corriqueiramente, o saber-
-fazer psi é colocado em um lugar acessório e de subordinação, que “apesar de
todo seu conhecimento sobre relacionamentos, comportamentos, sociedade e
cultura, ainda parece servir apenas para embasar e auxiliar o direito em suas
ações e suas limitações” (MOREIRA; SOARES; BEIRAS, p. 77, 2022).
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Há uma atuação centralizada e centralizadora por parte do Poder Judiciá-


rio, pois os tribunais evocam para si o desempenho de funções “terapêuticas”,
desconsiderando a interdisciplinaridade como método consistente de trabalho,
as potencialidades das equipes multiprofissionais pautadas pela horizontalidade
e a atuação em rede com diferentes atores e organizações – eixos caros à cons-
trução de intervenções eficazes mediante questões e fenômenos complexos.
A extensão das fronteiras que demarcam até onde cabe o Judiciário inter-
vir e a confusão quanto a qual apoio profissional buscar diante de uma questão
de conflito familiar, aparece com nitidez no trecho da entrevista abaixo, que
também reafirma o caráter moralizante da prática das constelações.

A gente conhece esse trabalho de prevenção de conflitos através de igrejas,


que fazem encontros com casais etc, mas a gente não conhece, a popula-
ção, ela não sabe que a justiça faz esse trabalho também. E muita gente
não tem o acesso a essas instituições, como igreja e tal. Mas seria muito
importante se a justiça expandisse um pouco esse convite não só para
casais que tão se divorciando, e sim para casais também que, por algum
motivo, chegou a procurar um advogado por exemplo né?
[...]
Eu não sabia que tinha esse trabalho de constelação familiar, é um trabalho
que entendo eu, não é só bom para quem chega a essas vias de fato, mas até
para quem está pensando em chegar. Talvez a vara de ver se estender um
pouco mais os convites não só para quem tá se divorciando, mas também
para outros casais que estão experimentando conflitos isso é importante
(Juliano, 2019).

40 Em diálogo com Michel Foucault, entende-se por subjetivação “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência
de si mesmo em um jogo de verdade, no qual se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 1984/2006, p. 27).
Tal experiência de si pode se dar de forma assujeitada, e é isso que nomeamos por assujeitamento, ou de
forma mais autônoma, a depender da relação com as normas, regras e com as condições de possibilidade
para o exercício de liberdades.
108

Além de outros pontos já problematizados, podemos identificar nas falas


abaixo a ideia de que a todo custo deve-se tentar uma conciliação e a resolução
dos litígios via pactuação de acordos, o que exemplifica a colocação feita por
Moreira, Soares e Beiras (2022) de que a constelação adentra o Judiciário
alinhada com a preocupação predominante de celeridade na Justiça.

Eu vou falar, eu vou falar o seguinte. Essa constelação, eu não conhecia a


constelação, mas depois que eu vi o Dr. Sami falar, então eu me convenci
de que a gente deve se unir, se tem uma família, deve se unir, não deve
criar querelas outras, e fazer todo o meio de resolver o problema sem
afetar o, como dizer, o psicológico da família. É... de... de... é... vamos
dizer assim, fazer com que a gente chegue sempre a um acordo, mesmo
alguém perdendo alguma coisa, como eu tô fazendo no processo. A gente

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pode perder alguma coisa pra ganhar. Pra ganhar o que? Amizade, união
na família (Valteli, 2019).

E aí mudou já meu ponto de vista que eu vinha hoje pra essa reunião. Hoje
pra resolver o problema já mudou, a gente fez o possível já pra tentar, pra
não haver desavença na família, ficar tudo bem e tal, resolver da melhor
maneira possível pra todos ficar, né, contente com o resultado. [...] E o
objetivo que eu acho, assim, da constelação, é que procura, é que todos
saiam satisfeitos, que não haja desavença dentro da família, discórdia,
né? (Walmir, 2019).

Ocorre que, ao prestigiar-se este objetivo em detrimento de questões


relacionadas à qualidade da prestação jurisdicional, ampliação do acesso à
justiça e promoção da cultura de paz via construção de autonomia, privile-
gia-se o “desafogamento” do Judiciário de modo descolado da efetivação
do interesse público. Ademais, qual a razoabilidade de inaugurar mais uma
frente de trabalho com as constelações familiares, ao invés de se investir nos
mecanismos de solução consensual de conflitos já institucionalizados, como
a mediação e a conciliação, tendo em vista o cenário de sobrecarga (e de
centralização) do Poder Judiciário?

Considerações finais

E eu sinto que as pessoas não participam de modo tão espontâneo, às vezes


não entende a própria dinâmica, o que é entra no papel, representar e qual a
importância daquilo, daquela teia que vai se formando na vivência. Então,
eu acho que isso pode nos fazer questionar um pouco a confiabilidade do
que se conclui numa vivência. As pessoas às vezes não se entregam àquela
atividade, àquela representação. Então isso pode prejudicar. A própria visão
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 109

das partes que, por vezes, tá ali assistindo elas sendo representadas, então
pode confundir um pouco (Alana, 2019).

E, eu sempre notei, por vezes as pessoas aceitam representar no momento


da vivência, por vergonha de dizer não. Outras dizem não e aí, alternati-
vamente, se convidam outra pessoa que não tem a mesma desenvoltura
pra negar, e aí acaba indo (Alana, 2019).

A plena voluntariedade, a garantia da autonomia, o protagonismo das


partes e a produção de efeito emancipatório dos sujeitos envolvidos em con-
flitos configuram eixos estruturantes dos métodos consensuais de resolução
de conflitos. A ética da mediação de conflitos orienta-se pelos princípios
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da imparcialidade do(a) mediador(a), isonomia entre as partes, oralidade,


informalidade, autonomia da vontade, busca do consenso, confidencialidade
e boa-fé41. Em se tratando das constelações familiares, há evidente incom-
patibilidade com estas diretrizes principiológicas, tendo em vista a ausência
de informações claras e acessíveis sobre a ferramenta, a impossibilidade de
tomada de decisão informada e consciente sobre a adesão à vivência, a ausên-
cia de autonomia e de independência na resolução dos conflitos, a quebra da
confidencialidade, os abalos à imparcialidade e a ameaça à isonomia entre os
envolvidos nos casos de maiores vulnerabilidades e hipossuficiências.
Acrescenta-se a isso, o fato de as técnicas colaborativas com foco na
construção de habilidades de comunicação e gestão de conflitos, característicos
da mediação de conflitos (AZEVEDO, 2016), não estarem presentes nas cons-
telações familiares, uma vez que nestas práticas o trabalho se dá nas supostas
dimensões ocultas dos conflitos, a serem identificadas pelo(a) constelador(a),
cabendo a ele(a) perceber bloqueios e direcionar soluções. Nesse sentido, as
Constelações Familiares se distanciam dos objetivos da Resolução nº 125 de
2010, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de
conflitos de interesses e é utilizada para fundamentar o uso das constelações
familiares no sistema de Justiça,

[...] disseminar a cultura da pacificação social e estimular a prestação de


serviços autocompositivos de qualidade (art. 2º); ii) incentivar os tribunais
a se organizarem e planejarem programas amplos de autocomposição (art.
4º); iii) reafirmar a função de agente apoiador da implantação de políticas
públicas do CNJ (art. 3º) (AZEVEDO, 2016, p. 36 e 37).

Porquanto, compreende-se que as constelações familiares não são méto-


dos autocompositivos de solução de conflitos e não correspondem a formas

41 De acordo com a Lei 13.140/ 2015. Disponível em: L13140 (planalto.gov.br). Acesso em: 10 jul. 2023.
110

adequadas de tratamento de conflitos no âmbito do Poder Judiciário. A adesão


à prática acaba por adquirir o caráter de experimentação com os usuários do
sistema de justiça e negligencia as recomendações técnicas emitidas pelo CFP
no tocante aos riscos existentes e à inconsistência científica e epistemológica
das constelações familiares, contrariando direcionamentos do próprio CNJ
(2021) quanto à imprescindibilidade de esforço teórico, pesquisas, grupos de
trabalho e debates como parte dos itinerários das políticas públicas.
Acredita-se que a potência de uma política adequada de solução de con-
flitos seja a construção conjunta e compartilhada entre os saberes. Vicentin
e Oliveira (2019), nos sugerem algumas pistas, ao lançarem mão de uma
perspectiva crítica para refletirem sobre os modos de saber-fazer no sistema
de justiça, defendendo as leituras dos fenômenos de maneira plural e as inter-

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venções interdisciplinares e intersetoriais, capazes de questionar discursos
hegemônicos e criar novos debates e práticas na justiça. As autoras chamam
a atenção para a consideração das singularidades de cada sujeito e de cada
família, destacando a importância da compreensão dos contextos onde são
produzidos os conflitos e as demandas para o sistema de justiça.

[... ] principalmente quando vivemos o que muitos estudiosos têm chamado


de judicialização da vida, quando o domínio jurídico se torna a instância
mediadora do viver, capilarizando a função do tribunal às diversas esferas
do cotidiano, tal qual vemos no extenso denuncismo, e no clamor pela lei
e ordem (VICENTIN; OLIVEIRA, 2019, p. 24 e 25).

Outra aposta importante é na construção de uma política que leve em


conta o cuidado como um eixo inegociável das práticas. Cuidado, em saúde,
significa dar atenção, tratar, respeitar, acolher o ser humano. O cuidado em
saúde é uma dimensão da integralidade que deve permear todas as práticas.
Importante lembrar que produzir cuidado passa pelo desafio do agir coletivo
e da participação de múltiplos profissionais e, portanto, saberes. Além disso,
passa pelo reconhecimento da necessidade de ampla participação dos sujeitos,
usuários, atores, partes, entre tantas nomeações para dizer sobre as pessoas
que fazem uso das diferentes políticas públicas que temos em ação no país.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 111

REFERÊNCIAS
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sília/DF:CNJ), 2016.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Nota técnica No 1/2023:


Visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar,
também denominada Constelações Familiares Sistêmicas. Distrito Federal. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), Departamento de Gestão


Estratégica. Guia de gestão de política judiciária nacional: Estratégias de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Atuação de Gestor(a) de Política Judiciária Nacional. Distrito Federal. 2021.

FOUCAULT, M. (1984/ 2006). História da sexualidade 2: O uso dos praze-


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Dissertação (Mestrado em Economia Doméstica) – Universidade Federal de
Viçosa, Viçosa. 2020.
112

MOREIRA, L. E, SOARES, L. C. E. C. e BEIRAS, A. Constelações Familia-


res no judiciário: um tema para a Psicologia? Estudos de Psicologia, janeiro
a abril de 2022, 68-80.

PELEGRINI, E. Constelando (n)o Judiciário: violência doméstica e a infor-


malização da justiça nas práticas de Direito Sistêmico. Artigo publicado nos
anais do VII ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito (Uni-
versidade de São Paulo), 2021.

STORCH, Sami. O que é Direito Sistêmico. Blog Direito Sistêmico. 2010.


Disponível em: https://direitosistemico.wordpress.com/2010/11/29/o-que-e-
-direito-sistemico/. Acesso em: 25 abr. 2019.

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VICENTIN, M. C. G.; OLIVEIRA, R. G. de. O processo de trabalho in(ter)
disciplinar e em rede como modo de ativação da dimensão pública do fazer
política pública. In: MIRANDA, M. M et al. (org.) Cadernos da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. São Paulo: Escola da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo. 2019. v. 4 n. 22. p. 20-31.
CONVERSAÇÕES JURISDICIONAIS
E PSICOSSOCIAIS MEDIADAS
POR TECNOLOGIA: o caso do
podcast falando de famílias
Sander Firmo
Lucas Guimarães dos Santos
Ana Cecília Dolzany Araújo
Elisângela dos Santos Cabral
Munique Therense
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Contexto de desenvolvimento da proposta de um serviço


jurisdicional de podcast

As publicações científicas sobre famílias parecem convergir à compreensão


de que a Pandemia de covid-19 trouxe impactos visíveis aos modos como a convi-
vência familiar foi vivenciada por seus membros, bem como manejada por aque-
les que compõem o Sistema de Justiça, nos casos de demandas a ele endereçadas.
Neste sentido, Heilborn et al. (2020) abordaram os impactos da crise de
saúde global para as relações familiares perpassadas por divórcio, desemprego
e permanência de filhos na residência parental. Mendes et al. (2022) também
indicaram ter havido alterações na comunicação e no exercício da coparenta-
lidade em famílias organizadas em torno de um regime de guarda, separação
ou divórcio. Por fim, Santos et al. (2022) alertaram sobre o agravamento da
exclusão das vozes infantis.
Conforme apontam Vianna (2005), bem como Garau e Babo (2022), as
questões relacionadas ao Direito se mostraram articuladas àquelas relacionadas
ao contexto histórico, ao cenário ético-político de um tempo e aos valores e
moralidades sutis que atravessam as compreensões.
Assim, para Dias (2021), é no Direito das Famílias em que mais se sente
o reflexo dos princípios que a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 (CRFB/1988) consagra como valores sociais fundamentais, princi-
palmente no que se refere à atual concepção de família, que tem sua feição
desdobrada em múltiplos enfoques.
Para a autora, o direito à família, como direito fundamental, precisa ser
operacionalizado por meio do direito ao afeto, direito a ser cuidado, ser sujeito
objeto de atenção consciente. Por isso, ela destaca como importante encarar
114

o afeto como laço, não apenas interno (entre os familiares), mas também
externo (entre famílias). Como gesto humano, integrante em todas as famílias,
universal, cuja ideia de lar é a circular e a origem de sua definição.
Para Filho (2010, p. 28), a família se constitui por “agrupamentos sociais
diferentes, que mudam em função da época, da geografia, do desenvolvimento
econômico, técnico-social, de classe social e da evolução das ideias”.
Nos casos de famílias pós-divórcio, assume-se aqui, conforme aponta
Therense (2020), a compreensão de que a noção de dupla residência pós-rup-
tura produziu a ideia de convivência com dois núcleos familiares. Assim, no
contexto pandêmico, a sustentação da noção de dois lares ocorreu a partir de
manejos familiares, tais como, segundo apresentam Mendes et al. (2022),
decisão pela suspensão do pernoite, substituição da guarda compartilhada pela

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alternada, dentre outros. Além de experimentos institucionais, como criação
de políticas de teletrabalho (ANTUNES; FISHER, 2020) e projetos pilotos
envolvendo auxílio de plataformas online, a exemplo do Grupo Reflexivo via
Telegram (THERENSE et al., 2022).
Ainda neste contexto pandêmico, sabe-se que os modos como as esferas
dos Três Poderes conduziram as mudanças ocasionadas foram cruciais para os
desfechos experimentados neste cenário (NEVES et al., 2021). As condições
sociais, advindas da inserção das famílias em intersecções de classe social,
raça e, considerando os determinantes amazônicos, elementos de geografia,
marcam suas histórias e suas trajetórias.
Em linhas gerais, tem-se que o conflito suscitado pelo divórcio é algo que
precisa ser enfrentado tanto pelos pais, quanto pelos filhos, faz-se necessário
um tempo para a sua elaboração. Os membros da família precisam vivenciar a
construção da dissociação entre as esferas conjugal e parental, antes associadas
a partir de fronteiras não necessariamente visíveis no contexto de casamento.
Quando a separação é marcada por brigas e desentendimentos, as desa-
venças dos pais podem levar a um afastamento entre os membros familiares.
A convivência, outrora constante, pode se tornar espaçada e tumultuada e
esse tempo entre um contato e outro pode ser significado, pelos filhos, como
distanciamento fraterno ou necessidade de adultização para cuidar dos pais
(PEREGRINO et al., 2021).
Ainda, a agudização do conflito causado pela ruptura conjugal conturbada
pode promover exposição a situações conflitivas que podem causar, na maioria
das vezes, sentimento de culpa, dilema de lealdade e vivência de perda de autono-
mia, “esgarçando-se” em uma disputa, tal qual nomearam Peregrino et al. (2021).
Assim, quando se trata do contexto de pandemia, um dos desafios das
equipes atuantes no Sistema de Justiça com Direito de Família foi se manter
ofertando serviços que pudessem auxiliar os jurisdicionados a gerenciar as
dificuldades agravadas pelo contexto de crise de saúde.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 115

Em certo aspecto, buscava-se auxiliá-los a construir uma distinção mais


visível das fronteiras entre as relações conjugais e parentais, visando manejos
de conflito em prol da segurança e estabilidade dos filhos. É mister enfatizar,
ainda, a contribuição de várias áreas do conhecimento, a fim de desencadear um
processo de isonomia de poder, exercido nas relações entre homens e mulheres,
pautado no respeito mútuo e igualdade de direitos, em que o espaço familiar se
estabeleça com mutualidade e compartilhamento dos diferentes sujeitos sociais.
Salienta-se que a família, como criação humana e social, é uma institui-
ção que se modifica de acordo com as transformações históricas, adquirindo
particularidades em diferentes sociedades, sendo compreendida através de
suas contradições.
Na arena dos projetos-piloto desenvolvidos a partir de plataformas vir-
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tuais, para o jurisdicionado habitante de um estado que experimentou o colapso


do sistema de saúde, estampou noticiários com a crise do oxigênio e foi con-
duzido a partir da ausência de medidas emergenciais de amparo às famílias
e presença da judicialização das ações sanitárias (NEVES et al., 2021), está
o podcast Falando de Famílias (PodFdF).
A iniciativa parte da equipe Psicossocial do CEJUSC, das Varas de Famí-
lias do Tribunal de Justiça do Amazonas, abrindo caminhos para que o trabalho
desenvolvido pudesse alcançar os usuários dos sistemas da Justiça durante o
período de isolamento social, um destes a ferramenta podcast.
Como bases inspiradoras do PodFdF foram utilizados os motes temáti-
cos das oficinas de parentalidade, realizadas a partir das adaptações e modi-
ficações advindas de sugestões de participantes ou de fontes da literatura
científica (CUNHA et al., 2021). As oficinas de parentalidade se constituem
como uma estratégia de solução de conflitos, recomendada pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ).
A realização de oficinas temáticas para favorecer as famílias que estão
em processos de separação visa oferecer suporte às famílias, de modo que
possam lidar com o momento, sem prejudicar a vinculação parental com a
prole, evitando práticas de distanciamento da convivência familiar e forne-
cendo a pais, mães, crianças e adolescentes mecanismos para lidar com os
desentendimentos e os próprios sentimentos.
A Oficina de Parentalidade está alinhada à Resolução nº 125/2010 do
CNJ, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado
aos conflitos de interesses, atribuindo ao Poder Judiciário o papel de pacifica-
dor social. A despeito das críticas direcionadas à proposta, para o podcast foi
utilizada a ideia basilar de fornecer às famílias elementos teórico-reflexivos
com potencial para subsidiar a abordagem aos problemas de maneira menos
solitária, promovendo ambiente acolhedor para pais e filhos, de forma que pos-
sam ter elementos que favoreçam o amadurecimento emocional e relacional.
116

Neste sentido, em que pese o cenário de pandemia, tentou-se proteger


a importância do respeito ao princípio do melhor interesse da criança e do
direito à convivência familiar como absoluta responsabilidade da família,
Estado, comunidade e sociedade em geral, tal qual garante o Estatuto da
Criança e do Adolescente.

Podcast como ferramenta de prestação de serviços jurídicos

O podcast é uma ferramenta condizente com as especificidades de


nossa época. A contemporaneidade, imersa em revoluções tecnológicas e
midiáticas do século XX e XXI, adquiriu novos vértices comunicacionais
e de interações discursivas, sobretudo com o advento da internet e da pro-

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dução em massa de aparelhos multimídia de captação de áudio, edição e
compartilhamento de informações.
A topografia da webosfera abriu margens para a atualização de fenômenos
inter-relacionais há muito consolidados pelas vias de comunicação convencio-
nais, como rádio e televisão (FREIRE, 2014; PRIMO, 2005). Wolton, como
aponta a pesquisa de Freire (2014), entende que o advento da informática pro-
porcionou uma potencial fuga de hierarquias vistas em outras esferas tecnoló-
gicas, na medida em que a mesma indica uma igualdade diante do computador.
A apropriação dos meios online não estaria marcada pela reprodução
das assimetrias dos meios tecnológicos tradicionais, em que o interlocutor da
mensagem (o/a radialista ou o/a apresentador/a de programas, por exemplo)
emite o discurso de forma unidirecional e o mesmo reverbera ao ouvinte que,
por conseguinte, o recebe de forma passiva e incontestável (FREIRE, 2014).
A individualização e aparente autonomia permitem o efeito oposto: a
capilarização dos usuários em cadeias plurais e distribuídas de forma diver-
sificada. A cultura em rede, como aponta Murta (2016, p. 2), caracteriza-se
por conversas e não por argumentos de autoridade, sendo “feita de vários
para vários, todos aqueles que estão conectados têm liberdade para produzir e
divulgar seus vídeos, áudios, artigos, fotos, e qualquer outro conteúdo na web”.
Porém, é indispensável pensar na arbitrariedade de tal análise, quando
consideramos a realidade socioeconômica brasileira, que indica uma dívida
digital de parte significativa da população do país. Segundo dados do Instituto
Locomotivas, em 2022, 33,9 milhões de pessoas estariam desconectadas e
outras 86,6 milhões não conseguiriam se conectar todos os dias, recaindo
especialmente em pessoas de camadas economicamente desfavorecidas e
menos escolarizadas (G1, 2022).
Ademais, apesar de um uso aparentemente democrático da internet, gran-
des corporações de mídia e conglomerados financeiros encontram vantagem
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 117

no monopólio e no alcance do discurso, por meio de altos investimentos de


produção e publicidade, em contraste com o cidadão comum, produtor de
conteúdo ou usuário médio do universo virtual, que não detém tais recursos
para expandir seu acesso (PRIMO, 2005).
Diante desse dilema, muitas inovações recentes indicam transformações
importantes em tal dinâmica hierárquica da internet, como por exemplo o
surgimento da Web 2.0, que Freire (2014, p. 61) define como “tecnologias
que, embora se distingam por suas formas expressivas, apresentam simila-
ridades nas esferas produtivas e distributivas […] facilitadas por sistemas
pré-formatados e pela disponibilização gratuita de arquivos sob demanda”.
Tais tecnologias permitem a descentralização do conteúdo produzido e
a compactação do material para consumo em massa gratuitamente, possibili-
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tando a diversidade de produção, de consumidores e de criadores de conteúdo.


Isso abre precedentes para a expansão das próprias concepções de mídia que,
tradicionalmente, operavam sobre a dicotomia das mídias de massa (televisão
e rádio) e das micromídias (fanzines, flyers etc.), que atualmente não existem
mais enquanto categorias sedimentadas, permitindo a existência de mídias
híbridas – como é o podcasting ou apenas podcast (PRIMO, 2005).
Recuero (2012 apud MURTA, 2016) define os podcasts como ambientes
de conversação em que as práticas emergem das apropriações das ferramen-
tas de mediação por computador, ou outros, em que os meios originalmente
propícios para comunicação textual são apropriados para a comunicação oral.
O podcast propicia uma recepção periódica de modo automatizado, através
de um sistema de RSS (Really Simple Syndication), que permite o consumo con-
tínuo do material, assim que for disponibilizado, bem como a sua organização,
cronologicamente ou não, em uma página ou feed próprios (FREIRE, 2014). Esse
sistema possibilita o consumo do material a qualquer momento, em qualquer
lugar e da forma desejada, sob a condição mínima de o usuário ter acesso a dis-
positivos eletrônicos compatíveis com a tecnologia e a sinais de rede funcionais.
A popularização da ferramenta podcast repercute significativamente nas
relações hierárquicas acima pontuadas, na medida em que é permeada pela
pluralidade de vozes e de possibilidades de expressão, associadas ao sempre
expansivo potencial de capilarização da Web 2.0.
A horizontalidade do uso de tais ferramentas permite a negociação de cria-
dores de conteúdo sem notoriedade prévia com os dispositivos da grande mídia,
diante da “abstenção de um ‘ofuscamento inicial’ de produções pequenas diante
de podcasts de grandes redes televisivas ou celebridades” (FREIRE, 2014, p. 64).
A construção de diálogos em rede produz uma teia associativa de ideias,
criando espaços de conversação e, para além disso, uma oralidade, que pode
ser reproduzida e recuperada a qualquer momento, transformada e espalhada
de forma a interconectar as coletividades em tempo real (MURTA, 2016).
118

A pluralidade de nichos e conteúdos veiculados em podcasts permite a aber-


tura constante para a criação e para a exploração de tal ferramenta no processo de
ensino-aprendizagem. O uso da fala pode promover a exposição de conteúdos,
relato de acontecimentos, bate-papos e debates informativos (FREIRE, 2014),
assim como a promoção de encontros e da comunicação pedagógica e científica.
Rodrigues et al. (2022, p. 14) apontam para utilização de podcasts como
um recurso atrativo aos alunos em idade escolar e de ensino superior, pois
“possibilita a quebra da dicotomia livros-textos e ensino tradicional”, assim
como é atrativo aos professores, “pois oferece maior liberdade de inovação”.
O uso da ferramenta permite um ensino mais inclusivo, mais lúdico e flexível
às transformações do mundo contemporâneo, especialmente quando a temática
é posicionada pós-pandemia.

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Desde a pandemia, o Brasil registrou um aumento do consumo de pod-
casts de mais de 132%, segundo dados do Cetic, reportados pela CNN. Os
programas de áudio foram ouvidos com frequência por mais de 41 milhões
de brasileiros entre 2021 e 2022, contra 17 milhões em 2019 (CNN, 2022).
Uma pesquisa da Globo indica que 57% dos entrevistados começaram a
ouvir programas em áudio digital durante o período pandêmico, colocando o
Brasil em quinto lugar no ranking mundial dos que tiveram um crescimento
mais acelerado desse meio de comunicação (EXTRA, 2021).
Quanto à produção de conteúdo, um dado importante da pesquisa de
Rodrigues et al. (2021) mostra que o Brasil foi o maior criador mundial de
podcasts durante a Pandemia de covid-19. Essas estatísticas corroboram a
inevitabilidade do uso dessa mídia como nova ferramenta de comunicação e
criação de conteúdo, no engajamento social e na divulgação de informação.
O isolamento social como medida sanitária de contenção do contágio
pelo SARS-CoV-2 impeliu as pessoas ao manejo dos dispositivos eletrônicos
para comunicação e para a preservação de vínculos, ao mesmo tempo em que
o convívio intrafamiliar constante repercutiu no acirramento das relações e
nos conflitos de convivência.
O convívio intenso e forçado, associado aos medos e inseguranças pró-
prios de um tempo de emergência de saúde internacional, impactaram no
desencadeamento ou agravamento de conflitos e dificuldades familiares pree-
xistentes (SILVA et al., 2020). A pesquisa de Silva et al. (2020) apresenta o uso
de podcasts, dentre outras TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação),
como ferramentas telepsicoeducativas para mediar os conflitos familiares e
as implicações psicossociais durante o período do isolamento.
Como resultados, os autores destacaram a promoção da autonomia e da
psicoeducação ante os impasses das relações. O uso dos dispositivos diversi-
fica as possibilidades de alcance do conhecimento e do contato com o públi-
co-alvo de determinado serviço, especialmente em tempos dinâmicos, de alta
demanda por conteúdo de qualidade.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 119

No bojo dessa proposta psicoeducativa e alinhada aos meios de comu-


nicação virtuais, o setor Psicossocial do CEJUSC – Famílias, lotado no Tri-
bunal de Justiça do Amazonas, empreendeu o projeto do podcast Falando de
Famílias, com o intuito de acessar os usuários em transformações familiares,
profissionais das áreas afins, estudantes de graduação e demais interessados,
no contexto da manutenção da oferta de serviço em um cenário de trabalho
remoto e na adaptação do trabalho à linguagem da Web 2.0.
O projeto promove a oferta de conteúdos teóricos voltados aos temas
de família e sociedade, associada ao encontro de profissionais e estagiários
na costura técnica e prática das temáticas do cotidiano. A decomposição da
estrutura, do material coletado e dos resultados de tal experiência será devi-
damente disposta no corpo deste capítulo. A análise do material deve possi-
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bilitar o debate implicado e propositivo do uso do arcabouço científico para


o bem-estar social e para a adaptação da academia às inovações tecnológicas.

Planejamento, organização e produção de um podcast

Identidade visual

A identidade visual do podcast foi pensada a partir da logo do CEJUSC


– Famílias. Buscou-se manter a referência ao círculo, como forma geomé-
trica que remete à abrangência, à inclusão e ao compartilhamento, trans-
formando as duas esferas azuis em headphones, que sugerem o convite a
ouvir o conteúdo.

Figura 1 – Criação da identidade visual do podcast Falando de Famílias

Logomarca do CEJUSC – Famílias Logotipo do podcast Falando de Famílias


Fonte: Elaboração dos autores, 2023.
120

Roteiro

O podcast Falando de Famílias produz conteúdo sobre uma variedade


de temas ligados às questões psicossociais e jurídicas relacionadas à área de
Direito de Família. Construir o roteiro é uma tarefa para a equipe inteira, em
brainstorm ou “chuva de ideias”.
De uma forma geral, o roteiro divide o programa em dois segmentos: uma
introdução teórica breve sobre o tema abordado, a partir da perspectiva das áreas
da Psicologia e do Serviço Social, e uma entrevista semiestruturada com pro-
fissionais contribuintes à temática, sejam pesquisadores, operadores do Direito,
psicólogos ou assistentes sociais. Ao final do planejamento do roteiro, são elabo-
radas questões norteadoras que servem para guiar o debate no dia da gravação.

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A amplitude de discursos por várias áreas do conhecimento é intencional,
em busca da reflexão interdisciplinar dentro do ambiente de causas de família,
acerca de relações dinâmicas entre os sujeitos incluídos nelas e os contextos
sociais dos quais participam, estreitamente enlaçadas com as necessidades
de sujeitos que vivenciam tais causas.
Em se tratando de psicoeducação, a presença social de podcasts como
este produz o aprendizado virtual que, embora possa ser considerado raso ou
fútil pela aparente invisibilidade do “outro lado da conversa”, expressa resul-
tados quando se analisa a relevância à produção acadêmica sobre podcasts que
utilizaram a psicoeducação durante a pandemia, como um recurso mediador
da relação entre as instituições e os sujeitos, criando novas organizações
sociais e transformando modos de agir e ser (CORDEIRO; DAMÁZIO, 2021;
TEIXEIRA; SILVA, 2020; PÉREZ, 2019; SILVA et al., 2020).

Convidados e local de gravação

Os entrevistados são escolhidos considerando a expertise acadêmico-pro-


fissional na área temática do episódio. O convite é realizado com antecedência,
sendo possível apresentar o roteiro estruturado na etapa anterior. Dessa forma,
os convidados podem preparar suas apresentações e elaborar as narrativas.
O local de gravação é a própria sede do CEJUSC – Famílias, em uma
das salas de atendimento psicossocial. Não são agendados atendimentos
aos jurisdicionados no dia de gravação, ficando a equipe disponível para
a produção da tecnologia digital. Como equipamentos, são utilizados: a)
um computador desktop com o programa Zoom Meetings (gravação); b)
um microfone de captação 360º; e c) mesa circular e cadeiras utilizadas no
atendimento regular.
De forma estratégica, optou-se por primeiro gravar o bloco das entre-
vistas entre profissionais e/ou pesquisadores, sendo adotado o formato de
conversa entre pares, guiada pelo roteiro previamente disponibilizado. Em data
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 121

posterior, é gravado o bloco inicial, em que os estagiários apresentam questões


emblemáticas, conceitos que ficam implícitos no bloco de entrevistas e noções
compartilhadas no senso comum, que são endereçadas ao Sistema de Justiça.

Edição e sonorização

A edição do material gravado é feita a partir do software Audacity, em que


o áudio da gravação pode ser equalizado, os blocos do episódio são separados e
são feitos cortes de trechos que continham partes de silêncio, eco ou outros ruídos
sonoros, além de cortes de trechos em que ocorreram falhas e repetições de falas.
Após esse primeiro momento, o material editado passa por revisão da
equipe, que analisa a necessidade de cortes do conteúdo, visando qualidade
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tanto sonora, quanto de veracidade das falas contidas no episódio. Em seguida,


a finalização da edição se dá com a inclusão de uma melodia instrumental,
como trilha sonora de fundo para a discussão. Por fim, como resultado, temos
um arquivo no formato .mp3, exportado pelo programa de edição.

Distribuição

A distribuição do podcast é feita por meio da plataforma Castbox, em


que os episódios são depositados e ela própria se encarrega de distribuí-los
às diversas plataformas de streaming de áudio, como Spotify, Deezer, Apple
Podcast, Google Podcast, Amazon Music, entre outras.
A análise do conteúdo do PodFdF reflete o desempenho em apenas um
destes portais de escuta, o Spotify for Podcasters, um site integrado à plata-
forma de streaming Spotify pensado para que criadores de conteúdo tenham
acessos às estatísticas dos ouvintes e dos episódios que publicaram. A esco-
lha por este meio e não outros justifica-se pela expressividade das respostas
encontradas na experiência dos criadores e maior número de dados disponíveis
sobre as faixas em relação a outras plataformas.

Publicação nas mídias sociais

O podcast Falando de Famílias possui páginas sociais no Instagram e


no TikTok, que possuem a mesma identidade visual, com a logomarca e o
identificador de perfil de usuário: @falandodefamilias. A diversificação, ao
publicar em lugares diferentes conteúdos parecidos, serve para reafirmar a
presença social do conteúdo, ao passo que o torna mais conhecido entre os
públicos de ambas as plataformas.
Potencialmente tão importante quanto tecer o script para o episódio, a
equipe toma a tarefa de formular estratégias para tornar o podcast virtual-
mente relevante, dado que cada plataforma tem suas normas e truques para
122

tornar possível a façanha de “ser visto” no campo online. Parte-se do princípio


de que não é apenas uma questão de conquistar o público com argumentos
convincentes e conteúdo psicoeducativo verificado pela ciência psicológica
no formato extenso do podcast, que dura aproximadamente uma hora – uma
característica da fluidez do interesse público na virtualidade. Previu-se neces-
sário tornar o conteúdo visualmente apelativo para valer um click, no entanto,
evitando a diluição do seu significado.
A fórmula escolhida foi usar da comunicação breve e dinâmica: memes,
vídeos curtos ou reels e posts de divulgação com a capa do episódio para atrair
os ouvintes. Tais artifícios virtuais servem para impulsionar a relevância do
meio de divulgação. Quanto mais se fala e interage com certo tipo de conteúdo,
mais a máquina virtual “entende” que o conteúdo é relevante e este passa a

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ter mais recomendações aos usuários – não nos aprofundaremos no campo da
relação entre números de divulgação e ouvintes neste capítulo.
Esta técnica possui limites, um deles é a própria falta de entendimento
acerca do funcionamento das mídias sociais, sendo uma maneira experimental
de produzir conteúdos psicoeducativos, passível de estudo e aprimoramento. O
encorajamento e persuasão para curtir, comentar e compartilhar foi outro fator
importante para impulsionar a relevância e fazer com que mais pessoas conheçam
o podcast. Dessa forma, o interesse nas postagens que precedem a liberação do
episódio para a webosfera podem atuar como termômetro de interesse do público.

Figura 2 – Divulgação do terceiro episódio do podcast Falando de Famílias

Capa do episódio FdF#03 – Guarda Capa de vídeo compartilhado na rede social


Compartilhada (part. Carole Instagram, para divulgação do episódio
Baraúna e Raysa Figueiredo) FdF#03 – Guarda Compartilhada (part.
Carole Baraúna e Raysa Figueiredo)
Fonte: Elaboração dos autores, 2023.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 123

As imagens descritas são de uma das capas de episódio, cuja temática


foi Guarda Compartilhada, junto com o vídeo de divulgação (reels) no Insta-
gram, com um breve resumo e convite para a escuta, orientando onde e como
pode ser encontrado no perfil e nas plataformas. No canto inferior esquerdo
da segunda imagem, pode-se notar o número 2.200, indicando o número de
acessos àquele conteúdo.

Temporada de episódios

De 1 de novembro de 2021 a 31 de dezembro de 2022, período cujos


dados serão analisados a seguir, foram produzidos oito episódios, que têm
cerca de uma hora de duração e abordam temas relacionados ao Direito de
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Família, em sua interdisciplinaridade com a Psicologia e o Serviço Social.


O Quadro 1 lista os episódios desse período, os temas trabalhados, as
datas em que foram publicados e suas respectivas durações.

Quadro 1 – Lista dos episódios do podcast Falando de Famílias, de 2021 a 2022

Episódios Temas Data de Publicação Duração

FdF#01 – Semana Nacional de Conciliação


(part. Juiz Dr. Gildo Carvalho e Carole Baraúna) Conciliação e Mediação 05/11/21 50:12
FdF#02 – Violência de Gênero e Conciliação
(part. Caelison de Andrade e Munique Therense) Violência de Gênero 10/12/21 36:21
FdF#03 – Guarda Compartilhada (part.
Carole Baraúna e Raysa Figueiredo) Guarda Compartilhada 11/02/22 01:27:01
FdF#04 – Direitos de Famílias Homoafetivas Direito de Famílias
(part. Lidiany Cavalcante e Marília Freire) Homoafetivas 01/04/22 01:11:22
FdF#05 – Pais no Pós-Divórcio (part. Conjugalidade e
Camilla Félix e Carine Brito) Parentalidade 13/05/22 01:02:16
FdF#06 – Dois Lares, Uma Família (part.
Munique Therense e Petra Sofia Ferreira) Dupla Residência 13/07/22 01:16:52
FdF#07 – Alienação Parental (part.
Edna Rocha e Raysa Figueiredo) Alienação Parental 03/10/22 01:26:14
FdF#08 – Violência Doméstica Contra
a Mulher e os Mecanismos de Proteção
(part. Celi Nunes e Viviane Farias) Violência de Gênero 03/11/22 41:38

Fonte: Elaboração dos autores, 2023.


124

Os dados sobre o podcast são armazenados e podem ser extraídos do site


Spotify for Podcasters, que disponibiliza informações estatísticas relacionadas
à audiência de podcasts veiculados nesta plataforma de streaming de áudio.
Os dados disponibilizados são os números totais de inicializações, computadas
quando alguém ouve um episódio por mais de 0 segundos; streams, defini-
dos como o número de vezes em que um usuário ouviu um episódio por, no
mínimo, 60 segundos; ouvintes, considerados pela plataforma como usuários
individuais da plataforma que iniciaram a reprodução de algum episódio do
catálogo do podcast; e seguidores, que considera o número de usuários que
clicaram no botão seguir dentro da plataforma (SPOTIFY, 2023).

Questões surgidas a partir dos dados e da experiência de produzir

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um podcast

Sobre a pertinência da proposta

Uma das questões importantes relacionadas à experiência piloto de um pod-


cast voltado aos usuários/jurisdicionados, profissionais do âmbito das questões de
família e estudantes afeitos, era responder a respeito da pertinência da iniciativa.
Considerando as dificuldades enfrentadas pela população em geral e pelas
instituições no contexto pandêmico, a proposta do podcast precisava responder
à necessidade real de manter circulando, de forma acessível, as informações
úteis relacionadas às questões do divórcio. Desse modo, buscou-se utilizar as
possibilidades viabilizadas pelo formato assíncrono online, aproveitando a popu-
larização das mídias sociais, em um contexto geográfico e situacional de crise.
Segundo os dados do site Spotify for Podcasters, o podcast Falando de
Famílias registrou, no período analisado, um total de 141 ouvintes únicos,
além de 378 streams. Destes 141 ouvintes, 82 (58,1%) seguiam o podcast na
plataforma até a data analisada, indicando que mais da metade dos ouvintes
que tiveram contato com ele tiveram interesse em continuar acompanhando
os conteúdos produzidos.

Figura 3 – Números do podcast Falando de Famílias

Fonte: Spotify for Podcasters, 2023.


PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 125

Tal resultado coaduna com o que a literatura sobre divulgação científica


tem evidenciado a respeito da eficácia das estratégias de uso das mídias sociais
para fins de popularização do conhecimento. Os estudos mostram receptividade
do público e motivação no engajamento em contextos em que é possível com-
partilhar conteúdo digital para pessoas próximas, fazer comentários sobre o
material etc. (BARROS, 2015; MONTEIRO et al., 2020; NAVAS et al., 2020).
De modo geral, pode-se entender essas alternativas como formas de
combater a retenção da informação científica, proporcionando o acesso à
informação e a potencialização de sua natureza transformadora.

Quadro 2 – Números gerais dos episódios do podcast Falando de Famílias


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Episódios Inicializações Streams Ouvintes


FdF#01 – Semana Nacional de Conciliação
75 47 42
(part. Juiz Dr. Gildo Carvalho e Carole Baraúna)
FdF#02 – Violência de Gênero e Conciliação (part.
51 37 29
Caelison de Andrade e Munique Therense)
FdF#03 – Guarda Compartilhada (part. Carole
108 80 50
Baraúna e Raysa Figueiredo)
FdF#04 – Direitos de Famílias Homoafetivas (part.
77 55 40
Lidiany Cavalcante e Marília Freire)

FdF#05 – Pais no Pós-Divórcio (part. Camilla Félix e Carine Brito) 60 48 31

FdF#06 – Dois Lares, Uma Família (part. Munique


75 49 39
Therense e Petra Sofia Ferreira)

FdF#07 – Alienação Parental (part. Edna Rocha e Raysa Figueiredo) 51 40 27

FdF#08 – Violência Doméstica Contra a Mulher e os Mecanismos


15 11 11
de Proteção (part. Celi Nunes e Viviane Farias)

MÉDIA 64 45,875 33,625

Fonte: Elaboração dos autores, a partir dos dados do site Spotify for Podcasters, 2023.

É possível notar que o episódio “FdF#03 – Guarda Compartilhada (part.


Carole Baraúna e Raysa Figueiredo)” foi o mais bem-sucedido em termos de
audiência, com 80 streams e 50 ouvintes, enquanto o episódio “FdF#08 – Vio-
lência Doméstica Contra a Mulher e os Mecanismos de Proteção (part. Celi
Nunes e Viviane Farias)” foi o menos popular, com 11 streams e 11 ouvintes.
Os episódios que tratam de questões relacionadas ao Direito de Famí-
lia, como “FdF#03 – Guarda Compartilhada (part. Carole Baraúna e Raysa
Figueiredo)” e “FdF#04 – Direitos de Famílias Homoafetivas (part. Lidiany
Cavalcante e Marília Freire)” parecem ter tido um desempenho melhor em
126

termos de audiência, com um número maior de inicializações e streams. Por


outro lado, episódios que abordam temas relacionados à violência, como
“FdF#02 – Violência de Gênero e Conciliação (part. Caelison de Andrade e
Munique Therense)” e “FdF#08 – Violência Doméstica Contra a Mulher e os
Mecanismos de Proteção (part. Celi Nunes e Viviane Farias)” apresentaram
menor engajamento dos ouvintes.
É importante destacar que a definição de stream utilizada pela plataforma
Spotify for Podcasters é um pouco mais complexa do que apenas o ato de
iniciar a reprodução de um episódio. Conforme mencionado, considera-se
stream quando um usuário ouve um episódio por mais de 60 segundos. Por-
tanto, um episódio pode ter vários streams gerados por um mesmo ouvinte,
caso ele pause a reprodução e volte a ouvir depois.

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Essa informação é relevante na análise, uma vez que o número de streams
pode ser considerado uma medida mais precisa da audiência do que o número de
inicializações ou ouvintes. Além disso, a existência de múltiplos streams por epi-
sódio indica que há um engajamento dos ouvintes com o conteúdo do programa,
que é importante para a fidelização da audiência e o crescimento do podcast.
Cientes desse aspecto técnico, chama a atenção o fato de que os assun-
tos relacionados à guarda foram os mais procurados, ao passo que aqueles
relacionados à violência não despertaram interesse. Tais números parecem
mostrar a repetição de uma lógica, perigosa especialmente às mulheres, de
que as questões relativas às violências acontecidas no âmbito da família não
dizem respeito ao Direito de Família.
Neste sentido, Cotê (2004), ainda no início do século, fez alertas sobre
a ausência de pautas na agenda pública, no campo pós-divórcio, voltadas à
proteção materna, em contraposição à presença massiva de iniciativas de
suporte à parentalidade paterna.
Relacionando ao período da pandemia, segundo Souza e Farias (2022),
as denúncias do Disque 100 e Ligue 180 mostraram agravamento da violên-
cia contra a mulher, que correspondeu a 74% das sobreviventes da violência.
Ainda segundo o estudo, quando observadas as relações entre sobreviventes
e autores da violência, em 9% dos casos não havia relação prévia, sendo a
absoluta maioria formada por relações entre cônjuges, companheiros e ex-côn-
juges. Logo, convém destacar que a existência desses episódios, bem como a
provocação a respeito do baixo interesse, também são pertinentes.

Sobre o lócus

Uma outra questão que nos pareceu fundamental responder foi a respeito
do lócus de aceitação do podcast. Para tanto, observou-se os dados relacio-
nados ao gênero e idade dos ouvintes.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 127

Figura 4 – Ouvintes do podcast Falando de Famílias, por gênero

Fonte: Spotify for Podcasters, 2023.

Os dados sobre a distribuição por gênero dos ouvintes do podcast Falando


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de Famílias (69% feminino, 29% masculino e 2% não identificado) são impor-


tantes para entender o perfil do público-alvo do programa. Esses dados contra-
põe os disponibilizados pela Associação Brasileira de Podcasters (2020), que
mostram que o público masculino engloba cerca de 72% dos consumidores
de podcast no Brasil. O que pode indicar que mulheres são mais atravessadas
e implicadas por questões relacionadas à família e ao Direito de Família, por
isso o maior interesse.
Essa compreensão ganha robustez quando observados os estudos que
analisam as performances maternas direcionadas à prática do cuidado parental.
Pereira e Leitão (2020) enfatizam os esforços femininos no gerenciamento
das rotinas de estudo, trabalho e cuidado parental, em contexto pós-divórcio.
Polido e Mariano (2020) destacam a rede de apoio que se forma entre
mulheres como estratégia de enfrentamento dos problemas. De forma seme-
lhante, Therense et al. (2022) identificaram presença majoritária das mulheres
em ação de suporte aos processos de divórcio no contexto pandêmico. Tam-
bém neste cenário, segundo Mendes et al. (2022), as relações parento-filiais
pós-divórcio apresentaram a cronificação da ausência paterna e a agudização
da sobrecarga materna.
Quanto à faixa etária dos ouvintes do podcast, tem-se a distribuição abaixo.
Figura 5 – Ouvintes do podcast Falando de Famílias, por faixa etária

Fonte: Spotify for Podcasters, 2023.


128

É possível notar que a maior parte do público se concentra entre as


idades de 23 e 44 anos, que representam cerca de 74% do total de ouvintes. É
interessante observar, ainda, que a faixa etária de 18 a 22 anos também possui
uma participação significativa, representando quase 20% do total de ouvintes.
O lastro de idades dimensiona a abrangência do trabalho de divulgação
científica. Para Bueno (2010), a tradução do conteúdo científico em linguagem
digital permite que um amplo espectro de público, com níveis distintos de
apropriação do conhecimento, integre-se ao que está sendo comunicado. Esse
combate à retenção de informações científicas tem, nas plataformas digitais,
dispositivos eficazes de circulação da informação de qualidade.
Em contrapartida, Freire (2021) alerta para os perigos da infodemia que
vivenciamos, ou seja, a rapidez com que informações, não necessariamente
verdadeiras, são disponibilizadas e acessadas. Neste sentido, a produção de

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conteúdo digital embasado em conhecimento científico assume um papel
importante para pessoas de diferentes faixas etárias.

Pode-se dizer que com frequência os “objetos” dotados de transparência,


ausência, ou elementos de difícil análise, ou ainda pouco mensurável acaba
por perder visibilidade no contexto científico moderno, mas as afirmações
da autora permitem que nos atentemos para o potencial de transforma-
ção e influência desses espaços aparentemente inofensivos, como o caso
da internet que, frente aos fenômenos cotidianos conhecidos, deixam de
ser considerados em importância, é, por assim dizer, considerada irrele-
vante, fútil, apenas uma representação artificialmente construída e portanto
menosprezada na vida humana. No entanto, Nicolaci-da-Costa (2002)
afirmou que as novas formas de organização social e os novos espaços
de vida geram profundas alterações nos estilos de agir e de ser, que são
documentadas nas produções científicas e não-científicas (PÉREZ, 2019).

O podcast explora temáticas que, de uma forma ou de outra, são universais,


no sentido de que afetam a população como um todo, sem que necessariamente
tenham um processo em juízo. Questões de família já habitam as fantasias
brasileiras, em novelas, em histórias de pessoas conhecidas, em noticiários.
Enquanto serviço dentro do ambiente jurídico, para envolvidos nas causas
de família, ou como um mediador da compreensão para quem está fora do
tribunal, como um espectador do mundo, o podcast aborda e guarda informa-
ções para, além dos envolvidos, jovens adultos que já passaram por questões
relacionadas a esses temas (por exemplo, filhos de pais separados), familiares,
pesquisadores, estudantes e curiosos.

Considerações finais
Os impactos da Pandemia de covid-19 no contexto de trabalho institucio-
nal e na forma de prestação jurisdicional, bem como as engrenagens movidas
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 129

para viabilizar a continuidade dos serviços, serão desvelados mesmo após


oficialmente declarado o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância
Internacional (ESPII), em 5 de maio de 2023.
Dentre os impactos de formato de prestação de serviços, pode-se dizer
que estratégias, a princípio, pensadas exclusivamente para o contexto de crise
de saúde global, mostraram-se pertinentes para cenários diferentes deste.
Toma-se como exemplo o caso do podcast Falando de Famílias.
Referente ao produto em si, apresentamos o passo a passo da elaboração
do roteiro, convite, formato de gravação e de episódio, edição e publica-
ção. Descrevemos também a montagem de um serviço a partir da estrutura
física habitualmente disponibilizada em ambientes institucionais (sala, mesa,
cadeiras e computador desktop), com aquisição de elementos específicos para
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viabilizar a proposta, como o microfone 360º e o programa de edição.


Em relação ao perfil, identificou-se que, majoritariamente, o público
de assinantes é feminino, reforçando a compreensão de que, no que tange
aos temas relacionados ao Direito de Família, as mulheres se mantém como
guardiãs e executoras do cuidado. Em relação aos temas, a guarda compar-
tilhada foi o que despertou e manteve maior interesse, ao passo que aqueles
relacionados à violência apresentaram baixo engajamento. A discussão nos
remeteu ao que já vem sendo amplamente discutido sobre a necessidade de
evidenciar que os temas da Segurança Pública devem ser entendidos como
interseccionados aos do Direito de Família.
A partir de reflexões sobre o contexto sociopolítico em que vivemos,
foi possível estabelecer articulações teórico-reflexivas sobre a necessidade
de construir formas de não retenção da informação científica de qualidade,
de combate à infodemia de notícias falsas e de ampliação do acesso às infor-
mações que podem promover aos jurisdicionados movimentos de autonomia,
reflexão e fortalecimento.
Ao apresentar um projeto desenvolvido a partir dos recursos e materiais
disponíveis em um setor institucional, estamos, de alguma forma, apesar da
ausência de melhores condições, dando visibilidade ao movimento de inven-
tividade surgido diante da necessidade disparada pela grave crise de saúde
vivenciada pelo Amazonas. Embora seja um ato simples, diante do vivido no
estado, é um registro desse tempo, das linhas de fuga ou afluentes de respos-
tas do serviço público, que foram necessárias para localizar e encaminhar as
demandas endereçadas ao Sistema de Justiça.
130

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PERITAS/OS SEM EXPERTISE
E MERCADO DE LAUDOS:
sobre a banalização das práticas
psicológicas na interface da justiça
Analicia Martins de Sousa
Fernanda Hermínia Oliveira Souza
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Introdução

As discussões propostas neste ensaio teórico são uma ampliação do painel


apresentado no VII Encontro Nacional do Núcleo de Pesquisa em Psicologia
Jurídica (NPPJ), ocorrido em 2021, durante a pandemia da covid-19. Nesse
período, marcado por medidas sanitárias que restringiam a circulação de pes-
soas, as redes sociais tornaram-se para muitos um ambiente de refúgio, de
entretenimento, mas principalmente de comércio sobre bens e serviços. Nesse
contexto, nos chamou atenção a grande oferta de cursos na área da Psicologia,
com curta duração e baixos valores de inscrição, que lotavam salas virtuais
em diferentes plataformas.
Em meio às novidades, dúvidas e preocupações sobre a prática e a forma-
ção em Psicologia naquele momento, vimos o surgimento do que talvez seja
um novo tema de investigação no campo da Psicologia Jurídica: a/o perita/o
sem expertise. Tal personagem era sugerida/o em anúncios nas redes sociais
sobre cursos de perícia psicológica que estampavam dizeres do tipo: “conheça
um mercado em ampla expansão”, “você não precisa ter experiência”, “você
terá renda extra sem sair de casa”. Assim, diante das promessas de facilidades
e ganhos extraordinários, notamos no ambiente virtual um crescente interesse
pela perícia psicológica. Por outro lado, a visão fantasiosa que se criava em
torno dessa prática parecia estar distante da normativa expedida pelo Conselho
Federal de Psicologia (2005, 2012) e da realidade sobre as práticas psicoló-
gicas no âmbito da Justiça, as quais ainda hoje são objeto de discussões no
campo da Psicologia Jurídica no Brasil (THERENSE et al., 2017).
Nosso argumento é que, embora naquele momento da pandemia esti-
vessem presentes elementos que favoreciam o boom de cursos voltados
à atualização e capacitação profissional nas redes sociais, no que tange à
perícia psicológica, a procura desenfreada por cursos na área foi favorecida
136

primordialmente por um dado: o cadastro de peritos, criado pelo Código de


Processo Civil (BRASIL, 2015) e implementado nos tribunais brasileiros,
conforme a Resolução n.233 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publi-
cada em 13 de julho de 2016.
É provável também que esse seja o pano de fundo do considerado mercado
de laudos, denunciado em matéria publicada pelo jornal on-line Intercept Bra-
sil (FELIZARDO, 2023), que provocou enorme polêmica sobre documentos
psicológicos, envolvendo os temas alienação parental e abuso sexual infantil.
Diante desse cenário, temos como objetivo neste ensaio teórico refletir
sobre o surgimento de um novo personagem na cena jurídica, o qual nomea-
mos como perito sem expertise, e sobre o conjecturado mercado que teria se
estabelecido em torno da produção de documentos psicológicos nos últimos

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tempos. Para tanto, nos valemos da nossa experiência como psicólogas jurídi-
cas, atuando com litígios parentais e também na capacitação de profissionais
da Psicologia, do Direito e do Serviço Social. Em nossas análises, privile-
giamos a perspectiva interdisciplinar e social crítica da Psicologia Jurídica
(MOREIRA; SOARES, 2019).
Entendemos que é indispensável a atualização e a ampliação do debate
sobre as demandas de avaliação e intervenção com fins judiciais no campo
da Psicologia Jurídica. Pois, a banalização e a precarização das perícias psi-
cológicas no âmbito da justiça, por meio das novas políticas judiciárias, têm
favorecido a expansão da judicialização também sobre as práticas psicológicas
no contexto da clínica privada, com pedidos de atendimento e/ou avaliação
de filhos de pais separados (SOUSA; SOUZA, 2021). O resultado disso, tem
sido o aumento de denúncias éticas nos Conselhos Regionais de Psicologia
(AMENDOLA, 2014a; SHINE, 2012).

Entre velhas e novas questões para a Psicologia Jurídica

As práticas psicológicas no âmbito da justiça não são recentes na


história da Psicologia. Elas remetem à constituição desse campo de conhe-
cimento no século XIX, quando se buscava fornecer ao saber jurídico, por
meio de instrumentos e medições, a veracidade sobre o testemunho de um
crime, configurando, assim, o que ficou conhecido como “Psicologia do
testemunho” (BRITO, 2012).
Contemporaneamente, no Brasil, a atuação de psicólogas/os no âmbito
forense esteve associada à realização de avaliações com fim de diagnóstico
psicológico, que resultavam em laudos técnicos utilizados para subsidiar
as decisões dos magistrados. Nesse contexto, as práticas psicológicas eram
associadas ao campo teórico prático da chamada Psicologia Forense.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 137

Nas décadas de 1980 e 1990, com a criação de concursos para psicó-


logas nos tribunais de justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro, respectiva-
mente, e uma maior inserção dessas profissionais na rede de atendimento de
crianças e adolescentes, intensificaram-se também as discussões sobre a atua-
ção que, a princípio, estaria restrita à perícia psicológica. Alguns estudiosos
e pesquisadores apontavam que o enfoque excessivo em aspectos individuais
psicológicos contribuía para manter a salvo de debates os fatores de ordem
econômica, política e histórica que constituem a realidade social, assim como
os próprios sujeitos que dela fazem parte. Com isso, as justificativas sobre
os considerados desvios de comportamento, por exemplo, fundamentavam-
-se em argumentos de viés psicopatológico que perpetuavam preconceitos,
estigmas, exclusão social, dentre outros aspectos (BRITO, 2012).
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Desde então, se convencionou o uso do termo Psicologia Jurídica


para referir as práticas psicológicas nas instituições ligadas ao sistema
de justiça (CADAN; ALBANESE, 2018). Porém, recentemente tem se
privilegiado o entendimento de que as psicólogas que estão na rede de
atendimento, nos consultórios privados, dentre outros espaços, também
atuam na interface da Justiça, já que poderão responder a pedidos de ava-
liação e emissão de documentos, conforme determinação de magistrados
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019a). Apesar disso, ainda
hoje persistem perspectivas diversas sobre a práxis psicológica nessa
seara. De um lado, há a que prioriza as técnicas e o rigor nas avaliações,
objetivando assim a verdade científica em auxílio ao exercício do Direito,
e de outro, a que privilegia diálogos com outras disciplinas, na busca por
construir formas de intervenção para além da perícia psicológica (THE-
RENSE et al., 2017; CADAN; ALBANESE, 2018).
No curso do tempo, o surgimento de novas políticas judiciárias têm
confrontado a Psicologia com demandas e questões sobre o seu fazer.
Nesse sentido, é fundamental citarmos as discussões em torno do chamado
depoimento sem dano ocorridas nos anos 2000. Esse procedimento con-
tava inicialmente com a participação de psicólogas e assistentes sociais
na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de violência, com vistas à
produção antecipada de provas. Após intensos e acalorados debates entre
a categoria profissional e os operadores jurídicos, o Conselho Federal de
Psicologia (CFP) publicou a Resolução CFP n.010/2010, que vetava às
psicólogas desempenhar o papel de inquiridoras no atendimento de crianças
e adolescentes em situação de violência. Tal posicionamento se baseava na
compreensão de que, a técnica de extração da verdade não era reconhecida
como prática psicológica. Contudo, a Resolução foi suspensa em todo o
território nacional (ARANTES, 2016).
138

Avaliamos que na história recente da Psicologia, talvez esse tenha


sido um dos momentos de maior dissidência entre as profissionais que
atuam no âmbito do judiciário. Acompanhando à época eventos sobre o
assunto, percebíamos que, para algumas profissionais, era inaceitável ou
incompreensível o posicionamento do CFP, pois entendiam que a demanda
da justiça para a Psicologia representava o reconhecimento e a valorização
da categoria. Além disso, ao desempenhar tal papel, estariam contribuindo
para a proteção e garantia dos direitos infanto-juvenis. Assim, antes mesmo
da aprovação da Lei nº13.431/2017 (BRASIL, 2017), que dispõe sobre o
depoimento de crianças e adolescentes, que passou a ser designado como
especial, no sistema de garantia de direitos, psicólogas já atuavam no pro-
cedimento, realizado em tribunais de todo o país. Recentemente, vale men-

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cionar, nos chamou atenção em discussões sobre o assunto, o entendimento
de que, nessas situações, as profissionais estariam atuando como técnicas
e não como psicólogas − apesar de serem serventuárias, concursadas para
o cargo de analista judiciária em psicologia, vale assinalar.
Consideramos o tema depoimento especial emblemático para a Psi-
cologia brasileira, pois, além de ter suscitado entre operadores jurídicos
questionamentos quanto às atribuição do CFP em regular sobre a partici-
pação ou não de psicólogas na inquirição de crianças e adolescentes, apro-
fundou ainda mais certo mal-estar instalado na histórica relação Psicologia
e Direito (ARANTES, 2008).
Enquanto as discussões sobre o depoimento especial diziam respeito
particularmente às práticas psicológicas no âmbito do judiciário, na mesma
época, se difundia no campo social e jurídico um tema que a princípio não
teve grande destaque na Psicologia Jurídica. Mas, em pouco tempo, se
tornou o que consideramos ser um dos maiores fenômenos discursivos na
história recente da Psicologia brasileira, alcançando os diferentes espaços
de atuação profissional, as alegações de síndrome da alienação parental
(SAP) nas situações de disputa de guarda entre mães e pais (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2022). Os pressupostos do psiquiatra norte
americano Richard Gardner sobre essa conjecturada síndrome fazem refe-
rência a um distúrbio infantil que seria promovido por mães guardiãs com
o objetivo de afastar os filhos do pai não residente. No Brasil, movimentos
de homens pais, baseados nas ideias de Gardner, criaram o Projeto de
Lei 4053/2008 que visava definir e punir a prática de alienação parental
– sendo então suprimida a expressão síndrome. Sem um amplo debate
social sobre o assunto, o PL teve célere tramitação na Câmara Federal dos
Deputados e, com isso, em 2010, foi sancionada a Lei n.12.318 que criou
um novo ilícito civil no país, a conduta de alienação parental (BRASIL,
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 139

2010). Além de apresentar uma espécie de checklist na identificação dos


atos de alienação parental e medidas a serem aplicadas contra o chamado
genitor alienador − em sua grande maioria, as mães −, a lei também apresenta
determinações quanto ao trabalho das equipes que assessoram os juízos, sem
dialogar, contudo, com a normativa expedida pelos Conselhos de Categoria
(SOUSA, 2019; CIARALLO, 2019).
Durante anos, houve uma intensa produção discursiva sobre o assunto
particularmente no campo do Direito (MENDES et al., 2016). Com isso,
os impasses e conflitos entre pais e mães em torno do exercício da paren-
talidade em comum passaram a ser atribuídos fundamentalmente às mães,
descritas como alienadoras. Para elucidar essa questão, contudo, importa
fazermos uma breve digressão.
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Em pesquisas no campo da Psicologia Jurídica, publicadas nos últimos


20 anos, observamos que as desqualificações e os ataques mútuos entre mães
e pais em disputa pela guarda de filhos eram um dado comum em processos
nas Varas de Família. Cada um dos pais buscava demonstrar que possuía
“melhores condições” para exercer a guarda unilateral dos filhos, conforme
a legislação vigente à época (BRITO, 2002). No entanto, em 2014, com a
promulgação da Lei n. 13.058 sobre guarda compartilhada (BRASIL, 2014),
a busca pela mãe ou pai com as chamadas “melhores condições” cedeu lugar
à concepção de que ambos, aptos para o exercício da guarda, passariam a
desempenhá-la de forma compartilhada.
O novo instituto da guarda de filhos foi, contudo, tornado regra em um
meio social e jurídico de escasso debate e compreensão sobre a parentali-
dade (SOUZA, 2018), assim como sobre os temas que a perpassam: desi-
gualdades de gênero, dispositivo materno42, “novos pais”, dentre outros.
Provavelmente, por isso, desde a aprovação da referida lei, têm surgido
questionamentos quanto à aplicação dessa modalidade de guarda, tendo
em vista que ela também pode ser um meio de continuidade à violência
praticada por homens contra as ex-parceiras (CÔTÉ, 2016). Por outro
lado, na defesa da matéria, comumente é empregado argumento que se
tornou bordão na cena jurídica: a importância de pais e mães separarem a
parentalidade da conjugalidade como meio de preservar os filhos. Porém,
considerando que a desigualdade de gênero está presente na relação entre
o casal, desde antes da formação do par conjugal, e tem reflexos sobre os
direitos e deveres concernentes à parentalidade, tal separação seria a rigor
improvável (BRANDÃO, 2019).
Também na linha dos argumentos psicojurídicos presentes em proces-
sos de disputa de guarda e convivência, destacamos o entendimento de que

42 Com base no pensamento de Michel Foucault, Zanello (2016) usa o termo dispositivo materno para referir
o modo de subjetivação das mulheres, no qual são forjadas para o cuidado, ser para cuidar do outro.
140

as dificuldades ou os impedimentos à convivência paterno-filial resultarão


em prejuízos irreversíveis ao saudável desenvolvimento dos filhos. Essa
visível atomização da parentalidade isola as relações parentais e os pro-
cessos de socialização de crianças e adolescentes do contexto social mais
amplo (SOUZA, 2018), bem como desconsidera as desigualdades de gênero
e o dispositivo materno como fatores indissociáveis das concepções de pais
e mães sobre a educação e o cuidado com os filhos (ZANELLO, 2016).
Assim, atualmente nos processos de disputa de guarda e convivência,
as brigas, resistências, desconfianças, críticas e exigências quanto ao con-
vívio paterno, são rebatidas sob o argumento jurídico de alienação paren-
tal. Dito de outro modo, um perfil de viés psicopatológico é atribuído às
mães por meio de descrições como, por exemplo, desequilibrada, egoísta,

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controladora, agressiva, possessiva, cruel, vingativa, ressentida, ciumenta,
com dificuldade de aceitar o fim da relação e portadora de alguma moléstia
mental. Tais descrições sobre as mães como loucas e alienadoras remetem
às personagens malvadas dos contos de fadas ou de terror, o que não é
surpresa, tendo em vista o caráter ficcional de grande parte das narrativas
expostas nas peças processuais. Porém, não é de hoje que as justificativas
para os comportamentos que se desviam da maternidade complacente,
dócil, adequada e adaptada se associadas ao campo da psiquiatria, como
observamos em várias síndromes descritas no século XX no contexto esta-
dunidense (SOUSA, 2010).
Nesse cenário, alguns podem questionar sobre o fato de que a prática de
alienação parental também é atribuída aos homens pais, já que a Lei n. 12.318
(BRASIL, 2010) não faz distinção de gênero. Diante disso, recordamos que
Richard Gardner atribuiu às mães o desenvolvimento da SAP no(s) filho(s),
o que devia unicamente ao fato de elas serem na maioria das vezes as res-
ponsáveis pela guarda. Contudo, diante da acusação de sexismo, o psiquiatra
passou a afirmar que tanto as mães quanto os pais eram alienadores. Com essa
espécie de salvo conduto sobre suas proposições, o psiquiatra se esquivou de
parte das polêmicas sobre a SAP (SOUSA, 2010). No caso da lei brasileira,
consideramos que aconteceu algo similar. Ou seja, embora não discrimine
pais ou mães como alienadores, o que geraria muita polêmica, a lei é aplicada
majoritariamente sobre estas últimas (SOUSA, 2019).
Desse modo, os discursos sobre as mães loucas e alienadoras, basea-
dos em estereótipos de gênero, têm sido empregados nos processos judi-
ciais como forma de desacreditar as críticas imputadas por mães a pais
que, segundo elas, não cumprem a guarda compartilhada, pois se limitam
a exigências quanto à divisão da convivência com os filhos. Outras vezes,
as mães igualmente são taxadas de alienadoras ao levantarem suspeita de
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 141

abuso sexual infantil perpetrado pelo ex-parceiro − dado que provavelmente


contribuiu para a intensa difusão do tema alienação parental na sociedade
e, consequentemente, para demandas de avaliação em âmbito institucional
e privado, como se verá mais à frente.

A produção de demandas e sentidos sobre o fazer psicológico

Neste ensaio teórico, traçamos uma linha do tempo imaginária no


intuito de mapear os fatores que possivelmente contribuíram para o des-
pontar das/os peritas/os sem expertise e do mal-afamado mercado de lau-
dos psicológicos. Nesse sentido, destacamos principalmente o Código de
Processo Civil (CPC), publicado em 2015. Segundo o novo texto legal,
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quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico,


será nomeado perito inscrito em cadastro mantido por cada tribunal43.
Assim, a novidade anunciada pelo CPC (BRASIL, 2015) criou também a
necessidade de regulamentação sobre o referido cadastro, o que foi feito
mediante a Resolução n. 233 do Conselho Nacional de Justiça (2016).
Segundo essa resolução, cada tribunal deve publicar edital próprio,
fixando os requisitos e os documentos necessários para que profissionais se
cadastrem como peritos. Isso, porém, não implica vínculo empregatício ou
obrigações de natureza previdenciária com a instituição. A resolução, con-
tudo, não especifica se há exigência de formação de nível superior, assim
como não fixa o valor dos honorários profissionais, apontando apenas que
essa informação estará no cadastro, junto com a lista dos peritos nomeados
em cada jurisdição e a identificação dos processos. No entanto, vale subli-
nhar que, nas perícias em processos judiciais com deferimento da assistência
judiciária gratuita, que é o que ocorre na maioria dos casos, os profissionais
nomeados como peritos recebem apenas uma ajuda de custo (Conselho da
Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 2018).
Quanto à escolha e nomeação dos peritos, isso caberá ao magistrado,
que poderá fazê-lo de forma direta ou por sorteio eletrônico, conforme a
Resolução n.233 do Conselho Nacional de Justiça (2016). Anteriormente,
cabe lembrar, as perícias eram conduzidas por profissionais de confiança,
indicados pelos magistrados. Com o cadastro citado acima, essa situação não
se alterou completamente. Muitas vezes, em processos nas Varas de Família,
é o próprio magistrado quem indica a perita psicóloga e a assistente social
que deverão apresentar proposta de honorários a serem pagos na proporção

43 Art. 156 do CPC: O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico
ou científico. § 1º Os peritos serão nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos
técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinulado.
142

de 50% por cada parte. Porém, é vedada a nomeação de profissionais que


não estejam regularmente cadastrados, de acordo com a referida resolução.
Mas afinal, como a criação do cadastro de peritos teria contribuído para
a explosão de cursos sobre perícia psicológica nas redes sociais durante a
pandemia? Avaliamos que devido às características regionais, à realidade
de cada tribunal de justiça, os editais de seleção dos profissionais têm carac-
terísticas particulares. Diante disso, o modo como o referido cadastro vem
sendo preenchido por alguns tribunais parece divergir do que se espera
de um perito, ou seja, um profissional especializado no objeto da perícia,
conforme o CPC44 (BRASIL, 2015). Assim, eventual falta de transparên-
cia e rigor nos editais quanto aos critérios de seleção e à qualificação dos
profissionais, aliada à ampla divulgação do cadastro de peritos pelos cursos

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citados anteriormente, profissionais recém-formados ou que estavam fora
do mercado de trabalho, por exemplo, se inscreveram e aguardam nomeação
do juízo para iniciar a atividade de perícia − sem expertise, vale sublinhar.
Para ilustrar a falta de transparência quanto à seleção e qualificação
dos peritos, citamos o exemplo de um jovem psicólogo que, na inscri-
ção para o cadastro do tribunal de justiça de sua localidade, assinalou a
sua experiência anterior na assistência social. Apesar disso, pouco tempo
depois, para a sua surpresa, ele foi designado para atuar como perito em
um processo que envolvia disputa de guarda e convivência familiar. Porém,
ciente de que não possuía o conhecimento necessário para a atividade, o
psicólogo declinou da nomeação45.
Não pretendemos, com isso, a defesa de especialidades ou da prá-
tica tecnicista, focada no mercado de trabalho e descolada da realidade
social (AMENDOLA, 2014b). Mas, diante da complexidade das questões
de família, das demandas, das dificuldades e dos dilemas éticos com os
quais às psicólogas se deparam no cotidiano de trabalho na interface da
justiça (Conselho Federal de Psicologia, 2019a), compreendemos que há
sim especificidades nesse campo. A forma como vem sendo preenchido o
referido cadastro de peritos, em última análise, aponta para a fragilidade
das relações de trabalho e as suas consequências sobre os jurisdicionados.
Como reflete Brandão (2019, p. 180):

[...] a iniciativa dos tribunais brasileiros tem sido aparentemente cada vez
mais de lançar mão de pessoal contratado, voluntário e terceirizado em
substituição do servidor público. É notório que a fragilidade das relações
de trabalho e a ausência de relações duradouras no próprio sistema judi-
ciário têm efeitos deletérios sobre a garantia e a promoção de direitos.

44 Art. 465 do CPC (BRASIL, 2015): O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia e fixará de
imediato o prazo para a entrega do laudo.
45 Conforme o Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2005),
Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos: b) Assumir responsabilidades profissionais somente
por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 143

Identificamos ainda evento no campo social que talvez tenha correlação


para a intensa divulgação dos cursos de perícia psicológica, observada nos
anos de 2020 e 2021, durante a pandemia. O surgimento dos coletivos de
mães contrários à Lei n.12.318 (BRASIL, 2010) em 2017 impulsionou mais
uma vez a projeção do tema alienação parental na sociedade. Na ocasião,
os veículos de comunicação e também as redes sociais chamavam atenção
para a situação vivida por mães que haviam perdido a guarda dos filhos após
denúncia contra o ex-parceiro de abuso sexual infantil. Sem a confirmação do
abuso, a denúncia foi considerada falsa e as mães declaradas alienadoras pelo
juízo. Diante disso, se promoveram críticas e debates sobre a aplicação da
referida lei, o que resultou em pedidos na Câmara e no Senado Federal quanto
a sua revogação (SOUSA, 2020). Paralelamente, ao longo do tempo, vimos
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a intensificação do argumento jurídico de alienação parental nas disputas


entre mães e pais separados e, com isso, mais pedidos de avaliação às equi-
pes interdisciplinares que assessoram os juízos de família (SOUSA, 2019).
As questões expostas ao longo deste ensaio, contudo, parecem ser
ignoradas pela série de reportagens “Em nome dos pais”, publicada em 2023
pelo jornal on-line Intercept Brasil46. De acordo com a segunda matéria da
série (FELIZARDO, 2023), promotores e magistrados teriam se baseado
em “laudos psicológicos” favoráveis a homens acusados de abuso sexual
infantil e, com isso, crianças foram obrigadas a conviver com estes últimos e
as mães submetidas a medidas judiciais, conforme a Lei n. 12.318 (BRASIL,
2010). Nesse sentido, a matéria faz críticas tanto aos “laudos” produzidos
por psicólogas analistas judiciárias, quanto por psicólogas contratadas pelos
acusados. Quanto aos “laudos contratados”, o jornal on-line sugere ainda
que teria se criado um “comércio lucrativo” em torno deles.
Como apontamos alhures (SOUSA, 2020), desde a aprovação da Lei n.
12.318 (BRASIL, 2010), os tribunais brasileiros têm se empenhado na divul-
gação de cartilhas para o público em geral, com orientações sobre as formas
de alienação parental e os graves prejuízos que seriam causados a crianças
e adolescentes vitimados pelo malvado alienador − também neste caso não
é feita distinção entre pais e mães, embora a lei recaia especialmente sobre
estas, vale reforçar. Assim, podemos afirmar que o judiciário tem sido um
dos principais promotores do assunto no campo social. Em consequência
disso, produziram-se também mudanças quanto aos significados atribuí-
dos aos impasses vividos por pais e mães em torno na parentalidade em
comum, ou seja, o problema passou a ser visto exclusivamente por um
viés individual e psicológico. Portanto, novamente, com a Lei n. 12.318
46 Em menos de um mês, desde a data da primeira reportagem do jornal Intercept Brasil, uma juíza do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro determinou a retirada do ar da série de reportagens, sob pena de
multa (COSTA, 2023).
144

(BRASIL, 2010) têm se criado cada vez mais demandas no campo social
e jurídico, dirigidas especialmente às psicólogas, para a identificação − ou
“diagnóstico”, conforme a lei − do ilícito alienação parental.
Além disso, no que tange às alegações de abuso sexual infantil, estu-
diosas apontam a complexidade que envolve tais situações, particular-
mente, nos casos em que o abuso não deixa vestígios físicos. Assim, a sua
identificação seria feita por meio de eventuais sintomas, comportamentos
e falas da criança supostamente abusada. No entanto, os estudos sobre a
memória, no campo da Psicologia cognitiva, têm sido utilizados em argu-
mentos sobre a implantação de falsas memórias, como forma de desacre-
ditar o relato da criança, atribuindo-o à prática de alienação parental pela
mãe (AMENDOLA, 2014a; OLIVEIRA; RUSSO, 2017).

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Desse modo, essas e outras demandas, que são de ordem judicial, vêm
chegando cada vez mais aos consultórios privados de psicólogas, frequen-
temente sobrepostas a questões clínicas. Nessas situações, invariavelmente
são solicitados por mães, pais e advogados − e, em alguns casos, por meio
de determinação do juízo − a emissão de documento psicológico sobre a
criança ou adolescente atendida/o (SOUSA e SOUZA, 2021).
Nesse ponto, cabe lembrarmos que grande parte das profissionais da psi-
cologia se dedica às atividades da clínica privada. Esse dado, aliado ao fato de
que, na maioria dos cursos de graduação em Psicologia, não existe a disciplina
de Psicologia Jurídica como obrigatória na grade curricular (MOREIRA; SOA-
RES, 2019), talvez explique certo alheamento das profissionais em relação às
discussões sobre avaliação e pedidos de documentos no contexto do litígio
parental, bem como o aumento de denúncias éticas nos conselhos de categoria
que dizem respeito a documentos originados especialmente no âmbito da clínica
privada e não do judiciário (AMENDOLA, 2014a; SHINE, 2012).
Diante dessas questões, o CFP publicou em 2022 nota técnica com crí-
ticas à Lei n.12.318 (BRASIL, 2010) e orientações às psicólogas quanto a
pedidos de avaliação e confecção de documento sobre o ilícito alienação
parental. A nota não se restringe à atuação das psicólogas junto às instituições
de justiça, pois reconhece que essas demandas chegam cada vez mais aos
diversos espaços de atuação profissional.
Com tais reflexões não pretendemos desconsiderar as críticas feitas pelo
jornal on-line Intercept Brasil sobre o conteúdo dos “laudos forenses” e “lau-
dos contratados”, mencionados anteriormente. Sem dúvida, é fundamental
discutirmos a qualidade dos documentos produzidos, pois eles podem ter sérios
efeitos na vida das pessoas avaliadas. Ademais, cabe às profissionais buscar o
constante aprimoramento e não assumir responsabilidades para as quais não
estejam qualificadas de forma técnica e teórica (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 145

PSICOLOGIA, 2005, 2019b). Contudo, ao atribuir quase exclusivamente às


profissionais da psicologia a responsabilidade pelo sofrimento e pela vio-
lência vividos pelas mães e crianças citadas nas matérias, como resultado
de um mercado de laudos não demonstrado, o jornal deixa de fora não só
as questões apontadas anteriormente, mas também o que consideramos ser
o ponto fundamental quanto ao trabalho das psicólogas nessas situações: a
determinação da verdade. Como apontado inicialmente, foi com base nessa
expectativa que se constituiu a colaboração histórica entre a Psicologia e o
saber jurídico. Porém, ainda hoje o assunto é alvo de debates, tendo em vista
que a verdade pode se apresentar em partes, ou a partir de diferentes pon-
tos de vista (CADAN; ALBANESE, 2018). Assim, compreendemos que as
psicólogas devem expor o seu entendimento sobre as diferentes narrativas e
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observações feitas ao longo de suas avaliações. Quanto à investigação sobre


a verdade dos fatos, essa deve estar ao encargo dos operadores jurídicos.
Embora as críticas levantadas pelo jornal Intercept Brasil contribuam para
fomentar debates sobre o fazer psicológico na interface com a justiça, avaliamos
também que elas poderão surtir efeito rebote. O ataque sobre as avaliações
feitas por psicólogas no contexto das disputas em Varas de Família poderá
favorecer mais uma vez a promoção do controvertido depoimento especial no
meio jurídico, anunciado como técnica eficiente, pouco onerosa, que evitaria
a revitimização de crianças e adolescentes (BRITO; PARENTE, 2012). Em
contraponto, seguindo o pronunciamento do CFP (2018), entendemos que as
falas destes últimos serão tomadas como objeto de produção antecipada de
prova, em detrimento das avaliações psicossociais que privilegiam o conjunto
das relações e os atores envolvidos no litígio parental. O caminho nesse sentido
já vem sendo pavimentado, especialmente, com a aprovação da Lei n. 14.340
(BRASIL, 2022) que alterou a lei da alienação parental. Alguns meses após a
aprovação da nova lei, o Conselho Nacional de Justiça (2022) criou um grupo
de trabalho para elaborar um protocolo sobre escuta especializada e depoimento
especial em ações de família com alegações de alienação parental. Diante
disso, podemos aguardar novas demandas e tensões no campo psicojurídico.

Sensos e contrassensos sobre a perícia psicológica

O conhecimento científico, os objetos de pesquisa, a atuação profissio-


nal e as demandas dirigidas às psicólogas são produções datadas, pertinen-
tes a cada momento histórico (BRITO, 2012, AMENDOLA, 2014b. Assim,
tomando a perícia psicológica como objeto de análise, o que observamos ao
longo do tempo? Um duplo movimento. De um lado a valorização da perícia
psicológica, como um campo de expertise da Psicologia, cujas contribuições
146

são necessárias para as intervenções do sistema de justiça. De outro, a sua


desvalorização, tanto por um possível aumento do número de peritas/os sem
expertise, quanto pela divulgação de um suposto mercado lucrativo de laudos
psicológicos, conforme descrevemos anteriormente.
No interior do primeiro movimento, se situam os estudos realizados a
partir de métodos e técnicas próprios à ciência psicológica que têm entendi-
mento sobre a verdade diverso ao campo do Direito (BRITO, 2008a; CADAN;
ALBANESE, 2018). Para tanto, a perícia seria realizada por profissionais
concursados ou por aqueles indicados pelo juízo. Neste cenário, entendemos
que não há espaço para a criação de um mercado lucrativo de laudos, como
sugere o referido jornal on-line, uma vez que as psicólogas analistas judiciais
não recebem mais proventos do que os já determinados no concurso. E, as

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peritas cadastradas, nomeadas pelo juízo, recebem o valor da ajuda de custo,
ou os honorários contratados, no caso da perícia particular, como já apontado.
No segundo movimento, sobre a desvalorização da perícia psicológica,
incluem-se as demandas por documentos psicológicos para subsidiar petições no
sistema de justiça. Neste contexto, inserem-se as solicitações de tais documentos
por operadores do Direito, quando da inicial do processo, por exemplo, como
forma de justificar pedidos e tutelas de urgência no sistema de justiça. Esses
documentos são oriundos, na maioria das vezes, de consultórios privados de
psicológas, especialmente da clínica com crianças e adolescentes filhos de pais
separados. Cabe destacar que grande parte desses profissionais, que entregam
documentos em um contexto clínico, desconhece o uso feito no sistema de justiça
(SOUSA; SOUZA, 2020). São documentos que não tem por finalidade a perícia,
descrevem intervenções em outro campo de atuação, ainda que sobre os mesmos
sujeitos. A Resolução CFP n. 06/2019 descreve as diferentes modalidades de
documentos psicológicos. Contudo, costuma-se chamar de laudo todo e qualquer
documento elaborado por psicólogas, talvez pela associação com o laudo médico.
O uso de documentos da clínica psicológica no sistema de justiça pode ser
explicado tanto pela organização da grade curricular dos cursos de graduação,
quanto pela relação histórica entre a Psicologia e o Direito. A formação em
Psicologia possui um viés amplo e generalista (AMENDOLA, 2014b). Por
conseguinte, a oferta de disciplinas específicas pelas Instituições de Ensino
Superior variam. A disciplina psicologia jurídica, é praticamente inexistente
nos cursos de graduação em nosso país (MOREIRA e SOARES, 2019), como
já apontado, a despeito da Psicologia Jurídica não ser uma nova especialidade
e possuir um vasto acúmulo de conhecimentos por meio de pesquisas ao longo
dos anos (SAMPAIO et al., 2020, GOMES, OLIVEIRA e COSTA, 2019,
THERENSE et al., 2017, BRITO, 2012; SHINE, 2005).
Os limites e possibilidades de atuação da Psicologia na interface com
a justiça é tema estudado ao longo dos anos por profissionais da Psicologia
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 147

Social Jurídica. Bem como, a necessária compreensão da diferença episte-


mológica entre os dois campos.

Em todos os setores da justiça, a demanda direcionada ao psicólogo ainda


chega mergulhada em um conteúdo avaliador, investigativo e com a con-
cepção de que esse perito reportará ao magistrado respostas definitivas e
conclusivas com valor de verdade. O profissional psicólogo deve ques-
tionar-se sobre os desdobramentos e as questões éticas para os envolvi-
dos naquele processo, dos conteúdos expressos em um laudo no âmbito
jurídico (SOARES; CARDOSO, 2016, p. 63).

Nos serviços psicológicos ligados à justiça sempre esteve presente


a demanda por uma produção de verdade que subsidiasse as decisões
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jurídicas (BRITO, 2008a; CADAN; ALBANESE, 2018). A atuação não


necessariamente se baseia nas possibilidades de ação e intervenção da
Psicologia com seus materiais e métodos. Neste sentido, podemos refletir
sobre um trabalho interdisciplinar da Psicologia junto ao Direito ou a
Psicologia sendo utilizada a serviço do Direito, como um instrumento.
Ainda em relação ao segundo movimento, de desvalorização da perícia
psicológica, citamos o cadastro de perito, conforme Resolução n. 233 do
Conselho Nacional de Justiça. E, consequentemente, a possibilidade de rea-
lização de perícias sem expertise, conforme sinalizamos em itens anteriores.
A relevância dada ao saber do especialista e ao conteúdo das perícias
no sistema de justiça é conhecida. Rodrigues, Couto e Hungria (2005), em
estudo sobre a influência dos laudos psicológicos nas decisões em varas de
família na capital de São Paulo, concluíram que, em 94,23% dos casos, o
conteúdo dos documentos contribuiu para o direcionamento da sentença.
Contudo, essa importância não é sinônimo de valorização do trabalho da
Psicologia. Brito, Beiras e Oliveira (2012), em levantamento sobre o con-
teúdo dos editais e das provas de conhecimentos específicos de psicologia
de concursos de tribunais de justiça de distintos estados brasileiros, no
período de janeiro de 2006 a dezembro de 2010, constataram um grande
hiato entre o conhecimento exigido nos certames e as discussões teóricas
a respeito do trabalho das psicólogas jurídicas. Na análise realizada, os
autores observaram ou a ausência de atribuições designadas ao cargo que
os profissionais iriam ocupar, ou uma diversidade de atuações, ora de
trabalho clínico, ora organizacional, ora da saúde, ora do campo social
jurídico. O estudo destaca que essa amplitude de referências não é uma
valorização da psicóloga junto ao judiciário, mas sim o uso dela como uma
espécie de curinga, bombeira ou faz tudo. Se por um lado, valoriza-se a
perícia psicológica, por outro, ainda são escassas as condições para a sua
realização, concluem os estudiosos.
148

Em outros termos, apesar da valorização da perícia psicológica na


interface com a justiça, o espaço para a sua execução, conforme a ciência
psicológica, ainda vem sendo desenvolvido. Nem todos os órgãos do sis-
tema de justiça possuem vaga de psicóloga em seu quadro, alguns profis-
sionais trabalham em desvio de função, outros com sobrecarga de tarefas
devido ao número reduzido de profissionais no quadro. Entendemos que
ainda há um longo caminho a ser percorrido para a efetiva valorização do
trabalho da psicóloga na interface com a justiça. Ademais, avaliamos que,
a existência de um cadastro com valor de honorário fixado implica, a longo
prazo, em uma diminuição no número de vagas para concursos públicos,
que sempre foram escassos para psicólogos em todo Brasil, como também
na precarização do trabalho. O perito externo possui responsabilidades

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cíveis e criminais pelo serviço prestado, a baixo custo e sem implicações
trabalhistas para os tribunais.
Neste ínterim, vivemos o período pandêmico, que proporcionou não
só o crescimento, como a ampliação das modalidades virtuais de ensino e
atuação profissional. Diante deste novo cenário, mudanças foram imperativas
em diferentes setores da sociedade. De um lado, foi observado o acirra-
mento das disputas parentais, pois se impunha, muitas vezes, por conta da
pandemia, o afastamento dos filhos em relação a um dos pais, nos casos em
que estes eram separados, por exemplo (MENDES, ALMEIDA e MELO,
2022). Foi também nesse momento, que anúncios sobre cursos aventavam
a abertura de um novo campo de trabalho, a perícia psicológica – novo
para quem desconhece as discussões e produções no campo da Psicologia
Jurídica, cabe frisar. Nesse sentido, Souza (2023) lembra que no campo da
psicologia social jurídica, investigações têm sido realizadas há anos sobre
famílias e separações (BRITO org., 2008b), parentalidade (SOUZA, 2020),
recasamentos (SOARES, 2015), judicialização da vida (OLIVERIA; BRITO,
2013), alienação parental (SOUSA, 2020), falsas alegações de abuso sexual
infantil (AMENDOLA, 2009), violência doméstica (CARDOSO; BRITO,
2015), papel dos avós nas famílias contemporâneas (CARDOSO, 2011), con-
vivência paterno-filial (THERENSE, 2020) e uma séries de outas temáticas.
As propagandas eram frequentes nas redes sociais, mas também se avis-
tavam outras em letreiros de ônibus e até em outdoors. A impressão era de
um descortinamento de uma oportunidade inédita, diante de um momento de
escassez. As promessas traziam um tom de novidade, de facilidade e ganhos
financeiros fáceis e vultosos por meio da realização de perícias, sem a necessi-
dade de expertise. Os anúncios destacavam áreas nas quais as (os) psicólogas
(os) poderiam atuar junto ao judiciário, sem a exigência de especialização,
sem ser concursadas, fazendo “uma renda extra sem sair de casa”. A procura
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 149

era por profissionais interessadas em “faturar alto produzindo laudos técnicos


para a justiça”. Para tanto, bastava adquirir um curso cujo valor de inscrição era
razoavelmente baixo, que prometia instrumentalizar as profissionais para esta
“nova” área de atuação profissional. “Invista pouco e ganhe muito”, prometia um
anúncio – em uma evidente confluência com o ideário neoliberal, vale assinalar.
O crescimento de formações de peritos e cursos de psicologia jurídica
naquele período, no entanto, não parecia ser acompanhado por preocupações
quanto à formação do corpo docente, com a credibilidade científica e peda-
gógica dos conteúdos, com a ética profissional e com as recomendações do
CFP. Em realidade, tais preocupações pareciam ter ficado suspensas, ocultas,
ou até mesmo inexistentes. Em estudo sobre a mercantilização do ensino em
Psicologia, Amendola (2014) analisa que alguns cursos destinados à qualifica-
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ção profissional poderiam ser considerados modismos ou aproveitamento de


oportunidades de mercado. Em outros termos, se aplicaria a seguinte lógica:
novas demandas, oportunidade de mercado, capital fácil, rápido, eficaz, ren-
tável e venda da ideia de uma ampliação do campo de trabalho profissional
por meio de práticas emergentes.
Porém, essa visão de mercado, aplicada à Psicologia, notadamente está
em desalinho com as discussões no campo sobre construção de espaços de
atuação profissional na interface com a justiça. Como já citamos, diversas são
as orientações do CFP e as contribuições dos estudos da Psicologia Social
Jurídica no que concerne à prática da perícia psicológica. Como exemplo, cita-
mos os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo
(Conselho Federal de Psicologia, 2005), as recomendações das Referências
Técnicas para atuação em Varas de Família (Conselho Federal de Psicologia,
2019) e a Resolução CFP nº 06/2019, que orienta sobre elaboração de docu-
mentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional.
Este foi o cenário de expansão de cursos sobre perícia, psicologia jurídica
e também de venda de modelos de documentos psicológicos, especialmente nas
redes sociais. A ideia, neste último caso, era oferecer um modelo pronto, editável,
com uma espécie de checklist de pontos a serem observados pela profissional.
A atuação da psicóloga se assemelha, com isso, a uma mercadoria, seu trabalho
passa a poder ser adquirido por meio de pacotes promocionais. Contudo, modelos
de documentos não oferecem subsídios técnicos, éticos e teóricos para a apreen-
são das demandas e análise crítica necessária à complexidade da vida das pes-
soas atendidas. Tão pouco, discutem o manejo do caso, análise das encomendas
veladas, problematização do uso, mau uso e abuso dos documentos produzidos
e seus efeitos sobre a vida das pessoas atendidas e do próprio profissional
Por conseguinte, questiona-se a ideia de que hoje haveria um lucra-
tivo mercado de laudos psicológicos, como sugerido pelo jornal Intercept
150

(FELIZARDO, 2023). Pois, a maioria dos documentos psicológicos utilizados


atualmente em processos advém da clínica psicológica, como devolutiva sobre
psicoterapia, não tendo, portanto, finalidade de perícia (SOUSA; SOUZA,
2021). E, nestes casos, a profissional não cobra para entregar o documento,
pois faz parte do trabalho, conforme previsto no Código de Ética Profissional
do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia, 2005).
Aparentemente, o único “mercado” que vemos despontar é o da bana-
lização do saber e das práticas psicológicas, da precarização do trabalho
profissional e da judicialização da Psicologia. A desvalorização da perícia
psicológica e do fazer da Psicologia Jurídica abre espaço para se justificar
a prescindibilidade da Psicologia. Neste sentido, podemos refletir sobre um
trabalho interdisciplinar da Psicologia junto ao Direito ou a Psicologia sendo

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utilizada a serviço do Direito, como um instrumento. Brito, Beiras e Oliveira,
em 2013, já questionavam: “o que os tribunais de justiça querem dos psicólo-
gos jurídicos?” (p. 33). Estaria a Psicologia sendo aplicada ao melhor exercício
do Direito ou ao melhor exercício da prática psicológica? (VERANI, 1992).
A existência de um duplo movimento traduz os sensos e contrassensos
sobre a perícia psicológica. Os movimentos vêm como ondas que tanto reve-
lam, quanto escondem a superfície. Ora se valoriza a perícia psicológica, ora
se incentiva a sua substituição por outras modalidades técnicas que prescindem
do saber da psicologia.

Considerações finais

A prática da perícia psicológica acompanha o próprio desenvolvimento


do campo de conhecimento da Psicologia Jurídica que não é homogêneo, nem
uníssono. Como já citado, a Psicologia Social Jurídica possui um vasto acúmulo
de saberes acerca das práticas psicológicas no âmbito da justiça. Saberes que
tem ficado à margem das discussões e levado a uma banalização do fazer da
Psicologia e à mercantilização das práticas psicológicas no ambiente virtual.
Como apontamos ao longo deste ensaio teórico, estamos diante de novi-
dades no campo psicojurídico: a/o perita/o sem expertise e o suposto mercado
de laudos que teria se estabelecido em torno de demandas de avaliação e pro-
dução de documentos psicológicos, principalmente em situações de alegações
de abuso sexual infantil e de alienação parental. Destacamos múltiplos fatores
que contribuíram para o seu surgimento. O primeiro deles é o desconhecimento
sobre a especialidade Psicologia Jurídica, gerado principalmente pela lacuna
na formação profissional. O segundo é certa ingerência sobre as práticas psi-
cológicas que tem determinado técnicas e modos de atuação, muitas vezes
discrepantes com relação à formação profissional. Somado a isso, destaca-se
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 151

a mudança no CPC (BRASIL, 2015), a publicação da Resolução CNJ n.


233/2016 e o desconhecimento dos debates sobre práticas psicológicas no
âmbito da justiça. Por fim, os efeitos da lógica neoliberal que proporcionou
um boom na venda de cursos e de kits de documentos psicológicos editáveis.
Tais novidades têm como consequência a banalização e a precarização
das práticas psicológicas no âmbito da justiça. O lugar da perícia psicológica
como atuação especializada perde espaço para as peritas sem expertise e
para o aumento de aumento de denúncias éticas nos Conselhos Regionais de
Psicologia (AMENDOLA, 2014a; SHINE, 2012). Além disso, a função de
psicóloga passa a ser dispensável e substituível pelo que denominamos de
técnicos em entrevistas, ou ainda, técnicos em psicologia – retomando uma
nomenclatura utilizada antes da regulamentação da Psicologia como ciência
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e profissão (AMENDOLA, 2014b). A este respeito podemos citar as novas


práticas em torno do depoimento especial, cujas entrevistas e ferramentas para
construção de um espaço seguro de acolhimento e condução de revelações
espontâneas se baseariam no saber da ciência psicológica, mas não fazem
parte dos métodos e técnicas da Psicologia.
As discussões propostas neste ensaio destacam como urgente e funda-
mental a ampliação do debate sobre as novas demandas e políticas judiciárias
que vêm implicando não somente o trabalho das psicólogas que atuam no judi-
ciário, mas também as práticas psicológicas em âmbito privado. Observamos a
expansão da valorização de uma atuação tecnicista que não prioriza os estudos
realizados ao longo dos anos, especificamente no campo da psicologia social
jurídica. O foco deixa de ser pesquisas sobre a complexidade dos conflitos
familiares e passa a ser a possibilidade do uso de um checklist, com o objetivo
de respostas supostamente objetivas e conclusivas. Assistimos ao movimento
de banalização do trabalho da Psicologia que ainda é considerado um saber
menor, o que demonstra a urgência de espaços de diálogo interdisciplinar
sobre as demandas endereçadas à justiça e que implicam a Psicologia Social
Jurídica, em um movimento de capacitação permanente.
152

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saúde mental em assentamentos rurais. São Paulo: Intermeios Cultural,
v. 1, p. 223-246, 2016.

Com base no pensamento de Michel Foucault, Zanello (2016) usa o termo


dispositivo materno para referir o modo de subjetivação das mulheres, no
qual são forjadas para o cuidado, ser para cuidar do outro.

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Art. 156 do CPC: O juiz será assistido por perito quando a prova do fato
depender de conhecimento técnico ou científico. § 1º Os peritos serão
nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos
ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao
qual o juiz está vinculado.

Art. 465 do CPC (BRASIL, 2015): O juiz nomeará perito especializado


no objeto da perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo.

Conforme o Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CONSELHO


FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2005), Art. 1º – São deveres fundamentais
dos psicólogos: b) Assumir responsabilidades profissionais somente por
atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente;

Em menos de um mês, desde a data da primeira reportagem do jornal


Intercept Brasil, uma juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro determinou a retirada do ar da série de reportagens, sob pena de
multa (COSTA, 2023).
A PSICOLOGIA E O DEPOIMENTO
ESPECIAL: normatizações sobre
uma prática controversa
Larissa Ferreira Otoni de Paula
Laura Cristina Eiras Coelho Soares

Introdução
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O depoimento sem dano (DSD), que posteriormente se atualiza e se


expande no depoimento especial (DE), surge em resposta aos casos envol-
vendo abuso sexual contra as crianças e os adolescentes (RAMOS, 2010).
Comumente, nos processos envolvendo denúncia de abuso sexual contra a
criança ou o adolescente há dificuldade em se obterem provas que compro-
vem a materialidade dos fatos, visto que nem sempre essas violências deixam
marcas visíveis ou testemunhas, o que dificulta as condenações dos acusados
(AMÊNDOLA, 2009). Com efeito, diante de uma denúncia de abuso sexual,
por vezes, as supostas vítimas são inquiridas pelos juízes em uma audiência
com a participação de todos os envolvidos no processo, inclusive o acusado.
Este método, de oitiva da suposta vítima em audiência com todos presen-
tes, é conhecido como a maneira tradicional de inquirição e pode causar grande
incômodo nos juízes que, em alguns momentos, presenciam e reproduzem
situações inadequadas frente às crianças e aos adolescentes. Este desconforto
motivou o magistrado José Antônio Daltoé Cezar a implementar, em 2003, o
depoimento sem dano em Porto Alegre (RAMOS, 2015). Por meio do DSD,
crianças e adolescentes são inquiridas por entrevistadores – psicólogos e assis-
tentes sociais (RAMOS, 2010) – em uma sala projetada para realização deste
procedimento, sendo que o depoimento da suposta vítima é videogravado e
transmitido simultaneamente para a sala de audiência, onde se encontram
as demais pessoas e instituições envolvidas no processo. Assim, o que hoje
é conhecido como depoimento especial mantém, atualiza e expande o que
inicialmente foi denominado depoimento sem dano47.

47 O DSD surgiu para atender os casos envolvendo abuso sexual, os quais possuem dificuldade de produção
de provas. O DE expande o rol de violências abarcadas, contemplando violência psicológica, física, sexual
e institucional. Ademais, no início do DSD, não se fazia uso de protocolos na inquirição, o que atualmente
é uma exigência da Lei do DE (Lei nº 13.431, 2017). Entende-se que algumas questões do DSD foram se
desenvolvendo e ampliando com o tempo, dando origem ao DE.
160

O DE mobiliza diversas controvérsias desde que começou a ser implan-


tado, ainda com o nome de DSD. O Conselho Federal de Psicologia (CFP)
manifestou-se contrário a este fazer, considerando que não é atribuição
da Psicologia realizar inquirição (CFP, 2010, 2018, 2019a). Todavia, essa
avaliação não é unívoca, percebendo quem defenda o DE como prática
a ser exercida por psicólogo e quem a rejeite48 (RAMOS, 2015). Diante
deste cenário, visando movimentar o debate acerca do DE e ultrapassar as
dicotomias, este capítulo objetiva analisar os contornos da implementação
do DE em diferentes Tribunais brasileiros e a articulação com o campo da
Psicologia, atentando para as possibilidades e as limitações contidas nas
normativas institucionais.

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Metodologia

Para alcançar o objetivo proposto, utiliza-se da metodologia qualitativa


e do referencial teórico da psicologia social jurídica (MOREIRA; SOARES,
2020). Como estratégia metodológica optou-se pela análise de documentos,
compartilhando a perspectiva de que “o documento é resultado de uma mon-
tagem de práticas históricas, na época a sociedade que o produziu, de acordo
com interesses em jogo e disputas que o alimentam, fazendo-se necessário
interrogá-lo” (LEMOS et al., 2020, p. 4). Com efeito, atenta-se para os docu-
mentos institucionais que perpassam a relação da Psicologia com o DE em
cinco Tribunais brasileiros.
Para chegar até tais documentos analisados, o seguinte caminho foi per-
corrido: em meados de 2020, empreendeu-se busca pelo descritor “depoimento
especial” nos sites de seis tribunais brasileiros: Tribunal de Justiça do Estado
do Amazonas (TJAM), Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE),
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), Tribunal de Justiça do Estado
de Goiás (TJGO) e Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC),
a fim de perceber a disponibilidade de material para análise. Vários materiais
foram encontrados, entre eles: notícias, normativas institucionais, divulga-
ções científicas, cartilhas e relatórios. Entretanto, nota-se grande discrepância
no número de itens nos diferentes Tribunais. Enquanto o TJDFT e o TJRJ
possuem mais de cem publicações, o TJSE não possui nenhuma. O TJGO e
o TJAM têm poucas publicações acerca do DE, enquanto o TJSC possui um
amplo acervo, mas ainda bastante inferior ao TJRJ e ao TJDFT.

48 A tese de Doutorado de Ramos (2015) deu origem ao documentário H(OUVE)? e apresenta esses diferentes
posicionamentos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mDMxTzwGDbg&t=85s
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 161

Posteriormente, realizou-se contato com as psicólogas concursadas de


cada instituição e que atuam diretamente com o DE, demandando-as acerca
das normativas institucionais que dispõem sobre o DE e possuem relação
com a Psicologia. Não foi possível contemplar a região Norte do Brasil na
análise de documentos, pois a instituição contatada – TJAM – não possuía tal
documentação a época49. O TJGO e o TJDFT não possuem uma normativa
institucional específica acerca da prática do DE. Diante disso, a profissional
do TJGO disponibilizou o documento escrito pelo Setor de Oitiva Especial
de Crianças e Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (SOECA)
acerca do DE, bem como o decreto do TJGO que cria este setor. A psicóloga do
TJDFT disponibilizou a portaria que instituiu o setor de depoimento especial.
As normativas de criação dos setores específicos foram incluídas na análise,
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haja vista que também apresentam, em certa medida, a relação da Psicologia


e do DE nos Tribunais. Contudo, estas não foram analisadas em sua comple-
tude, mas apenas no que diz respeito à Psicologia e ao DE.

Tabela 1 – Descrição dos documentos analisados por instituição

Instituição Descrição do documento


Ato normativo conjunto 35/2019: Institui o Protocolo de Depoimento Especial do Tribunal de
TJRJ
Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Portaria Conjunta 8 de 17 de janeiro de 2019: Acrescenta dispositivos ao Anexo da Resolução 1
de 26 de junho de 2017, do Conselho da Magistratura, para modificar a estrutura organizacional
TJDFT da Coordenadoria Psicossocial Judiciária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios – TJDFT, e revoga dispositivos do Anexo da Resolução 2 de 12 de dezembro de 2016,
do Conselho da Magistratura.

Portarias Normativas Nº 4/2019 GP1 Normativa: Regulamenta o funcionamento do Depoimento


TJSE
Especial no âmbito do Poder Judiciário do Estado de Sergipe e dá outras providências.

Resolução Conjunta GP/CGJ nº 21 de 25 de agosto de 2020: Reformula as regras do


TJSC depoimento especial da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência no âmbito
do Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina.

Depoimento Especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (SOECA) –


Setor de Oitiva Especial de crianças e adolescentes vítimas de violência: Programa de atuação
TJGO
Decreto Judiciário nº 2645/2009: Altera a estrutura orgânica da Diretoria do Foro da
Comarca de Goiânia.

Os dados foram tratados por meio de análise de conteúdo temática


(GOMES, 2016). Os documentos analisados, apesar de apresentarem rela-
ções da Psicologia com o DE, por vezes, diferem em seus objetivos, o que é
considerado na análise. A análise de conteúdo dos documentos obteve como

49 Esta informação foi colhida no final de 2020.


162

resultado a divisão do material em quatro categorias temáticas: (I) Argu-


mentações do DE; (II) conceitos que circundam a prática (III) Infraestrutura
e (IV) Metodologia do DE. A categoria de infraestrutura foi dividida em
duas subcategorias: equipe e capacitação; e recursos físicos. Já a categoria
metodologia do DE contemplou três subcategorias, sendo a maior categoria
encontrada na análise: procedimentos prévios; procedimentos do depoimento
especial e desdobramentos. Neste capítulo, apresentam-se algumas discussões
encontradas nas categorias III e IV.50

Infraestrutura

Equipe e capacitação

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Nos Tribunais pesquisados, percebe-se que os profissionais responsáveis
pelo DE são comumente nomeados como entrevistadores, demonstrando um
aparente caráter generalista da prática e não restrito a uma profissão. Contudo,
a análise demonstrou certa predileção por psicólogos e assistentes sociais como
entrevistadores na maioria dos Tribunais, sendo previstas outras formações ape-
nas no TJSC e TJRJ. O TJSC dispõe no seu artigo quarto, parágrafo dois que:
“Prioritariamente o depoimento especial será realizado por servidor ocupante
do cargo de assistente social, de psicólogo ou de oficial da infância e juventude”
(TJSC, 2020, n.p). No TJRJ ressalta-se a necessidade de haver um profissional
da equipe interdisciplinar no DE, mas sem especificar as formações da equipe
(TJRJ, 2019). Todavia, acessando o site da instituição, essa informação fica mais
manifesta: “os profissionais entrevistadores (psicólogos, assistentes sociais ou
comissários de infância), especialmente capacitados na técnica de entrevista
investigativa, realizam a abordagem” (TJRJ, [entre 2001 e 2020], n.p).
Assim, aparentemente, os profissionais que vêm realizando o DE nos
Tribunais pesquisados são psicólogos, assistentes sociais, oficiais da infância
e juventude e comissários da infância, com predominância dos dois primeiros.
Outra pesquisa de âmbito nacional observou que os profissionais que con-
duzem o DE, em geral, são psicólogos ou assistentes sociais51 (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA [CNJ], 2019a). Em relação à condução do DE,
Giacomozzi, Eidt, Justo e Alves (2020) ao realizarem pesquisa no Poder
Judiciário do Estado de Santa Catarina52, perceberam que a maioria dos par-

50 Esse capítulo é parte de um trabalho mais amplo desenvolvido na condição de pesquisa de mestrado da
primeira autora sob orientação da segunda autora, no PPGPSI da UFMG, que contou com financiamento
da FAPEMIG por meio da bolsa de mestrado atribuída à primeira autora.
51 Esta pesquisa foi conduzida pela Universidade de Fortaleza e publicada pelo CNJ. Nas entrevistas foram
contemplados os Tribunais dos Estados Pará, Ceará, Distrito Federal, Goiás, São Paulo e Rio Grande do Sul.
52 A pesquisa contou com 86 participantes, sendo eles psicólogos, assistentes sociais e profissionais do direito
(juízes e promotores). O objetivo era verificar as representações sociais que os profissionais possuem acerca
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 163

ticipantes consideraram os psicólogos como responsáveis pela metodologia


do DE, e em menor medida houve citações aos assistentes sociais, à equipe
multidisciplinar e aos profissionais do Direito. As autoras supracitadas acre-
ditam que após a capacitação – a pesquisa foi realizada com profissionais do
sistema de justiça antes destes serem capacitado para o DE – os pesquisados
possam desenvolver confiança na atuação de outros profissionais no DE, sina-
lizando que este não é uma técnica exclusiva da psicologia (GIACOMOZZI
et. al., 2020). De modo semelhante, Pelisoli e Dell’Aglio (2016) encontraram
a predileção por psicólogos na prática do DE, mas simultaneamente ao reco-
nhecimento de que outros profissionais podem realizar a tarefa, sendo mais
importante a capacitação específica do que a formação prévia.
Pereira (2016) atenta que, em alguns países, a aplicação do DE não
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está diretamente associada ao psicólogo. A pesquisadora também cita autores


que consideram os policiais como os profissionais mais aptos a aplicação do
protocolo e problematiza:

Depara-se, portanto, com um impasse: se por um lado lê-se sobre a


capacidade e a possibilidade de treinamento de profissionais de diversas
categorias – fazendo supor que a aplicação de protocolos é um fazer téc-
nico-instrumental –, por outro se tem o entendimento (no Brasil) de que o
psicólogo teria primazia para ocupar a função de aplicador de protocolos
a fim de coletar o depoimento judicial de crianças, supostamente vítimas
ou testemunhas de abuso sexual (PEREIRA, 2016, p. 83).

Ao adentrar um pouco mais na análise dos documentos institucionais,


percebe-se que no TJSC o termo “oficial da infância e juventude” (TJSC,
[entre 2001 e 2020], n.p) contempla uma diversidade de profissões, sendo elas:
“Direito, Sociologia, Serviço Social, Pedagogia, Psicologia, Letras, Econo-
mia, Administração, Filosofia, Ciência Política, Biblioteconomia, História ou
Geografia” (TJSC, [entre 2001 e 2020], n.p). De modo semelhante, ao acessar
o edital do concurso do TJRJ de 2014, para o cargo de analista judiciário
especialidade comissário de justiça da infância, da juventude e do idoso,
observa-se como requisito a graduação em Direito, Administração, Serviço
Social, Sociologia, Psicologia ou Pedagogia (TJRJ, 2014).
Assim, aparentemente, os Tribunais tendem a preferir psicólogos e assis-
tentes sociais para realizar o DE, mas em algumas instituições, como no caso
do TJSC e do TJRJ outras profissões também são possíveis. Contudo, diante
da pluralidade nas formações de comissários e oficiais, questiona-se qual
característica de cada profissão os Tribunais vêm considerando importante
para a realização do DE: porque administradores, economistas, geógrafos,

do DE, antes deles participarem de capacitações acerca do tema.


164

pedagogos, entre outros citados? O que essas formações possuem em comum


para viabilizar a aplicação do DE e como elas se distinguem das demais pro-
fissões que não são consideradas válidas para isso? Atentar para esses aspectos
é importante para compreender o que é considerado essencial para um pro-
fissional atuar no DE, bem como para se questionar se as instituições fazem
as escolhas profissionais atentando para as singularidades das formações e
para as pesquisas científicas de cada área. Esta reflexão pode contribuir para o
aprimoramento do fazer do DE nos Tribunais e para se pensar em regulamen-
tações institucionais alinhadas aos conhecimentos que vêm sendo construídos.
Ademais, um aspecto que merece destaque é o caráter voluntário da
capacitação para a realização do DE no TJSC: “Art. 4º O depoimento especial
será realizado por profissional que participar voluntariamente da capacitação

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e estiver devidamente habilitado” (TJSC, 2020, n.p). Nos demais documentos
não houve menção à capacitação voluntária dos profissionais, o que não sig-
nifica que ela seja compulsória, mas permite que seja atribuída sem a vontade
do trabalhador.

Metodologia do DE

Procedimentos prévios ao DE

Ao atentar para os procedimentos realizados em torno do DE, observa-se


que o TJRJ e o TJDFT apresentam possibilidades de avaliações prévias ao dia
da realização do DE. O Tribunal fluminense realiza o estudo dos autos, aten-
tando para possíveis contraindicações do DE. O Tribunal do Distrito Federal
não menciona a contraindicação do DE, mas dispõe sobre algumas situações
que ensejam a realização do estudo psicossocial antes do depoimento.

Art. 4º. O SEADE poderá emitir parecer técnico não vinculante, contrain-
dicando o Depoimento Especial, levando em conta os seguintes critérios:
I- Idade mínima de 5 anos, tendo em vista que a técnica demanda sobretudo
maturação da linguagem e desenvolvimento cognitivo do infante; II- Exis-
tência de comprometimento cognitivo comprovado nos autos; III- Grau de
proximidade ou parentesco entre vítima e acusado; IV- Decurso do tempo
entre a data do(s) fato(s) e a data da audiência; V- Verificação no banco de
dados de eventual oitiva anterior no NUDECA, visto que não deverá ser
realizado novo Depoimento Especial, de acordo com o art. 11, parágrafo
2º da Lei nº13.431/2017; e VI – Indícios ou notícias de alienação parental.
Parágrafo único: Nos casos em que a criança tiver menos de cinco anos
de idade, será avaliado o decurso do tempo entre a data dos fatos e a data
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 165

do Depoimento Especial, podendo ser contraindicado quando o período


for superior a dois anos (TJRJ, 2019, n.p.).

Os estudos psicossociais do NERCRIA deverão preceder o depoimento


especial nas seguintes situações: I – crianças em idade pré-escolar (meno-
res de seis anos de idade); II – pessoas com deficiência intelectual; III
– vulnerabilidade extrema da família, conforme avaliação técnica do NER-
CRIA (TJDFT, 2019, n.p.).

Apesar dessas diferenças, os Tribunais se aproximam ao viabilizarem


avaliações antes da prática do DE, bem como ao especificarem as possibi-
lidades desta ocorrência. Ambos aparentam ter como foco dessas avalia-
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ções as situações que envolvem questões familiares – grau de proximidade/


parentesco, alienação parental, vulnerabilidade extrema da família – e as
condições cognitivas da criança ou do adolescente para emitir um relato.
Acerca desta, observa-se que o Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense
(PBEF), apesar de não estabelecer uma idade mínima para a oitiva, ressalta
que para ser aplicado em crianças em idade pré-escolar são necessárias
algumas adaptações e sinaliza: “deve-se evitar perguntas abstratas para
crianças abaixo de quatro anos de idade, tendo como referência os dados do
Guia Prático, e utilizar com cautela questionamentos abstratos para crian-
ças ou adolescentes com problemas de desenvolvimento” (CHILDHOOD
BRASIL; CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA [CNJ] FUNDO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA INFÂNCIA [UNICEF]. NATIONAL CHIL-
DREN’S ADVOCACY CENTER [NCAC], 2020, p.71).
Aparentemente a preocupação em relação ao desenvolvimento, nestes
documentos, tem como foco a capacidade de produzir um relato. Todavia,
ao se pensar na proteção integral – bem como na criança e no adolescente
como sujeitos de direitos – o foco na emissão do relato parece invisibili-
zar outras questões que atravessam esses sujeitos, como a capacidade de
compreender os desdobramentos da fala e do procedimento, e a noção de
consentimento. Essas questões retomam tensões antigas entre autonomia e
proteção, amplamente discutidas por Arantes (2009, 2006) e Thèry (2007)
e que também estão presentes no DE, ensejando aprofundamentos futuros.
Não obstante, o olhar diferenciado para os atravessamentos familiares no
caso se faz essencial, tendo em vista os impactos e repercussões do DE na
família e vice-versa (RAMOS, 2015).
Diante disso, considera-se que o artigo 4º do protocolo fluminense sina-
liza questões importantes para o trabalho da psicologia jurídica, que pode
emitir um parecer técnico em relação às (im)possibilidades dos sujeitos,
166

reconhecendo situações em que o DE não se faz adequado. Todavia, as situa-


ções levantadas no artigo não parecem contemplar todos os aspectos rela-
cionados à proteção da criança e do adolescente, deixando algumas lacunas
acerca da concepção de sujeitos de direitos. Ademais, o meio utilizado para
a avaliação (leitura dos autos), também demonstra algumas restrições.
O TJDFT, em casos específicos, prevê a possibilidade de avaliação prévia
ao DE, mas não menciona se esta pode resultar em contraindicação do depoi-
mento. Esta avaliação, denominada como estudo psicossocial, é realizada pelo
Núcleo de Assessoramento sobre Violência contra Crianças e Adolescentes
(NECRIA) (TJDFT, 2019). Os requisitos para a ocorrência do estudo psicosso-
cial prévio no TJDFT parecem se aproximar das situações elencadas pelo TJRJ
como possíveis impedimentos para a prática do DE. Contudo, no Tribunal flumi-

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nense o trabalho é realizado por meio da leitura dos autos e emissão de parecer,
bem como visibiliza-se a possibilidade de contraindicação do DE. No TJDFT,
apesar do atendimento aos sujeitos se mostrar frutífero, não há menção sobre
a possibilidade de contraindicação do depoimento, o que aparece como uma
lacuna no documento. Ademais, aqui, infere-se que a vulnerabilidade referida no
documento atenta para o contexto da família, sendo possível incluir as situações
de suspeita de violência intrafamiliar, por exemplo. Todavia, este é um termo
amplo, não sendo possível identificar no documento pistas que especifiquem
quais situações são consideradas como vulnerabilidade extrema da família e
como está análise é feita antes da realização do estudo psicossocial. Apesar da
escassez de algumas informações no documento do TJDFT, considera-se que
o estudo psicossocial pode configurar uma ferramenta de cuidado e de garan-
tia dos direitos da criança e do adolescente contribuindo, por exemplo, para a
contextualização do litígio. Desse modo, o estudo pode auxiliar na avaliação
de determinadas condições que impossibilitam o DE.
Cabe esclarecer que o estudo psicossocial faz parte do trabalho do psicó-
logo nos Tribunais, resultando na produção de laudo psicológico (CFP, 2019b).
Entretanto, nos documentos analisados, apenas o TJDFT sinaliza esta possi-
bilidade associada ao DE e, no caso, seria antes de sua realização. Com isso,
não se pode saber como vem ocorrendo ou não os estudos nas instituições,
quando o caso é encaminhado para o DE. Pinho e Levy (2019) ressaltam que
DE não substitui os estudos técnicos, sendo considerados provas distintas e
que, por vezes, ocorrem simultaneamente. Contudo, Brito (2012) antes da
aprovação da Lei do DE, sinalizava que o estudo psicológico aparentava ficar
em segundo plano, enquanto os DE’s ganhavam extrema relevância.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 167

Procedimentos do depoimento especial

No dia da realização do DE observa-se a coexistência de padronizações e


de singularidades institucionais. As fases da metodologia, em que pese a exis-
tência de maiores e menores subdivisões, bem como a variedade nas nomencla-
turas, aparentam ser semelhantes nos Tribunais. De modo geral, pode-se citar
a ocorrência do acolhimento inicial, a narrativa livre, o contato com a sala de
audiência e os encaminhamentos. Essas recorrências parecem ser efeito das
epistemologias adotadas, das capacitações e das orientações normativas. Cabe
ressaltar que a Lei nº 13.431/2017 não define qual protocolo deve ser utilizado
no DE, mas sinaliza caminhos para o procedimento, os quais vão ao encontro
das padronizações documentais encontradas. Ademais, o CNJ53 publicou a Reso-
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lução nº 299/2019, na qual indica a capacitação dos magistrados no Protocolo


Brasileiro de Entrevista Forense (CNJ, 2019b). Neste rumo, pesquisa de âmbito
nacional identifica a predominância deste protocolo no território nacional, tendo
sua aplicação recomendada pelo CNJ (CNJ, 2019a), o que pode ter contribuído
para algumas padronizações atuais. A despeito disso, também se identificam
aspectos próprios das instituições, os quais podem sinalizar construções locais,
atravessadas pelas limitações e pelas possibilidades de cada local.
Como especificidade, observa-se que, no momento da aplicação do DE,
o TJRJ e o TJSC dispõem sobre a possibilidade do entrevistador contraindicar
o depoimento da criança ou do adolescente.54 Ao atentar para o artigo 9º do
TJRJ, percebe-se que o entrevistador avalia as “condições cognitivas e limites
emocionais da criança e do adolescente para comunicação verbal ao juiz antes
do início da audiência, caso verifique aspectos que o contraindiquem o depoi-
mento” (TJRJ, 2019, n.p). O TJSC dispõe que cabe ao entrevistador comunicar
“a impossibilidade de a criança ou o adolescente realizar o depoimento espe-
cial, em razão de seu estado emocional, de seu desenvolvimento pessoal ou do
contexto dos fatos” (TJSC, 2020, n.p). A instituição não deixa claro em que
momento o entrevistador adentra nessas questões, mas parece ser no dia do
DE, talvez no início do atendimento, por exemplo. Ademais, também não fica
explícito como se faz isso e quanto tempo há disponível para essa tarefa. Em
que pese a ausência de algumas informações, o olhar para o contexto dos fatos
aparenta tentar ir além dos aspectos individuais do sujeito, o que contribui para
enxergar de modo integral as questões complexas que chegam ao DE.

53 O CNJ é um órgão do Poder Judiciário. Foi criado em 2004 e instalado em 2005. O órgão atua no aper-
feiçoamento do judiciário brasileiro, em diversos âmbitos, a saber: política judiciária, gestão, prestação de
serviços, moralidade e eficiência dos serviços (CNJ, [entre 2005 e 2023]).
54 As discussões sobre essas atividades se aproximam das discussões propostas nas avaliações realizadas
nos procedimentos prévios ao DE. Todavia, por serem atividades que ocorrem em momentos diferentes,
também são pensadas em momentos diferentes neste capítulo.
168

Diferentemente do TJSC, o Tribunal fluminense não menciona o contexto


familiar como alvo de atenção neste momento da avaliação, restringindo-se
às questões emocionais e cognitivas. Em momento anterior ao dia do DE, no
TJRJ, há possibilidade institucional de emissão de parecer contraindicando
o DE, a partir da leitura dos autos. Entre os motivos para a contraindicação,
encontra-se o parentesco entre possível vítima e acusado, bem como indicati-
vos de alienação parental, o que demonstra um olhar diferenciado para certas
questões familiares. Contudo, questiona-se se a não citação destas questões na
avaliação realizada no dia do DE significa que tais demandas não chegam ao
DE ou que são atendidas no DE, mas não são centrais na avaliação. Também
abre brechas para pensar se os sujeitos poderiam trazer discursos diferentes
dos encontrados nos autos ou se o processo já contém a vivência.

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Aqui, indica-se aos demais Tribunais que incorporem ao trabalho do
entrevistador a possibilidade de contraindicar o DE, a partir da avaliação
técnica. Esta pode abarcar as condições de emissão do relato, mas é interes-
sante que não se limite a isso, atentando também para questões relacionais
e sociais, como o contexto familiar. Como visto nos relatos de um pai, que
a filha passou pelo DE, e de uma jovem que ela mesma passou pelo método
(RAMOS, 2015), o contexto familiar provavelmente influencia na repercussão
que o DE tem na vida dos sujeitos, o que não pode ser ignorado pelo judiciário.
Ademais, em que pese a importância das atividades propostas pelo TJRJ e
TJSC, é prudente refletir acerca da efetividade destas, tendo em vista o tempo
disponível, bem como a complexidade possível de ser contemplada. Aqui, vis-
lumbram-se caminhos para atendimentos mais complexos, em dia distinto ao
DE e se necessário em mais de um dia, o que pode potencializar ou até mesmo
viabilizar aspectos pontuados pelo PBEF – confiança, empatia, análise cogni-
tiva, emocional, contexto (CHILDHOOD BRASIL, CNJ, UNICEF, NCAC,
2020) – e ultrapassá-los, abarcando as questões em suas devidas complexidades.
O TJSC e o TJRJ visibilizam nos documentos o direito ao silêncio da
criança e do adolescente, o qual também está disposto na Lei do DE (Lei nº
13.431, 2017). Segundo a normativa do Tribunal Fluminense:

Art. 18. Durante a fase do relato livre da criança/adolescente, o depoente


não deverá ser interrompido, salvo comprovada necessidade, devendo
ser preservado o silêncio absoluto para evitar interferência no trabalho do
técnico entrevistador e sugestionar/intimidar o depoente, já que sujeito
em estágio especial de desenvolvimento. Parágrafo Único. Devem ser
respeitados o silêncio e o tempo de narrativa da criança ou adolescente
[grifo nosso], considerando seus limites emocionais para reconstruir men-
talmente o evento e narrá-lo, pois tal processo requer intenso esforço
psíquico (TJRJ, 2019, n.p).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 169

Neste trecho, percebe-se que o silêncio parece se aproximar das dificul-


dades em falar, sendo mais um silêncio durante a narrativa do que uma não
narrativa. O TJSC também visibiliza o direito ao silêncio do depoente, mas de
forma distinta do TJRJ: “direito da vítima ou testemunha de permanecer em
silêncio ou de não participar do depoimento especial quando o procedimento
representar ofensa à sua vontade e/ou comprometer seu estado emocional e
psicológico [...]” (TJSC, 2020, n.p). Desse modo, o direito ao silêncio parece
se aproximar da possibilidade de não falar, não se expressar verbalmente, e
até mesmo de não participar do DE. As demais instituições não mencionam
este direito da criança e do adolescente.
No PBEF, na maioria das vezes, durante o DE, observa-se o estímulo ao
uso de perguntas abertas, visando atingir a memória de livre evocação. Outros-
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sim, também se encontram referências à utilização das perguntas abertas nos


documentos institucionais: “elucidação dos fatos seja realizada primando pelo
uso de questões abertas e não sugestionáveis” (TJSE, 2019, n.p). O Tribunal
fluminense dispõe que:

Art. 14. As perguntas de esclarecimento é o momento em que, finda a


narrativa livre da criança, o entrevistador solicita ao depoente, caso ainda
necessário, informações adicionais sobre o seu relato, utilizando, sempre
que possível [grifo nosso], perguntas abertas ou com múltiplas opções.
Parágrafo único. A fase das perguntas de esclarecimento visa retomar
aspectos do relato que merecem esclarecimentos, em busca de um maior
detalhamento, sem perder de vista o respeito ao entrevistado, diante da
situação peculiar em que se encontra (TJRJ, 2019, n.p).

Todavia, infere-se pelo verbo “primar” no TJSE e pela expressão “sempre


que possível” no TJRJ, que essas perguntas são prioritárias, mas não exclusivas.
Esta inferência encontra respaldo no PBEF que aponta estratégias e outros tipos
de perguntas, para além das abertas, em alguns momentos da sua aplicação.
Aqui, destacam-se alguns exemplos: no momento da transição, visando abordar
os fatos investigados, caso haja dificuldades da criança ou do adolescente em
entrar nesses assuntos, podem se utilizar técnicas de afunilamento, que fazem
uso de perguntas focadas ou mesmo diretas (CHILDHOOD BRASIL, CNJ,
UNICEF, NCAC, 2020). Para tanto, o protocolo explicita alguns possíveis
questionamentos a serem utilizados, que são considerados mais focados:

‘Alguém/sua mãe está preocupado(a) com você?’, ‘Você está preocupa-


do(a) com alguma coisa?’, ou ainda ‘Aconteceu alguma coisa com você?’,
‘Tem acontecido algum problema na sua vida?’, ‘Você está com medo de
alguém?’, ‘Você está com medo de falar, com vergonha de falar ou outro
sentimento?’ (CHILDHOOD BRASIL, CNJ, UNICEF, NCAC, 2020, p. 30).
170

‘Você me falou que ia para a casa de sua tia [ou outro local da suposta
violência]… Me conte sobre as pessoas com quem você encontrou lá’
(CHILDHOOD BRASIL, CNJ, UNICEF, NCAC, 2020, p. 31).

Assim, observa-se que as preferências por questões abertas no PBEF,


no TJSE e no TJRJ, coexistem com a possibilidade de utilização de outros
recursos, mesmo que em segundo plano. Em pesquisa realizada no Rio Grande
do Sul, com profissionais que atuam entorno do DE – juízes, promotores,
defensores públicos e psicólogas -, observa-se que, por vezes, alguns defen-
sores públicos se queixam da possível indução do método:

Uma segunda defensora (D4) também percebe uma dificuldade importante

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nestes termos: para ela, quando a vítima se cala ou ‘se tranca, começa a
indução’. Segundo esta profissional, em seguida ao comportamento de
calar-se da criança/ adolescente, a entrevistadora começa a fazer perguntas
mais diretas, muitas vezes induzindo as respostas. Nesta mesma direção,
a defensora de outro município complementa (D5): ‘o que a gente nota é
uma insistência desnecessária em certas perguntas, o que já é uma indução’
(PELISOLI; DELL’AGLIO, 2016, p.416).

Esta aparente indução pode estar associada às estratégias utilizadas pelo


PBEF para incentivar o relato. Com isso, percebem-se tensões entre o direito
ao silêncio e o incentivo ao relato, despontando dúvidas sobre o respeito ao
silêncio, quando este se apresenta.
Frequentemente, as instituições dispõem sobre o contato com a sala de
audiência no DE. Neste momento, é comum a menção ao entrevistador como
aquele responsável por adaptar as perguntas dos profissionais do direito para
a criança e o adolescente, atentando para seu desenvolvimento:

O juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes


técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas
em bloco; V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas
[grifo nosso] à linguagem de melhor compreensão da criança ou do ado-
lescente (TJGO, [entre 2001 e 2020], n.p).

Esgotada, neste primeiro momento, a abordagem do entrevistador com a


criança/adolescente, será aberta à sala de audiências a oportunidade de reali-
zação de perguntas, devendo o magistrado avaliar a pertinência das pergun-
tas complementares, as quais deverão ser intermediadas pelo entrevistador
que as receberá pelo ponto eletrônico e as adaptará ao nível do desenvolvi-
mento cognitivo e emocional da criança/adolescente [grifo nosso] visando
garantir o grau de confiabilidade das respostas (TJSE, 2019, n.p).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 171

O TJGO e o TJSE ressaltam a importância do juiz zelar pela privacidade e


pela intimidade da vítima ou testemunha neste momento e o TJSC dispõe sobre
o cuidado para que as indagações não caminhem contra a dignidade da pessoa
humana. Em relação a este aspecto protetivo, o TJRJ pontua: “as perguntas
serão realizadas pelo entrevistador utilizando a técnica adequada, evitando
intervenções repetitivas ou perguntas que causem constrangimento, conota-
ção de valor moral ou prejuízos emocionais para o depoente” (TJRJ, 2019,
n.p). Por um lado, o Tribunal fluminense demonstra atenção e cuidado com
questões que podem gerar prejuízos ao depoente. Por outro lado, ao utilizar o
verbo evitar e não vedar, permite brechas para questionamentos inadequados.
Assim, em que pese o fato de que todas as instituições explicitam o
cuidado com as perguntas – algumas de maneira mais ampla como o TJGO
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e o TJSE, outras com mais detalhes, como o TJSC e o TJRJ – apenas o TJSC
descreve mecanismos para isso, em relação ao entrevistador. A instituição
catarinense ressalta a “autonomia do entrevistador para avaliar as perguntas
complementares apresentadas e a pertinência destas à fase de desenvolvi-
mento da vítima ou testemunha, e para se manifestar caso entenda que as
perguntas sejam inadequadas” (TJSC, 2020, n.p), bem como sinalizam como
dever do entrevistador em comunicar “a inadequação de perguntas comple-
mentares” (TJSC, 2020, n.p).
Tendo em vista o modelo no qual ocorre a audiência do DE, a literatura
demonstra que a autonomia do entrevistador durante o DE, muitas vezes,
está associada ao magistrado que está conduzindo a audiência, sendo possí-
vel encontrar diferentes posicionamentos acerca do trabalho interdisciplinar
(PELISOLI; DELL’AGLIO, 2016). No Tribunal do Rio Grande do Sul per-
cebem-se três posicionamentos em relação ao tema: o entrevistador não tem
autonomia para modificar as perguntas; o entrevistador pode modificar as
perguntas, mas o conteúdo deve ser mantido (esta foi a mais encontrada) e por
fim, o entrevistador possui total autonomia, podendo negar algumas perguntas
(PELISOLI; DELL’AGLIO, 2016). Diante disso, considera-se imprescindível
instrumentalizar os entrevistadores para que possam exercer o trabalho aten-
tando-se mais para as necessidades das crianças e dos adolescentes e menos
para os magistrados, considerando que o foco do psicólogo no judiciário deve
ser o sujeito em interface com a justiça e não os profissionais do direito. Dotar
os entrevistadores de autonomia para não realizarem determinados questio-
namentos vai ao encontro da interdisciplinaridade, entendida como relação
entre saberes diferentes sem submissão de áreas. A hierarquia institucional
dos tribunais deve-se estar direcionada aos aspectos administrativos e não ao
componente técnico do saber-fazer de cada campo do conhecimento.
172

Desdobramentos

Após o contato com a sala de audiência, é comum os documentos


visibilizarem a possibilidade de encaminhamentos ao depoente (TJSE) e
seus familiares (TJSC e TJRJ). O olhar direcionado para à família, ultra-
passando apenas o sujeito supostamente vítima é importante, uma vez
que os efeitos das acusações de violência atravessam o grupo familiar.
Ademais, a forma como a família responde a esse contexto possui res-
sonâncias na criança e no adolescente. Apesar dos encaminhamentos se
configurarem como possibilidades protetivas, restam dúvidas sobre como
eles são feitos, bem como sua efetividade, sendo o tempo disponível no

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contato via DE um possível empecilho.
Ademais, observa-se a ausência de menção ao encaminhamento do
acusado, sendo a atenção voltada para a vítima/testemunha (TJSE), ou
para a vítima e seus familiares (TJSC e TJRJ). Santos e Coimbra (2017)
já haviam percebido essa invisibilidade no protocolo fluminense produ-
zido em 2013. Aparentemente, mesmo com a atualização do protocolo,
em 2019, a ausência de atenção ao acusado se manteve. Em movimento
distinto, Santos e Coimbra (2017) perceberam que o protocolo do Tribunal
paulista traz a possibilidade do encaminhamento do acusado, mencionando
o atendimento psicológico e psiquiátrico, principalmente, quando ele for
um familiar, o que não foi identificado nos documentos investigados nesta
pesquisa. Apesar de esvaziada a possibilidade de atendimento e encaminha-
mento do suposto autor de violência, o acusado aparece nos documentos
analisados em alguns momentos, como na preocupação com o depoente
não encontrar o suposto autor da violência e na possibilidade deste não
estar na sala de audiência durante a inquirição.
Com isso, infere-se que nos documentos, tanto as invisibilidades, quanto
as parcas visibilidades do suposto autor de violência, destinam a ele ape-
nas espaços marcados por ausências: da escuta, do encaminhamento, da
presença e do contato, o que pode ser considerado como efeitos da Lei nº
13.431/2017. Respeitando-se a proteção da suposta vítima, esses lugares
propostos ao acusado demonstram possíveis condenações realizadas previa-
mente pelos profissionais, o que é comum em casos de suspeita de violência
sexual (AMÊNDOLA, 2009; RAMOS, 2010), mas coloca em questão a
própria noção de direito ao contraditório e ampla defesa (RAMOS, 2010),
paradoxalmente, presente na justificativa do DSD e, posteriormente, do DE
(RAMOS, 2015).
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 173

Considerações finais

A partir das análises empreendidas, apresenta-se a relação da psicologia


com o DE nos Tribunais pesquisados. Por meio das normativas, observa-se
aproximações e distanciamentos entre as instituições, demonstrando a coe-
xistência de padronizações, que vão ao encontro da Lei do DE, bem como de
singularidades, construídas nas im(possibilidades) de cada instituição.
Acerca da equipe responsável pelo DE, apesar do aparente caráter genera-
lista atribuído a prática, nas instituições investigadas, a presença de psicólogos
e assistentes sociais como entrevistadores do DE parece predominar. Com isso,
infere-se que o caráter generalista se relaciona mais ao contexto do surgimento
da Lei do DE – no qual o Sistema de Conselhos de Psicologia se manifestava
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contrário à atuação do psicólogo no método – do que à realidade investigada.


Ademais, apenas o TJSC visibiliza o caráter voluntário da capacitação para
a realização do DE, o que instrumentaliza o psicólogo que não utiliza desta
metodologia no seu trabalho a fazer frente aos pedidos institucionais. Por
outro lado, não dispor sobre a voluntariedade da capacitação no DE, pode abrir
brechas para que esta seja obrigatória para os trabalhadores da instituição.
Na análise dos procedimentos do DE, observa-se que estes podem ir
além do depoimento em si, contemplando avaliações prévias ao dia da reali-
zação do DE, seja por meio do estudo psicossocial como no TJDFT, seja por
meio da emissão de parecer conforme ocorre no TJRJ. Também contemplam
avaliações no dia do DE, as quais podem contraindicar o depoimento, como
observado no TJRJ e no TJSC. Nessas atividades, por vezes, observa-se um
foco na capacidade do depoente produzir o relato, o que pode invisibilizar
outras questões que atravessam os sujeitos em desenvolvimento, tais como
a capacidade de compreender os desdobramentos da fala e do procedimento
e a noção de consentimento. Essas questões retomam e atualizam as tensões
entre autonomia e proteção das crianças e dos adolescentes.
Por outro lado, nas mesmas atividades, também observa-se no TJRJ e
no TJDFT, antes do dia do DE, e no TJSC, no dia do DE, uma atenção para
os atravessamentos familiares que chegam atrelados ao DE, abrindo frestas
para trabalhos que vão além do relato, contextualizando as situações, indo
ao encontro da proteção integral do sujeito. Assim, compreende-se que os
procedimentos para além do momento do depoimento, podem contribuir para
o cuidado com a criança e o adolescente. Contudo, o tempo disponível para
a realização das atividades pode ser um empecilho para a efetividade do tra-
balho, tendo em vista a complexidade das questões que chegam ao DE e que
não se restringem ao relato.
174

No momento do depoimento, observa-se que apesar de todas as institui-


ções pesquisadas explicitarem o cuidado com as perguntas a serem realizadas
para o depoente, apenas o TJSC descreve mecanismos para isso, em relação
ao entrevistador, dotando-o de autonomia para avaliar as perguntas e se mani-
festar diante da inadequação de algumas. Este ponto parece central no DE,
indicando-se aqui que os demais Tribunais também explicitem a autonomia
do entrevistador na condução do método.
Por fim, cabe esclarecer que não foram investigados todos os documentos
institucionais acerca do tema, sendo provável que invisibilidades tenham sido
reproduzidas neste capítulo. Ademais, alguns documentos possuem objetivos
institucionais diferentes, o que pode justificar algumas ausências e presenças
de informações, mas em comum todos documentos analisados possuem a

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articulação da psicologia com o DE.
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 175

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Edital Retificado


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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Depoimento Espe-


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entrevistadores,a%20intera%C3%A7%C3%A3o%20entre%20as%20salas.
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ÍNDICE REMISSIVO
A
Adolescentes 10, 21, 22, 24, 25, 28, 29, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 54,
55, 56, 57, 60, 61, 63, 67, 69, 70, 71, 75, 76, 101, 103, 115, 130, 131, 133,
137, 138, 140, 143, 145, 146, 154, 155, 159, 161, 165, 166, 171, 173, 175,
176, 177, 178
Atendimento 22, 33, 35, 45, 47, 48, 49, 50, 57, 58, 59, 60, 83, 85, 105, 120,
136, 137, 154, 157, 166, 167, 172, 185
Audiência 13, 97, 98, 101, 102, 105, 124, 125, 126, 159, 164, 167, 170,
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171, 172

C
Covid 9, 50, 58, 68, 95, 113, 118, 128, 130, 132, 133, 134, 135

E
Estudo 12, 33, 35, 42, 47, 48, 50, 58, 60, 62, 67, 68, 75, 76, 79, 98, 104, 122,
126, 127, 147, 149, 155, 164, 166, 173, 190

F
Famílias 11, 25, 39, 41, 97, 98, 100, 102, 104, 106, 113, 114, 115, 119, 120,
121, 122, 123, 124, 125, 127, 129, 131, 133, 148, 153, 157, 188, 190
Ferramenta 32, 97, 98, 99, 100, 101, 106, 109, 111, 115, 116, 117, 118,
133, 166

I
Importunação 10, 11, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77

J
Justiça 3, 9, 10, 11, 12, 15, 19, 20, 21, 23, 25, 27, 29, 32, 35, 36, 40, 45, 46,
49, 51, 54, 55, 56, 59, 61, 83, 86, 92, 94, 96, 97, 98, 100, 101, 103, 104, 107,
108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 119, 121, 130, 133, 135, 136, 137,
138, 141, 142, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 153, 154, 155, 156,
157, 158, 160, 161, 162, 163, 165, 171, 175, 176, 177, 178, 179, 187, 188, 189

L
Liberdade 10, 11, 24, 46, 47, 48, 49, 50, 52, 55, 59, 77, 81, 83, 84, 85, 86,
87, 89, 92, 93, 94, 95, 116, 118, 132, 158
182

M
Mães 49, 73, 115, 131, 132, 134, 138, 139, 140, 143, 144, 145, 155, 156, 157
Mulher 11, 15, 32, 33, 35, 36, 39, 61, 65, 71, 72, 73, 74, 75, 78, 79, 123,
125, 126

O
Organização 9, 54, 60, 68, 77, 78, 80, 90, 100, 102, 105, 117, 119, 128, 146

P
Parental 113, 114, 115, 123, 125, 127, 136, 138, 139, 140, 141, 143, 144,
145, 148, 150, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 164, 165, 168

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Participante 65, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 98
Pesquisa 9, 10, 19, 23, 24, 33, 35, 46, 47, 48, 52, 53, 54, 56, 57, 60, 62, 63,
66, 67, 68, 69, 71, 78, 79, 84, 94, 95, 98, 99, 104, 106, 116, 118, 130, 131,
132, 135, 145, 156, 157, 162, 163, 167, 170, 172, 176, 177, 186, 188, 189, 190
Pessoa 10, 11, 33, 36, 38, 48, 66, 71, 81, 84, 85, 86, 89, 92, 93, 94, 95, 103,
109, 171, 189
Pessoas 11, 14, 15, 20, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 48, 56, 57, 58,
60, 65, 67, 70, 73, 75, 82, 83, 84, 85, 86, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 98, 104, 105,
106, 107, 108, 109, 110, 116, 118, 122, 125, 128, 135, 144, 149, 159, 165, 170
Podcast 11, 113, 115, 116, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127,
128, 129, 130, 131, 132, 133, 190
Práticas psicológicas 11, 12, 135, 136, 137, 138, 150, 151, 155
Processo 13, 14, 15, 19, 20, 22, 24, 25, 33, 35, 37, 40, 47, 50, 51, 53, 55, 56,
66, 73, 81, 86, 87, 89, 92, 96, 104, 108, 112, 115, 118, 128, 136, 141, 142,
146, 147, 153, 159, 168
Proteção 20, 22, 24, 46, 47, 48, 50, 51, 55, 56, 63, 76, 123, 125, 126, 138,
154, 165, 166, 172, 173, 175, 176

R
Racismo 11, 15, 23, 25, 28, 32, 34, 36, 37, 39, 42, 43, 49, 50, 54, 65

S
Saberes 10, 16, 21, 22, 25, 26, 28, 51, 52, 53, 82, 96, 98, 107, 110, 150,
157, 171
Saúde 10, 11, 19, 21, 24, 42, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 68, 79, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92,
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 183

93, 94, 95, 96, 99, 103, 110, 113, 115, 118, 129, 130, 131, 133, 147, 157, 158,
185, 186, 187, 189, 190
Sistema 3, 10, 11, 19, 20, 21, 22, 25, 28, 32, 35, 36, 45, 46, 48, 49, 50, 51,
52, 53, 54, 56, 60, 70, 71, 81, 82, 83, 84, 85, 87, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 96,
97, 98, 99, 100, 101, 103, 104, 107, 109, 110, 113, 114, 115, 117, 121, 130,
137, 138, 142, 146, 147, 148, 153, 157, 163, 173, 175, 176, 177, 186

T
Testemunha 153, 161, 169, 171, 172, 176, 177, 178
Transtorno 11, 48, 60, 84, 85, 86, 89, 92, 93, 94, 95, 189
Tratamento 11, 23, 25, 26, 46, 47, 48, 51, 61, 73, 83, 97, 98, 101, 104, 109,
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110, 111, 115


Tribunal 11, 12, 56, 80, 101, 105, 110, 115, 119, 128, 141, 142, 154, 158,
160, 161, 164, 166, 168, 169, 171, 172, 177, 178, 179, 188, 189

V
Violência 10, 11, 14, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 35, 36, 37, 40, 42, 47, 50, 52,
58, 62, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 101, 106,
112, 123, 125, 126, 129, 131, 133, 137, 139, 145, 148, 153, 154, 159, 161,
166, 170, 172, 175, 176, 177, 178
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SOBRE OS AUTORES

Ana Cecília Dolzany Araújo


Formada em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas. Psicóloga
Clínica do Espaço de Atendimento Psicossocial da Universidade do Estado
do Amazonas.
E-mail: ynazold@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-2486-3412

Analicia Martins de Sousa


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Psicóloga clínica e jurídica. Especialista em Psicologia Jurídica pela Uni-


versidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Psicologia Social pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-doutorado em Comunicação
e Cultura pela Escola da Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Pesquisadora-autônoma e coordenadora do Grupo de Estudos Avan-
çados em Psicologia Jurídica, juntamente com a Profª Drª Fernanda Hermínia
Oliveira Souza.
Email: analiciams@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3250-6984

André Luiz Machado das Neves


Psicólogo, doutor em Saúde Coletiva, na área de concentração em ciências
humanas e sociais, pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor efetivo da Universidade do
Estado do Amazonas (UEA). Docente do Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva da UEA e no Doutorado em Saúde Pública na Amazônia em
associação UEA/UFAM/FIOCRUZ. Atua ainda no Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas.
E-mail: almachado@uea.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6332-7698

Elisângela dos Santos Cabral


Bacharel em Serviço Social; Assistente Social do Serviço de Alta Complexi-
dade Acolhimento Institucional. Especialista em Assistência Social e Família
(UFAM); Especialista em Gestão de Política de Saúde (FIOCRUZ Amazônia);
Mestranda em Direitos e Humanos e Segurança Pública (UEA).
E-mail: eliscabral.ncvf@gmail.com
ORCID:0009-0003-6913-0911
186

Erick da Silva Vieira


Psicólogo. Discente do curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Bolsista CAPES).
Componente da Secretaria Executiva do Fórum Permanente de Saúde no
Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro (FPSSP-RJ).
E-mail: ericksilvieira@gmail.com
ORCID: 0000-0003-0317-4762

Fernanda Hermínia Oliveira Souza


Psicóloga Clínica e Jurídica. Doutora em Psicologia Social pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e pela Université Paul – Sabatier – Toulouse III
(França). Especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade do Estado do

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Rio de Janeiro. Pesquisadora-autônoma e coordenadora do Grupo de Estu-
dos Avançados em Psicologia Jurídica, juntamente com a Profª Drª Analicia
Martins de Sousa.
E-mail: psifernandaherminia@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4633-2388

Gabriela Gramkow
Psicóloga; doutora em Psicologia Social com pós-doutorado na Faculdade
de Educação da Universidade de São Paulo (USP); Docente da Faculdade de
Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUCSP). Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Demo-
cracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da USP e do grupo de
pesquisa “Políticas da subjetividade” da Pós Graduação de Psicologia Clínica
da PUC SP.
E-mail: ggramkow@pucsp.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6527-6583

Gabriela Nakabayashi Ivan


Graduanda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), estagiária no Centro de Referência da Assistência Social Brasi-
lândia I (CRAS-BRI) e no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental da
Unifesp (CAISM). Foi pesquisadora do projeto de Iniciação Científica “Car-
tografia dos itinerários terapêuticos de meninas fora da lei: experimentações
de resistência”.
E-mail: gabiivan2000@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-0911-9640

Giovanna Arruda Savoy


Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Foi pesquisadora do projeto de Iniciação Científica “Cartografia
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 187

dos itinerários terapêuticos de meninas fora da lei: experimentações de resis-


tência” (formento PIBIC-CEPE).
E-mail: gi.savoy@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1102-507X

Júlia da Paixão Mota


Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP).
Foi pesquisadora bolsista (fomento PIBIC-CEPE) do projeto de Iniciação
Científica “Cartografia dos itinerários terapêuticos de meninas fora da lei:
experimentações de resistência”.
E-mail: jupaixaomota@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0000-5623-4736
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Juliana Maria Duarte Marques


Bacharel em Direito pela Faculdade Martha Falcão. Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos da
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Pesquisadora do Núcleo de
Estudos Psicossociais sobre Direitos Humanos e Saúde (NEPDS) da UEA
E-mail: julianamariaduartemarques@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8505-5470

Larissa Ferreira Otoni de Paula


Psicóloga na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em
psicologia pela UFMG (bolsista FAPEMIG). Especialista pelo Curso de
Especialização em Psicologia Clínica: Gestalt-Terapia e Análise Existencial
(CEPC-UFMG). Membra do Núcleo de Psicologia e Justiça (CRP-RJ).
E-mail: larissafot@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5771-2998

Laura Cristina Eiras Coelho Soares


Docente do Departamento de Psicologia da UFMG e do Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da UFMG. Doutora e Mestre em Psicologia Social
pela UERJ. Especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ.
E-mail: laurasoarespsi@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0859-7625

Lílian Perdigão Caixêta Reis


Psicóloga pela PUC-MG, mestra em Família na Sociedade Contempo-
rânea pela UCSal, com doutorado e pós-doutorado em Psicologia pela
UFBA. Professora Associada I da Universidade Federal de Viçosa (UFV),
Departamento de Educação, área de Psicologia. Pesquisadora integrante
188

dos grupos dos grupos certificados pelo CNPq: Contextos da infância,


adolescência e juventude e suas inter-relações na família e na sociedade
(UFV); Educação, Desenvolvimento Humano e Bem-Estar (UFV).
E-mail:lilian.perdigao@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6827-871X

Lisandra Espíndula Moreira


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, mes-
tra em Psicologia Social e Institucional e psicóloga pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade Federal de
Minas Gerais, docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/
FAFICH/UFMG.

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E-mail: lisandra.ufmg@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9356-3416

Lucas Guimarães dos Santos


Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Atualmente é estagiário pela Fundação de Medicina Tropical
do Amazonas (FMT-AM). Atuou como estagiário pelo Tribunal de Justiça
do Amazonas/CEJUSC-Famílias e pela Prefeitura de Manaus/SEMASC.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Contextos Clínicos e Avaliativos,
na linha de pesquisa Psicanálise: História, Formação e Clínica no Contexto
Amazônico.
E-mail: lucasguisantos99@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-0756-9830

Luciana Arbeli Bernardes


Psicóloga na Defensoria Pública de São Paulo. Mestra em Psicologia Clínica
pela PUC-SP. Especialista em Sociopsicologia pela Fundação Escola de Socio-
logia e Política de São Paulo. Com aperfeiçoamento em Clínica Psicanalítica
pelo Instituto Sedes Sapientiae e Psicologia e Relações Raciais pelo Instituto
AMMA Psiquê e Negritude.
E-mail: lu_arbeli@yahoo.com.br

Maria Cristina G. Vicentin


Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, na área
Psicologia e Direito, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicolo-
gia Social e do Trabalho. Membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos,
Democracia e Memória do IEA/USP e do Laboratório Psicanálise, Sociedade
e Política/IPUSP.
E-mail: cristinavicentin@usp.br
PSICOLOGIA SOCIAL JURÍDICA: resistências no sistema de (in)justiça 189

ORCID:https://orcid.org/0000-0003-1718-6721

Munique Therense
Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Professora da Escola Superior de
Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e psicó-
loga do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM). Docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e do Programa de Segurança
Pública, cidadania e direitos humanos, ambos da UEA.
E-mail: mtpontes@uea.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5433-9267
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Pedro Paulo Gastalho de Bicalho:


Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica, mestre e doutor em Psicologia.
Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e ao
Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bol-
sista de Produtividade em Pesquisa (CNPq). Membro do Grupo de Trabalho
sobre o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas
Aplicáveis à Pessoa em Transtorno Mental em Conflito com a Lei do Conselho
Nacional de Direitos Humanos (Resolução CNDH 33/2020). Presidente do
Conselho Federal de Psicologia.
E-mail: ppbicalho@ufrj.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1986-4338

Renata Ghisleni de Oliveira


Psicóloga e mestra em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Espe-
cialista em Psicologia Jurídica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP com pós-doutorado em Direito
pela UFMG. Psicóloga clínica e jurídica, professora no Centro Universitário de
Belo Horizonte (UNIBH), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Psicologia
Jurídica do CNPq (NPPJ/CNPq) e coordenadora da Comissão de Orientação
em Psicologia e relações com a Justiça do Conselho Regional de Psicologia
de Minas Gerais (CRP-MG).
E-mail: renataghisleni@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2069-9878

Renata Marques de Souza


Bacharel em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
atualmente no Programa de Residência Multiprofissional em Atenção Básica
da Prefeitura de Campinas (SP). Fez parte dos projetos de iniciação científica
190

“Pesquisando a desigualdade social – A dimensão subjetiva das políticas


sociais – 2ª etapa / Saúde” (fomento PIBIC-CEPE) e “Cartografia dos itine-
rários terapêuticos de meninas fora da lei: experimentações de resistência”
(fomento PIBIC-CNPq).
E-mail: renatamarquesds@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-0707-9834

Roberta Dornelas Miranda


Analista social na Política de Prevenção Social à Criminalidade de Minas
Gerais. Bacharela em Direito pela UFV, mestra em Economia Doméstica,
linha de pesquisa “Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano
e Social”, pela UFV. Formações em Conciliação, Mediação de Conflitos e

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Oficinas de Divórcio e Parentalidade pela EJEF, Brasil.
E-mail:robertadornelascnv@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6964-8820

Sander Firmo
Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas, coorde-
nador/editor do podcast e grupo de estudo de psicologia analítica Sombras &
Símbolos; foi estagiário do CEJUSC-Famílias do TJAM e membro do podcast
Falando de Famílias.
E-mail: sfs.connect@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8006-6637
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: Não Comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

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