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César Aquino Bezerra

Everton Dorzane Vieira


Roger Kenned Repolho de Oliveira
(organizadores)

Riode Um

Histórias
Conexões entre memória, cultura e patrimônio
no Baixo Amazonas
César Aquino Bezerra
Everton Dorzane Vieira
Roger Kenned Repolho de Oliveira
(Organizadores)

UM RIO DE HISTÓRIAS:
conexões entre memória, cultura e
patrimônio no Baixo Amazonas

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Diagramadores e Designers da Editora CRV
Revisão: Analistas de Escrita e Artes da Editora CRV

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

R585

Um rio de histórias: conexões entre memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas /


César Aquino Bezerra, Everton Dorzane Vieira, Roger Kenned Repolho de Oliveira (organiza-
dores) – Curitiba : CRV, 2021.
160 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-0340-2
ISBN Físico 978-65-251-0339-6
DOI 10.24824/978652510339.6

1. História 2. Memória 3. Cultura 4. Patrimônio I. Bezerra, César Aquino. org. II. Vieira,
Everton Dorzane. org. III. Oliveira, Roger Kenned Repolho de. org. IV. Título V. Série.

CDU (811.3) CDD 981.1


Índice para catálogo sistemático
1. Rio Amazonas 981.1

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2021
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de La Havana – Cuba) Marcel Mendes (Mackenzie)
Helmuth Krüger (UCP) Marcio Jose Ornat (UEPG)
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Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC) Simone Rocha (UnC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Sylvio Fausto Gil filho (UFPR)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG) Valdemir Antoneli (UNICENTRO)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG) Venilson Luciano Benigno Fonseca (IFMG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES) Vera Lúcia Caixeta (UFT)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
À MARGEM DO AMAZONAS.......................................................................... 9
César Aquino Bezerra
Everton Dorzane Vieira
Roger Kenned Repolho de Oliveira

PREFÁCIO...................................................................................................... 11
João Marinho da Rocha

ESPAÇOS DE AXÉ: terreiros afroindígenas em


Parintins-AM (1980-2020)................................................................................ 15
Márcia Gabrielle Ribeiro Silva

O PROTESTANTISMO NO INTERIOR DO AMAZONAS:


a trajetória do missionário Clinton Thomas e a Igreja de
Cristo em Urucará............................................................................................ 25
César Aquino Bezerra

O TRABALHO E SUA REPRESENTAÇÃO NA VIDA DOS


MORADORES DA COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO DA
BRASÍLIA EM PARINTINS-AM...................................................................... 41
Everton Dorzane Vieira

A IMPRESSÃO DO OLHAR: o contato.......................................................... 55


Patrícia Regina de Lima Silva

HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E MOVIMENTO FEMINISTA:


a luta e conquista por espaço e direitos no município de
Parintins no século XX..................................................................................... 67
Roger Kenned Repolho de Oliveira

MULHERES EM TRÂNSITO NA AMAZÔNIA:


o papel das redes de sociabilidade no processo migratório
feminino de Terra Santa à Manaus (1970-2018).............................................. 83
Suena Santarém Loureiro
COTIDIANO, PROMESSA E FÉ NOS FOLGUEDOS
NATALINOS DE PARINTINS – AM................................................................ 97
Jucimara Carvalho da Silva
Iraildes Caldas Torres

CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DE PARINTINS-AMAZONAS:


apontamentos sobre a antiguidade de ocupação do município......................111
Michel Carvalho Machado

A CIDADE COMO TEXTO: patrimônio edificado,


histórias e memórias da cidade de Parintins (AM)......................................... 127
Rodrigo Tavares de Souza

CONFLUÊNCIAS CULTURAIS – NARRATIVAS DOS


COMPOSITORES PAULINHO DÚ SAGRADO E JOSÉ
CARLOS PORTILHO: história oral, memória e identidade musical............. 141
Hiana Rodrigues da Silva Magalhães

ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................... 153

SOBRE OS AUTORES................................................................................. 157


APRESENTAÇÃO
À MARGEM DO AMAZONAS
O primeiro planejar para este livro se deu em uma mesa à margem do rio Amazo-
nas, com o soprar dos ventos próprios do rio ao final da tarde; ali surgiu o título “Um
rio de histórias”. Em novembro de 2020, não parecia ser esse o nome para aquela
primeira proposta, mas com o amadurecimento do projeto, essa ideia firmou-se em
nós com a força do rio ao nosso redor.
Para alguém que vive no interior da Amazônia, o rio é como uma entidade que rege
nossas histórias. Se tomarmos apenas a última década, os caminhos dos autores desse
livro se cruzaram, como vários afluentes, tendo o Amazonas como canal desse encontro.
Alguns vieram de outros municípios e até estados, até a ilha Tupinambarana e ao Centro
de Estudos Superiores de Parintins (CESP), onde nos conhecemos. Os colaboradores
dessa coletânea estão de alguma forma ligados ao Curso de Licenciatura em História no
CESP, inclusive como colegas de turma; muitos também dividiram experiências no Grupo
de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA), antes de ingressarem na pós-graduação, e
ainda ligam-se por pesquisa e contato; também tivemos oportunidades de participar de
projetos de pesquisa e/ou extensão, bolsistas ou voluntários, e assim aprender o que é ser
pesquisador no Baixo Amazonas. Nessas trajetórias em comum, subimos e descemos o
rio para estudar, pesquisar, entrevistar, observar, ouvir, conversar, participar de eventos e
de editais dos programas de pós-graduação, e agora como mestrandos ou mestres.
Pensamos na História como um poderoso rio, tal qual o Amazonas, em que nos
movemos, vivemos, trabalhamos, resistimos, choramos, cantamos, plantamos e colhe-
mos. Em que navegam inúmeros anônimos e muitos conhecidos, homens, mulheres,
ricos e pobres, esquecidos e laureados. Tal como pescadores, pegamos nossas ferra-
mentas de pesquisadores e estamos pescando histórias, com o propósito de conhecer
o Amazonas e seus povos, a partir de suas memórias, culturas e patrimônios.
Os capítulos desse livro partem da nossa trajetória no Mestrado em diferentes ins-
tituições e programas: Universidade Federal do Amazonas (História Social e Sociedade
e Cultura na Amazônia) e Museu Paraense Emílio Goeldi (Diversidade Sociocultural).
Fazem parte das vivências e anseios que nasceram do contato com a pesquisa, ao se
deparar com nossa realidade e vozes que por muito tempo não foram ouvidas no meio
acadêmico. Este trabalho não deseja ser o fim de uma jornada, iniciada e navegada pelo
rio Amazonas, mas o primeiro passo ou navegar para pesquisas que serão construídas
após essa pequena colaboração aos estudos do Baixo Amazonas, tomando “Um rio de
histórias” como uma remada inicial para conhecer e escrever sobre essa riqueza histórica,
social e cultural, subindo ou descendo o rio.

Manaus, AM, 04 de fevereiro de 2021.

César Aquino Bezerra


Everton Dorzane Vieira
Roger Kenned Repolho de Oliveira
PREFÁCIO
“A Amazônia transformou-se em uma terra sem homens. Um território a
ser “integrado”, ocupado e desenvolvido de fora para dentro, por projetos
grandiosos de colonização, mineração, agricultura ou de exploração madeireira.
Ao largo disto, a história local e seus agentes quase foram esquecidos.
É preciso mudar este quadro, enfatizando a presença constante de um
povo local. Há um povo das florestas, que vive da extração de produtos
da mata e dos rios e em guerra por sua conservação e sustentação. Há um
povo indígena multifacetado, mas uníssono na guerra com os brancos e a
usurpação que estes continuam fazendo de suas terras e riquezas. Existe
ainda um povo afro-brasileiro que cotidianamente reivindica a propriedade
de seu território, obtido pela luta quilombola e escrava. Todos estes
povos se deparam constantemente com problemas como a devastação
ecológica, a questão fundiária, a miséria e, sobretudo, a falta de acesso
à plena cidadania. Sua luta presente também rememora a dos tempos
cabanos. Trata-se de povos amazônicos e de uma luta secular que merece
ser conhecida e amparada.” (RICCI, 2007, p. 30) [Grifos Nossos].

É sempre um desafio produzir conhecimentos científicos em contextos adversos


como o que adentramos no Brasil nos últimos anos e que se agravou com a pandemia
da Covid-19 que nos leva diariamente as esperanças. São nesses mesmos contextos,
no entanto, que aparecem oportunidades de reafirmar valores e aquilo que vale a pena
ser dito e que nos faz trazer as esperanças de volta.
Estamos nos referindo a outras possibilidades de pensar a história Local e Regio-
nal. Isto parece ser o caso da coletânea “Um rio de histórias: conexões entre memória,
cultura e patrimônio no Baixo Amazonas”. Uma iniciativa de ex-estudantes do curso
de história da Universidade do Estado do Amazonas, Centro de Estudos Superiores
de Parintins, ligados ao Grupo de Estudos Históricos do Amazonas-GEHA/UEA, que
atualmente encontram-se em contextos de programas de pós-graduação na Univer-
sidade Federal do Amazonas (História Social e Sociedade e Cultura na Amazônia).
Coletâneas como essa nos renovam as esperanças em práticas de pesquisas refe-
renciadas em realidades amazônicas como o Baixo Amazonas, a partir de contextos
de interiorização das instituições públicas de ensino superior. Redes de solidariedade
acadêmica que vem formando e informando pesquisadores iniciantes locais conecta-
dos a temas variados, alguns dos quais configuram a coletânea “Um rio de histórias”.
As leituras dos dez textos da coletânea informam experiências de pesquisa de
onde emergem sujeitos, sociedades, culturas pouco ou não visualizadas em fontes ins-
titucionalizadas e que inúmeras pesquisas, insistem em tratá-las como privilegiadas,
em detrimento de oralidades e memórias amazônicas. Em consequência, reproduzindo
concepções e discursos que não visualizaram tais realidades. Pelo contrário, crista-
lizam memórias de grupos sociais privilegiados, entendidos como construtores da
história regional e local. Nisso, homogeneízam, unificam e empobrecem a Amazônia
heterogênea, diversa e rica física e culturalmente.
12

“Um rio de histórias” configura-se a partir de três momentos, o primeiro agrega


os textos de Márcia Gabrielle, César Bezerra e Everton Dorzane Vieira; o segundo
pelos textos de Patrícia Regina, Roger Kenned, Suena Santarém e Jucimara Carva-
lho e Iraildes Torres; o terceiro pelos textos de Michel Carvalho, Rodrigo Tavares
e Hiana Rodrigues.
Em seu texto “Espaços de axé: terreiros afroindígenas em Parintins-AM (1980-
2020), Márcia Gabrielle Ribeiro Silva adentra as experiências e trajetórias de vida de
sujeitos afro-religiosos para informar das conexões entre as culturas afro-indígenas
em Parintins. Sua reflexão insere-se em um contexto recente que vem desqualificando
os silêncios das ciências humanas e sociais para as presenças negras no Amazonas.
César Aquino Bezerra, através do texto “O protestantismo no interior do Amazonas:
a trajetória do missionário norte-americano Clinton Thomas e a Igreja de Cristo
em Urucará”, produzem reflexões para além de simples atuações religiosas, infor-
mando para conexões no âmbito político, socioeducacional e da saúde da cidade de
Urucará. Também seguindo as histórias em aberto possibilitadas por fontes como as
memórias orais. Everton Dorzane Vieira, em “O trabalho e sua representação na
vida dos moradores da Comunidade São Sebastião da Brasília em Parintins-AM”,
nos informa sobre suas pesquisas com moradores da comunidade São Sebastião da
Brasília. Homens e mulheres que informam suas representações sobre o trabalho na
juta, na pesca, na agricultura e criação de pequeno porte e conectam tempos, espaços e
relações de trabalho ao longo da segunda metade do século XX na Várzea de Parintins.
Em “A impressão do olhar: o contato” Patrícia Regina de Lima Silva nos
apresenta uma brilhante reflexão sobre as conexões entre Amazônia e Nordeste. O
faz por meio de análises de narrativas de mulheres fixadas em Parintins na segunda
metade do século XX que informam suas experiências em trânsitos entre fronteiras
e não lugares. Roger Kenned Repolho de Oliveira em “História oral, memória e
movimento feminista: a luta e conquista por espaço e direitos no Município de Parin-
tins no século XX”, recupera trajetórias e experiências de mulheres de Parintins da
segunda metade do século XX nas suas lutas por direitos. Nessa mesma perspectiva,
pautada em práticas metodológicas como a História Oral, Suena Santarém Loureiro
em “Mulheres em trânsito na Amazônia: O papel das redes de sociabilidade no pro-
cesso migratório feminino de Terra Santa à Manaus (1970-2018)”, produz reflexão
necessária também a partir de trajetórias e experiências de mulheres do Oeste paraense
em trânsito para Manaus. Vozes que apontam cotidianos e conexões múltiplas entre
espaços e fronteiras globais produzidas pelo capital na e a partir da Amazônia. As
vozes de mulheres continuam a dar as bases para as análises dos contextos amazô-
nicos como ocorre no texto “Cotidiano, promessa e fé nos folguedos natalinos de
Parintins-AM” de Jucimara Carvalho da Silva e Iraildes Caldas Torres, que produz
um diálogo entre o cotidiano, a promessa e a fé no folguedo natalino das pastorinhas
da cidade de Parintins.
No texto “Cerâmicas arqueológicas de Parintins-Amazonas: apontamentos
sobre a antiguidade de ocupação do município”, Michel Carvalho Machado abre o
último bloco, informando sobre as potências e possibilidades abertas para (re) pensar
as Amazônias a partir de outros referenciais para além dos que foram produzidos
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 13

a partir da colonização europeia. As coleções cerâmicas presentes no município de


Parintins iluminam sobre as ocupações dessa região e por isso, podem ser lidas para
configurar informações sobre si, numa perspectiva que conecta educação patrimonial,
a memória e a história local. Também nessa perspectiva, Rodrigo Tavares de Souza,
em seu texto “A cidade como texto: patrimônio edificado, histórias e memórias da
cidade de Parintins (AM), nos convida a (re) pensar a história urbana de Parintins
por meio de seu Patrimônio edificado e as conexões abertas a partir dele. Ainda
nessa seara do patrimônio, segue o texto de Hiana Rodrigues da Silva Magalhães,
“Confluências culturais – narrativas dos compositores Paulinho Dú Sagrado e José
Carlos Portilho: história oral, memória e identidade musical”, que nos convida a
(re) pensar a cidade de Parintins e suas conexões com outros espaços por meio das
memórias de artistas locais no contexto da década de 1980.
A leitura de “Um rio de histórias: conexões entre memória, cultura e patrimô-
nio no Baixo Amazonas”, permite refletirmos sobre a capacidade da Amazônia em
mover-se diante de concepções e ideias produzidas sobre ela. Também nos conforta
no sentido de continuar a pensar que as idas da ciência até as realidades profundas da
Amazônia são extremamente positivas no sentido de contribuir na compreensão dessas
sociedades e culturas amazônicas sempre móveis e em contínuas (re) construções.
Para tanto, as escolhas teórico-metodológicas, as técnicas de acesso à tais reali-
dades, também precisam ser flexíveis e capazes de adentrar os mundos onde residem,
ou indicam residir tais vozes. Estejam elas nas cidades, nos rios e ou nas matas, sejam
quais forem as entidades e ou discursos que as representem ou julguem representar.
A ciência que hora se faz, a partir da Amazônia, precisa cada vez mais, portanto,
exercer a identificação, a escuta e a compreensão dessas múltiplas vozes.
A leitura de “Um rio de histórias”, também reflete uma necessidade da história
do tempo presente, onde (re) pensar os passados e as existências presentes se torna,
cada vez mais, um ofício fundamental.

Parintins, 01 de fevereiro de 2021.

João Marinho da Rocha


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REFERÊNCIA
RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do
patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, Niterói, v. 11, n. 22, 2007, p. 5-30.
ESPAÇOS DE AXÉ: terreiros afroindígenas
em Parintins-AM (1980-2020)1
Márcia Gabrielle Ribeiro Silva

Considerações iniciais
Pretende-se trazer para escrita o terreiro e a cidade, pensando estes como luga-
res simbólicos de pertencimento. Os lugares de uso comum, portanto, são espaços
fundamentais para a manutenção da prática religiosa dos umbandistas em Parintins.
Esses lugares em algum momento é o sagrado destes praticantes, que entre oferen-
das e saudações deixam transparecer que existem religiões de matriz africanas na
cidade. O povo de santo possui uma ligação muito forte de pertença identitária com
tais espaços. Tais laços são comumente tensionados nos “arquivos de memória” que
informam conflitos entre “os estabelecidos e os de fora” (ROCHA, 2019, p. 326).
Estes lugares simbólicos tem a função de manter o axé, ou seja, fazer crescer
o conhecimento que harmoniza as forças da natureza, como os do mundo invisível
e visível (SANTOS, 2019).
Para tanto este estudo adota a História Oral como metodologia privilegiada para
a produção de fontes e elaboração da pesquisa. A pesquisa com História Oral articula-
-se com o campo da história antropológica, pois compreende-se que é preciso atribuir
ao fenômeno investigado um olhar capaz de valorizar a sua dinâmica e pluralidade.
“A história oral e as memórias, pois, não nos oferecem um esquema de expe-
riências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas reais e ima-
ginárias” (PORTELLI, 1996, p. 8). Estas possibilidades de apresentar experiências
e histórias de vidas é um ponto de partida para o fazer-se das religiões afroindígenas
na cidade de Parintins, são histórias de mães de santos e de terreiros que marcam
resistências de culturas que se encontram na Amazônia, dando um outro olhar para
raízes históricas que aqui passaram e por muitas vezes fixaram territórios.
O fazer-se histórico dos terreiros está relacionado à dinâmica social, espacial e
cultural no qual está inserido. Com efeito, a sua consolidação nesse campo se relaciona
com dimensões vividas do divino. Dimensões sociais do “sagrado”, nessa manifestação
justificam a escolha do espaço como um ponto primoroso. Uma parte no mundo onde o
indivíduo religioso se sente orientado para se comunicar com seus deuses, articulando aí
seu território de memória e espaço social de produção humana como sujeito histórico.

O axé que movimenta


Nos sons emitidos pelos tambores, ancestrais e contemporâneos, existem
inúmeras possibilidades de abrangência da cultura afro-brasileira e, por isso, das

1 Este artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado intitulada “Terreiros de memórias afroindígenas:
experiências da umbanda em Parintins/AM (1983-2019)”.
16

manifestações de religiosidade como, por exemplo, a Umbanda e o Candomblé. Desta


forma, as músicas, acompanhadas de suas danças, suscitam rituais, remetendo-se à
história e memória do povo-de-santo. Os batuques também representam historicida-
des, caminhos para o alcance dos fios e rastros da cultura afro-brasileira na Amazônia
e, por inclusão, no Amazonas.
É da diáspora negra que nasceram as afrorreligiões, dentre estas a Umbanda,
apesar de não haver unanimidade quanto a essa constatação, é, por muitos, conside-
rada uma religião brasileira. Durante esse processo de legitimação das religiões de
matrizes africanas no Brasil, o crescimento dos centros e terreiros foi significativo em
todo território, já que as pessoas não se escondiam mais, sua liberdade de expressão
começou a ser respeitada gradativamente. Embora ainda constatamos pela mídia
casos gravíssimos de intolerância religiosa na contemporaneidade.
Na Amazônia aos poucos esta legitimação das religiões de matrizes africanas
com a sociedade foi se firmando, exemplo disso são os números de espaços de reli-
giosidade que vem crescendo com os anos. É necessário destacar que na Amazônia
a religião africana se “juntou” com a pajelança indígena, ganhando outros aspectos e
entidades, pode-se afirmar que em cada região do Brasil as ditas religiões de matrizes
africanas vão se reconstruindo com a cultura daquela determinada região.
Nesses territórios as religiões de matrizes africanas constroem e reconstroem
formas de resistência. Os terreiros de umbanda representam a baliza onde se abriga
a diversidade de deuses e entidades inscritas em um espaço considerado sagrado.
Mas também espaços de sociabilidade e memória, onde a história do povo-de-santo
é encenada por meio dos ritos, essencialmente os iniciáticos, nos quais se constituem
os pais e mães-de-santo.
Assim sendo destaco ‘a cidade dentro da cidade’; esta outra cidade aqui, faz
reverência aos centros e terreiros de umbanda na cidade de Parintins, marcando esses
territórios como o lugar de fala destes praticantes da religião afroindígena. Para
Amailton Azevedo (2018, p. 47):

No universo da cultura negra, a memória do corpo-música e da música- corpo


são indissociáveis, dependentes uma da outra, completando-se interpretando-se
e reelaborando a Àfrica na sua dimensão rítmica, na palavra oral sacralizada, nas
devoções religiosas aos ancestrais, na arte visual e comunicativa.

A cultura negra vai se reelaborando, seja no corpo, seja música, bem como na
própria prática da religião. Mas quando falamos em umbanda na cidade de Parintins,
nos deparamos com um hibridismo, onde várias culturas se encontram. E onde a
cultura negra e indígena se destacam.
Quando faço referência aos cultos de origem africana, estes podem ser obser-
vados como cultos aos orixás nas giras, sejam este na casa de mãe Bena, ou na casa
de mãe Cintia.
São dimensões de um estilo negro como Leopold Senghor (2011) tanto fala,
mas na Amazônia, este estilo já não é tão negro e sim afroindígena. Os terreiros aqui
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 17

são tratados como diria Raquel Ronique (1992) ‘espaços vivos’. Assim sendo, para
Muniz Sodré (2002, p. 75):

O negro no Brasil, com suas organizações sociais desfeitas pelo sistema escrava-
gista, recostruir as linhagens era um ato político de repatrimonialização. O culto
aos ancestrais de linhagem (egun) e dos princípios cósmicos originários (orixás)
ensejava a criação de um grupo patrimonial (logo de um ‘território’ com suas
aparências materiais e simbólicas, o terreiro) que permitia relações de solidarie-
dade no interior da comunidade negra e também um jogo capaz de comportar a
sedução pelo sagrado, de elementos brancos da sociedade global.

É no terreiro que as relações de solidariedade com a sociedade é estabelecida.


E elementos ditos da sociedade global são incorporados. Mas quando falamos destes
espaços em Parintins, nos referimos a outra cidade, dentro da cidade.
Os terreiros ainda se encontram distantes dos grandes centros urbanos, ou em
meio a residência sem placa de indentificação, sabe-se das giras quando os tambores
começam a soar, aí os curiosos se aproximam. Ou querem uma consulta pra uma
vidência, sem que alguém saiba que frequenta esses espaços. Mas estas mesmas
pessoas que se dizem não gostar e demonizam essa prática, muitas vezes estão nas
festas que os terreiros promovem e também colaboram.

Terreiro na rua

Fonte: Acervo pessoal/SILVA, 2019.


18

A presente imagem foi tirada no dia 20 de janeiro ano de 2017, durante a festa
de Oxóssi no Centro de Umbanda Mãe Mariana, que tem como zeladora mãe Cintia,
nela percebemos a mãe de santo rodeada de seus filhos de santo, bem como a socie-
dade também.
Este foi o momento que antecede a derrubada do mastro, onde a festa é voltada para
a prática religiosa, a gira começa em meio à rua, e todos ficam com os olhares atentos
ao ritual. É então que os primeiros pontos começam.

Salve São Sebastião


Santo pai deste terreiro
Tenho tanta devoção
Ao meu santo padroeiro
Todo 20 de janeiro, sempre vou à missa
Para pagar promessa, agradecer a Deus.
Comprar as fitas para o bem da quermesse
Renovar as preces para fortalecer
Eu vou, eu vou...
Vou na fé no meu senhor eu vou, eu vou...

O presente ponto é um dos pontos que só é cantado durante a festa e por várias
vezes. Através da letra podemos observar que as promessas já foram pagas mais um
ano, e as fitas servem para que se renovem as promessas para o ano seguinte. A festa
ela é renovada durante a que está se encerrando.
É neste momento que eu afirmo que de fato a gira começou na rua, são quando os
pontos cantados começam, é um terreiro que é formado naquele momento bem diante
dos olhos da sociedade. Seja este apenas para agradecimento, a rua vira uma grande
gira. O axé é carregado por cada médium presente, então o espaço sagrado pode ser
formado em qualquer lugar, podendo ser na mata, no rio e também na rua. Pois como
já diz o ponto cantado, ‘vou fé do meu senhor... eu vou..’
É neste momento que concordo quando Muniz Sodré (2002) enfatiza os mais
diversos tipos de forças, sejam essas sobrenaturais e naturais, mais o ponto em que se
quer chegar é esta força que move os ‘espaço’, cito os terreiros e o próprio corpo, o
corpo como espaço de força, neste caso temos o tão famoso ‘axé’ um dos elementos
mais importantes e conhecidos nos terreiros e centros, o axé que ao mesmo tempo que
gera espaço dentro do terreiro como no interior de cada membro.
Outro momento que vamos evidenciar o terreiro como a outra cidade, é durante a
festa de São Cosme e Damião. Onde o terreiro também promove e é cheio de visitantes de
todas as idades. O terreiro vai se encontrando com a cidade em laços de fé e solidariedade.
A presente imagem foi tirada no dia 27 de setembro de 2018, no terreiro São
Sebastião, que tem como zeladora mãe Bena de Oxóssi, com a ajuda de seus familiares,
estes biológicos e de santo, bem como amigos promoveram para as crianças. A festa
era dedicada para as crianças, mas todos independentes de idade também participavam
da culminância da festa.
Um palco foi montado, nele foram apresentadas várias brincadeiras, o primeiro
momento foi os netos de sangue de mãe Bena que tomaram de conta da festa, em seguida
um palhaço tomou de conta promovendo brincadeiras com as crianças presentes.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 19

Festa de Cosme e Damião

Fonte: Acervo pessoal/SILVA, 2019.

As crianças fantasiadas podiam pegar a vontade as guloseimas que estavam sobre


o tapete e a mesa, ordens dadas pela mãe de santo. Este primeiro momento é marcado
pelos sorteios aos presentes, bem como as guloseimas distribuídas em intervalos.
A imagem a seguir mostra como que estavam arrumadas as guloseimas. Devido
o espaço do terreiro de mãe Bena não poder comportar todos na festa, a mesma arru-
mou outro espaço, em um local aberto no seu terreno para que neste acontecesse a
festa de Cosme e Damião, e consequentemente a gira.

Guloseimas de Cosme e Damião

Fonte: Acervo pessoal/SILVA, 2019.


20

Na mesa ao centro está uma imagem dos erês, estes são as crianças, bem como
a imagem de Cosme e Damião, a festa é dedica às crianças. O tapete ao centro com
as guloseimas é para todos, principalmente para as crianças fantasiadas. Estes podem
chegar e se sentar ao lado e comer o que está servida no tapete.
Após várias brincadeiras e intervalos de guloseimas, o toque do tambor vai
soando entre as crianças, é chegada a hora das criancinhas descerem para fazerem
parte da festa. Assim como diz a letra do ponto, ‘as criancinhas já vão descer’.
É neste encontro de solidariedade que o terreiro se encontra, que vão marcando
essa outra cidade dentro da cidade. É encantado em meio às pessoas, marcando a
pluralidade de espaço em meios tensões e laços sociais de ligação com o outro. Seja
pela própria prática religiosa como também pelo gesto de compartilhar as comidas
e guloseimas com o próximo.
Muniz Sodré (2002) destaca a resistência que a cidade tem com as religiões
de matrizes africanas. O mesmo ressalta a posição do lugar social em que se inseri
o terreiro dentro da cidade, e de que forma a identidade desses adeptos das reli-
giões de matrizes africanas se confirma diante dessa resistência em que se depara.
O autor busca compreender o espaço (sagrado) e como ele foi ao longo do tempo se
modernizando, ou seja, foi sofrendo influência da sociedade. E como esse processo
de modernização, influenciou no crescimento das religiões africanas. Ora a religião
apareceu sofrendo resistência da sociedade, ora essa sociedade ajuda os adeptos na
construção de sua identidade religiosa, mesmo que seja muitas vezes ‘sem querer’.
Cabe refletir em cima dessa tensão que existe entre o terreiro e a cidade, no qual o
autor apresenta, destacando as mudanças e resistências.
Homi Bhabha em “Locais da Cultura” na obra o “Local de Cultura”(1998), um
dos pontos ao qual o autor faz referência inicial é a fronteira, esta que é o lugar do
qual começa a se fazer presente, não é o que divide e separa duas coisas, mas o que
reúne e mistura. Este trabalho fronteiro da cultura exige um encontro com o novo,
pois é a partir de então que surge uma nova perspectiva de se falar das minorias,
ou seja, dessas histórias alternativas dos excluídos como o mesmo pontua (p. 25).
Compreender essa diferença cultural como produção de identidades é um ponto
importante para se entender este local da cultura.
É nesta perspectiva que entendemos a religião umbandista na cidade de Parin-
tins. Assim como o autor não nos atemos na necessidade de se fazer conceitos, mas
sim entender e explorar essas culturas aqui apresentadas pela peculiaridade que é a
religião no Amazonas.
Quando questionadas as mães de santo sobre essa ligação da umbanda com
outras culturas e religiões, as mesmas mencionam que:

Existe uma ligação, que é chamada de sincretismo religioso né. Os próprios san-
tos da... igreja católica, são os santos com outros nomes dentro da umbanda,
mas são as mesmas pessoas vamos dizer assim, a gente cultua né. Como, olha...
agora a gente tá em plena festa de Oxóssi né, que é o São Sebastião, nós tam-
bém festejamos Nossa Senhora da Conceição, que é dona Mariana, Iemanjá na
umbanda. E entre outros santos também que fazem parte da religião católica
(Mãe Cintia, 2015).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 21

Bom... eu... não tenho assim né...por exemplo tenho um envolvimento muito na
igreja católica. não é uma questão de envolvimento, eu sou católica! Querendo
ou não o padre não vai me expulsar de lá, porque eu sou filha de Deus né. E os
meus filhos todos passaram, são batizados, meus filhos tem a primeira comunhão,
tem... fizeram a crisma todos eles entendeu? Eu sou casada na igreja católica, eu
sou casada na civil, sou casada na igreja católica, eu não tenho bem uma ligação
dentro do terreiro. Terreiro/ Igreja entendeu isso eu não tenho. Mas eu Bena pessoa
tenho, com certeza! (Mãe Bena, 2014).

O catolicismo além de ter forte influência direta na umbanda, se evidenciou


acima o reconhecimento das mães de santo em ter essa religião como parte da religião
afro e de suas vidas e de suas famílias. Além do catolicismo, o espiritismo kardecista
também é muito presente, assim como o pentecostalismo, estes que compõe o cenário
religioso na cidade atualmente.
Para mãe Cintia, existe uma ligação ao qual ela chama de sincretismo religioso,
e a mesma justifica. Por muito tempo pensou-se num sincretismo, ou seja, numa fusão
entre as religiões. Mas hoje como mencionado por Homi Babba (1998) acima, não
vem ser uma fusão e sim uma mistura de culturas. A entrevista com a referida mãe
se deu no mês de janeiro no ano de 2015, neste mês comemora-se a festa de Oxóssi
como ela menciona, esta no terreiro. E a de São Sebastião na igreja católica.
Mas assim como observamos no terreiro há um momento dedicado para a lada-
inha, esta que é rezado em latim. Passado este momento volta-se o culto de matriz
africana, os atabaques continuam a ecoar na festa de Oxóssi.
Diferente de mãe Cintia, mãe Bena logo faz uma afirmação quando questio-
nado sobre a ligação, ‘eu sou católica’, apesar da afirmação a referida mãe de santo
ressalta que não vê essa ligação de terreiro e igreja. Embora o nome de seu Terreiro
seja ‘Terreiro São Sebastião, entendemos quando ela enfatiza que a igreja é uma
coisa e o terreiro é outra. São espaços de diferentes cultos.
Quando ‘buscamos fontes orais porque queremos que essas vozes – que, sim,
existem, porém ninguém as escuta, ou poucos as escutam – tenham acesso à esfera
pública, a discurso público, e o modifiquem radicalmente’ (PORTELLI, 2010, p. 03).
É com esta necessidade que trabalhamos com as narrativas dessas mães de santo.

Considerações finais
A luta diária e constante pela territorialidade geofísica, geopolítica, e principal-
mente cultural suscita a presença das afrorreligiões nas cidades. Buscou-se um olhar
nas relações do terreiro com a cidade, estes nas festas de terreiros e nos espaços de
axé. Desta forma Maria Antonieta Antonacci (2013) atenta para o pensar sobre os
terreiros na cidade, e como fazer isso, na medida em que estes corpos negros falam
através das danças, das tradições cantadas que inventam a si mesmos e a uma África
no Brasil. A identidade e a vivência classificam o espaço que se pode ter dentro da
cidade. Logo, o corpo negro, este corpo que é espaço de cultura, que teve sua história
marginalizada, tem muitos de seus terreiros invisibilizados em nome do progresso. É
22

nesta perspectiva que se observou as mais diversas faces na relação do terreiro com
o espaço social da rua e da cidade através das festas.
Outro autor que nos faz refletir sobre este axé que movimenta, que constrói
e reconstrói é Amailton Magno Azevedo (2017), no qual traz uma contribuição
fundamental pelo conceito de micro-áfricas, estas como chave de interpretação de
expressões culturais negras. A partir desse conceito reconstrói e revaloriza memórias,
territórios e vivências dos negros e negras. Pensando este conceito para Parintins,
onde a população não é apenas negra, mas indígena. São terreiros de umbanda afroin-
dígenas que resistem dentro da cidade.
Articulando a problematização de imagens e de entrevistas, constatou-se que a
prática da umbanda e do candomblé nesse meio une negros, brancos e indígenas em
laços históricos de fé e relação com os encantados.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 23

REFERÊNCIAS
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Paulo: Educ, 2013.

AZEVEDO, Amailton Magno. Sambas, quintais e arranha-céus: as micro-áfricas


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Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 70, p. 44-58, ago. 2018.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

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nas memorias e nas fontes orais. Tempo, rio de janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 59-72.

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nal da ANPUH, Fortaleza, 2009. Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 2-13, 2010.

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lombola do rio Andirá. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) Uni-
versidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.

ROLNIK, Raquel. “História urbana: História na cidade? em Cidade e História-


Modernização das cidades Brasileiras nos séculos XIX e XX”. UFBA, mestrado
em arquitetura e Urbanismo, 1992.

SANTOS, Marlene Pereira dos. Festas, danças e histórias de terreiro em Fortaleza.


Fortaleza, CE; Editora Via Dourada, 2019.

SENGHOR, Leopold. O contributo do homem negro. In: SANCHES, Manuela


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-coloniais. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 73-93.

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cias da umbanda em Parintins/AM (1983-2019). Dissertação (Mestrado em História)
– Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.

SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de


Janeiro: Imago; Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002.
24

Fontes
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Gabrielle Ribeiro Silva: Entrevista concedida em sua residência, 2015.

SANTOS, Benedita Pinto dos. Benedita Pinto dos Santos. [Dez. 2014]. Entrevista-
dora: Márcia Gabrielle Ribeiro Silva: Entrevista concedida em sua residência, 2014.
O PROTESTANTISMO NO INTERIOR
DO AMAZONAS: a trajetória do missionário
Clinton Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará
César Aquino Bezerra

Introdução
O Brasil recebeu oficialmente o protestantismo no século XIX, identificado
em dois grupos: o primeiro, de imigração ou de colonização, tinha origem nos colo-
nos ingleses, alemães e confederados norte-americanos, caracterizado pela falta de
interesse em fazer proselitismo entre os brasileiros; o segundo, de missão, era de
procedência norte-americana, com missionários dedicados à conversão de almas fora
dos grupos étnicos (MENDONÇA, 2005). Seja por imigração ou missão, até o início
do século XX as principais denominações protestantes já estavam atuando no país.
Na Amazônia, a inserção protestante deu-se no período do pós-Cabanagem
e do auge da economia gomífera, com consequente aumento do fluxo migratório,
crescimento demográfico e desenvolvimento das capitais Belém e Manaus. Através
dos registros dos primeiros missionários, de 1839 em diante, podemos desvelar suas
estratégias de evangelização associadas ao projeto de civilização, pautados nos ideais
de progresso norte-americano (OLIVEIRA; PINTO, 2017). Nesse cenário, o episco-
pado católico percebia a expansão do novo movimento religioso como uma ameaça
à consolidação da sua hegemonia e até como um perigo geopolítico, alertando que
a presença dos estrangeiros e sua outra forma de cristianismo prejudicava a integri-
dade do território nacional e, por isso, não podiam ser tolerados (MACIEL, 2014;
LARANJEIRA, 2017; OLIVEIRA; PINTO, 2017).
Segundo Oliveira e Pinto (2017, p. 106), “os primeiros missionários protestantes
que fizeram parte do projeto de propaganda protestante na Amazônia prepararam as
bases para o estabelecimento das primeiras igrejas evangélicas na região”. Até as
primeiras décadas do século XX, principalmente devido a missionários norte-ameri-
canos, missões e igrejas metodistas, anglicanas, batistas, presbiterianas, adventistas
e pentecostais fixaram-se ao longo dos rios, de Belém a Manaus (PANTOJA, 2011;
CARVALHO, 2015; LARANJEIRA, 2017; TORRES NETO, 2019). Nota-se que
a influência norte-americana na religiosidade protestante brasileira, bem como na
amazônica, “tem uma duração que excede os acontecimentos conjunturais” (HUFF
JÚNIOR, 2008, p. 59). Concomitantemente, a Igreja Católica, procurou garan-
tir junto aos fiéis amazônidas a hegemonia das doutrinas do cristianismo romano
(MACIEL, 2014), como parece o caso da região do Médio e Baixo Amazonas na
segunda metade do século XX (CERQUA, 2009; SILVA, 2018).
26

Nessa conjuntura de possíveis tensões e de tentativa de controle da Igreja Cató-


lica sobre os seus fiéis, e amparados nas décadas de entrada de missionários pro-
testantes norte-americanos na região, a família de Clinton Benjamin Thomas chega
a Urucará, em 1965, instalando uma missão religiosa fundadora da primeira igreja
protestante daquela cidade amazonense, a Igreja de Cristo. Partindo de trabalhos
como os aqui apresentados, argumentamos que “conhecer a história da presença
do protestantismo na Amazônia é se aprofundar um pouco mais na própria história
dessa região, que apesar de sua reconhecida importância, ainda ocupa um espaço à
margem na historiografia nacional” (GAIA; REIS, 2019). Com a trajetória de Clinton
Thomas, tendo a inserção protestante como fundo histórico, lançamo-nos ao desafio
de escrever parte dessa história.

Fontes para escrever a história no interior do Amazonas


Na Amazônia, nem sempre é possível ao historiador encontrar as tradicionais
fontes históricas para investigar seu objeto de interesse. Essas fontes podem estar
armazenadas em instituições de guarda de documentos, mas em uma região marcada
pelas longas viagens pelos rios, acessá-las nem sempre é possível. Além disso, devido
a sua complexidade sociocultural, a Amazônia apresenta inúmeras possibilidades de
pesquisa, que as fontes oficiais podem não alcançar. Tendo como recorte o protes-
tantismo em uma cidade do Baixo Amazonas, e amparados na noção ampliada de
documento histórico (BLOCH, 2001), procuramos construir uma pesquisa histórica
no interior do Amazonas, a partir da trajetória de Clinton Thomas.
Desde os primeiros momentos, ao tomarmos conhecimento de Clinton Thomas
e de sua trajetória em Urucará, entendemos a importância de encontrar pessoas que
participaram dessa conjuntura histórica para compartilharem suas experiências; por-
tanto, se queríamos acessar as “histórias dentro da história” (ALBERTI, 2014, p. 155),
precisávamos pensar a relação entre memória e história, bem como percebemos a
importância da história oral para esta pesquisa, por permitir “a democracia de vozes”
(GATTAZ; MEIHY; SEAWRIGHT, 2019) e ser uma metodologia constituidora de
suas próprias fontes (ALBERTI, 2014).2
Na esteira da ampliação das discussões historiográficas do século XX a memó-
ria foi inserida no território do historiador. Ela, segundo Pollak (1992), é seletiva, e
constrói-se social e individualmente, sendo concebida como elemento que constitui
o sentimento de identidade, individual e coletivo, contribuindo para o sentido de
continuidade e coerência tanto da pessoa quanto do grupo. Entretanto, memória e
identidade estão em constantes negociações e disputas, em confrontos sociais e inter-
grupais. Esse caráter conflitivo se faz presente em memórias familiares, de grupos
menos formais, de grupos políticos ou ideológicos, onde se embatem objetivos e

2 Em Bezerra (2020) e Bezerra e Silva (2020), discutimos a constituição de outras fontes de nosso projeto
de pesquisa, incluindo a prática do arquivar da vida realizado pela família Thomas e os documentos oficiais
da Igreja de Cristo.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 27

conflitos, como aliás, pode ser a trajetória de Clinton Thomas. De acordo com Huff
Júnior (2008, p. 60), o mesmo aplica-se ao campo religioso: “Memórias e identidades
religiosas são, por isso, também disputadas em meio a conflitos sociais entre grupos
políticos diversos”.
Através da História Oral, adentramos nas memórias dos nossos colaboradores,
participantes da história de Clinton Thomas, realizando entrevistas, que ampliam a
percepção histórica, e permitem uma nova perspectiva. Conforme Alberti (2014), a
entrevista nasce da interação entre o entrevistado e o entrevistador, e pela narração
aquele transmite o acontecimento que viveu. Assim, quando conta suas experiên-
cias, transforma-as em linguagem, e dá forma ao que tomaremos como uma fonte
oral. Para Portelli (2010, p. 19), “a narração oral da história só toma forma em um
encontro pessoal causado pela pesquisa de campo”. É apenas quando o historiador
vai à sua fonte, e abre-se ao diálogo, que aquilo que está guardado na memória será
relembrado, organizado e narrado. Com as provocações do entrevistador, o narrador
pode explorar setores e aspectos da sua experiência antes mantidos longe.
Para não cairmos na escrita de um texto laudatório sobre um missionário estran-
geiro, devemos evitar o equívoco de considerar memória e história como sinônimas;
Alberti (2014, p. 158) reitera que não podemos conceber o relato como a própria
“História”, ou seja, tomarmos a entrevista como uma “revelação do real”. Como
fonte, a entrevista precisa ser interpretada e analisada: persiste a necessidade de uma
reconstrução crítica e não somente a restauração de memórias. Portanto, é necessá-
rio atenção ao papel do historiador. Deste modo, ainda que sejamos devedores da
mediação da história oral, definida por Gattaz, Meihy e Seawright (2019, p. 13) como
“gesto empático”, esta “não prescinde, é claro, da análise, dos questionamentos”.
Considerando a teoria historiográfica e metodológica envolvendo história e
memória, e lançando-nos ao trabalho em campo, realizamos entrevistas com con-
temporâneos de Clinton Thomas, as quais nos permitirão identificar as memórias
sobre as atividades da família Thomas no Amazonas (BEZERRA, 2020; BEZERRA;
SILVA, 2020). Na tessitura desse texto, estaremos em diálogo com as memórias de
três indivíduos: Thomas “Tomé” Joel Thomas, nascido em 11 de janeiro de 1964,
norte-americano, casado, aposentado, terceiro filho de Clinton Thomas; Maria Auxi-
liadora da Costa Vieira, nascida em 24 de janeiro de 1935, brasileira, viúva, aposen-
tada, foi apresentada pelos primeiros contatos como a fiel viva mais antiga da Igreja
de Cristo em Urucará; e Renato Braga Vieira, nascido em 06 de janeiro de 1948,
brasileiro, casado, aposentado, trabalhou com a família Thomas, como marceneiro
e outros serviços manuais.
Se antes indivíduos como os nossos colaboradores não encontraram espaço em
produções oficiais, a História Oral ao consolidar-se no estudo de questões da história
recente da Amazônia, produzindo conhecimento acadêmico como contribuição para
o desenvolvimento do interior do país (SILVA, 2016), abre caminhos para apreender
os processos históricos, sociais e culturais envolvidos na trajetória de Clinton Tho-
mas, como uma das possibilidades que procuram ouvir as vozes das comunidades
amazônicas e estudar suas próprias narrativas.
28

Clinton Benjamin Thomas e sua igreja


Clinton Benjamin Thomas nasceu em 28 de setembro de 1930, em Williams-
port, no estado da Pensilvânia, e faleceu em 21 de abril de 2007, em Knoxville,
Tennessee. Formou-se no seminário da Igreja de Cristo, o Johnson Bible College,
em 1955. Sua esposa, Phyllis Eleanor Thomas, também nasceu em Williamsport,
em 26 de dezembro de 1934. A trajetória religiosa da família desenvolveu-se a partir
das experiências dentro da Igreja de Cristo, do seu estado natal ao Norte do Brasil.
O casal teve três filhos: Timothy Benjamin Thomas (em 1956), Theodore Andres
Thomas (em 1959) e Thomas Joel Thomas (em 1964).3
Seu movimento, a Igreja de Cristo, é formado por um conjunto de igrejas tam-
bém conhecido como Movimento de Restauração ou Stone-Campbell, herdeiro de
diversos movimentos protestantes, como o pietismo alemão, o metodismo inglês e
os grandes despertamentos norte-americanos.4 Os pioneiros foram os pastores Barton
Stone (1772-1844), Thomas Campbell (1763-1851), Alexander Campbell (1788-
1866) e Walter Scott (1796-1861), que reuniram milhares de pessoas no começo do
século XIX, em movimentos que buscavam o retorno ao cristianismo primitivo, a
unidade dos cristãos e a valorização da Bíblia.5
Suas congregações locais são conhecidas como Igrejas de Cristo ou Igrejas
Cristãs (Church of Christ/Christian Church). A criação de sociedades missioná-
rias iniciou a expansão do movimento pelos Estados Unidos e para outros países.6
Segundo Carneiro, em 1870 o Movimento de Restauração já contava com meio
milhão de membros; além disso, “sua influência na sociedade já era muito forte, o
que favoreceu a eleição de James A. Gardfield (1831-1881) como presidente daquele
país” (CARNEIRO, 2017, p. 13-14). De acordo com a denominação, no início do
século XX seu número excedia 1,250 milhão de membros.7
A permissão de teologia e práticas plurais dentro do Movimento acarretou no
surgimento de três correntes internas nas Igrejas de Cristo/Cristãs, entre os anos
de 1906 a 1968. A primeira é constituída por um grupo radical, conhecido como
Igrejas de Cristo A Capella. O segundo grupo, mais liberal e ecumênico, deu lugar à
corrente das Igrejas Cristãs Discípulos de Cristo. Um terceiro grupo formou a comu-
nhão conhecida como Igrejas de Cristo/Cristãs Discípulos independentes. No entanto,
apesar de suas diferenças, as congregações dos três grupos continuam a apresentar-se
como Igrejas de Cristo/Cristãs, referindo-se às correntes apenas quando necessário.8

3 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.


4 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Nossa herança histórica. Movimento de Restauração. Publicado em: 25
abr. 2007. Acesso e cópia salva em: 17 out. 2018.
5 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Introdução à História do Movimento de Restauração de Stone e Campbell.
Movimento de Restauração. Publicado em: 26 maio 2008. Acesso e cópia salva em: 21 ago. 2017.
6 Ibidem.
7 Ibidem.
8 Ibidem.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 29

A primeira iniciativa missionária do Movimento de Restauração no Brasil


foi da corrente A Capella, no final da década de 1920, com três missionários que
fundaram igrejas na região Nordeste. Contudo, devido à falta de apoio, as primeiras
igrejas foram fechadas ou absorvidas por movimentos pentecostais.9 Em 1948, os
Discípulos independentes enviaram ao Brasil o casal David e Ruth Sanders. De
acordo com a Igreja de Cristo, Sanders teria tido um sonho em que era chamado
como missionário para uma cidade chamada Brasília, da qual nunca ouvira falar e
que não estava em nenhum mapa. Os Sanders desembarcaram no Rio de Janeiro
em 25 de março de 1948, ainda sem falar uma palavra em português e hospedaram-se
com a família de um daqueles primeiros missionários, agora nas Assembleias de
Deus. Dois meses depois partiram para a região Centro-Oeste. Em Goiânia, funda-
ram em 7 de setembro de 1948 a primeira Igreja de Cristo, como são conhecidas as
congregações brasileiras.10
O pioneirismo dos Sanders e das igrejas no Centro-Oeste trouxe recursos
pessoais e financeiros para o Brasil, proporcionando o surgimento de centenas de
igrejas. Atualmente, a igreja brasileira desempenha um papel de proeminência diante
do crescimento mundial do Movimento de Restauração. Nas estimativas da World
Convention of Churches of Christ, todos os ramos da Igreja de Cristo presentes no
país totalizavam, em 2017, 620 congregações e 117 mil pessoas. A nível mundial,
são mais de 104 mil igrejas e de 10 milhões de fiéis.11
Os registros da Igreja de Cristo indicam que 87 famílias de missionários foram
enviadas ao Brasil entre 1948-1998,12 entre os quais Clinton e Phyllis Thomas.
Segundo Tomé Thomas, o patriarca da família fez a primeira viagem sozinho,
em 1954: “Meu pai era um mecânico de aviação, que a missão tinha um avião. Só
que, quando ele chegou aqui, não precisaram mais dele”. Ele retornou aos Estados
Unidos, casou-se, “vendeu as coisas que tinha lá e... veio”. As memórias comparti-
lhadas da família registram que Clinton Thomas “gostou do Brasil e quis voltar”.13
Assim, em 1956, Clinton e Phyllis se estabeleceram em Belém do Pará e depois se
mudaram para Macapá, Amapá. Foi nesse primeiro momento de serviço missionário
que dois filhos nasceram. Em 1960, retornaram ao seu país, onde nasceu o terceiro
filho, até serem convocados a voltar ao Brasil, na metade da década, quando a família
de missionários procura uma cidade sem igrejas evangélicas para iniciar um novo
trabalho (BEZERRA; SILVA, 2020).

9 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Esboço da presença dos três principais ramos do Movimento de Restauração
no Brasil. Movimento de Restauração. Publicado em: 14 abr. 2008. Acesso e cópia salva em: 29 maio 2018.
10 UM breve histórico sobre Lloyd David Sanders. Movimento de Restauração. Publicado em: 12 fev. 2009.
Acesso e cópia salva em: 17 out. 2018.
11 NUMBER of Stone-Campbell Churches and Adherents Worldwide 2017 (alphabetically by country). World
Convention. Acesso e cópia salva em: 16 out. 2018.
12 O MENSAGEIRO DAS IGREJAS DE CRISTO, abril a julho/1998. Acervo pessoal/GEHA.
13 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
30

Figura 1 – Templo da Igreja de Cristo em Urucará

Fonte: Bezerra, 2017. Acervo GEHA.

Figura 2 – Clinton e Phyllis Thomas

Fonte: S.d. Acervo Thomas Joel Thomas/GEHA.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 31

Um missionário para Urucará


Senhoras, Santos e Cruz (2016, p. 143) apontam que a Amazônia Legal, ainda
que seja uma região de baixa densidade populacional, é palco capital da concentração
protestante no Brasil, chegando a um percentual acima de 30% da população total
em estados como o Amazonas. Para que isso acontecesse, conforme os autores, os
atores-chaves foram o missionário, o fiel e o pastor-evangelista, ou seja, anônimos
que se dedicaram à propaganda evangélica. Um desses inúmeros missionários foi
Clinton Thomas na cidade de Urucará.
Localizada na sub-região do Baixo Amazonas,14 Urucará possui uma população
de 17.094 habitantes (IBGE, 2010). A região foi habitada por indígenas de diferentes
etnias, que legaram o nome “Urucará”, derivado das palavras “uru”, que significa
cesto de palha, e “cará”, inhame.15 Seu núcleo originário foi fundado em 26 de julho
de 1814, por Crispim Lobo de Macedo, quando também já se faz notar a ligação com o
catolicismo, com a instalação de uma capela em honra a Nossa Senhora de Sant’Ana.
Freguesia em 1880, foi elevada à vila de Sant’Ana de Urucará em 12 de maio de 1887.
O município, bem como a paróquia de Urucará, foi instalado em 7 de setembro do
mesmo ano. Em 1892, seu nome é alterado para simplesmente Urucará e o papa Leão
XIII erige a Diocese do Amazonas, nova territorialidade católica, à qual Urucará é
integrada. No decorrer dos anos, diversas configurações, até a atual, entrelaçam o
território de Urucará com outros municípios e com a Igreja Católica (SILVA, 2018).
Como espaços marcados pela hegemonia do catolicismo e com uma história dire-
tamente conectada à religiosidade cristã, o Médio e Baixo Amazonas atravessaram a
década de 1960 com transformações importantes para a Igreja Católica. Primeiramente,
a carência de sacerdotes, que marcava as paróquias da região desde a colonização, foi
suprida quando a missão canadense Scarboro Foreign Mission Society assume a Paróquia
de Itacoatiara e os municípios limítrofes, inclusive Urucará. Os cinco primeiros padres
missionários de Scarboro chegaram a Itacoatiara em julho de 1962 (SILVA, 2018).
Nesse ínterim, acontecia o Concílio Vaticano II, um evento de significado glo-
bal para o cristianismo. Aberto em 1962 e encerrado em 1965, o Vaticano II trouxe
significativas transformações litúrgicas e doutrinais para a Igreja Católica, revelando
uma Igreja mais aberta ao mundo. Dentre suas mudanças expressivas, estavam novas
direções para o ecumenismo e a pastoral católica (SILVA, 2018), que se traduzirão
em maior abertura para outras religiões e ações sociais. Dentro do processo de reor-
ganização dos territórios católicos no Amazonas, o terceiro acontecimento importante
foi a criação da Prelazia de Itacoatiara, a 13 de julho de 1963 pelo papa Paulo VI.
Seu primeiro e segundo bispos viriam a ser daqueles cinco missionários iniciais
de Scarboro. A Prelazia, além da sede Itacoatiara, é composta pelos municípios de
Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Silves, Urucará e Urucurituba (SILVA, 2018).

14 AMAZONAS. Constituição do Estado do Amazonas – atualizada até a Emenda Constitucional nº 108,


de 18.12.2018. Disponível em http://www.pge.am.gov.br/wp-content/uploads/2019/01/Constituicao-Estado-
-Amazonas-atualizada-ate-a-EC-108-de-2018.pdf. Acesso em: 24 out. 2019.
15 CÂMARA MUNICIPAL DE URUCARÁ. Disponível em http://www.ale.am.gov.br/urucara/o-municipio/historia/.
Acesso em 13 set. 2017.
32

É nessa conjuntura de transformações no campo religioso amazonense que


Clinton, Phyllis, Timothy, Theodore e Thomas desembarcaram em Urucará. A viagem
até Urucará se deu pelo rio Amazonas, em um dos muitos barcos que faziam a rota
Belém-Manaus; seria a primeira vez que a família viajaria naquela direção. Tomé
Thomas não recupera nenhuma justificava em especial para a escolha de Urucará: “ele
queria uma área nova onde não tinha igreja [...] Tinha cinco assim [...] aqui era uma,
então ele ficou”.16 Vale sublinhar que o nosso colaborador era uma criança de colo
no momento da chegada dos seus pais a Urucará. Seus relatos remetem ao processo
de construção das memórias compartilhadas pela família, cuja força o fez vivenciar
quase “por tabela” (POLLAK, 1992) os fatos marcantes da trajetória dos Thomas.
A chegada se deu no dia 8 de abril de 1965. Tomé Thomas afirma que Clinton
Thomas não conhecia ninguém da cidade, mas várias pessoas estavam observando
sua chegada, já que “o pessoal ficava lá na frente da cidade, quando a embarcação
chegava... pra ver quem chegava, quem ia embora [...] todos estavam esperando ele
lá, quando ele subiu”. Além do costume popular, haveria outra causa, despertando a
curiosidade da população: “Ele era branco né, ninguém sabia o que ele tava procu-
rando”.17 Dona Maria Auxiliadora, também a partir das memórias compartilhadas,
registra o navio a vapor que trouxe a família Thomas e a reação de parte da população
diante dos norte-americanos:

Num navio que chamava Barão de Cametá, fazia a linha [...] eles trouxeram
muito camburão, material, essas coisas... contavam né, porque eu não vi, pessoal
falavam até que a gente devia era para guerrear por aqui [risos]. Porque os Esta-
dos Unidos é um país que aqui, ali, tá se metendo em guerra, né. [...] o pessoal
falava, ignorância.18

A presença de norte-americanos naquele pedaço do Amazonas parecia estranha,


como demonstra a reconstrução de memória de nossa colaboradora, mas não foi um
fenômeno isolado. Desde o século XIX, havia a presença de famílias norte-ameri-
canas na Amazônia (DAMASCENO NETO, 2019), e nas décadas anteriores à che-
gada dos Thomas, a região teve papel inegável na política externa norte-americana
(GARFIELD, 2009). As migrações individuais e de pequenos grupos originários dos
Estados Unidos podem ser observados por todo o território. Ao nível religioso, outros
missionários norte-americanos ou de alguma forma ligados àquele país, agiram pelos
rios amazônicos, como indicado na bibliografia da introdução desse texto. No Baixo
Amazonas, desde o início da década de 1950, Eduardo França Lessa, brasileiro que
estudara no estado de Kentucky, era o primeiro pastor da Primeira Igreja Batista de
Parintins (LESSA, 2012). Outros colaboradores, em caminhos abertos por nossa inves-
tigação, indicam a influência do Pastor Lessa na escolha de Urucará por Clinton Tho-
mas, apontando uma ampla rede de contatos dos missionários ainda a ser conhecida.
Um acontecimento da chegada da família Thomas tornou-se emblemático nesse
processo de construção de memória, que nos leva a perceber a expressão de um

16 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.


17 Idem.
18 Maria Auxiliadora da Costa Vieira, entrevista realizada em 20 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 33

messianismo nas representações do missionário Clinton Thomas. Arthur Libório era


uma das muitas pessoas presentes na chegada da embarcação, o qual recebeu o pastor
e “disse que tava esperando um homem como ele”. Segundo nosso colaborador Tomé
Thomas, o sr. Libório aguardava não Clinton Thomas especificamente: “Porque o pai
dele disse que um dia vinha um homem branco, que vinha trazer um evangelho... e
ele achou que aquele era o momento.” Libório ouvira isso de seu pai em Manaus:
“o pai dele disse que um dia viria um homem com ensinamentos da Escritura e pra
abraçar a fé”.19 Já a narrativa de dona Auxiliadora é um pouco diferente:

Uma vez que apareceu, um pessoal por aqui, falando do Evangelho, da Bíblia,
não era do Evangelho, como eles diziam, falando da Bíblia, e o pai dele disse
que gostou, abraçou muito e depois ele falava pro o filho, que ia chegar um dia,
umas pessoas aqui, que iam falar da Bíblia. Ele falava, o seu Arthur. Ele foi o
primeiro parece que aceitou.20

Esse evento torna-se importante na trajetória de Clinton Thomas, sendo recon-


tado inúmeras vezes: “quando o papai visitava as igrejas ele contava as histórias”.21
Ou seja, o episódio configura-se como vital na legitimação de sua ação religiosa no
interior do Amazonas. Além disso, como apontado pela memória de dona Auxiliadora,
Arthur Libório participou da primeira reunião da Igreja de Cristo em Urucará, em 11
de abril de 1965, “na sala de visita na casa que o missionário Clinton alugava”, com
três homens, além da família Thomas.22
Quanto à dinâmica religiosa local, Tomé Thomas confirma a falta de sacerdotes
no município, “o padre só vinha uma vez por ano, durante a festa [da padroeira]”,
situação que se altera com a chegada do pastor, “aí mandaram o padre, pra ficar aqui,
permanente”. Apesar da provável influência do primeiro pastor protestante na cidade,
cabe destacar que este era também o momento de transformações na Igreja Católica,
o que reflete-se no maior cuidado e atendimento a seus fiéis, bem como as relações
com as outras religiões. Nosso colaborador relembra as relações de amizade entre
os missionários de diferentes igrejas, “porque a maioria era canadense, então eles
conversavam em inglês”, e inclusive “os padres vinham visitar ele”.23
O processo de construção da memória de seu Renato Vieira, cooperador próximo
do pastor Clinton durante quase três décadas, também identifica essa proximidade entre
as igrejas e seus representantes: “nós ia na [igreja] dele quando era, vinha pessoal,
visitantes né do Estados Unidos, aí ele convidava nós e nós ia lá quando era casamento,
aniversário... a gente ia lá na dele né”. Contudo, revela que o missionário protestante
tinha ações semelhantes: “E aí ele vinha aqui na nossa também [Igreja Matriz de
Sant’Ana], fazia a mesma coisa. A mesma oração que a gente fazia, ele fazia lá na
dele, ele fazia aí na nossa também”. O colaborador também afirma que Clinton “era

19 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.


20 Maria Auxiliadora da Costa Vieira, entrevista realizado em 20 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
21 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
22 THOMAS, Timothy. O significado da Igreja de Cristo ao povo de Urucará. Manuscrito de 8 abr. 1981, 2
fls. Acervo pessoal/GEHA.
23 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
34

chegado com o padre, não era assim uma pessoa que ficava implicando com ele né,
padre com pastor”, sustentando a narrativa das relações amistosas entre os religiosos.24
No momento de nosso encontro, Dona Maria Auxiliadora Vieira era a fiel mais
antiga da Igreja de Cristo em Urucará. Ela não começou a congregar nos primeiros
cultos, mas sobre sua experiência de convertida ao protestantismo em um ambiente
católico, seu processo de construção de memória registra a reação familiar: “o meu
pai, ‘não minha filha, você escolheu, é sua decisão’. Depois, eu convidava ele, ele ia,
mas ele nunca aceitou, era muito católico. Nós éramos católicos. Carlos [seu esposo]
era, a gente era membro de um apostolado”.25 Sua narrativa confirma Mendonça
(2005), reafirmando que a conversão protestante implica ao indivíduo não apenas uma
vida devota, mas também um reajuste a um outro padrão moral, ético e ideológico:

Faziam crítica da gente, que agora não vão mais dançar, não vão mais pra festa,
[...] Naquela época, né, tinha aquelas festinha, a gente ia se divertir, mas depois
a gente deixou também. Muita violência, né, matavam por aí, mesmo ia se afas-
tando. Mas, xingavam a gente, ‘olha, são crente’, falavam imoralidade pra gente,
‘ah, vão ficando por aí’, então, ‘vão, lá, pra vocês verem como é bom a palavra
de Deus, a gente aprender’. A gente vive cego mesmo, né, agora não, a gente não
conhecia nem a cor de uma Bíblia. Eu vim conhecer depois de eu aceitar a Jesus,
pastor deu a Bíblia para nós, mas antes disso, não conhecia a cor de uma Bíblia
não. Mas graças a Deus, ele esteve por aqui, e tirou a gente, chamou pra Jesus.26

Uma especificidade da primeira igreja protestante de Urucará é sua proximidade


com a Igreja Católica: “porque a igreja já fica na praça, é bem próximo”. O terreno
de Clinton Thomas, onde foi construído o prédio da Igreja de Cristo, é localizado
“no mesmo quarteirão” da Igreja Matriz, indicando uma possível disputa pelo centro
da cidade. A partir das memórias familiares compartilhadas, Tomé assegura que essa
localização não teve algum motivo especial, acredita “que era um local que tinha pra
comprar né”, pois Urucará “era bem pequena nos anos 60”. É categórico em afirmar
que não ocorriam tensões entre os fiéis, quando se encontravam na direção de suas
reuniões religiosas: “Não! Não! Não! Nessa parte...”, entretanto, “só barulho de
festa quando tinha alto-falante.” Como a Igreja Matriz usava um alto-falante, isso
atrapalhava os cultos evangélicos, “porque o programa de um era diferente que do
outro né”,27 dando a conhecer, portanto, um conflito no campo religioso local.
As memórias sobre o Pastor Clinton revelam-no ajudando pessoas doentes e
feridas, “porque não tinha... não tinha outro para ajudar né”. Esses conhecimentos
tiveram origem na sua mãe, que “era enfermeira”, e de forma autodidata, “ele tinha
os livros, estudava antes de vir... era um dom de Deus que ele tinha”. Tomé relata
que “qualquer coisa as pessoas corriam com ele naquela época”, reiterando um papel
fundamental do missionário na cidade.28 O sr. Renato Vieira reforça essa visão:

24 Renato Braga Vieira, entrevista realizada em 19 de dezembro de 2018, em Urucará/AM.


25 Maria Auxiliadora da Costa Vieira, entrevista realizada em 20 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
26 Idem.
27 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
28 Idem.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 35

“Então quando eles chegaram aqui, ele era o médico daqui da cidade, médico bom,
muito bom, se ele aplicasse um remédio pra pessoa podia dizer, ia ficar bom mesmo”.
Portanto, “era gente todo dia ali, ó, na fila, e ele atendendo”.29
Questionado sobre possíveis conflitos entre o missionário e o poder público,
Tomé Thomas atesta que as autoridades da cidade apoiavam o trabalho médico do
pastor, “porque todo mundo precisava dele. Se ele doava o tempo dele, ninguém
ia empatar ele, né? [...] Tanto faz prefeito, policial, todo mundo confiava nele, no
trabalho dele”, desvelando uma legitimação de Clinton Thomas através da atuação
na saúde.30 No entanto, apesar do aparente apoio, a atividade na área médica, que
forneceu legitimação à presença de Clinton Thomas em Urucará, bem como garantiu
sua representação no imaginário da cidade, não parece ter acontecido sem tensões.
Os atendimentos médicos do norte-americano completavam uma lacuna nas relações
de poder, o que possivelmente não passou despercebido dos poderes estabelecidos.
Ainda que o processo de construção da memória de Tomé Thomas não forneça
detalhes, é possível apreender as tensões pela presença e atuação do missionário:
“Sempre tem, a diferença de quem está certo ou errado. [...] Mas, se você precisa [da]
ajuda de alguém, você não vai brigar com aquela pessoa”. Dessa forma, o missionário
“era aceito, porque ele ajudava em outras áreas, além da igreja”, com um trabalho
que alcançava “a comunidade em geral, tanto faz católico ou da Igreja de Cristo”.31
As possíveis tensões nos permitem pensar como estruturam-se as “relações de poder
pela construção e disputa de espaço religioso na Amazônia, isto, outrossim, com o
uso de estratégia de ação social” (TORRES NETO, 2019, p. 50), analisada à luz da
trajetória de Clinton Thomas.
Quanto às áreas em que dona Phyllis Thomas atuava, Tomé Thomas relata que
sua mãe “tinha hobbies, né, de fazer costura, com grupos de mulheres, tecido de
metro e meio de tapete, assim, pra conversar e ter algum objeto pra fazer as coisas,
né”. Também ensinava a língua inglesa, “na escola pública e particular”. Quanto à sua
atuação na igreja, Tomé afirma que “ela tinha as partes, né, que ela trabalhava mais
com as senhoras, e ele com os homens”.32 Como uma ferramenta útil para acessar
outros pontos de vista, a história oral também propicia a “compreensão das especifi-
cidades das experiências femininas em diferentes contextos” (EVANGELISTA, 2019,
p. 99). Portanto, qual o lugar da mulher no movimento protestante? E nas ações
sociais? Nesse sentido, podemos questionar qual o papel desempenhado por Phyllis
Thomas e a (in)visibilidade de outras mulheres nesses ambientes tão generificados.
Após trinta anos em Urucará, Clinton e Phyllis Thomas retornaram definiti-
vamente aos Estados Unidos em 1996, aposentando-se das atividades missionárias.
O pioneirismo da família Thomas e da Igreja de Cristo em Urucará, bem como o
crescimento das igrejas evangélicas no município, refletem-se nos números oficiais.
Segundo o IBGE (2010), 4.052 pessoas em Urucará se declaravam como evangéli-
cos, ou seja, a cidade possuía um quarto de população evangélica. A realidade das

29 Renato Braga Vieira, entrevista realizada em 19 de dezembro de 2018, em Urucará/AM.


30 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
31 Idem.
32 Idem.
36

populações locais e evangélicas em Urucará parece confirmar a tese de que o cres-


cimento das denominações evangélicas coincide com a expansão demográfica no
Amazonas, como defendido por Senhoras, Santos e Cruz (2016) e Oliveira e Pinto
(2019). E os Thomas são alguns dos protagonistas dessa história.

Considerações finais
Ao investigar a trajetória de um missionário norte-americano e da primeira igreja
protestante em uma cidade do interior do Amazonas, inserimo-nos no universo de
pesquisas sobre a presença protestante na Amazônia, bem como procuramos instigar
pesquisadores para analisar a trajetória da Igreja de Cristo no Brasil, movimento sep-
tuagenário que parece não ter despertado ainda interesse acadêmico. Nossa pesquisa
não se propõe a exaltar um personagem histórico estrangeiro, em uma recuperação
de antigos discursos construídos sobre a Amazônia, nem a ser uma hagiografia de um
líder religioso, mas tomar sua trajetória em uma perspectiva ampliada, contribuindo
na compreensão de parte dos processos históricos da Amazônia no século XX.
Incontáveis homens e mulheres estrangeiros tomaram parte no crescimento do
protestantismo no Brasil, imigrantes não por questões financeiras, mas em missão
religiosa, e assim também foram os Thomas, da Pensilvânia ao Baixo Amazonas.
O caminho dessa família nos permite entender parte das estratégias protestantes
nos processos de estabelecimento em lugares de difícil acesso e as relações com a
sociedade ao redor. Entretanto, igualmente é necessário considerar a imersão desses
religiosos em uma realidade social pautada pela fragilidade da presença do Estado,
e como os missionários procuram suprir essas carências. Seria a atuação social da
família Thomas a legitimação necessária para sua ação evangelizadora?
Considerando a relação entre história e memória, a história oral apresenta-se
como eficaz para conhecer e analisar a história da Amazônia e dos grupos sociais que
a compõem. A investigação sobre o protestantismo amazônico, um campo amplo com
diversas lacunas, ao apropriar-se da história oral como método para compreender
a inserção religiosa e social das igrejas de origem estrangeira, poderá encontrar a
riqueza guardada nas memórias dos moradores das pequenas cidades.
Portanto, quando nos encontramos com Thomas Joel Thomas, Renato Braga
Vieira e Maria Auxiliadora da Costa Vieira, foi possível acessar suas memórias sobre
a história de um personagem singular da/na história amazonense. Suas memórias
imbricam-se com a história do protestantismo na Amazônia, tendo pessoas do interior
do Amazonas como sujeitos nesse processo histórico, e cujas narrativas nos permi-
tem compreender um pouco mais sobre a conjuntura que nos propomos investigar e
levantar perguntas para outros caminhos.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 37

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Renato Braga Vieira, entrevista realizada em 19 de dezembro de 2018, em sua resi-


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Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em seu


sítio, em Urucará/AM, por César Aquino Bezerra.
O TRABALHO E SUA REPRESENTAÇÃO
NA VIDA DOS MORADORES DA
COMUNIDADE SÃO SEBASTIÃO
DA BRASÍLIA EM PARINTINS-AM
Everton Dorzane Vieira

Neste artigo analisamos a representação do trabalho na vida dos moradores a


partir das memórias dos trabalhadores e trabalhadoras da Comunidade de São Sebastião
da Brasília em Parintins, Amazonas. E dessa maneira buscamos mapear as atividades de
trabalho em que estão inseridos os comunitários, para investigar as possíveis relações
que se formam na comunidade a partir de tal prática. Verificamos quais as práticas de
trabalho que configuram a comunidade, percebemos a divisão social do trabalho no
processo do cultivo da agricultura familiar, da pesca profissional, da pesca artesanal
do camarão, da caça, e da criação de animais de pequeno porte. Além da representação
do trabalho, abordaremos um breve histórico da juta na comunidade, como principal
trabalho que configurou a comunidade, bem como o trabalho cotidiano dos comunitário
do período pós-juta, e uma pequena reflexão sobre as festas e inserção do catolicismo
na comunidade de São Sebastião da Brasília. Todos esses aspectos foram refletidos e
analisados a partir da história social do trabalho, bem como, na utilização dos recursos
metodológicos trazidos pela perspectiva da história oral.
Uma primeira etapa deste artigo foi desenvolvida no âmbito do Programa de
Apoio a Iniciação Científica – PAIC, no CESP/UEA no período de 2017-2018, com
o trabalho intitulado “História e Memória do Trabalho no Baixo Amazonas (1950-
1980)”. Que resultou na construção de um acervo de entrevistas realizadas no ano
de 2017. Utilizaremos deste acervo, apenas as narrativas dos seguintes colaboradores
da comunidade: Antônio Soares Ribeiro Filho e Luzia Cândida da Silva Gomes. A
partir dessas entrevistas realizadas, identificamos nas narrativas, as representações do
trabalho na vida dos homens e das mulheres moradores da comunidade São Sebastião
da Brasília, cuja está localizada à margem esquerda do Rio Amazonas, a cerca de
7 km do Município de Parintins, região do Baixo Amazonas.33 De acordo com Dom
Arcângelo Cerqua (1980), Primeiro Bispo de Parintins, comunidade São Sebastião
da Brasília foi criada oficialmente em 28 de março de 1968, pela Igreja Católica, por
meio da Comunidade Eclesial de Base (CEB), que tinha como missão, reorganizar
as localidades rurais e levar ensinamentos religiosos católicos aos comunitários do
interior do município.
Sendo a história oral a metodologia principal deste trabalho, utilizamos alguns
autores que abranjam deste conhecimento científico para este tipo de pesquisa. Com
a invenção do gravador, segundo Alberti (2011), surge em meados do século XX,

33 Consulta realizada no site www.sidra.ibge.gov.br no dia 04 de maio de 2018.


42

a história oral como metodologia de pesquisa e de constituição de fontes. Com seu


uso o pesquisador realiza entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de
acontecimentos ou conjunturas do passado ou presente a partir da formulação dos
projetos de pesquisas.
A história oral consiste em algo primordial para a entrevista, a memória. Mas
tem que haver certos cuidados na interpretação e análise dessas memórias, principal-
mente quando a pesquisa envolve a política (FERREIRA, 2012). Sobre a valorização
da memória, Ferreira (2012, p. 172) afirma que “na história oral, objeto de estudo do
historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes”. A
memória é valorizada através da narrativa, esta que é “a forma de construção e orga-
nização do discurso são valorizadas pelo historiador” (p. 172). Neste caso, a memória
é trazida a tona quanto aos questionamentos feitos sobre determinados assuntos.
E através dessas memórias verificamos nas narrativas o trabalho que configurou a
comunidade São Sebastião da Brasília, na afirmação dos sujeitos.
Neste caso, Motta (2012) afirma sobre a memória e tempo presente como colo-
cações do problema, como o pesquisador deve analisar as questões de memória
conforme o tempo presente. E também a compreensão da memória com o passado
relaciona-se com a seletividade de quem narra, “quando falamos de memória, deve-
mos levar em conta que ela constrói uma linha reta com o passado, alimentando-se
de lembranças vagas, contraditórias e sem nenhuma crítica as fontes que embasariam
essa mesma memória” (p. 25).
Para Pollak (1992), o pesquisador pode trabalhar a memória acerca da iden-
tidade do indivíduo a ser investigado. Em outra perspectiva, Pollak (1989), ainda
sobre memória, instruiu a sua valorização, e como o pesquisador deve fazer para
considerar e trabalhar as memórias e as histórias esquecidas, e por muita das vezes,
vozes que foram silenciadas, a favor de algo para não operar na história, fazendo a
omissão de muitas memórias.
Nessa conjuntura, Pollak (1992) afirma que “a memória parece ser um fenômeno
individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” (p. 202). A partir da cons-
trução da memória, o indivíduo constrói sua identidade correlacionando-se a outros.
Nesse caso Pollak (1992) aborda que a “construção da identidade é um fenômeno
que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade, de credibilidade,e que se faz por meio da negociação direta
com outros” (p. 203). A concepção de valorizar os de baixo faz com estes novos
personagens estranhem a procura por sua pessoa, e a dificuldade de uma entrevista
torna-se notória pelo entrevistador, neste caso, “uma pessoa a quem nunca ninguém
perguntou quem ela é, e de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem
muita dificuldade para entender esse súbito interesse” (p. 208), fazendo com que
haja certa dificuldade no momento das entrevistas, entre o pesquisador e o sujeito.
Com base nas narrativas dos moradores/as, nossa intenção é de valorizar as
vozes, iluminar suas trajetórias, e evidenciar a representação que o trabalho pro-
move na comunidade, que ao longo dos processos culturais do trabalho eram “vistos
como os de baixo” (SHARPE, 1992; THOMPSON, 2001). Argumentaremos ainda
a importância da oralidade para este tipo de produção, no que tange a elucidação da
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 43

memória como algo importante para a construção de uma trajetória de vida ou his-
tória de um determinado acontecimento como marco positivo ou negativo de quem
narra. E através da história e memória dos trabalhadores, temos a possibilidade de
identificar a representação do trabalho na comunidade São Sebastião da Brasília.

A representação do trabalho na comunidade São


Sebastião da Brasília a partir do período pós-juta
Esta produção justifica-se primeiramente na firmação do aporte teórico-metodo-
lógico das ciências humanas e sociais, amparadas no campo da interdisciplinaridade,
no qual abordamos algumas categorias que sustentam a representatividade do trabalho
na Amazônia, tais como: a necessidade do trabalho como forma de sobrevivência
das comunidades tradicionais, a partir da inclusão da juta nas comunidades amazô-
nicas; o surgimento de outros ofícios a partir do declínio da juta na década de 1980,
nas comunidades da Amazônia; bem como as representações culturais, sociais e
econômicas dadas a partir da representatividade do trabalho nos quais ocorrem nas
comunidades ribeirinhas da região amazônica. Estes itens nos revelaram múltiplas
possibilidades de reflexão para uma produção sobre o trabalho na Amazônia.
O trabalho na Amazônia é constituído em sua maioria pelo âmbito familiar
(WAGLEY, 1988). O cultivo da juta, no período de 1950 a 1980, foi constituído
familiarmente na comunidade São Sebastião da Brasília, onde esse tipo de trabalho
influenciou as comunidades vizinhas a trabalhar nessa modalidade. No período de
seu apogeu, as comunidades parintinenses foram imbuídas a este trabalho pela grande
demanda (SAUNIER, 2003).
A juta foi o principal ramo de trabalho nas comunidades ribeirinhas da região
amazônica (FERREIRA, 2016). De acordo com as narrativas dos moradores e as
bibliografias sobre a Amazônia surgiram outras formas de sobrevivência nessas
comunidades no período pós-juta, nas quais situam-se: a agricultura familiar; a
pesca profissional do pescado; a pesca artesanal do camarão, cuja prática é executada
pelas mulheres da comunidade (BRASIL, 2015; SILVA; TORRES, 2019); a caça; e
a criação de animais de pequenos portes, que não eram comercializados com muita
frequência (GUERREIRO, 2013), demonstrando a multiplicidade de trabalhos na
Amazônia profunda. Em uma de nossas entrevistas, nas narrativas do Sr. Antônio,
quando o questionamos sobre de que forma a comunidade passou a sobreviver econo-
micamente no período pós juta, ele nos afirmou que “quando a juta acabou, tivemos
que ir para o peixe, o peixe foi que sustentou muita gente na comunidade quando a
juta acabou, e sustenta até hoje”.34
Na representatividade do trabalho, a divisão social do trabalho a partir de Dur-
kheim (2010), aqui não é entendida na centralidade da produção fabril, estilo de
investigação que dominou boa parte do século XX, mas no processo de plantio,
colheita e armazenamento da juta, que da mesma forma, produzia a solidariedade,

34 Entrevista realizada com o Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho, no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
44

dando sentido às ações dos trabalhadores e trabalhadoras, pois a divisão do trabalho


“cria entre os homens todo um sistema de direito e deveres que os ligam uns aos
outros de maneira duradoura” (p. 429).
Através dos relatos orais dos trabalhadores e trabalhadoras da comunidade da
Brasília, recuperamos aspectos das atividades econômicas, iluminando e registrando
a memória e as histórias desses comunitários. Em relação às transformações das
atividades econômicas, e o avanço trabalhista que ocorreu ao longo do tempo, no
qual o trabalhador sofria com o descaso de ser explorado sem direitos na qual sua
classe não usufruía, a vida social que o trabalhador exercia ao longo de sua jornada
trabalhista, com o tempo seus direitos de benefícios com o trabalho foram sendo
alcançados com a mudança das leis (CHALHOUB; FONTES, 2009).
Segundo Pizarro (2012), a Amazônia emergiu de um processo que teve como
ponto de partida nos inícios dos anos de 1960 e 1970. Ela aborda neste processo o
“desenvolvimento da modernização da região” (PIZARRO, 2012, p. 166). Que a
partir do golpe de 1964, os militares avançaram a Amazônia, invadindo territórios,
inclusive as comunidades, com o objetivo de “reorganizar as áreas de trabalho”,
consequentemente, houve mudanças catastróficas no trabalho existente dentre as
comunidades, tais como, muitos trabalhadores foram expulsos de suas áreas rurais,
onde viviam e trabalhavam (IDEM, 2012).
Nesta direção, esta autora aborda quando iniciou a valorização dos silenciados
ao percurso sócio-histórico, afirmando que se tem início no século XX, a possibili-
dade de ouvir os silenciados ou vencidos, a fim de obter outra reflexão e a construção
de conhecimentos sobre a Amazônia, através dos sujeitos invisibilizados. Diante
do exposto, a comunidade da Brasília, foi uma das comunidades Amazônidas, que
sofreu com o impacto da exploração do trabalho no período de ditadura militar na
qual o país se encontrava. Nisto, analisaremos as práticas de trabalho que foram
emergindo a partir do trabalho com a juta, na qual resultou em outras práticas a
partir do seu declínio.

Breve histórico da juta no município de Parintins


O cultivo da juta foi implantado em Parintins por volta da década de 1930, com
a imigração japonesa, e a partir deste município, ela foi espalhando-se para outros
municípios e outros Estados do país. Para Schor e Marinho (2013) “a história da
juta em Parintins inicia-se com a chegada de uma missão, chefiada pelo deputado,
Dr. Tsukasa Uetsuka”. Os autores também afirmam que a viajem do político tinha
por finalidade a escolha de um local em Parintins, cujo objetivo era “destinado à
instalação do núcleo de Kotakuseis (como eram chamados os alunos diplomados
pela Escola Superior de Colonização do Japão)” (p. 241).
E de acordo com Ferreira (2016), a juta foi uma modalidade crescente na década
de 1930, afirmando que “a partir do êxito de Ryota Oyama em 1934, essa modali-
dade agrícola não parou mais de crescer e alcançar novas áreas” (p. 145). O autor
ainda afirma que “de Parintins, ela se espalhou por quase todo o Amazonas, Pará, e
em algumas localidades dos estados do Amapá e Espírito Santo” (p. 145). Mas no
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 45

Estado do Amazonas, a juta e, posteriormente a malva, foram por um longo período


a “atividade responsável por expressivo percentual na formação da renda do Estado”
(p. 145), e a comunidade da Brasília estava dentro desse processo.
Neste caso, compreendemos que a juta no município de Parintins foi um propul-
sor para os demais municípios do estado do Amazonas, e esta proporcionou emprego
e renda a esses municípios. Mas para os cultivadores que habitavam em comunida-
des ribeirinhas, isso foi por eles considerado, um trabalho árduo e difícil, causando
doenças e mortes ao longo do tempo de cultivação no período do auge da plantação.
A Amazônia tornou-se a principal região para o apogeu da juta no Brasil, pois,
além da aclimatação da semente no solo fértil, uma série de fatores políticos facilitou a
implantação deste produto na região, ultrapassando os demais estados que também uti-
lizavam a juta para crescimento econômico durante o século XX (FERREIRA, 2016).
Os acordos políticos feitos nos Estados do Amazonas e Pará condiziam com
facilidade à imigração japonesa. Ferreira (2016) mostra que “no estado do Pará, um
dos maiores entusiastas da imigração japonesa foi o governador Dionísio Ausier
Bentes (1881-1947)” (p. 147). No Amazonas, este autor afirma que “o protagonismo
das ações ficou a cargo do governador Ephigenio Ferreira de Salles (1926-1930)” (p.
147). A falta de mão de obra era um problema encontrado pelos dois governadores, e
o então presidente Washington Luís decretou na época a solução, sob o lema “sanear
para povoar, povoar para prosperar”. Foi através desse mito sobre “terra sem homens”,
que os povos ribeirinhos ficaram cada vez mais invisíveis (FERREIRA, 2016), faci-
litando o imaginário de uma terra a ser desvendada e desvabrada.
Os autores Ferreira (2016) e Saunier (2003) afirmam que o processo de implan-
tação da juta no Amazonas deu-se em dois momentos. O primeiro momento foi no
período de 1927, com a assinatura do governador Ephigenio Salles para conceder terra
aos japoneses para cultivação da juta no estado do Amazonas (FERREIRA, 2016).
O segundo momento, foi o processo de saída dos imigrantes japoneses das terras
amazônicas, por conta dos acordos de Vargas com os norte-americanos, obrigando a
retirada dos japoneses do Brasil, neste período (SAUNIER, 2003).
Após a retirada dos japoneses, o negócio com a juta ficou nas mãos de empre-
sários brasileiros, que no caso do Amazonas, utilizaram bastante à mão de obra
ribeirinha por conta das áreas de várzeas na qual se localizam as comunidades (FER-
REIRA, 2016). E uma dessas comunidades que participou deste ramo de trabalho
foi comunidade de São Sebastião da Brasília, na qual escolhemos o recorte temporal
de 1950 a 1980 no período em que a juta se integrava gradativamente a comunidade.
A juta foi um gênero agrícola de grande relevância econômica e social, influen-
ciando o modo de vida das populações ocupantes das várzeas do Rio Amazonas
(SOUZA, 2008). Rendendo economia ao município de Parintins, empregando homens
e mulheres que trabalharam nas chamadas “prensas”, antigos armazéns, onde prin-
cipalmente mulheres atuavam no trabalho de prensar a fibra para exportação (SAU-
NIER, 2003). Mas antes da juta chegar ao município de Parintins, ela era cultivada
e passava por vários processos de trabalho de mão de obra, isso nas comunidades
amazônicas. Sendo a comunidade da Brasília, uma das que atuaram em grande pro-
porção por seus moradores no cultivo do vegetal.
46

A juta proporcionava uma escassa economia a esses comunitários, e conforme


seus relatos tinham que entregar certa quantidade conforme o combinado com o
“patrão”, e este lhe “servia” com produtos alimentícios e dinheiro (MCGRATH, 1999).
Naquele período, os ribeirinhos usavam o termo “patrão” a pequenos empresários que
faziam a compra e venda da juta, ou seja, compravam dos cultivadores nas comuni-
dades, essa compra era feita conforme exigências e regras desses patrões, e depois
vendiam aos armazéns que faziam outros serviços derivados da juta para a exportação.
Esse método de “patronagem” é relacionado ao sistema de aviamento no período
da exploração da borracha na Amazônia, também registrado pela literatura da região.
Segundo McGrath (1999) “aviar significa fornecer mercadoria a prazo com o enten-
dimento que o pagamento será feito em produtos extrativos dentro de um prazo espe-
cificado” (p. 37). Sendo esta uma das formas que se davam as relações de trabalho
nas comunidades da região amazônica.
Esse tipo de sistema fez com que o lucro monetário se concentrasse apenas nas
mãos de poucos, ou seja, os patrões e demais empresários que submetiam comuni-
dades em troca de produtos alimentícios. E pela necessidade de obter o alimento e
uma razoável economia em um período em que estes comunitários não tinham outro
método de sobrevivência, além da mão de obra como ferramenta principal de trabalho.
Assim como a juta, outros trabalhos também eram feitos na comunidade. Como
a plantação de cacau, que por muito tempo foi um propulsor econômico no município
de Parintins (BITTENCOURT, 2001). A pesca do camarão é um ofício realizado
em sua maioria pelas mulheres da comunidade, bem como a agricultura familiar,
onde homens, mulheres, crianças tem a função de trabalhar nas plantações a fim de
obtenção de economia para a família (SILVA, 2017). A caça e a pesca são realizadas
pelos homens da comunidade, onde estes fazem a pesca de grandes variedades de
peixes e a caça a animais silvestres. Ambos os ofícios com fins lucrativos. Todas
essas práticas de trabalho são realizadas na comunidade, nos quais há envolvimento
de todos, de acordo com as famílias residentes.
Para o filósofo húngaro István Mészáros (2007), este tipo de situação fez com
que poucos enriquecessem e muitos ficassem cada vez mais na miséria, principalmente
pela valorização da propriedade, ou seja, havia fartura para alguns e exploração para
outros. No caso do município de Parintins, essa fartura era direcionada aos grandes
empresários donos dos armazéns que prensavam juta e faziam exportação do pro-
duto para outras regiões do país e do exterior. Mas para isso, segundo Souza (2008),
tiveram que explorar a mão de obra ribeirinha, estes que por sua vez, faziam da juta
sua pequena fonte de renda, para sustento da família e poucos adquiriam bens no
ramo deste trabalho.

O trabalho no cotidiano dos moradores da


comunidade São Sebastião da Brasília
A sociedade parintinense está habituada na compra diária dos produtos culti-
vados e/ou pescados pelos moradores e moradoras da comunidade da Brasília. Essa
comercialização gera uma economia razoável de sobrevivência às famílias brasilien-
ses. O produto que contém uma comercialização mais elevada, e que gera uma maior
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 47

economia, relacionado aos outros é o camarão, mas somente no período da vazante


nos meses de julho a novembro (BRASIL, 2015).
O crustáceo é pescado e comercializado pelas mulheres da comunidade da
Brasília, sendo esta, a principal comunidade do município de Parintins, que faz
a prática desse ofício. Segundo as narrativas de dona Luzia Gomes, moradora da
comunidade há mais de 30 anos, ela nos informou que “o camarão sustenta muitas
famílias na comunidade, ele significa muito pra gente... nós mulheres já consegui-
mos muitas coisas através do camarão”.35 Este trecho citado nas narrativas de dona
Luzia Gomes, mostra que o camarão significa mais que uma economia gerada aos
comunitários, representa o protagonismo e a vida dessas mulheres que trabalham
nas águas da Amazônia.
Abaixo uma imagem da preparação para a realização da pesca do camarão na
comunidade da Brasília.

Figura 1 – Realização da pesca do camarão

Fonte: Acervo Pessoal.

No primeiro semestre do ano, já no período de enchente (FERREIRA, 2016), o


peixe é comercializado com maior frequência, das espécies como jaraqui, pirarucu,
tambaqui, bodó, pacu, entre outros tipos, tais como os de escamas e os sem escamas.
Ainda neste mesmo período, quando a pesca do camarão fica escassa, as mulheres
da Brasília comercializam em Parintins o que foi cultivado com agricultura familiar,
como hortaliças e verduras. Maior parte deste cultivo é realizado em caixas grandes de
madeiras chamados de canteiros, ou em embarcações pequenas como as canoas, que
quando não são mais utilizadas como transporte tem a utilidade desta prática de trabalho.

35 Entrevista realizada com a Sra. Luzia Cândida da Silva Gomes, no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
48

A agricultura familiar é uma prática de trabalho onde todos da mesma família


fazem o cultivo ao redor das casas. Na comunidade da Brasília há uma diversidade de
cultivo de hortaliças, verduras, legumes e frutas. Esse cultivo é iniciado no período da
vazante na região amazônica (FERREIRA, 2016; BRASIL, 2015). Na comunidade
não existe cercas ou muros que separem um terreno do outro. Essas demarcações
são conferidas através de árvores ou estacas que são fincadas no ângulo de ponta a
ponta. Mas isso não causa certo problema a comunidade (BRASIL, 2015). Os pro-
dutos cultivados na comunidade são vendidos nos mercados de Parintins, a venda é
realizada em sua maioria pelas mulheres (BRASIL, 2015; SILVA; TORRES; 2019),
o que nos revela uma peculiaridade do lugar.
A pesca e a caça são ofícios executados pelos homens, em grande escala (BRA-
SIL, 2015). A pesca é realizada a todo momento, conforme a demanda da venda do
peixe no município. A venda do pescado é realizada pelos homens da comunidade.
No período em que as mulheres comercializam o camarão e os demais produtos cul-
tivados, os homens estão comercializando o peixe (BRASIL, 2015; SILVA, 2017). A
caça é executada também pelos homens, e a comercialização é executada com mais
sigilo, devido a ilegalização de alguns animais silvestres (BRASIL, 2015). Essas
práticas de trabalho correlacionam todos os comunitários. Pois não se denominam
como concorrentes no trabalho, mas como cooperadores para o crescimento econô-
mico da comunidade.

As festas e o catolicismo na comunidade


São Sebastião da Brasília
A religião católica expandiu-se para as comunidades ribeirinhas para que houvesse
certo controle que firmasse a severidade da religião. Mas com o avanço do protestan-
tismo a partir da década de 1950, a Igreja Católica Romana criou projetos para que o
catolicismo chegasse com mais intensidade as comunidades ribeirinhas a fim de conter
o avanço do protestantismo nessas localidades. O principal projeto foi oficializar as
comunidades, titulando-as com nomes de ‘santos’ e registrando-as em cartórios através
dos diretórios formados na época (OLIVEIRA, 2012). E uma das comunidades regis-
tradas através desse projeto foi a comunidade São Sebastião da Brasília.
A partir da fundação da comunidade e a oficialização decretada pela Igreja
Católica em 1968, a instituição religiosa investiu na construção de uma igreja e a
escolha de um nome católico a comunidade. Antes desse registro oficial, a comuni-
dade trabalhava em grande demanda com o cultivo da juta, mas havia outras práticas
de trabalho que no período em que ela estava no auge, eram feitas em menor escala.
Com a inclusão da Igreja Católica, os trabalhadores e trabalhadoras tem um local no
qual podem fazer suas crenças e/ou ritos religiosos na própria comunidade.
Atualmente, na comunidade, são comemoradas duas festas. A primeira é reali-
zada no mês de janeiro com duração de três dias, em homenagem ao padroeiro São
Sebastião, festa realizada e organizada pela Igreja Católica e a diretoria da comuni-
dade. A diretoria em sua maioria é composta por homens, e estes são os responsáveis
pelas festas, algo tradicional das comunidades ribeirinhas, como afirma Campos
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 49

(1995) que “a preparação das festas se iniciava com o dono do santo ou rezador e
acompanhantes (7 a 10 pessoas), na maioria homens” (p. 112). No último dia da festa
é realizado o corte do mastro, algo típico de muitos interiores da Amazônia.
As festas de ‘santo’ nas comunidades é algo tradicional desde a inclusão da
igreja católica (CAMPOS, 1995), visto que essas práticas religiosas faz com que a
comunidade se organize em prol de um evento. Questiono-me, como essas práticas
socioculturais e religiosas se relacionam com a prática do trabalho? Qual a eficácia
da instituição religiosa na comunidade na perspectiva do trabalho? A igreja católica
é uma das instituições que determina o modo de vida dos comunitários.
A segunda festa surgiu a partir do trabalho desses comunitários. A Festa do
Camarão, cuja realização acontece, com data móvel, entre os meses de agosto a outu-
bro, com duração de três dias, período em que a pesca do crustáceo é realizada com
mais frequência. Segundo a associação de moradores e os registros paroquias e civis,
residem atualmente, 69 famílias na comunidade4, e suas habitações são construídas
no modelo de palafitas, por causa do período de enchente e vazante que ocorre todo
ano na Amazônia (FERREIRA,2016).
A partir do trabalho com a pesca do camarão, as mulheres da comunidade
uniam-se e organizavam-se para prepararem a festa na qual dignificava o seu ofício
(GUERREIRO, 2013; BRASIL, 2015; SILVA, 2017; SILVA, TORRES, 2019), e
assim se firmavam na comunidade.

Figura 2 – Garotas Camarão

Fonte: Acervo Pessoal.

Fomos convidados para festa de 2017, no qual fui selecionado pela direto-
ria da comunidade para ser jurado da escolha da Garota Camarão.36 A partir desta

36 Adolescente entre a idade de 15 a 18 anos, pertencente a uma das famílias da comunidade, na qual é
escolhida para desfilar no último dia da festa, concorrendo a premiações, sendo o figurino obrigatório na
representatividade das camaroeiras, que são as mulheres pescadoras de camarão.
50

experiência com a Festa do Camarão, observamos que a comunidade estava com-


pletamente envolvida no seu principal festejo e que tudo aquilo tinha surgido de um
ofício onde as mulheres são protagonistas. A pesca do camarão significa muito na
vida das mulheres da comunidade da Brasília, a emoção toma conta de cada uma
delas sendo representadas no desfile das Garotas Camarão.

Considerações finais
Portanto, a representação do trabalho na comunidade São Sebastião da Brasília,
em Parintins-Amazonas, evidencia na perspectiva de valorizar o trabalho na Ama-
zônia em lugares que contém invisibilidade social, como as comunidades. Para isto,
a história oral, memória e identidade foram importantes para este tipo de trabalho.
Valorizar as vozes dos comunitários da comunidade São Sebastião da Brasília é tão
significativo para os estudos sobre a Amazônia profunda, isso mostra a pluralidade
da Amazônia, desconstruindo a hegemonidade criada pelos viajantes naturalistas.
Assim, podemos compreender que a representação do trabalho na Amazônia
profunda é muito significativa tanto para a ciência quanto para os moradores que
habitam nas comunidades amazônidas. O quanto o trabalho na agricultura e na pesca
do pescado e do camarão é significativo na vida de homens e mulheres, moradores
e moradoras da comunidade São Sebastião da Brasília.
Durante a realização da pesquisa, nas análises das entrevistas, notamos que os
moradores entrevistados queriam mais visibilidade para a comunidade. Era percep-
tível que a colaboração deles para as pesquisas científicas objetivasse em resultados
concretos realizados pelo governo. Ou seja, que a contribuição científica da academia
juntamente com seus projetos fosse fomentada ao governo do estado para benefícios
a esses comunitários.
A proposta dessa pesquisa em valorizar as vozes dos “vistos como de baixo”
da comunidade de São Sebastião da Brasília é justamente mostrar a sociedade parin-
tinense que existem trabalhadores que tiveram grande relevância para a economia
do município em um determinado período. A juta proporcionou pouca economia e
muito trabalho a esses ribeirinhos, mas contribuíram deixando um legado, na parti-
cipação do trabalho com um dos principais produtos comercializados na Amazônia
no século XX. E atualmente os trabalhos pós-juta continuaram na comunidade, os
quais configuraram a comunidade e tranformaram a vida dos moradores e moradoras
da comunidade São Sebastião da Brasília.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 51

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A IMPRESSÃO DO OLHAR: o contato37
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“Era bem simplesinha depois foi aumentando, fizeram essas casas mais
bonitas, né, prédios, evoluiu muito de lá pra cá, de 70 pra cá, por aqui até
ali pra trás da praça da liberdade, pra lá só era mato, era ali não tinha
nem rua nem nada era mais mato, aí depois foram fazendo casas, né!”38

“Era bem simplesinha” referência dada por Luzia e presente nas demais nar-
rativas em relação a cidade de Parintins no momento em que chegaram à mesma,
muito embora em períodos distintos, reflete a forma como elas olharam a cidade pela
primeira vez a partir do momento que vivem hoje.
Hoje, de acordo com a estimativa da população realizada pelo IBGE-2016,
Parintins é enquadrada como a segunda maior cidade do Amazonas ficando atrás ape-
nas da capital, Manaus. Por estar localizada no interior do estado, destaca-se “entre as
cidades do interior do Amazonas pela trajetória de consolidação nas últimas décadas
como polo universitário, sinalizando preenchimento de uma das maiores lacunas para
o desenvolvimento da região de fronteira Amazonas-Pará” (BARTOLI, 2016, p. 08).
De fato, há quarenta anos, por mais que a chegada na mesma trouxesse além de
expectativas, sobretudo perspectivas de como a vida no novo espaço se consolidaria,
é com a visão do hoje que elas buscam se referir a Parintins, o que leva a refletir sobre
o olhar positivado imprimido nas narrativas em relação a cidade na atualidade vivida.
Outro ponto trazido é a referência ao período mencionado, “evoluiu muito de lá
pra cá, de 70 pra cá”. Ora, em 1970, Parintins já era município, e como tal dispunha
de suas prerrogativas administrativas, porém, na fala de Luzia, foi a partir daí que a
cidade “evoluiu”. Isso ajuda a pensar sobre as ações desenvolvimentistas que ocor-
reram em todo Brasil nesse mesmo recorte. O Brasil vinha sofrendo uma série de
mudanças, sobretudo, nas áreas de infraestruturas, o que evidentemente se espalhou
em todo território nacional.
Em outra perspectiva, esse momento ocorreu:

Dentro de um intenso processo de urbanização, que se deu de forma mais acen-


tuada a partir da década de 1950 e teve grande impulso com o advento da indústria
nacional, serviu como atrativo para que se estabelecesse um grande contingente
populacional nas cidades, resultado da migração em busca de melhores condições
de vida e de trabalho (DINELY, 2013, p. 15).

Ainda no caráter do desenvolvimentismo empreendido em todo território nacio-


nal, não é de se estranhar na afirmação “evoluiu”, trazida por Luzia, ou até mesmo

37 O presente artigo constitui um fragmento de minha Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-Gra-
duação em História – Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
38 Luzia Viana da Silva. Entrevista realizada em 08 de janeiro de 2014.
56

na expressão proferida por Rita “vixe! Mudou muito mesmo!”. Sobre sua impressão
do momento que chegou, afirma que:

A cidade não existia! Era bem menor mesmo! Eram bem poucos comércios, a
maior parte era aqueles comércios de madeira, aqueles quiosquinhos de madeira,
tinha bem poucas casas de alvenaria aqui na João Melo mesmo! Tudo era de
madeira, hoje em dia tem esses casarão agora, não existe mais isto, casas e comér-
cio de madeira, aliás na cidade quase toda né! Hoje é tudo de alvenaria, mas de
primeiro aqui tudo era uma novidade quem tinha uma casa de alvenaria.39

É importante sinalizar que em sua narrativa, Rita estabelece um parâmetro entre


as casas construídas de alvenaria no sentido de evoluído, enquanto a casa feita de
madeira é vista como atraso. Percebe-se que seu sentido de evolução está ligado ao
um olhar moldado, ou seja, Rita, assim como as demais mulheres, deixa transparecer
seu preconceito em relação ao tipo de moradia que encontra em Parintins no momento
de sua chegada. Vale destacar que ela veio do interior do Nordeste, mas para ela o
interior do Norte é mais “atrasado”. Embora a madeira seja mais adequada para o
clima, pela própria disponibilidade de matéria-prima, a referência dela é outra.
Desse modo podemos refletir o impacto registrado no olhar tanto de Luzia
quanto de Rita em relação a Parintins, isso porque, como já fora elucidado, elas se
reportaram aos anos de 1970, período que marca as suas chegadas na cidade, e que
mesmo falando do momento em que avistaram pela primeira vez, elas fazem isso
a partir de suas vivências atuais. Tal apontamento contribui na direção de que suas
experiências refazem os significados trazidos em suas memórias, daí a ênfase que a
cidade era bem “simplesinha” e “não existia” não é de se estranhar.
A partir das narrativas de Luzia e Rita, foi possível visualizar como aquelas
recém moradoras viam a cidade. Para elas e para muitas outras, uma Parintins em
pleno processo de mudança, as ruas, casas, vias, enfim, a cidade estava vivendo um
momento de grandes transformações. No entanto, ao depararmos com o impacto
registrado pelo olhar de Geni Medeiros por exemplo, que chegou em 1953, vemos
uma cidade completamente diferente, na sua impressão a cidade foi referida da
seguinte maneira:

Não tinha nada, não tinha nada aterrado, não tinha aquela frente do rio como a
gente vê, aquelas orlas do rio, tudo tudo aquilo ali era barro na beira do rio assim
mesmo, não tinha nada, não tinha um porto, tinha um trapichizinho de madeira,
um pedacinho lá, era tudo, não tinha nada, não tinha nada, ora a iluminação, era
bem pouca, água também era bem pouca, bem pouca mesmo, porque a gente,
porque de primeiro como a gente tinha, a iluminação ia até dez horas da noite só,
aí ia embora a luz, não tinha nada! Não tinha quase escola, não tinha, tô dizendo
que não tinha nenhum médico assim, primeiro veio um médico pra cá, Deus o
livre! Tinha um enfermeiro, enfermeiro não, ele tinha uma farmácia até hoje os
filhos dele tão aí na farmácia, e aquele ali era o médico. O pastor Lessa depois
que ele veio, porque meu filho, eu sempre agradeço a Deus pelo meu filho ele

39 Rita Franca da Costa. Entrevista realizada em 17 de fevereiro de 2014.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 57

salvou a vida do meu filho, não tinha médico, não tinha professor formado, não
tinha nada! Professorzinho assim, porque não tinha as escolas do governo, do
estado, com mil e tanto, dos mil, três mil professor concursado, nada, nada, nada!
Era, olhe hoje em dia o menino não pode quase sair de canoa né, antigamente
os motores era duas, era uma canoas que botava, era até de rede, eu até andava
nessas canoazinhas de rede, que botava aquele pano né, penduravam uma rede
lá, engatava, e o vento arrastava, tinha um pouco dessas, era muito pobrezinha
a cidade, era paupérrima mesmo! Não tinha mercado, não tinha, tudo era vazio,
muito, muito triste.40

“Era muito pobrezinha a cidade, era paupérrima mesmo!”, diante da ampli-


tude que a palavra pobreza carrega, não há como definir um conceito fechado para
a mesma, uma vez que diferentes terminologias podem ser utilizadas na intenção de
defini-la. Nesse entendimento, vários fatores que submetem muitos sujeitos a situação
de vulnerabilidade, exclusão social, negação ou impedimento das necessidades mais
básicas, se enquadram na compreensão do que venha ser pobreza. A pobreza impõe,
ou melhor, requer uma dinamicidade.
Nota-se que, as falas, estão dentro do discurso desenvolvimentista, inclusive,
Geni aponta o aterro como sinal de progresso, também relata com detalhe algumas
características da cidade no período de sua chegada, além disso, faz apontamentos de
problemas sociais que Parintins enfrentava no momento em questão. A sua narrativa
indica que a falta de iluminação pública e abastecimento de água era algo frequente
e que perdurou por alguns anos, uma vez que a população ficava a mercê da admi-
nistração pública. Com isso, temos que na transição da década de 1950 para 1960,
o Brasil passava por um momento de instabilidade tanto de caráter política quanto
econômica, nessa conjuntura:

A crise inflacionária e financeira que o Brasil atravessava afetava todo o país,


inclusive Parintins. Devido à conjuntura econômica do país, os recursos se torna-
ram escassos, daí a necessidade de firmar convênios para alavancar o progresso
e melhorar a infraestrutura da cidade, a qual já não mais atendia à demanda da
população que crescia a cada dia. As dificuldades no abastecimento de água, no
fornecimento de energia elétrica e precariedade na saúde pública etc. se agravaram
(DINELY, 2013, p. 23).

As problemáticas apontadas por Geni e confirmadas por Dinely revelam as


dificuldades e carências que a população enfrentava. Outras questões levantadas
por Geni dizem respeito à ausência de escolas e médicos. Haja visto que, no período
que se refere a educação não só em Parintins mas no país de forma geral não tinha
um olhar voltado para formação dos sujeitos, em que a educação nesse período era
privilégio e não direito, o que muda a partir da Constituição de 1988,41 uma vez que
garante o direito a todos e dever do Estado e da família. Na realidade vivida por Geni

40 Geni de Medeiros Cursino. Entrevista realizada em 03 de dezembro de 2015.


41 De acordo com a Constituição Federal de 1988 a educação passa a ter a seguinte estrutura: Art. 205. A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração
58

e por tantos outros sujeitos onde as pessoas mesmo que minimamente dominassem
a leitura e cálculo matemático nas quatro operações poderiam facilmente ensinar a
outros. Realidade essa que começou a ter um novo direcionamento a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB) de 1996, que no seu Título V trata
dos níveis e das modalidades de educação e ensino.
A precariedade na área da saúde se materializa, no olhar de Geni, pela ausência
de hospitais e profissionais para atender a demanda da sociedade, ela conta que quem
desempenhava o papel de médico era um comerciante dono de farmácia. Também
menciona o pastor Lessa42 como uma referência na área da saúde, uma vez que pres-
tava atendimento a quem lhe procurava, inclusive chegou a socorrer um de seus filhos
quando este se encontrava em situação de quase morte. Situação essa que Geni nos
fala diante de seu desespero como mãe em quase perder um de seus filhos.
Dificuldades com deslocamento é outro aspecto trazido por Geni quando conta
que as canoas eram equipadas com rede para que, dependendo da posição e força do
vento pudesse sair de um lugar a outro, e diz que não existia muitas do tipo “tinha
um pouco dessas”. Relaciona essa situação a condição de pobreza em comparação
ao momento vivido na atualidade. Por isso afirma “era muito pobrezinha a cidade,
era paupérrima mesmo”.
Ela continua nesse pensamento ao citar a não existência do mercado, deixa
transparecer que pelo fato da cidade não dispor de um mercado que atendesse a
necessidade das pessoas, em “tudo era vazio, muito triste”. O vazio causado por algo
que ainda não existia no tempo que Geni chegou à cidade foi colocada no mesmo
patamar de tristeza. Vale frisar que a fala dela ocorre sempre no sentido das ausências
se contrapondo ao que hoje tem na cidade, ao avaliar a cidade avalia a própria vida.
Na sua percepção a cidade evoluiu. Ela também evoluiu. Para ela, essa evolução
aconteceu a partir do momento que se coloca como sujeito ativo nessa transformação.

da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da lei, plano de carreira para o magistério
público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos,
assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;
V – valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério
público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com
ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de
lei federal (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
42 Foi uma liderança batista de grande influência na cidade. Atuou nas áreas da educação, saúde e religião.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 59

É interessante perceber que dois momentos completamente distintos estão em


referência. Um diz respeito a ausência de estruturas e recursos que viabilizassem
em melhores condições de vida para sociedade parintinense, isso na ótica de Geni,
década de 1950 e que se estende até 1960. O outro, no olhar de Luzia, década
de 1970, ocorreu o processo de transformação na cidade. Parintins entra na onda
do desenvolvimentismo e, assim é possível compreender a imbricada relação entre
passado e presente. As falas ocorridas no âmbito individual refletem o coletivo vivido
por elas e demais sujeitos no corpo social.
Ambas se referem ao tempo passado a partir de suas experiências do hoje vividos
por elas. Vale ressaltar que as questões trazidas por Luzia e as que foram apontadas
por Geni balizam o entendimento de que elas levantam problemas acerca de um
ponto de vista em relação a outro. Diante disso, o presente ainda vivo, se reporta a
um passado assentado, mas não sepultado, repleto de visibilidade e realidade.
Geralda Xavier em seu depoimento dá detalhes de como era a cidade na época
de sua chegada e de como a mesma foi sendo modificada, nessa perspectiva:

Quando cheguei aqui era um pouco atrasado. Não tinha esses casarão bom que
tem agora, essa Catedral aí tava no início, tava ainda na construção, levantando
a construção. Agora tá muito bonita a cidade, depois que eu vim pra cá trouxe só
felicidade (risos). Parintins, hoje, tá uma cidade, aqui era quatro, essas casinhas
era tudo casa humilde, a Catedral tava no alicerce quando eu cheguei aqui em
Parintins. tinha poucas casas aqui, tudo foi reformada, quando a gente chegou aqui,
quem primeiro reformou a casa foi, fomos nós, e você sabe quando o vizinho vê a
pessoa beneficiando uma coisa quer também fazer né! E aí começou. A primeira
casa de dois andar aqui, foi essa aqui (aponta pra sua casa) depois começaram a
fazer, vinham aqui olhar, depois fizeram. Posso dizer que nós viemos dá vida aqui
em Parintins, em nome de Jesus! Isso aqui não era Parintins, era um lugarzinho
muito atrasado. Poucas casas aqui, aqui só era comércio, como tá sendo hoje em
dia. Mas era feinha, a João Melo aqui era feinha, humilde, era um lugarzinho
muito humilde mesmo!43

O olhar de Geralda em relação a sua chegada, também, está enquadrado num


espectro positivado da mesma, quando menciona “era um pouco atrasado [...] agora
tá muito bonita”. O momento a que se refere ao primeiro contato com a cidade está
sendo vislumbrado a partir do momento em que precisou ativar sua memória em que
enfatiza as construções como sinal de progresso, é o seu olhar evolutivo da ausência
do que não tinha em detrimento a demanda do seu atual.
E mais, Geralda atribui o crescimento da mesma a partir de sua chegada, o que
segundo sua narrativa, se coloca como alguém que promoveu transformações concre-
tas que marcou seu estabelecimento, da mesma forma que estimulou alguns vizinhos
a buscarem melhorias em suas casas, quando diz “a primeira casa de dois andar
aqui”, Geralda faz essa afirmação cheia de entusiasmo ao apontar para sua casa ao
passo que mostra as casas em torno da sua que pouco a pouco foram sendo alteradas.

43 Geralda Xavier Prado. Entrevista realizada em 12 de fevereiro de 2014.


60

A construção da Catedral é outro aspecto interessante apontado por Geralda,


o que de acordo com seu depoimento, pode ser visto como um elemento que marca
sua chegada. Vale ressaltar que a Catedral teve seu processo de construção no início
da década de 1960, período que ela está chegando. Período esse fortemente marcado
pela renovação dos movimentos carismáticos dentro da Igreja, além da maciça inser-
ção de missionários católicos em diferentes espaços da sociedade brasileira, a fim de
difundir seus ensinamentos a todos, se possível, no intuito de que consiga se manter
como religião oficial (BUTEL, 2009).
Essas informações trazidas por Geralda permitem estabelecer um parâmetro entre
as narrativas anteriores, há um processo de transição na cidade. Ao mesmo tempo que
Parintins na concepção de Geralda “era um lugarzinho muito atrasado”, começa a dar
significativos passos de mudanças. A construção da Catedral aparece como elemento
evolutivo da cidade, não só de sua chegada, sobretudo do crescimento da mesma.

Asfalto aqui, o resto era barro. O aeroporto era aqui por trás da Catedral. A Catedral
estava no alicerce, alicerce de um palmo eu lá de curiosa medir, que eu sempre fui
curiosa, medi o alicerce, isso vai custar muito, eu dizia. Mas essa igreja vai custar
muito. Aí depois fizeram o cemitério, tudo assim foi tudo renovado em Parintins,
pode dizer que tá uma cidade. Quando eu saio por aí que eu vejo, meu Deus! Como
Deus é grande e poderoso! Olhava pra lá só era mato.

“Olhava pra lá só era mato”, essa afirmação Geralda faz da varanda de sua casa
em direção a Catedral, a impressão que tinha em relação a construção da mesma é de
que seria algo bastante demorado. Ao fixar seus olhos surpreende-se em perceber as
mudanças ocorridas.

Imagem 1 – primeiras amarrações da Catedral

Fonte: Diocese de Parintins.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 61

Imagem 2 – estrutura da Catedral em processo de construção da torre

Fonte: Diocese de Parintins.

Imagem 3 – Catedral em finalização

Fonte: Diocese de Parintins.


62

Imagem 4 – vista da Catedral do final da Av. João Melo

Fonte: Patrícia Silva.

A fotografia entendida como fonte auxilia na compreensão de um dado momento


histórico, uma vez que dependendo do seu enquadramento, é possível analisar sentidos
atribuídos. Nesse raciocínio sobre História e Fotografia verifica-se que;

O cruzamento entre a imagem fotográfica e a história se dá a partir do estatuto


técnico das fotografias e seus sentidos de autenticidade e prova, que as transfor-
mam em testemunhos oculares de fatos. [...] A evidência histórica e a imagem
são constituídas por investimentos de sentido, e a fotografia pode ser um indício
ou documento para se produzir uma história; ou ícone, texto ou monumento para
(re)presentar o passado (MAUAD, 2012, p. 263).

Diante disso, foi estabelecido um diálogo entre a narrativa de Geralda com as


quatro imagens dispostas linhas acima. Na primeira podemos visualizar a estrutura
da Catedral em sua fase inicial. Nela percebe-se a ênfase dada apenas à construção,
a ausência de pessoas e outros prédios é algo que chama atenção. O ângulo que a
enquadra direciona o olhar para a estrutura do terreno em que a presença de mato
e uma espécie de fenda indicam que o acúmulo de água em virtude do período de
enchente do rio Amazonas poderia ser algo comum.
A segunda, também não aponta a presença de pessoas e outros prédios seme-
lhante a primeira, nela é possível perceber a estrutura praticamente montada. O que
chama atenção nessa imagem é que ela registra a construção da torre e a mudança
no terreno, aqui já não há mais a presença de mato e sim de uma espécie de pátio.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 63

A terceira imagem apresenta a Catedral já no seu formato final, nela é possível


visualizar pessoas transitando em seus arredores. Casas aparecem ao fundo, em
relação ao terreno em torno da mesma, tudo indica que houve uma modificação na
intenção de melhorar o acesso e tornar o local em espaço de sociabilidade, algo que
acontece atualmente.
Por fim, a quarta imagem diz respeito a posição da Catedral em relação a ave-
nida João Melo, rua em que Geralda reside, percebe-se que a mesma está de frente
para rua, o que leva a pensar sobre o processo de crescimento da cidade, ou seja, a
avenida João Melo é a principal via comercial de Parintins, localizada no centro da
cidade. Isso indica que durante o momento de expansão essa avenida seria um dos
principais elo entre quem vinha do interior ou outras localidades e a cidade.
Nessa perspectiva de construção histórica a partir da análise de algumas fontes,
faz-se necessário concordar com o pensamento que:

Dialogar com pessoas sobre cuja experiência refletimos, tem significado explorar
modos como narrativas pessoais e únicas trazem dimensões do social vivido e
compartilhado; como apontam alternativas em jogo na realidade social, processos
de dominação e resistência, horizontes possíveis, limites enfrentados ou a enfren-
tar. Tem significado compreender essas narrativas como expressões do enraiza-
mento dos sujeitos no social, como expressões de suas carências, expectativas,
lutas e acomodações na vida social (KHOURY, 2006, p. 28).

O que nos leva a pensar sobre o papel que cada sujeito se coloca diante do corpo
social, imprimindo seus sentimentos e perspectivas no novo lugar e de que maneira
se constituem como atores diante de suas ações. Os sujeitos não só se percebem no
corpo social, como atribuem significados às suas experiências (PORTELLI, 1997).
Esse pensamento amplia a percepção de que a memória não está dissociada de
um tempo e de um espaço para que as lembranças de um dado evento vivido venha
à tona na rememoração. Assim, mesmo que a memória coletiva contenha a memória
individual, uma não existe sem a outra. Dessa forma “nossa memória não se apoia
na história, mas na história vivida” (HALBWACHS, 2006, p. 78).
A cidade como texto que pode ser lido diz respeito aos deslocamentos feitos
dentro dela, as inúmeras idas e vindas de pessoas no fluxo diário. Cada pessoa tem
uma forma de apreender cada monumento construído. O som, o cheiro, a cor, o movi-
mento, também são internalizados diferentemente por cada sujeito que caminha por
ela, e externalizados de maneira peculiar possibilitando que aspectos sociais sejam
estabelecidos em expressões de cidadania.
Nesse direcionamento, Zenaide fala como foi sua impressão de Parintins:

Tudo muito pequeninho quando eu cheguei aqui, o aeroporto era ali perto daquele
supermercado triunfante. Era bem tranquila a cidade quando eu cheguei. Olha
tinha gente que dormia de porta aberta! Era muito tranquilo, aí depois que a
cidade foi crescendo, era bem tranquilo mesmo aqui! Era pequeno e era só bem
mato pelo meio, não tinha ainda a Francesa, tinha pouquinha casa lá pra Francesa.
O comércio era bem pouco. Inclusive os meus dois irmãos vieram pra cá. Os
64

primeiros que vieram pra cá, o primeiro colocou loja de roupa e o outro colocou
um supermercado, vendiam muito bem, sabe! Vendiam muito bem!44

Sua narrativa aponta o processo de crescimento ocorrido na cidade, muito


embora seja enfática ao dizer que era “tudo muito pequeninho”. No entanto, ela
também evidenciou a tranquilidade do lugar em que as pessoas tinham o hábito de
dormir com as portas abertas. O que não é possível fazer isso na atualidade devido
a questões de insegurança. É notório elucidar que Zenaide chegou em Parintins no
início da década de 1980, e ainda é possível verificar através de sua narrativa as
mudanças ocorrendo paulatinamente. Ao citar que a Francesa45 nem sequer existia
como indicativo de pouco investimento na área de infraestrutura urbana.
A presença de poucos comércios é outro ponto trazido por ela, e que devido à
escassez da oferta seus irmãos viram oportunidade de se darem muito bem por meio
dos estabelecimentos comerciais que mantinham. Olhando pela perspectiva de que a
cidade estava passando por um processo de transformação é possível levar em conta
a incorporação de sujeitos de diferentes atividades buscando meios de sobrevivência
em meio à adversidade do novo local de moradia.
Buscar novas oportunidades no espaço social de Parintins é algo visível em
todas as narrativas, muito embora ocorra em momentos e condições distintas, em que
dependendo das relações afetivas que favoreceram na inserção dessas mulheres, não
se pode deixar de mencionar que as inserções ocorreram de maneira peculiar a cada
uma. Não há uma homogeneidade, pelo contrário, cada qual registra em suas memó-
rias as peculiaridades de suas chegadas e de como viram a cidade pela primeira vez.
Rita Costa em seu depoimento fala que:

Aí uma coisa que eu achei completamente diferente que nunca mais eu vi mais,
logo que cheguei pra cá eu achava tão lindo aqueles peixes, quando era de tarde,
menina, era uma cambada de peixe, muito feio que eu achava, era aqueles cuiú
cuiú, é assim que eu imagino, mas eu achava tão bonito que em admirava com
aqueles peixes. O mercado, aqui era bem movimentado, hoje em dia já tem mer-
cado pra todos os lugares, né! Mas o movimento de peixe era bom demais! Tu
é doido! E pra comprar carne então! Era fila aqui no mercado logo que cheguei,
tinha que fazer fila pra comprar carne, hoje em dia não tá tudo perto. O peixe
também acabou, ninguém vê mais peixe, éh! Tudo tá muito diferente! Comple-
tamente diferente.

Nota-se na fala de Rita que ao mesmo que se admirava da variedade de peixes


vendidos no final da tarde no mercado público, é carregada de queixas justamente
por não existir práticas como essas hoje em dia. Vale lembrar que o momento que
chegou a cidade tudo girava em torno do centro, por isso o mercado citado por ela,
além de ser um espaço que promovia a circulação de mercadorias, também, era um

44 Maria Zenaide Souza. Entrevista realizada em 13 de outubro de 2015.


45 Também chamada de Lagoa da Francesa é um dos bairros de Parintins. Também atua como um porto
alternativo para escoar mercadorias e transporte de pessoas advindas do interior e de comunidades cir-
cunvizinhas a Parintins.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 65

espaço de sociabilidade, fosse em relação aos variados tipos de peixes expostos para
venda, fosse em relação as filas formadas para compra e venda de carne.
“Tudo tá muito diferente, completamente diferente”, essa afirmação em tom
de inconformismo reflete justamente o processo de crescimento ocorrido na cidade.
O que era destinado apenas uma parte da mesma, e, diga-se de passagem, a parte
central. A partir do avanço populacional outros espaços foram sendo organizados no
âmbito de atender as demandas que iam surgindo.
Rita ao expressar que tudo tá diferente faz isso mediante suas lembranças de
quando chegou à cidade, sobre isso ela fala que:

Desde quando cheguei aqui, desde o primeiro dia que cheguei aqui foi no comér-
cio, primeiro era uma merceariazinha, já tivemos drogaria, agora é esse armari-
nhozinho que nós temos, mas sempre foi comércio. Quando ele (esposo) veio pra
cá, já montou mesmo uma tabernazinha, lá no São Benedito46, de lá viemos pra
cá (centro), até hoje! Agora que os filhos tomam de conta, só tenho um filho, as
outra moram em Aracaju, as duas moças, uma é casada e a outra ainda é solteira,
moram em Aracaju, são três filhos, o rapaz ainda mora comigo, daqui uns tempos
ele toma de conta, porque todos dois estamos velhos, né!

O que chama atenção em sua narrativa é a relação que faz com sua chegada ao
trabalho desenvolvido no comércio. Ela não só enfatiza essa sua colocação como faz
questão de mencionar todos os outros tipos de trabalho que desenvolveu ao lado de
seu esposo. Atualmente, espera que seu filho assuma a dianteira pois suas duas filhas
moram em Aracaju-SE, Além de que, tanto ela quanto seu esposo já se encontrarem
com idade avançada. Como ela mesmo falou “porque todos dois estamos velhos, né!”
Na sua perspectiva, a velhice é o momento de parar e dar vez a outro.
Há uma experiência comum em todas as narrativas, ou melhor, há uma expe-
riência compartilhada. Isso quer dizer que mesmo enfrentando situações semelhantes
ou até mesmo distintas, essas mulheres buscaram, cada qual a sua forma, estratégias
de sobrevivência diante das circunstâncias vivenciadas.
Nota-se que o estilo de vida, a partir da rotina empreendida por elas, não foi
pautado em distintos modos de espaços sociais disposto na cidade, para elas o mais
importante não é pertencer a um bairro de periferia ou um bairro de centro, ter contato
com pessoas da alta sociedade parintinense ou mais abastados, o importante para elas
é ter a consciência tranquila e sentir paz diante de tudo que viveram.
A presença dessas mulheres na cidade de Parintins permitiu que a mesma fosse
vista como um lugar comum, embora experimentado de forma singular por elas. Foi
possível perceber as suas trajetórias mediante suas vivências a partir dos enredos
implícitos em suas memórias.

46 Um dos bairros de Parintins, também conhecido como reduto do boi-bumbá Garantido, identificado com as
cores vermelha e branca.
66

REFERÊNCIAS
BARTOLI, Estevan; MUNIZ, Charlene; ALBUQUERQUE, Renan. Parintins: socie-
dade, território & linguagens. Manaus: EDUA, 2016.

BUTEL, Cristiana Andrade. História e Religião: a religiosidade como padrão


comportamental da mentalidade do povo parintinense (área urbana) no Estado do
Amazonas nos primeiros nove anos do século XXI. Monografia. Licenciatura em
História – Universidade do Estado do Amazonas – Centro de Estudos Superiores de
Parintins (CESP), 2009.

DINELY, Nilciana. O processo de urbanização da cidade de Parintins (AM):


evolução e transformação. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Geo-
grafia Humana, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da
Universidade de São Paulo (USP), 2013.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

KHOURY, Yara Aun. O historiador, as fontes orais e a escrita da história. IN: MACIEL,
Laura. Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’água, 2006.

MAUAD, Ana Maria. História e Fotografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIN-
FAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsivier, 2012.

PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpretação e significado


nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996.

Fontes orais
COSTA, Rita Franca da. Entrevista realizada em 17 de fevereiro de 2014.

CURSINO, Geni de Medeiros. Entrevista realizada em 03 de dezembro de 2015.

PRADO, Geralda Xavier. Entrevista realizada em 12 de fevereiro de 2014.

SILVA, Luzia Viana da. Entrevista realizada em 08 de janeiro de 2014.

SOUZA, Maria Zenaide. Entrevista realizada em 13 de outubro de 2015.


HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E
MOVIMENTO FEMINISTA: a luta
e conquista por espaço e direitos no
município de Parintins no século XX
Roger Kenned Repolho de Oliveira

Introdução
Esse artigo tem como objetivo entender a trajetória das três contribuintes que
tiveram uma formação educacional com forte presença das ordens religiosas e pos-
teriormente envolvimento no movimento de mulheres no município de Parintins,
através dos conceitos e estudos da metodologia história oral, ideias do movimento
feminista (GOLDBERG, 1989; PASSOS, 2001; PINTO, 2003; SAFFIOTI; 1979) e
sobre a educação e o processo de inserção das mulheres nele.
Buscaremos primeiramente como iniciou-se o movimento feminista no mundo,
as lutas e ideias feministas no mundo e no Brasil, olhando para as ideias e correntes
presentes no movimento, e como a abertura do ensino para as mulheres permitiu
o acesso a lugares de poder até então não alcançados, para assim compreender as
participantes de nosso estudo no município de Parintins.
Dessa forma, teremos o arcabouço teórico necessário para entender o movimento
por luta e justiça no município tido na segunda metade do século XX. A partir da
metodologia de história oral (ALBERTI, 2011; FERREIRA, 2012; PASSOS, 2001;
POLLAK, 1992; PORTELLI, 1997) buscaremos coletar e analisar os relatos das
mulheres envolvidas nas lutas desse movimento pouco estudado no município de
Parintins. Não pretendemos aqui, encerrar as discussões sobre essa temática, mas
sim dar uma pequena, porém esforçada contribuição para a discussão sobre as ideias
feministas em Parintins-AM.

História oral
A história oral é uma metodologia de coleta e armazenamento que nos possi-
bilita análises e problematizações de fonte constituída por ela. Segundo Marieta De
Morais Ferreira em História Oral Velhas Questões Novos Desafios (2012) observa
quais os desafios encontrados na história oral, a mesma dentro das muitas formas de
utilização nos mais diversos campos da ciência, sendo considera uma técnica, uma
disciplina ou como a autora a estabelece uma metodologia.
A autora também analisa e estabelece procedimentos do trabalho metodológico
importante para quem pretende usar a história oral como metodologia. Para a autora
68

a metodologia além de proporcionar possibilidades de transcrição de depoimento


junto a com a rede de relação que o historiador pode ter com o entrevistado dando
um funcionamento entre a teoria e a pratica. Dessa forma segunda ela, não permi-
tindo assim classificar a história oral apenas como uma prática de armazenamento,
mas também como provocadora de questões que jamais serão respondidas dentro
de si, mas as soluções devem ser buscadas na historiografia, pois é nela que estão os
conceitos que pensam nas problemáticas geradas nas pesquisas históricas.
Essa metodologia dentro do campo historiográfico passou por muitos percalços
devido a um modelo positivista da História. Para Verena Alberti (2011) que traz para
o seu estudo a discussão não apenas do estudo dos processos e barreiras enfrentadas
pela história oral, desde seu surgimento no século XX como os entraves e consoli-
dações que chegaram ao século XXI. A autora elucida que

durante muito tempo, desde a perspectiva positivista predominante do século no


século XIX; a História preconizou o escrito em detrimento do oral (este, identifi-
cado com o ametódico, com as sociedades sem escrita e, portanto, “sem História”),
e o passado remoto em detrimento do contemporâneo (p. 163).

Muito já foi conquistado dentro de um avanço historiográfico, porém a história


oral ainda possui um resistência dentro do campo da historiografia, resistência essa
que surge desde “a consolidação da disciplina e a profissionalização do historiador
no século XIX” que “impuseram o domínio absoluto dos documentos escritos como
fonte, em detrimento da tradição oral, expulsando a memória a favor do fato” (FER-
REIRA, 2012, p. 172).
No que se diz a respeito a esse embate historiográfico em relação a fonte oral
e fonte escrita Portelli (1997) nos mostra que ambas as fontes “tem em comum
características autônomas e funções específicas, que somente uma ou a outra pode
preencher (ou que um conjunto de fontes preenche melhor que a outra). Desta forma
requer instrumentos interpretativos diferentes e específicos” (p. 26).
O que devemos ter em mente é de não supervalorizar a fonte escrita e nem a
fonte oral pois ambas devem ser vistas pela crítica histórica, cada uma como uma
forma específica de ser analisada e problematizada. Portelli e seu trabalho intitulado
O que faz da história oral diferente (1997) mostra o que torna a história oral dife-
rente de outras fontes, pois devido sua característica diferenciada em relação a fonte
escrita, a fonte oral se trata muito mais de significados de que de eventos, não que
isso leve a não trabalhar com a factualidade, muito pelo contrário, ela nos mostra
eventos até não descobertos. O autor diz ainda que ela está cheia de subjetividade do
expositor, em sua característica não nos conta somente “o que o povo fez, mas o ele
queria fazer, o que acreditava está fazendo, e o ele que pensa que fez”, a construção
da narrativa revela grande empenho do relator com sua história. A subjetividade faz
parte tanto da história quanto dos fatos mais visíveis.
Mostrando assim seu caráter fecundo que a História oral tem, possibilitando
e ampliando a visão do historiador em relação ao fato. A história oral então junto
a nova história traz novas possibilidades de estudos, dando vez a novos temas e
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 69

abordagens, versões até então não relatadas por não possuírem “legitimidade” em
seus depoimentos, devido a sua posição na sociedade a qual vive.
Proporcionado como olhares mostra como explana Ferreira (2012, p. 171),
muitas vezes não encontradas em outros trabalhos históricos como depoimentos
esquecidos, versões menosprezadas história de movimentos sociais onde uma vertente
da história oral se tenha construído com uma ligação a da história dos excluídos.

Memória
A fonte oral é fecunda e devido essa fecundidade é possível discutir sobre
eventos até então não vistos, ela também nos proporciona um olhar diferenciado
sobre um determinado fato, que devido a limitação de uma determinada fonte não
foi possível ser discutida.
Entendemos que o relato oral em si não é a história em seu estágio final, uma
vez que quem faz a escrita Histórica é o historiador. Essa cautela com a fonte é
pontuada por Verena Alberti, onde não devemos cair no erro de considerar o relato
oral que é resultante da entrevista como sendo a própria história “levando à ilusão
de chegar à verdade do povo graças ao levantamento do testemunho oral. Ou seja,
em vez de fonte para o estudo do passado e do presente, torna-se ela a revelação do
real” (2011, p. 158).
E lembrar que a memória vive em total função do presente, e que alguns grupos
fazem o uso da memória para legitimar-se alguma característica e discursos que se
pretende passar. Assim “a memória se esclarece pelo presente, presente este que
incentiva a memória a partir de um determinado grupo” (FERREIRA, 2000, p. 24).
Desta maneira “o presente influencia a memória ao retirar de seu passado apenas
alguns elementos que possam lhe dar uma forma ordenada e com coerência” (p. 24).
Devido essa influência, ela estar em constantes mudança, alterações são feitas
por interferência presente “a priori, a memória parece ser um fenômeno indivi-
dual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” porém “Maurice Halbwachs,
nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou
sobretudo, como fenômeno coletivo e social, ou seja, como u fenômeno construído
coletivamente e subtendido a flutuações, e transformações, mudanças constantes”
(POLLAK, 1992, p. 02)
Marieta de Morais Ferreira explicita que “a linha historiográfica que explora e
questiona as relações entre memória e história rompe com uma visão determinista”
(p. 177-178). Colocando assim “em evidência a construção dos atores de sua própria
identidade e reequaciona as relações entre passado e presente ao reconhecer clara-
mente que o aquele é construído segundo as necessidades deste (FERREIRA, 2012,
p. 177-178). “Ainda que baseada nas fontes escritas, possibilita uma abertura, capaz
de neutralizar, em parte e indiretamente, as tradicionais críticas feitas ao uso das
fontes orais, consideradas subjetivas e distorcidas” (idem).
Devemos estender que os relatos orais são antes de tudo a materialidade das
memórias, memórias essas que são buscadas pelos historiadores de pessoas que
participaram de um determinado evento.
70

Então cabe ao historiador o papel crítico dessa fonte para fazer uma análise, para
identificar o que determinada memória pode trazer consigo, o que ela tenta esconder, e
encontrar os porquês. A memória não nos diz apenas o que indivíduo quer apresentar,
mas também uma representação de como ele quer ser visto e como ele quer que as
outras pessoas o vejam. Segundo Michael Pollak, “A imagem que uma pessoa adquire
ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta os
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para
ser recebida da maneira como quer ser recebida pelos outros” (1992, p. 5).
Para o desenvolvimento da pesquisa que antecedeu a elaboração desse artigo,
tive entrevistas concedidas por professoras que tiveram seus estudos iniciais em
escolas com fundamentação religiosa no município de Parintins e mais tarde fizeram
parte do movimento de mulheres no município em reinvindicação por justiça. Essas
mulheres são Clotilde Cruz Valente47, Fatima Guedes48 e Valdete Preste Pimentel49.

Mulheres, educação e reformas


No Brasil nunca houve uma preocupação com a educação para o povo, o estado
nunca se fez presente ou quis proporcionar educação a sua população, essa ausência
foi preenchida pelas igrejas, que exerceram o papel de educadora.
Barbosa (2008), ao analisar o sistema educacional brasileiro, ressalta que, se
debruçarmos sobre a história da educação brasileira, evidenciamos o atraso muito
grande quando se trata da educação para povo. Foi apenas em 1822 com a indepen-
dência a tardia e a tendência de levar a educação para o povo em uma lei, faz com
que criem escolas nas cidades e vilas do país, nas maiores cidades ensino secundário.
Sendo assim “em 1834, novo diploma legal divide as obrigações com a educação em
dois regimes: a União encarrega-se do ensino primário e secundário e as Províncias,
dos incentivos ao ensino superior” (p. 55).
Porém como o autor demostra em sua obra, a carência da presença do poder
público criou uma lacuna preenchida pelo ensino particular, que estava sobre a tutela
das Ordens Religiosas, isso deve-se primeiro porque o país teve sempre uma tradição
religiosa, e segundo por ela ser a religião do Estado.
Assim desde deste período a religião fica sendo ligada a educação, colocando
seus moldes, aplicando suas ideias e colocando suas crenças e preconceitos como
junto a forma do ensino. Esse ensino essa presença das ordens religiosas limitou por
muito tempo a presença das mulheres nesse espaço.
Costa (2005) explicita em As Mulheres e o Poder Na Amazônia em que busca
nesse trabalho, ver como foi dado o processo de mudanças e limitações enfrentada
pelas mulheres na Amazônia, se utilizando de relatos de viajantes e fontes documen-
tais para ver as mulheres na região. Segundo ela, ao se tratar da educação e inserção
das mulheres nela, foi o positivismo que pairou no país que veio quebrar o modelo
de educação tradicional, com a ideia de inclusão para todos, inclusive as mulheres.

47 Nasceu em Parintins em 04/04/1947 filha de Amarilda da Cruz Valente e Carminho Valente.


48 Nasceu na comunidade de vila de Amazônia Parintins em 21/06/1952 filha de Olavio Guedes de Araújo e
Jovertina Guedes de Araújo entrevistada em 05/12/2016.
49 Valdete Preste Pimentel nasceu em 31/01/52 no município de Parintins.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 71

Mesmo que alguns positivistas ortodoxos em relação às mulheres as consi-


deravam intelectualmente diferentes dos homens atribuíam a inteligência femi-
nina sintético e a masculina analítica, justificando o ensino diferente para ambos
(COSTA, 2005). “Na realidade, assentados na teoria comtiana, os positivistas só
admitiam a instrução feminina, a fim de que a mulher pudesse bem desempenhar
seu papel de mãe. A função da produção cultural objetiva destinava aos homens”
(COSTA, 2005, p. 203).
Dessa forma é de se observar que mesmo que tenha sido aceito a participação
das mulheres na educação, ela só se deu por meio de uma subalternização dentro
do campo educacional, não valorizando sua formação para uma educação que lhe
proporcionaria seguir no campo do saber, mas que focasse em afazeres domésticos
e de pouca relevância para a formação intelectual em si.
Mesmo que pequena o ganho educacional para as mulheres com o positivismo
essas ideias iniciais provocaram o início de mudanças futuras. Barbosa (2008), acen-
tua que o positivismo teve grande influência na velha república, como a da separação
entre Estado e Igreja, colocando assim também a obrigatoriedade das ciências no
ensino, a educação tinha importância nessa república havendo assim muitas reformas
como traz o autor, como as dos anos de 1891, 1901, 1911, 1915, e 1915 que vieram
do Executivo não passando pelo Parlamento.
O autor demostra também as reformas que ocorrem no sistema educacional
brasileiro, como em 1942 durante a Ditadura Vargas, e com a ocorrida no final dela,
em que a educação é discutida na Constituinte de 46, e é colocada como compro-
misso do Estado oferecer escola pública, dando assim uma educação popular e a
universalização do ensino primário.
A partir dessas discussões aprofundaram-se levando em conta a complexidade
do ensino no país. “o debate entre ‘velho’ e o ‘novo’ fez com que a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, que começou a ser discutida em 1948, só fosse discutida
sancionada em 1961, ficando em vigor por apenas dez anos” (BARBOSA, 2008, p. 56).
Mesmo havendo decorrentes conquistas e avanços na educação no país, poucas
mulheres tinham acesso à educação, em sua maioria das classes mais elevadas mas
não deixando de ainda assim sofrer pela desigualdade de gênero.
A Primeira Guerra foi decisiva também, muitas mulheres fora do país ocuparam
os lugares deixados pelos homens (COSTA, 2005). Essa notícia ao chegarem no Brasil
alimentou o movimento feminista, a favor da profissionalização da mulher, dando
uma expansão ao ensino médio para as mulheres tanto do Ensino Público quanto nos
Colégios de Freiras das camadas mais favorecidas.
Saffioti (1979) diz que é possível observar a evolução do trabalho feminino
na França nos anos de 1906-1946, tendo também grandes flutuações. “durante a
Primeira Guerra Mundial a proporção de mulheres francesas economicamente ativas
sofreu grandes elevação. Os efeitos femininos passam de 30,0% a 40% nas indústrias
gráficas, de 39,0% a 50,0% nas de papel e papelão” (p. 45).
Porém, para a mulher se fazer presente e participativa e ter uma igualdade na
conquista por um trabalho em relação ao homem teria que carga de trabalho dobrada
com os afazeres a ela atribuído e mais.
72

Para Saffioti (1979) o casamento e as dificuldades que se colocam como barreiras


para interromper seu trabalho e sua volta depois de um longo período inativa, são
fatores muitas vezes para colocar a mulher em cargos com menos responsabilidade
e em posição de subalternidade. “mesmo quando o nível profissional do trabalho do
homem e da mulher é o mesmo, está recebe menor remuneração e é hierarquizada
abaixo daquele. A valorização da força física do homem serve de justificativa à
hierarquização dos sexos” (p. 47). Costa (2005) observa que na Amazônia a entrada
das mulheres

no magistério, conforme Jane Soares de Almeida, demorou a concretizar, prati-


camente ligado ao empobrecimento das camadas médias no início do século XX
e difusão de novos valores pelo feminismo e pela Guerra. [...] Sem dúvida, um
processo lento, que envolveu estratégias de cooptação e conciliação (p. 219).

O positivismo era criticado pelo caráter reducionista, limitando o método das


ciências naturais, se restringindo aos fatos (COSTA, 2005). Com as ideias de mudar
a educação as Ideias da Nova escola mexem com o país, porem sua aplicação na
realidade brasileira e a falta de conhecimento sobre ela, fez com que as expectativas
não dessem conta da realidade, “mas foi a proposta mais adequada as ideias libertárias
da República (COSTA, 2005).

Época em que a instrução primária já se estendia às mulheres; e as Escolas Nor-


mais aos poucos iam absorvendo-as no lugar dos homens que se afastavam, elas
foram chamadas à construção da nação. Porém, essa colaboração representou
uma moeda de duas faces: de um lado elas comparecem, de outro, ainda lhes era
negado o acesso aos Liceus e Cursos Superiores (COSTA, 2005, p. 22).

Podemos entender que no Brasil historicamente, pouco se tem pensado em uma


educação para o povo, e mesmo com os avanços lentos em que muitas das vezes
influenciado por fatores externos se tem pensado nas mulheres dentro da educação
no século XX, porém mesmo que pouco avanço serviu de brecha para luta e por
melhoria nesse espaço tão difícil de se fazer estar sua presença.

Feminismo e luta
Muito das ideias que circularam para mudanças ocorridas no século XX se
deram devido ao movimento feminista, que desde suas primeiras movimentações
buscou a emancipação das mulheres na sociedade, através de reinvindicações que pro-
porcionaram conquistas no final do século XIX, no século XX e posteriormente XXI.
Para Pinto (2003), o movimento tem sua primeira onda no final do século XIX
e início do século XX, que se ocupou com as necessidades de primeira instância
da atuação social da mulher como sufrágio universal e os direitos civis e políticos.
Segundo a mesma a segunda onda do movimento feminista tem início na década
de 60, onde tem ainda a igualdade como centro norteador do movimento. Para a autora
as feministas estadunidenses passam a reivindicar o direito ao serviço remunerado
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 73

fora do lugar doméstico, assim como estudar e ter uma carreira profissional, assim
proporcionando autoestima e independência para as mulheres. Durante esse processo
sofrem repressão masculina.
Mesmo não sido denominado como movimento feminista, no Brasil, tem seu
início nas primeiras décadas do século XX, onde tinha como busca o direito ao voto.
Criado em 1910 o Partido Republicano Feminino tinha como presidente Leolinda
Daltro, com a proposta da união feminina, lutando pelo o direito ao voto.
Muitas correntes influenciaram e influenciam as correntes do movimento femi-
nista. Entre as presentes no Brasil temos, segundo a autora, o chamado feminismo
“bem-comportado” que lutavam pela conquista dos direitos políticos, como o direito
de voto, de participar da cidadania, que era liderada por Bertha Lutz, e abordava
assuntos políticos e a necessidade de o sufrágio ser concedido às mulheres. Esse viés
do feminismo era considerado a área conservadora do movimento (PINTO, 2003).
A segunda tendência dada pela autora no início do movimento no Brasil era o
lado oposto, denominado de feminismo “malcomportado”. Reunia muitas mulheres,
que lutavam pelo direito a educação, igualdade, sexualidade, divórcio e contra a
dominação masculina, questões vistas como tabu nesse período.
Desse grupo, muitas mulheres distintas faziam parte, assim o caráter heterogêneo
acrescentava à luta um objetivo social. A autora ainda cita uma terceira vertente no
movimento feminista brasileiro, chamada de “o menos comportado” dos feminismos,
com mulheres do movimento anarquistas e comunistas que combatiam as desigual-
dades de gênero, comandadas por Maria Lacerda de Moura.
Para a autora, na base da tradição do feminismo marxista, segue o pensamento
clássico o qual o capitalismo é o causador da opressão feminina, assim tendo como
centralidade o alcance de uma sociedade socialista, nele

o movimento de mulheres constitui o setor do partido revolucionário de van-


guarda encarregado de conscientização das mulheres com respeito às virtudes
emancipatória do trabalho assalariado (sendo o trabalho doméstico considerado
improdutivo e desvalorizante) e da organização das trabalhadoras para reivindicar
seus direitos (p. 07).

Muitas foram as correntes que influenciaram e ainda influenciam as mulheres


e movimento feminista, por isso é importante termos em mente que o feminismo
vem como arma essencial da mulher na luta contra toda desigualdade pautada em
crenças criadas para inferiorizá-la e a colocar em um ambiente sem direito a escolha.
Por mais que diferentes correntes influenciem e modifiquem o cerne das lutas do
movimento, ressalta-se que “o feminismo tem uma longa história com movimento
emancipatório” (GARCIA, 2015, p. 2015). Ou seja, por mais que correntes surjam
o movimento teve e tem o caráter de luta pela liberdade da mulher.
Segundo Garcia (2015), foi nos Estados Unidos que o termo feminismo foi
empregado pela primeira vez por volta de 1911, quando os escritores tanto homens
quanto mulheres usam o termo para substituir algumas expressões, como problemas
das mulheres e movimento das mulheres, quando descreviam a história das mulheres
em busca de seu direito e liberdade.
74

Esse novo feminismo buscava ir além do sufrágio, da pureza da sociedade; ele


visava ganhos no campo intelectual, político e sexual (GARCIA, 2015). As feministas
americanas buscavam um equilíbrio das necessidades amorosas, de realização individual
e política. Para a autora, ao trazer em um sentido mais amplo as críticas das feministas,
é justamente em cima do destino cruel que o patriarcado lhe impôs.
Garcia (2015) diz que, pela visão das lutas nos diferentes momentos em que as
mulheres se articulam, tanto na teoria como na prática, fazem-na com o objetivo único
de libertação feminina. Podemos ver assim o feminismo como tomada de consciência
dessas mulheres, contra toda a opressão de que foram e ainda são vistas objeto por parte
dos homens no núcleo do patriarcado em diferentes fases históricas, movendo-as a procura
de libertar seu sexo e para as transformações necessárias para que isso aconteça.
Muitos dessas ideias pode ser encontradas também nas discussões trazidas por
Passos (2001) que demostra que o movimento feminista tem o intuito de romper com
esse pensamento, buscando parâmetros que não estejam estabelecidos na razão e emoção,
buscando a lógica da inclusão e equilíbrio, pois sabe-se que essas desigualdades são fun-
dadas em preconceitos e estereótipos culturais, que são imprescindíveis para manutenção
da sociedade capitalista.
A autora explicita que o movimento feminista é essencial para a sobreposição de
barreiras sociais, dirigindo para a participação feminina em todas as áreas. Ele se mostra
fundamental para a inserção da mulher nos lugares que há muito tempo lhe foram negados,
e vai além, ele dá validade ao lugar conquistado à mulher, lhe proporcionando recursos
suficientemente fundados para sua validação em lugares até então não lhes direcionado.
Defende ainda que a resistência e rejeição de algumas das ideias feministas expli-
ca-se ao perceber que a proposta feminista é ameaçadora ao modelo de ciência vigente e
mais ainda para a sociedade. Mesmo sendo e indo contra o modelo de ciência machista
e sexista, essas ideias vêm adentrando na academia, dando espaço a novos caminhos
teóricos e metodológicos (PASSOS, 2001).
As teorias feministas são compostas de diversas linhas de pensamento, pois está
construída em cima do pensar e fazer de mulheres do mundo todo. Diferencia-se de outras
correntes do pensamento político, e indo além dessas atribuições, pois em seu cerne o
feminismo carrega consigo uma ética e uma forma de estar no mundo (GARCIA, 2015).
“O feminismo é uma consciência crítica que ressalta as tensões e contradições que encer-
ram todos esses discursos que intencionalmente confundem o masculino com o universal”
(GARCIA, 2015, p. 78).
O feminismo, abraça muitos anseios e vontades operosas, agindo em todas as ins-
tâncias, pois discute desde os novos processos inventivos até as provocações impostas
ao ambiente. O feminismo ilumina todas as opressões sofridas pelas mulheres, dando a
elas a possibilidade de ver a si próprias, visando entender e questionar as opressões com
intuito de combater o mal que há muito tempo se abateu sobre as mulheres, buscando
assim mudanças.

Educação feminina em Parintins


No município de Parintins, na metade do século XX houve um aumento na criação
de escolas e oferta para o ensino público para a população do município que começa
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 75

nas décadas de 1950, 60 e 70. Em Saunier (2003) que aponta a primeira escola a ser
fundada no município Foi a Escola Araújo Filho em 1853 que era dirigida pelo Pe.
Torquato, essa data segundo o autor, é quando é implantado a obrigatoriedade do
ensino público em Parintins.
Uma dessa primeiras escolas a serem fundadas segundo o autor, nesse período
é a escola Colégio Nossa Senhora do Carmo, sua fundação se deve ao Bispo Dom
João da Mata, Prefeito interventor Capitão Ferreira e pelo Pe. Victor Heinz, o passo
inicial para a construção se deu em 1945 sendo oficialmente inaugurada em 1957
(SAUNIER, 2003).
Em sua fundação já tem um caráter religioso, como e de se observar devido ao
próprio fundador esse vínculo educacional direto com a instituição católica reflete
diretamente ao ensino voltado para as mulheres, parte do modo como era dado a
educação voltada para as mulheres é encontrado nas memórias das ex-alunas Clotilde
Cruz Valente50, Fatima Guedes51 e Valdete Preste Pimentel.52
Nas memórias de dona Clotilde Cruz Valente, sua formação educacional teve
uma grande presença religiosa. Segundo ela

no colégio, além de já ter uma formação religiosa, a minha formação foi junto ás
freiras, na época a maioria dos nossos professores eram padres e freiras, então a
gente teve assim uma formação muito forte, uma formação religiosa muito forte
e eram elas que davam aula.53

O relato de Dona Clotilde demonstra o envolvimento de pessoas de dentro da


Igreja Católica não apenas na fundação da escola, mas também no quadro de pro-
fessores que ministravam aulas.
Além disso a escola mostra um caráter elitista como a própria relata “eu estudava
no Colégio Do Carmo, que era particular, eu era bolsista. Era muito difícil. [...] As
irmãs eram muito boas, negociavam com as freiras”.54
Fatima Guedes que veio da área não Urbana do Munícipio de Parintins relata
que saiu da Vila Amazônia, interior do município de Parintins

para estudar naquela época o curso ginasial no colégio Nossa Senhora do Carmo.
Que apesar de ser um colégio, uma entidade mantida pelo dinheiro público, mas
é elitista. As meninas da minha turma tinham o padrão sócio econômico elevado
em relação a mim.55

O município parece fazer uso de instituições não totalmente publica para o


reforço da educação municipal, isso não quis dizer que pessoas com menos poder

50 Clotilde da Cruz Valente, nasceu em Parintins 04/041947 filha de Amarilda da Cruz Valente e Carmi-
nho Valente.
51 Fatima Guedes nasceu na Vila Amazônia comunidade de Parintins em 21/06/1952 filha de Olavio Guedes
de Araújo descendente de nordestinos e Jovertina Guedes de Araújo.
52 Valdete Preste Pimentel nasceu em 31/01/52 no município de Parintins.
53 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
54 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
55 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.
76

aquisitivo fizesse parte do quadro de alunos, pois o podemos ver pelos relatos orais
que era possível estudar na escola desde que se houvesse um alto rendimento por
parte do aluno.
É importante entendermos a desvantagens que as pessoas de menor poder aqui-
sitivo tinham e ainda tem em relação a disputa por uma educação e qualidade. Além
disso, as matérias destinadas as mulheres no século passado eram matérias muito
voltadas para a manutenção do lar.
Clotilde Cruz Valente diz que: “nós tínhamos também aula de educação domés-
tica, artes. A gente aprendia muita coisa, hoje o currículo é muito diferente, já não
tem mais essas disciplinas. Eu aprendi fazer alguns bordados aí no colégio, nas aulas,
fazer shampoo, transformar o sabonete”.56
Como é percebido, não há, na fala de Clotilde, uma queixa em relação a oferta
de matérias dadas para as mulheres na escola, ao contrário. Segundo nossa agente
social “não só a educação moral, mas até mesmo pra a formação doméstica, de como
você ser uma dona de casa, de como você ajudar na sua comunidade, eu não tenho
queixa porque eu com certeza eu ganhei muito com a formação que eu recebi aí no
colégio”.57
Outra contribuinte para esse estudo e dona Valdete Preste Pimentel que diz:
“olha eu estudei no colégio nossa senhora do Carmo desde o primeiro aninho eu
tive a felicidade de me forma e ser a primeira escola pra eu trabalhar lá eu trabalhei
primeiramente sete anos”.58
As três participantes das pesquisas estudaram na Colégio Nossa do Carmo mais
tarde seguiram a carreira no ensino e depois irão participar do movimento de luta por
direitos e justiça no município de Parintins.
A professora Valdete diz que “não tinha ensino infantil só tinha ensino o pri-
meiro ano, e eu trabalhei esses oitos anos seguidos e consegui esta façanha chamada
e na época e depois eu fiz a educação física fui trabalhar na educação física né, e
ultimamente e que eu voltei porque eu me formei em educação física, tenho normal
superior e me especializei em psicopedagogia”.59
A professora Clotilde ao falar de formação relata que:

eu fui pra Manaus um ano pra lá pra fazer um curso de enfermagem, eu estudei
no IEA mas eu não terminei porque eu passei, eu fiz o concurso aí eu vim pra cá
pra trabalhar, eu estava com dezoito anos. Eu trabalhei na Fundação CESP como
atendente [...] depois saí para fazer a licenciatura, [...] consegui fazer a Licenciatura
em Pedagogia e Supervisão Escolar de primeira à quarta série. Depois disso fui
atuar como supervisora nas escolas estaduais. Trabalhei muitos anos, depois fiz
curso de pedagogia na UFAM, aí o último curso que eu fiz foi especialização em
Educação de Jovens e Adultos, a EJA.60

56 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
57 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
58 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
59 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016
60 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 77

A formação de Clotilde foi muito diversificada, sempre profissões que visam


o cuidado ou assistência ao próximo. A educadora Fatima Guedes relata: “depois eu
concluí o ensino, naquela época que o ensino era ginasial, aí afim entrei no magistério
no curso pedagógico que era o destino das mulheres na época. Era só ser professoras
casar servir o marido e ter filhos”.61 Ela se mostra entender e ter o esclarecimento do
lugar que é lhe imposto na sociedade do século XX. Ela afirma

muito nova, com dezenove anos [...]. Fiz o ensino médio, que hoje é o ensino
médio, o curso pedagógico já com duas crianças né? Duas filhas, mas também,
me saí muito bem aí depois veio o projeto Rondom, para Parintins e oferecendo
os cursos de licenciatura, eu me desafiei e fiz licenciatura em letras, foi um grande
presente que me dei da vida, que foi aquele curso.62

Na fala da participante é possível perceber a importância e valor que os estudos


tiveram em sua vida, essa importância se ver nos relatos prosseguir de sua fala.

Aí depois disso, passei um tempão aí sem estudar né? Só trabalhando como


professora do estado né? Tive acesso Paulo Freire, pedagogia do oprimido na
época, depois pedagogia da indignação, eu ia buscar esses caminhos né? Karl
Marx, Simone de Beauvoir, Rosa Luxemburgo e Clarisse Lispector. Essas cria-
turas foram os me despertando, a me situar, e buscar uma identidade ideológica,
nessa identidade eu fui buscando, ingressei no movimento de mulheres, criamos
a associação de mulheres de Parintins em 86.63

Em seu relato se percebe a influência e a importância do acesso ao ensino,


mesmo de aspecto religioso, a possibilidade do acesso à leitura aparentemente pode
ter influenciado, Fatima Guedes a propor mudanças de si na sociedade do século XX.
Não é possível ainda ver nestas análises em que medida a formação educacional
influenciou ou possibilitou o ingresso de ambas na área da Docência. O que podemos
afirmar que ambas são de classes menos favorecidas no município, e que tiveram
uma formação educacional determinada não apenas para a formação profissional
como também para o lar, pois estudaram no ambiente que firmava essas ideias em
relação a mulher.
A saída para o espaço público e o acesso à educação pode ter em alguma medida
possibilitado a tomada de consciência individual e coletiva dessas mulheres que
posteriormente irão se organizar.

Movimento de mulheres em Parintins


No município de Parintins na segunda metade do século XX, muitas mulheres
se organizaram para lutar por mais justiças e se organizarem na sociedade. As três
participantes que contribuíram para este artigo além de terem em comum a instituição

61 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.


62 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.
63 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.
78

onde estudaram, e fizeram o ensino colegial, também se interligam ao se envolveram


grupo de mulheres, chamado por elas de Associação de Mulheres.
Sobre a criação do grupo de mulheres Fatima Guedes elucida

eu senti necessidade de um grupo de um apoio em que eu me pudesse me sentir


acolhida ai foi que nos reunimos um grupo de mulheres e esse grupo em 1886
decidiu criar a associação de mulheres de Parintins e nesse grupo eu mim encon-
trei e porque a gente começou a discutir a problemática das mulheres dentro da
sociedade patriarcal64

Ao ser perguntado de dona Valdete Preste quando é que ele foi criado, o grupo
de mulheres, a mesma demonstra não lembrar. Ela reponde “olha foi não sei nem
dizer o nome. Quem sabe é a Fatima Guedes, mas já faz muito”65. Seu esquecimento
e atribuição a Fatima demonstra quem dentro do grupo social é de alguma forma
autorizado a falar desse assunto.
A associação de mulheres seguia a lógica defendida pelo movimento feminista
de luta por direito, igualdade e justiça, com intuito de alcançar a emancipação das
mulheres. Nos relatos, o que mais marca no falar das entrevistadas é justamente um
evento que serve de marcador nas memórias de nossas agentes sociais. Essa tragédia
é a violência ocorrida com uma jovem na cidade de Parintins. O que parece segundo
o relato é que isso ocorria com frequência.

Na década de oitenta a gente via que as coisas aqui eram muito complicadas,
principalmente no que diz respeito a questão de estupro, eram mulheres, jovens,
crianças e como havia assim só um juiz, não tinha quase advogados, as coisas
eram lentas, muito mais do que é agora, a gente sabe que a justiça é lenta, naquela
época era muito mais e nós tivemos necessidade junto, eu sempre participei de
igreja e movimento sociais, aí nós tivemos a oportunidade nos unirmos junto a
algumas companheiras.66

Ao perguntamos a Fatima Guedes o porquê do ingresso das mulheres na asso-


ciação a mesma responde que foi

Por conta. Houve um fato em Parintins, de uma jovem que foi e barbaramente
estuprada por um empresário, por um filho de empresário de Parintins. Isso na
época a menina não tinha no apoio nenhum sabe? E por isso ficou, como ele tinha
dinheiro, como era uma pessoa de referência, o caso ia ficar por isso mesmo aí
foi que nós. A mãe da moça nos procurou porque a gente já tinha essa referência
de lutar, de questionar a sociedade e de enfrentar até o sistema. Nos procurou e
aí a partir desse fato a gente foi para o confronto com a justiça.

Valdete Preste pontua “olha do conhecimento que eu tenho é a questão de jovens


que não tinham respeito nenhum pelas mocinhas, agarravam na marra, estupravam

64 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.


65 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
66 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 79

e deixavam aí! E muitas vezes os pais com dinheiro iam e compravam seu João, seu
Pedro, Dona Maria e por aí ficava”67. Ela pontua também que a partir desse ocorrido
“então aí as mulheres começaram a se reunir e por sinal foi essa junção tão assim,
tão tímida, mas fez colocar gente na prisão! Na penitenciária, que passou um tempão
preso, e os pais, de dinheiro, não conseguiram retirar”.68
O que mais se pontua nas falas se tratando da associação de mulheres é protesto
que ocorreu em frente ao fórum de Parintins, que foi justamente para obter justiça ao
caso de estupro já citado por elas. Segundo Valdete “as mulheres foram para frente
do fórum, exigindo que fosse feito justiça a partir daí se organizou propriamente dito
a coisa e não era organizado né?”.69
De acordo com Fatima

fomos cobrar a justiça né? Eu lembro que quando nós chegamos no fórum de
justiça, no dia que ia ser julgado né? O caso do rapaz estuprador, e o juiz nos
perguntou. Quem estava na frente daquele movimento? Aí nós dissemos: que não
havia ninguém a frente por de trás, todas nós estávamos a frente do movimento,
nós éramos a frente do movimento, a massa, a frente da massa do movimento e
que nós queríamos ali cobrar justiça.70

O relato além de mostra a unidade e organização das mulheres envolvidas


no pretexto, demonstra entendimento e união para enfrentar a injustiça que estava
ocorrendo naquele momento.
Os relatos mostram a importância e força que o grupo de mulheres represen-
tavam para as outras que não estavam envolvidas na associação de Mulheres. Sua
relevância na sociedade em um momento de vulnerabilidade feminina ás que não
estavam envolvidas na luta diária na associação, mostra além disso uma unidade
precisa naquele momento na causa.

Conclusão
No decorrer da história brasileira, não se houve por parte do estado uma preo-
cupação com a educação voltada para as massas, no século XX esse quadro muda, a
mulher passa a ter mais acesso ao ensino formal mesmo que devida à falta de alcance
do estado em proporcionar uma educação para todos os lugares do país, as ordens
religiosas assumem esse papel.
No município de Parintins esse ensino dado em escolas com essas caraterísticas,
possuem matérias voltadas ao lar para as mulheres, uma educação doméstica a qual
essas mulheres tiveram que ater sua atenção. Mesmo sendo limitada o ensino formal
para essas mulheres e dentro do seio de suas subjetividades, ao que se refere gostar
ou não desse modelo de ensino.

67 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
68 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
69 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
70 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016
80

O que nos parece é que, por mais que pequena e inicial esse pontapé de acesso
a educação para essas mulheres, já serviu para uma tomada de consciência e estadia
nos espaços de poder até então muito negado a elas, como as mulheres que conseguem
romper com algumas de suas amarras através do estudo e de sua profissionalização
Talvez mais que isso com um movimento para lutar por melhorias no municí-
pio, e que medida as ideias feministas, tão caras a essa sociedade excludente para
as mulheres, circulam e influenciam essas mulheres nesse movimento de mulheres.
Dessa forma como não ligar essas movimentações dessas mulheres como um movi-
mento de ideias feministas, uma vez que tais ideias englobam buscar melhorias para
a mulher na sociedade como um todo.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 81

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MULHERES EM TRÂNSITO NA
AMAZÔNIA: o papel das redes de
sociabilidade no processo migratório feminino
de Terra Santa à Manaus (1970-2018)
Suena Santarém Loureiro

Uma característica importante das novas dinâmicas migratórias na Amazônia


é a circulação das mulheres71. Os estudos migratórios indicam uma crescente femi-
nização da migração na região com características muito próprias que as diferem
das migrações tradicionais. Este “fenômeno de ordem mundial” vem provocando
importantes mudanças nos paradigmas dos estudos dos deslocamentos populacionais
que, quase sempre foram investigados na Amazônia sob a perspectiva da migração
de trabalhadores eminentemente masculinos (OLIVEIRA, 2017, p. 02).
Essa é a abordagem mais sintonizada com o processo de deslocamento que
se caracteriza no final do século XX, que contribui de forma mais favorável para a
análise dos deslocamentos de mulheres sozinhas ou das mulheres como protagonistas
nos trânsitos migratórios. Nesse olhar, Sayad (1998) contribui de forma plural, visto
que a migração é compreendida enquanto um fator social completo, sendo necessário
analisá-la em seus vários aspectos (políticos, econômicos, sociais e culturais), consi-
derando-a em sua dupla dimensão de fato coletivo e trajetória individual.
Esse ato de partir, sair, ou chegar a um lugar novo permite que possamos ver os
sujeitos em trânsito, não precisamente levados por algo que lhe seja externo, distante,
porém, é possível perceber seu movimento em busca das suas próprias possibilidades,
dos seus desejos e de novas perspectivas.
Nesse sentido, nossa investigação parte de um processo de migração interna na
Amazônia, enfocando, especialmente, aquela que ocorre entre os dois maiores estados
da região amazônica: Pará e Amazonas. Dessa forma, esse trabalho traz no bojo de
sua discussão a temática da migração interna nas fronteiras da Amazônia, diferente-
mente da que estamos acostumados a ouvir ou estudar, discutimos as experiências de
migração a partir do ponto de vista das mulheres paraenses, que enveredaram diante
de seus processos migratórios rumo ao Amazonas. Em outras palavras, abordamos
a especificidade da migração feminina.
Dentro desse contexto situa-se a cidade de Terra Santa – PA, local de onde parte
nossas análises. Situada no extremo Oeste Paraense, fronteira com o Amazonas, este
município foi distrito de Faro até o ano de 1991, quando construiu seu processo de
emancipação política. Por ser uma cidade situada distante da capital paraense, ou
seja, a 891 km de Belém e, por estar em uma região de fronteira, observa-se que

71 Especialmente os dados do Censo Demográfico 2010.


84

há um grande fluxo migratório dela para cidades mais próximas, como Parintins e
Manaus, situadas a Leste do Estado do Amazonas, reatualizando corredores históricos
de mobilização populacionais.
Dessa maneira, analisamos o processo migratório de Terra Santa à Manaus
sob à luz das experiências e trajetórias das mulheres migrantes, buscando identificar
as trajetórias históricas das nossas colaboradoras e suas relações sociais nos novos
espaços, assim como, contextualizar as trajetórias e as experiências delas a partir
dos processos de deslocamentos que ocorrem na Amazônia contemporânea (final
do século XX e início do XXI).
Percebemos dessa maneira que a idade, o perfil e os motivos que determinaram a
saída de cada uma delas, são diferentes. Elas possuem uma trajetória única e peculiar
que nos leva a perceber os diversos atores sociais envolvidos nessa teia de decisões
que perpassa pelos familiares, amigos, entre outros, que estão presentes desde o partir
ao voltar, isso quando as mesmas optam pelo retorno.
Percebe-se esse fato ao analisarmos os depoimentos de nossas colaboradoras,
mulheres de diferentes idades, que viveram esse processo em diferentes épocas, mas
que sempre buscaram outras possibilidades e alternativas para além do lugar onde
viviam, sendo levadas por diversos fatores a sair de sua terra em busca de melhoria
de vida. Esse processo de deslocamento é indicado também por Bassanezi (2013)
ao enunciar que:

Sim, as migrantes têm uma história. Desde sempre elas têm migrado, frequente-
mente na companhia de familiares, amigos e conhecidos em busca de melhores
condições de vida e trabalho, mas migram também sozinhas, não só à procura de
emprego, mas de independência, de casamento, ou até para fugir de discriminações
e violências (BASSANEZI, 2013, p. 169).

Essas diferentes mulheres se tornaram atrizes principais do enredo de suas vidas,


ao enfrentarem muitos percalços para conquistar seus sonhos, o desejo de continuar
ou terminar seus estudos, de casar ou de ter uma vida diferente da que tinham.
A falta de oportunidade no prosseguimento dos estudos foi e ainda é um dos
principais motivos para a saída das jovens oriundas de Terra Santa. Se em décadas
anteriores o motivo da saída se dava pela ausência das séries finais do ensino fun-
damental (década de 1970), ou por poderem optar apenas pelo magistério (década
de 1980), a partir dos anos 1990, é a busca por um curso superior que instiga a
vontade das mulheres da cidade em querer sair e buscar outras alternativas de vida.
Através dos relatos das nossas entrevistadas, entendemos que sair de Terra Santa
era a única possibilidade para quem queria concluir seus estudos, mesmo que isso
implicasse passar por situações difíceis ao longo do percurso.

“Como na época só tinha até a quarta série aqui, aí eu fui para Manaus para ver
se eu conseguia estudar mais um pouco.”72

72 Lúcia Maria Guimarães Pereira. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 85

“Quem queria estudar, porque Terra Santa era limitado né, só tínhamos até a 5ª
série [...] quem queria mesmo estudar tinha que sair de Terra Santa.”73

“Aqui só tinha o segundo grau [...] eu já tava na oitava série aí eu queria fazer
outros cursos e aqui em Terra Santa só tinha o magistério.”74

“Deu vontade de ir a Manaus fazer uma faculdade, minhas irmãs já estavam


encaminhadas fazendo faculdade e eu queria ir”75

Desse pressuposto, entender a migração como fenômeno social, significa dizer


que, ao migrar o sujeito não está isento de exercer o seu desejo de mudar, e essa
mudança pode se dar em várias óticas, como moradia, cidade, estado, região ou até
mesmo de país, mas também no comportamento e principalmente mudanças rela-
cionadas ao seu modo de vida.
Assim, Marques e Góis (2012), chamam a atenção para a subestimação do
número de mulheres migrantes. Acrescentam que falar de uma “feminização” das
migrações não é falar apenas de um aumento quantitativo da presença de mulheres nos
fluxos migratórios, mas, de uma série de mudanças qualitativas das suas motivações,
dos meios e formas também da migração feminina, dos processos de inserção eco-
nômica ou de sua integração social, do seu contributo social econômico, bem como
de uma visibilidade da importância do papel do gênero nos processos migratórios.
O reconhecimento do papel desempenhado pela mulher em contextos migrató-
rios, aos poucos, de acordo com Joana, “[...] vem provocando importantes rupturas
nos paradigmas das teorias migratórias baseadas na Economia, na Sociologia e na
História que apresentavam as mulheres economicamente inativas e indiferentes às
dinâmicas migratórias” (MIRANDA, 2009, p. 23).
As mulheres aqui pesquisadas efetivaram a migração para Manaus, seja ela
direta (migração para Manaus a partir do local de nascimento), seja ela indireta
(migração para Manaus a partir de outras localidades que não a de nascimento), por
intermédio de redes migratórias, no caso, por redes de parentesco. Isso implica dizer
que, no processo migratório em questão, as determinações econômicas, como a falta
de oferta de empregos por exemplo, não se sobrepuseram, absolutas às determinações
relacionais e culturais.
Esse processo se reflete nas falas de nossas colaboradoras, quando todas elas
dizem sair de Terra Santa para morar com parentes, familiares ou conhecidos em
Manaus, ou mesmo, tendo partido do município com os mesmos, ou sendo influen-
ciadas por eles.
Assim, por mais que as mulheres migrantes tenham migrado para Manaus à
procura de estudo, qualificação profissional ou de melhores condições de vida, a

73 Heloisa Helena de Souza Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 10 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
74 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 17 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
75 Elza Lira Costa Guerreiro. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
86

efetivação do projeto migratório só ocorreu por intermédio de redes de parentesco.


Portanto, a compreensão da trajetória de migração das mulheres terrassantenses, por
meio de redes, pressupõe que o fenômeno migratório não se limita às determinações
econômicas, mas fundamenta-se numa complexa trama de decisões que implicam
também outras questões.
Na dinâmica migratória, o habitar, entendido aqui como o viver no cotidiana-
mente foi a questão central para analisar como se deu a integração e adaptação das
migrantes terrassantenses na cidade de Manaus. Ao chegar em um lugar “desco-
nhecido” os sentimentos que perpassam são os de “medo, insegurança, apreensão,
saudade”, mas, sobretudo certas do seu objetivo. Sem dúvida para quem veio do
interior o desafio se torna ainda maior, pois além da diferença cultural, a cidade
possui múltiplas características, dentre elas a diversidade.
Para algumas de nossas colaboradoras, como Elba, a chegada em Manaus era
“tranquila” e elas chegavam a “se sentir em casa” ou como relata dona Heloisa,
acabava sendo bom, por morar com a mãe e os irmãos, aos quais passou alguns anos
sem ver. Dona Elzinete chega a ser ainda mais enfática quanto a alegria de chegar na
capital, “pra mim foi maravilhoso, eu queria sair daqui e conhecer outros lugares”76.
Para outras, esse momento pode ser marcado de forma negativa, principalmente
se você viaja aos 13 anos, sozinha e não tem ninguém aguardando sua chegada,
como nos relata dona Lúcia, em tom de tristeza, ao trazer em sua memória um dos
primeiros desafios ao chegar na Capital. Ela relata ter que atravessar para o outro lado
de Manaus com a irmã da sua tia, a mesma que a esqueceu no porto, sendo buscada
somente no dia seguinte.
De acordo com Andreza “era uma realidade totalmente diferente”, e a forma
como seriam incluídas nesse novo ambiente, nessa nova realidade, afetaria em como
se sentiriam e em certa medida na configuração e adaptação dentro da capital. Con-
forme Liene “ao primeiro momento quando tu chega, tu sofre aquele choque de rea-
lidade. Meu Deus! Tô em Manaus, agora vai ser tudo diferente”77. E realmente seria,
pois, a partir do momento que aportaram em Manaus suas vidas seriam modificadas,
expectativas superadas outras frustradas, mas sempre com uma enorme coragem que
movia os sonhos dessas jovens.
As mulheres migrantes entrevistadas de uma maneira geral eram adolescentes
e jovens, solteiras, parte delas teve que migrar para continuar os estudos e a outra
parte tinha um razoável nível de escolaridade, a maioria tendo uma renda muito baixa.
Como dito, essas jovens foram para Manaus para estudar e conseguir uma melhoria de
vida, mas para conseguirem alcançar seus objetivos, algumas delas acabaram em um
primeiro momento, exercendo atividades tradicionalmente femininas dentro da capital.
Percebemos que na fala de maior parte de nossas colaboradoras a ida para
Manaus não estava diretamente ligada ao processo de atração via zona franca, mas
sim por uma rede de parentesco que acabava atraindo elas principalmente pela falta de

76 Elzinete Santos Souza. Entrevista realizada na escola onde trabalha, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
77 Liene Valente Fonseca Kitsinger. Entrevista realizada na residência de seus pais, em Terra Santa, no dia 13
de outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 87

recurso no município de Terra Santa quanto as demandas educacionais e de trabalho.


Em suas falas o ato de migrar se relaciona ao fato de terem um primo, um irmão,
parentes que poderiam dar apoio em um local distante, principalmente distante da
realidade em que viviam. Esse processo se reatualiza durante as décadas seguintes em
que novas mulheres passam a viver esse processo na busca por uma melhor qualidade
de vida via qualificação profissional.
Mesmo com todas as limitações e dificuldades, o universo feminino pesquisado
teve uma adaptação favorável, facilitado de certa forma, por esse apoio, em especial
da família, amigos, conterrâneos e conhecidos. O habitar, o dia-a-dia, o cotidiano,
principalmente no âmbito laboral, foi essencial para uma integração positiva entre as
migrantes terrassantenses, pois o apoio das redes interfere de maneira considerável
no que se refere à integração da mulher migrante no espaço urbano.
Entretanto, para se entender a relação da imagem do espaço para essas migran-
tes, é preciso, mais do que procurar uma imagem da cidade para elas, ir além das
sensações que o lugar de destino lhe oferece. É necessário, a partir da imagem, buscar
a compreensão da relação do novo habitante com o espaço, pois nela poderão ser
encontradas as formas sociais, culturais e econômicas que fazem manter seus laços
com o local de escolha da migração tornando esse local um espaço de identificação
e reconhecimento, ou seja, o seu lugar, ou não.

Vivências Manauaras: “A gente passou vários momentos


de saudade, tristeza, muitos momentos difíceis
também, mas nunca sentiu vontade de desistir”
As experiências de vida e migratórias das mulheres acontecem onde e com
quem? E principalmente, como elas constroem suas relações em seus novos espaços
de vivência? Essas perguntas nos ajudam a entender que as experiências migrató-
rias femininas são vivenciadas no espaço da família a partir de lugares, situações e
pessoas. É a vivência dessas mulheres dentro desses novos espaços que nos revelam
como elas constroem e reconstroem suas vidas nos diferentes âmbitos sociais, e
de forma ainda mais complexa quando realizadas durante os períodos da infância,
adolescência e juventude.
Uma das particularidades quanto ao processo migratório de Terra Santa à
Manaus, deve-se ao fato de maior parte das mulheres que participaram desse trân-
sito ser muito jovens, em diferentes décadas, mas com idades entre 11 e 24 anos. De
acordo com seus relatos, concluir os estudos era o principal objetivo de todas elas e
para que pudessem alcançá-lo passaram por todas as situações possíveis.
A partir disso percebemos que a migração estaria mais vinculada à busca de
melhor qualificação, aumento da escolaridade e de maiores oportunidades no mer-
cado de trabalho. Tal hipótese ratifica-se por meio dos trabalhos de Baeninger e de
Melo, no qual visualiza-se que a migração intraestadual, nas idades entre 15 e 34
anos é composta, em sua maioria, por mulheres, e parte dessa seletividade pode ser
88

explicada pela migração para as áreas metropolitanas, especialmente para suas sedes,
onde esse fenômeno é bastante acentuado.78
A especificidade da migração feminina do ponto de vista de sua intensidade nas
idades mais jovens pode, grosso modo, ser pensada como decorrente de dois aspectos
dentro do processo migratório vivenciado pelas terrassantenses. Primeiramente dentro
das redes sociais, especificamente as redes familiares, que acabam sendo responsá-
veis pela ida de muitas dessas meninas, para que possam aproveitar os recursos que
a capital oferece. O segundo e não menos importante aspecto, deve-se ao desejo e
vontade dessas jovens em terminar os estudos e vivenciarem certa autonomia no
que diz respeito ao curso de suas vidas, o que iam cursar ou que ramo trabalhariam,
aliado a isso o fato do município de origem não oferecer essa oportunidade a elas.
Temos que perceber aqui a diferença quanto a posição social que cada uma das
jovens representa. Para aquelas que tem a oportunidade de mais recursos financeiros
a vida na capital é “boa”, “fácil” e de “boa adaptação”. Para aquelas que migram
para trabalhar nas casas de famílias – muitas vezes de próprio parentesco – ou para
trabalhar, estudar e se manter na capital por conta própria, a vida na cidade grande
acaba não sendo um mar de rosas.
Esse é um dos elementos importantes revelado na pesquisa, que é a concep-
ção das migrantes sobre pertencimento à cidade. Considerando que esta pode ser a
primeira experiência de vida urbana de maior amplitude dessas jovens, é possível
compreender alguns impactos sofridos no processo de adaptação.
As migrantes, ao longo do percurso migratório, traçam caminhos que vão atri-
buindo novas significações à experiência vivida. Suas trajetórias nos mostram que
a intensidade do êxodo juvenil feminino não se dá apenas por uma suposta atração
especialmente favorável que o mercado urbano de trabalho seria capaz de exercer
sobre as moças.

“Eu tinha que conciliar tudo, a casa, a faculdade, o trabalho,


as crianças”: os desafios do cotidiano em Manaus
Entende-se que as condições socioeconômicas definem em grande parte a forma
como as jovens enfrentam a vida cotidiana na capital, principalmente nos âmbitos
do estudo e do trabalho. E para que possamos entender as trajetórias dentro dessas
duas esferas, precisamos entender as mudanças sociais e políticas da última década
do século XX e começo do século XXI, mudanças essas que favoreceram a parti-
cipação massiva das mulheres no sistema educativo, na incorporação ao trabalho
remunerado e em uma crescente participação na política. Tudo isso proporcionou
uma transformação das atitudes, trajetórias vitais, formas na busca de identidades
próprias e importantes transformações nas relações entre mulheres e homens.

78 De acordo com Baeninger, a presença da migração feminina nos núcleos das Regiões Metropolitanas
corresponde a mais da metade da migração jovem. Sobre essa afirmação, ver: BAENINGER, R. Juventude
e movimentos migratórios no Brasil. In: Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília:
CNPD, 1998; MELO, H. P. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras. Revista
Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 15, n. 1, p. 125-132, jan./jun. 1998.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 89

Nas gerações mais jovens de mulheres destaca-se o desejo de individuação e


de autonomia pessoal: há uma constante busca da própria identidade; compreensão
da educação como base das mudanças acontecidas na esfera pessoal e profissional;
valorização do trabalho não só como instrumento para independência econômica,
mas como um instrumento de definição da identidade; maior preocupação do que os
homens por manter e enriquecer as relações afetivas e pessoais (FOLGUERA, 2007,
p. 157-200 apud VICENTE, 2018, p. 30).
A expansão da escolaridade, à qual as brasileiras têm tido cada vez mais acesso,
é um dos fatores de maior impacto sobre o ingresso das mulheres no mercado de
trabalho. Para as migrantes presentes nesta pesquisa, esse foi um dos maiores motivos
de saída de seu local de origem, assim como um dos fatores essenciais na conquista
de seus objetivos e de emprego na capital amazonense.
Como já foi apontado anteriormente, a relação entre educação e participação
laboral é direta no contingente migratório feminino. Conforme destacam Azevedo,
Fernandes e Meneses (2000, p. 06), as mulheres se preocupam mais com sua for-
mação profissional do que a maioria dos homens, por isso se destacam mais por sua
diversidade e processos multifuncionais. Com a elevação dos níveis de escolaridade,
as mulheres aumentam as suas conquistas, como maior qualificação, facilitando ainda
mais sua entrada no mercado de trabalho.
Essa formação permite que as migrantes tenham acesso a muitas oportunidades
de emprego dentro do mercado de trabalho em Manaus. Situação que pode ser vista
e exemplificada através da fala de nossa colaboradora quando questionada sobre as
oportunidades de emprego que ela teve.

Na época da faculdade eu sempre fui estagiária da Secretaria de Saúde lá de


Manaus, da Secretaria Municipal, da SEMSA. Eu fui estagiária desde a época da
Universidade, quando eu me formei eles me contrataram, já como profissional. Aí
eu tinha dois empregos, eu tinha um na secretaria e um numa clínica de gastro, do
doutor Isaac Tayah, eu trabalhei também como enfermeira lá. Então eu trabalhava
de manhã e de tarde lá na secretaria e à noite eu entrava na clínica, entrava às 6:30h
e saía 10:30h-11:00h. Era corrido, cansativo, mas deu certo né, Graças a Deus.79

Mesmo para as migrantes que possuíam apenas o segundo grau, era visível
a conquista delas em várias áreas de atuação no âmbito laboral em Manaus. Essa
afirmação pode ser entendida a partir da experiência de dona Heloisa. Ela que, por
circunstâncias já citadas anteriormente, chegou à Manaus para cursar o segundo
grau. Quando questionada sobre os lugares onde trabalhou ela nos conta o seguinte:

[...] eu comecei a trabalhar, em 75 eu comecei a trabalhar, foi meu primeiro


emprego foi no Oana Publicidade. Eu entrei como recepcionista, telefonista,
secretária da diretoria, eu trabalhei 16 anos na Oana, foi meu primeiro emprego
e saí de lá como secretária-executiva né dos diretores, meu primeiro emprego,
meu primeiro aprendizado [...] aí eu saí da Oana e fui para IBM Brasil que é

79 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 17 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
90

uma empresa multinacional, e eu gosto muito de trabalhar, sempre gostei, gosto.


Então sempre me dediquei muito no meu trabalho sempre me dedicava muito, me
dedico até hoje, sou muito pontual eu gosto de fazer as coisas certinhas. E depois
que eu saí da IBM, trabalhei 9 anos na IBM, aí eu fui para a Rede Amazônica de
televisão trabalhei 6 anos lá.80

Mesmo tendo essas várias oportunidades de emprego, o desejo de iniciar o seu


ensino superior era muito grande, mas era dificultado por conta de seu marido na
época, que não concordava e não a apoiava na realização de seus objetivos. Ela então
iniciou a graduação em administração aos 40 anos de idade, dando continuidade em
seu projeto de vida após se divorciar.

Eu comecei a estudar em 2000, eu tinha 40 anos, eu comecei a minha faculdade


com 40 anos de idade foi quando eu me divorciei, meu marido não concordava
muito que eu trabalhasse né, não queria que eu estudasse, me divorciei fui fazer
tudo aquilo né... a gente fica um pouco limitada quando tem família né.81

Esse foi considerado o momento de maior dificuldade durante sua trajetória


em Manaus. Para ela foi um desafio muito grande criar e educar os filhos de 7, 5 e 3
anos sozinha, já que o seu ex-marido não ajudava nesta tarefa. Durante os 4 anos em
que cursou a faculdade não foi fácil conciliar o estudo, com as tarefas domésticas, o
trabalho e a criação de seus filhos.
A inserção no mercado de trabalho passa a ser movida dessa maneira por um
conjunto de situações e tem especificidades em cada história de vida, como sustentar
os filhos, ajudar a família, busca por independência, dentre outras situações. A mulher
apodera-se de diversos espaços, principalmente da esfera pública, que outrora lhes
eram recusados. No entanto, nessas conquistas ainda permeiam desigualdades, visto
que mesmo se deslocando para a esfera pública é subjugada a continuar também na
esfera privada, acabando por exercer uma dupla jornada de trabalho.
O processo de dupla jornada, evidenciado por dona Heloisa, fica explícito na
fala de outras mulheres migrantes, mesmo aquelas que não tinham filho, muito menos
marido. Dona Elba é uma delas. Ela viajou para Manaus afim de cursar algo na área
de saúde, mas teve que a “contragosto” cursar o magistério que era a área a qual não
queria estudar em Terra Santa.
No período em que morou em Manaus, estudava a noite cursando o ensino
médio profissionalizante e fazendo cursinhos pela parte da tarde. Antes de terminar
seu estudo, passou a assumir a turma que estava estagiando. Durante esse momento
houve a mudança e separação dos primos que moravam na casa em que ela residia
também. A partir desse momento, com ela sendo a única mulher dentro do lar, a
responsabilidade sobre os afazeres domésticos ficou por conta dela.

80 Heloisa Helena de Souza Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 10 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
81 Ibid.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 91

[...] eu tive que assumir a responsabilidade da casa, tudo era eu, comida, roupa. E
na época eu já fazia cursinho, eu tava dando aula de manhã, fazia cursinho à tarde e
estudava à noite, e eu tinha que dar conta de tudo isso [...] ficava só eu e mais dois
primos, aí quando eu ia para escola de manhã, que eu já dava aula, eu já deixava
tudo adiantado, comida, a roupa já tava lavada para eles estenderem e quando eu
retornava eu ia ver a comida que eles não sabiam fazer muito bem (risos), já ia
limpando que umas 2h, 3h eu tinha que ir para o cursinho, retornar do cursinho,
ver o que tinha para fazer pra ir para a aula à noite. Então ficou uma rotina muito
pesada para mim, também eu era a única mulher na casa. Eles ajudavam, mas a
responsabilidade era minha porque eles não sabiam muito bem os serviços de casa.82

É inegável que essa situação vivida pelas mulheres, tem desdobramento em


diversos papeis. Quando sobrecarregadas deixam de viver sua vida em prol do “cui-
dar” dos outros. Tudo isso porque a ideologia de família se constitui no papel pri-
vado de mulher. Por não resultar em mercadoria, o trabalho ou o serviço doméstico
desenvolvido em favor do próprio grupo familiar é entendido como uma forma de
respeito, reciprocidade e obediência, portanto, pouco valorizado, mesmo quando isso
contribui para liberar alguns membros da família para outras atividades remuneradas.
A divisão entre o masculino e o feminino organizou-se, segundo Bourdieu
(1995), em torno da oposição entre o interior e o exterior, ou seja, entre a casa, com
a educação das crianças, e o mundo do trabalho, “[...] com a entrada das mulheres no
mercado de trabalho, a fronteira deslocou-se sem se anular, pois que setores protegi-
dos se constituíram no interior do mundo do trabalho” (BOURDIEU, 1995, p. 156).
Nas famílias em que as mulheres cônjuges têm filhos dependentes e têm paren-
tes no mesmo domicílio, a jornada de trabalho remunerado aumenta em uma hora
em relação àquelas que não possuem este apoio. Um dado importante trazido pela
pesquisa de Sorj (2004) é o qual diz que:

[...] as mulheres que se sobressaem no mercado de trabalho, ou seja, que conseguem


obter um nível de renda mais alto e se inserir em empregos melhores (quase 60%
delas são empregadas com carteira de trabalho assinada, funcionárias públicas ou
empregadoras), estão sozinhas. Não formaram ainda uma família, ou já formaram
uma família e agora estão sozinhas, separadas e com filhos já adultos que vivem em
outros domicílios, constituindo, possivelmente uma outra família (SORJ, 2004, p. 27).

Para as migrantes que moram sozinhas ou com outras mulheres, a jornada diá-
ria na capital, mesmo sendo “muito corrida”, não gerava sobrecarga com o trabalho
doméstico. Na fala de algumas delas, o cansaço se dava mais pela rotina de conci-
liação entre estudo e trabalho. Como no caso de Dona Elza Lira, que ao chegar na
capital conseguiu um emprego no Pólo Industrial de Manaus, mas teve que conciliar
este trabalho com seus estudos.

[...] não é fácil né, morar na casa dos outros, trabalhar o dia inteiro para noite
fazer faculdade. Eu trabalhava assim, entrava no distrito às 2:30h para trabalhar,

82 Elba Aparecida Almeida Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 15 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
92

às 2:30h da tarde, saía do distrito 10:30h pra chegar em casa meia-noite, porque a
rota vai distribuindo né, aí chegava meia-noite ia dormir duas horas, seis horas eu
me acordava e me arrumava pra ir para faculdade, estudava de manhã, para mim
era melhor estudar de manhã, do que sair do trabalho e ir fazer faculdade à noite.83

Mesmo não sendo o motivo que se destaca como atrativo direto das migrantes
terrassantenses, a Zona Franca de Manaus ofereceu para algumas delas portas de
emprego ao chegarem na capital amazonense. Andreza também passou a trabalhar
no distrito em dois momentos diferentes, intercalado entre estágios, até concluir sua
faculdade de pedagogia e conseguir certa estabilidade na cidade.

Primeiramente eu já queria trabalhar, aí eu encarei o distrito, aí eu era assistente


administrativo no distrito. Depois, logo quando eu cheguei né passou um ano e
aí eu fui pro distrito, e logo depois na faculdade eu já consegui um estágio, eu
estagiava numa escola, depois terminou o estágio, mas já era remunerado que a
gente conseguiu aí eu fiz estagiar na Dagmar Feitosa que era daqueles pequenos
infratores [...] aí eu fiquei também lá por um mês, porque eu não aguentei, era
muita pressão mesmo, eles não respeitavam, aí depois eu voltei para escola. Eu
concluí a faculdade, depois eu voltei novamente para o distrito, de novo, pra uma
transportadora e aí consegui passar no processo seletivo e eu fui professora, já passei
a ser professora mesmo, trabalhava numa escola de educação infantil municipal.84

Andreza foi uma das migrantes que tiveram acesso às várias oportunidades que a
capital oferece, assim como outras citadas nesta pesquisa. Mas nem todas elas tiveram
o privilégio de realizar, em Manaus, o objetivo que desenharam ao sair de Terra Santa.
Dona Lúcia, por exemplo não conseguiu concluir seu ensino fundamental, pois parou
de estudar por conta de sua gravidez. Devido a isso, sua tia lhe disse que ela não poderia
mais morar com eles, tendo ela que morar com o pai de seu filho, interrompendo seus
estudos, consequentemente não podendo conseguir um emprego na capital, já que por
fatores que aconteceriam dali para frente decidiria voltar para seu lugar de origem.
Dessa maneira, percebemos através da trajetória dessas mulheres, que migraram
ainda jovens, que independente da época em que migraram, suas histórias se cruzam
mas ao mesmo tempo se diferem em alguns momentos, levando-nos a entender que
as dinâmicas migratórias são particulares de cada pessoa e devem ser compreendi-
das em suas especificidades, pois os padrões migratórios diferem quanto às relações
espaciais, pessoais, estrutura etária e nível de educação e renda, tanto no seu local
de origem, quanto no de destino.
Porém, algo que não passa despercebido em seus relatos é a percepção da família
como eixo central na vida de cada uma dessas mulheres, seja como ponto de apoio
dentro de Manaus ou fora dela, fosse abrigando essas jovens na capital ou mesmo
mandando suprimentos em formas de encomendas com produtos regionais para que
elas conseguissem se sentir mais perto de casa, da família, do seu lar. Estar conectado
com o ambiente de origem era importante para muitas delas, por isso estar perto dos

83 Elza Lira Costa Guerreiro. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
84 Andreza Costa Barbosa. Entrevista realizada na escola municipal São Sebastião, em Terra Santa, no dia 16
de outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 93

parentes, amigos e conterrâneos era uma forma de amenizar a saudade, sendo esse o
momento de maior lazer dentro da cidade de Manaus.

Todo final de semana ninguém saía assim, só para os estudos, trabalho e visitar a
família. A gente ia visitar os parentes, ia na casa das pessoas [...] tinha meus tios em
outros bairros né, Santo Agostinho, a minha prima morava no Nova Cidade, então a
gente às vezes tirava o final de semana para visitar, para se encontrar. Uns da Cidade
Nova, aí eles convidaram a gente nós íamos, mesmo a gente morando na Praça 14,
mas nós íamos [...] a gente visitava as pessoas, os conterrâneos daqui de Terra Santa,
e nós tínhamos um bom relacionamento no Eldorado, na casa de um primo nosso.85

Através da fala de Adriana, observamos de forma explícita a perspectiva de redes


familiares evidenciando as relações sociais das migrantes terrassantenses dentro de
Manaus. Sayad (2000, p. 12), nos mostra que tal questão necessariamente pressupõe
vários modos de relações – com o tempo (de ontem e do futuro), com a terra (a natal
e a nova) e com “o grupo: aquele que se deixou fisicamente, mas que se continua a
carregar de uma maneira ou de outra, e aquele no qual se entrou e ao qual é preciso
se impor, aprender a conhecer e dominar”.
A expectativa individual de cada uma das mulheres presentes na pesquisa soma-
-se as realidades experimentadas e ganham diferentes pesos nas narrativas, mostrando-
-nos que a iniciativa e coragem para ficar perpassam a conquista financeira e recaem
sobre a necessidade de convivência com a cultura da qual se faz parte.
Contudo, dentro de suas trajetórias, verificamos que se destacam os imprevistos
que escaparam ao planejamento da vida, como a saudade de casa, a gravidez indese-
jada, a violência urbana e uma série de outros fatores que no processo de migração
irão definir se elas retornam para sua terra natal ou não.
Percebemos, como em cada caso, os fatores de repulsa e de acolhimento que
foram definidores. Desta forma, assim como os laços familiares são um importante
fator de retorno para as jovens migrantes que foram à Manaus apenas para ampliar
seus estudos, o desenvolvimento de um relacionamento amoroso na cidade, levando
inclusive à algum tipo de união estável, pode servir como condição de acolhimento
capaz de desviá-las de sua ideia inicial de retorno à terra natal.
O trabalho (ou a falta dele) também tende a ser um elemento central nesse pro-
cesso de ficar ou retornar. Assim, o acesso à um emprego estável e relativamente bem
remunerado, dificilmente fará a migrante optar por um retorno que não lhe trará essa
segurança e conforto. O inverso é igualmente verdadeiro, já que quando a busca por pos-
tos de trabalho na “cidade grande” não alcança sucesso, ou apenas lhe propicia ganhos
módicos em meio à um trabalho pesado e afanoso, voltar para a pequena comunidade,
onde as relações familiares tendem a ser mais acolhedoras, é a opção mais recorrente.
Em suma, evidencia-se que há muitos dilemas e tensões nas decisões das mulhe-
res que passam pelo processo de migração. Elas podem ter significado tanto um alívio,
materializado na (agora) certeza de que “o melhor lugar do mundo” é o “lar, doce
lar”, onde se nasceu e cresceu, ou na escolha do ficar e construir um novo caminho.

85 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada em sua residência, no dia 17 de outubro de 2018, por Suena
Santarém Loureiro.
94

REFERÊNCIAS
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Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres no Brasil. 1
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BOURDIEU, P. A dominação masculina. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.


20, n. 2, jul/dez. 1995.

MARQUES, J. C.; GÓIS, P. A emergência das migrações no feminino. Princípia,


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Revista Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 15, n. 1, p. 125-132,
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OLIVEIRA, Marcia Maria de. Feminização das migrações nas fronteiras da Ama-
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SAYAD, Abdelmalek. “O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante”.


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UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 95

SORJ, Bila. Trabalho e responsabilidades familiares: Um estudo sobre o Brasil.


Relatório final. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004.

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cuidado de si e lazer na promoção da saúde. Tese de Doutorado da Faculdade de
Medicina de São Paulo, 2018.

Fontes Orais
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outubro de 2018.

BARBOSA, Andreza Costa. 37 anos, pedagoga. Entrevista realizada no dia 16 de


outubro de 2018.

BARBOSA, Elba Aparecida Almeida. 47 anos, professora. Entrevista realizada no


dia 15 de outubro de 2018.

BARBOSA, Heloisa Helena de Souza. 60 anos, administradora. Entrevista realizada


no dia 10 de outubro de 2018.

GUERREIRO, Elza Lira Costa. 43 anos, administradora. Entrevista realizada no


dia 16 de outubro de 2018.

KITSINGER, Liene Valente Fonseca. 25 anos, administradora. Entrevista realizada


no dia 13 de outubro de 2018.

PEREIRA, Lúcia Maria Guimarães. 60 anos, professora. Entrevista realizada no


dia 16 de outubro de 2018.

SOUZA, Elzinete Santos. 44 anos, auxiliar de serviços gerais. Entrevista realizada


no dia 16 de outubro de 2018.
COTIDIANO, PROMESSA E FÉ
NOS FOLGUEDOS NATALINOS
DE PARINTINS – AM
Jucimara Carvalho da Silva
Iraildes Caldas Torres

Introdução
Desde os primeiros séculos da colonização portuguesa que festejos religiosos
acontecem no Brasil como forma de celebrar a fé e a fraternidade de grupos sociais que
buscam construírem ou firmarem suas identidades sociais por meio dessas manifesta-
ções culturais que por vezes, se constituíram como patrimônio cultural. Citemos aqui
as pastorinhas natalinas de Parintins, que são além de uma expressão cultural, também
uma manifestação religiosa, que acontece todos os anos nessa cidade. Dessa forma, este
trabalho busca estabelecer uma dialogia entre as categorias fé, cotidiano e promessa, cor-
relacionando-as com o folguedo natalino da cidade de Parintins, apontando de que forma
as mulheres que estão inseridas nesse contexto se associam nessa manifestação com a
fé, a promessa e o seu cotidiano, para a preservação e a manutenção desse folguedo.
Foi na convivência com o folguedo das pastorinhas natalinas que surgiu o inte-
resse pela temática, pois, desde a nossa infância, temos um estreito contato com essa
manifestação de cunho cultural, artístico e religioso, na medida em que somos filha
de uma mulher chamada Rosa Gomes, que reconhecidamente organizou um cordão
de pastorinhas por 58 anos até seu falecimento em 2012, ano em que a brincadeira
– assim chamado essa manifestação por aqueles que estão inseridos nesse contexto
– de compromisso familiar, foi assumido por outra filha, Maria Aparecida, que deu
prosseguimento, tomando para si a responsabilidade que outrora fora de sua mãe.
Dessa maneira, conseguimos observar de perto o papel primordial que essa e
outras mulheres assumem ao se tornarem as únicas responsáveis pela organização e
manutenção das pastorinhas natalinas. Também foi visto que nesse período, a tran-
sição da responsabilidade em dar prosseguimento ao folguedo se faz no cotidiano
dos barracões – locais específicos para os ensaios e apresentações – com um método
exclusivo de aprendizado no qual a iniciada é submetida, e que se faz necessário para
a preservação, a manutenção e a continuidade do folguedo.
Para o aprimorando e a compreensão desta temática, fizemos uso de uma biblio-
grafia específica que foi fundamental para que tivéssemos um melhor suporte no campo
da pesquisa, pois, trata-se aqui de um estudo desenvolvido a partir de um direcionamento
que tem como base nossas concepções que foram construídas com leituras em livros,
dissertações e artigos que abordam de maneira suscinta a temática escolhida, para que
dessa forma tivéssemos uma melhor compreensão e análise do relato de experiência
da dirigente das pastorinhas Filhos de Davi, fonte principal dessa discussão.
98

Este trabalho está dividido em quatro tópicos distintos, mas correlacionados


entre si. No primeiro, apresentamos as pastorinhas num contexto da manifestação
folclórica e religiosa. No segundo, trazemos uma discussão sobre cultura e identi-
dade. Já no terceiro, abordamos as categorias fé e promessa no folguedo natalino. Por
último, é mostrado o cotidiano das mulheres que estão inseridas nesse auto de natal.

A Pastorinha: uma manifestação folclórica e religiosa


As pastorinhas natalinas são manifestações culturais e folclóricas de cunho religioso
que a princípio nos remetem aos dramas teatrais da Grécia antiga, e desde os primeiros
registros sempre tiveram como objetivo retratar o nascimento de Jesus Cristo, chamando
a atenção do público através de encenações teatrais e cantigas de caráter religioso e popu-
lar que parecem terem surgidos no bojo das artes como transmissão do cristianismo no
século XVI. As pastorinhas natalinas são definidas como “cantos, louvações, entoadas
diante do presépio na noite de natal” (CASCUDO, 1954, p. 684). Uma manifestação
cultural e religiosa realizado em homenagem a natividade do Menino Deus.
A evolução dos cordões de pastorinhas se dá de maneira geral diante de um
presépio natalino – elemento importante no contexto do folguedo – o qual é repre-
sentado com personagens que fazem referências a natividade, sendo definido por
Cascudo como “um grupo de barro ou pasta representando a cena de adoração ao
Menino Jesus na manjedoura de Belém” (IDEM, 1954, p. 733), como nos mostra a
imagem abaixo, do presépio armado no barracão de Aparecida Gomes.

Presépio Natalino

Fonte: Pesquisa de campo, 2019.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 99

Como podemos observar na imagem, o presépio é posicionado ao centro,


ladeado por personagens bíblicos como São José, Santa Maria, os três Reis Magos
e animais, como o boi e o carneiro, e que são carregados de uma simbologia tanto
cultural quanto religiosa. O presépio é montado no primeiro domingo do advento e
desmontado no dia seis de janeiro conforme a tradição cristã.
Neste contexto, as manifestações religiosas de natal se configuram como uma
forma de confraternização e solidariedade entre aqueles que fazem parte dessa festa.
Para Montes (1998, p. 162) as manifestações culturais “é ainda uma reafirmação de
pertencimento e reforço de laços de solidariedade comunitária o que se encontra em
algumas celebrações religiosas oficiais do catolicismo”. Estas festas tornaram-se
lugar de encontro e reencontro de pessoas que simpatizam com o folguedo natalino
estreitando laços afetivos e sociais.
Costa (2011, p. 198), afirma que “a festa assume um papel importante na manu-
tenção da solidariedade grupal e no reforço dos laços internos do grupo religioso”.
Nestes termos, as pastorinhas a função social de agregar a todos que compartilham
da mesma religiosidade ou que tenham simpatia com folguedo, estreitando laços e
compromissos que são renovados a cada ano, e que é primordial para a manutenção
da brincadeira. Também é uma forma de manter viva, sob a liderança de mulheres
em sua organização, a cultura de fé e de religiosidade na cidade de Parintins.
São comandados por figuras femininas há muitos anos, e esta expressão cultural,
que tem a característica de ser um elemento capaz de promover a reunião e o encontro
de pessoas para comemorarem ou celebrarem algo em comum, neste caso, o nasci-
mento do menino Deus, forjando os laços de pertencimento e reconhecimento grupal,
sob a égide de uma mulher. Desta forma, “são as relações sociais construídas que dão
significação às práticas sociais dos comunitários, cujos conteúdos estão arraigados à
sua visão de mundo” (TORRES, 2012, p. 45), e que também se configura como um
elemento de afirmação de identidade de grupo.
As festas desempenham ainda a função de estruturar e regenerar a sociedade a
partir da expressividade dos indivíduos contra o individualismo exacerbado vigente na
sociedade. Maffesoli (1985, p. 23) menciona que “uma cidade, um povo, mesmo um
grupo mais ou menos restrito de indivíduos, que não logrem exprimir coletivamente
sua imoderação, sua demência, seu imaginário, desintegra-se rapidamente”. Para
Maffesoli, as pessoas devem exprimirem sua transcendência no coletivo minimizando
o individualismo, sentimento que está tão presente nas relações sociais atuais.

Cultura e Identidade
Diversos estudos antropológicos tem se debruçado sobre a origem e o papel
da cultura em várias sociedades. Nestes termos, há alguns autores que discutem
essa categoria e conseguinte, o folclore popular. Sendo que a primeira definição de
cultura segundo Laraia (2009), foi definida em 1871 por Edward Tylor, em seu livro
“Primitive Culture”, demonstrando que a cultura pode ser objeto de estudos siste-
máticos por se tratar de um fenômeno natural e possuir causas e regularidades que
permitem análises coerentes sobre o seu processo e sua evolução. As diversidades e
100

as características próprias que existem em cada povo, contribuiu para o surgimento


da cultura entre civilizações, e desta forma, para a diferenciações entre elas.
Laraia (2009, p. 54) parafraseando Lévi-Strauss, nos diz que “a cultura surgiu a
partir do momento que o homem criou a primeira regra, a primeira norma”, ou seja,
o comportamento dos indivíduos estão diretamente ligados a um aprendizado, a um
processo chamado de “endoculturação”, quando um menino ou uma menina agem
diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma edu-
cação diferenciada. Dessa forma, ainda que a cultura seja intrínseca ao ser humano,
as diferenças genéticas não são determinantes para as diferenças culturais existentes.
Se a cultura tem como base, regras e normas que regulam a vida dos indivíduos
e seus grupos sociais, classificando-os no mundo e possuindo diversas formas de
expressões e atualização, ela vai muito além da hierarquia de civilização. Da Matta
(1986), fala que a cultura, no campo da sociologia e da antropologia, configura como
um código, no qual os indivíduos e seus grupos pensam, classificam, estudam e
modificam o mundo e a si mesmas. É o sistema cultural, definido por Laraia (2009),
ao afirmar que ela está em constante transformação e entendê-la é fundamental para
amortecer o choque entre as gerações e evitar comportamentos preconceituosos.
Porém, torna-se necessário que aqui compreendamos as diferenças que existem entre
os povos com suas culturas, distintas e inseridas no mesmo sistema cultural.
É importante também compreendemos as diversas concepções de cultura com
seus variados significados. Laraia (2009, p. 61) considera que a “cultura é um sistema
de conhecimento que consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acredi-
tar para operar de maneira aceitável dentro de sua sociedade”. E continua afirmando
que ela tem sua complexidade, “que inclui todas as manifestações culturais de um
povo, seus costumes e aptidões adquiridos ao longo da história em determinados
contextos sociais” (IDEM, 2009, p. 62). Deixando claro que é uma construção do
povo e só ele pode modificá-la.
A cultura também nos remete as tradições, aos conhecimentos e as habilidades
que são transmitidas por gerações. No entanto, “como múltiplas tradições podem
coexistir facilmente na mesma sociedade” (BURKE, 2005, p. 39), o conceito de
tradição tem facilitado para os pesquisadores se desprenderem de uma suposição
cultural de unidade ou homogeneidade. Em outros termos, a cultura, ainda que vivida
e apreendida pelos membros em suas comunidades, podem se diferenciar em alguns
aspectos dentro desse mesmo grupo. Contudo, cultura pode ser um conjunto de
crenças, hábitos, formas de vestir, pensar, agir e falar. Tudo que é passado, adqui-
rido, vivido, apreendido e compartilhado entre as pessoas, num longo processo de
acumulação, que também permite inovações, melhorias e avanços.
Ainda tem a ver com o folclore, que é uma forma de expressão cultural, pois,
representa a identidade social de um povo através de sua diversidade, seja de forma
nata, individual, coletiva ou de gerações. Como afirma Ferreti (2007, p. 01) que “a
cultura se relaciona com o imaterial, o espiritual, a liberdade de expressão, criatividade
e mudança”. Desta forma, as pastorinhas são expressões artísticas da cultura, uma
vez que, é o povo que a produz, e se expressa através dessa manifestação, promo-
vendo a sua identidade cultural e social, que é construída a partir de uma concepção
individual ou coletiva.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 101

A cultura tem um papel determinante na vida das pessoas e de seu grupo social.
Hall (2006, p. 13) afirma que “a identidade torna-se uma ‘celebração’ móvel: formada
e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Nos identificarmos com
as características de um grupo, seja no seu modo de pensar, agir e comportamental,
é decisiva como critério de inclusão nesse grupo, e determina a forma de como
seremos tratados.
A identidade social, “plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia” (IDEM, 2006, p. 13), de tal modo como na cultura, esta identidade também
está sujeita a modificar-se no decorrer da história. No folguedo das pastorinhas, por
exemplo, existem modificações significantes, oriundas das transformações que advém
das influências dos locais onde esse auto existe. Essas mudanças são perceptíveis nas
fantasias dos personagens, nas músicas, nas coreografias, nos adereços e nas melo-
dias. Por conta dessas modificações as pastorinhas de Parintins se tornam diferente
em comparação com outros locais que também mantem esse folguedo, uma quase
exclusividade do lugar.
Desta forma, somos expostos a diversos sistemas de significação mais é possível
encontrar diversidade de identidade social a qual podemos ou não nos identificar.
Hall afirma que “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados com a multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao
menos temporariamente “(IDEM, 2006, p. 13). Diante disto, um indivíduo que se
identifica com o comportamento de um determinado grupo, ou mantem contato com
outras formas de cultura, como valores, símbolos e sentidos, vai construindo sua
identidade social.
Nas expressões culturais também se manifestam a identidade social, que podem
ser através dos vestuários, das manifestações religiosas, da culinária e das tradições.
Essas manifestações por vezes são diversificadas, dependendo da região em que se
apresentam, afinal, o Brasil, pelo seu contexto histórico, tem uma multiplicidade
cultural em decorrência das várias influências que ajudaram a constituir o país.
O folclore brasileiro, é uma expressão da cultura nacional, que traz em si a
identidade social de um povo nas suas diversas formas de se expressar, que permeia
as gerações através das trocas de experiências entre seus pares. Cascudo (1954, p.
402) define folclore como “a cultura do popular, tornada normativa pela tradição.
Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emo-
cional, além do ângulo do funcionamento racional”, não desvinculando da cultura e
apontando uma existência binária, ou seja, uma erudita, e outra popular. As pastori-
nhas de Parintins se enquadram nesta última.
A cultura popular se renova em cada geração, agregando características de
cada época. “Não apenas conserva, depende e mantém os padrões do entendimento
e da ação, mas remodela, refaz ou abandona elementos que se esvaziaram de moti-
vos ou finalidades indispensáveis a determinadas sequências ou presença grupal”
(IDEM, 1954, p. 402), e os dados recentes podem se tornarem tradicionais a partir
da assimilação do fenômeno coletivo.
102

Villela (2003, p. 178) afirma que “a transmissão da tradição se dá através da


transmissão oral ou através de exemplos, por longos espaços de tempo, de doutrinas,
lendas e costumes e que ser tradicional é uma característica do folclore”. A trans-
missão das expressões folclóricas tem um papel fundamental para a vida longa do
folclore, e no caso das pastorinhas de Parintins não é diferente, pois, os grupos que se
identificam ou são responsáveis por essa manifestação têm fundamental importância
para a continuação dessa expressão folclórica, pois, uma vez que os indivíduos têm
conhecimento sobre sua cultura, esta, lhe proporciona a compreensão da diversidade
cultural na qual estão inseridos.

Fé e promessa no folguedo natalino


A expressão da religiosidade nas festas populares são uma forma de reportar
ao mito, ao rito e ao simbolismo que está presente no tempo e no espaço, fazendo
a mediação entre o homem e a divindade. Desta forma, a religiosidade popular é a
mediação que as pessoas fazem entre o divino e o humano. É dessa maneira que a
religião pode ser entendida de acordo com Berger (1985, p. 38), como “um empreen-
dimento humano pelo qual se estabelece um cosmo sagrado [...] ou a cosmificação
feita de maneira sagrada”. A religião é entendida assim pelo autor porque se manifesta
como um fenômeno empírico, ou seja, a religião aparece na experiência de vida.
A sociedade é dialética e sendo assim, o homem constrói a sociedade e a socie-
dade também o constrói, e neste sentido, “a religião ocupa um lugar de destaque na
construção do mundo” (BERGER, 1985, p. 15), pois tem ela uma função social, de
ordenar a vida em sociedade das pessoas. Desta forma, o homem constrói a si mesmo
pela cultura, tornando essa uma segunda natureza, uma vez que é produto de sua
própria atividade. Sendo produto da atividade do homem e como tal são passíveis
de mudanças. Para Berger (1985, p. 19) “o homem produz instrumentos de toda a
espécie imaginável, e por meio deles modifica o seu ambiente físico e verga a natureza
a sua vontade”. As manifestações religiosas são produtos não materiais que podem
ser compartilhadas com as demais pessoas.
Assim, o homem também produz a linguagem e através dela, produz os símbolos
que permeiam a vida dos indivíduos em todas as esferas. As pastorinhas natalinas,
enquanto produto não material, são permeadas de significados e símbolos se obser-
varmos a sua estrutura diante da disposição do presépio. A pastorinha é desenvolvida
em frente ao presépio. O presépio é composto por diversas figuras, humanas e de
animais, que, de maneira harmoniosa em adoração ao menino Jesus, trazem elementos
com significados e símbolos diversos que somente são compreendidos quando estão
devidamente inseridos em seus contextos.
Quando nos reportamos a visita dos três Rei Magos à Família Sagrada, levando
ouro, mirra e incenso, observamos que cada presente tem um significado e simbo-
lismo e sua totalidade. O ouro, representa a realeza enviado pelos reis; o incenso,
representa a divindade, enviada pelos sacerdotes; e a mirra representa o sofrimento
e a eternidade. E até mesmo o local do presépio do Menino Jesus está repleto de
simbolismo. O presépio para os cristãos representa a simplicidade, a humildade e a
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 103

pobreza onde nasceu o filho primogênito de Deus. Outro aspecto sobre a visita dos
três Reis Magos que merece uma reflexão, diz respeito a suas esposas, ausentes na
celebração do nascimento do Menino Jesus, como afirma Porto, ao dizer que:

Os Reis Magos não trouxeram consigo suas esposas; se os foliões levassem mulher
na folia, estariam deturpando o sentido da representação; também, dizem outros,
nenhuma mulher visitou o presépio de Jesus; admitir mulher entre os foliões,
como participante, seria desviar o sentido da dramatização (PORTO, 1982, p. 54).

Existe uma simbologia e uma significação na dramatização do nascimento do


Menino Jesus em relação a mulher, que foi empurrada para um espaço secundário
e impedidas de tomarem lugar à cena, já que, quando o homem ver na natureza a
presença do sagrado, enxerga muito além das arvores, dos rios, das pedras, amuletos,
lugares, objetos ritualísticos, pois, o sagrado se opõe ao profano e o “o homem toma
conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absoluta-
mente diferente do profano” (ELIADE, 1992, p. 13). O sagrado se manifesta numa
relação tríade do mundo visível, invisível e espiritual e não é um espaço, a princípio,
dedicado ao feminino.
Para Eliade (IDEM, 1992, p. 13) “não se trata de uma veneração da pedra como
pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada, não
são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias”,
quando o sagrado se apresenta através delas, ou seja, toma a forma profana, ali se
manifestar o sagrado. Quando as pastorinhas evoluem em torno do presépio, este
deixa de ser apenas uma representação do nascimento de Jesus, que passa a ser um
objeto sagrado. E neste mister, “o mito aparece como um sistema de equações em
que os símbolos, nunca nitidamente apercebidos, entram por meio de valores con-
cretos, escolhidos para dar a ilusão de que as equações subjacentes são solúveis”
(LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 70), ressignificando a cena.
A dualidade entre o sagrado e profano, pode ser percebida em várias festas reli-
giosas que expressam características de ambas. Enquanto muitos se dedica as rezas,
as novenas, as procissões, as missas e as bênçãos, outros, nesse mesmo espaço, se
dedicam a homenagear os santos, pela diversão e alegria. Em Parintins as ladainhas e
novenas que por vezes antecedem as apresentações das pastorinhas ou de festejos de
santos populares como São Sebastião, São Lázaro e o Divino Espírito Santo, quando
proferidas fora dos domínios da Igreja, são ministrados por pessoas comuns, porém
com o aval da comunidade. Quanto as pastorinhas, estas, geralmente surgem a partir
de promessa feitas aos Santos, a Virgem Maria ou ao Menino Jesus em troca de um
pedido ou graça alcançada. Por isso a necessidade de orar, mas também festejar.
Como percebemos na fala de Maria Aparecida, 56 anos, ao dizer:

Lembro quando minha mãe me contava que a minha avó colocava as pastorinhas
em Oriximiná, lá no Estado do Pará, e que ela, a minha mãe, também era brin-
cante86 das pastorinhas de minha avó. Depois, quando minha mãe veio para o

86 Termo utilizado pelas donas de pastorinhas para designar cada figura ou personagem que participa do
folguedo, ou seja, quem brinca nas pastorinhas.
104

Estado do Amazonas, também botou pastorinhas aqui, e antes de morrer, ela me


pediu para que eu nunca deixasse de botar as pastorinhas. E esse compromisso eu
firmei com ela em seu leito de morte quando estava internada na UTI do hospital
(Maria Aparecida, entrevista, 2018).

Observa-se que tanto Maria Aparecida como sua mãe, Rosa Gomes, fizeram
uma promessa, a qual se comprometeram a colocar as pastorinhas até o fim de suas
vidas. Alves (1980, p. 59) avalia que “a promessa estabelece uma conjunção entre
os domínios, seja aqueles que separam a divindade do participante do ritual, seja os
que se referem aos diferentes domínios de poder e saber na vida cotidiana”. A pro-
messa pode se manifestar de diferentes maneiras. Pode ser através de gesto, atitudes
e objetos. Geralmente os promesseiros a fazem em intenção da saúde, quando este ou
alguém de seu convívio encontra-se em enfermidade, ou por outros motivos, como
a continuidade da promessa de outrem, ainda que não se saiba ou lembre o porquê
do prometido.
As pastorinhas, caracterizam-se como um evento tanto religioso quanto profano
na medida em que sempre se origina de uma promessa onde há o envolvimento da
religiosidade. É nesse ato simbólico, um combinado de fé, cultura e imaginário,
que elas são transmitidas, de um modo em geral, de mãe para uma filha ou de uma
avó para uma neta, mas nunca para um filho ou um neto. Entretanto, para que essa
transmissão se realize, há uma preparação, ainda que espontânea desta filha ou neta,
que pode levar muitos anos. Assim, “há uma proximidade entre cultura e imaginário.
Neste sentido pode-se dizer que o imaginário é a cultura de um grupo. Vemos que o
imaginário, é ao mesmo tempo, mais do que essa cultura: é a aura que ultrapassa e
alimenta” (MAFFESOLI, 2001, p. 76), e dessa forma as pastorinhas se nutrem e se
mantém em meio a modernidade.
Este processo, aos nossos olhos, acontece de forma espontânea e naturalizada,
sem que as sucessoras percebam que estão sendo ali preparadas, pois, as trocas de
experiências e instruções que elas recebem, se confundem no cotidiano do folguedo
como algo corriqueiro e voluntário, por elas, pelas famílias, e pelos grupos em que
estão inseridas. Foi assim que no decorrer de sua vida, Maria Aparecida, mas também
sua mãe e sua avó, foram regidas por um imaginário que contribuiu para que todas
assumissem um compromisso com as pastorinhas natalinas, dando continuidade ao
folguedo a partir de uma promessa feita.
Nesta perspectiva, a religiosidade deve ser medida e interpretada, ultrapassando
os conceitos das crenças dominantes e buscando defini-las para além do que está
aparente, como nos mostra Gonçalves (2010, p. 07) ao afirmar que “a religiosidade
de um povo não se mede apenas pelas construções e edificações das grandes reli-
giões, e interpretá-las é buscar ir além do imediatamente observável”. Desta forma,
devemos ter um olhar mais plural quando interpretarmos a religiosidade de um lugar,
principalmente quando falarmos de Amazônia onde há uma pluralidade cultural, fruto
de uma miscigenação imposta.
As mulheres envolvidas nesse processo, através de sua liderança, se encarregam
de manterem e preservarem a cultura, ainda que em espaços limitados, exercem um
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 105

comando camuflada pelo viés religioso. Hunter (2004, p. 15) define liderança como a
“habilidade de influenciar pessoas para trabalharem entusiasticamente visando atingir
aos objetivos identificados como sendo para o bem comum”. É dessa maneira que
agem quando estão à frente do folguedo, quando exercem seu poder de mando para
atingirem seus objetivos, de manter a cada ano o folguedo das pastorinhas, e assim,
cumprirem sua promessa, ao mesmo tempo em que proporcionam uma forma de
diversão para todas as pessoas que dela participam.
A organização dessa manifestação se inicia no instante em que as dirigentes
se reúnem com outras pessoas que dão suporte nas pastorinhas, que de modo em
geral, são membros de sua família, seguido por amigos, vizinhos e simpatizantes,
que sob sua liderança, planejam o folguedo. Após esta reunião onde fica definido
como serão as apresentações, as fantasias que serão confeccionadas, consertadas ou
descartadas, as dirigentes saem à busca de brincantes numa peregrinação pelas casas
vizinhas e do entorno, convidando meninas e meninos com a autorização de seus pais
ou responsáveis, caso sejam menores de idade, para posteriormente dar início aos
ensaios, que via de regra ocorrem quando se tem um número razoável de brincantes
para compor os personagens.
É notável ainda a presença de homossexuais e travestis participando do folguedo
sem haja discriminação aparente, ao contrário, sua presença é bem quista e até requi-
sitada. Há ainda crianças, adolescentes, jovens e idosos, evidenciando a faceta da
inclusão social que as pastorinhas promovem, ao unir pessoas de diferentes idades,
posições sociais e orientação sexual, sem que se perca a harmonia das relações, e
fortalecendo a interação nos barracões, sede das pastorinhas, onde são realizados os
ensaios, sempre iniciando no mês de agosto, quando no primeiro dia é feito o aco-
lhimento e a socialização dos participantes, seguido da apresentação da dirigente e
seus apoiadores, das regras e condições a serem seguidas. Ao final desta e de todos
os ensaios, é oferecido um lanhe a todos.
Nas pastorinhas, todos estão conscientes das normas a serem seguidas, mas “é
preciso enfatizar que os espectadores e os atores são perfeitamente conscientes das
‘regras do jogo’ (ritos, cerimônias e símbolos), mas que eles ‘percebem’ o evento de
modo diferente conforme o papel que lhes é atribuído” (MEDEIROS, 2015, p. 33).
É dessa maneira que o auto natalino é vivenciado todos os dias de forma coletiva,
obedecendo uma estrutura social como argumenta D’Abadia (2014, p. 53), ao afirmar
que essas interações festivas “fazem parte do dia-a-dia das pessoas e que estão inte-
gradas a elas e são formas de ação coletivas que implicam: uma estrutura social de
produção”. Maria Aparecida, dirigente das pastorinhas Filhas de Davi, ao descrever
como é produzido seu auto de Natal, conta como são realizados os ensaios.

“No primeiro dia, depois que a gente já pediu as meninas para participarem, a
gente deixa definido os dias e os horários para elas virem e começarem a ensaiar.
Geralmente esse ensaio é nos dias de quarta, sexta, sábado e domingo. Nesse dia
a gente limpa tudo por aqui, deixa limpo o barracão, com a ajuda dos meninos
que são nossos apoiadores. Colocamos as cadeiras e os bancos, e arrumamos tudo
para esperar elas, as brincantes (Maria Aparecida, entrevista, 2018)”.
106

Desde o primeiro instante, é percebível o protagonismo feminino, os homens


auxiliam as mulheres a arrumarem o barracão. Após cada ensaio, meninas e meni-
nos menores de idade somente retornam para suas casas acompanhados de algum
integrante da comissão organizadora, ou se ali estiver algum responsável, evitando
que corram algum perigo à sua integridade física caso voltassem sozinhos para suas
casas, esse procedimento também é adotado quando precisam vir. É o senso acolhedor
e maternal das dirigentes se materializando em atitudes como estas que fortalecem
a unidade do grupo.
Percebemos que as pastorinhas são planejadas e organizadas para que ocorra
como o esperado pois “as festas são planejadas, preparadas, não acontecem aleato-
riamente, há um profundo envolvimento de várias pessoas no seu preparo” (D’ABA-
DIA, 2014, p. 53), e nesse processo de organização do folguedo, a dirigente também
conta com a colaboração das mães dos brincantes, dos próprios brincantes, dos sim-
patizantes, da família, dos artistas que confeccionarão as fantasias, dos músicos e
da vizinhança.
D’Abadia mostra que os preparativos “envolvem a participação concreta de
um determinado coletivo” (2014, p. 53). E argumenta que na sociedade, as festas
“aparecem como uma interrupção do tempo social, uma suspensão temporária das
atividades diárias” (IDEM, 2014, p. 53). Assim, ocorre no âmbito das pastorinhas,
os apoiadores deixam seus afazeres e interrompem suas rotinas para contribuírem
com o folguedo. Uns afirmando fazerem isso por conta de uma promessa feita, outros
porque simpatizam com a festa e há ainda os que são ligados ao catolicismo, por
isso estão ali.
Nos primeiros ensaios são entregues por escrito as cantigas de cada persona-
gem a seus pretensos candidatos. São ouvidas suas melodias e após alguns ensaios,
são escolhidos de maneira definitiva os papéis que cada brincante irá representar
no cordão das pastorinhas. Ainda que em via de regra já estejam predefinidos tais
papeis no momento do convite feito ao brincante, sua confirmação somente advém
nos primeiros ensaios, conforme observamos na fala de Maria Aparecida, vejamos:

Quando eu vou pedir uma brincante eu já estou analisando para qual figura ela vai
servir, por exemplo, a moça que for brincar de rainha das flores ou de florista, a
gente tem que ver bem, tem que reparar se ela vai dar conta do personagem. Ela
ainda não pode ser feia, carrancuda, fechada, porque senão, ela não vai dar conta
dos ensaios e vai desistir de brincar no meio das pastorinhas. E aí fica mais difícil
pra gente conseguir uma outra brincante (Maria Aparecida, entrevista, 2018).

Ao que parece, para alguns personagens, além de ter uma boa voz e afinação, se
faz necessário que a candidata tenha uma boa aparência, ser bonita e carismática. Pois
as figuras como a florista e a cigana, devem cantar, dançar, declamar versos, vender
flores ou mesmo pedir dinheiro em prol do folguedo. Essa “pluralidade de situações
comunicativas é característica indiscutível dessa brincadeira: elementos musicais,
poéticos, teatrais e de dança constituem diferentes formas de expressão e comuni-
cação” (GRILO, 2011, p. 149). Daí observarmos a inquietação de Maria Aparecida
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 107

com a aparência da candidata. Nos ensaios, as brincantes vão se familiarizando com


as cantigas e a melodia e seus personagens e começam então a ensaiar a dança na
presença do público que já prestigia desde o início a brincadeira.
Todo esse processo dura em torno de três a quatro meses, e tem hoje como obje-
tivo principal a apresentação no Festival das Pastorinhas, que acontece todos os anos
no mês de dezembro, quando é proporcionado ao público essa grande manifestação
da cultura popular. Sendo que “a cultura popular é aqui entendida como uma série
de práticas sociais, ao mesmo tempo em que buscam retratar a experiência vivida”
(GRILO, 2011, p. 142), fato verificado nas pastorinhas de Parintins.
Bem antes, no mês de novembro, o presépio é montado em cada barracão, sina-
lizando que o natal está chegando, as apresentações saem dos barracões e ganham
as ruas da cidade, e com ele, todo um esforço conjunto liderando pelas mulheres,
as mestras das pastorinhas. Diante disso, é preciso “desvencilharmos dos conceitos
e preconceitos, privilegiando práticas culturais populares que pontilham o nosso
cotidiano” (GRILO, 2011, p. 142), muitas das vezes o esforço das camadas mais
populares é menosprezado pela sociedade, pois muitos pensam que estas não são
capazes de produzir saber, cultura, conhecimento.
Nora (1993, p. 09) afirma que “a memória é um fenômeno sempre atual, um
elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado”, e assim,
pela memória, pelas emoções e experiências de vida desses atores sociais que a
pastorinha enquanto patrimônio imaterial vai se preservando. Com essas mulheres,
“a memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente
e penetrante, oculta e invasora” (BOSI, 2003, p. 36) Assim, elas são inseridas nesse
contexto religioso e cultural e vão construindo e reconstruindo a história das pasto-
rinhas natalinas da cidade de Parintins.

Considerações finais
Ver o folguedo das pastorinhas como manifestação cultural complexa, liderada
por mulheres que carregam consigo o compromisso pela sua continuidade sob o peso
das tradições, nos remete a um cotidiano de luta, a seu modo, pela ruptura e quebra
dos tabus criados pela sociedade patriarcal que ainda a envolvem. Elas encontram na
fé e na religiosidade uma maneira de se posicionarem na sociedade, demarcando seu
espaço na arena pública. É nesse contexto que a fé, o cotidiano e a promessa estão
presentes no folguedo natalino enquanto expressão da cultura popular, repleta de
significações e simbolismos. Com as pastorinhas, a mulher dirigente ganha visibili-
dade, saindo do estereótipo de ajudante do marido, indo além do espaço secundário
destinado a ela, e com o folguedo, ainda contribui para a inclusão social de outros
grupos minoritários.
108

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CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DE
PARINTINS-AMAZONAS: apontamentos
sobre a antiguidade de ocupação do município
Michel Carvalho Machado

Introdução
O município de Parintins está localizado a margem direita do rio Amazonas
com a distância de 420 km por via fluvial e 368 km em linha reta da capital Manaus,
sua população foi estimada em 2013 com 69.890 habitantes na área de zona urbana
e 32.143 na zona rural, totalizando o número de 102.033 habitantes.
É conhecido mundialmente pela expressão cultural do festival folclórico entre
os dois bois, Garantido e Caprichoso, que foi reconhecida como patrimônio cultural
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN,
em 2018. Para além do grande potencial cultural do município percebido por essa
e outras diversas manifestações, Parintins apresenta também um grande destaque
em relação aos vestígios arqueológicos, que afloram em diversas localidades, e
foram apontados por pesquisas anteriores (LIMA; SILVA, 2005; LIMA; MORAES;
PARENTE, 2013; HILBERT; HILBERT, 1980), e pesquisas iniciais sobre o sítio
do Macurany (SILVA, 2016; AZEDO, 2017; BIANCHEZZI, 2018). No entanto,
este grande potencial para o conhecimento da história indígena antiga de Parintins
permanece ainda pouco explorado.
A pesquisa que estou desenvolvendo, tem como objetivo contextualizar o muni-
cípio em meio às pesquisas arqueológicas do baixo Amazonas, destacando a anti-
guidade da ocupação e a variabilidade estilística presente nas cerâmicas encontradas
no sítio arqueológico localizado na área urbana e rural da referida cidade, e assim
poder inserir os vestígios arqueológicos no tempo e espaço (cronologia) para desta-
car como essa ilha pode estar relacionada aos primeiros processos de dispersão e de
antropização em larga escala da paisagem amazônica por populações humanas antigas.
Atualmente a proposta de pesquisa que pretendia executar, tinha como objetivo
principal fazer intervenções em um sítio arqueológico localizado no centro da cidade,
especialmente na área atrás do Hospital Jofre Cohen, orla de Parintins. Mas devido o
atual momento, a pesquisa ganha novo caráter investigativo direcionado as coleções
particulares que tenho conhecimento sobre a existência, coleções essas formadas
por moradores que se encantam pelos fragmentos de cerâmicas encontrados, sejam
eles por extração de terra, construções em seus terrenos ou por afloramento natural
ocasionado pelas chuvas, enchentes e vazantes dos rios. Permitindo assim, fazer um
mapeamento participativo do sítio arqueológico e das coleções.
112

Para isso, proponho fazer alguns apontamentos sobre essa antiguidade da ocu-
pação através dos resultados preliminares da pesquisa de campo em andamento,
destacando percepções dos fragmentos cerâmicos encontrados aflorados em sítios
arqueológicos visitados e aqueles presentes em coleções particulares, assim também
como a agência desses objetos no meio ao qual estão inseridos.

Vestígios de cerâmicas arqueológicas


A presença de cerâmicas na região do Baixo Amazonas, já foram identificadas
por pesquisadas na década de 1970, e apontavam em meio grande riqueza em artefatos
arqueológicos no município de Parintins, indicando a presença de cerâmica Pocó e
fragmentos de cerâmica Konduri87 (HILBERT; HILBERT, 1980).
As cerâmicas apresentam grafias distintas e acabamentos muitas vezes padroni-
zados, destacando os padrões usados por essas populações do passado, possibilitando
através de análises desses fragmentos, compreender a qual tipo de objeto (utensílio)
esse fragmento pertenceu antes de se fragmentar, podemos perceber nos dois exem-
plos abaixo esses grafismos e padrões.

Cerâmica – Terreno São Marcos – Murituba

Fonte: Michel Carvalho, 2018.

87 Essas duas fases de ocupação, destacadas pelos dois tipos de cerâmicas, apontam períodos de ocupação
distintas: a fase Pocó seria um período de ocupação mais antiga, e a fase Konduri seria outro processo de
ocupação, só que bem mais recente que a fase Pocó. Essa diferenciação foi percebida por arqueólogos que
notaram em seus estudos a diferença entre as duas fases por meio da composição de preparo dos objetos
cerâmicos, assim também como o seu design e até mesmo a sua resistência (GUAPINDAIA, 2008).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 113

Cerâmica – Sítio Santíssima Trindade do Laguinho

Fonte: Michel Carvalho, 2018.

O olhar para os fragmentos das cerâmicas indígenas nos permite ter acesso a
vestígios de técnicas de produção, e assim entender as complexidades culturais desses
povos sedentários que desenvolveram culturas ceramista, contrapondo a ideia do deter-
minismo ambiental onde as dificuldades apresentadas pelo ambiente não permitiriam
tal avanço tecnológico e fixação. Lima, Barreto; Betancourt (2016), destacam que:

O design de uma peça é definido por uma complexa combinação de fatores que vão
desde as qualidades da argila, as técnicas conhecidas e usadas nas etapas de fabri-
cação dos objetos, o desempenho funcional esperado do objeto, além das escolhas
estéticas individuais e coletivas. Porém, mais importante, os objetos cerâmicos,
assim como outros, simbolizam escolhas culturais e são, ao mesmo tempo, produtos
e vetores de relações sociais (LIMA; BARRETO; BETANCOURT, 2016, p. 20).

Perceber que essas populações desenvolveram técnicas para diferenciar e até


mesmo deixar suas marcas nesses objetos, também nos permite obter dados e informa-
ções sobre o processo de ocupação dos sítios arqueológicos da região, com bases em
critério cronológicos e estilístico presentes nesses fragmentos (LIMA et al., 2016, p. 293).
Esses fragmentos de cerâmicas também são indicadores para entender se esses
lugares mapeados e georreferenciados são sítios arqueológicos, pois em muitos locais
que visitei no período da graduação era possível o diálogo com os moradores dessas
localidades, e os mesmos destacavam a presença de terra preta de índio (TPI)88, cacos

88 Esses solos, segundos estudos de solo, se formaram em decorrência da ocupação humana. Também
chamados de solos antropogênicos. Resultado do descarte de resíduos orgânicos como ossos, carapaças,
conchas, fezes, urina, cerâmica, fogueiras, etc. que contribuíram na modificação das propriedades do solo
gerando alta fertilidade (cf. KÄMPF; KERN, 2005; GARCIA; COSTA; KERN; FRAZÃO, 2015).
114

de cerâmica aflorados, e onde nas proximidades haveria um local que se destacasse


por uma grande concentração de resquícios cerâmicos, como mostra a imagem abaixo,
na comunidade do Parananema, onde a reabertura da estrada acabou destruindo
uma parte do sítio arqueológico e aflorou diversas cerâmica; os moradores utilizam
diariamente esse percurso para chegar em suas residências e sempre avistam esses
materiais aflorados.

Fragmentos de cerâmica aflorados na margem da


estrada da comunidade do Parananema

Fonte: Michel Carvalho, 2017.

Estrada do Parananema

Fonte: Michel Carvalho, 2017.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 115

Importante destacar que os sítios arqueológicos, na Amazônia são:

Lugares persistentes que foram ocupados por diferentes populações ao longo do


tempo, aqueles lugares tão comuns na Amazônia que os arqueólogos costumam
chamar de sítios multicomponenciais, muitas vezes reocupados devido à paisagem
ali construída (com elementos tais como aterra preta de índio, plantas e árvores fru-
tíferas, caminhos, aterros etc.), a cerâmica ali deixada não só integra esta paisagem
produzida, mas também pode ser categorizada por povos que venham a ocupar o
lugar enquanto cerâmicas dos ancestrais, dos inimigos, de povos parentes ou sim-
plesmente de “outras gentes” (LIMA; BARRETO; BETANCOURT, 2016, p. 21).

Essas cerâmicas que afloram por vários motivos, nos revelam a história dessas
populações que por muito tempo habitaram esses lugares que hoje nomeamos de
sítio arqueológico, fazendo-se presente na vida das populações contemporâneas de
diversas formas.
Um dos pontos que pretendo destacar seria, buscar compreender os objetos
como documentação, em especial aqueles que denominamos de coleções formadas
por moradores tanto da zona urbana quanto da área de zona rural.

Coleções de cerâmicas indígenas e suas relações


Foi observando e conversando com as pessoas que tem esses objetos que pude
perceber a importância de trazer novos olhares para os fragmentos de cerâmicas
indígenas, e uma dessas percepções foi a relação dos colecionadores com as suas
coleções, e como em muitos momentos esses objetos acabam sendo selecionados
para compor esse conjunto.
Em muitos casos, essa seleção dos objetos está relacionado a comparação,
seriam aqueles objetos que a pessoa ao achá-lo, consegue comparar o mesmo com
algo do seu cotidiano, fazendo inferências a esse objeto e assim criar um contexto
para ele, ou aqueles que de alguma forma causam estranheza por não permitir uma
comparação que seriam os casos dos apliques antropomorfos, zoomorfos.
A compreensão do espaço desse objeto e de sua extroversão para o público,
em sua grande maioria, está ligado a algum meio econômico e educacional como
podemos ver nos museus e até mesmo em coleções particulares, que é o caso de
algumas experiências de pesquisas que pude presenciar nas comunidades próximas
a Parintins, nos períodos de transatlânticos, onde o município faz parte da rota de
visitação dos turistas, e é nesse momento que as coleções particulares ganham um
novo caráter de exposição voltada para economia.
Outra abordagem seria com relação a esses objetos e suas interpretações do
modo de vista visível e o invisível por quem tem posse dos materiais, e isso chamou
atenção para alguns discursos dos colecionadores de fragmentos de cerâmicas indí-
genas, que dizem ter cuidado com os ‘objetos pertencentes aqueles que já morreram’.
116

Coleção particular – objetos expostos na sala de visitas de uma residência

Fonte: Machado, 2017.

A imagem acima, destaca um pouco desse caráter de exposição que tento expli-
car, mostrando como os colecionadores, em alguns casos, tornam esses materiais
como parte do seu meio de convívio, presentes e expostos em um local onde as
visitas estarão em contato visual dos objetos, e possivelmente gerando assuntos de
interesse sobre essas peças.
E o interessante também de destacar, é que esses vestígios arqueológicos fazem
parte de um conjunto variado de objetos, que compões a mesa de exposição dessa
residência, que em alguns casos passam despercebidos ou sejam notados facilmente,
dependendo do olhar de interesse e conhecimento das pessoas.
Nesse caso a coleção destacada não está exposta com um fim econômico, mas
sim de exposição que compõe um dos espaços da residência, livre para ser admirado
pelos visitantes.
Em outros casos a exposição ganha caráter de fins econômicos em determina-
dos períodos do ano, onde os fragmentos de cerâmica são expostos nas residências
das comunidades, e podem ser apreciados por uma taxa em dinheiro que varia entre
os colecionadores.
Esse tipo de exposição é uma forma que os colecionadores dessas comunida-
des acharam para desfrutar do encanto que essas peças causam nas pessoas de fora,
algumas comunidades fazem parte do roteiro turístico dos transatlânticos que visitam
o município de Parintins, onde os turistas pagam essas taxas para poderem fazer os
registros fotográficos e apreciarem os objetos.
Essa alternativa de exposição com fins lucrativos foi uma mudança radical em
meio a essas comunidades, que até pouco tempo atrás sofria com vários descasos
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 117

de venda desses objetos para os turistas, e pode se dizer que através de pesquisas
realizadas nessas localidades direcionadas para educação patrimonial, como o Levan-
tamento Arqueológico do Médio Amazonas, no ano de 2005, vinculado ao Projeto
Médio Amazonas, que teve como objetivo identificar sítios e coleções arqueológicas
presentes em onze municípios do Médio Amazonas como: Itacoatiara, Parintins,
Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués, Urucurituba, São Sebastião do Uatumã,
Itapiranga, Silves, Urucará e Nhamundá, proporcionando novas perspectivas para
pesquisas nessa região (LIMA; SILVA, 2005, p. 5), hoje pode ser percebido um
sentimento de pertencimento com a história local e o cuidado com os objetos arqueo-
lógicos que afloram.
Fora esse período os fragmentos de cerâmica voltam a ser guardados por seus
proprietários, sendo expostos somente para pessoas que venham a desenvolver pes-
quisas na região, é um relato muito frequente dos moradores dessas comunidades,
onde ‘a procura desses objetos é somente por pessoas das universidades, escolas, e
que desenvolvem pesquisa sobre eles ou dos turistas que visitam a comunidade, fora
isso os objetos ficam guardados’.
Os discursos sobre a coleção chamam atenção para a relação do ponto de vista
visível e invisível dos colecionadores para esses objetos. Essa observação trata-se da
identificação dos discursos de cultura material e imaterial presenciadas nos relatos das
pessoas que detêm a guarda desses fragmentos, tendo assim, as suas interpretações
e significados próprios para uma peça ou conjunto de peças.

Coleção particular – fragmentos de cerâmicas expostos por sua proprietária

Foto: Machado, 2018.


118

Essa observação sobre a significação dos objetos cerâmicos para essas pessoas,
vai muito além do conhecimento científico demonstrados através de histórias, des-
crição, valor sentimental entre outros aspectos que podem ser presenciados em seus
discursos, induzindo as suas escolhas.

A equivalência sugerida entre a agência de pessoas e de coisas questiona as fron-


teiras das pessoas individuais e das representações coletivas de várias maneiras.
Isso implica que precisamos prestar mais atenção à dimensão fenomenológica de
nossas interações com o mundo material e interrogar os objetos que nos fascinam,
bem como nossas razões para sentir esse fascínio (HOSKINS, 2006, p. 76).

Essas observações apresentadas permitem identificar como os objetos arqueo-


lógicos são sujeitos que agem sobre os humanos e as relações sociais, contrapondo a
ideia de que os objetos só expressam aquilo que pode ser visto como matéria física.
De outro lado, ressalta a importância dos estudos de uma ciência da materia-
lidade, por sua vez, a arqueologia é uma ciência social e interpretativa que trabalha
com fragmentos de um todo, onde essa materialidade é somente um repositório de
informações da imaterialidade e socialidade dos povos indígenas antigos.

Coleção particular

Fonte: Machado, 2020.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 119

Fragmento de cerâmica com pintura

Fonte: Machado, 2020.

É através dessas observações e interrogações feitas dos materiais estudados, que


aos poucos conseguimos desenvolver novas hipóteses, não respondendo por completo
muitos dos questionamentos já apontados em pesquisas anteriores, mas fortalecendo
e trazendo ideias, possibilitando novas leituras desses achados.
A análise de um fragmento permite a identificação e até mesmo estimar em qual
período de tempo aquela população humana antiga veio a ocupar um determinado
lugar, ou melhor dizendo, aquele sítio arqueológico.
Tal observação seja da forma modelada, pintada, excisão, incisão, estilo ou pela
combinação de várias destas técnicas em um só objeto, a compreensão que podemos
chegar de um artefato, é que o mesmo não seria apenas um objeto estagnado ou sem
informação, mas que esses vestígios teriam uma grande variedade de mensagens que
podem ser transmitidas pelos mesmos.

O conceito de estilo tem sido um tema de destaque nos estudos arqueológicos


das últimas décadas, enquanto ferramenta teórico-metodológica para se pensar as
relações entre a variabilidade da cultura material e as ações/intenções de agentes
que produzem e reproduzem esta variabilidade, bem como os cenários sociocul-
turais em que se inserem (OLIVEIRA, 2020).

As duas imagens acima demonstram uma coleção particular com grande variabi-
lidade artefatual, esses fragmentos podem possibilitar novos direcionamentos de traba-
lhos e interesse de pesquisas com novas informações para região, pois ao observar as
imagens podemos ver a presença de apliques antropomorfos, zoomorfos, bordas inci-
sas e ponteadas ou a coloração da pasta desses objetos, que seria a mistura da argila
com outros materiais, possibilitando compreensões a respeito dessa cultura material.
120

A segunda imagem possibilita a visualização de um fragmento que chama


atenção por sua coloração e desenho, em uma análise visual pode-se ver o engobo
branco e amarelo fazendo a relação possivelmente com a ocupação de tradição Pocó-
-Açutuba que seriam os marcadores visíveis mais antigos e disseminados de formas
de antropização da natureza e formação de paisagens ao longo da Amazônia (NEVES
et al. 2014).
Para aqueles que não tem a possibilidade de fazer uma intervenção arqueológica
e poder presenciar as variabilidades artefatuais presentes em um determinado sítio
arqueológico, as coleções particulares podem ser uma alternativa para conseguir
observar essas variações, e assim obter informações essenciais para o desenvolvi-
mento de sua pesquisa.
Essa investigação possibilita interligar os processos de modificações da paisa-
gem os processos de desenvolvimentos tecnológicos de uma determinada região, ou
melhor dizendo, quais seriam os vestígios deixados por essas populações, que resis-
tiram e permanecem até os dias atuais no cotidiano das populações contemporâneas.

Paisagens antropogênicas
Esses locais delimitados como sítios arqueológicos podem ter as suas parti-
cularidades de identificação através da paisagem que constitui o seu espaço, pois a
vegetação identificada em meio às pesquisas realizadas por arqueólogos apontam
domesticação antrópica em meio a esse mosaico que é a Amazônia, pois mostram que
o processo de interação entre as populações humanas pré-coloniais e o meio físico
da Amazônia foi bastante rico e que a biota, além de uma história natural, também
tem uma história cultural (NEVES, 2005, p. 80).
Muitas árvores de castanha – sendo que os responsáveis pela dispersão das
sementes de castanha, foram e são, a cutia e os humanos – e palmeiras de tucumã,
buriti, inajá, açaí entre outras, são muito encontradas nesses locais que delimitamos
como sítios arqueológicos e que apresentam diversos vestígios em seu espaço, e foi
buscando esses indicadores que em muitos momentos me deparei com vestígios
arqueológicos como TPI e fragmentos de cerâmicas aflorados, então, seria esse um
dos indicadores para identificar esses locais que guardam vestígios arqueológicos?
Para Neves:

A essa natureza humanizada e temporalizada chamamos “paisagem”: espaços cons-


tituídos como registros e testemunhas das vidas e trabalhos de gerações passadas
que ali viveram, e assim o fazendo, ali deixaram algo de si mesmos. E através
do estudo dessas paisagens que, mesmo transformadas no presente, compõem
uma parte importante de nossas vidas, que a arqueologia pode contribuir para o
entendimento do passado do Brasil (NEVES, 1995, p. 189).

Em primeiro momento o objetivo das visitas nas comunidades de zona rural,


foi para identificar esses locais que apresentavam vestígios de ocupação humana de
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 121

acordo com as possibilidades de investigação, por ser da área de História e não ter um
treinamento adequado para trabalhar com esses vestígios ou autorização do Instituto
de Patrimônio Histórico Nacional – IPHAN, para fazer escavações no local e nem
um arqueólogo que estivesse acompanhando pessoalmente, nesse período fizemos
apenas o georreferenciamento desses locais como “ocorrências”, para servir de base
para futuras pesquisas, como pontos que indicam ter vestígios arqueológicos e que
necessitam de uma investigação mais aprofundada, pois alguns locais apresenta-
vam dificuldades.
Essas dificuldades de identificação do local, dava-se em sua maioria, por ser
locais de mata fechada, abertura de campos para criação de gado, queimadas, ou
não se tinha a autorização dos proprietários de alguns terrenos para poder adentrar
e investigar melhor.
As imagens abaixo mostram a vegetação encontrada nesses locais georreferen-
ciados e delimitamos como sítio arqueológico. Podemos observar algumas palmeiras,
já apontadas como indicadores do processo de domesticação antrópica da Amazônia,
que é o caso da palmeira inajá, tucumã e diversas árvores frutíferas.
Ao fundo, é possível perceber grande densidade de árvores de castanheira, esse
foi também um dos indicadores que auxiliaram na identificação e localização de sítios
arqueológicos em meio à vegetação amazônica. Entender que a disseminação das
árvores de castanheiras pela floresta foi obra de populações humanas no passado pos-
sibilita identificar nas proximidades desses castanhais, os sítios arqueológicos, onde
a fixação desses povos se deu próximo, pois a castanha que se é retirado do fruto da
castanheira tem um grande teor calórico, que seria parte da alimentação desses povos,
esse ponto explicaria o porquê dessa disseminação densa pela floresta Amazônica, e
o porquê de ser um dos grandes indicadores da presença de sítios arqueológicos no
entorno (NOGUEIRA, 2012).
Mesmo com a grande importância histórica que esses espaços têm para a história
local, se torna difícil, sem uma fiscalização de órgãos que protejam esses patrimônios,
pois mesmo com registro dessas áreas pelo IPHAN, ainda há destruição de muitos
sítios arqueológicos na Amazônia, devido aos processos de urbanização, projetos
de desenvolvimento e turismo sem autorização em áreas de sítios arqueológicos
causando impactos de toda ordem a este tipo de patrimônio.
Não é diferente em Parintins, pois além de não ter uma pesquisa que indiquem
onde estão estes sítios, ainda temos a negligência do poder público que deveriam
contribuir junto com pesquisas cientificas para salvaguardar estes bens culturais,
exemplo, caso da destruição de várias urnas funerárias e outros artefatos arqueoló-
gicos na estrada de acesso a uma das comunidades próximo à sede do município de
Parintins, devido à ação de máquinas que fizeram a reabertura da estrada em área de
sítio arqueológico registrado no IPHAN. Assim, tem se constituído um dos princi-
pais desafios na região, o de proteger e salvaguardar tais locais, onde as diferentes
áreas do conhecimento possam atuar através de pesquisas multidisciplinares como:
arqueologia, história, geografia, física, química etc.
122

Sítio “Santíssima Trindade do Laguinho” – vista de cima do sítio

Fonte: Michel Carvalho, 2017.

Sítio do Macurany – paisagem do espaço – castanheiras nas proximidades

Fonte: Michel Carvalho, 2017.

Com isso, essa pesquisa não procurou apenas mapear e reconhecer os sítios
arqueológicos de Parintins-AM, mas também trazer à tona informações que demons-
tram a importância da ressignificação dada pelos moradores a esses locais, significa-
dos dados ao objeto estudado em geral. Mas, faltam diálogos com esses sujeitos que
vivem cotidianamente com essas incidências ao longo de suas vidas, são informantes
dos pesquisadores, indicam com precisão os locais onde estão esses materiais, onde
muitas vezes não são tratados como parceiros de pesquisa.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 123

Estes se relacionam com os locais, então precisamos entender a importância


dos sítios arqueológicos e das coleções no cotidiano dessas pessoas, sendo que esses
locais são pouco perturbados por proporcionar benefícios e geram renda na maioria
dos casos para essas pessoas – exemplo, o desenvolvimento de agricultura familiar
em área de TPI.
Desta forma, busco demonstrar com essa pesquisa que Parintins têm muitos
sítios arqueológicos desconhecidos, ignorados, desprezados, que merece atenção por
parte de pesquisadores, mas também do poder público do municipal e estadual com
relação a temas sobre patrimônio, identidade, história local além de políticas efetivas
de valorização do patrimônio arqueológico local.

Algumas considerações
O intuído desse trabalho é demonstrar e discutir sobre a importância do desen-
volvimento de trabalhos em diversas áreas da Amazônia que ainda é pouco explo-
rada, lugares esses que apresentam grande potencial para se desenvolver pesquisas
de cunho arqueológico.
Destacando a importância de identificar esses locais que têm vestígios arqueoló-
gicos como TPI, fragmentos de cerâmica entre outros na composição de seu espaço,
proporcionando entender mais sobre a história desses povos que desenvolveram
técnicas no processo de fixação e até mesmo de organização social, ressaltando como
esses povos eram organizados e tinham culturas diversas.
Além de buscar trabalhar nas linhas de investigação e discussões a respeito de
modificações antrópicas da paisagem por populações indígenas, mostrando a cultura
material não só como indicadores de desenvolvimento tecnológico, mas proporcionar
discussões para além do determinismo ambiental.
De outro lado, ressalta a importância dos estudos de uma ciência da materia-
lidade, por sua vez, a arqueologia é uma ciência social e interpretativa que trabalha
com fragmentos de um todo, onde essa materialidade é somente um repositório de
informações da imaterialidade e socialidade dos povos indígenas antigos.
A pesquisa está sendo desenvolvida com o olhar para a área urbana e rural do
município, ambas guardam grandes riquezas em artefatos arqueológicos, tanto aqueles
que estão aflorando ou estão nas atividades de roçado, construções de residências,
criação de gado, quanto aqueles que se tornaram coleções particulares por apresen-
tarem algo que desperta interesse e curiosidade dos moradores.
Os estudos arqueológicos relacionados aos fragmentos de cerâmicas indígenas
tem indicado diversos fatores de socialização entre as populações indígenas, sejam
eles de troca, reocupação dos espaços já habitados anteriormente ou possíveis junções
de indivíduos de grupos diferentes, as configurações do registro arqueológico apon-
tam para a possível existência de sociedades multiétnicas em redes inter-regionais na
área de interflúvio entre os rios, onde essas afirmações só serão comprovadas a partir
do estudo desses vestígios presentes no município, para que futuramente possamos
contextualizar Parintins em meio as pesquisas arqueológicas do Baixo Amazonas.
124

REFERÊNCIAS
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do Estado do Amazonas, 2016. p. 21.
A CIDADE COMO TEXTO: patrimônio
edificado, histórias e memórias da
cidade de Parintins (AM)
Rodrigo Tavares de Souza

Introdução
Este artigo faz parte do projeto de pesquisa intitulado89 “A Cidade Como Texto:
Patrimônio Edificado, Histórias e Memórias da Cidade de Parintins (AM)”, cujo
objetivo foi analisar as múltiplas interações entre História e Memória da Cidade
de Parintins a partir da identificação e análise das ideias e valorações acerca do
patrimônio histórico edificado da cidade, que se materializam na percepção de seus
habitantes. A pesquisa buscou ainda indicar a relevância do patrimônio edificado da
cidade de Parintins – AM, como suporte para a construção/resgate de outras memórias
e histórias da cidade.
Em que pese ser uma das mais importantes cidades do Estado do Amazonas e
nacionalmente conhecida por suas festas populares e produção cultural, há poucos
estudos históricos sobre o patrimônio edificado da cidade de Parintins. Pouco se
comenta, que o Patrimônio Histórico e Cultural da cidade também conta uma história
da localidade e de seus habitantes, assim como estes conhecem e difundem histórias
da cidade que assimilaram por suas lembranças e pela memória dos mais velhos
(pais, mães, avôs e avós).
Neste sentido, tomando o patrimônio histórico edificado como mote, o pro-
jeto buscou explorar essas múltiplas interações entre memória e história. Para o
desenvolvimento do trabalho, foram realizadas leituras contextuais sobre a cidade de
Parintins e sobre o tema do Patrimônio Histórico, visando reforçar o embasamento
da pesquisa. Realizamos ainda pesquisa de campo, utilizando técnicas da História
Oral, abrangendo uma série de entrevistas com moradores destacados (mais velhos,
historiadores e professores de história) da cidade.
O Patrimônio Histórico de Parintins é composto de um conjunto de elementos
materiais e imateriais, entre eles, suas manifestações culturais, seus sítios arqueo-
lógicos e, principalmente, de suas edificações históricas, as quais apresentam um
quantitativo pequeno de exemplares, porém, construídos nos seus mais variados
estilos e épocas. Com base nisso esperamos detectar as relações existentes, entre a
população do município de Parintins e o seu patrimônio edificado. A pesquisa buscou
inventariar as edificações e outros bens materiais do período de 1895 a 1970.

89 “A cidade como texto: patrimônio edificado, histórias e memórias da cidade de Parintins (AM)”. Projeto de
pesquisa aprovado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da UFAM.
128

Memória, patrimônio e preservação


A preservação do patrimônio histórico, nas últimas décadas, vem ganhando
muita importância na sociedade. A preservação busca manter viva a memória de uma
cidade, de um país e de seu povo. Pois uma sociedade que não preservar a sua história
e de seu patrimônio, consequentemente, “não conseguirá planejar o seu futuro, pois,
o patrimônio construído e preservado é um ativo urbano de fundamental importância
para as futuras gerações” (SOMEKH, 2014).
O conceito de patrimônio, de origem romana patrimonium, desde a sua invenção
até a contemporaneidade, já recebeu muitos significados. Podem ser identificados com
destaque dentro das cidades, despertando reflexões, e por se inserirem no conjunto
de manifestações populares, ou por representações de fatos históricos memoráveis,
enfim, patrimônio em sua esfera material, constitui-se de um grupo diversificado
de monumentos, conjuntos arquitetônicos, sítios urbanos históricos, etc. E em sua
esfera imaterial, as manifestações das culturas populares, festejos tradicionais, rituais,
técnicas produtivas, cantos, contos, lendas.
Françoise Choay, conceitua a expressão “patrimônio histórico” como o produto
do saber humano, e destaca que:

A expressão designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que


se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de
uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e
obras-primas das belas artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos
os saberes dos seres humanos (CHOAY, 2001, p. 11).

A preocupação com a proteção e salvaguarda dos patrimônios históricos come-


çou no início do século XX, a partir desse período, foram criadas várias comissões
e conferências para estabelecer critérios para proteger e conservar o patrimônio his-
tórico, no mundo todo. No Brasil, as primeiras medidas oficiais surgiram em 1936,
através da criação do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
hoje denominado IPHAN, cuja missão é proteger, restaurar, documentar, preservar,
divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros, com vistas a assegurar a permanência
e usufruto desses bens para as futuras gerações.
A Constituição Federal de 1988 apresenta um espaço significativo relativo à
cultura e aos bens culturais, tendo no Artigo 216, Incisos I a V a relação dos bens
que constituem o patrimônio cultural brasileiro. A carta magna dispõe que “consti-
tuem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
A Constituição brasileira, no Artigo 30, também atribui aos municípios a respon-
sabilidade de “promover a proteção do patrimônio histórico cultural local, observada
a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. Também define a preservação
do patrimônio cultural como um direito fundamental à pessoa humana, pois deste se
produz também a preservação da identidade cultural do sujeito.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 129

Um dos mecanismos das políticas públicas de preservação do patrimônio cultu-


ral é o tombamento, que devido à pouca divulgação torna-se uma ação desconhecida
pela maioria da população e gestores municipais. Segundo o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o tombamento é um ato administrativo rea-
lizado pelo Poder Público com o objetivo de “preservar, por intermédio da aplicação
da legislação específica, bens de valor histórico cultural, arquitetônico, ambiental e
também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos
ou descaracterizados”.
A preservação do patrimônio histórico tem por objetivo manter viva a memória
e os valores destas construções dentro das cidades e que sem políticas de preservação
estão cada vez mais ameaçadas pela especulação imobiliária e construção de grandes
empreendimentos. O ato de preservar deve ser a alternativa, pois além revitalizar o
uso desses imóveis permite que a sociedade tenha maior percepção da importância
histórica daqueles bens e espaços para a própria comunidade.
O reconhecimento destes espaços, bem como sua preservação e revitalização
são necessários para promover a recuperação de um passado importante para a for-
mação daquela cidade. Essa opinião é confirmada pela afirmação de Mesquita (2006)
quando diz que “a interrogação sobre a cidade conduz à história ao buscar identificar
as diversas forças que moldaram a cidade evidenciando seus múltiplos artesãos”.
Neste sentido, a sociedade deve ter papel ativo neste processo de reconhecimento e
preservação dos bens que compõem o seu patrimônio histórico, atribuindo-lhes os
significados e valorização desses bens e espaços.
Para realizar a melhor forma de preservação, é necessário antes de tudo com-
preender o sentido do patrimônio cultural como um legado para as gerações futuras.
Neste processo de compreensão e escolha dos bens a serem considerados como
patrimônio cultural, a história, memória e identidade cultural exercem tarefas muito
importantes na orientação e definição dos valores, direcionando nas escolhas des-
ses bens.
A memória é definida como sendo a capacidade de reter ideias, impressões e
conhecimentos adquiridos, é comumente relacionada ao ato de lembrar ou reminiscência
de experiências vividas num tempo que passou. Assim, toda lembrança é uma espécie
de reconstrução do passado, a partir dos valores de um indivíduo ou um grupo de pes-
soas, que lidam cotidianamente com a memória, mas, também com o esquecimento.
Nesse sentido, na sociedade contemporânea tende a construir os “lugares de
memória”, locais de rememoração tão significativos para afirmação de iniciativas de
preservação e continuidade da noção pertencimento. Segundo Pierre Nora (1993, p.
12) “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste
uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora”.
Os espaços de memória representam o registro simbólico ou material que dão
sentido à vida humana, representam as vivências de pessoas que conviveram ou
ainda convivem naqueles espaços. Estes “lugares de memória” são instrumentos
permanentes para o exercício da memória nas sociedades e têm como objetivo evitar
o desaparecimento dos registros históricos.
130

Sendo assim, ao relembrar o passado, a relação entre memória e história acaba


por se tornar também uma forma de preservação, uma reminiscência dos acontecimen-
tos, para evitar o esquecimento. Nessa perspectiva, Le Goff (2003, p. 14) corrobora
que “a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar
o passado para servir ao presente e ao futuro”.
A memória exerce assim função importante para construção do patrimônio,
uma vez que ela oferece significados nos espaços classificados como algo sem valor.
Segundo Maurice Halbwachs (2006, p. 29) a memória pode ser classificada, em
“memória coletiva, que são lembranças referentes a uma nação, comunidade ou
cidades, e memória individual, que corresponde à memória de uma pessoa, relatos
orais e biografias”. E acrescenta que estas memórias não existem de forma isolada,
mas, que se complementam mutuamente.
Michael Pollak (1989, p. 10), ao abordar os indicadores da memória coletiva,
de um lado destaca o monumento, o patrimônio e as datas, e do outro, o folclore, as
tradições e costumes, são duas linhas formadoras de identidade histórica. Para Pollak,
uma das funções essenciais da memória é justamente manter a coesão interna e defen-
der as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, ou seja, os seus “pontos de
referência” que reforçam os sentimentos de pertencimento dos indivíduos aos grupos.

Metodologia
Inicialmente, efetuamos leituras contextuais sobre a cidade de Parintins, bem
como as leituras teóricas sobre o tema do Patrimônio Histórico, visando reforçar
o embasamento da pesquisa. Em paralelo, foi realizado ainda, o levantamento das
principais edificações que, frequentemente são arroladas nos discursos oficiais e nos
estudos acadêmicos como integrantes do patrimônio histórico. A pesquisa buscou
inventariar as edificações e outros bens materiais no período de 1895 a 1970. Reali-
zamos também a pesquisa de campo, utilizando técnicas da História Oral, abrangendo
entrevistas com moradores destacados (mais velhos, historiadores e professores de
história) da cidade. Para análise dos dados foram utilizadas técnicas qualitativas.
Devido a diminuta existência de registros escritos sobre o patrimônio histórico
de Parintins-AM, demos ênfase e utilizamos como recurso metodológico a História
Oral. Neste sentido, nos apoiamos na leitura de produções historiográficas de teóricos
como Alberti (2013), Freitas (2006), Meihy (2018), Nora (1993), Pollack (1989),
Portelli (1997), entre outros autores, como meio para construir o trabalho por meio
das narrativas de moradores da cidade, acerca de seu patrimônio.
A História Oral fornece documentação para reconstruir o passado recente, pois,
o contemporâneo também é história, isso legitima a história do tempo presente,
visto que a história durante muito tempo fora relegada somente ao passado. De
acordo com Freitas (2006), “utilizando a metodologia da História Oral, produz-se
uma documentação diferenciada e alternativa à história”, antes realizada quase exclu-
sivamente com fontes escritas. Neste sentido, a História Oral abriu novas perspec-
tivas para o entendimento de um passado recente, amplificando as vozes que não se
fariam ouvir, possibilitando assim o conhecimento de diferentes “versões” sobre os
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 131

fatos, podendo os depoimentos apontar continuidades ou contradições nas narrativas


dos entrevistados.
Para Meihy (2018, p. 15) História Oral é um “procedimento premeditado rea-
lizado segundo a orientação expressa de um projeto”, e “usado para elaboração de
documentos, arquivamento e estudos referentes a experiência de social de pessoas
e de grupos”.
De acordo com Verena Alberti (2013, p. 155), existem alguns equívocos sobre
a História oral que devem ser descartados de imediato, como a consideração de que
“a História oral é a própria História”, de que a “história vista de baixo é a democrá-
tica”, em oposição à história das elites, e ainda que “a História oral busca dar voz
às minorias”, o que apenas reforçaria as diferenças sociais. Para a autora, a História
oral deve ser compreendida como visões de mundo e experiências de vida.
É importante destacar que o uso da história oral como metodologia não evi-
dencia a exclusão da importância da escrita para a pesquisa em história. Contudo,
compreende-se necessidade de tal metodologia como importante instrumento para
conhecer as memórias daqueles que frequentemente têm suas histórias silenciadas
na historiografia oficial.
Neste sentido, o historiador que utiliza as metodologias da História Oral tem
por objetivo a compreensão dos diversos pontos de vista narrados por seus colabora-
dores, que narram e reconstroem a memória de si e da sociedade em que convivem,
ou conviveram. Para reconstrução dessas memórias e histórias, o estudo do patrimô-
nio histórico e das cidades, são espaços que apresentam muitas manifestações que
constituem signos reveladores das reminiscências das histórias do lugar, e podem ser
contadas para que a história se mantenha viva nas tradições e na memória das pessoas.

Resultados e discussões
As entrevistas foram realizadas como parte da pesquisa de campo para escrita
da dissertação ao Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal
do Amazonas. O objetivo do trabalho foi identificar as múltiplas concepções de patri-
mônio histórico manifestadas na percepção dos moradores da cidade de Parintins,
partindo das memórias recolhidas desses moradores e que presidem suas valorações
em termos do que melhor identifica e expressa a história da cidade.
As entrevistas foram realizadas na cidade de Parintins, nos meses de dezembro
de 2019 e julho de 2020. Entre os critérios de seleção para entrevistas foi o de que os
entrevistados fossem moradores da cidade. Foram entrevistados cerca de 16 morado-
res com idades entre 33 a 79 anos, entre estes professores de História, funcionários
públicos, microempresários, aposentados, poetas e escritores.
Estes moradores guardam parte das memórias da cidade, e por intermédio da
História Oral, buscamos perceber interações e contrapontos com a história oficial e
a visão dos historiadores da cidade. Como forma de promover o conhecimento das
memórias desses moradores, optamos por manter os nomes desses narradores bem
como a narrativa em sua originalidade.
132

Para identificar as concepções de patrimônio histórico que presidem a com-


preensão dos moradores da cidade de Parintins e quais edificações são por eles indi-
cadas como exemplificadoras desse patrimônio, através de roteiro semiestruturado,
perguntamos sobre a definição que os entrevistados têm sobre patrimônio histórico,
buscando estimular estes moradores a falarem o que eles entendem sobre o tema e
as múltiplas concepções por eles percebidas e as edificações por eles consideradas
de valor histórico e dignas de preservação e conservação.
A respeito deste primeiro questionamento, os moradores responderam de
forma bastante ampla sobre o entendimento e o significado de patrimônio histórico,
mencionando os diversos tipos de patrimônio, sendo em sua maioria relacionados
à cidade de Parintins, como as edificações, ruas e praças do centro histórico da
cidade, as questões relacionadas a identidade e memória do povo parintinense,
tais como culinária, as manifestações culturais como a festa do Boi-Bumbá, as
quadrilhas juninas, as pastorinhas, o sítio arqueológico da região da Valéria, entre
outras manifestações. O trecho a seguir reforça este entendimento.
Para o morador do bairro da Santa Clara, Deilson Trindade, 45 anos, professor
de História no IFAM-Campus Parintins, que nasceu e cresceu na cidade de Parintins
e passou parte de sua infância morando no bairro Centro, o professor e pesquisador
afirma que o patrimônio histórico:

Tem várias concepções. Se você for pela aquela questão conceitual, o patrimônio
histórico material, o patrimônio histórico imaterial, é muito amplo estas conside-
rações. Mas, se eu for buscar uma vertente, por exemplo, do patrimônio material,
é tudo aquilo te remete a uma memória, é tudo aquilo que você se referencia.
Por exemplo, na questão de Parintins, como eu vivi minha infância no centro
da cidade, eu tenho como patrimônio histórico os lugares que eu frequentava, a
praça da prefeitura, o mercado municipal onde eu ia com minha mãe, a principal
rua da cidade que era rua da frente, que ia desde o cais (Porto de Parintins). Aliás,
desde a praça do Sagrado até a praça do Comunas [...] Então, é isso que ficou na
minha memória, então pra mim essa região, ela tem uma memória e por isso eu
considero como patrimônio cultural. As casas, muitas delas foram demolidas,
as outras estão abandonadas, mas, pra mim existe um marco de patrimônio.
[Antiga] Prefeitura, [igreja] Sagrado Coração, o Cais do Porto, embora muito
modificado, ainda me remete a patrimônio, porque ali é um lugar de chegadas
e de saídas (DEILSON TRINDADE, 2019/ENTREVISTADO).

Dando prosseguimento, os entrevistados foram questionados sobre em qual


região da cidade, estão localizados os bens considerados como patrimônio histórico
no município de Parintins. Muitos deles apontaram a região central da cidade como
a área que concentra grande parte dos prédios considerados como patrimônios his-
tórico por eles. Outros também, mencionaram áreas distantes do centro da cidade
como a comunidade do Parananema, onde existe uma capela antiga em homenagem
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 133

a São Benedito e também a comunidade da Valéria, interior do município, onde há


um sítio arqueológico.
Em Parintins, um dos moradores conhecidos da cidade é o senhor Basílio
Tenório, 67 anos, historiador, pesquisador, escritor e poeta. Ele nasceu em Urucará,
mas reside na cidade desde os 12 anos, ele nos relata que:

O centro de Parintins. E nem poderia ser diferente. Por exemplo, ali junto aos
cais do Porto, a residência episcopal [...] ela é um patrimônio histórico, ali era
os Correios, era onde se fazia a comunicação, o cabo submarino partia de lá
[...] ali tem história. Temos também ali, a antiga igreja Matriz Sagrado Cora-
ção de Jesus, e o Colégio Nossa Senhora do Carmo atrás, que foi desenhado
pelo padre Victor, entre os anos de 1920 e 1930. De lá, nós vamos ter aqui,
o Mercado Municipal, nós vamos ter a casa das Maranhão, a casa do Elias
Assayag, o antigo Cine Brasil, que depois virou Cine Saul, que já não existe
mais. [...] Já ali acima, em frente à antiga praça Cristo Redentor, aquelas casas
ali era dos Judeus, aquilo já remete aos primeiros anos do sec. XX (BASÍLIO
TENÓRIO, 2019/ ENTREVISTADO).

Com base nos relatos acima, os historiadores mencionam como a área central
da cidade e suas edificações contam uma parte importante da história de Parintins,
com destaque à formação do primeiro núcleo de organização dos primeiros aldea-
mentos, povoados e missões religiosas que deram origem a Villa Nova da Rainha
e, posteriormente, à cidade de Parintins. Mencionam ainda, o papel importante da
Igreja Católica, na construção dos primeiros templos religiosos da cidade. Além
de citar as edificações construídas por imigrantes judeus que se estabeleceram na
cidade, no final do século XIX, e dedicando-se às atividades comerciais, também
contribuíram para o desenvolvimento do município.
Quando perguntados se pudessem escolher alguma edificação como patrimônio
histórico para representar a cidade de Parintins, entre as respostas foram mencio-
nadas as principais edificações, ao lado dos nomes constam os ano de construção
desses bens imóveis: Casa da Família Maranhão (1901); Palácio Cordovil ou antiga
Prefeitura (1937); Mercado Municipal (1931); Grupo Escolar Araújo Filho (1929);
Casario dos Judeus (1937); Igreja do Sagrado Coração (1883); Escadaria da Praça
Cristo Redentor (1895); Catedral de Nossa Senhora do Carmo (1963); Colégio
Nossa senhora do Carmo (1956); Cine Oriental (1964); Residência de Furtado
Belém (1952). Os entrevistados também mencionaram algumas construções que
não existem mais ou foram descaracterizadas, como a sede do antigo Cine Saul
(1948), antigo Cine Teatro Brasil, cuja fachada foi demolida e hoje abriga lojas
comerciais; e a antiga praça do Cristo Redentor (1956), que passou por reforma
em 2005, passando a se chamar praça Digital.
134

Antiga Praça do Cristo Redentor

Fonte: IBGE, 2017.

Uma opinião expressada pelo senhor Marco Aurélio, 42 anos, professor de his-
tória, morador da cidade, aponta a Casa das irmãs Maranhão como sendo um dos
principais prédios considerados pelos moradores como sendo um patrimônio histórico
da cidade, as menções à residência que pertenceu a Família Maranhão e que foi cons-
truída no início do século XX (1901) são muito recorrentes nas falas dos entrevistados.

Se a gente for pegar certos locais, que possa identificar determinados momentos da
história de Parintins, eu penso que bem preservado e que identifica uma bela época,
eu acho que é a casa das Maranhão, por estar bem preservado e por identificar
uma época que ainda pegaria o período áureo da Borracha, e identifica muito. É
uma edificação que ainda não foi modificada, acho que é casa das Maranhão [...]
porque traz todo um traço de aspecto de linguagem, de aspecto arquitetônico, da
arquitetura de uma época e pelo fato de estar bem preservado (MARCO AURÉLIO
GARCIA, 2019/ ENTREVISTADO).

Casa das Maranhão

Fonte: Rodrigo Tavares, 2002.


UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 135

A residência da família Maranhão ou “Casa das Maranhão” como é conhe-


cida na cidade, fica localizada na Rua Benjamim da Silva, centro da cidade, e foi
erguida no início do séc. XX. A edificação ainda apresenta suas formas originais,
com linhas neoclássicas, telhas de barro, assoalho feito em acapú e pau amarelo.
Com amplas dependências, a residência era bastante frequentada, sediando festas
e encontros sociais no passado. A casa pertencia às irmãs Beatriz, Dulce e Corina.
Beatriz Maranhão foi professora do ensino primário e prestou relevantes serviços a
educação no município.
Num outro momento, quando perguntados se a frente ou centro da cidade
representa para estes moradores a memória e história da cidade da Parintins, todos
foram unânimes em responder que sim, que o local que se relaciona intimamente
com a memória desses moradores e da cidade. Em seguida, os entrevistados foram
questionados se estes prédios históricos fazem parte de sua história pessoal, e mui-
tos deles afirmaram que sim, pois têm muitas lembranças da infância que viveram
naqueles espaços de memória. Nas lembranças de seu Heraldo Jorge Machado, 68
anos, aposentado, que mora na cidade desde os 5 anos de idade na rua Coronel José
Augusto, centro da cidade. Com saudosismo ele relata alguns aspectos daquela época,
principalmente, da lembrança que tem de um dos cinemas da cidade, o Cine Saul:

Olha, a frente da cidade era os prédios mais antigos que tinha, quando cheguei, é
começo da cidade. A praça do Cristo era diferente. Me lembro do cinema do Saul,
cheguei a ver o Saul, frequentava ali. [Eu] era moleque e gostava de jogar bolinha
(risos), essa hora assim da tarde era muita gente, a gente ficava lá jogando bolinha,
aí o Saul, o velho Saul passava lá aqueles, aqueles tempos antes do filme que ia
passar de noite [os trailers]. Aí de lá mesmo, a gente já fica lá, e aí já entrava no
cinema. Foi uma infância [boa]. Dizem assim, que a gente é feliz quando a gente
é criança. E é verdade mesmo, viu. Estou lhe dizendo. Estes tempos não voltam
mais, mas, a gente se lembra (HERALDO MACHADO, 2020/ ENTREVISTADO).

A lembrança que estes moradores mais antigos têm dos cinemas da cidade, o
Cine Saul e Cine Oriental, é algo que ficou patente nas entrevistas, o saudosismo
daquela época é marcante nos discursos desses parintinenses, revelando que a repre-
sentação destes espaços culturais ainda estão presentes nas memórias individuais e
coletivas dos parintinenses que frequentavam estes locais entre as décadas de 60 e 70.
136

Cine Saul

Fonte: Acervo UEA, 2005.

O Cine Teatro Brasil foi construído em 1948, com características de arquitetura


greco-romana foi construído sob a orientação do Pe. Victor Heinz, e ficava locali-
zado na esquina da rua João Melo com a rua Faria Neto. Posteriormente, na década
de 70, passou a ser chamado de Cine Saul, quando foi comprado pelo empresário
José Saul e tinha capacidade para 350 pessoas. O Cine Saul, infelizmente, teve sua
fachada demolida.
Quando perguntamos se a comunidade local valoriza estes imóveis da área
central da cidade, os entrevistados responderam que não, que a maior parte da popu-
lação não valoriza estes bens e espaços localizados no centro histórico, e apontam
como o principal motivo a falta de conhecimento da história da cidade por grande
parte da população, pela ausência de projetos de educação patrimonial na rede de
ensino e, principalmente, por falta de uma política de preservação pelo poder público
no município.
No último momento, perguntamos sobre o estado de conservação e preservação
dos bens imóveis do centro da cidade. As respostas foram variadas, alguns mora-
dores acreditam que os prédios que atualmente ainda estão em uso como o Grupo
Araújo Filho, onde funciona uma escola de ensino médio da Secretaria Estadual de
Educação (SEDUC), apesar de ter passado por reformas que descaracterizam parte
do imóvel, ainda encontra-se com suas fachadas originais preservadas. Citaram ainda
as Igrejas Sagrado Coração de Jesus e a Catedral de Nossa Senhora do Carmo, que
também por estarem continuamente em uso, ainda recebem a atenção dos fiéis e
da Diocese de Parintins. Outro prédio que encontra-se conservado e preservado é
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 137

o da Casa das Maranhão, em que os herdeiros ainda mantêm a residência com as


mesmas características do início de sua construção. Além desses, os imóveis da
Loja Maçônica ainda se encontra preservado. Outro patrimônio que os moradores
consideram como preservado e conservado é o Mercado Municipal Leopoldo Neves
que passou uma grande obra de reforma e restauração por parte da prefeitura e foi
reinaugurado em 2019, uma obra que teve grande aprovação da comunidade, por
valorizar aquele local.
A exceção desses imóveis mencionados anteriormente, os entrevistados afirma-
ram que a maioria das edificações do centro histórico da cidade de Parintins ainda
se encontram em estado de abandono e descaso por parte do poder público e de seus
proprietários. Lamentam a ausência de uma lei específica no município que asse-
gure a manutenção e conservação desses imóveis e que impeçam suas demolições,
descaracterização e abandono. Estes moradores atribuem a ausência do de políticas
públicas de preservação desse patrimônio por parte dos poderes públicos do muni-
cípio, eles também reivindicam, tanto do Legislativo quanto Executivo municipais,
mais proteção aos imóveis do entorno da antiga Prefeitura (Palácio Cordovil), que
atualmente encontram-se abandonados, especialmente, o Casario do Judeus, em que
uma dessas residências encontram-se em processo de arruinamento.

Considerações finais
A pesquisa realizada permitiu compreender as ideias de valoração que os mora-
dores de Parintins (AM) têm sobre o patrimônio histórico edificado da cidade. Os
resultado até aqui obtidos permitiram também identificar quais as edificações con-
sideradas por estes parintinenses como bens e espaços com valores históricos. Com
base nessas percepções foi possível inventariar alguns dos principais bens edifica-
dos da cidade. Outro resultado importante, foi a descoberta da relevância dessas
edificações para a comunidade, e o grau de identificação que ela mantem com esse
patrimônio histórico.
De igual forma, a pesquisa tem também proporcionado a possibilidade de conhe-
cer a história da cidade a partir das outras “vozes e olhares”, trazendo para o centro do
debate o morador comum da cidade, sua vivência e seu conhecimento. Por intermédio
desses testemunhos, pode-se perceber a existem alguns patrimônios históricos edifi-
cados que apesar de não mais existirem fisicamente, ainda são lembrados e agregam
traços de imaterialidade nas memórias desses moradores.
O trabalho também tem nos permitido recontar parte da história da cidade,
que continua muito viva nas memórias desses parintinenses, evitando assim seu
esquecimento e contribuindo para reconstrução e preservação tanto dessas memórias,
quanto das dimensões físicas da cidade por elas reportadas. Percebe-se que a cidade
Parintins ainda possui muitas edificações históricas, porém é notório que a imensa
maioria delas está ameaçada pelo abandono e pelo descaso de um poder público que,
infelizmente, ou se omite, ou atua de forma muito tímida em relação a implementação
de políticas públicas de preservação e conservação desses locais considerados como
patrimônios históricos. Não se trata de um problema de legislação, mas de ação, já
138

que, como lembraram alguns colaboradores da pesquisa, o município tem em seu


Plano Diretor instrumentos para promover o acautelamento, a salvaguarda e mesmo
tombamento desses bem e espaços, podendo, portanto, valer-se dele para protegê-los
do processo contínuo de descaracterização e demolição que as ameaça atualmente.
Por fim, é importante destacar que os entrevistados relataram que a grande parte
da comunidade não valoriza o patrimônio histórico, principalmente pelo fato de não
terem conhecimento da história da cidade e, desta forma, expressam em suas falas o
desejo de que algum dia o poder público, pressionado pela sociedade passe a incen-
tivar a história da cidade e a valorização de seu patrimônio histórico, promovendo
projetos de educação patrimonial nas redes de ensino do município.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 139

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CONFLUÊNCIAS CULTURAIS –
NARRATIVAS DOS COMPOSITORES
PAULINHO DÚ SAGRADO E JOSÉ
CARLOS PORTILHO: história oral,
memória e identidade musical
Hiana Rodrigues da Silva Magalhães

Na década de 1980, do século 20, se passarmos em revista o panorama nacional,


veremos uma grande expressão do “universalismo cultural”, em que ocorreu uma
convergência de características culturais e comportamentais que marcou as gerações
no final daqueles anos 70 e 80, em que a maior parte dos acontecimentos derivava da
conjuntura política do país, que estava entregue ao governo militar, de 1964 a 1985.
Um segmento expressivo da sociedade era formado por jovens do Brasil que
tinham o desejo natural de participação, mesmo porque a ditadura era uma realidade
contundente e os caminhos encontravam-se cerceados, tanto politicamente quanto
economicamente; vivenciando esse quadro social, muitos artistas usaram a sua arte,
o teatro, cinema, a poesia, literatura e música, para expressar seus sentimentos de
repulsa e resistência ao regime arbitrário que estavam vivendo.
O historiador Marcos Napolitano nos descreve bem o vigor musical daquela
época, que se espalhou por muitos dos nossos estados, segundo ele:

[...] a música independente não foi privilégio do Rio de Janeiro e São Paulo.
Nomes importantes surgiram em Minas Gerais, com destaque para a cantora
Tiane, Belo Horizonte, e artistas ligados ao vigoroso movimento cultural do Vale
do Jequitinhonha; no Ceará, Marlui Miranda tornou-se referencial na coleta de
gravação de cantos indígenas; na Bahia, a música de carnaval sempre teve um
vigor próprio independente, antes de ser descoberta pelo Brasil, entre outros
estados. Em Pernambuco e Paraíba, o Movimento Armorial, criado em 1970
por Ariano Suassuna, atravessava a década mesclando o folclore musical com a
música erudita, somando-se às inúmeras iniciativas culturais locais – no teatro,
na poesia, no artesanato e na música popular, sobretudo – que marcavam a vida
daqueles dois estados desde início da década de 1960. [...] Na virada da década
de 1970 para a década de 1980, havia uma considerável rede de produção musical
alternativa, fora dos esquemas monopolistas da indústria fonográfica brasileira
[...] (NAPOLITANO, 2001, p. 128).

Na citação acima, podemos perceber o quão é vasta a produção cultural nas


regiões do país, e que “em qualquer sociedade, o campo cultural é um dos elementos
estruturais básicos, tão importante quanto a vida política e econômica”. Como bem
142

nos lembra Napolitano (2001, p. 129), “Quando negligenciamos o passado da nossa


cultura ou a vivemos unicamente dentro da esfera do lazer imediato e descartável,
todas as outras esferas da sociedade perdem a vitalidade”.
Elias Farias (2017, p. 161), em seus estudos, A canção na Amazônia e Ama-
zônia na Canção, em um breve recorte sobre a cena musical, na região Amazônica,
especificamente, nos esclarece que no final dos anos 80, “os meios de comunicação
de massa criaram a sigla MPA (Música Popular Amazonense) para identificar a
produção sonora de artistas da terra que apareciam com mais intensidade desde o
início da década.”
Segundo este autor, “existe uma canção no Amazonas, mas não necessariamente
uma canção amazonense” (FARIAS, 2017, p. 161), uma vez que “ o termo ‘música
popular amazonense’ nasceu com base no marketing da difusão da produção local e
não como suporte da discussão sobre a gênese da chamada ‘música da terra’” (ibid.,
p. 161-162). O autor considera também que o principal meio de difusão foram os
festivais de música existentes na cidade de Manaus, os programas de rádio dedicados
à música local e os vídeos de abertura da programação de emissoras de TV. Desta
maneira, os nomes pouco conhecidos do grande público como: Adelson Santos,
Torrinho, Antônio Pereira, Candinho, Lucinha Cabral, começaram a ter espaço na
mídia e a apreciação da produção musical do Amazonas (ibid., p. 161).90
Os festivais universitários da canção também começaram a florescer na região,
muito mais voltados para o público acadêmico na cidade de Manaus. Em meio às
manifestações estudantis, tiveram início em 1982, sendo um dos eventos culturais
mais importantes do estado, por valorizar cantores amazonenses e incentivar a criação
de letras que expressavam a realidade da região norte.
No livro, Arte e Delírio: reflexões sobre a cultura no Amazonas, edição e orga-
nização do Diretório Universitário, gestão “Coração de Estudante” no texto: “Arte e
transformação no festival universitário de música”, Grazziotin (1985) nos descreve a
efervescência do momento pelo qual passava a cidade de Manaus, com a realização
do FUM, Festival Universitário de Manaus.

[...] a importância do Festival na área política, pois sabemos que historicamente, a


arte e, mais especificamente, a música, pode jogar um grande papel no processo de
transformação social, tanto é, que o que vimos nos anos de ditadura militar, foi a
música e a cultura de forma geral sendo reprimidas [...] (GRAZZIOTIN, 1985, p. 19).

Em Parintins, desde 1979, de maneira incipiente, os festivais de música foram


organizados por pessoas interessadas em inovar na arte e na cultura, embora muitos
festivais fossem organizados por grupos pequenos de pessoas interessadas em fazer

90 “Nessa época, as toadas de Boi Bumbá estavam em crescente difusão e aceitação por parte de um público
que absorvia o Festival de Parintins com maior intensidade. O Grupo Carrapicho de Zezinho Correa havia
estourado no Brasil e o Grupo Raízes Caboclas de Celdo Braga se consolidava como representante da cultura
local na canção. Na década de 1990, há um passo gigantesco na produção musical e o Amazonas entra no
cenário nacional apresentando seus cantores e compositores e a sua música. A música de boi-bumbá se
transforma em produto de exportação e vemos o Amazonas representado por Garantido e Caprichoso em
todas as mídias” (FARIAS, 2017, p. 162).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 143

algo para a cultura local. Alguns nomes de festivais que ocorreram na cidade: “Cidade
Providência”, “Ilha de Tupinambarana”, e mais tarde o FECAP, Festival da Canção de
Parintins, teve seu começo em 1985, sendo um dos momentos mais importantes de luta
por uma identidade musical. O evento reuniu muitos compositores e canções de todos
os gêneros musicais, sendo essa diversidade importante para se criar um evento com
características peculiares, reunindo elementos representativos e identidade musical.
O processo da prática criativa no mundo das artes apresentado neste artigo busca
mostrar por meio da memória produzida pelos colaboradores José Carlos Portilho91
e Paulinho Dú Sagrado92, confluências com a história e com a memória, diretamente
ligada à vida, se considerarmos que estas práticas criativas são partes de um processo
cultural vindas de experiências, em que os compositores narram suas histórias de
aprendizado profissional, e o quanto os compositores se tornam participativos no
cenário cultural da cidade. Khoury (2004) nos esclarece que:

[...] Ao lidarmos com a memória como campo de disputas e instrumentos de


poder, ao explorarmos modos como memória e história se cruzam e interagem
nas problemáticas sociais sobre as quais nos debruçamos, vamos observando
como memórias se instituem e circulam, como são apropriadas e se transformam
na experiência social vivida [...].

Os compositores narram memórias de sucesso, de um momento importante,


quando se colocam no ofício de escrever canções, atuando nesse diverso campo da
música, representativo naquele contexto, com experiências edificantes para a ação
dos seus trabalhos, dando sentido para suas histórias.
Alessandro Portelli (1997) considera que é “a subjetividade do expositor que
fornece às fontes o elemento precioso que nenhuma outra fonte possui em medida
igual [...]; a aderência ao fato cede passagem à imaginação, ao simbolismo”.
A “recuperação do vivido” é uma concepção de quem viveu experiências de luta,
no ofício de ser compositor, constituídas pela construção de uma identidade coerente,
embasada em memórias vividas, experiências compartilhadas por uma memória
social, os saberes e as discussões, que conduziram as reflexões diante do narrar-se.
Esse processo da memória subjetiva é significativo, justamente, pela intensidade
que dadas experiências têm para cada um que, ao recordar, reacende as fagulhas
memorativas. Sendo assim “a memória [...] enquanto ela contrai uma multiplicidade
de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percep-
ção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas” (BERGSON, 1999, p. 31).
Durante a realização deste artigo, muitas vezes nos veio a recordação da canção
“Aos amigos do peito”, muito emblemática na memória dos parintinenses; para mim,
a lembrança que traz, é a da infância, da escola, das festas entre amigos. Muitos

91 Compositor natural de Parintins, reside atualmente na cidade de Manaus. Participou de muitos Festivais de
Música ocorridos na cidade de Parintins e em outros lugares do Brasil. Concedeu esta entrevista em 16 de
novembro de 2017.
92 Compositor de toada nascido na cidade de Parintins, participou dos Festivais da Canção (FECAP) na década
de 80. Integrou os grupos musicais: Ajuri, Vento e Proa e Regional Vermelho e Branco entre as décadas
de 80 e 90. Concedeu esta entrevista em 26 de dezembro de 2017.
144

recordam a melodia e a letra, lembram que ela foi uma das canções mais prestigiadas
pelo público no Festival da Canção de Parintins – FECAP93, concorrendo no ano
de 1985, segundo os registros nos jornais da época e fontes sobre o Festival. Eis a
letra cantada pelo compositor, no momento da entrevista:

Amigos que se consideram / No peito tem sempre um lugar / Se ficam, se partem


se esperam / Nem o tempo consegue apagar / Na vida há sempre um jeito / Aos
amigos do peito uma canção dedicar / Se o gosto na música é tudo / Existe um
contudo pra cantarolar / Cantar / cantar / Abre-me o peito / que a felicidade /
Um bom amigo trará / Como um poema belo e tão puro / Eles também virão /
Trazendo paz e felicidade / Aos nossos corações / Quando se têm amigos do peito
/ A luta é o maior prazer / Eles virão com muita certeza / Paz, paz, paz.94

Lembranças são partes das nossas percepções, no caso desta canção rememo-
rada pelo compositor, a letra e a melodia existentes na nossa lembrança, são partes
da relação que estabelecemos com a nossa memória coletiva, e que representam o
lugar de memória, considerando, que a memória é o que nos permitiu estabelecer a
conexão significativa entre os acontecimentos, dando sentido às experiências viven-
ciadas, sendo boas ou ruins.
Meihy (1996, p. 81) nos diz: “a memória é sempre dinâmica, muda e evolui de
época para época”; portanto,

é prudente que seu uso seja relativizado, pois o objeto de análise, no caso, não é
a narrativa, objetivamente falando nem sua relação contextual, mas, sim a inter-
pretação do que ficou (ou não) registrado nas cabeças das pessoas... Quer seja
pelo papel ou pela circunstância que envolve alguma pessoa, a memória ganha
um caráter emblemático, que, contudo, deve ser visto sempre pela ótica social”.

Seguindo a linha de pensamento deste autor, é possível avaliar que o poder


simbólico da canção esteve presente nas ações culturais produzidas pelo evento
FECAP e por isso são memórias de um momento cultural representativo como uma
experiência de sucesso que este compositor protagonizou, sendo, para ele, momentos
memoráveis e especiais.
O pensamento poético do compositor Carlos Portilho e a mensagem transmitida
pela palavra cantada justificam uma visão de mundo, descrita por sua narrativa, con-
siderando que o “papel de representação cultural da canção é muito mais relevante
do que o puro entretenimento” (FARIAS, 2017, p. 177). Ecléa Bosi (1994, p. 81)
nos explica que “se existe uma memória voltada para a ação, feita de hábitos, e outra
simplesmente revive o passado,” nos parece ser essa a memória trazida à tona por
José Carlos Portilho.

93 Cf. MAGALHÃES, Hiana Rodrigues da Silva. “O Festival da Canção de Parintins por meio das narrativas
dos compositores: História, Memória e Identidades 1985-1991”. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
94 “Aos Amigos do Peito” – compositor – José Carlos Portilho – IV FECAP em 1985. Ver anexo da entrevista
concedida por este autor em Magalhães (2019).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 145

Podemos dizer que algumas canções emblemáticas na memória social dos


parintinenses, com relação aos festivais de música na cidade, ocorridos entre 1980
e 1991, representam um todo social na participação cultural, nos eventos significati-
vos, por representarem a luta nesse campo da cultura, por meio da canção. Lembrar
é reconstruir, repensar com imagens e ideias sobre a atualidade as experiências do
passado. A criatividade presente no universo musical é elemento marcante nessa
memória coletiva.
As trocas de experiências têm grande relevância para a memória coletiva deste
compositor. Portanto, todas essas vivências ampliaram as perspectivas musicais que
representam os sentimentos que caracterizam essa personalidade artística, enquanto
pessoa que contribuiu a cultura local da sua cidade.
Experiências vivenciadas estão fortemente gravadas na memória, como sendo
sujeitos daquela ação. Por meio destes vínculos identitários a partir de referenciais
culturais, nas circunstâncias daquele tempo, onde constituem experiências dos pri-
meiros trabalhos autorais. Sobre um desses momentos, Portilho nos relata parte
dessas vivências.

[...] eu tinha terminado a faculdade, passei pra fazer parte da toada, compor toadas,
aí a primeira toada que eu fiz, foi de protesto. Eu pedia eleições “Diretas, Já95”,
naquela época, em 1983. Era a febre nacional [...] “Alô meu povo, quer votar pra
presidente desta nação brasileira, diretas já minha gente, votando pra presidente,
hoje eu me sinto orgulhoso em ser Caprichoso, quem viver verá que este é meu
canto de guerra, desfraldando o azul e branco do campeão desta terra”. Fiz um
pouco temeroso, porque era ditadura, ainda era ditadura, fiz um pouco temeroso
eu trabalhando no Banco do Brasil pior ainda, né? [De] haver uma marcação, mas
eu dei o meu recado, a sorte é que ela não valeu, porque não podia cantar música
política na arena, só podia cantar fora, mas lá fora pegava, porque o Brasil todinho
pedindo Eleições Diretas, e eu lá em Parintins, no boi, também pedindo a minha
[...] fora disso, usávamos a poesia mesmo, muito, a poesia pura, poesia infantil,
muito para o lado infantil, muito pro lado da natureza, não gostava muito desse
negócio de desmatamento, apesar de Amazônia ter um pouco, mas porque eu sabia
que estava nessa febre do desmatamento da Amazônia, não sei o quê, tem, tinha
na época, mas não era tanto, mas eu já entrava nessa seara, eu pegava carona da
mídia geralmente, eu via o que falava mais no momento e embarcava, no contexto
da época, tanto na parte de devastação da Amazônia, como na parte de exaltar a
juventude, a criança, Halley, o cometa, [...] minhas músicas, algumas foram ins-
piradas, mas a maior parte delas não, elas foram pensadas dentro de textos que se
lia e tirava alguma coisa, conclusão, como eu falei de Caminhos Incertos, que eu

95 A ditadura militar já durava 20 anos quando milhões de pessoas em todo o Brasil foram às ruas em 1983/84,
num movimento de massas sem precedentes, exigir a volta das eleições diretas para presidente e o fim do
regime militar. Já forçara a “abertura lenta, gradual e segura” com a campanha da anistia, que resultou na
lei de 1979. Em 1982, nas primeiras eleições diretas para governador, a oposição ganhara em dez estados.
Com as grandes manifestações de 1984, na maior campanha cívica já ocorrida no país, as Diretas-Já, o povo
brasileiro cobrou o direito de escolher seu maior governante. Os comícios pipocaram em diferentes capitais
e grandes cidades do país, incluindo Manaus. Cf: http://memorialdademocracia.com.br/card/dieretas-ja
146

vou te dar, a letra das três, “Amazônia”, “Caminhos Incertos”, “Aos amigos do
Peito” para que você tire suas conclusões daquilo que eu falava naquela época.96

Podemos considerar que a longa travessia da ditadura para a democracia que


acompanha a memória desse tempo delimitou experiências marcantes para o com-
positor, como a participação autoral em construir uma toada, que ele considera ser
de protesto, que trasmitisse sua autonomia e insatisfação durante a fase dificil pelo
qual o contexto nacional estava passando. Bosi (2003) em A Substância social da
memória, nos diz que:

[...]essa força da memória coletiva, trabalhada pela ideologia, sobre a memória


individual do recordador, o que ocorreu mesmo quando este participou e teste-
munhou os fatos e poderia portanto nos dar uma descrição diferenciada e viva.
Parece que há sempre uma narrativa coletiva privilegiada no interior de um mito
ou uma ideologia [...] (BOSI, 2003, p. 17).

O que nos faz compreender as nuances particulares desse pretenso engajamento,


onde o compositor filtrou os principais acontencimentos pertinentes às oscilações
incertas de um possível compositor recém-saído da faculdade, mostrando a comple-
xidade dos acontecimentos representativos para sua memória social.
As relações entre as memórias construídas e a defesa das identidades são ele-
mentos que ligam as estruturas discursivas e narrativas em sintonia com os sistemas
de representação. Chartier (1991, p. 183) nos fala que “estas representações são
matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social”.
Deste modo, percebemos que as experiências, juntamente com suas avalições
tecidas sobre a importância do Festival, foram cruciais enquanto experiência vivida,
cristalizada no grupo e na comunidade que correspondeu participando, cantando essas
canções que representam matrizes importantes dessa memória coletiva.
Segundo Halbwachs (1990, p. 34) para que a memória dos outros nos auxilie é
necessário que existam “pontos de contato” entre uns e outros para que as lembranças
que recordam possam ser reconstruídas sobre um fundamento comum;

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros não basta que eles nos tragam
seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para
que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento
comum (HALBWACHS, 1990, p. 34).

As narrativas memorativas que nos levam a compreender que o objetivo de


narrar diferentes trajetórias de sujeitos sociais ligados ao campo cultural e artístico na
cidade de Parintins, revelam expectativas e intersubjetividades. Assim, as diversidades
musicais que prevaleceram dos festivais de música na cidade, são vertentes estéticas
que balizam a música feita na região amazônica, uma vez que os compositores lem-
bram suas trajetórias de sucesso enraizadas nas experiências do lugar.

96 Entrevista concedida por José Carlos Portilho, compositor parintinense, 16 de novembro 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 147

Paulinho Dú Sagrado, um dos colaboradores deste artigo, nos fala sobre esse
momento de conquistas no campo cultural da cidade:

A década de 80 né... os bares era o grande encontro do parintinense, por exemplo,


o Kactus (bar) final de semana a gente ia expor nossos sentimento através da
música, as nossas mensagens através das grandes construções de Chico Buarque,
de Gil, Caetano, essa galera toda, então a gente expressava assim o sentimento
ou pensamento ideológico de transformação, mas legal porque tudo isso aí... A
leitura, a literatura, e a música elas contribuíram muito para que a gente chegasse
até hoje... absorvesse a ideia, como elas se reuniam, como elas se encontravam,
como eram expostas as ideias através da música, e, isso aí contribuiu muito, muito
mesmo, para que eu absorvesse essas ideias... e fazer o paralelo para as minhas
composições de hoje, né! Então, foi um período, a década de 80 pra mim, foi um
período assim, que eu... manifestei muito bem a poesia, a mensagem através da
poesia, então... os movimentos a gente se reunia no final de semana pra gente
extravasar mesmo, chegar, e cantar, e falar daquilo que a gente sentia, e porra, e
politicamente tudo aquilo que já chegava de forma revoltante, porque a gente via
que era [...] havia um contraste, dentro da sociedade, quer dizer, um grupo menos
privilegiado, outros mais privilegiados, e já a falta de oportunidade daquela época,
e principalmente pra gente, que tentava sobreviver da música, nós não tínhamos
muito espaço...Porque a remuneração era muito pouco, quer dizer, tocava mais a
troco de cachaça mesmo, mas mesmo assim éramos felizes, porque a gente fazia
aquilo que o sentimento e o coração expressava. Mas assim, tudo se evoluiu e outros
membros da época, os amigos cada um tomou seu rumo, eu preferi ficar trilhando
na arte até hoje, e é o que mais, me faz feliz, no mundo no qual eu possa dizer,
que todo esse mundo, cheio de turbilhão aí, eu possa manifestar meu sentimento
seja ele de forma explicita ou de forma... é... ou nas entrelinhas do pensamento.97

Para o compositor Paulinho, as experiências vivenciadas, naquele contexto,


marcam não somente o começo de suas produções musicais, mas trazem memórias
representativas de uma identidade original que buscava valorizar-se como princi-
piante, um jovem buscando encontrar seu lugar num tempo de rebeldia e insatisfação
com tudo que estava acontecendo. Ele não esqueceu também de pontuar as coisas
boas que foram essenciais para sua formação artística, encontros e desencontros de
sociabilidade primordiais para quem estava reivindicando seu espaço e, por isso, a
narrativa mostra a complexidade do acontecimento. Bosi, nos esclarece que:

Quando um acontecimento político mexe com a cabeça de um determinado grupo


social, a memória de cada um de seus membros é afetada pela interpretação que a
ideologia dominante dá desse acontecimento. Portanto, uma das faces da memória
pública tende a permear as consciências individuais (BOSI, 2003, p. 22).

Esse narrar das suas experiências mais significativas, presentes na memória


individual, nos faz entender que, a partir do aprendizado pela música, “substância

97 Paulinho Dú Sagrado. Entrevista concedida 26 de dezembro de 2017.


148

da sua arte”, são percepções que enlaçam muitos fios narrativos importantes, pelos
quais se justificam a força da expressão, no caso dos dois compositores, onde estamos
analisando as experiências de contribuição para a cultura e a arte na cidade de Parin-
tins. Entendemos que estes se reinventam dentro dos vários projetos participativos
onde atuaram, principalmente, nas décadas de 80 e 90, momento crucial para os dois.
A síntese desse processo mostra a imersão nos sentimentos por meio das con-
quistas e aprendizados adquiridos por estes dois compositores que narram suas his-
tórias. De acordo com Lima (2011, p. 187), ao analisar Chartier,

dois tipos de abordagens podem ser identificadas: uma tem como fundamento a
ideia de que a construção das identidades sociais é o resultado da relação de forças
entre representações impostas por quem tem o poder de classificar, bem como,
da capacidade de aceitação ou resistência por parte da comunidade e outra que
considera o recorte social, conferindo crédito à representação que cada grupo faz
de si mesmo, sua capacidade de se unir e fazer reconhecer sua existência.

Estas memórias representam o percurso de uma experiência compartilhada pelos


compositores até os dias atuais. Na entrevista muito significativa e esclarecedora, o
compositor Paulinho Dú Sagrado nos diz sobre a relevância dessas participações em
eventos que, para ele, foram excepcionais.

[...] pintaram os festivais, o FECAP, em 85 no qual eu e o Tony Medeiros, nós


somos os fundadores do Grupo Ajuri, e [em] 1985, nós fomos campeões com a
música Cantiga Tropical, e em 1986 eu já me transferi para outro grupo no qual
também eu sou fundador, que é o Vento e Proa, fomos campeões também, com a
música Canto Akaroara, então, a partir desse momento, começou a criar-se esse
movimento... Começamos a produzir músicas dentro do contexto regional, [...]
comecei a fazer minhas primeiras composições em 1988, surgiu a toada “Morena
Bela”, e, aí eu fui criando gosto pela música, [pela] arte da música para substância
da minha sobrevivência, e até hoje, graças a Deus, eu tenho assim uma afinidade
muito grande com a arte, [...].98

[...] Eu sou feliz naquilo que eu faço, naquilo que eu costumo produzir, porque
para mim, pra minha maior satisfação é ver o povo se identificar com a minha
obra, saber que o Paulinho Dú Sagrado sempre prezou pelo trabalho de qualidade,
trabalhou de alma, ou numa fundamentação que possa ser aproveitado, então, eu
acho muito importante, a gente ter essa preocupação, porque você cria expectati-
vas nas pessoas, sempre, a cada ano, você produz trabalhos de qualidade, então,
eu como compositor que sou, pelo menos considerado pela mídia que é isso que
a mídia publica, então eu tenho essa preocupação sim, de elaborar os projetos
bem elaborados, bem conceituados, acho isso importante, a gente ser avaliado
por aquilo que você produz, e, graças a Deus, eu tenho contribuído muito para a
cultura da minha terra.99

98 Paulinho Dú Sagrado. Entrevista concedida em 26 de dezembro de 2017.


99 Paulinho Dú Sagrado. Entrevista concedida em 26 de dezembro de 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 149

A narrativa acima, do compositor Paulinho, dá exemplos de suas batalhas coti-


dianas, pela manifestação da sua arte, que é a sua composição, representa a tomada
de iniciativas que foram necessárias para firmar-se; sua fala, representa suas vitórias
nos espaços por onde passou, ora e outra, demonstra conflitos, prazeres e, principal-
mente, respeito pela profissão que lhe proveu tudo na vida e a consciência do seu
papel, ao retribuir com a sua arte.
Alessandro Portelli (1996) nos esclarece que a principal característica das fontes
orais é o fato delas nascerem do diálogo e que o entrevistado dificilmente concordará
em reduzir sua vida em mero conjunto de fatos, pois, “narrar já é interpretar”.
O trabalho coletivo relatado com outros colegas do meio são experiências par-
ticipativas no cenário de atuação e sociabilidades culturais adquiridas durante toda
uma vida dedicada ao seu trabalho como compositor. Sua narrativa oral traz indícios
dos valores subjetivos de suas conquistas no campo da toada de Boi.
No caso de Parintins, o mote central é que a maior parte dos compositores da
cidade atua no campo das toadas de Boi-bumbá por representar uma oportunidade
dos compositores mostrarem seus trabalhos, tanto Carlos Portilho, quanto Paulinho
Dú Sagrado, são reconhecidos como compositores que protagonizaram os festivais
da canção na cidade, são nomes representativos quando se trata de composição,
melodia, letra e arranjo músical.
Podemos perceber que as disputas identitárias no processo de redemocratização
brasileira fazem parte de uma realidade em consonâcia com o contexto do país, à
época, e ao situar esse tempo e espaço das duas narrativas percebemos pontos de
confluências entre os dois artistas. Essas memórias não são somente subjetivas, elas
narram o início das mobilizações no processo de afirmação social.
Enquanto um dos nossos colaboradores, Carlos Portilho, fala sobre a saída da
faculdade e que, naquele momento, achou propício escrever sobre movimento das
“Diretas Já”, compor algo, uma vez que todo o país lutava por esse movimento de
mudança, são muitos os sentimentos de querer participar de alguma coisa, ser parte
ou, até mesmo, ser mero coadjuvante da História, entendendo como um longo pro-
cesso de debates e conquistas e incorfomismos; no outro colaborador, Paulinho Dú
Sagrado, na sensibilidade da sua narrativa, percebemos, o sentimento de alguém que
passava por todas as limitações difíceis para um jovem daquele período, a consciên-
cia dos fatos sobre a política nacional e de ter esclarecimento sobre eles, por isso,
a realidade dos fatos, significava transcender por meio da poesia, música e leituras.
Sua faculdade foi a vida e o desejo de manifestar-se pela música, e de ver na música
uma possibilidade de mudar de vida, foi uma ideia que amadureceu com o tempo.
Memórias individuais alimentam-se da memória coletiva e histórica e por isso
incluem elementos mais amplos do que a memória construída pelo indivíduo ou pelo
grupo ao qual pertencem. Em Bosi (1994, p. 54-55.), vimos que “[...] A memória do
indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a
escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívios e os grupos
de referência peculiares a esse indivíduo”. Pois, desta forma, segundo a autora, “Na
maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com
imagens e ideias de hoje, as experiências do passado, “tal como foi” e que se daria no
150

inconsciente de cada sujeito. De maneira que “a lembrança é uma imagem construída


pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações
que povoam nossa consciência atual”.
As reflexões apresentadas neste artigo ressaltam as especificidades das expe-
riências vivenciadas por estes dois compositores, que representam através das narra-
tivas, individuais e únicas, e ao mesmo tempo coletivas, a construção identitária de
pertencimento e participação na cidade, tecidas a partir das práticas de sociabilidades
no cenário cultural, além, de nos fazer pensar sobre seus papéis.
Vimos que o contexto histórico, sobre o momento do Brasil, na década de 80,
são pontos condutores importantes para entendermos as confluências com o cenário
cultural também na região Norte.
A luta política e a manifestação artística destes compositores na cidade e a parti-
cipação em eventos musicais, como em festivais, são expressões de um engajamento
estético e comprometimento com a arte, representando uma consciência sobre seus
papeis de atuação em muitos campos e especialmente por pertencerem ao campo de
compositores de toada de Boi-bumbá, revelando uma identidade musical presente
nos meios culturais onde atuam, a cidade de Parintins e o estado do Amazonas. Desta
maneira, vimos que, “a construção de uma identidade é um fenômeno que se produz
em referência aos critérios de aceitabilidade, e que se faz por meio da negociação
direta com os outros”, assim, “a memória” se torna “um elemento constituinte do
sentimento de identidade” (POLLACK, 1992, p. 200-212).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 151

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PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre


ética na história oral. Projeto História, Revista do Programa de Estudos pós-gra-
duados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, v. 15, p.
13-49, 1997.

Fontes Orais
Paulo Pimentel da Silva (Paulinho Dú Sagrado)
Data de nascimento: 12 de novembro de 1962
Profissão: músico e compositor
Gravação: gravador digital
Entrevista realizada no Bar Comunas em Parintins.
Data da Entrevista: 26 de dezembro de 2017

José Carlos Portilho de Jesus


Data de Nascimento: 14 de setembro de 1952
Gravação: gravador digital
Profissão: Funcionário aposentado do Banco do Brasil, Cantor /Compositor
Entrevista realizada na residência do colaborador em Manaus
Data da Entrevista: 16 de novembro de 2017
ÍNDICE REMISSIVO

A
Afrorreligiões 16, 21

B
Barracões 97, 105, 107
Bispo 41, 75
Bispos 31
Boi-bumbá 65, 132, 142, 149, 150

C
Catedral 59, 60, 61, 62, 63, 133, 137
Catolicismo 21, 31, 41, 48, 99, 106
Centro-oeste 29

F
Feminismo 72, 73, 74
Festas 17, 21, 22, 41, 48, 49, 99, 102, 103, 106, 127, 135, 143
Festivais da canção 143, 149
Filhas de Davi 105
Fotografia 62

G
Garota Camarão 49

H
História cultural 120
História da cidade 131, 135, 137, 138
História da educação 70
História de Parintins 133, 134
História de vida 90
História indígena 111, 158
História local 11, 13, 117, 121, 123, 158
154

História natural 120


História oral 7, 8, 12, 13, 15, 26, 27, 35, 36, 41, 42, 50, 67, 68, 69, 127, 130,
131, 141, 157, 158, 159
História pessoal 135

I
Igreja Católica 20, 21, 25, 26, 31, 33, 34, 41, 48, 49, 75, 133
Imaterial 100, 107, 117, 128, 132
Imigração 25, 44, 45
Indígenas 12, 22, 31, 113, 115, 118, 123, 141
IPHAN 111, 121, 128, 129

J
João Melo 56, 59, 62, 63, 136

M
Médico 35, 56, 57, 58
Memória coletiva 63, 130, 144, 145, 146, 149
Mercado de trabalho 87, 89, 90, 91
Mercado Municipal 132, 133, 137
Migração 55, 83, 85, 86, 87, 88, 93
Missionários 25, 26, 29, 31, 32, 33, 36, 60
Música popular 141, 142

N
Nordeste 12, 29, 56
Nossa Senhora do Carmo 75, 76, 133, 137

P
Padre 21, 33, 34, 133
Padres 31, 33, 75
Pastorinhas natalinas 97, 98, 102, 104, 107
Pastor Lessa 32, 56, 58
Patrimônio arqueológico 123
Patrimônio cultural 97, 111, 128, 129, 132
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 155

Patrimônio edificado 8, 13, 127


Patrimônio histórico 111, 121, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 137, 138
Pobreza 57, 58, 103
Professoras 70, 77
Professores 75, 127, 130, 131

R
Região amazônica 43, 46, 48, 83, 142, 146
Religião 16, 20, 21, 48, 58, 60, 70, 102
Religiosidade 16, 25, 31, 99, 102, 104, 107

S
São Benedito 65, 133
São Sebastião 18, 20, 21, 48, 103
Saúde 12, 35, 57, 58, 89, 90, 95, 104
Sítios arqueológicos 112, 113, 115, 120, 121, 122, 123, 127

T
Tempo presente 13, 42, 52, 130
TPI 113, 120, 123

V
Valéria 132, 133
Violência 34, 78, 93
SOBRE OS AUTORES
César Aquino Bezerra (Organizador)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas (PPGH-UFAM) e licenciado em História pela Universidade do Estado
do Amazonas (CESP-UEA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
do Amazonas (FAPEAM). Membro do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas
(GEHA). Tem experiência em pesquisa com História do Brasil República, Pós-Abo-
lição, Relações Raciais, Relações de Gênero, História do Amazonas, Protestantismo
na Amazônia e História Oral.

Everton Dorzane Vieira (Organizador)


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia
da Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA-UFAM) e licenciado em História
pela Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA). Bolsista da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Membro do Grupo de
Estudos Históricos do Amazonas (GEHA). Tem experiência em História do Brasil
República, Pós-Abolição, Relações Raciais, História Oral e História da Amazônia.

Hiana Rodrigues da Silva Magalhães


Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM),
pós-graduada em Docência do Ensino Superior pela Faculdade IDAAM e graduada
em História pela Universidade Estadual do Amazonas (CESP-UEA). Foi contemplada
em sexto lugar no Programa Cultura Criativa /Lei Aldir Blanc/Prêmio Encontro das
Artes para projeto artístico-culturais e de economia criativa e solidariedade no inte-
rior do Amazonas, sendo premiada na modalidade Memória e Pesquisa Histórica.

Iraildes Caldas Torres


Doutora em Antropologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e Pós-Doutorado na Université Lumiére de Lyon 2, na França. Professora associada
da Universidade Federal do Amazonas, coordenadora do Programa de Pós-Gradua-
ção Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA-UFAM) e do Grupo de Estudo,
Pesquisa e Observatório Social (GEPOS). Possui experiência nas áreas de Socio-
logia, Antropologia, Etnologia Indígena e Serviço Social atuando principalmente
nos temas de gênero e manifestações simbólicas; trabalho, movimentos e práticas
sociais na Amazônia.

João Marinho da Rocha


Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas
(PPGSCA-UFAM). Professor da Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA).
Co-Coordenador do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA). Desenvolve
atividades de pesquisa sobre processos de construção de Identidades e territorialidades
158

junto a comunidades tradicionais e não tradicionais da Amazônia, com destaque para


as comunidades quilombolas do Rio Andirá, fronteira Amazonas/Pará.

Jucimara Carvalho da Silva


Mestranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia
(PPGSCA) e Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). É membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social (GEPOS).

Márcia Gabrielle Ribeiro Silva


Doutoranda em História e mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM). Graduada em
Licenciatura em História pela Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA).
Membro do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA). Tem experiência
de pesquisa nas áreas de História, Cultura africana e afro-brasileira, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: Cidades e Culturas Urbanas, Movimentos Sociais,
Memória e História Oral.

Michel Carvalho Machado


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural no Museu
Paraense Emílio Goeldi (PPGDS-MPEG) e graduado em Licenciatura em História
pela Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA), atuou como Professor
de História na educação básica. É membro do grupo História Indígena e do Indi-
genismo na Amazônia (HINDIA). Tem experiência na área de História, atuando
principalmente nos seguintes temas: patrimônio, história local, mapeamento, sítios
e vestígios arqueológicos.

Patrícia Regina de Lima Silva


Doutoranda e Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas
(PPGH-UFAM). Licenciada em História pela Universidade do Estado do Amazonas
(CESP-UEA). É professora de História da Rede Pública do Amazonas. Bolsista Capes.
Membro do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas (GEHA). Tem experiência
de pesquisa nas áreas de História, Migrações internas, Movimentos Sociais, Cidades,
Ensino de História, Memória e História Oral.

Rodrigo Tavares de Souza


Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM) e graduado em Licenciatura em
História pela Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA). Bolsista FAPEAM.

Roger Kenned Repolho de Oliveira (Organizador)


Mestrando do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura da Amazônia da
Universidade Federal do Amazonas (PPGSCA-UFAM) e licenciado em História pela
Universidade do Estado do Amazonas (CESP-UEA). Membro do Grupo de Estudos
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 159

Históricos do Amazonas (GEHA). Tem experiência na área de História, com ênfase


em História das relações de Gênero, História Oral e memória.

Suena Santarém Loureiro


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas (PPGH/UFAM) e licenciada em História pela Universidade do Estado do
Amazonas (CESP-UEA). Professora de História da Secretaria de Estado de Educação
do Amazonas – SEDUC/AM.
SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5 | 12 | 16 | 18
Arial 7,5 | 8 | 9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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