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Riode Um
Histórias
Conexões entre memória, cultura e patrimônio
no Baixo Amazonas
César Aquino Bezerra
Everton Dorzane Vieira
Roger Kenned Repolho de Oliveira
(Organizadores)
UM RIO DE HISTÓRIAS:
conexões entre memória, cultura e
patrimônio no Baixo Amazonas
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Diagramadores e Designers da Editora CRV
Revisão: Analistas de Escrita e Artes da Editora CRV
R585
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-0340-2
ISBN Físico 978-65-251-0339-6
DOI 10.24824/978652510339.6
1. História 2. Memória 3. Cultura 4. Patrimônio I. Bezerra, César Aquino. org. II. Vieira,
Everton Dorzane. org. III. Oliveira, Roger Kenned Repolho de. org. IV. Título V. Série.
2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
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Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
À MARGEM DO AMAZONAS.......................................................................... 9
César Aquino Bezerra
Everton Dorzane Vieira
Roger Kenned Repolho de Oliveira
PREFÁCIO...................................................................................................... 11
João Marinho da Rocha
REFERÊNCIA
RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do
patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, Niterói, v. 11, n. 22, 2007, p. 5-30.
ESPAÇOS DE AXÉ: terreiros afroindígenas
em Parintins-AM (1980-2020)1
Márcia Gabrielle Ribeiro Silva
Considerações iniciais
Pretende-se trazer para escrita o terreiro e a cidade, pensando estes como luga-
res simbólicos de pertencimento. Os lugares de uso comum, portanto, são espaços
fundamentais para a manutenção da prática religiosa dos umbandistas em Parintins.
Esses lugares em algum momento é o sagrado destes praticantes, que entre oferen-
das e saudações deixam transparecer que existem religiões de matriz africanas na
cidade. O povo de santo possui uma ligação muito forte de pertença identitária com
tais espaços. Tais laços são comumente tensionados nos “arquivos de memória” que
informam conflitos entre “os estabelecidos e os de fora” (ROCHA, 2019, p. 326).
Estes lugares simbólicos tem a função de manter o axé, ou seja, fazer crescer
o conhecimento que harmoniza as forças da natureza, como os do mundo invisível
e visível (SANTOS, 2019).
Para tanto este estudo adota a História Oral como metodologia privilegiada para
a produção de fontes e elaboração da pesquisa. A pesquisa com História Oral articula-
-se com o campo da história antropológica, pois compreende-se que é preciso atribuir
ao fenômeno investigado um olhar capaz de valorizar a sua dinâmica e pluralidade.
“A história oral e as memórias, pois, não nos oferecem um esquema de expe-
riências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas reais e ima-
ginárias” (PORTELLI, 1996, p. 8). Estas possibilidades de apresentar experiências
e histórias de vidas é um ponto de partida para o fazer-se das religiões afroindígenas
na cidade de Parintins, são histórias de mães de santos e de terreiros que marcam
resistências de culturas que se encontram na Amazônia, dando um outro olhar para
raízes históricas que aqui passaram e por muitas vezes fixaram territórios.
O fazer-se histórico dos terreiros está relacionado à dinâmica social, espacial e
cultural no qual está inserido. Com efeito, a sua consolidação nesse campo se relaciona
com dimensões vividas do divino. Dimensões sociais do “sagrado”, nessa manifestação
justificam a escolha do espaço como um ponto primoroso. Uma parte no mundo onde o
indivíduo religioso se sente orientado para se comunicar com seus deuses, articulando aí
seu território de memória e espaço social de produção humana como sujeito histórico.
1 Este artigo é um recorte de minha dissertação de mestrado intitulada “Terreiros de memórias afroindígenas:
experiências da umbanda em Parintins/AM (1983-2019)”.
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A cultura negra vai se reelaborando, seja no corpo, seja música, bem como na
própria prática da religião. Mas quando falamos em umbanda na cidade de Parintins,
nos deparamos com um hibridismo, onde várias culturas se encontram. E onde a
cultura negra e indígena se destacam.
Quando faço referência aos cultos de origem africana, estes podem ser obser-
vados como cultos aos orixás nas giras, sejam este na casa de mãe Bena, ou na casa
de mãe Cintia.
São dimensões de um estilo negro como Leopold Senghor (2011) tanto fala,
mas na Amazônia, este estilo já não é tão negro e sim afroindígena. Os terreiros aqui
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 17
são tratados como diria Raquel Ronique (1992) ‘espaços vivos’. Assim sendo, para
Muniz Sodré (2002, p. 75):
O negro no Brasil, com suas organizações sociais desfeitas pelo sistema escrava-
gista, recostruir as linhagens era um ato político de repatrimonialização. O culto
aos ancestrais de linhagem (egun) e dos princípios cósmicos originários (orixás)
ensejava a criação de um grupo patrimonial (logo de um ‘território’ com suas
aparências materiais e simbólicas, o terreiro) que permitia relações de solidarie-
dade no interior da comunidade negra e também um jogo capaz de comportar a
sedução pelo sagrado, de elementos brancos da sociedade global.
Terreiro na rua
A presente imagem foi tirada no dia 20 de janeiro ano de 2017, durante a festa
de Oxóssi no Centro de Umbanda Mãe Mariana, que tem como zeladora mãe Cintia,
nela percebemos a mãe de santo rodeada de seus filhos de santo, bem como a socie-
dade também.
Este foi o momento que antecede a derrubada do mastro, onde a festa é voltada para
a prática religiosa, a gira começa em meio à rua, e todos ficam com os olhares atentos
ao ritual. É então que os primeiros pontos começam.
O presente ponto é um dos pontos que só é cantado durante a festa e por várias
vezes. Através da letra podemos observar que as promessas já foram pagas mais um
ano, e as fitas servem para que se renovem as promessas para o ano seguinte. A festa
ela é renovada durante a que está se encerrando.
É neste momento que eu afirmo que de fato a gira começou na rua, são quando os
pontos cantados começam, é um terreiro que é formado naquele momento bem diante
dos olhos da sociedade. Seja este apenas para agradecimento, a rua vira uma grande
gira. O axé é carregado por cada médium presente, então o espaço sagrado pode ser
formado em qualquer lugar, podendo ser na mata, no rio e também na rua. Pois como
já diz o ponto cantado, ‘vou fé do meu senhor... eu vou..’
É neste momento que concordo quando Muniz Sodré (2002) enfatiza os mais
diversos tipos de forças, sejam essas sobrenaturais e naturais, mais o ponto em que se
quer chegar é esta força que move os ‘espaço’, cito os terreiros e o próprio corpo, o
corpo como espaço de força, neste caso temos o tão famoso ‘axé’ um dos elementos
mais importantes e conhecidos nos terreiros e centros, o axé que ao mesmo tempo que
gera espaço dentro do terreiro como no interior de cada membro.
Outro momento que vamos evidenciar o terreiro como a outra cidade, é durante a
festa de São Cosme e Damião. Onde o terreiro também promove e é cheio de visitantes de
todas as idades. O terreiro vai se encontrando com a cidade em laços de fé e solidariedade.
A presente imagem foi tirada no dia 27 de setembro de 2018, no terreiro São
Sebastião, que tem como zeladora mãe Bena de Oxóssi, com a ajuda de seus familiares,
estes biológicos e de santo, bem como amigos promoveram para as crianças. A festa
era dedicada para as crianças, mas todos independentes de idade também participavam
da culminância da festa.
Um palco foi montado, nele foram apresentadas várias brincadeiras, o primeiro
momento foi os netos de sangue de mãe Bena que tomaram de conta da festa, em seguida
um palhaço tomou de conta promovendo brincadeiras com as crianças presentes.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 19
Na mesa ao centro está uma imagem dos erês, estes são as crianças, bem como
a imagem de Cosme e Damião, a festa é dedica às crianças. O tapete ao centro com
as guloseimas é para todos, principalmente para as crianças fantasiadas. Estes podem
chegar e se sentar ao lado e comer o que está servida no tapete.
Após várias brincadeiras e intervalos de guloseimas, o toque do tambor vai
soando entre as crianças, é chegada a hora das criancinhas descerem para fazerem
parte da festa. Assim como diz a letra do ponto, ‘as criancinhas já vão descer’.
É neste encontro de solidariedade que o terreiro se encontra, que vão marcando
essa outra cidade dentro da cidade. É encantado em meio às pessoas, marcando a
pluralidade de espaço em meios tensões e laços sociais de ligação com o outro. Seja
pela própria prática religiosa como também pelo gesto de compartilhar as comidas
e guloseimas com o próximo.
Muniz Sodré (2002) destaca a resistência que a cidade tem com as religiões
de matrizes africanas. O mesmo ressalta a posição do lugar social em que se inseri
o terreiro dentro da cidade, e de que forma a identidade desses adeptos das reli-
giões de matrizes africanas se confirma diante dessa resistência em que se depara.
O autor busca compreender o espaço (sagrado) e como ele foi ao longo do tempo se
modernizando, ou seja, foi sofrendo influência da sociedade. E como esse processo
de modernização, influenciou no crescimento das religiões africanas. Ora a religião
apareceu sofrendo resistência da sociedade, ora essa sociedade ajuda os adeptos na
construção de sua identidade religiosa, mesmo que seja muitas vezes ‘sem querer’.
Cabe refletir em cima dessa tensão que existe entre o terreiro e a cidade, no qual o
autor apresenta, destacando as mudanças e resistências.
Homi Bhabha em “Locais da Cultura” na obra o “Local de Cultura”(1998), um
dos pontos ao qual o autor faz referência inicial é a fronteira, esta que é o lugar do
qual começa a se fazer presente, não é o que divide e separa duas coisas, mas o que
reúne e mistura. Este trabalho fronteiro da cultura exige um encontro com o novo,
pois é a partir de então que surge uma nova perspectiva de se falar das minorias,
ou seja, dessas histórias alternativas dos excluídos como o mesmo pontua (p. 25).
Compreender essa diferença cultural como produção de identidades é um ponto
importante para se entender este local da cultura.
É nesta perspectiva que entendemos a religião umbandista na cidade de Parin-
tins. Assim como o autor não nos atemos na necessidade de se fazer conceitos, mas
sim entender e explorar essas culturas aqui apresentadas pela peculiaridade que é a
religião no Amazonas.
Quando questionadas as mães de santo sobre essa ligação da umbanda com
outras culturas e religiões, as mesmas mencionam que:
Existe uma ligação, que é chamada de sincretismo religioso né. Os próprios san-
tos da... igreja católica, são os santos com outros nomes dentro da umbanda,
mas são as mesmas pessoas vamos dizer assim, a gente cultua né. Como, olha...
agora a gente tá em plena festa de Oxóssi né, que é o São Sebastião, nós tam-
bém festejamos Nossa Senhora da Conceição, que é dona Mariana, Iemanjá na
umbanda. E entre outros santos também que fazem parte da religião católica
(Mãe Cintia, 2015).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 21
Bom... eu... não tenho assim né...por exemplo tenho um envolvimento muito na
igreja católica. não é uma questão de envolvimento, eu sou católica! Querendo
ou não o padre não vai me expulsar de lá, porque eu sou filha de Deus né. E os
meus filhos todos passaram, são batizados, meus filhos tem a primeira comunhão,
tem... fizeram a crisma todos eles entendeu? Eu sou casada na igreja católica, eu
sou casada na civil, sou casada na igreja católica, eu não tenho bem uma ligação
dentro do terreiro. Terreiro/ Igreja entendeu isso eu não tenho. Mas eu Bena pessoa
tenho, com certeza! (Mãe Bena, 2014).
Considerações finais
A luta diária e constante pela territorialidade geofísica, geopolítica, e principal-
mente cultural suscita a presença das afrorreligiões nas cidades. Buscou-se um olhar
nas relações do terreiro com a cidade, estes nas festas de terreiros e nos espaços de
axé. Desta forma Maria Antonieta Antonacci (2013) atenta para o pensar sobre os
terreiros na cidade, e como fazer isso, na medida em que estes corpos negros falam
através das danças, das tradições cantadas que inventam a si mesmos e a uma África
no Brasil. A identidade e a vivência classificam o espaço que se pode ter dentro da
cidade. Logo, o corpo negro, este corpo que é espaço de cultura, que teve sua história
marginalizada, tem muitos de seus terreiros invisibilizados em nome do progresso. É
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nesta perspectiva que se observou as mais diversas faces na relação do terreiro com
o espaço social da rua e da cidade através das festas.
Outro autor que nos faz refletir sobre este axé que movimenta, que constrói
e reconstrói é Amailton Magno Azevedo (2017), no qual traz uma contribuição
fundamental pelo conceito de micro-áfricas, estas como chave de interpretação de
expressões culturais negras. A partir desse conceito reconstrói e revaloriza memórias,
territórios e vivências dos negros e negras. Pensando este conceito para Parintins,
onde a população não é apenas negra, mas indígena. São terreiros de umbanda afroin-
dígenas que resistem dentro da cidade.
Articulando a problematização de imagens e de entrevistas, constatou-se que a
prática da umbanda e do candomblé nesse meio une negros, brancos e indígenas em
laços históricos de fé e relação com os encantados.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 23
REFERÊNCIAS
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São
Paulo: Educ, 2013.
ROCHA, João Marinho da. Das sementes aos troncos: história do movimento qui-
lombola do rio Andirá. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) Uni-
versidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
Fontes
COSTA, Cintia Correa. Cintia Correa Costa. [Jan. 2015]. Entrevistadora: Márcia
Gabrielle Ribeiro Silva: Entrevista concedida em sua residência, 2015.
SANTOS, Benedita Pinto dos. Benedita Pinto dos Santos. [Dez. 2014]. Entrevista-
dora: Márcia Gabrielle Ribeiro Silva: Entrevista concedida em sua residência, 2014.
O PROTESTANTISMO NO INTERIOR
DO AMAZONAS: a trajetória do missionário
Clinton Thomas e a Igreja de Cristo em Urucará
César Aquino Bezerra
Introdução
O Brasil recebeu oficialmente o protestantismo no século XIX, identificado
em dois grupos: o primeiro, de imigração ou de colonização, tinha origem nos colo-
nos ingleses, alemães e confederados norte-americanos, caracterizado pela falta de
interesse em fazer proselitismo entre os brasileiros; o segundo, de missão, era de
procedência norte-americana, com missionários dedicados à conversão de almas fora
dos grupos étnicos (MENDONÇA, 2005). Seja por imigração ou missão, até o início
do século XX as principais denominações protestantes já estavam atuando no país.
Na Amazônia, a inserção protestante deu-se no período do pós-Cabanagem
e do auge da economia gomífera, com consequente aumento do fluxo migratório,
crescimento demográfico e desenvolvimento das capitais Belém e Manaus. Através
dos registros dos primeiros missionários, de 1839 em diante, podemos desvelar suas
estratégias de evangelização associadas ao projeto de civilização, pautados nos ideais
de progresso norte-americano (OLIVEIRA; PINTO, 2017). Nesse cenário, o episco-
pado católico percebia a expansão do novo movimento religioso como uma ameaça
à consolidação da sua hegemonia e até como um perigo geopolítico, alertando que
a presença dos estrangeiros e sua outra forma de cristianismo prejudicava a integri-
dade do território nacional e, por isso, não podiam ser tolerados (MACIEL, 2014;
LARANJEIRA, 2017; OLIVEIRA; PINTO, 2017).
Segundo Oliveira e Pinto (2017, p. 106), “os primeiros missionários protestantes
que fizeram parte do projeto de propaganda protestante na Amazônia prepararam as
bases para o estabelecimento das primeiras igrejas evangélicas na região”. Até as
primeiras décadas do século XX, principalmente devido a missionários norte-ameri-
canos, missões e igrejas metodistas, anglicanas, batistas, presbiterianas, adventistas
e pentecostais fixaram-se ao longo dos rios, de Belém a Manaus (PANTOJA, 2011;
CARVALHO, 2015; LARANJEIRA, 2017; TORRES NETO, 2019). Nota-se que
a influência norte-americana na religiosidade protestante brasileira, bem como na
amazônica, “tem uma duração que excede os acontecimentos conjunturais” (HUFF
JÚNIOR, 2008, p. 59). Concomitantemente, a Igreja Católica, procurou garan-
tir junto aos fiéis amazônidas a hegemonia das doutrinas do cristianismo romano
(MACIEL, 2014), como parece o caso da região do Médio e Baixo Amazonas na
segunda metade do século XX (CERQUA, 2009; SILVA, 2018).
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2 Em Bezerra (2020) e Bezerra e Silva (2020), discutimos a constituição de outras fontes de nosso projeto
de pesquisa, incluindo a prática do arquivar da vida realizado pela família Thomas e os documentos oficiais
da Igreja de Cristo.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 27
conflitos, como aliás, pode ser a trajetória de Clinton Thomas. De acordo com Huff
Júnior (2008, p. 60), o mesmo aplica-se ao campo religioso: “Memórias e identidades
religiosas são, por isso, também disputadas em meio a conflitos sociais entre grupos
políticos diversos”.
Através da História Oral, adentramos nas memórias dos nossos colaboradores,
participantes da história de Clinton Thomas, realizando entrevistas, que ampliam a
percepção histórica, e permitem uma nova perspectiva. Conforme Alberti (2014), a
entrevista nasce da interação entre o entrevistado e o entrevistador, e pela narração
aquele transmite o acontecimento que viveu. Assim, quando conta suas experiên-
cias, transforma-as em linguagem, e dá forma ao que tomaremos como uma fonte
oral. Para Portelli (2010, p. 19), “a narração oral da história só toma forma em um
encontro pessoal causado pela pesquisa de campo”. É apenas quando o historiador
vai à sua fonte, e abre-se ao diálogo, que aquilo que está guardado na memória será
relembrado, organizado e narrado. Com as provocações do entrevistador, o narrador
pode explorar setores e aspectos da sua experiência antes mantidos longe.
Para não cairmos na escrita de um texto laudatório sobre um missionário estran-
geiro, devemos evitar o equívoco de considerar memória e história como sinônimas;
Alberti (2014, p. 158) reitera que não podemos conceber o relato como a própria
“História”, ou seja, tomarmos a entrevista como uma “revelação do real”. Como
fonte, a entrevista precisa ser interpretada e analisada: persiste a necessidade de uma
reconstrução crítica e não somente a restauração de memórias. Portanto, é necessá-
rio atenção ao papel do historiador. Deste modo, ainda que sejamos devedores da
mediação da história oral, definida por Gattaz, Meihy e Seawright (2019, p. 13) como
“gesto empático”, esta “não prescinde, é claro, da análise, dos questionamentos”.
Considerando a teoria historiográfica e metodológica envolvendo história e
memória, e lançando-nos ao trabalho em campo, realizamos entrevistas com con-
temporâneos de Clinton Thomas, as quais nos permitirão identificar as memórias
sobre as atividades da família Thomas no Amazonas (BEZERRA, 2020; BEZERRA;
SILVA, 2020). Na tessitura desse texto, estaremos em diálogo com as memórias de
três indivíduos: Thomas “Tomé” Joel Thomas, nascido em 11 de janeiro de 1964,
norte-americano, casado, aposentado, terceiro filho de Clinton Thomas; Maria Auxi-
liadora da Costa Vieira, nascida em 24 de janeiro de 1935, brasileira, viúva, aposen-
tada, foi apresentada pelos primeiros contatos como a fiel viva mais antiga da Igreja
de Cristo em Urucará; e Renato Braga Vieira, nascido em 06 de janeiro de 1948,
brasileiro, casado, aposentado, trabalhou com a família Thomas, como marceneiro
e outros serviços manuais.
Se antes indivíduos como os nossos colaboradores não encontraram espaço em
produções oficiais, a História Oral ao consolidar-se no estudo de questões da história
recente da Amazônia, produzindo conhecimento acadêmico como contribuição para
o desenvolvimento do interior do país (SILVA, 2016), abre caminhos para apreender
os processos históricos, sociais e culturais envolvidos na trajetória de Clinton Tho-
mas, como uma das possibilidades que procuram ouvir as vozes das comunidades
amazônicas e estudar suas próprias narrativas.
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9 AGOSTINHO JÚNIOR, Pedro. Esboço da presença dos três principais ramos do Movimento de Restauração
no Brasil. Movimento de Restauração. Publicado em: 14 abr. 2008. Acesso e cópia salva em: 29 maio 2018.
10 UM breve histórico sobre Lloyd David Sanders. Movimento de Restauração. Publicado em: 12 fev. 2009.
Acesso e cópia salva em: 17 out. 2018.
11 NUMBER of Stone-Campbell Churches and Adherents Worldwide 2017 (alphabetically by country). World
Convention. Acesso e cópia salva em: 16 out. 2018.
12 O MENSAGEIRO DAS IGREJAS DE CRISTO, abril a julho/1998. Acervo pessoal/GEHA.
13 Thomas “Tomé” Joel Thomas, entrevista realizada em 19 de agosto de 2017, em Urucará/AM.
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Num navio que chamava Barão de Cametá, fazia a linha [...] eles trouxeram
muito camburão, material, essas coisas... contavam né, porque eu não vi, pessoal
falavam até que a gente devia era para guerrear por aqui [risos]. Porque os Esta-
dos Unidos é um país que aqui, ali, tá se metendo em guerra, né. [...] o pessoal
falava, ignorância.18
Uma vez que apareceu, um pessoal por aqui, falando do Evangelho, da Bíblia,
não era do Evangelho, como eles diziam, falando da Bíblia, e o pai dele disse
que gostou, abraçou muito e depois ele falava pro o filho, que ia chegar um dia,
umas pessoas aqui, que iam falar da Bíblia. Ele falava, o seu Arthur. Ele foi o
primeiro parece que aceitou.20
chegado com o padre, não era assim uma pessoa que ficava implicando com ele né,
padre com pastor”, sustentando a narrativa das relações amistosas entre os religiosos.24
No momento de nosso encontro, Dona Maria Auxiliadora Vieira era a fiel mais
antiga da Igreja de Cristo em Urucará. Ela não começou a congregar nos primeiros
cultos, mas sobre sua experiência de convertida ao protestantismo em um ambiente
católico, seu processo de construção de memória registra a reação familiar: “o meu
pai, ‘não minha filha, você escolheu, é sua decisão’. Depois, eu convidava ele, ele ia,
mas ele nunca aceitou, era muito católico. Nós éramos católicos. Carlos [seu esposo]
era, a gente era membro de um apostolado”.25 Sua narrativa confirma Mendonça
(2005), reafirmando que a conversão protestante implica ao indivíduo não apenas uma
vida devota, mas também um reajuste a um outro padrão moral, ético e ideológico:
Faziam crítica da gente, que agora não vão mais dançar, não vão mais pra festa,
[...] Naquela época, né, tinha aquelas festinha, a gente ia se divertir, mas depois
a gente deixou também. Muita violência, né, matavam por aí, mesmo ia se afas-
tando. Mas, xingavam a gente, ‘olha, são crente’, falavam imoralidade pra gente,
‘ah, vão ficando por aí’, então, ‘vão, lá, pra vocês verem como é bom a palavra
de Deus, a gente aprender’. A gente vive cego mesmo, né, agora não, a gente não
conhecia nem a cor de uma Bíblia. Eu vim conhecer depois de eu aceitar a Jesus,
pastor deu a Bíblia para nós, mas antes disso, não conhecia a cor de uma Bíblia
não. Mas graças a Deus, ele esteve por aqui, e tirou a gente, chamou pra Jesus.26
“Então quando eles chegaram aqui, ele era o médico daqui da cidade, médico bom,
muito bom, se ele aplicasse um remédio pra pessoa podia dizer, ia ficar bom mesmo”.
Portanto, “era gente todo dia ali, ó, na fila, e ele atendendo”.29
Questionado sobre possíveis conflitos entre o missionário e o poder público,
Tomé Thomas atesta que as autoridades da cidade apoiavam o trabalho médico do
pastor, “porque todo mundo precisava dele. Se ele doava o tempo dele, ninguém
ia empatar ele, né? [...] Tanto faz prefeito, policial, todo mundo confiava nele, no
trabalho dele”, desvelando uma legitimação de Clinton Thomas através da atuação
na saúde.30 No entanto, apesar do aparente apoio, a atividade na área médica, que
forneceu legitimação à presença de Clinton Thomas em Urucará, bem como garantiu
sua representação no imaginário da cidade, não parece ter acontecido sem tensões.
Os atendimentos médicos do norte-americano completavam uma lacuna nas relações
de poder, o que possivelmente não passou despercebido dos poderes estabelecidos.
Ainda que o processo de construção da memória de Tomé Thomas não forneça
detalhes, é possível apreender as tensões pela presença e atuação do missionário:
“Sempre tem, a diferença de quem está certo ou errado. [...] Mas, se você precisa [da]
ajuda de alguém, você não vai brigar com aquela pessoa”. Dessa forma, o missionário
“era aceito, porque ele ajudava em outras áreas, além da igreja”, com um trabalho
que alcançava “a comunidade em geral, tanto faz católico ou da Igreja de Cristo”.31
As possíveis tensões nos permitem pensar como estruturam-se as “relações de poder
pela construção e disputa de espaço religioso na Amazônia, isto, outrossim, com o
uso de estratégia de ação social” (TORRES NETO, 2019, p. 50), analisada à luz da
trajetória de Clinton Thomas.
Quanto às áreas em que dona Phyllis Thomas atuava, Tomé Thomas relata que
sua mãe “tinha hobbies, né, de fazer costura, com grupos de mulheres, tecido de
metro e meio de tapete, assim, pra conversar e ter algum objeto pra fazer as coisas,
né”. Também ensinava a língua inglesa, “na escola pública e particular”. Quanto à sua
atuação na igreja, Tomé afirma que “ela tinha as partes, né, que ela trabalhava mais
com as senhoras, e ele com os homens”.32 Como uma ferramenta útil para acessar
outros pontos de vista, a história oral também propicia a “compreensão das especifi-
cidades das experiências femininas em diferentes contextos” (EVANGELISTA, 2019,
p. 99). Portanto, qual o lugar da mulher no movimento protestante? E nas ações
sociais? Nesse sentido, podemos questionar qual o papel desempenhado por Phyllis
Thomas e a (in)visibilidade de outras mulheres nesses ambientes tão generificados.
Após trinta anos em Urucará, Clinton e Phyllis Thomas retornaram definiti-
vamente aos Estados Unidos em 1996, aposentando-se das atividades missionárias.
O pioneirismo da família Thomas e da Igreja de Cristo em Urucará, bem como o
crescimento das igrejas evangélicas no município, refletem-se nos números oficiais.
Segundo o IBGE (2010), 4.052 pessoas em Urucará se declaravam como evangéli-
cos, ou seja, a cidade possuía um quarto de população evangélica. A realidade das
Considerações finais
Ao investigar a trajetória de um missionário norte-americano e da primeira igreja
protestante em uma cidade do interior do Amazonas, inserimo-nos no universo de
pesquisas sobre a presença protestante na Amazônia, bem como procuramos instigar
pesquisadores para analisar a trajetória da Igreja de Cristo no Brasil, movimento sep-
tuagenário que parece não ter despertado ainda interesse acadêmico. Nossa pesquisa
não se propõe a exaltar um personagem histórico estrangeiro, em uma recuperação
de antigos discursos construídos sobre a Amazônia, nem a ser uma hagiografia de um
líder religioso, mas tomar sua trajetória em uma perspectiva ampliada, contribuindo
na compreensão de parte dos processos históricos da Amazônia no século XX.
Incontáveis homens e mulheres estrangeiros tomaram parte no crescimento do
protestantismo no Brasil, imigrantes não por questões financeiras, mas em missão
religiosa, e assim também foram os Thomas, da Pensilvânia ao Baixo Amazonas.
O caminho dessa família nos permite entender parte das estratégias protestantes
nos processos de estabelecimento em lugares de difícil acesso e as relações com a
sociedade ao redor. Entretanto, igualmente é necessário considerar a imersão desses
religiosos em uma realidade social pautada pela fragilidade da presença do Estado,
e como os missionários procuram suprir essas carências. Seria a atuação social da
família Thomas a legitimação necessária para sua ação evangelizadora?
Considerando a relação entre história e memória, a história oral apresenta-se
como eficaz para conhecer e analisar a história da Amazônia e dos grupos sociais que
a compõem. A investigação sobre o protestantismo amazônico, um campo amplo com
diversas lacunas, ao apropriar-se da história oral como método para compreender
a inserção religiosa e social das igrejas de origem estrangeira, poderá encontrar a
riqueza guardada nas memórias dos moradores das pequenas cidades.
Portanto, quando nos encontramos com Thomas Joel Thomas, Renato Braga
Vieira e Maria Auxiliadora da Costa Vieira, foi possível acessar suas memórias sobre
a história de um personagem singular da/na história amazonense. Suas memórias
imbricam-se com a história do protestantismo na Amazônia, tendo pessoas do interior
do Amazonas como sujeitos nesse processo histórico, e cujas narrativas nos permi-
tem compreender um pouco mais sobre a conjuntura que nos propomos investigar e
levantar perguntas para outros caminhos.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 37
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014.
GAIA, João Vinicius Marques; REIS, Marcos Vinicius de Freitas. Presença dos
Evangélicos na Amazônia. Revista Senso, n. 13, nov./dez. 2019. Disponível em:
https://revistasenso.com.br/2019/11/26/presenca-dos-evangelicos-na-amazonia/.
Acesso em: 11 dez. 2019.
38
GATTAZ, André; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; SEAWRIGHT, Leandro (org.).
História oral: a democracia das vozes. São Paulo: Pontocom, 2019.
HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico. Campo religioso brasileiro e história do tempo pre-
sente. Cadernos CERU, série 2, v. 19, n. 2, p. 47-70, dez. 2008.
OLIVEIRA, Liliane Costa de; PINTO, Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra.
Estudo das relações sociopolíticas e religiosas em comunidades rurais da Amazô-
nia. Revista Brasileira de História das Religiões. Ano XI, n. 33, p. 51-70, janeiro/
abril 2019.
OLIVEIRA, Liliane Costa de; PINTO, Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra. Os
primeiros passos do Protestantismo na Amazônia. Estudos de Religião, v. 31, n. 2,
p. 101-125, maio-ago. 2017.
SENHORAS, Eloi Martins; SANTOS, Alexandre Felipe Pinho dos; CRUZ, Ariane
Raquel Almeida de Souza. Expansão do protestantismo no Brasil e suas configurações
na Amazônia Legal. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto
Alegre, ano 18, n. 25, p. 136-149, dez. 2016.
Fontes orais
Maria Auxiliadora da Costa Vieira, entrevista realizada em 20 de agosto de 2017, na
residência de sua filha, em Urucará/AM, por César Aquino Bezerra.
memória como algo importante para a construção de uma trajetória de vida ou his-
tória de um determinado acontecimento como marco positivo ou negativo de quem
narra. E através da história e memória dos trabalhadores, temos a possibilidade de
identificar a representação do trabalho na comunidade São Sebastião da Brasília.
34 Entrevista realizada com o Sr. Antônio Soares Ribeiro Filho, no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
44
35 Entrevista realizada com a Sra. Luzia Cândida da Silva Gomes, no dia 26/03/2017, na comunidade de São
Sebastião da Brasília.
48
(1995) que “a preparação das festas se iniciava com o dono do santo ou rezador e
acompanhantes (7 a 10 pessoas), na maioria homens” (p. 112). No último dia da festa
é realizado o corte do mastro, algo típico de muitos interiores da Amazônia.
As festas de ‘santo’ nas comunidades é algo tradicional desde a inclusão da
igreja católica (CAMPOS, 1995), visto que essas práticas religiosas faz com que a
comunidade se organize em prol de um evento. Questiono-me, como essas práticas
socioculturais e religiosas se relacionam com a prática do trabalho? Qual a eficácia
da instituição religiosa na comunidade na perspectiva do trabalho? A igreja católica
é uma das instituições que determina o modo de vida dos comunitários.
A segunda festa surgiu a partir do trabalho desses comunitários. A Festa do
Camarão, cuja realização acontece, com data móvel, entre os meses de agosto a outu-
bro, com duração de três dias, período em que a pesca do crustáceo é realizada com
mais frequência. Segundo a associação de moradores e os registros paroquias e civis,
residem atualmente, 69 famílias na comunidade4, e suas habitações são construídas
no modelo de palafitas, por causa do período de enchente e vazante que ocorre todo
ano na Amazônia (FERREIRA,2016).
A partir do trabalho com a pesca do camarão, as mulheres da comunidade
uniam-se e organizavam-se para prepararem a festa na qual dignificava o seu ofício
(GUERREIRO, 2013; BRASIL, 2015; SILVA, 2017; SILVA, TORRES, 2019), e
assim se firmavam na comunidade.
Fomos convidados para festa de 2017, no qual fui selecionado pela direto-
ria da comunidade para ser jurado da escolha da Garota Camarão.36 A partir desta
36 Adolescente entre a idade de 15 a 18 anos, pertencente a uma das famílias da comunidade, na qual é
escolhida para desfilar no último dia da festa, concorrendo a premiações, sendo o figurino obrigatório na
representatividade das camaroeiras, que são as mulheres pescadoras de camarão.
50
Considerações finais
Portanto, a representação do trabalho na comunidade São Sebastião da Brasília,
em Parintins-Amazonas, evidencia na perspectiva de valorizar o trabalho na Ama-
zônia em lugares que contém invisibilidade social, como as comunidades. Para isto,
a história oral, memória e identidade foram importantes para este tipo de trabalho.
Valorizar as vozes dos comunitários da comunidade São Sebastião da Brasília é tão
significativo para os estudos sobre a Amazônia profunda, isso mostra a pluralidade
da Amazônia, desconstruindo a hegemonidade criada pelos viajantes naturalistas.
Assim, podemos compreender que a representação do trabalho na Amazônia
profunda é muito significativa tanto para a ciência quanto para os moradores que
habitam nas comunidades amazônidas. O quanto o trabalho na agricultura e na pesca
do pescado e do camarão é significativo na vida de homens e mulheres, moradores
e moradoras da comunidade São Sebastião da Brasília.
Durante a realização da pesquisa, nas análises das entrevistas, notamos que os
moradores entrevistados queriam mais visibilidade para a comunidade. Era percep-
tível que a colaboração deles para as pesquisas científicas objetivasse em resultados
concretos realizados pelo governo. Ou seja, que a contribuição científica da academia
juntamente com seus projetos fosse fomentada ao governo do estado para benefícios
a esses comunitários.
A proposta dessa pesquisa em valorizar as vozes dos “vistos como de baixo”
da comunidade de São Sebastião da Brasília é justamente mostrar a sociedade parin-
tinense que existem trabalhadores que tiveram grande relevância para a economia
do município em um determinado período. A juta proporcionou pouca economia e
muito trabalho a esses ribeirinhos, mas contribuíram deixando um legado, na parti-
cipação do trabalho com um dos principais produtos comercializados na Amazônia
no século XX. E atualmente os trabalhos pós-juta continuaram na comunidade, os
quais configuraram a comunidade e tranformaram a vida dos moradores e moradoras
da comunidade São Sebastião da Brasília.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 51
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. “Histórias dentro da História”. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(org.). Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2011. p. 155-201.
FERREIRA, Aldenor da Silva. Fios dourados dos trópicos: culturas, histórias, sin-
gularidades e possibilidades (juta e malva – Brasil e Índia). Universidade Estadual
de Campinas, 2016.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In: CAR-
DOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 21-36.
OLIVEIRA, Liliane Costa de. Vida Religiosa Ribeirinha: um estudo sobre a Igreja
Católica e Evangélica no Amazonas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós- Graduação em Sociologia. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2012.
SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: Peter Burke (org.). A Escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 39-62.
SILVA, Júlio Cláudio da; TORRES, Iraildes Caldas. “Memórias amazônicas nas narrativas
de pescadoras de camarão da comunidade São Sebastião da Brasília, Parintins (AM)”.
Dossiê de História Oral. Manaus, v. 22, n. 1, p. 81-101, jan/jun 2019.
SILVA. Júlio Cláudio da. História oral, memória e trabalho na Comunidade São
Sebastião da Brasília. Apontamentos de pesquisa de Pós-Doutorado desenvolvida no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia. Univer-
sidade Federal do Amazonas. Parintins, 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 53
“Era bem simplesinha depois foi aumentando, fizeram essas casas mais
bonitas, né, prédios, evoluiu muito de lá pra cá, de 70 pra cá, por aqui até
ali pra trás da praça da liberdade, pra lá só era mato, era ali não tinha
nem rua nem nada era mais mato, aí depois foram fazendo casas, né!”38
“Era bem simplesinha” referência dada por Luzia e presente nas demais nar-
rativas em relação a cidade de Parintins no momento em que chegaram à mesma,
muito embora em períodos distintos, reflete a forma como elas olharam a cidade pela
primeira vez a partir do momento que vivem hoje.
Hoje, de acordo com a estimativa da população realizada pelo IBGE-2016,
Parintins é enquadrada como a segunda maior cidade do Amazonas ficando atrás ape-
nas da capital, Manaus. Por estar localizada no interior do estado, destaca-se “entre as
cidades do interior do Amazonas pela trajetória de consolidação nas últimas décadas
como polo universitário, sinalizando preenchimento de uma das maiores lacunas para
o desenvolvimento da região de fronteira Amazonas-Pará” (BARTOLI, 2016, p. 08).
De fato, há quarenta anos, por mais que a chegada na mesma trouxesse além de
expectativas, sobretudo perspectivas de como a vida no novo espaço se consolidaria,
é com a visão do hoje que elas buscam se referir a Parintins, o que leva a refletir sobre
o olhar positivado imprimido nas narrativas em relação a cidade na atualidade vivida.
Outro ponto trazido é a referência ao período mencionado, “evoluiu muito de lá
pra cá, de 70 pra cá”. Ora, em 1970, Parintins já era município, e como tal dispunha
de suas prerrogativas administrativas, porém, na fala de Luzia, foi a partir daí que a
cidade “evoluiu”. Isso ajuda a pensar sobre as ações desenvolvimentistas que ocor-
reram em todo Brasil nesse mesmo recorte. O Brasil vinha sofrendo uma série de
mudanças, sobretudo, nas áreas de infraestruturas, o que evidentemente se espalhou
em todo território nacional.
Em outra perspectiva, esse momento ocorreu:
37 O presente artigo constitui um fragmento de minha Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-Gra-
duação em História – Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
38 Luzia Viana da Silva. Entrevista realizada em 08 de janeiro de 2014.
56
na expressão proferida por Rita “vixe! Mudou muito mesmo!”. Sobre sua impressão
do momento que chegou, afirma que:
A cidade não existia! Era bem menor mesmo! Eram bem poucos comércios, a
maior parte era aqueles comércios de madeira, aqueles quiosquinhos de madeira,
tinha bem poucas casas de alvenaria aqui na João Melo mesmo! Tudo era de
madeira, hoje em dia tem esses casarão agora, não existe mais isto, casas e comér-
cio de madeira, aliás na cidade quase toda né! Hoje é tudo de alvenaria, mas de
primeiro aqui tudo era uma novidade quem tinha uma casa de alvenaria.39
Não tinha nada, não tinha nada aterrado, não tinha aquela frente do rio como a
gente vê, aquelas orlas do rio, tudo tudo aquilo ali era barro na beira do rio assim
mesmo, não tinha nada, não tinha um porto, tinha um trapichizinho de madeira,
um pedacinho lá, era tudo, não tinha nada, não tinha nada, ora a iluminação, era
bem pouca, água também era bem pouca, bem pouca mesmo, porque a gente,
porque de primeiro como a gente tinha, a iluminação ia até dez horas da noite só,
aí ia embora a luz, não tinha nada! Não tinha quase escola, não tinha, tô dizendo
que não tinha nenhum médico assim, primeiro veio um médico pra cá, Deus o
livre! Tinha um enfermeiro, enfermeiro não, ele tinha uma farmácia até hoje os
filhos dele tão aí na farmácia, e aquele ali era o médico. O pastor Lessa depois
que ele veio, porque meu filho, eu sempre agradeço a Deus pelo meu filho ele
salvou a vida do meu filho, não tinha médico, não tinha professor formado, não
tinha nada! Professorzinho assim, porque não tinha as escolas do governo, do
estado, com mil e tanto, dos mil, três mil professor concursado, nada, nada, nada!
Era, olhe hoje em dia o menino não pode quase sair de canoa né, antigamente
os motores era duas, era uma canoas que botava, era até de rede, eu até andava
nessas canoazinhas de rede, que botava aquele pano né, penduravam uma rede
lá, engatava, e o vento arrastava, tinha um pouco dessas, era muito pobrezinha
a cidade, era paupérrima mesmo! Não tinha mercado, não tinha, tudo era vazio,
muito, muito triste.40
e por tantos outros sujeitos onde as pessoas mesmo que minimamente dominassem
a leitura e cálculo matemático nas quatro operações poderiam facilmente ensinar a
outros. Realidade essa que começou a ter um novo direcionamento a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB) de 1996, que no seu Título V trata
dos níveis e das modalidades de educação e ensino.
A precariedade na área da saúde se materializa, no olhar de Geni, pela ausência
de hospitais e profissionais para atender a demanda da sociedade, ela conta que quem
desempenhava o papel de médico era um comerciante dono de farmácia. Também
menciona o pastor Lessa42 como uma referência na área da saúde, uma vez que pres-
tava atendimento a quem lhe procurava, inclusive chegou a socorrer um de seus filhos
quando este se encontrava em situação de quase morte. Situação essa que Geni nos
fala diante de seu desespero como mãe em quase perder um de seus filhos.
Dificuldades com deslocamento é outro aspecto trazido por Geni quando conta
que as canoas eram equipadas com rede para que, dependendo da posição e força do
vento pudesse sair de um lugar a outro, e diz que não existia muitas do tipo “tinha
um pouco dessas”. Relaciona essa situação a condição de pobreza em comparação
ao momento vivido na atualidade. Por isso afirma “era muito pobrezinha a cidade,
era paupérrima mesmo”.
Ela continua nesse pensamento ao citar a não existência do mercado, deixa
transparecer que pelo fato da cidade não dispor de um mercado que atendesse a
necessidade das pessoas, em “tudo era vazio, muito triste”. O vazio causado por algo
que ainda não existia no tempo que Geni chegou à cidade foi colocada no mesmo
patamar de tristeza. Vale frisar que a fala dela ocorre sempre no sentido das ausências
se contrapondo ao que hoje tem na cidade, ao avaliar a cidade avalia a própria vida.
Na sua percepção a cidade evoluiu. Ela também evoluiu. Para ela, essa evolução
aconteceu a partir do momento que se coloca como sujeito ativo nessa transformação.
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da lei, plano de carreira para o magistério
público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos,
assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;
V – valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério
público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com
ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade.
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de
lei federal (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)
42 Foi uma liderança batista de grande influência na cidade. Atuou nas áreas da educação, saúde e religião.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 59
Quando cheguei aqui era um pouco atrasado. Não tinha esses casarão bom que
tem agora, essa Catedral aí tava no início, tava ainda na construção, levantando
a construção. Agora tá muito bonita a cidade, depois que eu vim pra cá trouxe só
felicidade (risos). Parintins, hoje, tá uma cidade, aqui era quatro, essas casinhas
era tudo casa humilde, a Catedral tava no alicerce quando eu cheguei aqui em
Parintins. tinha poucas casas aqui, tudo foi reformada, quando a gente chegou aqui,
quem primeiro reformou a casa foi, fomos nós, e você sabe quando o vizinho vê a
pessoa beneficiando uma coisa quer também fazer né! E aí começou. A primeira
casa de dois andar aqui, foi essa aqui (aponta pra sua casa) depois começaram a
fazer, vinham aqui olhar, depois fizeram. Posso dizer que nós viemos dá vida aqui
em Parintins, em nome de Jesus! Isso aqui não era Parintins, era um lugarzinho
muito atrasado. Poucas casas aqui, aqui só era comércio, como tá sendo hoje em
dia. Mas era feinha, a João Melo aqui era feinha, humilde, era um lugarzinho
muito humilde mesmo!43
Asfalto aqui, o resto era barro. O aeroporto era aqui por trás da Catedral. A Catedral
estava no alicerce, alicerce de um palmo eu lá de curiosa medir, que eu sempre fui
curiosa, medi o alicerce, isso vai custar muito, eu dizia. Mas essa igreja vai custar
muito. Aí depois fizeram o cemitério, tudo assim foi tudo renovado em Parintins,
pode dizer que tá uma cidade. Quando eu saio por aí que eu vejo, meu Deus! Como
Deus é grande e poderoso! Olhava pra lá só era mato.
“Olhava pra lá só era mato”, essa afirmação Geralda faz da varanda de sua casa
em direção a Catedral, a impressão que tinha em relação a construção da mesma é de
que seria algo bastante demorado. Ao fixar seus olhos surpreende-se em perceber as
mudanças ocorridas.
Dialogar com pessoas sobre cuja experiência refletimos, tem significado explorar
modos como narrativas pessoais e únicas trazem dimensões do social vivido e
compartilhado; como apontam alternativas em jogo na realidade social, processos
de dominação e resistência, horizontes possíveis, limites enfrentados ou a enfren-
tar. Tem significado compreender essas narrativas como expressões do enraiza-
mento dos sujeitos no social, como expressões de suas carências, expectativas,
lutas e acomodações na vida social (KHOURY, 2006, p. 28).
O que nos leva a pensar sobre o papel que cada sujeito se coloca diante do corpo
social, imprimindo seus sentimentos e perspectivas no novo lugar e de que maneira
se constituem como atores diante de suas ações. Os sujeitos não só se percebem no
corpo social, como atribuem significados às suas experiências (PORTELLI, 1997).
Esse pensamento amplia a percepção de que a memória não está dissociada de
um tempo e de um espaço para que as lembranças de um dado evento vivido venha
à tona na rememoração. Assim, mesmo que a memória coletiva contenha a memória
individual, uma não existe sem a outra. Dessa forma “nossa memória não se apoia
na história, mas na história vivida” (HALBWACHS, 2006, p. 78).
A cidade como texto que pode ser lido diz respeito aos deslocamentos feitos
dentro dela, as inúmeras idas e vindas de pessoas no fluxo diário. Cada pessoa tem
uma forma de apreender cada monumento construído. O som, o cheiro, a cor, o movi-
mento, também são internalizados diferentemente por cada sujeito que caminha por
ela, e externalizados de maneira peculiar possibilitando que aspectos sociais sejam
estabelecidos em expressões de cidadania.
Nesse direcionamento, Zenaide fala como foi sua impressão de Parintins:
Tudo muito pequeninho quando eu cheguei aqui, o aeroporto era ali perto daquele
supermercado triunfante. Era bem tranquila a cidade quando eu cheguei. Olha
tinha gente que dormia de porta aberta! Era muito tranquilo, aí depois que a
cidade foi crescendo, era bem tranquilo mesmo aqui! Era pequeno e era só bem
mato pelo meio, não tinha ainda a Francesa, tinha pouquinha casa lá pra Francesa.
O comércio era bem pouco. Inclusive os meus dois irmãos vieram pra cá. Os
64
primeiros que vieram pra cá, o primeiro colocou loja de roupa e o outro colocou
um supermercado, vendiam muito bem, sabe! Vendiam muito bem!44
Aí uma coisa que eu achei completamente diferente que nunca mais eu vi mais,
logo que cheguei pra cá eu achava tão lindo aqueles peixes, quando era de tarde,
menina, era uma cambada de peixe, muito feio que eu achava, era aqueles cuiú
cuiú, é assim que eu imagino, mas eu achava tão bonito que em admirava com
aqueles peixes. O mercado, aqui era bem movimentado, hoje em dia já tem mer-
cado pra todos os lugares, né! Mas o movimento de peixe era bom demais! Tu
é doido! E pra comprar carne então! Era fila aqui no mercado logo que cheguei,
tinha que fazer fila pra comprar carne, hoje em dia não tá tudo perto. O peixe
também acabou, ninguém vê mais peixe, éh! Tudo tá muito diferente! Comple-
tamente diferente.
espaço de sociabilidade, fosse em relação aos variados tipos de peixes expostos para
venda, fosse em relação as filas formadas para compra e venda de carne.
“Tudo tá muito diferente, completamente diferente”, essa afirmação em tom
de inconformismo reflete justamente o processo de crescimento ocorrido na cidade.
O que era destinado apenas uma parte da mesma, e, diga-se de passagem, a parte
central. A partir do avanço populacional outros espaços foram sendo organizados no
âmbito de atender as demandas que iam surgindo.
Rita ao expressar que tudo tá diferente faz isso mediante suas lembranças de
quando chegou à cidade, sobre isso ela fala que:
Desde quando cheguei aqui, desde o primeiro dia que cheguei aqui foi no comér-
cio, primeiro era uma merceariazinha, já tivemos drogaria, agora é esse armari-
nhozinho que nós temos, mas sempre foi comércio. Quando ele (esposo) veio pra
cá, já montou mesmo uma tabernazinha, lá no São Benedito46, de lá viemos pra
cá (centro), até hoje! Agora que os filhos tomam de conta, só tenho um filho, as
outra moram em Aracaju, as duas moças, uma é casada e a outra ainda é solteira,
moram em Aracaju, são três filhos, o rapaz ainda mora comigo, daqui uns tempos
ele toma de conta, porque todos dois estamos velhos, né!
O que chama atenção em sua narrativa é a relação que faz com sua chegada ao
trabalho desenvolvido no comércio. Ela não só enfatiza essa sua colocação como faz
questão de mencionar todos os outros tipos de trabalho que desenvolveu ao lado de
seu esposo. Atualmente, espera que seu filho assuma a dianteira pois suas duas filhas
moram em Aracaju-SE, Além de que, tanto ela quanto seu esposo já se encontrarem
com idade avançada. Como ela mesmo falou “porque todos dois estamos velhos, né!”
Na sua perspectiva, a velhice é o momento de parar e dar vez a outro.
Há uma experiência comum em todas as narrativas, ou melhor, há uma expe-
riência compartilhada. Isso quer dizer que mesmo enfrentando situações semelhantes
ou até mesmo distintas, essas mulheres buscaram, cada qual a sua forma, estratégias
de sobrevivência diante das circunstâncias vivenciadas.
Nota-se que o estilo de vida, a partir da rotina empreendida por elas, não foi
pautado em distintos modos de espaços sociais disposto na cidade, para elas o mais
importante não é pertencer a um bairro de periferia ou um bairro de centro, ter contato
com pessoas da alta sociedade parintinense ou mais abastados, o importante para elas
é ter a consciência tranquila e sentir paz diante de tudo que viveram.
A presença dessas mulheres na cidade de Parintins permitiu que a mesma fosse
vista como um lugar comum, embora experimentado de forma singular por elas. Foi
possível perceber as suas trajetórias mediante suas vivências a partir dos enredos
implícitos em suas memórias.
46 Um dos bairros de Parintins, também conhecido como reduto do boi-bumbá Garantido, identificado com as
cores vermelha e branca.
66
REFERÊNCIAS
BARTOLI, Estevan; MUNIZ, Charlene; ALBUQUERQUE, Renan. Parintins: socie-
dade, território & linguagens. Manaus: EDUA, 2016.
KHOURY, Yara Aun. O historiador, as fontes orais e a escrita da história. IN: MACIEL,
Laura. Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’água, 2006.
MAUAD, Ana Maria. História e Fotografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIN-
FAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsivier, 2012.
Fontes orais
COSTA, Rita Franca da. Entrevista realizada em 17 de fevereiro de 2014.
Introdução
Esse artigo tem como objetivo entender a trajetória das três contribuintes que
tiveram uma formação educacional com forte presença das ordens religiosas e pos-
teriormente envolvimento no movimento de mulheres no município de Parintins,
através dos conceitos e estudos da metodologia história oral, ideias do movimento
feminista (GOLDBERG, 1989; PASSOS, 2001; PINTO, 2003; SAFFIOTI; 1979) e
sobre a educação e o processo de inserção das mulheres nele.
Buscaremos primeiramente como iniciou-se o movimento feminista no mundo,
as lutas e ideias feministas no mundo e no Brasil, olhando para as ideias e correntes
presentes no movimento, e como a abertura do ensino para as mulheres permitiu
o acesso a lugares de poder até então não alcançados, para assim compreender as
participantes de nosso estudo no município de Parintins.
Dessa forma, teremos o arcabouço teórico necessário para entender o movimento
por luta e justiça no município tido na segunda metade do século XX. A partir da
metodologia de história oral (ALBERTI, 2011; FERREIRA, 2012; PASSOS, 2001;
POLLAK, 1992; PORTELLI, 1997) buscaremos coletar e analisar os relatos das
mulheres envolvidas nas lutas desse movimento pouco estudado no município de
Parintins. Não pretendemos aqui, encerrar as discussões sobre essa temática, mas
sim dar uma pequena, porém esforçada contribuição para a discussão sobre as ideias
feministas em Parintins-AM.
História oral
A história oral é uma metodologia de coleta e armazenamento que nos possi-
bilita análises e problematizações de fonte constituída por ela. Segundo Marieta De
Morais Ferreira em História Oral Velhas Questões Novos Desafios (2012) observa
quais os desafios encontrados na história oral, a mesma dentro das muitas formas de
utilização nos mais diversos campos da ciência, sendo considera uma técnica, uma
disciplina ou como a autora a estabelece uma metodologia.
A autora também analisa e estabelece procedimentos do trabalho metodológico
importante para quem pretende usar a história oral como metodologia. Para a autora
68
abordagens, versões até então não relatadas por não possuírem “legitimidade” em
seus depoimentos, devido a sua posição na sociedade a qual vive.
Proporcionado como olhares mostra como explana Ferreira (2012, p. 171),
muitas vezes não encontradas em outros trabalhos históricos como depoimentos
esquecidos, versões menosprezadas história de movimentos sociais onde uma vertente
da história oral se tenha construído com uma ligação a da história dos excluídos.
Memória
A fonte oral é fecunda e devido essa fecundidade é possível discutir sobre
eventos até então não vistos, ela também nos proporciona um olhar diferenciado
sobre um determinado fato, que devido a limitação de uma determinada fonte não
foi possível ser discutida.
Entendemos que o relato oral em si não é a história em seu estágio final, uma
vez que quem faz a escrita Histórica é o historiador. Essa cautela com a fonte é
pontuada por Verena Alberti, onde não devemos cair no erro de considerar o relato
oral que é resultante da entrevista como sendo a própria história “levando à ilusão
de chegar à verdade do povo graças ao levantamento do testemunho oral. Ou seja,
em vez de fonte para o estudo do passado e do presente, torna-se ela a revelação do
real” (2011, p. 158).
E lembrar que a memória vive em total função do presente, e que alguns grupos
fazem o uso da memória para legitimar-se alguma característica e discursos que se
pretende passar. Assim “a memória se esclarece pelo presente, presente este que
incentiva a memória a partir de um determinado grupo” (FERREIRA, 2000, p. 24).
Desta maneira “o presente influencia a memória ao retirar de seu passado apenas
alguns elementos que possam lhe dar uma forma ordenada e com coerência” (p. 24).
Devido essa influência, ela estar em constantes mudança, alterações são feitas
por interferência presente “a priori, a memória parece ser um fenômeno indivi-
dual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa” porém “Maurice Halbwachs,
nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou
sobretudo, como fenômeno coletivo e social, ou seja, como u fenômeno construído
coletivamente e subtendido a flutuações, e transformações, mudanças constantes”
(POLLAK, 1992, p. 02)
Marieta de Morais Ferreira explicita que “a linha historiográfica que explora e
questiona as relações entre memória e história rompe com uma visão determinista”
(p. 177-178). Colocando assim “em evidência a construção dos atores de sua própria
identidade e reequaciona as relações entre passado e presente ao reconhecer clara-
mente que o aquele é construído segundo as necessidades deste (FERREIRA, 2012,
p. 177-178). “Ainda que baseada nas fontes escritas, possibilita uma abertura, capaz
de neutralizar, em parte e indiretamente, as tradicionais críticas feitas ao uso das
fontes orais, consideradas subjetivas e distorcidas” (idem).
Devemos estender que os relatos orais são antes de tudo a materialidade das
memórias, memórias essas que são buscadas pelos historiadores de pessoas que
participaram de um determinado evento.
70
Então cabe ao historiador o papel crítico dessa fonte para fazer uma análise, para
identificar o que determinada memória pode trazer consigo, o que ela tenta esconder, e
encontrar os porquês. A memória não nos diz apenas o que indivíduo quer apresentar,
mas também uma representação de como ele quer ser visto e como ele quer que as
outras pessoas o vejam. Segundo Michael Pollak, “A imagem que uma pessoa adquire
ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta os
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para
ser recebida da maneira como quer ser recebida pelos outros” (1992, p. 5).
Para o desenvolvimento da pesquisa que antecedeu a elaboração desse artigo,
tive entrevistas concedidas por professoras que tiveram seus estudos iniciais em
escolas com fundamentação religiosa no município de Parintins e mais tarde fizeram
parte do movimento de mulheres no município em reinvindicação por justiça. Essas
mulheres são Clotilde Cruz Valente47, Fatima Guedes48 e Valdete Preste Pimentel49.
Feminismo e luta
Muito das ideias que circularam para mudanças ocorridas no século XX se
deram devido ao movimento feminista, que desde suas primeiras movimentações
buscou a emancipação das mulheres na sociedade, através de reinvindicações que pro-
porcionaram conquistas no final do século XIX, no século XX e posteriormente XXI.
Para Pinto (2003), o movimento tem sua primeira onda no final do século XIX
e início do século XX, que se ocupou com as necessidades de primeira instância
da atuação social da mulher como sufrágio universal e os direitos civis e políticos.
Segundo a mesma a segunda onda do movimento feminista tem início na década
de 60, onde tem ainda a igualdade como centro norteador do movimento. Para a autora
as feministas estadunidenses passam a reivindicar o direito ao serviço remunerado
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 73
fora do lugar doméstico, assim como estudar e ter uma carreira profissional, assim
proporcionando autoestima e independência para as mulheres. Durante esse processo
sofrem repressão masculina.
Mesmo não sido denominado como movimento feminista, no Brasil, tem seu
início nas primeiras décadas do século XX, onde tinha como busca o direito ao voto.
Criado em 1910 o Partido Republicano Feminino tinha como presidente Leolinda
Daltro, com a proposta da união feminina, lutando pelo o direito ao voto.
Muitas correntes influenciaram e influenciam as correntes do movimento femi-
nista. Entre as presentes no Brasil temos, segundo a autora, o chamado feminismo
“bem-comportado” que lutavam pela conquista dos direitos políticos, como o direito
de voto, de participar da cidadania, que era liderada por Bertha Lutz, e abordava
assuntos políticos e a necessidade de o sufrágio ser concedido às mulheres. Esse viés
do feminismo era considerado a área conservadora do movimento (PINTO, 2003).
A segunda tendência dada pela autora no início do movimento no Brasil era o
lado oposto, denominado de feminismo “malcomportado”. Reunia muitas mulheres,
que lutavam pelo direito a educação, igualdade, sexualidade, divórcio e contra a
dominação masculina, questões vistas como tabu nesse período.
Desse grupo, muitas mulheres distintas faziam parte, assim o caráter heterogêneo
acrescentava à luta um objetivo social. A autora ainda cita uma terceira vertente no
movimento feminista brasileiro, chamada de “o menos comportado” dos feminismos,
com mulheres do movimento anarquistas e comunistas que combatiam as desigual-
dades de gênero, comandadas por Maria Lacerda de Moura.
Para a autora, na base da tradição do feminismo marxista, segue o pensamento
clássico o qual o capitalismo é o causador da opressão feminina, assim tendo como
centralidade o alcance de uma sociedade socialista, nele
nas décadas de 1950, 60 e 70. Em Saunier (2003) que aponta a primeira escola a ser
fundada no município Foi a Escola Araújo Filho em 1853 que era dirigida pelo Pe.
Torquato, essa data segundo o autor, é quando é implantado a obrigatoriedade do
ensino público em Parintins.
Uma dessa primeiras escolas a serem fundadas segundo o autor, nesse período
é a escola Colégio Nossa Senhora do Carmo, sua fundação se deve ao Bispo Dom
João da Mata, Prefeito interventor Capitão Ferreira e pelo Pe. Victor Heinz, o passo
inicial para a construção se deu em 1945 sendo oficialmente inaugurada em 1957
(SAUNIER, 2003).
Em sua fundação já tem um caráter religioso, como e de se observar devido ao
próprio fundador esse vínculo educacional direto com a instituição católica reflete
diretamente ao ensino voltado para as mulheres, parte do modo como era dado a
educação voltada para as mulheres é encontrado nas memórias das ex-alunas Clotilde
Cruz Valente50, Fatima Guedes51 e Valdete Preste Pimentel.52
Nas memórias de dona Clotilde Cruz Valente, sua formação educacional teve
uma grande presença religiosa. Segundo ela
no colégio, além de já ter uma formação religiosa, a minha formação foi junto ás
freiras, na época a maioria dos nossos professores eram padres e freiras, então a
gente teve assim uma formação muito forte, uma formação religiosa muito forte
e eram elas que davam aula.53
para estudar naquela época o curso ginasial no colégio Nossa Senhora do Carmo.
Que apesar de ser um colégio, uma entidade mantida pelo dinheiro público, mas
é elitista. As meninas da minha turma tinham o padrão sócio econômico elevado
em relação a mim.55
50 Clotilde da Cruz Valente, nasceu em Parintins 04/041947 filha de Amarilda da Cruz Valente e Carmi-
nho Valente.
51 Fatima Guedes nasceu na Vila Amazônia comunidade de Parintins em 21/06/1952 filha de Olavio Guedes
de Araújo descendente de nordestinos e Jovertina Guedes de Araújo.
52 Valdete Preste Pimentel nasceu em 31/01/52 no município de Parintins.
53 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
54 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
55 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016.
76
aquisitivo fizesse parte do quadro de alunos, pois o podemos ver pelos relatos orais
que era possível estudar na escola desde que se houvesse um alto rendimento por
parte do aluno.
É importante entendermos a desvantagens que as pessoas de menor poder aqui-
sitivo tinham e ainda tem em relação a disputa por uma educação e qualidade. Além
disso, as matérias destinadas as mulheres no século passado eram matérias muito
voltadas para a manutenção do lar.
Clotilde Cruz Valente diz que: “nós tínhamos também aula de educação domés-
tica, artes. A gente aprendia muita coisa, hoje o currículo é muito diferente, já não
tem mais essas disciplinas. Eu aprendi fazer alguns bordados aí no colégio, nas aulas,
fazer shampoo, transformar o sabonete”.56
Como é percebido, não há, na fala de Clotilde, uma queixa em relação a oferta
de matérias dadas para as mulheres na escola, ao contrário. Segundo nossa agente
social “não só a educação moral, mas até mesmo pra a formação doméstica, de como
você ser uma dona de casa, de como você ajudar na sua comunidade, eu não tenho
queixa porque eu com certeza eu ganhei muito com a formação que eu recebi aí no
colégio”.57
Outra contribuinte para esse estudo e dona Valdete Preste Pimentel que diz:
“olha eu estudei no colégio nossa senhora do Carmo desde o primeiro aninho eu
tive a felicidade de me forma e ser a primeira escola pra eu trabalhar lá eu trabalhei
primeiramente sete anos”.58
As três participantes das pesquisas estudaram na Colégio Nossa do Carmo mais
tarde seguiram a carreira no ensino e depois irão participar do movimento de luta por
direitos e justiça no município de Parintins.
A professora Valdete diz que “não tinha ensino infantil só tinha ensino o pri-
meiro ano, e eu trabalhei esses oitos anos seguidos e consegui esta façanha chamada
e na época e depois eu fiz a educação física fui trabalhar na educação física né, e
ultimamente e que eu voltei porque eu me formei em educação física, tenho normal
superior e me especializei em psicopedagogia”.59
A professora Clotilde ao falar de formação relata que:
eu fui pra Manaus um ano pra lá pra fazer um curso de enfermagem, eu estudei
no IEA mas eu não terminei porque eu passei, eu fiz o concurso aí eu vim pra cá
pra trabalhar, eu estava com dezoito anos. Eu trabalhei na Fundação CESP como
atendente [...] depois saí para fazer a licenciatura, [...] consegui fazer a Licenciatura
em Pedagogia e Supervisão Escolar de primeira à quarta série. Depois disso fui
atuar como supervisora nas escolas estaduais. Trabalhei muitos anos, depois fiz
curso de pedagogia na UFAM, aí o último curso que eu fiz foi especialização em
Educação de Jovens e Adultos, a EJA.60
56 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
57 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
58 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
59 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016
60 Entrevista realizada com Clotilde da Cruz Valente no dia primeiro abril 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 77
muito nova, com dezenove anos [...]. Fiz o ensino médio, que hoje é o ensino
médio, o curso pedagógico já com duas crianças né? Duas filhas, mas também,
me saí muito bem aí depois veio o projeto Rondom, para Parintins e oferecendo
os cursos de licenciatura, eu me desafiei e fiz licenciatura em letras, foi um grande
presente que me dei da vida, que foi aquele curso.62
Ao ser perguntado de dona Valdete Preste quando é que ele foi criado, o grupo
de mulheres, a mesma demonstra não lembrar. Ela reponde “olha foi não sei nem
dizer o nome. Quem sabe é a Fatima Guedes, mas já faz muito”65. Seu esquecimento
e atribuição a Fatima demonstra quem dentro do grupo social é de alguma forma
autorizado a falar desse assunto.
A associação de mulheres seguia a lógica defendida pelo movimento feminista
de luta por direito, igualdade e justiça, com intuito de alcançar a emancipação das
mulheres. Nos relatos, o que mais marca no falar das entrevistadas é justamente um
evento que serve de marcador nas memórias de nossas agentes sociais. Essa tragédia
é a violência ocorrida com uma jovem na cidade de Parintins. O que parece segundo
o relato é que isso ocorria com frequência.
Na década de oitenta a gente via que as coisas aqui eram muito complicadas,
principalmente no que diz respeito a questão de estupro, eram mulheres, jovens,
crianças e como havia assim só um juiz, não tinha quase advogados, as coisas
eram lentas, muito mais do que é agora, a gente sabe que a justiça é lenta, naquela
época era muito mais e nós tivemos necessidade junto, eu sempre participei de
igreja e movimento sociais, aí nós tivemos a oportunidade nos unirmos junto a
algumas companheiras.66
Por conta. Houve um fato em Parintins, de uma jovem que foi e barbaramente
estuprada por um empresário, por um filho de empresário de Parintins. Isso na
época a menina não tinha no apoio nenhum sabe? E por isso ficou, como ele tinha
dinheiro, como era uma pessoa de referência, o caso ia ficar por isso mesmo aí
foi que nós. A mãe da moça nos procurou porque a gente já tinha essa referência
de lutar, de questionar a sociedade e de enfrentar até o sistema. Nos procurou e
aí a partir desse fato a gente foi para o confronto com a justiça.
e deixavam aí! E muitas vezes os pais com dinheiro iam e compravam seu João, seu
Pedro, Dona Maria e por aí ficava”67. Ela pontua também que a partir desse ocorrido
“então aí as mulheres começaram a se reunir e por sinal foi essa junção tão assim,
tão tímida, mas fez colocar gente na prisão! Na penitenciária, que passou um tempão
preso, e os pais, de dinheiro, não conseguiram retirar”.68
O que mais se pontua nas falas se tratando da associação de mulheres é protesto
que ocorreu em frente ao fórum de Parintins, que foi justamente para obter justiça ao
caso de estupro já citado por elas. Segundo Valdete “as mulheres foram para frente
do fórum, exigindo que fosse feito justiça a partir daí se organizou propriamente dito
a coisa e não era organizado né?”.69
De acordo com Fatima
fomos cobrar a justiça né? Eu lembro que quando nós chegamos no fórum de
justiça, no dia que ia ser julgado né? O caso do rapaz estuprador, e o juiz nos
perguntou. Quem estava na frente daquele movimento? Aí nós dissemos: que não
havia ninguém a frente por de trás, todas nós estávamos a frente do movimento,
nós éramos a frente do movimento, a massa, a frente da massa do movimento e
que nós queríamos ali cobrar justiça.70
Conclusão
No decorrer da história brasileira, não se houve por parte do estado uma preo-
cupação com a educação voltada para as massas, no século XX esse quadro muda, a
mulher passa a ter mais acesso ao ensino formal mesmo que devida à falta de alcance
do estado em proporcionar uma educação para todos os lugares do país, as ordens
religiosas assumem esse papel.
No município de Parintins esse ensino dado em escolas com essas caraterísticas,
possuem matérias voltadas ao lar para as mulheres, uma educação doméstica a qual
essas mulheres tiveram que ater sua atenção. Mesmo sendo limitada o ensino formal
para essas mulheres e dentro do seio de suas subjetividades, ao que se refere gostar
ou não desse modelo de ensino.
67 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
68 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
69 Entrevista realizada com Valdete Preste Pimentel no dia dois de dezembro de 2016.
70 Entrevista realizada com Fatima Guedes no dia cinco de dezembro de 2016
80
O que nos parece é que, por mais que pequena e inicial esse pontapé de acesso
a educação para essas mulheres, já serviu para uma tomada de consciência e estadia
nos espaços de poder até então muito negado a elas, como as mulheres que conseguem
romper com algumas de suas amarras através do estudo e de sua profissionalização
Talvez mais que isso com um movimento para lutar por melhorias no municí-
pio, e que medida as ideias feministas, tão caras a essa sociedade excludente para
as mulheres, circulam e influenciam essas mulheres nesse movimento de mulheres.
Dessa forma como não ligar essas movimentações dessas mulheres como um movi-
mento de ideias feministas, uma vez que tais ideias englobam buscar melhorias para
a mulher na sociedade como um todo.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 81
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, p. 155-202, 2011.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: velhas questões, novos desafios. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história.
Rio de Janeiro: Elsevier, p. 169-186, 2012.
GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2015.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
há um grande fluxo migratório dela para cidades mais próximas, como Parintins e
Manaus, situadas a Leste do Estado do Amazonas, reatualizando corredores históricos
de mobilização populacionais.
Dessa maneira, analisamos o processo migratório de Terra Santa à Manaus
sob à luz das experiências e trajetórias das mulheres migrantes, buscando identificar
as trajetórias históricas das nossas colaboradoras e suas relações sociais nos novos
espaços, assim como, contextualizar as trajetórias e as experiências delas a partir
dos processos de deslocamentos que ocorrem na Amazônia contemporânea (final
do século XX e início do XXI).
Percebemos dessa maneira que a idade, o perfil e os motivos que determinaram a
saída de cada uma delas, são diferentes. Elas possuem uma trajetória única e peculiar
que nos leva a perceber os diversos atores sociais envolvidos nessa teia de decisões
que perpassa pelos familiares, amigos, entre outros, que estão presentes desde o partir
ao voltar, isso quando as mesmas optam pelo retorno.
Percebe-se esse fato ao analisarmos os depoimentos de nossas colaboradoras,
mulheres de diferentes idades, que viveram esse processo em diferentes épocas, mas
que sempre buscaram outras possibilidades e alternativas para além do lugar onde
viviam, sendo levadas por diversos fatores a sair de sua terra em busca de melhoria
de vida. Esse processo de deslocamento é indicado também por Bassanezi (2013)
ao enunciar que:
Sim, as migrantes têm uma história. Desde sempre elas têm migrado, frequente-
mente na companhia de familiares, amigos e conhecidos em busca de melhores
condições de vida e trabalho, mas migram também sozinhas, não só à procura de
emprego, mas de independência, de casamento, ou até para fugir de discriminações
e violências (BASSANEZI, 2013, p. 169).
“Como na época só tinha até a quarta série aqui, aí eu fui para Manaus para ver
se eu conseguia estudar mais um pouco.”72
72 Lúcia Maria Guimarães Pereira. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 85
“Quem queria estudar, porque Terra Santa era limitado né, só tínhamos até a 5ª
série [...] quem queria mesmo estudar tinha que sair de Terra Santa.”73
“Aqui só tinha o segundo grau [...] eu já tava na oitava série aí eu queria fazer
outros cursos e aqui em Terra Santa só tinha o magistério.”74
73 Heloisa Helena de Souza Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 10 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
74 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 17 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
75 Elza Lira Costa Guerreiro. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
86
76 Elzinete Santos Souza. Entrevista realizada na escola onde trabalha, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
77 Liene Valente Fonseca Kitsinger. Entrevista realizada na residência de seus pais, em Terra Santa, no dia 13
de outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 87
explicada pela migração para as áreas metropolitanas, especialmente para suas sedes,
onde esse fenômeno é bastante acentuado.78
A especificidade da migração feminina do ponto de vista de sua intensidade nas
idades mais jovens pode, grosso modo, ser pensada como decorrente de dois aspectos
dentro do processo migratório vivenciado pelas terrassantenses. Primeiramente dentro
das redes sociais, especificamente as redes familiares, que acabam sendo responsá-
veis pela ida de muitas dessas meninas, para que possam aproveitar os recursos que
a capital oferece. O segundo e não menos importante aspecto, deve-se ao desejo e
vontade dessas jovens em terminar os estudos e vivenciarem certa autonomia no
que diz respeito ao curso de suas vidas, o que iam cursar ou que ramo trabalhariam,
aliado a isso o fato do município de origem não oferecer essa oportunidade a elas.
Temos que perceber aqui a diferença quanto a posição social que cada uma das
jovens representa. Para aquelas que tem a oportunidade de mais recursos financeiros
a vida na capital é “boa”, “fácil” e de “boa adaptação”. Para aquelas que migram
para trabalhar nas casas de famílias – muitas vezes de próprio parentesco – ou para
trabalhar, estudar e se manter na capital por conta própria, a vida na cidade grande
acaba não sendo um mar de rosas.
Esse é um dos elementos importantes revelado na pesquisa, que é a concep-
ção das migrantes sobre pertencimento à cidade. Considerando que esta pode ser a
primeira experiência de vida urbana de maior amplitude dessas jovens, é possível
compreender alguns impactos sofridos no processo de adaptação.
As migrantes, ao longo do percurso migratório, traçam caminhos que vão atri-
buindo novas significações à experiência vivida. Suas trajetórias nos mostram que
a intensidade do êxodo juvenil feminino não se dá apenas por uma suposta atração
especialmente favorável que o mercado urbano de trabalho seria capaz de exercer
sobre as moças.
78 De acordo com Baeninger, a presença da migração feminina nos núcleos das Regiões Metropolitanas
corresponde a mais da metade da migração jovem. Sobre essa afirmação, ver: BAENINGER, R. Juventude
e movimentos migratórios no Brasil. In: Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília:
CNPD, 1998; MELO, H. P. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a trabalhadoras. Revista
Brasileira de Estudos de População, Campinas, v. 15, n. 1, p. 125-132, jan./jun. 1998.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 89
Mesmo para as migrantes que possuíam apenas o segundo grau, era visível
a conquista delas em várias áreas de atuação no âmbito laboral em Manaus. Essa
afirmação pode ser entendida a partir da experiência de dona Heloisa. Ela que, por
circunstâncias já citadas anteriormente, chegou à Manaus para cursar o segundo
grau. Quando questionada sobre os lugares onde trabalhou ela nos conta o seguinte:
79 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 17 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
90
80 Heloisa Helena de Souza Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 10 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
81 Ibid.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 91
[...] eu tive que assumir a responsabilidade da casa, tudo era eu, comida, roupa. E
na época eu já fazia cursinho, eu tava dando aula de manhã, fazia cursinho à tarde e
estudava à noite, e eu tinha que dar conta de tudo isso [...] ficava só eu e mais dois
primos, aí quando eu ia para escola de manhã, que eu já dava aula, eu já deixava
tudo adiantado, comida, a roupa já tava lavada para eles estenderem e quando eu
retornava eu ia ver a comida que eles não sabiam fazer muito bem (risos), já ia
limpando que umas 2h, 3h eu tinha que ir para o cursinho, retornar do cursinho,
ver o que tinha para fazer pra ir para a aula à noite. Então ficou uma rotina muito
pesada para mim, também eu era a única mulher na casa. Eles ajudavam, mas a
responsabilidade era minha porque eles não sabiam muito bem os serviços de casa.82
Para as migrantes que moram sozinhas ou com outras mulheres, a jornada diá-
ria na capital, mesmo sendo “muito corrida”, não gerava sobrecarga com o trabalho
doméstico. Na fala de algumas delas, o cansaço se dava mais pela rotina de conci-
liação entre estudo e trabalho. Como no caso de Dona Elza Lira, que ao chegar na
capital conseguiu um emprego no Pólo Industrial de Manaus, mas teve que conciliar
este trabalho com seus estudos.
[...] não é fácil né, morar na casa dos outros, trabalhar o dia inteiro para noite
fazer faculdade. Eu trabalhava assim, entrava no distrito às 2:30h para trabalhar,
82 Elba Aparecida Almeida Barbosa. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 15 de
outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
92
às 2:30h da tarde, saía do distrito 10:30h pra chegar em casa meia-noite, porque a
rota vai distribuindo né, aí chegava meia-noite ia dormir duas horas, seis horas eu
me acordava e me arrumava pra ir para faculdade, estudava de manhã, para mim
era melhor estudar de manhã, do que sair do trabalho e ir fazer faculdade à noite.83
Mesmo não sendo o motivo que se destaca como atrativo direto das migrantes
terrassantenses, a Zona Franca de Manaus ofereceu para algumas delas portas de
emprego ao chegarem na capital amazonense. Andreza também passou a trabalhar
no distrito em dois momentos diferentes, intercalado entre estágios, até concluir sua
faculdade de pedagogia e conseguir certa estabilidade na cidade.
Andreza foi uma das migrantes que tiveram acesso às várias oportunidades que a
capital oferece, assim como outras citadas nesta pesquisa. Mas nem todas elas tiveram
o privilégio de realizar, em Manaus, o objetivo que desenharam ao sair de Terra Santa.
Dona Lúcia, por exemplo não conseguiu concluir seu ensino fundamental, pois parou
de estudar por conta de sua gravidez. Devido a isso, sua tia lhe disse que ela não poderia
mais morar com eles, tendo ela que morar com o pai de seu filho, interrompendo seus
estudos, consequentemente não podendo conseguir um emprego na capital, já que por
fatores que aconteceriam dali para frente decidiria voltar para seu lugar de origem.
Dessa maneira, percebemos através da trajetória dessas mulheres, que migraram
ainda jovens, que independente da época em que migraram, suas histórias se cruzam
mas ao mesmo tempo se diferem em alguns momentos, levando-nos a entender que
as dinâmicas migratórias são particulares de cada pessoa e devem ser compreendi-
das em suas especificidades, pois os padrões migratórios diferem quanto às relações
espaciais, pessoais, estrutura etária e nível de educação e renda, tanto no seu local
de origem, quanto no de destino.
Porém, algo que não passa despercebido em seus relatos é a percepção da família
como eixo central na vida de cada uma dessas mulheres, seja como ponto de apoio
dentro de Manaus ou fora dela, fosse abrigando essas jovens na capital ou mesmo
mandando suprimentos em formas de encomendas com produtos regionais para que
elas conseguissem se sentir mais perto de casa, da família, do seu lar. Estar conectado
com o ambiente de origem era importante para muitas delas, por isso estar perto dos
83 Elza Lira Costa Guerreiro. Entrevista realizada na sua residência, em Terra Santa, no dia 16 de outubro
de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
84 Andreza Costa Barbosa. Entrevista realizada na escola municipal São Sebastião, em Terra Santa, no dia 16
de outubro de 2018, por Suena Santarém Loureiro.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 93
parentes, amigos e conterrâneos era uma forma de amenizar a saudade, sendo esse o
momento de maior lazer dentro da cidade de Manaus.
Todo final de semana ninguém saía assim, só para os estudos, trabalho e visitar a
família. A gente ia visitar os parentes, ia na casa das pessoas [...] tinha meus tios em
outros bairros né, Santo Agostinho, a minha prima morava no Nova Cidade, então a
gente às vezes tirava o final de semana para visitar, para se encontrar. Uns da Cidade
Nova, aí eles convidaram a gente nós íamos, mesmo a gente morando na Praça 14,
mas nós íamos [...] a gente visitava as pessoas, os conterrâneos daqui de Terra Santa,
e nós tínhamos um bom relacionamento no Eldorado, na casa de um primo nosso.85
85 Adriana Costa Barbosa. Entrevista realizada em sua residência, no dia 17 de outubro de 2018, por Suena
Santarém Loureiro.
94
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Sérgio G. de; MENEZES, Wilson Ferreira; FERNANDES, Cláudia
Monteiro. Fora de lugar: Crianças e adolescentes no mercado de trabalho. Salvador:
Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET), v. 3, 2000.
BASSANEZI, Maria Sílvia. Mulheres que vêm, mulheres que vão. IN: PINSKY,
Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das mulheres no Brasil. 1
ed. São Paulo: Contexto, 2013.
OLIVEIRA, Marcia Maria de. Feminização das migrações nas fronteiras da Ama-
zônia. In: Anais Seminário Internacional Fazendo Gênero, Florianópolis, 2017.
Fontes Orais
BARBOSA, Adriana Costa. 40 anos, enfermeira. Entrevista realizada no dia 17 de
outubro de 2018.
Introdução
Desde os primeiros séculos da colonização portuguesa que festejos religiosos
acontecem no Brasil como forma de celebrar a fé e a fraternidade de grupos sociais que
buscam construírem ou firmarem suas identidades sociais por meio dessas manifesta-
ções culturais que por vezes, se constituíram como patrimônio cultural. Citemos aqui
as pastorinhas natalinas de Parintins, que são além de uma expressão cultural, também
uma manifestação religiosa, que acontece todos os anos nessa cidade. Dessa forma, este
trabalho busca estabelecer uma dialogia entre as categorias fé, cotidiano e promessa, cor-
relacionando-as com o folguedo natalino da cidade de Parintins, apontando de que forma
as mulheres que estão inseridas nesse contexto se associam nessa manifestação com a
fé, a promessa e o seu cotidiano, para a preservação e a manutenção desse folguedo.
Foi na convivência com o folguedo das pastorinhas natalinas que surgiu o inte-
resse pela temática, pois, desde a nossa infância, temos um estreito contato com essa
manifestação de cunho cultural, artístico e religioso, na medida em que somos filha
de uma mulher chamada Rosa Gomes, que reconhecidamente organizou um cordão
de pastorinhas por 58 anos até seu falecimento em 2012, ano em que a brincadeira
– assim chamado essa manifestação por aqueles que estão inseridos nesse contexto
– de compromisso familiar, foi assumido por outra filha, Maria Aparecida, que deu
prosseguimento, tomando para si a responsabilidade que outrora fora de sua mãe.
Dessa maneira, conseguimos observar de perto o papel primordial que essa e
outras mulheres assumem ao se tornarem as únicas responsáveis pela organização e
manutenção das pastorinhas natalinas. Também foi visto que nesse período, a tran-
sição da responsabilidade em dar prosseguimento ao folguedo se faz no cotidiano
dos barracões – locais específicos para os ensaios e apresentações – com um método
exclusivo de aprendizado no qual a iniciada é submetida, e que se faz necessário para
a preservação, a manutenção e a continuidade do folguedo.
Para o aprimorando e a compreensão desta temática, fizemos uso de uma biblio-
grafia específica que foi fundamental para que tivéssemos um melhor suporte no campo
da pesquisa, pois, trata-se aqui de um estudo desenvolvido a partir de um direcionamento
que tem como base nossas concepções que foram construídas com leituras em livros,
dissertações e artigos que abordam de maneira suscinta a temática escolhida, para que
dessa forma tivéssemos uma melhor compreensão e análise do relato de experiência
da dirigente das pastorinhas Filhos de Davi, fonte principal dessa discussão.
98
Presépio Natalino
Cultura e Identidade
Diversos estudos antropológicos tem se debruçado sobre a origem e o papel
da cultura em várias sociedades. Nestes termos, há alguns autores que discutem
essa categoria e conseguinte, o folclore popular. Sendo que a primeira definição de
cultura segundo Laraia (2009), foi definida em 1871 por Edward Tylor, em seu livro
“Primitive Culture”, demonstrando que a cultura pode ser objeto de estudos siste-
máticos por se tratar de um fenômeno natural e possuir causas e regularidades que
permitem análises coerentes sobre o seu processo e sua evolução. As diversidades e
100
A cultura tem um papel determinante na vida das pessoas e de seu grupo social.
Hall (2006, p. 13) afirma que “a identidade torna-se uma ‘celebração’ móvel: formada
e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Nos identificarmos com
as características de um grupo, seja no seu modo de pensar, agir e comportamental,
é decisiva como critério de inclusão nesse grupo, e determina a forma de como
seremos tratados.
A identidade social, “plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia” (IDEM, 2006, p. 13), de tal modo como na cultura, esta identidade também
está sujeita a modificar-se no decorrer da história. No folguedo das pastorinhas, por
exemplo, existem modificações significantes, oriundas das transformações que advém
das influências dos locais onde esse auto existe. Essas mudanças são perceptíveis nas
fantasias dos personagens, nas músicas, nas coreografias, nos adereços e nas melo-
dias. Por conta dessas modificações as pastorinhas de Parintins se tornam diferente
em comparação com outros locais que também mantem esse folguedo, uma quase
exclusividade do lugar.
Desta forma, somos expostos a diversos sistemas de significação mais é possível
encontrar diversidade de identidade social a qual podemos ou não nos identificar.
Hall afirma que “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados com a multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao
menos temporariamente “(IDEM, 2006, p. 13). Diante disto, um indivíduo que se
identifica com o comportamento de um determinado grupo, ou mantem contato com
outras formas de cultura, como valores, símbolos e sentidos, vai construindo sua
identidade social.
Nas expressões culturais também se manifestam a identidade social, que podem
ser através dos vestuários, das manifestações religiosas, da culinária e das tradições.
Essas manifestações por vezes são diversificadas, dependendo da região em que se
apresentam, afinal, o Brasil, pelo seu contexto histórico, tem uma multiplicidade
cultural em decorrência das várias influências que ajudaram a constituir o país.
O folclore brasileiro, é uma expressão da cultura nacional, que traz em si a
identidade social de um povo nas suas diversas formas de se expressar, que permeia
as gerações através das trocas de experiências entre seus pares. Cascudo (1954, p.
402) define folclore como “a cultura do popular, tornada normativa pela tradição.
Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emo-
cional, além do ângulo do funcionamento racional”, não desvinculando da cultura e
apontando uma existência binária, ou seja, uma erudita, e outra popular. As pastori-
nhas de Parintins se enquadram nesta última.
A cultura popular se renova em cada geração, agregando características de
cada época. “Não apenas conserva, depende e mantém os padrões do entendimento
e da ação, mas remodela, refaz ou abandona elementos que se esvaziaram de moti-
vos ou finalidades indispensáveis a determinadas sequências ou presença grupal”
(IDEM, 1954, p. 402), e os dados recentes podem se tornarem tradicionais a partir
da assimilação do fenômeno coletivo.
102
pobreza onde nasceu o filho primogênito de Deus. Outro aspecto sobre a visita dos
três Reis Magos que merece uma reflexão, diz respeito a suas esposas, ausentes na
celebração do nascimento do Menino Jesus, como afirma Porto, ao dizer que:
Os Reis Magos não trouxeram consigo suas esposas; se os foliões levassem mulher
na folia, estariam deturpando o sentido da representação; também, dizem outros,
nenhuma mulher visitou o presépio de Jesus; admitir mulher entre os foliões,
como participante, seria desviar o sentido da dramatização (PORTO, 1982, p. 54).
Lembro quando minha mãe me contava que a minha avó colocava as pastorinhas
em Oriximiná, lá no Estado do Pará, e que ela, a minha mãe, também era brin-
cante86 das pastorinhas de minha avó. Depois, quando minha mãe veio para o
86 Termo utilizado pelas donas de pastorinhas para designar cada figura ou personagem que participa do
folguedo, ou seja, quem brinca nas pastorinhas.
104
Observa-se que tanto Maria Aparecida como sua mãe, Rosa Gomes, fizeram
uma promessa, a qual se comprometeram a colocar as pastorinhas até o fim de suas
vidas. Alves (1980, p. 59) avalia que “a promessa estabelece uma conjunção entre
os domínios, seja aqueles que separam a divindade do participante do ritual, seja os
que se referem aos diferentes domínios de poder e saber na vida cotidiana”. A pro-
messa pode se manifestar de diferentes maneiras. Pode ser através de gesto, atitudes
e objetos. Geralmente os promesseiros a fazem em intenção da saúde, quando este ou
alguém de seu convívio encontra-se em enfermidade, ou por outros motivos, como
a continuidade da promessa de outrem, ainda que não se saiba ou lembre o porquê
do prometido.
As pastorinhas, caracterizam-se como um evento tanto religioso quanto profano
na medida em que sempre se origina de uma promessa onde há o envolvimento da
religiosidade. É nesse ato simbólico, um combinado de fé, cultura e imaginário,
que elas são transmitidas, de um modo em geral, de mãe para uma filha ou de uma
avó para uma neta, mas nunca para um filho ou um neto. Entretanto, para que essa
transmissão se realize, há uma preparação, ainda que espontânea desta filha ou neta,
que pode levar muitos anos. Assim, “há uma proximidade entre cultura e imaginário.
Neste sentido pode-se dizer que o imaginário é a cultura de um grupo. Vemos que o
imaginário, é ao mesmo tempo, mais do que essa cultura: é a aura que ultrapassa e
alimenta” (MAFFESOLI, 2001, p. 76), e dessa forma as pastorinhas se nutrem e se
mantém em meio a modernidade.
Este processo, aos nossos olhos, acontece de forma espontânea e naturalizada,
sem que as sucessoras percebam que estão sendo ali preparadas, pois, as trocas de
experiências e instruções que elas recebem, se confundem no cotidiano do folguedo
como algo corriqueiro e voluntário, por elas, pelas famílias, e pelos grupos em que
estão inseridas. Foi assim que no decorrer de sua vida, Maria Aparecida, mas também
sua mãe e sua avó, foram regidas por um imaginário que contribuiu para que todas
assumissem um compromisso com as pastorinhas natalinas, dando continuidade ao
folguedo a partir de uma promessa feita.
Nesta perspectiva, a religiosidade deve ser medida e interpretada, ultrapassando
os conceitos das crenças dominantes e buscando defini-las para além do que está
aparente, como nos mostra Gonçalves (2010, p. 07) ao afirmar que “a religiosidade
de um povo não se mede apenas pelas construções e edificações das grandes reli-
giões, e interpretá-las é buscar ir além do imediatamente observável”. Desta forma,
devemos ter um olhar mais plural quando interpretarmos a religiosidade de um lugar,
principalmente quando falarmos de Amazônia onde há uma pluralidade cultural, fruto
de uma miscigenação imposta.
As mulheres envolvidas nesse processo, através de sua liderança, se encarregam
de manterem e preservarem a cultura, ainda que em espaços limitados, exercem um
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 105
comando camuflada pelo viés religioso. Hunter (2004, p. 15) define liderança como a
“habilidade de influenciar pessoas para trabalharem entusiasticamente visando atingir
aos objetivos identificados como sendo para o bem comum”. É dessa maneira que
agem quando estão à frente do folguedo, quando exercem seu poder de mando para
atingirem seus objetivos, de manter a cada ano o folguedo das pastorinhas, e assim,
cumprirem sua promessa, ao mesmo tempo em que proporcionam uma forma de
diversão para todas as pessoas que dela participam.
A organização dessa manifestação se inicia no instante em que as dirigentes
se reúnem com outras pessoas que dão suporte nas pastorinhas, que de modo em
geral, são membros de sua família, seguido por amigos, vizinhos e simpatizantes,
que sob sua liderança, planejam o folguedo. Após esta reunião onde fica definido
como serão as apresentações, as fantasias que serão confeccionadas, consertadas ou
descartadas, as dirigentes saem à busca de brincantes numa peregrinação pelas casas
vizinhas e do entorno, convidando meninas e meninos com a autorização de seus pais
ou responsáveis, caso sejam menores de idade, para posteriormente dar início aos
ensaios, que via de regra ocorrem quando se tem um número razoável de brincantes
para compor os personagens.
É notável ainda a presença de homossexuais e travestis participando do folguedo
sem haja discriminação aparente, ao contrário, sua presença é bem quista e até requi-
sitada. Há ainda crianças, adolescentes, jovens e idosos, evidenciando a faceta da
inclusão social que as pastorinhas promovem, ao unir pessoas de diferentes idades,
posições sociais e orientação sexual, sem que se perca a harmonia das relações, e
fortalecendo a interação nos barracões, sede das pastorinhas, onde são realizados os
ensaios, sempre iniciando no mês de agosto, quando no primeiro dia é feito o aco-
lhimento e a socialização dos participantes, seguido da apresentação da dirigente e
seus apoiadores, das regras e condições a serem seguidas. Ao final desta e de todos
os ensaios, é oferecido um lanhe a todos.
Nas pastorinhas, todos estão conscientes das normas a serem seguidas, mas “é
preciso enfatizar que os espectadores e os atores são perfeitamente conscientes das
‘regras do jogo’ (ritos, cerimônias e símbolos), mas que eles ‘percebem’ o evento de
modo diferente conforme o papel que lhes é atribuído” (MEDEIROS, 2015, p. 33).
É dessa maneira que o auto natalino é vivenciado todos os dias de forma coletiva,
obedecendo uma estrutura social como argumenta D’Abadia (2014, p. 53), ao afirmar
que essas interações festivas “fazem parte do dia-a-dia das pessoas e que estão inte-
gradas a elas e são formas de ação coletivas que implicam: uma estrutura social de
produção”. Maria Aparecida, dirigente das pastorinhas Filhas de Davi, ao descrever
como é produzido seu auto de Natal, conta como são realizados os ensaios.
“No primeiro dia, depois que a gente já pediu as meninas para participarem, a
gente deixa definido os dias e os horários para elas virem e começarem a ensaiar.
Geralmente esse ensaio é nos dias de quarta, sexta, sábado e domingo. Nesse dia
a gente limpa tudo por aqui, deixa limpo o barracão, com a ajuda dos meninos
que são nossos apoiadores. Colocamos as cadeiras e os bancos, e arrumamos tudo
para esperar elas, as brincantes (Maria Aparecida, entrevista, 2018)”.
106
Quando eu vou pedir uma brincante eu já estou analisando para qual figura ela vai
servir, por exemplo, a moça que for brincar de rainha das flores ou de florista, a
gente tem que ver bem, tem que reparar se ela vai dar conta do personagem. Ela
ainda não pode ser feia, carrancuda, fechada, porque senão, ela não vai dar conta
dos ensaios e vai desistir de brincar no meio das pastorinhas. E aí fica mais difícil
pra gente conseguir uma outra brincante (Maria Aparecida, entrevista, 2018).
Ao que parece, para alguns personagens, além de ter uma boa voz e afinação, se
faz necessário que a candidata tenha uma boa aparência, ser bonita e carismática. Pois
as figuras como a florista e a cigana, devem cantar, dançar, declamar versos, vender
flores ou mesmo pedir dinheiro em prol do folguedo. Essa “pluralidade de situações
comunicativas é característica indiscutível dessa brincadeira: elementos musicais,
poéticos, teatrais e de dança constituem diferentes formas de expressão e comuni-
cação” (GRILO, 2011, p. 149). Daí observarmos a inquietação de Maria Aparecida
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 107
Considerações finais
Ver o folguedo das pastorinhas como manifestação cultural complexa, liderada
por mulheres que carregam consigo o compromisso pela sua continuidade sob o peso
das tradições, nos remete a um cotidiano de luta, a seu modo, pela ruptura e quebra
dos tabus criados pela sociedade patriarcal que ainda a envolvem. Elas encontram na
fé e na religiosidade uma maneira de se posicionarem na sociedade, demarcando seu
espaço na arena pública. É nesse contexto que a fé, o cotidiano e a promessa estão
presentes no folguedo natalino enquanto expressão da cultura popular, repleta de
significações e simbolismos. Com as pastorinhas, a mulher dirigente ganha visibili-
dade, saindo do estereótipo de ajudante do marido, indo além do espaço secundário
destinado a ela, e com o folguedo, ainda contribui para a inclusão social de outros
grupos minoritários.
108
REFERÊNCIAS
ALVES, Isidoro Maria da Silva. O carnaval devoto: um estudo sobre a festa de
Nazaré, em Belém. Petropólis, 1980.
BERGER, Peter Ludwig. O Dossel sagrado: elementos para uma teoria da socio-
lógica da religião. Org: Luís Roberto Benedetti. Tradução de José Carlos Barcellos.
São Paulo. Ed: Paulinas, 1985.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo:
Ateliê, 2003.
BURKE, Peter. O que é história Cultural. Tradução de Sérgio Góes de Paula. Rio
de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
COSTA, Antonio Maurício Dias da. Festa de santo na cidade: notas sobre uma
pesquisa etnográfica na periferia de Belém, Pará, Brasil. Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 1, 2011.
Introdução
O município de Parintins está localizado a margem direita do rio Amazonas
com a distância de 420 km por via fluvial e 368 km em linha reta da capital Manaus,
sua população foi estimada em 2013 com 69.890 habitantes na área de zona urbana
e 32.143 na zona rural, totalizando o número de 102.033 habitantes.
É conhecido mundialmente pela expressão cultural do festival folclórico entre
os dois bois, Garantido e Caprichoso, que foi reconhecida como patrimônio cultural
do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN,
em 2018. Para além do grande potencial cultural do município percebido por essa
e outras diversas manifestações, Parintins apresenta também um grande destaque
em relação aos vestígios arqueológicos, que afloram em diversas localidades, e
foram apontados por pesquisas anteriores (LIMA; SILVA, 2005; LIMA; MORAES;
PARENTE, 2013; HILBERT; HILBERT, 1980), e pesquisas iniciais sobre o sítio
do Macurany (SILVA, 2016; AZEDO, 2017; BIANCHEZZI, 2018). No entanto,
este grande potencial para o conhecimento da história indígena antiga de Parintins
permanece ainda pouco explorado.
A pesquisa que estou desenvolvendo, tem como objetivo contextualizar o muni-
cípio em meio às pesquisas arqueológicas do baixo Amazonas, destacando a anti-
guidade da ocupação e a variabilidade estilística presente nas cerâmicas encontradas
no sítio arqueológico localizado na área urbana e rural da referida cidade, e assim
poder inserir os vestígios arqueológicos no tempo e espaço (cronologia) para desta-
car como essa ilha pode estar relacionada aos primeiros processos de dispersão e de
antropização em larga escala da paisagem amazônica por populações humanas antigas.
Atualmente a proposta de pesquisa que pretendia executar, tinha como objetivo
principal fazer intervenções em um sítio arqueológico localizado no centro da cidade,
especialmente na área atrás do Hospital Jofre Cohen, orla de Parintins. Mas devido o
atual momento, a pesquisa ganha novo caráter investigativo direcionado as coleções
particulares que tenho conhecimento sobre a existência, coleções essas formadas
por moradores que se encantam pelos fragmentos de cerâmicas encontrados, sejam
eles por extração de terra, construções em seus terrenos ou por afloramento natural
ocasionado pelas chuvas, enchentes e vazantes dos rios. Permitindo assim, fazer um
mapeamento participativo do sítio arqueológico e das coleções.
112
Para isso, proponho fazer alguns apontamentos sobre essa antiguidade da ocu-
pação através dos resultados preliminares da pesquisa de campo em andamento,
destacando percepções dos fragmentos cerâmicos encontrados aflorados em sítios
arqueológicos visitados e aqueles presentes em coleções particulares, assim também
como a agência desses objetos no meio ao qual estão inseridos.
87 Essas duas fases de ocupação, destacadas pelos dois tipos de cerâmicas, apontam períodos de ocupação
distintas: a fase Pocó seria um período de ocupação mais antiga, e a fase Konduri seria outro processo de
ocupação, só que bem mais recente que a fase Pocó. Essa diferenciação foi percebida por arqueólogos que
notaram em seus estudos a diferença entre as duas fases por meio da composição de preparo dos objetos
cerâmicos, assim também como o seu design e até mesmo a sua resistência (GUAPINDAIA, 2008).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 113
O olhar para os fragmentos das cerâmicas indígenas nos permite ter acesso a
vestígios de técnicas de produção, e assim entender as complexidades culturais desses
povos sedentários que desenvolveram culturas ceramista, contrapondo a ideia do deter-
minismo ambiental onde as dificuldades apresentadas pelo ambiente não permitiriam
tal avanço tecnológico e fixação. Lima, Barreto; Betancourt (2016), destacam que:
O design de uma peça é definido por uma complexa combinação de fatores que vão
desde as qualidades da argila, as técnicas conhecidas e usadas nas etapas de fabri-
cação dos objetos, o desempenho funcional esperado do objeto, além das escolhas
estéticas individuais e coletivas. Porém, mais importante, os objetos cerâmicos,
assim como outros, simbolizam escolhas culturais e são, ao mesmo tempo, produtos
e vetores de relações sociais (LIMA; BARRETO; BETANCOURT, 2016, p. 20).
88 Esses solos, segundos estudos de solo, se formaram em decorrência da ocupação humana. Também
chamados de solos antropogênicos. Resultado do descarte de resíduos orgânicos como ossos, carapaças,
conchas, fezes, urina, cerâmica, fogueiras, etc. que contribuíram na modificação das propriedades do solo
gerando alta fertilidade (cf. KÄMPF; KERN, 2005; GARCIA; COSTA; KERN; FRAZÃO, 2015).
114
Estrada do Parananema
Essas cerâmicas que afloram por vários motivos, nos revelam a história dessas
populações que por muito tempo habitaram esses lugares que hoje nomeamos de
sítio arqueológico, fazendo-se presente na vida das populações contemporâneas de
diversas formas.
Um dos pontos que pretendo destacar seria, buscar compreender os objetos
como documentação, em especial aqueles que denominamos de coleções formadas
por moradores tanto da zona urbana quanto da área de zona rural.
A imagem acima, destaca um pouco desse caráter de exposição que tento expli-
car, mostrando como os colecionadores, em alguns casos, tornam esses materiais
como parte do seu meio de convívio, presentes e expostos em um local onde as
visitas estarão em contato visual dos objetos, e possivelmente gerando assuntos de
interesse sobre essas peças.
E o interessante também de destacar, é que esses vestígios arqueológicos fazem
parte de um conjunto variado de objetos, que compões a mesa de exposição dessa
residência, que em alguns casos passam despercebidos ou sejam notados facilmente,
dependendo do olhar de interesse e conhecimento das pessoas.
Nesse caso a coleção destacada não está exposta com um fim econômico, mas
sim de exposição que compõe um dos espaços da residência, livre para ser admirado
pelos visitantes.
Em outros casos a exposição ganha caráter de fins econômicos em determina-
dos períodos do ano, onde os fragmentos de cerâmica são expostos nas residências
das comunidades, e podem ser apreciados por uma taxa em dinheiro que varia entre
os colecionadores.
Esse tipo de exposição é uma forma que os colecionadores dessas comunida-
des acharam para desfrutar do encanto que essas peças causam nas pessoas de fora,
algumas comunidades fazem parte do roteiro turístico dos transatlânticos que visitam
o município de Parintins, onde os turistas pagam essas taxas para poderem fazer os
registros fotográficos e apreciarem os objetos.
Essa alternativa de exposição com fins lucrativos foi uma mudança radical em
meio a essas comunidades, que até pouco tempo atrás sofria com vários descasos
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 117
de venda desses objetos para os turistas, e pode se dizer que através de pesquisas
realizadas nessas localidades direcionadas para educação patrimonial, como o Levan-
tamento Arqueológico do Médio Amazonas, no ano de 2005, vinculado ao Projeto
Médio Amazonas, que teve como objetivo identificar sítios e coleções arqueológicas
presentes em onze municípios do Médio Amazonas como: Itacoatiara, Parintins,
Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués, Urucurituba, São Sebastião do Uatumã,
Itapiranga, Silves, Urucará e Nhamundá, proporcionando novas perspectivas para
pesquisas nessa região (LIMA; SILVA, 2005, p. 5), hoje pode ser percebido um
sentimento de pertencimento com a história local e o cuidado com os objetos arqueo-
lógicos que afloram.
Fora esse período os fragmentos de cerâmica voltam a ser guardados por seus
proprietários, sendo expostos somente para pessoas que venham a desenvolver pes-
quisas na região, é um relato muito frequente dos moradores dessas comunidades,
onde ‘a procura desses objetos é somente por pessoas das universidades, escolas, e
que desenvolvem pesquisa sobre eles ou dos turistas que visitam a comunidade, fora
isso os objetos ficam guardados’.
Os discursos sobre a coleção chamam atenção para a relação do ponto de vista
visível e invisível dos colecionadores para esses objetos. Essa observação trata-se da
identificação dos discursos de cultura material e imaterial presenciadas nos relatos das
pessoas que detêm a guarda desses fragmentos, tendo assim, as suas interpretações
e significados próprios para uma peça ou conjunto de peças.
Essa observação sobre a significação dos objetos cerâmicos para essas pessoas,
vai muito além do conhecimento científico demonstrados através de histórias, des-
crição, valor sentimental entre outros aspectos que podem ser presenciados em seus
discursos, induzindo as suas escolhas.
Coleção particular
As duas imagens acima demonstram uma coleção particular com grande variabi-
lidade artefatual, esses fragmentos podem possibilitar novos direcionamentos de traba-
lhos e interesse de pesquisas com novas informações para região, pois ao observar as
imagens podemos ver a presença de apliques antropomorfos, zoomorfos, bordas inci-
sas e ponteadas ou a coloração da pasta desses objetos, que seria a mistura da argila
com outros materiais, possibilitando compreensões a respeito dessa cultura material.
120
Paisagens antropogênicas
Esses locais delimitados como sítios arqueológicos podem ter as suas parti-
cularidades de identificação através da paisagem que constitui o seu espaço, pois a
vegetação identificada em meio às pesquisas realizadas por arqueólogos apontam
domesticação antrópica em meio a esse mosaico que é a Amazônia, pois mostram que
o processo de interação entre as populações humanas pré-coloniais e o meio físico
da Amazônia foi bastante rico e que a biota, além de uma história natural, também
tem uma história cultural (NEVES, 2005, p. 80).
Muitas árvores de castanha – sendo que os responsáveis pela dispersão das
sementes de castanha, foram e são, a cutia e os humanos – e palmeiras de tucumã,
buriti, inajá, açaí entre outras, são muito encontradas nesses locais que delimitamos
como sítios arqueológicos e que apresentam diversos vestígios em seu espaço, e foi
buscando esses indicadores que em muitos momentos me deparei com vestígios
arqueológicos como TPI e fragmentos de cerâmicas aflorados, então, seria esse um
dos indicadores para identificar esses locais que guardam vestígios arqueológicos?
Para Neves:
acordo com as possibilidades de investigação, por ser da área de História e não ter um
treinamento adequado para trabalhar com esses vestígios ou autorização do Instituto
de Patrimônio Histórico Nacional – IPHAN, para fazer escavações no local e nem
um arqueólogo que estivesse acompanhando pessoalmente, nesse período fizemos
apenas o georreferenciamento desses locais como “ocorrências”, para servir de base
para futuras pesquisas, como pontos que indicam ter vestígios arqueológicos e que
necessitam de uma investigação mais aprofundada, pois alguns locais apresenta-
vam dificuldades.
Essas dificuldades de identificação do local, dava-se em sua maioria, por ser
locais de mata fechada, abertura de campos para criação de gado, queimadas, ou
não se tinha a autorização dos proprietários de alguns terrenos para poder adentrar
e investigar melhor.
As imagens abaixo mostram a vegetação encontrada nesses locais georreferen-
ciados e delimitamos como sítio arqueológico. Podemos observar algumas palmeiras,
já apontadas como indicadores do processo de domesticação antrópica da Amazônia,
que é o caso da palmeira inajá, tucumã e diversas árvores frutíferas.
Ao fundo, é possível perceber grande densidade de árvores de castanheira, esse
foi também um dos indicadores que auxiliaram na identificação e localização de sítios
arqueológicos em meio à vegetação amazônica. Entender que a disseminação das
árvores de castanheiras pela floresta foi obra de populações humanas no passado pos-
sibilita identificar nas proximidades desses castanhais, os sítios arqueológicos, onde
a fixação desses povos se deu próximo, pois a castanha que se é retirado do fruto da
castanheira tem um grande teor calórico, que seria parte da alimentação desses povos,
esse ponto explicaria o porquê dessa disseminação densa pela floresta Amazônica, e
o porquê de ser um dos grandes indicadores da presença de sítios arqueológicos no
entorno (NOGUEIRA, 2012).
Mesmo com a grande importância histórica que esses espaços têm para a história
local, se torna difícil, sem uma fiscalização de órgãos que protejam esses patrimônios,
pois mesmo com registro dessas áreas pelo IPHAN, ainda há destruição de muitos
sítios arqueológicos na Amazônia, devido aos processos de urbanização, projetos
de desenvolvimento e turismo sem autorização em áreas de sítios arqueológicos
causando impactos de toda ordem a este tipo de patrimônio.
Não é diferente em Parintins, pois além de não ter uma pesquisa que indiquem
onde estão estes sítios, ainda temos a negligência do poder público que deveriam
contribuir junto com pesquisas cientificas para salvaguardar estes bens culturais,
exemplo, caso da destruição de várias urnas funerárias e outros artefatos arqueoló-
gicos na estrada de acesso a uma das comunidades próximo à sede do município de
Parintins, devido à ação de máquinas que fizeram a reabertura da estrada em área de
sítio arqueológico registrado no IPHAN. Assim, tem se constituído um dos princi-
pais desafios na região, o de proteger e salvaguardar tais locais, onde as diferentes
áreas do conhecimento possam atuar através de pesquisas multidisciplinares como:
arqueologia, história, geografia, física, química etc.
122
Com isso, essa pesquisa não procurou apenas mapear e reconhecer os sítios
arqueológicos de Parintins-AM, mas também trazer à tona informações que demons-
tram a importância da ressignificação dada pelos moradores a esses locais, significa-
dos dados ao objeto estudado em geral. Mas, faltam diálogos com esses sujeitos que
vivem cotidianamente com essas incidências ao longo de suas vidas, são informantes
dos pesquisadores, indicam com precisão os locais onde estão esses materiais, onde
muitas vezes não são tratados como parceiros de pesquisa.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 123
Algumas considerações
O intuído desse trabalho é demonstrar e discutir sobre a importância do desen-
volvimento de trabalhos em diversas áreas da Amazônia que ainda é pouco explo-
rada, lugares esses que apresentam grande potencial para se desenvolver pesquisas
de cunho arqueológico.
Destacando a importância de identificar esses locais que têm vestígios arqueoló-
gicos como TPI, fragmentos de cerâmica entre outros na composição de seu espaço,
proporcionando entender mais sobre a história desses povos que desenvolveram
técnicas no processo de fixação e até mesmo de organização social, ressaltando como
esses povos eram organizados e tinham culturas diversas.
Além de buscar trabalhar nas linhas de investigação e discussões a respeito de
modificações antrópicas da paisagem por populações indígenas, mostrando a cultura
material não só como indicadores de desenvolvimento tecnológico, mas proporcionar
discussões para além do determinismo ambiental.
De outro lado, ressalta a importância dos estudos de uma ciência da materia-
lidade, por sua vez, a arqueologia é uma ciência social e interpretativa que trabalha
com fragmentos de um todo, onde essa materialidade é somente um repositório de
informações da imaterialidade e socialidade dos povos indígenas antigos.
A pesquisa está sendo desenvolvida com o olhar para a área urbana e rural do
município, ambas guardam grandes riquezas em artefatos arqueológicos, tanto aqueles
que estão aflorando ou estão nas atividades de roçado, construções de residências,
criação de gado, quanto aqueles que se tornaram coleções particulares por apresen-
tarem algo que desperta interesse e curiosidade dos moradores.
Os estudos arqueológicos relacionados aos fragmentos de cerâmicas indígenas
tem indicado diversos fatores de socialização entre as populações indígenas, sejam
eles de troca, reocupação dos espaços já habitados anteriormente ou possíveis junções
de indivíduos de grupos diferentes, as configurações do registro arqueológico apon-
tam para a possível existência de sociedades multiétnicas em redes inter-regionais na
área de interflúvio entre os rios, onde essas afirmações só serão comprovadas a partir
do estudo desses vestígios presentes no município, para que futuramente possamos
contextualizar Parintins em meio as pesquisas arqueológicas do Baixo Amazonas.
124
REFERÊNCIAS
BARRETO, Cristiana; LIMA, Helena Pinto Carla; BETENCOURT, Jaimes (org.).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese. Belém: IPHAN:
Ministério da Cultura, 2016.
DIAS, Naia Maria Guerreiro. Sítio Arqueológico São Paulo, Valéria/AM: turismo
e patrimônio cultural: Dissertação de Mestrado, Parintins, 2016.
HOSKINS, Janet. Agency, Biography and Objects. In: TILLEY, C.; KEANE, W.;
KÜCHLER, S.; ROWLANDS, M. (ed.). Handbook of Material Culture (p. 74-84).
London: Sage Publications Ltd. 2006.
KÄMPF, Nestor; KERN, Dirse Clara. O solo como registro da ocupação humana
pré-histórica na Amazônia. In: TORRADOVIDAL, P.; ALLEONI, L. R. F.; COO-
PER, M.; SILVA, A. P. (ed.). Tópicos em ciência do solo: 2005, 1. ed., v. 4: 277-320.
Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, Viçosa.
Introdução
Este artigo faz parte do projeto de pesquisa intitulado89 “A Cidade Como Texto:
Patrimônio Edificado, Histórias e Memórias da Cidade de Parintins (AM)”, cujo
objetivo foi analisar as múltiplas interações entre História e Memória da Cidade
de Parintins a partir da identificação e análise das ideias e valorações acerca do
patrimônio histórico edificado da cidade, que se materializam na percepção de seus
habitantes. A pesquisa buscou ainda indicar a relevância do patrimônio edificado da
cidade de Parintins – AM, como suporte para a construção/resgate de outras memórias
e histórias da cidade.
Em que pese ser uma das mais importantes cidades do Estado do Amazonas e
nacionalmente conhecida por suas festas populares e produção cultural, há poucos
estudos históricos sobre o patrimônio edificado da cidade de Parintins. Pouco se
comenta, que o Patrimônio Histórico e Cultural da cidade também conta uma história
da localidade e de seus habitantes, assim como estes conhecem e difundem histórias
da cidade que assimilaram por suas lembranças e pela memória dos mais velhos
(pais, mães, avôs e avós).
Neste sentido, tomando o patrimônio histórico edificado como mote, o pro-
jeto buscou explorar essas múltiplas interações entre memória e história. Para o
desenvolvimento do trabalho, foram realizadas leituras contextuais sobre a cidade de
Parintins e sobre o tema do Patrimônio Histórico, visando reforçar o embasamento
da pesquisa. Realizamos ainda pesquisa de campo, utilizando técnicas da História
Oral, abrangendo uma série de entrevistas com moradores destacados (mais velhos,
historiadores e professores de história) da cidade.
O Patrimônio Histórico de Parintins é composto de um conjunto de elementos
materiais e imateriais, entre eles, suas manifestações culturais, seus sítios arqueo-
lógicos e, principalmente, de suas edificações históricas, as quais apresentam um
quantitativo pequeno de exemplares, porém, construídos nos seus mais variados
estilos e épocas. Com base nisso esperamos detectar as relações existentes, entre a
população do município de Parintins e o seu patrimônio edificado. A pesquisa buscou
inventariar as edificações e outros bens materiais do período de 1895 a 1970.
89 “A cidade como texto: patrimônio edificado, histórias e memórias da cidade de Parintins (AM)”. Projeto de
pesquisa aprovado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da UFAM.
128
Metodologia
Inicialmente, efetuamos leituras contextuais sobre a cidade de Parintins, bem
como as leituras teóricas sobre o tema do Patrimônio Histórico, visando reforçar
o embasamento da pesquisa. Em paralelo, foi realizado ainda, o levantamento das
principais edificações que, frequentemente são arroladas nos discursos oficiais e nos
estudos acadêmicos como integrantes do patrimônio histórico. A pesquisa buscou
inventariar as edificações e outros bens materiais no período de 1895 a 1970. Reali-
zamos também a pesquisa de campo, utilizando técnicas da História Oral, abrangendo
entrevistas com moradores destacados (mais velhos, historiadores e professores de
história) da cidade. Para análise dos dados foram utilizadas técnicas qualitativas.
Devido a diminuta existência de registros escritos sobre o patrimônio histórico
de Parintins-AM, demos ênfase e utilizamos como recurso metodológico a História
Oral. Neste sentido, nos apoiamos na leitura de produções historiográficas de teóricos
como Alberti (2013), Freitas (2006), Meihy (2018), Nora (1993), Pollack (1989),
Portelli (1997), entre outros autores, como meio para construir o trabalho por meio
das narrativas de moradores da cidade, acerca de seu patrimônio.
A História Oral fornece documentação para reconstruir o passado recente, pois,
o contemporâneo também é história, isso legitima a história do tempo presente,
visto que a história durante muito tempo fora relegada somente ao passado. De
acordo com Freitas (2006), “utilizando a metodologia da História Oral, produz-se
uma documentação diferenciada e alternativa à história”, antes realizada quase exclu-
sivamente com fontes escritas. Neste sentido, a História Oral abriu novas perspec-
tivas para o entendimento de um passado recente, amplificando as vozes que não se
fariam ouvir, possibilitando assim o conhecimento de diferentes “versões” sobre os
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 131
Resultados e discussões
As entrevistas foram realizadas como parte da pesquisa de campo para escrita
da dissertação ao Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal
do Amazonas. O objetivo do trabalho foi identificar as múltiplas concepções de patri-
mônio histórico manifestadas na percepção dos moradores da cidade de Parintins,
partindo das memórias recolhidas desses moradores e que presidem suas valorações
em termos do que melhor identifica e expressa a história da cidade.
As entrevistas foram realizadas na cidade de Parintins, nos meses de dezembro
de 2019 e julho de 2020. Entre os critérios de seleção para entrevistas foi o de que os
entrevistados fossem moradores da cidade. Foram entrevistados cerca de 16 morado-
res com idades entre 33 a 79 anos, entre estes professores de História, funcionários
públicos, microempresários, aposentados, poetas e escritores.
Estes moradores guardam parte das memórias da cidade, e por intermédio da
História Oral, buscamos perceber interações e contrapontos com a história oficial e
a visão dos historiadores da cidade. Como forma de promover o conhecimento das
memórias desses moradores, optamos por manter os nomes desses narradores bem
como a narrativa em sua originalidade.
132
Tem várias concepções. Se você for pela aquela questão conceitual, o patrimônio
histórico material, o patrimônio histórico imaterial, é muito amplo estas conside-
rações. Mas, se eu for buscar uma vertente, por exemplo, do patrimônio material,
é tudo aquilo te remete a uma memória, é tudo aquilo que você se referencia.
Por exemplo, na questão de Parintins, como eu vivi minha infância no centro
da cidade, eu tenho como patrimônio histórico os lugares que eu frequentava, a
praça da prefeitura, o mercado municipal onde eu ia com minha mãe, a principal
rua da cidade que era rua da frente, que ia desde o cais (Porto de Parintins). Aliás,
desde a praça do Sagrado até a praça do Comunas [...] Então, é isso que ficou na
minha memória, então pra mim essa região, ela tem uma memória e por isso eu
considero como patrimônio cultural. As casas, muitas delas foram demolidas,
as outras estão abandonadas, mas, pra mim existe um marco de patrimônio.
[Antiga] Prefeitura, [igreja] Sagrado Coração, o Cais do Porto, embora muito
modificado, ainda me remete a patrimônio, porque ali é um lugar de chegadas
e de saídas (DEILSON TRINDADE, 2019/ENTREVISTADO).
O centro de Parintins. E nem poderia ser diferente. Por exemplo, ali junto aos
cais do Porto, a residência episcopal [...] ela é um patrimônio histórico, ali era
os Correios, era onde se fazia a comunicação, o cabo submarino partia de lá
[...] ali tem história. Temos também ali, a antiga igreja Matriz Sagrado Cora-
ção de Jesus, e o Colégio Nossa Senhora do Carmo atrás, que foi desenhado
pelo padre Victor, entre os anos de 1920 e 1930. De lá, nós vamos ter aqui,
o Mercado Municipal, nós vamos ter a casa das Maranhão, a casa do Elias
Assayag, o antigo Cine Brasil, que depois virou Cine Saul, que já não existe
mais. [...] Já ali acima, em frente à antiga praça Cristo Redentor, aquelas casas
ali era dos Judeus, aquilo já remete aos primeiros anos do sec. XX (BASÍLIO
TENÓRIO, 2019/ ENTREVISTADO).
Com base nos relatos acima, os historiadores mencionam como a área central
da cidade e suas edificações contam uma parte importante da história de Parintins,
com destaque à formação do primeiro núcleo de organização dos primeiros aldea-
mentos, povoados e missões religiosas que deram origem a Villa Nova da Rainha
e, posteriormente, à cidade de Parintins. Mencionam ainda, o papel importante da
Igreja Católica, na construção dos primeiros templos religiosos da cidade. Além
de citar as edificações construídas por imigrantes judeus que se estabeleceram na
cidade, no final do século XIX, e dedicando-se às atividades comerciais, também
contribuíram para o desenvolvimento do município.
Quando perguntados se pudessem escolher alguma edificação como patrimônio
histórico para representar a cidade de Parintins, entre as respostas foram mencio-
nadas as principais edificações, ao lado dos nomes constam os ano de construção
desses bens imóveis: Casa da Família Maranhão (1901); Palácio Cordovil ou antiga
Prefeitura (1937); Mercado Municipal (1931); Grupo Escolar Araújo Filho (1929);
Casario dos Judeus (1937); Igreja do Sagrado Coração (1883); Escadaria da Praça
Cristo Redentor (1895); Catedral de Nossa Senhora do Carmo (1963); Colégio
Nossa senhora do Carmo (1956); Cine Oriental (1964); Residência de Furtado
Belém (1952). Os entrevistados também mencionaram algumas construções que
não existem mais ou foram descaracterizadas, como a sede do antigo Cine Saul
(1948), antigo Cine Teatro Brasil, cuja fachada foi demolida e hoje abriga lojas
comerciais; e a antiga praça do Cristo Redentor (1956), que passou por reforma
em 2005, passando a se chamar praça Digital.
134
Uma opinião expressada pelo senhor Marco Aurélio, 42 anos, professor de his-
tória, morador da cidade, aponta a Casa das irmãs Maranhão como sendo um dos
principais prédios considerados pelos moradores como sendo um patrimônio histórico
da cidade, as menções à residência que pertenceu a Família Maranhão e que foi cons-
truída no início do século XX (1901) são muito recorrentes nas falas dos entrevistados.
Se a gente for pegar certos locais, que possa identificar determinados momentos da
história de Parintins, eu penso que bem preservado e que identifica uma bela época,
eu acho que é a casa das Maranhão, por estar bem preservado e por identificar
uma época que ainda pegaria o período áureo da Borracha, e identifica muito. É
uma edificação que ainda não foi modificada, acho que é casa das Maranhão [...]
porque traz todo um traço de aspecto de linguagem, de aspecto arquitetônico, da
arquitetura de uma época e pelo fato de estar bem preservado (MARCO AURÉLIO
GARCIA, 2019/ ENTREVISTADO).
Olha, a frente da cidade era os prédios mais antigos que tinha, quando cheguei, é
começo da cidade. A praça do Cristo era diferente. Me lembro do cinema do Saul,
cheguei a ver o Saul, frequentava ali. [Eu] era moleque e gostava de jogar bolinha
(risos), essa hora assim da tarde era muita gente, a gente ficava lá jogando bolinha,
aí o Saul, o velho Saul passava lá aqueles, aqueles tempos antes do filme que ia
passar de noite [os trailers]. Aí de lá mesmo, a gente já fica lá, e aí já entrava no
cinema. Foi uma infância [boa]. Dizem assim, que a gente é feliz quando a gente
é criança. E é verdade mesmo, viu. Estou lhe dizendo. Estes tempos não voltam
mais, mas, a gente se lembra (HERALDO MACHADO, 2020/ ENTREVISTADO).
A lembrança que estes moradores mais antigos têm dos cinemas da cidade, o
Cine Saul e Cine Oriental, é algo que ficou patente nas entrevistas, o saudosismo
daquela época é marcante nos discursos desses parintinenses, revelando que a repre-
sentação destes espaços culturais ainda estão presentes nas memórias individuais e
coletivas dos parintinenses que frequentavam estes locais entre as décadas de 60 e 70.
136
Cine Saul
Considerações finais
A pesquisa realizada permitiu compreender as ideias de valoração que os mora-
dores de Parintins (AM) têm sobre o patrimônio histórico edificado da cidade. Os
resultado até aqui obtidos permitiram também identificar quais as edificações con-
sideradas por estes parintinenses como bens e espaços com valores históricos. Com
base nessas percepções foi possível inventariar alguns dos principais bens edifica-
dos da cidade. Outro resultado importante, foi a descoberta da relevância dessas
edificações para a comunidade, e o grau de identificação que ela mantem com esse
patrimônio histórico.
De igual forma, a pesquisa tem também proporcionado a possibilidade de conhe-
cer a história da cidade a partir das outras “vozes e olhares”, trazendo para o centro do
debate o morador comum da cidade, sua vivência e seu conhecimento. Por intermédio
desses testemunhos, pode-se perceber a existem alguns patrimônios históricos edifi-
cados que apesar de não mais existirem fisicamente, ainda são lembrados e agregam
traços de imaterialidade nas memórias desses moradores.
O trabalho também tem nos permitido recontar parte da história da cidade,
que continua muito viva nas memórias desses parintinenses, evitando assim seu
esquecimento e contribuindo para reconstrução e preservação tanto dessas memórias,
quanto das dimensões físicas da cidade por elas reportadas. Percebe-se que a cidade
Parintins ainda possui muitas edificações históricas, porém é notório que a imensa
maioria delas está ameaçada pelo abandono e pelo descaso de um poder público que,
infelizmente, ou se omite, ou atua de forma muito tímida em relação a implementação
de políticas públicas de preservação e conservação desses locais considerados como
patrimônios históricos. Não se trata de um problema de legislação, mas de ação, já
138
REFERÊNCIAS
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. 2º ed. São Paulo:
Editora Centauro, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. et al. 3. ed. Cam-
pinas: Editora UNICAMP, 2003.
MEIHY, Jose Carlos Sebe Bom; BARBOSA, Fabíola Holanda. História oral: como
fazer, como pensar. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2018.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História.
São Paulo, n. 10, dez. 1993.
PORTELLI, Alessandro. “O que faz a História Oral diferente”. Projeto História PUC/
SP, São Paulo, (14), fev. 1997.
[...] a música independente não foi privilégio do Rio de Janeiro e São Paulo.
Nomes importantes surgiram em Minas Gerais, com destaque para a cantora
Tiane, Belo Horizonte, e artistas ligados ao vigoroso movimento cultural do Vale
do Jequitinhonha; no Ceará, Marlui Miranda tornou-se referencial na coleta de
gravação de cantos indígenas; na Bahia, a música de carnaval sempre teve um
vigor próprio independente, antes de ser descoberta pelo Brasil, entre outros
estados. Em Pernambuco e Paraíba, o Movimento Armorial, criado em 1970
por Ariano Suassuna, atravessava a década mesclando o folclore musical com a
música erudita, somando-se às inúmeras iniciativas culturais locais – no teatro,
na poesia, no artesanato e na música popular, sobretudo – que marcavam a vida
daqueles dois estados desde início da década de 1960. [...] Na virada da década
de 1970 para a década de 1980, havia uma considerável rede de produção musical
alternativa, fora dos esquemas monopolistas da indústria fonográfica brasileira
[...] (NAPOLITANO, 2001, p. 128).
90 “Nessa época, as toadas de Boi Bumbá estavam em crescente difusão e aceitação por parte de um público
que absorvia o Festival de Parintins com maior intensidade. O Grupo Carrapicho de Zezinho Correa havia
estourado no Brasil e o Grupo Raízes Caboclas de Celdo Braga se consolidava como representante da cultura
local na canção. Na década de 1990, há um passo gigantesco na produção musical e o Amazonas entra no
cenário nacional apresentando seus cantores e compositores e a sua música. A música de boi-bumbá se
transforma em produto de exportação e vemos o Amazonas representado por Garantido e Caprichoso em
todas as mídias” (FARIAS, 2017, p. 162).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 143
algo para a cultura local. Alguns nomes de festivais que ocorreram na cidade: “Cidade
Providência”, “Ilha de Tupinambarana”, e mais tarde o FECAP, Festival da Canção de
Parintins, teve seu começo em 1985, sendo um dos momentos mais importantes de luta
por uma identidade musical. O evento reuniu muitos compositores e canções de todos
os gêneros musicais, sendo essa diversidade importante para se criar um evento com
características peculiares, reunindo elementos representativos e identidade musical.
O processo da prática criativa no mundo das artes apresentado neste artigo busca
mostrar por meio da memória produzida pelos colaboradores José Carlos Portilho91
e Paulinho Dú Sagrado92, confluências com a história e com a memória, diretamente
ligada à vida, se considerarmos que estas práticas criativas são partes de um processo
cultural vindas de experiências, em que os compositores narram suas histórias de
aprendizado profissional, e o quanto os compositores se tornam participativos no
cenário cultural da cidade. Khoury (2004) nos esclarece que:
91 Compositor natural de Parintins, reside atualmente na cidade de Manaus. Participou de muitos Festivais de
Música ocorridos na cidade de Parintins e em outros lugares do Brasil. Concedeu esta entrevista em 16 de
novembro de 2017.
92 Compositor de toada nascido na cidade de Parintins, participou dos Festivais da Canção (FECAP) na década
de 80. Integrou os grupos musicais: Ajuri, Vento e Proa e Regional Vermelho e Branco entre as décadas
de 80 e 90. Concedeu esta entrevista em 26 de dezembro de 2017.
144
recordam a melodia e a letra, lembram que ela foi uma das canções mais prestigiadas
pelo público no Festival da Canção de Parintins – FECAP93, concorrendo no ano
de 1985, segundo os registros nos jornais da época e fontes sobre o Festival. Eis a
letra cantada pelo compositor, no momento da entrevista:
Lembranças são partes das nossas percepções, no caso desta canção rememo-
rada pelo compositor, a letra e a melodia existentes na nossa lembrança, são partes
da relação que estabelecemos com a nossa memória coletiva, e que representam o
lugar de memória, considerando, que a memória é o que nos permitiu estabelecer a
conexão significativa entre os acontecimentos, dando sentido às experiências viven-
ciadas, sendo boas ou ruins.
Meihy (1996, p. 81) nos diz: “a memória é sempre dinâmica, muda e evolui de
época para época”; portanto,
é prudente que seu uso seja relativizado, pois o objeto de análise, no caso, não é
a narrativa, objetivamente falando nem sua relação contextual, mas, sim a inter-
pretação do que ficou (ou não) registrado nas cabeças das pessoas... Quer seja
pelo papel ou pela circunstância que envolve alguma pessoa, a memória ganha
um caráter emblemático, que, contudo, deve ser visto sempre pela ótica social”.
93 Cf. MAGALHÃES, Hiana Rodrigues da Silva. “O Festival da Canção de Parintins por meio das narrativas
dos compositores: História, Memória e Identidades 1985-1991”. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
94 “Aos Amigos do Peito” – compositor – José Carlos Portilho – IV FECAP em 1985. Ver anexo da entrevista
concedida por este autor em Magalhães (2019).
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 145
[...] eu tinha terminado a faculdade, passei pra fazer parte da toada, compor toadas,
aí a primeira toada que eu fiz, foi de protesto. Eu pedia eleições “Diretas, Já95”,
naquela época, em 1983. Era a febre nacional [...] “Alô meu povo, quer votar pra
presidente desta nação brasileira, diretas já minha gente, votando pra presidente,
hoje eu me sinto orgulhoso em ser Caprichoso, quem viver verá que este é meu
canto de guerra, desfraldando o azul e branco do campeão desta terra”. Fiz um
pouco temeroso, porque era ditadura, ainda era ditadura, fiz um pouco temeroso
eu trabalhando no Banco do Brasil pior ainda, né? [De] haver uma marcação, mas
eu dei o meu recado, a sorte é que ela não valeu, porque não podia cantar música
política na arena, só podia cantar fora, mas lá fora pegava, porque o Brasil todinho
pedindo Eleições Diretas, e eu lá em Parintins, no boi, também pedindo a minha
[...] fora disso, usávamos a poesia mesmo, muito, a poesia pura, poesia infantil,
muito para o lado infantil, muito pro lado da natureza, não gostava muito desse
negócio de desmatamento, apesar de Amazônia ter um pouco, mas porque eu sabia
que estava nessa febre do desmatamento da Amazônia, não sei o quê, tem, tinha
na época, mas não era tanto, mas eu já entrava nessa seara, eu pegava carona da
mídia geralmente, eu via o que falava mais no momento e embarcava, no contexto
da época, tanto na parte de devastação da Amazônia, como na parte de exaltar a
juventude, a criança, Halley, o cometa, [...] minhas músicas, algumas foram ins-
piradas, mas a maior parte delas não, elas foram pensadas dentro de textos que se
lia e tirava alguma coisa, conclusão, como eu falei de Caminhos Incertos, que eu
95 A ditadura militar já durava 20 anos quando milhões de pessoas em todo o Brasil foram às ruas em 1983/84,
num movimento de massas sem precedentes, exigir a volta das eleições diretas para presidente e o fim do
regime militar. Já forçara a “abertura lenta, gradual e segura” com a campanha da anistia, que resultou na
lei de 1979. Em 1982, nas primeiras eleições diretas para governador, a oposição ganhara em dez estados.
Com as grandes manifestações de 1984, na maior campanha cívica já ocorrida no país, as Diretas-Já, o povo
brasileiro cobrou o direito de escolher seu maior governante. Os comícios pipocaram em diferentes capitais
e grandes cidades do país, incluindo Manaus. Cf: http://memorialdademocracia.com.br/card/dieretas-ja
146
vou te dar, a letra das três, “Amazônia”, “Caminhos Incertos”, “Aos amigos do
Peito” para que você tire suas conclusões daquilo que eu falava naquela época.96
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros não basta que eles nos tragam
seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com
suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para
que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento
comum (HALBWACHS, 1990, p. 34).
96 Entrevista concedida por José Carlos Portilho, compositor parintinense, 16 de novembro 2017.
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 147
Paulinho Dú Sagrado, um dos colaboradores deste artigo, nos fala sobre esse
momento de conquistas no campo cultural da cidade:
da sua arte”, são percepções que enlaçam muitos fios narrativos importantes, pelos
quais se justificam a força da expressão, no caso dos dois compositores, onde estamos
analisando as experiências de contribuição para a cultura e a arte na cidade de Parin-
tins. Entendemos que estes se reinventam dentro dos vários projetos participativos
onde atuaram, principalmente, nas décadas de 80 e 90, momento crucial para os dois.
A síntese desse processo mostra a imersão nos sentimentos por meio das con-
quistas e aprendizados adquiridos por estes dois compositores que narram suas his-
tórias. De acordo com Lima (2011, p. 187), ao analisar Chartier,
dois tipos de abordagens podem ser identificadas: uma tem como fundamento a
ideia de que a construção das identidades sociais é o resultado da relação de forças
entre representações impostas por quem tem o poder de classificar, bem como,
da capacidade de aceitação ou resistência por parte da comunidade e outra que
considera o recorte social, conferindo crédito à representação que cada grupo faz
de si mesmo, sua capacidade de se unir e fazer reconhecer sua existência.
[...] Eu sou feliz naquilo que eu faço, naquilo que eu costumo produzir, porque
para mim, pra minha maior satisfação é ver o povo se identificar com a minha
obra, saber que o Paulinho Dú Sagrado sempre prezou pelo trabalho de qualidade,
trabalhou de alma, ou numa fundamentação que possa ser aproveitado, então, eu
acho muito importante, a gente ter essa preocupação, porque você cria expectati-
vas nas pessoas, sempre, a cada ano, você produz trabalhos de qualidade, então,
eu como compositor que sou, pelo menos considerado pela mídia que é isso que
a mídia publica, então eu tenho essa preocupação sim, de elaborar os projetos
bem elaborados, bem conceituados, acho isso importante, a gente ser avaliado
por aquilo que você produz, e, graças a Deus, eu tenho contribuído muito para a
cultura da minha terra.99
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito. 2a. edição. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3a. edição. São Paulo:
Editora Companhia das Letras, 1994.
BOSI, Ecléa. O Tempo vivo da memória: Ensaios de psicologia social. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2003.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história Oral. 4. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 1996.
Fontes Orais
Paulo Pimentel da Silva (Paulinho Dú Sagrado)
Data de nascimento: 12 de novembro de 1962
Profissão: músico e compositor
Gravação: gravador digital
Entrevista realizada no Bar Comunas em Parintins.
Data da Entrevista: 26 de dezembro de 2017
A
Afrorreligiões 16, 21
B
Barracões 97, 105, 107
Bispo 41, 75
Bispos 31
Boi-bumbá 65, 132, 142, 149, 150
C
Catedral 59, 60, 61, 62, 63, 133, 137
Catolicismo 21, 31, 41, 48, 99, 106
Centro-oeste 29
F
Feminismo 72, 73, 74
Festas 17, 21, 22, 41, 48, 49, 99, 102, 103, 106, 127, 135, 143
Festivais da canção 143, 149
Filhas de Davi 105
Fotografia 62
G
Garota Camarão 49
H
História cultural 120
História da cidade 131, 135, 137, 138
História da educação 70
História de Parintins 133, 134
História de vida 90
História indígena 111, 158
História local 11, 13, 117, 121, 123, 158
154
I
Igreja Católica 20, 21, 25, 26, 31, 33, 34, 41, 48, 49, 75, 133
Imaterial 100, 107, 117, 128, 132
Imigração 25, 44, 45
Indígenas 12, 22, 31, 113, 115, 118, 123, 141
IPHAN 111, 121, 128, 129
J
João Melo 56, 59, 62, 63, 136
M
Médico 35, 56, 57, 58
Memória coletiva 63, 130, 144, 145, 146, 149
Mercado de trabalho 87, 89, 90, 91
Mercado Municipal 132, 133, 137
Migração 55, 83, 85, 86, 87, 88, 93
Missionários 25, 26, 29, 31, 32, 33, 36, 60
Música popular 141, 142
N
Nordeste 12, 29, 56
Nossa Senhora do Carmo 75, 76, 133, 137
P
Padre 21, 33, 34, 133
Padres 31, 33, 75
Pastorinhas natalinas 97, 98, 102, 104, 107
Pastor Lessa 32, 56, 58
Patrimônio arqueológico 123
Patrimônio cultural 97, 111, 128, 129, 132
UM RIO DE HISTÓRIAS: conexões entre
memória, cultura e patrimônio no Baixo Amazonas 155
R
Região amazônica 43, 46, 48, 83, 142, 146
Religião 16, 20, 21, 48, 58, 60, 70, 102
Religiosidade 16, 25, 31, 99, 102, 104, 107
S
São Benedito 65, 133
São Sebastião 18, 20, 21, 48, 103
Saúde 12, 35, 57, 58, 89, 90, 95, 104
Sítios arqueológicos 112, 113, 115, 120, 121, 122, 123, 127
T
Tempo presente 13, 42, 52, 130
TPI 113, 120, 123
V
Valéria 132, 133
Violência 34, 78, 93
SOBRE OS AUTORES
César Aquino Bezerra (Organizador)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas (PPGH-UFAM) e licenciado em História pela Universidade do Estado
do Amazonas (CESP-UEA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
do Amazonas (FAPEAM). Membro do Grupo de Estudos Históricos do Amazonas
(GEHA). Tem experiência em pesquisa com História do Brasil República, Pós-Abo-
lição, Relações Raciais, Relações de Gênero, História do Amazonas, Protestantismo
na Amazônia e História Oral.