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Sheille Soares de Freitas

Sheille
Carlos Soaresde
Meneses deSousa
FreitasSantos
Carlos Meneses de Sousa Santos

Nas
Nasfrestas
frestas
da
dahistória
história
provocações
provocaçõesdedegênero
gênero
nono
último meio
último meioséculo
século
(Oeste dodo
(Oeste Paraná)
Paraná)

Coleção
Coleção Tempos
Tempos Históricos
Históricos
Volume
Volume 2424
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Sheille Soares de Freitas
Carlos Meneses de Sousa Santos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

NAS FRESTAS DA HISTÓRIA:


provocações de gênero no último
meio século (Oeste do Paraná)

Coleção Tempos Históricos

Volume 24

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem da capa: @freepik / Freepik.com
Revisão: Os Autores

Esta obra foi financiada pela CAPES.

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CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


N241

Nas frestas da história: provocações de gênero no último meio século (Oeste do


Paraná) / Sheille Soares de Freitas, Carlos Meneses de Sousa Santos – Curitiba :
CRV: 2022.
116 p. (Coleção Tempos Históricos, v. 24).

Bibliografia
ISBN Coleção Digital 978-65-251-2190-1
ISBN Coleção Físico 978-65-251-2674-6
ISBN Digital 978-65-251-3100-9
ISBN Físico 978-65-251-3103-0
DOI 10.24824/978652513103.0

1. História 2. História social 3. Oeste do Paraná 4. Experiência de


trabalhadoras e trabalhadores 5. Subjetivações 6. Afetos I. Freitas, Sheille Soares
de. II. Santos, Carlos Meneses de Sousa III. Título IV. Série.

CDD 981.62 CDU 9(816.2)


Índice para catálogo sistemático
1. História do Paraná – 981.62
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2022
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Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO������������������������������������������������������������������������9

CAPÍTULO I
LIBERTINAS, VALENTINAS... E A ATIVAÇÃO SOCIAL DE
CONFLITOS MORAIS: discutindo modos de viver e a urdidura
de valores������������������������������������������������������������������������������������15

CAPÍTULO II
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PRECES, TENSÕES E LITÍGIOS NO OESTE DO PARANÁ:


experiências de trabalhadoras na pauta historiográfica��������������47

HISTÓRIAS ENTREABERTAS...����������������������������������������������91

REFERÊNCIAS��������������������������������������������������������������������������97

ÍNDICE REMISSIVO���������������������������������������������������������������113

SOBRE OS AUTORES������������������������������������������������������������115
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APRESENTAÇÃO

Conversas iniciais

A
pós aproximadamente duas décadas de envolvimento
com pesquisas que se ativeram aos mais variados aspec-
tos acerca da vida de trabalhadoras e trabalhadores na
sociedade brasileira e nos atentando à temporalidade transcorrida
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nas últimas sete décadas – ora dirigida a esse, ora àquele trecho
do território nacional (com os quais nos mantivemos ligados e
sempre buscando ter os pés rente ao chão); indagamo-nos agora
se nas muitas circunstâncias em que empregamos a substantiva-
ção trabalhadores, definida indistintamente, na maior parte das
vezes por essa associação direta de gênero (qual seja, masculino),
estávamos mantendo o seu devido equilíbrio histórico, a despeito
do teor pretensamente generalista atribuído ao termo1.
Uma questão que reconhecemos como incômoda, já que
tal formulação se acomodou em negligenciar condutas ligadas

1 Como sugestão, indicamos a verificação de algumas dessas iniciativas que realizamos


em: Freitas (2016); Santos (2016); Freitas e Santos (2017). Aproveitamos para indicar
como esse era um entendimento corrente no campo da história social, ainda que se
mantivesse em discussão. No evento da ANPUH-MG de 1988, Fenelon enfatizava, diante
das preocupações que assolavam a reafirmação do campo da história na sociedade
brasileira, sua disposição analítica (e política) em “examinar a experiência social dos
trabalhadores em todos os seus ângulos de existência e de vida [...] isso significa[va]
querer examinar todo o seu modo de vida no campo das transformações e mudanças
que, cotidianamente, experimentam os trabalhadores em todos os aspectos do viver a
dominação [...] Não apenas as condições e padrões de existência material na moradia,
na fábrica, no lazer, na alimentação, na religiosidade, etc. mas também no campo dos
sentimentos e dos valores, para perceber a intensidade com que muitas destas noções
e valores são expropriados no dia a dia da dominação, a resistência oferecida neste
processo e a necessidade de reconstruir e reinventar a cultura a partir de sentimentos
de perda de padrões antes estabelecidos” (FENELON, 1992, p. 18). Acrescentaríamos
nesse “reconstruir e reinventar” os sentimentos ambíguos de continuidade e mudança que
informam os valores colocados em tensão. Destacamos, que o uso do termo trabalhado-
res pela autora também se propôs como expressão generalista. Contudo, consideramos
que é preciso reordenar esse uso, inclusive, para promover os significativos propósitos
sugeridos por ela há mais de trinta anos atrás.
10

a variações, por vezes, tidas como mais disjuntivas e/ou dema-


siadamente específicas, quando não colocando esse debate em
paralelo. Referimo-nos aqui a um ponto de contenção que se fazia
presente toda vez que nos víamos rondando e/ou espreitando os
intricamentos decorrentes das possíveis especificações sexuais,
fustigadas tanto por diferenciações depreendidas das evidências,
reportadas aos sujeitos privilegiados em nossas investigações,
quanto por proposições analíticas advindas do universo de refle-
xões acadêmicas, que reivindicavam (ao mesmo tempo que cons-
truíam) um campo de debate que, apesar de bastante diversificado,

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tornou-se claramente especializado2.
Mantivemos essa problemática ativa em nossa consciência
moral por todo esse tempo, tanto quanto conectada ao repertório
de nosso disciplinamento teórico-metodológico. Desde sempre,
ela esteve presente em nossa formação e atuação como historia-
dores. Afinal, frequentamos um ambiente acadêmico que, àquela
altura dos acontecimentos, não poderia mais ser caracterizado
como plenamente indiferente a essas preocupações3. Portanto,
essa discussão, ou mesmo os solavancos dela desprendidos, inte-
gravam-se ao sortido ofertório analítico exposto pelas variadas
frações historiográficas (tão comum às atmosferas universitá-
rias). Desse modo, muitas das provocações e assertivas emer-
gidas desse que nos parecia um profícuo reboliço nunca nos foi
completamente estranha.
Assim, reconhecidos (ainda que muito genericamente) os
estímulos e antolhos pertencentes ao aquecido balcão de compro-
missos e/ou negócios da historiografia acadêmica, entendemos
que seja pertinente reexaminar o problema, ao mesmo tempo

2 Sobre a proposição de uma determinada genealogia dessas referências, ou “trajetória”


como preferem as autoras, destacamos a prestigiada síntese formulada pelas professoras
Soihet e Pedro (2007). Elas sugerem a “formação do campo historiográfico intitulado ‘His-
tória das Mulheres e das Relações de Gênero no Brasil’”. As autoras “traçam um panorama
da constituição desse campo”, atendo-se à “forma como as categorias ‘mulher’, ‘mulheres’
e ‘relações de gênero’ tem sido alvo de discussões, apropriações e disputas”; o que fazem
tendo como principal marco de reflexão obras publicadas a partir da década de 1980.
3 Sobre um importante registro analítico, indicador do avanço da presença desse debate
no universo acadêmico, no decurso da década de 1990, ver Soihet (1998).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 11

em que exercitamos a exposição de nossas escolhas, colando em


foco tanto os supostos que informaram as visões que oferecemos
sobre a questão quanto aqueles possíveis e/ou efetivos silêncios.
Estes, não por acaso, extrapolam nossas condutas particulares
e impelem a desafios historiográficos bem mais amplos, quiçá
sejam desembaraçados nesse século XXI.
Mas, aqueles que se aventuram na leitura deste livro, que
tenham claro, de nossa parte, entendemos ter um complicado
novelo a desenrolar. Pretendemos retomar dimensões da discus-
são que apontam para nossos silêncios e colocar em avaliação
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alguns aspectos de nossas decisões e caminhos. Porém, fare-


mos isso, explicitando uma afirmação que, talvez, seja tomada
como fortemente ambígua. Nela, argumentaremos que, apesar
de não termos tomado parte em um campo de discussão clara-
mente especializado, não consentimos com a fácil classificação
de que (por não frequentar as salas, auditórios ou mesmo as ruas
onde bravamente foram afirmadas uma identidade acadêmica e
política de relevância incontestável), não integraríamos o rol de
homens e mulheres que abordaram as peculiaridades que com-
põem a dinâmica que firma nossas condições e relações sociais
– particularmente acessadas a partir das intricadas tramas das
experiências classistas4.
Portanto, é a partir daqui, de uma determinada posição loca-
lizada no interior da multifacetada história social, defendida ao
mesmo tempo como ponto de encontro e ponto de partida por
Varikas (1994) – “a propósito do desacordo” entre Tilly e Scott
–, que compartilharemos do entendimento de que, em proveito
da investigação da historicidade engendrada por mulheres,
nosso foco

Não se trataria simplesmente de “torná-las visíveis” na his-


tória, ainda que este fosse o resultado principal, embora não
negligenciável, das primeiras contribuições; mas, sobretudo

4 Uma instigante avaliação sobre as diversificadas formas de inserção no que se constituiu


como campo de reflexão/atuação feminista (dentro, fora e em relação com o ambiente
acadêmico), examinado a partir da historicidade estabelecida no final do século XX, pode
ser observada em Costa (1998).
12

de reafirmar [...] que a história não é o resultado de leis


impessoais agindo pelas costas dos seres humanos, mas o
resultado, sem dúvida enviesado e frequentemente incontro-
lável, de ações humanas providas de sentido. Esta vontade
política de conceder às mulheres o estatuto de sujeitos da
história contribuiu amplamente para o encontro das historia-
doras feministas com as experiências históricas das mulhe-
res. E, para muitas dentre elas, este encontro teve lugar no
território acolhedor e profundamente androcêntrico da his-
tória social (VARIKAS, 1994, p. 71).

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Reconhecendo o sentido interpelador dessa ponderação,
retomaremos os nexos de nosso olhar a partir dos escombros
desse provável androcentrismo; onde admitiremos, que também
nossa visão, quando de inflexões relevantes, talvez “não estava
à altura das suas promessas, posto que ela invariavelmente con-
ceitualizava o sujeito da história como masculino ou neutro”
(VARIKAS, 1994, p. 72).
A partir daqui, procuraremos expor nosso modo de ver o
problema. Ou seja, é de fora, mas também de dentro, que indica-
remos algumas questões que envolvem as condições e relações
mantidas entre trabalhadoras e trabalhadores, recuperados a partir
de evidências fragmentárias de suas experiências na constituição
do Oeste do Paraná, perpassando a segunda metade do século XX
e início do século XXI. Fizemos isso a partir de nossas incursões
no Grupo de Pesquisa e Estudos em História Social, Memórias
e Linguagens (UNIOESTE/CNPq) e na articulação dos acervos
e fontes que compuseram as ações extensionistas no Projeto Em
Evidências: produção e uso de fontes no ensino de história (Proex-
-UNIOESTE). Espaços importantes no debate e exercício analítico
acerca da construção das problemática aqui privilegiadas.
Sendo assim, ao longo dos capítulos analisamos experiências
que tangenciam visões sobre crimes sexuais, laços amorosos e
tensões envolvendo condutas e tomada de decisões de mulheres e
homens no Oeste paranaense. Uma pauta que nos levou a discutir
modos de viver, ressaltando moralidades e redes de convivência
frente às relações de poder enredadas.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 13

Ao adentrarmos tal universo social observamos como deter-


minadas trabalhadoras se viram envoltas a tratar socialmente vín-
culos, práticas e condições de vida – debatendo-se com certas
moralidades, costumeiramente acionadas tanto na tentativa de
impor enquadramentos às suas pautas, a partir de um padrão de
normas eleitas nos processos de domínio e coerção social, quanto
ao exporem as controvérsias e limites dessas pressões, acionando
aspectos de seu repertório cultural nesses confrontos.
Essa arena – que se evidenciou para nós por meio de litígios
judiciais, diários de oração, cadastros e acompanhamentos da
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assistência social –, expôs não só fragilidades experimentadas


em relações abusivas e violentas, mas, inclusive, explicitou como
historicamente essas mulheres produziram alternativas e se viram
impelidas ora a afirmarem ora a subverterem valores e expecta-
tivas frente ao campo de possibilidades e pressões classistas que
reconheciam e margeavam suas ações. Assim, consideramos que
ao pautarem o onde e como viver permitiram que discutíssemos
como acionam aspectos de seu repertório cultural e os manejam
nos embates e relações em que tomam parte.
Esse enfoque analítico propôs esboçar algumas variantes
daquilo que ordinariamente confrontamos enquanto memórias
e histórias advindas das marcas de modos de viver e de campos
de forças sociais em que se forjaram tais relações. A tentativa foi
examinar o convívio tenso, desigual e controverso de homens e
mulheres que dinamizam o processo histórico em questão, pro-
blematizando quem são, como são vistos(as), como se posicionam
e quem almejam ser ao fazerem parte de uma sociedade marcada
por moralidades dissonantes e em disputa. Um horizonte alme-
jado em diálogo com muito do que Khoury (2009) destacou ao
refletir sobre os desafios contínuos da história social “ao passar
do mundo do trabalho, para o mundo do trabalhador”:

[...] buscamos lidar com os modos culturais cotidianamente


vividos e construídos, trabalhando-os acima de qualquer
compartimentação, na perspectiva de que a história se faz,
por homens e mulheres, em todas as dimensões do social,
num embate de tendências alternativas entre si. [...] Com
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o passar do tempo, logramos tornar mais visíveis memó-


rias múltiplas e diversificadas, ainda que, muitas vezes, não
tenhamos conseguido explicá-las com maior clareza nas
relações sociais vividas, que também envolve exercício de
articulação entre presente e passado. Nesses termos, dialogar
com o passado não é, apenas, tornar mais visíveis experiên-
cias vividas em tempos anteriores; trata-se sobretudo, de
explorar os sentidos que esse passado assume no presente,
num movimento não só retrospectivo, mas fundamental-
mente prospectivo. [...] Vamos repensando e praticando
nossa escrita da história, comprometidos com a proposta

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de refletir e de convidar a refletir sobre os significados e
sentidos das diferenças e das transformações numa direção
mais justa e equitativa (KHOURY, 2009, p. 124-125/139).

Esse conjunto de enunciados aponta certa direção para os


olhares que lançamos retro e prospectivamente quando tratamos
desse universo desigual em que se situam as experiências aqui
privilegiadas. Por tudo isso, o trato das fontes elegidas e o debate
proposto com a historiografia, tendo em vista o modo de pesquisar
e evidenciar a presença e imagem dessas relações no Oeste do
Paraná, fez parte do interesse de colocar em movimento nossas
inserções acadêmicas, a visibilidade interpretativa que promove-
mos com nossa prática investigativa e, por vezes, ampliando esse
diálogo a outros campos de reflexão. Sabemos que as provoca-
ções, análises e evidenciações trazidas a seguir não acalentam os
dramas e desigualdades que assolam parte expressiva de nossa
sociedade e, particularmente, daquelas que protagonizaram as
ponderações articuladas ao longo do livro. Mas, ainda assim,
esperamos promover um espaço de reflexão e profusão de práticas
que ultrapasse os limites dessas páginas e alcance as urgências
de nosso tempo.

Boa leitura!!!
CAPÍTULO I
LIBERTINAS, VALENTINAS...
E A ATIVAÇÃO SOCIAL DE
CONFLITOS MORAIS: discutindo
modos de viver e a urdidura de valores

A
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o recuarmos nossos olhares para o início da segunda


metade do século passado, interessados em certas evidên-
cias acerca da presença e experiência social de trabalha-
doras, colocamo-nos a analisar a atuação que elas empreenderam
ao se inscreverem em uma dinâmica social capaz de indicar
aspectos da historicidade que integrou as relações de poder que
mantiveram no Oeste do Paraná na fronteira Sul do Brasil. Assim,
estendemos nossa visão a uma faixa de tempo que retrocede cerca
de 60 anos; onde, com esse contorno temporal, a despeito de cer-
tas dificuldades investigativas, sondamos a atmosfera histórica
avistada a partir das fissuras abertas no interior desse enredo.
Um esforço reflexivo que não deixou de espreitar um tempo
e um espaço usualmente sintetizados pelo engendramento do que
se projetou como emergentes e decididas ações rumo à lógica das
relações de mercado – principalmente no que diz respeito ao seu
universo rural e/ou agroindustrial (quando consideradas em sua
escala mais restrita, tomada em seu âmbito regional). Além, é
claro, de não nos eximirmos em observar a devida congruência
com a genérica trama de expansão e conjunção dessas ocorrên-
cias quando notadas a partir da sistematização de certo padrão de
ocupação e exploração do território nacional nesse arco temporal5.

5 Uma vasta literatura se aprofundou em contextualizar esse processo e, muitas vezes,


seguindo uma mesma trilha. Com isso, dataram a partir de certas efemérides (acerca de
empreendimentos econômicos, principalmente agroindustriais), os modos como certas
cidades e regiões se estruturaram. Em relação ao Oeste do Paraná, a leitura referente
à importância de ações agroindustriais quase se confunde com o que se pode anali-
sar acerca da dinâmica histórica do lugar, isto é, em muitos momentos historicizar os
16

Contudo, buscamos nos esquivar da tentação de assumir


essas estruturações narrativas, majoritariamente produzidas como
clichês acadêmicos, deslocados da dinâmica de sua materialidade
histórica. Buscamos nos atentar à materialidade postulada na evi-
denciação de experiências sociais próprias às tramas elegidas para
investigação a respeito das trabalhadoras indiciadas neste texto.
Assim, tendo em vista os possíveis feixes de visão ao se ater a
esse processo, ou mesmo aos seus já bastante explorados veios de
reflexão, sugerimos identificar nele uma atormentadora sintonia
de questões que conectam aspectos vividos naquele momento

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ao ambiente atual. Uma vez que nos parece claro o ressoar das
marcas de uma problemática fortemente interpeladora, qual seja,
um estado de pressão que pode ser (e muitas vezes é) extrema-
mente árido, carregado de dramas que desafiaram (e persistem
desafiando) as condutas dessas mulheres.
Desse modo, exercitamos a visualização de práticas ligadas
aos modos de vida de determinadas trabalhadoras, esmiuçadas a
partir do registro de ocorrências específicas, assinalando o que
depreendemos como impactantes contornos classistas, delineados
por vestígios fragmentários daquilo que poderíamos apresentar
como suas ordinárias posições e atuações no tenso (e por vezes
conflituoso) universo social. Fizemos essa sondagem a partir da
focalização do convívio que estabeleceram com trabalhadores
que (mesmo eventualmente) compartilharam de seu círculo mais
próximo de afetividade, com quem se envolveram em circunstân-
cias sexuais e/ou parcerias matrimoniais – fossem essas ligações
efetivamente estabelecidas ou (por distintas motivações) simples-
mente desejadas e/ou ambicionadas.
Invariavelmente, essas ocorrências foram cercadas de con-
trovérsias quanto aos comprometimentos e/ou atuações moral-
mente presumidas. Por sinal, foram essas movimentações que
exploramos ao propor a concatenação de eventos urdidos neste
empreendimentos e empreendedores foi alçado como força motriz e razão da história.
Sobre esses modos de ver e destacar essa historicidade e as intencionalidades presentes
nessa produção de memórias e histórias, conferir, dentre outros, os registros expressos
em: Almeida (2020), Ipardes (2008a, 2008b), Farjado (2006), Freitag (2007), Peris (2008),
Portz; Mascarenhas e Gregory (2020), Rippel (2015), Xavier (2017), Wachowicz (1987).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 17

texto, sinuosidades que dizem respeito à instabilidade e ao pro-


tagonismo vigente em uma tecitura capaz de expor a articulação
de um estado de latência fortemente denso.
Para tal, privilegiamos, em um primeiro momento, o manejo
de documentos produzidos enquanto registros da administra-
ção burocrática da Justiça, estabelecidos no âmbito de atuação
da Vara Criminal da Comarca de Toledo, no Oeste do Paraná.
Referimo-nos a processos criminais, onde os autos que integram
a transcrição de ações que decorreram do âmbito policial e judi-
ciário (composto pelo ajuntado de petições/queixas, depoimentos,
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certidões, laudos periciais, sentenças, entre outros) permitem,


agora, determinado acesso aos sujeitos e aos nexos das relações
mantidas nos eventos buscados para a reflexão aqui proposta.
Então, do escrutínio de um acervo documental com mais
de 1.200 autos processuais (catalogados e salvaguardados pelo
Núcleo de Documentação, Informação e Pesquisa da Universi-
dade Estadual do Oeste do Paraná), visualizamos, em meio às
mais variadas ocorrências encetadas a partir da ótica do exame
legal da consecução de delitos criminais, o repertório de possibili-
dades abertas para a investigação desejada; o qual permitiu iden-
tificar e selecionar as marcas de certas presenças de trabalhadoras
que passaremos a alinhavar a seguir. Entendemos, assim, que as
imagens e visões depreendidas desses registros constituem um
expressivo material para a abordagem da problemática histórica
colocada em questão – procurando analisar o modo como essas
mulheres se inscrevem na dinâmica social.
Foi desse amplo escopo documental, com evidências de uma
temporalidade que compreende aproximadamente três décadas
(arquivos que se iniciam nos primeiros anos da década de 1950 e
alcançam o ano de 1980), que tivemos contato com a fustigante
menção à jovem Libertina6. A trabalhadora contava com 16 anos
quando aparece prestando Declaração na Delegacia de Polícia

6 Os nomes mencionados nos autos foram alterados, assim como certos indicativos que
favorecessem sua identificação. A intenção foi manter em todas as fontes o anonimato e o
uso de pseudônimos, procurando focar nas pautas e relações expressas nos documentos
em análise.
18

de Toledo, em meados do mês de abril, do já distante ano de


1969. Como resultado de sua presença naquele distrito policial, o
escrivão em exercício anotou a seguinte formulação ao inquérito,

[...] até o dia dezoito do corrente mês, a declarante trabalhou


como empregada na Pensão de Dona Ivani, nesta cidade,
onde fazia serviços domésticos; que no dia dezoito [...] a
declarante que estava trabalhando [...] foi levada à força para
o quarto de Nilson, hóspede daquela Pensão, o qual depois de
subjugar a declarante veio a manter relações sexuais com a
mesma, deflorando-a; que isto aconteceu por volta das treze

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horas daquele dia, quando na citada Pensão se achava apenas
a declarante e Nilson; que Dona Ivani, todos os dias logo
após o almoço vinha a sair de casa; que a declarante procurou
resistir para evitar que fosse deflorada por Nilson, porém,
nada pode fazer, porquanto não teve forças para impedir que
ele, Nilson, viesse a satisfazer seus desejos sexuais; que a
declarante, quando estava sendo levada à força para o quarto
de Nilson, procurou fazer ver que o mesmo era noivo e iria
casar dentro de pouco tempo, ao que o mesmo respondeu que
era sim noivo, porém, ainda não havia casado e podia muito
bem casar com a declarante; que a declarante afirma que era
moça virgem e que o único homem com quem veio a manter
relações sexuais foi com Nilson; que quando a declarante
veio a ser deflorada por Nilson, veio a sentir fortes dores na
vagina e veio a perder bastante sangue; que as roupas íntimas
da declarante vieram a ficar todas manchadas de sangue; que
Nilson pediu para a declarante não contar nada a ninguém,
muito menos para a sua mãe, pois que o mesmo era noivo
e que o caso iria complicar para o mesmo; que Nilson disse
que iria ganhar um dinheiro na Sadia e depois iria embora
com a declarante; que sábado último findo a declarante veio
a contar tudo a sua mãe, tendo então a mesma compare-
cido perante o MM. Juiz de Direito desta Comarca, onde
apresentou queixa contra Nilson; que a declarante nunca
foi namorada de Nilson e se veio a manter relações sexuais
com o mesmo foi pelo fato de ter sido forçada a praticar tal
ato (PARANÁ, 1969).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 19

A narrativa acima expressa uma prática conectada a um


conjunto de ações vinculadas a uma forte e prevalecente mora-
lidade, que apesar de se revelar em constante litígio (portanto,
prenha de dissensões), aponta para uma congruência de valores
que (mesmo convivendo nesse campo latente de tensão) sugere
um universo pactuado por certos consentimentos – esses, mais
ou menos explicitados e/ou materializados nos modos de vida
de seus protagonistas. Esse terreno, claramente caracterizado
por ambiguidades que podem se revelar (a alguns olhares) como
desconcertantes, expõe tanto suas valências mais preponderantes
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(de exposição e tentativa de controle) quanto aquelas dimensões


menos previsíveis, dado o efetivo espaço de disputa e mesmo
eventuais conflitos que compõem essas relações.
Aqui, em que pese as presumíveis retóricas dirigidas aos
enquadramentos legais vigentes, no caso concernentes ao debate
jurídico sobre a tipificação do crime de sedução e/ou deflora-
mento no final da década de 1960 – portanto, apropriadas à
linguagem mobilizada nas contendas judiciais daquele tempo
(já bastante exploradas pela historiografia brasileira dedicada
à especialização dessa temática)7 –, temos então, um enredo
geral que suscitou, como penalização daquele que figura como
suposto criminoso, a condenação a um relacionamento que, de
inicialmente forçado (ou eventual), deveria passar a estável, con-
sentido e formal. Isso, segundo os próprios termos da narrativa
formulada por ou em favor da denunciante (que, como vimos,
declarou-se vítima de agressão sexual). Um arranjo que, legi-
timado na vigência de sua prática/pretensão social, contaria, a
partir dessa possível punição, com a devida cobertura e prescri-
ção da lei. Um desfecho que, por várias objeções, poderia ser

7 Destacamos aqui um conjunto expressivo desse debate, com ênfase para certos contornos
historiográficos acerca de investigações sobre os modos de evidenciar e conduzir o trato
de crimes sexuais e das tensões envolvendo condutas morais. Em particular, relações
envoltas nos propalados crimes de sedução (presentes nos códigos penais de 1890 e
de 1940, bem como suas decorrentes adequações posteriores). Sobre esse empenho
analítico ver: Araújo (2000), Bessa (1994), Campos (2009), Duarte (1999), Esteves (1993),
Reichert (2012), Rodrigues (2007) e Soihet (2000).
20

bastante controvertido; afinal, a vítima conquistaria o direito de


viver com o homem que ela afirma ter lhe violentado8!
Contudo, apesar da repulsão que toda essa composição pode
provocar no senso de justiça dos que hoje tomam conhecimento
de episódios dessa ordem – isto é, partir de mãe e filha tais enca-
minhamentos e desfecho – essas proposições e campos de possi-
bilidade compunham o horizonte dos modos de vida de garotas
como Libertina em meados do século XX –, visualizando no
possível matrimônio uma chave de acesso à reordenação de suas
condições e inserção social. Uma avaliação feita entre muitas tra-

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balhadoras que se lançavam (ou se viam lançadas) nas fronteiras
de expansão ao Oeste do território brasileiro.
Assim, precisamos apontar para uma dinâmica histórica que
reserva a esse enredo uma potência social que não recomenda
que se rasure a vida dessas trabalhadoras. Ademais, os legítimos
protestos que podemos lançar à permanência de traços (mesmo
que residuais) desses valores de outrora em nossa contempora-
neidade não podem ignorar o campo de ação dessas mulheres
irrompendo tais normativas. Afinal, ainda que estejamos cla-
ramente dispostos a contestar o sentido e a direção de certas
movimentações sociais propostas, estamos todos umbilicalmente
ligados aos limites, tanto quanto aos avanços, decorridos de suas
condutas e tomada de decisões.
Então, vejamos a lógica de justiça empreendida por essas
trabalhadoras e investiguemos mais de perto relações de poder
e campos de forças em que se moviam. Daí, talvez, possamos
depreender a materialidade de valores que podem não ser resul-
tado de meras submissões e/ou sujeições. Quiçá, possamos

8 Algumas produções se destacaram procurando historicizar as pesquisas acadêmicas


que se dedicaram a tais empenhos investigativos, envolvendo os crimes com mulheres
nessas circunstâncias, enquanto outras se voltaram a observar o decurso de alterações/
preservações jurídicas na análise de tais atos em contraponto aos dias atuais – um
esforço que, mesmo muito limitado ao campo teórico, procurou compreender o caminho
forjado desde então para tratar tais pautas, inclusive a que se utilizou da prerrogativa do
enlace matrimonial como uma pena possível, quando não contraditoriamente almejada
enquanto saída para a trama explicitada. Em particular, indicamos: Alves e Gonçalves
(2017), Grossi, Minella e Losso (2006), Guimarães e Pedroza (2015); Pereira (2017) e
Vieira (2007).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 21

entender melhor suas condutas, visualizando densidade onde


(muitas vezes) só enxergamos a linearidade da apatia e a onipo-
tência da dominação9.
Nessa trama (e segundo esta disposição interpretativa), pode-
mos evidenciar que as declarações de Libertina, registradas em
seu comparecimento à delegacia de polícia, já eram resultado de
um conjunto de eventos que teve seu ingresso no âmbito jurídico
quando sua mãe, ao ter conhecimento da ocorrência narrada, teria
batido diretamente à porta da autoridade judiciária. Essa, por sua
vez, provavelmente a encaminhou ao delegado, que, incitado pela
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indicação do magistrado, decidiu pela pronta apresentação da


denúncia ao promotor público, o qual também não teve dúvidas
quanto à admissão do caso, onde “usando de suas atribuições
[...] ofereceu denúncia contra Nilson” – isso, conforme dedução
sustentada pela data da petição que figura como ato inicial do
processo em questão, assinada em 10 de junho daquele mesmo
ano de 1969 (PARANÁ, 1969).
Portanto, caso tomemos como referência a data do ato sexual
exposto por Libertina, qual seja, 18 de abril, precisamos reconhe-
cer que a primeira página do auto processual só se efetiva após

9 Em grande medida, reconhecemos o predomínio da preocupação acadêmica e política


em dar visibilidade e denunciar práticas e relações de poder que conflagram crimes con-
tra as mulheres (BÁLSAMO, 2019; CAMPOS, 2010; CARDOSO, 2009; CHAVES, 2018;
GAVRON, 2005; IOTTI; CRISTANI, 2018; SOUZA, 2017). Contudo, em muitos momentos,
esse contorno analítico acabou dirigindo o olhar investigativo para a vitimização dessas
mulheres, ora sugerindo que são alheias ora tidas como incapazes de agir perante um
processo repressor e violento como o que tomaram parte. Então, ao observar mais de
perto tais experiências, percebemos (pela evidenciação histórica dessas tensões) que a
atuação social dessas mulheres é pulsante e compõem a dinâmica de relações que ativam
conflitos morais. Isso, não lhes transferem de vítimas a algozes (como responsáveis pelas
mazelas que lhes afligem), mas denota o campo de forças desiguais em que atuam e
confrontam valores, o que também não equivale dizer que essa dura realidade enquadre
suas ações meramente como luta, dominação, reflexo ou apatia. Conseguir analisar e
querer discutir as controvérsias que se enredam na experiência dessas mulheres é um
caminho sinuoso e complexo, o que faz, muitas vezes, a descrição de atos e litígios pre-
valecerem em detrimento de nos colocarmos em reflexão sobre os sentidos e significados
constituídos nessa experiência social. Por tudo isso, sugerimos a leitura de referenciais
que nos instigaram a repensar tais enquadramentos e avaliar nossos caminhos analíticos
ao tratarmos de ambiguidades, contradições e controvérsias sociais. Ver, dentre outros:
Chauí (1996), Scott (2002; 2011) e Thompson (1981; 1988).
22

as persistentes incursões de sua mãe; que, em suas investidas


junto às autoridades locais insiste na queixa em questão e cobra
a providência desejada. Desse modo, a ação da mãe, precursora à
averiguação judicial, põe em movimento não só o aparato policial
e judiciário, mas, também, o sentido moral de sua consecução; e
o faz fora da imagem de inércia (ou mesmo da prostração, pos-
sibilidade por vezes manejada por trabalhadoras e trabalhadores
como recurso para a obtenção de sensibilização e amparo dos que
frequentam as escalas mais elevadas de poder e, nesse sentido,
encontram-se mais próximos das diferentes esferas de decisões,

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podendo assim atuar em favor próprio). Antes disso, a ação da
mãe de Libertina torna evidente a energia comumente exalada
por aquelas e aqueles que buscam por justiça – ainda que essa
noção seja produzida a partir do que associam como alternativa às
expectativas e/ou punição que forjam frente ao que compreendem
como desagravo.
Assim, vislumbramos uma ação que, de forma propositiva,
parece orientada e mobilizada por elementos morais que clara-
mente compõem a visão que essas mulheres (mãe e filha) lan-
çam sobre a ordenação das relações de poder que tomam parte.
Inclusive, atuando como forças propulsoras e não apenas como
personalidades coadjuvantes (por vezes associadas a reativida-
des sem grande expressão, quando não simplesmente tomadas
como projeção de alguma ventriloquia moral, estranha aos seus
efetivos propósitos).
Por tudo isso, a ênfase na ativação operada por essas traba-
lhadoras busca salientar dois pontos centrais: primeiro, a pulsão
que essas mulheres desempenham enquanto sujeitos sociais e
históricos; segundo, a concepção intelectual própria que manifes-
tam, ainda que incorporem e/ou manejem, aqui e ali, concepções
advindas (e fragmentariamente reelaboradas) de outros feixes de
interesses; onde, portanto, esses propósitos são, invariavelmente,
ambientados e acomodados em suas próprias ambições.
Desse modo, esses dois aspectos, aqui defendidos como
evidentes, são fundamentais para compreendermos a vitalidade
social de certas condutas. Por outro lado, a ênfase atribuída a
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 23

eles exige que delimitemos o alcance de suas formulações. Até


mesmo porque, não estamos argumentando sobre ou em favor de
uma dinâmica que estabelece equilíbrio equitativo de forças na
arena social; diferentemente disso, estamos tratando de um ter-
reno marcado pela distinção (e desigualdades) de possibilidades.
Portanto, um universo de relações atravessado por ponderações
e decisões definidas na aridez de tramas como a vivida por tra-
balhadoras como Libertina – que alçada ao debate jurídico teve
suas condutas sondadas (laços amorosos, sociabilidades, com
quem e como vivia), bem como teve sua condição de “boa tra-
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balhadora” e “moça honesta” colocada em xeque. Imagens que


foram sugestionadas ao serem avaliadas e ponderadas enquanto
balizadoras (ou não) de sua queixa – uma dimensão costumeira
que além de muito comum nos procedimentos jurisdicionais
(particularmente envolvendo jovens trabalhadoras), também se
expressa no modo como ordinariamente constituímos valorações
de sujeitos, práticas e relações.
Nessa ação criminal, seja por provocação seja por interesse
próprio, foi prevalecendo na narrativa de testemunhas e das pon-
derações explícitas nos autos (relatórios, atos conclusivos etc.)
um filtro moralizante, calibrador do fato em pauta na investiga-
ção; que a rigor tinha como princípio o inquérito envolvendo um
crime sexual, mas que se encaminhou avaliando se faria jus certa
contundência judicial caso a jovem não passasse pelo crivo de
uma índole idealizada como boa conduta. Isso foi destacado por
alguns declarantes em dizeres como “sempre procedeu direito”,
ou nos termos de sua ex-patroa Ivani, “sempre demonstrou ser
uma moça correta e honesta”, indicadores que, como veremos,
buscavam confrontar as suspeições apresentadas por Nilson, às
quais chegaram ao ponto de mencionar que ela cobraria pelas
relações sexuais ou, ainda, que a prática sexual não era algo inu-
sitado na vida amorosa de Libertina (PARANÁ, 1969).
Sendo assim, reativar a energia histórica dessas mulheres,
fazendo emergir o nexo social manifesto no vigor de suas práticas,
reclama nosso compromisso em destacar a materialidade não só
do ambiente onde transcorreu a vida dessas trabalhadoras, mas
24

também o modo como se processou seus vínculos e dramas, tendo


em vista o conjunto de aspectos que envolveu seu modo de vida.
Toda essa atenção, dedica-se a projetar uma visão histórica que
assume como explícito o suposto de que nesse universo, tanto
quanto em quaisquer outras circunstâncias expostas ao exame de
sua historicidade, os posicionamentos delineados nos movimentos
dos sujeitos implicados na problemática em questão precisam
ser averiguados como ações que guardam sua própria inteligi-
bilidade, isto é, não são resultado (ou exemplo) de ocorrências
caricaturadas no espectro discursivo de uma barbárie qualquer10.

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Caso nossas formulações percam o torque dessa calibragem,
flertando com versões anedotizadas e determinismos trágicos
e/ou hiperbolizados (talvez por sucumbirmos a algum honroso e
urgente senso de solidariedade, precipitado em equações verbais
autorreferentes e posições morais sobrevalorizadas), incorremos
no risco de conduzir nossa reflexão rumo a uma quimera qualquer.
Não por acaso, esse viés nos levaria a fabulações dadas à promo-
ção e estilização de anúncios que acabam por converter os even-
tos em destaque em imagens de meros antolhos residuais (como
se resultados de práticas pertencentes a um tempo já distante
e inerte). Como se esses fantasmas, repousados em cova rasa,
estivessem simplesmente aguardando os coveiros que dariam
termo final a seu cortejo de horrores. Interrompendo, assim, tanto
o odor malcheiroso quanto a fantasmagoria anacrônica que ainda
restaria desse sepultamento inconcluso. Mas, nossa intenção não
segue essa procissão fúnebre.
Portanto, atentando-nos às dificuldades inerentes a muitas
dessas cativantes e esbaforidas frases de efeito, (quase sem-
pre, repletas daquele calor próprio às estimáveis ligações de

10 A noção de movimentação social é tratada aqui a partir da evidenciação do processo


de análise e tomada de decisões desses homens e mulheres, onde explicitam o que
compreendem de si e da dinâmica histórica e, com isso, definem (mesmo que momen-
taneamente) o seu campo de ação (SANTOS, 2016). Destacamos como trabalhadoras
e trabalhadores demarcam alternativas e modos de viver com suas ações, sugerindo a
partir dessa indicação como se movimentam socialmente, em um processo contínuo de
reavaliação e ponderação sobre as condições desiguais que experimentam e como vão
se posicionar nas relações de poder em que se veem parte.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 25

compassividade), talvez devêssemos manter em alerta certo


crivo de ponderação quanto àquelas imagens cultuadas como
expressões de práticas que podem soar cacofônicas. Referimo-nos
principalmente àquelas cacofonias onde as condutas destacadas
são caracterizadas por uma acentuada bipolaridade; onde, ora
aparecem envoltas a vitimizações exacerbadamente dramáticas
(invariavelmente prontas a sistematizar relações onipotentes de
opressão), ora, em passo seguinte, simplesmente dão lugar a con-
descendências fortemente elitistas – afeitas a resolverem os mais
variados dissensos a partir da desqualificação de práticas tidas
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como resquícios de juízos inadequados daquelas mulheres que,


limitadas pelas condições defrontadas, acabariam desinteressadas
e/ou incapacitadas de intervir a seu favor, pois estariam envol-
vidas em uma atmosfera social demasiadamente desfavorável e
severa, portanto, dada ao que seria sua compreensível degradação
e/ou atabalhoamento.
Perante tais arquétipos e buscando nos manter distantes das
atribulações atinentes a esses arranjos narrativos, notamos que
os movimentos empreendidos no sentido de fazer prevalecer o
desejo por uma união estável e formalizada, ativados por parte da
jovem trabalhadora doméstica, expôs uma trama onde o operário
Nilson, empregado nas linhas de produção de uma expressiva uni-
dade frigorífica de Toledo, teria desfrutado de um relacionamento
sexual que não poderia e/ou devia ser notado como ocasional ou
fortuito. Isso, independente do ato ter ocorrido de forma volup-
tuosa e consentida, como alegaria o acusado, ou resultado de uma
efetiva agressão e violência, tal como nos termos apresentados
pela denunciante. Por sinal, uma controvérsia com que se ocupou
a averiguação legal, que, agora (apesar de suas incontornáveis
indeterminações), recuperamos como fonte de investigação desses
constructos morais.
Contudo, ao assinalar os sentidos históricos de sua des-
ventura e/ou interdição, Libertina atribuiu contornos sociais ao
espaço de uma pensão improvisada, que segundo sua patroa,
proprietária da hospedaria, o imóvel não se tratava propriamente
de um estabelecimento de hotelaria comercial; sendo que, por
26

ocasião de seu testemunho, declarou que “não é verdade que


possui uma pensão, que [...] apenas fornecia cama e comida para
um rapaz de nome Augusto, que o rapaz de nome Nilson apenas
pernoitava na casa da depoente” (PARANÁ, 1969).
Desse modo, Ivani, que contava com 22 anos de idade,
aventurava-se em busca dos possíveis ganhos com aluguéis de
cômodos de sua moradia e a venda de refeições a trabalhadores
como os mencionados – ocupados nas cada vez mais expressi-
vas e vigorosas esteiras de abate e transformação de alimentos,
guiadas pelos interesses agroindustriais emergentes, os quais se

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constituíam em cidades como Toledo (mas, também, em Casca-
vel, Marechal Cândido Rondon, Palotina, Medianeira, Missal e
várias outras cidades do Oeste do Paraná) a partir dos anos iniciais
daquela década de 1960, onde, não por acaso, todos os envolvidos
no auto em análise residiam no entorno da empresa frigorífica
(estabelecendo desde o fornecimento de comida e pouso, como
ofertado por Ivani, ou mesmo trabalhadores sintonizados a esses
empreendimentos – como Nilson, além dos que improvisaram
moradias nas proximidades, como Libertina e sua mãe, que ao
se instalarem naquela região avaliavam onde a demanda por tra-
balhos domésticos de limpeza e cuidados com roupas de traba-
lhadores se fazia emergente ao se situarem nas proximidades do
que se forjou como vila operária11.

11 Essa presença de empreendimentos agroindustriais, como o Frigorífico Pioneiro-Sadia,


assim como destacado por muitos autores, foi vista, muitas vezes, a partir de uma asso-
ciação muito imediata e mecânica, apontando essas ações como determinantes na prática
migratória de trabalhadoras e trabalhadores, além de ser alçada a motor desenvolvimen-
tista da região. Para além das ressalvas que mantemos a esse modo de ver a questão,
procuramos destacar como essa promoção agroindustrial foi significada tanto para a vinda
quanto para permanência e/ou andança de muitas trabalhadoras e trabalhadores pela
região Oeste do Paraná. Uma questão a ser levada em conta, por exemplo, quando obser-
vamos que todos os depoentes e protagonistas da ação processual em tela são naturais
de outras cidades paranaenses e até de outros estados da Federação, sinalizando uma
movimentação social marcada pela avaliação constante sobre onde e como almejavam/
conseguem viver em meados do século XX – inclusive deixando o Oeste paranaense ou
percorrendo algumas de suas cidades e campos. Desse modo, estamos falando de como
essas pessoas se veem na dinâmica histórica e se propõem a intervir nessa presença,
não ilustrando uma confirmação de como são atraídas e fixadas a esse lugar, mas como a
constituição de postos de trabalho e de uma rede de serviços, vinculados a essas vagas,
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 27

A aproximação experimentada diante da conexão mantida


por esses sujeitos pode ser explorada inclusive quando abrimos
espaço para as declarações formuladas pelo acusado. Por sinal,
elaborações também depreendidas de sua presença nos registros
processuais. Essa inserção ocorreu em atendimento à intimação
que lhe foi dirigida, a partir da qual ofereceu seus esclarecimen-
tos quanto ao mérito da denúncia que pesava contra si; onde,
em conformidade com a especificidade impressa na linguagem
documental, cumpria o papel legal de exercitar o que era seu
legítimo direito de defesa.
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Afinal, longe de nos colocarmos na inglória posição de


atestadores da narrativa imputada a Nilson (classificando como
verídico ou falso esse ou aquele trecho de sua versão, ou ainda
cancelando ou validando o mérito das alegações exaradas), cha-
mamos a atenção para a ampliação da ambiência social já deli-
neada pelas mulheres que se fizeram presentes no decurso do
processo criminal em questão até aquele momento. Desse modo,
vejamos como esse sujeito se situou ao abordar as circunstâncias
que se viu impelido a responder.

[...] o interrogado, como [...] foi operado, e necessitava de


repouso, permaneceu por alguns dias acamado na casa em
que faz refeições e reside, como sendo a casa da Senhora
Ivani; que, na mesma casa trabalha como empregada domés-
tica a menor Libertina; que, durante os dias em que o inter-
rogado permaneceu na cama, Libertina ia todos os dias na
cama do interrogado, afim de que este mantivesse relações
“sexuais” com ela, porém o interrogado sempre procurava
a evitar; que, quando foi em certo dia, isto é, dia dezoito do
corrente mês, Libertina compareceu de novo no quarto do

sugerem a construção de alternativas e de revisão de caminhos trilhados, bem como


alterações nos rumos da produção de suas vidas nessas cidades do Oeste. Contudo,
isso não indica imobilidade e inobservância de aspectos que lhes permitam assentar a
constante avaliação e tomada de decisão entre ficar ou partir. Então, sobre o universo
distinto de leituras das relações sociais frente aos empreendimentos agroindustriais no
Oeste do Paraná e da historicidade que sustenta tais visões, indicamos: Campos (2017),
Freitas e Santos (2014, 2017), Dalla Costa (1993), Gregory (2002), Marschall (2005),
Priori (2012), Vitti (2017) dentre outros.
28

interrogado [...] disse que interessava em manter relações


com o mesmo [...] mas antes disse Libertina que queria como
indenização de seu corpo a quantia de dez cruzeiros novos, o
que foi pelo interrogado respondido que nem as mulheres lá
da zona do meretrício não valem dez cruzeiros novos; que,
depois de haverem pechinchado um pouco, Libertina deixou
por seis cruzeiros novos, para ser pago no dia consequente;
que, como o interrogado não lhe deu o dinheiro que havia
prometido, Libertina achou de bem contar para sua mãe;
que, efetivamente o interrogado manteve relações sexuais
com Libertina, depois de tanto ela insistir, porém Libertina

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não era mais virgem e posteriormente o interrogado veio a
saber que Libertina havia sido deflorada por um moço de Pal-
mitópolis [Distrito de Nova Aurora-PR, cerca de 50 Km de
Toledo, distrito onde Libertina nasceu e vivia anteriormente
à sua ida para Toledo], porém o interrogado desconhece a sua
identidade e paradeiro, visto que ouviu falar que tal moço
mudou de residência, indo para Curitiba; que, o interrogado
também descobriu que Libertina manteve relações sexuais
com Antoninho, empregado do Frigorífico Pioneiro desta
cidade; que, Antoninho disse ao interrogado que por duas
vezes manteve relações sexuais com Libertina, porém ela
já não era mais “moça” (PARANÁ, 1969).

Formulações como as depreendidas, tanto das falas atribuí-


das à jovem trabalhadora doméstica quanto aquelas imputadas
ao operário denunciado, não permitem grandes descobertas ou
categóricas afirmações sobre a verdadeira consecução dos fatos
que compuseram o evento narrado, pelo menos não segundo os
propósitos que informam nossos procedimentos enquanto his-
toriadores. Pois, de consensual resta apenas a concordância a
respeito da ocorrência do ato sexual; resultando indeterminado
todo o resto que o cerca, haja vista a disputa efetivamente esta-
belecida sobre os termos do ocorrido. Portanto, cientes dessa
indefinição, aprendemos a reconhecer valor e significado his-
tórico menos na exposição factual do que está registrado na
documentação em questão e mais nos sentidos argumentativos
mobilizados pelos envolvidos para apresentarem e inscreverem
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 29

suas posições na trama ampliada da semântica social expressa


naquela historicidade.
Desse amplo e conflituoso escopo de alegações podemos
identificar aquilo que as(os) implicadas(os) no evento elegem
como caracterizações que deveriam se tornar visíveis e preva-
lecentes na definição do campo de visões que esperam iluminar
e instruir a arena social. Sobre o mesmo prisma, porém como
reverso dessa mesma pretensão, também podemos perceber aque-
las práticas e valores que deveriam ser afastados da imagem que
esperavam projetar, ainda que, no decurso de suas atuações, sem-
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pre lhes possam ser objetadas inconveniências bastante evidentes.


Não por acaso, é nesse espaço aberto pela declaração de possíveis
impropriedades e/ou imoralidades que surgem as acusações e
desqualificações que despertam o interesse desta reflexão.
Afinal, desse terreno movediço, podemos notar, entre outras
problematizações, a tensão que envolve caracterizações que
implicam na definição de ser (ou deixar de ser) “moça virgem”;
indicando, a partir daí, o peso e a densidade de noções capazes
de colocar em movimento relações de poder que, apesar da espe-
cificidade de suas irrupções, confluem diretamente às conexões
nevrálgicas mais amplas do campo de forças sociais. Ativando
uma imbricação que converge e se expressa em um processo legal
de averiguação de violência sexual. Sendo que tal confluência
parece se concentrar na tácita ponderação estabelecida entre a
efetiva presença da denunciante nas circunstâncias em litígio e
a conduta presumida para uma jovem mulher naqueles idos do
final da década de 1960, implicando daí o tratamento que deveria
(ou poderia) lhe ser dispensado não apenas por seu “parceiro”
sexual, mas também pela própria burocracia judicial de Estado
e por aqueles que tomaram parte nessa contenda.
Então, para além (ou mesmo em função) da ocorrência de
uma agressão sexual, outros elementos de valoração passam a
ser sondados; onde, conforme a elasticidade do universo de con-
siderações, torna-se imprescindível, no curso das alegações con-
tidas no processo criminal, definir se Libertina já havia mantido
relações sexuais anteriormente, quiçá com outros parceiros, ou
30

se Nilson teria cometido o agravante de tê-la “deflorado”. Por


sinal, esse parece tornar-se o foco central da questão.
Nesse ponto, como observamos no fragmento acima, o
operário indiciado manejou seu estado de convalescimento para
insinuar o que seria sua posição de passividade no evento, colo-
cando-se na condição de assediado, inclusive, sendo alvo de pro-
postas de práticas sexuais mediante remuneração (equivalente a
15ª parte de 1 salário mínimo daquele ano), que, segundo men-
cionou, julgou excessivamente majorada, pois apesar de acreditar
que a empregada doméstica não se comportava de forma nada

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recatada, também não chegava a ser uma profissional da Zona
do Meretrício.
Essa formulação apresentada por Nilson como sua defesa
propõe colocar sob suspeição a denúncia feita pela mãe da traba-
lhadora. Ademais, ele sugere que o possível desapego de Libertina
à “boa reputação” deveria ser tomado, por parte das autoridades,
como indicativo de falta de credibilidade quando o assunto em
questão fosse as acusações “de sedução” que lhes eram dirigi-
das, uma vez que, segundo o denunciado, ela já teria se tornado
assunto comum entre operários do frigorífico onde trabalhava,
sendo que companheiros de serviço estariam alardeando o fato
de terem mantido relações sexuais com a denunciante.
Um desses trabalhadores, mencionados por Nilson, chegou a
figurar no processo em questão. Momento em que, diante do dele-
gado, manifestou-se quanto à sua implicação no caso, oferecendo,
em seu testemunho, mais uma versão sobre o comportamento
sexual da jovem trabalhadora. Segundo declarou,

[...] há mais ou menos um mês, passado, em conversa com


Libertina trataram um encontro amoroso, porém tal encontro
não foi realizado; que, não é verdade que o declarante tivesse
relações sexuais com Libertina, pois da vez que marcaram
encontro foi justamente para isso, e, inclusive disse Liber-
tina ao declarante que já não mais era moça, que havia sido
deflorada por um rapaz residente em Palmitópolis; que, na
ocasião, disse Libertina que falasse a Nilson para que este lhe
mandasse o dinheiro prometido; que, o declarante falando
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 31

com Nilson, este lhe disse do sucedido, tendo dito ao decla-


rante que havia mantido relações sexuais com Libertina, e,
também contou a estória do dinheiro prometido a ela; que,
Nilson é futuro cunhado do declarante, visto que é noivo de
uma irmã do declarante (PARANÁ, 1969).

Nessa elaboração, Antoninho, a quem é atribuída a narrativa


acima, nega o relacionamento sexual com Libertina – o qual Nil-
son disse ter tomado conhecimento através do próprio depoente
(onde não por uma, mas “por duas vezes” teria chegado ao ato
em questão). Porém, de uma forma que soa juridicamente metri-
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ficada, a testemunha não afasta a possibilidade de efetivamente


ter corrido à “boca pequena” a desprestigiada “falação” sobre
“os modos” de Libertina, acenando assim para um temperamento
pouco recomendável para designar o que compreendiam como
uma “moça séria”. Afinal de contas, ao mesmo tempo em que o
declarante confessa não ter consumado a prática sexual, expõe,
em desfavor da queixosa, o que teriam sido as tratativas, mesmo
que frustradas, para tal acontecimento – ainda que, diga-se de
passagem, não apresente maiores esclarecimentos quanto ao insu-
cesso de suas investidas!
Contudo, em que pese esses silêncios e construções narra-
tivas, a imagem de Libertina já aparecia atrelada a perspectivas
nada valorosas conforme esses enunciadores, pois já estava “na
boca” de (possíveis) pretendentes a relacionamentos, vincula-
ções que pouco (ou nada) seriam socialmente qualificadas e/ou
definidas como “respeitáveis”. Lembremos que, comprometidos
em não aparar as arestas das contradições que envolvem os com-
portamentos das trabalhadoras e trabalhadores em discussão, pre-
cisamos admitir que conotações dessa ordem, preconizadoras de
papéis moralmente presumidos quanto ao comportamento sexual
feminino, justificaram a própria reparação reclamada (em juízo)
pela denunciante e sua mãe; qual seja, a retratação matrimonial
como consequência recomendável e honrosa diante da necessária
compensação do ato sexual confirmado pelo acusado.
A própria Libertina só consegue se referir ao caso como um
evento forçado; no qual, por sua condição natural de “fragilidade
32

feminina”, não teria encontrado forças para evitar que fosse


levada compulsoriamente ao quarto do denunciado; onde, nes-
sas condições, teria ele satisfeito “os seus” exclusivos e egoístas
desejos sexuais. Um enredo que ainda mobilizava um repertório
de elementos comuns a tantas outras queixas que, como essa,
são verificadas em toda dimensão do território nacional. Nelas,
quando “forçadas” e/ou “seduzidas”, essas “moças virgens” apre-
sentam sintomáticas comuns, que vão de fortes dores na vagina à
grande perda de sangue, além da devastadora sensação de infor-
túnio e perdição12.

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12 Muitas vezes, essa formulação é expressa de antemão no modo como a narrativa judicial
propõe o registro do crime sexual, ancorando-se na pauta enunciada pelas denunciantes
– destacando a violência e imposição do ato sexual à vítima. Essa abordagem jurídica
informa sobremaneira o modo como certos pesquisadores e pesquisadoras tomam contato
e produzem suas considerações acerca de tais historicidades e da presença feminina
nesses autos, algo legítimo, mas que caso não se proponham a explorar as sinuosida-
des das relações substanciadas na peça processual, acabam por limitar o que veem e
discutem ao que se apresenta nessas primeiras páginas, inclusive, não se atentando ao
modo como as denunciantes ativam, contestam e reordenam moralidades nessa trama
social. Sobre tais inserções investigativas e seus esforços analíticos, destacamos Arce e
Vasquez (2016); Coulouris (2010), Oliveira (2018) e Passos (2009). Mas, como expressão
da dificuldade de superar tal turbidez, trazemos a menção legal destacada por Gavron
(2001) que, na esteira da imagem formulada na petição inicial dos autos, enquadrados
como crimes de sedução, aponta o aparato jurídico que se forja como explicação histó-
rica, indicando que “A sedução supunha que o homem explorou a inexperiência sexual
e fraqueza moral da mulher”. A nosso ver, esse é um repertório construído e acionado
nas disputas em questão, que serve tanto para garantir a inocência da vítima de crimes
dessa ordem (sendo utilizado para resguardá-la como indefesa e incapaz); quanto será
referendado porque também dialoga (e reforça) parte de uma leitura social lançada acerca
dessas jovens, sugerindo a tal “fraqueza moral” dessas mulheres. No processo criminal em
que visualizamos a experiência de Libertina, a oscilação das imagens produzidas sobre
ela insiste em formular quadrantes dessa natureza, antagônicos e quase impermeáveis,
onde em um momento ela é vítima/incapaz de reação e em outro interessada/instigadora/
culpada pelo ato sexual e seu desenlace. De nossa parte, insistimos na pertinência de
avaliar as ambiguidades dessas relações em tela, onde o modo de viver desses sujeitos
ao serem colocados em observação jurídica, sob o verniz de uma moralidade sexual, não
encontra a pureza dos nexos ambicionados, principalmente ao serem confrontados com
a materialidade da vida. Uma dura realidade que pouco exploramos, pois parece difícil
analisar relações controversas quando, de partida, parece que já temos a definição dos
fatos, do lugar ocupado por cada um e nos vemos diante de possíveis controversas com
os suportes e supostos de pautas reivindicatórias há muito elencadas pela luta feminina.
Porém, essa constante presença histórica de crimes contra as mulheres é amalgamada
de dramas e relações de poder que explicitam dores, imposições, exposições, afetos e
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 33

Ainda que possamos manter determinadas ressalvas quanto à


recorrência roteirizada da integralidade desse enredo, também não
temos por que interpormos grandes e intransigentes objeções a
partes importantes dessa formulação, pois há amplos e frequentes
aspectos da moralidade sexual masculina que corroborariam à
possibilidade histórica desse padrão de ocorrência social – fosse
em meados do século XX ou agora (nas primeiras décadas do
século XXI). Então, para além dos restritos contornos da etérea
discussão sobre a admissão ou recusa dessa clássica trama dos
relacionamentos de gênero na sociedade brasileira, podemos notar
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que mesmo nos contornos dessa atmosfera predatória de domina-


ção e opressão narrada por Libertina, sobressaíram ponderações
argumentativas, identificadas e emitidas pela própria denunciante.
E, caso tenhamos compreendido algo de suas observações, essas
ponderações poderiam deixar sua argumentação exposta a fragi-
lidades impostas por certas inferências e julgamentos.
Vejamos, segundo as considerações de Libertina, ela teria
alegado a Nilson que tinha conhecimento da relação de noivado
que ele mantinha com outra moça. Além disso, pareceu insinuar
uma condição que desabonava não apenas (ou necessariamente)
o ato sexual que acabaram praticando, mas, antes (ou inclusive),
a modalidade de relacionamento paralelo e subordinado que esse
pretendia manter com ela; além de ter apontado a suposta pro-
messa e recomendação feitas pelo acusado, onde pedia para não
revelar à ninguém o ocorrido, muito menos à sua mãe, compro-
missando-se a recolher recursos de sua relação de trabalho no
frigorífico e, após munir-se desses recursos, “iria embora com
a denunciante”.
Essas considerações, a despeito do mérito do litígio, talvez
nos autorizem a indagar se essa última prospecção teria exercido
alguma influência na conduta de Libertina. Um questionamento
que, por sinal, parece-nos bastante razoável. Principalmente
quando consideramos sua hesitação inicial em levar a cabo a

prazeres, um conjunto de sentimentos e ações desvelados em uma tensa arena social


que merece ser investigada em seus pontos de contato e de reposicionamento de con-
dutas morais.
34

conversa em que acabou por revelar o ocorrido à sua mãe. Acres-


cente-se a isso o suposto fato de ter dado a entender a Antoninho,
cunhado de Nilson, que havia mantido relações mais íntimas com
o noivo de sua irmã. Talvez esperasse daí alguma intriga capaz
de tornar o denunciado um “partido” efetivamente desimpedido!
Quiçá, mais afeito à expectativa matrimonial prometida e agora
solicitada à Justiça para que fosse legalmente decretada.
Aliás, sobre a menção a essa possibilidade aventada – de
provocar a indisposição de Antoninho contra Nilson (quem sabe
decorrendo daí importantes e/ou decisivos desentendimentos

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em seu noivado), tal ação poderia guardar uma presumível con-
gruência à lógica da reflexão insinuada, não fosse um desses
outros tantos aspectos da elástica moralidade sexual masculina;
a qual, sem grandes constrangimentos, permite a sujeitos como
Antoninho depor em favor do noivo de sua irmã, na condição
de testemunha de defesa, por ocasião de um processo em que o
cunhado é investigado por ter cometido violência sexual (ou, na
melhor das hipóteses, onde figura como réu confesso de infide-
lidade amorosa).
Na primeira vez em que tivemos contato com essa docu-
mentação, precisamos confessar que conforme corríamos o
olhar em cada uma das 35 páginas que integram o processo
(dispostas de modo a suscitar o suspense próprio à ordem inqui-
sitorial presente no ajuntamento judiciário), crescia o interesse
em conhecer o desfecho da intriga dramática vivida entre esses
trabalhadores e trabalhadoras. Eis que, de modo repentino, pois
a documentação muito pouco havia avançado nas instâncias
judiciárias (tendo sido formulada majoritariamente nas incur-
sões de âmbito policial, na fase precursora de inquérito), depa-
ramo-nos com um requerimento que solicitava o arquivamento
do caso, apresentado pela defesa de Nilson. E, o mais intrigante,
o argumento central não mais insistia na inocência de Nilson,
antes, prevaleceu na petição a preservação de um inesperado
(e suposto) interesse da “vítima”. Então, vejamos os sentidos
da alegação que supunha o arquivamento do processo como
favorável ao interesse da denunciante.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 35

[...] a menor Libertina, em data de ontem, dia 9 de setembro,


contraiu matrimônio com o Sr. José, conforme comprova a
inclusa certidão de casamento.
Nessas condições e tendo em vista, principalmente a defesa
dos interesses da menor Libertina, que com o seguimento do
presente processo poderia influir na paz e harmonia do novo
casal, é a presente para requerer-se à V. Exa., o arquivamento
do processo em causa, para que sobre o mesmo paire para
todo o sempre o mais perpétuo silêncio (PARANÁ, 1969).

Contrariando parte das pretensões do representante legal de


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Nilson, estamos nós aqui, exumando essa documentação, retiran-


do-a do “perpétuo silêncio” em que o deferimento da requisição
depositou definitivamente em arquivo as iniciativas contidas no
processo legal. Não que, como desejava o advogado, tenhamos
a ambiciosa pretensão de supor que o encerramento da apura-
ção legal desse litígio tenha imposto um silêncio perpétuo sobre
o ocorrido. Isso já é outra história, que extrapola em muito o
alcance das reflexões aqui empreendidas! Por ora, contentamo-
-nos em evidenciar o efetivo arquivamento do processo, que
ocorreu mediante concordância do Promotor; o qual, defensor
da causa pleiteada por Libertina, “opinou favoravelmente à pre-
tensão do acusado” (PARANÁ, 1969).
Depois desse ato, não encontramos mais a presença das tra-
balhadoras e trabalhadores nas páginas restantes do processo,
aquelas onde transcorreram as decisões que colocaram fim ao
pleito que expuseram (ao mesmo tempo em que as(os) expuse-
ram) ao conhecimento público. Apenas sabemos que a certidão
de casamento, incluída no processo, anotou que Libertina não
apresentava como seu endereço de moradia a sede urbana da
cidade de Toledo; indicando, ao invés disso, o então distrito de
Ouro Verde como seu novo local de domicílio. O distrito também
foi apontado como o local de moradia do trabalhador rural José,
que havia se tornado o marido de Libertina; sendo que, a então
trabalhadora doméstica foi anunciada, naquele documento, não
mais com essa denominação, mas sim como uma mulher ocupada
com os cuidados “do lar” (PARANÁ, 1969).
36

Ao que se permite ver, foi em nome da anunciada “harmonia”


do arranjo matrimonial recém-estabelecido que a denunciante e
sua mãe teriam relevado a violação que alegaram ter sido infli-
gida à Libertina. Agora, a despeito da outrora proclamada desonra
(tão fustigante e aviltante quanto a imperiosa apresentação de seu
infortúnio), o silêncio podia ser naquele momento moralmente
mais conveniente – sendo, portanto, contraditoriamente promovido
como ação propositiva, que demandava, inclusive, a desistência
da causa judicial em curso; onde, diante das novas circunstâncias,
também se declinava da pretensão de impor judicialmente o casa-

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mento como reparação dos danos causados por Nilson.
Afinal, o casamento, independentemente da nódoa provo-
cada pelo violador de sua honra, se não foi concretizado com
Nilson, foi alcançado com José, que tinha se tornado seu efetivo
e formal parceiro conjugal. Desse modo, como essa era a pena
preconizada ao delito denunciado, o réu poderia (e de fato foi)
liberado do sentimento de justiça que pesava contra si. Sendo esse
indulto concedido tanto pelas denunciantes quanto pela própria
parte institucional julgadora; onde, contradição à parte, poderia
essa última, caso mantivesse seu afã de administração da Justiça,
acabar contrariando aqueles pleitos que passaram a ser anuncia-
dos como os reais interesses daquelas trabalhadoras que ativaram
sua intervenção. Por sinal, esses novos interesses convergiram
ambiguamente com o que era esperado pelo trabalhador Nilson,
desejoso que era em ver seu comportamento sexual admitido
como inimputável, pois parecia manter o entendimento de que a
licenciosidade presumida como regular na atuação de um homem
não fazia de sua conduta nem desonra nem infração legal.
Contudo, ainda assim, restaria a letra moralizante da lei; que,
como podemos verificar no fragmento abaixo (extraído da deci-
são do magistrado, responsável pelo julgamento da ação), vinha
sofrendo (desde meados do século XX), cada vez mais constantes
e significativas atenuações na semântica de seu código legal.
Flexibilizações que pareciam diretamente proporcionais às cres-
centes e sucessivas confrontações que advinham da incongruên-
cia manifestada por comportamentos bem mais sinuosos do que
aqueles previstos e/ou demandados em suas normativas legais.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 37

Quando retomamos o veredito do Juiz, ocupado com o pro-


cesso em questão, observamos, entre outros aspectos, como ele
colocou em movimento os meandros desse contorcionismo legal,
apresentando-o como uma espécie de complacência magistral;
onde, desviando-se dos pressupostos mais rigidamente dogmá-
ticos, apoiou-se na seguinte alegação,

A Lei Penal Brasileira, inspirada nos mais louváveis fun-


damentos de segurança à honorabilidade da mulher casada,
como elementos básicos do lar – célula mater da própria
sociedade humana [...] estabeleceu que, embora se trate de
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ação pública, a punibilidade do crime contra os costumes


extingue-se com o casamento da ofendida com seu ofensor.
Não a extinguiria o casamento da ofendida com terceiro,
segundo se depreenderia do texto legal, que, infelizmente
não considerou essa possibilidade.
Entretanto, a Lei é feita à sombra dos costumes [...] O cos-
tume [...] quando consagrado e arraigado na comunidade,
vai paulatinamente suscitando a atenção da autoridade judi-
ciária até a consulta aos Órgãos Colegiados, cujos arestos
vão corporificando a jurisprudência, que à margem do texto
rígido da Lei, vai amoldando e humanizando os Códigos,
tendo sempre em mira os interesses superiores da sociedade.
Até que, cimentado no pronunciamento da mais Alta Corte,
passa o costume a valer pela própria Lei.
Assim é o caso dos autos, que similarmente já foi subme-
tido, numa pluralidade de vezes ao beneplácito do Pretório
Excelso, com decisões favoráveis à pretensão do acusado
que aí se confunde com o interesse da sociedade e da
ofendida [...]
Isto Posto, com apoio na reiterada e pacífica jurisprudência
dos nossos Tribunais [...] após iniciada a ação penal, hei por
bem em decretar, como decreto a extinção da punibilidade
do fato narrado [...] e imputado a Nilson (PARANÁ, 1969).

Essa elaboração, consubstanciada na urdidura formulada


pelo magistrado, aponta para um campo de relações em que as
circunstâncias em litígio, vividas por Libertina e Nilson, não
38

seriam ocorrências de uma dada excepcionalidade – pelo menos


não ao ponto de serem comparáveis com aqueles eventos tidos
como surpreendentes. Pelo contrário, o enredo tratado no auto
processual seria, segundo alegou o Juiz, mais uma dessas tantas
evidências que tornam expressiva uma dinâmica social notada
como capaz de ter “paulatinamente suscitado a atenção da auto-
ridade judiciária”; isso, após se fazer presente e tramitar em suas
muitas instâncias (incluindo as mais altas esferas colegiadas), até
que, por fim, “os arestos vão corporificando a jurisprudência”.
Desse modo, vagarosamente (em uma morosidade consti-

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tuída de resiliências e fricções), teríamos chegado ao ponto do
“caso” abordado nos “autos” indicar bem mais do que um pro-
cesso criminal, sugerindo, para além de uma ação judicial espe-
cífica, um processo social que foi registrado e que agora permite
ser lido através dessas documentações; pois, “similarmente já foi
submetido numa pluralidade de vezes”. Assim, essas conjunções
nos possibilitam argumentar que apesar de explorarmos apenas
essa peça processual, aqui vislumbrada como evidência histórica
da problemática abordada, isso ocorre não por desconhecermos
outras ações dessa mesma natureza (que, não por acaso, integram
o acervo documental consultado); ou, ainda, que desprestigiemos
outros acervos que por ventura também tenham sido salvaguarda-
dos, derivados que foram do trabalho de comarcas judiciárias dis-
tribuídas pelo amplo, desigual e diferenciado território nacional13.
Sem subestimar o potencial de uma pesquisa munida de um
fôlego mais profundamente verticalizado, que pretendesse se
ocupar da articulação e confrontação das materialidades depreen-
didas da categorização desses autos processuais (tipificados na
apuração dos crimes de sedução, defloramento ou similares), acre-
ditamos que para as proposições desta reflexão o seu emprego
unitário cumpre a função de apontar para ocorrências históricas,
que apesar de se manifestarem em um terreno notadamente árido,
13 Durante a produção desse trabalho cerca de 50 autos processuais do acervo do NDP/
UNIOESTE (apenas envolvendo crimes sexuais com menores de idade entre as décadas
de 1950 e 1980) foram selecionados e associados ao processo de Libertina, tanto para a
definição de sua abordagem na constituição desse livro quanto na percepção do enredo
social no qual se inseria.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 39

não são suficientemente capazes de interditar a movimentação


de trabalhadoras como Libertina, que viveram seus dramas sem
abrirem mão dos valores e das condutas que julgaram possíveis
ou necessárias empreenderem na construção de prospecções.
As ações dessas trabalhadoras, amalgamadas no protago-
nismo das contradições e ambiguidades (que agora podemos
identificar e pautar em nossos debates), indicam uma potência
social que, mesmo em seus traços fragmentários (recuperados
em pesquisas confessadamente limitadas como essa), não permi-
tem ignorar a inscrição histórica de suas presenças. Antes, esses
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esforços exigem que consideremos admiti-las como nexos fun-


damentais para compreendermos os sentidos das transformações
que efetivamente engendraram. Pois (e essa consideração nos
parece muito importante), não temos dúvidas quanto à energia
histórica que dissiparam ao delinearem suas práticas e valorações
(momentos em que, a seu modo, tomaram parte na trama que
teceu nosso atual estado social).
E não nos entendam mal. Essa vitalidade se tornou visí-
vel ou inteligível não apenas porque conseguimos vislumbrar os
possíveis impactos estruturantes que causaram na legislação cri-
minal ou cível – indicando a desventurosa e intricada integração
desses códigos à dinâmica social. Essa valência à parte (ainda
que também atendida essa tão prestigiada validação que muitos
historiadores e historiadoras insistem em definir como elemento
fundamental de autenticação do “fato” passível e/ou recomendá-
vel para o estudo histórico), podemos redimensionar nosso olhar
para o curso de possíveis normatizações morais e/ou alterações na
prática sentimental e/ou sexual de trabalhadoras e trabalhadores
ao conceberem ordinariamente suas ligações afetivas ou mesmo
uniões matrimoniais.
Ademais, além de tantos outros aspectos aqui delibera-
damente negligenciados, ainda restaria obscuro entender até
que ponto o notado distanciamento entre a rigidez dos códigos
institucionalizados e aquelas traduções operadas nos juízos e
sentenças exaradas pelos magistrados dizia respeito propria-
mente a um crescente senso (e condutas) de disjunção, ativado
40

nas ações firmadas por mulheres de meados do século XX,


incluindo aí certas trabalhadoras presentes no Oeste do Paraná
– que passavam a reivindicar a inscrição legal de suas efetivas
moralidades (o que, na prática, talvez já vinha ocorrendo sem
necessariamente se ocuparem do pleito por registros legais); ou,
também, como e com quais sentidos (e importância) passamos
a contar com a sensibilidade de homens, entre eles trabalha-
dores, que cada vez mais admitiam a construção de vínculos
(inclusive formalizados legalmente) com mulheres que já
haviam sido “seduzidas” e, portanto, publicamente marcadas

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como defloradas.
Se ampliarmos esse flanco e pensarmos para além das ações
de Libertina ao longo desses cinco meses de ação processual
(entre abril e setembro de 1969), onde a proposição do matri-
mônio se apresenta como alternativa frente a certos conflitos e
pressões morais, chegamos ao século XXI observando o quanto
essa prática continua sendo colocada em movimento (ora como
caminho ora como entrave) nas inserções dessas mulheres no
Oeste do Paraná.
Uma ponderação que fazemos após a análise de centenas
de Cadastros realizados junto ao Centro de Referência de Assis-
tência Social (CRAS) de Marechal Cândido Rondon, cidade
distante de Toledo 40 Km. Elencamos a experiência de Valentina
de um conjunto de registros de relações estabelecidas a partir
desse órgão público, onde, em seu cadastro familiar é desta-
cado que estava separada há 5 meses14. E, naquele outubro de
2010, quando realizou tal contato com o CRAS, encontrava-se
com 21 anos e procurava reorganizar suas relações e modos de
viver após o desfecho dado ao seu casamento e prisão do seu
ex-companheiro (CRAS, 2010). Parte dessa reordenação ficou
expressa na unidade familiar apresentada na sua ficha, a qual
reapresentamos a seguir:

14 Os nomes mencionados na ficha de atendimento do CRAS foram alterados, assim


como certos indicativos que favorecessem a identificação daqueles(as) que foram
mencionados(as). A intenção foi manter em todas as fontes o anonimato e o uso
de pseudônimos.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 41

Quadro 1 – Unidade familiar registrada na ficha de Valentina


NOME D.N. PARENTESCO ESCOLARIDADE ATIVIDADE RENDA
Paulo Tio de Valentina Bombeiro
Dora 36 anos Tia de Valentina Primário Doméstica Um salário
Denilson 6 anos Primo 3ª série
Primo (filho de Fundamental Servente de
Flávio 24 anos
outros tios) incompleto pedreiro
Larissa 3 anos Filha de Valentina Creche
6
Alice Filha de Valentina Creche
meses
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Ensino Médio
Valentina 21 anos Limpeza ½ salário
incompleto

Fonte: CRAS (2010, adaptado).

A trabalhadora se via envolta a alterações significativas em


seu modo de viver, onde, com duas filhas pequenas, permane-
cendo na casa cedida pela ex-cunhada, Valentina rearranjou sua
moradia, passando a residir com alguns parentes em prol de divi-
dir despesas e auferir algum rendimento. Uma ação que tentava
conciliar sua presença na cidade, lugar em que se encontrava há
pouco mais de 5 anos, além de ser um ponto de apoio para que
não recuasse em sua decisão de romper o relacionamento com o
ex-marido. Essa determinada configuração de moradia permite
notar, tal como indicado na fonte acima, que Valentina não foi
a única a buscar essa acomodação de interesses sobre o como
morar. Isso pode ser notado tanto com a presença da família de
seus tios, quanto a estadia de seu primo Flávio, uma vez que, ao
que tudo indica, eles também consideraram o mesmo propósito
de inserção – diminuir gastos com moradia e, ao mesmo tempo,
permanecer na cidade.
Desse modo e conforme essa concatenação, Valentina bus-
cou amenizar vulnerabilidades, ativando certa solidariedade
familiar, a qual se materializava no suporte com gastos emer-
gidos do processo de separação – haja vista que ficou 5 meses
sem trabalho e mesmo quando conseguiu uma atividade, em
setembro de 2010, recebia apenas meio salário (CRAS, 2010).
42

Portanto, vinculou-se a essa rede de convivência a partir desses


termos, os quais fomentaram a própria estruturação e energia
afetiva de suas ações.
E nessa trilha, ainda conforme o registro cadastral, o
momento do contato com o CRAS não foi imediato à sua separa-
ção, foi um contato institucional que só foi efetivamente acionado
após ter conseguido um emprego, uma expectativa que havia sido
atingida há apenas 1 mês daquele contato, mas que já permitia
a constituição da imagem de uma trabalhadora em dificuldades;
portanto, devidamente caracterizada para acessar as filas da assis-

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tência social. Esse enredo de buscas, marcado pelas agruras da
dramatização social, sugere a tecitura de um conjunto de ações
próprias da potência de sujeitos como Valentina. Aqui, do estado
de aparente desterro, emerge o contorno das agências elaboradas
nas pautas de trabalhadoras como ela15.
Portanto, é nos áridos termos dessa documentação que sur-
gem as anotações acerca de certo improviso e aligeiramento
nas definições da trabalhadora quanto a problemáticas como
afetividade e renda; além de injunções articuladas no onde e
como viver. Um itinerário pavimentado pelas condições e pos-
sibilidades próprias da estruturação da instabilidade, adequadas
aos contornos acidentados do terreno da subalternização – ou, ao

15 Em trabalho anterior, já havíamos destacado essa presença feminina nos atendimentos


e relacionamentos com o CRAS (FREITAS; SANTOS, 2019, p. 391), sugerindo que essa
presença expressa uma realidade que vai muito além de uma percepção no Oeste do
Paraná sobre quem vai ao órgão e quem apresenta nele suas pautas. Essa referência
nos coloca frente ao protagonismo e pressões que elas assumem quanto à organização
familiar e tomada de decisão envolvendo a manutenção de moradia, filhos, tratamentos
de saúde, alimentação, trabalho etc. Algo que foi expressivo notar no trabalho de Arantes
(2011), quando, a seu modo e se debatendo com noções de identidade e de público e
privado, abordou “A mulher desdobrável”, em suas múltiplas atividades e espaços de
atuação em Belo Horizonte-MG, enquanto tentativa de elucidar essa presença social
feminina. Andrade e Morais (2017), ao analisarem a atuação de profissionais de Psicologia
junto a famílias “de um município do nordeste brasileiro”, também destacaram a expressiva
presença de mulheres na proposição de demandas junto ao CRAS, observando sua
predominância no encaminhamento de questões elegidas por elas como urgentes. Esse
enredo, ainda, foi investigado por Silva (2011), ao “analisar o protagonismo das mulheres
integrantes dos grupos do PAIF – Programa de Atenção Integral às Famílias, da Região
Sul do município de Franca/SP”.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 43

menos, das pragmáticas concessões atinentes ao campo desigual


de forças que percorria.
É diante desse universo de pressão que Valentina se mantém
na casa cedida pela ex-cunhada e aciona os meios (até aquele
momento concebidos) para ter certos suportes na reordenação
de suas práticas. Um flanco de visão que dirigiu sua atenção à
conquista de rendas, advindas do cadastro de programas como
bolsa família, ou ainda, do recebimento de ganhos como os pro-
venientes do auxílio-reclusão. Foi assim, no bojo dessa trama,
que Valentina se engendrou no emaranhado circuito assistencial,
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perscrutando, também, direitos que aparentemente poderiam ser


solicitados, tais como as clássicas cestas básicas (CRAS, 2010).
Tateando e explorando essas possibilidades, a trabalha-
dora se depara com os limites fixados pelo órgão responsável
pela gestão, naquilo que poderíamos identificar como o limiar
do estado de “bem-estar” dos pobres. Diante dessa espécie de
coluna de contenção, viu sua trajetória e modo de vida ser escru-
tinado pelos agentes responsáveis por avaliar as solicitações
apresentadas durante o atendimento da assistência social e área
psicológica do CRAS.
Ao se movimentar nesse universo de relações, Valentina
também identifica que, em prol de possíveis deferimentos de
suas demandas, deveria apresentar certa disposição (ou mesmo
deferência) frente aos encaminhamentos sugestionados pela ins-
tituição. Isso porque, tal como observamos (inclusive em outros
tantos cadastros) existe uma associação que os agentes públicos
fazem entre participação (aproveitamento) em atividades como
oficinas/cursos e o deferimento/atendimento de solicitações como
cestas básicas, ou mesmo para mediações responsáveis por abor-
dar concessão de tratamentos médicos, encaminhamentos para
vagas de trabalho etc.
Um entrelaçamento que a jovem pareceu demonstrar ter
plena ciência, uma vez que em sua ficha constava que realizou
cursos e participou de palestras que cumpririam a pretensa fun-
ção de potencializar possíveis “conquistas”, fossem aquelas liga-
das a maior estabilização dos vínculos afetivos fossem aquelas
44

ligadas a um maior potencial de empregabilidade. Nada que,


como bem notou a trabalhadora, garantisse os pleitos endereça-
dos ao órgão assistencial, uma vez que nem conseguiu acesso
às cestas básicas e nem o “serviço socioeducativo”; esse último,
por ela notado como um espaço de cuidado infantil para as filhas,
liberando-a dos custos com a creche (CRAS, 2010). Contudo,
mesmo esse complicado e instável equilíbrio construído por
Valentina, arquitetado no empenho daqueles últimos seis meses,
sofreu um revés, quando, a partir do leque peculiar e adicional
dos entrechoques afetivos de sua condição feminina, precisou

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lidar com as crescentes ameaças do ex-marido, anotadas a partir
de abril de 2011 (CRAS, 2010).
É aqui que Valentina se depara com um ser trabalhadora
que extrapola os aspectos de sua condição de classe. Pois, não
bastasse as preocupações próprias da materialidade de sua posi-
ção social, flagrantemente expressas com as dificuldades com
renda, cuidado com as filhas, sustento da moradia (isso para nos
restringirmos àqueles pontos referidos em seu cadastro assisten-
cial), precisaria, ainda, estar atenta a uma fonte de preocupa-
ção vislumbrada até mesmo pelas profissionais do CRAS, uma
vez que estaria “de namoro com o vizinho [e] parece que ele
[ex-marido] não está aceitando a situação. Até hoje não aceita a
separação”. Uma observação que espreitava sua vida como um
espectro, notado e comunicado originalmente por sua ex-sogra,
que teria dado notícia desse fantasma às funcionárias do órgão,
quando participava de atividade de “fortalecimento de víncu-
los” do CRAS e foi sondada sobre “o paradeiro” de Valentina.
Ainda assim, apesar da obscuridade de seu paradeiro, a institui-
ção se colocou como possível orientadora e condutora do caso,
registrando que em “29/04/2011: Foi entrado em contato com
o Serviço Social 24 Horas, repassando a informação que o ex
companheiro, ou seja, o pai das crianças está totalmente trans-
tornado e desequilibrado” (CRAS, 2010).
Em consonância com todo esse invólucro de preocupação,
as linhas que seguem esse registro dão conta da casa de Valentina
incendiada, mas não há indícios de contato com ela ou novos
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 45

encaminhamentos. Talvez pudéssemos dizer, em tom alegórico,


que os pontos obscuros dessa linguagem narrativa expressam
muito mais do que um rompimento de contato com o CRAS,
sugerindo, de forma alargada, que sua vida demandava algo
mais que interlocutores assentados na posição de orientadores e
avaliadores de sua conduta, como se sempre prontos a emitir o
“como proceder” (CRAS, 2010). Pois, reconhecida sua juventude
e agruras experimentadas até ali, temos, diante de nós, um borrão
de amálgamas dessa imagem feminina, a qual expõe não só os
embates entorno dos princípios da “sedução”, com os quais nos
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debatemos frente aos dramas e atuações de Libertina, mas, tam-


bém, aqueles que se matizam na opressão, no exercício incontro-
lável de uma prática de domínio e posse que pode se evidenciar
em ações como as indicadas no registro cadastral de Valentina, ou
ainda, ganharem um verniz de latente estado de horror; infeliz-
mente descrito com muito mais violência na vida dessas mulheres
do que nos materiais indiciários em que analisamos essa pauta.
Por tudo isso, ao lidarmos com documentações que per-
mitem recuperarmos para a reflexão histórica experiências de
trabalhadoras como Libertina e Valentina, podemos delinear um
processo que expõe mais do que dificuldades em firmar laços
amorosos (haja vista a experiência de Libertina) ou em rompê-los
(como vislumbramos com Valentina). As questões ressaltadas
por elas são muito mais provocativas e colocam em movimento
a cena histórica, mesmo com um constante cursor moralizante
sugerindo uma possível culpa e responsabilidade dessas mulheres
pelos desalinhamentos de certos eixos do convívio social. Sendo
assim, a exposição pública de roteiros afetivos e de vínculos cons-
tituídos e/ou rompidos por elas explicitou, também, avaliações
sobre como conduzem suas vidas – principalmente ao sondar e
enunciar suas ligações afetivas e sexuais.
Esse confronto de visões e valores, destacado no percurso
e desfecho do processo de Libertina, bem como nas páginas da
ficha do CRAS, que alinhavaram pontos de contato com as ten-
sões experimentadas por Valentina, sugerem certa dificuldade em
rastrearmos pormenores desse feixe de ambiguidades, próprio
46

dessa presença feminina no Oeste paranaense. Contudo, isso não


retira do horizonte a materialidade das sinalizações ordinárias
que evidenciam traços da urgência em aprofundar tais incursões
analíticas nesse último meio século.
Ressaltamos aqui problemas investigativos que, para além
das já em si expressivas especificidades morais indiciadas e/ou
deduzidas, reputamos serem, ainda, igualmente importantes, para
entendermos um ponto (quiçá de inflexão) efetivamente sensí-
vel de ponderação quando nos ocupamos das ações e modos de
viver assumidos por trabalhadoras e trabalhadores que articulam e

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concebem, em suas diversas valências, o conjunto mais amplo de
suas atuações sociais. Portanto, sem arroubos de alarde idealista
(uma vez que a crueza desse terreno torna tarefa inglória narrar
enredos com sujeitos e relações fervorosamente românticas), fica
evidente parte dos termos que envolvem os encontros e desencon-
tros que compõem a vida dessas mulheres. O que, tendo em vista
nosso interesse investigativo, só torna mais enigmática a trama
de aproximações e distanciamentos vividos por trabalhadoras e
trabalhadores que compartilham a desigualdade social vigente
em suas condições comum de classe.
Portanto, note-se, que foi buscando apontar para as pressões,
mas também as indeterminações desse chão social, que trouxemos
à tona as experiências de Libertina e Valentina. Seguimos nessa
rota investigativa procurando aprofundar não só as nuances desse
universo social em disputa e de expressão de tensões morais, mas
observando como nos colocamos nesse processo (de debate e
embates) acerca da presença e posição que assumimos na dinâ-
mica histórica, ao exploramos circunstâncias experimentadas
e produzidas nas relações firmadas no Oeste paranaense desde
meados do século XX.
CAPÍTULO II
PRECES, TENSÕES E LITÍGIOS
NO OESTE DO PARANÁ:
experiências de trabalhadoras
na pauta historiográfica

P
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rocurando avançar em nossa argumentação, passamos a


indicar um dos momentos mais enigmáticos de nosso entre-
choque com os aspectos que envolvem essa problemática.
Com isso, não pretendemos chamar a atenção para algo que tenha-
mos na conta do extraordinário, ou mesmo do exótico – ainda
que estejamos cientes de que isso poderia proporcionar certa
audiência receptiva a enredos marcados por eventos pitorescos
ou curiosos. De nossa parte, o que ecoa (e não por acaso) são os
desconfortos de um encontro fortemente provocador. Um desses
momentos capazes de acompanhar o senso reflexivo de quem
se coloca a examinar o sentido histórico das práticas assumidas
por trabalhadoras e trabalhadores; ou, o que aqui (conforme os
propósitos deste livro) adquire contornos ainda mais expressi-
vos, quando se remete às práticas propriamente estabelecidas
na relação firmada entre esses sujeitos. Um terreno exposto a
sondagens capazes de evidenciar tensões e mesmo disjunções.
Isso, inclusive, em relacionamentos carregados por certo grau de
compromissos e/ou afetividades.
Esse suposto foi explorado em vários momentos de nosso
envolvimento com a pesquisa histórica16. Porém, o ajuste dessa
lente de visão foi especificamente operado em uma das teses pro-
duzidas por esses que agora se dedicam a esta produção (SANTOS,
2016). Naquele momento, ao discutir as presenças e imagens de
trabalhadores nas relações mantidas na constituição do Oeste do

16 Além das produções já indicadas, podemos apontar também as seguintes reflexões –


Freitas (2012); Santos (2009a).
48

Paraná, apontou para aspectos de diferenciação mantidos entre


trabalhadores e trabalhadoras, principalmente ao averiguar como se
comportavam diante de condições de classe que lhes eram comuns.
Então, chamava a atenção, entre tantas possíveis dimensões,
para as dinâmicas mantidas no interior de núcleos familiares;
onde, pautando uniões heterossexuais, identificou um campo
saturado de tensão, urdido por expectativas nem sempre com-
pactuadas ou definidas em projeções comuns quando se tinha em
mente os horizontes sociais desejados (SANTOS, 2016).
Assim, interessados em evidências que permitissem nossa

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incursão nesse universo, decidimos, entre o manejo de outros
recursos documentais, produzir entrevistas que viabilizassem
nossa aproximação com essa problemática. Esse procedimento,
apesar dos desafios próprios à constituição de sua linguagem, de
fato, revelou-se muito vantajoso; sendo que, entre outros sujeitos
igualmente expressivos (incluindo os próprios homens envolvidos
nesses enlaces conjugais), deparamo-nos com Salete17.
Desse diálogo resultou uma narrativa que, por muitos moti-
vos, tornou-se extremamente relevante para os propósitos defi-
nidos para aquele contato inicial. Uma estratégia que, apesar de
previamente definida, não invalida o reconhecimento de que,
talvez, sua presença naquela investigação tenha sido um dos
elementos decisivos para que o ponto acima mencionado (parti-
cularmente atinente à identificação da historicidade de mulheres
enquanto sujeito social nas tramas daquele enredo histórico) tenha
efetivamente integrado o conjunto da estrutura argumentativa do
trabalho em questão18.
Contudo, aqui, não iremos retomar a transcrição do diálogo
que redundou no texto documentado daquela entrevista. Dessa

17 Entrevista realizada pelos autores, em janeiro de 2012, no município de Santa Helena-


-PR. A entrevistada recebeu o pseudônimo de Salete para resguardar sua identificação.
Agradecemos o auxílio de Tatiane Karine Matos da Silva, pesquisadora que intermediou
nosso contato com a entrevistada.
18 O contato com Salete compôs o conjunto de fontes para a produção da tese de Doutorado
de Santos, defendida em 2015 e publicada em 2016. Posteriormente, a narrativa oral
produzida e os materiais fornecidos por ela foram objeto de análise em outras incursões
analíticas dos autores, como a que desenvolvemos agora.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 49

aproximação, ocorrida em Santa Helena-PR, no final de janeiro


de 2012, adveio, também, três cadernos que continham anota-
ções, redigidas por Salete, como invocações à proteção e auxílios
rogados a santos e outras entidades divinas, próprias à doutrina
orientadora das novenas católicas, promovidas e alimentadas
por um destacado padre que ganhou projeção ao se comunicar
diariamente por emissoras de rádio, televisão e internet19.
Uma comunicação claramente dirigida (ainda que não exclu-
sivamente) ao público feminino. Essas transmissões encontraram
Salete preparando um de seus almoços que, entre suas atribuições
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rotineiras, realizava por volta dos primeiros meses de 2009. Sem


precisar a data em seus registros, não deixou de marcar aquele
momento inicial de suas anotações com uma referência semântica
e temporal que lhe parecia muito clara, segundo a qual, “tinha um
problema sério aqui em casa”, “eu estava triste” (SALETE, 2009).
Quando abrimos os cadernos, um volume para cada ano,
correspondentes ao período de 2009 a 2011, conseguimos ter
uma ideia melhor do sentido formulado por Salete no enredo
assinalado acima; por sinal, uma energia motivadora de sua cone-
xão com a prática religiosa, a qual declarou ter assumido como
possível síntese de seu propósito de vida. Naquelas páginas, a
mulher que havia deixado de trabalhar como doméstica, ou ainda
se distanciado das atividades de limpeza em estabelecimentos
comerciais e industriais (ora mantidos através de vinculações
eventuais e informais, ora por meio de contratações formais e com
certa estabilidade), afirmava sua dedicação àquelas preces que
focalizavam o carinho e zelo por sua família e alguns conhecidos.

19 Referimo-nos ao Padre Reginaldo Manzotti, Vigário Episcopal da Arquidiocese de Curitiba,


além de clérigo responsável pela Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, também na
cidade de Curitiba-PR. O Padre, fundador e responsável pela Associação Evangelizar é
Preciso, começou a ganhar projeção nacional a partir dos primeiros anos do século XXI,
quando, no bojo da renovação carismática católica, mobilizou meios de comunicação como
rádio, tv e internet para se comunicar com um público cada vez maior. Sobre as atuações
do padre e a indicação de sua atuação como expressão da busca de reestruturação da
comunicação institucional da Igreja Católica, ver: https://www.padrereginaldomanzotti.org.
br; também indicamos como proveitosas as reflexões feitas por Passarini (2014) acerca
de tal inserção.
50

Uma mudança que, apesar de aparentemente pressionada


pelos clamores do marido (conforme ficou sugerido em nossa
conversa), não deixava de entoar aquele ânimo próprio dos pre-
gadores, ávidos e performaticamente convictos da necessidade
de sobrevalorizar suas causas; no caso, a ocupação com as tarefas
domésticas de sua residência e a promoção (e manutenção) de
certa noção de bem-estar familiar.
Ademais, seu marido, um dos tantos pedreiros autônomos
que, no auge dos programas de financiamento habitacional dos
governos petistas daqueles anos20, vivia a expectativa de ascender

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ao nível de construtor, parecia indicar um rompante de ganhos
aparentemente capaz de reconduzir e manter sua esposa nos limi-
tes do próprio ambiente doméstico, afastando-lhe do convívio e
realização de afazeres fora de sua casa. Um sentimento de domí-
nio e controle que, diga-se de passagem, não precisa ser tomado
como fruto da individualidade particular desse trabalhador. Afinal,
podemos dizer que temos nessa prática um valor que, apesar
de só sustentar-se com muitas dificuldades, parece amplamente
propalado, também, entre o conjunto dos trabalhadores21.

20 A menção à política habitacional diz respeito ao Programa “Minha Casa, Minha Vida”
(PMCMV), implementado em 2009, quando essa iniciativa passou a integrar o Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC), estruturalmente alinhavado dois anos antes, em
2007, por iniciativa do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.
A formulação do programa habitacional em questão, em que pese suas muitas variáveis
e progressivas reformulações, instituiu a Caixa Econômica Federal como gestora dos
fundos financiadores que proveriam governos locais, empresas construtoras e mesmo
os beneficiários diretos com as devidas modalidades monetárias que poderiam atuar
na execução de projetos de construção de habitações. Nesse enredo, muitos pedreiros
que se empregavam mediante empreita de serviços, diárias e/ou através de contratos
com médias e grandes construtoras passaram a ter como expectativa a produção e
comercialização das habitações que construíam; onde, apesar de manejarem recursos
limitados, eventualmente conseguiam, graças ao impulso desses possíveis financiamentos,
capitalizarem-se para essas pequenas operações. Esse era o espaço de atuação sondado
pelo marido de Salete. Sobre algumas das análises do escopo estrutural mais amplo do
programa, ver, entre outros Moreira (2017) e Oliveira (2017).
21 Acerca das controvérsias que compõem essa arena de tensão entre os arranjos familia-
res de trabalhadoras e trabalhadores e as possíveis leituras feitas sobre essa questão,
destacamos a dissertação de Giselle Santos (2010). A autora propõe discutir a complexa
gama de relações de poder estabelecidas em “famílias de grupos populares” a partir do
que situou como “Antropologia Feminista” e “perspectiva das relações de gênero”. Ela
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 51

Algo que nos registros feitos por Salete, em uma das tantas
páginas sem datação, escritas no caderno correspondente ao ano
de 2010, parecia razoavelmente assentada na sua leitura dessa
relação de poder; onde, aquele inquietante sentimento de tristeza
e insatisfação, provocador de seu envolvimento com essa que
era uma de suas novas ocupações, se não ficou definitivamente
para trás, ao menos já alternava momentos dignos de agrade-
cimento. Pelo menos, foi essa a sensação que tivemos ao ler a
prece formulada por ela em ocasião do “1º dia da novena dos
Arcanjos (Miguel, Gabriel e Rafael)”. Nela, deparamo-nos com
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o seguinte registro,

Pai misericordioso e de infinita bondade, quero começar


agradecendo pelas graças já alcançadas, pelo meu marido
que está se controlando no álcool e fumo, o Fernando [filho
mais novo, que mora com o casal] que não está tomando
remédio e não está tendo crise de asma. Muito obrigado Pai,
o Senhor é muito misericordioso, amém; pela Franciele [filha
mais velha, já casada e que não mora com o casal] a graça da
cura do mioma, espero apenas o exame para tirar as dúvidas
dos seus filhos que estarão no culto ou missa onde eu darei o
meu testemunho de fé. Pai, já falei com a ministra da igreja,
quando eu tiver o exame na mão darei o meu testemunho e
tenho certeza de que o Senhor me colocará palavras corretas
na minha boca. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso filho,
amém (SALETE, 2010).

A súplica acima está articulada e imiscuída a fragmentos de


provérbios e versículos bíblicos, além de ser dirigida a dogmas

destaca que perante o desemprego masculino e limitada contribuição com a renda familiar
“há [o] enfraquecimento do papel de provedor do homem”; ainda assim, ressalta como
esses homens “se apresentam como ‘homens ativos’, que estão sempre em probabili-
dade de conseguir rendimentos” e, portanto, muitos deles declaram que, mesmo nessas
circunstâncias, disputam as relações de poder familiares e “ainda cantam de galo”. Com
isso, insinua em sua análise o campo de tensão explícito no convívio familiar, pois ainda
que reconheçam certa vulnerabilidade de suas condições nessas relações de poder é
possível que muitos desses homens intensifiquem certas práticas de domínio procurando
sobrepor essa ação à falta de controle e contribuição com as finanças e o que essa
condição significa no conjunto das relações estabelecidas em casa.
52

polissêmicos, ora enquadrados nas rezas de doutrina católica,


ora na vocalização menos formalista das orações que, apesar de
compartilharem a fé cristã, talvez sejam protestantes ou neopente-
costais. O que, por todo esse ecletismo, não fica muito claro! Mas,
o que parece evidente é que todo esse repertório, aparentemente
ecumênico, está mobilizado para tratar e abordar aspectos que
envolvem o modo de vida de quem o manuseia.
Por não subestimarmos o apelo dogmático dessas distintivas
matizações religiosas, reconhecemos que a elaboração empreen-
dida por Salete dispõe de um vocabulário que diz do contato

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público que mantém com essas denominações e seus agentes;
mas, fundamentalmente, acreditamos que essa prática apresenta
e ordena uma visão sobre problemáticas e expectativas sociais
que aponta para sentidos que lhes são próprios.
Desse modo, o arranjo engendrado no documento além de
indicar essas efetivas ambivalências, tenta harmonizar e acomodar
mesmo aqueles pontos que, por sua recorrência, acabam sendo
situados (pela própria autora) em um estado de indefinição; insi-
nuando-os como pautas frequentemente controvertidas – resultado
que são de um latente e imprevisível processo de tensão. Nele, a
moderação dos incômodos provocados pelo marido, com desta-
que para o consumo de bebidas e cigarros, merecia “graças”, não
por ter sido afastado do seu horizonte de descontentamento e/ou
preocupação, mas porque o esposo estaria circunstancialmente
“se controlando” – o que deixava o desfecho dos dias seguintes
em aberto, sujeito a reviravoltas que permaneciam como uma
possibilidade iminente.
Mesmo no que se refere à positivação do estado de saúde
dos filhos, os agradecimentos quanto às curas alcançadas pare-
cem rodeadas de incertezas e desconfianças. Não sendo forçoso
apontar que, antes de ver atestado o mérito das conquistas que jus-
tificavam tais “graças”, elas deveriam ser expostas a certas con-
dicionalidades: passíveis tanto de um tempo maior de observação
para que fossem confirmadas (no caso da interrupção das crises de
asma sofridas pelo filho), quanto do apropriado estatuto de com-
provação, confirmado mediante exames médicos e conferências
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 53

submetidas ao crivo das autoridades religiosas, fossem elas res-


ponsáveis pelo “culto ou missa” (em relação ao pretenso milagre
que teria livrado a filha da angustiante doença uterina).
Isso, sem ignorar o fato de que todas essas preconizações
familiares supunham o reconhecimento de que seus esforços e
expectativas espelhavam a própria vontade do “Pai misericor-
dioso”, que (em sua “infinita bondade”) a agraciaria, não por
alguma ambição ou moralidade particular, mas sim em nome da
família. Essa espécie de unidade consagrada “por nosso Senhor
Jesus Cristo, vosso filho, amém”. Porém, ao que nos parece,
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apesar das pretensões lançadas por Salete, ao mobilizar uma lin-


guagem que atribuía à sua conduta o resultado da manifestação
de desígnios externos (normativas exógenas ao seu interesse),
apontava, de forma propositiva, justamente o efeito inverso, qual
seja, atraía para si o amparo e a legitimidade de uma autoridade
que esperava ser incontestável, onde seus interesses fossem toma-
dos como “testemunho de fé”, pois a comunicação dos eventos e
desejos professados por ela seriam palavras “colocadas” em sua
boca pela imagem masculina de maior autoridade que reconhecia
(e/ou que pregava fervorosamente que assim fosse concebida).
Parafraseando a clássica consideração proposta por Ginz-
burg (formulada no exercício do seu instigante “experimento em
micro-história”, porventura do escrutínio da “vida cheia de cores
de Jean-Pierre Purry”, quando buscou problematizar os termos
do conhecimento histórico predominantes sobre a modernidade),
talvez pudéssemos sugerir que “a Bíblia lhe dava as palavras,
os argumentos, as histórias; projetava palavras, experiências e
eventos sobre a Bíblia” (GINZBURG, 2007, p. 92). Contudo,
diferentemente do projeto que sustentou e decorreu da pesquisa
mencionada no trabalho de Ginzburg, a questão que nos propo-
mos investigar neste texto não é se “pode um caso individual, se
explorado em profundidade, ser teoricamente relevante” (GINZ-
BURG, 2007, p. 95). A isso, esse e outros trabalhos do autor
parecem ter oferecido indicações bastante expressivas22; sobre

22 Como proposição mais conhecida e emblemática desse procedimento, ver Ginzburg (2006).
54

as quais reputamos um importante conjunto de provocações à


prática historiográfica23.
A título de argumentação, cabe apontar que a diferenciação
sustentada não ignora a possibilidade de empreendermos uma
investigação sobre Salete que, guardadas as peculiaridades de
nossa contemporaneidade, pudesse ser similar ao projeto sus-
tentado por Ginzburg. Porém, ainda que compartilhemos com o
historiador italiano o claro propósito de construir uma reflexão
teoricamente relevante, animando-nos com a ênfase que atribui
à meticulosa disposição pela investigação de materiais a serem

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empregados enquanto fontes históricas, confessamos que nosso
interesse privilegia a associação de evidências que indiquem lin-
guagens, temporalidades e autorias diferenciadas; enfatizando
fragmentos variados, capazes de nos oferecer a aproximação
qualitativa da experiência histórica, perseguida também por
Ginzburg; no entanto, identificada por nós nas práticas de sujei-
tos diferenciados, enredados em movimentações e, portanto, em
posições sociais distintas e/ou desiguais24.
Essa propulsão geral, dentre tantas implicações, provo-
ca-nos a localizar e narrar as presenças e imagens construídas
por ou atribuídas a trabalhadoras enquanto experiências sociais
imbricadas na constituição do Oeste do Paraná. Por sinal, uma
questão nada estranha ao universo do debate historiográfico, pois
mesmo aqueles projetos integrados a quadros declaradamente
mais amplos do que o delimitado neste texto, com pretensões
confessadamente mais elásticas, por exemplo, aquelas intenções
vinculadas à indistinção e/ou heterogeneidade abarcada pelo vasto
campo da História das Mulheres, apontaram a problemática das
evidências como uma adversidade a ser confrontada.
Reconhecida como uma referência na formulação dessa
observação, Michelle Perrot é recorrentemente citada por parte

23 Para além da posição sustentada por Ginzburg, Negro (1997) ofereceu uma instigante
visão sobre o caráter indiciário dos fragmentos investigados nos diferentes projetos his-
toriográficos emergidos da micro-história italiana e sua relação com uma história social
renovada, menos apegada a elementos seriais ou quantitativos.
24 Sobre essa pretensão teórica e metodológica, ver, além dos textos já indicados, Freitas
e Santos (2021a, 2021b).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 55

expressiva da historiografia brasileira que tomou para si a prática


dessa profusa e abrangente proposta historiográfica25. Nessa pro-
dução, tornou-se comum salientar esse obstáculo como um dos
impasses mais desafiadores. Segundo as anotações da historiadora
francesa, que se ocupou da investigação da experiência de mulhe-
res das classes populares na França do século XIX, para além da
predominância de uma narrativa histórica que “reserva-lhes pouco
espaço, justamente na medida em que privilegia a cena pública – a
política, a guerra – onde elas pouco aparecem” (PERROT, 1989,
p. 9), a situação só se complicaria na medida em que
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[...] [a] ausência no nível da narrativa se amplia pela carên-


cia de pistas no domínio das ‘fontes’ com as quais se nutre
o historiador, devido à deficiência dos registros primários
[...] os escriturários da história – administradores, policiais,
juízes ou padres, contadores da ordem pública – deixam bem
poucos registros que digam respeito às mulheres, categoria
indistinta, destinada ao silêncio. Quando eles o fazem nas
ocasiões em que notam a presença de mulheres em uma
manifestação ou reunião, recorrem aos estereótipos mais
batidos: mulheres vociferantes, megeras a partir do momento
em que abrem a boca, histéricas do momento em que gesti-
culam. A visão que se tem das mulheres funciona como um
indicador: elas são consideradas raramente por si mesmas,
mas com frequência como sintoma de febre ou de abatimento
(PERROT, 1989, p. 9-10).

A autora, explicitando o entendimento de que atentar para


a presença das mulheres na história seria mais do que enxertar
eventuais ausências em uma estrutura narrativa já estabelecida,
deixava claro as pretensões de colocar em discussão aspectos
que envolviam o próprio olhar historiográfico, acentuando que os
“procedimentos de registro, dos quais a história é tributária, são
fruto de uma seleção que privilegia o público”, tido como “único
domínio direto da intervenção do poder e campo dos verdadeiros

25 Entre tantas obras e inserções analíticas que indicam a presença literal ou implícita de
sua inspiração, ver: Pedro (2003), Costa e Soihet (2008).
56

valores” (PERROT, 1989, p. 10). Michelle Perrot, polemizando


com os traços mais contundentes dessa concepção, ergueu res-
salvas bastante incisivas àquelas documentações provenientes
de “arquivos públicos”, incluindo aí “os arquivos criminais”.
Isso justificaria sua enfática exortação ao potencial reflexivo de
evidências como as depreendidas da relação que mantivemos
com Salete, seja por meio das prestigiadas entrevistas orais, seja
através daqueles materiais extraídos do diversificado acervo que
compõe os “arquivos privados”, capazes, segundo as ponderações
da historiadora, de oferecer a evidenciação das ações e visões de

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mulheres consideradas a partir de “si mesmas”.
Contudo, apesar da clara influência de observações como as
propostas por Perrot, que resultaram em um importante estímulo a
ousadas experimentações no emprego documental, a peculiaridade
da historiografia brasileira, para além do especializado universo
da história das mulheres, expõe um farto conjunto de práticas
teórico-metodológicas que escavaram materiais pouco manejados,
ao mesmo tempo em que revisitavam (e ainda hoje revisitamos)
documentações denunciadas como (potencialmente) subestimadas.
Para pontuarmos um marco usualmente assinalado dessa infle-
xão, podemos indicar, a referência ressaltada na posição de Wadi
(1997); onde, abordando a “problemática das fontes” nas “Histó-
rias de mulheres”, sugeriu uma síntese dessas discussões a partir
do que notou como “dificuldades” e “alternativas” expressas no
trabalho de “pesquisadores que se voltam ao resgate das mulheres
como personagens históricos” (WADI, 1997, p. 47).
No final da década de 1990, a historiadora retomava as posi-
ções de Dias, formuladas ainda na primeira metade da década de
1980, para enfatizar que:

[...] se na maior parte dos ‘arquivos públicos, olhares de


homens sobre homens’, calam quantitativamente as mulheres,
o olhar perscrutador, curioso e consciente de pesquisadores faz
emergir qualitativamente sua presença (DIAS, 1984, p. 50).

Wadi, que referenciava essa posição, sem deixar de reconhe-


cer o potencial de materiais que poderiam vir da “margem” (que
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 57

permitiriam “reconstruir uma história invertida”), saudava como


paradigmática a autora de Quotidiano e poder em São Paulo no
século XX (DIAS, 1984). Segundo sua avaliação, esse livro “é um
bom exemplo de como reconstruir histórias de mulheres recor-
rendo às fontes tradicionais, de como reconstruir uma história
das ‘margens’ com a utilização de fontes emanadas do ‘centro’”
(WADI, 1997, p. 51).
Entre o rol dessas “fontes tradicionais”, insinuadas por Wadi,
talvez uma das documentações mais exploradas foram os regis-
tros provenientes da burocracia judicial, destinados ao trâmite da
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administração da Justiça (estabelecendo-se, portanto, em um usual


ponto de confluência de distintas operações no campo da historio-
grafia brasileira)26. Aqui, em que pese as emergentes iniciativas
autoproclamadas ou saudadas como interpeladoras e originais
(portadora do festejado “olhar perscrutador, curioso e consciente
de pesquisadores”), não podemos ignorar aqueles resilientes pro-
jetos, ou seus relutantes traços de residualidades, que figuraram (e,
porventura, ainda figuram) no bojo do que “emerge como novo”.
Esse senso de desconfiança, atem-se fundamentalmente
a dois pontos em particular: primeiro, a conservação (mais ou
menos proclamada) do teor transparente e factual da clássica
visão positivista das fontes documentais; segundo, a insistên-
cia (mais ou menos aguerrida) na manutenção de uma estrutura
genealógica definida por uma narrativa pouco (ou nada) afetada
pela alteração dos procedimentos investigativos e suas efetivas
descobertas – essas, invariavelmente interditadas por delinea-
mentos historiográficos prefixados no jargão das designações de
contextos, conjunturas e épocas (as quais, não por acaso, podem
ser tão porosas quanto uma placa de titânio!).
Porém, não nos ocuparemos, não neste texto, dessas acusa-
ções quanto às imposturas ou presunções, o que, por certo, não
é recomendável que seja feita nesse nível de generalidade. Por
ora, contentamo-nos em seguir nossas considerações admitindo

26 Tendo em vista o profuso e diversificado espectro dessas produções, ver, entre outros:
Barroso (2011); Bessa (1994); Corrêa (1983); Duarte (2000); Esteves (1989); Ribeiro
(1997); Santos (2009b).
58

que foram muitos os esforços empreendidos em favor do que,


como vimos, Wadi (1997) pontuou como “resgate das mulheres
como personagens históricos”.
A própria autora, interessada na discussão dos chamados
“crimes da paixão”, destacou a mesma territorialidade investigada
neste trabalho, aonde se voltou para “os homicídios tentados ou
consumados entre parceiros afetivos e/ou sexuais, registrados na
jurisdição da Comarca de Toledo-PR entre os anos 1954 e 1979”
(WADI; RAMÃO, 2006, p. 301). Wadi, em coautoria com Ramão,
assinalou que a “a análise visa a contribuir para a construção de

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uma nova história regional”, disposta a descortinar “experiências
relegadas ao ostracismo por uma historiografia regional ainda
cega às relações de gênero como constituintes de relações de
poder que constroem o social” (WADI; RAMÃO, 2006, p. 303).
Uma disposição historiográfica mobilizada pela expectativa em
indicar “o movimento de uma trama histórica que converte dife-
renças de gênero em desigualdades no âmbito do Judiciário em
certo tempo e lugar” (WADI; RAMÃO, 2006, p. 301). Para além
desse premente senso político (que compõe, ao mesmo tempo que
extrapola, as usuais disputas no interior da disciplina historio-
gráfica), parece evidente que essa energia, antes de uma posição
vanguardista, expressa muito mais a diversificação e expansão de
forças que ganham lastro também na historiografia sobre o Oeste
do Paraná; até porque o fato de se voltar para essa problemática
nos últimos anos do século XX não era propriamente uma prática
nova – isso, mesmo nesse ponto extremo do território nacional.
Ao matizar um pouco mais essa ponderação, podemos notar
que trabalhos produzidos ainda nos primeiros anos da década de
1990, construídos como prática de aprendizado por estudantes
que concluíam o Curso de História, da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, apresentavam suas primeiras reflexões sobre o
problema, intervindo (conforme conseguiam ou julgavam perti-
nente) na abordagem dessa temática. Entre essas inserções, pode-
mos destacar Lunkes (1994) que, recortando a relação entre honra
e masculinidade, analisou tal eixo a partir de processos judiciais
em Marechal Cândido Rondon (registrados entre 1989 e 1992),
argumentando que:
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 59

[...] por um lado nos interessou nesta pesquisa reconstituir


a noção de honra e mostrar de que forma ela dá sentido às
representações sociais masculinas. Por outro lado, a honra,
enquanto elemento constituinte da masculinidade define
e depende das representações sociais do gênero feminino
(LUNKES, 1994, p. 3).

Uma aproximação com a problemática que supunha, no


entanto, a estruturação da abordagem nos termos somáticos obje-
tados acima, afeito à composição do paralelismo narrativo, onde
o “novo veio”, portador de pautas variantes, é acomodado em um
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arranjo capaz de preservar intacto o cerne canonizado da história


oficiosa. Conforme o resultado daquela formação acadêmica era
possível, entre outras coisas, formular o primeiro (dos quatro
capítulos) para descrever “um pequeno histórico da colonização
de Marechal Cândido Rondon e o seu atual quadro socioeconô-
mico”; enquanto no terceiro e quarto capítulo, “analisamos os
casos de agressão contra mulheres no município com base em
nossas pesquisas no fórum local” (LUNKES, 1994, p. 4).
Essa elaboração, que dá como certa (e razoavelmente tran-
quila) a divisão entre uma história já definida e demais aspectos
que podem ser posteriormente agregados a ela, sem que isso
necessariamente implique reconsiderações sobre a narrativa cen-
tral, no caso o processo de colonização e constituição da “região
Oeste”, não estava desconectada dos procedimentos analíticos
incentivados na prática de estudantes e professores que frequen-
tavam ou compunham esse espaço de formação acadêmica. Antes,
era uma conduta recorrente entre muitos que assumiam preocupa-
ções em favor da história das mulheres. Uma ponderação que, por
certo, não é igual a dizer que não houvesse um ambiente aberto a
críticas sobre o conhecimento histórico produzido nesses moldes.
Isso, talvez, possa ser efetivamente evidenciado a partir da
exposição de remedos que hoje nos parecem desconcertantes. Tal
como o proposto por Rosa (2000), que, logo no início de século
XXI, “revendo os espaços e atividades femininas através de rela-
tos de mulheres migrantes no período da colonização de Marechal
Cândido Rondon (1940-1960)”, chegou a estruturar sua reflexão
60

com dois capítulos pouco congruentes. Sendo, um capítulo para


“apresentarmos uma história tradicional”, “com alguns elementos
que compõem a história do Município” (ROSA, 2000, p. 6),

[...] contextualizando a formação histórica de Marechal


Cândido Rondon, mostrando que, a partir de 1946, a atua-
ção da Empresa Colonizadora Madeireira Rio Paraná S.A
– MARIPÁ, foi de fundamental importância para a ocu-
pação da região Oeste paranaense, através de um plano de
colonização composto por uma série de regras definidas por
seus dirigentes. Analisaremos também algumas dificuldades

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iniciais encontradas pelos migrantes e os meios utilizados
para sanar algumas dessas dificuldades (ROSA, 2000, p. 7).

Enquanto, em outro capítulo,

[...] analisamos a participação da mulher na colonização


do Município de Marechal Cândido Rondon, objetivando
enfocar uma história, a qual permite inserir novos sujeitos,
vinculados ao processo de colonização, dando vozes aos
migrantes que participaram desse processo de colonização,
entretanto [...] busca-se quebrar aquelas imagens e ideias
vinculadas somente a companhia colonizadora, enfocada
pela história oficial (ROSA, 2000, p. 7).

Diante dessas formulações, não estamos sugerindo que,


mesmo no interior da instituição em questão, não houvesse pro-
fissionais mais experientes dispostos a apresentarem severas
objeções a esse tipo de arranjo. Antes, a partir dessa exposição,
indicamos que essa foi uma prática sistematicamente possível,
algo que não nos atrevemos a dizer que tenha cessado, ainda que
os procedimentos proclamados sejam, fundamentalmente, con-
trários a essas elaborações. Tal como eram, diga-se de passagem,
os postulados defendidos por Rosa, que apesar das formulações
apontadas acima, professava a clara convicção de que

A história das mulheres não pode ser construída à margem da


história oficial, e sim sob forma de diálogo/confronto com ela.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 61

[...] o estudo das práticas cotidianas das mulheres migrantes –


tais como as dificuldades enfrentadas nas frentes de expansão
agrícola e a colaboração e a divisão dos papéis nas atividades
relacionadas à colonização – busca quebrar aquelas imagens
e ideias vinculadas a uma noção feminista, em muitos casos,
idealizada (ROSA, 2000, p. 27 – grifos nossos).

Especificadas essas considerações, podemos retomar aquele


ponto indicado por Wadi e Ramão (2006, p. 303), sobre o registro
de “experiências relegadas ao ostracismo por uma historiografia
regional ainda cega às relações de gênero como constituintes de
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relações de poder que constroem o social”. Segundo nosso modo


de ver, se há séculos ou décadas atrás a questão da visibilidade
histórica das mulheres foi um ponto fundamental (quase exclu-
sivo), faz ao menos três ou quatro décadas que se acresceu a essa
legítima preocupação, por sinal um acréscimo que provém de
sua decorrência, a reflexão sobre o como narrar essas histórias27.
Como certamente notou a própria Wadi, tendo em vista a
leitura e o apreço que atribui aos posicionamentos de Dias (que se
constituiu em um importante impulso a determinadas iniciativas
historiográficas, apresentando-se como uma destacada voz a favor
de investigações históricas comprometidas com o que denominou
“hermenêutica do cotidiano”), o problema que permanece é o de
como proceder para, “na medida do possível”,

[...] desconstruir discursos normativos do passado, de modo


a abrir caminhos novos no mapa dos nossos conhecimentos;
ao revisitarmos a historiografia institucionalizada, procu-
rando incorporar nela os resultados de pesquisas pontuais
das relações sociais do cotidiano, estaremos desvendando
novos horizontes e pontos de vista globais abertos para novos
modos de ver e de apreender experiências vividas no tempo
(DIAS, 1998, p. 238).

27 Sobre os distintos caminhos firmados nos embates e possibilidades abertas nesse contro-
vertido debate, para além das citações já indicadas nesta reflexão, ver também: Caldwell
(2000); Coelho (2009); Pedro (2005); Rago (2000; 2007; 2008); Scott (1994; 1998; 2005);
Tilly (1994); Wolff (2008).
62

Abordando as “possibilidades de apreensão das experiências


vividas”, Dias, portanto, chamava a atenção para ao “documentar a
inserção dos sujeitos históricos no conjunto das relações de poder”,
ponto de partida (central) em sua reflexão, abre-se a oportunidade de

[...] historicizar estereótipos e desmistificá-los, pois através


do esmiuçar das mediações sociais, podemos trabalhar a
inserção de sujeitos históricos concretos, homens ou mulhe-
res, no contexto mais amplo da sociedade em que viveram.

Uma posição acadêmica capaz de suscitar, “dentro da mar-

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gem de conhecimento possível, a reconstituição da experiência
vivida, em contraposição à reiteração de papéis normativos”
(DIAS, 1998, p. 232).
Nesse ponto, a despeito de certas disjunções (que para esses
propósitos se revelam de menor importância), reafirmamos os
nexos que ligam os termos da digressão operada com as ques-
tões que nos defrontamos e propomos hoje – início da terceira
década do século XXI. Insistimos, como fustigado há mais de três
décadas por Dias, em nos distanciar das áreas hermeticamente
especializadas, advindas das variações firmadas na História das
Mulheres e/ou Gênero, tanto quanto do lugar atribuído à ideia
de História Regional, que, ao fim e ao cabo, parecem-nos, ainda
que por motivações distintas, igualmente restritivas, quando não
abertamente hierarquizantes. Assim, sem nenhuma pretensão de
censura, podemos retornar ao ponto sobre o qual lançamos nosso
olhar, a historicidade das experiências de trabalhadoras na cons-
tituição do Oeste do Paraná.
O que insistiremos em fazer sem ignorar um ponto de contro-
vérsia marcadamente presente entre os que, como nós, sentem-se
desconfortáveis com a mera operacionalização do caminho profis-
sionalmente mais seguro, que usualmente se restringe à assunção
pouco questionadora do que, nos termos de Chalhoub (por oca-
sião de sua investigação sobre as visões de liberdade nas últimas
décadas de escravidão na Corte), poderíamos chamar, em suas
mais distintas segmentações, o “caldo de cultura historiográfica
disponível” (CHALHOUB, 1990, p. 19). Afinal, estamos certos de
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 63

que para além da disposição em assumir essa preocupação com o


constante exercício investigativo e reflexivo (mantendo vigilante o
senso de problematização dirigido àquelas marcações e factualida-
des, expressas quase como dogmas nas narrativas firmadas como
canônicas), as variações alternativas oferecidas, também elas, não
escapam ao acidentado e legítimo terreno das controvérsias.
Talvez um dos focos de maior desacordo pode ser localizado,
como já insinuamos acima, justamente nos sentidos empregados
quando da reconexão entre os “novos horizontes desvendados” e
os “pontos de vistas mais globais” (usualmente associados à ideia
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de “contexto mais amplo da sociedade”). Quando direcionamos


esse empasse a um ponto recorrente na constituição do campo
especializado da história das mulheres, retornamos, por exemplo,
à emblemática posição assumida por Varikas, que argumenta ter

[...] a impressão de que o potencial da história das mulheres e


da problemática do gênero reside menos nas suas possibilida-
des de encontrar uma “pátria” que na sua possibilidade de se
imiscuir... subrepticiamente nas mais intransponíveis fortalezas
da História (e de outras disciplinas), para desestabilizar suas
certezas. Trabalhando na “diáspora”, os(as) historiadores(as)
feministas terão talvez mais liberdade para efetuar este trabalho
lento, mas indispensável, que consiste em responder às “gran-
des questões da história”, reformulando-as ao mesmo tempo
à luz da problemática do gênero (VARIKAS, 1994, p. 84).

A repactuação de abordagens que se constituíram a par-


tir e em função de características originalmente contestatórias
ao quadro programático das “grandes questões da história”, tal
como a perspectiva reconciliatória acima sugere, onde as pri-
meiras posições tiveram na prevalência da segunda a conta de
uma força com a qual se devia antagonizar, parece um desses
momentos que colocam em questão a complicada rearticulação
entre as inquietações provenientes de omissões e marginalizações
(agora reapresentadas) com aqueles arranjos que omitiram e mar-
ginalizaram os que o denunciam como causador de processos de
opressão – no caso, caracterizado como práticas sistematicamente
64

voltadas à produção de silenciamentos e interdições. Isso nos leva


a ponderar sobre as possíveis e/ou desejáveis harmonizações (a
serem) empreendidas, tanto quanto os procedimentos em favor
delas efetivamente manejados28.
Algo que, segundo nosso envolvimento com a questão, pode
ser exposto ao apontarmos o manuseio que mantivemos com os
milhares de processos cíveis depositados no Núcleo de Documen-
tação, Informação e Pesquisa, da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná – situado no Campus de Toledo. Para essa discussão,
definimos, dentre o conjunto desse vasto acervo, pela utiliza-

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ção de um único exemplar (tal como fizemos com o fragmento
pontualmente selecionado do conjunto de novenas escritas por
Salete). De uma conduta assim, sempre resta o desafio de expor
os sentidos de sua operação que, muito provavelmente, pode ser
notada apressadamente como resultado de uma conduta aleató-
ria. Principalmente, quando temos em mente que um conjunto
importante daquelas investigações, que buscam se afastar do já
indicado procedimento de agregação de (novos) sujeitos e eventos
aos enredos canonizados, abordam alternativamente a sistemática
de produção das fontes como práticas sociais focalizadas pela
pesquisa; empenhando-se, muitas vezes, em enredos que buscam
privilegiar o esquadrinhamento de corpus documentais como
sendo esse o próprio objetivo das pesquisas históricas propostas29.

28 Entre outros, Costa (1998), Dias (1984), Hall (2013), Hill (1995), Perrot (1989), Scott (1998),
Soihet (1998), Sorj e Goldenberg (1998), Thompson (1993) e Tilly (1994) permitem que
sejam delineados os pontos estruturantes de um arco de problemáticas que envolvem
valências de um repertório reflexivo que incluíram e articularam certos supostos teórico-
-metodológicos, espaços de atuações profissionais e posições políticas, que se tornaram
pautas recorrentes no debate que, apesar de exponencialmente ampliado e robustecido,
ainda se mantêm claramente ativo e em disputa. Nele, as autoras extrapolaram os intrica-
dos embates pelo reconhecimento do mérito acadêmico, expressando, com suas atuações,
os nexos de uma historicidade que expôs os veios da presença feminina nos lugares
sociais que postulavam. Por esse entendimento, em que pese a avaliação que fazemos de
suas produções, entendemos que a leitura de suas obras, tomadas como indícios de suas
trajetórias, apontam para aspectos expressivos do problema historiográfico em análise.
29 Para além de parte expressiva do universo de referências já mencionadas neste texto, que
têm nas notas de pé de página anteriores um bom índice de consulta sobre encaminha-
mentos dessa natureza, podemos indicar, ainda, como expressão desse procedimento, o
apreço que Atayde (2007) acabou demonstrando pela própria história da documentação
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 65

Tal como parece ter sido a opção assumida por Wadi e Ramão
(2006), que, apesar de se desvencilharem das marcações da “histó-
ria da colonização do Oeste do Paraná” (atendo-se, antes, a esfor-
ços que passaram, de forma importante, a penetrar a evidenciação
de histórias na constituição do Oeste paranaense), dirigiram suas
atenções para “o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal
Brasileiro nos referidos crimes [da paixão], que configuram vio-
lências de gênero”; onde, empenharam-se na compreensão de

[...] como se dá sua apropriação e processamento pelo sis-


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tema de justiça e como são mobilizados e/ou manipulados


pelos diferentes sujeitos envolvidos em um processo judicial,
os papéis e os atributos socioculturais que definem homens
e mulheres (WADI; RAMÃO, 2006, p. 301-302).

Aqui, seletividades à parte, emerge uma história definida


pelo acervo documental, o qual fornece o repertório investiga-
tivo e analítico que delimita não apenas o delito criminal e o
seu quantitativo, mas também estabelece a territorialidade e a
temporalidade, que não por acaso são os mesmos marcos do
acervo consultado, qual seja, processos “registrados na jurisdição
da Comarca de Toledo-PR entre os anos 1954 e 1979” (WADI;
RAMÃO, 2006, p. 301). Esse enquadramento cumpre a coe-
rente função de romper com aqueles enredos mais devotados
aos dogmas preconizados pela história regional criticada pelas
autoras. No entanto, parecem não se preocupar com as descon-
fianças erigidas em torno de uma história das mulheres que não
contemplaria a suposta reaproximação com as “grandes questões
da história”. Mantendo-se, para esses efeitos, paradigmaticamente
especializada – ou, como preferem seus detratores mais impetuo-
sos, simplesmente acessória (fadada àquela espécie de relevância
atribuída aos apêndices).

que abordou; quando chegou ao ponto de dar a entender que suas escolhas teriam se
tornado reféns do material que manejou em sua história sobre “Mulheres infanticidas” e “o
crime de infanticídio na cidade de Fortaleza na primeira metade do século XX”; onde, não
por acaso, parece claramente ter depreendido de suas fontes, quase de modo heurístico,
tanto as delimitações temáticas quanto temporais.
66

De nossa parte, podemos passar à apresentação daquele soli-


tário auto processual que mencionamos logo acima, um ajuntado
de aproximadamente uma dúzia de papéis, retirados das centenas
de caixas que ainda aguardam catalogação e, portanto, demandam
sua sistematização por parte daquele Núcleo de Documentação.
Em meio a um amontoado de folhas, por vezes literalmente desor-
denadas (ou simplesmente ausentes), centramos nosso interesse
(conforme os propósitos deste texto) no processo nº. 24/60, aberto
pela Vara Cível da Comarca de Toledo, em 17 de fevereiro de 1960.
Assim, ainda que os modos de seu armazenamento esti-

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vessem inadequados, esse material encontra-se disponível para
pesquisa e, portanto, sujeito à (nossa) verificação, permitindo
evidenciar que apesar da ausência de um cuidado com o acervo
a partir do que julgamos apropriado aos interesses de salvaguarda
histórica dessa documentação, isso certamente não apaga, ou
impossibilita, a identificação dos sentidos que caracterizam sua
existência enquanto prática social outrora estabelecida. Um con-
junto de ações que, por sua vez, certamente não ressente dessa
omissão, pois os eventos em questão se atinham aos termos de
uma das tantas atuações ordinariamente destinadas ao proces-
samento burocrático da administração institucional da Justiça.
Sem receio de abandonarmos o suspense, antecipamos que
aquela averiguação de legalidade, demandada pela queixa ofere-
cida (por ocasião da abertura do processo), não prosperou. O seu
arquivamento foi determinado pelo Juiz da causa, por considerar
a ação carente de procedência. Uma posição decretada em menos
de dois meses do início dos trâmites legais que formalizaram seu
exame jurídico.
A celeridade de conclusão do processo em questão poderia
ser tomada, em si, como expressão de mais uma daquelas tantas
evidências apontadas por Wadi e Ramão (2006) quando indica-
ram “o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro”
como o encadeamento de atuações “que configuram violências de
gênero”, essas materializadas “pelos diferentes sujeitos envolvidos
em um processo judicial”, que eventualmente podem passar de pro-
positores e/ou endossadores a legalizadores de “papéis e atributos
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 67

socioculturais que definem homens e mulheres”. Uma avaliação


capaz de oferecer a visão de um processo proclamador de assime-
trias, firmadas na ordenação do binarismo caracterizador desses
“papéis”, onde as imagens depreendidas dessa dinâmica foram
fartamente exploradas, além de perspicazmente urdidas, nos mais
diversos e distintos espectros da tradição historiográfica brasileira30.
Mas, retomando a historicidade do veredicto materializado
na fonte aqui indicada, notamos que apesar da decorosa argu-
mentação de seu julgador, este acabou por expor o “admirável
zelo” de um 1º Tenente, que ocupava temporariamente a função
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de Delegado de polícia na cidade de Guaíra, no extremo Oeste


do Paraná, área fronteiriça com o Paraguai. O vigilante ativismo
daquele agente da força policial havia ativado a rede de atuação
judiciária através de uma “informação”, assinalada como “ex-of-
fício”, ou seja, que comunicava à autoridade judicial algo que
supunha ser uma observância inerente às funções esperadas de
alguém que ocupava o cargo a ele atribuído. Então, da posição
de quem justificava sua conduta como resultado da mais estrita
operacionalidade da posição legal que sobre ele recaía, comuni-
cou ao Meritíssimo Dr. Juiz que:

O Sr. Aécio, funcionário do S. N. B. P. [Serviço de Nave-


gação da Bacia do Prata], vive maritalmente com a mulher
Regina de Tal. Em companhia de ambos vive a menor Aline,
de 7 para 8 anos de idade. Acontece que Regina é dada
ao vício de embriagues[sic] e comumente têm rixas que na
maioria vão às vias de fato. Por várias vezes fui procurado
pelo Sr. Aécio para tomar providências contra Regina, por
se achar embriagada, destruindo todos os pertences e mal-
tratando a menor. Hoje o Sr. Aécio compareceu nessa D. P.

30 Tem destaque aqui, os inspiradores trabalhos de Corrêa (1983) e Esteves (1989), que
desde suas produções, ainda na década de 1980, vêm sendo recorrentemente citados
pelos mais diversos pesquisadores interessados na problemática das relações de poder
vividas pelas mulheres na sociedade brasileira. Para além de suas sínteses interpretativas,
postas ao exame dos mais variados crivos analíticos, sobressai o evidente fôlego investi-
gativo, talvez um referencial de qualidade assumido por iniciativas que se tornavam cada
vez mais presentes no expansivo universo acadêmico dos emergentes e/ou consolidados
Programas de Pós-Graduação em História nas Universidades Públicas Brasileiras.
68

registrando queixa contra Regina por embriaguez e opressão


contra sua pessoa.
Como está provado o mau trato que a mãe dispensa à menor,
e o mau exemplo, e como o Sr. Juiz de Paz não se acha
nesta localidade, solicito de V. Excia. as necessárias ordens
no sentido de que a referida menor seja encaminhada por
esta D. P. a essa autoridade judiciária, afim[sic] de que
possa tomar melhor orientação e se prive de presenciar atos
inqualificáveis praticados lamentavelmente por sua mãe
(PARANÁ, 1960)31.

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Aqui, mesmo diante das formalidades reivindicadas pelo
delegado, ele parece transparecer que toda essa prestatividade
está informada em uma veemência e energia que excede o campo
da mera observância da legalidade; o que (diga-se de passagem),
apesar da volúpia denunciante de quem deixa a posição de inves-
tigar minuciosamente a incursão penal e passa à posição de jul-
gador (dado às incisivas ofertas de conclusões comprobatórias),
ainda assim, poderia requerer em favor de sua conduta o devido
e justificável amparo administrativo. Afinal, a ocorrência que
resultou nesse despacho, apropriado à formulação de decisões e
juízos que legitimamente emitidos (no decurso de um processo
investigativo) se diferem das sentenças finais, destinava-se ao
propósito de prover um “inquérito especial” para ponderar sobre
as condições e os termos do bem-estar da “menor”, uma garotinha
chamada Aline. A qual, a despeito da mensuração de papéis e
responsabilidades maternas (ou paternas), poderia, de fato, residir
em um ambiente conflagrado.
Desse modo, as considerações que lançamos sobre a formu-
lação da contundência oferecida pela autoridade policial não se
presta àquelas indagações mais questionáveis e eventualmente
murmurosas que nós historiadores porventura dirigimos às docu-
mentações que manejamos, muitas vezes cobrando delas aquilo
que efetivamente não se prestam a oferecer. Antes, cumpre a

31 Os nomes mencionados nos autos foram alterados assim como certos indicativos que
favorecessem a sua identificação. A intenção foi manter em todas as fontes o anonimato
e o uso de pseudônimos.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 69

função de chamar a atenção para os termos que configuram a


imagem, supostamente comprobatória, responsável por atestar
não apenas os supostos maus tratos que a mãe estaria causando
à criança (por sinal, carente de evidências e/ou indícios que
apontassem para sua materialidade), mas, também (e principal-
mente), àqueles aspectos que não permitiriam dúvidas quanto ao
seu “mau exemplo”, proveniente de “atos inqualificáveis”, que
seriam “lamentavelmente” praticados por “sua mãe”.
Entre os elementos que são mobilizados para definir essa
imagem, tão condenável e provocadora de tamanha repreen-
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são, surgem, com maior ênfase, a prática do consumo alcoó-


lico (denunciado como excessivo, pois dado à embriaguez), e os
conflitos matrimoniais (simbolizado, inclusive, pelo desapego à
integridade do lar, que, entre outras referências, estaria explícito
em brigas do casal, com episódios de destruição do mobiliário
residencial); onde, por fim, todos esses inconvenientes estariam
atestados e robustecidos pela recorrência das queixas apresenta-
das pelo marido, que demonstrava não se sentir satisfeito com a
conduta da mulher com a qual vivia maritalmente.
Quando nos deparamos com evidências que indicam essa
concatenação, a qual expõe a presença e a ação masculina em
uma delegacia policial, no início da década de 1960, apresentando
queixa do comportamento feminino, caracterizado como preju-
dicial às relações familiares postuladas como mais adequadas,
logo vem em mente investigações como à empreendida por Lima
(2009), realizadas, por sua vez, na primeira década do século XXI.
A pesquisadora, interessada em averiguar “o papel de fatores
culturais nas práticas de atendimento às mulheres em delegacias
especializadas e não especializadas”, quando essas se dirigiam às
unidades policiais para denunciarem maus tratos e violências que
teriam eventualmente sofrido por parte de seus parceiros (fossem
esses maridos, amásios ou enamorados ocasionais), atentou-se à
“implantação de uma política pública de gênero na área de segurança
– a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – no Estado
do Rio de Janeiro”, institucionalmente adotada “a partir de 1986”.
Ao consultar documentações produzidas em diferentes dis-
tritos policiais, tanto quanto realizando entrevistas com diferentes
70

agentes dessas forças de segurança [entre eles, delegados, escri-


vães e patrulheiros], além de mulheres que se socorriam a esses
serviços, Lima (2009) argumenta que,

[...] as representações de gênero tradicionais na sociedade


brasileira, tendo como referência o modelo patriarcal de
família continuam a dificultar a efetiva criminalização da
violência contra a mulher, por legitimar a dominação mas-
culina e o sentimento de posse sobre o corpo feminino.

Essa conclusão, claramente admissível (ainda que enunciada

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de forma genérica, conectada de maneira meio apressada aos
termos mais específicos de sua investigação, uma vez que não se
ocupou de maiores exames quanto à sua materialidade histórica),
decorria da apresentação de inúmeros aspectos que dificultavam o
efetivo acesso dessas mulheres ao amparo policial que buscavam;
onde, “passados mais de vinte anos de sua criação”, “as repre-
sentações de gênero construídas pelo movimento feminista, que
serviram de justificativa e base para a implantação das delegacias
especializadas no atendimento às mulheres vítimas de violência”,
não teriam sido “assimiladas totalmente por todos aqueles que
foram ou são responsáveis pela execução dessa política pública
no nível político e no nível operacional”. Parte importante dessa
argumentação, ainda que uma alegação marginalmente decorrente
das premissas anotadas como principais, apoiava-se no entendi-
mento de que os policiais não tinham interesse em se ocuparem
com uma problemática por muitos deles definida pejorativamente
como “fubazada”, atuando e/ou conduzindo o atendimento de
modo a “bicar” os registros; sendo que “bicar” seria a reprodução
de uma “prática tradicional”, dedicada a evitar o efetivo registro
das denúncias, inclusive porque “policial que é policial” não se
envolveria com essas “coisas menores”, dadas ao burocratismo
secretarial, afastando-se, portanto, das atribuições precípuas de
um “homem da força de segurança”32.

32 Sobre o conjunto de importantes considerações apresentadas pela autora, ver em Lima


(2009, p. 117- 118; 134; 130-131).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 71

A nosso ver, ainda que encontrarmos policiais dispostos a


recusar essas demandas, por atribuírem às suas funções um caráter
declaradamente “másculo”, dirigido a um universo de violência
distinto do aqui abordado, registros de queixas como as propostas
pelo Sr. Aécio (e, ato contínuo, admitidas e ativamente engen-
dradas pelo delegado de plantão), fustigam-nos a considerar que
os nexos morais que arregimentam queixas policiais que tratam
de “conflitos domésticos” podem ter menos a ver com o efetivo
aceite institucional dessa “faixa de denúncias” e mais com o
consentimento compartilhado por seus agentes quanto ao mérito
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dessas mesmas denúncias; onde o empenho policial depreendido


da evidência em questão parece ser afirmado justamente pelo
teor moral da masculinidade oferecida pelo delegado. Tudo isso,
parece reconduzir o cerne do debate para os termos controver-
tidamente admissíveis do que pode ou deve ser acolhido como
alvo de atenção da política de segurança pública.
Por essa configuração, podemos notar que se as suspeitas de
maus tratos que recaíam sobre Regina (suposta causa originária
da denúncia policial em análise), sequer foram alvo de melhor
apreciação e/ou detalhamento; por outro lado, a pauta do compor-
tamento moral daquela mulher se converteu em foco central da
ação, na qual lhe cabia a posição de acusada por exibir um papel
materno e familiar que passou a ser caracterizado por movimen-
tos que exporiam seu desajuste. Isso, não apenas conforme os
contornos narrativos oferecidos no ofício elaborado pelo dele-
gado de plantão; mas, principalmente, pela atuação do homem
que acionou a intervenção daquela autoridade, onde, diretamente
implicado no caso, empenhou-se em exercer o papel engendrador
da cena em questão, não somente por condenar e presumir uma
conduta para a mulher com quem convivia, mas, também, por
conceber e propor os possíveis termos para acordos que fossem
capazes de rearranjar os pontos do conflito em litígio.
Como podemos ver abaixo, esse enredo foi claramente apre-
sentado por ele quando, ainda no âmbito das diligências policiais,
formulou suas declarações diante do delegado, antes que esse
prosseguisse com a ação – encaminhando-a, logo em seguida,
ao Fórum da Comarca, na cidade de Toledo.
72

[...] desde a última vez que esteve na Delegacia queixando-se


contra sua mulher Regina, esta tem andado corretamente não
tendo se entregue ainda mais uma vez ao vício da embria-
gues[sic]; entretanto, isto não constitui uma garantia, pois
de um momento para outro ela poderá voltar novamente ao
antigo vício; porém, se fosse possível a Regina assinar um
termo de responsabilidade prometendo não mais beber e
assumindo a responsabilidade de perder a filha com a quebra
do compromisso firmado, seria uma garantia para a criação
e educação da criança; entretanto, se a Regina não quiser
assinar o termo, ou se a autoridade achar que não pode fazer

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esse termo, então o declarante deseja que o caso da menor
seja resolvido pelo Judiciário e que a Justiça [...] dê à menor
sua filha o destino conveniente (PARANÁ, 1960).

Naquela ocasião, dias após o evento detonador da querela


em questão, o marido queixoso reconhecia certa alteração no
comportamento da mulher, onde, apesar de se ver contemplado
com o resultado da iniciativa judicial, demonstrava-se receoso
quanto a possíveis retrocessos; então, estabeleceu, nesses termos,
as bases para um acordo que assinalasse certas garantias quanto à
permanência do comportamento preconizado, as quais, conforme
seu juízo, parecia-lhe guardar plena razoabilidade33.
De todo modo, a proposição do Sr. Aécio, elaborada seis
dias antes da efetiva decisão judicial por nós já antecipada, foi
claramente ignorada pelo Juiz legalmente constituído (autoridade
efetivamente responsável pelo julgamento do caso); que, a se
tomar por seu silêncio, parece não ter notado grande pertinência
legal nas lástimas e/ou admoestações do marido, sugerindo, no
parecer final, que se tratava de “uma rusga própria de marido e
mulher” (PARANÁ, 1960).
33 Uma conduta assim, tão claramente marcada por um determinado ordenamento familiar e
social a ser estabelecido e mantido, provoca aquela ironia que Fonseca chamou a atenção
ao notar que documentos dessa ordem, “redigido por um homem”, “emerge uma narrativa
rica em ambiente, capaz de nos ensinar algo da vida familiar das mulheres pobres”. Isso
quando a autora tinha em mente os “processos para ‘apreensão de menores’, abertos
entre 1901 e 1926”, registrados em um dos distritos policiais de Porto Alegre, no extremo
Sul do País. Fonseca abordava a temática da “maternidade e pobreza nos núcleos urbanos
das (já distantes?!) primeiras décadas do século XX” (FONSECA, 2000, p. 510).
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 73

E aqui, mesmo que a documentação consultada não nos per-


mita maiores pontos de aproximação com o senso de justiça que
informou a decisão do Juiz responsável por esse processo, não nos
parece aconselhável levar o alcance moral desse veredicto muito
além do seu efeito prático, pois pode não ser producente operar
uma ligação automática entre a decisão proferida e uma visão
que claramente condenasse como impertinente o pleito legal/
moral movido pelo trabalhador. Afinal, também não há maiores
evidências de que o juízo formado pela improcedência não fosse
produto de mero desinteresse das autoridades judiciárias em rela-
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ção à vida de sujeitos como os registrados no auto processual em


questão, banalizando suas pautas e dramas.
Sobre esse ponto, parece-nos que nenhuma definição espe-
cífica, seja dirigida a essa ou àquela direção, sustenta-se sem
um exame mais dedicado da materialidade histórica extraída de
evidências abertamente determinadas. Portanto, circunscritas às
especificidades de sua historicidade. Afinal, as sentenças jurídicas
não estão isentas das efetivas marcas da heterogeneidade social,
manifestas também no universo da prática jurídica, algo que Este-
ves (1989), discutindo “os populares e o cotidiano do amor”
a partir das “meninas perdidas” no Rio de Janeiro do final do
século XIX e início do século XX, propôs empreender enquanto
pesquisa histórica.
A autora, ao privilegiar a investigação de autos processuais,
tomados como fontes de averiguação de crimes sexuais (tais
como defloramento, estupro, atentado e rapto), ofereceu uma
ponderação do corpus documental consultado que nos pareceu
uma inferência bastante sugestiva. Segundo ela, “no cômputo
geral dos 88 processos pesquisados”, “37 foram considerados
improcedentes, 33 procedentes e 18 acabaram em casamento”.
No entanto, quando compara o equilíbrio/desequilíbrio das sen-
tenças julgadas como procedentes/improcedentes, a autora faz
uma distinção entre o quantitativo daquelas sentenças decididas
por juízes e aquelas proferidas pelo corpo de jurados majorita-
riamente (quando não exclusivamente) masculino.
Segundo notou Esteves (1989),
74

[...] enquanto produto final dos processos de punição, as


decisões dos juízes, independente de suas posições, [...] se
equilibravam numa espécie de corda bamba, que ora tendia
para a civilização de moças potencialmente ‘perdidas’, posto
que defloradas, pretendendo garantir-lhes o casamento ou o
sustento mediante o direito ao dote; ora para a marginaliza-
ção de moças que não possuíam as normas da ordem sexual.

Entretanto,

[...] nos tribunais do júri, [...] as duas tendências não divi-

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diam equilibradamente os resultados: dos 37 casos enca-
minhados ao júri, 21 réus foram inocentados e em 3 casos
houve empate (os juízes, nessas circunstâncias, decidiam,
como de praxe, pela inocência). Apenas 8 réus foram con-
siderados culpados. A ‘sabedoria popular’, representada
por jurados homens, não andava muito afinada com a dos
juízes togados.

Uma constatação que lhe permitiu considerar que,

[...] o grande número de réus inocentes no tribunal do júri


pode ser explicado pela possível defasagem entre juristas
e jurados acerca da moralidade. Estes últimos, certamente,
não tinham acesso às teorias que embasavam a tendên-
cia civilizadora e, provavelmente, julgavam apenas pelos
parâmetros de comportamento sexual que circulavam pela
sociedade. Talvez por isso, após 1916, os crimes de amor
deixaram de ser julgados em tribunal ‘popular’ (ESTEVES,
1989, p. 107-108).

Uma hipótese que deve assombrar aqueles sensos de justiça


que, muitas vezes, supõem que a “justiça” poderia ser mais bem
administrada caso fosse operada diretamente pelos brados das
ruas, sem a mediação de sistemas de justiça usualmente fada-
dos a desconfianças, quando não a contestações advindas dessas
mesmas vozes difusas que emanam dos ânimos aflorados das
ruas. Nesses momentos, como os vividos por Regina no auto que
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 75

investigamos, o “estado de direito” parece indicar alentos que,


não fosse sua atuação, talvez fossem carregados com uma carga
dramática ainda mais próxima da tragédia.
E, sobre o modo como os sujeitos referidos no processo em
análise construíram e lidaram com suas próprias controvérsias,
podemos notar que Regina, ao se ver enredada em um problema
que se tornou pauta policial, tentou se desvencilhar da despres-
tigiada posição em que se encontrava – sobre a qual havia sido
chamada a se pronunciar acerca de modos impróprios às condutas
esperadas de uma “mãe de família” em meados do século XX.
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Com essa preocupação em mente, fica evidente que ela buscou se


mover no sentido de retomar para si uma imagem que demons-
trasse o comprometimento que nutria com a criação da filha;
onde, mesmo assim, não chegou ao ponto de negar as acusações
sobre embriaguez, procurando, como conduta central, colocar em
discussão o campo de relação de onde emergiam os conflitos e a
tensão, por ela admitidos como expressão de uma dinâmica que
dizia respeito ao convívio que mantinha com o marido.
Com esse intento, ampliou o enredo e tomou para si a posi-
ção de narradora. Mas uma dessas narradoras que não se com-
portam como se simplesmente revelassem os feitos e os destinos
das vidas enunciadas (incluindo a sua própria), como se fossem
resultado de uma história já rigidamente demarcada e/ou deter-
minada. Sem ignorar pontos estruturantes de um enredo fixado
por papéis que se querem muito bem delimitados, colocou-se no
interior dessa trama de modo a se fazer claramente notada – ainda
que por intermédio dos registros formulados pelo escrivão. Sua
presença ativou ponderações que, ao mesmo tempo incorporou
e, também, desvencilhou-se do escopo normativo que pressio-
nava suas práticas; o que, portanto, permite, através do acesso
e seleção dos fragmentos contidos na documentação coligida, a
identificação da expressividade de sua conduta no curso da prática
social em evidência.
O interesse por essa concatenação permite, conforme os
propósitos deste texto, que possamos penetrar em sua urdidura
e assim propor considerações sobre possibilidades históricas
76

que estavam em questão para mulheres como a acusada. Afinal,


podemos evidenciar como essa brasileira, então com 45 anos
(amasiada há quase metade desse tempo com seu denunciante),
declarou-se responsável pelos cuidados domésticos da casa e dos
filhos, bem como analisar o modo como se referiu ao relaciona-
mento que mantinha com aquele soldador elétrico, de nacionali-
dade paraguaia, empregado no relativamente prestigiado Serviço
de Navegação da Bacia do Prata34.
Então, nos termos do registro processual em análise, eis a
tecitura de uma avaliação capaz de indicar a inserção de Regina

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em um campo de forças marcado pela sinuosidade própria da tor-
tuosa combinação entre resiliências e disjunções morais – amalga-
madas, por sua vez, no mais intrigante universo das ambiguidades.

[...] que ultimamente veio a conhecer bebidas alcoólicas, que


facilitava com a bebida e ficava embriagada; a declarante
gosta de seu amásio e estima seus filhos; que a declarante
acha que entregar-se ao vício de embriaguez é falta de caráter
e com força de vontade a pessoa não bebe mais para embria-
gar-se; que a declarante está disposta a assumir qualquer
compromisso de não mais beber, desde que o seu amásio
também não se embriague, pois da mesma forma que ela
declarante, o seu amásio também faz uso de bebida alcoólica
e também às vezes fica ‘alterado’ (PARANÁ, 1960).

34 A presença de trabalhadoras e trabalhadores ligados a essa movimentação (de merca-


dorias e sujeitos) pelo rio Paraná e rio Paraguai, ou no seu entorno, envolveu o Serviço
de Navegação da Bacia do Prata (SNBP) de forma expressiva na região Oeste, par-
ticularmente, desde meados da década de 1940, quando esse itinerário ganha maior
propulsão e investimentos estatais, ativando oficialmente a passagem por Guaíra – local
em que residiam os envolvidos nos autos. Essa dinâmica e as rotas estabelecidas para
tal efetivo do SNBP explicita um transitar pelo Oeste do Paraná tanto de sujeitos advindos
de outros estados brasileiros como dos países sul-americanos envolvidos nesse itinerário
e atividades comerciais, especialmente Paraguai e Argentina. Uma das visões constitu-
ídas sobre os usos e acessos a essa região foi a apresentada por Portz, Mascarenhas
e Gregory (2020). Mesmo que os autores reforcem uma leitura histórica assentada nos
marcos e efeitos de um dado “desenvolvimento econômico”, isto é, atividades econômicas
atreladas/propulsoras da presença de pessoas e trajetos envolvendo os rios da Bacia
do Prata, o artigo permite ler a contrapelo como esses pontos de paragens tiveram a
atenção de muitos trabalhadores que viram nessa dinâmica de atividades não só postos
de trabalhos, mas alternativas e campos de possibilidades para uma vida melhor.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 77

Exposta a julgamento público, sujeita ao desconforto das


solenidades próprias dos trâmites institucionais, a “denunciada”
chegou a consentir com a valoração de que “entregar-se ao vício
de embriaguez é falta de caráter”. Nesse caso, um juízo aplicado
a si mesma. Mas, segundo o mesmo repertório de valores que
admite esse juízo, “facilitar com a bebida” pode ser uma prática
ao mesmo tempo reprovável e, eventualmente, recorrente – por-
tanto, apesar de repreensível, também passível de tolerância, ou
mesmo condescendência. Segundo essa ordenação moral, que
convive umbilicalmente com a eminência (quando não a própria
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regularidade) do desajuste, a normatização de uma conduta acei-


tável e/ou condenável contempla uma elasticidade capaz de asso-
ciar, na mesma frase, uma nítida sentença de sujeição, expressa no
consentimento de quem “está disposta a assumir qualquer com-
promisso de não mais beber”, com a mais radical reivindicação de
igualdade entre as possibilidades inscritas nas ações mantidas por
homens e mulheres, por ela condicionada à contrapartida dirigida
ao queixoso, que (assim como Regina alega) deveria assumir e
assinar o mesmo compromisso, pois “também faz uso de bebida
alcoólica e também às vezes fica ‘alterado’”.
Toda essa contenda, que extrapolou os limites mais ime-
diatos da relação de poder vivida entre o casal de trabalhadores
(alcançando a implicação de instituições policiais e judiciárias),
torna evidente a nossos olhares a possibilidade de, mesmo diante
da manifestação de toda essa trama de tensão e conflito, a reafir-
mação do sentimento de afeto declarado por Regina, que reitera
“estimar seus filhos” e “gostar de seu amásio”. Mesmo levando
em conta todo o rolo novelado (desvelado a partir da pretensa
preocupação da “criação e educação da criança”, em particular
sobre a filha mais nova do casal, a ponto dos desentendimentos
entre os trabalhadores flertarem com a especulação das dis-
tantes e nada presumíveis deliberações judiciais), esse difícil
equilíbrio entre as prescrições familiares desempenhadas por
trabalhadoras e trabalhadores revela termos bastante expressi-
vos do companheirismo controverso, comumente mantido em
muitos desses lares.
78

Algo que, talvez, possa ser melhor traduzido no sentimento


pronunciado pela própria criança. Aline, com apenas oito anos,
sem ainda saber ler e escrever, declarou, no árido ambiente de
uma delegacia (diante da plateia de agentes públicos ocupados
com a burocracia policial), que:

[...] não é maltratada por sua mãe, mesmo quando está


“bêbeda” (embriagada); que por ocasião que sua mãe fica
“bêbeda” a informante corre à casa de sua tia, ou pelos fun-
dos do quintal da casa, porque fica com medo que os pais
“se machuquem”, que eles briguem; que, certa feita sua mãe

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fugiu com a informante para Foz do Iguaçu e depois ao Para-
guai, de onde seu pai foi buscá-las; que sua mãe fugiu porque
seu pai queria tirar dela a filha que é a informante. [...] que
faz vários dias que sua mãe não se embriaga, inclusive que
fez uma promessa à informante e seu irmãozinho que não
ia mais beber (PARANÁ, 1960).

O registro produzido a partir da narrativa de Aline depreen-


deu do convívio e conduta geral da mãe um inquietante senti-
mento de estima e compromisso, captado mesmo nas “ocasiões”
em que esse comprometimento parece fragilizado e/ou marcado
por ambiguidades, pois carente de uma “força de vontade” e/ou
regularidade mais evidente (isso nos próprios termos considera-
dos por Regina). Assim, a filha parece relevar, ao menos nesses
instantes de maior fricção e inconsequência, a negligência da
qual é alvo. Uma ponderação que não está imune ao “medo” e às
incertezas que desde muito cedo povoam a instabilidade da vida
familiar desses sujeitos focalizados nesta investigação.
Segundo esse ângulo de visão, a manutenção ou rompi-
mento dessa parceria afetiva inclui, para além do amplo leque
de pressões advindas da materialidade própria de sua condição
de classe, as peculiaridades e humores que irrompem do ânimo
desses homens e mulheres; que, em conjunturas específicas,
podem instigar alterações de parceiros, rearranjos de estruturas
familiares, mudanças de cidades, trocas e/ou buscas por postos de
trabalho, além de agressões ou mesmo fatalidades, quando não a
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 79

entrega dessas crianças ao cuidado do Estado ou de instituições


e tutores temporários.
Hoje, muito mais atentos à polifonia desses distintos e entre-
meados aspectos, tão latentes quando temos em mente as relações
de poder firmadas na confrontação do mútuo protagonismo de
trabalhadoras e trabalhadores – até mesmo quando indagamos
a relação que mantêm entre si, em função do universo de seu
relacionamento diário (afeto tanto à provisão quanto à valora-
ção de expectativas e interesses prospectados em seus horizontes
sociais); apontamos para o desafio de rearticular a dimensão da
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sexualidade àquelas pautas que já havíamos tornado mais recor-


rentes e comumente exploradas ao abordar os modos de vida
desses sujeitos.
Com isso, não estamos falando em apêndices, nem em varia-
ções hifenizadas, tantas vezes propostas paralelamente às histórias
tidas como principais, confinadas, muitas vezes, a ambientes apar-
tados, quando não historiograficamente conflitantes, tais como,
trabalho, moradia, lazer e/ou manifestação cultural – usualmente
segmentados, mesmo quando reunidos em capítulos distintos,
integrados em uma mesma obra.
Se essa pretensão nunca nos foi estranha, tal como indica-
mos no início desta reflexão, hoje temos nela uma interpelação
fundamental. Mesmo em construções analíticas como esta, cuja
natureza se afasta dos exercícios mais exaustivos de evidenciação
e verificação da historicidade da problemática abordada, julgamos
essencial apontar para a imbricação dessa tecitura que nutre os
sinuosos sensos de decisão/ação que informam a vida desses
homens e mulheres, cuja atmosfera social se apresenta fortemente
pressionada por sua posição de classe.
Assim, se insistimos em partir da definição de uma condi-
ção social específica (a saber, da perscrutação do modo de vida
de trabalhadoras e trabalhadores), isso não é igual a insistir nas
homogeneidades de práticas e sentimentos que possam ser unifi-
cados a fórceps em um senso comum de classe. Admitimos que
é difícil deixar de supor a construção de um senso assim, mas
nossas esperanças em ver prosperar uma orientação política espe-
cífica (com a qual podemos nos manter ativamente conectados),
80

não pode cegar nosso compromisso com a materialidade histó-


rica, tão cara à visão da história que estamos dispostos a oferecer
ao debate social.
Pois, reconhecido que homens e mulheres irrompem na
história, colocando em curto-circuito as explicações mais gene-
ralistas e os ajustes tidos como os mais costumeiros, precisamos
nos perguntar – o que queremos com a experiência social que
nos apresentam, para além de um repertório desafiador sobre o
modo como vivem e esperam viver?! Estamos diante de um uni-
verso de calibragens desiguais e controversas, onde forças sociais,

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transgressoras e conformadoras, disputam sua expressividade e
efetividade, tanto diante de práticas de domínio e confrontação
quanto nas ações que informam, ambiguamente, condutas morais
e sentimentos em profusão.
Desse modo, encaminhando para nossas argumentações
finais, gostaríamos ainda de retomar o instigante e controvertido
ponto sobre as disjunções e vicissitudes próprias às historicida-
des aqui destacadas; que se não chegam a ignorar muitas das
referências compartilhadas por uma dinâmica social que se quer
sistematicamente definida, tanto quanto amplamente difundida
(sendo essas ordenações usualmente engendradas em produ-
ções historiográficas alçadas a posições narrativas canônicas,
articuladoras de cronologias e eventos supostamente capazes de
interpelar indistintamente o conjunto dos sujeitos que lhe são
contemporâneos), certamente suas concatenações (confessada-
mente ordinárias) sugerem referências que podem ser bastante
particulares. Afinal, são semanticamente acalentadas pela cali-
bragem especificadora de seus propositores.
Isso permite dizer que temos aqui, segundo nosso enten-
dimento, não necessariamente um nefasto desvio daquelas pre-
valecentes rotas há muito tracejadas pelas “grandes questões
da história”, para usar a já mencionada expressão realçada por
Varikas (1994) – quando reivindicou a pertinente articulação dos
temas e problemáticas da história das mulheres ao panorama mais
amplo da disciplina. Por isso, mesmo levando a sério essa que nos
parece uma importante objeção (uma vez que compartilhamos
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 81

da preocupação com as visões fortemente herméticas e/ou espe-


cializações exacerbadamente segmentárias), visualizamos aqui a
oportunidade de delinear ações e/ou memórias sociais que esca-
pam aos clichês mais estruturadores (e, por vezes, reducionistas)
do conhecimento histórico que julgamos (inclusive e/ou princi-
palmente) estabelecido academicamente.
Muitas reflexões, mesmo quando indicam um interesse alter-
nativo, por exemplo, pela “historiografia local” (predominante-
mente entendida como uma espécie de averiguação de “temas
nacionais” em territórios específicos do interior brasileiro), per-
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sistem, invariavelmente, ou naquelas seletividades fundamental-


mente apegadas aos “espaços públicos” (muitas vezes tomados
como sinônimos de atuações institucionalizadas, aos moldes das
críticas formuladas por Perrot em muitas de suas publicações), ou
naquelas demonstrações ilustrativas das narrativas estruturantes
prevalecentes no universo acadêmico.
Sem pretendermos determinar a falta de legitimidade des-
ses projetos, haja vista a efetiva heterogeneidade social neles
manifestos (tanto quanto seu efetivo enraizamento acadêmico),
não podemos deixar de indicar o incômodo que notamos com
essas perspectivas que sem as devidas matizações ou delimitações
expõem um posicionamento analítico que deveria ser assumido a
partir das posições particularizadas de seus anunciadores, ao invés
de se outorgarem reveladores de narrativas exclusivas de uma his-
tória possível – seja isso feito de forma incisivamente beligerante,
seja simplesmente se comportando como profissionais vigilantes
e ocupados com registros ancorados em empreendimentos ligados
a um fluxo que se apresenta como normatizado e autorreferente.
Sobre a materialidade contemporânea desses traços, pode-
mos indicar ao menos dois esforços. Primeiro, a investigação
de Santana (2016), que buscando indicar a potência social da
presença feminina na cidade de Toledo-PR, afirmou o aguerrido
brado de que “Sou mulher e quero participar”, quando identifi-
cou mulheres que participaram da criação ou gestão de Conse-
lhos Municipais, primeiro da Condição Feminina, na década de
1980, depois dos Direitos das Mulheres, sua versão restaurada
82

na primeira década do século XXI35. De outro modo, Hoerlle


(2013), ateve-se a investigar “narrativas de memória de mulheres
idosas, que quando jovens trabalharam na agricultura e, depois
de aposentadas, foram morar no espaço urbano de Marechal Cân-
dido Rondon, Oeste do Paraná”; uma problemática que poderia
ser justificada por muitos (e pertinentes) motivos, mas que, para
a autora do estudo, sobressaia-se um mantra legitimador autoe-
vidente, tratava-se de alinhavar o resultado do diálogo mantido
com suas interlocutoras a um argumento historiográfico robusto
(ainda que excessivamente generalizante)36.

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Então, Hoerlle esclareceu que, “nesse sentido, através de
entrevistas de histórias de vida, analisamos a experiência da
migração e as relações campo-cidade” (claro, “além disso, pro-
curamos perceber as mudanças nos papéis sociais e nas sociabili-
dades destas mulheres”). De nossa parte, sem negligenciarmos a
pertinência de investidas em uma ordenação histórica que silencia
e interdita significativamente a presença, atuação e ponderação
dos nexos e engendramentos históricos protagonizados por essas
mulheres, não podemos deixar de assinalar que a noção basilar

35 A pesquisadora se dedicou à produção de entrevistas com interlocutoras que foram


chamadas a responder por esses constructos da governança municipal, onde, a partir
daí (do balizamento de marcos da administração de órgãos municipais), entrever-se-ia
“a história das mulheres e das relações de gênero no município, em meio à conjuntura
sociopolítica, às mudanças nas políticas públicas e nas próprias relações de gênero na
sociedade” (claro, sem deixar de esclarecer os leitores que, “com este trabalho visamos,
também, a partir de entrevistas de história de vida, não somente dar visibilidade às
experiências e memórias dessas mulheres e perceber os significados que dão a estes
conselhos, mas apreender como a sua participação nesses conselhos e em movimentos
e entidades da esfera pública, tais como partidos políticos, sindicatos, configuraram suas
subjetividades”). Sobre esse princípio e as possíveis leituras de seu encaminhamento ver,
particularmente Santana (2016, p. 8).
36 A a se julgar pela leitura que fizemos de seu trabalho, a autora acreditou que nem ao
menos precisava confrontar ou sondar a materialidade histórica com as elaborações
formuladas nas entrevistas, por ela tomada como evidências de memórias históricas,
esse adágio analítico, qual seja, “A mecanização da agricultura”, que “introduzida na
década de 1970” (juntamente com “outras transformações no processo de produção no
campo”) “provocaram profundas mudanças nos modos de viver e trabalhar”, teriam (como
forças propulsoras indeterminadas) afetado, por decorrência, “muitos dos colonos”, que,
“ao adentrar a velhice e conquistar a aposentadoria, mudaram para o espaço urbano,
deixando a propriedade [...]”.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 83

das conexões operadas por essas investigações fragmentárias com


as “grandes questões da história” parece desvendar muito pouco
de seus comportamentos e visões emergidos no processo de con-
secução histórica sobre elas referido. Aliás, os eventuais “proces-
sos históricos”, apontados invariavelmente, parecem conduzir “a
história” de modo a fazer dessas presenças apêndices setorizados,
muitas vezes circunscritos a enredos pouco ou nada capazes de
interpelar as narrativas centrais que, eventualmente, até saúdam
iniciativas segmentares e lacunares da “história das mulheres”37.
Essa ponderação sugere, também, ir além do que já foi a
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respeitável e profícua posição defendida e irradiada por Ginz-


burg, quando em seus experimentos de micro-história sugeria
fazer de suas investigações um exercício de sondagem das “gran-
des narrativas”, onde, apesar de atento a uma escala reduzida
de reflexão, mantinha-se disposto a revisitar e reconsiderar os
nexos que sustentavam aquelas argumentações mais influentes,
expondo-as, invariavelmente, a ângulos de observação inespe-
rados e inconvenientes. Contudo, esse procedimento incorre
no risco de se manter umbilicalmente conectado à centralidade
dessas grandes referências programáticas – portanto, preso ao
centro de gravidade canônico, o qual fornece o repertório de
pautas a serem consideradas, as quais, não por acaso, acabam,
muitas vezes, atraindo a atenção fundante desses projetos de
investigação histórica.
Para explicitar um pouco melhor os termos desse aponta-
mento, retomemos aquelas anotações registradas por Salete, indi-
cadas como ponto inicial das considerações que formulamos neste
capítulo. Em seus cadernos, repletos de súplicas enunciadoras
de suas expectativas e frustrações, quase sempre dirigidas a um
enredo semelhante ao anotado no auto processual evidenciado
acima, identificamos um repertório de questões que dão sentido
à sua vida, animando a energia e a atenção que direciona e dis-
pende a esse ou aquele aspecto que integra seu modo de viver.
Se resumimos nosso interesse àquelas narrativas que permitem

37 Sobre o conjunto das reflexões indicadas pela autora, sujeitas a juízos distintos do aqui
destacado, ver: Hoerlle (2013, p. 7).
84

uma ligação direta com os clássicos quadros emoldurados em uma


genérica noção de contexto histórico, buscando sua transparência
no que foi indiciado por Salete, podemos até ilustrar algumas
dessas referências, ressaltando a visão de época e atenuando, ou
mesmo silenciando, aquelas evidências menos correspondentes
à imagem de importância histórica já pintada.
Temos muitas dúvidas se isso poderia ser acadêmica e/ou
politicamente mais expressivo ou relevante! Mas, de todo modo, é
possível realizar. Há muitas práticas históricas que investem nesse
gênero historiográfico – algumas dessas histórias chegam a ser

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verdadeiramente instigantes e, mesmo teoricamente, relevantes38.
Porém, sugerimos deslocar esse ponto em um sentido
que acreditamos levaria a discussão algumas jardas adiante.
A despeito de eventuais e legítimas discordâncias, permitam
que qualifiquemos esse deslocamento como avanço. E aqui,
antes mesmo de especificar nosso ponto de vista, reafirmamos
que ele não reivindica nenhuma nova especialização historio-
gráfica, nem mesmo a extensão ou desbravamento regional de
uma dessas franquias já registradas nos grandes centros. Ele
busca, sim, reapresentar nossa inserção no já experimentado (e

38 Sobre essa intersecção, envolvendo preceitos gerais e a investigação de certas relações


ordinárias, destacamos a pesquisa de Arruda (2011). Conforme enuncia em seu resumo
e introdução, seu trabalho privilegia “aspectos da vida das meninas na execução da
medida socioeducativa de internação na Comunidade de Atendimento Socioeducativo
de Salvador-BA (Case/Salvador)”, onde, ainda que procure contrabalancear o que seria
aspectos gerais e particulares à pesquisa na construção de sua dissertação, observamos
momentos de disjunção (expressos no que propõe historicizar no capítulo 1 – “elementos
conceituais que conformam o tema”, a saber; “adolescência”, “Doutrina de Proteção
Legal”, “Direito do Menor no Brasil”, “Estatuto da Criança e do Adolescente” e “Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo”), bem como na delimitação do capítulo 2, onde
indicou ser o início da “aproximação com o objeto de pesquisa”, realizando o que cha-
mou de “descrição da unidade” Case/Salvador e de seu funcionamento; chegando no
capítulo 3, onde propõe apresentar o “perfil” e “fragmentos das narrativas de vida” das
adolescentes, resguardando para o último capítulo sua tentativa de junção dessas partes,
onde objetivava ser o lugar em que “exponho reflexões atinentes ao perfil dos sujeitos de
pesquisa e como suas condutas se encaixam no perfil privilegiado para criminalização
(infracionalização)”). Obviamente, ainda que destaquemos a riqueza e densidade de sua
investigação, isso não pode obliterar os entraves que ainda visualizamos como desafio à
nossa prática, os quais dizem respeito aos supostos que informam o como associamos
(ou mesmo fixamos) certos nexos e gradações analíticas às evidências históricas.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 85

diversificado) campo da história social. É a partir do interesse


por evidências que indiquem a expressividade da experiência
de trabalhadores, mas também de trabalhadoras, que dirigimos
nossa seletividade para o campo de visão demarcado pelas refe-
rências inscritas por Salete.
Sugerimos deixar em suspenso, ao menos por alguns ins-
tantes, o conjunto de referências que informam nossa visão sobre
as relações que julgamos mais significativas e/ou prevalecentes
quando abordamos a territorialização e a temporalidade que,
obviamente, diz respeito ao universo de relações vivido também
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por sujeitos como Salete. Um exercício que não pretende pre-


cipuamente, ao menos não por uma espécie de birra deliberada,
ignorar as marcações mais recorrentes sobre o Oeste do Paraná
no final do século XX e início do século XXI. Antes, buscamos
nos afastar dos pontos que foram alvo de maior atenção, que se
tornaram faixas de concentração congestionadas (muitas vezes,
operadas por um fluxo automático de enunciação); atentando-se,
a partir daí (de forma propositiva), a descortinar frestas da expe-
riência social que indiquem flancos alternativos, efetivamente
ensejados nos arranjos das relações de poder dimensionadas por
essas e outras tantas trabalhadoras.
Processado esse experimento de escuta, de identificação de
possíveis evidências que não foram privilegiadas como ponto
de partida pelo conjunto de temáticas e problemáticas (aí sim)
precipuamente definida pelo “caldo de cultura historiográfica
disponível” (que, em algum momento do debate social, parece
ter sido transmutada na própria história); podemos rearticular, a
partir da materialidade depreendida do processo de investigação
(uma materialidade apropriada aos procedimentos de pesquisa
operado pela lógica histórica), pontos de conexão que julgarmos
devidamente congruentes (THOMPSON, 1981); mas, não porque
esse seja o único modo disponível para legitimar historicamente
essas descobertas, ou os comportamentos e práticas dos sujeitos
focalizados. Antes, porque a associação proposta elucidaria pon-
tos expressivos da vida dessas e desses que são alvos centrais da
reflexão. Não o inverso!
86

Nesse sentido, quando nos atentamos para as formulações


elaboradas por Salete no limiar da segunda década do século
XXI, identificamos uma noção de tempo e um balizamento de
marcos pouco codificáveis, além de instáveis e nada lineares, pois
invariavelmente estão sujeitos a reexames e suspeições, essas
formulações estão sempre às voltas com desenlaces definidos pela
inconstância de seus desfechos. Isso se aceitarmos o fato de que
a movimentação indicada possui valor histórico. Algo que pode
ser simultaneamente notado quando observamos que passado
aproximadamente um ano após as “graças” que ofertou por ter

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sido atendida no valorado pedido de sobriedade do marido, que
estaria “moderando” o consumo alcoólico (SALETE, 2010), ela
retornava às páginas do seu caderno de novenas e, novamente,
debruçava-se sobre esse aspecto de sua vida como um elemento
basilar em sua inscrição social.
Salete, dirigindo-se a “Deus Pai”, por “intermédio” de Nossa
Senhora das Dores (quando já se passava o quarto dia das nove-
nas ofertadas em seu “santo nome”), redimensionava a questão
que tanto lhe afligia, ocupando-se de uma problemática central
ao arranjo de sua vida, pois dali retiraria os termos necessários,
quiçá suficientes, para o que julgava ser uma difícil resolução.
Ao fazer isso, com seus 32 anos, não aponta apenas uma análise
e cansaço desse ou daquele momento de embriaguez e excessos
de seu marido, mas recompõe as sinuosidades em que constituiu
sua experiência social.
O registro que destacamos de seu Caderno de Orações tratou
de um desses problemas para os quais nos sentimos limitados, a
ponto de trabalhar com a necessidade de uma intervenção quase
milagrosa e/ou fantástica.

Bom dia, Pai misericordioso, e obrigado por nos proteger e


abençoar em nossa viagem [por ocasião de visita a parentes
do marido, que moravam na cidade de Mercedes-PR, distante
aproximadamente 60 km], que se não fosse o Senhor nós
tínhamos batido na Princesa [ônibus interurbano]. Obrigado
por tudo Pai. Nós sabemos o quanto o Senhor é bom e pro-
tetor. [...] Pai, se é pro meu melhor e dos meus filhos faça
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 87

meu esposo se conscientizar e ir embora. Se não Pai, abençoe


que ele pare de beber, liberta ele pra nossa família viver em
paz. Amém (SALETE, 2011).

A partir dessa prática, podemos observar que, se mesmo na


particularidade das questões que envolvem o seu horizonte mais
imediato prevalece a inconstância e a tensão – expressa na relação
que mantém a partir da convivência com o marido –, precisamos
admitir essas e outras tantas particularidades que envolvem a
historicidade de sua experiência social. Nela, é possível notar a
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dinâmica de uma ligação que, seja em meados do século XX ou


no findar da primeira década do século XXI, revela um campo
de relações de poder mantido por esses homens e mulheres, pre-
sente também entre trabalhadoras e trabalhadores que coabitam a
mesma casa e tutoreiam os mesmos filhos. Nesse terreno, discu-
tem a fixação de limites e a ampliação de possibilidades, abertas
e/ou interditadas em sua associação familiar.
Sem entrar no mérito dos contornos assumidos no embate
travado por essas confrontações de gênero nas últimas sete déca-
das, o que faz desta reflexão uma visão assumidamente turva, se
não cega, ou simplesmente desviante, no que diz respeito a esses
influentes pontos do embate social (negligenciando, portanto,
mesmo as sínteses genealógicas mais recorrentes, fartamente ofe-
recidas em seu campo especializado de debate); podemos apon-
tar para um universo latente de tensão que envolve o modo de
vida de trabalhadoras e trabalhadores nem sempre evidenciados
quando temos em mente o registro das práticas sociais insinuadas
nas documentações.
Olhando de forma retrospectiva, podemos afirmar que, assu-
mindo esses materiais como fontes históricas, não há grandes
dificuldades em indicar (entre as milhares de páginas da atuação
judiciária, registradas no Oeste do Paraná, ou mesmo entre as
preces produzidas por Salete) fragmentos do campo minado em
que são convertidos os valores manejados para informar a con-
duta social desses homens e mulheres conforme comportamentos
sexualmente presumidos.
88

Porém, essas presunções, apesar de exercerem ativamente


fortes pressões, não interditaram condutas como as de Regina,
tanto no que diz respeito à sua disposição para assumir práticas
tidas como inadequadas a uma “mãe de família”, quanto para
efetivamente reivindicar igualdade de possibilidades, quando
assumidamente reconhecia prováveis excessos em sua conduta
– que não deveriam ser tomados como inconvenientes por ser
mulher, mas por eventualmente desamparar e/ou negligenciar
a filha. Portanto, uma régua que também deveria ser aplicada à
conduta do marido. Isso em meados do século XX, no extremo

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Oeste do Paraná, na porção Sul do território brasileiro. Inclusive
entre trabalhadoras e trabalhadores! O que, como podemos notar,
não ficou, pelo menos não Regina, aguardando o desenvolvimento
da importante articulação do feminismo intelectual dos grandes
centros urbanos para irromper a cena histórica.
Uma história que mais de meio século depois ainda com-
porta e manifesta dramatizações como as narradas por Salete,
que às voltas com o peso das presunções dos comportamen-
tos sexuais predominantes recorre à intervenção divina como
forma de elaborar e confrontar o peso desse persistente enredo
histórico. Sua conduta, que talvez fosse enunciada como um
desses clichês empregados como índice autoevidente da sujeição
e submissão feminina, guarda, na ambiguidade de seu reverso,
a pouca feição que encontra com aquelas caracterizações que
associam apatia e consentimento normativo. Ela, assumindo a
autoria de suas práticas, contesta o fatalismo de sua experiência
social, mas o faz não pelos importantes mecanismos legais de
cidadania, arrancados pelo valoroso embate empreendido pelas
variadas manifestações feministas (crescentemente robustecidas
a partir da década de 1980). Ao invés disso, parece se recorrer à
resiliência, própria daqueles que empilham e articulam as difi-
culdades junto ao amplo repertório de adversidades que integram
sua já conturbada condição de classe.
É nessa trama, contorcionada e imiscuída de impasses
perseverantes e de protagonismo autoral, que essas trabalha-
doras inscreveram e inscrevem sua potência social. Algo que,
mesmo nesse limitado recorte, podemos encontrar uma alegoria
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 89

capaz de indicar a historicidade de um estado constante de afli-


ção que, muitas vezes, não encontra amparo e acolhida nem
mesmo quando do convívio com os demais trabalhadores –
nem entre aqueles companheiros com os quais coabitam o que
chamam de lar.
Até mesmo aqui, nessa escala tão diminuta, mulheres como
Salete e Regina parecem nos sugerir que a “paz” e a “igualdade”
se busca todo dia. E que, às vezes, essas metas parecem tão dis-
tantes e improváveis que demandam, para além das arrelientas
ações diárias, fé e esperança, para que elas sejam ao menos man-
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tidas como expectativas. Restando, em muitos momentos, dar


“graças” a eventuais “proteções”, que, em si, já parecem obra
da ação divina.
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HISTÓRIAS ENTREABERTAS...

S
abemos que a incursão realizada nessas páginas nos levou
a confrontar nuances por vezes minimizadas, ou mesmo
equacionadas de forma apressada em outras pesquisas,
inclusive nossas. Contudo, trouxemos aqui apenas alguns pon-
tos de inquirição que se mantiveram no nosso foco, outros ultra-
passarão a esteira de discussões apresentadas até o momento,
mirando-nos para inquietações que tornam ainda mais complexas
tais relações de poder, laços afetivos e condutas morais.
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Reconhecer como trabalhadoras e trabalhadores se veem e


são vistos a partir do trato de sua experiência social não impede
que estejamos envoltos a discutir questões tão ou mais controver-
sas do que as já sugeridas neste livro, inclusive, indagando-nos se
esses são os limites do campo de visão para vislumbrar a realidade
social em movimento. Diante dessa ponderação, certas noções
retornam como problema investigativo para discutir a tecitura dos
modos de viver desses homens e mulheres. Pois, como ressaltou
Fenelon (2006), há mais de quinze anos atrás, apresentando um
campo de reflexão importante na seara da historiografia social

[...] vivemos em uma sociedade que exclui, domina, oprime


e oculta os conflitos e as diferenças, subjugados ao valor das
identidades, da unidade, do homogêneo e do único, então,
reafirmamos: o direito à memória torna-se uma reivindicação
vital para fazer surgir a diversidade, a diferença, o múltiplo,
as muitas memórias que nos permitem construir outras his-
tórias (FENELON, 2006, p. 7-8).

Ao nos debruçarmos sobre esse suposto há tanto tempo,


entendemos que a noção de ocultamento não se coloca como
algo imperativo, pois estão sendo produzidas memórias sobre
esses sujeitos, ainda que imiscuídas ao excluir, dominar e opri-
mir. Nossa inquietação estaria muito mais diante do modo como,
mesmo na dissidência, essa presença vem sendo formulada, apre-
sentada e proposta na investigação e produção histórica. Então,
92

alguns incômodos ainda permanecem no que tange ao direito à


memória. Pois, que memórias e intencionalidades se apresentam
na disputa social?
Nosso interesse investigativo vem sendo renovado cons-
tantemente, principalmente quando nos debruçamos sobre o que
interpela as relações de poder no tempo presente e, em contra-
partida, o modo como nos posicionamos perante isso. Então,
quando nos deparamos com evidências como as apresentadas na
leitura da reportagem acerca da presença transgênero em Cas-
cavel, Oeste do Paraná, tivemos a chance de colocar em análise

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que memórias e evidências estão se constituindo ordinariamente
acerca dessa e outras questões. Fizemos isso acessando o diálogo
produzido com a trabalhadora Márcia em uma matéria jornalística
(BARTH, 2018).
A auxiliar de enfermagem e fundadora da Organização Não
Governamental Acolher ao ser indagada para uma visibilidade
trans na imprensa on-line, não cumpriu apenas o propósito de se
encaixar como vítima na proposta que lhe foi apresentada, mas
apontou a latente tensão experimentada. Ao responder sobre as
mortes e violência destaca:

A morte não ocorre apenas fisicamente, a gente morre cada


vez que percebe que não pode sair durante o dia, nem ir ao
mercado. Se morre por não poder ir a uma unidade de saúde
e ser tratada de acordo com a sua identidade de gênero. Isso
nos mata aos poucos. A afirmação é de Marcia Ferreira Leite
Vilela, 39 anos, mulher transexual que passou pela transição
aos 14 anos (BARTH, 2018).

Esse repertório já enuncia um conjunto de questões nada


fáceis de calibrar frente às diferenças e desigualdades anotadas
na dinâmica social, mesmo em questões básicas, como ressaltadas
pela própria Márcia na conjugação com a narrativa anterior: “Não
temos nome e quando temos não somos reconhecidas por ele”.
Uma denúncia que serviu de título para a matéria de Barth, mas,
para além dos holofotes conquistados com tal chamada, importa
saber quem são essas pessoas, como vivem e o que almejam,
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 93

ainda que essa presença seja constantemente negligenciada ou


colocada por muitos setores e analistas em um gueto específico
de visão/seccionalidade.
Então, motivados por provocações que se enredam nessa
trama histórica, consideramos ser necessário pensar mais nos
dilemas e avaliações que povoam a tomada de decisões de quem
compõem, de forma diversa e por vezes dissonante, esse campo
de forças sociais. Pois, que sentidos e significados são atribuí-
dos a um convívio compartilhado desigualmente e marcado por
experiências de violência e opressão, ao mesmo tempo em que
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procuram tratar e reivindicar aspectos que dizem respeito ao


modo como vivem e esperam viver?
As dificuldades com relacionamentos familiares e amorosos,
atritos no ambiente escolar e nas relações de trabalho coadunam
com o universo de entraves explícitos nas relações de poder e
no que Márcia sugeriu como direitos negligenciados. Pois, con-
forme destacado por ela na entrevista em questão, esses são pon-
tos sensíveis há muito conhecidos por nós, mas que carecem de
maior dedicação, a qual ultrapasse a explicação das siglas e da
categorização a que se remete tais iniciativas, ou mesmo de uma
evidenciação dos aspectos morais que possam delinear (à priori)
o modo como socialmente nos relacionamos com tais marcadores
de diferenciação e defendemos sua inserção social39.

39 O trabalho de Peres e Toledo (2011) procura, no campo da psicologia, traçar algumas


explicações acerca da constituição dessas “novas identidades sexuais” e, ao mesmo
tempo, embasar academicamente o que compreendem como “estigmas” e “biopoder” a
que travestis, transgêneros e transexuais estão suscetíveis, sugerindo um leque de ações
para alterar tais limites e interdições, particularmente no campo do atendimento clínico
e acesso a políticas públicas de saúde. Contudo, esse lugar de reflexão, ainda que se
utilize da referência empírica para embasar suas ponderações, tem o interesse de traçar
um panorama e padrões de como são essas pessoas e como precisam de políticas e
entidades que as acolham e as orientem nesses embates. Por tudo isso, prevalece no
texto uma narrativa especializada e teórica da questão, ainda que sensível às nuances
próprias das questões que envolvem o que entendem como “identidades”. Com essa
direção, a experiência que travestis, transgêneros e transexuais possuem acerca de suas
práticas e relações não se apresenta no texto dos autores, foi reduzida a determinados
indícios para a construção de uma ação formativa. Assim, para além dos propósitos de
Peres e Toledo, em defesa e apoio à constituição de uma “Psicologia Política e Queer”,
observando e potencializando o entendimento de que “dissidências às normas de gênero”
94

Pensando nisso, retomamos a indicação de Márcia, apontada


anteriormente. Ela expressa visibilidades e sociabilidades que
lançam uma gama de desafios à nossa sociedade acerca do que
essa experiência social diz sobre o modo como vivemos, como
lidamos com sexualidade e costumes, principalmente quando
muitos de nós experimentam essas tensões e disputas (acerca de
valores) associadas às vulnerabilidades materiais que permeiam
sua condição de classe e se explicitam nas relações de poder em
que tomam parte.
Essa agenda ficará como um incômodo a ser talhado ao

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continuarmos essa conversa em novas produções/ações. Ela exige
um fôlego mais profícuo ao dedicarmos certa observância ao
debate e relações de poder envolvendo o modo como a sexua-
lidade compõe os viveres e condutas morais de trabalhadoras,
trabalhadores e trabalhadoris, bem como que transgressões e
experiências envolvem esse universo social de afirmar/negar
modos como essas pessoas propõem viver e se relacionar. Indícios
para desconstruir enunciações que insistem em transfigurar suas
trajetórias em excepcionalidades, explicitando uma convivência
social constantemente tensionada por intolerâncias e interdições,
em um exercício controverso e doloroso de domínio e confron-
tação, laços afetivos e relações de exploração.
Encerramos nos perguntando... Afinal, que histórias e
memórias estão submersas nos dramas e tramas envolvendo
identificações e distanciamentos dessa ordem? Que amarras são
mantidas ou corroídas ao usarmos determinadas lentes para a
análise histórica das relações de poder e redes de convivência

são ações que fazem parte da sociedade (não sendo uma ação à parte), não conseguimos
visualizar a potência social dessas pessoas, mas um invólucro teórico de boas intenções
que parece tornar-se mais substancial e relevante para os autores do que tratar das visões,
práticas e significados de quem experimenta tais relações e condições. Se esse não era
o propósito desde o início, então reforçamos aqui o que tentamos indicar durante todo o
livro, que há pontos a avançar na forma de comunicar e explicitar nossas questões, para
que haja melhores concatenações sobre as provocações de gênero do último meio século.
Ainda que muitos estejam voltados a não segmentar e almejem problematizar a dinâmica
dessas relações de poder, denunciando as intencionalidades expressas no tenso convívio
social, será preciso a materialidade histórica dessas experiências para fazer valer nossa
intenção de nos aproximar e compreender quem, como e por que protagoniza tais histórias.
NAS FRESTAS DA HISTÓRIA: provocações de gênero
no último meio século (Oeste do Paraná) 95

que tensionam esses modos de viver? Como tratar as controvér-


sias e alternativas produzidas por quem desigualmente ocupa e
produz a cena histórica?
Ao fazermos essas indagações recolocamos o horizonte sina-
lizado por Fenelon, pois continuamos a acreditar que “Temos,
portanto, um sugestivo campo a explorar no social e um longo
caminho a percorrer para enfrentar mais este desafio de alargar a
presença de muitos nas histórias que queremos produzir” (FENE-
LON, 2006, p. 8). Fica então o convite (e o destaque para a urgên-
cia) de adentrarmos com maior vigor nessas histórias entreabertas.
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de defloramento sofrido por sua filha. O ato teria sido consumado
mediante violência, causada por um hóspede da referida pensão.
Comarca de Toledo. Processo Criminal, [Toledo], n. 43/69, 22
jun. 1969 [compõe a peça processual o Inquérito Policial, 22
abr. 1969]. Esse documento se encontra arquivado no Núcleo
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SALETE (pseudônimo). Caderno de Orações II. 2010. Santa


Helena-PR.

SALETE (pseudônimo). Caderno de Orações III. 2011. Santa


Helena-PR.
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-nao-somos-reconhecidas-por-ele/. Acesso em: 10 dez. 2021.
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ÍNDICE REMISSIVO

A
Assistência social 9, 14, 36, 37, 38, 90
Autoridade judiciária 22, 34, 58

C
Colonização 52, 53, 56, 87
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Condição de classe 39, 67, 74, 77


Condições e relações 9, 12, 13
Conflitos morais 7, 17, 21
Crime 20, 23, 30, 34, 56, 79, 80, 85, 86, 90

F
Feministas 13, 55, 74, 85, 88, 89
Forças sociais 9, 14, 28, 68, 76

H
História das mulheres no Brasil 79, 82, 86, 88
História social 9, 11, 12, 13, 14, 48, 71, 84, 85, 88, 93
Historicidade 12, 13, 17, 23, 26, 27, 44, 54, 56, 58, 62, 67, 73, 74
Historiografia brasileira 20, 48, 50
Homens e mulheres 9, 12, 14, 24, 56, 58, 66, 67, 68, 73, 75

L
Libertinas 7, 17

M
Memórias e linguagens 9, 13, 82, 93
Modos de vida 20, 21, 67
114

O
Oeste do Paraná 7, 9, 13, 15, 17, 18, 25, 26, 36, 38, 43, 48, 51,
54, 56, 58, 65, 72, 73, 74, 79, 80, 82, 83, 84, 86, 87, 89

R
Relações de gênero 11, 12, 45, 51, 53, 69, 80, 85, 88
Relações de poder 13, 17, 21, 22, 24, 28, 30, 45, 46, 51, 53, 54,
58, 67, 72, 73, 75, 76, 77, 78, 85

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Trabalhadoras e trabalhadores 9, 11, 13, 22, 24, 25, 26, 29, 32,
36, 40, 41, 43, 45, 65, 66, 67, 73, 74, 75

V
Valores 7, 9, 11, 14, 17, 20, 21, 27, 35, 40, 49, 65, 73, 77
SOBRE OS AUTORES

Carlos Meneses de Sousa Santos


Pós-Doutor em História (UNIOESTE); doutor em História
(UFU); mestre em História (UFU). Pesquisador e extensionista
vinculado ao Grupo de Pesquisa e Estudos em História Social,
Memórias e Linguagens (CNPq/UNIOESTE).
E-mail: carlos.meneses3001@gmail.com
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Sheille Soares de Freitas


Doutora em História (UFU); mestra em História (UFU). Pesqui-
sadora e extensionista vinculada ao Grupo de Pesquisa e Estudos
em História Social, Memórias e Linguagens (CNPq/UNIOESTE).
Docente nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História
(UNIOESTE).
E-mail: sheille.freitas@gmail.com
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: Não comercializada
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 10,3 x 17,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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